Daí que nessa abordagem da memória seu caráter político-afetivo não pode
ser descartado, mas sim apreciado como possibilidade de expressão de
subjetividades e sensibilidades que têm importância nas ações dos sujeitos e,
claro, na história passível de ser construída a partir da vivência dos
mesmos.1
1
SANTOS, Márcia P. dos. História e memória: Desafios de uma relação teórica; in OPSIS, VOL7, Nº 9,
JUL-DEZ 2007.
Também sem voz e usada como um objeto é Amala, a criada, menina comum da
roça, de olhos baixos e poucas palavras, submissa a ponto de não ter forças para se
recusar a dormir com o filho da patroa para que ela pudesse ter um neto, como uma
chocadeira humana. A criança, uma menina, é rejeitada pela mãe, que nunca a quis, e
pela avó, que queria um menino.
A pequena teve direito não só a viver como a ser criada como filha por Olanna,
mas a rejeição de crianças pelo simples fato de serem meninas é real. Principalmente na
Índia e na China, o infanticídio e aborto de fetos do sexo feminino chega a níveis
alarmantes. O economista indiano ganhador do prêmio Nobel, Amartya Sen, alertou a
Índia sobre os assassinatos em massa de mulheres pela primeira vez em 1986. Segundo
ele, havia cerca de 37 milhões de mulheres “desaparecidas” no país. Há uma campanha
global contra o genocídio feminino na Índia, a campanha “50 milhões de
desaparecidas”2. São 50 milhões na Índia, quantas em outros países, quantas no total?
O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e muitas mulheres são privadas
do direito fundamental, à vida, não por terem cometido algum crime, mas por serem
mulheres, num triste e silencioso extermínio.
As mães que choram sobre os corpos ensanguentados dos filhos poderiam estar
em qualquer parte do mundo. Não seriam companheiras na mesma tragédia as mães que
viram seus filhos sucumbir à fome de Biafra e as mães que perderam seus filhos na
fome do seco nordeste brasileiro? A fome usada como arma de guerra para conter os
biafrenses e que trouxe doenças e morte não é parente da fome e das doenças com as
quais o governo controla o povo do sertão de Jorge Amado?
2
http://50mmport.wordpress.com
3
Amado,Jorge, Tereza Batista cansada de guerra: 10° Ed. Rio de Janeiro, Record, 1978. Pg.188-189
Todas as mulheres que valentemente contribuíram com o que puderam fazer no
cenário brutal da guerra são iguais a mulheres espalhadas pelo mundo que lutam em
condições desiguais contra a guerra, a miséria a fome e as doenças.
Olanna e Kainene são gêmeas de aparência e temperamento opostos que se
mantém distantes, cada uma levando sua própria vida até que são unidas pela tragédia
da guerra, já que apesar de tudo são irmãs. Seriam elas uma metáfora da própria
Nigéria? Dividida em regiões opostas, cada uma com sua característica particular, que
voltam a se unir depois de um afastamento que parecia ser definitivo? Olanna na sua
viagem em visita aos tios se admira de quanto o Norte inteiro era tão diferente do Sul.
As irmãs conseguiram se reaproximar após uma traição que parecia imperdoável. Seria
possível superar uma divisão territorial arbitrária feita pelo colonizador, que não levou
em conta as diferenças étnicas de uma região, ou como diria Odenigbo, a identidade
autêntica de um africano é a sua tribo? O livro deixa a questão em aberto, mostrando o
lento recompor de uma nação ferida.
A história das irmãs também mostra questões do universo feminino que são
comuns ao redor do mundo. Kainene é uma mulher moderna e hábil negociante, mas
tem uma certa dificuldade com as emoções, personificando um conflito rotineiro nos
dias atuais: mulheres altamente capazes profissionalmente que se sentem um tanto
deslocadas quando tem que lidar com sua própria sensibilidade. Olanna, apesar de
belíssima, enfrenta uma traição do marido, que tem uma filha com outra mulher. Esse
conflito, além de comum, é atemporal. Várias mulheres ao longo de toda a história da
humanidade tem lidado com essa situação. Olanna perdoa a traição e cria a menina, o
que abre espaço a uma reflexão: seria um ato de coragem, de submissão, de grandeza?
Talvez um certo complexo de inferioridade, apesar da beleza, que fez com que aceitasse
um homem que a traiu? Ou simplesmente o amor por Odenigbo torna os deslizes
desculpáveis? Kainene também perdoou a traição de Richard. O fato dessa traição não
gerar um filho facilita o perdão?
Mais do que uma história da guerra, Meio Sol Amarelo é um grande emaranhado
de memórias de seus personagens, com seus conflitos que nos levam à reflexão sobre
questões que estão presentes em nossa própria memória.