Obra que dispensa demais apresentações, “FLB” parece se comportar com base, justamente, nesse
conflito entre uma pulsão de morte e o desejo de arquivo que estruturam e institucionalizam um
dado arcabouço cultural. Antonio Candido, nesses termos, seria um sujeito a organizar um arquivo
específico, segundo questões e preocupações específicas e objetivando uma operacionalidade futura
deste arquivo. Neste sentido, acreditamos ser cabível executar essa leitura da obra de Candido à luz
dos apontamentos sobre o arquivo derridiano.
Nossa hipótese central sobre a importância de “FLB” para o conjunto da obra de
Antonio Candido pode ser resumida da seguinte forma: o autor plasmou, ao discurso da crítica
literária, uma leitura específica da história nacional. Tendo como parâmetro os arcabouços da
modernização brasileira, Candido organizou seu sistema literário com base num discurso
1 Texto apresentado como requisito parcial para obtenção de créditos na disciplina “Como Viver Junto:
Coleções, Arquivos e Redes como Operadores Criativos”, ministrada pela Prof. Dra. Maria Elisa Rodrigues, vinculada
ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
historiográfico de grande monta e que referendava o ponto final desta formação, qual seja, o de
surgimento do modernismo como síntese criadora das tendências estéticas fecundadas em solo
nacional. Para tanto, dois marcos históricos específicos organizam e dão o sentido continuísta de
“Formação da Literatura Brasileira”: a Inconfidência mineira e o processo de independência. Ao Formatted: Font: Italic
ler os escritores que compõem o sistema literário como portadores das tendências que sintetizam as
aspirações universalistas e particularistas, Candido firmou o objeto de sua crítica literária nos
interstícios do discurso historiográfico hegemônico sobre a formação do próprio Estado Nacional
brasileiro. Desta forma, inconfidência e independência ganham, na escrita de “FLB”, uma
completude que caminha para a nossa própria realização literária. Em outras palavras, resumiríamos
essa hipótese afirmando que, para concretizar sua crítica literária com os parâmetros técnicos e
científicos requeridos pelo novo contexto acadêmico, Candido lançou mão de um sentido histórico
já assentado e legitimado em seu tempo histórico. É essa organização da história nacional que se
confirma como um objeto de estudos para a nascente crítica literária (“epistemologia”?) e que vai
garantir a manutenção do escopo civilizacional que orienta a obra de Antonio Candido (“ética”?).
Os apontamentos de Derrida sobre o arquivo podem contribuir para aferir esta hipótese
no seguinte sentido: Se se nenhum arquivo passa incólume às intenções e projetos dos sujeitos que
os organizam, podemos ler essa intencionalidade no modo como Antonio Candido, particularmente
nos momentos finais do segundo volume de seu livro, exclusivamente dedicado a uma espécie de
antologia da crítica literária do século XIX, organiza o material da crítica literária anterior à sua
própria? Haveria alguma fissura constitutiva do arcabouço literário brasileiro que a antologia de
Candido tenta, se não esconder, ao menos incorporar ao sentido histórico impingido à organização
dos textos críticos que ele exerce no capítulo referido? Como já afirmamos que Candido,
possivelmente, constrói seu objeto de estudos a partir de uma dada matriz historiográfica, não
estaria essa própria matriz, com forças de instituição, impingindo, no próprio Candido, uma certa
organização do material de que ele dispõe? Mais do que resolver essas questões, o cruzamento de
nossa leitura de “FLB” com alguns apontamentos de Derrida a respeito do arquivo pretendem
evidenciar a pertinência delas e de sua abordagem no interior do texto já conssagrado de Antonio
Candido. Commented [MERM1]: Thales, excelentes e pertinentes
questões, que me parecem, em especial no momento de
homenagens infindáveis a Antonio Candido, fundamentais
não para minimizar sua importância no campo da crítica
O NOVO PROVÉM DO VELHO: REFLEXÕES SOBRE CONTINUIDADES E RUPTURAS literária nacional, mas para ler sua obra, também,
criticamente, ou a contrapelo, se quisermos retomar a
NA “FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA”: proposta benjaminianas.
Formatted: Font: Italic
“Formação da Literatura Brasileira” é do tipo de obra que já passou por incontáveis Formatted: Font: Italic
essa valoração com relação ao próprio objeto de pesquisa é seja de menor intensidade. Com a
literatura já bem formada, Candido contava com o distanciamento necessário para postular seu
objeto de pesquisa de modo mais científico, porque menos ensaístico, que os demais. Antes de
avançarmos na argumentação, cabe destacar que não se trata de acusarmos Schwarz de algum tipo
de positivismo ingênuo, já que o mesmo faz questão de considerar que, apesar de formado, esse
passado literário nutre efetivos vínculos com o presente de Candido (SCHWARZ, 1999, p. 18).
De tudo isso, convém destacarmos que essa diferença entre Candido e os demais é
transposta por Schwarz para o contexto referente à fundação da Faculdade de Filosofia da USP,
onde Candido se formara. Neste aspecto, Schwarz tangencia o problema central de nossa pesquisa,
não obstante o restante de sua argumentação ir para caminhos diferentes. Diz Schwarz:
O grande ponto a ser explorado nas discussões do arquivo derridiano é o modo como
ele, a partir da pulsão de morte freudiana, nos lembra de que o arquivo é um produto e, ao mesmo
tempo, produtor da cultura. Ora, seguindo a argumentação de Derrida, devemos estar atentos ao fato
de que o arquivo, tal qual nos aparece, como uma exterioridade, é fruto de um certo “mal radical”;
de uma pulsão destrutiva, algo que o próprio Freud só aceitou mediante grande resistência
(DERRIDA, 2001, p. 20). Nesta pulsão pela destruição, pulsão algo de originária, interpela-se uma
dissimulação erógena da presença. O desejo de arquivo interpõem-se, portanto, como uma vontade
de permanência, ou de sobrevivência. Sustentar essa vontade implica em esconder a pulsão pela
destruição que lhe deu origem. Como num processo de retroalimentação, o desejo se fixa na
exterioridade do arquivo. Esse exterior,; essa casa da memória que no próprio nome enceta uma
ambiguidade latente ente privado e público, e cuja origem é sua própria destruição conserva
também a autoridade instituída.
O processo que possibilita essa passagem do arquivo do privado ao público se dá por
meio do que Derrida chama de consignação. Neste sentido, o poder topo-nomológico (de origem e
autoridade) se cruza com o poder de consignação, como reunião de signos, para a publicização da
autoridade e sua instituição:
A autoridade, como comando, necessita de apagar os sinais de sua origem, que são os
de sua própria destruição. Assim, a exterioridade do arquivo, por meio da consignação, acaba por
tornar a noção de arquivo algo difícil de se arquivar. O que somos capazes de fazer, no entanto, é
ficarmos atentos ao processo que torna possível a passagem da consignação à institucionalização do
arquivo. Atentarmo-nos a esse processo significa percorrer um rastro deixado pela dissimulação Commented [MERM4]: Muito bom.
protética”. “Uma vez que um quase espectro faz assim sua aparição, trata-se também do direito à
manifestação de uma certa verdade (um pouco espectral, em parte espectral) na figura de uma
espécie de “‘fantasma real”’. A espécie, o aspecto, o espectro. Eis o que ainda resta investigar sobre
a verdade, o que especular com o verdadeiro dessa verdade” (DERRIDA, 2001, p. 116).
Nossa tentativa, em diante, será justamente tentar evidenciar essa fissura que o arquivo
instituído tenta dissimular. Dissimular a fissura como um modo de apaziguar o passado,; de
controlar seus fantasmas, é uma das características do Estado, de acorodo com os apontamentos
derridianos, bem como na interpretação dada por Homi Bhabha no texto “DissemiNação: O tempo,
A Narrativa e as margens da nação moderna” (BHABHA, 1998, p. 198). Ademais, Michel de
Certeau também se preocupa com o problema da instituição de modo mais específico, qual seja, no
próprio fazer-se da operação historiográfica. Neste sentido, não seria exagero considerarmos que as
preocupações de Certeau possuem um diálogo amplo com o que fora exposto por Derrida, até então,
sobre o arquivo:
Em história, é abstrata toda "doutrina" que recalca sua relação com a sociedade. Ela
nega aquilo em função de que se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção
devidos à eliminação daquilo que a situa de fato, sem que ela o diga ou o saiba: o
poder que tem sua lógica; o lugar que sustenta e "mantém" uma disciplina no seu
desdobramento em obras sucessivas, etc. O discurso "científico" que não fala de
sua relação com o corpo social é, precisamente, o objeto da história. Não se poderia
tratar dela sem questionar o próprio discurso historiográfico (CERTEAU, 1982, p.
69-70).
Naturalmente, seria um grave descuido considerarmos que Candido não pensou nas
relações entre sua própria obra e o momento e lugar de sua escrita. Não obstante, a ideia que
ilustramos mais acima a partir das considerações de Schwarz é tida como um dado quase natural. A
escrita de Candido avança, em termos científicos, dado ao contexto uspiano em que sua obra
aparece. Poucos são os trabalhos que se dedicam a revisar as implicações desta consideração no
modo como Candido elabora seu próprio projeto intelectual. Citemos os dois principais trabalhos, a
saber: “A tradição esquecida: Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido”
(JACKSON, 2002) e “A vida social das formas literárias: crítica literária e ciências sociais no
pensamento de Antonio Candido” (RAMASSOTE, 2013). Não obstante, tais trabalhos não avançam Commented [MERM6]: Não constam de sua lista de
referências.
na questão sobre a força da “instituição historiográfica” na constituição do próprio objeto de estudos
de Antonio Candido, qual seja, o da crítica literária nacional como um sistema orgânico à
civilização. Se estivermos corretos, essa força irá borrar as margens cerradas entre sujeito e objeto
que levaram Schwarz a considerar o relativo distanciamento entre um e outro como ausência (ou
pelo menos controle) de valoração do sujeito no sentido de “Formação da literatura brasileira”.
Nesse sentido, o modo como Candido se relaciona com o arquivo será o grande operador para testar
essa hipótese.
A CRÍTICA COMO CONSCIÊNCIA DA CULTURA: UM ARQUIVO DO DESEJO DE
ARQUIVAR:
principal: A grande contenda entre arcadismo e romantismo, nos momentos formadores da literatura
brasileira, e que versa sobre o teor mesmo de nossa literatura (entre o universalismo e o
particularismo), é reconduzido reconduzida pelo autor do campo da polêmica para o campo de um
processo integrador, no qual o arcadismo se formaria como uma necessidade histórica; como uma
prerrogativa para que o Brasil comungasse do circuito letrado do Ocidente. Feito isso, ou seja, tendo
o arcadismo funcionado como um momento no qual os brasileiros puderam “aprender” o que é a
literatura e como fazê-la, o romantismo pôde então se consolidar como a grande escola literária que
foi no século XIX. Nestes termos, a grande ironia fora o romantismo encastelar-se numa prática
literária demasiadamente particularista, caindo, não raras vezes, num exotismo cujo arrefecimento
criativo estava num grau muito próximo ao arcadismo, universalista e aristotélico, que os
românticos tanto criticavam.
Não obstante, arcadismo e romantismo passaram a ser vistos como agentes integrantes
deste novo sistema. Assim é que faz sentido a definição do “Ser” da literatura para Antonio
Candido. Se a literatura constitui o arcabouço cultural do ocidente, isso quer dizer que ela não é
algo isolado do todo desta cultura. Neste sentido, o sistema literário composto por autores, públicos
e obras em interação constante obsta qualquer tipo de classificação natural, isolada e/ou
independente da vida cultural que nutre aquela literatura. Ao destacar o particularismo do
Romantismo como dado de interação satisfatória desse sistema, Candido identifica o surgimento da
literatura com o próprio surgimento do Estado nacional no plano cultural; no plano do sentimento e
das aspirações nacionalistas.
O que gostaríamos de discutir, a partir disso, é que Candido mapeia este processo (no
Arcadismo e no Romantismo) atrelado a dois fatos históricos que, de acordo com o livro, caminham
para o despertar deste nacionalismo, a saber, a inconfidência mineira e a independência. As coisas
ficam mais complexas quando percebemos, seguindo a construção de Candido, que o autor toma a
narrativa nacionalista hegemonicahegemônica como a única possível, apagando as
heterogeneidades e diferenças no bojo da disputa sobre os sentidos e a memória destes dois “fatos”. Commented [MERM8]: Thales, sei que as narrativas
históricas correspondentes a estes fatos passaram por
Neste nível da argumentação, devemos perguntar: a inconfidência mineira, de fato, encerra algum diversas revisões, lembro-me de ter lido algumas coisas a
respeito, em especial, da construção da ideia de nação a
tipo de expectativa nacionalista (ainda mais brasileira!) nos agentes históricos do momento, ou é o partir de uma certa narrativa criada para a Inconfidência
Mineira, mas não consegui recuperar essas leituras com
Estado já formado projetando sua sombra para uma certa “origem” a legitimar o seu “comando”? precisão (ah, a memória...). Você saberia me dizer se
revisões historiográficas são anteriores ao lançamento do
Outrossim, o próprio processo de independência já estaria com sua clausura destinada a consolidar livro em pauta de Candido? Você menciona, no fim deste
parágrafo, o livro de Pimenta, mas ele já é dos anos 2000.
o Estado Nacional brasileiro, ou este “destino” foi o resultado de um processo de longa disputa
sobre o modo como o novo estado de coisas deveria ser nomeado e rememorado? Ora, no campo
historiográfico, essas questões já foram há muito levantadas; basta lembrarmos o trabalho do
professor João Paulo Pimenta, em que o discurso jornalístico serve de base para que ele mapeie a
disputa de sentidos que se dava nos momentos decisivos da independência (PIMENTA, 2002).
No entanto, não há um estudo satisfatório a identificar como essa projeção do Estado
como instituição ordena, também, a própria constituição do sistema literário preconizado por
Candido como objeto de pesquisa. Neste sentido, a organização que Ccandido faz dos críticos
brasileiros do século XIX, bem como suas matrizes de pensamentos e respectivos desdobramentos,
nos ajudam a perceber como isso se forma e conforma.
Isso porque o capítulo que encerra os dois volumes da “Formação da Literatura Formatted: Font: Italic
Podemos aferir essa seleção na medida em que Candido pinça o valor histórico em meio
à mediocridade daquela nascente crítica. Esse valor corresponde, justamente, à sedimentação do
sistema conjugado de obras, autores e público em função do nacionalismo literário, cujo mérito se
deve porque:
REFERÊNCIAS
PIMENTA, João Paulo. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828). 1a..
ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
SCHWARZ, Roberto. Sobre a “Formação da literatura brasileira”. In: Seqüências brasileiras:
ensaios. Editora Companhia das Letras, 1999. P.17-23.
Thales,
seu trabalho final, como os demais textos apresentados, apresentada profundidade reflexiva aliada
tanto a um aguçado olhar crítico quanto a uma escrita de verve ensaística bastante apurada. Não sei
se essa discussão tomará parte em sua pesquisa, ou se desenvolveu-se apenas para a disciplina, mas,
em ambos os casos, parece-me um texto bastante relevante no contexto atual por levantar
problematizações em torno do modo como se constitui certo pensamento sobre a literatura
brasileira. Caso passe por desdobramentos, parece-me que a seção que mais necessita ser
aprofundada é a última, em especial quando se volta ao próprio texto de Candido que encerra o
Formação.
Parabéns, foi um prazer ler seu texto e pensar com ele.
Nota: 10