Acompanhamento Terapêutico
Casos clínicos e teorias
Acompanhamento Terapêutico
Casos clínicos e teorias
Casa do Psicólogo®
© 2011 Casapsi Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
sem autorização por escrito dos editores.
1a Edição
2011
Editores
Ingo Bernd Güntert e Juliana de ViUemor A. Güntert
Assistente Editorial
Luciana Vaz Cameira
Capa
Paulo Engler
Preparação de Original
Luciane Gomide
Revisão Final
Lucas Torrisi Gomediano
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-8040-015-1
10-12700 CDD-362.20425019
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
As opiniões expressas neste livro, bem como seu conteúdo, são de responsabilidade de seus
autores, não necessariamente correspondendo ao ponto de vista da editora.
Prefácio..........................................................................................................................7
Acompanhando Rita.................................................................................................... 99
M aria Silvia Logatti
AT e A rT e.................................................................................................................. 193
Sheila De Marchi
Em nossa cultura, o ser humano costuma nascer em um lugar que não a sua
casa; ao contrário, ele é recebido por pessoas em lugares estranhos, mas algo se
mantém para lá e para cá: a casa do ventre materno que leva seu bebê em constante
movimento, para cima, para baixo, para os lados, para frente, para trás, parado.
Muitas são as situações que fazem da Clínica do Acompanhamento Tera
pêutico um cuidado que se aproxima do real, do ambiente que abraça ou rechaça
o acompanhado, de sua família, de seus amigos, colegas e inimigos. O at faz
parte do ambiente em que o acompanhado vive! A ação terapêutica vive em
uma temporalidade que surge, transita e finaliza cinestesias, com momentos de
reflexão imediata diante de ações impensadas e espontâneas. O A T chegou ao
curso de graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em
2009, porém algumas produções já aparecem em forma de dissertações e teses.
Alguns livros e artigos são publicados por profissionais da saúde de várias áreas, da
enfemiagem psiquiátrica, da terapia ocupacional e por psicólogos.
O A T é uma clínica que não necessita de comprovações científicas, mas por
que não pesquisar essa prática e extrair dela elementos teóricos que a aproximem
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Prefácio
Mvi
Ricardo Telles de D eus —psicanalista; mestre em Psicologia Clínica (PUC-
SP); pós-graduado em Teoria Psicanalítica-Psicologia Clínica (COGEAE /
PUC-SP); graduado em Psicologia (Mackenzie); e professor universitário.
E-mail: ricardotellesdeus@hotmail.com
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contribuições de Minkowski
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Acompanhamento terapêutico: contribuições de Minkowski
A contribuição de Minkowski
O relato do atendimento de Minkowski de um senhor de 66 anos durante
sessenta dias nos remete a um acompanhamento intensivo, 24 horas por dia. A
partir dessa experiência, discutiremos o registro afetivo, empático e estético arti
culado à conceituação ética do AT.
No registro afetivo, atentaremos a como o terapeuta se apresenta, ao convite
na fala do paciente a fim de ocupar uma posição em seu mundo, aos afetos desper
tados no terapeuta e aos sentimentos que o informam sobre a situação do paciente.
No registro empático, discutiremos como o terapeuta acompanha o discurso
do paciente, como realiza em seu campo imagético o que foi descrito, como se
move em sua corporeidade, permitindo a compreensão da subjetividade do outro,
como acolhe o outro e as necessidades do paciente.
No registro estético, o paciente constitui seu mundo organizando o espaço, o
tempo, a materialidade de modo singular. Destacamos como isso afeta a corporei
dade do terapeuta, já que, pelo elemento estético, compreendemos a organização
estética do espaço e do tempo.
No registro ético, levamos em consideração que toda necessidade é de reco
nhecimento ético, por parte de outro ser humano, de seu modo de ser.
Adentraremos, então, ao artigo tenomenológico de Eugène Minkowski para
na discussão retomar o que foi traçado até aqui.
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Acompanhamento terapêutico
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Minkowski (1970, p. 23) percebeu que ele, diante dos fatos, havia chegado a
uma conclusão com respeito ao futuro, enquanto o paciente os havia deixado trans
correr sem ter extraído nenhum ensinamento para seu futuro. E constata que tal
propulsão em direção ao porvir faltava completamente ao paciente.
Safra (2006a) assinalou que é parte da condição humana posicionar no
futuro um sentido que significa cada gesto no presente. Nesse vértice, o agora é
transfigurado pelo fim (Telos), que se aloja no horizonte futuro. No caso apresen
tado por Minkowski, observamos que o paciente vivia o seu futuro como fechado.
Desse modo, tendia a viver o seu presente no registro do Mesmo. Minkowski
nos convida a considerar que a conduta do doente estaria detenninada pelo tato
de que o enfraquecimento do ímpeto até o amanhã não seria momentâneo, mas
pennanente.
Sem essa possibilidade, o paciente de Minkowski (1970, p. 30) tem o seu coti
diano sem vida e sem sentido. Certa vez, disse: “Olhe essas rosas, minha esposa as
teria achado lindas, mas para mim não são outra coisa senão um monte de folhas,
pétalas, espinhos e hastes”.
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Acompanhamento terapêutico
De acordo com Satra (2007), na clínica muitas vezes nós vivemos a indig
nação que o paciente não pode viver. Isso acontece com Minkowski quando ele
depara com o aprisionamento do outro e com a repetição do dia a dia do paciente.
Ambos, clínico e paciente, vivem uma só repetição na relação.
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Referências bibliográficas
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a diferença radical podia ser metabolizada e inscrita nas normas culturais. Entre
tanto, a partir do momento que a uniformização dos comportamentos e pensamentos,
ou seja, a uniformização do gesto humano, foi considerada um valor primordial, a
loucura passou a ser considerada marginal, ainda inscrita na norma cultural, mas
como algo a ser extirpado e excluído.
Retomando o percurso histórico, vemos que após mais de um século da
criação dos Hospitais Gerais,
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1 Para saber mais sobre os pressupostos teóricos do AT] ver Sereno (1996).
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'MYi
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forte crítica aos jogos de poder entre os homens que transformaram a relação
integrada com a loucura (desde a Antiguidade até a Idade Média, como vimos)
em relações de exclusão, tutela e hierarquização.
Decorrente da transformação em Trieste, o Estado italiano desenvolveu
um estudo para modificar a legislação no país, e as propostas de Basaglia foram
incorporadas à Lei n. 180, que ficou conhecida como Lei Basaglia. Um ponto
importante dessa lei foi a diretriz para o fechamento gradual dos manicômios e sua
substituição por serviços territoriais (Jorge, 1997, p. 30).
Assim, a partir da tradição basagliana, o conceito de desinstitucionalização não
equivale apenas à desospitalização, ou seja, à retirada dos pacientes dos hospitais,
mas de um conceito mais amplo, que abarca o desmonte também dos mecanismos
psiquiátricos de exclusão e controle.
É importante destacar todo esse percurso, pois o paradigma teórico da atua
lidade é fruto direto dessa história. Não é por acaso que existem semelhanças
entre o Centro de Saúde Mental de Trieste e os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) do Brasil. A influência da psiquiatria democrática Italiana repercutiu
fortemente no Brasil a partir da década de 1980. Em 1987, o “II Congresso
Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental” foi organizado por trabalhadores da
área e seus familiares. É nesse congresso que se conquistaram a ruptura epistemo-
lógica e a estratégica em relação ao tratamento da pessoa com transtorno mental.
Introduziu-se o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, e definiu-se o início da
Retonna Psiquiátrica brasileira. A partir de então, muitas iniciativas aconteceram,
como o CAPS Itapeva, em São Paulo; a intervenção na Casa de Saúde Anchieta,
em Santos; e a apresentação do Projeto de Lei n. 3.657/89, pelo deputado Paulo
Delgado, que propõe o redirecionamento do modelo assistencial em saúde mental
no Brasil. Nesse congresso também se definiu que o objetivo da Reforma Psiquiá
trica brasileira é construir outro lugar social para a loucura, para a diferença, por
meio dos princípios de inclusão, solidariedade e cidadania (Amarante, 1999, p. 49).
De modo geral, podemos dizer que os CAPSs carregam os princípios presentes
na psicoterapia institucional francesa e na antipsiquiatria, como a participação
do usuário na construção de seu projeto terapêutico e o relacionamento entre
cuidador e usuário. Dessa forma, contemplam-se posições e papéis diferentes —
sem que isso provoque subserviência — e ações para que os usuários exerçam
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sofrimento crônico; muitas vezes, em uma crise silenciosa, que se toma evidente
pela restrição da circulação social, ou seja, um isolamento, e pela estagnação dos
projetos de vida. Nessas situações, o A T pode ser indicado e ser iniciado com um
primeiro projeto de “passeio”, para que posteriormente, em muitos casos, esse
“passeio” possa se transformar em ocupação do território pelo acompanhado.
Podemos observar que a proposta do A T é mais radical do que a proposta dos
CAPSs quanto à inclusão e circulação social, e também quanto ao exercício da
cidadania, devido à própria natureza de sua estrutura. A instituição que sustenta
o A T é o acompanhante terapêutico, seu corpo-setting, sua rede de sustentação
(equipe, supervisor etc.). O A T é realizado na casa do acompanhante, no seu
bairro, por onde ele circula (ou deseja circular); o acompanhante irá ser o suporte
para que o acompanhado possa, ele mesmo, fazer as trocas sociais, podendo ser
reconhecido enquanto sujeito de direitos e deveres. E equipamentos como CAPS
correm o risco de servir de suporte, o pano de fundo sobre o qual o indivíduo é
valorizado, podendo ser algo positivo ou uma tutela —melhor dizendo, qualquer
instituição pode ser usada para afirmar qual é o nosso valor social, por exemplo,
quando nos identificamos: “sou João, trabalho na empresa X”, “sou Maria, estudei
na escola Y”. Portanto, essas observações não nos são colocadas para serem feitos
julgamentos prévios — se o A T é melhor que o CAPS —, mas têm o intuito de
ressaltar as particularidades de cada recurso terapêutico.
Assim, traçado o percurso histórico, podemos verificar que a Reforma
Psiquiátrica articula diferentes campos: teórico-conceitual, jurídico-político,
sociocultural e técnico-assistencial (Amarante, 1999, p. 50). A discussão que foi
feita anteriormente privilegiou principalmente o campo teórico-conceitual. Os
aspectos jurídico-políticos dizem respeito à revisão de leis e portarias que regu
lamentam o atendimento em saúde mental. O campo sociocultural é abordado,
por exemplo, nas diretrizes dos CAPSs para ações que potencializem a inclusão
e discussão dos estigmas e preconceitos, ou mesmo nos “passeios”, realizados nos
ATs, que podem proporcionar ao acompanhado a circulação por equipamentos
culturais. E o campo técnico assistencial vai discutir especificamente
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Eu creio que temos que buscar uma clínica diferente. Alguns falam de uma
clínica do sujeito. Eu falo de um artesanato de clínica do sujeito, eu creio que é
uma clínica da escuta, de acompanhamento também do real material do paciente.
Uma clínica que abra possibilidades para permitir ao paciente experimentar
a intermitência de seu sofrimento, uma clínica que produza intercâmbio entre
os pacientes enquanto estão sofrendo, com outras pessoas. Uma clínica
que permita ao paciente produzir valor social. Que seja a pintura, que seja a
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Acompanhamento terapêutico
cooperativa de trabalho, que seja algo, mas que produza valor. È uma clínica
cujo objetivo final é a produção de sentido. (Saraceno, 1998, p. 30, itálicos meus)
Consideramos esta definição bastante clara e sensível e que traz com simpli
cidade conceitos densos. O autor propõe a escuta e o acompanhamento do real, ou
seja, que devemos estar atentos à singularidade psíquica, como também devemos
nos preocupar com as condições reais do ambiente e de sobrevivência em que
o paciente está inserido. A partir da intermitência, podemos entender que Sara
ceno não propõe uma reclusão (ou internamento) nos momentos de “crise”, mas
a possibilidade de continuar fazendo trocas sociais mesmo que em sofrimento —
sem deixar de ter a sensibilidade para avaliar os limites de cada situação. Por fim,
que seja uma clínica que produza valor social, que ajude a transformar a exclusão
secular que essas pessoas carregam em seus ombros e possamos ajudar a cons
truir o que todos nós buscamos: valor social, valores com sentidos singulares e
compartilhados.
Finda a explanação teórica, gostaríamos de apresentar o relato de uma
experiência de A T realizada num CAPS2, durante o período em que realizamos
o Programa de Aprimoramento Profissional - Fundação do Desenvolvimento
Administrativo (Fundap)3.
2 Esta experiência foi discutida na monografia de conclusão do aprimoramento a partir do enfoque da clínica
ampliada (Cf. Gonçalves, C. A. B; Ramalho, S. A., 2006), sendo que neste artigo há uma nova narração que
privilegia os aspectos aqui discutidos.
3Aprimoramento certificado e registrado na Secretaria do Estado da Saúde sob n. 177/2006, no livro n. 01, fls. 13.
4 O nome da usuária não foi alterado por se tratar do relato de uma experiência pública que carrega em sua
própria natureza a exposição da identidade pessoal enquanto autora de produção cultural. O ponto de vista
exposto em relação à discussão do caso é relatado a partir das vivências da própria autora.
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como usa a instituição. Há muitos anos é usuária do serviço, tem vínculo bastante
forte com sua psiquiatra —de quem recebeu os primeiros cuidados e quem a acom
panhou quase semanalmente até aquele momento —, e, apesar de Geane ir com
frequência ao CAPS, não participava de nenhum grupo ou oficina que lhe era
oferecido, tendo apenas passagens eventuais nesses espaços. O que ela realmente
solicitava eram as “conversas de corredor”, principalmente com os funcionários.
Geane conversava muito pouco com outros usuários. A equipe técnica do CAPS
também já lhe havia oferecido atendimentos individuais, mas estes não duraram
muito tempo, e logo Geane voltou a usar o CAPS como um lugar para estar e
conversar com as pessoas quando assim lhe desse vontade. Essa situação gerava
um incômodo na equipe, pois todos sentiam que ainda não haviam conseguido
cuidar de Geane. E ela precisava de cuidados, pois assim como demonstrava muita
afetuosidade, também vivia momentos de muita angústia, ao questionar seu lugar
no mundo, perceber sua situação de exclusão social e reivindicar ser amada.
Durante discussão da equipe, saltou-lhe aos olhos que, nas “conversas no
corredor”, Geane falava com diferentes profissionais sobre suas diversas vivências,
e assim pensou-se em potencializar seu modo próprio de se relacionar, oferecendo
um atendimento individual em que não houvesse dia nem horário marcados, mas
que ficasse “concentrado” em um único técnico, para que ele pudesse realmente
ser um “técnico de referência”. O objetivo desse atendimento seria “costurar” as
vivências relatadas por Geane e suas “estadas” no CAPS, com a esperança de poder
ser fabricada uma colcha de retalhos, com cores diversas e sem tantos “buracos”,
podendo reverberar uma experiência emocional mais integrada para Geane.
E foi assim que entrei na história. Fui designada como “técnica de referência”
de Geane; por ser aprimoranda, eu estava presente no CAPS durante toda a
semana e o dia todo, proporcionando maiores possibilidades para que aconte-
cessem os “atendimentos”. Como estava em tonnação de A T paralelamente ao
aprimoramento, deslumbrada com a possibilidade de atendimentos com settings
diferenciados, e, também, capturada pela afetuosidade de Geane, prontamente
topei o desafio.
Comuniquei a proposta a Geane, que também topou prontamente, e então
iniciei os atendimentos. Conversavamos quase todos os dias, sendo que o tema e
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corredor” e chegou até mim por meio de outra pessoa que presenciara a cena. Em
um dos atendimentos com Geane refiz a proposta, e ela me respondeu que o que
escrevia tinha sentido na hora, e não era para ser eternizado num livro. Para mim,
ainda não estava clara a razão pela qual havia refeito a proposta. Eu sentia que
podería ser interessante para Geane, mas talvez o impulso principal tenha sido a
minha apreciação pelos seus escritos, gostaria, sim, de eternizar nossos encontros,
já que como aprimoranda tínhamos um prazo com limite estabelecido. Mesmo
com pesar, respeitei sua decisão.
Decorrido esse tato, os atendimentos foram interrompidos por minhas férias.
Ao retornar, teria de iniciar o processo de encerramento do atendimento, pois em
alguns meses o setting estabelecido não teria mais a possibilidade de acontecer, já
que eu iria estagiar em outra instituição e estaria no CAPS apenas em um dia da
semana, ocupada com a reunião de equipe e supervisão.
Assim que Geane me avistou, ela me perguntou se eu ainda topava escrever
o livro com ela. Abri um sorriso e combinamos os pomienores: faríamos o livro em
nossos encontros, e quando ele ficasse pronto, encerraríamos o atendimento. Foi
decidido em equipe que, concomitantemente, Geane passaria a ser acompanhada
individualmente por um técnico de referência do CAPS, e eu ficaria incumbida
apenas da feitura do livro. Foi bastante interessante a apropriação desses dois
espaços por Geane: ela “cobrava” sua “terapia” com a técnica que havia ficado
responsável e, nos encontros comigo, apenas nos dedicávamos à produção do livro.
Enquanto eu ainda estava todos os dias no CAPS, os encontros continuavam
sem dia ou horário. Quando Geane tinha uma inspiração, ela me procurava, e
prontamente íamos escrever —Geane ditava, e eu ia registrava ipsis litteris. Quando
sua inspiração ou o capítulo acabava, ela encerrava o encontro. No início, Geane
declamava seu livro e eu corria na escrita, o mais que podia, para conseguir repro
duzir no papel. Algumas vezes perdia a frase e pedia para que ela repetisse, o que
provocava reclamações e insatisfação, pois Geane também já tinha perdido a frase
e teria de formular outra.
Com a esperada mudança em nossa rotina, tivemos de nos organizar em datas
combinadas. Com isso eu também percebi uma mudança no processo de escrita:
Geane não tinha mais tanta urgência, conseguia guardar a ideia para o nosso
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encontro, e neste não havia mais “psicograiia” —como um colega nomeava aquele
primeiro processo. Geane esperava eu escrever, abria pausas para talar de outras
coisas, dizia o que deveria ser incluído ou excluído do texto. Dessa torma, foi
sendo ressaltada uma característica do processo de criação de Geane: ela rara
mente pedia para eu repetir o que estava escrito para dar continuidade, sabia
exatamente onde havia parado. A impressão que eu tinha, era que ela já estava
com todo o livro pronto, e agora o materializava. Tanto que ela começou pelo
título: “Lucidez ou não lucidez, A memória e o fracasso, Meu grande amor”. Um
livro com três histórias que aos poucos foram, realmente, configuradas.
O livro estava quase pronto, e então começamos a pensar como colocaríamos
em circulação sua produção. Aproximava-se a data da festa junina do CAPS, e
assim surgiu a ideia de fazermos o lançamento do livro nessa data. Propus que o
livro tivesse um prefácio, Geane gostou da ideia e escolheu “sua Doutora” para
fazê-lo. Precisávamos divulgar, então fizemos um cartaz, e Geane fez a distribuição
de panfletos, mas pediu para que eu reforçasse o convite à sua família. Agora quem
trabalhava na urgência era eu, “sua editora”. Eu tinha a difícil tarefa de encontrar
uma maneira de publicar o livro, e não havia tempo hábil para ir em busca de
patrocínios e fazer uma impressão gráfica, então surgiu a ideia de fazê-lo de forma
“caseira”. Digitei, editei e imprimi folha a folha em minha casa. E a capa? Geane
fez a ilustração. Ainda havia algum material de um antigo projeto de trabalho com
reciclagem de papéis, as folhas nos foram cedidas, e na folha reciclada foi feita a
capa, que ainda foi “plastificada” com cola branca. O “piloto” foi aprovado por
Geane, e ela ainda acrescentou uma dedicatória. Fizemos quarenta cópias.
Mas e o preço? Geane estipulou um valor que gostaria para si - o custo de um
maço de cigarro Free, que era o de sua preferência, mas que cotidianamente não
podia consumi-lo por ser caro, e por isso fumava cigarros mais baratos —e propôs
que somássemos o valor do meu trabalho e os custos; em contrapartida, propus que
incluíssemos o valor do livro para ela mais os custos. Eu considerava que já havia
sido bem remunerada. E assim foi feito.
No dia marcado, Geane estava “radiante”, sua família toda estava presente
—estavam afastados do CAPS havia um bom tempo. As quarenta cópias foram
vendidas para seus familiares, funcionários do CAPS, outros usuários que se
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Fato é que esta “ideia” foi o recurso encontrado como disponível, tanto para
a usuária como para a terapeuta, o que possibilitou uma escuta subjetiva, como o
acompanhamento real material do paciente, produzindo valor social e a possibilidade
de inclusão de Geane nos circuitos sociais, a partir de seu modo próprio de ser e
estar no mundo.
Para finalizar, encontramos nas palavras poéticas de Geane o essencial. Trata-
-se de atendimentos e experiências em que é preciso sempre encontrar a “luzinha
acesa” (Barrias, 2005, p. 18).
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Referências bibliográficas
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de filosofia. 5. ed. rev. e amp. São Paulo: Martins
Fontes.
Barrias, G. (2005). Lucidez ou não lucidez, A memória e o fracasso, Meu grande amor.
São Paulo [Mimeografado].
Borille, D.C. (2008). Construção de marco de referência para o cuidado em saúde mental
com a equipe de um hospital psiquiátrico. 1381 Dissertação (Mestrado em Enfermagem)
- Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Disponível em: < http://dspace.c3sl.
ufpr.br/dspace/bitstream/1884/14480/l/pdf.4.disserta%C3%A7%C3% A3o.arquivo.
completo.pdf> . Acesso em: 17 out. 2009.
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Quando o biopoder namora o
acompanhamento terapêutico
M aurício Porto
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e, eventualmente, faz morrer, e mais com uma lei-norma, que distribui, ajusta,
regula, equaliza e controla.
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Quando o bíopoder namora o acompanhamento terapêutico
1O panóptico é um edifício em forma de anel, no meio do qual há um pátio com uma torre ao centro. Esta forma
anelada pode-se compor de vários andares de anéis sobrepostos, cada andar um anel. O círculo periférico de
cada anel se divide em pequenas celas; cada cela com duas janelas, uma voltada para o pátio central interior
e outra voltada para o exterior, de forma a deixar a luz atravessar a cela de lado a lado, iluminando-a completa
mente. O jogo de luzes em relação à torre central toma impossível, para quem esta no interior da cela, saber se
está sendo observado ou não. Na torre central haveria um ou mais vigias. Como cada cela fica completamente
iluminada, o olhar dos vigias pode vasculhar todas as celas, através da janela voltada para o interior do edifício,
sem ser visto.
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Figura 1 - Panóptico desenhado por Jeremy Benthãm, em 1791. (Foucault, 1979, p. 108)
Escreve Foucault:
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Quando o bíopoder namora o acompanhamento terapêutico
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Que eu fazia no front de Aragão? Não tinha muitos pacientes. Eu evitava que
eles fossem enviados a duzentos quilômetros de distância da linha de frente;
cuidava deles ali onde as coisas aconteciam, a menos de quinze quilômetros,
de acordo com um princípio semelhante ao que faria, décadas mais tarde,
a “política de setor” francesa: se mandarmos um neurótico de guerra a 150
quilômetros do front, fazemos um crônico.
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Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico
Mvi
O movimento de abertura da instituição psiquiátrica — e de articulação com
o mundo fora do hospital - também se realizou com Nise da Silveira (1992),
psiquiatra que migrou do Nordeste brasileiro para se estabelecer no Rio de Janeiro
— outro marco dessas novas experimentações terapêuticas que se distanciam
da lógica da sociedade disciplinar. Nise da Silveira foi, no início de sua carreira
médica, acusada de comunista, tomou-se prisioneira da ditadura Vargas e teve
suspenso seu direito de trabalhar como psiquiatra no Hospital da Praia Vermelha.
Depois de quase dez anos refugiada nos interiores nordestinos, já anistiada, read
quiriu o direito de trabalhar no serviço público e, em 1944, retomou à capital
carioca. Ao retomar o trabalho, desta vez no Hospital Psiquiátrico Pedro II, ela
sabia que não mais se guiaria pela psiquiatria clássica; por isso, foi trabalhar imedia
tamente na seção de terapia ocupacional, na época considerada um lugar subalterno
em relação a qualquer outro tratamento desenvolvido no hospital.
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Acompanhamento terapêutico
até meados do século XX. Podemos agregar a esse movimento do qual participa
ram esses dois psiquiatras (poderiamos chamá-lo de movimento “antimanicomial”)
algumas propostas mais recentes, conhecidas dos trabalhadores de saúde mental:
hospitais-dia, centros de atenção psicossocial, centros de convivência e coope
rativa, residências terapêuticas, entre outros. E também o Acompanhamento
Terapêutico (AT).
Ao reunirmos todas essas estratégias clínicas, percebemos uma progressão
inegável que, atastando-se do complexo hospital psiquiátrico, pretende cada
vez mais tomar as decisões coletivamente, construir as autonomias, “derrubar
muros” e se abrir para o exterior, articular-se em redes sociais cada vez mais
amplas, fabricar projetos de participação social — sejam projetos de geração
de renda, sejam projetos de atuação cultural —, exercer a cidadania, “incluir
a diferença”. Porém precisamos reconhecer que essa progressão da clínica em
saúde mental revela o domínio de outra mecânica do poder, a ação de outra via
nos processos de subjetivação. A novidade e o avanço dessas estratégias clínicas
retratam completamente a compatibilidade que mantêm com os novos modos de
organização social. Esse conjunto de invenções e estratégias é o resultado mais
ajustado ao poder no contemporâneo, isso que Foucault circunscreveu com o
nome de “biopoder”.
A clínica hoje, sobretudo a clínica do AT, acontece onde age o “biopoder”,
na dimensão de gestão da vida.
Portanto, retomemos de Foucault, agora por meio da leitura que fazem Hardt
e Negri (2001), a passagem do poder de soberania para o “biopoder”, e da socie
dade disciplinar para a sociedade de controle, que é também a passagem do fazer
morrer e deixar viver para o fazer viver e deixar morrer.
Escrevem Hardt e Negri que, na sociedade disciplinar, o poder se centra
lizou, elevou-se, e transcendeu. A população fez a mediação entre os muitos
homens e objetos (os imanentes) e o Um-poder (transcendente): todos os fluxos
de forças, sociais e econômicas, orientaram-se na direção de uma convergência
centralizada que comandou a unificação em torno de sua transcendência. Além
disso, as fronteiras fixaram-se demarcando os limites e as proibições ^institucio
nais, territoriais, de categorias.
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Entretanto, ao basear-se em um poder apoiado na disciplina e no direito
constituído, o desenvolvimento do Capital ficou obstruído, deixando de cumprir
plenamente sua razão de ser. É próprio do Capital fazer equivaler todos os termos
entre si, como se achatasse todo o vivo e alisasse a superfície. Para o Capital, cada
termo é, a princípio, pura potencialidade por acontecer: então é fluxo não codifi
cado enquanto não estabelecer relações com outros termos.
Na mais recente fase de seu desenvolvimento, o Capital realiza o encontro
com um regime mais compatível com sua essência, força o declínio dos muros
transcendentes das instituições e os mecanismos de controle se tomam mais
imanentes, pois incidem sobre o vivo. A verticalidade institucional da socie
dade disciplinar sofre um progressivo achatamento na direção dos circuitos da
sociedade de controle. No desenvolvimento social do Capital, a transcendência
dá lugar à imanência da disciplina. Os mecanismos disciplinares espalham-se e
fundem-se na superfície lisa e ilimitada do campo social. Caíram os muros, e junto
caem as fronteiras, surgem as redes, flexíveis e flutuantes. Não há mais um lugar
do poder, ele passa a operar por meio de redes de relações de domínio, em todos os
lugares e em lugar algum, deslocando-se pela superfície lisa do viver. Para realizar
melhor a axiomática do Capital, a tendência na sociedade de controle é de sempre
expandir o território, de sempre incluir as populações em seus processos de gestão
da vida, por meio da produção de um cotidiano que dilui fronteiras sociais.
Nos limites da modernidade e quase abrindo para a pós-modemidade, somos
testemunhas de qual passagem? Decadência dos Estados-nação que disputam
poderes regulatórios com os conglomerados transnacionais apátridas. Processos
de unificação dos Estados-nação em blocos continentais e consequente atenu
ação das fronteiras nacionais. Definhamento das instituições disciplinares, como
escolas, prisões e manicômios. Arquitetura de ambientes internos abertos e livres
para um exterior fechado e impenetrável (por exemplo, a relação dos shoppings
centers e dos condomínios privados com a rua). Aumento da desigualdade junto
do aumento da proximidade de populações desiguais (o morro e o asfalto, o Haiti
e a América). Apagamento do que foi considerado a oposição dentro e tora, trans-
fonnado em um jogo de graus e intensidades (o inconsciente como a dimensão
psíquica do tora). Imposição de uma flexibilidade temporal absoluta (trabalho
51
Acompanhamento terapêutico
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Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico
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Acompanhamento terapêutico
o geógrafo Santos (2006, p. 15) —; eis uma história sem centro, sem dívida, sem
culpa, sem mãe suficiente, sem pai salvador.
Há uma direção nessa clínica, embora o caminho só se constitua fazendo e
refazendo: a afirmação e a descoberta de uma vida, nem em nome do pai, nem
em nome da mãe; uma vida, constituída só de possíveis — homens, mulheres,
animais, objetos possíveis. Assim, at e acompanhado participam da produção de
“pequenas diferenças”, como escreve Freud (1986, p. 111). As “pequenas dife
renças” são singularizações, que nem nos indiferenciam na voragem do excesso
pulsional nem nos fixam na pretensão de uma transcendência qualquer.
Antigamente, em algum século do passado, isso se chamou “cura”.
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Quando o biopoder namora o acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
Freud, S. (1986). El mal estar en la cultura. In: Obras Completas. vol. XXI. Buenos
Aires: Amorrortu.
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Reflexão de uma experiência clínica no
campo do acompanhamento terapêutico,
sustentado por uma visão filosófica
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Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
terapêutico, sustentado por uma visão filosófica________
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Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
______ terapêutico, sustentado por uma visão filosófica
bem e que ticaria ali. Caso mudasse de ideia era só me solicitar, pois estaria dispo
nível durante o tempo do nosso encontro.
Nessa época, ele pedia que sua mãe ligasse em meu consultório, e seus tele
fonemas se alternavam entre pedir a minha presença e a minha ausência. Jorge
oscilava entre querer e não me querer ao seu lado.
Decidi por aguardá-lo, ou seja, guardá-lo, cuidar dele, zelar por ele. Guardião
de seu ser, estar junto de uma singularidade humana que, apesar da nova distância
física, estava mais envolvida e implicada com o que se mostrava. Mantive a minha
presença no portão de sua residência até que, passados três meses, ele voltou a me
autorizar a entrar.
Conduzido e orientado pela solicitude antecipativa (Heidegger, 1989), que está
diretamente relacionada com um modo de estarmos com o outro (ser-no-mundo)
a partir de nossa autenticidade, portanto atravessados por nossa experiência de
desamparo, esse modo “não indiferente de ser” ajuda o outro “a tomar-se si mesmo,
em sua cura transparente e livre para ela”. Esse seria o modo de cuidar de si e do
outro (cura) que marcaria a atitude terapêutica ou a própria terapia. Um modo de
estar lado a lado.
Ainda segundo Heiddeger (2002), a proximidade é aproximar o distante
enquanto algo que está distante. É necessário considerarmos a distância e a usarmos
para uma lenta aproximação que permite a intimidade. Vemos que a proximidade,
o “poder acompanhar de forma próxima” está ligado a um movimento de apro
ximar-se. Pode-se entender o acompanhar como um movimento de aproximação
que ao mesmo tempo respeita os limites e as diferenças que nos distanciam do
outro enquanto outro.
Tudo isso ocorre numa linha tênue e sempre corremos o risco de estar ao lado
da pessoa e não intimamente acompanhando-a. Tal atitude retira do outro o seu
zelar substituindo-o, pressionando-o, muitas vezes anulando-o, não favorecendo,
assim, que o outro fique livre para seu existir. O que se contrapõe completa
mente a uma maneira de estar, nomeada “solicitude substitutiva” (Heidegger,
1989). O outro se retrai à medida que ficamos “sobre”, abafando-o, e não lado
a lado e próximo, numa intimidade. Essa maneira de “ser-em” diz respeito ao
providenciar cotidiano do impessoal, em que o ser humano pode experimentar a
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Acompanhamento terapêutico
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Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
_______ terapêutico, sustentado por uma visão filosófica
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Acompanhamento terapêutico
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Reflexão de uma experiência clínica no campo do acompanhamento
terapêutico, sustentado por uma visão filosófica
Referências bibliográficas
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Considerações sobre o
acompanhamento terapêutico no
envelhecimento
1 Núcleo pertencente à Associação Ger-Ações (Centro de pesquisas e ações em gerontologia), uma OSCIP
formada por profissionais, de diferentes áreas, preocupados com a questão do envelhecimento, que através de
Acompanhamento terapêutico
E mais negativa que positiva —mas está longe de ser apenas negativa, sobre
tudo na perspectiva da população idosa. [...] Os idosos brasileiros valorizam
mais que os não idosos os aspectos positivos de sua condição. Tem consciência
e denunciam o forte preconceito social e a discriminação contra a pessoa idosa
(Venturi &Bokany, 2007, p. 28).
ações e pesquisas participa ativamente no cuidado e na construção de uma nova imagem para a velhice. Dispo
nível em: <http: www.geracoes.org.br> . Em 2008 realizou a 1 -Jornada de Acompanhamento Terapêutico no
Envelhecimento com o intuito de compartilhar o percurso do grupo.
2 Grifo do autor.
68
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
69
Acompanhamento terapêutico
e o histórico de cada um; é preciso ter em mente que a velhice como categoria é
diferente do percurso do indivíduo em seu processo particular de envelhecimento.
A ciência que estuda o envelhecimento é a gerontologia, que é composta de
diferentes perspectivas e distintos campos de conhecimento, como a psicologia,
a medicina, a fisioterapia, as ciências sociais, a política etc., que dentro de seus
campos específicos se dispõem a tentar compreender o processo. Para trabalhar
com essa população, é preciso embarcar em uma “viagem” e conhecer suas possí
veis rotas de acesso, a fim de ajudar a fazer encaminhamentos de acordo com as
necessidades de cada indivíduo.
Apesar do envelhecer desvelar experiências, vivências e representações
compartilhadas por uma maioria, o envelhecimento é processo individual e hete
rogêneo: ninguém envelhece de fomia igual, mesmo que representações sociais,
históricas e culturais atravessem e influam nesse processo.
Outra importante consideração é que devemos contemplar a trajetória
humana para além da linha cronológica estabelecida pelo conhecido percurso que
liga o nascimento, infância, adolescência, fase adulta, velhice e morte. Pompéia
(2004) propõe uma ampliação dessa concepção e sugere:
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Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
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Acompanhamento terapêutico
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Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
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Acompanhamento terapêutico
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Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
Relato de um caso
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Acompanhamento terapêutico
se casou. Tiveram dois filhos, viveram mais de cinquenta anos juntos, e seu esposo
faleceu dez anos atrás. Ela reside na mesma casa há mais de trinta anos. Aos
poucos construiu um orquidário, que fica no segundo andar do quintal. Sempre
cuidou das orquídeas. H á um jardineiro que a ajuda, e recentemente fizeram uma
nova espécie de orquídea híbrida, ainda muito pequena. Quando florescer, se ficar
bonita, o jardineiro lhe disse que a nomeará em sua homenagem. Sua casa está
sempre enfeitada com orquídeas.
Trabalhou durante quarenta anos lendo e gravando histórias para crianças
cegas. Viajou muito com os pais, marido, filhos e netos. Viajar sempre foi um
grande prazer em sua vida. Gosta de ler e assistir concertos. Fala italiano, portu
guês, francês e inglês. Tem uma turma de amigas com as quais joga tranca e sai
para almoçar. Sua família é muito presente e cuidadosa. Mora com sua cuidadora
e a cozinheira, na casa em que seus filhos cresceram. Um dos dois filhos mora a um
quarteirão de sua casa; tem netos e dois bisnetos. Essas eram suas atividades até
o ano anterior ao início do acompanhamento, quando sofreu duas quedas que
lhe causaram quebra do pulso e da bacia. Os fatos fizeram com que perdesse sua
independência, pois precisou de uma pessoa para ajudá-la nas atividades coti
dianas. Durante praticamente um ano teve de utilizar cadeira de rodas. Logo após
a segunda queda começou a ter dificuldade para ler, sentiu a voz enfraquecer,
tornando-se “típica de velha”.
Decidiu se aposentar, pois tinha problemas para ler os textos, e achava que
já não fazia mais um trabalho de qualidade. Simultaneamente, os jogos de tranca
ficaram esparsos: além da dificuldade de se encontrar com as amigas, outra amiga
estava “ruim da cabeça”. Não podia mais cuidar das plantas, era-lhe impossível
subir as escadas que davam para o orquidário. Viajar tinha se tomado muito
difícil, pois agora tinha acompanhante 24 horas. Seria trabalhoso e difícil viajar
em nova condição.
Em um curto período de tempo perdeu a mobilidade, o trabalho e as ativi
dades prazerosas, o que modificou toda a sua relação com o mundo. Não se
reconhecia, tinha medo e não se sentia feliz. Sua fragilidade tornou-se evidente:
os dias se tornaram vazios, não conseguia ressignificar perdas ou encontrar novos
projetos.Tal situação despertou nela o sentimento de íinitude. Por não conseguir
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Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
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Acompanhamento terapêutico
Nos demais, Helena foi sozinha, pois era a sua vontade. Porém deixou claro que
não queria que nossos encontros terminassem. Decidimos nos encontrar para
jogar tranca, às sextas-feiras.
Passado algum tempo, disse-me que estava se sentindo “muito bem”, e mani
festou a necessidade de ter um dia livre para ver as amigas, pois se sentia com a
“agenda cheia”. Perguntei-lhe se era apenas a “agenda cheia”, ou se havia reto
mado as rédeas de sua vida, agora com fluxo saudável.
No último encontro, Helena contou-me que estava preocupada com a amiga
“ruim da cabeça”, e que gostaria de conversar com a família dela, pois precisava de
ajuda. No entanto, ela sabia que a família resistiría a tratamentos, e estava disposta a
tentar ajudá-la. Seu estado era de tal modo satisfatório que já se achava capaz de
cuidar da amiga que não estava bem. Continuou fazendo sua aula de pintura em
cerâmica, comunicava-se com amigos e família e via e-maií. Sentia sua vida melhor.
Algumas reflexões
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Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
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Acompanhamento terapêutico
que a preencheu, deu sentido a algumas de suas questões com a vida. Na pintura
em porcelana vislumbrou a possibilidade de, à maneira de sua avó, que a presen
teara com uma louça, ou de seus pais, que lbe deixaram os talheres com suas
iniciais gravadas, também deixar sua marca, uma lembrança para o futuro, ofere
cendo aos entes queridos um presente que a perpetuasse. Dar e criar ornamentos
que combinem com a casa dos parentes permite que faça parte de seu cotidiano,
de forma que todos se lembrarão dela pelos seus objetos, pois visitar a família se
tornou tarefa difícil depois da queda.
Ao término do AT, seu cotidiano havia se transformado. Sentia-se melhor,
com novas amizades e melhores condições de saúde. Além disso, estava recupe
rando a visão com tratamento de vitaminas, e mostrava-se mais confiante para
andar, já não usava cadeira de rodas fazia um tempo, e voltou a envolver-se no
cuidado de suas orquídeas sem subir no orquidário.
Seu futuro lbe parecia menos ameaçador e mais prazeroso do que quando
começamos o atendimento.
No dia que fizemos o fechamento do trabalho, contou-me que estava preocu
pada com aquela sua amiga que estava “ruim da cabeça” e, por esta não ter uma
família que lbe desse suporte, estava com a intenção de ajudá-la. Seu estado era
de tal modo satisfatório que já se achava capaz de cuidar de sua amiga.
O trabalho de A T é uma importante ferramenta para o cuidado que enriquece
a vida do idoso na fase da vida na qual sua fragilidade aumenta. Sendo sujeito dese -
jante, é possível haver transformações, visando a uma vida mais rica e saudável.
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Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
Referências bibliográficas
Goldíarb, D.C. (1998). Corpo, tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.
81
Acompanhamento terapêutico
Goldíarb, D.C.; Barbieri, N. A.; Gotter, E. M.; Peixeiro, M.H. (2009). Depressão
e Envelhecimento na Contemporaneidade. Kairos. v. 5. Disponível em: < http://
revistas.pucsp.br/index.php/kairos/issue/view/213> . Acesso em: 12 jan. 2010.
IBGE. Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios. Disponível em: < http://www.ibge.
gov.br/home/presidencia/noticias/25072002pidoso.shtm> . Acesso em: 20 jan. 2010.
OMS, Organização Mundial de Saúde. Guia Global - Cidade amiga do idoso, 2008.
Rebello, L. (2006). Acompanhamento Terapêutico com idosos: Mais que o mínimo necessá
rio. Portal do envelhecimento. Disponível em: < www.portaldoenvelhecimento.net> .
Acesso em: 08 dez. 2009.
Venturi G.; Bokany, V. (2007). Velhice no Brasil —Contrastes entre o vivido e o imagi
nado. Em Neri, A. L. (Org.). Idosos no Brasil: vivências, desafios e expectativas na terceira
idade. São Paulo: Sesc. p. 21 -33.
82
Considerações sobre o acompanhamento terapêutico no envelhecimento
WHO, World Health Organization. (2004). Better Palliative Care for Older People.
Edited by Davies, E.; Higginson, I. J.
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A importância do trabalho em equipe
A cada encontro, ouvia-se o que aquele sujeito de 72 anos queria ter feito
de sua vida. A dor expressa em seu choro, em suas palavras, nas vezes em que
encenava “um se jogar na frente dos carros” nas saídas do AT. Ele, que havia
enfartado quatro vezes (tendo, na última, passado um dia inteiro sem avisar
ninguém), dizia que não fez da própria vida o que queria ter feito. Mas estava ali.
Vivo. Encontrando pessoas novas a cada dia. Planejamos compor inicialmente
uma equipe de quatro ats para dar conta dos cinco dias, mas nunca foi possível
manter uma terceira pessoa. O primeiro “terceiro” que entrou nesse caso era um
at homem, que, ao receber críticas sobre seu trabalho, quis enquadrar o atendi
mento sozinho (sem uma reunião formal da equipe com a família), o que acabou
provocando a interrupção de seu trabalho.
86
A importância do trabalho em equipe
87
Acompanhamento terapêutico
a equipe de ats (a essa altura já éramos três) e depois também com a equipe do
hospital-dia (que ela voltou a frequentar depois de, em crise, ir até lá em um fim
de semana pedindo ajuda), observávamos as coisas melhorarem. Em aproxima
damente um ano, as crises, antes recorrentes, começaram a rarear até cessarem
completamente; ela se reaproximou dos filhos e da família (com prazer) e retomou
o trabalho. Mudar da moradia precária, por exemplo, era um desejo dela, uma
questão tratada pelos ats, e passou a ser uma ideia apoiada também pelo hospital-
-dia. Assim, essa ideia foi cuidada e a acompanhada pôde até levar seus filhos a
uma casa que era então só dela. As horas de A T na semana foram diminuídas e
começávamos a traçar a perspectiva de alta.
Houve então o que vou chamar aqui de “rompante da equipe do convênio”,
que se interessou pelo caso que “está indo tão bem” e resolveu tirar a referência do
tratamento do hospital-dia e passar para si, uma vez que houve, em outros tempos,
acompanhamento clínico deles também. Mudaram completamente a medicação,
e a acompanhada, que havia uns seis meses parecia se cuidar bem, teve seu
entorno (do qual dependia ainda) mudado. Mais uma vez em sua história, em
seu auge, sofreu uma queda e um rompimento. Houve, quase imediatamente,
uma crise maníaca que resultou em perda da casa, do contato com os filhos, do
trabalho, do namorado, de amigos-vizinhos, dos ats (que o convênio afastou).
A experiência foi de desolação. Mais uma vez, percebi que havia importância
na forma como se desenrolava e se mantinha a comunicação na equipe. Pensá-
vamos juntos e trabalhávamos por um porvir da acompanhada (que estava quase
sempre nas reuniões), a qual desenvolveu um caminho a ser trabalhado e susten
tado (a princípio por todos), até que começou a seguir com maior independência,
passando a sustentar os próprios desejos. Só não observávamos que havíamos
deixado de fora uma parte da equipe e da dinâmica do caso —que, depois de dois
anos calada, se pronunciou.
Depois dessa experiência, que me mobilizou a pensar sobre a repetição (uma
repetição inevitável?), pois a história dela trazia a primeira crise quando estava
numa fase em que produzia muito, refleti sobre a destruição presente em casos
graves. Mais uma vez, coloquei-me a procurar a resposta para a origem de tamanho
sofrimento, da psicose, e a buscar a melhor forma de intervir nesses casos.
88
A importância do trabalho em equipe
1 Para Winnicott, a intersecção ótima da mãe com o bebê tem por finalidade criar o afeto de existência.
89
Acompanhamento terapêutico
que eu estava dizendo aquilo. Não reconhecia a fala como sua. A equipe que
o atendia havia tempos também não reconhecia aquela fala como dele. Ao
discutir a situação com a equipe, a reação dos membros foi de estranhamento,
tanto que levantaram a possibilidade de eu ter escutado errado, pois esse sujeito,
apesar de apresentar certa agressividade, era muito contido e não falaria uma
coisa dessas. E assim seguiram-se inúmeros encontros com o paciente dizendo não
se lembrar ou não saber o que falou. Talvez se possa dizer que o A T nesse período
funcionou como memória para E Uma introdução ao simbólico, como diria Lacan.
P também dizia muitas vezes no início desse tratamento que não havia nada
em sua cabeça, só barulho. Após longo estudo de textos de Freud, A interpre
tação das afasias (Freud, 1891) e O inconsciente (Freud, 1915), interpretei essa fala
como talta de ligação entre suas associações. Eu via que P existia. Com o passar
do tempo e do trabalho, eu vi que ele tinha coisas a falar sobre si, mas elas não
estavam associadas a um sentimento de si. Freud, no primeiro texto, formulou
que um aparelho de linguagem (correspondente ao aparelho psíquico) é cons
truído gradativamente pela aprendizagem e que só se constitui na relação com outro
aparelho de linguagem. Qual teria sido a influência na constituição do aparelho de
linguagem de P se se supõe que essa influência tenha ocorrido em contato com um
aparelho de um sujeito em depressão?
Depois de cerca de um ano2, P seguia escutando algumas palavras minhas
e apertando os olhos para se acalmar quando estava “incomodado”. Apertava
os dois sistematicamente, muitas vezes sem nem perceber, chegando até a ficar
desfigurado de vez em quando de tanto apertá-los. P teve certa preocupação com
o olho por um período. Fizemos muitas pesquisas, em diversos lugares, porque
P queria saber quais eram os oito nervos que faziam enxergar. Depois de certa
procura, encontramos um atlas com explicações e ilustrações. P estudou, copiou
os desenhos, xerocou e depois encerrou o assunto.
Posso dizer que, nesse período, P não enxergava. Ele via, mas não eram todas
as coisas. As pessoas chegavam ao seu lado, falavam com ele, mas ele não as via.
Disse Lacan (1985, p. 165) que “é a relação simbólica que define a posição do
2 Importante destacar que nesse período eu acompanhava P sozinha, pois, com oito meses, o outro at (que havia
entrado três meses antes de mim), encerrou o atendimento.
90
A importância do trabalho em equipe
sujeito como aquele que vê”. Para ele, o simbólico é identificado à linguagem.
Fica clara a ideia de que o acesso à linguagem faz do sujeito um escravo. Aquém
do acesso à linguagem está a linguagem como preexistente, como uma série de
determinações preestabelecidas, em que o ser falante vai se inserir.
P que permanecia parado num café dizendo que era um “fracassado”, parecia
ter então descoberto as palavras. As atividades nos ATs eram consultar todos
os dicionários de várias livrarias dizendo que queria entender o significado das
palavras. E pedia para que eu as lesse. Na parte III do texto de Freud (1914) Pctra
introduzir o narcisismo, o autor escreve que a “consciência que atua como vigia3”
surgia “da influência crítica de seus pais (transmitido por intennédio da voz) e
pelos que o educaram, pessoas do ambiente e a opinião pública”. As primeiras
palavras procuradas por P foram “tara” e “moral”. Ele dizia que somente quando
eu as lia que essas palavras poderíam entrar na sua cabeça. Depois P buscou pela
palavra “alteridade”.
À pergunta de Lacan (1986, p. 158), “quando o psicótico reconstrói o seu
mundo, o que é que é inicialmente investido?”, ele responde que são as palavras.
Não se pode deixar de reconhecer aqui a categoria do simbólico. É a palavra a
função simbólica que define o maior ou menor grau de perfeição, de completude,
de aproximação do imaginário4. O método analítico facilita a volta para a via
daquilo que, na palavra, está acima do nível de conhecimento, o que diz respeito
ao terceiro, ao objeto5.
P começa a andar pelo centro da cidade querendo “ter o mapa na cabeça”. E
tomos a sebos procurar por livros que ele dizia ainda não conseguir entender. Mas
os comprava mesmo assim. Os olhos ainda eram apertados para ele se acalmar.
Contudo, essa atividade acontecia com menos frequência.
P passa a se cuidar mais (estaria ele gostando mais de si?), comprando objetos
de uso pessoal para cuidados com o corpo, e abandona, aos poucos, os rituais da
91
Acompanhamento terapêutico
noite que não o deixavam donnir. Pede para que eu leia histórias de contos de
tadas e, depois de uma crise epiléptica, pede colo.
Ferenczi (1929), no texto A criança mal acolhida e suapulsão de morte, observou
que a crise epiléptica se seguia à experiência de desprazer, as quais davam, a certo
paciente dele, a impressão de que a vida não valia a pena ser vivida. Falou também
do pessimismo moral e tilosótico desses sujeitos, do ceticismo e da desconfiança.
Sem falar da inapetência para o trabalho, incapacidade para sustentar um esforço
prolongado e especulação cosmológica. Tais sujeitos se perguntam: “por que me
trouxeram ao mundo?”. Já para Freud (1923), o desprazer está ligado ao aumento
de tensão. Para fim de descarga, a pulsão de destruição é habitualmente colocada
a serviço de Eros, e ele suspeitava de que a crise epiléptica era produto e indicação
de desfusão pulsional, como escreveu na parte IV de O eu e o isso (Freud, 1923).
Com o desenvolvimento do processo e conversas mais frequentes com o neuro-
psiquiatra, pude notar P melhorar em relação a sua autonomia. Ele quis fazer
cursos e fez. De início, falava que só os fazia por sugestão dos antigos profissionais.
Depois parecia se implicar mais com a busca do saber.
No entando, novamente se dizia não saber nada. Falou: “ser filhinho de papai
não dá mais; preciso saber que sei me virar sozinho”. P pediu para parar o AT porque
estava saindo de casa só para ver a at, e “esse não era o propósito do A T”. Ficou
dois meses sem acompanhamento e voltou porque, segundo ele, sabia que preci
sava. Sete meses se passaram e ele quis parar novamente; dessa vez porque queria
morar sozinho. E isso só podería fazer mudando de cidade e de estado.
O mês que antecedeu sua partida trouxe falas como “eu estou te enxer
gando”. “Puxa! Por que nunca tinha te visto?” E mostrava gostar de olhar para
mim. Passou os três últimos encontros me desenhando e deixou o desenho comigo,
dizendo que não ficou como ele queria. Parecia se deliciar no papel ativo em que
me mantinha imóvel para que pudesse me desenhar.
Antes de partir quis vender alguns livros e teve certo trabalho com isso. Dizia
“quem mandou eu querer”?. Contou um sonho da seguinte maneira: “Eu sou
um criminoso. Sonhei com uma cena que me faz ser o homem mais criminoso da
tace da Terra”. Por um ato que nem Freud explica, falei que sabia o que ele tinha
sonhado: que havia desejado a mãe. P espantou-se com a minha fala e disse que era
isso mesmo, por isso ele era um criminoso. Depois de uma longa conversa em que
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A importância do trabalho em equipe
93
Acompanhamento terapêutico
mencionada por Green (1988), em que a mãe primeiro deseja unidade com seu
bebê, depois bá a inversão de valores, e ela quer a separação? Ou será a imagem
especular que oferece o outro, inverso de si mesmo?
P falou, certa vez, que gostava do meu lado humano, que “não rosna”.
Ao procurar a realidade de si, a consciência encontra apenas a imagem do
outro com o qual se identifica e no qual se aliena. É o que Garcia-Roza (1995)
afirma em Artigos de metapsicologia; é o outro que está na posse de sua imagem, já
que o sujeito percebe o próprio corpo na imagem do outro. A identificação é alie-
nante, produtora de tensão, e tem como consequência imediata a necessidade de
destruir o outro, fonte de alienação. Talvez por isso tenha surgido o sonho (que
contarei a seguir), e também a vontade de torturar a at no início do tratamento.
P contou que, em um de seus sonhos, explodiu um quarteirão para chamar
a atenção de uma moça. E perguntou se teria de fazer o mesmo para que alguém
o notasse. P queria, nessa época, descobrir uma “técnica” para se aproximar das
mulheres.
Fez-se necessário um outro at nesse momento. Um at homem, com quem
P pudesse se identificar. E deu-se início ao trabalho, saindo os dois para que P
pudesse paquerar.
Presumo que, nas ocasiões em que P saía de casa para o A T (única ativi
dade que teve durante anos) e passava quase três horas apertando o olho para se
acalmar, sem me enxergar ou a quem quer que fosse, tal atividade fosse autoeró-
tica. É o autoerotismo que guarda a satisfação antes do eu e do recalcamento. É
no momento em que a atividade pulsional pode ser compreendida como relação
do eu com as fontes de prazer do objeto considerado como independente do eu,
que a transformação passividade/atividade adquire a forma do amor que o eu pode
dedicar a si mesmo.
Parece haver um sentimento de si mesmo quando P constata que pode cuidar
de si, primeiramente comprando coisas de higiene e uso pessoal, e depois quando
foi morar em outra cidade. Ele falou que lá lembrava das coisas que eu dizia. Será
que o isso da at ficou no sujeito, compondo assim suas pulsões de autoconservação6?
6 Green (1988) escreveu que o isso da mãe fica no sujeito. Somente por isso ela pode dormir a noite. No sujeito
fica a autoconservação.
94
A importância do trabalho em equipe
95
Acompanhamento terapêutico
A aproximação da função desse segundo at como aquele que faz o corte esta
beleceu o caminho para a alta desse sujeito, que passou a não ter dificuldade
nenhuma em dizer o que queria e o que não queria.
Qual o meu desejo? Qual é minha posição na estruturação imaginária? Essa
posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imagi
nário. No nível do plano simbólico, dos seres humanos que tendem a não rosnar.
Para Winnicott (1975), é necessário que a criança se veja nos olhos da mãe
antes de vê-la, para tomrar seus objetos subjetivos —isto é, narcisistas. O narci-
sismo é a estruturação escópica que permite a uma libido de objeto existir, que dá
causa para o desejo do sujeito.
Trabalhamos, eu e o outro at (pois não daria para fazer isso sozinha) para
recuperar um tempo passado na memória de P e pudemos assistir (porque ats
também gostam de ver) a um investimento no futuro, porque P passou a querer.
Várias coisas. Essa transfomiação supõe que ele admitiu o outro. Como modelo
ideal, como alteridade, como diferença desejável. Ora, desejar algo que não se é ou
que não se tem revela uma falha no sujeito. Falha que aparece à revelia do narci-
sismo egoico. O ideal, com sua presença no psiquismo, mostra a divisão do sujeito
e sua dependência do desejo do outro. Depois disso, vem a elaboração psíquica
em que as certezas narcísicas, aquelas como “sou um fracassado”, são postas em
dúvida, permitindo a mobilidade dos investimentos em direção a novos objetos
psíquicos.
96
A importância do trabalho em equipe
Referências bibliográficas
Ferenczi, S. (1929). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. (Coleção Obras Completas, v. 4.)
Freud, S. (1914). Para introduzir o narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV.)
Freud, S. (1915). O inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasi
leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV)
Freud, S. (1923). O eu e o isso. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasi
leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIX.)
97
Acompanhando Rita
100
Acompanhando Rita
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Acompanhamento terapêutico
Desde o início Rita gostou dessa nova pessoa, Edna. Em nosso primeiro
encontro após a chegada de Edna, Rita já sabia o nome dela — fato inédito, pois
costumava demorar semanas para memorizar o nome das pessoas que traba
lhavam com ela. Rita passou a chamá-la de “irmã”.
Rita começou a sair cada vez mais para andar no bairro e a fazer algumas
amizades. Os passeios eram feitos comigo e com Edna, e sempre levávamos junto
o cachorrinho de Rita. Encontramos em Edna uma pessoa sensível e adequada,
que manteve um comportamento constante por muito tempo, fato que permitiu
a todos uma reorganização muito útil do tempo, inclusive no tocante ao acompa
nhamento terapêutico da paciente.
Rita decidiu que não queria mais ir ao curso de jardinagem. Encontramos,
então, uma escola de arte especializada em casos semelhantes aos de Rita. Essa
escola era próxima a sua casa, e ela passou a frequentá-la. Edna a levava e, desse
modo, meus atendimentos voltaram a ser como antes.
A partir desse momento, o A T deixava de ser um “apagador” de incêndios,
direcionando-se a resolver problemas graves, sendo que o foco principal passou a
ser eletivamente a paciente, sua saúde e possibilidades.
102
Acompanhando Rita
M í
O irmão da paciente morreu e, apesar de Rita ter sentido muito a morte dele,
ficou ao mesmo tempo mais aliviada, uma vez que sua doença era muito penosa a
todos. Estava com um câncer que se havia alastrado pelo corpo inteiro, apesar do
tratamento inédito que fazia.
Marta ficou em dúvida se Rita não estaria sentindo o luto por conta dos
medicamentos, pois acreditava que o fato de não senti-lo inteiramente pudesse
prejudicá-la. Após uma conversa com Marta, esclarecemos que os medicamentos
trariam conforto à innã, e que ela sentia, sim, o luto, pois sempre comentava
a morte do irmão, sua dor, e gostava de lhe fazer orações; em momento algum ela
ficou “anestesiada” pela medicação.
Com o passar do tempo e com o nosso trabalho, Rita vive, hoje, uma tranqui
lidade maior. Ela já não fica mais trancada dentro de casa; sai para passear tanto
comigo quanto com Edna, e já fez algumas amizades no bairro. Rita nem se lembra
mais da instituição à que tanto queria voltar.
Por outro lado, porém, o fato de Rita ter uma liberdade maior — sempre
assistida —, de conseguir se orientar melhor nos lugares (como a irmã relatou)
e ter novas amigas trouxe algumas complicações para a nova dinâmica da família.
Todos estavam acostumados com Rita dentro de casa e, apesar de essa situação
ser empobrecedora à sua existência, era cômoda para todos. A irmã de Rita começou
a se incomodar com o modo como ela andava pelo bairro e pedia-lhe para que
não saísse na rua com a boneca, que gostava de mostrar a todos que encontrava.
Numa reunião, Marta disse que gostava de saber que sua irmã estava mais
feliz e ativa, mas dizia que ainda precisava se adaptar àquela situação. Contou
que, uma vez, ela chegou do trabalho muito cansada, e Rita começou a contar
sobre o seu dia. Marta estava um pouco distraída com a televisão até que Rita
falou: “Por que você não olha para mim quando eu estou te falando alguma coisa?
Só assiste à T V ”. Marta desligou a TV e escutou a história, mas disse que chorou
muito quando foi dormir, pois percebeu que, realmente, nunca prestou muita
atenção ao que a irmã falava.
As mudanças que a paciente vivia durante o tratamento precisavam ser
acompanhadas por mudanças vividas também por seus familiares; caso contrário, a
paciente tendería a voltar à posição em que se encontrava anteriormente.
103
li A Acompanhamento terapêutico
No início do caso, acreditei que pudesse ser melhor que outro psicólogo
acompanhasse a família, pois ficaria mais livre para atender apenas Rita. Isto
funcionou muito bem, mas, depois, fiquei um ano atendendo o caso sozinha, e
fazendo reuniões com a irmã e com a empregada. No começo, entretanto, foi
essencial a ajuda de outro profissional que só orientasse a família.
É muito importante o acompanhamento familiar, e o modo de fazê-lo deve
ser muito bem pensado desde o início. Apesar de as mudanças serem libertadoras
perante comportamentos adoecidos, são difíceis de acontecer e de permanecer.
Tudo o que é novo, principalmente em famílias de pacientes com esse tipo de
problemas, tende a trazer-lhes muita dor e angústia, e eles também merecem um
acompanhamento. O A T é um tipo de tratamento que “invade” a casa com o
consentimento familiar, e todos são atingidos, logo, devem ser apoiados.
O caso de Rita não é originário de uma doença psiquiátrica — como já havia
dito no início deste relato —, mas de uma pessoa que, a partir de seu compro
metimento neurológico, foi tomando-se muito “presa” em casa, em meio a um
cotidiano muito empobrecido e, por conta disso, Rita tomou-se cada vez mais
agressiva. Chegou a um ponto que Marta pensou em desistir de tudo e em intemá-
-la numa instituição apropriada. O acompanhamento terapêutico ajudou essa
família a se organizar e, com um cotidiano mais rico, Rita passou a não ser mais
tão agressiva, e Marta nunca mais cogitou interná-la. A ajuda medicamentosa foi
essencial para o sucesso do caso, além da orientação para a “cuidadora” de Rita.
Com reuniões frequentes, acompanhei o cotidiano de Rita e de sua família.
Creio que o sucesso desse acompanhamento terapêutico aconteceu desde o
início, quando quis compreender o que levava Rita a ficar tão aborrecida a ponto de
agredir fisicamente as pessoas ao seu redor. Queria saber qual era o sentido para
tamanha raiva. Muitas vezes, parecia que Rita ficava demasiadamente irritada
“do nada”. Marta acreditava que Rita deveria ser educada e “punida” quando
apresentava esses episódios de intensa agressividade: “A terapia, entretanto, não
é um recurso de repressão social destinado a corrigir as pessoas que estão erradas”
(Pompéia, 2004, p. 154).
Não tinha a intenção de corrigir o comportamento de Rita, e, mesmo se
o quisesse, não seria capaz. Depois de muito acompanhá-la, em cada episódio
104
Acompanhando Rita
turbulento o sentido de sua raiva toi-se desvelando a mim. Devo dizer que foi
importante acompanhá-la também em seus momentos de intensa raiva, ficar ao
seu lado mesmo quando estava tomada pelo ódio, pois assim era Rita, e acom
panhá-la significava estar ao seu lado inclusive naqueles momentos: “Deixar o
outro ser tal como ele é significa respeitar o outro em sua alteridade e ser teste
munha do modo de ser do outro” (Jardim, 2009, p. 59).
No momento em que testemunhava sua raiva, minha única preocupação era
que Rita não se machucasse, tampouco eu. Se estivéssemos na rua, voltávamos
imediatamente para casa, e Rita nunca deixou de seguir-me. Depois precisava
conversar com ela sobre o que havia acontecido, mas era ela quem me dizia quando
estava pronta para a conversa. Às vezes era preciso aguardar alguns encontros até
que Rita tocasse no assunto, mas esse tempo era sempre respeitado.
Quando Rita se sentia pronta, ela começava a conversa com um pedido de
desculpas, e assim falávamos por que tinha ficado com tanta raiva. Outras vezes,
Rita pegava uma revista e começava a contar a história de alguma das pessoas
nela fotografadas: era sempre alguém muito “mal-educado, que tinha xingado e
batido em todo mundo”, e assim eu ia perguntando o que levava “a mulher da
revista” a xingar e a bater em todos, e Rita contava sobre si mesma.
Essas conversas foram revelando que Rita sentia muita raiva ao ser contra
riada, sentia muito quando queria algo que não podia acontecer. Rita sabia de sua
limitação e percebia que, muitas vezes, precisava da ajuda de outros para resolver
seus problemas e que, nem sempre, eles levavam em conta os seus desejos (na
maioria das vezes, a própria vida ignora nossos desejos). Mas até que ponto ela
podería decidir por si mesma?
Um dos grandes incômodos de Rita era querer comprar algo e não ter
dinheiro suficiente para isso. Eu costumava antecipar-me, perguntando-lhe se
o dinheiro dava ou não para comprar o que ela queria. Mas percebi, com nossas
andanças pela rua, que minha antecipação não a ajudava.
Em certo dia, Rita tinha apenas um real, e queria comprar um livro com
bichinhos que custava dois reais. Ela estava conversando com o moço da loja
quando eu lhe disse que o dinheiro que tinha não era suficiente. Muito brava ela
me olhou e disse: “Isto não é da sua contai Não se intrometa!”
105
Acompanhamento terapêutico
Naquele dia fomos embora para casa e, pensando sobre o caso, cheguei à
conclusão de que Rita tinha razão: eu havia me intrometido em sua conversa com
o vendedor. Percebi que Rita sabia que o dinheiro era insuficiente, que conver
sava com o vendedor porque estava “pechinchando”, e eu havia estragado tudo.
Depois desse episódio, combinamos que ela perguntaria os preços. Rita nunca
mais se zangou quando o dinheiro não dava para comprar algo. Naquele dia,
aprendi algo muito importante com ela.
Rita sabia muito mais do que eu achava que ela soubesse: sabia quando tinha
pouco dinheiro, e sabia quando tinha mais. Sua liberdade aumentava, e ela podia
fazer suas coisas, ser criativa, e não se frustrar tanto quando algo não lhe pudesse
acontecer.
Fui compreendendo Rita cada dia mais, apesar de, muitas vezes, não compre
ender o que estava acontecendo. Rita se sentia compreendida e já não ficava mais
tão tomada de raiva. Não era preciso explicar-lhe racionalmente que deveria “se
comportar” nos lugares, porque, do contrário, suas saídas não seriam mais possí
veis. Ela sabia que seus ataques de fúria a impediram, muitas vezes, de frequentar
os lugares que queria, mas somente o conhecimento acerca desse “acordo” não
era o bastante para que não ocorressem: “A verdade racional é impotente diante
das dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicularizar a razão” (Pompéia,
2004, p. 157).
Não é, portanto, pela via da razão que caminha a linguagem do A T e de
outras formas de intervenção terapêutica. A ajuda ao paciente não está em dizer-
-lhe o que ele deve fazer ou não.
A linguagem própria do diálogo entre terapeuta e paciente tem outra via, a via
da poiesis (mesma via da poesia, dos contos e até das piadas). Tal palavra, de origem
grega, significa trazer à luz, trazer algo para seu desocultamento. Porém o que quero
dizer quando aproximo a linguagem da terapia à da poesia, dos contos e das piadas?
“Nessa fomia de linguagem, quando há compreensão, esta vem gratuitamente,
emocionalmente e sem necessidade de argumentação mediada pela razão. Aqui
teríamos uma comunicação que ou se dá, ou não se dá” (Pompéia, 2004, p. 159).
Tanto na terapia quanto nas piadas, nos poemas e nos contos, a compre
ensão ocorre de forma natural, sem a necessidade de uma explicação racional.
106
Acompanhando Rita
Mv
Compreensão e explicação são processos absolutamente diferentes, pois tentar
explicar um poema ou uma piada é estragá-los.
Na compreensão, não tentamos tomar posse do sentido e permanecer com
ele para sempre, pois o sentido se desvela e se encobre. A explicação caminha
somente na via intelectual, e cobra um sentido claro e fixo.
Por não querer tomar posse do sentido e por saber que ele é fluido, a compreensão
anda lado a lado com a não compreensão. Abrir mão de uma explicação racional
sobre um sintoma é caminhar na fluidez de um sentido, e deparar-se, de repente,
com o incompreensível. Muitas vezes, ao lado de Rita, não conseguia compreender
o que ela estava sentindo, mas esse era o risco de a estar sempre acompanhando.
Das vezes que consegui compreender Rita, era como se estivesse autenti
cando o seu comportamento, e assim ela conseguia encontrar um sentido para a
sua raiva. Ela se sentia mais próxima de mim e de sua própria experiência, a qual
tanto queria expressar a partir de seus ataques de fúria.
Ao encontrar um sentido para sua raiva, Rita passou a controlá-la melhor,
suas saídas se tomaram mais possíveis, e sua vida, mais enriquecida. Ela já não
entrava naquele estado terrível, controlada por um sentimento tão ruim quanto
o ódio. Rita foi encontrando novas habilidades em suas caminhadas, sua criati
vidade foi sendo exercida, e passou a sentir-se um pouco mais dona de sua vida.
Vale a pena ressaltar que Rita ainda tem episódios de intensa agressividade,
mas eles estão se tornando cada vez mais espaçados e já não a impedem de sair
de casa e viver a sua vida ao lado dos outros.
107
Acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
108
A deficiência, o acompanhamento
terapêutico e a experiência de visibilidade
1 Este texto é um relato pessoal, daí a utilização da primeira pessoa do singular. No entanto, quando estiverem
envolvidas a equipe da Associação Carpe Diem e Thiago e Bia, será usado primeira pessoa do plural.
Acompanhamento terapêutico
110
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade
Esses pacientes vivem a experiência de não serem vistos no campo social. Trata-
-se de uma situação que frequentemente vem acompanhada pelo sentimento
de humilhação, mas a experiência de não ser visto ganha preponderância. Em
nosso mundo, pessoas que ocupam posições de pouco prestígio social, habi
tualmente, passam despercebidas pelos outros. O mal-estar decorrente dessa
situação é grande, podendo gerar uma desesperança e amargura ou, em casos
extremos, deflagrar comportamentos violentos como única forma de alcançar
alguma visibilidade, (p. 143)
Com o referido grupo de jovens com Down, percebíamos que o anseio pela
visibilidade dava-se não com comportamentos violentos, mas com atitudes muitas
vezes descontextualizadas e fantasiosas, nas quais tais jovens se assentavam na ideia
de serem artistas ou cantores famosos. Ou, muitas vezes, “tomavam” a palavra em
situações sociais também de forma descontextualizada e inconveniente, intensi
ficando a angústia de ocupar um lugar de estranhamento para os outros que
presenciavam tais situações.
Reconhecer esse tipo de sofrimento, bem como o anseio de visibilidade, foi
o que começamos a fazer com o grupo, criando espaços de discussões. Era uma
tonna de humanizar a dor que latejava no invisível. A abertura desses espaços de
discussões em grupo sobre a dor que estava invisível já era uma abertura de um
campo social para algo que não tinha lugar. Era um espaço em que se apresentava
o rosto humano que reconhecia o anseio pela visibilidade. Por definir um lugar de
reconhecimento humano, essas discussões mesmas já se configuravam como um
placement, tipo de intervenção utilizada no acompanhamento terapêutico (Safra,
2006a) e que será mais bem conceituada no decorrer deste capítulo.
Nessas discussões o desejo por explorar mais a sexualidade era um dos temas
reivindicatórios preteridos do grupo. Nesse mesmo período, esses jovens come
çaram a participar de um projeto-piloto de orientação à sexualidade que propunha
uma ação de prevenção contra a AIDS e outras DSTs. A importância desse projeto
era evidente, já que a inclusão social tomava ainda mais vulnerável essa parcela
da população, carente de atenção e cuidado com a sexualidade, com o abuso
sexual e com o risco de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis.
111
Acompanhamento terapêutico
2 Embora seja habitual a norma de colocar os nomes dos participantes em sigilo, como assinala o código de
ética em pesquisa com seres humanos, neste caso nos encontramos numa situação paradoxal. Ocultar o nome
desses jovens seria jogá-los para invisibilidade, constituindo uma fratura ética. Para eles, a explicitação de seus
nomes neste processo é motivo de satisfação, orgulho e dignidade.
112
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade
113
Acompanhamento terapêutico
com seus cães-guias e laptops que “falavam” etc. Era muita novidade para eles. E
por isso notei a necessidade de filtrar os itens para ajudá-los a elaborar tudo o que
vivenciavam de novo.
Era no quarto do hotel que importantes conversas aconteciam sobre tudo o
que vivíamos. Elaborações pessoais borbulhavam, e geralmente só conseguíamos
donrnir muito tarde, quando o cansaço vencia todas as inquietações. A questão da
deficiência foi um grande assunto. As deficiências dos outros faziam com que eles
entrassem em contato com a própria deficiência de uma forma diferente. Puderam
se posicionar de outra maneira em relação a si mesmos. Ter uma deficiência foi
reconsiderado, deixando de ser um aspecto humilhante para ser uma condição
humana. Toda a vivência no evento, bem com as elaborações dadas com nossas
conversas possibilitaram que certos aspectos —que eles viviam como dissociados
do mundo humano - pudessem ser humanizados.
A deficiência nesse evento era reconhecida, considerada, vista com dignidade.
Experiência importante para meus acompanhados que, em outros momentos,
haviam recusado ajuda, como se recusassem contato com suas limitações. Em
outras vezes, suas limitações eram vividas como humilhação e, portanto, deveríam
ser escondidas ou negadas.
Por ficarem encantados com um cão-guia que auxiliava um professor defi
ciente visual, chegamos à comparação de eu ser o cão-guia deles. Depois de muita
brincadeira e risada com a imagem comparativa, discutimos sobre a necessidade
de apoio que as pessoas com deficiências têm para vivenciar as oportunidades
da vida. Precisar de apoio não significa impedimento, e sim possibilidade. Essa
conversa foi importante para que eles percebessem que, em muitas outras situa
ções, quando recusaram ajuda, não conseguiram aproveitar a situação de verdade.
Ao me aceitarem como “cão-guia” no fórum e no congresso que se seguia ao
evento, perceberam que poderíam entender melhor o que era discutido e, assim,
participarem de fomra mais interativa e contextualizada com os outros. Conse
guiram se apropriar da percepção dada pela deficiência intelectual de que as pessoas
“falam rápido demais”, impedindo-lhes o entendimento. Porém, também perce
beram que se contassem com o auxílio de interlocução de um flt, não ficariam
paralisados no impedimento. Associaram a situação deles não só à necessidade da
114
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade
pessoa deficiente visual pelo cão-guia, mas daquela com locomoção reduzida pela
cadeira de rodas etc.
Safra aponta (2006b):
Compreender não é uma faculdade que possa ser adquirida pelo ser humano
ao longo da existência, seja por desenvolvimento mental ou aprendizagem.
A compreensão é essencialmente originária no ser humano. Trata-se de uma
possibilidade dada ao homem, que lá está desde sempre, ou seja, desde o
momento que ele acontece no mundo [...] Assim, mesmo que se pense em
crianças com deficiência intelectual, abertura para o ser e a compreensão
estão igualmente presentes. Nessas crianças encontramos o sofrimento pela
condição decorrente da limitação que a deficiência traz, enquanto, ao mesmo
tempo, há a necessidade de dar sentido à experiência de serem atingidas deste
modo de situação. Por esta razão, também com essas crianças, é fundamental
que se possa estar e conversar com elas, para que a situação que as atravessa
alcance um sentido humano, (p. 22-23)
115
Acompanhamento terapêutico
suas palestras sob o palco, cansei de ouvir comentários do tipo: “Nossa! Vou ter
que rever meus valores!”
“Se vocês podem beijar, por que eu não posso? Se vocês podem namorar, por
que eu não posso? Se vocês têm relações sexuais, por que eu não? Sinto-me triste
com isso!” Foi o que Thiago disse a uma grande platéia. “Sexualidade não é privi
légio de quem não tem deficiência! Aprendi muito com o Projeto de Orientação
à Sexualidade e boje eu namoro e estou aqui neste congresso talando para vocês!”
Foi o que Bia talou para a mesma platéia.
Fazer as pessoas reverem seus valores: este toi o resultado que Bia e Thiago
alcançaram nessa grande aventura em Florianópolis. Eles puderam perceber
que afetaram várias pessoas com a própria presença, participação e fala.
As pessoas com deficiência geralmente apenas experimentam precisar dos
outros e encontram dificuldades em poder contribuir. Contribuir é dado por um
gesto pessoal, uma ação criativa que realmente afete um outro, de modo marcante.
Para Satra (1999), quando a ação encontra um outro devotado, transforma-se
em gesto criativo, porque é humanizada. Ou seja, é por um gesto criativo, susten
tado por um outro, que um lugar é criado entre os homens. Bia e Thiago criaram
um tipo de presença e participação muito pessoais nesses eventos. Presença e parti
cipação que realmente afetaram um grupo de pessoas. A ação da dupla sustentada
pela admiração de um grupo deu origem a um lugar de reconhecimento e visibili
dade à questão da sexualidade no campo da deficiência intelectual, bem como à
questão de poderem falar por si próprios em âmbitos sociais maiores.
Safra (2004) desenvolve uma compreensão sobre a importância de um lugar
na comunidade humana, designada por ele como Sobómost:
116
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade
117
Acompanhamento terapêutico
118
A deficiência, o acompanhamento terapêutico e a experiência de visibilidade
Referências bibliográficas
Safra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.
Safra, G. (2004). A pó-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras.
(Coleção Psicanálise século I).
119
Um aspecto do manejo na análise de
uma paciente psicótica: o valor clínico do
acompanhamento terapêutico
Introdução
Apresento neste trabalho aspectos da experiência que vivi na condução da
análise de uma paciente psicótica, em especial no que se refere à indicação para
Acompanhamento Terapêutico (AT). Os significativos desdobramentos clínicos
que pude observar no tratamento da paciente, aqui chamada Ágatha, em decor
rência da utilização desse tipo de manejo, levaram-me a compor este texto.
A reflexão ocorre, basicamente, durante a narrativa de episódios da análise,
especialmente aqueles que apresentam os manejos clínicos por mim realizados.
Dentre estes, são enfocados alguns que incluíram o AT.
No que se refere à literatura consagrada a este procedimento clínico, o
presente trabalho aproxima-se da contribuição de Barretto (1998), em sua funda
mentação teórica e clínica, e de Maia (2006), em seu objeto de investigação.
Antes de apresentar o material clínico, abordo alguns pontos de natureza
teórica, buscando explicitar ao leitor algumas das idéias que, nos últimos anos, têm
me servido de referência na prática clínica e na pesquisa e que, por esse motivo,
habitam as linhas e as entrelinhas do caso de Ágatha. Tenho me baseado na
abordagem desenvolvida por Donald W. Winnicott, o que não impede o diálogo
enriquecedor com outras perspectivas.
Em decorrência do caráter clínico deste texto, não realizo uma explanação
teórica detalhada.
Acompanhamento terapêutico
1 Os textos de Winnicott são citados aqui a partir da “Lista completa das publicações de D. W. Winnicott”,
elaborada por Knud Hjulmand (2007). Nela consta o ano em que cada trabalho foi publicado pela primeira
vez, bem como uma letra que indica a ordem em que foi publicado naquele ano.
122
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
o valor clínico do acompanhamento terapêutico
Winnicott considera que a saúde, na melhor das hipóteses, precisa ser conquistada
e mantida em cada uma das etapas que compõem o processo de amadurecimento
pessoal (19711 [1967]; 1988, p. 23-47). Isso se relaciona, basicamente, com a inte
ração de dois fatores: a tendência inata ao amadurecimento e a presença contínua
de um meio ambiente facilitador que forneça ao indivíduo cuidados suficiente
mente bons.
Por sua vez, grosso modo, os adoecimentos psíquicos estão relacionados, na
abordagem winnicottiana, com paralisações no processo de amadurecimento
pessoal. No caso específico das psicoses que pertencem ao campo das esquizo-
frenias (Dias, 1998), o ponto de origem estaria situado nas primeiras etapas do
desenvolvimento emocional, nas quais, efetivamente, os aspectos mais básicos
do self começariam a ser constituídos. Em decorrência de repetidas falhas ambien
tais num momento tão precoce do desenvolvimento, o indivíduo tem de se
organizar defensivamente contra as agonias primitivas ou impensáveis, o que,
para Winnicott, consiste na própria definição de psicose (1974).
No plano da técnica utilizada na condução do tratamento dos pacientes, que,
segundo o autor, ainda não haviam conquistado o status de unidade espaço-tempo
(1955d [1954], p. 460), Winnicott servia-se, essencialmente, daquilo que deno
minava “manejo” (management).
Segundo Masud Kban (1993), o manejo é a intervenção por meio da qual o
analista busca oferecer ao seu paciente a provisão ambiental de que ele necessita
para retomar o seu processo de amadurecimento pessoal. Portanto, ao utilizar o
manejo, o clínico visa oferecer ao indivíduo as condições ambientais que, apesar
de serem de fundamental importância para a constituição dos seres humanos, este
parece não ter encontrado em sua vida.
Khan (1993, p. 28) afirma que, no contexto da obra winnicottiana, três tipos
básicos de manejo podem ser distinguidos:1
123
Acompanhamento terapêutico
Caso clínico
Conheci Ágatha quando ela tinba 28 anos de idade. Logo no início do trata
mento, ela deixou claro que algo terrível e difícil de explicar havia lhe ocorrido aos
treze anos e que, desde então, vivia em um mundo ameaçador e confuso. Diziam-
-lhe que, naquela ocasião, sofrerá um colapso esquizofrênico e que, por isso, teve
de ser internada em um hospital psiquiátrico e “tomar todos aqueles remédios”.
Mas essa explicação, na verdade, não parecia fazer qualquer sentido para ela. A
paciente não conseguia sentir que era a mesma pessoa antes e depois daquela
mudança brutal e misteriosa. Também seu pai, disse-me Ágatha, não parecia ser o
mesmo que figurava nas fotografias de sua infância. De meu ponto de vista, ela me
comunicava que trazia profundas rupturas na experiência que tinha de si mesma,
que ainda não era uma pessoa. Outros fenômenos que pude observar durante esse
período inicial do tratamento fortaleceram essa hipótese clínica.
Fenômenos
A palavra “branco” era utilizada pela paciente para denominar aquele que, tal
vez, fosse o seu pior padecimento. Na descrição desse fenômeno, visando a proceder
com rigor, vou colocar entre aspas os temros de que a própria paciente se servia.
Às vezes, Ágatha vagava pelos corredores de sua casa como um “zumbi”,
durante horas ou dias, sem poder se “agarrar” a qualquer ponto de referência
pessoal. Certa vez, mesmo tendo entre as mãos um terço, não conseguiu resgatar
a lembrança de que era cristã. Naqueles momentos dramáticos, dizia, toda a sua
124
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
o valor clinico do acompanhamento terapêutico
M vi
história se “apagava”, ficando “completamente perdida” de si mesma. Creio que
o que ocorria tinha a natureza de uma radical interrupção da experiência de si.
Impressionado com o sofrimento de minha paciente, imaginei o “branco” como
um desesperador e irrefreável desfazer dos sulcos das digitais ou dos traços do rosto.
Em geral, quando conseguia “retomar”, Ágatha telefonava-me para que eu a
ajudasse a assimilar o que havia ocorrido.
Minha paciente tinha, com frequência, a forte sensação de ser uma criança
pequena, fato que a desconcertava por não se harmonizar com a sua idade crono
lógica. “Como isto é possível?!” , perguntava. Nessas circunstâncias, euintervinha
dizendo que compreendia a sua perplexidade porque, por um lado, ela era uma
criança pequena, dispondo, como costumava dizer, de uma “cabeça de criança”.
Apesar disso, em outros sentidos, ela era uma pessoa adulta, como atestava o
seu corpo. Em geral, esse tipo de intervenção, feita com vivacidade e firmeza,
atenuava o sofrimento de Ágatha, creio, por sentir-se realmente vista por mim
em sua situação paradoxal (ser e não ser uma criança pequena; ser e não ser uma
adulta). Não por acaso, a paciente arregalava os olhos quando se referia à “terra
do nunca”, lugar em que, de acordo com a história de Peter Pan, as pessoas nunca
saíam da infância.
Em outras ocasiões, Ágatha dizia ter se transformado em um bebê. Quando
isso se dava, ela permanecia aflita sobre a sua cama sem conseguir se levantar ou
falar e, menos ainda, pedir ajuda. Observei que essa transformação tinha lugar,
primeiramente, fora das sessões de análise, em contextos nos quais a paciente se
sentia desamparada por um intervalo de tempo superior àquele que podia suportar.
Mais tarde, com o avanço do tratamento, o bebê Ágatha passou a surgir, também,
em algumas sessões.
Tampouco era raro a paciente sentir que estava “morta-viva”, sensação na
qual expressava, uma vez mais, a precariedade do estado em que se encontrava:
sequer conseguia manter, em si, a experiência de estar viva.
Por anos a fio, Ágatha foi atormentada, diariamente, por vozes que só ela
escutava. Repletas de hostilidade, costumavam lhe dizer “besteiras” e, num triste
episódio na adolescência, ordenaram-lhe que cometesse suicídio. Felizmente,
após ingerir uma dose potencialmente mortal de medicamentos, Ágatha foi salva
no contexto hospitalar de uma Unidade de Terapia Intensiva.
125
Acompanhamento terapêutico
Manejos
126
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
__ o valor clínico do acompanhamento terapêutico
127
Acompanhamento terapêutico
Ágatha, por sua vez, não tinha a possibilidade de frequentar, naquele momento,
o meu consultório. Ela se conduzia como se a sua casa e, por vezes, apenas o seu
quarto fossem o único lugar no mundo em que se sentia um pouco mais segura.
Em termos de espaço físico, era o que parecia haver de mais pessoal em sua vida.
Tive de me adaptar a isso. Inicialmente, as sessões ocorriam em seu quarto, um
pequeno cômodo que, de tão povoado pelos mais diversos objetos —fotografias,
estatuetas, pedras coloridas, conchas, livros, bonecas, coisas que, como “cofres”
(Bacbelard, 2005), pareciam guardar preciosidades etc. —, chegava a ser verti
ginoso. Aos poucos, precisamente pela riqueza de objetos trazidos pela própria
paciente, descobri que trabalhávamos em uma espécie de “sala lúdica”. Por um
longo período, permanecemos ali, naquele que era, ao mesmo tempo, um pequeno
fragmento do mundo e um mundo. Aos pais, solicitei que não estivessem presentes
durante essas sessões em sua casa.
Era preciso, também, encontrar um psiquiatra capaz de cuidar de Ágatha.
Sugeri aos pais que procurassem uma pessoa de minha confiança e que, em virtude
de suas características pessoais, me parecia apropriada ao caso. Eles aceitaram
a sugestão e, dessa forma, apresentei a ideia à paciente. Disse-lhe que era uma
pessoa em quem eu confiava e que acreditava que iriam se dar bem, o que pouco
tempo depois veio a se tornar uma realidade. Procurei apresentar a psiquiatra para
Ágatha como uma extensão dos cuidados que eu lhe ofertava na psicoterapia.
Quanto aos medicamentos, percebi que seria preciso que eu ficasse com eles e
que, a cada sessão, os ministrasse à paciente. Isso porque Ágatha não se mostrava
capaz de tomar os remédios do modo como era solicitado por sua médica, e
também porque facilmente começava a sentir que eles eram a causa dos seus
sintomas. Além disso, seus pais manifestavam uma dificuldade em colaborar nesse
contexto. Observei que a referida intervenção trouxe uma maior estabilidade
ao tratamento, já que em anos anteriores várias internações psiquiátricas ocor
reram, parcialmente em virtude de Ágatha ter interrompido, por conta própria, a
ingestão daqueles “venenos”.
Naqueles dias, eu tinha a sensação de que, embora houvesse sido possível
levantar alguma infraestrutura clínica em tomo de Ágatha, ela ainda, verdadeira
mente, estava muito aquém da real dimensão e intensidade de suas necessidades
humanas. Os telefonemas realizados nos intervalos entre as três sessões semanais,
128
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica: jiliU
o valor clínico do acompanhamento terapêutico
por exemplo, ajudavam, mas não eram suficientes para oferecer à paciente toda
a sustentação (holding) de que necessitava. Tampouco o aumento da duração das
sessões — de cinquenta minutos para uma hora e meia —, apesar de ter se reve
lado como significativo, foi suficiente. Ao mesmo tempo, Ágatha tinha muita
dificuldade em se relacionar com as pessoas em geral e dificilmente conseguia sair
de sua casa, temendo ser alvejada por toda sorte de coisas perigosas.
Enfim, Ágatha não tinha uma vida cotidiana, um dia a dia cuidadosamente
estruturado com a finalidade de lhe ofertar experiências. De fato, no dizer de Safra
(2006), uma pessoa que traz em si falhas significativas nas dimensões mais básicas
do self, frequentemente não tem cotidiano. O terapeuta precisa, em tal contexto,
ajudar seu paciente a construir um cotidiano pessoal.
Compreendi que Ágatha podería se beneficiar de um AT, principalmente se
eu pudesse utilizá-lo como uma extensão dos cuidados que vinha lhe dedicando;
isto é, como algo que ela pudesse experimentar como uma faceta de nossa relação
terapêutica. Foi assim que uma psicóloga, que tive a oportunidade de escolher e
indicar aos pais da paciente, passou a realizar o A T de Ágatha.
Essa profissional acompanhava a paciente em um ritmo de três encontros
semanais, em dias que se alternavam com as sessões de análise. Pensei nessa
organização temporal dos cuidados na tentativa de oferecer à paciente, em seu
cotidiano, a sustentação mais contínua possível. Junto a isso, a acompanhante
terapêutica (at) e eu nos encontrávamos em meu consultório, semanalmente, a
fim de dialogarmos sobre o tratamento. Tanto a paciente como os seus pais tinham
conhecimento do procedimento.
Durante as sessões, conversava com Ágatha sobre algumas das experiências
que haviam surgido nos encontros com a acompanhante e, por vezes, plane-
jávamos juntos os passeios e atividades que a dupla iria realizar. Certa vez, quando
na análise a paciente estava às voltas com a possibilidade de que o mundo podería
não ser totalmente nazista, sugeri a ela que fosse visitar, com a sua acompanhante,
um bairro judeu. A visita foi, a julgar pelo relato de ambas, bastante significativa.
Ágatha contou-me, animadamente, que gostaria de voltar ao local e que havia se
sentido bem ao visitar uma sinagoga.
Observei que o espaço vital da paciente, com o auxílio do AT, crescia gradu
almente. Em um sebo próximo à sua casa, Ágatha comprava discos de vinil que
129
Acompanhamento terapêutico
costumava ouvir antes de sotrer, aos treze anos, a misteriosa modificação. Conse
guiu participar de algumas testas familiares, bem como de um shou>, de uma testa
junina e de um baile de carnaval. Cbegou mesmo a desfrutar de um fim de semana
no litoral, junto de sua acompanhante e de sua mãe. Trazia, durante as sessões,
as fotos que registravam esses momentos de vida. Cabe sublinhar que tudo isso
ocorreu, segundo as anotações de que disponho, nos encontros com a acompa
nhante durante o primeiro ano de seu ingresso no caso.
Em uma sessão, Ágatha mostrou-me uma boneca que havia comprado. Era
uma boneca grande que tinha a torma de uma menina com síndrome de Down.
Olhando-se cuidadosamente, por meio de um espelhinho, a paciente perguntou-me
se ela mesma não teria síndrome de Down. “Veja: tenho os olhos puxados como os
dela”, Ágatha dizia referindo-se à sua boneca. Fiquei bastante surpreso com aquela
situação que surgia no tratamento. Por um lado, porque a paciente nunca havia
formulado aquela hipótese, ao menos, durante as sessões. Por outro, pelo fato
de que, no plano da realidade externa e compartilhada, não havia nada em Ágatha
que justificasse um diagnóstico dessa síndrome. Hesitante quanto ao significado
daquele novo fenômeno, respondi-lhe iria pensar no assunto.
Em sessões posteriores, por meio de palavras ou de comunicações não ver
bais, repetidas vezes Ágatha me dirigiu a mesma pergunta acerca da síndrome.
Gradualmente, compreendí que era necessário que aquela criação da paciente
fosse acolhida e sustentada no âmbito de nosso relacionamento, como algo real.
Passei a lhe dizer, então, que, com o passar do tempo, pude observar melhor os seus
olhos e ver o quanto eles eram “puxados”. Acrescentava que diante daquela per
cepção, eu não descartava a hipótese de ela ser portadora de síndrome de Down.
Durante as sessões, passamos a utilizar sua boneca e seu espelho como mate
riais lúdicos, e, mais tarde, introduzí livrinhos infantis que continham a história
de um menino com síndrome de Down. A paciente respondeu vivamente aos
livrinhos, comentando que os tinha “adorado”. Inicialmente, eu lia as histórias
para ela. Posteriormente, ela mesma preferia lê-las em voz alta. “Não se esqueça
de trazer os livrinhos na próxima vez”, dizia-me ao final de várias sessões.
Foi interessante observar a maneira pela qual a paciente, no contexto do setting
psicanalítico, criava uma realidade (subjetiva) em que, de tato, tinha síndrome de
130
Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
_____ o valor clínico do acompanhamento terapêutico
Down. Nos termos de Winnicott, diría que Ágatha, no interior de nossa relação,
experimentava a ilusão onipotente de criar o mundo a partir de seu gesto pessoal.
Creio que com essa concepção sui generis, que florescia a partir de sua criatividade,
a paciente buscava atenuar, em alguma medida, a profunda ruptura na experi
ência de si que carregava consigo. Assim, em diversas ocasiões comunicou-me
que, no fundo, não tinha qualquer ideia acerca daquilo que havia lhe ocorrido na
adolescência, acontecimento enigmático que fez desaparecer a “menina viva” que
ela atinnava ter sido durante a infância.
Naquele contexto do processo de desenvolvimento dapaciente, era imprescin
dível que também o AT, para além das sessões psicoterápicas, pudesse favorecer-lhe
as mencionadas experiências de ilusão. Por esse motivo solicitei à acompanhante
que acolhesse e sustentasse aqueles fenômenos durante os seus encontros com
Ágatha, trabalhando, assim, no mesmo sentido que a análise. Isso foi feito e, em
pouco tempo, pudemos observar desdobramentos clínicos bastante significativos.
Em uma ocasião, dizendo-se “monga”, Ágatha foi com a sua acompanhante a
uma livraria em busca de novos livrinhos infantis, nos quais houvesse personagens
com síndrome de Down. Em outros encontros, tendo em vista o peculiar apetite
do menino que protagonizava as nossas historinhas, comeu cachorros quentes.
Chão básico
Por certo, muito ainda podería ser dito sobre a fecunda utilização do AT
nesse tratamento como um aspecto do manejo na psicoterapia. No entanto o
que procurei destacar aqui, por considerar de grande importância, foi o fato de
o trabalho clínico ter oferecido à paciente, em alguma medida, algo como um “chão
básico” sobre o qual uma “linha da vida” começou a fluir com mais continuidade,
como evocado nestes versos do poeta Afonso Felix (apud Sousa, 2001, p. 338-339):
E o chão
que nos embala e envolve
entre paredes e lajes
enquanto lá fora uivam
os rigores do mundo.
131
Acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre: Artes
Médicas.
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Um aspecto do manejo na análise de uma paciente psicótica:
______o valor clínico do acompanhamento terapêutico
133
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os
impasses da experiência clínica1
Introdução
0 caso clínico
0 encontro
1Este texto é baseado na apresentação realizada para a disciplina Fundamentos da Clínica do Acompanhamento
Terapêutico, ocorrida no dia 18 de novembro de 2009.
2 Nome fictício usado para preservar a identidade do paciente.
Acompanhamento terapêutico
tui recebido e informado de que ele me aguardava em seu quarto. Mesmo sem
tê-lo visto, já era possível sentir a sua presença na porta de entrada e, cada vez
mais, à medida que me dirigia ao seu quarto pela intensidade de um cheiro muito
forte e ruim. Eu me detive à percepção, porque, muitas vezes, é o que temos de
mais importante. Quando entrei em seu quarto, a visão não foi mais confortante.
Por mais que seu sorriso, sempre cativante, estivesse ali presente, foi impossível
não ficar chocado com a visão daquele corpo sobre a cama. Ele parecia muito
vulnerável, parecia despedaçado. Faltava-lhe uma das pernas, amputada um ano
antes, e a outra também estava paralisada, engessada após uma fratura recente.
Eu, então, aproximei-me para cumprimentá-lo e pude perceber que também tinha
dificuldades em me estender seu braço.
Foi assim que eu encontrei Daniel. Ainda que já soubesse das suas condições
por meio da psicóloga que o atendia, nada se compara ao nosso primeiro contato,
nada podia antecipar sua cama poluída por papéis, livros, comida, sujeira, escova
de dentes, tintas, pincéis, urina, dinheiro e o que mais se possa imaginar, e na qual
ele permanecia aprisionado a maior parte do seu tempo.
136
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
137
Acompanhamento terapêutico
Nessa tradução, ele também transformava o texto original francês, que estava em
prosa, em versos heptassílabos, um trabalho interminável que vinha realizando
havia dez anos. Os outros projetos eram o desejo de expor seus quadros em grandes
museus, a sua vontade de voltar à política, de fazer mestrado ou, simplesmente, de
montar um novo negócio. Sem dúvida, o projeto mais “ousado”, do qual sempre
comentava, era a vontade de criar um paraíso fiscal para o Mercosul em Ilhabela.
Essas idéias davam força à suposição de um quadro psíquico muito adoecido,
mas seria psicose, como supunha a equipe?
A entrada
0 primeiro testemunho
Nos primeiros encontros, ficávamos todo o tempo em seu quarto. Ele deitado,
e eu sentado, esperando que me dissesse alguma coisa. Pela imobilidade daquilo
que me trazia —a imobilidade estava em todo lugar —, aos poucos, as suas falas
foram diminuindo, ao mesmo tempo em que era crescente a sua impaciência, o
seu desconforto com a minha presença. Algumas vezes, apenas poucos minutos
de conversa já eram o bastante para que ele me pedisse o término da sessão. Eu
acabava insistindo para que falasse um pouco mais, e ele aceitava, prolongando o
nosso encontro. Foi quando, na sessão em que completávamos dois meses de aten
dimento, ele me disse: “Acho melhor pararmos! Não quero mais que você venha!”
O que ele estava me dizendo? Seria o fim do tratamento? Havia cometido
algum erro? Teríamos avançado demais ou caminhado muito pouco?
Esses são momentos preciosos do tratamento. É justamente quando algo
paralisa ou alguma novidade vem à tona —e, necessariamente, somos convocados
a nos movimentar, ainda que não saibamos em qual direção —, que temos a chance
de estar muito próximos do paciente, ainda que uma decisão errada ou a omissão de
um gesto possa trazer as piores consequências.
Após um tempo, que não sei se longo ou breve, afinal eu havia sido pego de
“surpresa”, eu me dei conta do óbvio. Era insuportável a sua condição. Como
ele poderia falar do insuportável estando tão próximo daquele lugar! Diante do
138
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
“Acho melhor pararmos! Não quero mais que você venha!”, eu respondí: “Você
precisa sair daqui!”
Eu fui certeiro em minha intervenção. Sair dali significava deixar aquela
imobilidade, aquela sujeira, deixar a sua nova prisão e, talvez, a antiga também.
Imediatamente, ele me perguntou: “Você consegue este telefone para mim?” —
era de um órgão da prefeitura que estava oferecendo trabalho para deficientes.
Eu respondí que sim, que o traria no próximo encontro. Então, encontramo-nos
novamente, e, nesse dia, ocupamos a sala de sua casa; e, no encontro seguinte,
fomos à rua fazer um passeio.
Alg o novo foi estabelecido entre nós, e isso só foi possível por estar tão
próximo e reconhecer aquilo que para ele era insuportável. Antes desse momento,
havíamo-nos apresentado, combinado a frequência e a duração dos acompanha
mentos, os valores, ou seja, criamos um contrato que delimitou o formato dos
encontros. No entanto, essas cláusulas se mostraram frágeis demais para promover
ou sustentar o que se apresentava ali. Para além do contrato, a intervenção esta
beleceu o contato necessário para dar “início” ao processo de cura3.
Direção do tratamento
Lembrar para esquecer
3A cura tem duas acepções fortemente interligadas. A cura como fim ou objetivo do trabalho terapêutico (cure)
e a cura que designa o próprio tratamento ou processo terapêutico (guérrison).
139
Acompanhamento terapêutico
140
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
“Re-viver” aqueles anos por meio do cinema foi o meio que encontramos
para nos aproximarmos do trauma, do impossível. Lembro-me do tilme —Batismo
de sangue - , um tilme duro, violento demais para mim. Eu fiquei chocado e teme
roso com o efeito que poderia causar em Daniel. No entanto, ali, ele não estava
só, mas acompanhado do testemunho daquilo que um dia sofrerá. A partir da
presença silenciosa do acompanhante —silenciosa, mas presente —, o testemunho
daquela ficção permitiu que as lembranças pudessem falar.
“O indizível só pode ser não dito e lembrar pode ser uma forma de esquecer as
coisas”, afirmam Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p. 10). Infelizmente Daniel
até então nunca pudera “lembrar” o que experimentara naqueles tempos, e, por
isso, o trauma presentificou-se por tanto tempo. Viver exige que experiências
como essas sejam esquecidas.
Voltar ao presente
141
Acompanhamento terapêutico
142
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
O colapso
Ele sobreviveu à crise, mas nós já não éramos os mesmos. Por alguma razão,
não sobrevivemos a tudo aquilo. Ele, eu e a equipe. Nessa época, uma psiquiatra,
duas fisioterapeutas e uma acupunturista já haviam deixado o tratamento. A psicó
loga que o atendia também estava desanimada, e eu, extremamente extenuado.
Por mais que falássemos disso nas poucas reuniões de equipe, não conseguíamos
reverter o quadro. O efeito imediato nos atendimentos foi uma paralisia que durou
cerca de um ano. Inicialmente, diminuímos o número de sessões semanais de duas
para uma. Por fim, passamos burocraticamente a apenas assistir a filmes e, rara
mente, fazíamos outras atividades. Eram encontros silenciosos, sonolentos, em
que os raros momentos de vivacidade limitavam-se a conversas geradas a partir
dos filmes a que havíamos assistido.
Por fim, esgotado e não conseguindo pensar, comecei a faltar. As primeiras
faltas eram ocasionais, depois começaram a ocorrer com maior frequência, até o
momento em que faltava sem mesmo avisá-lo. Daniel, no começo, incomodava-
-se e me ligava perguntando o que havia acontecido, mas depois fingia que nada
estava acontecendo.
No meu limite, fui ao atendimento determinado a interromper o tratamento,
e essa foi a primeira coisa que lhe disse. Ele, que estava de cabeça baixa, acenou
afirmativamente indicando concordar com a ideia, mas sua expressão suscitava
muita pena. Eu continuei, dizendo que estava com a minha agenda lotada, que
tinha novos compromissos, falei do meu cansaço —ele me escutando, acenando
afirmativamente e cabisbaixo —, até o momento em que pude lhe dizer que
aquilo não era tudo, que na verdade eu não suportava mais a sua presença.
Nesse momento ele se levantou e me olhou profundamente, não com raiva, mas
com uma vivacidade que havia muito eu não encontrava. Aquilo me chamou a
atenção. Eu prossegui dizendo que tinha muitos motivos, muitas desculpas para
não atendê-lo, mas seria falso se não falasse o que realmente estava sentindo. Eu
sabia que com aquelas palavras duras eu o respeitava. Muito diferente das muitas
pessoas desaparecidas. Tudo isso eu lhe comuniquei.
Depois de me ouvir, ele me perguntou por que eu sentia aquilo. Respondi que
precisava pensar, e, realmente, eu ainda não entendia o que estava sentindo, o
143
Acompanhamento terapêutico
144
A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
145
Acompanhamento terapêutico
Conclusão
0 caso clínico
4 Lacan explora os tempos de estruturação do sujeito no artigo “O tempo lógico e a asserção da certeza anteci
pada”, que está presente no Escritos (Lacan, 1998, p. 197).
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A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
que me pedia para ir embora —colocou em cena algo do paciente que até então
era vivido como nosso limite.
O que importa destacar é que a intervenção só loi possível porque a expe
riência do acompanhamento —experiência vivida no cotidiano, na casa, no leito
do paciente —permitiu que eu me aproximasse e testemunhasse as condições
extremamente precárias em que ele vivia. Ainda, diante do insuportável, havia a
presença fundamental do meu corpo, palco de afetos e instrumento capaz de dar
voz a uma verdade a qual o paciente era incapaz de reconhecer e aproximar-se.
É “Você [quem] precisa sair daqui!” tomou inédita uma verdade que antes era
impossível de ser habitada.
Do mesmo modo, no segundo momento do tratamento, quando o paciente
obteve expressiva mudança, reconstituindo o passado traumático e resga
tando antigos projetos, deram-se as condições oferecidas pelo acompanhamento,
que tomaram o processo menos ameaçador e suportável. Primeiramente, pela
presença, ora silenciosa, ora expressiva, do acompanhante, e também pelo contato
gradual com a realidade da cidade, da cultura, do humano, registros dos quais
havia se isolado por muitos anos.
Por tim, mais familiar, mas não menos silenciosa e mortífera, a vivência trans
ferenciai ao longo do último ano pôde reproduzir, em diversas versões, a cena
traumática do período da tortura. A paralisia estabelecida nos encontros desse
período tornou-se palco de um jogo obscuro e perverso em que nos altemávamos,
ora ocupando a posição de abusado, ora a de abusador. Como no episódio do
restaurante - em que ele me ultrajava, lançando pedaços de carne pelo chão -,
foi por meio da violência sentida em minha impotência, que eu pude identificar a
dinâmica da transferência em nossa relação.
O reposicionamento dentro da cena transferenciai na última sessão somente
ocorreu quando pude reconhecer o quanto eu estava tomado pela angústia e morti-
ticado na relação. Em um arroubo de palavras duras e ruidosas, em que pude
resgatar situações e sensações que nos tomaram nos últimos meses, meu gesto
(ato) permitiu que rompéssemos a paralisia que nos tomava, e que ocupássemos
novos lugares na relação. Certamente, o efeito produzido não aconteceu pela força
das verdades que ali foram ditas, mas por ter conseguido evidenciar a verdade das
forças (afetivas) experimentadas em nosso encontro.
147
Acompanhamento terapêutico
Impasses da clínica
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A proximidade do encontro:
o acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência clínica
Referências bibliográficas
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Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua
filha: reflexões sobre a ética do
acompanhamento terapêutico
que deve ser trancado e isolado por meio de internações e grades. No entanto,
seria a loucura uma doença? Seria a loucura simples distúrbio psíquico e mental?
O que o dito louco nos revela de nós mesmos? O que nos irmana?
Para refletinnos sobre essas questões, consideramos que podería ser benéfico
discuti-las com a ajuda do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” de Guimarães Rosa.
O poeta e o escritor têm a possibilidade de revelarem, por meio de seus textos,
situações fundamentais, que habitualmente não são contempladas pelas pessoas
em seu dia a dia.
152
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico
Mrvi
tem as marcas do estranho na comunidade em que vive. No entanto, na hora do
adeus todo mundo gostava demais dele.
Então Sorôco canta o que as duas cantavam pouco antes de partirem. Elas
se foram? O canto de Sorôco como que presentifica o que havia sido alienado.
O amor saudoso permanece e alcança a voz de Sorôco. Mãe e filha cantam em
Sorôco. As grades não apagam a presença daquelas com quem tanto tempo se
conviveu.
Logo, todos o acompanhavam, sem saber o que cantavam, nem por que ao
certo cantavam. A loucura não se extingue com a partida das duas mulheres.
Todos que lá estavam como sãos, como espectadores à distância da separação de
uma família, cantam a dor da loucura. A comunidade ecoa e se solidariza com o
momento trágico. Todos acompanham Sorôco, todos celebram a partida, todos se
fazem saudades.
O conto parece nos mostrar que não é a loucura que significa a não vida. A
1
dor terrível é aquela que se faz na solidão . A dor sem a companhia do outro atinge
0 abismo da agonia. O canto dos outros abraça a nossa dor e a toma passível de ser
sofrida. A loucura não exclui a condição humana fundamental de acompanhar e
ser acompanhado; a possibilidade de estar com o Outro, de sentir com o Outro.
Acompanhado, Sorôco pôde suportar e continuar a sua caminhada após a
dolorosa ruptura que vivência no acontecimento descrito no conto. Todos ali,
Sorôco, sua mãe, sua filha e a comunidade, acompanham-se e se irmanam em um
mesmo lamento. Sorôco denuncia a ineficácia da lógica dicotômica bom/ruim,
são/louco, certo/errado ao retomar a canção, rompendo seu silêncio anterior,
contrário ao murmúrio dos espectadores. A canção traz a possibilidade de comu
nicação, para além da realidade dual que opõe um existir ao outro: a linguagem
da cantiga é a linguagem da loucura, dos possíveis, da poesia.
No conto, a cantiga, enquanto tala dos loucos, põe por terra as dicotomias
do racionalismo, afirmando-se nas suas diferenças. E, ao se lançar neste universo,1
1 Segundo Winnicott, a solidão é fundante, originária, mantenedora da condição humana quando vivenciada
atrelada a experiências de dependência máxima; quando a possibilidade de tais experiências de dependência
não se dá, a vivência da solidão “acarreta a vivência de solidão absoluta e implica uma experiência de agonia
impensável” (Safra, 2006b, p. 69).
153
Acompanhamento terapêutico
em que a fala dos desfavorecidos se faz também ouvir, o conto busca terceiras
possibilidades (Otín, s/d).
O canto opera na cena como elemento que irmana a todos em uma compre
ensão empática, compartilhando um mesmo destino. Tem também a função
fundamental de
[...] uma concepção do campo simbólico que vai considerar importante não
tanto o significado de um determinado símbolo, mas fundamentalmente
sua possibilidade de veicular uma experiência, uma vivência. E a função
simbolizante que permitirá ao indivíduo seu atravessamento nas diferentes
modalidades de estar no mundo: do estado subjetivo à realidade comparti
lhada. (Safra, 2005, p. 23-24)
Assim, a cantiga, mesmo que inicialmente entoada por duas mulheres loucas,
mesmo que de significado quase indecifrável aos demais, “a cantiga não vigo
rava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras —o nenhum” (Rosa, 2001,
p. 63), não distancia Sorôco e todos os outros da realidade; pelo contrário, permite
o encontro verdadeiro com o que está sendo experimentado. A cantiga, uma vez
que é poesia, é o próprio paradoxo: inalcançável, ao mesmo tempo que tanto nos
alcança; o falar poético localiza-se entre o dizer e o indizível, é palavra que se abre
para o não dito. A cantiga, enquanto símbolo, permite a existência, pois o símbolo
possibilita a partilha de experiências subjetivas e pessoais. A expressão, verbal ou
não, comunica a interioridade, e o sentimento move todo o si mesmo em direção
ao outro (Safra, 2008). O final do conto revela tal dimensão: símbolo2 de tudo
que ali se sentia. Um gesto simbolizante, mas também poético3, como aquele que
se dá na clínica do acompanhamento. Por meio dos objetos estéticos, objetos
culturais e por meio de símbolos, possibilita-se ao acompanhado o acesso ao dizer
de estados psíquicos não formulados que seriam inarticuláveis de qualquer outra
2 Utilizo aqui o termo símbolo aproximado da definição de símbolo apresentativo, conceito psicanalítico, vincu
lado ao estudo da dimensão não verbal da comunicação inter-humana; esta ideia de símbolo se fundamenta
essencialmente da linguagem plástica e está dirigida à sensibilidade do sujeito. O símbolo apresentativo viabiliza
experiência de contato, veiculada a uma concepção a respeito da vida, do existir e do mundo humano (Safra, 2006).
3 Poético, concordando com a caracterização de evento similar descrito por Gilberto Safra em A face estética do
self - teoria e clínica, é definido com aquilo que “ao mesmo tempo articula, em um único fenômeno, a capacidade
criativa [...] dando origem à comunicação humana e, principalmente, ao existir” (Safra, 2005, p. 21).
154
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico
forma (Safra, 2005). “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de
verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga” (Rosa, 2001, p. 66).
A expressão de verdade aponta o retorno de Sorôco ao viver, o que antes da
cantoria não acontecia, ou “subacontecia”: “Ele se sacudiu, de um jeito arreben
tado, desacontecido, e virou, pra irs’embora. Estava voltando para casa, como se
estivesse indo para longe, fora de conta” (Rosa, 2001, p. 66).
É por meio do canto, do permitir acontecer da loucura, quando razão e
loucura não mais se distinguem, que Sorôco pode voltar a casa de verdade, acom
panhado por todos ali presentes (Otín, s/d). O canto vem movido por um sentir
partilhado, e a vontade sustentada por um sentir supera, permite transcender.
A distância entre os que partem e os que ficam toma o tamanho da saudade e se
toma longe.
Segundo Safra, “os símbolos orgânico-estéticos4 veiculam o sentir, o ser, o
existir, [...] por esta razão, podemos dizer que eles não representam, mas apre
sentam e abrem uma determinada experiência de sentir, existir ou ser” (Safra,
2005, p. 27). Podemos, então, afirmar que a cantiga possibilitou o devir de Sorôco,
a dor da separação pode vir a tomar-se travessia: “ [...] ele começou a cantar,
alteado, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma, de desatino, que as
duas tanto tinham cantado. Cantava continuando” (Rosa, 2001, p. 66).
Otín (s/d) assinala que o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” compreende a
loucura como metáfora do movimento do mundo, do devir, e o canto considerado
um canto louco é a voz desse devir, uma fala para além das dicotomias e exclusões
que estabelece a lógica ocidental. O conto traz a loucura como criação.
Há um encontro entre Sorôco e os que ali assistem a cena da despedida. O
encontro se dá na hora em que todos cantam. A memória do antes, senhoras
loucas, loucura como tristeza e fardo, perde peso, e vigora no canto o sentir com e
pelo outro.
4 Segundo a definição de Safra, o termo estético é usado “para abordar o fenômeno pelo qual o indivíduo cria
uma forma imagética, sensorial, que veicula sensações de agrado, encanto, temor, horror, etc. Estas imagens,
quando atualizadas pela presença de um outro significativo, permitem que a pessoa constitua os fundamentos ou
aspectos de seu self, podendo então existir no mundo humano” (Safra, 2005, p. 20).
155
Acompanhamento terapêutico
156
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico
por seu modo de ser, é a forma pela qual o sujeito expressa sua singularidade e o
que constitui o seu idioma pessoal5 (Safra, 2006a).
Tal situação, constante na vivência da clínica do AT, coloca-nos diante da
necessidade de delicadeza e atenção com a questão da ética e da responsabili
dade pela singularidade do outro. Essa responsabilidade implica e acontece como
cuidado (Safra, 2006a). O vínculo com o paciente é baseado na solidariedade, no
reconhecimento do seu sofrimento.
A ética da clínica do acompanhar não está em evitar experiências de sofri
mento, mas sim em criar possibilidades de transformar tais vivências, usar o que
nelas se viveu como potência, como marcha.
Desse modo, é fundamental a disponibilidade do acompanhante para o
encontro e para os aíetamentos que o acompanhado lhe causa. Esta disponibili
dade, entretanto, ultrapassa os limites da clínica, e atinge a condição humana em
qualquer situação, como é apresentado no conto de Guimarães Rosa.
A dor da despedida que atinge Sorôco envolve questões que dizem respeito a
todo humano. O vivenciar ou o presenciar despedidas ecoa em nós as despedidas
já vividas e apresenta despedidas futuras.
Os temas loucura, separação, morte, trabalhados em “Sorôco, sua mãe, sua
filha” nos tocam de modo especial, pois trazem o saber que todos nós temos sobre
precariedade, finitude, instabilidade. Ao ler o conto, nós também, como leitores,
cantamos seguindo Sorôco em sua dor e ao mesmo tempo nos sentimos acolhidos
em nossos próprios lamentos.
A ambiguidade proposta pelo conto acontece de modo mais enfático ao lado
dos espectadores da cena: a necessidade da distância, proteção contra os males
oriundos do contato com a loucura —“ [...] o povo caçava jeito de ficarem debaixo
da sombra das árvores de cedro” (Rosa, 2001, p. 63) - e a curiosidade, identifi
cação, compaixão com a dor inevitável de Sorôco. “Todos, no arregalado respeito,
tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco”
(Rosa, 2001 p. 66).
5 “O idioma pessoal, portanto, é derivado do modo singular de uma pessoa, a partir do qual ela tem uma maneira
peculiar de interpretar a existência e de emprestar às palavras, imagens e atos, uma semântica existencial
pessoal” (Safra, 2006a, p. 36).
157
Acompanhamento terapêutico
158
Acompanhando Sorôco, sua mãe, sua filha:
reflexões sobre a ética do acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
Oliveira, M. F.; Soares, R. T; Silva, A. P B. (2009). Análise semiótica: Sorôco, sua mãe
e filha. Disponível em < http://ptmiriamfajardo.pbwiki.com/An%C3%A1lise + Semi%
C3%B3tica+: + S%C3%B4 roco, + sua+m%C3%A3e + e + filha> . Acesso em 6 jan.
2009.
Otín, B. C. (2009). Sorôco, sua linguagem, sua poesia. Disponível em < http://www.
lai.fuberlin.de/disziplinen/brasilianistik/veranstaltungen/symposium_jgrosa/essaywet-
tbewerb/Blanca_Cebollero_Soroco__sua_linguagem__sua_poesia.pdf> . Acesso em
6 jan. 2009.
Rosa, J. G. (2001). Sorôco, sua mãe, sua filha. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
Safra, G. (2005). A face estética do self —teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.
159
Vazio e presença viva: reflexões sobre
a experiência de um acompanhamento
terapêutico
Introdução
desse encontro deve-se à mobilidade do AT, pois minha entrada no mundo desse
rapaz promoveu o impacto necessário em mim para compreendê-lo e acompanhá-
-lo, de forma diferente do que o setting do atendimento em consultório, em moldes
mais tradicionais, podería oferecer.
A definição do setting decorreu do contato inicial com a família, que durou
cerca de três meses, em encontros semanais em meu consultório. A partir da
percepção da necessidade dessa família, o sofrimento de Fábio1 ressoou em mim
como urgência, pois não seria possível atender a todos. A opção pelo A T como
atendimento clínico possibilitou a aproximação das necessidades emocionais
do paciente e também de sua família, característica privilegiada desse enquadre
clínico diferenciado.
A história relatada pelos pais e o contato com Fábio trouxeram o vazio como
marca radical nas vivências desse paciente e em sua impossibilidade de ser abri
gado em um outro, reconhecido em sua singularidade e suas necessidades. Como
suporte para a reflexão teórico-clínica das experiências no encontro com Fábio
e sua vivência de vazio, lançarei mão de aportes da teoria winnicottianna e
do conceito de complexo de mãe morta, criado por André Green (1980/1988).
A experiência de vazio no encontro clínico talvez seja a sensação mais dolorosa
contratransferencialmente para mim. É uma marca das manifestações clínicas
da contemporaneidade e constitui um campo a ser mais extensamente explorado
pela psicanálise.
Caso clínico
Ao tentar relatar esse caso de AT, deparei-me com uma grande dificuldade em
recordar cenas e criar um texto coerente. Pensando sobre os dois anos e meio de
nosso percurso juntos, nesse esforço de recordação, o que predomina é a tensão;
as imagens ficam em segundo plano. Creio que uma marca desse processo foi
o fato de que as experiências e lembranças estavam muito mais inscritas no campo
das intensidades do que no campo dos sentidos. A partir de minhas vivências
162
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
contratransferenciais, pretendo transmitir, neste texto, toda vida que habitou esse
encontro, pois é um caso que exigiu muito de mim, tanto em termos de tempo
quanto em termos afetivos.
O encaminhamento de Fábio ocorreu por indicação da escola na qual ele
estudava, porém os primeiros contatos foram feitos pelos próprios pais, que logo ao
entrarem na sala, na primeira entrevista, contaram que Fábio tinha sido adotado.
Este foi o primeiro assunto trazido pelo casal que, em seguida, enumerou uma
extensa lista de reclamações. Queixavam-se da falta de rumo do filho: reprovação
e mau rendimento escolar, necessidade e desinteresse em construir urgente -
mente um projeto profissional, pedidos descabidos muito frequentes, rompantes
de agressividade, frustrações irreparáveis, dificuldades extremas de relaciona
mento familiar, amizades estranhas e efêmeras, raros momentos de paz, falta de
ordem e limites, nenhuma adesão a regras e, principalmente, uso inadmissível
de maconha. Tratavam tais manifestações do filho como uma questão pedagógica.
Achavam que havia má vontade de Fábio para cumprir as condições que lhe eram
colocadas para uma vida “nos eixos”. Demonstravam crer que ele necessitava
de uma perda, um susto para que valorizasse o que tinha, achavam que deveria
aprender as condições necessárias para a vida em sociedade. Colocavam Fábio
como alguém que não “entendeu” algo, alguém com uma talha de aprendizagem
ou déficit cognitivo. Talvez tais condutas tenham sido reforçadas pelo fato de
terem frequentado, por algum tempo, um grupo de ajuda mútua para familiares
de toxicômanos. Este grupo pregava basicamente que a pessoa deve chegar ao
“fundo do poço” para que consiga se recuperar, precisa passar tome, frio, dormir
ao relento etc. Deixaram claro, nas entrelinhas, que Fábio não correspondia ao
que desejaram ou idealizaram como filho; que o projeto de um filho que recom
pensasse o nobre gesto que realizaram no passado havia ruído.
O comportamento do casal chamou minha atenção desde o início dos
encontros. Sempre distanciados um do outro, tratavam-se fomialmente, porém,
afetivamente; eventualmente, usavam apelidos bastante particulares e infan-
tilizados. Ao longo do acompanhamento, ficou claro para mim, o que estranhei
inicialmente, o fato dessa dupla não ser um casal no sentido erótico. Aparentemente,
não se tocavam, dormiam em quartos separados e, segundo Fábio, havia mais de dez
anos que não mantinham relações sexuais, fato confirmado em reunião familiar.
163
Acompanhamento terapêutico
A história da adoção nunca ticou clara, apesar de tê-la ouvido diversas vezes.
A mãe referia ter optado pela adoção devido à dimensão diminuta de seus órgãos
reprodutores, como um corpo de menina, condição que impossibilitaria a gestação.
Essa história sempre soou bastante vaga, e era motivo de revolta para Fábio.
Apesar de haver pequenas mudanças na compreensão dos pais acerca do que
ocorria com Fábio, nas conversas que precederam o AT, chamava a atenção a
fonna impessoal como eles colocavam as questões relacionadas ao filho. Falavam
sobre o que a sociedade impunha atualmente, teorias e mais teorias. Conversas
muito distanciadas da realidade do rapaz e bastante desafetadas, mas que apresen
tavam o sofrimento vivido pelo casal. Demonstraram, de fato, adesão e esperança
em nossos encontros, e busca de alívio com nossas conversas. Porém, ficou patente
a dificuldade de integrar o filho à história do casal, reconhecer a relação entre o
desatino e o sofrimento de Fábio e a história de encontro e desencontro familiar,
assim como reconhecer qualquer condição subjetiva anterior ou independente do
consumo de maconha.
Em relação à adoção, ao longo das conversas preliminares que ocorreram por
três meses e ao longo do acompanhamento de Fábio, seus pais foram me comu
nicando um forte sentimento de injustiça. Algo como uma recompensa pela boa
ação que não chegou. Cada vez mais as queixas pareciam estar relacionadas a um
“tempo zero”, que teve início com o ato da adoção, mais do que com situações
atuais. O tom de arrependimento e culpa sempre permeou as conversas com a
família. Tinha a impressão de que brigavam mais por não se conformarem com
o “abacaxi” que tinham aceitado do que propriamente pelo bem-estar de Fábio,
apesar de que estavam visivelmente preocupados.
Desde o início, tive a sensação de que Fábio não era visto de fato pelos pais.
Tinha a imagem apresentada pelos pais de um jovem com muita vida e potencial
apesar de tanto sofrimento, porém eles não reconheciam absolutamente nada de
positivo. O Fábio idealizado não deixava nenhum espaço para o Fábio real nesses
pais. No dia a dia, Fábio sofria uma série de imposições um tanto descabidas.
Tinha de arrumar o quarto, segundo a ideia, bastante particular, de ordem da mãe,
seguir horários rígidos de saída e retorno, deveria comer sempre exatamente no
horário previsto, e cobranças mais naturais, como bom desempenho escolar. Além
164
Vazio e presença viva:
_ _____________ reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
disso, não podia levar a namorada para casa, pois a mãe não a aprovava, apesar de
já namorarem há três anos. Enfim, Fábio tinha de ser exemplar!
Fábio também era constantemente criticado por seus gostos: leituras, filmes,
taro, amigos, tempo dedicado às atividades - mergulhava em algumas leituras ou
jogos de computador —e horários. Fábio gostava de ficar acordado à noite para
não encontrar com os pais, pois se sentia mais livre. Não pareciam suportar o
cotidiano de um adolescente. Fábio sempre se manteve resistente à maioria das
imposições e críticas. Em geral, reforçava suas atividades e seus gostos para que
pudesse se reconhecer em meio a essas situações. É claro que ele frequentemente
lançava mão de atuações terríveis, e o convívio com ele não era fácil. Porém, para
os pais, ele era somente transtorno e decepção.
Esses pais, usualmente, em nossas conversas, manifestavam ímpetos ora
de expulsar Fábio de suas vidas para que tocasse a dele, ora queriam protegê-
-lo e dar-lhe o que fosse para confortá-lo. Fui apreendendo, com o tempo, certa
fantasia de “devolução”: a vontade de se livrarem dele, a culpa e o medo que disso
decorriam. Fui me dando conta, logo no início do contato com os pais, que a
adoção não tinha ocorrido verdadeiramente, apesar de no plano burocrático estar
concretizada. Na dimensão afetiva e simbólica, Fábio ainda estava por ser adotado
e por adotar os pais.
Em um dos encontros com os pais, cometi um ato falho emblemático. Ao
conversamios a respeito de algum aspecto da adoção de Fábio, troquei a palavra
adoção pela palavra aluguel. A reação a esse lapso foi fortíssima. A mãe, ofendida,
desconcertou-se, resmungou e fechou a cara. Tal lapso deixou, para mim, mais
clara a ideia anterior: aluguel é um investimento, um gasto sem retomo. Pode-se
pagá-lo para sempre, e o imóvel nunca será seu. Não há a apropriação legítima do
objeto no qual se investe.
Após três meses conversando com os pais, decidi assumir o A T de Fábio, pois
ainda não havia definido se prosseguiría em atendimento do casal ou do filho, e
por ter apreendido a importância da compreensão e construção da história dessa
família no sofrimento dele. A partir desses encontros, pude iniciar os atendimentos
de Fábio sem a afobação comum nos encaminhamentos de AT, melhor situado e
com um campo relativamente preparado para o início do acompanhamento.
165
Acompanhamento terapêutico
Uma das primeiras coisas que notei ao acompanhá-lo em sua casa foi a dispo
sição do lugar, que parecia leito para duas pessoas. Localizada em um bairro nobre,
a casa era grande, bonita, bem decorada. Era repleta de livros, objetos de arte e
adereços com design diferenciado. Havia uma empregada residente que os servia
e garantia a ordem e a limpeza. Todos adeptos aos mais finos hábitos nas refeições,
recepções e até no descanso. Não parecia haver espaço para a adolescência na casa.
O quarto de Fábio era o oposto, não parecia estar dentro daquela casa. Amon
toados de livros, CDs, filmes e revistas pornográficas, peças e jogos de computador
espalhados, diversos computadores, cama sempre desarrumada, roupas jogadas,
instrumentos musicais, enfeites de artesanato, aparelhos de som pelo chão, maços
e maços de cigarro. Fazia questão de manter as coisas daquele jeito, sabia a loca
lização de todos objetos em meio às pilhas. Essa desordem era alvo de críticas
ferozes por parte de seus pais e era tida como algo insuportável.
166
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
167
Acompanhamento terapêutico
burlar, driblar, ganhar em esperteza. Pregava que o mundo funcionava por meio
desse modo de agir, portanto todos enganam e agem em função de vantagens
pessoais. Parecia muito descrente da sinceridade e da ligação verdadeira entre
as pessoas. Certo dia, introduzida por mim ou por ele, as técnicas hackers entraram
em questão relacionadas ao nosso contato. Disse que achava que eu também utili-
zava esses meios para obter respostas, manobrá-lo. Apresentava a ideia de que
ninguém fazia algo por ele, mas em favor próprio. Não se sentia objeto de inte
resse ou admiração, desconfiava da amizade ou aproximação dos outros. Sentia-se
incapaz de ser amado ou querido, e para isso teria de se esforçar muito, ser alguém
extremamente especial, com dotes inigualáveis.
Conversamos diversas vezes sobre a questão da adoção. Sempre mencio
nava a ideia de sair de casa, trabalhar e ganhar a própria vida. Sentia que seus
pais não o aceitavam como ele era e não queria ou podia mudar seu jeito de
ser ao ponto necessário para satisfazê-los. Fábio sabia da decepção de seus pais
em relação ao seu jeito de ser e seu mundo, não tinha muita esperança de ser
adotado de tato. Certa vez, disse-lhe que, para sair de casa, primeiro teria de
entrar. Isso ocorreu na época em que resolvemos introduzir as reuniões fami
liares com o objetivo de expor seus sentimentos, conhecer sua história e a de sua
adoção, pois ele ainda não a conhecia. Reconheceu essa condição e, apesar da
desesperança, investiu nessa entrada. Apresentava necessidade de enfrentar os
pais, expressar suas emoções e o que esperava deles. Sentia-se minoria, havia muito
medo, e geralmente optava por evitar qualquer contato nesse sentido. Mostrava-se
desesperançoso em relação à possibilidade de ser ouvido ou de mudar essa relação,
porém havia uma parte de Fábio que sempre buscava algo. Queixas, revoltas e
apelos eram comumente rechaçados por seus pais no convívio rotineiro da tamília.
Ao ouvir, pela primeira vez, a história de sua adoção, ticou transtornado e
quase agrediu os pais. Soube que sua mãe biológica era uma empregada doméstica
muito pobre. Ela não era casada e havia engravidado em uma aventura amorosa.
Foi entregue para a adoção de forma clandestina. Esse fato o abalou muito, sentiu-
-se uma “mercadoria”, uma coisa. Berrava “por quê? Por quê? Por quê?” Queria
entender os motivos desse casal e repetia que essa tamília tinha sérios problemas
sexuais. Não acreditava nos argumentos da mãe sobre as impossibilidades de
168
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
Mvi
gravidez. Eventualmente, perguntava aos pais se o amavam. Ficavam desconcer
tados e comovidos. Às vezes, ia dormir com a mãe e chorava, pedia para que ela
ficasse em seu quarto também. Em relação ao pai, era mais duro, queria mostrar
força e competência. Os pais sempre mencionavam seus percursos de vida como
exemplo, pois ambos eram pobres e, de fato, venceram na vida profissional. Fábio
idealizava seus pais e, ao mesmo tempo que os considerava “o máximo”, sentia
que não chegava aos seus pés em termos de determinação e que teria direito a
algum reconhecimento se atingisse o nível intelectual e cultural deles.
Apresentava sérias queixas sobre sobrevivência e identidade. Mostrava-se
confuso em relação aos interesses, sentia-se superficial, obrigava-se a estudar
alguns temas que não o agradavam. Frequentemente manifestava angústias de
invasão e abandono, sentia que o cuidado podería ser invasivo e, a falta dele,
desamparadora. Nenhum de nós dois tinha lugar. Eu experimentava contratrans-
ferencialmente, durante os atendimentos, tais afetos que o afligiam. Sentia-me
desamparado, ameaçado, perturbado. Referia sentir-se uma “alma perdida”, vagava
pela cidade sem muita ligação com o mundo. Expunha seu enorme vazio, a experi
ência mais dolorosamente comunicada por ele e a que parecia ser a mais sofrida.
Por fim, diariamente, Fábio questionava-se, e a mim também, sobre a origem
de tanto vazio. Dizia sentir-se “frio por dentro”, ter um “fio desligado” dentro de
si. Era extremamente inconstante e reativo, ora doce, ora hostil, ora amigo, ora
inimigo. Tinha facilidade para fazer amigos, porém identificava-se com sujeitos
mais pobres e suspeitos. Conhecia as pessoas em botecos, e logo as levava para casa.
Não duravam mais de uma semana, exceto dois ou três amigos de longa data. Seus
pais ficavam apavorados com o risco ao qual Fábio expunha sua casa e sua família.
Muitos dos amigos também eram eleitos porque eram usuários de maconha. Rejei
tava pessoas da classe social dos pais ou alguém que se aproximasse disso.
Desde o início, os pais mencionavam histórias de problemas escolares relacio
nados ao comportamento. A partir dos doze anos fora expulso duas vezes, creio
que uma por agressão a um colega e outra por ser acusado de traficar maconha.
Foi parar numa “escola terapêutica”, único lugar que o aceitou. Fábio sempre
se metia em brigas. Era comum chegar em casa arrebentado. Já havia brigado
fisicamente em favelas, em bocas de tráfico, danceterias, na rua, em casa. Muito
impulsivo, raramente suportava provocações ou desafios.
169
Acompanhamento terapêutico
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Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
171
Acompanhamento terapêutico
Nunca houve paz. Com Fábio, sempre pairou um clima de urgência, algo
iminente, que certamente não dava para esperar e expunha sua turbulência
emocional interna constantemente. Creio que o A T operou uma função de reco
nhecimento e de validação de suas demandas, fato que possivelmente o retirou
um pouco da experiência de estar louco, de desligamento e de vazio. Fábio era
frequentemente chamado de louco. Para ele, as coisas não duravam, e parte de
meu trabalho foi o de simplesmente — na verdade, nada simples — permanecer
em contato com ele.
Nesta breve reflexão teórica, como o próprio título diz, não há a intenção de
apresentar extensa compreensão dos conceitos, mas de utilizá-los como suporte
para iluminar a experiência clínica. Desse modo, para refletir sobre a condição
emocional e as vivências com Fábio, lançarei mão do conceito de mãe morta
criado por Green (1980/1988) e entendido como uma metáfora independente
do luto pela morte real de um objeto. Esse autor apresenta as vicissitudes, para a
criança, decorrentes de um luto materno. Essa condição ocorre quando a criança,
após ter recebido por um período os primeiros cuidados suficientemente bons,
depara-se com o luto e o desinvestimento brutal da mãe. Isso é vivido pela
criança como uma catástrofe e provoca, além da perda do amor, uma perda de
sentido, pois ela não dispõe dos recursos para entender o que aconteceu. Muito
facilmente, por considerar-se como o centro do universo materno, a criança
poderá atribuir a decepção da mãe às consequências de suas pulsões dirigidas a
ela. Após sentir a medida de sua importância, por não conseguir tirar a mãe de
seu luto, e depois de ter lutado contra a angústia por meio de maneiras ativas,
como a agitação, a insônia ou os terrores noturnos, o eu da criança vai colocar em
ação uma série de defesas de outra ordem.
A primeira, e mais importante delas, é um movimento que tem duas dire
ções: o desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com
a mãe morta. O desinvestimento, afetivo e representacional, constitui, segundo
Green, um assassinato psíquico do objeto, realizado sem ódio. Seu resultado é a
172
Vazio e presença viva:
reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
2 Técnica é um bem fazer que independe de quem faz. Duas pessoas realizando a mesma tarefa, utilizando a
técnica corretamente, chegarão ao mesmo resultado. Isso pode ser útil em outros campos, quando não são
necessidades emocionais que estão em jogo.
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Acompanhamento terapêutico
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reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
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i U \
Acompanhamento terapêutico
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reflexões sobre a experiência de um acompanhamento terapêutico
suas experiências, estão localizados em uma unidade. Sente-se cada vez mais uma
unidade, isto é integração e, ao mesmo tempo, tem a aquisição de tempo e espaço.
Isso acontece gradativamente e todo o tempo. Os objetos e os fenômenos transi-
cionais trazem a possibilidade de simbolização. Para Winnicott, o símbolo é e não
é, pois carrega tanto aspectos do subjetivo como da realidade compartilhada, ou
seja, de uma parte objetivamente percebida da realidade externa.
Creio que a história de adoção desse paciente e a suposta falta de investimento
pelos seus pais em um tempo muito arcaico possam ter instaurado a experiência de
vazio. Infelizmente, boa parte de seu percurso posterior confirma que o paciente
teve suas necessidades emocionais pouco reconhecidas ou atendidas devido à difi
culdade de apropriação do filho “parcialmente adotado” pelos pais. Fábio sentia
não ser o objeto investido pelos pais, e tal objeto seria um filho idealizado que
experimentava não lhe dizer respeito. Certamente havia afetos positivos e espe
rança de ambos os lados, porém uma constituição psíquica permeada por marcas
como estas, expostas neste capítulo, implicam necessidades bastante difíceis de
serem supridas, principalmente num percurso com tantos desencontros como o
dessa família.
177
Acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
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Clariceando o acompanhamento
terapêutico1
Introdução
1 Este texto é resultado de aula ministrada pela autora em 23 de setembro de 2009, no Departamento de
Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). No início da aula, os alunos assistiram ao audiovi
sual “Tentação”, conto de Clarice Lispector, narrado pela atriz Aracy Balabanian (disponível em, http://www.
youtube.com/watch3v=9jpxcIxyNy8). Agradeço ao professor Andrés Eduardo Aguirre Antúnez o convite.
Acompanhamento terapêutico
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Clariceando o acompanhamento terapêutico
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Acompanhamento terapêutico
Lola voltou com o café, acendeu um cigarro, olhou-me com olhos assustados
e molhados pelas lágrimas, e disse: “Meu marido morreu... Ah [com aquele riso
que imita um sorriso, dentes à mostra], essas fotos são ele”. Então, Lola me apre
sentou seu marido morto e nem mais uma palavra. Algo desvanecia. Escombros.
A sua expressão não mostrava nem dor nem saudade, apesar das lágrimas.
Ali, na minha frente, eu via uma menina cheia de ódio, que vestia um corpo de
quase setenta anos, que morava em uma casa esquecida, sozinha e perdida entre
objetos.
Lola havia muito fazia análise. Segundo sua analista, cada sessão parecia a
primeira —um impasse. Em razão disso, a analista ofereceu-lhe o AT.
No primeiro encontro, além da pouca conversa, Lola mostrou-me o restante
da casa. Fiquei impressionada. Parecia que tudo estava fora de lugar, como se
uma forte rajada de vento tivesse cruzado aqueles cômodos, deixando apenas
os enraizados, os móveis embutidos. Andávamos entre escombros, tomando o
cuidado para não nos perdermos, ao mesmo tempo que deveriamos evitar destruir
as provas deixadas pelo mau tempo.
Não sei dizer o número de peças de roupas que vi, mas posso contar que na
casa existiam cinco quartos, com armários de seis portas lotados de roupas, sem
contar aquelas que ficavam penduradas nas portas, nas araras, e aquelas deposi
tadas em pilhas no chão. Nunca vi algo parecido, parecia um magazine onde não
se acha nada, porque não era dividido em departamentos, tudo estava mistu
rado e, ao mesmo tempo, dissipado. Além disso, muitos objetos empoeirados,
quebrados e em desuso uniam-se confusamente às roupas. E, para meu espanto,
junto a isso ainda restavam os medicamentos, as seringas, os algodões e outros
utensílios usados durante o período em que o marido estivera doente.
Enquanto exploravamos os escombros deixados pelo “mistral” (vento forte e
violento que ocorre na França, lugar onde os familiares de Lola estudaram e lecio
naram), Lola foi ficando cada vez mais frágil. Parecia que, a qualquer momento, se
desmancharia, abandonaria o corpo e se misturaria ao pó. Nesse momento, percebi
que eu deveria ficar muito atenta. Deveria ficar atenta para não provocar nenhuma
alteração naquele lugar, somente Lola podería apontar algum sinal entre as ruínas.
Ela estava agarrada àquele aterro. E eu? Lembrando-me da menina ruiva: “O que
182
Clarieeando o acompanhamento terapêutico
a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um
amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos” (Lispector, 1987, p. 59).
Lola retirou um cabide que estava pendurado na porta de um quartos e ali
se desenhou um corpo sem cabeça, sem mãos e sem pés, vestígios da passagem
tempo, a forma estava presa à porta pelo pó. Lola estava presa à vida pelo pó, na
porta.
Nas palavras de Safra (1999, p. 135):
183
Acompanhamento terapêutico
quebrado, nessa situação, não era simplesmente um objeto sem valor que deveria
ser eliminado. O vasinho quebrado portava mensagens: Lola, de fato, convidou-me
para participar, mostrar-me. Nesse instante, fico tomada pela alegria e me lembro,
sem nenhum sussurro, de uma frase de Clarice Lispector (1996, p. 101): “espe
rança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber.”
Eu, no fundo, sabia que isso podería vir a acontecer a qualquer momento,
tinha consciência de que essa ação ressonaria no mundo de Lola, era um risco. O
que aconteceria? A única certeza nesse momento é de que Lola tinha pressa em
começar tal “reconstrução”.
Iniciamos o que seria uma longa jornada. Como eu disse, parecia uma casa há
muito abandonada. Nas portas onde cabides de roupas estavam pendurados, havia
a marca do tempo, o passado atualizado na forma, a forma presa à porta pelo pó. Um
tempo sem fim. Safra (2004, p. 80) afirma: “O gesto que não encontra o Outro
joga o ser humano na experiência do tempo infinito”. E continua: “A experiência
do tempo infinito é vivida como quantidade insuportável, agonia impensável”.
Tiramos os cabides de uma das portas do armário, abrimos, e, agora já sem
surpresa, os sacos de roupas despencaram para fora, e mais um monte fez-se no
chão. Lentamente recolhemos as roupas que se espalharam com o rompimento
dos sacos e depois abrimos aqueles que porventura não estouraram.
Eram peças de inverno misturadas com as de verão e com numeração variada.
Havia PE E M, G e GG. Em poucas palavras, disse-me que todas as peças eram
dela.
Teve anorexia, PE Melhorou, P e M. Engordou, G. Virou obesa, obesa
mórbida, GG. Fez cirurgia de redução de estômago, emagreceu. Engordou.
Emagreceu de novo. Engordou. No momento, está muito magra, PE Seu corpo
não tinha sossego, essas alterações evidenciavam um profundo sofrimento, uma
busca incansável por si mesma. A imagem de sua corporeidade era mais ou menos
como os cabides pendurados há tanto tempo e que, ao serem retirados, deixaram
sua marca; o pó desenhava um corpo sem cabeça, sem braços e sem pernas. Desse
modo, era quase impossível alguém se alojar naquele corpo. Corpo estilhaçado.
No entanto, Lola estava lá, ansiando para encontrar as pegadas de alguém signi
ficativo, ansiando existir na cabeça do outro, ansiando tomar o mundo e este, por
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Clariceando o acompanhamento terapêutico
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Acompanhamento terapêutico
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Clariceando o acompanhamento terapêutico
Mv
Lola é filha da intelectualidade da década de 1940, de grupo social de
destaque, de uma mãe que, por estar grávida dela, casa-se. Quando nasceu, não
houve comemorações. Afinal, seu nascimento podería ter sido um escândalo,
caso mãe e filha não permanecessem em reclusão. Porém, se alguém desco
brisse, dir-se-ia que o bebê havia nascido de sete meses. Assim se inicia a vida
da pequena Lola. Ela nasceu no mês de julho, mas sua avó instituiu o mês de
setembro para comemorar seu aniversário. No entanto, Lola não foi registrada em
nenhuma dessas datas. Seu pai esqueceu-se de registrá-la. Em determinado dia,
enquanto passeava pela cidade com um amigo —aquele que pintou o quadro —,
deparou com um cartório e lembrou-se de que era preciso fazer o registro da filha,
o que aconteceu finalmente em outubro.
Nem amiguinho bicho teve em sua infância. Seu mundo estava fechado:
concentrou sua atenção na conquista dos pais, em ter um encontro significativo.
Em vão.
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Acompanhamento terapêutico
A meninice foi um período difícil para a pequena, estava sempre em alerta por
causa da imanência de suicídio da mãe. Eram frequentes as tentativas, e em deter
minado momento a mãe ensinou-lhe estratégias para o suicídio, caso precisasse.
Explicou que o melhor jeito era com medicamentos, e que já havia descoberto a
forma, disse a mãe: “Se você tomar muitos, te [sic] levarão para o hospital, farão
lavagem, e aí a tentativa fracassa. O mesmo serve para pouca quantidade. A gente
vai tentando até acertar”. Foi assim que na adolescência viveu seu pior momento.
Sua mãe acertou a dose letal.
Dessa maneira, as investidas de conquistar a mãe se esgotaram. Então, redo
brou os esforços para conquistar o pai. Não conseguiu. Logo, seu pai se casou e a
nova mulher ocupou a atenção paterna.
Lola foi viver com seus avós, fez faculdade, casou-se. Não se pode dizer que
conquistou seu marido, apenas conviveu com ele.
Encontros clariceanos. Foi assim que Lola conseguiu contar sua história e
reposicionar elementos, revelando quais eram suas questões mais fundamentais.
Safra fala-nos que o encontro com o outro abre as portas para o aconteci
mento humano. Esse outro pode ser uma pessoa, mas também pode ser fruto da
ação humana (literatura).
Essa menina-madura nos mostra fundamentalmente o seu sofrimento diante
do vivido. A casa com aparência de abandonada, em ruínas, não era apenas uma
forma de renúncia, de falta de cuidado, mas a imagem de quem estava jogada
na existência. As marcas deixadas pelo acúmulo de pó sinalizavam que a vida se
estancara, logo não se podia mexer, limpar o que o passado desenhou; a saída era
compor uma história e esperar que alguém, em algum momento, testemunhasse a
sua passagem por aqui.
No começo, fizeram Lola refém de preceitos morais —precondição para estar
no mundo, segundo normas familiares. Desse modo, valeram-se de regras sociais
para detenninar a chegada do bebê ao mundo, tentativa de enganar o destino -
nasceu em julho, comemora aniversário em setembro e é declarada cidadã em
outubro -, impondo-lhe a máscara, modo de se tomar pessoa como conceberam
os gregos. A partir desse modo de compreender o mundo e, consequentemente,
de agir sobre ele, surgiram os primeiros indicativos de que algo será predefmido.
188
Clariceando o acompanhamento terapêutico
189
Acompanhamento terapêutico
experiências, Lola encontrava um lugar. Diz Safra (2006, p. 131): “O homem não
é do mundo, está no mundo. Quando assinalo o fenômeno de lugar não me retiro
a um lugar espacial ou social, mas sim a uma posição a partir da qual o gesto se
realiza”. Assim, encontramos Clarice Lispector para nos auxiliar na busca pelo
biográfico, que sustenta junto às questões do sofrimento humano a passagem por
esta vida. Lola conseguiu, por meio da literatura, sobreviver.
O A T surge para Lola como uma possibilidade de viver experiências com
alguém. Como relatei inicialmente, eu não sabia quem iria encontrar, mas deixei
que ela me tomasse pela mão e me conduzisse para onde se encontravam suas
necessidades. Não utilizei nenhuma técnica, mas isso não significava que eu estava
desamparada. Eu estava amparada pela ética. E ética é reconhecer a pessoa em
sua singularidade e necessidades e, a partir disso, exercer determinadas funções e
ocupar posições que contribuam para o caminhar em direção ao devir.
Nessa ciranda, Gilberto Safra e Clarice Lispector deram-nos a possibilidade
de reposicionar as questões mais fundamentais da vida de Lola.
Lola e eu nos despedimos quando o inverno chegou.
Dois anos se passaram, recebo uma ligação. Do outro lado, alguém me informa
que a nossa menina-madura morrera havia alguns meses. Pensei: “Será que foi
na primavera?” Nunca soube. Afinal, quando Lola se despediu do mundo, preferi
ficar com a marca da primavera.
O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha.
Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas
coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em
jornais. (Lispector, 1994, p. 119-120)
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Clariceando o acompanhamento terapêutico
M vi
Referências bibliográficas
Saíra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.
Saíra, G. (2004). A pó-ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias & Letras.
191
AT e ArTe
Sheila De Marchi
1 Parte de uma pesquisa de mestrado que está sendo realizada na Universidade de São Paulo, com o apoio da
Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); Processo n. 2009/070030. Aprovado pelo
Comitê de Ética da USP em 26 de agosto de 2009, com anuência da coordenação do CAPS UNIFESP Orien
tador: Prof. Dr. Andrés Eduardo Aguirre Antúnez.
Acompanhamento terapêutico
Início
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AT e ArTe
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Acompanhamento terapêutico
Sustentação
196
AT e ArTe
de ida e volta era leito com o transporte fornecido pelo hospital e acompanhado por
coordenadoras do grupo. Gradativamente o transporte foi sendo modificado pelo
transporte público, havendo a possibilidade de os pacientes optarem pelo percurso
desejado, de acordo com a própria conveniência, encontrando-se no local da aula
com as coordenadoras.
Considera-se que esses processos proporcionam desenvolvimento de compro
misso e autonomia. Cada participante podería repensar seu horário, sem deixar
de comparecer ao compromisso e, assim, construir, progressivamente a própria
autonomia. Esse percurso se assegurou na continência do acompanhamento e da
permanência deste na construção da possível nova conduta. Isso pode ser visto
em muitos momentos de resistência em dar continuidade ao curso, mas não por
não gostar, e sim por “preguiça”; por não querer fazer o trajeto; porque “estava
com cara de que iria chover”; por achar que não fez um bom trabalho na semana
anterior, entre outras tantas, que, devido à possibilidade desse acompanhamento,
eles se sentiam, de alguma forma, seguros de que no final da “conversa” com as
coordenadoras e com o incentivo dos outros pacientes, os que estavam resistentes
acabariam cedendo.
Com esses cuidados, pensou-se em estabelecer um ambiente que favorecesse
o amadurecimento e a independência dos pacientes, mas sabendo que anterior
mente seria necessária uma presença mais constante, cuidadosa e, por vezes, até
mesmo fusional, dependendo das necessidades e características de cada um deles.
Winnicott (2000), reconhecendo os fatores hereditários e biológicos, postula
que o distúrbio mental tem base psicológica, emocional, cujo desenvolvimento é
bastante influenciado pelo ambiente onde o bebê está inserido. “A saúde mental
do ser humano tem suas bases assentadas na primeira infância pela mãe, que
fornece um meio ambiente onde os processos complexos mais essenciais no eu do
bebê conseguem completar-se” (p. 236).
O autor vincula clinicamente o desenvolvimento da criança e os fenômenos
psiquiátricos, assim como os cuidados ministrados na infância e o cuidado adequado
aos doentes mentais. Com isso, pode-se relacionar três coisas que acontecem no
decorrer do desenvolvimento do bebê (contato com a realidade, integração da
personalidade e percepção do corpo) com sintomas psiquiátricos (perda de contato
com a realidade e do senso de realidade, desintegração e despersonalização).
197
Acompanhamento terapêutico
O ambiente é tão vitalmente essencial nessa tenra idade que nos sentimos
conduzidos à inesperada conclusão de que a esquizofrenia é uma espécie de
doença provocada por uma deficiência ambiental, visto que um ambiente
perfeito no início pode, ao menos teoricamente, ser percebido como capaz
de permitir que o bebê realize o desenvolvimento emocional ou mental
primário, o qual o predispõe a um desenvolvimento subsequente e assim à
saúde mental pela vida afora. (Winnicott, 2000, p. 239)
198
AT e ArTe
Mv
tendo em vista que “desde sempre o ser humano é com o Outro2. Se o rosto do Outro
não pode ser encontrado como acolhida ao mundo humano, a condição originária
aparece como sofrimento infinito, agonia do anseio pelo Outro” (Safra, 2004, p. 73).
2 O autor refere-se ao Outro em letra maiuscula como sendo o outro compreendido como Sobornost, que implica
ao mesmo tempo o contemporâneo, os ascendentes, os descendentes, a coisa, a Natureza, o mistério.
199
Acompanhamento terapêutico
Por meio da arte, o indivíduo pode expressar a criatividade que lhe é inerente
e, com ela, buscar o sentido de sua própria existência. Tem a oportunidade de comu
nicar para o outro e para si suas emoções, seus sentimentos; e a possibilidade de
encontrar mais uma via de simbolização. Além disso, a arte pode ser vista como
um intermediador capaz de atingir aspectos do ser humano com que ele invaria
velmente se depara e que podem lhe trazer um reconhecimento do sofrimento.
Para Winnicott (2000), a aceitação da realidade é um processo que realizado pelo
ser humano e que
[...] jamais se completa, que nenhum ser humano está livre da tensão de rela
cionar a realidade interna à realidade externa, e que o alívio para esta tensão é
proporcionado pela área intermediária de experiências, a qual não é submetida
a questionamentos (arte, religião, etc.), (p. 329)
Por meio dessa criatividade que lhe é inerente, o indivíduo pode dar à sua
realidade externa um significado em que ele é o protagonista de sua história.
Winnicott (1975) coloca a criatividade como um “colorido de toda a atitude com
relação à realidade externa. É através da apercepção criativa, mais do que qual
quer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (p. 95).
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Acompanhamento terapêutico
Resultados
Considerações finais
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AT e ArTe
[...] não é alguém que engane seus olhos, que o leve a pensar que exista uma
árvore ali quando não há nenhuma; mas alguém que o faça ver que ali de fato
há uma árvore com raízes, ainda que estas estejam subterrâneas, (p. 6)
203
Acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
Rhyne, J. (2000). Arte e Gestalt - Padrões que convergem. São Paulo: Summus.
Safra, G. (2005). A Face Estética do Selí - Teoria e clínica. Aparecida, SP: Idéias &
Letras: São Paulo: Unimarco Editora.
Safra, G. (2004). A poética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias &. Letras.
(Coleção Psicanálise Século I.)
204
Por onde anda o acompanhante
terapêutico
Tânia Possani
Este texto pretende apresentar parte de meu percurso pela clínica do Acom
panhamento Terapêutico (AT) e, por meio dele, vislumbrar um aspecto que
compõe a ética dessa clínica: a condição empática do ser humano. Apresentarei,
assim, algumas vinhetas clínicas que me são paradigmáticas dessa condição: o
lugar de encontro, onde o eu e o outro se revelam.
206
Por onde anda o acompanhante terapêutico
M vi
ou forçava a porta para sair da sala. Nesse dia, ele agarrou o meu cabelo com
desespero, sendo necessária muita ajuda para que ele me soltasse. Nessa situação,
eu senti o desespero. O olhar daquela criança era o olhar do terror. Eu o segu
rava (na verdade, ele me segurava pelos cabelos) como se ele fosse cair. Era uma
questão de vida ou morte. E, diante disso, abriram-lhe a porta, e ele conseguiu
sair. Passei a olhar aquela criança e a questionar como eu podería realizar o que me
propunha (oferta de significantes para o estabelecimento de laço social, para reto
mada da estruturação simbólica etc.), se eu não emprestasse meu corpo à criança,
se o terror vivido por mim e conhecido visceralmente não tivesse validade. Afinal,
que comunicação era essa?
O AT possibilitou que eu levasse adiante esses questionamentos por aparecer
como um espaço ainda não definido, “fora da lei”, distante dos modelos de aten
dimento que eu acreditava ter de seguir. No AT, todas as técnicas psicanalíticas
podiam ser revistas: pennaneciam ou eram reposicionadas, mas não eram apriori. Da
mesma fonna que os corpos estão concretamente reposicionados a cada encontro,
todas as construções teóricas também aparecem desalojadas à primeira vista.
A experiência como at começou a ser elaborada num curso livre de mesmo
tema2, que realizei durante o último ano da graduação. Desde então, sigo por esses
campos.
Na bibliografia que conheci sobre o A T é recorrente o texto escrito em primeira
pessoa e, quase em sua totalidade, o autor revela-se claramente. Mesmo com
o uso de conceitos e termos técnicos, há sempre uma rememoração, a descrição
de um atendimento em que o acompanhante é incluído com suas sensações e seus
pensamentos. Acredito que isso revele uma das características fundamentais desse
trabalho, que é a impossibilidade de ocultar a “pessoalidade” do acompanhante.
Embora esse ocultamento nunca seja possível, ele é buscado, muitas vezes, em
decorrência dos pressupostos teóricos que sustentam as práticas terapêuticas.
No sentido oposto desse “ocultamento”, cito uma experiência ocorrida no AT
de Roberta, uma mulher de cinquenta anos. Inicialmente, eu marcava de encontra
da em sua casa duas vezes por semana, porém, durante o primeiro mês, passei todo
2Curso ministrado por Alexandre Maduenho e Joana Tarraf, cujos moldes sigo atualmente no curso que ministro
com minha equipe (HabitAT).
207
Acompanhamento terapêutico
o tempo do nosso encontro na calçada, diante do portão. Ligava duas vezes para
ela, deixava recados na secretária eletrônica, dizendo que estava ali e que a espe
raria. E ligava novamente, dizendo que iria embora e voltaria na semana seguinte.
Até que um dia, após um mês aproximadamente, ela me recebeu, e nada comentou.
Ela estava num estado de descuido absurdo. Fumava sem parar. Todas as
roupas furadas pelo cigarro. Sem banho. Sem se alimentar. E tendo idéias delirantes
de que mataria seus filhos.
Em cinco anos de acompanhamento, além de sobreviver, eu a auxiliei na
busca de um médico psiquiatra que acertasse sua medicação e em quem nós
confiássemos (juntas, passamos por uns quatro médicos). Também conseguimos
alguém para estar todo dia em sua casa com ela e cuidar da limpeza, das refei
ções e de sua medicação. As nossas conversas eram sempre sobre seu medo de
que acontecesse algo a seus filhos: ela me encarava o tempo todo e dizia “Estou
com medo”. E sempre me pedia para ficar mais tempo quando chegava o fim do
encontro, sendo muito difícil para nós a minha partida. Eu, geralmente, prolon
gava o quanto podia, pois ficava muito condoída de sua solidão e de seu medo.
Quando encontramos o médico que reconheceu Roberta, ele indicou uma
internação para ela. Na clínica, eu conversei com a coordenadora, que me
perguntou o diagnóstico de Roberta. Eu lhe disse que os médicos não foram
unânimes quanto a isso e lhe descrevi algumas vivências, ao que ela me disse: “É um
caso de psicose. Senão, você seria muito mais significativa para ela. Ela não se refere
a você como quem compartilhou de todas essas vivências. Não há laço afetivo.”
Devo confessar que tiquei muito chateada com Roberta. Pensava que a havia
encontrado no fundo do poço e entrado lá para lhe fazer companhia. E tudo o que
construímos surgiu de lá. Eu não tinha idéias prontas, propostas pré-elaboradas.
Mas, passado o tempo de internação, eu reconsiderei aquela atimração da coorde
nadora. Na verdade, eu sempre soube daquilo e, mais do que isso, sempre estive
ao lado de Roberta, porque pude me relacionar com ela em outros termos. Havia,
sim, muita troca afetiva (e efetiva), que exemplifico com um de nossos encontros.
A distância, pode-se ver que o atendimento de Roberta caminha, já que
concretizamos muitas mudanças necessárias. Porém o dia a dia é muito cansativo
e repetitivo. Assim, nesse atendimento que vou relatar, antes de encontrá-la, eu
já estava cansada. Nesse dia, uma hora antes do encontro com Roberta, eu havia
208
Por onde anda o acompanhante terapêutico fil
tido uma conversa com uma pessoa muito significativa de meu passado e que amo
muito. Nessa conversa eu havia desenterrado muitas experiências e feito o desdo
bramento de muitas vivências passadas que permaneciam vivas e presentes em
mim. A imagem que fiz desse momento é a de que retirei “destroços que impediam
a fluidez de um rio que beirava o transbordamento”. Chorei muito e estava triste.
E assim cheguei à casa de Roberta: com o nariz escorrendo e vermelho, e com os
olhos inchados e vennelhos. Já cansada, pensei: “ela nem vai notar”. Entrei.
Como sempre, sentamos no quintal: ela fumando, olhou nos meus olhos. Eu
inicialmente desviei o olhar, constrangida, mas logo me reposicionei e a encarei.
Ficamos nos olhando, olhos nos olhos, em silêncio, por um cigarro inteiro. Eu via
seus olhos azuis lindos e, em sua profundidade, uma escuridão que me fazia conter
o choro. Uma beleza escondida naquele contorno sujo, descuidado.
E então aconteceu algo que nunca havia acontecido: os olhos de Roberta
marearam e ela me perguntou: “Será que eu fiz muita coisa errada na minha
vida?” Respirei fundo, espantada com a correspondência que eu experimen
tara e lhe perguntei: “O que te faz pensar nisso?” Imaginando que ela me diria
“seu nariz vermelho”. E ela me contou o adoecimento de sua mãe, os momentos
difíceis das gravidezes, os momentos de ódio que teve do marido e dos familiares,
e interrompeu os relatos dizendo estar com medo de que matassem seus filhos.
Finalmente, conversamos sobre seu ódio, suas mágoas e culpas. Fiz colocações
óbvias das associações que ela apresentava.
E então, ela me disse que não sabia mais se o marido ainda gostava dela.
Abre-se, assim, o espaço para eu lhe contar uma conversa que tive com seu marido
havia dois anos: perguntei-lhe se ainda estava com a Roberta pelo fato de ter de
cuidar dela, e ele me respondeu: “Na minha vida há só a Roberta e sempre será a
Roberta. Não importa como ela esteja”. Ela, então, desaba em choro, eu a abraço,
e ela diz “Nossa, que alívio falar tudo isso”. Eu disse: “Eu vou”. E pela primeira vez
ela disse: “Está bom” . Ficamos uma hora juntas, como combinado.
Considero essa uma experiência de mutualidade3. Sinto que Roberta esperou-
-me habitar tal condição para usar o que meu corpo lhe apresentava, e, então,
3 Em seu artigo de 1969, Winnicott (1994) discorre sobre a experiência de mutualidade vivida entre a mãe e
seu bebê. Nessa experiência, o que está em jogo é o corpo, e a comunicação é nomeada como comunicação
silenciosa. A mãe reconhece as necessidades de seu bebê por adaptar-se a elas através do que Winnicott chama
209
Acompanhamento terapêutico
de identificação da mãe com as necessidades do bebê. Ele também reconhece que há, por parte do bebê, uma
identificação com a mãe e que esse também se põe em comunicação.
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Por onde anda o acompanhante terapêutico
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Acompanhamento terapêutico
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Por oncle anda o acompanhante terapêutico
Fiquei em crise. Era a primeira vez que ele quis sair de perto de sua casa! Eu
não podería perder esse momento. Chegando a sua casa, ele me recebeu de guarda -
-chuvas. Frustrada, olhei para ele seriamente e disse: “Ronaldo, a polícia está lá.
Está prendendo pessoas que vendem mercadorias ilegais, e eu vi no jornal que
está o maior tumulto. Você acha que podemos ir?”. Resposta: “Você vai me levar
ou não?”. Ele não se assustou! Mas era óbvio! A polícia sempre estava presente e
ele já decidira se arriscar. Eu é que descobria a polícia naquele instante. E lá fomos
nós. Ele parecia tranquilo. O de sempre. E eu ficava tentando prever todas as situ
ações. Lembrava que, se alguma coisa acontecesse, eu seria processada e presa. E
lembrava os adolescentes que eram presos e pensava: “Se eu tivesse ido ao psicólogo
quando pequena, não teria escolhido essa profissão e não correría esse risco”. Puxa
vida! Lá estava eu de novo: eu mesma, o outro, todos os outros. Descobria em
mim o “medo” e a “privação” dele. Chegando lá, a rua estava calma. O tumulto
já acabara e não havia polícia. Mas, ao retomar para casa, ele comentou: “Você
viu a polícia?”. “Não.” “Não?” Estranhei aquilo. E só depois reconhecí que não fui
verdadeira na minha resposta. Claro que eu vi a polícia! O que foi tudo isso então?
Ao conceber “a tace estética do sei/1’, Safra amplia a tarefa clínica e possibilita
o abrigo desses fenômenos:
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Acompanhamento terapêutico
Dentro do estudo que realizei até aqui, entendo que é por intermédio da
“faculdade de sentir com”4 que a experiência estética pode se dar num atendimento,
e assim ser abrigada sem reduções.
Safra tem desenvolvido novas formulações para podermos compreender o
sofrimento trazido por nossos pacientes. Entendo que isso se refere a certa falência
da prática psicanalrtica, sobretudo as suas técnicas, tomando-se cega ao inédito
e a novas formas de sofrimentos revelados pelos pacientes que não aquelas já
reconhecidas tradicionalmente. Faz uma crítica ao uso da técnica que acaba não
contemplando a ética humana e assim gera mais adoecimento5. Dessa forma,
entendo que é parte da nossa ética profissional lançar outro olhar a esses fenô
menos já descritos pela psicanálise (Safra, 2004).
No episódio da Vinte e Cinco de Março, o meu posicionamento diante de
Ronaldo foi de eco. Sua busca rne comoveu6. Eu o refletia na minha apreensão
corporal, no medo, na “paranóia”, nas minhas recomendações e na esperança
- pois, apesar de tudo, eu me arriscava em busca de algo. Lá, eu era um radar.
Atenta a todo movimento. Preocupada com notas fiscais, em esconder a sacola. E
o que aconteceu foi algo muito bonito: ele queria achar determinado objeto em
forma de coração e nós não o encontrávamos. Eu tentava convencê-lo da beleza e
da pertinência de outras formas: a estrela, a lua, o sol. Ele olhava, tocava e descar
tava. Até que, por fim, achamos o coração: “Era isso de que eu precisava!”, ele
disse ao encontrá-lo. O coração era um presente para uma futura namorada. Eu
respondi que, se fosse para mim, acharia muito bonito, e ele disse “obrigado”. Por
fim, comprou o presente para a mãe, dizendo: “Ela vai gostar”. Eu me lembrava de
sua mãe e pensava: “É horrível, ela não vai gostar”. E ela não gostou e tampouco
reconheceu a tentativa dele de atingir seu coração. Estava tudo apresentado: a
necessidade de ser abrigado num coração, o “tédio” que a falta desse lugar lhe
trazia e a recuperação da sua capacidade de “encontrar”, sustentada pelo nosso
encontro. Ao final, eu lhe disse: “Ainda bem que você não me ouviu e não desistiu
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Por onde anda o acompanhante terapêutico
Ao longo do meu percurso como at, meu corpo foi sendo informado, comovido
pelo que meus “acompanhados” apresentavam, e assim foi possível que experiên
cias originárias acontecessem sem reduções. Por essa possibilidade, compreendo
que é tarefa do at articular conceitos como corpo, corporeidade, empatia e esté
tica para um posicionamento ético nos atendimentos.
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Acompanhamento terapêutico
Referências bibliográficas
Ferenczi, S. (1992). Reflexões sobre o trauma. In: Obras Completas. Vol. IV. São Paulo:
Martins Fontes.
Safra, G. (1999). A Face Estética do Selí: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco.
Saíra, G. (2004). A pó^ética na clínica contemporânea. Aparecida, SP: Idéias &. Letras.
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