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Casa do Psicólogo*

Acompanhamento Terapêutico
Casos clínicos e teorias
Acompanhamento Terapêutico
Casos clínicos e teorias

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez


(Org.)

Casa do Psicólogo®
© 2011 Casapsi Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
sem autorização por escrito dos editores.

1a Edição
2011

Editores
Ingo Bernd Güntert e Juliana de ViUemor A. Güntert

Assistente Editorial
Luciana Vaz Cameira

Capa
Paulo Engler

Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica e Produção Gráfica


Najara Lopes

Preparação de Original
Luciane Gomide

Revisão Final
Lucas Torrisi Gomediano

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Acompanhamento terapêutico : casos clínicos e teoria / org. Andrés
Eduardo Aguirre Antúnez. -- São Paulo : Casa do Psicólogo®,
2011.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-8040-015-1

1. Acom panham ento terapêutico (P siq u iatria) 2. Clínicas


psiquiátricas I. Antúnez, Andrés Eduardo Aguirre.

10-12700 CDD-362.20425019

Índices para catálogo sistemático:


1. Acompanhamento terapêutico : Pacientes com
transtornos psiquiátricos : Aspectos
psicológicos : Bem-estar social 362.20425019

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

As opiniões expressas neste livro, bem como seu conteúdo, são de responsabilidade de seus
autores, não necessariamente correspondendo ao ponto de vista da editora.

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à

Casapsi Livraria e Editora Ltda.


Rua Simão Álvares, 1020
Pinheiros • CEP 05417-020
São Paulo/SP - Brasil
Tel. Fax: (11) 3034-3600
www.casadopsicologo.com.br
Sumário

Prefácio..........................................................................................................................7

Acompanhamento terapêutico: contribuições de Minkowski....................................13


Andrés Eduardo Aguirre Antúnez, Kleber Duarte Barretto e Gilberto Safra

O acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica......................................... 21


C arla Alessandra Barbosa Gonçalves

Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico....................................41


Mauricio Porto

Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento


terapêutico, sustentado por uma visão filosófica....................................................... 57
Julio César Ramos de Oliveira e Arthur Tufolo

Considerações sobre o acompanhamento terapêutico


no envelhecimento......................................................................................................67
Carolina Guimarães de Baptista

A importância do trabalho em equipe.........................................................................85


Ananéia Machanoscki Bezerra

Acompanhando Rita.................................................................................................... 99
M aria Silvia Logatti

A deficiência, o acompanhamento terapêutico


e a experiência de visibilidade.................................................................................. 109
Carolina Yuki Fujihira
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente
psicótica: o valor clínico do acompanhamento terapêutico.....................................121
Ricardo Telles de Deus

A proximidade do encontro: o acompanhamento


terapêutico e os impasses da experiência clínica................................................... 135
Alexandre de Souza Piné

Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha: reflexões


sobre a ética do acompanhamento terapêutico....................................................... 151
Caroline de Oliveira Melo Vidal e Kleber Duarte Barretto

Vazio e presença viva: reflexões sobre a experiência de


um acompanhamento terapêutico.............................................................................161
Marcelo Soares da Cruz

Clariceando o acompanhamento terapêutico........................................................... 179


Daniela Della Torre

AT e A rT e.................................................................................................................. 193
Sheila De Marchi

Por onde anda o acompanhante terapêutico 205


Tânia Possani
Prefácio

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma modalidade clínica de aten­


dimento psicológico. O A T destaca-se pela sua peculiaridade: ele não espera a
chegada do paciente ao consultório ou à instituição pública ou particular, mas vai
ao seu encontro. Mas onde?
“Onde”, advérbio que nos remete a espaço, lugar. N a rua, no parque, no shop-
ping, mas, antes disso, no coração do acompanhante terapêutico (at). A vivência de
espaço nasce, vive e morre em movimento, tal como a vida se apresenta a todos nós.

Em nossa cultura, o ser humano costuma nascer em um lugar que não a sua
casa; ao contrário, ele é recebido por pessoas em lugares estranhos, mas algo se
mantém para lá e para cá: a casa do ventre materno que leva seu bebê em constante
movimento, para cima, para baixo, para os lados, para frente, para trás, parado.
Muitas são as situações que fazem da Clínica do Acompanhamento Tera­
pêutico um cuidado que se aproxima do real, do ambiente que abraça ou rechaça
o acompanhado, de sua família, de seus amigos, colegas e inimigos. O at faz
parte do ambiente em que o acompanhado vive! A ação terapêutica vive em
uma temporalidade que surge, transita e finaliza cinestesias, com momentos de
reflexão imediata diante de ações impensadas e espontâneas. O A T chegou ao
curso de graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em
2009, porém algumas produções já aparecem em forma de dissertações e teses.
Alguns livros e artigos são publicados por profissionais da saúde de várias áreas, da
enfemiagem psiquiátrica, da terapia ocupacional e por psicólogos.
O A T é uma clínica que não necessita de comprovações científicas, mas por
que não pesquisar essa prática e extrair dela elementos teóricos que a aproximem
Acompanhamento terapêutico

da ciência humana do vivido, da experiência cotidiana, da interlocução terapêu­


tica lá onde ela ocorre e está sujeita a todo tipo de interferências inerentes à vida?
Expor a riqueza dessas vivências realizadas pelos profissionais que colabo­
raram com este livro contribui com uma área carente de investigações científicas,
mas que lança essa semente fecunda para o devir, a partir da clínica do cuidado.
Convido-os a acompanhar os acompanhantes e acompanhados e desejo que essas
experiências vividas possam ajudar a ajudar o Outro, a ser si próprio em alteridade.

Agradeço especialmente aos revisores Carolina Poppi-Bortolato, Rose Jordão


e Rosangela Kirst, Mariana Amaral, Eliana Rotolo, Maria do Socorro Dias Novaes
de Senne, Claudia Perrotta, Patrícia Vilar; aos alunos Renata Rezende Lacerda,
Diego Rozenbergas Isquerdo, Tatiana Thais Martins, Aline Closel Carvalho,
Leandro Salebian, Márcia Juliana da Silva Barbosa, Patrícia Rogério da Rocha,
Bruno Franco de Aquino, Victor Barão Freire Vieira e Klyus Vieira de Freitas; e
aos autores e coautores:

Alexandre de Souza Piné - psicanalista, at e membro do grupo HabitAT.


E-mail: alexandre.pine@gmail.com

Ananéia M achanoscki Bezerra - psicóloga, at, psicanalista com formação do


Departamento do Instituto Sedes Sapientiae, membro da Associação de Acom­
panhamento Terapêutico (AAT) e do Grupo de Atuação em Psicologia e Surdez
(GAPS).
E-mail: ananeia@ig.com.br

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez - professor doutor do Departamento de


Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, espe­
cialista em psicologia da Saúde, mestre em Saúde Mental e doutor em Ciências
pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal
de São Paulo. Professor de graduação e do programa de pós-graduação do Depar­
tamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo. Coordenador da
Clínica Psicológica Durval Marcondes, USE Pequisador do grupo de Pesquisa em
Acompanhamento Terapêutico (CNPq).
E-mail: antunez@usp.br
Prefácio
jiliU

Arthur Tufolo —psicólogo, professor, coordenador e supervisor do Projeto


Humanitas, supervisor da equipe clínica do Instituto Cisne, psicoterapeuta fami­
liar e de grupo.
E-mail: tufoloa@hotmail.com

Carla Alessandra Barbosa Gonçalves —psicóloga e at. Mestranda do pro­


grama de pós-graduação da Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP
Aprimoramento em Saúde Mental (FUNDAP-SP). Psicanalista e at de crianças,
adolescentes e adultos. Psicóloga de equipamentos substitutivos em saúde mental
do Sistema Único de Saúde (SU S).
E-mail: carla.alessandra@gmail.com

Carolina Yuki Fujihira —psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela USP


Acompanhante terapêutica.
E-mail: carolinafujihira@hotmail.com

Carolina Guim arães de Baptista —psicóloga formada pela PUC/SE Espe­


cialista em Gerontologia e Psicologia Hospitalar pelo Hospital Israelita Albert
Einstein. Atua como psicóloga clínica e at. Especialista Integrante das Ger-Ações
e do Núcleo de Acompanhamento Terapêutico no Envelhecimento.
E-mail: baptista.carolina@gmail.com

Caroline de Oliveira Melo Vidal —Terapeuta Ocupacional (USP) e aluna


da especialização do curso da Associação de Acompanhantes Terapêuticos de São
Paulo (AAT).
E-mail: carolarol75@gmail.com

Daniela Delia Torre - psicóloga, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP


vice-coordenadora e professora do curso de Especialização em Acompa­
nhamento Terapêutico (AAT), membro da Associação de Acompanhamento
Terapêutico (AAT) e do Laboratório de Estudos da Transicionalidade (LET),
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Acompanhamento Terapêutico (CNPq).
E-mail: danieladellatorre@uol.com.br

9
Acompanhamento terapêutico

Gilberto Safra —professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do


Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; e professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
E-mail: iamsafra@uol.com.br

Julio Cesar Ramos de Oliveira —at, professor, coordenador e supervisor


do Projeto Humanitas, terapeuta de grupos e famílias do Hospital-Dia A Casa, e
psicoterapeuta de famílias do Projeto Humanitas.
E -mail: j ulio @proje tohumanitas .org.br

Kleber Duarte Barretto —psicanalista, pesquisador e supervisor de Acompa­


nhamento Terapêutico da Universidade Paulista (UNIP), investigador do projeto
de pesquisa financiado pela UNIP: Estética e Poétca no A T - Veredas rosianas,
membro da AAT —Associação de Acompanhamento Terapêutico, doutor em
Psicologia clínica pela Pontícifia Universidade Católica - PUC-SFj líder do Grupo
de Estudos e Pesquisa em Acompanhamento Terapêutico - GEPAT do CNPq.
E -mail: kleberbarreto @gmail.com

Marcelo Soares da Cruz — psicanalista e at, mestrando em Psicologia


Clínica no Instituto de Psicologia da USP pesquisador do Laboratório de Saúde
Mental e Psicologia Clínica Social (Apoiar) (IPUSP), formação em Psicanálise
pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pós-graduado
em teoria psicanalítica pela PUC-SP e em dependência química pela UNIFESP
coordenador do curso de formação em Acompanhamento Terapêutico HabitAT,
professor da disciplina de A T do curso de graduação em Psicologia da UNIP
Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Acompanhamento Terapêutico (CNPq).
E-mail: marceloscruz@gmail.com

Maria Silvia Logatti —psicóloga clínica da PUC-SP e at há seis anos. Cursa


Filosofia na USP e está no final do mestrado em Psicologia Clínica sob a orien­
tação do prof. dr. Gilberto Safra (PUC-SP).
E-mail: logattim@gmail.com

Maurício Porto - psicanalista, at, participante do Estágio Assistido em


Acompanhamento Terapêutico, professor do curso de Psicopatologia da Facul­
dade de Saúde Pública (USP).
E-mail: mauriciocporto@uol.com.br

10
Prefácio
Mvi
Ricardo Telles de D eus —psicanalista; mestre em Psicologia Clínica (PUC-
SP); pós-graduado em Teoria Psicanalítica-Psicologia Clínica (COGEAE /
PUC-SP); graduado em Psicologia (Mackenzie); e professor universitário.
E-mail: ricardotellesdeus@hotmail.com

Sheila De Marchi - psicóloga clínica; especialista em Psicologia da Saúde pelo


Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo; mestranda
pelo programa de pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo. Bolsista FAPESE
E-mail: shemarchi@hotmail.com

Tânia Possani - mestranda pelo Departamento de Psicologia Clínica do


Instituto de Psicologia da USP; coordenadora do curso de Acompanhamento Tera­
pêutico da equipe HabitAT; psicóloga, at e supervisora clínica.
E-mail: tania_possani@yahoo.com

11
Acompanhamento terapêutico:
contribuições de Minkowski

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez


Kleber Duarte Barretto
Gilberto Safra

Este trabalho discute a modalidade clínica do Acompanhamento Terapêutico


(AT), que se caracteriza por intervenções no cotidiano de um paciente a fim de
recontigurar seu mundo-da-vida. O A T originou-se em práticas que visavam a
transformar o tratamento psiquiátrico, contribuindo com uma prática singular e
fundamental. Nossa posição é de que essa modalidade de intervenção clínica não
deve ser vista como secundária, pois é a prática que mais se coaduna com a neces­
sidade de configurar ou reconfigurar o mundo-da-vida do paciente.
O A T é uma prática clínica herdeira do movimento antipsiquiátrico inglês,
da psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia institucional francesa. Surge
no campo da saúde mental, mas hoje em dia já se faz presente em outros campos
do saber. Trata-se de um modelo de intervenção que ocorre no cotidiano de uma
pessoa, e não nos espaços tradicionais de tratamento. Nas décadas de 1960 e
1970, no Brasil e na Argentina, muitos psicanalistas estiveram ligados a hospitais
psiquiátricos e comunidades terapêuticas. Dessa forma, criou-se uma nova deno­
minação para os agentes de saúde mental: atendentes psiquiátricos e, em outros
lugares, auxiliares psiquiátricos. A s funções desses agentes foram os embriões do
que mais tarde foi chamado de amigo qualificado e, posteriormente, acompa­
nhante terapêutico. Isso ocorreu à medida que o trabalho passou a ocorrer mais
no dia a dia do paciente, deixando de lado as instituições.
Acompanhamento terapêutico

Esses trabalhos nos levaram a testemunhar a maneira como os problemas


contemporâneos afetam os modos de subjetivação do ser humano, pois foi neces­
sário o surgimento de uma modalidade de trabalho que implicava ofertar ao
paciente relação, lugar e mundo, a fim de auxiliá-lo a superar o seu adoecimento.
Estaríamos diante de um trabalho que se inspira nas necessidades éticas funda­
mentais do ser humano. Nessa perspectiva, o adoecimento pode ser visto não
só como decorrente de dinâmicas intrapsíquicas, mas também do mal-estar no
mundo social e cultural.
Diferentes autores têm assinalado que os problemas contemporâneos são
também frutos do modo como o processo de conhecimento aconteceu na moder­
nidade. Perspectivas epistemológicas utilizadas na maneira como se aborda o ser
humano nas Ciências Sociais levam a consequências significativas na desumani-
zação do mundo e na fratura do éthos humano.
Nessa vertente temos o trabalho de Barretto (1998) sobre a ética no acompa­
nhamento terapêutico, no qual nos apresenta facetas significativas da intervenção
nessa modalidade de trabalho. Barretto fundamenta o A T como um campo do
experienciar. A técnica privilegiada de intervenção é o manejo da situação. Para
isso, deve-se levar em conta a necessidade do paciente, a sua história e a cultura
na qual se insere, possibilitando-lhe estar com o outro em uma relação viva e
humana.
Quando uma pessoa tala, ela apresenta seu mundo pessoal e nos coloca em
distintas posições nele. Quem escuta é afetado por isso, e, a partir dessa expe­
riência, pode vir a compreender aquele que tala. Estamos diante da possibilidade
de acessar o mundo-da-vida daquele que chega até nós, pelo modo como somos
afetados pelo outro. A disponibilidade para compreensão é inerente à condição
humana, e o ser humano tem necessidade de ser compreendido e reconhecido
em sua singularidade. O lugar clínico é fundado em uma posição ética-herme-
nêutica (Safra, 2006a, p. 134). Nessa perspectiva, interessa-nos abordar uma
situação descrita por Minkowski, buscando acessar o seu modo de compreensão
do caso para dialogar com um modo de realizar a prática clínica em acompanha­
mento terapêutico.

14
Acompanhamento terapêutico: contribuições de Minkowski

A contribuição de Minkowski
O relato do atendimento de Minkowski de um senhor de 66 anos durante
sessenta dias nos remete a um acompanhamento intensivo, 24 horas por dia. A
partir dessa experiência, discutiremos o registro afetivo, empático e estético arti­
culado à conceituação ética do AT.
No registro afetivo, atentaremos a como o terapeuta se apresenta, ao convite
na fala do paciente a fim de ocupar uma posição em seu mundo, aos afetos desper­
tados no terapeuta e aos sentimentos que o informam sobre a situação do paciente.
No registro empático, discutiremos como o terapeuta acompanha o discurso
do paciente, como realiza em seu campo imagético o que foi descrito, como se
move em sua corporeidade, permitindo a compreensão da subjetividade do outro,
como acolhe o outro e as necessidades do paciente.
No registro estético, o paciente constitui seu mundo organizando o espaço, o
tempo, a materialidade de modo singular. Destacamos como isso afeta a corporei­
dade do terapeuta, já que, pelo elemento estético, compreendemos a organização
estética do espaço e do tempo.
No registro ético, levamos em consideração que toda necessidade é de reco­
nhecimento ético, por parte de outro ser humano, de seu modo de ser.
Adentraremos, então, ao artigo tenomenológico de Eugène Minkowski para
na discussão retomar o que foi traçado até aqui.

Ensaio fenomenológico aplicado à psicopatologia

Sobre o primeiro ensaio fenomenológico intitulado, “Estudo psicológico


e análise fenomenológica de um caso de melancolia esquizofrênica”1, Eugène
Minkowski (1970) afinna que a fenomenologia possibilita penetrar profunda­
mente no sutil mecanismo da personalidade humana e explicar os fenômenos
essenciais que compõe a vida.

1Tradução de Andrés Eduardo Aguirre Antúnez.

15
Acompanhamento terapêutico

Seu interesse dirigia-se ao fenômeno do tempo (Minkowski, 1968). Dizia


Minkowski que o tempo requer uma análise mais profunda de noções como as
de simultaneidade, sucessão, duração de um acontecimento que se desenvolve, ou,
também, noções de coincidência, presente, passado, futuro; e, por outra parte, fenô­
menos psíquicos estreitamente relacionados com a noção de tempo, como se
apressar, esperar, recordar, desejar, querer.
Ele introduz a noção de ímpeto vital (élan vital) e pessoal, que orienta a vida
em direção ao futuro e não se manifesta ao exterior por meio do movimento
voluntário senão mediante a obra pessoal em todos os seus matizes; contudo
tende também a um ideal. ímpeto pessoal, futuro, ação e ideal estão estreita­
mente ligados na vida humana; o intelecto é o que distingue tais noções umas das
outras para localizá-las em diferentes conceitos. O problema do tempo desem­
boca, assim, no estudo da estrutura da personalidade humana. Minkowski (1970,
p. 15) descreve a experiência com o paciente: “Um caso fortuito, antes bem, as
vicissitudes da vida, me obrigou a passar dois meses à cabeceira de um doente.
Estava constantemente, dia e noite, com ele”, e relata:

A ocasião de acompanhá-lo dia após dia, não em um instituto psiquiátrico


nem em uma casa de saúde, senão em um ambiente ordinário. A maneira
de resistir às solicitações que todos habitualmente cedemos, a faculdade de
adaptar-se às exigências da vida cotidiana, a variedade dos sintomas e seus
matizes particulares aparece muito mais nítida em tais condições. [...] não
podemos conservar uma atitude médica 24 horas por dia; acabamos por atuar
a respeito do doente como outras pessoas que o rodeiam. Compaixão, doçura,
persuasão, impaciência e fúria se sucedem assim alternadamente. [...] E como
se duas melodias radicalmente desarmônicas fossem executadas simultanea­
mente e se estabelecesse, além do mais, uma certa equivalência entre as notas
de um e do outro. (1970, p. 18)

Desde os primeiros dias de vida em comum com o paciente, algo atraiu a


atenção de Minkowski. O doente declarava que a sua execução capital aconteceria
na noite seguinte. Minkowski, angustiado, não podia donnir e pennanecia desperto
algumas noites; consolava-se dizendo que no dia seguinte poderia comprovar
o infundado de seus temores, mas a mesma cena se repetia dia após dia. Depois de
três ou quatro dias, o doente ainda não havia mudado sua atitude.

16
Acompanhamento terapêutico: contribuições cie Minkowski

Minkowski (1970, p. 23) percebeu que ele, diante dos fatos, havia chegado a
uma conclusão com respeito ao futuro, enquanto o paciente os havia deixado trans­
correr sem ter extraído nenhum ensinamento para seu futuro. E constata que tal
propulsão em direção ao porvir faltava completamente ao paciente.
Safra (2006a) assinalou que é parte da condição humana posicionar no
futuro um sentido que significa cada gesto no presente. Nesse vértice, o agora é
transfigurado pelo fim (Telos), que se aloja no horizonte futuro. No caso apresen­
tado por Minkowski, observamos que o paciente vivia o seu futuro como fechado.
Desse modo, tendia a viver o seu presente no registro do Mesmo. Minkowski
nos convida a considerar que a conduta do doente estaria detenninada pelo tato
de que o enfraquecimento do ímpeto até o amanhã não seria momentâneo, mas
pennanente.

Compreende-se que no gesto em direção ao futuro existe um elemento de


expansão, por meio do qual transpassamos os limites de nosso eu, deixamos uma
marca pessoal sobre o devir e criamos a obra que se separa de nós. Isso se relaciona
a um sentimento positivo que acompanha toda ação cumprida e toda decisão
tomada.

Sem essa possibilidade, o paciente de Minkowski (1970, p. 30) tem o seu coti­
diano sem vida e sem sentido. Certa vez, disse: “Olhe essas rosas, minha esposa as
teria achado lindas, mas para mim não são outra coisa senão um monte de folhas,
pétalas, espinhos e hastes”.

A noção de tempo reduziu-se à noção de sucessões de dias iguais, e o


universo ficou hostil. O paciente distanciou-se de toda comunhão de ação e de
idéias com seus semelhantes, e assim os nexos de suas idéias se rompem. Há
nesse tipo de situação a perda do sentido de comunidade. Em casos assim a
modalidade clínica denominada A T torna-se fundamental, pois o clínico entra
no campo de experiência do paciente possibilitando o reestabelecimento do
campo comunitário, que devolve ao paciente o nexo entre os homens e as idéias.
Oferta de lugar comunitário que pode vir a ser o ponto de partida para o gesto
que constitui o porvir.

17
Acompanhamento terapêutico

Dialogando com Minkowski

Parece-nos que o paciente de Minkowski não encontrou a experiência que


foi ofertada pelo outro para que se constituísse a experiência de comunidade.
Ele disponibilizou-se para o paciente, no entanto isso não garantiu que o paciente
encontrasse a confiança que lhe possibilitasse um sentido de si mesmo aberto
ao futuro.
Podemos observar que Minkowski, em seu trabalho com o paciente, foi
afetado no registro afetivo, empático, estético e ético.
No aspecto afetivo, o clínico apresenta-se ressoando ao contato com o
paciente. A fala do paciente convida-o a ocupar uma posição em seu mundo.
Os afetos despertados em Minkowski foram intensos e o informaram sobre a
situação de seu paciente.
No registro empático, Minkowski acompanhou o discurso do paciente. Ele
realizou em seu campo imagético o que era descrito pela narrativa repetitiva
do paciente. Minkowski moveu-se em seu corpo-imagem, permitindo a compre­
ensão da subjetividade do outro. No campo estético, o paciente constituiu seu
mundo organizando o espaço, o tempo e a materialidade de maneira singular, o
que afetou a sensibilidade de Minkowski aos elementos estéticos. Ele traz imagens
sonoras e em movimento: “duas melodias”, “marés altas e baixas”.

De acordo com Satra (2007), na clínica muitas vezes nós vivemos a indig­
nação que o paciente não pode viver. Isso acontece com Minkowski quando ele
depara com o aprisionamento do outro e com a repetição do dia a dia do paciente.
Ambos, clínico e paciente, vivem uma só repetição na relação.

No registro ontológico (Safra, 2006), o terapeuta e o paciente estabelecem


um nós comunitário. Todo não acontecimento na vida de alguém, o que significa
o não encontro com um outro significativo, estanca o percurso da vida de alguém.
Minkowski tinha razão ao descrever o seu paciente como estando em uma prisão
sem futuro.
Faceta importante para o A T é apresentada por Minkowski (1970, p. 31):
“Minha companhia o ajuda em certa medida, porque sei o que ele sabe, e isso lhe

18
Acompanhamento terapêutico: contribuições de Minkowski

permite talar abertamente comigo; se estive ausente, ele necessita comunicar-me


os descobrimentos que tez durante minha ausência”.
Há um saber do paciente e do terapeuta acontecendo entre eles. Essa expe­
riência permitiu a Minkowski adentrar mais do que o habitual em contato com o
psiquismo do doente.
A experiência de Minkowski pode ser tomada como um paradigma do tazer
clínico e ético do AT: ele nos ensina acolher o outro em sua singularidade, assi­
nala a dimensão temporal como elemento fundamental do acontecer humano,
abre a experiência do convívio como espaço de diagnóstico e de terapêutica.
Pensamos que na releitura dos escritos de Minkowski temos elementos impor­
tantes para a reflexão sobre o adoecimento e a clínica na atualidade.

19
Acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Barretto, K. D. (1998). Ética e técnica no Acompanhamento Terapêutico. Andanças com


Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco Editora.

Minkowski, E. (1970). Estúdio psicológico y analisis fenomenológico de um caso de


melancolia esquizofrênica. In: Minkowski, E; Gebsattel, VE; Strauss, E. W. Antro­
pologia de la alienacion. Monte Avila Editores, Venezuela, p.13-35. (Originalmente
publicado no Journal de Psychologie Normale et Pathologique. Alcan, Paris, p. 543-558,
1923.)

Minkowski, E. (1968). Le temps vécu. Paris: PUF (Originalmente publicado em 1933).

Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, São Paulo: Idéias e


Letras.

Safra, G. (2006a). Hermenêutica na situação clínica. O desvelar da singularidade pelo


idioma pessoal. São Paulo: Edições Sobornost.

Safra, G. (2006b). Placement: modelo clínico para ao acompanhamento terapêutico.


Psychê: revista de psicanálise, ano X, n.18, São Paulo: Unimarco Editora. p. 13-20.

Safra, G. (2007). Profoco. Curso de Formação Continuada. Transferência: o estar


diante, o estar em, o estar com [DVD 1-4]. São Paulo: Edições Sobornost.

20
0 acompanhamento terapêutico e a
reforma psiquiátrica

Carla Alessandra Barbosa Gonçalves

É importante contextualizar o Acompanhamento Terapêutico (AT) na


Refomra Psiquiátrica por pelo menos três motivos. O primeiro deles é que dessa
forma o A T ganha a consistência da construção histórica; o segundo motivo é que
as instituições de saúde mental, muitas vezes, são a porta de entrada para essa
modalidade de atendimento —por exemplo, na cidade de São Paulo, os Hospitais
Psiquiátricos e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) têm formado parcerias
com cursos de AT, oferecendo campo de estágio. E o terceiro motivo é que, a
partir desse entrelaçamento de campos, podemos trazer uma experiência clínica,
já que esse tem sido o caminho de nosso percurso profissional.
Para termos um panorama geral da Refomra Psiquiátrica, vamos nos guiar
pelos nexos causais do processo saúde-doença mental e tecnologia de cuidado,
organizados pela autora Aranha e Silva (2003). Quer dizer, ressaltaremos a
concepção de loucura vigente em alguns momentos históricos e suas respectivas
formas de tratamento.
Para os povos primitivos, a loucura fazia parte das nomras culturais. Acre­
ditava-se que os indivíduos que apresentavam “comportamentos diferentes”
estavam possuídos por espíritos maléficos, portanto podemos dizer que a causa
da loucura era mágico-religiosa, e o “tratamento” seguia o mesmo princípio: eram
rituais, como rezas e benzimentos, conduzidos por xamãs, com a finalidade de
expulsar esses maus espíritos. Os indivíduos “possuídos” não eram culpabilizados
ou excluídos da sociedade.
Acompanhamento terapêutico

Na Antiguidade Clássica, a loucura ganhou concepções diversas. Alguns filó­


sofos, como Sócrates, acreditavam que a loucura tinha um saber divino.

Os desatinados podiam ser vistos como oráculos mensageiros dos deuses -


aqueles que com suas frases enigmáticas aproximavam os homens das ordens
do Olimpo. A estranheza é metabolizada pela cultura através da experiência
ritual, ela encontra aí, para os homens (loucos e não loucos), um lugar de
relação possível onde não é preciso bani-la ou controlá-la, já que é necessária
como instrumento para que se compreenda as mensagens divinas. (Berger et
al., 1991, p. 17-18)

Já Hipócrates, filósofo frequentemente considerado “pai da medicina”, traz a


loucura concebida como uma doença física que precisava ser curada, semelhante
a qualquer outra doença. Os tratamentos prescritos eram, por exemplo, massagens
corporais, dietas, passeios, entre outros. Hipócrates era um pensador que rejeitava
as superstições e práticas mágicas primitivas, direcionando os conhecimentos em
saúde para o caminho científico (Borille, 2008, p. 20).
Na Idade Média, a Igreja Católica exerceu forte influência na sociedade,
de tonna que as normas e leis sociais eram organizadas segundo seus princípios.
Assim, aquele que não as seguia era considerado herege e julgado segundo a Inqui­
sição. Os loucos também não seguiam as leis da Igreja, mas “a sociedade feudal
oferecia relativa tolerância à loucura, uma vez que a experiência diferente do
louco também estava inscrita entre os desígnios divinos” (Aranha e Silva, 2003,
p. 69), e, então, em vez de serem condenados à fogueira, os loucos “pobres, não
erráticos”, eram colocados na Nau dos Loucos, onde ficavam vagando pelos mares
europeus. Portanto, podemos dizer que, na Idade Média, a loucura também era
compreendida como tendo uma causa mágico-religiosa.

O período do Renascimento, em meados do século XVII, é caracterizado pelo


Racionalismo Moderno, em que a concepção de loucura se toma complexa, pois
os procedimentos da razão se estendem para a compreensão de todos os fenômenos,
inclusive a religião. Quer dizer, mesmo o que antes era explicado pelo empirismo ou
misticismo, no Renascimento se buscou um esclarecimento racional. E tudo aquilo
que estivesse “acima da própria razão” seria eliminado (Abbagnano, 2007).

22
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

A partir desse campo de compreensão, podemos entender que os aspectos


instintivos ou emocionais, portanto aspectos que funcionam sob outra lógica que
não a racional, eram considerados de menor valor e ficavam relegados ao campo
da animalidade, já que nessa época se acreditava que os homens se distinguiam
dos animais justa e exclusivamente por serem dotados de razão. Como os loucos
são indivíduos nos quais predomina o princípio daquela outra lógica (vamos dizer
assim), foram considerados indivíduos desarrazoados. Berger et al. (1991, p. 18)
acrescentam que:

Com os pensadores do Renascimento Humanista [...] ganha terreno uma


outra modalidade de relação com a loucura. Deixando de ser um instru­
mento das forças da natureza, esta torna-se parte, o reverso da razão [...]
No intento de conhecer a lógica de Deus, o saber vai com a razão esbarrar
em seus limites e penetrar no mundo estranho da loucura, é um jogo de vai
e vem irremediável. [...] Começa a se operar outra transformação: a loucura
ganha um caráter moral, passa a ser vista como o conjunto de vícios do
homem - preguiça, avareza, indolência. De substantivo transcendente passa
a adjetivo desqualificador.

A associação da loucura à “preguiça, avareza, indolência” deu-se nesse período


devido à retomada das conquistas marítimas e expansão das fronteiras geopolí-
ticas. Os homens eram valorizados e avaliados pelas suas habilidades implicadas
na expansão das cidades e industrialização, ou seja, capacidades relacionadas ao
trabalho, como disciplina, normatização e submissão ao tempo de produção nas
fábricas. Mas os loucos eram indivíduos que não conseguiam cumprir as tarefas e
as jornadas de trabalho, e “aqueles que não conseguem tomar parte na produção,
na circulação ou no acúmulo de riquezas serão os desviantes. E para estes criam-se
em toda a Europa os estabelecimentos de internação” (Berger et al., 1991, p. 19).
As instituições criadas para a internação foram os Hospitais Gerais, “que não
tinham a função de curar, mas de retirar da sociedade todos os antissociais, punindo
a ociosidade e reeducando para a moralidade religiosa” (Borille, 2008, p. 21).
Podemos dizer que a loucura sempre carregou em si aspectos que são de difícil
compreensão aos homens, gerando reações de medo ou deslumbramento. Vemos
que até meados da Idade Média o que se denominou loucura eram expressões
humanas que também foram categorizadas como religião ou arte, e dessa forma

23
Acompanhamento terapêutico

a diferença radical podia ser metabolizada e inscrita nas normas culturais. Entre­
tanto, a partir do momento que a uniformização dos comportamentos e pensamentos,
ou seja, a uniformização do gesto humano, foi considerada um valor primordial, a
loucura passou a ser considerada marginal, ainda inscrita na norma cultural, mas
como algo a ser extirpado e excluído.
Retomando o percurso histórico, vemos que após mais de um século da
criação dos Hospitais Gerais,

A Revolução Francesa (fim do século XVIII), com suas palavras de ordem


- igualdade, liberdade e fraternidade reabsorverá esses excluídos, na
tentativa de dissolver as significações que o internamento trazia consigo [...]
A única exceção será feita aos loucos, únicos que, voltando ao meio, pode­
ríam ser violentos, perigosos aos familiares, vizinhos [...] A eles, e só a eles,
agora será reservado o instrumento e as velhas medidas de exclusão. (Berger
et al., 1991, p. 19-20)

Aos “necessitados” foram formuladas medidas de assistência financeira; aos


doentes, tratamentos médicos; e para os criminosos foram criadas instituições de
correção. Aos loucos, a mudança de “tratamento” foi decorrente de novas propo­
sições preconizadas pela psiquiatria nascente.
Em 1793, Philippe Pinei, médico neurologista, contestou o tratamento desu­
mano dado aos loucos. Mais do que isso, Pinei avaliou que o sofrimento dessas
pessoas não podia ser considerado o mesmo dos indivíduos arrazoados —lembrando
que Pinei também era influenciado pelo Racionalismo Moderno e pela medicina
positivista. Dessa forma, ele classificou os sintomas da loucura, distinguindo-a da
ociosidade, da culpa social e impondo-lhe o estatuto de doença mental. Com isso,
criou o campo da psiquiatria e a primeira nosografia. E para essa nova concepção
de loucura, ou melhor, para o tratamento da doença mental, criou o asilo —ou
hospital psiquiátrico —e estabeleceu uma relação específica entre o médico e o
doente: o tratamento moral.

Nesta concepção, curar a alienação mental significava trazer o alienado de volta


à realidade, controlar seus impulsos e afastar suas ilusões, devaneios; desen­
volver nele a vontade e desejos. Surge, então, o tratamento moral, que consistia
em um conjunto de estratégias com finalidade de reeducação da mente alienada,

24
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

nas quais a própria organização do regime hospitalar teria importante papel.


O trabalho surge como instrumento terapêutico que ajuda a organizar os
pensamentos confusos, redistribuir as energias e redirecionar a consciência
para a realidade. A terapia pelo trabalho ou laborterapia tornou-se uma
tecnologia de cuidado do corpo, usava a disciplina e a vigilância como estra­
tégias fundamentais. A disciplina era feita por intermédio da repressão, como,
por exemplo, privação de visitas, diminuição de alimentos, reclusão solitária,
colete de força ou camisa de força, banhos com mangueiras de alta pressão e
visava o efeito corretivo. (Borille, 2008, p. 22)

Segundo Amarante (2003), autor que discute o processo da Reforma Psiquiá­


trica, “Ao constituir um espaço físico para a loucura e para o desenvolvimento do
saber psiquiátrico, o ato de Pinei é, desde o primeiro momento, louvado e criti­
cado” (p. 26). Se, por um lado, ao lançar uma olhar científico sobre a loucura, Pinei
faz um gesto que visava a reiterar alguma dignidade aos loucos e, por isso, alguns
autores defendem que a psiquiatria já nasce com um viés reformista (Tenório,
1999); por outro, ao criar a nosografia psiquiátrica, o manicômio e a relação hierár­
quica entre médico e doente, também estabelece uma restrição de liberdade e
autonomia e institui a tutela aos loucos.
Até a Segunda Guerra Mundial, o principal aspecto criticado das institui­
ções asilares era justamente a violência institucional devido ao caráter fechado e
autoritário, e, em seu revés, o princípio defendido era a liberdade. No período pós-
-Guerra, aqueceram-se as reflexões acerca da sociedade e das relações humanas,
e com isso ficou mais forte a indignação pela restrição do ir e vir. Avaliou-se
que, no campo da psiquiatria, mesmo as instituições “reformistas” acabavam por
perpetuar o caráter asilar, tendo como efeitos a produção de mais violência pela
exclusão, cronificação e isolamento. Muitos atores e pensadores da época tiveram
iniciativas inovadoras, buscando novas formas de organização institucional e
novas teorizações para sair desse labirinto. Alguns dos principais movimentos são
sintetizados por Amarante (2003, p. 27):

[...] a psicoterapia institucional [França] e as comunidades terapêuticas


[Inglaterra], representando as reformas restritas ao âmbito asilar; a psiquia­
tria de setor [França] e a psiquiatria preventiva [EUA], representando
um nível de superação das reformas referidas ao espaço asilar; por fim, a

25
Acompanhamento terapêutico

antipsiquiatria [Inglaterra] e as experiências surgidas a partir de Franco Basa-


glia [Itália], como instauradora de rupturas com os movimentos anteriores,
colocando em questão o próprio dispositivo médico-psiquiátrico e as institui­
ções e dispositivos terapêuticos a ele relacionados.

O A T nasce no bojo desses movimentos, sendo também uma nova forma de


respostas às críticas das internações psiquiátricas. Como Barretto (2000, p. 19)
afirma, “a prática do A T [...] é herdeira do movimento antipsiquiátrico inglês, da
psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia institucional francesa”1.
A psicoterapia institucional francesa surge na década de 1950 e tem como
expoente o psiquiatra François Tosquelles. Este autor não criticava o hospital psiqui­
átrico como o lugar privilegiado para o tratamento dos doentes mentais, postulava
que eles deveríam ficar internados enquanto durasse o tratamento para que
pudessem retomar à sociedade, mas Tosquelles tecia críticas à estrutura hospitalar,
e o que introduzia de novidade era o pressuposto de que as instituições também
têm características doentias e que também precisam ser tratadas, para só então
conseguir curar seus pacientes - por isso psicoterapia institucional. Influenciado
pelos pensamentos marxistas, freudianos e surrealistas, iniciou uma experiência de
transformação do Hospital Saint Albans, promovendo a abertura de espaços para
construções coletivas da gerência do próprio hospital, e com isso buscava superar
o espaço de segregação, a verticalidade das relações e as críticas ao poder médico.
A coletividade era construída em ateliês, reuniões ou mesmo na participação em
atividades, como limpeza e organização da própria instituição (Jorge, 1997, p. 26).
A antipsiquiatria surge na Inglaterra junto à grande corrente de contestação
cultural e política dos anos de 1960.

Esse movimento tinha como ponto estratégico críticas ao objeto, às teorias e


aos métodos da Psiquiatria e Psicopatologia, proporcionando uma profunda
revolução nesse campo. Seus principais autores, Ronald Laing, David Cooper
e Aaron Esterson insistiram na ideia de que as concepções “científicas” da
loucura e seus recursos de tratamento eram invariavelmente violentas e seriam
apenas eufemismos da alienação política, econômica e cultural da sociedade
moderna. (Jorge, 1997, p. 289)

1 Para saber mais sobre os pressupostos teóricos do AT] ver Sereno (1996).

26
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica
'MYi

Amarante (2003, p. 43) esclarece que o principal objetivo da antipsiquiatria era

[...] romper, no âmbito teórico, com o modelo assistencial vigente, buscando


destituir, definitivamente, o valor do saber médico da explicação/compre-
ensão e tratamento das doenças mentais. Surge, assim, um novo projeto de
comunidade terapêutica e um “lugar”, no qual o saber psiquiátrico possa ser
interrogado numa perspectiva diferente daquela médica.

Nesse “novo projeto de comunidade terapêutica”, os pacientes formavam


grupos e participavam ativamente de discussões sobre o papel dos médicos sobre
seus próprios papéis e sobre a organização cristalizada das estruturas hospitalares.
No Hospital Psiquiátrico Público de Shenley, por exemplo, Cooper observou que,
após essa mudança, o número de recaídas diminuiu (Amarante, 2003, p. 43).
A psiquiatria democrática italiana originou-se a partir do pensamento de
Franco Basaglia. Este autor e pensador da Reforma Psiquiátrica já havia parti­
cipado do processo de transformação em Gorizia (Itália) e foi a Trieste com a
proposta de destruição, literalmente, do manicômio. Ele propunha tanto a extinção
de tratamentos violentos quanto a derrubada dos muros e novas construções para
a instituição de tratamento da doença mental. Isso ocorreu, e então foi construído
o Centro de Saúde Mental, um local que podia adquirir um caráter de serviço
médico-ambulatorial, entemiaria de breve permanência, hospital-dia ou hospital -
-noite, serviço socioassistencial, ponto de partida para visitas ou intervenções
domiciliares, reinserção no trabalho e lugar para organização de atividades socios-
sanitárias, culturais e esportivas do bairro, sendo também o local onde se trabalha
a crise e onde são geralmente realizados os tratamentos sanitários obrigatórios
(Barros, 1994, citado por Jorge, 1997, p. 29-30).
Portanto, verificamos que o Centro de Saúde Mental podia responder a
variadas demandas e necessidades dos pacientes, não se restringindo apenas ao
tratamento medicamentoso ou à contenção de crises, mas sim a necessidades
sociais, culturais e esportivas. E essa ampliação não foi por acaso, estava articu­
lada com o pressuposto de uma inclusão social de fato. Basaglia procurou formas
concretas e teóricas de superar a exclusão do louco e da loucura, sua frase célebre
é que “a psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses e se preocupou
com a doença” (Basaglia, 1979, citado por Amarante, 2003, p. 4b), fazendo uma

27
Acompanhamento terapêutico

forte crítica aos jogos de poder entre os homens que transformaram a relação
integrada com a loucura (desde a Antiguidade até a Idade Média, como vimos)
em relações de exclusão, tutela e hierarquização.
Decorrente da transformação em Trieste, o Estado italiano desenvolveu
um estudo para modificar a legislação no país, e as propostas de Basaglia foram
incorporadas à Lei n. 180, que ficou conhecida como Lei Basaglia. Um ponto
importante dessa lei foi a diretriz para o fechamento gradual dos manicômios e sua
substituição por serviços territoriais (Jorge, 1997, p. 30).
Assim, a partir da tradição basagliana, o conceito de desinstitucionalização não
equivale apenas à desospitalização, ou seja, à retirada dos pacientes dos hospitais,
mas de um conceito mais amplo, que abarca o desmonte também dos mecanismos
psiquiátricos de exclusão e controle.
É importante destacar todo esse percurso, pois o paradigma teórico da atua­
lidade é fruto direto dessa história. Não é por acaso que existem semelhanças
entre o Centro de Saúde Mental de Trieste e os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) do Brasil. A influência da psiquiatria democrática Italiana repercutiu
fortemente no Brasil a partir da década de 1980. Em 1987, o “II Congresso
Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental” foi organizado por trabalhadores da
área e seus familiares. É nesse congresso que se conquistaram a ruptura epistemo-
lógica e a estratégica em relação ao tratamento da pessoa com transtorno mental.
Introduziu-se o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, e definiu-se o início da
Retonna Psiquiátrica brasileira. A partir de então, muitas iniciativas aconteceram,
como o CAPS Itapeva, em São Paulo; a intervenção na Casa de Saúde Anchieta,
em Santos; e a apresentação do Projeto de Lei n. 3.657/89, pelo deputado Paulo
Delgado, que propõe o redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental
no Brasil. Nesse congresso também se definiu que o objetivo da Reforma Psiquiá­
trica brasileira é construir outro lugar social para a loucura, para a diferença, por
meio dos princípios de inclusão, solidariedade e cidadania (Amarante, 1999, p. 49).
De modo geral, podemos dizer que os CAPSs carregam os princípios presentes
na psicoterapia institucional francesa e na antipsiquiatria, como a participação
do usuário na construção de seu projeto terapêutico e o relacionamento entre
cuidador e usuário. Dessa forma, contemplam-se posições e papéis diferentes —
sem que isso provoque subserviência — e ações para que os usuários exerçam

28
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

sua cidadania plenamente. Além disso, leva em consideração também os prin­


cípios da psiquiatria democrática italiana, ao preconizar portas abertas, o que
implica não apenas a realidade da porta aberta como a inserção e participação
ativa da instituição na comunidade e vice-versa, potencializando o processo de
inclusão e produzindo discussões (mesmo que de forma indireta) sobre estigmas
e preconceitos. O projeto CAPS também prevê que o equipamento seja instalado
na comunidade para que o usuário não seja excluído de seu ambiente social e
familiar; que a família participe do processo de tratamento; e que sejam cuidados
tanto os aspectos do sofrimento mental quanto todos os aspectos que favoreçam
ao usuário o pleno exercício da cidadania. Portanto, fica claro que não se trata de
uma apologia da loucura, é preciso acolher o sofrimento e cuidar dele, inclusive
com o conhecimento médico-psiquiátrico, mas a partir de uma escuta singular.
Como dissemos anteriormente, o A T também é fruto do processo histórico
da Reforma Psiquiátrica, mas, no âmbito da experiência, ele surgiu na América
Latina sem uma data precisa, mas estima-se que tenha ocorrido na década de 1970.

Na Argentina, muitos psicanalistas estiveram ligados aos hospitais psiquiá­


tricos. Dessa forma, criaram novas funções para os agentes de saúde mental
denominadas: auxiliares psiquiátricos e em outros lugares, atendentes terapêu­
ticos. As funções desses agentes foram o embrião daquilo que mais tarde foi
denominado amigo qualificado e, posteriormente, acompanhante terapêutico.
O processo acima descrito tece suas influências no Brasil. A ideia do auxiliar
psiquiátrico passou por Porto Alegre (Clínica Pinei) e, por sua vez, chegou às
comunidades terapêuticas do Rio de Janeiro, principalmente, à Clínica Vila
Pinheiros. Porém no final da década de 70, com o declínio e fechamento das
comunidades terapêuticas, os auxiliares psiquiátricos continuaram a ser solici­
tados por terapeutas e familiares que buscavam uma alternativa à internação.
Esse trabalho foi se solidificando, e, hoje, eles se denominam acompanhantes
psicoterapêuticos [ou acompanhante terapêutico]. (Barretto, 2000, p. 19-20)

Recentemente, o AT tem sido indicado como “um recurso a mais no trata­


mento de pessoas em crises psicóticas” (Barretto, 2000, p. 20), sendo tanto uma
prevenção como uma modalidade de atendimento que consiga conter crises
agudas sem a internação em instituição fechada (enfermaria ou hospital psiquiá­
trico) . Também é indicado nas crises não agudas, mas que se apresentam como um

29
Acompanhamento terapêutico

sofrimento crônico; muitas vezes, em uma crise silenciosa, que se toma evidente
pela restrição da circulação social, ou seja, um isolamento, e pela estagnação dos
projetos de vida. Nessas situações, o A T pode ser indicado e ser iniciado com um
primeiro projeto de “passeio”, para que posteriormente, em muitos casos, esse
“passeio” possa se transformar em ocupação do território pelo acompanhado.
Podemos observar que a proposta do A T é mais radical do que a proposta dos
CAPSs quanto à inclusão e circulação social, e também quanto ao exercício da
cidadania, devido à própria natureza de sua estrutura. A instituição que sustenta
o A T é o acompanhante terapêutico, seu corpo-setting, sua rede de sustentação
(equipe, supervisor etc.). O A T é realizado na casa do acompanhante, no seu
bairro, por onde ele circula (ou deseja circular); o acompanhante irá ser o suporte
para que o acompanhado possa, ele mesmo, fazer as trocas sociais, podendo ser
reconhecido enquanto sujeito de direitos e deveres. E equipamentos como CAPS
correm o risco de servir de suporte, o pano de fundo sobre o qual o indivíduo é
valorizado, podendo ser algo positivo ou uma tutela —melhor dizendo, qualquer
instituição pode ser usada para afirmar qual é o nosso valor social, por exemplo,
quando nos identificamos: “sou João, trabalho na empresa X”, “sou Maria, estudei
na escola Y”. Portanto, essas observações não nos são colocadas para serem feitos
julgamentos prévios — se o A T é melhor que o CAPS —, mas têm o intuito de
ressaltar as particularidades de cada recurso terapêutico.
Assim, traçado o percurso histórico, podemos verificar que a Reforma
Psiquiátrica articula diferentes campos: teórico-conceitual, jurídico-político,
sociocultural e técnico-assistencial (Amarante, 1999, p. 50). A discussão que foi
feita anteriormente privilegiou principalmente o campo teórico-conceitual. Os
aspectos jurídico-políticos dizem respeito à revisão de leis e portarias que regu­
lamentam o atendimento em saúde mental. O campo sociocultural é abordado,
por exemplo, nas diretrizes dos CAPSs para ações que potencializem a inclusão
e discussão dos estigmas e preconceitos, ou mesmo nos “passeios”, realizados nos
ATs, que podem proporcionar ao acompanhado a circulação por equipamentos
culturais. E o campo técnico assistencial vai discutir especificamente

A construção de uma rede de novos serviços [...] substitutivos (e não apenas


alternativos) ao modelo terapêutico tradicional. Na medida em que deixamos

30
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

de nos ocupar da doença e nos ocupamos dos sujeitos, o tratamento e as insti­


tuições de cuidado deixam de significar apenas a prescrição de medicamentos,
a aplicação de terapias, para tornar-se um ocupar-se cotidianamente do tempo,
do espaço, do trabalho, do lazer, do ócio, do prazer, do sair, fazer alguma coisa,
construir um projeto, uma atividade conjunta etc. Em outras palavras, trata-se
de construir possibilidades materiais para os sujeitos. (Amarante, 1999, p. 50)

O eixo técnico-assistencial implica a revisão das terapêuticas e da relação


que é estabelecida nesse contrato terapêutico, portanto, podemos entender que
um dos aspectos contemplados é a clínica, se lembrarmos que uma das primeiras
características criticadas pela Reforma Psiquiátrica foi o posicionamento hierár­
quico que a medicina positivista estabelecia na relação entre médico e paciente
e a restrição do olhar para a doença. Anteriormente acompanhamos os princi­
pais pontos das transformações teórico-conceituais, que revisam e transformam
tais aspectos, culminando em desenhos de modelos de atendimento como os
CAPSs e o AT. Então, para refletir sobre a especificidade da clínica na Reforma
Psiquiátrica, ainda precisamos fazer algumas observações sobre a relação terapêu­
tica propriamente dita.
Em artigo de 1998, do dr. Benedetto Saraceno, ator e autor da Reforma Psiqui­
átrica italiana e, atualmente, diretor de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da
OMS, encontramos uma definição de clínica que supera a cisão existente entre
especialistas, tratamento, sujeitos e contextos, colocando em foco a importância
de pensannos a articulação entre pacientes, serviços e contexto, trazendo assim
elementos que contribuem tanto para o atendimento institucional (em hospitais
psiquiátricos, CAPS) como para o AT. O autor define claramente o que espera
da clínica:

Eu creio que temos que buscar uma clínica diferente. Alguns falam de uma
clínica do sujeito. Eu falo de um artesanato de clínica do sujeito, eu creio que é
uma clínica da escuta, de acompanhamento também do real material do paciente.
Uma clínica que abra possibilidades para permitir ao paciente experimentar
a intermitência de seu sofrimento, uma clínica que produza intercâmbio entre
os pacientes enquanto estão sofrendo, com outras pessoas. Uma clínica
que permita ao paciente produzir valor social. Que seja a pintura, que seja a

31
Acompanhamento terapêutico

cooperativa de trabalho, que seja algo, mas que produza valor. È uma clínica
cujo objetivo final é a produção de sentido. (Saraceno, 1998, p. 30, itálicos meus)

Consideramos esta definição bastante clara e sensível e que traz com simpli­
cidade conceitos densos. O autor propõe a escuta e o acompanhamento do real, ou
seja, que devemos estar atentos à singularidade psíquica, como também devemos
nos preocupar com as condições reais do ambiente e de sobrevivência em que
o paciente está inserido. A partir da intermitência, podemos entender que Sara­
ceno não propõe uma reclusão (ou internamento) nos momentos de “crise”, mas
a possibilidade de continuar fazendo trocas sociais mesmo que em sofrimento —
sem deixar de ter a sensibilidade para avaliar os limites de cada situação. Por fim,
que seja uma clínica que produza valor social, que ajude a transformar a exclusão
secular que essas pessoas carregam em seus ombros e possamos ajudar a cons­
truir o que todos nós buscamos: valor social, valores com sentidos singulares e
compartilhados.
Finda a explanação teórica, gostaríamos de apresentar o relato de uma
experiência de A T realizada num CAPS2, durante o período em que realizamos
o Programa de Aprimoramento Profissional - Fundação do Desenvolvimento
Administrativo (Fundap)3.

Lucidez ou não lucidez, A memória e o fracasso,


Meu grande amor
Geane Barrias4 é uma usuária do CAPS muito afetuosa e perspicaz. Rapida­
mente chama atenção dos estagiários, aprimorandos, técnicos e funcionários que
passam a frequentar aquele serviço. Geane também chama atenção pelo modo

2 Esta experiência foi discutida na monografia de conclusão do aprimoramento a partir do enfoque da clínica
ampliada (Cf. Gonçalves, C. A. B; Ramalho, S. A., 2006), sendo que neste artigo há uma nova narração que
privilegia os aspectos aqui discutidos.
3Aprimoramento certificado e registrado na Secretaria do Estado da Saúde sob n. 177/2006, no livro n. 01, fls. 13.
4 O nome da usuária não foi alterado por se tratar do relato de uma experiência pública que carrega em sua
própria natureza a exposição da identidade pessoal enquanto autora de produção cultural. O ponto de vista
exposto em relação à discussão do caso é relatado a partir das vivências da própria autora.

32
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

como usa a instituição. Há muitos anos é usuária do serviço, tem vínculo bastante
forte com sua psiquiatra —de quem recebeu os primeiros cuidados e quem a acom­
panhou quase semanalmente até aquele momento —, e, apesar de Geane ir com
frequência ao CAPS, não participava de nenhum grupo ou oficina que lhe era
oferecido, tendo apenas passagens eventuais nesses espaços. O que ela realmente
solicitava eram as “conversas de corredor”, principalmente com os funcionários.
Geane conversava muito pouco com outros usuários. A equipe técnica do CAPS
também já lhe havia oferecido atendimentos individuais, mas estes não duraram
muito tempo, e logo Geane voltou a usar o CAPS como um lugar para estar e
conversar com as pessoas quando assim lhe desse vontade. Essa situação gerava
um incômodo na equipe, pois todos sentiam que ainda não haviam conseguido
cuidar de Geane. E ela precisava de cuidados, pois assim como demonstrava muita
afetuosidade, também vivia momentos de muita angústia, ao questionar seu lugar
no mundo, perceber sua situação de exclusão social e reivindicar ser amada.
Durante discussão da equipe, saltou-lhe aos olhos que, nas “conversas no
corredor”, Geane falava com diferentes profissionais sobre suas diversas vivências,
e assim pensou-se em potencializar seu modo próprio de se relacionar, oferecendo
um atendimento individual em que não houvesse dia nem horário marcados, mas
que ficasse “concentrado” em um único técnico, para que ele pudesse realmente
ser um “técnico de referência”. O objetivo desse atendimento seria “costurar” as
vivências relatadas por Geane e suas “estadas” no CAPS, com a esperança de poder
ser fabricada uma colcha de retalhos, com cores diversas e sem tantos “buracos”,
podendo reverberar uma experiência emocional mais integrada para Geane.
E foi assim que entrei na história. Fui designada como “técnica de referência”
de Geane; por ser aprimoranda, eu estava presente no CAPS durante toda a
semana e o dia todo, proporcionando maiores possibilidades para que aconte-
cessem os “atendimentos”. Como estava em tonnação de A T paralelamente ao
aprimoramento, deslumbrada com a possibilidade de atendimentos com settings
diferenciados, e, também, capturada pela afetuosidade de Geane, prontamente
topei o desafio.
Comuniquei a proposta a Geane, que também topou prontamente, e então
iniciei os atendimentos. Conversavamos quase todos os dias, sendo que o tema e

33
Acompanhamento terapêutico

o tempo do encontro eram propostos por ela. Eu intervinha diretivamente apenas


em algumas questões pontuais que prescindiam de orientações ou ações - como a
marcação de consultas etc. Durante os primeiros atendimentos, eu sempre procu­
rava manter em mente o objetivo que havia sido definido na discussão de equipe,
mas com essa postura eu colocava Geane a conversar comigo por meio de um muro
- entre nós estava a instituição e grandes expectativas (minhas e da equipe) -, com
um caminho desenhado e tinal esperado. Eu escutava Geane, buscando sentidos
inteligíveis em suas falas, sentidos que eu conseguisse apreender com a minha
capacidade lógica para, então, montar o quebra-cabeça de sua história de vida.
A partir desse quadro montado, eu podería lhe apresentar paisagem, acreditando
honestamente que assim Geane deixaria de sofrer como sofria, como se pudesse
ter um insight, como se magicamente se fizesse a “costura”, e com isso ela não teria
mais as vivências de angústia e desamparo. Em última instância, esperava uma
transfomração de seu “modo de estar” no mundo.
Eu escutava Geane a partir do meu léxico próprio e do léxico da instituição.
E suponho que Geane também me ouvia a partir de outros léxicos. Mas eu e Geane
havíamos topado o atendimento, estávamos abertas àquele desafio —essa disponibili­
dade de ambos os atores desse processo é imprescindível para a construção de uma
linguagem própria daquele atendimento, entre aquelas pessoas, naquele momento;
já existiam o eu e o ela, passando a existir o nós. Assim, ao invés de colocar um muro
entre “nós”, construíamos uma ponte pela qual eu podería me aproximar de Geane,
chegar bem perto, como também podería me distanciar, tomar fôlego quando fosse
preciso, ou ir para outros mundos, ao término de nosso atendimento.
Geane gostava muito de escrever. Ela tinha uma pasta guardada na recepção
do CAPS na qual guardava todos os seus escritos. Entretanto, sua letra era incom­
preensível até para ela mesma, então, com o passar do tempo, a pasta passou a
guardar rabiscos, e não mais escritos. Geane sofria muito com o fato de que se
considerava autora de todas as letras de música e livros do mundo, e acreditava
que as pessoas roubavam suas idéias e ganhavam os direitos autorais injustamente.
Então houve um fato. O CAPS também recebia grupos de estagiárias de
terapia ocupacional e, certa vez, uma das estagiárias havia proposto para Geane
escrever um livro, mas Geane não aceitou. Esse acontecimento ficou perdido “no

34
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

corredor” e chegou até mim por meio de outra pessoa que presenciara a cena. Em
um dos atendimentos com Geane refiz a proposta, e ela me respondeu que o que
escrevia tinha sentido na hora, e não era para ser eternizado num livro. Para mim,
ainda não estava clara a razão pela qual havia refeito a proposta. Eu sentia que
podería ser interessante para Geane, mas talvez o impulso principal tenha sido a
minha apreciação pelos seus escritos, gostaria, sim, de eternizar nossos encontros,
já que como aprimoranda tínhamos um prazo com limite estabelecido. Mesmo
com pesar, respeitei sua decisão.
Decorrido esse tato, os atendimentos foram interrompidos por minhas férias.
Ao retornar, teria de iniciar o processo de encerramento do atendimento, pois em
alguns meses o setting estabelecido não teria mais a possibilidade de acontecer, já
que eu iria estagiar em outra instituição e estaria no CAPS apenas em um dia da
semana, ocupada com a reunião de equipe e supervisão.
Assim que Geane me avistou, ela me perguntou se eu ainda topava escrever
o livro com ela. Abri um sorriso e combinamos os pomienores: faríamos o livro em
nossos encontros, e quando ele ficasse pronto, encerraríamos o atendimento. Foi
decidido em equipe que, concomitantemente, Geane passaria a ser acompanhada
individualmente por um técnico de referência do CAPS, e eu ficaria incumbida
apenas da feitura do livro. Foi bastante interessante a apropriação desses dois
espaços por Geane: ela “cobrava” sua “terapia” com a técnica que havia ficado
responsável e, nos encontros comigo, apenas nos dedicávamos à produção do livro.
Enquanto eu ainda estava todos os dias no CAPS, os encontros continuavam
sem dia ou horário. Quando Geane tinha uma inspiração, ela me procurava, e
prontamente íamos escrever —Geane ditava, e eu ia registrava ipsis litteris. Quando
sua inspiração ou o capítulo acabava, ela encerrava o encontro. No início, Geane
declamava seu livro e eu corria na escrita, o mais que podia, para conseguir repro­
duzir no papel. Algumas vezes perdia a frase e pedia para que ela repetisse, o que
provocava reclamações e insatisfação, pois Geane também já tinha perdido a frase
e teria de formular outra.
Com a esperada mudança em nossa rotina, tivemos de nos organizar em datas
combinadas. Com isso eu também percebi uma mudança no processo de escrita:
Geane não tinha mais tanta urgência, conseguia guardar a ideia para o nosso

35
Acompanhamento terapêutico

encontro, e neste não havia mais “psicograiia” —como um colega nomeava aquele
primeiro processo. Geane esperava eu escrever, abria pausas para talar de outras
coisas, dizia o que deveria ser incluído ou excluído do texto. Dessa torma, foi
sendo ressaltada uma característica do processo de criação de Geane: ela rara­
mente pedia para eu repetir o que estava escrito para dar continuidade, sabia
exatamente onde havia parado. A impressão que eu tinha, era que ela já estava
com todo o livro pronto, e agora o materializava. Tanto que ela começou pelo
título: “Lucidez ou não lucidez, A memória e o fracasso, Meu grande amor”. Um
livro com três histórias que aos poucos foram, realmente, configuradas.
O livro estava quase pronto, e então começamos a pensar como colocaríamos
em circulação sua produção. Aproximava-se a data da festa junina do CAPS, e
assim surgiu a ideia de fazermos o lançamento do livro nessa data. Propus que o
livro tivesse um prefácio, Geane gostou da ideia e escolheu “sua Doutora” para
fazê-lo. Precisávamos divulgar, então fizemos um cartaz, e Geane fez a distribuição
de panfletos, mas pediu para que eu reforçasse o convite à sua família. Agora quem
trabalhava na urgência era eu, “sua editora”. Eu tinha a difícil tarefa de encontrar
uma maneira de publicar o livro, e não havia tempo hábil para ir em busca de
patrocínios e fazer uma impressão gráfica, então surgiu a ideia de fazê-lo de forma
“caseira”. Digitei, editei e imprimi folha a folha em minha casa. E a capa? Geane
fez a ilustração. Ainda havia algum material de um antigo projeto de trabalho com
reciclagem de papéis, as folhas nos foram cedidas, e na folha reciclada foi feita a
capa, que ainda foi “plastificada” com cola branca. O “piloto” foi aprovado por
Geane, e ela ainda acrescentou uma dedicatória. Fizemos quarenta cópias.
Mas e o preço? Geane estipulou um valor que gostaria para si - o custo de um
maço de cigarro Free, que era o de sua preferência, mas que cotidianamente não
podia consumi-lo por ser caro, e por isso fumava cigarros mais baratos —e propôs
que somássemos o valor do meu trabalho e os custos; em contrapartida, propus que
incluíssemos o valor do livro para ela mais os custos. Eu considerava que já havia
sido bem remunerada. E assim foi feito.
No dia marcado, Geane estava “radiante”, sua família toda estava presente
—estavam afastados do CAPS havia um bom tempo. As quarenta cópias foram
vendidas para seus familiares, funcionários do CAPS, outros usuários que se

36
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

interessaram por reconhecerem a qualidade das produções de Geane e que tanto


no livro como em retrospectiva se lembravam das falas de Geane “no corredor”.
Quarenta cópias não foram suficientes, depois disso foram feitas mais duas tira­
gens de trinta cópias. E o livro está esgotado!
Discutiu-se em equipe que essa construção produziu novos posicionamentos
subjetivos em Geane e também provocou alterações na maneira como os outros
a olhavam e como passou a ser valorizada. Algumas pessoas — usuários, fami­
liares, funcionários, técnicos —, além das que já estavam envolvidas no processo,
puderam reconhecer o valor artístico de Geane, e não apenas restringir suas falas à
categoria de exaltação da loucura —“coisas bonitinhas que um louco diz” que fica­
riam guardadas na “pasta” sem poder ser revistas e refletidas com maior atenção.
A família passou a se interessar mais pela vida de Geane, procurando saber de
seu tratamento, como também o que ela vinha fazendo além do tratamento. E
Geane assumiu seu lugar de artista, podendo ter momentos em que conseguia se
diferenciar dos outros compositores e autores: agora ela tinha o seu livro. Quanto
ao dinheiro, a técnica de referência trabalhou essa questão com Geane.
Com o livro, também apreendemos outra dimensão de Geane, sendo impos­
sível e talvez desnecessário localizar se a partir desse momento ou se não nos era
mostrado, que é a circulação dela nos espaços sociais. Já sabíamos que Geane
frequentava, sozinha, uma biblioteca municipal, mas foi surpreendente saber
que Geane havia vendido seus livros para pessoas “de fora”, trazendo o dinheiro
e levando a encomenda, pois, até então, ela fazia seu percurso de casa-CAPS,
CAPS-casa, cabisbaixa e introspectiva. Geane passava a reconhecer-se como
sujeito que tem algo a oferecer nas trocas sociais. E sua produtividade também foi
despertada: Geane teve idéias de novos livros, este seria o primeiro de uma série de
cinco —passou a escrever o segundo com outra técnica do CAPS que ela elegeu.
Essa experiência aconteceu sem que fosse pensada a modalidade de atendi­
mento. Na verdade, o modelo de atendimento foi desenhado a partir do contato e
da demanda da própria usuária, conhecimento que a equipe conseguiu utilizar,
encontrando os recursos que foram descobertos como disponíveis e necessários
para cuidar daquela pessoa em sofrimento. A posteriori podemos definir tal experi­
ência como um A T em equipamento de saúde mental, já que houve flexibilização

37
Acompanhamento terapêutico

do terapeuta para se adequar à demanda da paciente, a construção de um projeto


individualizado e com sentidos que proporcionaram à acompanhada exercer
sua contratualidade. E a importância de nomear o modelo de atendimento está
na possibilidade de replicação da experiência —com as devidas singularidades
inerentes a esse tipo de atendimento —e na possibilidade de verificarmos que
o modelo teórico-conceitual que tem sido discutido como ideal para cuidar de
pessoas em grande sofrimento psíquico pode, de fato, ser efetivado e produz resul­
tados desejados, ao mesmo tempo que surpreendentes.
Não saberiamos dizer se a ideia de produção do livro foi algo genuíno de Geane
ou se ela, posteriormente, gostou desse projeto; parafraseando Geane diriamos:

A diferença de idéias, idéias às vezes compradas, idéias às vezes raciocinadas.


Será que idéias dos outros há [s/c] muito tempo atrás? Dos outros ou minha?
Ou ideia própria raciocinada por si, ou ideia própria sem raciocínio? Ou ideia
de próprio raciocínio? (Barrias, 2005, p. 18)

Fato é que esta “ideia” foi o recurso encontrado como disponível, tanto para
a usuária como para a terapeuta, o que possibilitou uma escuta subjetiva, como o
acompanhamento real material do paciente, produzindo valor social e a possibilidade
de inclusão de Geane nos circuitos sociais, a partir de seu modo próprio de ser e
estar no mundo.
Para finalizar, encontramos nas palavras poéticas de Geane o essencial. Trata-
-se de atendimentos e experiências em que é preciso sempre encontrar a “luzinha
acesa” (Barrias, 2005, p. 18).

A luzinha acesa é um gesto de esperança


A luzinha e o amor vivem dentro de mim
A luzinha acesa é a fé que existe em muitos olhos
A luzinha acesa é como acender um pavio de lamparina...

38
0 acompanhamento terapêutico e a reforma psiquiátrica

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Acompanhamento terapêutico

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40
Quando o biopoder namora o
acompanhamento terapêutico

M aurício Porto

Retomemos a fértil formulação de Foucault (1998) sobre o “biopoder”.


Distinguindo o “biopoder” do poder soberano que o antecedeu historicamente,
Foucault ressalta que, enquanto o poder de soberania fez morrer e deixou viver, o
“biopoder” faz viver e deixa morrer.
No estado de natureza, todos os homens possuíam o direito de defender sua
própria vida, mesmo que isso significasse a morte do outro. Entretanto, a vida e
a morte como fenômenos naturais e alheios a toda organização social se transfor­
maram já na Antiguidade. O código do Império Romano fornece a prova dessa
transformação na figura, por exemplo, da patriapotestas. A patria potestas concedia
ao pai de família romano o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus
escravos: a mulher não era mais do que um receptáculo para a gestação de um
corpo que o pai quisera ver nascer, e o pai, porque havia dado a vida, podia retira­
da e fazer morrer a qualquer momento.
Grosso modo, até o século XVII, o poder do soberano manteve, de fomra bem
mais atenuada, esta patria potestas que lhe dava direito sobre a vida e a morte dos
súditos. Embora não mais de modo incondicional, os súditos deviam ao soberano
sua vida e, principalmente, sua morte. Se um perigo ameaçasse, direta ou indire­
tamente, a existência do soberano, ou do Estado, era esperado que ele convocasse
seus súditos e exigisse que eles o defendessem até a morte. Dessa forma abran­
dada, a soberania funcionava, sobretudo, por um mecanismo de confisco: o poder
soberano impunha o direito de subtrair as coisas, o tempo, os corpos, o sangue,
Acompanhamento terapêutico

culminando com a supressão da própria vida dos súditos. Direito de causar a


morte e de deixar viver.
Ainda antes do século XVII, no Ocidente, o regime em que a sociedade
se organizava realiza mais uma transição, indissociável do desenvolvimento do
Capital: o interesse do poder desloca-se para o fazer viver. Na modernidade, trata-
-se, cada vez menos, de confiscar e impedir a vida, um “direito de espada”, e,
cada vez mais, de criar mecanismos de ordenação e distribuição do vivo, de modo
a fazer proliferar a vida, multiplicando torças. Trata-se cada vez menos deste
antigo poder de barrar, dobrar e destruir a vida, e cada vez mais de um poder de
gerir a vida e proliferar forças: incitação, retorço, vigilância, controle, incremento
e organização das torças que a sociedade, em sua mais recente modulação produz.
A lógica do comando social substitui o direito de fazer morrer e deixar viver por
um poder de causar a vida e deixar morrer.
A sociedade moderna, ao se afastar do regime de soberania, também trans-
tonna a relação com a vida e a morte. Antes, a morte era um direito exclusivo do
soberano, que fazia dela um cerimonial político de consagração de seu poder abso­
luto; agora ela se toma o instante em que um indivíduo pode escapar ao poder
político exercido todo o tempo sobre a vida inteira. O suicídio, por exemplo,
antes proibido pelo soberano, agora é expressão de um direito individual e
“privado” de morrer.
Sobretudo, agora a morte pode significar a garantia da vida das populações.
É a morte como manutenção e desenvolvimento da vida. Na modernidade, popu­
lações inteiras se envolvem em guerras que se mundializam, e são conduzidas à
destruição mútua, em nome da necessidade de todos viverem. A razão de ser do
poder que antes buscava defender o Estado soberano agora deve garantir a sobre­
vivência da população.
Este fazer viver se desenvolve, segundo Foucault, por duas vias principais:
na primeira via, o poder se organiza desde o século XVII, e principalmente no
século XVIII, nas instituições —nas prisões, nos quartéis, nas fábricas, nas escolas,
nos asilos, nos hospitais —, resultando em uma docilização que é alcançada pela
disciplinarização dos corpos. Essa disciplinarização age sobre corpos que foram
imaginados como máquinas, e faz com que os corpos cresçam, adestrando-os,

42
Quando o bíopoder namora o acompanhamento terapêutico

otimizando suas aptidões, extorquindo-lhes forças. Por essa via, os corpos-máquinas


estão sujeitos a uma anatomopolítica.
A segunda via surge um século mais tarde, e centra-se na gestão da vida.
Incide não mais sobre os corpos-máquinas que faz crescer, mas sobre a espécie, ou
melhor, sobre as populações enquanto espécie. O poder incide sobre os corpos em
sua dimensão de suporte dos processos biológicos, os corpos-espécie. É em relação
à mecânica dos seres vivos, considerada uma instância destinada a intervenções
e controles regulatórios, que se produzirá o viver. Por isso, o “biopoder”: a cons­
tituição de uma biopolítica das populações que age no umbigo dos corpos e da
espécie, de acordo com a natalidade, a proliferação, a longevidade e a mortalidade.
Portanto, a uma primeira estratégia do poder, que segrega e sujeita, vigiando
e treinando os corpos individuais, na prisão, na fábrica, na escola, no asilo, no
hospital, segue-se uma segunda estratégia, que inclui e globaliza, regulando os
processos vitais da espécie. O poder investe a vida, do começo ao fim, por uma
tecnologia de dupla tace: uma anatomopolítica do corpo, que disciplina e admi­
nistra os indivíduos; e uma biopolítica das populações, que regula e controla os
contingentes humanos. Partimos de uma sociedade principalmente disciplinar,
que é, cada vez mais, atravessada por uma sociedade de controle.
Pela primeira vez na história a organização social está às voltas com os seres
vivos, de cuja vida ela passa a se encarregar. Pela primeira vez, a sobrevivência
dos indivíduos e da espécie é controlada, modificada e gerida. Agora, a vida dos
seres vivos é levada em conta nos cálculos das estratégias políticas. Pelo fato de
encarregar-se dela, a vida passa a ser objeto dos saberes e a espécie vivente torna-
-se objeto das intervenções do poder. Agora, as tecnologias políticas investem
todo o espaço de existência dos indivíduos e das populações - o corpo, a saúde, a
moradia, as condições de vida... No exercício crescente de fazer viver, a sociedade
qualificará, medirá, avaliará, bierarquizará e distribuirá os vivos, constituindo-os
segundo certas estimativas de valor e utilidade que regulem as populações.
No “biopoder” trata-se menos de se guiar pelo sistema jurídico da lei —
que perdeu seu alcance soberano —, e mais de buscar a norma que garantirá a
distribuição dos indivíduos de uma população. Os filhos da modernidade rela­
cionam-se com uma lei que funciona menos como instrumento que condena

43
Acompanhamento terapêutico

e, eventualmente, faz morrer, e mais com uma lei-norma, que distribui, ajusta,
regula, equaliza e controla.

Escreve Foucault: “Uma sociedade normalizadora (como nossas sociedades


ocidentais modernas) é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na
vida” (1998, p. 135). Essa longa introdução ao pensamento de Foucault sobre o
“biopoder” é necessária porque, se vamos tratar do acompanhamento terapêu­
tico, temos que pensá-lo como um efeito entre outros das estratégias clínicas que
os trabalhadores de saúde mental foram produzindo no interior desta “sociedade
normalizadora” a que acabamos de nos referir e que caracteriza a modernidade nos
seus limites e a pós-modernidade nos seus ensaios.

Antes de abordar o acompanhamento terapêutico, retomemos aos primór-


dios da sociedade disciplinar e consideremos o hospital psiquiátrico como a
primeira dessas instituições em que a psiquiatria construiu seu saber — mas sem
esquecer que a psicanálise e outras terapêuticas “psi”, que, mesmo tendo ficado
do outro lado do muro, também participariam destas estratégias de poder e saber
poucas décadas mais tarde. A psiquiatria nascente organizou o saber sobre a vida
mental e emocional “normal”, juntando-lhe a invenção de seus desvios, e criando
as condições para propor-lhes um tratamento e a cura. É clássico entre os traba­
lhadores de saúde mental eleger o ano de 1792, os ecos da Revolução Francesa,
o alienismo, Philippe Pinei e William Tuke, os hospitais Bicêtre e York Retreat, a
liberação tísica das correntes e o aprisionamento moral invisível como o início da
trajetória de um saber sobre os tratamentos para os sofrimentos psíquicos.

Pinei e Tuke, entre outros, conseguiram realizar o que realizaram em Bicêtre e


em York Retreat porque, ao final do século XVIII, o poder já se modulara a ponto
de constituir o médico como a autoridade superior, centralizante e disciplinatória
do asilo de alienados. O hospital como lugar dos doentes que deviam ser tratados
e curados —em vez de ser o eterno lugar dos pobres que, “não tendo onde cair
mortos”, iriam ali para morrer. Bicêtre foi uma invenção que surgiu com clareza
em meados do século XVIII (Foucalt, 1979, p. 9-111). Até então, nada da prática
médica anunciava a organização de um saber hospitalar e nada da organização
hospitalar indicava a intervenção médica.

44
Quando o bíopoder namora o acompanhamento terapêutico

Os inquéritos que alimentaram a definição do que seria um hospital que


funcionasse como instrumento da terapêutica médica retiveram dados a respeito
das condições espaciais e ambientais dos lugares; da cubagem de ar para cada
doente; dos trajetos feitos pelos médicos, pelos pacientes e pelas roupas no inte­
rior da instituição; avaliaram as taxas de mortalidade, de cura, o número de
doentes, de leitos, de doentes por leito etc. Foi necessária uma reorganização
econômica e política para dar ao hospital sua função curativa. Primeiro, decidiu-
-se iniciar a medicalização do hospital pela diminuição das desordens de que ele era
portador: o hospital não podería continuar sendo lugar de tráfico, nem esconde­
rijo, nem quarentena, nem isolamento. Depois, institui-se um esquadrinhamento
do espaço, por meio de uma tecnologia disciplinar baseada na vigilância e na
punição. Essa arquitetura disciplinar, produtora de uma anatomopolítica, foi
contemporânea à organização de outros espaços semelhantes, como, por exemplo,
as prisões, escolas, fábricas e os quartéis.
Ao reorganizar o hospital, e principalmente o hospital psiquiátrico, o poder
disciplinar unificou-se como uma tecnologia de administração dos homens, de
adestramento de seus corpos, de otimização de suas multiplicidades. A figura
arquitetônica arquetípica desta unificação disciplinatória é o panóptico1 de
Jeremy Bentham.
O poder que investiu a administração disciplinar dos espaços deixou de
considerar os indivíduos como uma massa indiferenciada, e passou a classiticá-
-los e a distribuí-los por espaços individualizados, conferindo-lhes o estatuto de
sujeitos. A administração disciplinar dos corpos pretendeu ajustar tais sujeitos
aos tratamentos de maneira a aproximá-los o mais possível de determinada pres­
crição normalizante. Além disso, essa disciplinarização organizou uma política
dos corpos submetidos a um alto grau de visibilidade (pirâmide de olhares que

1O panóptico é um edifício em forma de anel, no meio do qual há um pátio com uma torre ao centro. Esta forma
anelada pode-se compor de vários andares de anéis sobrepostos, cada andar um anel. O círculo periférico de
cada anel se divide em pequenas celas; cada cela com duas janelas, uma voltada para o pátio central interior
e outra voltada para o exterior, de forma a deixar a luz atravessar a cela de lado a lado, iluminando-a completa­
mente. O jogo de luzes em relação à torre central toma impossível, para quem esta no interior da cela, saber se
está sendo observado ou não. Na torre central haveria um ou mais vigias. Como cada cela fica completamente
iluminada, o olhar dos vigias pode vasculhar todas as celas, através da janela voltada para o interior do edifício,
sem ser visto.

45
Acompanhamento terapêutico

vigiavam perpétua e constantemente) e um alto grau de dizibilidade (pirâmide de


registros que examinavam perpétua e constantemente).
Então, aos poucos a intervenção médica medicalizou o espaço hospitalar
à medida que elegeu e destacou a doença propriamente dita, esquadrinhando
e disciplinando o doente. Assim, o hospital e também o hospital psiquiátrico se
tornaram um lugar cujo objetivo principal passou a ser a cura. Ao mesmo tempo,
a intervenção médica deixou de se endereçar apenas à doença propriamente dita
e começou a considerar o meio em que a doença existia, entendendo que no
próprio ambiente do hospital existiam alguns dos remédios do tratamento: então,
manipulava-se o ar, a temperatura, a alimentação, o repouso e a atividade.

Figura 1 - Panóptico desenhado por Jeremy Benthãm, em 1791. (Foucault, 1979, p. 108)

Escreve Foucault:

Se individualizará e distribuirá os doentes em um espaço onde possam ser


vigiados e onde seja registrado o que acontece; junto com isso, se modificará
o ar que respiram, a temperatura do meio, a água que bebem, o regime,
de modo que o quadro hospitalar que os disciplina seja um instrumento de
modificação com função terapêutica. (1979, p. 108)

Assim, podemos compreender que a psiquiatria, tendo inicialmente unificado


o poder disciplinar e suas tecnologias, na figura jurídico-policial do médico (e mais
tarde lhe sucederão os outros saberes “psi”), começou, por meio de mecanismos

46
Quando o bíopoder namora o acompanhamento terapêutico

disciplinares, a produzir vida. A medicina do espaço urbano retirou o hospital da


região sombria e obscura, masmorra conforme a sua antiga função de morredouro,
iluminou seus aposentos e, concomitantemente, afastou o hospital do coração da
cidade para isolá-lo em sua periferia. Além dessa localização marginal, ajustada ao
cálculo sanitário da cidade que queria a doença e a loucura distantes, a psiquia­
tria também organizou o espaço interno do hospital psiquiátrico, construindo
em tomo do doente um meio individualizado (é quando se estabelece que não
havería mais de um doente por leito), manipulável, a fim de que fosse possível
vigiar a evolução da doença de cada doente e incitar no doente uma saúde que,
individualmente, o recuperasse, devolvendo-o ao convívio regular na norma.
À medida que o espaço hospitalar se constituiu como um espaço da terapêu­
tica médica, o poder neste lugar passou do pessoal religioso, que acompanhava a
morte dos pobres, para a pessoa do médico, que agora detém o saber e o cuidado
sobre a vida do entemio. Igualmente no hospital psiquiátrico, o psiquiatra tornou-
-se o detentor do poder no cumprimento desse programa terapêutico de moldar
corpos e fazer viver. Ele se internou no hospital psiquiátrico, fazendo aí o lugar de
sua residência, a morada de sua família e de seu saber. Utilizando registros siste­
máticos dos tratamentos, ele começou a constituir um saber psiquiátrico que se
organizava, e também se transmitia e tonnava, a partir da experiência mesma do
hospital.
Esse espaço construído na distância da febre do cotidiano da cidade, como
uma reserva, tentou reproduzir as condições experimentais de uma sociedade
que existia idealmente do lado de tora de seus muros. A intensificação desse poder
exclusivo foi isolando, cada vez mais, todo o universo manicomial, fechando-o em
si mesmo, solidificando-o de modo cada vez mais interiorizado, ao longo de todo o
século XIX, para então se degradar progressivamente a partir do século XX.
Por causa da expansão da mecânica do “biopoder” e da passagem à socie­
dade de controle, acompanhada da simultânea diminuição da predominância da
sociedade disciplinar, novas concepções de tratar começam a se produzir - exata­
mente aquelas que eram efeitos desse deslocamento e, portanto, guardavam
maior sintonia com a biopolítica. A partir do mesmo século XX, estabeleceu-se
uma discussão contra o progressivo enclausuramento institucional nos hospitais
psiquiátricos, com diversos psiquiatras e outros trabalhadores do campo “psi”, que

47
Acompanhamento terapêutico

resultou na proposição de novas terapêuticas que se contrapunham à ideia de


tratamento psíquico como exercício disciplinar de adequação a certa moral do
bem-estar e do estar bem.
Um primeiro marco dessas novas experimentações terapêuticas pode ser
colocado em Francesc Tosquelles, à época da Guerra Civil Espanhola, da Segunda
Guerra Mundial e do Hospital Psiquiátrico de Saint Alban na França. Tosquelles
foi um psiquiatra catalão que se refugiou na França para escapar à perseguição
do exército antirepublicano do general Franco. Tanto no front durante a guerra,
quanto nos campos de refugiados pelos quais passou, como nos hospitais psiquiá­
tricos, ele sempre fez uma psiquiatria que pôs em questão o caráter prisional e
segregacionista da instituição psiquiátrica.
No filme Uma política da loucura (1989), Tosquelles conta:

Que eu fazia no front de Aragão? Não tinha muitos pacientes. Eu evitava que
eles fossem enviados a duzentos quilômetros de distância da linha de frente;
cuidava deles ali onde as coisas aconteciam, a menos de quinze quilômetros,
de acordo com um princípio semelhante ao que faria, décadas mais tarde,
a “política de setor” francesa: se mandarmos um neurótico de guerra a 150
quilômetros do front, fazemos um crônico.

No campo de refugiados, como já fizera antes no front, Tosquelles pediu o


barracão abandonado no fundo do campo, instalado depois dos trilhos do trem,
pois sabia que ali havia uma porta que se abria para fora do campo, por onde qual­
quer um podia sair quando quisesse. Ali se estava com um pé dentro e um pé fora,
que é o modo de estar nas instituições.
Essas experiências da guerra e do exílio fizeram Tosquelles compreender
a enorme semelhança do poder disciplinar que molda os sujeitos no front, nos
campos de refugiados e nos hospitais psiquiátricos. Segundo ele, para tratar o sofri­
mento psíquico, é necessário tratar a cronicidade do próprio hospital psiquiátrico;
é necessário franquear-lhe as portas, físicas e mentais, e multiplicar as trocas entre
o exterior e o interior; é necessário analisar a instituição e combater os hábitos
cristalizados, os corporativismos, as hierarquias; criar clubes, grupos terapêuticos e
cooperativas na organização da vida diária dos doentes; envolver os intelectuais,
artistas e pessoas da comunidade nas iniciativas de um hospital psiquiátrico.

48
Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico
Mvi
O movimento de abertura da instituição psiquiátrica — e de articulação com
o mundo fora do hospital - também se realizou com Nise da Silveira (1992),
psiquiatra que migrou do Nordeste brasileiro para se estabelecer no Rio de Janeiro
— outro marco dessas novas experimentações terapêuticas que se distanciam
da lógica da sociedade disciplinar. Nise da Silveira foi, no início de sua carreira
médica, acusada de comunista, tomou-se prisioneira da ditadura Vargas e teve
suspenso seu direito de trabalhar como psiquiatra no Hospital da Praia Vermelha.
Depois de quase dez anos refugiada nos interiores nordestinos, já anistiada, read­
quiriu o direito de trabalhar no serviço público e, em 1944, retomou à capital
carioca. Ao retomar o trabalho, desta vez no Hospital Psiquiátrico Pedro II, ela
sabia que não mais se guiaria pela psiquiatria clássica; por isso, foi trabalhar imedia­
tamente na seção de terapia ocupacional, na época considerada um lugar subalterno
em relação a qualquer outro tratamento desenvolvido no hospital.

A estratégia de Nise da Silveira de acessar os estados psicóticos pela


expressão não verbal desencadeou processos analíticos importantes em diversos
pacientes e, em pouco tempo, a seção de terapia ocupacional, que se tomara uma
espécie de “ateliê”, se multiplicou em outros “ateliês” dentro do hospital psiqui­
átrico. Esse foi o berço do que anos mais tarde se tornou o Museu de Imagens
do Inconsciente. E foi também a semente da Casa das Palmeiras, inaugurada
em 1956, como uma clínica, na verdade como um grande ateliê coletivo para
egressos dos hospitais psiquiátricos. Esses ex-pacientes de hospitais psiquiátricos
eram “clientes” que vinham da própria residência, em alguns dias da semana,
frequentar o ateliê. A atividade expressiva em que se envolviam tinha um duplo
efeito: ativava processos analíticos individuais que podiam ser tratados pelos
terapeutas e organizava uma produção artística que, às vezes, alcançava uma
qualidade, ou ganhava uma instigação, suficiente para mobilizar algumas exposi­
ções de quadros e de esculturas em galerias da cidade.
Elegemos Francesc Tosquelles e Nise da Silveira pessoas fundamentais para a
clínica em relação às práticas em saúde mental porque eles experimentaram e teo­
rizaram algumas das primeiras intervenções que alteraram aos poucos a estrutura
centralizada e fechada dos hospitais psiquiátricos —estrutura esta coerente com
a estratégia disciplinar própria à hegemonia da sociedade moderna que perdurou

49
Acompanhamento terapêutico

até meados do século XX. Podemos agregar a esse movimento do qual participa­
ram esses dois psiquiatras (poderiamos chamá-lo de movimento “antimanicomial”)
algumas propostas mais recentes, conhecidas dos trabalhadores de saúde mental:
hospitais-dia, centros de atenção psicossocial, centros de convivência e coope­
rativa, residências terapêuticas, entre outros. E também o Acompanhamento
Terapêutico (AT).
Ao reunirmos todas essas estratégias clínicas, percebemos uma progressão
inegável que, atastando-se do complexo hospital psiquiátrico, pretende cada
vez mais tomar as decisões coletivamente, construir as autonomias, “derrubar
muros” e se abrir para o exterior, articular-se em redes sociais cada vez mais
amplas, fabricar projetos de participação social — sejam projetos de geração
de renda, sejam projetos de atuação cultural —, exercer a cidadania, “incluir
a diferença”. Porém precisamos reconhecer que essa progressão da clínica em
saúde mental revela o domínio de outra mecânica do poder, a ação de outra via
nos processos de subjetivação. A novidade e o avanço dessas estratégias clínicas
retratam completamente a compatibilidade que mantêm com os novos modos de
organização social. Esse conjunto de invenções e estratégias é o resultado mais
ajustado ao poder no contemporâneo, isso que Foucault circunscreveu com o
nome de “biopoder”.
A clínica hoje, sobretudo a clínica do AT, acontece onde age o “biopoder”,
na dimensão de gestão da vida.
Portanto, retomemos de Foucault, agora por meio da leitura que fazem Hardt
e Negri (2001), a passagem do poder de soberania para o “biopoder”, e da socie­
dade disciplinar para a sociedade de controle, que é também a passagem do fazer
morrer e deixar viver para o fazer viver e deixar morrer.
Escrevem Hardt e Negri que, na sociedade disciplinar, o poder se centra­
lizou, elevou-se, e transcendeu. A população fez a mediação entre os muitos
homens e objetos (os imanentes) e o Um-poder (transcendente): todos os fluxos
de forças, sociais e econômicas, orientaram-se na direção de uma convergência
centralizada que comandou a unificação em torno de sua transcendência. Além
disso, as fronteiras fixaram-se demarcando os limites e as proibições ^institucio­
nais, territoriais, de categorias.

50
Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico
Mvi
Entretanto, ao basear-se em um poder apoiado na disciplina e no direito
constituído, o desenvolvimento do Capital ficou obstruído, deixando de cumprir
plenamente sua razão de ser. É próprio do Capital fazer equivaler todos os termos
entre si, como se achatasse todo o vivo e alisasse a superfície. Para o Capital, cada
termo é, a princípio, pura potencialidade por acontecer: então é fluxo não codifi­
cado enquanto não estabelecer relações com outros termos.
Na mais recente fase de seu desenvolvimento, o Capital realiza o encontro
com um regime mais compatível com sua essência, força o declínio dos muros
transcendentes das instituições e os mecanismos de controle se tomam mais
imanentes, pois incidem sobre o vivo. A verticalidade institucional da socie­
dade disciplinar sofre um progressivo achatamento na direção dos circuitos da
sociedade de controle. No desenvolvimento social do Capital, a transcendência
dá lugar à imanência da disciplina. Os mecanismos disciplinares espalham-se e
fundem-se na superfície lisa e ilimitada do campo social. Caíram os muros, e junto
caem as fronteiras, surgem as redes, flexíveis e flutuantes. Não há mais um lugar
do poder, ele passa a operar por meio de redes de relações de domínio, em todos os
lugares e em lugar algum, deslocando-se pela superfície lisa do viver. Para realizar
melhor a axiomática do Capital, a tendência na sociedade de controle é de sempre
expandir o território, de sempre incluir as populações em seus processos de gestão
da vida, por meio da produção de um cotidiano que dilui fronteiras sociais.
Nos limites da modernidade e quase abrindo para a pós-modemidade, somos
testemunhas de qual passagem? Decadência dos Estados-nação que disputam
poderes regulatórios com os conglomerados transnacionais apátridas. Processos
de unificação dos Estados-nação em blocos continentais e consequente atenu­
ação das fronteiras nacionais. Definhamento das instituições disciplinares, como
escolas, prisões e manicômios. Arquitetura de ambientes internos abertos e livres
para um exterior fechado e impenetrável (por exemplo, a relação dos shoppings
centers e dos condomínios privados com a rua). Aumento da desigualdade junto
do aumento da proximidade de populações desiguais (o morro e o asfalto, o Haiti
e a América). Apagamento do que foi considerado a oposição dentro e tora, trans-
fonnado em um jogo de graus e intensidades (o inconsciente como a dimensão
psíquica do tora). Imposição de uma flexibilidade temporal absoluta (trabalho

51
Acompanhamento terapêutico

infinito no home-office). Imposição de uma mobilidade espacial ilimitada (noma-


dismo do lugar de trabalho). Fluxos financeiros e monetários que giram por todo
o planeta, 24 horas por dia. Privatização dos espaços públicos e publicização
dos espaços privados (a praça shopping e o Big Brother Brasil). Segmentação de
produtos e serviços cada vez mais imediatizados. Descentralização e globalização
da produção. Realização do mercado mundial total em que não há mais exterio-
ridade. Articulação de territórios e populações numa geografia que se expande.
Proliferação de redes de informações, de corporações transnacionais, construindo
o tecido conectivo.
Cada um de nós poderá acrescentar a essa longa lista de transformações outros
elementos em que se reconhecerá o último estágio do Capital — a nova lógica do
poder que constitui a sociedade de controle. Aqui, porém, este testemunho e este
reconhecimento têm a única pretensão de permitir que percebamos que o A T
não escapa de ser um efeito, no campo da clínica, dos modos pelos quais o poder
se efetua na sociedade atual, principalmente nos modos como age sobre a vida.
Ou seja, a construção da clínica do A T é determinada e utiliza, talvez de forma
mais compatível do que qualquer outra intervenção no campo da saúde mental, as
mesmas forças e os mesmos fluxos que organizam a sociedade de controle.
Assim, quando o desenvolvimento do Capital social atenua as fronteiras
territoriais, caem também os muros dos hospitais psiquiátricos e depois um acompa­
nhante terapêutico (at) entra pela porta da casa de seu acompanhado. Enquanto a
instituição hospital psiquiátrico detinha, um at espalha seu modo de intervenção de
casa em casa, sem ser notado em seu deslocamento. Enquanto o psiquiatra e os
demais terapeutas “psi” perdem seu poder soberano e seu lugar estável dentro da
instituição, um at investe o nomadismo e trabalha sem um lugar fixo que constitua
“o seu lugar”. Enquanto se apaga a distinção entre o dentro e o fora, um at está
dentro do quarto de seu acompanhado e aí se torna a ponta mais avançada do
fora imiscuindo-se nos segredos de uma intimidade; ou “escuta” acontecimentos
vividos na cidade com os outros como mobilizadores de atualizações e repetições
significativas nos processos analíticos do acompanhado.
Com o acompanhado, o acompanhante terapêutico capta essa perturbação que
na sociedade de controle transforma a rua em lugar de ameaça e, ao mesmo tempo,

52
Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico

arquiteta interiores protegidos que são cenários climatizados de um ilusório espaço


aberto e livre. O at também vive com o acompanhado o extremo de alguma para­
lisia, de alguma exclusão, que problematiza a mecânica paradoxal do Capital que
almeja uma “omni-inclusão” em que nada mais é exterior. E acopla-se ao coti­
diano do acompanhado e parte desta imanência com a vida para constituir, com o
acompanhado, redes variadas de sociabilidade.
Se existe um desejo preponderante do at (e há), é o desejo de que a geografia
do acompanhado se expanda em redes de produção de autonomia. Porém o at
sabe que, muitas vezes, a resistência às redes, imposta pelo acompanhado, diz
respeito a intuição de que muitas redes são redes de indiferenciação da oferta
infinita ou redes de reprodução repetitiva de desejos copiados.
Percebemos os efeitos dos mecanismos de poder próprios da sociedade de
controle no campo da clínica, quando constatamos que o at, por não possuir um
lugar fixo próprio, desinfla o salto para uma transcendência. Por segmentar sua
prática nos muitos lugares em que faz o acompanhamento, o at constitui uma
superfície imediata de deslocamentos, um plano feito de fluxos contingentes, sem
passado e sem espessura, igual aos circuitos traçados no biopoder. Por isso, o ele
pode funcionar com a potência e a amplitude das máquinas mais sofisticadas que,
na sociedade de controle, “fazem viver e deixam morrer”: ele é nômade, desloca-
lizado, envolvido com a vida cotidiana do acompanhado, às vezes com a própria
gestão da vida do acompanhado.
E constatamos aqui uma perigosíssima vizinhança que pode embaralhar as
ações do A T com os mecanismos de controle do biopoder. Então, como essas
forças, que poderíam se confundir com mecanismos de controle e reprodução,
podem ser empregadas no sentido de sua emancipação? Como encontrar a
dosagem adequada que potencializa as forças anárquicas que eclodiram na fase
mais recente de desenvolvimento do Capital? Como efetuar a face autonomista
dessas forças na clínica do AT?
O at tenta uma indicação: primeiro, acolhendo a dimensão trágica da vida e
do vivo, sem desencanto nem desamparo; depois, fazendo e refazendo a história,
como se traçássemos o mapa do que é coletivo em um indivíduo: sua história de
surgimento e de ocupação das redes de objetos e das redes de ação —de que fala

53
Acompanhamento terapêutico

o geógrafo Santos (2006, p. 15) —; eis uma história sem centro, sem dívida, sem
culpa, sem mãe suficiente, sem pai salvador.
Há uma direção nessa clínica, embora o caminho só se constitua fazendo e
refazendo: a afirmação e a descoberta de uma vida, nem em nome do pai, nem
em nome da mãe; uma vida, constituída só de possíveis — homens, mulheres,
animais, objetos possíveis. Assim, at e acompanhado participam da produção de
“pequenas diferenças”, como escreve Freud (1986, p. 111). As “pequenas dife­
renças” são singularizações, que nem nos indiferenciam na voragem do excesso
pulsional nem nos fixam na pretensão de uma transcendência qualquer.
Antigamente, em algum século do passado, isso se chamou “cura”.

54
Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, M. (1979). O nascimento do hospital. In: Microfisica do poder. Rio de


Janeiro: Graal.

Freud, S. (1986). El mal estar en la cultura. In: Obras Completas. vol. XXI. Buenos
Aires: Amorrortu.

Hardt, M. & Negri, A. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record.

Silveira, N. (1992). O mundo das imagens. São Paulo: Atica.

Santos, M. (2006). A natureza do espaço. São Paulo: Edusp.

Sivadon, D; Pollack, J-C. (1989). Uma política da loucura.

55
Reflexão de uma experiência clínica no
campo do acompanhamento terapêutico,
sustentado por uma visão filosófica

Julio César Ramos de Oliveira


Arthur Tufolo

O próprio carvalho afirmava: só um tal crescimento


pode fundar o que dura e frutifica. Crescer significa
abrir-se à imensidão do céu e também deitar raízes
no obscuro e firme chão da terra. Tudo que é verda­
deiro e autêntico não chega à maturidade, senão
quando o homem está disponível ao apelo mais alto
do céu, permanecendo ao mesmo tempo sob a proteção
da terra que tudo abriga, dá e produz.
(Martin Heidegger)

Quando iniciei o trabalho de Acompanhamento Terapêutico (AT), Jorge1


tinha quarenta anos. Sua primeira crise havia ocorrido aos vinte anos. Ele não
conseguiu se manter na faculdade de economia; e, nessa época, perdera seu pai
e também estava envolvido com o uso de drogas. Em decorrência desses aconte­
cimentos, necessitou de algumas internações psiquiátricas, seguidas de trabalhos
ambulatoriais, sem nunca ter dado maior continuidade e consistência em qual­
quer tipo de tratamento.*

Nome fictício usado para preservar a identidade do paciente.


Acompanhamento terapêutico

Acompanho Jorge há dezesseis anos. Fui solicitado a conhecê-lo a partir da


interrupção da terapia, devido ao seu impedimento e restrição em se deslocar ao
consultório. Esse quadro, sem sustentação e suporte clínico, acontecia havia quase
um ano, sem aderência a nenhum tipo de tratamento. O paciente não saía de
sua residência durante esse período. Segundo sua terapeuta, ele ouvia vozes e
sentia-se constantemente perseguido. Quando o conheci, ele me pareceu muito
tenso diante de minha presença. Constatei no decorrer dos encontros, e ainda
hoje percebo, que a minha simples presença é o suficiente para fazê-lo sentir-se
ameaçado e por vezes invadido. Jorge habita um lugar existencial de constante
iminência de não-ser, uma profunda experiência de solidão e vazio, uma funda­
mental insegurança de ser quem ele é.
A princípio, nossos encontros se davam na sala de visitas, depois Jorge me
convidou a entrar em sua casa. Após um ano, ele me convidou a ir a seu quarto,
o lugar de sua residência que lhe parecia mais protegido e íntimo. Ele me orien­
tava a me sentar numa poltrona que havia no aposento, porém logo percebi que
a posição de estar sentado frente a frente, de igual para igual, deixava-o muito
perturbado e incomodado, como se eu estivesse ultrapassando um limite e minha
presença fosse avassaladora no seu existir. Diante dessa circunstância, passei
a me sentar no chão, como forma de um novo reposicionamento. Rapidamente
observei o paciente sentir-se menos invadido e ameaçado.
Jorge relatava ser perseguido, maltratado, humilhado e desrespeitado, dizendo
que “queriam acabar com ele”. Então, “respondia” a esses “perseguidores”
chamando-os de assassinos e ladrões, pois dizia também que, depois de matarem
as pessoas, eles ainda as roubavam. Nesses momentos, eu percebia que seu tom
de voz se alterava, seu corpo se tensionava, seu olhar se expandia e se intensificava,
ele então movimentava os braços de maneira agitada e sua respiração se tomava
ofegante, como se seu estado emocional transbordasse os limites do corpo. Seu olhar
por vezes cruzava com o meu; gradativamente esse estado emocional ia-se dissi­
pando e, com frequência, uma retomada da tranquilidade se restabelecia ao final
de nossos encontros. Nessas ocasiões me sentia sustentando a sua insustentabili-
dade, suportando a insuportabilidade de seu existir.
Cabe destacar que além de interromper a terapia, ele também deixou de
ir às consultas psiquiátricas, portanto, no momento em que o conheci, ele não

58
Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
terapêutico, sustentado por uma visão filosófica________

estava tomando sua medicação regularmente, o que me levou a tomar uma


atitude. Após os primeiros meses de trabalho, decidi apresentá-lo a um médico
psiquiatra. Levei o profissional à residência de Jorge. Isso não lhe agradou num
primeiro momento, pois “mais um ser humano iria se aproximar”, o que era
suficientemente assustador para ele, porém se fazia extremamente necessário.
Segundo o médico que acompanhava o caso de Jorge anteriormente, seu quadro
clínico e a sintomatologia apresentada teriam como procedimento uma inter­
nação psiquiátrica, indicação de tratamento que foi negada pela família.
A fenomenologia existencial não trabalha com procedimentos, uma vez
que não visa a resultados, tampouco estabelece metas a serem alcançadas. Dife­
rente da metodologia científica que busca freneticamente soluções e respostas,
procurando explicar tudo o que existe, a fenomenologia não trabalha a partir de
cálculos e comprovações, pois, para os fenomenólogos, para algo existir, não há
necessidade de provas nem de justificativas (Stein, 2001).
Devo acrescentar que certa “imprecisão” que o leitor possa perceber nos termos
que estou usando para relatar meu trabalho pode ser justificada pelo método. Na
verdade, tais termos são escolhidos por seu rigor. Em uma descrição fenomenológica,
diferentemente das ciências naturais, prescindimos da precisão em favor do rigor.
A frase de Shakespeare (2003) “Sinto a fúria de suas palavras, mas não entendo o
que dizes”, é exemplo poético, em que a poesia falha na precisão, mas rigorosamente
transmite ao leitor uma experiência de significância.
Jorge sentia-se constantemente ameaçado. Tudo oque vinha do mundo, inclu­
sive a minha presença, trazia uma atmosfera aniquiladora e mostrava o quanto
era tênue e frágil o seu modo de existir. Como resposta, em correspondência, era
necessário o estabelecimento de um vínculo. Pensando na possibilidade dessa
relação vir a ser de confiança, eu diria que a minha atitude inicial era cultivar
essa atmosfera ao longo do nosso caminho. O sentido e a minha direção nesse
trabalho eram fomentar um modo de cuidar, em que eu procurava compreender
a existência humana.
Após seguidos anos de trabalho, esses episódios de constante ameaça se
tornaram pouco a pouco menos frequentes. Porém, o simples toque de campai­
nha de um entregador de pizza era suficientemente desestabilizador para Jorge.

59
Acompanhamento terapêutico

Essa situação era profundamente perturbadora, assim como a presença de técnicos


de TV, telefone, e de inúmeras empregadas que passavam por sua casa. Presenças
que o solicitavam de maneira muito intensa e extrema.
Ao longo dos primeiros anos de nosso trabalho, Jorge iniciou um trata­
mento dentário. Antes disso, deixava sua casa somente em dia de eleição e na
época do recadastramento da aposentadoria. Suas saídas passaram a ser espe­
cíficas e sempre acompanhadas por mim ou por um familiar, pois em hipótese
alguma saía sozinho.
Devido à delicadeza e fragilidade do ser humano com quem me encontrava,
avaliei a conveniência em continuar a atendê-lo, no primeiro ano de trabalho, duas
vezes por semana, sem nenhum recesso de minha parte, uma vez que essa existência
não estava no mundo, não fluía num tempo linear como a maioria das pessoas. Os
feriados do ano, como Natal e Ano-Novo, para ele, não tinham o menor sentido.
Havia um comprometimento/restrição em relação ao tempo. A questão do cumpri­
mento de horários, do reconhecimento dos dias da semana, da chegada do fim
de semana e da alternância entre dia e noite eram vividos numa outra relação
temporal. O que determinava essa experiência de tempo não linear, muito prova­
velmente, era o fato de seu existir estar tomado pela afinação de medo (Heidegger,
1989) e ameaça constantes.
A questão climática era outro exemplo de experiência alterada pela afinação
de medo. Nós vivenciamos as estações do ano; mas, para ele, esse aspecto, pode­
riamos dizer, não estava no mundo como para a maioria das pessoas. Havia também
um descompasso entre a maneira como ele se vestia e as temperaturas climáticas.
É curioso notar que, apesar de não se proteger adequadamente contra condições
climáticas adversas, ele nunca adoecia, o que, na minha compreensão, deve-se
ao fato de que as doenças clínicas do cotidiano ligadas à temperatura e ao vento
não tinham espaço para se manifestar no seu existir humano.
Outro aspecto que chamou minha atenção ocorreu a partir do segundo ano,
quando me afastei, por motivo de férias, por um período mais longo. Esse momento
foi muito difícil. Ele não aceitou que um profissional me substituísse e, no meu
retorno, não autorizou que eu entrasse em sua residência. Sua mãe e irmã ficaram
constrangidas com o fato e eu lhe disse, do portão de sua casa, que estava tudo

60
Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
______ terapêutico, sustentado por uma visão filosófica

bem e que ticaria ali. Caso mudasse de ideia era só me solicitar, pois estaria dispo­
nível durante o tempo do nosso encontro.
Nessa época, ele pedia que sua mãe ligasse em meu consultório, e seus tele­
fonemas se alternavam entre pedir a minha presença e a minha ausência. Jorge
oscilava entre querer e não me querer ao seu lado.
Decidi por aguardá-lo, ou seja, guardá-lo, cuidar dele, zelar por ele. Guardião
de seu ser, estar junto de uma singularidade humana que, apesar da nova distância
física, estava mais envolvida e implicada com o que se mostrava. Mantive a minha
presença no portão de sua residência até que, passados três meses, ele voltou a me
autorizar a entrar.
Conduzido e orientado pela solicitude antecipativa (Heidegger, 1989), que está
diretamente relacionada com um modo de estarmos com o outro (ser-no-mundo)
a partir de nossa autenticidade, portanto atravessados por nossa experiência de
desamparo, esse modo “não indiferente de ser” ajuda o outro “a tomar-se si mesmo,
em sua cura transparente e livre para ela”. Esse seria o modo de cuidar de si e do
outro (cura) que marcaria a atitude terapêutica ou a própria terapia. Um modo de
estar lado a lado.
Ainda segundo Heiddeger (2002), a proximidade é aproximar o distante
enquanto algo que está distante. É necessário considerarmos a distância e a usarmos
para uma lenta aproximação que permite a intimidade. Vemos que a proximidade,
o “poder acompanhar de forma próxima” está ligado a um movimento de apro­
ximar-se. Pode-se entender o acompanhar como um movimento de aproximação
que ao mesmo tempo respeita os limites e as diferenças que nos distanciam do
outro enquanto outro.
Tudo isso ocorre numa linha tênue e sempre corremos o risco de estar ao lado
da pessoa e não intimamente acompanhando-a. Tal atitude retira do outro o seu
zelar substituindo-o, pressionando-o, muitas vezes anulando-o, não favorecendo,
assim, que o outro fique livre para seu existir. O que se contrapõe completa­
mente a uma maneira de estar, nomeada “solicitude substitutiva” (Heidegger,
1989). O outro se retrai à medida que ficamos “sobre”, abafando-o, e não lado
a lado e próximo, numa intimidade. Essa maneira de “ser-em” diz respeito ao
providenciar cotidiano do impessoal, em que o ser humano pode experimentar a

61
Acompanhamento terapêutico

certeza tranquila de si mesmo e o “sentir-se em casa”. A marca maior desse modo


é a familiaridade, “o estar familiarizado com”, na ilusão do amparado e protegido.
Naquele momento, compreendia que essa era a condição de estar ao lado de
Jorge. Era uma forma possível de estarmos juntos, e também vital para a susten­
tação desse modo de cuidar (zelar). O seu modo de existir era restrito, impedia-o de
estar no mundo de uma forma mais livre, constantemente experimentava uma incer­
teza de permanecer tranquilo. Minha postura era de acreditar que a minha presença
gradativamente legitimava o lugar existencial em que ele habitava, simplesmente
o acompanhava e testemunhava um estar junto de um ser humano, nas particula­
ridades que Jorge me mostrava a cada atendimento, pois cada encontro humano
é único e transformador.
Devo enfatizar que meu gesto autorizou e permitiu a Jorge estar em sua pleni­
tude e me receber da maneira que lhe era possível. A distância física fazia-se
necessária. Eu não desistia e tampouco o abandonava. Esse pedido era digno dele
e acolhido por mim. Mantinha uma fiel escuta de Jorge, eu o aceitava nas suas
condições e possibilidades, e ele podia ser quem ele era realmente. Admiti como
hipótese que aquela era a maneira reativa de ele responder ao meu retomo após
dois anos consecutivos de atendimento.
Percebo que a minha presença era fundamental diante do que ele vivia
e sentia, reconhecendo a existência de um ser humano com toda sua digni­
dade, embora tivesse restrições na maneira de existir. Estar junto daquele modo
de ser tão singular, numa atmosfera de respeito e consideração, numa atitude
que abre espaço e que permite que o fenômeno se mostre sem críticas, expec­
tativas e censuras. Essa minha maneira de estar possibilitava o com-partilhar de
sua existência humana, focado em que estava no “confiar” e “fiar-com”. É uma
atitude completamente apoiada no modo de existir e prestar assistência (assistir
cuidando) de um psicoterapeuta ou um acompanhante terapêutico (at) que usa o
método fenomenológico existencial.
Nas palavras de Juliano Pessanha (2000):

Penso com Heidegger, que a experiência que revela o caráter intrinsecamente


sintomático de toda teoria não é uma experiência ensinável; ela acontece ou
não. Dizer a alguém num instituto de formação profissional: “primeiro você vai

62
Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
_______ terapêutico, sustentado por uma visão filosófica

estudar direitinho a teoria do aparelho psíquico e das posições de Klein, depois


decorar todas as fases do amadurecimento de Winnicott ou as estruturas de
Lacan, e feito isso você precisa saber que quando estiver escutando o outro
você não escutará a partir de nada disso, mas do lugar vazio que a angústia
cavou", (p. 92)

Então, num passe de mágica, milhares de psicólogos e psicanalistas (entre


outros) inteiramente identificados com a ordem do mundo falando do indi-
zível, decorariam frases de Levinas e até mesmo buscando os livros de Maurice
Blanchot, e pessoas que jamais mantiveram uma relação tensa e desassosse-
gada com o próprio ser começariam a dizer que o filósofo Martin Heidegger
levantou a interessante questão do sentido do ser. (p. 93)

É claro que aí também estariam incluídos, além de todos os profissionais da


saúde, como médicos, enfermeiros, at, muitos outros interessados pela existência
humana, como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Manoel de
Barros, entre outros.
Ou seja, na referência metodológica da fenomenologia, para poder estar com
o outro em uma escuta propiciadora, o próprio terapeuta teria de surgir resplande­
cido e solitário. Só a experiência própria de uma vivência verdadeira pode colocar
o terapeuta em ressonância com o outro. Na compreensão subsiste, existencial­
mente, o modo de ser do “ser aí” (homem) enquanto um poder ser. O “ser aí” não
é algo simplesmente dado. Ele é a possibilidade de ser (Heidegger, 1989).
Compreender algo é existir em algo. Esse algo, no caso do homem, não é
uma coisa ou um objeto, mas sim um ser vivo pleno de possibilidades e senti­
mentos. Acredito ser fundamental para o terapeuta fenomenológico banhar-se
na sua própria e profunda solidão, e contemplar o existir humano, em toda sua
complexidade e na riqueza de significações. Acompanhar terapeuticamente uma
existência significa possibilitar uma escuta e um acolhimento que recolhem e
libertam o outro para si mesmo, abrindo um espaço que permita ao ser humano
ser quem ele é.
Como dizia o poeta Ângelo Sinesius, citado por Heidegger (2007): “A rosa
não tem porque, floresce já que floresce”. Os paradigmas citados podem soar
muitas vezes estranhos, pois trabalhar com a linguagem poética, com metáforas,

63
Acompanhamento terapêutico

aproxima a experiência, mas não a explicita, tampouco explica o acontecer


humano. Esse modo de estar com o outro seria uma forma de garantir minima­
mente uma fidelidade ao acontecimento do paciente (como descrição do que ele
vive e me mostra), fecundando um espaço vital, onde ele pode ser ele mesmo.
Jorge não passou mais por internações restritivas, esse acontecimento do seu
existir humano me diz que hoje ele é quem realmente é, de forma mais livre e
próxima de si mesmo. Uma vida em que ele mostra, a cada momento, que ele pode
ser, e aqui o “poder ser” faz um contraponto com o “ser poder” (Heidegger, 1989).
Estou convencido de que minha presença numa relação de correspondência
propiciou um verdadeiro encontro com Jorge, e isso é a fonte dos desdobramentos
de possibilidades dos modos do existir humano.

64
Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
terapêutico, sustentado por uma visão filosófica

Referências bibliográficas

Heidegger, M. (1989). Ser e Tempo. São Paulo: Vozes.

Heidegger, M. (2007). A essência do fundamento. Coimbra: Edições 70.

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65
Considerações sobre o
acompanhamento terapêutico no
envelhecimento

Carolina Guimarães de Baptista

[...] essa forma singular de ajuda [...] precisa de


uma parafernália teórica, que deve ser produzida
pelos próprios acompanhantes, utilizando todos os
elementos que dispõem na forma de uma bricolage.

a poesia não é uma interpretação de uma partitura


preestabelecida, com determinado estilo. A poesia é
a reinvenção, reiterada, da linguagem em cada poema.
Acredito que essa seja a função essencial do acompa-
nhante. (Baremblitt, 1991, p. 83 e 84)

O Acompanhamento Terapêutico (AT) no envelhecimento pode ser consi­


derado um desdobramento recente dessa modalidade de atuação que surgiu em
tomo dos anos 1960 na América Latina, inicialmente destinada à saúde mental.
Apesar de muitos acompanhantes atenderem idosos, encontram-se poucos regis­
tros e reflexões sobre essa prática. Neste capítulo pretendo abordar algumas
questões específicas sobre o A T no envelhecimento, tendo como referência a
experiência que desenvolvo junto ao Núcleo de Acompanhamento Terapêutico
no Envelhecimento1 desde 2005.

1 Núcleo pertencente à Associação Ger-Ações (Centro de pesquisas e ações em gerontologia), uma OSCIP
formada por profissionais, de diferentes áreas, preocupados com a questão do envelhecimento, que através de
Acompanhamento terapêutico

O A T surgiu da necessidade de aproximação e humanização do tratamento


dos doentes mentais e fortaleceu-se como alternativa à internação dos usuários
desse serviço, configurando-se como um recurso terapêutico muito empregado
nesse campo, para depois se expandir para outras áreas de atuação, como
o envelhecimento.
Podemos encontrar paralelos históricos entre a velhice e a loucura. Um
exemplo é que ambas podem ser alvo de exclusão social: historicamente, o louco
e o velho eram retidos nos antigos hospitais que, segundo Souza (1992), “foram,
antes de serem espaços de cura, espaços de acomodação - albergues para uma
dada classe social (pobres, miseráveis, velhos, órfãos)*2 ou para portadores de
determinadas doenças. Esses locais funcionavam como espaços de assistência e
exclusão” (p. 9). A velhice, assim como a loucura, sofre preconceito, marginali-
zação e falta de investimento.
Além da exclusão, a velhice, muitas vezes, está associada a uma represen­
tação negativa. Especificamente no caso da velhice, a imagem

E mais negativa que positiva —mas está longe de ser apenas negativa, sobre­
tudo na perspectiva da população idosa. [...] Os idosos brasileiros valorizam
mais que os não idosos os aspectos positivos de sua condição. Tem consciência
e denunciam o forte preconceito social e a discriminação contra a pessoa idosa
(Venturi &Bokany, 2007, p. 28).

Os idosos, de modo geral, vivenciam e enxergam o envelhecer com pontos


positivos e negativos, característica presente em qualquer outra “fase” da vida.
No entanto, a percepção negativa do envelhecer, compartilhada por todos, traz
prejuízo para os idosos, pois acabam sendo olhados com pouco cuidado. Ao mesmo
tempo em que se encontra essa manifestação de marginalização da velhice, há
um crescente interesse mercadológico voltado para essa população, devido
ao fenômeno de transição epidemiológica que acontece no Brasil e no mundo,

ações e pesquisas participa ativamente no cuidado e na construção de uma nova imagem para a velhice. Dispo­
nível em: <http: www.geracoes.org.br> . Em 2008 realizou a 1 -Jornada de Acompanhamento Terapêutico no
Envelhecimento com o intuito de compartilhar o percurso do grupo.
2 Grifo do autor.

68
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

principalmente em países em desenvolvimento. Acredita-se que, nos próximos vinte


anos, a população idosa do Brasil poderá ultrapassar os trinta milhões de pessoas,
e deverá representar quase 13% da população ao final desse período. De acordo
com o IBGE, a proporção de idosos vem mudando: nos anos 1980 existiam cerca
de dezesseis idosos para cada cem crianças; já no ano 2000, essa relação dobrou,
passando para quase trinta idosos para cem crianças. Segundo a OMS (2008),
em cinco décadas pouco mais de 80% dos idosos do mundo viverão em países em
desenvolvimento, e o Brasil será o sexto país do mundo em número de idosos.
A transição epidemiológica toi primeiramente abordada no Brasil por Kalache,
Ramos e Veras (1987), em três artigos na Revista de Saúde Pública. A atividade de
pesquisa é impulsionada nesse mesmo período no país (Prado & Sayd, 2006).
Com o desenvolvimento da gerontologia, o aumento das pesquisas e dos projetos
públicos e o envolvimento político pelos grupos de aposentados e pensionistas,
os idosos saíram, lentamente, de certa maneira, da margem e, ao poucos, conquis­
taram um espaço reconhecido socialmente.
Vale ressaltar que o envelhecimento populacional não é em si um problema,
mas pode ser considerado também um privilégio e uma conquista social. Essa
população tem questões peculiares, assim como qualquer outro grupo etário,
e publicações ressaltam a importância de estudos e a implantação de projetos
voltados para uma população que tem demandas específicas (OMS, 2008).

Algumas questões sobre o envelhecimento

De acordo com a OMS, a entrada na velhice se dá aos sessenta anos em


países em desenvolvimento e 65 em países desenvolvidos. Essa classificação possi­
bilita que se pense em políticas públicas, estudos, linguagem comum e cuidados
especializados, ou seja, é um parâmetro para convenções sociais.
A assim chamada “Terceira Idade” é considerada uma categoria produzida
socialmente (Debert, 1999), já o envelhecer é um processo que se inicia desde o
nascimento. No contato com o idoso, portanto, é necessário considerar as várias
concepções, mitos, preconceitos e expectativas que se tem sobre o envelhecimento

69
Acompanhamento terapêutico

e o histórico de cada um; é preciso ter em mente que a velhice como categoria é
diferente do percurso do indivíduo em seu processo particular de envelhecimento.
A ciência que estuda o envelhecimento é a gerontologia, que é composta de
diferentes perspectivas e distintos campos de conhecimento, como a psicologia,
a medicina, a fisioterapia, as ciências sociais, a política etc., que dentro de seus
campos específicos se dispõem a tentar compreender o processo. Para trabalhar
com essa população, é preciso embarcar em uma “viagem” e conhecer suas possí­
veis rotas de acesso, a fim de ajudar a fazer encaminhamentos de acordo com as
necessidades de cada indivíduo.
Apesar do envelhecer desvelar experiências, vivências e representações
compartilhadas por uma maioria, o envelhecimento é processo individual e hete­
rogêneo: ninguém envelhece de fomia igual, mesmo que representações sociais,
históricas e culturais atravessem e influam nesse processo.
Outra importante consideração é que devemos contemplar a trajetória
humana para além da linha cronológica estabelecida pelo conhecido percurso que
liga o nascimento, infância, adolescência, fase adulta, velhice e morte. Pompéia
(2004) propõe uma ampliação dessa concepção e sugere:

Se tivéssemos que representar graficamente a trajetória humana, não desenha­


ríamos uma reta, mas sim um círculo que se amplia. Esse ampliar-se do círculo
significa a ampliação da existência humana [...] Ou seja, da existência que se
amplia, tudo aquilo que fez parte do percurso, todo o já sido não fica para trás
nem para fora do círculo, mas permanece ali [...] formas consideradas infantis
ou adolescentes de comportamento permanecem como possibilidades para o
adulto, (p. 122)

O percurso humano é mais complexo que uma simples linha; o homem é


constituído, simultaneamente, por passado, presente e futuro. Portanto, possibi­
lidades comportamentais consideradas infantis ainda estão presentes no adulto,
assim como uma criança pode ter atitudes maduras. A compreensão de Pompéia
é muito importante no cuidado com o idoso, pois o autor valida que comporta­
mentos infantis também podem ser possibilidades de atuação de um adulto; por
outro lado, frequentemente observamos muitos idosos, em condição de depen­
dência, ser tratados como crianças. Canineu e Diniz (2007) consideram

70
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

[...] o envelhecer, que já se inicia na concepção e termina com a morte, pode


ser definido como um processo contínuo, dinâmico, progressivo e irrever­
sível, havendo modificações funcionais, bioquímicas e psicológicas, reduzindo
a capacidade de adaptação ao meio ambiente e a situações de sobrecargas,
tornando o organismo vulnerável. Assim, ficar velho não é ficar doente, e sim
tornar-se mais frágil e susceptível às agressões, (p. 17)

Envelhecer, portanto, não significa adoecer: no processo de envelhecimento


acontecem mudanças fisiológicas de funcionamento do organismo, que fica mais
frágil e com menos reserva funcional. Por isso é importante cuidar do ambiente
e dos idosos para evitar sobrecargas e agressões que os levariam a debilitar-se.
Vale ressaltar que muitas doenças, vivências e transtornos são socialmente consi­
derados normais ou “coisas de velho”, mas podem ser amenizados ou tratados,
o que muitas vezes não acontece por causa da imagem negativa que se tem da
velhice (Goldfarb, Barbieri, Gotter, &. Peixeiro, 2009).
Após tratar da categorização e da teoria do envelhecimento, fica a interro­
gação: quando a pessoa se sente idosa? N a maioria das vezes, velho é sempre o
outro, como afinnou Simone de Beauvoir (1990). De acordo com Venturi e Bokany
(2007), “as doenças ou debilidades físicas são, para a maioria, o principal sinal de
que a velhice chegou” (p. 25).
Em geral, somente quando acontece restrição, doença ou uma perda impor­
tante, o indivíduo tende a se sentir velho. Contudo, não se pode associar velhice
à doença. Para se trabalhar com a terceira idade, é preciso diferenciar o envelhe­
cimento normal do patológico. No envelhecimento normal acontecem mudanças
próprias da idade, e o envelhecimento patológico ocorre quando essas mudanças se
intensificam. É importante conhecer as afecções e os transtornos mais frequentes
dessa população, para não definir que, por exemplo, uma depressão ou esqueci­
mentos são comuns na velhice, e, assim, não buscar tratamento; oupara ficar atento
a mudanças de comportamento e humor que, muitas vezes, podem ser sintomas de
uma patologia incipiente, como uma confusão mental súbita, que pode ser sintoma
de alguma infecção não notada, pois o idoso, algumas vezes, não apresenta febre.
Também é importante diferenciar autonomia de independência: autonomia
é a capacidade de o indivíduo eleger, controlar e lidar, por si próprio, com decisões

71
Acompanhamento terapêutico

de sua vida. Independência é a possibilidade de realizar atividades da vida diária


sem ajuda de terceiros. Como muitos idosos são dependentes, com a autonomia
tolhida, deve-se incentivar e muitas vezes resgatá-la quando for possível. Kalache,
Veras e Ramos (1987) afirmam: “na velhice, a manutenção de autonomia está
intimamente ligada à qualidade de vida” (p. 208).
O processo de envelhecimento se constitui de perdas e ganhos, contudo
muitos idosos vivem ou sentem mais as perdas do que os ganhos. Vale ressaltar
que a maneira como o idoso enfrentará as perdas que vêm com a idade, na maioria
das vezes, dependerá de como ele lidou com elas ao longo de sua vida.
Muitas vivências são comuns a esse processo, como aposentadoria de trabalho
formal ou dificuldade de exercer tarefas e atividades do cotidiano, saída dos filhos de
casa, vinda de netos, morte de pessoas queridas, consciência da finitude etc. Ocorrem
mudanças na corporeidade, sexualidade e autoimagem. A psicogerontologia é um
suporte teórico importante para embasar o cuidado do indivíduo que envelhece:
“os idosos precisam de ambientes que os apoiem e capacitem, para compensar
as alterações físicas e sociais decorrentes do envelhecimento” (OMS, 2008).
No cuidado com o idoso, é essencial conhecer e considerar sua biografia e seu
estado atual. Não podemos nos esquecer de seus projetos e de suas perspectivas de
futuro, mesmo que estejam encurtadas. Goldfarb (1998) afirma que

A economia dos investimentos durante o envelhecimento é altamente


influenciada pela singular representação de um corpo que se deteriora e pela
consciência de finitude. Mas acreditamos que o ideal a se perseguir é que isto
constitua um limite e jamais uma limitação [...] limite que será de um corpo
biológico que sofre uma involução, mas não daquele outro corpo, veículo e
origem de prazer, (p. 115)

É imprescindível, ao trabalhar com idosos, considerar onde e como o sujeito


tem sua satisfação emocional, qual é seu desejo, projeto e propósito, mesmo que,
muitas vezes, isso não esteja claro nem mesmo para ele, ou mesmo que para muitos
pareça insignificante. O trabalho de encontrar ou ressignificar projetos e desejos é
tarefa do AT.

72
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

Especificidades do acompanhamento terapêutico no


envelhecimento

Existe diferença entre o A T “comum” e o acompanhamento no envelhe­


cimento? Em nossos estudos do Núcleo de Acompanhamento Terapêutico no
Envelhecimento, temos visto que não há uma distinção técnica ou de fundamento:
o acompanhamento continua sendo o mesmo como uma função. No entanto,
a situação de envelhecimento impõe as especificidades características da geron-
tologia, com as quais o acompanhante terapêutico (at) deve estar familiarizado
(Rebello, 2006; Peixeiro &Barbieri, 2006; Goldtarb & Lopes, 2006; Gotter, 2010).
Como ressaltado anteriormente, vários acompanhantes trabalham com
idosos, mas pouco se tem produzido cientificamente a respeito do tema. É recurso
pouco conhecido no campo da gerontologia, mas tem se mostrado um excelente
meio no cuidado com o idoso. Neste capítulo não serão tratados itens fundamen­
tais ou históricos do AT, pois serão observados no decorrer deste livro. É essencial,
para essa função, que se tenha conhecimento sobre o A T e sobre a gerontologia,
pois essa população tem peculiaridades. É imprescindível a supervisão, fazer parte
de grupo de interlocução ou terapia pessoal. Muitas vezes o acompanhante irá
se deparar com seu próprio envelhecimento ou com o de entes queridos, com a
flnitude, reflexões a respeito de modelo familiar etc.
O A T é prática que acontece caso a caso (Goldfarb & Lopes, 2006),
construída a partir da demanda e do contato com o paciente. Por isso é difícil
estabelecer regras de como se dá o acompanhamento no envelhecimento. O
acompanhamento acontece com idosos independentes, ativos, sem dificuldade
de deambulação ou restrição funcional, e também com indivíduos dependentes,
acamados, sequelados, com dificuldades ou restrições que dificultam a saída do
domicílio ou da instituição. Nesse grupo, a saída, característica recorrente nos
acompanhamentos, fica restrita ou impossibilitada. As saídas com o acompa­
nhado serão as “saídas” que necessitam: sair do lugar da doença, da fratura, do
lugar de assujeitamento, resgatar sua autonomia, apreciar uma música, ser caubói
em um filme, navegar na internet, enfim, algo que faça ou dê sentido ao coti­
diano do sujeito. Pode acontecer de atendermos pessoas independentes que, por

73
Acompanhamento terapêutico

agravamento ou evento agudo, tem o setting de atendimento alterado. A entrada


de um at pode vir a partir de um pedido de ajuda do próprio idoso, da família ou por
indicação de outro profissional. O pedido pode vir com uma demanda específica
como a família que solicita levar seu familiar para passear, pois se encontra recluso,
para ensinar algo ou com pedidos pouco definidos, mas que apontam para uma
dificuldade da família ou do indivíduo em lidar com a situação ou de encontrar
alternativas. As demandas têm origem em situações como o enclausuramento, ou
dificuldades em circular na cidade, limitações tísicas que impedem atendimento
em consultórios, ausência de rede social, isolamento, demências, depressão, tobia,
dificuldades de inserção social e cultural, luto, ou não encontrar mais sentido nas
coisas. O A T insere-se onde há sofrimento psíquico (Peixeiro & Barbieri, 2006).

Se as perdas que o indivíduo sofre se acumulam e não são ressignificadas


ou “trabalhadas”, acabam por formar uma quase-barreira, estrangulando o fluxo
de vida e desejo. Camargo (1991) manifesta-se dessa forma: “podemos pensar
em nosso cliente, [como] alguém com uma nostalgia do fluxo sadio da vida, alguém
desejoso de inserção ou reinserção prazerosa no cotidiano” (p. 52). Assim o at
entraria, como afirma Barretto (1998), como um “interlocutor” do acompanhado,
exercendo a tarefa de, aos poucos, num contato íntimo, descobrir, sentir com
o paciente suas questões, para tentarem, juntos, transformar sua vivência. O at

[...] procura estabelecer um vínculo de confiança facilitador de elaboração


dos conflitos na totalidade da situação vivida pelo sujeito, participando de
seu entorno afetivo, revelando os obstáculos para seu bem-estar, descobrindo
potencialidades criativas, construindo enfim, um projeto de felicidade possível
junto ao sujeito acompanhado. (Goldfarb & Lopes, 2006)

A ideia de projeto de felicidade possível é bastante significativa quando se


trata do processo de envelhecimento, pois o idoso se depara com o enfraqueci­
mento ou perda de funções que ao longo da vida foram consideradas inerentes e
garantidas. Nessas ocasiões, pode, ao perceber essa “falta”, sentir-se impotente,
ameaçado ou ter aumentada a consciência da proximidade da morte. Buscar
felicidade possível é entendido como algo que está ao alcance. Com base nessa

74
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

perspectiva, o A T se toma necessário, pois o acompanhante, mediante repertório


teórico-experiencial, pode, com o idoso, buscar e reconstruir projetos de vida.
A atuação do acompanhante está ligada a “dispor-se a inventar estratégias
que ajudem o sujeito a restabelecer pontes com o mundo, ao propiciar espaços
de criação de autonomia” (Peixeiro & Barbieri, 2006). Para o acompanhante, é
essencial estar disponível e apostar no sujeito, investir e acreditar que ali, inde­
pendentemente da situação, encontra-se um sujeito desejante para poder inventar
estratégias e propiciar a autonomia. Como ferramenta, o at se utiliza de:

[...] intervenções no cotidiano de um sujeito a fim que se possa colocar em


marcha um processo de simbolização, na medida em que o cotidiano pode ser
compreendido como trama de símbolos, produtos potências da interface entre
subjetividade e cultura. Essas intervenções têm não so potencial terapêutico
[...] mas também um potencial analítico, pois eventualmente podem produzir
uma transformação na subjetividade do sujeito. Confesso que a ocorrência
deste ultimo efeito (analítico) é mais rara [...] o que observo no AT, de uma
maneira geral [...] é a presença da dimensão terapêutica da intervenção. Ou
seja, transformações no humor, diminuição da angústia e mudanças graduais
no psiquismo do paciente. (Barretto, 1998, p. 177)

É importante ressaltar que o projeto é focado no presente, em coisas pequenas


que se encerram em um encontro, ou como o projeto de procurar uma outra
ocupação, mas que busque autonomia e fluxo de vida desejante.
Podemos entender, portanto, que o AT, ao utilizar a flexibilidade de atuação e
a inserção no cotidiano, busca a realização de projeto e de circulação, e que o seu
trabalho, segundo Carvalho (2004, p. 25), “não está restrito a atenção à saúde e
sim de maneira mais ampla ao resgate e à promoção de qualidade de vida”.

Relato de um caso

Helena3, 85 anos, nascida na Itália, mudou-se para o Brasil pouco antes de


estourar a Segunda Guerra. Durante a viagem conheceu o homem com quem

3 Nome fictício usado para preservar a identidade do paciente.

75
Acompanhamento terapêutico

se casou. Tiveram dois filhos, viveram mais de cinquenta anos juntos, e seu esposo
faleceu dez anos atrás. Ela reside na mesma casa há mais de trinta anos. Aos
poucos construiu um orquidário, que fica no segundo andar do quintal. Sempre
cuidou das orquídeas. H á um jardineiro que a ajuda, e recentemente fizeram uma
nova espécie de orquídea híbrida, ainda muito pequena. Quando florescer, se ficar
bonita, o jardineiro lhe disse que a nomeará em sua homenagem. Sua casa está
sempre enfeitada com orquídeas.
Trabalhou durante quarenta anos lendo e gravando histórias para crianças
cegas. Viajou muito com os pais, marido, filhos e netos. Viajar sempre foi um
grande prazer em sua vida. Gosta de ler e assistir concertos. Fala italiano, portu­
guês, francês e inglês. Tem uma turma de amigas com as quais joga tranca e sai
para almoçar. Sua família é muito presente e cuidadosa. Mora com sua cuidadora
e a cozinheira, na casa em que seus filhos cresceram. Um dos dois filhos mora a um
quarteirão de sua casa; tem netos e dois bisnetos. Essas eram suas atividades até
o ano anterior ao início do acompanhamento, quando sofreu duas quedas que
lhe causaram quebra do pulso e da bacia. Os fatos fizeram com que perdesse sua
independência, pois precisou de uma pessoa para ajudá-la nas atividades coti­
dianas. Durante praticamente um ano teve de utilizar cadeira de rodas. Logo após
a segunda queda começou a ter dificuldade para ler, sentiu a voz enfraquecer,
tornando-se “típica de velha”.
Decidiu se aposentar, pois tinha problemas para ler os textos, e achava que
já não fazia mais um trabalho de qualidade. Simultaneamente, os jogos de tranca
ficaram esparsos: além da dificuldade de se encontrar com as amigas, outra amiga
estava “ruim da cabeça”. Não podia mais cuidar das plantas, era-lhe impossível
subir as escadas que davam para o orquidário. Viajar tinha se tomado muito
difícil, pois agora tinha acompanhante 24 horas. Seria trabalhoso e difícil viajar
em nova condição.
Em um curto período de tempo perdeu a mobilidade, o trabalho e as ativi­
dades prazerosas, o que modificou toda a sua relação com o mundo. Não se
reconhecia, tinha medo e não se sentia feliz. Sua fragilidade tornou-se evidente:
os dias se tornaram vazios, não conseguia ressignificar perdas ou encontrar novos
projetos.Tal situação despertou nela o sentimento de íinitude. Por não conseguir

76
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

encontrar alternativa que a agradasse e lidar sozinha com as mudanças, preenchia


seus dias com televisão, atividade da qual não gostava sulicientemente. Decidiu
pedir ajuda à família, atinnando que sua “vida andava muito chata”, e precisava
encontrar alguma coisa para fazer. Após o apelo, iniciou-se o AT, com a função
de encontrar uma nova atividade que lhe tosse prazerosa e preenchesse seu coti­
diano. Ao começar o acompanhamento, seu dia a dia consistia em acupuntura
três vezes por semana, manicure em casa uma vez por semana, jantar com toda
a tamília também semanalmente, e ir a concertos com o neto a cada quinze dias.
O trabalho do AT consistiu em encontros de duas horas semanais, em um período
de quatro meses aproximadamente. Nossas atividades variavam: no primeiro
encontro, fui à sua casa acompanhada de sua nora. No segundo, fomos a uma
exposição em um orquidário. Depois, nos reuníamos para o chá da tarde. No
chá, entre as histórias de sua vida, conversamos sobre o que já havia feito, o que
gostava de fazer, o que fazia bem e o que sempre quis fazer. Perguntei se gostaria de
tazer alguma coisa entre as citadas, mas Helena se mostrava desanimada, dizendo-
-se incapaz e impossibilitada de produzir na nova condição de vida.
Apresentei-lhe a programação de um centro de convivência. Dentre as ativi­
dades oferecidas, mostrou interesse pelas aulas de informática. Tão logo disse ao
filho sobre essa curiosidade, ele lhe comprou um computador e providenciou um
professor.
Nas “sessões” de chá ela mostrava os talheres especiais, que foram de seus
pais e tinham as iniciais gravadas. Um dia, ao comentar sobre os talheres, sobre a
lembrança que deixaram, mostrou um presente que sua avó havia lhe dado: um
prato que ela pintara, assinara e colocara a data.
A partir desse ensejo, começamos a procurar uma olaria que desse aulas
de pinturas em cerâmica. Encontrei uma próxima de sua casa e a visitei. Para
minha surpresa, havia um grupo de mulheres de cinquenta a 87 anos. Após contar
a minha descoberta, percebi-a atraída e a levei para conhecer o local, pelo qual
se encantou. Helena encontrou um lugar favorável por causa de seus frequen­
tadores, do ambiente e da disponibilidade dos professores. Pediu-me para entrar
em contato e marcar as aulas, porque, se ficasse por sua conta, não tomaria a
iniciativa. Matriculei-a no curso e acompanhei-a apenas em seu primeiro dia.

77
Acompanhamento terapêutico

Nos demais, Helena foi sozinha, pois era a sua vontade. Porém deixou claro que
não queria que nossos encontros terminassem. Decidimos nos encontrar para
jogar tranca, às sextas-feiras.
Passado algum tempo, disse-me que estava se sentindo “muito bem”, e mani­
festou a necessidade de ter um dia livre para ver as amigas, pois se sentia com a
“agenda cheia”. Perguntei-lhe se era apenas a “agenda cheia”, ou se havia reto­
mado as rédeas de sua vida, agora com fluxo saudável.
No último encontro, Helena contou-me que estava preocupada com a amiga
“ruim da cabeça”, e que gostaria de conversar com a família dela, pois precisava de
ajuda. No entanto, ela sabia que a família resistiría a tratamentos, e estava disposta a
tentar ajudá-la. Seu estado era de tal modo satisfatório que já se achava capaz de
cuidar da amiga que não estava bem. Continuou fazendo sua aula de pintura em
cerâmica, comunicava-se com amigos e família e via e-maií. Sentia sua vida melhor.

Algumas reflexões

Segundo Rebello (2006), no tratamento com idosos é essencial ir além dos


cuidados básicos, como moradia, alimentação, higiene e saúde. Esse relato é exemplo
do cuidado que ultrapassa o mínimo necessário, pois trata-se de uma senhora com
condições básicas supridas, somadas a uma boa situação financeira e ao apoio fami­
liar. No entanto, isso não era suficiente para ajudá-la na travessia para mudar seu
modo de se relacionar com o mundo a partir de sua fragilidade. Apesar de toda a boa
condição, Helena viu-se sozinha e triste, não sabendo o que fazer com a condição
de dependência. Não conseguia elaborar e ressignificar perdas e mudanças.
O A T entra como recurso em que acompanhantes e acompanhados rein­
ventam um modo de se relacionar e estar no mundo. Nesse caso, seu desejo estava
em reencontrar sentido e prazer em sua vida.
Ao começar o acompanhamento, Helena estava com sua capacidade de reali­
zação reduzida e sem recursos para tomar seus dias melhores. É bem provável que,
se não tivesse seu apelo atendido, seus sintomas, como desânimo, desmotivação e
sentimento de vazio acirrado, se transfonnassem em depressão, acentuando ainda
mais a fragilidade física.

78
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

No atendimento, o projeto foi encontrar atividades que preenchessem e


dessem sentido à sua vida. No início do atendimento tiz uma aposta: ali havia um
sujeito desejante, apesar de ela não vislumbrar algo que pudesse fazer.
Para Barretto (1998), o A T tem função terapêutica e potencial analítico,
que se dão por meio de intervenções no cotidiano do acompanhado, colocando
em movimento processos de simbolização, que podem provocar transformação na
subjetividade do sujeito, mudando humor e diminuindo angústias.
Camargo (1991) sintetiza o at e sua atitude, ressaltando que o caráter tera­
pêutico da função resulta mais das ações do que de interpretações formuladas e
expressas ao acompanhado, caracterizando-se como “intérprete ativo” que atua no
mundo real do cliente. O acompanhante tem como munição os sentidos abertos, a
atenção, “ouvir mais do que talar”, e percepção das linguagens verbais e não verbais.
Um exemplo da ação interpretativa em meu acompanhar aconteceu no
início. Durante nossos encontros, Helena dizia que se incomodava em não poder
calçar suas meias. Uma amiga norte-americana lhe contara que nos Estados
Unidos existia um calçador de meias, e ela se questionava como era e pensava
que aquilo “era muito bom”. Dispus-me a pesquisar. Mostrava-se incomodada de
ter perdido sua independência, e não gostava de “dar trabalho” (sic). Comprei o
calçador. Helena ficou muito agradecida. O gesto foi essencial para ocorrer uma
mudança em nosso relacionamento. Sentiu-se cuidada, e disse que ficava muito
aborrecida, porque não conseguia calçar as meias. O ato lhe trouxe a perspectiva
da atenção que eu podería oferecer, que mesmo fora dos nossos encontros eu me
preocupava em procurar e lhe dar algo que promovesse sua independência; outro
ato simbólico que tomou evidente a questão da busca pelo resgate da indepen­
dência, na medida do possível.
O fato de eu não ter cobrado o calçador desdobrou em outra questão, pois
o pagamento dos nossos encontros gerava certo estranhamento. A partir daí se
sentiu cuidada também pelo afeto. Entendia melhor o que estávamos fazendo.
Acredito que essa vivência pode ser considerada um ato interpretativo ou algo
que demonstre a dimensão terapêutica da função.
Como afmna Berger (1991), o at realiza “ações possibilitadoras”, possibilita-
doras de encontros, de movimento, atitudes etc. Helena encontrou uma atividade

79
Acompanhamento terapêutico

que a preencheu, deu sentido a algumas de suas questões com a vida. Na pintura
em porcelana vislumbrou a possibilidade de, à maneira de sua avó, que a presen­
teara com uma louça, ou de seus pais, que lbe deixaram os talheres com suas
iniciais gravadas, também deixar sua marca, uma lembrança para o futuro, ofere­
cendo aos entes queridos um presente que a perpetuasse. Dar e criar ornamentos
que combinem com a casa dos parentes permite que faça parte de seu cotidiano,
de forma que todos se lembrarão dela pelos seus objetos, pois visitar a família se
tornou tarefa difícil depois da queda.
Ao término do AT, seu cotidiano havia se transformado. Sentia-se melhor,
com novas amizades e melhores condições de saúde. Além disso, estava recupe­
rando a visão com tratamento de vitaminas, e mostrava-se mais confiante para
andar, já não usava cadeira de rodas fazia um tempo, e voltou a envolver-se no
cuidado de suas orquídeas sem subir no orquidário.
Seu futuro lbe parecia menos ameaçador e mais prazeroso do que quando
começamos o atendimento.
No dia que fizemos o fechamento do trabalho, contou-me que estava preocu­
pada com aquela sua amiga que estava “ruim da cabeça” e, por esta não ter uma
família que lbe desse suporte, estava com a intenção de ajudá-la. Seu estado era
de tal modo satisfatório que já se achava capaz de cuidar de sua amiga.
O trabalho de A T é uma importante ferramenta para o cuidado que enriquece
a vida do idoso na fase da vida na qual sua fragilidade aumenta. Sendo sujeito dese -
jante, é possível haver transformações, visando a uma vida mais rica e saudável.

80
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento

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83
A importância do trabalho em equipe

Ananéia Machanoscki Bezerra

Ao pensar em Acompanhamento Terapêutico (AT), penso em momentos de


aproximação, separação e incontáveis questionamentos.

Dei início a essa atividade no último semestre da faculdade de psicologia. Um


grupo se fonnava para atender um sujeito para quem a família demandava A T diário.
Fomrou-se um grupo de quatro acompanhantes terapêuticos (ats), e a proposta
inicial era de que o sujeito voltasse a realizar certas atividades por conta própria.
Para o sujeito, pode-se dizer que o A T criava um espaço para ele ter palavra. Para ser.

A cada encontro, ouvia-se o que aquele sujeito de 72 anos queria ter feito
de sua vida. A dor expressa em seu choro, em suas palavras, nas vezes em que
encenava “um se jogar na frente dos carros” nas saídas do AT. Ele, que havia
enfartado quatro vezes (tendo, na última, passado um dia inteiro sem avisar
ninguém), dizia que não fez da própria vida o que queria ter feito. Mas estava ali.
Vivo. Encontrando pessoas novas a cada dia. Planejamos compor inicialmente
uma equipe de quatro ats para dar conta dos cinco dias, mas nunca foi possível
manter uma terceira pessoa. O primeiro “terceiro” que entrou nesse caso era um
at homem, que, ao receber críticas sobre seu trabalho, quis enquadrar o atendi­
mento sozinho (sem uma reunião formal da equipe com a família), o que acabou
provocando a interrupção de seu trabalho.

Em reuniões constantes e supervisões, pensávamos na estratégia para inserir


esse terceiro at. Será que não podería ser um homem? Qual era a questão que se
apresentava em relação a isso que nós não víamos?
Acompanhamento terapêutico

Sempre que entrava um terceiro, a dinâmica do atendimento em equipe


mudava, e alguma questão “grave” para a família acontecia. O impedimento de um
terceiro at continuava a acontecer.
Com esse meuprimeiro contato com o A T surgiram questões das mais diversas.
A clássica “o que eu estou fazendo aqui?”, principalmente quando a transferência
era de artilharia, nesta época era respondida com um simples (nada simples) “estou
acompanhando”. E isso queria dizer que eu estava conhecendo aquele sujeito, que
me contava que guardou desejos e que não os encontrava mais, que parece ter
vivido com um falso self e que pagava um preço exorbitante por não alcançar mais
a si. Mas que, em contrapartida, fazia trocadilhos com meu nome, se aproximou de
mim, da outra at, das coisas que levávamos conosco (comigo, tinha até o momento
de sair para comer doce). Contou diversas histórias, quis retomar o contato, ao
longo de um ano de acompanhamento, com pessoas e instituições deixadas há anos.
Também surgiram questões teóricas o tempo todo. Qual era o papel, na dinâ­
mica do atendimento, da simbiose que existia entre o acompanhado e a esposa?
Por que havia dicotomia na relação da esposa com as duas ats, sendo uma consi­
derada, por um bom tempo, como aquela que fazia sempre tudo certo (o seio
bom?), e a outra como a burra, que não entendia nada e fazia a mulher bufar?
Cinco profissionais tentaram compor essa equipe ao longo de todo o tratamento,
e apenas as duas primeiras ats permaneceram. Por quê?
As questões físicas apareceram com força, e ele passou a precisar de um
cuidador. E, ao ver que podería ser esse sujeito, e que sua família o aceitava nas
novas e limitadas condições, houve a percepção de que, com o trabalho, um novo
lugar para ele passou a existir. E, principalmente, ele pôde descobrir novos motivos
e quereres.
Seguiram-se anos, e outros acompanhamentos desde essa primeira expe­
riência, e aos anos somaram-se novas perguntas. Eu me perguntava: de que lugar
respondia nessa função? Qual o papel da equipe no tratamento? Será que temos
papéis e lugares predeterminados para desempenharmos e ocupamros? A expe­
riência com sujeitos psicóticos me fez perguntar, muitas vezes, qual a origem de
todo aquele sofrimento. A cada pergunta, muita pesquisa, estudo e discussões.
Não era possível, para mim, tamanha proximidade (desses sujeitos, situações de

86
A importância do trabalho em equipe

isolamento, falta de autonomia e de desejo) oferecida pelo AT, sem o respaldo da


teoria, da análise, da supervisão e da conversa constante com a equipe.
A experiência de trabalhar com outros profissionais mostrava-se com impor­
tância desde o início. Não se acompanha sem conversar com um analista, um
psiquiatra, um at, um outro de perto.
A visão de outro profissional que também atende o sujeito é muito enri-
quecedora para o trabalho. As atuações distintas e a interação de toda a equipe
apontam para o desenvolvimento de um tratamento que, apesar de abarcar muito
trabalho, possibilita a construção de novos caminhos e movimentos.
Gostaria de contar outras duas experiências distintas que tive ao trabalhar
em equipe. Distintas em sua intervenção e quanto ao resultado disso.
Fui chamada, certa vez, para compor uma equipe com mais uma at, que
já acompanhava a paciente havia dois anos. Existia a demanda de criar novos
vínculos sociais em períodos em que a primeira at não podia estar presente. Essa
mulher apresentava um quadro de crises maníacas, alternado com crises depres­
sivas, e em ambas existia muita intensidade nos sintomas e um histórico de
muitos rompimentos. Ela estava afastada dos filhos (que eram crianças), do
trabalho, dos amigos e da família de origem. O A T começou logo após a acom­
panhada me escolher por meio do convênio - segundo ela, por notar que um de
meus sobrenomes era da mesma ascendência que a sua.
Foram encontros dos mais diversos. Ora procuravamos cursos, saíamos para
o clube para realizar exercícios físicos, fazíamos mudanças e arrumação na casa,
consertávamos coisas. Ora eu ia a seu encontro e somente assistia ao que ela estava
fazendo: trabalhando com artesanato, falando com pessoas ao telefone, escre­
vendo. Houve uma vez em que ela cozinhou para mim.
A acompanhada era uma mulher muito inteligente, com bastante desenvol­
tura. Certa vez uma amiga minha nos encontrou e me disse que a acompanhada
mais parecia ser eu. Tinha dois cursos de nível superior e conseguiu, com seu tra­
balho, criar e desenvolver uma rede de empresas que administrou por certo tempo.
No início desse trabalho existiam muitas crises. Ela havia passado por mais
um momento disruptivo importante em sua vida, em que tinha sido expulsa do
local em que morava. E, aos poucos, e com muitas reuniões, primeiramente com

87
Acompanhamento terapêutico

a equipe de ats (a essa altura já éramos três) e depois também com a equipe do
hospital-dia (que ela voltou a frequentar depois de, em crise, ir até lá em um fim
de semana pedindo ajuda), observávamos as coisas melhorarem. Em aproxima­
damente um ano, as crises, antes recorrentes, começaram a rarear até cessarem
completamente; ela se reaproximou dos filhos e da família (com prazer) e retomou
o trabalho. Mudar da moradia precária, por exemplo, era um desejo dela, uma
questão tratada pelos ats, e passou a ser uma ideia apoiada também pelo hospital-
-dia. Assim, essa ideia foi cuidada e a acompanhada pôde até levar seus filhos a
uma casa que era então só dela. As horas de A T na semana foram diminuídas e
começávamos a traçar a perspectiva de alta.
Houve então o que vou chamar aqui de “rompante da equipe do convênio”,
que se interessou pelo caso que “está indo tão bem” e resolveu tirar a referência do
tratamento do hospital-dia e passar para si, uma vez que houve, em outros tempos,
acompanhamento clínico deles também. Mudaram completamente a medicação,
e a acompanhada, que havia uns seis meses parecia se cuidar bem, teve seu
entorno (do qual dependia ainda) mudado. Mais uma vez em sua história, em
seu auge, sofreu uma queda e um rompimento. Houve, quase imediatamente,
uma crise maníaca que resultou em perda da casa, do contato com os filhos, do
trabalho, do namorado, de amigos-vizinhos, dos ats (que o convênio afastou).
A experiência foi de desolação. Mais uma vez, percebi que havia importância
na forma como se desenrolava e se mantinha a comunicação na equipe. Pensá-
vamos juntos e trabalhávamos por um porvir da acompanhada (que estava quase
sempre nas reuniões), a qual desenvolveu um caminho a ser trabalhado e susten­
tado (a princípio por todos), até que começou a seguir com maior independência,
passando a sustentar os próprios desejos. Só não observávamos que havíamos
deixado de fora uma parte da equipe e da dinâmica do caso —que, depois de dois
anos calada, se pronunciou.
Depois dessa experiência, que me mobilizou a pensar sobre a repetição (uma
repetição inevitável?), pois a história dela trazia a primeira crise quando estava
numa fase em que produzia muito, refleti sobre a destruição presente em casos
graves. Mais uma vez, coloquei-me a procurar a resposta para a origem de tamanho
sofrimento, da psicose, e a buscar a melhor forma de intervir nesses casos.

88
A importância do trabalho em equipe

Um sujeito, ao se expressar, desencadeia efeitos reacionais em outro sujeito.


Todo mundo sabe também que a reação de um eu a outro eu é fruto de parti­
cular ressonância e de um percurso singular que a ação (verbal ou não) interposta
por um deles provoca no outro. Ressonância e percurso dependem de condições
mentais, corporais, sociais, temporais. Freud dedicou-se a nos mostrar que essas
interações são mais complexas do que parecem num primeiro momento, pois
mente, corpo e a dimensão social são influenciados pelo caráter pulsional, cindido
e defensivo que temos.
Mas como é que tudo começa?
Penso nos bebês sendo talados antes mesmo de existirem. Pode-se dizer que,
em psicanálise, o que é dado primeiro é a linguagem.
Recebi o encaminhamento para trabalhar como at de um sujeito que havia
obtido alta do hospital-dia depois de se tratar por seis anos. O sujeito, que vou
chamar aqui de E tinha um diagnóstico em aberto, mas apresentava uma sintomá­
tica que se aproximava de um transtorno esquizoaíetivo —era o que dizia a equipe
que o acompanhava até então. Além desse tratamento, Fj que procurara por conta
própria sua internação na adolescência, fazia somente o tratamento medicamen­
toso. Quando o conheci, ele fazia A T com um acompanhante homem havia três
meses. Ele fora acompanhado, pelo mesmo período de tempo, por uma at mulher
que acabara de interromper o processo. Sua analista, na mesma época, também
precisou interromper o tratamento, pois se mudou para outro país. P não existia1.
Pelo menos era assim que se referia a si mesmo (que si mesmo era esse?), quando
não dizia que estava morto e que não tinha memória. No início, eram apenas
algumas horas de AT, passadas quase exclusivamente com P dizendo isso e também
que era um fracassado, alguém que não sentia nada nem dor. Desejo? Um. De
passar as três horas de encontro fazendo o que a outra at gostava. Depois de dizer
que meu trabalho era “uma prostituição”, disse também algumas coisas que queria
fazer comigo, como me torturar, por exemplo. Nunca a pergunta de volta, “por que
quer me torturar?”, era respondida. Muitas vezes, não era nem entendida. Quando
ele conseguia entendê-la (aí o trabalho já estava adiantado), questionava-me por

1 Para Winnicott, a intersecção ótima da mãe com o bebê tem por finalidade criar o afeto de existência.

89
Acompanhamento terapêutico

que eu estava dizendo aquilo. Não reconhecia a fala como sua. A equipe que
o atendia havia tempos também não reconhecia aquela fala como dele. Ao
discutir a situação com a equipe, a reação dos membros foi de estranhamento,
tanto que levantaram a possibilidade de eu ter escutado errado, pois esse sujeito,
apesar de apresentar certa agressividade, era muito contido e não falaria uma
coisa dessas. E assim seguiram-se inúmeros encontros com o paciente dizendo não
se lembrar ou não saber o que falou. Talvez se possa dizer que o A T nesse período
funcionou como memória para E Uma introdução ao simbólico, como diria Lacan.
P também dizia muitas vezes no início desse tratamento que não havia nada
em sua cabeça, só barulho. Após longo estudo de textos de Freud, A interpre­
tação das afasias (Freud, 1891) e O inconsciente (Freud, 1915), interpretei essa fala
como talta de ligação entre suas associações. Eu via que P existia. Com o passar
do tempo e do trabalho, eu vi que ele tinha coisas a falar sobre si, mas elas não
estavam associadas a um sentimento de si. Freud, no primeiro texto, formulou
que um aparelho de linguagem (correspondente ao aparelho psíquico) é cons­
truído gradativamente pela aprendizagem e que só se constitui na relação com outro
aparelho de linguagem. Qual teria sido a influência na constituição do aparelho de
linguagem de P se se supõe que essa influência tenha ocorrido em contato com um
aparelho de um sujeito em depressão?
Depois de cerca de um ano2, P seguia escutando algumas palavras minhas
e apertando os olhos para se acalmar quando estava “incomodado”. Apertava
os dois sistematicamente, muitas vezes sem nem perceber, chegando até a ficar
desfigurado de vez em quando de tanto apertá-los. P teve certa preocupação com
o olho por um período. Fizemos muitas pesquisas, em diversos lugares, porque
P queria saber quais eram os oito nervos que faziam enxergar. Depois de certa
procura, encontramos um atlas com explicações e ilustrações. P estudou, copiou
os desenhos, xerocou e depois encerrou o assunto.
Posso dizer que, nesse período, P não enxergava. Ele via, mas não eram todas
as coisas. As pessoas chegavam ao seu lado, falavam com ele, mas ele não as via.
Disse Lacan (1985, p. 165) que “é a relação simbólica que define a posição do

2 Importante destacar que nesse período eu acompanhava P sozinha, pois, com oito meses, o outro at (que havia
entrado três meses antes de mim), encerrou o atendimento.

90
A importância do trabalho em equipe

sujeito como aquele que vê”. Para ele, o simbólico é identificado à linguagem.
Fica clara a ideia de que o acesso à linguagem faz do sujeito um escravo. Aquém
do acesso à linguagem está a linguagem como preexistente, como uma série de
determinações preestabelecidas, em que o ser falante vai se inserir.
P que permanecia parado num café dizendo que era um “fracassado”, parecia
ter então descoberto as palavras. As atividades nos ATs eram consultar todos
os dicionários de várias livrarias dizendo que queria entender o significado das
palavras. E pedia para que eu as lesse. Na parte III do texto de Freud (1914) Pctra
introduzir o narcisismo, o autor escreve que a “consciência que atua como vigia3”
surgia “da influência crítica de seus pais (transmitido por intennédio da voz) e
pelos que o educaram, pessoas do ambiente e a opinião pública”. As primeiras
palavras procuradas por P foram “tara” e “moral”. Ele dizia que somente quando
eu as lia que essas palavras poderíam entrar na sua cabeça. Depois P buscou pela
palavra “alteridade”.
À pergunta de Lacan (1986, p. 158), “quando o psicótico reconstrói o seu
mundo, o que é que é inicialmente investido?”, ele responde que são as palavras.
Não se pode deixar de reconhecer aqui a categoria do simbólico. É a palavra a
função simbólica que define o maior ou menor grau de perfeição, de completude,
de aproximação do imaginário4. O método analítico facilita a volta para a via
daquilo que, na palavra, está acima do nível de conhecimento, o que diz respeito
ao terceiro, ao objeto5.
P começa a andar pelo centro da cidade querendo “ter o mapa na cabeça”. E
tomos a sebos procurar por livros que ele dizia ainda não conseguir entender. Mas
os comprava mesmo assim. Os olhos ainda eram apertados para ele se acalmar.
Contudo, essa atividade acontecia com menos frequência.
P passa a se cuidar mais (estaria ele gostando mais de si?), comprando objetos
de uso pessoal para cuidados com o corpo, e abandona, aos poucos, os rituais da

3 Ele ainda não havia criado o supereu.


4 O registro do imaginário vai trabalhar a função das imagens na subjetividade, e o espelho como o lugar e a
figura por onde passa a se organizar o que circula entre o humano e seu mundo de representações (imaginárias).
5 Lacan disse que “pode-se situar a questão das relações entre analisando e analista num plano completamente
diverso —no plano do eu e do não-eu, quer dizer, no plano da economia narcísica do sujeito”. Penso que isso
vale para AT

91
Acompanhamento terapêutico

noite que não o deixavam donnir. Pede para que eu leia histórias de contos de
tadas e, depois de uma crise epiléptica, pede colo.
Ferenczi (1929), no texto A criança mal acolhida e suapulsão de morte, observou
que a crise epiléptica se seguia à experiência de desprazer, as quais davam, a certo
paciente dele, a impressão de que a vida não valia a pena ser vivida. Falou também
do pessimismo moral e tilosótico desses sujeitos, do ceticismo e da desconfiança.
Sem falar da inapetência para o trabalho, incapacidade para sustentar um esforço
prolongado e especulação cosmológica. Tais sujeitos se perguntam: “por que me
trouxeram ao mundo?”. Já para Freud (1923), o desprazer está ligado ao aumento
de tensão. Para fim de descarga, a pulsão de destruição é habitualmente colocada
a serviço de Eros, e ele suspeitava de que a crise epiléptica era produto e indicação
de desfusão pulsional, como escreveu na parte IV de O eu e o isso (Freud, 1923).
Com o desenvolvimento do processo e conversas mais frequentes com o neuro-
psiquiatra, pude notar P melhorar em relação a sua autonomia. Ele quis fazer
cursos e fez. De início, falava que só os fazia por sugestão dos antigos profissionais.
Depois parecia se implicar mais com a busca do saber.
No entando, novamente se dizia não saber nada. Falou: “ser filhinho de papai
não dá mais; preciso saber que sei me virar sozinho”. P pediu para parar o AT porque
estava saindo de casa só para ver a at, e “esse não era o propósito do A T”. Ficou
dois meses sem acompanhamento e voltou porque, segundo ele, sabia que preci­
sava. Sete meses se passaram e ele quis parar novamente; dessa vez porque queria
morar sozinho. E isso só podería fazer mudando de cidade e de estado.
O mês que antecedeu sua partida trouxe falas como “eu estou te enxer­
gando”. “Puxa! Por que nunca tinha te visto?” E mostrava gostar de olhar para
mim. Passou os três últimos encontros me desenhando e deixou o desenho comigo,
dizendo que não ficou como ele queria. Parecia se deliciar no papel ativo em que
me mantinha imóvel para que pudesse me desenhar.
Antes de partir quis vender alguns livros e teve certo trabalho com isso. Dizia
“quem mandou eu querer”?. Contou um sonho da seguinte maneira: “Eu sou
um criminoso. Sonhei com uma cena que me faz ser o homem mais criminoso da
tace da Terra”. Por um ato que nem Freud explica, falei que sabia o que ele tinha
sonhado: que havia desejado a mãe. P espantou-se com a minha fala e disse que era
isso mesmo, por isso ele era um criminoso. Depois de uma longa conversa em que

92
A importância do trabalho em equipe

vi o próprio P desmistificando a situação do sonho, ele disse que tinha somente


uma coisa para resolver: a situação com o pai. N a época ele comentava que não
gostava da presença do pai em casa e que ficava incomodado ao vê-lo se preo­
cupar com ele (P), pois isso era papel de mulher. Esse pai também era visto como
alguém que tudo podia, tudo sabia e que tinha tudo o que queria.
P formulou então a frase “agora preciso de alguém para apertar” , e esse
parecia ser o carro-chefe de seus desejos. Depois de ver, ele queria tocar, apertar.
E partiu para outra cidade. Por lá permaneceu cinco meses. Mandava cartas para
mim e me encontrou por duas vezes em São Paulo, quando vinha às consultas com
o neuropsiquiatra que não conseguiu substituir.
Morando sozinho, percebeu que podia se cuidar; nas cartas, dizia se lembrar
das coisas que a at dizia. Por duas vezes ligou só porque “precisava ouvir sua voz”.
Parecia gostar de saber que podia se cuidar, o que era uma grande questão para ele.
Também demonstrava ter abandonado a grande rigidez que não o deixava contente
com nada. Porém se sentiu sozinho; a cidade em que estava não oferecia tantas
atividades culturais (algo de que gostava) como São Paulo. Ele distribuiu currículos
pela primeira vez na vida; prestou vestibular e passou em primeiro lugar. Interessou-
-se por uma moça, e até brincou, certa vez, escrevendo em uma carta que estava
de olho “na moça da padaria (não na padaria da moça)”. E voltou, querendo AT
novamente, para conhecer pessoas e arranjar emprego. Começou a dizer que eu lhe
dei a luz, e ora que eu era a luz de sua vida, sem se estender ao que isso significaria.
Fez um curso, elaborou currículo, levou em agência de empregos. Nesse
momento, acreditou poder ser útil (antiga questão) e vir a ser competente. Porque
ainda não era. No entanto, talou que comigo ele tinha a sensação de que tudo era
possível. E esbarrou em uma questão: queria se casar, antes de qualquer coisa. E
as saídas eram para ele paquerar. P já não apertava os olhos para se acalmar. Teria
ele sublimado?
P gostava de olhar mulheres. Antes me perguntava se podería olhar; se olhar
não era invasivo. Ele disse que não se aproximava delas porque tinha medo de “ser
repelido com energia” ou de “levar uma invertida”. Para P isso queria dizer trans­
formar uma situação agradável em desagradável. E dava o exemplo de o amor, o
interesse, ser transformado em repugnância. As palavras “inversão” e “invertida”
foram muitas vezes usadas por E Será que seu significado se relacionava à inversão

93
Acompanhamento terapêutico

mencionada por Green (1988), em que a mãe primeiro deseja unidade com seu
bebê, depois bá a inversão de valores, e ela quer a separação? Ou será a imagem
especular que oferece o outro, inverso de si mesmo?
P falou, certa vez, que gostava do meu lado humano, que “não rosna”.
Ao procurar a realidade de si, a consciência encontra apenas a imagem do
outro com o qual se identifica e no qual se aliena. É o que Garcia-Roza (1995)
afirma em Artigos de metapsicologia; é o outro que está na posse de sua imagem, já
que o sujeito percebe o próprio corpo na imagem do outro. A identificação é alie-
nante, produtora de tensão, e tem como consequência imediata a necessidade de
destruir o outro, fonte de alienação. Talvez por isso tenha surgido o sonho (que
contarei a seguir), e também a vontade de torturar a at no início do tratamento.
P contou que, em um de seus sonhos, explodiu um quarteirão para chamar
a atenção de uma moça. E perguntou se teria de fazer o mesmo para que alguém
o notasse. P queria, nessa época, descobrir uma “técnica” para se aproximar das
mulheres.
Fez-se necessário um outro at nesse momento. Um at homem, com quem
P pudesse se identificar. E deu-se início ao trabalho, saindo os dois para que P
pudesse paquerar.
Presumo que, nas ocasiões em que P saía de casa para o A T (única ativi­
dade que teve durante anos) e passava quase três horas apertando o olho para se
acalmar, sem me enxergar ou a quem quer que fosse, tal atividade fosse autoeró-
tica. É o autoerotismo que guarda a satisfação antes do eu e do recalcamento. É
no momento em que a atividade pulsional pode ser compreendida como relação
do eu com as fontes de prazer do objeto considerado como independente do eu,
que a transformação passividade/atividade adquire a forma do amor que o eu pode
dedicar a si mesmo.
Parece haver um sentimento de si mesmo quando P constata que pode cuidar
de si, primeiramente comprando coisas de higiene e uso pessoal, e depois quando
foi morar em outra cidade. Ele falou que lá lembrava das coisas que eu dizia. Será
que o isso da at ficou no sujeito, compondo assim suas pulsões de autoconservação6?

6 Green (1988) escreveu que o isso da mãe fica no sujeito. Somente por isso ela pode dormir a noite. No sujeito
fica a autoconservação.

94
A importância do trabalho em equipe

No texto Para introduzir o nardsismo, Freud (1914) pergunta-se sobre as psicoses


no quadro da teoria geral da libido. Porém, quando responde, usa como tonte as
neuroses. O eu na psicose deixou de ser o sensato representante dos interesses da
autoconservação para se tornar um joguete das pulsões. Por isso se busca Lacan.
Sujeito e eu são duas instâncias de registros diferentes: o eu é marcado pelo
imaginário, e o sujeito, pelo simbólico. Sempre pensei que A T fosse uma possibili­
dade interventiva para deixar o sujeito aparecer; para fazê-lo falar.
A imagem que o espelho devolve é torneada e investida em sua simetria.
Prematura, em relação ao amadurecimento neurológico. O outro da imago é fasci­
nante. A criança transfere para si o que é do outro, dos fragmentos corporais ao
corpo como unidade, ao narcisismo.
O mito de Narciso traz esse espelhamento cativante e mortífero. Por amar
apenas espelhadamente, Narciso não diferencia que se trata de amor pela própria
imagem refletida na água e nela se precipita para morrer. Do lado de cá do espelho
há o olhar (espera-se) de um adulto que resgata a criança da prisão exclusivista
da imagem especular. Rubricando o júbilo da criança, introduz outra dimensão,
ligada ao simbólico. É por isso que a criança precisa se ver no olhar da mãe. P dizia-se
incompetente para paquerar. A visão que tinha de si já havia melhorado, pois podia
várias coisas; mas ainda não se autorizava amar nem ter acesso ao outro sexo. No
entanto, com o trabalho avançando, aos poucos P colocou-se em um novo lugar.
De quem podia. E percebeu que não existia, no mundo, aquele que tudo pudesse.
A importante entrada do at homem fez o tratamento disparar na direção da
alta. Logo foram deixadas de lado as saídas para paquerar, em favor de encontros em
que esse novo at, primeiramente colocado no lugar de quem iria ensinar, trocava
informações ligadas a diversas áreas, fazendo surgir, em escala crescente, novos
talentos de R
As conversas entre os ats, que sempre existiram nesse período, deram espaço a
conversas entre ats e acompanhado; e ats, acompanhado e família. Por um período
em que as horas de encontros já estavam diminuídas, pois pensávamos em alta,
P passou a querer que os ats fossem a sua casa, onde morava com os pais. Vimos,
assim, acontecer um novo movimento, que fazia P encontrar parte de sua história
perdida falando de novo com seus pais.

95
Acompanhamento terapêutico

A aproximação da função desse segundo at como aquele que faz o corte esta­
beleceu o caminho para a alta desse sujeito, que passou a não ter dificuldade
nenhuma em dizer o que queria e o que não queria.
Qual o meu desejo? Qual é minha posição na estruturação imaginária? Essa
posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imagi­
nário. No nível do plano simbólico, dos seres humanos que tendem a não rosnar.
Para Winnicott (1975), é necessário que a criança se veja nos olhos da mãe
antes de vê-la, para tomrar seus objetos subjetivos —isto é, narcisistas. O narci-
sismo é a estruturação escópica que permite a uma libido de objeto existir, que dá
causa para o desejo do sujeito.
Trabalhamos, eu e o outro at (pois não daria para fazer isso sozinha) para
recuperar um tempo passado na memória de P e pudemos assistir (porque ats
também gostam de ver) a um investimento no futuro, porque P passou a querer.
Várias coisas. Essa transfomiação supõe que ele admitiu o outro. Como modelo
ideal, como alteridade, como diferença desejável. Ora, desejar algo que não se é ou
que não se tem revela uma falha no sujeito. Falha que aparece à revelia do narci-
sismo egoico. O ideal, com sua presença no psiquismo, mostra a divisão do sujeito
e sua dependência do desejo do outro. Depois disso, vem a elaboração psíquica
em que as certezas narcísicas, aquelas como “sou um fracassado”, são postas em
dúvida, permitindo a mobilidade dos investimentos em direção a novos objetos
psíquicos.

96
A importância do trabalho em equipe

Referências bibliográficas

Ferenczi, S. (1929). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. (Coleção Obras Completas, v. 4.)

Freud, S. (1891) A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1977.

Freud, S. (1914). Para introduzir o narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV.)

Freud, S. (1915). O inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasi­
leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV)

Freud, S. (1923). O eu e o isso. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasi­
leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIX.)

Garcia-Roza, L. A. (1995) Artigos de metapsicologia. In: Introdução à metapsicologia


freudiana, v. 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Green, A. (1988). Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta.

Lacan, J. (1986). O Seminário, v. 1 - Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de


Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1985). O Seminário, v. 17 - O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar.

Winnicott, D. W. (1975). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento


infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

97
Acompanhando Rita

Maria Silvia Logatti

Rita1 nunca teve um diagnóstico fechado acerca do grau de seu comprome­


timento. Não se trata de uma doença psiquiátrica, mas a paciente apresenta um
retardo grave. Nunca conseguiu ser alfabetizada, e o seu comportamento asse­
melha-se ao de uma criança de cerca de cinco anos de idade, apesar de a paciente
já ter 62. Rita adora bonecas e livros que tenham bichinhos para que ela os possa
colorir.
Os pais de Rita já faleceram, e a irmã, Marta, é sua responsável. Elas moram
juntas num apartamento, com um cachorrinho. Sua innã entrou em contato
comigo em 2003, num momento muito delicado da vida de ambas. Rita sempre
apresentou episódios de agressividade, que vinham, porém, intensificando-se
relevantemente.
Combinei com Marta que atendería Rita duas vezes por semana, e que
marcaria reuniões com ela sempre que sentisse necessidade. Era preciso atender
Rita, mas Marta também tinha de ser orientada sobre como proceder com a irmã.
As reuniões com Marta eram feitas comigo e com outro psicólogo, que tinha a
função de orientar a família.
Para que Marta pudesse reformar o apartamento, Rita foi internada numa
casa de repouso para idosos. O local de internação não atendia a todas as neces­
sidades de Rita, mas, apesar disso, a paciente gostava bastante da casa e não
desejava sair de lá. Era a primeira vez que seu cotidiano se recheava de atividades,
pois, antes, ela ficava o dia inteiro em casa, sem fazer nada.*

Este e outros nomes que aparecem no texto são fictícios.


Acompanhamento terapêutico

Justamente por esse motivo Marta entrou em desespero, pois pretendia


levar Rita de volta ao apartamento. Rita, porém, estava muito confusa com as
mudanças e apresentava episódios de intensa agressividade; chegou a bater na
irmã e em alguns funcionários da instituição.
O acompanhamento terapêutico começou a ser feito na casa de repouso com
o intuito de facilitar sua volta para casa. No princípio, Rita gostou da novidade
e recebeu-me muito bem e, orgulhosa, contava a todos que, “agora, tinha uma
psicóloga”. Porém, a partir da terceira semana de acompanhamento, Rita começou
a apresentar episódios de agressividade também para comigo, xingando-me, e até
me batendo. Certo dia, Rita exigiu que eu fosse embora da casa de repouso,
provavelmente porque percebeu que eu seria a pessoa que a ajudaria na transição
de volta para casa, e seu único desejo, naquele momento, era não sair da casa de
repouso. No atendimento seguinte, Rita conseguiu me receber bem e, dali para
frente, os atendimentos oscilavam entre recepcionar-me bem e ficar muito brava
com minha presença.
A reforma do apartamento enfim terminou, e Rita retomou a sua casa. Marta
contratou uma empregada para cuidar da limpeza do apartamento e fazer compa­
nhia à irmã, mas parece que esta não gostou de sua nova companhia, e começou
a agredi-la constantemente. Marta afirmava que as empregadas se demitiam por
conta do comportamento de Rita.
Nessa época, Marta pensou em desistir do tratamento psicológico da irmã.
Numa das reuniões que costumávamos fazer, eu e o outro psicólogo argumen­
tamos junto a Marta sobre a necessidade da continuidade do tratamento, e
indicamos um psiquiatra para Rita, pois concluímos que também lhe deveria
ser prescrito um tratamento medicamentoso. Marta, entretanto, era contra qual­
quer tipo de tratamento com medicamentos, pois acreditava que poderíam fazer
muito mal à saúde de Rita; acreditava que os remédios poderíam viciá-la e deixá-
-la dopada. Explicamo-lhe que, com a medicação, Rita vivería com mais conforto,
e somente assim seria possível sua permanência em casa.
Rita foi ao psiquiatra, que lhe prescreveu alguns medicamentos, mas Marta
continuou resistente, e não os forneceu da maneira devida. Naquela fase, Rita se
encontrava muito infeliz e queria voltar de qualquer maneira à casa de repouso,
uma vez que lá tinha companhia e atividades a fazer. Enquanto isso, as crises de

100
Acompanhando Rita

agressividade se intensificavam — situação que a impossibilitava de sair de casa


para alguns passeios —, e a empregada contratada foi demitida por roubar talões
de cheque de Marta.
A irmã de Rita viu-se novamente desesperada, mas sentiu-se aliviada por poder
contar com a ajuda do acompanhamento terapêutico (AT). Uma nova reunião toi
marcada e, a partir do vínculo de confiança estabelecido, Marta começou a se
abrir um pouco mais à possibilidade de auxiliar devidamente na administração da
medicação à irmã.
Uma nova empregada toi contratada, e as tias de Rita passaram a morar no
apartamento, especialmente porque uma delas estava doente. Rita, porém, ficou
ainda mais confusa e ansiosa com todas aquelas mudanças, uma vez que perdeu
seu quarto e seu espaço para as tias dentro da casa.
Acompanhei todas essas mudanças de perto e, em certo dia, o outro psicólogo
que acompanhava mais de perto a família toi comigo ao atendimento. Enquanto
eu atendia Rita, ele conversou com a nova empregada e com as tias. Esclare­
ceram-se as dúvidas e enfatizou-se a necessidade de ajudar Rita a habitar aquele
lar com tranquilidade. Pela primeira vez as tias conversaram com algum profis­
sional a respeito de Rita e se dispuseram a colaborar. Após um mês, as tias foram
embora, e Rita pennaneceu apenas com a empregada.
Rita começou a tomar a medicação de maneira correta, e algumas mudanças
ocorreram: seu humor já não oscilava tanto, e alguns passeios pelo bairro eram
possíveis. Apesar disso, às vezes Rita não tomava o medicamento e apresentava
crises de agressividade (é preciso ressaltar que Rita nunca foi contra tomar
os medicamentos, mas o seu comprometimento mental não permitia que ela os
tomasse por conta própria, e Marta, muitas vezes, não os oferecia).
Propusemo-nos a encontrar alguma atividade que enriquecesse o cotidiano
de Rita e aumentasse seus contatos sociais. Ficou decidido que ela participaria de
um curso de jardinagem numa instituição apropriada e que eu a acompanharia às
aulas. íamos de ônibus, e Rita adorava.
Ela, porém, começou a sentir muita falta de nossos encontros em sua casa,
pois, para levá-la às aulas, ficávamos sem tempo para conversar e passear no
bairro. Cogitou-se a possibilidade de se aumentar o número de atendimentos, mas
as condições financeiras de Marta tomavam essa proposta inviável.

101
Acompanhamento terapêutico

Nesse mesmo período, o irmão de Rita — com um grave câncer e com


um aparente retardo mental — começou a frequentar habitualmente a casa da
paciente. Ele não tinha muita paciência com ela, e chegava até a agredi-la fisi­
camente. O clima na casa estava bem “pesado”. A empregada — que cuidava de
Rita e de seu irmão com câncer —pediu demissão, e Rita se viu sozinha mais uma
vez. O irmão não morava lá, mas lá permanecia por alguns períodos em função do
tratamento no hospital, próximo a casa.
Enquanto uma nova empregada não era contratada, Rita ficava o dia inteiro
sozinha, trancada em casa, sem ninguém. Então passei algumas tardes com ela, e
o nosso vínculo se fortaleceu mais ainda.
Contratou-se uma nova pessoa e, desta vez, decidimos acompanhar de perto
todo esse processo. Esclarecemos à pessoa a ser contratada qual era a melhor
maneira de cuidar de Rita e a importância de medicá-la corretamente. Selecio­
namos mais uma “cuidadora” do que uma empregada.

Desde o início Rita gostou dessa nova pessoa, Edna. Em nosso primeiro
encontro após a chegada de Edna, Rita já sabia o nome dela — fato inédito, pois
costumava demorar semanas para memorizar o nome das pessoas que traba­
lhavam com ela. Rita passou a chamá-la de “irmã”.
Rita começou a sair cada vez mais para andar no bairro e a fazer algumas
amizades. Os passeios eram feitos comigo e com Edna, e sempre levávamos junto
o cachorrinho de Rita. Encontramos em Edna uma pessoa sensível e adequada,
que manteve um comportamento constante por muito tempo, fato que permitiu
a todos uma reorganização muito útil do tempo, inclusive no tocante ao acompa­
nhamento terapêutico da paciente.
Rita decidiu que não queria mais ir ao curso de jardinagem. Encontramos,
então, uma escola de arte especializada em casos semelhantes aos de Rita. Essa
escola era próxima a sua casa, e ela passou a frequentá-la. Edna a levava e, desse
modo, meus atendimentos voltaram a ser como antes.
A partir desse momento, o A T deixava de ser um “apagador” de incêndios,
direcionando-se a resolver problemas graves, sendo que o foco principal passou a
ser eletivamente a paciente, sua saúde e possibilidades.

102
Acompanhando Rita
M í
O irmão da paciente morreu e, apesar de Rita ter sentido muito a morte dele,
ficou ao mesmo tempo mais aliviada, uma vez que sua doença era muito penosa a
todos. Estava com um câncer que se havia alastrado pelo corpo inteiro, apesar do
tratamento inédito que fazia.
Marta ficou em dúvida se Rita não estaria sentindo o luto por conta dos
medicamentos, pois acreditava que o fato de não senti-lo inteiramente pudesse
prejudicá-la. Após uma conversa com Marta, esclarecemos que os medicamentos
trariam conforto à innã, e que ela sentia, sim, o luto, pois sempre comentava
a morte do irmão, sua dor, e gostava de lhe fazer orações; em momento algum ela
ficou “anestesiada” pela medicação.
Com o passar do tempo e com o nosso trabalho, Rita vive, hoje, uma tranqui­
lidade maior. Ela já não fica mais trancada dentro de casa; sai para passear tanto
comigo quanto com Edna, e já fez algumas amizades no bairro. Rita nem se lembra
mais da instituição à que tanto queria voltar.
Por outro lado, porém, o fato de Rita ter uma liberdade maior — sempre
assistida —, de conseguir se orientar melhor nos lugares (como a irmã relatou)
e ter novas amigas trouxe algumas complicações para a nova dinâmica da família.
Todos estavam acostumados com Rita dentro de casa e, apesar de essa situação
ser empobrecedora à sua existência, era cômoda para todos. A irmã de Rita começou
a se incomodar com o modo como ela andava pelo bairro e pedia-lhe para que
não saísse na rua com a boneca, que gostava de mostrar a todos que encontrava.
Numa reunião, Marta disse que gostava de saber que sua irmã estava mais
feliz e ativa, mas dizia que ainda precisava se adaptar àquela situação. Contou
que, uma vez, ela chegou do trabalho muito cansada, e Rita começou a contar
sobre o seu dia. Marta estava um pouco distraída com a televisão até que Rita
falou: “Por que você não olha para mim quando eu estou te falando alguma coisa?
Só assiste à T V ”. Marta desligou a TV e escutou a história, mas disse que chorou
muito quando foi dormir, pois percebeu que, realmente, nunca prestou muita
atenção ao que a irmã falava.
As mudanças que a paciente vivia durante o tratamento precisavam ser
acompanhadas por mudanças vividas também por seus familiares; caso contrário, a
paciente tendería a voltar à posição em que se encontrava anteriormente.

103
li A Acompanhamento terapêutico

No início do caso, acreditei que pudesse ser melhor que outro psicólogo
acompanhasse a família, pois ficaria mais livre para atender apenas Rita. Isto
funcionou muito bem, mas, depois, fiquei um ano atendendo o caso sozinha, e
fazendo reuniões com a irmã e com a empregada. No começo, entretanto, foi
essencial a ajuda de outro profissional que só orientasse a família.
É muito importante o acompanhamento familiar, e o modo de fazê-lo deve
ser muito bem pensado desde o início. Apesar de as mudanças serem libertadoras
perante comportamentos adoecidos, são difíceis de acontecer e de permanecer.
Tudo o que é novo, principalmente em famílias de pacientes com esse tipo de
problemas, tende a trazer-lhes muita dor e angústia, e eles também merecem um
acompanhamento. O A T é um tipo de tratamento que “invade” a casa com o
consentimento familiar, e todos são atingidos, logo, devem ser apoiados.
O caso de Rita não é originário de uma doença psiquiátrica — como já havia
dito no início deste relato —, mas de uma pessoa que, a partir de seu compro­
metimento neurológico, foi tomando-se muito “presa” em casa, em meio a um
cotidiano muito empobrecido e, por conta disso, Rita tomou-se cada vez mais
agressiva. Chegou a um ponto que Marta pensou em desistir de tudo e em intemá-
-la numa instituição apropriada. O acompanhamento terapêutico ajudou essa
família a se organizar e, com um cotidiano mais rico, Rita passou a não ser mais
tão agressiva, e Marta nunca mais cogitou interná-la. A ajuda medicamentosa foi
essencial para o sucesso do caso, além da orientação para a “cuidadora” de Rita.
Com reuniões frequentes, acompanhei o cotidiano de Rita e de sua família.
Creio que o sucesso desse acompanhamento terapêutico aconteceu desde o
início, quando quis compreender o que levava Rita a ficar tão aborrecida a ponto de
agredir fisicamente as pessoas ao seu redor. Queria saber qual era o sentido para
tamanha raiva. Muitas vezes, parecia que Rita ficava demasiadamente irritada
“do nada”. Marta acreditava que Rita deveria ser educada e “punida” quando
apresentava esses episódios de intensa agressividade: “A terapia, entretanto, não
é um recurso de repressão social destinado a corrigir as pessoas que estão erradas”
(Pompéia, 2004, p. 154).
Não tinha a intenção de corrigir o comportamento de Rita, e, mesmo se
o quisesse, não seria capaz. Depois de muito acompanhá-la, em cada episódio

104
Acompanhando Rita

turbulento o sentido de sua raiva toi-se desvelando a mim. Devo dizer que foi
importante acompanhá-la também em seus momentos de intensa raiva, ficar ao
seu lado mesmo quando estava tomada pelo ódio, pois assim era Rita, e acom­
panhá-la significava estar ao seu lado inclusive naqueles momentos: “Deixar o
outro ser tal como ele é significa respeitar o outro em sua alteridade e ser teste­
munha do modo de ser do outro” (Jardim, 2009, p. 59).
No momento em que testemunhava sua raiva, minha única preocupação era
que Rita não se machucasse, tampouco eu. Se estivéssemos na rua, voltávamos
imediatamente para casa, e Rita nunca deixou de seguir-me. Depois precisava
conversar com ela sobre o que havia acontecido, mas era ela quem me dizia quando
estava pronta para a conversa. Às vezes era preciso aguardar alguns encontros até
que Rita tocasse no assunto, mas esse tempo era sempre respeitado.
Quando Rita se sentia pronta, ela começava a conversa com um pedido de
desculpas, e assim falávamos por que tinha ficado com tanta raiva. Outras vezes,
Rita pegava uma revista e começava a contar a história de alguma das pessoas
nela fotografadas: era sempre alguém muito “mal-educado, que tinha xingado e
batido em todo mundo”, e assim eu ia perguntando o que levava “a mulher da
revista” a xingar e a bater em todos, e Rita contava sobre si mesma.
Essas conversas foram revelando que Rita sentia muita raiva ao ser contra­
riada, sentia muito quando queria algo que não podia acontecer. Rita sabia de sua
limitação e percebia que, muitas vezes, precisava da ajuda de outros para resolver
seus problemas e que, nem sempre, eles levavam em conta os seus desejos (na
maioria das vezes, a própria vida ignora nossos desejos). Mas até que ponto ela
podería decidir por si mesma?
Um dos grandes incômodos de Rita era querer comprar algo e não ter
dinheiro suficiente para isso. Eu costumava antecipar-me, perguntando-lhe se
o dinheiro dava ou não para comprar o que ela queria. Mas percebi, com nossas
andanças pela rua, que minha antecipação não a ajudava.
Em certo dia, Rita tinha apenas um real, e queria comprar um livro com
bichinhos que custava dois reais. Ela estava conversando com o moço da loja
quando eu lhe disse que o dinheiro que tinha não era suficiente. Muito brava ela
me olhou e disse: “Isto não é da sua contai Não se intrometa!”

105
Acompanhamento terapêutico

Naquele dia fomos embora para casa e, pensando sobre o caso, cheguei à
conclusão de que Rita tinha razão: eu havia me intrometido em sua conversa com
o vendedor. Percebi que Rita sabia que o dinheiro era insuficiente, que conver­
sava com o vendedor porque estava “pechinchando”, e eu havia estragado tudo.
Depois desse episódio, combinamos que ela perguntaria os preços. Rita nunca
mais se zangou quando o dinheiro não dava para comprar algo. Naquele dia,
aprendi algo muito importante com ela.
Rita sabia muito mais do que eu achava que ela soubesse: sabia quando tinha
pouco dinheiro, e sabia quando tinha mais. Sua liberdade aumentava, e ela podia
fazer suas coisas, ser criativa, e não se frustrar tanto quando algo não lhe pudesse
acontecer.
Fui compreendendo Rita cada dia mais, apesar de, muitas vezes, não compre­
ender o que estava acontecendo. Rita se sentia compreendida e já não ficava mais
tão tomada de raiva. Não era preciso explicar-lhe racionalmente que deveria “se
comportar” nos lugares, porque, do contrário, suas saídas não seriam mais possí­
veis. Ela sabia que seus ataques de fúria a impediram, muitas vezes, de frequentar
os lugares que queria, mas somente o conhecimento acerca desse “acordo” não
era o bastante para que não ocorressem: “A verdade racional é impotente diante
das dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicularizar a razão” (Pompéia,
2004, p. 157).
Não é, portanto, pela via da razão que caminha a linguagem do A T e de
outras formas de intervenção terapêutica. A ajuda ao paciente não está em dizer-
-lhe o que ele deve fazer ou não.
A linguagem própria do diálogo entre terapeuta e paciente tem outra via, a via
da poiesis (mesma via da poesia, dos contos e até das piadas). Tal palavra, de origem
grega, significa trazer à luz, trazer algo para seu desocultamento. Porém o que quero
dizer quando aproximo a linguagem da terapia à da poesia, dos contos e das piadas?
“Nessa fomia de linguagem, quando há compreensão, esta vem gratuitamente,
emocionalmente e sem necessidade de argumentação mediada pela razão. Aqui
teríamos uma comunicação que ou se dá, ou não se dá” (Pompéia, 2004, p. 159).
Tanto na terapia quanto nas piadas, nos poemas e nos contos, a compre­
ensão ocorre de forma natural, sem a necessidade de uma explicação racional.

106
Acompanhando Rita
Mv
Compreensão e explicação são processos absolutamente diferentes, pois tentar
explicar um poema ou uma piada é estragá-los.
Na compreensão, não tentamos tomar posse do sentido e permanecer com
ele para sempre, pois o sentido se desvela e se encobre. A explicação caminha
somente na via intelectual, e cobra um sentido claro e fixo.
Por não querer tomar posse do sentido e por saber que ele é fluido, a compreensão
anda lado a lado com a não compreensão. Abrir mão de uma explicação racional
sobre um sintoma é caminhar na fluidez de um sentido, e deparar-se, de repente,
com o incompreensível. Muitas vezes, ao lado de Rita, não conseguia compreender
o que ela estava sentindo, mas esse era o risco de a estar sempre acompanhando.
Das vezes que consegui compreender Rita, era como se estivesse autenti­
cando o seu comportamento, e assim ela conseguia encontrar um sentido para a
sua raiva. Ela se sentia mais próxima de mim e de sua própria experiência, a qual
tanto queria expressar a partir de seus ataques de fúria.
Ao encontrar um sentido para sua raiva, Rita passou a controlá-la melhor,
suas saídas se tomaram mais possíveis, e sua vida, mais enriquecida. Ela já não
entrava naquele estado terrível, controlada por um sentimento tão ruim quanto
o ódio. Rita foi encontrando novas habilidades em suas caminhadas, sua criati­
vidade foi sendo exercida, e passou a sentir-se um pouco mais dona de sua vida.
Vale a pena ressaltar que Rita ainda tem episódios de intensa agressividade,
mas eles estão se tornando cada vez mais espaçados e já não a impedem de sair
de casa e viver a sua vida ao lado dos outros.

107
Acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Jardim, L. (2009). Um estudo sobre as afinações a partir da ontologia fundamental de


Martin Heidegger: contribuições para as práticas clínicas. Dissertação (Mestrado) —
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Pompéia, J. A.; Sapienza, B. T (2004). Na presença do sentido: uma aproximação feno-


menológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC, Paulus.

108
A deficiência, o acompanhamento
terapêutico e a experiência de visibilidade

Carolina Yuki Fujihira

Há anos venho1 acompanhando pessoas com deficiências, ora como analista


em consultório, ora como psicóloga em instituições especializadas e ora como
acompanhante terapêutica (at). Nesta última modalidade de intervenção, tenho
experimentado muitas configurações diferentes da atuação clínica do Acom­
panhamento Terapêutico (AT) convencional. Por exemplo, atuando como
acompanhante de grupos de lazer para pessoas com deficiência, como mediadora
de emprego apoiado, oferecendo suporte às empresas que contratam tais pessoas
e como sua acompanhante em eventos (congressos, seminários etc.). Ou seja, são
posicionamentos clínicos mais específicos que surgem como desdobramentos do
A T convencional, muito necessários em tempos de inclusão.
Experiências muito interessantes aconteceram em todas essas situações, mas
este texto terá como foco de atenção o acompanhamento realizado a dois jovens
com síndrome de Down que vêm participando como palestrantes de congressos e
outros eventos similares.
Há um bom tempo, acompanhando um grupo de jovens adultos com síndrome
de Down na Associação Carpe Diem (instituição que trabalha para a inclusão de
pessoas com deficiência intelectual), começamos a perceber um grande sofri­
mento comum: a invisibilidade social vivenciada em certos aspectos de si. Muitos
já eram reconhecidos como profissionais nas empresas que trabalhavam, tinham

1 Este texto é um relato pessoal, daí a utilização da primeira pessoa do singular. No entanto, quando estiverem
envolvidas a equipe da Associação Carpe Diem e Thiago e Bia, será usado primeira pessoa do plural.
Acompanhamento terapêutico

desenvolvido autonomia numa série de situações, mas continuavam “invisíveis”


enquanto sujeitos que poderíam falar por si próprios. Estavam sempre represen­
tados por alguém sem deficiência em momentos de reivindicações e decisões em
âmbitos sociais maiores.
A sexualidade desses jovens é outro aspecto também invisível. Um dos pales­
trantes que acompanhei num seminário comentou, em sua apresentação, que
havia passado toda sua adolescência ouvindo que era melhor não namorar, apenas
se preocupar com o estudo e um trabalho futuro. N a maioria dos casos, quando
há experiências com a sexualidade, elas são bastante limitadas, por falta de orien­
tação, reconhecimento e apoio.
Nesse grupo de jovens com síndrome de Down, o anseio por maior visibilidade
começou a ganhar força depois que começamos a reconhecer seus sofrimentos
e a instigá-los a um posicionamento crítico perante suas condições. A ideia de eles
apresentarem palestras foi uma consequência quase automática. Muitos já haviam
participado de eventos semelhantes como ouvintes, e quase todos tinham uma
atração especial por um palco e um microfone.
A deficiência é um fenômeno marcado pela segregação, e por isso, nos dias
de hoje, é comum estar dissociada do campo humano. Para a maioria das pessoas,
a deficiência é uma questão para médicos e especialistas. A pessoa com deficiência
foi perdendo, em sua história, o aparentamento com o humano, e esse tipo de
perda, segundo Safra (2004), configura um sofrimento dado pelo desenraizamento
ético. Apesar da segregação acontecer no registro social, as suas consequências
afetam registros éticos do ser (Safra, 2004):

E fundamental para a clínica ter claro que a exclusão e o desenraizamento


não são só fenômenos sociais, mas também acontecimentos ontológicos.
Fenômenos que rompem a possibilidade de o ser humano habitar eticamente
o mundo humano. Existem fenômenos que têm origem no campo social e que
atingem o registro ético: aspecto decorrente da interação constante entre os
acontecimentos no mundo (ôntico) e o registro ontológico. (p. 138)

Violações em registros éticos do ser são violações nas condições básicas


da existência (ontológicas). Por isso o desenraizamento ético configura-se em
uma fratura ética, que muitas vezes se desdobra em outra fratura neste registro:

110
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade

a invisibilidade de certos aspectos do si-mesmo. Sobre pessoas que sofrem a invi­


sibilidade, Safra (2004) comenta:

Esses pacientes vivem a experiência de não serem vistos no campo social. Trata-
-se de uma situação que frequentemente vem acompanhada pelo sentimento
de humilhação, mas a experiência de não ser visto ganha preponderância. Em
nosso mundo, pessoas que ocupam posições de pouco prestígio social, habi­
tualmente, passam despercebidas pelos outros. O mal-estar decorrente dessa
situação é grande, podendo gerar uma desesperança e amargura ou, em casos
extremos, deflagrar comportamentos violentos como única forma de alcançar
alguma visibilidade, (p. 143)

Com o referido grupo de jovens com Down, percebíamos que o anseio pela
visibilidade dava-se não com comportamentos violentos, mas com atitudes muitas
vezes descontextualizadas e fantasiosas, nas quais tais jovens se assentavam na ideia
de serem artistas ou cantores famosos. Ou, muitas vezes, “tomavam” a palavra em
situações sociais também de forma descontextualizada e inconveniente, intensi­
ficando a angústia de ocupar um lugar de estranhamento para os outros que
presenciavam tais situações.
Reconhecer esse tipo de sofrimento, bem como o anseio de visibilidade, foi
o que começamos a fazer com o grupo, criando espaços de discussões. Era uma
tonna de humanizar a dor que latejava no invisível. A abertura desses espaços de
discussões em grupo sobre a dor que estava invisível já era uma abertura de um
campo social para algo que não tinha lugar. Era um espaço em que se apresentava
o rosto humano que reconhecia o anseio pela visibilidade. Por definir um lugar de
reconhecimento humano, essas discussões mesmas já se configuravam como um
placement, tipo de intervenção utilizada no acompanhamento terapêutico (Safra,
2006a) e que será mais bem conceituada no decorrer deste capítulo.
Nessas discussões o desejo por explorar mais a sexualidade era um dos temas
reivindicatórios preteridos do grupo. Nesse mesmo período, esses jovens come­
çaram a participar de um projeto-piloto de orientação à sexualidade que propunha
uma ação de prevenção contra a AIDS e outras DSTs. A importância desse projeto
era evidente, já que a inclusão social tomava ainda mais vulnerável essa parcela
da população, carente de atenção e cuidado com a sexualidade, com o abuso
sexual e com o risco de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis.

111
Acompanhamento terapêutico

A experiência que daí surgiu provocou muitos desdobramentos nesses jovens:


maior percepção do direito de vivenciarem a sexualidade, do impedimento ético
que muitos vivem pelo preconceito, da necessidade de informação e cuidado, do
trabalho a ser realizado com as famílias e sociedade em geral para que suportes
e apoios necessários possam ser ampliados etc. São desdobramentos que até
boje mobilizam muitos dos jovens que participaram dos grupos de discussões no
momento em que questionam, por exemplo, sobre a possibilidade de vivenciar a
maternidade, sobre os apoios necessários e as dificuldades que poderíam impedir
esta experiência.
Toda essa participação crítica e reivindicatória que acontecia no grupo era
bastante significativaporque, devido ao histórico segregacionista, aspessoascomdefi-
ciência intelectual costumam ocupar um lugar social de submissão à vontade alheia.
Em 2008, surgiu a oportunidade de nos inscrever no VII Congresso Brasileiro
de Prevenção das DSTs e AIDS (junho de 2008, Florianópolis, Santa Catarina),
organizado pelo Ministério da Saúde, para que os jovens apresentassem trabalhos
relacionados à experiência que obtiveram no projeto de orientação à sexualidade.
Como não era possível que todos tossem, a opção foi apresentar um pôster elaborado
pelo grupo e uma apresentação oral de dois representantes do mesmo. Bia e Thiago2,
jovens adultos com síndrome de Down, foram os escolhidos para a aventura.
A organização do congresso, percebendo a necessidade de discussões que
associassem AIDS e deficiência, devido à enorme vulnerabilidade social que estas
pessoas vivem por serem descartadas dos programas de prevenção (já que muitas
vezes são consideradas sujeitos sem possibilidades de vida sexual ativa), elaborou o
I Fórum A IDS/Deficiência, que aconteceu como pré-congresso, e convidou profis­
sionais ligados a áreas de atuação próximas, bem como pessoas com as mais variadas
deficiências para participarem da discussão que antecedia o congresso.
Bia e Thiago participaram do fórum como os dois únicos participantes com
deficiência intelectual.

2 Embora seja habitual a norma de colocar os nomes dos participantes em sigilo, como assinala o código de
ética em pesquisa com seres humanos, neste caso nos encontramos numa situação paradoxal. Ocultar o nome
desses jovens seria jogá-los para invisibilidade, constituindo uma fratura ética. Para eles, a explicitação de seus
nomes neste processo é motivo de satisfação, orgulho e dignidade.

112
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade

Para conseguirem entender e participar das discussões das mesas-redondas,


combinamos que eu os ajudaria elaborando “resumos” do que era discutido em
tonna de desenhos e esquemas gráficos, ou seja, meios de criar acessibilidade à
deficiência intelectual. Esses “resumos”, associados a pequenas conversas, acon­
teciam paralelamente ao momento das discussões das mesas-redondas. Sereno
(2006), discutindo posicionamentos do at na escola, apresenta este tipo de inter­
venção da seguinte forma:

Uma dimensão essencial da transferência que aí se estabelece: a presença ativa.


Este conceito condensa (e faz referências a) diferentes idéias concernentes à
clínica do AT. Presença ativa também quando se coloca no lugar de secre­
tário, intérprete e tradutor de línguas estrangeiras (da criança, da escola, da
ambiência), ou quando se oferece como “espelho” no qual a criança possa se
reconhecer, podendo operar na constituição do eu e no advento do sujeito, da
linguagem, do discurso social, (p. 175-176)

Penso que me posicionei não apenas como secretária e intérprete de Bia e


Thiago, transformando as informações que chegavam de forma que pudessem ser
absorvidas e compreendidas pelos dois, mas também transformando e manejando
o ambiente de modo a sustentar a participação deles. Por isso, considero que a
clínica do AT, além de intervir num registro funcional (secretariando, interpre­
tando e traduzindo a ambiência), atua num registro existencial (ontológico), pois
possibilita a experiência de vivenciar e reconhecer novas facetas do si mesmo em
meio humano.
No fórum, apesar de a deficiência ser um tema mais familiar a todos os partici­
pantes, a presença de Bia e Thiago impactou as pessoas de uma maneira bastante
positiva. Esse impacto positivo foi notado pelos meus dois acompanhados, que
ficaram muito satisfeitos. Já era uma experiência de visibilidade que iria se somar
às outras que vieram no decorrer do processo.
Porém, da mesma forma que as pessoas que participavam do fórum se impac-
taram, Thiago e Bia também vivendaram o impacto de entrar em contato com
outras deficiências. Conheceram e conversaram com pessoas que se locomoviam em
cadeiras de rodas e precisavam de auxílio quando não havia rampa ou elevador, e
também com outras com deficiências visuais que entravam na sala de conferências

113
Acompanhamento terapêutico

com seus cães-guias e laptops que “falavam” etc. Era muita novidade para eles. E
por isso notei a necessidade de filtrar os itens para ajudá-los a elaborar tudo o que
vivenciavam de novo.
Era no quarto do hotel que importantes conversas aconteciam sobre tudo o
que vivíamos. Elaborações pessoais borbulhavam, e geralmente só conseguíamos
donrnir muito tarde, quando o cansaço vencia todas as inquietações. A questão da
deficiência foi um grande assunto. As deficiências dos outros faziam com que eles
entrassem em contato com a própria deficiência de uma forma diferente. Puderam
se posicionar de outra maneira em relação a si mesmos. Ter uma deficiência foi
reconsiderado, deixando de ser um aspecto humilhante para ser uma condição
humana. Toda a vivência no evento, bem com as elaborações dadas com nossas
conversas possibilitaram que certos aspectos —que eles viviam como dissociados
do mundo humano - pudessem ser humanizados.
A deficiência nesse evento era reconhecida, considerada, vista com dignidade.
Experiência importante para meus acompanhados que, em outros momentos,
haviam recusado ajuda, como se recusassem contato com suas limitações. Em
outras vezes, suas limitações eram vividas como humilhação e, portanto, deveríam
ser escondidas ou negadas.
Por ficarem encantados com um cão-guia que auxiliava um professor defi­
ciente visual, chegamos à comparação de eu ser o cão-guia deles. Depois de muita
brincadeira e risada com a imagem comparativa, discutimos sobre a necessidade
de apoio que as pessoas com deficiências têm para vivenciar as oportunidades
da vida. Precisar de apoio não significa impedimento, e sim possibilidade. Essa
conversa foi importante para que eles percebessem que, em muitas outras situa­
ções, quando recusaram ajuda, não conseguiram aproveitar a situação de verdade.
Ao me aceitarem como “cão-guia” no fórum e no congresso que se seguia ao
evento, perceberam que poderíam entender melhor o que era discutido e, assim,
participarem de fomra mais interativa e contextualizada com os outros. Conse­
guiram se apropriar da percepção dada pela deficiência intelectual de que as pessoas
“falam rápido demais”, impedindo-lhes o entendimento. Porém, também perce­
beram que se contassem com o auxílio de interlocução de um flt, não ficariam
paralisados no impedimento. Associaram a situação deles não só à necessidade da

114
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade

pessoa deficiente visual pelo cão-guia, mas daquela com locomoção reduzida pela
cadeira de rodas etc.
Safra aponta (2006b):

Compreender não é uma faculdade que possa ser adquirida pelo ser humano
ao longo da existência, seja por desenvolvimento mental ou aprendizagem.
A compreensão é essencialmente originária no ser humano. Trata-se de uma
possibilidade dada ao homem, que lá está desde sempre, ou seja, desde o
momento que ele acontece no mundo [...] Assim, mesmo que se pense em
crianças com deficiência intelectual, abertura para o ser e a compreensão
estão igualmente presentes. Nessas crianças encontramos o sofrimento pela
condição decorrente da limitação que a deficiência traz, enquanto, ao mesmo
tempo, há a necessidade de dar sentido à experiência de serem atingidas deste
modo de situação. Por esta razão, também com essas crianças, é fundamental
que se possa estar e conversar com elas, para que a situação que as atravessa
alcance um sentido humano, (p. 22-23)

A experiência nos eventos e as nossas conversas favoreceram uma recolo-


cação ética de meus acompanhados no mundo. Bia e Thiago compreenderam e
aceitaram melhor a condição da deficiência intelectual, muitas vezes anterior­
mente vivida por eles como impedimento de vida. E participaram do fórum e do
congresso, com colocações pertinentes durante as discussões.
No congresso, de fonna diferente que no fórum, as pessoas com deficiência
ficavam pulverizadas entre tantas outras sem deficiência. Era um evento muito
grande, que abarcava inúmeros grupos da sociedade envolvidos com o tema da
sexualidade, dos direitos e da saúde sexuais: homossexuais, transexuais, adoles­
centes, mulheres da terceira idade, deficientes, índios etc. Bia e Thiago, mais do
que apresentar argumentos que demonstravam a importância das pessoas com defi­
ciência intelectual poderem receber atenção no campo da sexualidade, estavam
presentes num evento que discutia o cuidado com a sexualidade, adentrando um
mundo que realmente pouco conhecia de suas existências.
E posso dizer como testemunha que eles puderam “dar o seu recado” de uma
maneira doce e arrebatadora. Enquanto explicavam, cheios de boa vontade, os
pôsteres a todos que lá apareciam, ou quando apresentavam cheios de orgulho

115
Acompanhamento terapêutico

suas palestras sob o palco, cansei de ouvir comentários do tipo: “Nossa! Vou ter
que rever meus valores!”
“Se vocês podem beijar, por que eu não posso? Se vocês podem namorar, por
que eu não posso? Se vocês têm relações sexuais, por que eu não? Sinto-me triste
com isso!” Foi o que Thiago disse a uma grande platéia. “Sexualidade não é privi­
légio de quem não tem deficiência! Aprendi muito com o Projeto de Orientação
à Sexualidade e boje eu namoro e estou aqui neste congresso talando para vocês!”
Foi o que Bia talou para a mesma platéia.
Fazer as pessoas reverem seus valores: este toi o resultado que Bia e Thiago
alcançaram nessa grande aventura em Florianópolis. Eles puderam perceber
que afetaram várias pessoas com a própria presença, participação e fala.
As pessoas com deficiência geralmente apenas experimentam precisar dos
outros e encontram dificuldades em poder contribuir. Contribuir é dado por um
gesto pessoal, uma ação criativa que realmente afete um outro, de modo marcante.
Para Satra (1999), quando a ação encontra um outro devotado, transforma-se
em gesto criativo, porque é humanizada. Ou seja, é por um gesto criativo, susten­
tado por um outro, que um lugar é criado entre os homens. Bia e Thiago criaram
um tipo de presença e participação muito pessoais nesses eventos. Presença e parti­
cipação que realmente afetaram um grupo de pessoas. A ação da dupla sustentada
pela admiração de um grupo deu origem a um lugar de reconhecimento e visibili­
dade à questão da sexualidade no campo da deficiência intelectual, bem como à
questão de poderem falar por si próprios em âmbitos sociais maiores.
Safra (2004) desenvolve uma compreensão sobre a importância de um lugar
na comunidade humana, designada por ele como Sobómost:

O primeiro ponto importante na compreensão dessa perspectiva é que ela abole


a concepção de indivíduo, como nós a conhecemos. A noção de indivíduo leva
frequentemente a uma compreensão de ser humano como ontologicamente
isolado dos demais. Sobómost assinala que cada ser humano é a singularização
da vida de muitos. Compreender o ser humano como a singularização da vida
de muitos implica dizer que cada ser humano é a singularização da vida de seus
ancestrais e é o pressentimento daqueles que virão. Isso não equivale a afirmar
somente a existência da influência cultural, mas sim que o sentido de si é um

116
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade

fenômeno ontológico comunitário, isto é, que acontece em meio à comunidade


e como comunidade. Evento transgeracional, vindo da história em direção ao
futuro. A verdade de si mesmo acontece e se revela somente pelo reflexo do
rosto do outro. Em nossa maneira habitual de pensar, o ser é constituído antes
da comunidade. Sobórnost assinala-nos que ser é comunidade! (p. 43)

Somos constituídos em meio à comunidade. Sem comunidade não há possibi­


lidades de ser, porque cada indivíduo, paradoxalmente, é um, mas também muitos.
Para esse autor, a singularidade de cada indivíduo dá-se pelo gesto criativo, susten­
tado pelos seus pares, que recria o que herdou de seus ancestrais, abrindo caminhos
inéditos para o futuro. Thiago e Bia utilizaram a herança da segregação, suas expe­
riências e seus sofrimentos como materiais de posicionamento crítico (participação
e apresentações), criando situações inéditas em eventos, nos quais as pessoas
passaram a rever seus valores.
Porém, esses gestos foram possíveis porque houve acolhimento e manejo
nesses ambientes humanos, para que os jovens pudessem ter acesso a experiências
de visibilidade. O acolhimento, o manejo do ambiente e o reconhecimento dos sofri­
mentos e das ações criativas que nesse contexto puderam surgir configuram uma
sustentação de gestos. Todo ser humano precisa de um lugar de afeto, reconheci­
mento e cuidado oferecidos por alguém que acolha as suas condições e sustente seus
gestos criativos, para que um lugar no campo humano possa ser fundado e mantido.
Esse cuidado apresentado nessa torma de acolhimento, manejo do ambiente
e sustentação de gestos é uma intervenção típica do AT, denominada placement.
PíacementéumamodalidadeclínicautilizadaporWinnicott,naqualapresentava
um lugar formado por presenças humanas, de forma que este pudesse ser um lugar de
cuidado. Em outras palavras, que a pessoa em questão pudesse encontrar “material”
propício neste lugar para viver experiências necessárias ao seu desenvolvimento
e ao consequente acesso ao mundo compartilhado. No placement, a interpretação
deixa de ser tão valorizada, enquanto a ação e a experiência são enfatizadas.
Esse tipo de intervenção foi criado por Winnicott (1999a; 1999b) na época
em que trabalhou na evacuação de crianças de Londres para o campo, durante
a Segunda Guerra. Ele ofertava lares e manejava situações, para que crianças que
se apresentavam muito perturbadas pudessem vivenciar experiências constitutivas

117
Acompanhamento terapêutico

de estabilidade. Mais tarde percebeu que o manejo ambiental, para contemplar


experiências constitutivas, podería ser muito útil em tempos de paz também. Com
a compreensão de que a experiência abre campo de passagem de uma realidade
para outra, Winnicott começou a criar “lugares” de experiência, aproveitando
campos simbólicos e reestruturando-os, de forma a facilitar experiências signi­
ficativas para seus pacientes. Para criar esses “lugares” de experiência, sempre
utilizava composições de presenças humanas. Às vezes utilizando a si mesmo, seu
repertório psíquico-afetivo, como parte da ambientação e, em outros momentos,
criando situações em que colocava seu paciente em um ambiente no qual podería
encontrar reverberações para suprir suas necessidades psíquicas. O placement é
um tratamento que não é da ordem da interpretação, mas da convivência em
determinado ambiente humano, no qual se tem a oportunidade de experimentar
situações (Safra, 2001).
Dessa maneira, no momento que pude utilizar eu mesma, enquanto recurso
humano, no auxílio a Bia e Thiago na organização de seus pensamentos para a
elaboração de suas palestras e inquietações pessoais, colocando-me como interlo-
cutora durante as discussões nas mesas-redondas, como “cão-guia” na condução
das situações dos eventos e como alguém interessada em suas questões, um £>iace-
ment pôde ser estruturado para que gestos pessoais e criativos pudessem acontecer.
Toda a contextualização dos eventos foi por mim manejada, para que meus
acompanhados pudessem entender o que ali acontecia e elaborar inquietações,
reposicionar-se diante dessas questões e participar de modo a deixar suas contri­
buições pessoais.
A experiência foi tão surpreendente, que os dois jovens foram convidados
novamente para vários outros eventos. E em cada um de que participam e em que
apresentam suas idéias e experiências, consolida-se ainda mais o lugar de visibili­
dade tão ansiado.
Toda vezquevoltamosde eventos assim,desembarcamos com umabagagembem
maior do que havíamos levado: encontros vividos que têm marcado a vida de muitos!

118
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade

Referências bibliográficas

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Safra, G. (2001). Transcrição de aula. A Clínica do Self: influências teológicas da teoria


psicanalítica. Pós-graduação em Psicologia — Pontifícia Universidade Católica, São
Paulo.

Safra, G. (2004). A pó-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras.
(Coleção Psicanálise século I).

Safra, G. (2006a). Placement: modelo clínico para o acompanhamento terapêutico.


Psychê, v. 10, n. 18, p. 13 -20.

Safra, G. (2006b). Hermenêutica na Situação Clínica: O Desvelar da Singularidade pelo


Idioma Pessoal. São Paulo: Sobornost.

Sereno, D. (2006). Acompanhante terapêutico e educação inclusiva. Psychê, v. 10,


n. 18, p. 167-179.

Winnicott, D. W. (1947). Tratamento em regime residencial para crianças difíceis.


Privação e Deliquência. 3. ed. Tradução de A. Cabral. São Paulo: Martins Fontes,
1999a. (Trabalho original publicado em 1947).

Winnicott, D.W. (1948). Alojamento para crianças em tempo de guerra e em tempo


de paz. Privação e Deliquência. 3. ed. Tradução de A. Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 1999b.

119
Um aspecto do manejo na análise de
uma paciente psicótica: o valor clínico do
acompanhamento terapêutico

Ricardo Tèlles de Deus

Introdução
Apresento neste trabalho aspectos da experiência que vivi na condução da
análise de uma paciente psicótica, em especial no que se refere à indicação para
Acompanhamento Terapêutico (AT). Os significativos desdobramentos clínicos
que pude observar no tratamento da paciente, aqui chamada Ágatha, em decor­
rência da utilização desse tipo de manejo, levaram-me a compor este texto.
A reflexão ocorre, basicamente, durante a narrativa de episódios da análise,
especialmente aqueles que apresentam os manejos clínicos por mim realizados.
Dentre estes, são enfocados alguns que incluíram o AT.
No que se refere à literatura consagrada a este procedimento clínico, o
presente trabalho aproxima-se da contribuição de Barretto (1998), em sua funda­
mentação teórica e clínica, e de Maia (2006), em seu objeto de investigação.
Antes de apresentar o material clínico, abordo alguns pontos de natureza
teórica, buscando explicitar ao leitor algumas das idéias que, nos últimos anos, têm
me servido de referência na prática clínica e na pesquisa e que, por esse motivo,
habitam as linhas e as entrelinhas do caso de Ágatha. Tenho me baseado na
abordagem desenvolvida por Donald W. Winnicott, o que não impede o diálogo
enriquecedor com outras perspectivas.
Em decorrência do caráter clínico deste texto, não realizo uma explanação
teórica detalhada.
Acompanhamento terapêutico

Abordagem teórica e clínica

Inicialmente, é preciso reconhecer o tato de que Winnicott foi um psicana­


lista que orientava o seu trabalho clínico a partir das necessidades (needs) de seus
pacientes. “Faço análise”, dizia ele, “porque é do que o paciente necessita. Se o
paciente não necessita de análise então taço alguma outra coisa” (1965d [1962],
p. 152)1. A partir desse posicionamento singular, o autor gradualmente forjou,
ao longo dos anos e diante de variados contextos, alguns procedimentos clínicos
diferentes do tratamento psicanalítico “padrão” (standard). É o caso da “consulta
terapêutica” (1971b), do “tratamento residencial” (1984a) e da psicanálise “de
acordo com a demanda” (1977).
Esta variedade de procedimentos —que poderíam ser agrupados como formas
daquilo que o autor denominou “análise modificada” (modified analysis) (1965d
[1962], p. 154) — serve para ilustrar o esforço de Winnicott no sentido de se
adaptar, ativa e sensivelmente, às necessidades de seus pacientes. Com isso, ele
buscava, essencialmente, facilitar a cada um deles a continuidade do processo
de amadurecimento pessoal, ofertar “cura” (cure) no sentido de cuidado, mais do
que “cura” no sentido de um tratamento psicanalítico com um desfecho bem-
-sucedido, isto é, no qual ocorrería a erradicação da doença e de suas causas
(1986f [1970]). Em linhas gerais, esta me parece ser a postura fundamental que
norteia a clínica psicanalítica winnicottiana, algo que mantém um estreito enlace
com o modo como o autor compreende a “saúde”.
De um modo geral, é possível afirmar que, desde a perspectiva de Winnicott,
a saúde surge como uma questão de amadurecimento relativo à idade do indi­
víduo (197lf [1967]; 1988). Uma criança de três anos, por exemplo, é saudável
se estiver às voltas com as tarefas e conquistas que são próprias à sua idade. Eis
aí um aspecto peculiar à noção winnicottiana de saúde: está articulada, de forma
estreita e inseparável, à teoria do amadurecimento pessoal formulada pelo autor
(Dias, 2003). Portanto, nessa abordagem, a saúde não consiste em algo dado
ou que pode ser alcançado pelo indivíduo de uma vez por todas. Pelo contrário,

1 Os textos de Winnicott são citados aqui a partir da “Lista completa das publicações de D. W. Winnicott”,
elaborada por Knud Hjulmand (2007). Nela consta o ano em que cada trabalho foi publicado pela primeira
vez, bem como uma letra que indica a ordem em que foi publicado naquele ano.

122
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
o valor clínico do acompanhamento terapêutico

Winnicott considera que a saúde, na melhor das hipóteses, precisa ser conquistada
e mantida em cada uma das etapas que compõem o processo de amadurecimento
pessoal (19711 [1967]; 1988, p. 23-47). Isso se relaciona, basicamente, com a inte­
ração de dois fatores: a tendência inata ao amadurecimento e a presença contínua
de um meio ambiente facilitador que forneça ao indivíduo cuidados suficiente­
mente bons.
Por sua vez, grosso modo, os adoecimentos psíquicos estão relacionados, na
abordagem winnicottiana, com paralisações no processo de amadurecimento
pessoal. No caso específico das psicoses que pertencem ao campo das esquizo-
frenias (Dias, 1998), o ponto de origem estaria situado nas primeiras etapas do
desenvolvimento emocional, nas quais, efetivamente, os aspectos mais básicos
do self começariam a ser constituídos. Em decorrência de repetidas falhas ambien­
tais num momento tão precoce do desenvolvimento, o indivíduo tem de se
organizar defensivamente contra as agonias primitivas ou impensáveis, o que,
para Winnicott, consiste na própria definição de psicose (1974).
No plano da técnica utilizada na condução do tratamento dos pacientes, que,
segundo o autor, ainda não haviam conquistado o status de unidade espaço-tempo
(1955d [1954], p. 460), Winnicott servia-se, essencialmente, daquilo que deno­
minava “manejo” (management).
Segundo Masud Kban (1993), o manejo é a intervenção por meio da qual o
analista busca oferecer ao seu paciente a provisão ambiental de que ele necessita
para retomar o seu processo de amadurecimento pessoal. Portanto, ao utilizar o
manejo, o clínico visa oferecer ao indivíduo as condições ambientais que, apesar
de serem de fundamental importância para a constituição dos seres humanos, este
parece não ter encontrado em sua vida.
Khan (1993, p. 28) afirma que, no contexto da obra winnicottiana, três tipos
básicos de manejo podem ser distinguidos:1

1. A qualidade do setting analítico: onde o paciente está tranquilo e livre de


invasão. 2. Providências tomadas pelo analista para dar ao paciente o que
ele requer, seja ausência de intrusão pela interpretação, e/ou uma presença
corporal sensível na pessoa do analista, e/ou permitir que o paciente se movi­
mente pela sala e seja apenas o que ele é ou faça o que tem necessidade de fazer.

123
Acompanhamento terapêutico

3. O manejo que só pode ser proporcionado pelo ambiente social e familiar;


aqui, a escala abrange desde a hospitalização até o cuidado pela família e amigos.

Como vemos, o manejo abrange tanto as intervenções que permitem ao ana­


lista estabelecer e sustentar, ao longo do tempo, o setting psicanalítico, bem como,
sempre que o paciente necessita, alterar aspectos específicos deste setting, quanto
às intervenções que incidem sobre o ambiente familiar e/ou social do indivíduo.
Passemos então à narrativa clínica.

Caso clínico

Conheci Ágatha quando ela tinba 28 anos de idade. Logo no início do trata­
mento, ela deixou claro que algo terrível e difícil de explicar havia lhe ocorrido aos
treze anos e que, desde então, vivia em um mundo ameaçador e confuso. Diziam-
-lhe que, naquela ocasião, sofrerá um colapso esquizofrênico e que, por isso, teve
de ser internada em um hospital psiquiátrico e “tomar todos aqueles remédios”.
Mas essa explicação, na verdade, não parecia fazer qualquer sentido para ela. A
paciente não conseguia sentir que era a mesma pessoa antes e depois daquela
mudança brutal e misteriosa. Também seu pai, disse-me Ágatha, não parecia ser o
mesmo que figurava nas fotografias de sua infância. De meu ponto de vista, ela me
comunicava que trazia profundas rupturas na experiência que tinha de si mesma,
que ainda não era uma pessoa. Outros fenômenos que pude observar durante esse
período inicial do tratamento fortaleceram essa hipótese clínica.

Fenômenos

A palavra “branco” era utilizada pela paciente para denominar aquele que, tal­
vez, fosse o seu pior padecimento. Na descrição desse fenômeno, visando a proceder
com rigor, vou colocar entre aspas os temros de que a própria paciente se servia.
Às vezes, Ágatha vagava pelos corredores de sua casa como um “zumbi”,
durante horas ou dias, sem poder se “agarrar” a qualquer ponto de referência
pessoal. Certa vez, mesmo tendo entre as mãos um terço, não conseguiu resgatar
a lembrança de que era cristã. Naqueles momentos dramáticos, dizia, toda a sua

124
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
o valor clinico do acompanhamento terapêutico
M vi
história se “apagava”, ficando “completamente perdida” de si mesma. Creio que
o que ocorria tinha a natureza de uma radical interrupção da experiência de si.
Impressionado com o sofrimento de minha paciente, imaginei o “branco” como
um desesperador e irrefreável desfazer dos sulcos das digitais ou dos traços do rosto.
Em geral, quando conseguia “retomar”, Ágatha telefonava-me para que eu a
ajudasse a assimilar o que havia ocorrido.
Minha paciente tinha, com frequência, a forte sensação de ser uma criança
pequena, fato que a desconcertava por não se harmonizar com a sua idade crono­
lógica. “Como isto é possível?!” , perguntava. Nessas circunstâncias, euintervinha
dizendo que compreendia a sua perplexidade porque, por um lado, ela era uma
criança pequena, dispondo, como costumava dizer, de uma “cabeça de criança”.
Apesar disso, em outros sentidos, ela era uma pessoa adulta, como atestava o
seu corpo. Em geral, esse tipo de intervenção, feita com vivacidade e firmeza,
atenuava o sofrimento de Ágatha, creio, por sentir-se realmente vista por mim
em sua situação paradoxal (ser e não ser uma criança pequena; ser e não ser uma
adulta). Não por acaso, a paciente arregalava os olhos quando se referia à “terra
do nunca”, lugar em que, de acordo com a história de Peter Pan, as pessoas nunca
saíam da infância.
Em outras ocasiões, Ágatha dizia ter se transformado em um bebê. Quando
isso se dava, ela permanecia aflita sobre a sua cama sem conseguir se levantar ou
falar e, menos ainda, pedir ajuda. Observei que essa transformação tinha lugar,
primeiramente, fora das sessões de análise, em contextos nos quais a paciente se
sentia desamparada por um intervalo de tempo superior àquele que podia suportar.
Mais tarde, com o avanço do tratamento, o bebê Ágatha passou a surgir, também,
em algumas sessões.
Tampouco era raro a paciente sentir que estava “morta-viva”, sensação na
qual expressava, uma vez mais, a precariedade do estado em que se encontrava:
sequer conseguia manter, em si, a experiência de estar viva.
Por anos a fio, Ágatha foi atormentada, diariamente, por vozes que só ela
escutava. Repletas de hostilidade, costumavam lhe dizer “besteiras” e, num triste
episódio na adolescência, ordenaram-lhe que cometesse suicídio. Felizmente,
após ingerir uma dose potencialmente mortal de medicamentos, Ágatha foi salva
no contexto hospitalar de uma Unidade de Terapia Intensiva.

125
Acompanhamento terapêutico

Desde o seu primeiro colapso, a paciente manifestou uma tendência a sentir-


-se perseguida, especialmente por nazistas. Chegou a comentar, em uma sessão,
que um hospital no qual fora internada em diversas ocasiões era, na verdade, um
campo de concentração. Fazia referência, também, ao diário de Anne Frank, em
cujas páginas, seguramente, encontrava algo de si mesma. Nos momentos em que
essa persecutoriedade se tomava mais intensa e transbordante, sair de casa e, até
mesmo, de seu quarto, eram para ela situações realmente perigosas. No âmbito da
transferência comigo, a problemática nazista, gradualmente, foi se tomando mais
presente. Recordo de uma sessão, que ocorreu em uma etapa inicial da análise,
que teve de ser interrompida pelo fato de eu ter me transformado em um nazista.
Foi uma experiência assustadora, creio, para ambos. Com o tempo, contudo, passei
a entender como podería ajudar Ágatha nesses momentos penosos, tomando-lhe
possível experimentar-me como uma presença confiável, com a qual podia contar,
em meio a um mundo profundamente ameaçador.
Cabe ainda mencionar o fato de que a paciente, com frequência, tinha a
forte sensação de que seu corpo podería se despedaçar —particularmente —no
que se referia a algumas partes das pernas e aos dedos dos pés. Em uma sessão,
por exemplo, Ágatha manifestou a necessidade de que eu lhe garantisse que as
suas pernas não sofreriam uma ruptura completa na altura dos joelhos. Enquanto
falava, esfregava-os com as mãos. Nessa ocasião, intervim não apenas por meio
de palavras com conteúdo assegurador, mas, sobretudo, fazendo-me presente para
ela de um modo mais contínuo do que o de costume (três sessões semanais).
Como não havia a possibilidade de oferecer-lhe novas sessões naquela semana,
passei a telefonar-lhe várias vezes a cada dia, antes de nosso próximo encontro.
Observei que Ágatha respondeu rápida e favoravelmente a essa intensificação na
continuidade de minha presença, deixando de se preocupar com a quase certa
ruptura de seus joelhos, que lhe pareciam, agora, integrados mais consistente­
mente a outras partes de seu corpo.

Manejos

Já em nossos primeiros encontros, a paciente trouxe algo para a transferência


comigo que, em pouco tempo, se tomou evidente. Ela tinha a necessidade de que

126
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
__ o valor clínico do acompanhamento terapêutico

eu estivesse presente em sua vida cotidiana de um modo bastante contínuo.


Diariamente ela me telefonava contando, com minúcias, o que havia acontecido
em seu dia. Percebi que eu precisava me manter presente para que ela pudesse
continuar presente, em vez de ser desfeita durante o “branco”. Era necessário
ajudá-la a se temporalizar, isto é, a obter experiências de continuidade pessoal ao
longo do tempo, aspecto básico do processo de constituição do self. Ao mesmo
tempo, era preciso que eu tivesse conhecimento de todas as suas experiências
diárias, pois, dessa forma, ela podería ter a experiência de alcançar alguma unidade
em mim.
Com base nas observações que apresentei anteriormente, descobri, pouco a
pouco, uma forma singular pela qual parecia possível auxiliá-la. Dos manejos que
realizei, nessa etapa do tratamento de Ágatha, um setting peculiar apareceu.
Um dos primeiros aspectos que inseri no enquadre psicoterápico foi a possi­
bilidade de que ela me telefonasse sempre que, fora das sessões, sentisse essa
necessidade. Apesar do fato de que isso já estivesse acontecendo, considerei
importante, na ocasião, combinar explicitamente como se daria esse procedi­
mento, tanto com a paciente como com seus pais, visto que eles se mostravam
preocupados com a quantidade de telefonemas que a filha me fazia. Acredito que
não viam com bons olhos a dependência que começava a florescer na relação
que Ágatha estabelecia comigo, e, além disso, pareciam temer que todos aqueles
telefonemas estivessem me aborrecendo.
Intervim no sentido de ajudá-los a compreender a situação como algo positivo e
bem-vindo ao tratamento. Constatei que essa intervenção teve um efeito favorável,
o que, por si só, sugeria a presença de aspectos saudáveis no ambiente familiar —
uma faceta fundamental do diagnóstico em Winnicott, sobretudo, na abordagem
clínica exigida pelos pacientes que, conforme a feliz expressão de Balint (1993),
carregam em si “falhas básicas”. Com o tempo, descobri que, de fato, os pais da
paciente tinham capacidade de colaborar com a análise de um modo significa­
tivo, algo que de maneira alguma eu havia encontrado regularmente em outros
casos de psicose. Incluí no setting analítico encontros com os pais de Ágatha que
ocorriam sempre que necessário, em meu consultório. Gostaria de sublinhar
que, com tais encontros, buscava realizar manejos que facilitassem o trata­
mento da paciente e não efetuar qualquer tipo de “terapia de casal” ou “de pais”.

127
Acompanhamento terapêutico

Ágatha, por sua vez, não tinha a possibilidade de frequentar, naquele momento,
o meu consultório. Ela se conduzia como se a sua casa e, por vezes, apenas o seu
quarto fossem o único lugar no mundo em que se sentia um pouco mais segura.
Em termos de espaço físico, era o que parecia haver de mais pessoal em sua vida.
Tive de me adaptar a isso. Inicialmente, as sessões ocorriam em seu quarto, um
pequeno cômodo que, de tão povoado pelos mais diversos objetos —fotografias,
estatuetas, pedras coloridas, conchas, livros, bonecas, coisas que, como “cofres”
(Bacbelard, 2005), pareciam guardar preciosidades etc. —, chegava a ser verti­
ginoso. Aos poucos, precisamente pela riqueza de objetos trazidos pela própria
paciente, descobri que trabalhávamos em uma espécie de “sala lúdica”. Por um
longo período, permanecemos ali, naquele que era, ao mesmo tempo, um pequeno
fragmento do mundo e um mundo. Aos pais, solicitei que não estivessem presentes
durante essas sessões em sua casa.
Era preciso, também, encontrar um psiquiatra capaz de cuidar de Ágatha.
Sugeri aos pais que procurassem uma pessoa de minha confiança e que, em virtude
de suas características pessoais, me parecia apropriada ao caso. Eles aceitaram
a sugestão e, dessa forma, apresentei a ideia à paciente. Disse-lhe que era uma
pessoa em quem eu confiava e que acreditava que iriam se dar bem, o que pouco
tempo depois veio a se tornar uma realidade. Procurei apresentar a psiquiatra para
Ágatha como uma extensão dos cuidados que eu lhe ofertava na psicoterapia.
Quanto aos medicamentos, percebi que seria preciso que eu ficasse com eles e
que, a cada sessão, os ministrasse à paciente. Isso porque Ágatha não se mostrava
capaz de tomar os remédios do modo como era solicitado por sua médica, e
também porque facilmente começava a sentir que eles eram a causa dos seus
sintomas. Além disso, seus pais manifestavam uma dificuldade em colaborar nesse
contexto. Observei que a referida intervenção trouxe uma maior estabilidade
ao tratamento, já que em anos anteriores várias internações psiquiátricas ocor­
reram, parcialmente em virtude de Ágatha ter interrompido, por conta própria, a
ingestão daqueles “venenos”.
Naqueles dias, eu tinha a sensação de que, embora houvesse sido possível
levantar alguma infraestrutura clínica em tomo de Ágatha, ela ainda, verdadeira­
mente, estava muito aquém da real dimensão e intensidade de suas necessidades
humanas. Os telefonemas realizados nos intervalos entre as três sessões semanais,

128
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica: jiliU
o valor clínico do acompanhamento terapêutico

por exemplo, ajudavam, mas não eram suficientes para oferecer à paciente toda
a sustentação (holding) de que necessitava. Tampouco o aumento da duração das
sessões — de cinquenta minutos para uma hora e meia —, apesar de ter se reve­
lado como significativo, foi suficiente. Ao mesmo tempo, Ágatha tinha muita
dificuldade em se relacionar com as pessoas em geral e dificilmente conseguia sair
de sua casa, temendo ser alvejada por toda sorte de coisas perigosas.
Enfim, Ágatha não tinha uma vida cotidiana, um dia a dia cuidadosamente
estruturado com a finalidade de lhe ofertar experiências. De fato, no dizer de Safra
(2006), uma pessoa que traz em si falhas significativas nas dimensões mais básicas
do self, frequentemente não tem cotidiano. O terapeuta precisa, em tal contexto,
ajudar seu paciente a construir um cotidiano pessoal.
Compreendi que Ágatha podería se beneficiar de um AT, principalmente se
eu pudesse utilizá-lo como uma extensão dos cuidados que vinha lhe dedicando;
isto é, como algo que ela pudesse experimentar como uma faceta de nossa relação
terapêutica. Foi assim que uma psicóloga, que tive a oportunidade de escolher e
indicar aos pais da paciente, passou a realizar o A T de Ágatha.
Essa profissional acompanhava a paciente em um ritmo de três encontros
semanais, em dias que se alternavam com as sessões de análise. Pensei nessa
organização temporal dos cuidados na tentativa de oferecer à paciente, em seu
cotidiano, a sustentação mais contínua possível. Junto a isso, a acompanhante
terapêutica (at) e eu nos encontrávamos em meu consultório, semanalmente, a
fim de dialogarmos sobre o tratamento. Tanto a paciente como os seus pais tinham
conhecimento do procedimento.
Durante as sessões, conversava com Ágatha sobre algumas das experiências
que haviam surgido nos encontros com a acompanhante e, por vezes, plane-
jávamos juntos os passeios e atividades que a dupla iria realizar. Certa vez, quando
na análise a paciente estava às voltas com a possibilidade de que o mundo podería
não ser totalmente nazista, sugeri a ela que fosse visitar, com a sua acompanhante,
um bairro judeu. A visita foi, a julgar pelo relato de ambas, bastante significativa.
Ágatha contou-me, animadamente, que gostaria de voltar ao local e que havia se
sentido bem ao visitar uma sinagoga.
Observei que o espaço vital da paciente, com o auxílio do AT, crescia gradu­
almente. Em um sebo próximo à sua casa, Ágatha comprava discos de vinil que

129
Acompanhamento terapêutico

costumava ouvir antes de sotrer, aos treze anos, a misteriosa modificação. Conse­
guiu participar de algumas testas familiares, bem como de um shou>, de uma testa
junina e de um baile de carnaval. Cbegou mesmo a desfrutar de um fim de semana
no litoral, junto de sua acompanhante e de sua mãe. Trazia, durante as sessões,
as fotos que registravam esses momentos de vida. Cabe sublinhar que tudo isso
ocorreu, segundo as anotações de que disponho, nos encontros com a acompa­
nhante durante o primeiro ano de seu ingresso no caso.
Em uma sessão, Ágatha mostrou-me uma boneca que havia comprado. Era
uma boneca grande que tinha a torma de uma menina com síndrome de Down.
Olhando-se cuidadosamente, por meio de um espelhinho, a paciente perguntou-me
se ela mesma não teria síndrome de Down. “Veja: tenho os olhos puxados como os
dela”, Ágatha dizia referindo-se à sua boneca. Fiquei bastante surpreso com aquela
situação que surgia no tratamento. Por um lado, porque a paciente nunca havia
formulado aquela hipótese, ao menos, durante as sessões. Por outro, pelo fato
de que, no plano da realidade externa e compartilhada, não havia nada em Ágatha
que justificasse um diagnóstico dessa síndrome. Hesitante quanto ao significado
daquele novo fenômeno, respondi-lhe iria pensar no assunto.
Em sessões posteriores, por meio de palavras ou de comunicações não ver­
bais, repetidas vezes Ágatha me dirigiu a mesma pergunta acerca da síndrome.
Gradualmente, compreendí que era necessário que aquela criação da paciente
fosse acolhida e sustentada no âmbito de nosso relacionamento, como algo real.
Passei a lhe dizer, então, que, com o passar do tempo, pude observar melhor os seus
olhos e ver o quanto eles eram “puxados”. Acrescentava que diante daquela per­
cepção, eu não descartava a hipótese de ela ser portadora de síndrome de Down.
Durante as sessões, passamos a utilizar sua boneca e seu espelho como mate­
riais lúdicos, e, mais tarde, introduzí livrinhos infantis que continham a história
de um menino com síndrome de Down. A paciente respondeu vivamente aos
livrinhos, comentando que os tinha “adorado”. Inicialmente, eu lia as histórias
para ela. Posteriormente, ela mesma preferia lê-las em voz alta. “Não se esqueça
de trazer os livrinhos na próxima vez”, dizia-me ao final de várias sessões.
Foi interessante observar a maneira pela qual a paciente, no contexto do setting
psicanalítico, criava uma realidade (subjetiva) em que, de tato, tinha síndrome de

130
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
_____ o valor clínico do acompanhamento terapêutico

Down. Nos termos de Winnicott, diría que Ágatha, no interior de nossa relação,
experimentava a ilusão onipotente de criar o mundo a partir de seu gesto pessoal.
Creio que com essa concepção sui generis, que florescia a partir de sua criatividade,
a paciente buscava atenuar, em alguma medida, a profunda ruptura na experi­
ência de si que carregava consigo. Assim, em diversas ocasiões comunicou-me
que, no fundo, não tinha qualquer ideia acerca daquilo que havia lhe ocorrido na
adolescência, acontecimento enigmático que fez desaparecer a “menina viva” que
ela atinnava ter sido durante a infância.
Naquele contexto do processo de desenvolvimento dapaciente, era imprescin­
dível que também o AT, para além das sessões psicoterápicas, pudesse favorecer-lhe
as mencionadas experiências de ilusão. Por esse motivo solicitei à acompanhante
que acolhesse e sustentasse aqueles fenômenos durante os seus encontros com
Ágatha, trabalhando, assim, no mesmo sentido que a análise. Isso foi feito e, em
pouco tempo, pudemos observar desdobramentos clínicos bastante significativos.
Em uma ocasião, dizendo-se “monga”, Ágatha foi com a sua acompanhante a
uma livraria em busca de novos livrinhos infantis, nos quais houvesse personagens
com síndrome de Down. Em outros encontros, tendo em vista o peculiar apetite
do menino que protagonizava as nossas historinhas, comeu cachorros quentes.

Chão básico

Por certo, muito ainda podería ser dito sobre a fecunda utilização do AT
nesse tratamento como um aspecto do manejo na psicoterapia. No entanto o
que procurei destacar aqui, por considerar de grande importância, foi o fato de
o trabalho clínico ter oferecido à paciente, em alguma medida, algo como um “chão
básico” sobre o qual uma “linha da vida” começou a fluir com mais continuidade,
como evocado nestes versos do poeta Afonso Felix (apud Sousa, 2001, p. 338-339):

E o chão
que nos embala e envolve
entre paredes e lajes
enquanto lá fora uivam
os rigores do mundo.

131
Acompanhamento terapêutico

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133
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os
impasses da experiência clínica1

Alexandre de Souza Piné

Introdução

Após alguns anos realizando Acompanhamentos Terapêuticos (ATs), tenho


constatado o quanto essa experiência clínica tem sido decisiva em minha
fomração, influenciando o modo como me aproprio das leituras e exerço a prática
da psicanálise.
A proposta deste trabalho é apresentar a singularidade de um caso clínico em
AT, para então, reconhecendo algumas particularidades dessa experiência, trazer
interrogações à prática clínica psicanalítica.

0 caso clínico
0 encontro

Ao Daniel12 faltava um corpo, faltava uma memória, podería mesmo dizer


que faltava dignidade. Não me esqueço do primeiro contato, da primeira imagem
que dele obtive. O nosso primeiro encontro aconteceu em seu apartamento e, lá,

1Este texto é baseado na apresentação realizada para a disciplina Fundamentos da Clínica do Acompanhamento
Terapêutico, ocorrida no dia 18 de novembro de 2009.
2 Nome fictício usado para preservar a identidade do paciente.
Acompanhamento terapêutico

tui recebido e informado de que ele me aguardava em seu quarto. Mesmo sem
tê-lo visto, já era possível sentir a sua presença na porta de entrada e, cada vez
mais, à medida que me dirigia ao seu quarto pela intensidade de um cheiro muito
forte e ruim. Eu me detive à percepção, porque, muitas vezes, é o que temos de
mais importante. Quando entrei em seu quarto, a visão não foi mais confortante.
Por mais que seu sorriso, sempre cativante, estivesse ali presente, foi impossível
não ficar chocado com a visão daquele corpo sobre a cama. Ele parecia muito
vulnerável, parecia despedaçado. Faltava-lhe uma das pernas, amputada um ano
antes, e a outra também estava paralisada, engessada após uma fratura recente.
Eu, então, aproximei-me para cumprimentá-lo e pude perceber que também tinha
dificuldades em me estender seu braço.
Foi assim que eu encontrei Daniel. Ainda que já soubesse das suas condições
por meio da psicóloga que o atendia, nada se compara ao nosso primeiro contato,
nada podia antecipar sua cama poluída por papéis, livros, comida, sujeira, escova
de dentes, tintas, pincéis, urina, dinheiro e o que mais se possa imaginar, e na qual
ele permanecia aprisionado a maior parte do seu tempo.

Um pouco mais sobre ele

Quando a mim encaminhado, Daniel estava em tratamento com outros


profissionais, entre eles uma psicóloga, uma fisioterapeuta, um psiquiatra, um
neurologista, um ortopedista, além das pessoas que o auxiliavam cotidianamente
em sua casa.
Daniel, hoje, tem 65 anos. A história de suas sequelas nasceu das inúmeras
torturas que sofreu como preso político na ditadura, quando ainda era um jovem
estudante universitário. Além da tortura, ele permaneceu por mais cinco anos
em detenção. Como consequência desse período, hoje ele sofre de uma gravíssima
perda óssea, causa das fraturas, além da perda de sentidos como olfato e paladar
e, nos últimos anos, tem sofrido seguidas crises nervosas que não apresentam um
diagnóstico conclusivo.
Além do quadro orgânico, havia dúvidas sobre o diagnóstico psicológico de
Daniel. No encaminhamento, havia o relato de que seu comportamento era
considerado, muitas vezes, inadequado, com ocorrências de falas estranhas,

136
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

possivelmente delirantes, e também um comprometimento de memória que


sugeria a hipótese de demência ou psicose.

Um homem sem memória

Daniel era um homem sem “memória”. Foram necessárias muitas sessões


para que ele não esquecesse meu nome, minha formação, a universidade na qual
estudara e minha origem (se eu era mesmo de São Paulo) —perguntas que ele
sempre repetia em um grande esforço para saber aquilo que não conseguia ou
não podia reter sobre mim. Ao mesmo tempo, era comum ele contar, repetidas
vezes, as mesmas histórias do seu passado. Nessas horas, eu não interrompia o seu
esquecimento e entrava no jogo para saber o que era aquilo. Seria um limite, um
comprometimento orgânico, ou algo mais podería estar em ação?

Passado, Presente e Futuro: delírios ou perdas?

As falas que me trazia eram em sua maioria lembranças — sempre boas


lembranças. Eram os momentos da infância e da juventude no Rio de Janeiro, o
período da escola, da faculdade. Ele tinha um especial prazer em falar do seu envol­
vimento com os movimentos estudantis, da sua liderança no grêmio da faculdade,
da sua participação na política e da sua amizade com pessoas que foram e ainda
hoje estão no cenário político. Seu pai também era muito lembrado. Enfim, em
nossos encontros, o que fazíamos era lembrar os bons momentos e as conquistas
de seu passado.
No entanto, em sua fala não havia presente, nem lembranças recentes. Possi­
velmente estavam esquecidas como asnossas conversas das sessões anteriores. Seria
esta uma constatação de uma incapacidade, de uma possível perda de memória?
As lacunas do presente, Daniel claramente preenchia falando de projetos
futuros, mas eles não eram quaisquer planos. Ele me contou que era tradutor
e que estava traduzindo alguns livros do francês para o português. Um desses
trabalhos era, simplesmente, a tradução da Torá —o texto central do judaísmo.

137
Acompanhamento terapêutico

Nessa tradução, ele também transformava o texto original francês, que estava em
prosa, em versos heptassílabos, um trabalho interminável que vinha realizando
havia dez anos. Os outros projetos eram o desejo de expor seus quadros em grandes
museus, a sua vontade de voltar à política, de fazer mestrado ou, simplesmente, de
montar um novo negócio. Sem dúvida, o projeto mais “ousado”, do qual sempre
comentava, era a vontade de criar um paraíso fiscal para o Mercosul em Ilhabela.
Essas idéias davam força à suposição de um quadro psíquico muito adoecido,
mas seria psicose, como supunha a equipe?

A entrada

0 primeiro testemunho

Nos primeiros encontros, ficávamos todo o tempo em seu quarto. Ele deitado,
e eu sentado, esperando que me dissesse alguma coisa. Pela imobilidade daquilo
que me trazia —a imobilidade estava em todo lugar —, aos poucos, as suas falas
foram diminuindo, ao mesmo tempo em que era crescente a sua impaciência, o
seu desconforto com a minha presença. Algumas vezes, apenas poucos minutos
de conversa já eram o bastante para que ele me pedisse o término da sessão. Eu
acabava insistindo para que falasse um pouco mais, e ele aceitava, prolongando o
nosso encontro. Foi quando, na sessão em que completávamos dois meses de aten­
dimento, ele me disse: “Acho melhor pararmos! Não quero mais que você venha!”
O que ele estava me dizendo? Seria o fim do tratamento? Havia cometido
algum erro? Teríamos avançado demais ou caminhado muito pouco?
Esses são momentos preciosos do tratamento. É justamente quando algo
paralisa ou alguma novidade vem à tona —e, necessariamente, somos convocados
a nos movimentar, ainda que não saibamos em qual direção —, que temos a chance
de estar muito próximos do paciente, ainda que uma decisão errada ou a omissão de
um gesto possa trazer as piores consequências.
Após um tempo, que não sei se longo ou breve, afinal eu havia sido pego de
“surpresa”, eu me dei conta do óbvio. Era insuportável a sua condição. Como
ele poderia falar do insuportável estando tão próximo daquele lugar! Diante do

138
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

“Acho melhor pararmos! Não quero mais que você venha!”, eu respondí: “Você
precisa sair daqui!”
Eu fui certeiro em minha intervenção. Sair dali significava deixar aquela
imobilidade, aquela sujeira, deixar a sua nova prisão e, talvez, a antiga também.
Imediatamente, ele me perguntou: “Você consegue este telefone para mim?” —
era de um órgão da prefeitura que estava oferecendo trabalho para deficientes.
Eu respondí que sim, que o traria no próximo encontro. Então, encontramo-nos
novamente, e, nesse dia, ocupamos a sala de sua casa; e, no encontro seguinte,
fomos à rua fazer um passeio.
Alg o novo foi estabelecido entre nós, e isso só foi possível por estar tão
próximo e reconhecer aquilo que para ele era insuportável. Antes desse momento,
havíamo-nos apresentado, combinado a frequência e a duração dos acompanha­
mentos, os valores, ou seja, criamos um contrato que delimitou o formato dos
encontros. No entanto, essas cláusulas se mostraram frágeis demais para promover
ou sustentar o que se apresentava ali. Para além do contrato, a intervenção esta­
beleceu o contato necessário para dar “início” ao processo de cura3.

Direção do tratamento
Lembrar para esquecer

A partir desse momento, começamos a realizar saídas. Primeiro andávamos nas


ruas próximas à sua casa. Em seguida, surgiu a ideia de irmos a outros espaços da
cidade, como parques, cinema e exposições de arte. Vale ressaltar que circular
pela cidade ainda que para ele fosse um ganho imediato, nunca foi o propósito do
acompanhamento, mas sua condição. Foram os elementos e os contornos ofere­
cidos por esses espaços que possibilitaram a Daniel aproximar-se de questões,
de sentimentos, de passagens, de memórias e de marcas que de outra forma não
poderíam ser tocados.

3A cura tem duas acepções fortemente interligadas. A cura como fim ou objetivo do trabalho terapêutico (cure)
e a cura que designa o próprio tratamento ou processo terapêutico (guérrison).

139
Acompanhamento terapêutico

A utilização de elementos da realidade no tratamento é uma das caracterís­


ticas dos acompanhamentos. Quando os pacientes apresentam estados de grave
adoecimento, em que se encontram impossibilitados de abrigar ou ter o mínimo
acesso às suas experiências e a seus afetos, o uso de elementos concretos da reali­
dade a compor o setting é um recurso que favorece comunicações e estabelece
laços que o dispositivo clínico tradicional não conseguiría promover.
Um dos momentos em que este recurso foi muito importante nos atendi­
mentos foi no período em que nossos passeios se resumiam a idas ao cinema. As
escolhas dos filmes sempre variavam, sendo que a maioria dos títulos era sugerida
por mim. Então, certo dia, Daniel me disse que estava interessado em assistir
a um filme nacional que acabara de ser lançado. O filme era sobre a ditadura.
Aquele era um pedido valioso. Eu sabia da importância que teria para Daniel e
para o tratamento. Antes desse momento, Daniel pouco falava sobre o período
da prisão e das torturas. Mesmo quando eu insistia, ele se contentava em lembrar
as amizades e os bons momentos que tivera na prisão. Era impossível para ele
avançar além desse ponto, silenciado havia mais de trinta anos.
Daniel não saiu inteiro daquela prisão, e a sua história posterior é a história
de uma “errância”. Foram inúmeros projetos. Ele trabalhou alguns anos como
sociólogo, como cenógrafo e iluminador; fundou um grupo de dança; ajudou a
montar um sindicato de artes; participou de movimentos políticos, inserindo-se em
grupos e partidos; foi candidato a vereador e a deputado; trabalhou como assessor
na Câmara; mas foi na arte, particularmente na pintura, que ele investiu a maior
parte do seu tempo. Ainda assim, como todos os outros projetos, ele não teve
êxito ou não pôde dar continuidade.
Por que essa história? Como um jovem tão ativo, engajado em movimentos,
em lutas, em vitórias, teria tal destino?
O trauma é um conceito central para a psicanálise. Marca do excesso, seja da
presença seja da ausência excessiva, o trauma significa a impossibilidade da experi­
ência. Diante da exposição excessiva à experiência, o organismo defende-se, afasta-se,
desinvestindo a realidade e, como compensação, reinvestindo-a narcisic amente.
Não por acaso, sobreviver à tortura e à prisão, sobreviver à sua cama (à nova prisão)
só foi possível graças à ilusão de seus projetos, à fuga de uma realidade insuportável.

140
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

“Re-viver” aqueles anos por meio do cinema foi o meio que encontramos
para nos aproximarmos do trauma, do impossível. Lembro-me do tilme —Batismo
de sangue - , um tilme duro, violento demais para mim. Eu fiquei chocado e teme­
roso com o efeito que poderia causar em Daniel. No entanto, ali, ele não estava
só, mas acompanhado do testemunho daquilo que um dia sofrerá. A partir da
presença silenciosa do acompanhante —silenciosa, mas presente —, o testemunho
daquela ficção permitiu que as lembranças pudessem falar.
“O indizível só pode ser não dito e lembrar pode ser uma forma de esquecer as
coisas”, afirmam Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p. 10). Infelizmente Daniel
até então nunca pudera “lembrar” o que experimentara naqueles tempos, e, por
isso, o trauma presentificou-se por tanto tempo. Viver exige que experiências
como essas sejam esquecidas.

Voltar ao presente

Além do cinema, nossos passeios permitiram que ele reencontrasse outros


lugares importantes de sua vida, como museus e exposições de arte, peças de
teatro, companhias de dança, entre outros. Nessas andanças, estar com ele muitas
vezes significava oferecer meu corpo e meus sentidos para seu uso, como ocorreu
em uma exposição, quando ofereci meu tato e a minha percepção para que ele
pudesse encontrar objetos que seu corpo e sua curiosidade não podiam alcançar.
Nessa conjunção, eu realmente vivi com encanto o seu mundo, as suas estórias e
também os seus sonhos. Eu me arrisco a dizer que por um tempo nós sonhamos
juntos e, neste “tatear a realidade”, o presente se fez presente. Daniel começou
a pintar, voltou a trabalhar em suas traduções, resgatou projetos antigos, como
peças de teatro, letras de música —uma delas gravada por uma conhecida cantora
—e reencontrou um trabalho de tradução praticamente concluído, mas que havia
“perdido” em sua bagunça. Parecia que ele voltava a habitar a realidade.
Essa conclusão logo se mostrou um erro. Rapidamente, a realidade fez-se
dura demais para o que ele pretendia alcançar. A sua tentativa de pintar logo
se transformou em uma obsessiva e descuidada produção. Ele passava dias,
noites e madrugadas produzindo pilhas de cartões, com a intenção de vendê-
-los. No entanto, em razão da pressa, da dificuldade motora e, principalmente,

141
Acompanhamento terapêutico

de não conseguir reconhecer a precariedade do que estava produzindo, os cartões


acabavam ficando tortos, amassados, sujos e sem nenhuma beleza. Certamente,
ninguém pôde aceitá-los.
Diante da sua fragilidade, da sua impotência, eu não agi, eu não consegui
fazer nada. Mesmo não sendo consciente, eu temia que ele não pudesse sobreviver.
Após os cartões, surgiram novos fracassos: concursos de arte, tentativas
frustradas de oferecer suas peças a algum grupo teatral, os vários livros que tentava
traduzir simultaneamente, mas que não conseguia dar continuidade. Além disso,
havia momentos em que ele voltava a ter as idéias “ambiciosas”, o que gerava
ainda mais frustração, como nas diversas vezes em que procurou a Pinacoteca ou
o Instituto Tomie Otake para expor seus quadros.
Mesmo com tantos fracassos, Daniel conseguiu dar um passo. Ele conseguiu
retomar e finalizar o trabalho de tradução que, por anos, havia esquecido. Pagou a
uma editora, a qual fez um bonito livro e, numa sexta-feira, fez o seu lançamento na
bienal do livro. Diante dos exemplares, ele deu autógrafos, reviu alguns amigos que
foram prestigiá-lo, mas, por algum motivo, não parecia satisfeito. Imaginei que ele,
talvez, estivesse desapontado pelas poucas pessoas que compareceram, mas não
conversamos sobre isso naquele dia.
No atendimento seguinte, eu estava ansioso para novidades. Eu realmente
não fazia ideia de como ele teria vivido a experiência da bienal e, por conse­
guinte, o que significaria a concretização de seu projeto. A minha resposta foi
encontrá-lo desacordado no horário da sessão, tendo um princípio de crise
nervosa. Corri desesperado pela cidade até deixá-lo em um pronto-socorro
onde permaneceu por três dias. No início tive medo de que não sobrevivesse
e, depois, o receio de que fosse um AVC, o qual lhe somaria novas sequelas,
mas aparentemente ele voltou como se nada tivesse acontecido. O diagnóstico:
convulsão sem convulsão. Esta havia sido a sua quarta crise, a segunda e mais
séria crise desde que o acompanhava.
O que havia acontecido? Por que essa crise justamente no momento de sua
conquista ?

142
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

O colapso

Ele sobreviveu à crise, mas nós já não éramos os mesmos. Por alguma razão,
não sobrevivemos a tudo aquilo. Ele, eu e a equipe. Nessa época, uma psiquiatra,
duas fisioterapeutas e uma acupunturista já haviam deixado o tratamento. A psicó­
loga que o atendia também estava desanimada, e eu, extremamente extenuado.
Por mais que falássemos disso nas poucas reuniões de equipe, não conseguíamos
reverter o quadro. O efeito imediato nos atendimentos foi uma paralisia que durou
cerca de um ano. Inicialmente, diminuímos o número de sessões semanais de duas
para uma. Por fim, passamos burocraticamente a apenas assistir a filmes e, rara­
mente, fazíamos outras atividades. Eram encontros silenciosos, sonolentos, em
que os raros momentos de vivacidade limitavam-se a conversas geradas a partir
dos filmes a que havíamos assistido.
Por fim, esgotado e não conseguindo pensar, comecei a faltar. As primeiras
faltas eram ocasionais, depois começaram a ocorrer com maior frequência, até o
momento em que faltava sem mesmo avisá-lo. Daniel, no começo, incomodava-
-se e me ligava perguntando o que havia acontecido, mas depois fingia que nada
estava acontecendo.
No meu limite, fui ao atendimento determinado a interromper o tratamento,
e essa foi a primeira coisa que lhe disse. Ele, que estava de cabeça baixa, acenou
afirmativamente indicando concordar com a ideia, mas sua expressão suscitava
muita pena. Eu continuei, dizendo que estava com a minha agenda lotada, que
tinha novos compromissos, falei do meu cansaço —ele me escutando, acenando
afirmativamente e cabisbaixo —, até o momento em que pude lhe dizer que
aquilo não era tudo, que na verdade eu não suportava mais a sua presença.
Nesse momento ele se levantou e me olhou profundamente, não com raiva, mas
com uma vivacidade que havia muito eu não encontrava. Aquilo me chamou a
atenção. Eu prossegui dizendo que tinha muitos motivos, muitas desculpas para
não atendê-lo, mas seria falso se não falasse o que realmente estava sentindo. Eu
sabia que com aquelas palavras duras eu o respeitava. Muito diferente das muitas
pessoas desaparecidas. Tudo isso eu lhe comuniquei.
Depois de me ouvir, ele me perguntou por que eu sentia aquilo. Respondi que
precisava pensar, e, realmente, eu ainda não entendia o que estava sentindo, o

143
Acompanhamento terapêutico

que estava vivendo na nossa relação. Despedimo-nos e combinamos continuar a


conversa na próxima semana.
No entanto, nas duas semanas seguintes eu voltei a faltar. Foram mais duas
semanas em que permanecí ruminando uma angústia que não compreendia e que
me paralisava. Somente na terceira semana eu pude encontrá-lo. Reproduzirei
partes dessa sessão em que precisei falar muito mais do que ele.
Eu: “Daniel, você me perguntou no último encontro por que eu estava
pensando em deixar o tratamento. Daniel, eu me sinto muito cansado, sobrecarre­
gado, porque você coloca tudo em minhas costas. E por quê? Porque você sempre
se coloca no papel de vítima, e, por isso, todos ficam reíens dos seus pedidos, da
sua vontade, das suas idéias, da sua impotência. Uma vez você já foi vítima. Você
realmente foi vítima de uma violência quando ainda era jovem, quando estava
cheio de planos, de sonhos e acabou sendo torturado e preso.
“Isso realmente aconteceu. O problema é que você tem passado a vida toda
se vitimizando, reclamando de injustiças que o mundo, que o destino ainda dirige
a você.'’
Daniel: “Eu entendo, mas o que posso fazer?
Eu: “Você se queixa que os projetos não dão certo, que o mundo está contra
você, que o hospital o prejudicou. Você quer indenização do hospital, do Estado.
Daniel, você passou toda a sua vida clamando por justiça, clamando por reparação,
mas, para defender essa sua causa, você acabou condenado ao papel de vítima.”
Daniel: “Eu entendi, mas o que faço?”
Eu: “Seja humilde e aceite-se, em vez de ter sonhos fabulosos, de sonhar
com uma exposição na Pinacoteca, de achar que com uma simples conversa com
um curador terá uma exposição no Tomie Otake. É claro que não vai dar certo. Para
conseguir isso as pessoas trabalham muito e, ainda assim, poucas têm sucesso.
Não se trata de sorte ou azar ou destino, mas de trabalho. Mas será que é disso
que se trata? Será que o teu fracasso é por você não ser realmente dedicado ou
por que você está sempre procurando a confirmação de que o mundo é sempre
injusto com você?... Eu me lembro de quando fomos a um restaurante, muito
bonito, e você pediu um dos pratos. Se não me engano era uma deliciosa picanha.
Eu estava ali, ao seu lado, acompanhando-o. Então, você colocava pedaços de

144
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

came na boca, chupava esses pedaços e, em seguida, você os jogava no chão.


Pedaço a pedaço, você chupava e jogava no chão. Você tem ideia da violência
que tazia comigo e com todos os que estavam assistindo àquela cena? Aquilo
toi tão chocante para mim que eu não consegui tazer nada. Eu fiquei completa­
mente paralisado enquanto você me violentava. Você não é um deficiente, nem
um imbecil! Você não faz isso na sua casa e sabe que as pessoas não fazem isso.
Você, que ali parecia um coitado, na verdade, era um tirano que obrigava todos
a serem seus reténs. Você parecia repetir uma cena da tortura, e você a repete o
tempo todo. E, nessa cena, eu era a vítima. Eu gostaria de ter tido torças para me
levantar daquela mesa, mas não consegui. Eu gostaria de ter interrompido aquela
cena, como taço agora, mas eu não podia naquele momento, eu tinha que sofrer
tudo isto, em silêncio e por todo esse tempo, para compreender o que você me dizia.
O pior é que não é só isso. O pior é que, ao abusar das pessoas, você permite que elas
taçam o mesmo com você. Não só pela sua fragilidade, mas pelo ódio que provoca,
elas o desrespeitam, o enganam, o exploram, o roubam...”
Daniel: “Eu não sei disso, não!”
Eu: “Claro que sabe. Eu sei que você está vendo.’” Cito-lhe várias situações
de seu cotidiano.
Daniel: “O que eu devo fazer?”
Eu: “Talvez pensar, reconhecer algo no que digo já é um grande passo. Nesse
passo eu não posso acompanhá-lo, não como o acompanhava antes. Eu preciso
estar em outro lugar para que a gente possa sobreviver.”
Esse encontro levou a uma nova transformação no tratamento. Inicialmente,
ele ficou deprimido e calado, abandonando as atividades que ainda realizava. Nas
suas poucas palavras, ele repetia que queria morrer e destruir tudo o que estava
fazendo. Ele também sugeriu interrompermos o tratamento, mas continuamos, e
aos poucos ele foi melhorando. Ao final, ambos havíamos mudado de lugar. No
momento, eu o encontro uma vez por semana, porém não temos saído de sua casa.
Curiosamente, voltamos ao início, mas de um modo bastante diferente. Agora,
ele tem conseguido falar, sobretudo da sua solidão e do seu desejo de enfrentar
seus problemas, saindo de casa e encontrando uma moradia que permita a convi­
vência com outras pessoas. Nessa caminhada, existe a presença de um novo

145
Acompanhamento terapêutico

acompanhante, que, com muito tôlego e sensibilidade, tem construído, lá fora,


essa mudança com Daniel.
Daniel já faz novos planos - “na moradia eu poderia dar aulas de francês,
de pintura e, talvez, natação!” Por enquanto, os passos “possíveis” em sua realidade.

Conclusão
0 caso clínico

O relato de um caso clínico é sempre uma construção parcial de todo o processo,


já que é praticamente impossível retratar a penumbra na qual permanecemos a
maior parte do tempo. Por outro lado, existe a “memória” dos atendimentos, que se
faz por meio de uma sequência de momentos em que algo emerge e a comunicação
com o paciente se estabelece e se realiza —tempos de compreender e de concluir4.
No caso clínico apresentado, podemos destacar, pelo menos, três desses
momentos. O primeiro, ocorrido nos primeiros meses dos acompanhamentos e
que teve desenlace a partir de uma intervenção. O segundo, que ocupou um longo
período do tratamento e foi marcado pela redução nos sintomas do paciente.
Por fim, o terceiro momento, ocorrido ao longo do último ano, e que também
culminou em uma intervenção.
Em vez de falar a respeito do que representou cada um desses momentos para
o processo em questão ou dos seus efeitos para a economia psíquica do paciente,
gostaria de refletir sobre o lugar ocupado pelo acompanhante, que foi condição
fundamental para o avanço do tratamento.
Quando comecei o acompanhamento, o paciente encontrava-se muito adoe­
cido. A “ausência” de memória e suas falas delirantes limitavam ou mesmo
impediam o nosso contato. Foi somente com o pedido pelo fim do tratamento que
sua voz ganhou matizes de um pedido de ajuda. A minha resposta “Você precisa
sair daqui!” - uma interpretação oriunda da inversão da sua própria mensagem,

4 Lacan explora os tempos de estruturação do sujeito no artigo “O tempo lógico e a asserção da certeza anteci­
pada”, que está presente no Escritos (Lacan, 1998, p. 197).

146
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

que me pedia para ir embora —colocou em cena algo do paciente que até então
era vivido como nosso limite.
O que importa destacar é que a intervenção só loi possível porque a expe­
riência do acompanhamento —experiência vivida no cotidiano, na casa, no leito
do paciente —permitiu que eu me aproximasse e testemunhasse as condições
extremamente precárias em que ele vivia. Ainda, diante do insuportável, havia a
presença fundamental do meu corpo, palco de afetos e instrumento capaz de dar
voz a uma verdade a qual o paciente era incapaz de reconhecer e aproximar-se.
É “Você [quem] precisa sair daqui!” tomou inédita uma verdade que antes era
impossível de ser habitada.
Do mesmo modo, no segundo momento do tratamento, quando o paciente
obteve expressiva mudança, reconstituindo o passado traumático e resga­
tando antigos projetos, deram-se as condições oferecidas pelo acompanhamento,
que tomaram o processo menos ameaçador e suportável. Primeiramente, pela
presença, ora silenciosa, ora expressiva, do acompanhante, e também pelo contato
gradual com a realidade da cidade, da cultura, do humano, registros dos quais
havia se isolado por muitos anos.
Por tim, mais familiar, mas não menos silenciosa e mortífera, a vivência trans­
ferenciai ao longo do último ano pôde reproduzir, em diversas versões, a cena
traumática do período da tortura. A paralisia estabelecida nos encontros desse
período tornou-se palco de um jogo obscuro e perverso em que nos altemávamos,
ora ocupando a posição de abusado, ora a de abusador. Como no episódio do
restaurante - em que ele me ultrajava, lançando pedaços de carne pelo chão -,
foi por meio da violência sentida em minha impotência, que eu pude identificar a
dinâmica da transferência em nossa relação.
O reposicionamento dentro da cena transferenciai na última sessão somente
ocorreu quando pude reconhecer o quanto eu estava tomado pela angústia e morti-
ticado na relação. Em um arroubo de palavras duras e ruidosas, em que pude
resgatar situações e sensações que nos tomaram nos últimos meses, meu gesto
(ato) permitiu que rompéssemos a paralisia que nos tomava, e que ocupássemos
novos lugares na relação. Certamente, o efeito produzido não aconteceu pela força
das verdades que ali foram ditas, mas por ter conseguido evidenciar a verdade das
forças (afetivas) experimentadas em nosso encontro.

147
Acompanhamento terapêutico

Impasses da clínica

Retomando a proposta deste trabalho, o caso clínico revelou como o corpo


do acompanhante terapêutico tornou-se instrumento fundamental para o
avanço do tratamento. Não podemos desconsiderar que o atendimento foi reali­
zado com um paciente muito adoecido e, por essa razão, exigiu a presença, muitas
vezes corporal, do acompanhante. No entanto, é importante reconhecer que a
“vivência” de afetos daquele que acompanha, explicitada neste caso clínico, é
algo que ocorre em qualquer encontro analítico. Gostaria de chamar a atenção
em relação à problemática do corpo e dos afetos na clínica do A T e na experiência
psicanalítica. Sem esquecer as recomendações e os alertas da psicanálise sobre
o risco de os analistas se considerarem detentores de um saber que o paciente
não possui —o que já gerou muitos abusos e enganos na clínica —, não podemos
deixar de reconhecer que tanto o acompanhante quanto o analista “sentem” nas
sessões, e essa proximidade no encontro, como uma das dimensões do enquadre,
é extremamente valiosa para a condução do tratamento. Cabe a nós pensarmos o
que lazer com isso.

148
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica

Referências bibliográficas

Lacan, J. (1998). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: Lacan, J.


Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Nestrovski, A; Seligmann-Silva, M. (Orgs.). (2000). Catástrofe e representação. Rio de


Janeiro: Escuta.

149
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua
filha: reflexões sobre a ética do
acompanhamento terapêutico

Caroline de Oliveira Melo Vidal


Kleber Duarte Barretto

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a


estrada permanecerá viva. È para isso que servem os caminhos, para
nos fazerem parentes do futuro [...]
(Mia Couto, em Terra Sonâmbula)

Este trabalho discute aspectos da ética da modalidade clínica do Acompa­


nhamento Terapêutico (A T), que se caracteriza por intervenções no dia a dia de
um paciente tentando usar a potencialidade da reconíiguração do seu cotidiano.
O A T originou-se nas práticas que visam a transformar o tratamento psiquiátrico
usual, contribuindo com uma prática singular e principal no cotidiano do paciente
,e não como um procedimento secundário ou de apoio. Para realizar a discussão
sobre a ética, utilizaremos o conto Sorôco, sua mãe, sua filha, de João Guimarães
Rosa, já que nesse texto podemos encontrar, em registro literário, dimensões fun­
damentais que necessitam ser contempladas para o manejo clínico em situação
de AT. Como perspectiva teórica, usamos os trabalhos de Safra, já que esse autor
tem se preocupado com a faceta ética da condição humana. O artigo assenta-se
em um trabalho de investigação hermenêutica, no qual aproximamos o trabalho
clínico da literatura.
O mais habitual é vermos a questão da loucura tratada como algo que neces­
sita ser dissociado do cotidiano das pessoas, sendo o louco visto como o alienado,
Acompanhamento terapêutico

que deve ser trancado e isolado por meio de internações e grades. No entanto,
seria a loucura uma doença? Seria a loucura simples distúrbio psíquico e mental?
O que o dito louco nos revela de nós mesmos? O que nos irmana?

Para refletinnos sobre essas questões, consideramos que podería ser benéfico
discuti-las com a ajuda do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” de Guimarães Rosa.
O poeta e o escritor têm a possibilidade de revelarem, por meio de seus textos,
situações fundamentais, que habitualmente não são contempladas pelas pessoas
em seu dia a dia.

O conto narra a partida de duas mulheres para um hospício, a mãe e a filha de


Sorôco, que são levadas da estação de trem numa cidade do interior para Barba-
cena. O povo se junta para assistir ao acontecimento. A canção, sem sentido
inicialmente, cantada pela filha e depois acompanhada pela mãe de Sorôco desem­
penha um papel decisivo no enredo. Quando Sorôco tenta voltar, de repente,
num momento de desacontecimento, começa a cantar a mesma cantiga, e o povo
que ali estava o acompanha na música e até sua casa.

Reflexão a partir do conto

O conto nos traz a ideia inicial de loucura como impossibilidade de vida, ou


subvida, meia-vida, logo, faz-se necessária a internação das duas mulheres loucas.
Há um movimento em que se observa uma tentativa de afastar-se daquelas duas
mulheres, que representam a loucura daquela comunidade. “De antes, Sorôco
aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com
os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi
preciso” (Rosa, 2001, p. 64).

N a hora da despedida, marcas do sofrimento de convívio com a loucura


se espelham na corporeidade de Sorôco: homem brutalhudo, barba amarelada,
encardida, assustava as crianças, voz pouca, grossa, que se afinava, agradecia aos
presentes seu estar ali; dito muito paciente, quando o trem se foi com sua mãe e
sua filha, o triste homem não conseguiu olhar e nem nada dizer. Sorôco como que

152
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico
Mrvi
tem as marcas do estranho na comunidade em que vive. No entanto, na hora do
adeus todo mundo gostava demais dele.
Então Sorôco canta o que as duas cantavam pouco antes de partirem. Elas
se foram? O canto de Sorôco como que presentifica o que havia sido alienado.
O amor saudoso permanece e alcança a voz de Sorôco. Mãe e filha cantam em
Sorôco. As grades não apagam a presença daquelas com quem tanto tempo se
conviveu.
Logo, todos o acompanhavam, sem saber o que cantavam, nem por que ao
certo cantavam. A loucura não se extingue com a partida das duas mulheres.
Todos que lá estavam como sãos, como espectadores à distância da separação de
uma família, cantam a dor da loucura. A comunidade ecoa e se solidariza com o
momento trágico. Todos acompanham Sorôco, todos celebram a partida, todos se
fazem saudades.
O conto parece nos mostrar que não é a loucura que significa a não vida. A
1
dor terrível é aquela que se faz na solidão . A dor sem a companhia do outro atinge
0 abismo da agonia. O canto dos outros abraça a nossa dor e a toma passível de ser
sofrida. A loucura não exclui a condição humana fundamental de acompanhar e
ser acompanhado; a possibilidade de estar com o Outro, de sentir com o Outro.
Acompanhado, Sorôco pôde suportar e continuar a sua caminhada após a
dolorosa ruptura que vivência no acontecimento descrito no conto. Todos ali,
Sorôco, sua mãe, sua filha e a comunidade, acompanham-se e se irmanam em um
mesmo lamento. Sorôco denuncia a ineficácia da lógica dicotômica bom/ruim,
são/louco, certo/errado ao retomar a canção, rompendo seu silêncio anterior,
contrário ao murmúrio dos espectadores. A canção traz a possibilidade de comu­
nicação, para além da realidade dual que opõe um existir ao outro: a linguagem
da cantiga é a linguagem da loucura, dos possíveis, da poesia.
No conto, a cantiga, enquanto tala dos loucos, põe por terra as dicotomias
do racionalismo, afirmando-se nas suas diferenças. E, ao se lançar neste universo,1

1 Segundo Winnicott, a solidão é fundante, originária, mantenedora da condição humana quando vivenciada
atrelada a experiências de dependência máxima; quando a possibilidade de tais experiências de dependência
não se dá, a vivência da solidão “acarreta a vivência de solidão absoluta e implica uma experiência de agonia
impensável” (Safra, 2006b, p. 69).

153
Acompanhamento terapêutico

em que a fala dos desfavorecidos se faz também ouvir, o conto busca terceiras
possibilidades (Otín, s/d).
O canto opera na cena como elemento que irmana a todos em uma compre­
ensão empática, compartilhando um mesmo destino. Tem também a função
fundamental de

[...] uma concepção do campo simbólico que vai considerar importante não
tanto o significado de um determinado símbolo, mas fundamentalmente
sua possibilidade de veicular uma experiência, uma vivência. E a função
simbolizante que permitirá ao indivíduo seu atravessamento nas diferentes
modalidades de estar no mundo: do estado subjetivo à realidade comparti­
lhada. (Safra, 2005, p. 23-24)

Assim, a cantiga, mesmo que inicialmente entoada por duas mulheres loucas,
mesmo que de significado quase indecifrável aos demais, “a cantiga não vigo­
rava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras —o nenhum” (Rosa, 2001,
p. 63), não distancia Sorôco e todos os outros da realidade; pelo contrário, permite
o encontro verdadeiro com o que está sendo experimentado. A cantiga, uma vez
que é poesia, é o próprio paradoxo: inalcançável, ao mesmo tempo que tanto nos
alcança; o falar poético localiza-se entre o dizer e o indizível, é palavra que se abre
para o não dito. A cantiga, enquanto símbolo, permite a existência, pois o símbolo
possibilita a partilha de experiências subjetivas e pessoais. A expressão, verbal ou
não, comunica a interioridade, e o sentimento move todo o si mesmo em direção
ao outro (Safra, 2008). O final do conto revela tal dimensão: símbolo2 de tudo
que ali se sentia. Um gesto simbolizante, mas também poético3, como aquele que
se dá na clínica do acompanhamento. Por meio dos objetos estéticos, objetos
culturais e por meio de símbolos, possibilita-se ao acompanhado o acesso ao dizer
de estados psíquicos não formulados que seriam inarticuláveis de qualquer outra

2 Utilizo aqui o termo símbolo aproximado da definição de símbolo apresentativo, conceito psicanalítico, vincu­
lado ao estudo da dimensão não verbal da comunicação inter-humana; esta ideia de símbolo se fundamenta
essencialmente da linguagem plástica e está dirigida à sensibilidade do sujeito. O símbolo apresentativo viabiliza
experiência de contato, veiculada a uma concepção a respeito da vida, do existir e do mundo humano (Safra, 2006).
3 Poético, concordando com a caracterização de evento similar descrito por Gilberto Safra em A face estética do
self - teoria e clínica, é definido com aquilo que “ao mesmo tempo articula, em um único fenômeno, a capacidade
criativa [...] dando origem à comunicação humana e, principalmente, ao existir” (Safra, 2005, p. 21).

154
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico

forma (Safra, 2005). “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de
verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga” (Rosa, 2001, p. 66).
A expressão de verdade aponta o retorno de Sorôco ao viver, o que antes da
cantoria não acontecia, ou “subacontecia”: “Ele se sacudiu, de um jeito arreben­
tado, desacontecido, e virou, pra irs’embora. Estava voltando para casa, como se
estivesse indo para longe, fora de conta” (Rosa, 2001, p. 66).
É por meio do canto, do permitir acontecer da loucura, quando razão e
loucura não mais se distinguem, que Sorôco pode voltar a casa de verdade, acom­
panhado por todos ali presentes (Otín, s/d). O canto vem movido por um sentir
partilhado, e a vontade sustentada por um sentir supera, permite transcender.
A distância entre os que partem e os que ficam toma o tamanho da saudade e se
toma longe.
Segundo Safra, “os símbolos orgânico-estéticos4 veiculam o sentir, o ser, o
existir, [...] por esta razão, podemos dizer que eles não representam, mas apre­
sentam e abrem uma determinada experiência de sentir, existir ou ser” (Safra,
2005, p. 27). Podemos, então, afirmar que a cantiga possibilitou o devir de Sorôco,
a dor da separação pode vir a tomar-se travessia: “ [...] ele começou a cantar,
alteado, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as
duas tanto tinham cantado. Cantava continuando” (Rosa, 2001, p. 66).
Otín (s/d) assinala que o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” compreende a
loucura como metáfora do movimento do mundo, do devir, e o canto considerado
um canto louco é a voz desse devir, uma fala para além das dicotomias e exclusões
que estabelece a lógica ocidental. O conto traz a loucura como criação.
Há um encontro entre Sorôco e os que ali assistem a cena da despedida. O
encontro se dá na hora em que todos cantam. A memória do antes, senhoras
loucas, loucura como tristeza e fardo, perde peso, e vigora no canto o sentir com e
pelo outro.

4 Segundo a definição de Safra, o termo estético é usado “para abordar o fenômeno pelo qual o indivíduo cria
uma forma imagética, sensorial, que veicula sensações de agrado, encanto, temor, horror, etc. Estas imagens,
quando atualizadas pela presença de um outro significativo, permitem que a pessoa constitua os fundamentos ou
aspectos de seu self, podendo então existir no mundo humano” (Safra, 2005, p. 20).

155
Acompanhamento terapêutico

Há encontro, numa vivência do agora; todos compartilham a experiência de


Sorôco. A vivência partilhada gera então uma terceira experiência, gera um nós,
acolhedor, que supera o isolamento e devolve ao sujeito em sofrimento o seu devir
(Safra, 2008). Na iminência da paralisação diante da dor, a presença e a partilha
da experiência da dor com os ali presentes lhe permitem seguir.
Vemos aqui o acompanhar como necessidade fundamental da existência
humana, acompanhar como oferta de um lugar ético para o outro. O lugar ético
possibilita o existir e o pertencimento.

O caminho da /morte/ não é a marca da /loucura/, mas aquele que, passando


pela /não solidariedade/, conduz à /morte da solidão/ ou “sozinhidão”, neolo-
gismo roseano. Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, com a “chirimia” da cantiga,
ainda que ecoe “um quê de loucura no ar”, dá-se o acorçôo do canto que, esta­
belecendo elos humanos de participação, garante o apoio da “terceira perna”
que é o sustentáculo da vida humana (Oliveira, Soares, Silva, s/d).

Safra (2008) definiu entropatia (empatia) como ato de se debruçar para


dentro do outro e vivenciar a interioridade do outro por meio da própria expe­
riência. Assim, a experiência entropática supera uma experiência estética do
outro, permitindo um para além em direção à alteridade do outro. O acompanhar
assentado na solidariedade e na entropatia possibilita transcender a apreensão
estética do outro.
Segundo Safra (2008), o fenômeno entropático é ontológico e fundante da
existência do ser humano. A vivência partilhada nos permite existir. Nas experiên­
cias em que as necessidades fundamentais se esvaem, como a cena apresentada
em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, é preciso que alguém compartilhe o sentir de
tal situação, num fenômeno entropático, para que o sujeito possa recuperar seu
verdadeiro ser, seu si mesmo.
Esse aspecto parece ser a faceta ética fundamental da clínica do AT: ofertar
aos pacientes a oportunidade de serem acompanhados e assim possibilitar a cons­
trução de um cotidiano pessoal, que devolva o si mesmo à pessoa adoecida.
Na clínica somos chamados a compreender a fonna de ser daqueles que acom­
panhamos. Estes interpretam sua existência por meio dos elementos constitutivos
de sua história de vida. Esse modo particular de interpretar o seu existir, afetado

156
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico

por seu modo de ser, é a forma pela qual o sujeito expressa sua singularidade e o
que constitui o seu idioma pessoal5 (Safra, 2006a).
Tal situação, constante na vivência da clínica do AT, coloca-nos diante da
necessidade de delicadeza e atenção com a questão da ética e da responsabili­
dade pela singularidade do outro. Essa responsabilidade implica e acontece como
cuidado (Safra, 2006a). O vínculo com o paciente é baseado na solidariedade, no
reconhecimento do seu sofrimento.
A ética da clínica do acompanhar não está em evitar experiências de sofri­
mento, mas sim em criar possibilidades de transformar tais vivências, usar o que
nelas se viveu como potência, como marcha.
Desse modo, é fundamental a disponibilidade do acompanhante para o
encontro e para os aíetamentos que o acompanhado lhe causa. Esta disponibili­
dade, entretanto, ultrapassa os limites da clínica, e atinge a condição humana em
qualquer situação, como é apresentado no conto de Guimarães Rosa.
A dor da despedida que atinge Sorôco envolve questões que dizem respeito a
todo humano. O vivenciar ou o presenciar despedidas ecoa em nós as despedidas
já vividas e apresenta despedidas futuras.
Os temas loucura, separação, morte, trabalhados em “Sorôco, sua mãe, sua
filha” nos tocam de modo especial, pois trazem o saber que todos nós temos sobre
precariedade, finitude, instabilidade. Ao ler o conto, nós também, como leitores,
cantamos seguindo Sorôco em sua dor e ao mesmo tempo nos sentimos acolhidos
em nossos próprios lamentos.
A ambiguidade proposta pelo conto acontece de modo mais enfático ao lado
dos espectadores da cena: a necessidade da distância, proteção contra os males
oriundos do contato com a loucura —“ [...] o povo caçava jeito de ficarem debaixo
da sombra das árvores de cedro” (Rosa, 2001, p. 63) - e a curiosidade, identifi­
cação, compaixão com a dor inevitável de Sorôco. “Todos, no arregalado respeito,
tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco”
(Rosa, 2001 p. 66).

5 “O idioma pessoal, portanto, é derivado do modo singular de uma pessoa, a partir do qual ela tem uma maneira
peculiar de interpretar a existência e de emprestar às palavras, imagens e atos, uma semântica existencial
pessoal” (Safra, 2006a, p. 36).

157
Acompanhamento terapêutico

As árvores seriam como uma espécie de proteção contra o contágio da


loucura, assim como as grades do vagão que levaria avó e neta para o longe:
“ [...] fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades” (Rosa,
2001, p. 65). É na hora em que Sorôco retoma a canção e que os presentes, antes
“protegidos” sob a sombra dos cedros, acompanham-no no cantar que os espaços
se misturam e, talvez, por aquele momento, deixem de existir a loucura e a razão
e todos ali podem coexistir (Otín, s/d). Nesse momento, a destruição da barreira
entre razão e loucura permite a criação de um novo estado para todos que estão
ali; a ruptura gera uma dor que alcança os espectadores antes resguardados de
contato com Sorôco, e assim possibilita uma nova forma de relação entre eles:

Em outras palavras, a própria condição essencial do ser humano o leva a este


movimento de devir em que o mundo e as coisas alocadas ao seu redor são
continuamente re-posicionados e re-significados e isso de tal modo que se
organizam no seu mundo de vida em tomo de um sentido último que ele criou
para sua existência. (Safra, 2006a, p. 79-80)

No conto emerge a compreensão da criatividade enquanto uma faceta da


condição humana que nasce entre a sua precariedade e a sua finitude e que lhe
dá a possibilidade de destinar-se (Safra, 2006). É o que Guimarães Rosa permite
a Sorôco no final do conto e o que aponta para o que deve ser contemplado na
clínica do AT: constantes fins, constantes começos.

158
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Couto, M. (2007). Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras.

Oliveira, M. F.; Soares, R. T; Silva, A. P B. (2009). Análise semiótica: Sorôco, sua mãe
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tbewerb/Blanca_Cebollero_Soroco__sua_linguagem__sua_poesia.pdf> . Acesso em
6 jan. 2009.

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Rosa, J. G. (2001). Sorôco, sua mãe, sua filha. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.

Safra, G. (2005). A face estética do self —teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.

Safra, G. (2006a). Hermenêutica na situação clínica —o desvelar da singularidade pelo


idioma pessoal. São Paulo: Edições Sobornost.

Safra, G. (2006b). O silêncio. In: Desvelando a memória no humano —o brincar, o narrar,


o corpo, o sagrado, o silêncio. São Paulo: Sobornost. p. 64-80.

159
Vazio e presença viva: reflexões sobre
a experiência de um acompanhamento
terapêutico

Marcelo Soares da Cruz

De vez em quando Deus me tira a poesia.


Olho pedra, vejo pedra mesmo [...]
(Prado, 1992, p. 199)

Introdução

Apresentar a prática do Acompanhamento Terapêutico (AT) ou circuns­


crevê-la em contornos precisos não é tareia simples. Essa modalidade terapêutica
é marcada justamente pelas inúmeras possibilidades que comporta, e somente
a inserção em cada caso toma claros seus aspectos mais particulares. Por esse
motivo, optei, ao escrever este capítulo, por apresentar um caso de A T de um
rapaz, dos seus dezessete aos dezenove anos de idade, que chamarei de Fábio.
A ideia de escrever esse acompanhamento surgiu do encontro com os alunos da
disciplina de A T da graduação em psicologia da USP coordenada pelo professor
Andrés Antúnez. Minha exposição aos alunos visou à comunicação do A T vivo, da
experiência de acompanhar transmitida por meio e a partir da afetação do acom­
panhante. Esta é uma dimensão que pretendo preservar na seguinte narrativa.
Dessa forma, tenho como objetivo apresentar neste texto toda vida que
habitou esse encontro, pois foi uma experiência marcante, na qual o acompa­
nhante terapêutico (at) desempenhou função privilegiada. Muito do colorido
Acompanhamento terapêutico

desse encontro deve-se à mobilidade do AT, pois minha entrada no mundo desse
rapaz promoveu o impacto necessário em mim para compreendê-lo e acompanhá-
-lo, de forma diferente do que o setting do atendimento em consultório, em moldes
mais tradicionais, podería oferecer.
A definição do setting decorreu do contato inicial com a família, que durou
cerca de três meses, em encontros semanais em meu consultório. A partir da
percepção da necessidade dessa família, o sofrimento de Fábio1 ressoou em mim
como urgência, pois não seria possível atender a todos. A opção pelo A T como
atendimento clínico possibilitou a aproximação das necessidades emocionais
do paciente e também de sua família, característica privilegiada desse enquadre
clínico diferenciado.
A história relatada pelos pais e o contato com Fábio trouxeram o vazio como
marca radical nas vivências desse paciente e em sua impossibilidade de ser abri­
gado em um outro, reconhecido em sua singularidade e suas necessidades. Como
suporte para a reflexão teórico-clínica das experiências no encontro com Fábio
e sua vivência de vazio, lançarei mão de aportes da teoria winnicottianna e
do conceito de complexo de mãe morta, criado por André Green (1980/1988).
A experiência de vazio no encontro clínico talvez seja a sensação mais dolorosa
contratransferencialmente para mim. É uma marca das manifestações clínicas
da contemporaneidade e constitui um campo a ser mais extensamente explorado
pela psicanálise.

Caso clínico

Ao tentar relatar esse caso de AT, deparei-me com uma grande dificuldade em
recordar cenas e criar um texto coerente. Pensando sobre os dois anos e meio de
nosso percurso juntos, nesse esforço de recordação, o que predomina é a tensão;
as imagens ficam em segundo plano. Creio que uma marca desse processo foi
o fato de que as experiências e lembranças estavam muito mais inscritas no campo
das intensidades do que no campo dos sentidos. A partir de minhas vivências

1 Nome fictício usado para preservar a identidade do paciente.

162
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

contratransferenciais, pretendo transmitir, neste texto, toda vida que habitou esse
encontro, pois é um caso que exigiu muito de mim, tanto em termos de tempo
quanto em termos afetivos.
O encaminhamento de Fábio ocorreu por indicação da escola na qual ele
estudava, porém os primeiros contatos foram feitos pelos próprios pais, que logo ao
entrarem na sala, na primeira entrevista, contaram que Fábio tinha sido adotado.
Este foi o primeiro assunto trazido pelo casal que, em seguida, enumerou uma
extensa lista de reclamações. Queixavam-se da falta de rumo do filho: reprovação
e mau rendimento escolar, necessidade e desinteresse em construir urgente -
mente um projeto profissional, pedidos descabidos muito frequentes, rompantes
de agressividade, frustrações irreparáveis, dificuldades extremas de relaciona­
mento familiar, amizades estranhas e efêmeras, raros momentos de paz, falta de
ordem e limites, nenhuma adesão a regras e, principalmente, uso inadmissível
de maconha. Tratavam tais manifestações do filho como uma questão pedagógica.
Achavam que havia má vontade de Fábio para cumprir as condições que lhe eram
colocadas para uma vida “nos eixos”. Demonstravam crer que ele necessitava
de uma perda, um susto para que valorizasse o que tinha, achavam que deveria
aprender as condições necessárias para a vida em sociedade. Colocavam Fábio
como alguém que não “entendeu” algo, alguém com uma talha de aprendizagem
ou déficit cognitivo. Talvez tais condutas tenham sido reforçadas pelo fato de
terem frequentado, por algum tempo, um grupo de ajuda mútua para familiares
de toxicômanos. Este grupo pregava basicamente que a pessoa deve chegar ao
“fundo do poço” para que consiga se recuperar, precisa passar tome, frio, dormir
ao relento etc. Deixaram claro, nas entrelinhas, que Fábio não correspondia ao
que desejaram ou idealizaram como filho; que o projeto de um filho que recom­
pensasse o nobre gesto que realizaram no passado havia ruído.
O comportamento do casal chamou minha atenção desde o início dos
encontros. Sempre distanciados um do outro, tratavam-se fomialmente, porém,
afetivamente; eventualmente, usavam apelidos bastante particulares e infan-
tilizados. Ao longo do acompanhamento, ficou claro para mim, o que estranhei
inicialmente, o fato dessa dupla não ser um casal no sentido erótico. Aparentemente,
não se tocavam, dormiam em quartos separados e, segundo Fábio, havia mais de dez
anos que não mantinham relações sexuais, fato confirmado em reunião familiar.

163
Acompanhamento terapêutico

A história da adoção nunca ticou clara, apesar de tê-la ouvido diversas vezes.
A mãe referia ter optado pela adoção devido à dimensão diminuta de seus órgãos
reprodutores, como um corpo de menina, condição que impossibilitaria a gestação.
Essa história sempre soou bastante vaga, e era motivo de revolta para Fábio.
Apesar de haver pequenas mudanças na compreensão dos pais acerca do que
ocorria com Fábio, nas conversas que precederam o AT, chamava a atenção a
fonna impessoal como eles colocavam as questões relacionadas ao filho. Falavam
sobre o que a sociedade impunha atualmente, teorias e mais teorias. Conversas
muito distanciadas da realidade do rapaz e bastante desafetadas, mas que apresen­
tavam o sofrimento vivido pelo casal. Demonstraram, de fato, adesão e esperança
em nossos encontros, e busca de alívio com nossas conversas. Porém, ficou patente
a dificuldade de integrar o filho à história do casal, reconhecer a relação entre o
desatino e o sofrimento de Fábio e a história de encontro e desencontro familiar,
assim como reconhecer qualquer condição subjetiva anterior ou independente do
consumo de maconha.
Em relação à adoção, ao longo das conversas preliminares que ocorreram por
três meses e ao longo do acompanhamento de Fábio, seus pais foram me comu­
nicando um forte sentimento de injustiça. Algo como uma recompensa pela boa
ação que não chegou. Cada vez mais as queixas pareciam estar relacionadas a um
“tempo zero”, que teve início com o ato da adoção, mais do que com situações
atuais. O tom de arrependimento e culpa sempre permeou as conversas com a
família. Tinha a impressão de que brigavam mais por não se conformarem com
o “abacaxi” que tinham aceitado do que propriamente pelo bem-estar de Fábio,
apesar de que estavam visivelmente preocupados.
Desde o início, tive a sensação de que Fábio não era visto de fato pelos pais.
Tinha a imagem apresentada pelos pais de um jovem com muita vida e potencial
apesar de tanto sofrimento, porém eles não reconheciam absolutamente nada de
positivo. O Fábio idealizado não deixava nenhum espaço para o Fábio real nesses
pais. No dia a dia, Fábio sofria uma série de imposições um tanto descabidas.
Tinha de arrumar o quarto, segundo a ideia, bastante particular, de ordem da mãe,
seguir horários rígidos de saída e retorno, deveria comer sempre exatamente no
horário previsto, e cobranças mais naturais, como bom desempenho escolar. Além

164
Vazio e presença viva:
_ _____________ reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

disso, não podia levar a namorada para casa, pois a mãe não a aprovava, apesar de
já namorarem há três anos. Enfim, Fábio tinha de ser exemplar!
Fábio também era constantemente criticado por seus gostos: leituras, filmes,
taro, amigos, tempo dedicado às atividades - mergulhava em algumas leituras ou
jogos de computador —e horários. Fábio gostava de ficar acordado à noite para
não encontrar com os pais, pois se sentia mais livre. Não pareciam suportar o
cotidiano de um adolescente. Fábio sempre se manteve resistente à maioria das
imposições e críticas. Em geral, reforçava suas atividades e seus gostos para que
pudesse se reconhecer em meio a essas situações. É claro que ele frequentemente
lançava mão de atuações terríveis, e o convívio com ele não era fácil. Porém, para
os pais, ele era somente transtorno e decepção.
Esses pais, usualmente, em nossas conversas, manifestavam ímpetos ora
de expulsar Fábio de suas vidas para que tocasse a dele, ora queriam protegê-
-lo e dar-lhe o que fosse para confortá-lo. Fui apreendendo, com o tempo, certa
fantasia de “devolução”: a vontade de se livrarem dele, a culpa e o medo que disso
decorriam. Fui me dando conta, logo no início do contato com os pais, que a
adoção não tinha ocorrido verdadeiramente, apesar de no plano burocrático estar
concretizada. Na dimensão afetiva e simbólica, Fábio ainda estava por ser adotado
e por adotar os pais.
Em um dos encontros com os pais, cometi um ato falho emblemático. Ao
conversamios a respeito de algum aspecto da adoção de Fábio, troquei a palavra
adoção pela palavra aluguel. A reação a esse lapso foi fortíssima. A mãe, ofendida,
desconcertou-se, resmungou e fechou a cara. Tal lapso deixou, para mim, mais
clara a ideia anterior: aluguel é um investimento, um gasto sem retomo. Pode-se
pagá-lo para sempre, e o imóvel nunca será seu. Não há a apropriação legítima do
objeto no qual se investe.
Após três meses conversando com os pais, decidi assumir o A T de Fábio, pois
ainda não havia definido se prosseguiría em atendimento do casal ou do filho, e
por ter apreendido a importância da compreensão e construção da história dessa
família no sofrimento dele. A partir desses encontros, pude iniciar os atendimentos
de Fábio sem a afobação comum nos encaminhamentos de AT, melhor situado e
com um campo relativamente preparado para o início do acompanhamento.

165
Acompanhamento terapêutico

Uma das primeiras coisas que notei ao acompanhá-lo em sua casa foi a dispo­
sição do lugar, que parecia leito para duas pessoas. Localizada em um bairro nobre,
a casa era grande, bonita, bem decorada. Era repleta de livros, objetos de arte e
adereços com design diferenciado. Havia uma empregada residente que os servia
e garantia a ordem e a limpeza. Todos adeptos aos mais finos hábitos nas refeições,
recepções e até no descanso. Não parecia haver espaço para a adolescência na casa.

Fábio raramente habitava os diversos recintos. Preferia enfurnar-se em seu


quarto, onde prevaleciam suas regras, sua ordem, onde se esforçava muito para
tanto. Fábio nunca se sentiu em casa, e sempre mencionava estranheza quanto
à disposição dos móveis. Achava tudo muito “quadrado”, não se reconhecia
naquele lugar. C haises, sofás sem dobras nos tecidos, chão brilhando; os recintos
eram preparados para duas pessoas adultas, tudo muito frio, em sua opinião.

O quarto de Fábio era o oposto, não parecia estar dentro daquela casa. Amon­
toados de livros, CDs, filmes e revistas pornográficas, peças e jogos de computador
espalhados, diversos computadores, cama sempre desarrumada, roupas jogadas,
instrumentos musicais, enfeites de artesanato, aparelhos de som pelo chão, maços
e maços de cigarro. Fazia questão de manter as coisas daquele jeito, sabia a loca­
lização de todos objetos em meio às pilhas. Essa desordem era alvo de críticas
ferozes por parte de seus pais e era tida como algo insuportável.

De tempos em tempos, seu refúgio era devassado por empregadas, faxineira


e a mãe que, periodicamente, preparavam uma grande arrumação. Ordenavam
tudo, vasculhavam as frestas atrás de drogas ou qualquer coisa que não estivesse
ao alcance do olhar dos pais, jogavam fora o que aparentemente não servia, geral­
mente coisas importantes para Fábio. O quarto tomava-se irreconhecível. De fato,
as coisas ficavam mais organizadas, higiênicas, porém deixava de ser o quarto dele.
Nessas ocasiões, Fábio sentia-se arrasado. Desorganizava-se bastante, referia muito
ódio e fechava-se. Com a diminuição do impacto da invasão, geralmente preparava
a reconstrução de seu quarto e remontava sua desordem exatamente como antes.
Em ocasiões como essas, experimentava forte sensação de loucura e humilhação.
Procurava rapidamente algo que o tranquilizasse, alguma referência de si mesmo.
Testemunhei e participei de diversas reconstruções.

166
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

No início de nossos contatos, Fábio mostrou-se bastante enigmático. Parecia


estar constantemente delirando e apresentava idéias mágicas de poder e sucesso.
Revelava incomodar-se com o fato de eu ser capaz de “descobrir” seus pontos
fracos, sua dor. Desde o início, pedia para que permanecesse ao seu lado enquanto
estudava ou jogava. Passou a me ensinar diversas coisas, principalmente infor­
mática. Estudava assuntos complicadíssimos por conta própria. Embarquei nos
estudos. Ouvia horas de explicações, fazia equações, programas, pegávamos
textos e líamos juntos para discutir. Mostrava que iria dominar o mundo com
seus conhecimentos. Queria ser um importante doutor por conta própria, achava
que teria um grande emprego no momento em que quisesse, no qual, sem dúvida,
ganharia “acima de setenta mil reais”. Passei meses estudando e discutindo. Fábio
estorçava-se bastante para que eu compreendesse as matérias e gostava muito de
mostrar seus conhecimentos. Eu sempre perguntava em que ponto estava dos textos,
sugeria coisas, perguntava a aplicação do que estudava. Esforcei-me para mergu­
lhar e me interessar. Os estudos permaneceram por todos os meses de atendimento,
porém mudando de tema: tarô, autores místicos, sociedades secretas, ocultismo.
Muitas vezes, era difícil permanecer com ele, sobretudo em momentos nos
quais os afetos eram indiscrimináveis, de medo sem ameaça, de longas medi­
tações em silêncio profundo, de pedidos impossíveis de realizar, fatos bastante
frequentes. Eram comuns pedidos e demandas praticamente inviáveis de serem
supridos. Solicitava sempre algo. Pedia aos pais que o levassem a diversos lugares
imediatamente, não importava a disponibilidade. Solicitava atenção total, roupas,
dinheiro, carinho, opiniões, disposição para acompanhá-lo madrugadas adentro.
Obviamente, frustrava-se constantemente. A cada solicitação não atendida, seu
mundo desabava. Vivia como se não o amassem, não ligassem para ele. Sofria muito,
revoltava-se, agredia. Tinha a impressão de que Fábio preparava constantes provas
de amor para todos, testes para (des) comprovar seu lugar no mundo. Deixar de ter
algum pedido atendido significava não ser amado ou não ter algum lugar razoável
na vida do outro, frustrava-se sempre. Atuava constantemente, e suas atuações e
reações sempre eram dramáticas e violentas.
Passou a me contar que estava estudando técnicas hackers que não atuavam
somente em computadores, assunto que o fascinava. Gostava muito da arte de

167
Acompanhamento terapêutico

burlar, driblar, ganhar em esperteza. Pregava que o mundo funcionava por meio
desse modo de agir, portanto todos enganam e agem em função de vantagens
pessoais. Parecia muito descrente da sinceridade e da ligação verdadeira entre
as pessoas. Certo dia, introduzida por mim ou por ele, as técnicas hackers entraram
em questão relacionadas ao nosso contato. Disse que achava que eu também utili-
zava esses meios para obter respostas, manobrá-lo. Apresentava a ideia de que
ninguém fazia algo por ele, mas em favor próprio. Não se sentia objeto de inte­
resse ou admiração, desconfiava da amizade ou aproximação dos outros. Sentia-se
incapaz de ser amado ou querido, e para isso teria de se esforçar muito, ser alguém
extremamente especial, com dotes inigualáveis.
Conversamos diversas vezes sobre a questão da adoção. Sempre mencio­
nava a ideia de sair de casa, trabalhar e ganhar a própria vida. Sentia que seus
pais não o aceitavam como ele era e não queria ou podia mudar seu jeito de
ser ao ponto necessário para satisfazê-los. Fábio sabia da decepção de seus pais
em relação ao seu jeito de ser e seu mundo, não tinha muita esperança de ser
adotado de tato. Certa vez, disse-lhe que, para sair de casa, primeiro teria de
entrar. Isso ocorreu na época em que resolvemos introduzir as reuniões fami­
liares com o objetivo de expor seus sentimentos, conhecer sua história e a de sua
adoção, pois ele ainda não a conhecia. Reconheceu essa condição e, apesar da
desesperança, investiu nessa entrada. Apresentava necessidade de enfrentar os
pais, expressar suas emoções e o que esperava deles. Sentia-se minoria, havia muito
medo, e geralmente optava por evitar qualquer contato nesse sentido. Mostrava-se
desesperançoso em relação à possibilidade de ser ouvido ou de mudar essa relação,
porém havia uma parte de Fábio que sempre buscava algo. Queixas, revoltas e
apelos eram comumente rechaçados por seus pais no convívio rotineiro da tamília.
Ao ouvir, pela primeira vez, a história de sua adoção, ticou transtornado e
quase agrediu os pais. Soube que sua mãe biológica era uma empregada doméstica
muito pobre. Ela não era casada e havia engravidado em uma aventura amorosa.
Foi entregue para a adoção de forma clandestina. Esse fato o abalou muito, sentiu-
-se uma “mercadoria”, uma coisa. Berrava “por quê? Por quê? Por quê?” Queria
entender os motivos desse casal e repetia que essa tamília tinha sérios problemas
sexuais. Não acreditava nos argumentos da mãe sobre as impossibilidades de

168
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
Mvi
gravidez. Eventualmente, perguntava aos pais se o amavam. Ficavam desconcer­
tados e comovidos. Às vezes, ia dormir com a mãe e chorava, pedia para que ela
ficasse em seu quarto também. Em relação ao pai, era mais duro, queria mostrar
força e competência. Os pais sempre mencionavam seus percursos de vida como
exemplo, pois ambos eram pobres e, de fato, venceram na vida profissional. Fábio
idealizava seus pais e, ao mesmo tempo que os considerava “o máximo”, sentia
que não chegava aos seus pés em termos de determinação e que teria direito a
algum reconhecimento se atingisse o nível intelectual e cultural deles.
Apresentava sérias queixas sobre sobrevivência e identidade. Mostrava-se
confuso em relação aos interesses, sentia-se superficial, obrigava-se a estudar
alguns temas que não o agradavam. Frequentemente manifestava angústias de
invasão e abandono, sentia que o cuidado podería ser invasivo e, a falta dele,
desamparadora. Nenhum de nós dois tinha lugar. Eu experimentava contratrans-
ferencialmente, durante os atendimentos, tais afetos que o afligiam. Sentia-me
desamparado, ameaçado, perturbado. Referia sentir-se uma “alma perdida”, vagava
pela cidade sem muita ligação com o mundo. Expunha seu enorme vazio, a experi­
ência mais dolorosamente comunicada por ele e a que parecia ser a mais sofrida.
Por fim, diariamente, Fábio questionava-se, e a mim também, sobre a origem
de tanto vazio. Dizia sentir-se “frio por dentro”, ter um “fio desligado” dentro de
si. Era extremamente inconstante e reativo, ora doce, ora hostil, ora amigo, ora
inimigo. Tinha facilidade para fazer amigos, porém identificava-se com sujeitos
mais pobres e suspeitos. Conhecia as pessoas em botecos, e logo as levava para casa.
Não duravam mais de uma semana, exceto dois ou três amigos de longa data. Seus
pais ficavam apavorados com o risco ao qual Fábio expunha sua casa e sua família.
Muitos dos amigos também eram eleitos porque eram usuários de maconha. Rejei­
tava pessoas da classe social dos pais ou alguém que se aproximasse disso.
Desde o início, os pais mencionavam histórias de problemas escolares relacio­
nados ao comportamento. A partir dos doze anos fora expulso duas vezes, creio
que uma por agressão a um colega e outra por ser acusado de traficar maconha.
Foi parar numa “escola terapêutica”, único lugar que o aceitou. Fábio sempre
se metia em brigas. Era comum chegar em casa arrebentado. Já havia brigado
fisicamente em favelas, em bocas de tráfico, danceterias, na rua, em casa. Muito
impulsivo, raramente suportava provocações ou desafios.

169
Acompanhamento terapêutico

Passou a interessar-se por temas místicos. Nesses assuntos, Fábio se perdia.


Criava teorias incompreensíveis e sentia-se superior e invencível. Em meio
à contusão, valorizava idéias libertárias, de não submissão a dogmas ou impo­
sições. Adorava um mandamento de um desses gurus que dizia “taze o que tu
queres há de ser o todo da lei”, “amor sob vontade”. Acreditava que nada deveria
impedir o homem de realizar seus desejos, e vislumbrava o desprendimento e a
independência atetiva pregados nessas teorias com a esperança de não mais sofrer.
Em relação ao desenvolvimento de trabalhos profissionais, Fábio era totalmente
desacreditado pelos pais e por si mesmo. Tinha bastante habilidade em informática
e, eventualmente, conseguia algumas oportunidades. Após dezenas de frustrações,
conseguiu implantar um sistema em uma escola de informática. Foi uma vitória!
Sabíamos o que isso representava para ele. Já os pais emitiram um pálido parabéns
quando souberam, e comentaram que já estava na hora de algum projeto engrenar.
Um capítulo muito importante de sua história é seu envolvimento com drogas.
No início, referiu usar maconha desde os quinze anos. Inicialmente, sentia-se
muito ameaçado ao relatar suas experiências, mas com o tempo foi se abrindo.
Iniciou o consumo já num padrão bastante alto, e usava aproximadamente cinco
baseados por dia. Era muito identificado com a “cultura da maconha”: músicas,
roupas etc. Depois de um tempo, referiu ter passado a consumir inúmeras vezes
por dia, mais de dez baseados. Contava não se sentir bem em nenhum contexto
caso não usasse. Tentou a abstinência por alguns períodos e reconheceu alguns
pontos positivos. Apesar dessas iniciativas, dizia usar maconha para conseguir
suportar sua vida. Contou que experimentava momentos de alegria na intoxi­
cação, e abrir mão desse “suporte” seria difícil. Em termos de custo-benefício,
a interrupção não compensaria para ele. Por diversas vezes, comentou sobre o
medo de suicidar-se. Achava que sem a droga não conseguiría suportar a angústia,
o vazio e a falta de sentido que experimentava, e sentia que, com a maconha,
esses sentimentos eram significativamente amenizados. Dizia querer parar por
saber que não era um hábito saudável, porém nada suplantava o medo de encarar
“limpo” tamanho vazio.
Para os pais, pensar em um Fábio prejudicado por algo além da droga era
muito doloroso. Insistiam em supervalorizar a droga em sua história que, de tato,
era bem grave. Recusavam a ideia de que o tilho tinha traços, organização, uma

170
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

base e percurso bastante problemáticos anteriores à droga, e que o que o levou ao


uso toi essa condição emocional anterior. Tomar a droga como etiologia de todos
os mal-estares dessubjetivizava o problema. Pensar na droga, como uma questão
externa, uma contingência da vida sem a influência determinante de uma história
anterior, servia como alívio precário para a dor narcísica vivida pelo casal. A dor
pela terida narcísica “originada” por Fábio parecia tamanha, que o grande esforço
era por enquadrá-lo em seus modelos, no que gostariam que ele fosse. Fábio sofria
as consequências por não ser esse filho.
Sempre desconfiei que usasse alguma outra substância e, após um ano e meio
de atendimento, Fábio conseguiu revelar suas experiências com crack e cocaína.
Fiquei estarrecido. Passamos a tratar do assunto com bastante frequência e, apesar
da vergonha e da sensação de “fim de linha”, começou a mostrar maior preo­
cupação e pedir instruções para interromper o uso. Um passo importante foi
conseguinnos incluir os pais nessa questão. Fábio contou que se sentiu aliviado.
Relatou seu envolvimento após ter usado numa noite. A partir de diversas conversas
em nossos encontros, chegou intoxicado e desesperado em casa, entregou pedras
e cachimbo para a mãe e afirmou precisar de ajuda. Os pais ficaram aos franga -
lhos. Fábio e os pais, minimamente orientados, começaram a praticar algumas
estratégias para a interrupção do uso de drogas. Conseguiu se manter seis meses
sem o consumo de drogas, e apresentou síndrome de abstinência bastante grave.
Determinado dia, os pais resolveram vasculhar seu quarto e encontraram crack.
Chamaram o resgate, mas Fábio conseguiu fugir.
Sua situação estava ficando cada vez mais grave. Fui atendê-lo no dia
seguinte e tentei propor o encaminhamento para um ambulatório especializado
em crack. Preocupado e acuado, ele aceitou. Preparei o encaminhamento com a
ajuda dos amigos desse serviço, e, surpreendentemente, ele conseguiu ingressar no
tratamento.
Muitas coisas ocorreram a partir desse momento. Resumidamente, Fábio
resolveu sair de casa e foi morar com a namorada. Espantosamente, arrumou um
emprego. Sua saída toi traumática para ele e para os pais. Estava satisfeito com
a atitude, porém começou a se desorganizar demais. Acabou por ser internado
compulsoriamente em uma comunidade terapêutica em outro estado, e o A T foi
interrompido.

171
Acompanhamento terapêutico

Nunca houve paz. Com Fábio, sempre pairou um clima de urgência, algo
iminente, que certamente não dava para esperar e expunha sua turbulência
emocional interna constantemente. Creio que o A T operou uma função de reco­
nhecimento e de validação de suas demandas, fato que possivelmente o retirou
um pouco da experiência de estar louco, de desligamento e de vazio. Fábio era
frequentemente chamado de louco. Para ele, as coisas não duravam, e parte de
meu trabalho foi o de simplesmente — na verdade, nada simples — permanecer
em contato com ele.

Breve reflexão teórica

Nesta breve reflexão teórica, como o próprio título diz, não há a intenção de
apresentar extensa compreensão dos conceitos, mas de utilizá-los como suporte
para iluminar a experiência clínica. Desse modo, para refletir sobre a condição
emocional e as vivências com Fábio, lançarei mão do conceito de mãe morta
criado por Green (1980/1988) e entendido como uma metáfora independente
do luto pela morte real de um objeto. Esse autor apresenta as vicissitudes, para a
criança, decorrentes de um luto materno. Essa condição ocorre quando a criança,
após ter recebido por um período os primeiros cuidados suficientemente bons,
depara-se com o luto e o desinvestimento brutal da mãe. Isso é vivido pela
criança como uma catástrofe e provoca, além da perda do amor, uma perda de
sentido, pois ela não dispõe dos recursos para entender o que aconteceu. Muito
facilmente, por considerar-se como o centro do universo materno, a criança
poderá atribuir a decepção da mãe às consequências de suas pulsões dirigidas a
ela. Após sentir a medida de sua importância, por não conseguir tirar a mãe de
seu luto, e depois de ter lutado contra a angústia por meio de maneiras ativas,
como a agitação, a insônia ou os terrores noturnos, o eu da criança vai colocar em
ação uma série de defesas de outra ordem.
A primeira, e mais importante delas, é um movimento que tem duas dire­
ções: o desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com
a mãe morta. O desinvestimento, afetivo e representacional, constitui, segundo
Green, um assassinato psíquico do objeto, realizado sem ódio. Seu resultado é a

172
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

constituição de um buraco na trama de relações objetais com a mãe, que não


impede os investimentos periféricos, os quais ocorrem, da mesma maneira que
os cuidados matemos, de forma gelada, “sem que o coração esteja presente”. É a
relação com a morte que ocorreu pelas ausências da mãe nas primeiras atividades
—da criança —de conservação do objeto, que leva à formação de uma represen­
tação da ausência de representação. Nesse contexto, algumas mães desempenham
bem suas tarefas e seus cuidados, do ponto de vista técnico2. Porém, é necessário
enfatizar que a técnica não é primordial para a constituição psíquica e emocional de
uma criança. É possível realizar tecnicamente tarefas de forma adequada, sem que
haja uma presença singular e implicada nesse cuidado.
Outra vertente do desinvestimento é uma identificação segundo um modo
primitivo com o objeto. Essa identificação em espelho, numa espécie de mimetismo,
garante a posse do objeto, tomando-se uma parte do eu da criança não como ele,
mas ele mesmo, ao não poder mais tê-lo. No desinvestimento, ocorre um enquista-
mento do objeto e um apagamento de suas marcas, do que lhe é próprio. O autor
aponta que nos pacientes nos quais identifica o complexo da mãe morta, por trás
de queixas que eles trazem sobre suas mães, o que se perfila implicitamente é a
sombra de sua ausência. E sugere que a atitude clássica do terapeuta corre o risco
de repetir, por meio do silêncio, a frieza e o vazio da relação que tiveram com a
mãe morta. Ele propõe, ao contrário, que o analista funcione como um objeto
vivo e interessado, acordado e testemunhando sua vitalidade por meio dos laços
associativos que comunica ao analisando, possibilidades privilegiadas no trabalho
de AT. É a experiência viva, sentir-se vivo e real, atuante no mundo com sua
singularidade que possibilita viver uma experiência criativa. Em contraposição à
mãe morta, encontrar um at presente com sua pessoalidade pode favorecer, em
algum nível, uma experiência de onipotência que, na concepção winnicottianna
(1975), corresponde à ilusão de encontrar aquilo que criou.
Ao pensar em Fábio, a experiência de onipotência, que não pôde ser vivida
precocemente, com sua mãe biológica e em sua adoção, o impossibilitou de encon-
trar/criar seu lugar no mundo. Creio que ele perdeu duas mães. Com o at, ele

2 Técnica é um bem fazer que independe de quem faz. Duas pessoas realizando a mesma tarefa, utilizando a
técnica corretamente, chegarão ao mesmo resultado. Isso pode ser útil em outros campos, quando não são
necessidades emocionais que estão em jogo.

173
Acompanhamento terapêutico

tentou (re)viver uma experiência de ilusão e onipotência (Winnicott, 1975) em


diversos momentos. Entre eles, seu interesse por temas místicos, jogos, leituras,
andanças pela cidade, pedidos e a convocação do at como participante ativo e
interessado. Por outro lado, seu envolvimento desmesurado e seus mergulhos no
estudo em assuntos quase incompreensíveis e de alta complexidade marcavam sua
impossibilidade de brincar (Winnicott, 1975) e um aprisionamento na obrigação
de pensar, que Winnicott (1960/1983) nomeou de intelecto dissociado. Essa ativi­
dade intelectual supervalorizada corresponde também a uma tentativa de dominar
a situação traumática, tendo, dessa forma, uma posição ativa diante do trauma.
Fábio esforçava-se em seu desempenho intelectual numa atitude autorreparadora
e visava, segundo Green (1980/1988), a “superar o desespero da perda do seio pela
criação de um seio remendado, pedaço de tecido cognitivo destinado a mascarar
o buraco do desinvestimento, enquanto o ódio secundário e a excitação erótica
formigam na borda do abismo vazio” (p. 151).
Penso que a primeira e fundamental tarefa do trabalho clínico com Fábio
foi tentar refazer, na relação transferenciai, o delicado caminho do investimento
narcísico traumaticamente interrompido. A partir da proposta clínica de Green e
Winnicott, podemos afimiar que a presença, balizada pelas necessidades e fragili-
dades do paciente, oferece a condição para que haja uma gradual desidentificação
com o vazio. É apenas com a presença e a constância de alguém devotado que um
encontro verdadeiro e significativo pode ser inaugurado.
Como consequências dessa marca inicial, impressa pelo complexo da mãe
morta e a consequente experiência de vazio, Green (1980/1988) apresenta a
perda de sentido, o desencadeamento de um ódio secundário, a excitação auto-
erótica e, por fim, a busca de um sentido perdido que estrutura o desenvolvimento
precoce das capacidades fantasmáticas e intelectuais do eu.
Em Fábio podemos perceber a presença do complexo da mãe morta em suas
queixas ligadas à sobrevivência e à identidade, sua contusão em relação aos inte­
resses, seu sentimento de superficialidade. Ele era inconstante, visitando emoções
opostas com muita rapidez e velocidade; sentia-se uma “alma perdida”, mencio­
nava um enorme vazio, vagava pela cidade sem muita ligação com o mundo e sem
muita esperança de ser encontrado. A busca de um sentido perdido que estrutura

174
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

o desenvolvimento precoce das capacidades iantasmáticas e intelectuais do eu é


justamente a consequência para essa talta de sentido.
As intensidades vividas pelo paciente não podiam ser contidas por represen­
tações ou pensamentos. O sentido era algo almejado, porém bastante distante
para Fábio, apesar de ter muita capacidade intelectual. Contratransferencial-
mente, o terapeuta vivenciava a talta de sentido e de referências, e era difícil
lembrar detalhes dos acontecimentos e as histórias vividas com o paciente: o que
ticavam eram as sensações e os afetos intensos. Apesar da necessidade de fanta­
siar e intelectualizar serem recursos defensivos típicos da adolescência (Tardivo,
2007), Fábio apresentava soluções megalomaníacas para suas limitações e impos-
sibilidades diante da impermeabilidade e dos ideais dos pais. Green (1980/1988)
aborda essa solução megalomaníaca decorrente do complexo de mãe morta:

Mesmo imaginando a inversão da situação pelo sujeito que se atribui, numa


megalomania negativa, a responsabilidade da mutação, há uma distância
impreenchível entre a falta que o sujeito se recriminaria de ter cometido e
a intensidade da reação materna. No máximo, ele poderia pensar que essa
falta está ligada à sua maneira de ser mais do que a algum desejo interdito;
de fato, lhe é interdito ser. (p. 250)

Nesse caso, a megalomania de Fábio buscava compensar a falha suposta­


mente cometida com feitos grandiosos e valores inalcançáveis. Tentava colocar-se
como alguém com valor suficiente para ser aceito e amado pelos pais, uma
correção do que ele era. Isso pode ser compreendido como uma tentativa de
reanimar a mãe morta, tomar-se interessante para ela, fazê-la sorrir, distraí-la e,
assim, ter algum valor reconhecido nesse interjogo narcísico. No entanto, justa­
mente por serem valores inalcançáveis, Fábio confirmava sua insuficiência. Fábio
agredia constantemente, reagindo à experiência de desprezo dos pais, ao mesmo
tempo que procurava incorporá-los e também atingi-los. Essa manifestação
do ódio secundário não era mais apenas um pedido de socorro, era também uma
tentativa de dominar os pais e vingar-se deles.
Uma manifestação evidente de sua excitação autoerótica é vivida pelo
paciente em sua relação com as drogas, pela busca de um prazer sensorial puro,
de acordo com Green (1980/1988), um prazer de órgão no limite, sem ternura,

175
i U \
Acompanhamento terapêutico

“sem piedade, que não necessariamente é acompanhado de fantasias sádicas, mas


permanece marcado por uma reticência a amar o objeto” (p. 250). O autor refere
que há uma dissociação precoce entre o corpo e a psique, da mesma forma que entre
a sensualidade e a ternura há um bloqueio do amor. Aponta que o objeto é procu­
rado pela sua capacidade de desencadear o gozo isolado de uma zona erógena
ou de várias, sem confluência num gozo compartilhado por dois objetos mais ou
menos totalizados. Fábio adere a um objeto inerte, inanimado, uma experiência
solitária e sem interferência de outro vivo numa relação.
Segundo Gurfinkel (2001), acerca da questão do vazio em relação à adicção,
o elemento a ser destacado é a transformação de um objeto destinado a ser um
meio de comunicação em um objeto que expressa a negação da separação. Este
último necessita ser hiperinvestido e continuamente reiterado, já que do outro
lado da relação estão o vazio e a ausência de um objeto vivo e significativo, ou
seja, lá se encontra uma mãe morta. O olhar precisa ser incessantemente desviado
dessa ponta vazia da relação e enfatizar a ligação em si mesmo, ou no objeto tran-
sicional tomado como objeto em si. Isso pode ocorrer para sustentar a negação
que defende a pessoa de uma queda no vazio e no que Winnicott chamou de
angústias impensáveis (1963/1994).
Certamente a adicção é um aspecto da vida psíquica de Fábio, mas sua expe­
riência não pode ser reduzida a isso. Creio que seu vazio é anterior ao encontro
com a droga. A partir de Winnicott (1975), é possível tomar a adicção como um
modelo fetichista que pode ser visto na perspectiva de uma patologia na área dos
fenômenos transicionais, no qual o uso estruturante do objeto (transicional) se
perverte. A função transicional surge do conceito desse autor de objeto transi­
cional, que tem como tarefa representar a mãe na ausência dela.
A psicanálise anterior a Winnicott propunha apenas duas áreas da exis­
tência humana, a realidade interna e a externa. Assim, uma terceira área da
experiência humana, que não é inteiramente subjetiva nem objetiva, passou a
ser considerada. De acordo com essa teoria, no início, o bebê está num mundo
subjetivo, sem diferenciação do eu e do não eu. Com o passar do tempo e com o
cuidado oferecido pela mãe sutícientemente boa e as experiências que este cuidado
propicia, o bebê vai adquirindo repertório de que tudo o que ele vive, todas as

176
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico

suas experiências, estão localizados em uma unidade. Sente-se cada vez mais uma
unidade, isto é integração e, ao mesmo tempo, tem a aquisição de tempo e espaço.
Isso acontece gradativamente e todo o tempo. Os objetos e os fenômenos transi-
cionais trazem a possibilidade de simbolização. Para Winnicott, o símbolo é e não
é, pois carrega tanto aspectos do subjetivo como da realidade compartilhada, ou
seja, de uma parte objetivamente percebida da realidade externa.
Creio que a história de adoção desse paciente e a suposta falta de investimento
pelos seus pais em um tempo muito arcaico possam ter instaurado a experiência de
vazio. Infelizmente, boa parte de seu percurso posterior confirma que o paciente
teve suas necessidades emocionais pouco reconhecidas ou atendidas devido à difi­
culdade de apropriação do filho “parcialmente adotado” pelos pais. Fábio sentia
não ser o objeto investido pelos pais, e tal objeto seria um filho idealizado que
experimentava não lhe dizer respeito. Certamente havia afetos positivos e espe­
rança de ambos os lados, porém uma constituição psíquica permeada por marcas
como estas, expostas neste capítulo, implicam necessidades bastante difíceis de
serem supridas, principalmente num percurso com tantos desencontros como o
dessa família.

177
Acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Green, A. (1980) A mãe morta. In: GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de


morte. São Paulo: Escuta, 1988.

Gurímkel, D. (2001). Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções. São Paulo: Casa do


Psicólogo.

Prado, A (1992). Poesia Reunida. São Paulo: Siciliano

Tardivo, L. S. L. P C. (2007). O adolescente e sofrimento emocional nos dias de hoje. São


Paulo: Vetor.

Winnicott, D. W. (1960) Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In:


Winnicott, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.

Winnicott, D. W. (1963) O medo do colapso. In: Winnicott, C. Shephard, R. (Orgs.).


Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

178
Clariceando o acompanhamento
terapêutico1

Darúela Delia Torre

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência


que só se abriría quando ela fosse uma mulher. Ele,
com sua natureza aprisionada [...]
(Lispector, 1987, p. 60)

Introdução

“Clariceando o acompanhamento terapêutico” é o nosso encontro. Gostaria


de conversar sobre o lugar da literatura como possibilidade de intervenção na
experiência do Acompanhamento Terapêutico (AT). A literatura pode ser
um meio pelo qual acompanhado e acompanhante têm a possibilidade de se
encontrar em suas singularidades. A literatura abre as fronteiras para que o sofri­
mento humano se coloque em movimento e, desse modo, revela os elementos
que compõem a semântica pessoal de detemrinado sujeito. Muitas vezes esses
elementos estão enclausurados, à espera de alguém que possa acolhê-los, reco­
nhecê-los, emprestar-lhes sentidos. Há muitos caminhos que se podem percorrer
a fim de colocar as questões do sofrimento humano em devir, e um deles pode ser a
literatura.

1 Este texto é resultado de aula ministrada pela autora em 23 de setembro de 2009, no Departamento de
Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). No início da aula, os alunos assistiram ao audiovi­
sual “Tentação”, conto de Clarice Lispector, narrado pela atriz Aracy Balabanian (disponível em, http://www.
youtube.com/watch3v=9jpxcIxyNy8). Agradeço ao professor Andrés Eduardo Aguirre Antúnez o convite.
Acompanhamento terapêutico

Durante a experiência de A T tivemos, acompanhado e acompanhante, a


oportunidade de descobrir a literatura como meio de acessar a dor que a paciente
vivenciava. E nessa ciranda tomamos Clarice Lispector pela mão e iniciamos o
percurso pela literatura.
Incluir a literatura e Clarice nessa dança não foi algo planejado. Brotou.
Nasceu do silêncio. Nasceu depois de muitos ensaios. Nasceu depois de muitos
encontros dominicais. Encontros que pediam um cuidado muito atento.
O AT, como o atendimento no consultório, sempre nos convoca a olharmos a
situação como única, singular, mas sem perdermos de vista o humano, aquilo que
habita em todos nós. No caso apresentado aqui, as questões da paciente clamavam
pelo holding. Diz Safra (1999, p. 84): “O holding ê o sustentar da criança, tanto
corporalmente, quanto no tempo. É a função que possibilita o estabelecimento da
integração do self.”
Além de sustentar a paciente, era fundamental o testemunho de sua passagem
por este mundo. Ser testemunha, segundo Safra (2006, p. 61), é ser chamado “ [...]
a legitimar aquilo que a pessoa tala e a sustentar o que é dito para que ela possa
se apropriar de um saber que carrega em si”. Portanto, o A T aconteceu como
sustentação e como testemunho do sofrimento.
Desse modo, será apresentada uma experiência de A T de mãos dadas com a
narrativa de Clarice Lispector e sob a perspectiva de Gilberto Satra.

“Será que foi na primavera?”

Era um domingo ensolarado, e eu me dirigia à casa de Lola. Durante o trajeto,


fiquei imaginando quem encontraria. A analista de Lola havia me talado sobre os
sintomas que sua paciente apresentava: compulsão, suicídio, malevolência, entre
outros. Desse modo, eu tinha uma vaga noção do mundo em que deveria mergu­
lhar para, de alguma forma, ajudá-la.
Na verdade, fui informada de que se tratava de uma mulher madura, nascida
na década de 1940, filha de intelectuais, viúva e de difícil trato. Tinha então
apenas dados, e insuficientes, para compor uma imagem de quem me aguardava.
Ou melhor, quem eu aguardava.

180
Clariceando o acompanhamento terapêutico

Ao chegar, esperei um instante antes de tocar a campainha, porque do apar­


tamento era possível ouvir uma melodia que somente os jovens são capazes de
escutar. Hesitei: “Que idade mesmo tem esta senhora que vou encontrar? Acho
que estou equivocada, devo ter entendido errado. Porque pessoas nascidas na
década de 1940 dificilmente ouvem esse tipo de música, talvez as de quarenta
anos mal suportem. Aos vinte, seria divertido”. Toquei.
Uma mulher de estatura pequena, muito magra, vestida de pijama, enfeitada
com delicados colares, abre a porta. Seu sorriso de boas-vindas associava-se a um
olhar assustado. Cumprimentamo-nos, entrei, e ela me conduziu ao lugar onde eu
deveria me sentar. Lola sentou-se em seu lugar preferido e ficou me observando.
E eu também a olhei atentamente.

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estancou


diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam. [...] Ele fremia suavemente,
sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava?
Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela
passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. (Lispector, 1987, p. 60)

Eu e Lola olhávamos uma para outra sem disfarçar a situação desconfortável.


Nós, desconhecidas, incógnitas, estranhas de nós mesmas, nos olhávamos. Assim
aconteceu em “Tentação”: a menina ruiva com soluço que estava sentada num
degrau faiscante da porta, sozinha e, de repente, lá vem ele, um bassê ruivo, lindo
e miserável, preso em sua natureza. Um a fitar o outro.
Quando os olhares não cabiam mais no silêncio daquela sala que cantava,
Lola levantou-se e ofereceu-me um café. Neste ínterim —tempo de buscar o café
—, mudei o foco de Lola para os arredores, observei atentamente o ambiente.
N a sala onde estávamos, onde a música continuava no mesmo volume,
havia muitas flores com arranjos enormes, uma mesa central cheia de pequenos
enfeites, um sofá se rasgando, duas cadeiras de apoio, uma estante carregada
de livros a ponto de cair, muitas fotos do marido que falecera, tudo isso mistu­
rado a uma massa de pó que me lembrava um lugar há muito desabitado.
Estou contando esses detalhes porque, antes de qualquer palavra emitida, Lola me
contava, através de sua casa, sobre si, era nesse lugar que ela estava —detalhes
desconhecidos até mesmo para ela.

181
Acompanhamento terapêutico

Lola voltou com o café, acendeu um cigarro, olhou-me com olhos assustados
e molhados pelas lágrimas, e disse: “Meu marido morreu... Ah [com aquele riso
que imita um sorriso, dentes à mostra], essas fotos são ele”. Então, Lola me apre­
sentou seu marido morto e nem mais uma palavra. Algo desvanecia. Escombros.
A sua expressão não mostrava nem dor nem saudade, apesar das lágrimas.
Ali, na minha frente, eu via uma menina cheia de ódio, que vestia um corpo de
quase setenta anos, que morava em uma casa esquecida, sozinha e perdida entre
objetos.
Lola havia muito fazia análise. Segundo sua analista, cada sessão parecia a
primeira —um impasse. Em razão disso, a analista ofereceu-lhe o AT.
No primeiro encontro, além da pouca conversa, Lola mostrou-me o restante
da casa. Fiquei impressionada. Parecia que tudo estava fora de lugar, como se
uma forte rajada de vento tivesse cruzado aqueles cômodos, deixando apenas
os enraizados, os móveis embutidos. Andávamos entre escombros, tomando o
cuidado para não nos perdermos, ao mesmo tempo que deveriamos evitar destruir
as provas deixadas pelo mau tempo.
Não sei dizer o número de peças de roupas que vi, mas posso contar que na
casa existiam cinco quartos, com armários de seis portas lotados de roupas, sem
contar aquelas que ficavam penduradas nas portas, nas araras, e aquelas deposi­
tadas em pilhas no chão. Nunca vi algo parecido, parecia um magazine onde não
se acha nada, porque não era dividido em departamentos, tudo estava mistu­
rado e, ao mesmo tempo, dissipado. Além disso, muitos objetos empoeirados,
quebrados e em desuso uniam-se confusamente às roupas. E, para meu espanto,
junto a isso ainda restavam os medicamentos, as seringas, os algodões e outros
utensílios usados durante o período em que o marido estivera doente.
Enquanto exploravamos os escombros deixados pelo “mistral” (vento forte e
violento que ocorre na França, lugar onde os familiares de Lola estudaram e lecio­
naram), Lola foi ficando cada vez mais frágil. Parecia que, a qualquer momento, se
desmancharia, abandonaria o corpo e se misturaria ao pó. Nesse momento, percebi
que eu deveria ficar muito atenta. Deveria ficar atenta para não provocar nenhuma
alteração naquele lugar, somente Lola podería apontar algum sinal entre as ruínas.
Ela estava agarrada àquele aterro. E eu? Lembrando-me da menina ruiva: “O que

182
Clarieeando o acompanhamento terapêutico

a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um
amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos” (Lispector, 1987, p. 59).
Lola retirou um cabide que estava pendurado na porta de um quartos e ali
se desenhou um corpo sem cabeça, sem mãos e sem pés, vestígios da passagem
tempo, a forma estava presa à porta pelo pó. Lola estava presa à vida pelo pó, na
porta.
Nas palavras de Safra (1999, p. 135):

Quando voltamos o nosso olhar para o self, temos de enfocar o acontecer


humano por meio da materialidade do mundo. Nessa perspectiva, cada objeto
tem importância em si. N ão porque, simplesmente, signifique algo, mas porque
abre a possibilidade de ser no mundo com os outros.

Novos encontros se seguiram. Frágeis encontros. E eu não podia perder


de vista aquilo que Lola me revelou em nosso primeiro passeio pelas ruínas de
sua morada: “cada objeto tem importância em si”. Safra (1999, p. 135) chama a
atenção para o fato de que o self está “ [...] na maneira como o homem organiza
a sonoridade, o tempo, o espaço, dentro da relação com outro significativo”.
Pensei: “Então, é aí que ela está”. Gradualmente e com muito jeito, aproximei-me
dela, e ela, desconfiada, aceitou-me. Mas deixemos bem claro: nada de conversa.
Em meio aos escombros, assistíamos à TV, tomávamos café, lanchávamos,
trocávamos olhares, alguns comentários sobre novela, sobre algum fato desta­
cado na manchete do jornal e eventualmente um passeio até a mercearia para
comprarmos cigarros.
Assim, os meses foram se passando. E eu precisava me manter resignada para,
em silêncio, testemunhar o cotidiano de Lola.
Muitos encontros dominicais se seguiram, e aos poucos eles foram se modi­
ficando. Passamos a explorar sua casa, seus objetos, suas coisas. Lola muda
um objeto de lugar, pergunta o que acho de outro, passa a observar outros e a
emitir algum comentário. Logo percebi que Lola estava me propondo que eu
a acompanhasse nessa revisitação e, com aquele sorriso sem alegria que os olhos
denunciavam, deu-me a tarefa de levar um vasinho quebrado até a lixeira. Bingo. “A
coisa é mensageira do Outro, mensageira do ser” , diz Safra (2004, p. 89). O vasinho

183
Acompanhamento terapêutico

quebrado, nessa situação, não era simplesmente um objeto sem valor que deveria
ser eliminado. O vasinho quebrado portava mensagens: Lola, de fato, convidou-me
para participar, mostrar-me. Nesse instante, fico tomada pela alegria e me lembro,
sem nenhum sussurro, de uma frase de Clarice Lispector (1996, p. 101): “espe­
rança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber.”
Eu, no fundo, sabia que isso podería vir a acontecer a qualquer momento,
tinha consciência de que essa ação ressonaria no mundo de Lola, era um risco. O
que aconteceria? A única certeza nesse momento é de que Lola tinha pressa em
começar tal “reconstrução”.
Iniciamos o que seria uma longa jornada. Como eu disse, parecia uma casa há
muito abandonada. Nas portas onde cabides de roupas estavam pendurados, havia
a marca do tempo, o passado atualizado na forma, a forma presa à porta pelo pó. Um
tempo sem fim. Safra (2004, p. 80) afirma: “O gesto que não encontra o Outro
joga o ser humano na experiência do tempo infinito”. E continua: “A experiência
do tempo infinito é vivida como quantidade insuportável, agonia impensável”.
Tiramos os cabides de uma das portas do armário, abrimos, e, agora já sem
surpresa, os sacos de roupas despencaram para fora, e mais um monte fez-se no
chão. Lentamente recolhemos as roupas que se espalharam com o rompimento
dos sacos e depois abrimos aqueles que porventura não estouraram.
Eram peças de inverno misturadas com as de verão e com numeração variada.
Havia PE E M, G e GG. Em poucas palavras, disse-me que todas as peças eram
dela.
Teve anorexia, PE Melhorou, P e M. Engordou, G. Virou obesa, obesa
mórbida, GG. Fez cirurgia de redução de estômago, emagreceu. Engordou.
Emagreceu de novo. Engordou. No momento, está muito magra, PE Seu corpo
não tinha sossego, essas alterações evidenciavam um profundo sofrimento, uma
busca incansável por si mesma. A imagem de sua corporeidade era mais ou menos
como os cabides pendurados há tanto tempo e que, ao serem retirados, deixaram
sua marca; o pó desenhava um corpo sem cabeça, sem braços e sem pernas. Desse
modo, era quase impossível alguém se alojar naquele corpo. Corpo estilhaçado.
No entanto, Lola estava lá, ansiando para encontrar as pegadas de alguém signi­
ficativo, ansiando existir na cabeça do outro, ansiando tomar o mundo e este, por

184
Clariceando o acompanhamento terapêutico

sua vez, ansioso por recebê-la, ansiando a possibilidade de atravessar a existência


e acontecer como ser humano. Não só sua variabilidade de tamanhos contribuía
para a quantidade de roupas, mas também sua desmedida necessidade de comprar.
Lola só comprava em lojas de alto padrão. Era excelente cliente. Bastava
chegar uma coleção nova, as vendedoras ligavam, e Lola ia, em disparada, às
compras. Comprava todas as cores de determinado modelo de roupa e, claro,
estourava o cartão de crédito. À medida que mexíamos nas roupas de seu maga­
zine, pude comprovar seu título de cliente VIE
Não comprava apenas roupas. Tinha verdadeiro fascínio por joias. Inúmeras
vezes adquiriu joias duplicadas, esquecia que já havia comprado ou porque tinha
um pequeno detalhe diferente da que possuía. Não comprava em qualquer
joalheria, preferia joias exclusivas e assinadas.
Não apenas de roupas e joias vivia Lola. Maquiagens, cosméticos e perfumes
eram também outro “investimento”. Sem contar sapatos, bolsas e utensílios domés­
ticos. Por exemplo, comprou uma lixeira para colocar sobre a pia da cozinha que
custou quase três mil reais, assinada pelo fulano de tal. Tentativas vãs de encontrar
o humano, tentativas vãs de encontrar um lugar especial na vida de alguém.
Voltando às roupas despencadas.
Olhavamos cada uma das peças e separavamos de acordo com seu gosto e
tamanho. Quando estávamos tenninando de arrumar tal seção, fomos surpreen­
didas por outro saco perdido entre os de roupas.
Lola ticou pálida, confusa, aquele ar de certa satisfação desapareceu imedia­
tamente de seu rosto. Sem pensar, entregou-me o saco e disse: “É para você.”
Peguei o saco e o abri. Não havia roupas. Continha sua “reserva técnica”,
palavras de Lola.
No saco, havia mais ou menos quinhentos comprimidos de benzodiazepínicos.
Então, atirarei: “Este saco eu levarei comigo quando for embora”. Ela não disse
nem sequer uma palavra, embora tenha feito sinal afirmativo. Encerrado nosso
encontro, levei comigo sua “reserva técnica”. Naquele dia, ao voltar para mim,
levei comigo o prenuncio da morte. Porém, estava aliviada por ter encontrado
mais um pedaço de Lola, acho que fazia parte da cabeça. Era o anseio de existir.

185
Acompanhamento terapêutico

Novos encontros dominicais se seguiram. Pouco se falava; um comentário


aqui, outro acolá. Eu procurava ficar atenta aos seus movimentos, ritmos, gestos,
e a tudo aquilo que, de alguma maneira, pudesse rne apresentar às questões mais
originárias que atravessavam Lola. Entretanto, eu percebia que algo tinha se
modificado. Como uma mensagem jogada ao mar, eu abrira a garrafa (saco com
sua “reserva técnica”). Segredo revelado.
Agora prosseguíamos de mãos dadas. Eu, testemunha de sua dor e de seus
anseios, ela entregue.
Assim, em determinado dia, entre arrumações, Lola parou diante de um
quadro que havia muito repousava em sua sala. Tive a sensação de que ali, diante
do quadro, ela havia encontrado alguma referência sobre si mesma. O quadro
era bastante interessante, sobretudo a transparência do solo que denunciava
profundas raízes. Depois de longo silêncio, Lola, parada, imóvel, longe, e eu
parada, imóvel, atenta. Lola me olha, dá uma espécie de sorriso e com os olhos
muitos vivos e banhados por lágrimas pergunta: “Você já ouviu falar em fulano?”
Respondi: “Sim, ele foi amigo de Clarice Lispector, não é?” Lola continua: “Não
só da Clarice, mas da minha família.”
Lola não quis continuar a conversa. Olhou novamente para o quadro e disse:
“Faz tanto tempo que não leio Clarice... Sabe que me deu saudades?” A partir
desse comentário, algo brotou. Começamos a conversar sobre Clarice Lispector.
Falamos da vida da escritora, de seus livros, de seu sofrimento. Então, convidei
Lola para “claricear”. Juntas, e em voz alta, poderiamos ler algum texto da escri­
tora, sugeri. Aceitou. Sugeri ainda que ela escolhesse. Aceitou.
À medida que “clariceávamos”, Lola começou a contar sua história de vida.
O processo era mais ou menos assim: líamos um pequeno trecho de texto, e Lola
lembrava-se de alguma parte de sua história.

Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à


garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum
momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não
é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro. (Lispector, 1999, p. 158)

186
Clariceando o acompanhamento terapêutico
Mv
Lola é filha da intelectualidade da década de 1940, de grupo social de
destaque, de uma mãe que, por estar grávida dela, casa-se. Quando nasceu, não
houve comemorações. Afinal, seu nascimento podería ter sido um escândalo,
caso mãe e filha não permanecessem em reclusão. Porém, se alguém desco­
brisse, dir-se-ia que o bebê havia nascido de sete meses. Assim se inicia a vida
da pequena Lola. Ela nasceu no mês de julho, mas sua avó instituiu o mês de
setembro para comemorar seu aniversário. No entanto, Lola não foi registrada em
nenhuma dessas datas. Seu pai esqueceu-se de registrá-la. Em determinado dia,
enquanto passeava pela cidade com um amigo —aquele que pintou o quadro —,
deparou com um cartório e lembrou-se de que era preciso fazer o registro da filha,
o que aconteceu finalmente em outubro.

A partir de então, passou-se a comemorar o nascimento da menina em


outubro. A pequena Lola passou a vida acreditando que havia nascido na prima­
vera, mas havia pouco descobrira que é filha do inverno.

Depois de lermos “Felicidade clandestina” e “Tentação”, ela começou a


contar que passou sua iníância e adolescência tentando agradar os pais, sem
sucesso. Para o círculo social, seu pai mostrava-se orgulhoso de ter uma filha que
de tão jovem lia os grandes clássicos da literatura (assim como a personagem de
“Felicidade clandestina”) . Porém essa qualidade da filha era só uma medalha no
peito paterno, porque, na verdade, nunca tivera tempo para ela, nem sequer para
ver em quem estava se transformando aquela menina.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria


quando ela fosse uma mulher. Ele [um basset ruivo], com sua natureza aprisio­
nada. (Lispector, 1987, p. 60)

Lola não teve amiguinhos, estava sempre em um mundo à parte, isolada,


escondida entre livros. Quando estava com outras crianças, era apenas por
formalidade.

Nem amiguinho bicho teve em sua infância. Seu mundo estava fechado:
concentrou sua atenção na conquista dos pais, em ter um encontro significativo.
Em vão.

187
Acompanhamento terapêutico

A meninice foi um período difícil para a pequena, estava sempre em alerta por
causa da imanência de suicídio da mãe. Eram frequentes as tentativas, e em deter­
minado momento a mãe ensinou-lhe estratégias para o suicídio, caso precisasse.
Explicou que o melhor jeito era com medicamentos, e que já havia descoberto a
forma, disse a mãe: “Se você tomar muitos, te [sic] levarão para o hospital, farão
lavagem, e aí a tentativa fracassa. O mesmo serve para pouca quantidade. A gente
vai tentando até acertar”. Foi assim que na adolescência viveu seu pior momento.
Sua mãe acertou a dose letal.
Dessa maneira, as investidas de conquistar a mãe se esgotaram. Então, redo­
brou os esforços para conquistar o pai. Não conseguiu. Logo, seu pai se casou e a
nova mulher ocupou a atenção paterna.
Lola foi viver com seus avós, fez faculdade, casou-se. Não se pode dizer que
conquistou seu marido, apenas conviveu com ele.
Encontros clariceanos. Foi assim que Lola conseguiu contar sua história e
reposicionar elementos, revelando quais eram suas questões mais fundamentais.
Safra fala-nos que o encontro com o outro abre as portas para o aconteci­
mento humano. Esse outro pode ser uma pessoa, mas também pode ser fruto da
ação humana (literatura).
Essa menina-madura nos mostra fundamentalmente o seu sofrimento diante
do vivido. A casa com aparência de abandonada, em ruínas, não era apenas uma
forma de renúncia, de falta de cuidado, mas a imagem de quem estava jogada
na existência. As marcas deixadas pelo acúmulo de pó sinalizavam que a vida se
estancara, logo não se podia mexer, limpar o que o passado desenhou; a saída era
compor uma história e esperar que alguém, em algum momento, testemunhasse a
sua passagem por aqui.
No começo, fizeram Lola refém de preceitos morais —precondição para estar
no mundo, segundo normas familiares. Desse modo, valeram-se de regras sociais
para detenninar a chegada do bebê ao mundo, tentativa de enganar o destino -
nasceu em julho, comemora aniversário em setembro e é declarada cidadã em
outubro -, impondo-lhe a máscara, modo de se tomar pessoa como conceberam
os gregos. A partir desse modo de compreender o mundo e, consequentemente,
de agir sobre ele, surgiram os primeiros indicativos de que algo será predefmido.

188
Clariceando o acompanhamento terapêutico

O inédito, o próprio, o singular é posto de lado no horizonte da existência. Diz


Safra (2004, p. 65): “Ser Máscara é a condição em que o ser humano foi redu­
zido ao registro social. Ele, dessa fonna, é aprisionado na imanência dos códigos
sociais. A Máscara assinala a ausência de uma presença. Há uma experiência aqui
de um vazio existencial profundo.”
Além do aprisionamento na imanência dos códigos sociais, temos ainda a
perda do sentido de continuidade. Essa perda aparece, por exemplo, na varia­
bilidade de datas para seu nascimento. O que inicialmente se coloca como uma
quebra sequencial do tempo e no tempo, aparentemente sem consequências, é
uma experiência que põe em perigo o ser, ameaça com a dispersão de si, ameaça
a possibilidade de habitar um lugar. De acordo com Safra (1999, p. 87): “ [•••] a
falta de lugar é a falta da possibilidade de ter construído morada junto a alguém
significativo”.
Portanto, para o ser humano, a experiência de continuidade no tempo e a
possibilidade de ter um lugar no mundo, segundo Safra (1999), retiram-no do
vácuo da eternidade e do não-ser, e resgatam-no da angústia impensável. Tanto
a noção de tempo como a de espaço se instauram muito cedo na vida de uma
criança. Os cuidados com o corpo do bebê são, inicialmente, o cuidado do bebê.
Protegê-lo de ruídos, deslocá-lo com delicadeza, adaptar-se ao ritmo de sono e
mamadas é prover continuidade e confiança, qualidades indispensáveis para a
caminhada da pessoa pelo mundo e para que encontros significativos aconteçam.
É possível perceber que essas qualidades foram prejudicadas em Lola, pode-se
observar, com frequência, a ausência do outro em sua vida.
Então, a solidão é um fato.
Lola ficou guardada, e o pó acumulou-se sobre ela. Não podia ser apresentada
à comunidade, durante meses não existiu, tanto que seu registro de nascimento foi
feito ao acaso. Passou a vida tentando se inscrever no outro. Usou o intelecto para
tanto, os livros foram instrumentos para encontrar um lugar no mundo, na vida
dos pais. A literatura foi o meio que encontrou para se salvar do lugar nenhum.
Sempre que o sofrimento se tomava insustentável, tomava um livro ou ingeria
uma quantidade excessiva de medicamentos. A literatura, muitas vezes, a retirava
do buraco sem fim, das angústias impensáveis e então conseguia dar sentido às

189
Acompanhamento terapêutico

experiências, Lola encontrava um lugar. Diz Safra (2006, p. 131): “O homem não
é do mundo, está no mundo. Quando assinalo o fenômeno de lugar não me retiro
a um lugar espacial ou social, mas sim a uma posição a partir da qual o gesto se
realiza”. Assim, encontramos Clarice Lispector para nos auxiliar na busca pelo
biográfico, que sustenta junto às questões do sofrimento humano a passagem por
esta vida. Lola conseguiu, por meio da literatura, sobreviver.
O A T surge para Lola como uma possibilidade de viver experiências com
alguém. Como relatei inicialmente, eu não sabia quem iria encontrar, mas deixei
que ela me tomasse pela mão e me conduzisse para onde se encontravam suas
necessidades. Não utilizei nenhuma técnica, mas isso não significava que eu estava
desamparada. Eu estava amparada pela ética. E ética é reconhecer a pessoa em
sua singularidade e necessidades e, a partir disso, exercer determinadas funções e
ocupar posições que contribuam para o caminhar em direção ao devir.
Nessa ciranda, Gilberto Safra e Clarice Lispector deram-nos a possibilidade
de reposicionar as questões mais fundamentais da vida de Lola.
Lola e eu nos despedimos quando o inverno chegou.
Dois anos se passaram, recebo uma ligação. Do outro lado, alguém me informa
que a nossa menina-madura morrera havia alguns meses. Pensei: “Será que foi
na primavera?” Nunca soube. Afinal, quando Lola se despediu do mundo, preferi
ficar com a marca da primavera.

O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha.
Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas
coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em
jornais. (Lispector, 1994, p. 119-120)

190
Clariceando o acompanhamento terapêutico
M vi

Referências bibliográficas

Lispector, C. (1987). Tentação. In :______ . A legião estrangeira. São Paulo: Ática.

Lispector. (1994) Tempestade de almas. I n :______ . Onde estivestes de noite. Rio de


Janeiro: Francisco Alves.

Lispector. (1996). Uma esperança. In :______ . Felicidade clandestina. Rio de Janeiro:


Francisco Alves.

Lispector. (1999). Anunciação. In:______ . A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:


Rocco.

Saíra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.

Saíra, G. (2004). A pó-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras.

Saíra, G. (2006). Hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma


pessoal. São Paulo: Sobornost.

191
AT e ArTe

Sheila De Marchi

Este texto1 visa a expor uma experiência de sustentação no acompanhar


terapêutico de uma atividade na vida de pacientes com transtornos psiquiátricos,
cujas histórias estão marcadas por sucessivos rompimentos e descontinuidades.
A origem institucional dos pacientes que serão tratados é o Centro de Atenção
Psicossocial vinculado ao Hospital São Paulo e pertencente à Universidade Federal
de São Paulo (CAPS/UNIFESP). As pessoas atendidas são de baixa renda e neces­
sitam de acompanhamento de profissionais da saúde por sofrerem de distúrbios
psiquiátricos. Os profissionais do serviço trabalham em abordagem multiprofis-
sional composta por equipe fixa de psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais,
assistentes sociais, musicoterapeutas, enfermeiras, técnicos de enfermagem, e pela
equipe móvel de residentes de psiquiatria, especializandos em psicologia, serviço
social e terapia ocupacional. A assistência é realizada por períodos variados, em
regime intensivo (participam das atividades diariamente, durante o dia todo),
semi-intensivo (alguns dias da semana) ou ambulatorial (atendimentos esporá­
dicos em determinadas atividades e acompanhamento psiquiátrico).
Com a assistência oferecida, busca-se a melhora da maneira mais global
possível no que diz respeito à vida desses pacientes. Quando apresentam melhora
do quadro psiquiátrico, o CAPS realiza o encaminhamento externo para ativi­
dades baseadas nos interesses que cada paciente esboçou, ainda em tratamento,

1 Parte de uma pesquisa de mestrado que está sendo realizada na Universidade de São Paulo, com o apoio da
Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); Processo n. 2009/070030. Aprovado pelo
Comitê de Ética da USP em 26 de agosto de 2009, com anuência da coordenação do CAPS UNIFESP Orien­
tador: Prof. Dr. Andrés Eduardo Aguirre Antúnez.
Acompanhamento terapêutico

visando à ampliação de sua potencialidade inserida na rede social. No entanto,


observou-se que estes encaminhamentos não se mantinham. Ou o paciente não
dava continuidade à atividade, ou se matriculava, mas nunca comparecia, ou
ainda nem sequer chegava a ir aos locais indicados.

Início

Diante das dificuldades dos pacientes em tratamento em iniciar atividades


externas ao CAPS, ou de apresentarem uma intensificação da sua sintomatologia
quando mudavam para um regime de tratamento menos intenso, elaborou-se um
projeto que pudesse auxiliá-los na manutenção dessas atividades.
Os fatos relatados são comuns no processo de (re) socialização de pacientes
psicóticos e neuróticos graves devido à intensa transferência estabelecida com a
instituição que, de certa maneira, constitui-se num ambiente protegido, onde não
se tem muitas exigências (conforme relato dos próprios pacientes), tomando-se
“seu lar”. No entanto, nas observações, foi percebido que isso dificulta a inserção
e manutenção em novas atividades e locais que não fosse no CAPS.
Tal projeto foi elaborado em parceria com o Museu de Arte Moderna de
São Paulo (MAM), local em que são oferecidas oficinas diárias gratuitas, com a
duração de um ano, aberto à população por meio do Projeto “Igual Diferente”,
com diversas atividades ligadas à arte (pintura, escultura, desenho, fotografia,
reciclagem, entre outras). O intuito foi de apresentar-lhes o “mundo” da arte e
ensinar-lhes as técnicas relacionadas a cada modalidade. A oficina escolhida foi
a “Foto e Imagem”, ministrada por duas profissionais da área de artes plásticas e uma
fotógrafa, com aulas uma vez por semana com duração de duas horas cada aula.
Esse projeto foi coordenado por duas psicólogas recém-especialistas, inte­
grantes do CAPS e inicialmente supervisionado por uma terapeuta ocupacional
também dessa equipe de saúde do serviço.
Formamos dois grupos, em 2007 e 2008, com vinte e catorze participantes do
CAPS, respectivamente, com a presença das psicólogas. Foram acompanhados
alguns pacientes dos programas intensivo e semi-intensivo, que se encontravam

194
AT e ArTe

psiquicamente mais estáveis e tiveram o aval ou o encaminhamento por parte de


toda a equipe responsável pelo tratamento destes, e os que tiveram interesse em
participar, já que se tratava de um curso de longa duração. O convite direcio­
nava-se aos pacientes que apresentavam melhora sintomática, mas que ainda não
conseguiam apresentar melhora nas observações clínicas no que diz respeito à sua
qualidade de vida, à sua autonomia.
Em contato constante com as outras equipes do CAPS, e com a proximidade
com os pacientes, verificamos a necessidade de um trabalho com as famílias em
reuniões sistemáticas, pois mesmo diante das iniciativas positivas advindas dos
pacientes, suas famílias geralmente reagem com estresse e insegurança, prejudi­
cando tanto o desenvolvimento do tratamento como da vinculação externa. Com
isso, a todo momento buscou-se criar uma parceria com os familiares a fim de
integrá-los às conquistas dos pacientes, em vez de deixá-los sentindo-se amea­
çados por eles.
No entanto por que a parceria com o MAM? Por que utilizar a arte neste
projeto de expandir a rede social destes pacientes? A escolha pelo local deu-se pela
característica do trabalho realizado (aulas técnicas, e não um lugar de tratamento),
pela sensibilidade das professoras, que tratam os participantes como “aluno”
(independentemente de seu tratamento psiquiátrico), pela parceria próxima que
o MAM procura com as instituições, por ser geograficamente próximo ao CAPS
e por participarem pessoas de outras instituições.
Pensou-se que estar apenas no CAPS, por melhores que o ambiente e o
tratamento sejam, também os exclui de um convívio maior com a sociedade.
O trabalho aqui apresentado propõe o “conviver fora da instituição”, para vivem
ciar experiências outras em que o indivíduo não está em uma posição de paciente,
passivo, que recebe apenas tratamento.
Porém, a discussão diante da escolha pela arte é ampla, e será discutido um
pouco do mundo artístico com suas técnicas, estéticas e história.
Acredita-se que a experiência artística em si proporciona maior proximidade
com as fantasias que, integradas à arte, possibilitam maior autossustentação para
o crescimento pessoal. De acordo com Rollo May: “Fantasia é uma expressão
da realidade, e depois empurra-a a uma nova profundidade” (Rhyne, 2000).

195
Acompanhamento terapêutico

Acredita-se que esta experiência acarreta aumento de consciência, percepção


e criatividade, assim como um senso de identidade pessoal. Nesse processo
também se pode reconhecer “a conexão entre nós e os outros, e descobrir o que
ocorre com o nosso meio ambiente comum [...] não apenas a autorrealização,
mas também um aumento da capacidade de comunicação, compreensão, rela­
cionamento e compromisso com os outros” (Rhyne, p. 221). E a comunicação,
compreensão, o relacionamento e compromisso com os outros também não fazem
parte do que se vivência numa rede social?
Outro fator relevante a ser exposto neste novo desafio é o trabalho tera­
pêutico de apoio e suporte necessário, a ser elaborado durante o curso dessas
oficinas. Considera-se que, para esses pacientes, a precariedade de compro­
misso e a autonomia de suas vidas influem na reafirmação da doença, impedem
conquistas criativas e prejudicam a qualidade de vida. Além do acompanhamento
do ambiente externo, houve implicitamente um espaço para se trabalhar questões
mais concretas acerca do compromisso: a importância do aviso caso necessitassem
faltar, a necessidade de arcar com as responsabilidades perante o grupo, o horário,
além da grande atenção voltada à intolerância e ao desconforto que constante­
mente surgem nessas situações e que podem motivar o abandono.

Sustentação

Pela dificuldade dos pacientes em chegar ao MAM e em sustentar a atividade


ou o curso como um todo, as psicólogas os acompanhavam semanalmente tanto
no trajeto como no decorrer das aulas, porque sabia-se que isso poderia possibilitar
uma abertura para a exposição de suas expectativas e seus anseios diante do que
não lhes é comum, e que a vinculação a um novo ambiente exige muito cuidado
e suporte. Pensou-se também em criar possibilidades de conhecer as dificuldades e
os anseios dos pacientes por meio do entrar em contato com o incomum em seu
cotidiano, podendo assim auxiliá-los a dar mais suporte em outras atividades que
venham a ter na vida.
No princípio, as idas ao MAM e o retomo ao CAPS deram-se de maneira mais
protegida, mas progressivamente foram sendo repensadas: inicialmente o percurso

196
AT e ArTe

de ida e volta era leito com o transporte fornecido pelo hospital e acompanhado por
coordenadoras do grupo. Gradativamente o transporte foi sendo modificado pelo
transporte público, havendo a possibilidade de os pacientes optarem pelo percurso
desejado, de acordo com a própria conveniência, encontrando-se no local da aula
com as coordenadoras.
Considera-se que esses processos proporcionam desenvolvimento de compro­
misso e autonomia. Cada participante podería repensar seu horário, sem deixar
de comparecer ao compromisso e, assim, construir, progressivamente a própria
autonomia. Esse percurso se assegurou na continência do acompanhamento e da
permanência deste na construção da possível nova conduta. Isso pode ser visto
em muitos momentos de resistência em dar continuidade ao curso, mas não por
não gostar, e sim por “preguiça”; por não querer fazer o trajeto; porque “estava
com cara de que iria chover”; por achar que não fez um bom trabalho na semana
anterior, entre outras tantas, que, devido à possibilidade desse acompanhamento,
eles se sentiam, de alguma forma, seguros de que no final da “conversa” com as
coordenadoras e com o incentivo dos outros pacientes, os que estavam resistentes
acabariam cedendo.
Com esses cuidados, pensou-se em estabelecer um ambiente que favorecesse
o amadurecimento e a independência dos pacientes, mas sabendo que anterior­
mente seria necessária uma presença mais constante, cuidadosa e, por vezes, até
mesmo fusional, dependendo das necessidades e características de cada um deles.
Winnicott (2000), reconhecendo os fatores hereditários e biológicos, postula
que o distúrbio mental tem base psicológica, emocional, cujo desenvolvimento é
bastante influenciado pelo ambiente onde o bebê está inserido. “A saúde mental
do ser humano tem suas bases assentadas na primeira infância pela mãe, que
fornece um meio ambiente onde os processos complexos mais essenciais no eu do
bebê conseguem completar-se” (p. 236).
O autor vincula clinicamente o desenvolvimento da criança e os fenômenos
psiquiátricos, assim como os cuidados ministrados na infância e o cuidado adequado
aos doentes mentais. Com isso, pode-se relacionar três coisas que acontecem no
decorrer do desenvolvimento do bebê (contato com a realidade, integração da
personalidade e percepção do corpo) com sintomas psiquiátricos (perda de contato
com a realidade e do senso de realidade, desintegração e despersonalização).

197
Acompanhamento terapêutico

O ambiente é tão vitalmente essencial nessa tenra idade que nos sentimos
conduzidos à inesperada conclusão de que a esquizofrenia é uma espécie de
doença provocada por uma deficiência ambiental, visto que um ambiente
perfeito no início pode, ao menos teoricamente, ser percebido como capaz
de permitir que o bebê realize o desenvolvimento emocional ou mental
primário, o qual o predispõe a um desenvolvimento subsequente e assim à
saúde mental pela vida afora. (Winnicott, 2000, p. 239)

No entanto, esse ambiente suficientemente bom que as acompanhantes


buscaram estabelecer não se deu em algum ambiente físico propriamente, mas
em vários, como os espaços onde se encontravam com os pacientes no CAPS, no
MAM, no transporte, na rua. Ou seja, esse ambiente se deu na relação. Não era
externo, nem interno. Era no encontro das acompanhantes com os pacientes.
Mesmo sendo uma atividade em que a prioridade é o ensino técnico e a
história artística a priori, pode-se observar que, assim como o trajeto (acompa­
nhado pelas psicólogas ou não), o usufruto do MAM e as aulas lá ministradas
poderíam trazer benefícios secundários ao da aprendizagem da técnica artística.
O MAM mostrou-se um espaço potencial para que o indivíduo pudesse vivenciar
o contato com o outro e ser correspondido por ele, as aulas foram realizadas em
projetos grupais e individuais, com pessoas que lhes eram conhecidas e desco­
nhecidas. Mas, acima de tudo, eram contatos com pessoas, não importando se
tinham ou não algum transtorno psiquiátrico. Algumas vezes alguns pacientes
verbalizaram: “Sabe uma coisa que é legal também? É que vocês [psicólogas] aqui
são alunas como a gente.”
Percebe-se a importância de o A T se colocar ao lado do acompanhado, de se
relacionar com a pessoa, e não somente com seus sintomas, com seus problemas,
pois isso o ajuda a se constituir enquanto ser humano, enquanto indivíduo como
um todo, abrindo possibilidade para que ele possa corresponder a isso em vez de se
colocar apenas no papel de paciente passivo, que só tem que “receber do mundo”.
De acordo com Safra (2004), a presença do outro é fundamental para o ser
humano, o outro que o recepcione no mundo e que lhe oferte cuidado, que lhe
possibilite o estabelecimento do self.
Para a constituição do self de um indivíduo, é preciso muito do outro, do olhar,
da recepção ao mundo, das atitudes do outro, para que ele consiga se diferenciar,

198
AT e ArTe
Mv
tendo em vista que “desde sempre o ser humano é com o Outro2. Se o rosto do Outro
não pode ser encontrado como acolhida ao mundo humano, a condição originária
aparece como sofrimento infinito, agonia do anseio pelo Outro” (Safra, 2004, p. 73).

Importância psíquica da oficina “Foto e Imagem”

Nesse contexto, a oficina não somente oferece aprendizagem de técnicas foto­


gráficas, mas também apreensão da arte, já que nela fazíamos várias outras atividades
relacionadas à arte, como pinturas, xilogravuras, colagens, filmes, aquarela etc.
Visitávamos exposições, o que se tomava material de trabalho com a fotografia.
Portanto, a fotografia é entendida aqui como uma expressão artística.
Exemplificando algumas questões psicológicas que podem ser trabalhadas e
que são intrínsecas quando se lida com a arte, em algumas atividades na oficina
“Foto e Imagem”, onde o propósito é se retratar, retratar o outro, por vezes traba­
lhar graficamente com o material produzido, pode-se observar que favorece aos
participantes o contato com a própria imagem e a autoimagem, que comumente
são apresentadas de maneira primária e prejudicada pelos pacientes. O fato de
as professoras também comunicarem muito a importância do pensar em como
transpor uma ideia para a fotografia e obter a mensagem desejada, juntamente
com a técnica ensinada, podemos pensar no favorecimento do aumento de cons­
ciência, percepção, criatividade e do senso de identidade pessoal.
Há também a possibilidade de comunicação “indireta”, não oral, por meio
da arte, sendo via de acesso à dimensão psíquica desses pacientes. Por meio da
arte, pode-se evidenciar sensações, descritas por Safra (2005), como a organi­
zação subjetiva do tempo, do espaço, da corporeidade, da sonoridade, ajudando
o indivíduo a constituir o seu self. Isso é importante tendo em vista que a cons­
tituição sensorial parece ter sofrido prejuízos significativos diante da decorrência
das psicoses e neuroses graves.

2 O autor refere-se ao Outro em letra maiuscula como sendo o outro compreendido como Sobornost, que implica
ao mesmo tempo o contemporâneo, os ascendentes, os descendentes, a coisa, a Natureza, o mistério.

199
Acompanhamento terapêutico

Por meio da arte, o indivíduo pode expressar a criatividade que lhe é inerente
e, com ela, buscar o sentido de sua própria existência. Tem a oportunidade de comu­
nicar para o outro e para si suas emoções, seus sentimentos; e a possibilidade de
encontrar mais uma via de simbolização. Além disso, a arte pode ser vista como
um intermediador capaz de atingir aspectos do ser humano com que ele invaria­
velmente se depara e que podem lhe trazer um reconhecimento do sofrimento.
Para Winnicott (2000), a aceitação da realidade é um processo que realizado pelo
ser humano e que

[...] jamais se completa, que nenhum ser humano está livre da tensão de rela­
cionar a realidade interna à realidade externa, e que o alívio para esta tensão é
proporcionado pela área intermediária de experiências, a qual não é submetida
a questionamentos (arte, religião, etc.), (p. 329)

Por meio dessa criatividade que lhe é inerente, o indivíduo pode dar à sua
realidade externa um significado em que ele é o protagonista de sua história.
Winnicott (1975) coloca a criatividade como um “colorido de toda a atitude com
relação à realidade externa. É através da apercepção criativa, mais do que qual­
quer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (p. 95).

Complementando, essa criatividade deve ser do próprio indivíduo, deve ser


uma expressão de si, e não uma adaptação à realidade externa, pois a submissão
à realidade externa, segundo Winnicott, “traz consigo um sentido de inutilidade
e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver a
vida. [...] como se o indivíduo estivesse preso à criatividade de outrem, ou de uma
máquina” (1975, p. 95). Com isso, essa maneira submissa de viver no mundo,
segundo o autor, é identificada como doença, em termos psiquiátricos.

A liberdade de criação dá-se no brincar, que é suplementar ao conceito psica-


nalítico de sublimação do instinto (Winnicott, 1975). A palavra brincar pode
remeter a algo infantil, imaturo, que somente as crianças fazem, e os indivíduos
que estão sendo tratados aqui são adultos. Mas o brincar aqui pode ser compre­
endido como concentração, o fazer coisas intencionalmente, o senso de humor, a
escolha de palavras, a arte. É algo natural.

200
AT e ArTe

Para tanto, o brincar “implica confiança e pertence ao espaço potencial exis­


tente entre (o que era a princípio) bebê e figura materna” (Winnicott, 1975, p.
76). O brincar tem um lugar e um tempo, ocorre no espaço potencial que não é o
mundo interno, tampouco é a realidade concreta e externa, está entre eles.
Pode-se pensar que as atividades plásticas artísticas, o ato de fotografar com
um objetivo estabelecido em aula, seria o que Winnicott denomina “brincar”,
quando a criatividade de cada participante pode ser “exercitada” e explorada.
Com essa capacidade de ser criativo, o indivíduo tem a possibilidade de desco­
brir o self. Em outras palavras, para ir ao encontro do self, o indivíduo necessita do
espaço potencial e da confiança no ambiente que fornece cuidados e segurança.
Isso vai ao encontro da premissa de Safra (2004), exposta antes, de que a presença
do outro pode ser um encontro pela acolhida ao mundo humano que favorece o
estabelecimento do self.
Por se tratar de um ambiente onde o que se preconiza é o aprendizado
técnico da fotografia em si ou de outras técnicas relacionadas às artes plásticas,
e não a busca da razão de uma depressão, de um sentimento persecutório para
compreender a si mesmo, essa experiência acompanhada por terapeutas mostra-
-se bastante importante para auxiliar na busca pelos mais diversos sentidos para
a própria vida.
Winnicott (1975) afirma que:

O eu (self) realmente não pode ser encontrado no que é constituído com


produtos do corpo ou da mente, por valiosas que estas construções possam
ser em termos de beleza, perícia e impacto. Se o artista através de qualquer
forma de expressão está buscando o eu (sei/), então pode-se dizer que, com
toda probabilidade, já existe um certo fracasso para esse artista no campo do
viver geral criativo. A criação acabada nunca remedia a falta subjacente
do sentimento do eu (self). (p. 81)

201
Acompanhamento terapêutico

Resultados

O uso de um curso de arte para observação clínica pareceu um importante


coadjuvante terapêutico, pois verificaram-se visivelmente diferenças compor-
tamentais nos pacientes participantes no decorrer do curso. Mudanças essas
observadas no CAPS, tanto pelas coordenadoras do projeto como pelo restante
da equipe de saúde e pelos familiares, o que me faz pensar que esse evento, além
de toda terapêutica utilizada no CAPS, foi significativo para os pacientes parti­
cipantes. Mudanças como: (a) maior interação interpessoal; (b) pacientes que
pouco se expressavam verbalmente começaram a expressar opiniões, mesmo
que não fosse do consenso geral; (c) retorno aos estudos e ao trabalho depois de
anos de afastamento; (d) melhora no relacionamento familiar descrita pelos pais;
e (e) aumento do interesse por atividades sociais.
Organizar um grupo e ir ao cinema à noite, dar continuidade a um curso de
um ano, chamar um amigo para ir ao parque, entrar em uma universidade pública
podem parecer coisas rotineiras, que todos fazem. No entanto, para esses pacientes
marcados por muitas rupturas na vida, por muitos comentários como “Não posso”
ou “Não consigo porque sou doente”, são grandes conquistas que lhes trazem um
maior bem-estar, que lhes colocam no lugar de pessoas, de indivíduos.

Considerações finais

Acredita-se que, com a assistência do tratamento oferecido pelo CAPS e o


trabalho “indireto” da arte, o papel de A T das psicólogas, de acompanhar essas
pessoas, com toda a profundidade que esta palavra pode trazer, foi de fundamental
importância.

Pensa-se que o papel do at não ocorreu somente no momento do acompanha­


mento “tísico” por parte das psicólogas, seja no decorrer desse trajeto, seja durante
as aulas ou até mesmo no ambiente do CAPS, mas o AT iniciou-se desde a elabo­
ração do projeto, quando se pensou no propósito do grupo, do lugar, da atividade,
na interação com o restante da equipe do CAPS, na demonstração da importância

202
AT e ArTe

da inclusão da família, na inclusão de sua história prévia já conhecida e acompa­


nhada no período que ficávamos no CAPS e participávamos de suas atividades.
Em outras palavras, o at deve ver seu acompanhado de maneira global, e não
apenas no decorrer do que acontece durante o período em que estão juntos.
Bion (2000) refere-se ao analista, que pode servir para o at. Esse psicana­
lista discorre sobre a importância da interação que o analista {at) deve ter com
seu analisando {acompanhado) , da franqueza que aquele deve ter com ele mesmo.
Propõe um ir além do objetivo, do padronizado, das palavras, levando em conta
o que o analista sentiu diante do paciente, e lhe dá liberdade de entrar em contato
com o sentir. Ele afirma que analista (at)

[...] não é alguém que engane seus olhos, que o leve a pensar que exista uma
árvore ali quando não há nenhuma; mas alguém que o faça ver que ali de fato
há uma árvore com raízes, ainda que estas estejam subterrâneas, (p. 6)

203
Acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Bion, W. R. (2000). Seminário realizado em Paris, em 10 de julho de 1978. Transcrição


de Francesca Bion, setembro de 1999. Trad. de Wellington Dantas (Spag-RJ), abril.
Sociedade Psicanalítica Gradiva.

Rhyne, J. (2000). Arte e Gestalt - Padrões que convergem. São Paulo: Summus.

Safra, G. (2005). A Face Estética do Selí - Teoria e clínica. Aparecida, SP: Idéias &
Letras: São Paulo: Unimarco Editora.

Safra, G. (2004). A poética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias &. Letras.
(Coleção Psicanálise Século I.)

Safra, G. (2006). Hermenêutica na Situação Clínica: O desvelar da dingularidade pelo


idioma pessoal. São Paulo: Sobornost.

Winnicott, D.W. (1975). O brincar e a realidade. Tradução de José Octávio de Aguiar


Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D.W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: Estudos sobre a teoria


do desenvolvimento emocional. Tradução de Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto
Alegre: Artmed.

Winnicott, D.W. (2000). Da Pediatria à Psicanálise - obras escolhidas. Tradução de


Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago.

204
Por onde anda o acompanhante
terapêutico

Tânia Possani

Este texto pretende apresentar parte de meu percurso pela clínica do Acom­
panhamento Terapêutico (AT) e, por meio dele, vislumbrar um aspecto que
compõe a ética dessa clínica: a condição empática do ser humano. Apresentarei,
assim, algumas vinhetas clínicas que me são paradigmáticas dessa condição: o
lugar de encontro, onde o eu e o outro se revelam.

Caminhos do acompanhante terapêutico

O A T apareceu como um lugar de vida para mim, onde pude encontrar um


lugar para mim, para minha linguagem (idioma pessoal)1, onde pude experi­
mentar e criar, por meio da minha experiência, um início de teorização. Não é

um lugar de reprodução ou de aplicação de técnicas e teorias preconcebidas.


Posteriormente, reconheci que essa poderia ser uma postura clínica e, por isso,
considero-me acompanhante terapêutica (at) mesmo no consultório.
Coincidentemente, meu primeiro contato com o A T deu-se no Lugar de
Vida - a Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida (LV), em 2001, meu segundo ano
de graduação. Na época, o LV consistia um laboratório do Instituto de Psico­
logia da USF) que tem como referência teórica Lacan, e que atendia crianças com

Este termo aparece na obra de Safra (2006).


Acompanhamento terapêutico

diagnóstico de DGD (distúrbios globais de desenvolvimento), entendido pela


psicanálise como o autismo e a psicose.
Eu era estagiária em uma pesquisa promovida por esse laboratório sobre os
efeitos do tratamento na circulação social das crianças. As discussões giravam
em torno do conceito de laço social e das possibilidades e impossibilidades de se
realizar pesquisa em psicanálise. Na prática com as crianças, eu as acompanhava
em passeios pelo campus da USE Nesse primeiro momento, eu já ouvira o termo
acompanhante terapêutico, mesmo que ainda não o conhecesse, e, então, passei a
entender que o que eu realizava era um AT, o qual se definia como “sair na rua
com o paciente”. Permaneci no Lugar de Vida durante toda a minha graduação, e
cheguei a participar dos grupos em sala, além da prática dos passeios.
Foi nessa época que formulei a questão que tem norteado minha investi­
gação e prática clínica, obtida por meio de uma experiência muito marcante que
vivi. Havia uma menina no grupo, a Amanda, diagnosticada com autismo. Essa
menina ficava atônica. Sempre sentada, não participava de nenhuma atividade,
não fazia nenhum contato e não talava. Eram muito comentados o desinvesti-
mento e a pobreza simbólica de Amanda.
Um dia, exausta, sentei-me ao lado dela. Ali, ao seu lado, por um segundo,
retirei-me, ausentei-me. Dei-me conta, depois, que tal qual ela, eu estava
sentada, olhando para o nada, na mesma posição, e com aquele “olhar que atra­
vessa” (como diziam). Nesse segundo de “ausência”, ela mordeu o meu braço.
Uma mordida muito forte, e não queria largar. Doeu muito! A outra profissional
interveio para afastá-la de mim. Eu tiquei muito assustada.
Eu saí de lá e fui chorar. Fiquei muito mal durante dois dias, até ir à análise e
contar o ocorrido, dizendo não entender o que estava acontecendo comigo, por
que eu estava tão triste. Meu analista olhou para mim e calmamente disse: “O que
aconteceu foi uma comunicação! Vocês se comunicaram”. E desde então, eu sigo
com a questão: que comunicação era essa?
Conforme meu contato com as crianças se intensificava, também se intensi­
ficava meu desencontro com a teorização que eu desenvolvia até então, pois nela
não cabia meu corpo. Em um episódio do estágio, fiquei presa pelos cabelos por
um menino de sete anos, que também não falava e sempre tentava sair pela janela

206
Por onde anda o acompanhante terapêutico
M vi
ou forçava a porta para sair da sala. Nesse dia, ele agarrou o meu cabelo com
desespero, sendo necessária muita ajuda para que ele me soltasse. Nessa situação,
eu senti o desespero. O olhar daquela criança era o olhar do terror. Eu o segu­
rava (na verdade, ele me segurava pelos cabelos) como se ele fosse cair. Era uma
questão de vida ou morte. E, diante disso, abriram-lhe a porta, e ele conseguiu
sair. Passei a olhar aquela criança e a questionar como eu podería realizar o que me
propunha (oferta de significantes para o estabelecimento de laço social, para reto­
mada da estruturação simbólica etc.), se eu não emprestasse meu corpo à criança,
se o terror vivido por mim e conhecido visceralmente não tivesse validade. Afinal,
que comunicação era essa?
O AT possibilitou que eu levasse adiante esses questionamentos por aparecer
como um espaço ainda não definido, “fora da lei”, distante dos modelos de aten­
dimento que eu acreditava ter de seguir. No AT, todas as técnicas psicanalíticas
podiam ser revistas: pennaneciam ou eram reposicionadas, mas não eram apriori. Da
mesma fonna que os corpos estão concretamente reposicionados a cada encontro,
todas as construções teóricas também aparecem desalojadas à primeira vista.
A experiência como at começou a ser elaborada num curso livre de mesmo
tema2, que realizei durante o último ano da graduação. Desde então, sigo por esses
campos.
Na bibliografia que conheci sobre o A T é recorrente o texto escrito em primeira
pessoa e, quase em sua totalidade, o autor revela-se claramente. Mesmo com
o uso de conceitos e termos técnicos, há sempre uma rememoração, a descrição
de um atendimento em que o acompanhante é incluído com suas sensações e seus
pensamentos. Acredito que isso revele uma das características fundamentais desse
trabalho, que é a impossibilidade de ocultar a “pessoalidade” do acompanhante.
Embora esse ocultamento nunca seja possível, ele é buscado, muitas vezes, em
decorrência dos pressupostos teóricos que sustentam as práticas terapêuticas.
No sentido oposto desse “ocultamento”, cito uma experiência ocorrida no AT
de Roberta, uma mulher de cinquenta anos. Inicialmente, eu marcava de encontra­
da em sua casa duas vezes por semana, porém, durante o primeiro mês, passei todo

2Curso ministrado por Alexandre Maduenho e Joana Tarraf, cujos moldes sigo atualmente no curso que ministro
com minha equipe (HabitAT).

207
Acompanhamento terapêutico

o tempo do nosso encontro na calçada, diante do portão. Ligava duas vezes para
ela, deixava recados na secretária eletrônica, dizendo que estava ali e que a espe­
raria. E ligava novamente, dizendo que iria embora e voltaria na semana seguinte.
Até que um dia, após um mês aproximadamente, ela me recebeu, e nada comentou.
Ela estava num estado de descuido absurdo. Fumava sem parar. Todas as
roupas furadas pelo cigarro. Sem banho. Sem se alimentar. E tendo idéias delirantes
de que mataria seus filhos.
Em cinco anos de acompanhamento, além de sobreviver, eu a auxiliei na
busca de um médico psiquiatra que acertasse sua medicação e em quem nós
confiássemos (juntas, passamos por uns quatro médicos). Também conseguimos
alguém para estar todo dia em sua casa com ela e cuidar da limpeza, das refei­
ções e de sua medicação. As nossas conversas eram sempre sobre seu medo de
que acontecesse algo a seus filhos: ela me encarava o tempo todo e dizia “Estou
com medo”. E sempre me pedia para ficar mais tempo quando chegava o fim do
encontro, sendo muito difícil para nós a minha partida. Eu, geralmente, prolon­
gava o quanto podia, pois ficava muito condoída de sua solidão e de seu medo.
Quando encontramos o médico que reconheceu Roberta, ele indicou uma
internação para ela. Na clínica, eu conversei com a coordenadora, que me
perguntou o diagnóstico de Roberta. Eu lhe disse que os médicos não foram
unânimes quanto a isso e lhe descrevi algumas vivências, ao que ela me disse: “É um
caso de psicose. Senão, você seria muito mais significativa para ela. Ela não se refere
a você como quem compartilhou de todas essas vivências. Não há laço afetivo.”
Devo confessar que tiquei muito chateada com Roberta. Pensava que a havia
encontrado no fundo do poço e entrado lá para lhe fazer companhia. E tudo o que
construímos surgiu de lá. Eu não tinha idéias prontas, propostas pré-elaboradas.
Mas, passado o tempo de internação, eu reconsiderei aquela atimração da coorde­
nadora. Na verdade, eu sempre soube daquilo e, mais do que isso, sempre estive
ao lado de Roberta, porque pude me relacionar com ela em outros termos. Havia,
sim, muita troca afetiva (e efetiva), que exemplifico com um de nossos encontros.
A distância, pode-se ver que o atendimento de Roberta caminha, já que
concretizamos muitas mudanças necessárias. Porém o dia a dia é muito cansativo
e repetitivo. Assim, nesse atendimento que vou relatar, antes de encontrá-la, eu
já estava cansada. Nesse dia, uma hora antes do encontro com Roberta, eu havia

208
Por onde anda o acompanhante terapêutico fil
tido uma conversa com uma pessoa muito significativa de meu passado e que amo
muito. Nessa conversa eu havia desenterrado muitas experiências e feito o desdo­
bramento de muitas vivências passadas que permaneciam vivas e presentes em
mim. A imagem que fiz desse momento é a de que retirei “destroços que impediam
a fluidez de um rio que beirava o transbordamento”. Chorei muito e estava triste.
E assim cheguei à casa de Roberta: com o nariz escorrendo e vermelho, e com os
olhos inchados e vennelhos. Já cansada, pensei: “ela nem vai notar”. Entrei.
Como sempre, sentamos no quintal: ela fumando, olhou nos meus olhos. Eu
inicialmente desviei o olhar, constrangida, mas logo me reposicionei e a encarei.
Ficamos nos olhando, olhos nos olhos, em silêncio, por um cigarro inteiro. Eu via
seus olhos azuis lindos e, em sua profundidade, uma escuridão que me fazia conter
o choro. Uma beleza escondida naquele contorno sujo, descuidado.
E então aconteceu algo que nunca havia acontecido: os olhos de Roberta
marearam e ela me perguntou: “Será que eu fiz muita coisa errada na minha
vida?” Respirei fundo, espantada com a correspondência que eu experimen­
tara e lhe perguntei: “O que te faz pensar nisso?” Imaginando que ela me diria
“seu nariz vermelho”. E ela me contou o adoecimento de sua mãe, os momentos
difíceis das gravidezes, os momentos de ódio que teve do marido e dos familiares,
e interrompeu os relatos dizendo estar com medo de que matassem seus filhos.
Finalmente, conversamos sobre seu ódio, suas mágoas e culpas. Fiz colocações
óbvias das associações que ela apresentava.
E então, ela me disse que não sabia mais se o marido ainda gostava dela.
Abre-se, assim, o espaço para eu lhe contar uma conversa que tive com seu marido
havia dois anos: perguntei-lhe se ainda estava com a Roberta pelo fato de ter de
cuidar dela, e ele me respondeu: “Na minha vida há só a Roberta e sempre será a
Roberta. Não importa como ela esteja”. Ela, então, desaba em choro, eu a abraço,
e ela diz “Nossa, que alívio falar tudo isso”. Eu disse: “Eu vou”. E pela primeira vez
ela disse: “Está bom” . Ficamos uma hora juntas, como combinado.
Considero essa uma experiência de mutualidade3. Sinto que Roberta esperou-
-me habitar tal condição para usar o que meu corpo lhe apresentava, e, então,

3 Em seu artigo de 1969, Winnicott (1994) discorre sobre a experiência de mutualidade vivida entre a mãe e
seu bebê. Nessa experiência, o que está em jogo é o corpo, e a comunicação é nomeada como comunicação
silenciosa. A mãe reconhece as necessidades de seu bebê por adaptar-se a elas através do que Winnicott chama

209
Acompanhamento terapêutico

encontrar e organizar suas experiências correspondentes. Eu abrigava em meu


corpo aspectos até então esquecidos. Eu me apresentei integrada: estava triste,
estava ali com meu passado abrigado, com meu presente reposicionado. O meu
rio fluindo desembocou no dela, que, então, fez-se fluido também. Vivemos juntas a
fluidez. Ela recuperou um passado a partir de experiências que a entristeciam, que
se presentiticavam sem destecbo e se conformou. E, assim, tivemos um encontro,
uma experiência completa na qual o fim finalmente se apresentou.
Aqui, a corporeidade toi ponte. O que se falou, o que se elaborou e o que
se integrou deram-se a partir de uma comunicação empática. E a emparia, aqui,
revela-se como acontecimento “intersubjetivo”. A empatia não ocorre em mim
apenas. Quando a comunicação abriga a dimensão empática, ela se apresenta com
aspectos dos dois seres, dos dois corpos que se comunicam. Não é um fenômeno
unilateral. Há dois corpos que se empatizam, mesmo que apenas um seja cuidado
(o que é falso, pois os dois o são).
Há algo que é comunicado, que está além do discurso representacional.
E é tarefa do at abrir caminhos que permitam a passagem entre a racionalidade,
o discurso e essa vivência silenciosa —eis o paradoxo: tentar falar do silencioso.
Outra situação que ilustra o que estou apresentando foi vivida junto ao
paciente Bruno com quem eu me sentia perdida, e junto a quem eu me cobrava
uma compreensão mental, um planejamento de tratamento. Um adolescente
com diagnóstico de Asperger e com sintomas de TO C. Durante os encontros,
eu tentava investigá-lo, perguntando-lhe muita coisa, sentindo-me insistente e
impertinente. Eu também percebia que me irritava muito com suas repetições
de assuntos. Até que um dia, bem-humorada, dei-lhe um grande beijo no rosto de
despedida e um abraço (ele me cumprimentava com aperto de mão). Ele reagiu
com um olhar assustado, e, nesse momento, eu me lembro de sua mania em lavar o
corpo e da “negação” de sua sexualidade —sempre que tentei abordar o assunto de
namoradas, de meninas, ele dizia que só pensaria nisso com 21 anos. No entanto, no
momento seguinte ao susto, ele expressou um leve sorriso, ao qual eu correspondí.

de identificação da mãe com as necessidades do bebê. Ele também reconhece que há, por parte do bebê, uma
identificação com a mãe e que esse também se põe em comunicação.

210
Por onde anda o acompanhante terapêutico

Os encontros que se seguiram foram recheados de piadas e risadas. Eu pergun­


tava sobre as meninas do colégio e ele se constrangia, mas num tom de brincadeira.
Eu comentava da sua beleza, da sua força. Ele sorria envergonhado. Tivemos uma
conversa mais “educativa”, na qual ele esclareceu muitas dúvidas sobre a ereção,
a excitação e as mudanças que ocorriam em seu corpo.
Até que, num encontro, logo no início, quando lhe perguntei como estava,
ele me disse: “Ah, não venha você de novo querer me falar sobre aquilo que é e não
é ao mesmo tempo. Isso não existe! Algo que é bom e ruim, que é feio e bonito,
que pode e não pode”. Essa compreensão era surpreendente. Eu nunca havia dito
algo com essa clareza, nesses termos, por mais que abordasse as coisas dessa forma.
Então, eu lhe disse: “Existe sim. É o que chamam de paradoxo. É a vida. E é justa­
mente porque você não pode abrigarisso no seucorpo, que você temesses sintomas”.
Conversando com um colega, depois, contei-lhe o ocorrido e o que tinha dito
e ele se surpreendeu com a minha compreensão e interpretação. E eu, então, lhe
respondi: “Mas não fui eu que disse. Foi ele quem disse através de mim.”
Desde então, eu passei a encontrar Bruno de forma mais relaxada, sabendo
que o caminho a percorrer se revelaria e que não viria dos meus insights, do meu
entendimento intelectual. E percebi que minha ansiedade nesse sentido estava
me distanciando dele. O diagnóstico e a direção de tratamento estabeleciam-se
no nosso contato e naquilo que colocávamos em movimento nos nossos encon­
tros, por meio do que falávamos e do que sentíamos. A rigidez de pensamento era
parte de seu sofrimento, a qual eu experimentava ao cobrar-me compreensão e
direção para o atendimento. Porém, segundo Minkowski, além do “diagnóstico
pela razão”, há o “diagnóstico por sentimento”. Ele afirma que:

Al “diagnóstico por razón” vendrá a aunarse ”el diagnóstico por sentimiento o


mejor dicho por compenetraaón" , que muy a menudo será por mucho el más
importante. Es evidente que el diagnóstico por compenetración en ningún caso
podría ser rebajado al rango de diagnóstico por simple impresión. El método dei
que se trata exige, como cualquier otro método, ser aprendido; no se adquiere
más que por medio de una larga experiencia. (Minkowski, 2000, p. 80)

Tal compreensão não se restringe a um sentimentalismo, mas amplia nossa


tarefa clínica, na medida em que levamos em consideração esse aspecto da

211
Acompanhamento terapêutico

comunicação que denomino “empático”. Ao posicionar-me diante do que expe­


rimentava com Bruno, desvencilhando-me da rigidez com “senso de humor”,
assentando-me no paradoxo de nossa condição, ele também pôde abrigá-la e
reconbecê-la com muita clareza.
Dessa tonna, o caminhar é necessário. Todos os caminhos percorridos somam
conhecimento. Para conhecer um paciente e proceder a um tratamento, não
é preciso só do caminhar ao lado dele, mas de todo o caminho já percorrido.
Caminho biogrático-ôntico e caminho ontológico.
Por essas vivências, afirmo que ser at é dispor de todo o corpo para a comuni­
cação. Isso implica que, muitas vezes, pouco será compreendido intelectualmente
e muito será vivido sensorial, imagética e sensivelmente. Muitas vezes, só o que
nos resta é uma dor de barriga. Em outras experiências que nos remetem ao
sublime. Ambas nos transformam e nos impõem movimento. Ambas revelam ser
o nosso próprio corpo o lugar de revelação do outro (Safra, 1999).
Meu primeiro “acompanhado”, Ronaldo, sempre me convidava para andar,
momento em que nossa conversa se tomava mais profunda e pessoal. Andando,
ele conseguia revelar suas questões, proferir suas verdades, olhar para mim e ter
curiosidade ao meu respeito. Nós ganhávamos movimento, ritmo, o chão se fazia
o limite. Ele andava desajeitado, rápido, sem se cansar. Eu relutava em entrar
no seu ritmo, reclamava da subida, do calor, do sapato apertado. “Tem certeza
que você quer andar neste sol?” Ele esperava com paciência eu me conformar
com a marcha e não lutar mais contra o pé, o calor, a pema, e ser só movimento.
Aquilo era bom. Os pensamentos revelavam-se sem esforços, a comunicação
fluía. Éramos uma marcha só.
Uma experiência que sempre cito quando falo sobre o A T — que é minha
cena primária como at — foi meu primeiro passeio com Ronaldo longe de sua casa.
Fomos até a rua Vinte e Cinco de Março. Ele costumava temer a polícia quando
estava prestes a se “desorganizar” em função do ódio, de uma frustração, de
alguma intensidade que não podia conter. E nesse dia do passeio, eu estava almo­
çando, antes de encontrá-lo, e ouço na televisão que a polícia “baixara” naquela
rua para fazer apreensões de mercadorias ilegais, causando grande tumulto. Fiquei
apavorada! Além disso, chovia...

212
Por oncle anda o acompanhante terapêutico

Fiquei em crise. Era a primeira vez que ele quis sair de perto de sua casa! Eu
não podería perder esse momento. Chegando a sua casa, ele me recebeu de guarda -
-chuvas. Frustrada, olhei para ele seriamente e disse: “Ronaldo, a polícia está lá.
Está prendendo pessoas que vendem mercadorias ilegais, e eu vi no jornal que
está o maior tumulto. Você acha que podemos ir?”. Resposta: “Você vai me levar
ou não?”. Ele não se assustou! Mas era óbvio! A polícia sempre estava presente e
ele já decidira se arriscar. Eu é que descobria a polícia naquele instante. E lá fomos
nós. Ele parecia tranquilo. O de sempre. E eu ficava tentando prever todas as situ­
ações. Lembrava que, se alguma coisa acontecesse, eu seria processada e presa. E
lembrava os adolescentes que eram presos e pensava: “Se eu tivesse ido ao psicólogo
quando pequena, não teria escolhido essa profissão e não correría esse risco”. Puxa
vida! Lá estava eu de novo: eu mesma, o outro, todos os outros. Descobria em
mim o “medo” e a “privação” dele. Chegando lá, a rua estava calma. O tumulto
já acabara e não havia polícia. Mas, ao retomar para casa, ele comentou: “Você
viu a polícia?”. “Não.” “Não?” Estranhei aquilo. E só depois reconhecí que não fui
verdadeira na minha resposta. Claro que eu vi a polícia! O que foi tudo isso então?
Ao conceber “a tace estética do sei/1’, Safra amplia a tarefa clínica e possibilita
o abrigo desses fenômenos:

Estas concepções têm grande importância no trabalho clínico. Permitem


o acesso e a compreensão de toda uma gama de fenômenos relacionados
às perturbações de self e auxiliam no esclarecimento da questão do assim
chamado contato entre paciente e analista e do uso da intuição. Esta não vai
ser compreendida como uma coisa enigmática, que depende de um estado de
graça para ser conseguida, algo assim como a apreensão de um conhecimento
sem intermediação. A intuição pode ser compreendida como a capacidade de
uma pessoa de apreender e compreender símbolos de self, símbolos-estéticos
que se organizam na sensorialidade, por meio de processos identificatórios.
Trata-se de uma leitura que é feita a partir da corporeidade da pessoa e que
apreende os símbolos de self. Uma pessoa frente a um símbolo-estético expe­
rimenta imaginativamente em seu corpo o sentido de ser que o símbolo-estético
apresenta, (p. 26-27, grifo meu)

213
Acompanhamento terapêutico

Dentro do estudo que realizei até aqui, entendo que é por intermédio da
“faculdade de sentir com”4 que a experiência estética pode se dar num atendimento,
e assim ser abrigada sem reduções.
Safra tem desenvolvido novas formulações para podermos compreender o
sofrimento trazido por nossos pacientes. Entendo que isso se refere a certa falência
da prática psicanalrtica, sobretudo as suas técnicas, tomando-se cega ao inédito
e a novas formas de sofrimentos revelados pelos pacientes que não aquelas já
reconhecidas tradicionalmente. Faz uma crítica ao uso da técnica que acaba não
contemplando a ética humana e assim gera mais adoecimento5. Dessa forma,
entendo que é parte da nossa ética profissional lançar outro olhar a esses fenô­
menos já descritos pela psicanálise (Safra, 2004).
No episódio da Vinte e Cinco de Março, o meu posicionamento diante de
Ronaldo foi de eco. Sua busca rne comoveu6. Eu o refletia na minha apreensão
corporal, no medo, na “paranóia”, nas minhas recomendações e na esperança
- pois, apesar de tudo, eu me arriscava em busca de algo. Lá, eu era um radar.
Atenta a todo movimento. Preocupada com notas fiscais, em esconder a sacola. E
o que aconteceu foi algo muito bonito: ele queria achar determinado objeto em
forma de coração e nós não o encontrávamos. Eu tentava convencê-lo da beleza e
da pertinência de outras formas: a estrela, a lua, o sol. Ele olhava, tocava e descar­
tava. Até que, por fim, achamos o coração: “Era isso de que eu precisava!”, ele
disse ao encontrá-lo. O coração era um presente para uma futura namorada. Eu
respondi que, se fosse para mim, acharia muito bonito, e ele disse “obrigado”. Por
fim, comprou o presente para a mãe, dizendo: “Ela vai gostar”. Eu me lembrava de
sua mãe e pensava: “É horrível, ela não vai gostar”. E ela não gostou e tampouco
reconheceu a tentativa dele de atingir seu coração. Estava tudo apresentado: a
necessidade de ser abrigado num coração, o “tédio” que a falta desse lugar lhe
trazia e a recuperação da sua capacidade de “encontrar”, sustentada pelo nosso
encontro. Ao final, eu lhe disse: “Ainda bem que você não me ouviu e não desistiu

4 Termo de Ferenczi (1928/1992) que utilizo como sinônimo de empatia.


5 Safra desenvolve esse tema amplamente em seu livro A po-ética na clínica contemporânea (2004).
6Uso esse termo em referência ao conceito de Ferenczi de comoção psíquica: “A palavra Erschütterung - comoção
psíquica - deriva de Schutt = restos, destroços; engloba o desmoronamento, a perda de sua forma própria e a acei­
tação fácil e sem resistência de uma forma outorgada, ‘à maneira de um saco de farinha’” (Ferenczi, 1992, p. 109).

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Por onde anda o acompanhante terapêutico

do coração”. E ele respondeu: “Eu sou um garoto insistente. Eu nunca desisto”.


Foi a primeira vez que ele usou a trase “eu sou”.
Neste sentido, Moure (2000) nos diz sobre Winnicott:

A novidade do pensamento de Winnicott consiste em considerar a existência


(self) do paciente, reconhecendo nela dois aspectos fundamentais, a saber,
sua singularidade (seu próprio estilo de ser) e as dimensões desse ser, que não
podem ser determinadas a primi. No começo, estas duas dimensões só acon­
tecem numa experiência de mutualidade onde a comunicação se caracteriza
por ser silenciosa, isto é, ela passa por registros da corporeidade, fundamental­
mente. (p. 16)

Ao longo do meu percurso como at, meu corpo foi sendo informado, comovido
pelo que meus “acompanhados” apresentavam, e assim foi possível que experiên­
cias originárias acontecessem sem reduções. Por essa possibilidade, compreendo
que é tarefa do at articular conceitos como corpo, corporeidade, empatia e esté­
tica para um posicionamento ético nos atendimentos.

215
Acompanhamento terapêutico

Referências bibliográficas

Ferenczi, S. (1992). Elasticidade da técnica psicanalítica (1928). In: Obras Completas.


Vol. IV. São Paulo: Martins Fontes.

Ferenczi, S. (1992). Reflexões sobre o trauma. In: Obras Completas. Vol. IV. São Paulo:
Martins Fontes.

Minkowski, E. (2000). La Esquizofrenia —Psicopatologia de los esquizóides y los esquizo-


frênicos. México, D.F.: Fondo de Cultura Econômica.

Moure, W. G. (2000). O Corpo Espontâneo —Sobre a corporeidade na clínica. Disser­


tação (Mestrado) —Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

Safra, G. (1999). A Face Estética do Selí: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.

Saíra, G. (2004). A pó^ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias &. Letras.

Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade (1969). In Winni-


cott, D. W. (Winiccott, Clare). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas
Sul.

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