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VITOR

ABDALA

Tânatos
Contos sobre a
Morte e o Oculto

VCA


Copyright: © 2016 Vitor Abdala

Tânatos – Contos sobre a Morte e o Oculto foi publicado originalmente em 2 de abril de 2016, em versão impressa, pela Editora Giostri.

2ª Edição em E-book (2018).

Abdala, Vitor

Macabra Mente / Vitor Abdala – Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2016.

1. Literatura brasileira: Ficção e contos brasileiros.

CDD: B869.3

ISBN: 978-85-921875-2-1


COMENTÁRIOS SOBRE TÂNATOS

"Narrativas repletas de angústia e sofrimento"

— Jornal A Tarde (BA)

"Tânatos é um livro para se ter na estante. Terror nacional contemporâneo em cenários e situações
plausíveis"

— Toca o Terror

"Uma excelente antologia de contos de terror com uma pegada urbana, quase realista, fruto dos mais de
dez anos [do autor] trabalhando como repórter e que imprime um tom bastante trágico e pessimista à
leitura, aumentando ainda mais o horror contido nas páginas do livro"

— Boca do Inferno

"Um mergulho no oculto. Vitor Abdala te transporta para ambientes e situações apavorantes, onde o
suspense e o sobrenatural mostram o verdadeiro lado negro e sem piedade"

— Trilha do Medo

“É um livro curto, que a gente lê numa sentada. Só não o indico para aqueles que apreciam histórias com
finais felizes”
— Rubens Francisco Lucchetti, papa do pulp e mestre
do terror nacional




CONTOS

Combustão

Vodu

Amanhã Vai Ser Pior

Soterrados

Mensagem Instantânea

Tem Uma Coisa Dentro de Mim

Prisão Perpétua

O Assassino Hesitante

Índios
COMBUSTÃO

O sangue escorre pela minha testa e entra nos meus olhos em um fluxo contínuo. Meus dois olhos,
inchados, doem. E, com isso, tenho dificuldade de enxergar o que está à minha frente. Todo o meu corpo
pede socorro, depois de tantos socos e pontapés que recebi nas últimas horas, em uma sessão de tortura
interminável.

Estou ajoelhado dentro de um terreiro de umbanda, no meio da favela. Imagens de santos e orixás,
espalhadas por todos os lados, pareceram acompanhar todo o meu tormento, com olhares de satisfação.
Apenas algumas lâmpadas vermelhas e uma fraca luz que vem da rua iluminam o local. A dor é imensa.
Sinto raiva de tudo aquilo. A sessão de tortura, a dor, aquele local estranho e, principalmente, minha
estupidez. Afinal, tudo aquilo era culpa minha.

Sou jornalista e, por ideia minha, tinha me infiltrado no tráfico de drogas daquela favela há três
meses, para escrever uma reportagem sobre o funcionamento da quadrilha. Tudo desmoronou quando fui
descoberto pelos bandidos naquela noite. Levaram-me para ser torturado no terreiro, porque, segundo
eles, foi uma “entidade espiritual” que os alertou sobre a existência de alguém infiltrado na quadrilha.

No início ainda tentei argumentar, dizendo que eles não podiam acreditar naquela besteira
sobrenatural. Mas, depois de horas sendo torturado, não tive mais forças e acabei confessando minha
culpa, na expectativa de receber o perdão dos meus algozes. Eles não só não tiveram compaixão, como
passaram a me bater com mais força.

— Por favor, não me matem — imploro, esforçando-me para pronunciar as palavras com minha boca
inchada.

— Teu destino está selado — diz um dos bandidos, enquanto chega o rosto bem perto do meu. —
Uma morte horrível te espera.

Ele aponta para a estátua de um homem com capa vermelha e um tridente e complementa:

— Exu já decidiu.

Olho para frente e vejo a estátua, que parece sorrir para mim. Sinto uma sensação estranha. As feridas
pulsam com força. Minha vista embaça.

Passo a ter certeza de que não vou sair vivo dali. Tudo o que quero é o fim da sessão de tortura.

— Sua hora chegou, seu verme! — grita o bandido.

Sinto o cano frio de sua pistola na minha nuca e tenho um calafrio. Meus olhos e lábios se contraem
com força. A arma fica encostada em mim por um longo período. Fico na expectativa do tiro, que pode
vir a qualquer momento. Mas o bandido desiste e recolhe a arma.

— Sua morte não vai ser tão fácil, vacilão. Você vai sofrer.
Dois homens me agarram e começam a me arrastar para fora dali. A estátua continua me encarando,
dessa vez parece mostrar dentes afiados. Do lado de fora, vejo-me em um campinho de terra, com umas
dez pessoas em volta. Todas elas armadas. Não há como fugir.

Ouço risadas. Entendo, então, o que está reservado para mim. Um dos bandidos me segura em pé,
enquanto os outros vão encaixando pneus de borracha em volta do meu corpo. Um, dois, três, quatro,
cinco pneus me envolvem. Logo me vejo preso àqueles pedaços de borracha. Alguém me chuta e caio no
chão. Um novo chute e caio dentro de um buraco.

Jogam algo sobre mim e sinto minhas feridas arderem. Gasolina! Estão me encharcando com o
combustível. Meu Deus, vão mesmo me queimar vivo! Tento implorar pela minha vida, mas tudo o que
consigo é vomitar.

— Diz adeus, seu dedo-duro de merda — diz o traficante.

Um fósforo é riscado e jogado sobre mim. O fogo sobe pelas minhas pernas e o inferno começa.

— Aaaaaarrrrrggggghhhhh!!!!

A dor é insuportável e começo a gritar como um porco no abatedouro. As chamas queimam minha
pele. É como se encostasse em uma tigela de metal que acabou de sair do forno, mas sem a possibilidade
de recuar a mão e num grau infinitamente pior. Debato-me com toda a força. A imagem do homem com a
capa vermelha e o tridente aparece de novo na minha frente. Ele sorri satisfeito, com seus dentes afiados.

Minha vista embaça e vomito de novo. O fogo chega até o meu rosto. Já não consigo gritar. A morte
não chega. Sinto as piores dores do mundo. Alguns minutos se passam. As chamas rompem minha pele,
em vários pontos, e começam a atingir o interior do meu corpo.

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!

O fogo vagarosamente vai comendo meus músculos, ossos e meus órgãos internos. Meu corpo ainda
tenta se desvencilhar daquele tormento, mas os pneus não me deixam mexer muito. Estômago, intestino,
coração e pulmões queimam. Meus olhos, língua e ouvidos derretem com as chamas. Mas, maldição, a
morte não vem.

Continuo vivo, sentindo a dor mais horrível do mundo. Vejo a imagem daquele homem de capa
vermelha de novo. Sinto que o fogo consome todos os meus órgãos, como se mil agulhas incandescentes
perfurassem meu corpo ao mesmo tempo.

Meu Deus! Por que eu continuo vivo? Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!

Perco a noção do tempo. Tenho a sensação de que estou sendo consumido pelo fogo há mais de dez
horas.

Teu destino está selado, uma morte horrível te espera, a voz do traficante volta a ecoar na minha
mente e mais uma vez, em meio àquela dor insuportável, volto a ver aquela estátua estranha e ela abre sua
boca para repetir uma morte horrível... uma morte horrível... uma morte horrível.

A imagem do meu coração em chamas, batendo, apesar de arder no fogo, invade minha mente. E isso
faz a dor se tornar ainda mais insuportável. Meu corpo já não se mexe, mas meus órgãos continuam a
funcionar e minha mente está em pleno funcionamento.

Instintivamente, minha boca abre e tenta pegar um pouco de ar, mas só consegue sugar mais chamas.

Será isso o inferno?

Não, ainda estou vivo. Meu pulmão ainda joga ar por meu corpo incendiado. Meu coração ainda
funciona. E minha consciência não foi afetada.

***

O fogo está quase extinto. Meus órgãos, entretanto, ainda ardem como brasas de carvão. Não sei
quanto tempo se passou. Só sei que a dor não deu trégua um segundo sequer. Alguém joga algo sobre meu
corpo carbonizado, mas vivo.

A estátua aparece de novo. O homem de capa vermelha abre sua boca com dentes afiados, de forma
desafiadora. Então, sinto jogarem algo de novo sobre mim. Parece terra.

O que está acontecendo, agora?

Mais terra é jogada sobre mim.

Nãããããooooooooo!!! Estou sendo enterrado vivo!!! Minhas entranhas ainda estão sendo consumidas
pelo fogo, eu não morri e estou sendo enterrado vivo.

Sinto que já estou completamente encoberto pela terra, mas sei que continuam a me enterrar porque o
peso sobre o meu corpo aumenta cada vez mais. A terra aspirada pelo que restou do meu nariz entra no
pulmão ainda queimando.

Por que não morro?

Sinto, então, uma lâmina sendo enfiada no meu estômago em brasa. É afiada. Ali, embaixo da terra
vejo a imagem do homem de capa vermelha. É ele quem está me espetando. Seus olhos são labaredas.
Seus dentes mais afiados do que nunca. A dor, que parecia que não podia piorar, atingiu níveis
impensáveis.

A estátua sorri. E, apesar de ser fisicamente impossível, a dor continua a piorar. Uma morte
horrível... uma morte horrível, repete o homem da capa vermelha.

Meu Deus, isso não vai acabar nunca?! Aaaaaaaaaarrrrrrrrrrgggggggggghhhhhhhhhh!


VODU

A sugestão de ir até aquele vidente tinha sido de sua vizinha, uma senhora de mais de 80 anos, que
Érico sempre encontrava no elevador do edifício onde morava. Érico não acreditava em clarividência,
leitura de mãos, tarô, búzios ou qualquer uma dessas crendices populares, que ele considerava puro
charlatanismo, mas estava disposto a dar uma chance àquilo.

Ele já esperava há quase duas horas, quando finalmente a secretária do “Bruxo” o chamou para entrar.
A sala estava meio escura, mas ele logo identificou o vidente sentado a uma mesa, cheia de pequenas
estátuas.

— Bem-vindo à minha casa — disse o vidente, sinalizando para que Érico se sentasse a sua frente.

De início, ele relutou. Pensou em dar meia volta e sair dali para nunca mais voltar. Sentiu-se um
idiota por acreditar que aquilo poderia resolver seu problema. Há três meses vinha sentindo dores,
localizadas em diferentes partes do corpo.

Começava apenas como um leve incômodo. Aquilo evoluía para algo mais doloroso e parecia que
facas entravam em seu corpo. A dor ficava no local afetado por alguns dias e, subitamente, desaparecia.
No dia seguinte, outra parte de seu corpo era atingida.

Se a pontada era na cabeça, ele sentia-se inicialmente com uma leve enxaqueca. Depois, parecia que
alguém queria arrancar-lhe o cérebro com um facão de abrir cocos. Em seguida, toda a cabeça ficava
dolorida, com uma forte enxaqueca. Analgésicos não faziam efeito. Não importava quantos comprimidos
de dipirona ele ingerisse. Por volta do quarto ou quinto dia, tudo acabava repentinamente.

Já tinha sentido dores nas costas, na cabeça, na pélvis, nas pernas, na barriga, dentro da boca, nos
braços, na cabeça de novo. Tinha visitado duas emergências de hospital, três clínicos gerais e dois
especialistas. Nenhum deles tinha encontrado nada de errado com seu organismo.

— Fique à vontade — disse o Bruxo.

Por fim, Érico sentou-se, ainda hesitante. O vidente encarou-o, em silêncio, por alguns momentos. O
Bruxo era um homem gordo e ele exalava um odor um tanto quanto desagradável. Um cheiro de suor
misturado com carne em processo de apodrecimento.

O vidente deu um sorriso que Érico achou forçado. E o silêncio estabeleceu-se na sala por alguns
minutos. O Bruxo analisou-o com profundo interesse. Quando Érico quis quebrar o silêncio, o homem à
sua frente segurou suas mãos e fechou os olhos. Ele ficou assim por cerca de cinco minutos, até que os
abriu novamente e soltou as mãos do cliente.

Érico mal disfarçava seu desprezo por toda aquela “farsa”.

— Eu sei o que te incomoda — por fim, disse o vidente.


É claro que sabe. Eu contei tudo sobre minhas dores para aquela velha que vive gastando dinheiro
nessa merda, pensou Érico.

— Você está atormentado por dores. Que você não sabe de onde vêm, mas que estão tornando sua
vida um inferno.

Parabéns pela conclusão, gênio, quis gritar para seu interlocutor, ridiculamente vestido com uma
roupa de pai de santo e um chapéu kufi azul-claro.

Estava arrependido de ter ido até aquele templo fajuto, mas não sabia como voltar atrás. Nesse
momento, recuperava-se de uma pontada no seu pulmão esquerdo. Ainda tinha certa dificuldade para
respirar, mas estava no último dia daquele ciclo. Sabia que, no dia seguinte, começaria uma dor
insuportável em outra parte de seu corpo.

— Eles me contaram — disse o Bruxo, apontando para o alto.

Érico olhou como um bobo para o teto, tentando descobrir quem eram “eles”.

— Suas dores não serão curadas por médicos.

Olhou para o vidente. Não conseguia esconder seu ceticismo.

— São dores que afetam seu espírito, não seu corpo — falou o místico.

Maldito, que tal dizer isso para meu pulmão esquerdo?, berrou mentalmente Érico. Charlatão!

O Bruxo fechou os olhos e segurou as mãos de seu cliente novamente. Érico olhou para os lados. A
sala estava repleta de ícones de todas as religiões, de São Jorge a Vishnu, passando por Buda e Iemanjá.
Estrelas, luas e símbolos do zodíaco complementavam a decoração do kitsch santuário.

Érico ficou olhando fixamente para aquele homem que se esforçava para parecer real a sua
encenação. Os olhos continuavam fechados. O ambiente silencioso. Ele pensou em começar a assobiar
quando foi interrompido pelo súbito despertar do Bruxo.

— Vodu! — disse o vidente.

— O quê?!

— Essa é a origem de toda a sua aflição.

— Desculpa, mas não estou entendendo — disse Érico.

— Você sabe o que é vodu?

Érico pensou um pouco, já estava se envolvendo demais naquela brincadeira. Não sabia se encerrava
de vez aquela encenação ou se dava mais corda para o místico.

— Sim, aqueles bonecos em que você espeta uma agulha.


O Bruxo aproximou-se dele, com um ar solene.

— A religião vodu é mais do que isso. Sacrifícios de animais, comunicação com espíritos,
incorporação de entidades, transes, uso de plantas medicinais. E, sim, você está certo: aqueles bonecos
fazem parte disso.

O vidente alisou seu cavanhaque, pensativo, e completou:

— É algo muito parecido com os nossos cultos afro-brasileiros. É uma religião muito antiga, que se
originou na África e chegou às Américas com os escravos.

Um novo período de silêncio. Érico sentiu-se incomodado com aquilo. O Bruxo levantou-se e
caminhou até uma estante, onde havia livros muito velhos. Ali, ele pegou um atlas, que jogou sobre a
mesa. Com o dedo molhado de saliva, começou a folhear o velho volume, até que parou em um mapa do
Caribe. O livro era tão velho que ainda mostrava várias ilhas, hoje países independentes, como colônias
da Inglaterra.

O dedo do vidente percorreu a página e parou em cima do território do Haiti. Érico sentiu um
calafrio. O Bruxo olhou para seu cliente em silêncio.

— Haiti — disse, secamente, o místico.

Érico engoliu em seco, enquanto ouvia o Bruxo completar sua frase.

— É daqui que vem o “trabalho” que está te causando todas essas dores.

O coração de Érico passou a pulsar mais forte. Era impossível que o vidente soubesse disso. Ele não
tinha contado para sua vizinha de 80 anos nem para ninguém em seu edifício sobre os seis meses que
passou no Haiti, atuando como soldado na missão de paz das Nações Unidas.

— Mas, como?... — Érico ainda tentou falar alguma coisa, mas ficou sem saber como continuar a
frase.

O Bruxo fechou o atlas com força, levantou-se e colocou o livro de volta na estante.

— Eu sei que você esteve no Haiti e algo muito terrível aconteceu por lá. Eu posso sentir isso —
falou o Bruxo. — Os espíritos não me dizem o que é, mas sinto que esse acontecimento ainda está muito
ligado a você, como uma força poderosa.

Não acredito nisso! Como ele pode saber?, Érico pensou, enquanto fincava suas unhas na palma de
sua mão, tentando extravasar sua ansiedade. Ele não sabia como continuar aquela conversa. Estava
surpreso por seu interlocutor saber que ele estivera no Haiti e que algo “muito terrível” tinha acontecido
durante sua estada na ilha.

Mesmo imaginando que o Bruxo realmente não soubesse detalhes desse “terrível” episódio, sentia-se
envergonhado pelo crime que havia cometido numa noite escura, na capital haitiana Porto Príncipe.

— Essa força poderosa está sendo descarregada em você através de uma ligação simpática. E essa
ligação foi estabelecida por um boneco vodu — continuou o vidente.
Érico sentiu todos os pelos de seus braços e pernas se arrepiarem subitamente. Vadia maldita, gritou
em seu pensamento e depois olhou assustado para o Bruxo, temendo que tivesse falado em voz alta. O
místico continuava olhando-o com o mesmo rosto sério. Não, ele não tinha verbalizado seu ódio.

— Ligação simpática?!

— Sim, uma simpatia. Uma magia poderosa, mas não tão difícil de ser desfeita — disse, de repente, o
Bruxo, como que prevendo a pergunta que Érico queria fazer.

Érico estava tão puto quanto estava espantado. A vadia fez um boneco vodu para desgraçar com a
minha vida.

— É claro que, primeiro, você precisa descobrir quem fez o “trabalho” contra você. É preciso saber
onde está o boneco.

É claro que ele sabia quem tinha feito o boneco. Lembrou-se do rosto daquela mulher, em profunda
dor pela perda do marido, vociferando contra ele. Os olhos injetados, a face ensopada de lágrimas, a
baba pulando da boca.

Érico se recordava de ter tentado desculpar-se com ela, depois de ter matado seu marido. Tentara
dizer que foi um engano, que estava escuro e que o marido dela tinha, em suas mãos, um objeto parecido
com uma pistola. Lamento muito, falou para a mulher, enquanto outras pessoas começavam a se juntar em
torno do pequeno grupo de apenas quatro militares.

O sargento que comandava a patrulha puxou Érico e disse que era inútil se desculpar. O marido dela
tinha sido estúpido em apontar a furadeira elétrica na direção de militares que patrulhavam uma área
hostil, durante a noite.

A turba, que ficava cada vez mais enfurecida, começou a avançar contra os militares. Era hora de
recuar ou eles teriam o mesmo destino daquele jovem haitiano, vítima da imperícia dos soldados.

Enquanto os outros militares empurravam Érico para o veículo blindado das Nações Unidas, ele pôde
ver a mulher apontando o dedo na sua direção e gritando, em um português com forte sotaque francês:
Assassino! Você vai pagar! Você vai pagar! Era possível sentir o ódio na voz da viúva, uma jovem que
seria até bonita, se não estivesse naquela situação.

Ele ficou uma semana inteira pensando no episódio. Até que ele começou a encontrar bilhetes
ameaçadores em cima de sua cama, dentro da base militar brasileira. Vinham escritos em um português
cheio de erros de ortografia. Imaginava que aquelas mensagens vinham da viúva. Não sabia como ela
tinha descoberto seu nome ou como ela deixava aqueles recados dentro da base. Provavelmente, contava
com o apoio de algum dos vários funcionários haitianos que trabalhavam ali.

As palavras, marcadas por ódio, sempre mencionavam uma maldição que seria jogada sobre Érico.
De início, aquilo o deixou incomodado, mas, depois de algum tempo, ele passou a ignorar as ameaças e a
jogar o papel no lixo antes mesmo de ler. Até que se passaram cerca de três semanas, os bilhetes
cessaram e a missão dele no Haiti chegou ao fim.

De volta ao Brasil, ele se esqueceu da mulher e da vítima que ele fez no Haiti. Seus colegas o
apoiaram dizendo que operações militares costumavam deixar efeitos colaterais indesejáveis e que ele
não deveria se afetar com aquilo. Um inquérito foi aberto pelas autoridades, mas Érico foi inocentado.

Quando ele começou a sentir aquelas infernais dores localizadas, não as associou às ameaças feitas
pela haitiana. Afinal, nunca acreditou que pudesse ser afetado por uma macumba feita a milhares de
quilômetros de distância.

— Você está bem? — a voz do Bruxo fez Érico despertar de suas lembranças.

Érico olhou para o homem à sua frente e moveu sua cabeça em sinal afirmativo. Suas mãos estavam
geladas. Passou a mão pela testa e enxugou o suor.

— Como eu desfaço isso? — perguntou. — Como eu acabo com esse feitiço?

O Bruxo recostou-se em sua cadeira.

— Bem. Supondo-se que você saiba quem fez isso para você e que você consiga por as mãos nesse
boneco... — disse o vidente.

— O que eu tenho que fazer, porra? — interrompeu Érico, impaciente.

— Você precisa trazer esse boneco para a gente. Vamos fazer um ritual para dissociar o boneco de
você. Queimamos esse objeto, pedimos a intercessão dos orixás e, depois, enterramos o boneco em uma
encruzilhada.

Érico colocou as mãos sobre seu rosto e esfregou-as com força, de modo que sua cara ficou
avermelhada. Então, levantou-se e saiu da sala do Bruxo. Ele tinha que voltar ao Haiti, encontrar aquela
mulher e pegar o maldito boneco.

***

O clima tropical abafado da capital haitiana foi sentido logo que Érico saiu do avião no Aeroporto
Toussaint Louverture. Ele levava apenas uma mochila com algumas mudas de roupa. Já tinha um plano.
Iria até a casa da viúva e a forçaria a entregar-lhe o objeto da maldição.

Ele sabia onde ela morava, porque seu marido havia morrido em frente à casa deles, na comunidade
de Cité Soleil. Só torcia para que a mulher não tivesse se mudado de lá. Achava improvável, porque a
oferta de imóveis em Porto Príncipe não era grande depois do terremoto de 2010, que destruiu milhares
de casas e levou incontáveis famílias a se mudar para acampamentos improvisados.

Érico alugou um carro no aeroporto e dirigiu-se para um hotel, na arborizada Pétionville, a zona
nobre de Porto Príncipe. Ele passou a noite em claro, pensando nos detalhes de seu plano. Tinha tanta
certeza de que resolveria tudo nos próximos dias, que só tinha reservado mais duas noites no hotel. Seu
voo também estava marcado para três dias depois.
Chegaria à casa dela, colocaria uma faca em seu pescoço e exigiria o boneco vodu. Pegaria o objeto
amaldiçoado, voaria de volta ao Brasil, o entregaria ao Bruxo e desfaria aquela macumba.

Sem sono, ele desceu ao lobby do hotel e pediu uma cerveja local. Não havia ninguém além dele e do
recepcionista. Porto Príncipe não é exatamente o destino de férias dos sonhos de alguém. Miséria e
sujeira estão espalhadas por onde quer que se olhe.

Já no final da madrugada, ele conseguiu tirar um cochilo de cerca de três horas. Acordou com o sol
esquentando seu rosto. Abriu a janela e sentiu o cheiro das árvores. Pegou sua mochila. Em volta do
pescoço, pôs um colar com sua antiga plaqueta de metal, de identificação militar, que ele usou durante
sua missão no Haiti. Beijou-a para dar sorte e saiu do quarto. Era impressionante como um cético como
ele havia, de repente, passado a acreditar em maldições e amuletos de sorte.

Caso ele se esquecesse do poder do sobrenatural, uma dor lancinante no fundo de seus olhos insistia
em lembrá-lo. A dor em seus olhos era o mais recente tormento de seu ciclo interminável de dores. Pegou
o carro e dirigiu-se para Cité Soleil. O sol de início de manhã já era forte o bastante para queimar seu
braço, exposto na janela do veículo.

Parou em uma rua próxima à casa da viúva. Saltou do carro e viu a movimentação no local. Havia um
grande número de barracas vendendo todo tipo de mercadorias naquela calçada. Ao lado, corria um rio
que estava tomado por lixo, como pneus, garrafas plásticas, roupas velhas e até carcaças de animais.

Colocou seus óculos escuros e o boné para não ser reconhecido. Parou próximo à casa e ficou
observando. Na calçada, ao lado do local onde morava a viúva, pessoas conversavam, enquanto uma
criança nua brincava com um carrinho de plástico sem rodas.

Bebeu um pouco da água mineral que tinha trazido do hotel e ficou ali parado por um tempo. Um
menino se aproximou e pediu dinheiro. Ele dispensou o moleque, mostrando os bolsos vazios.

Depois de mais de uma hora ali parado, viu a porta se abrir. Uma mulher saiu. Sim, era a viúva, a
bruxa que tinha tornado sua vida um inferno de dores sem fim. Pensou em sair andando na direção dela e
apertar seu pescoço até que ela perdesse o fôlego e morresse.

Mas decidiu aguardar. Agiria à noite, quando a movimentação na rua seria menor. E, obviamente, não
poderia matá-la. Pelo menos não antes de estar com o boneco vodu em suas mãos. Esperou até que ela
sumisse de sua vista, então voltou ao carro e dirigiu-se para o hotel. Aproveitou para descansar um
pouco.

Seu relógio despertou às 19h. Ele tomou um rápido banho, sem tirar sua plaqueta de identificação.
Colocou uma roupa leve e saiu do hotel em direção à casa da viúva, com o olho ainda latejando. Estava
decidido a acabar com aquilo naquela mesma noite.

Érico estacionou o carro no mesmo local onde havia parado pela manhã. Ele botou a faca em um
bolso e uma pequena lanterna no outro. A rua estava bem mais vazia, mas algumas casas estavam com
suas portas abertas.

Buscou andar pelas sombras, o que não era difícil, devido à precariedade da iluminação daquela
área. Quando chegou próximo à casa, sentiu a dor em seu olho ficar bem forte. Colocou sua mão sobre
ele, pensando em arrancá-lo fora para cessar aquela sensação horrível.

Recompôs suas forças e aproximou-se da porta. Tentou abri-la, mas um trinco impediu que ela
cedesse mais do que um pequeno vão, por onde mal passava seu braço. A sala estava escura, mas podia
ver uma fraca luz vindo de algum lugar dentro da casa. Ouviu o choro de um bebê.

Merda! Não sabia que a mulher tinha um filho. Tentou mover o trinco com sua mão, mas era
impossível abri-lo por fora. Olhou para um lado e para o outro. Apenas um senhor caminhava na outra
calçada. Esperou que ele passasse e se distanciasse. A rua estava agora vazia.

Empurrou a porta com o ombro, mas ela não abriu. Tentou com mais força e nada. Pegou mais
distância e trombou na porta. Dessa vez, ela cedeu um pouco. Pegou fôlego e jogou, mais uma vez, todo o
peso do seu corpo sobre ela.

Assustada com o barulho, a viúva apareceu na sala, com o bebê no colo, ao mesmo tempo em que
Érico entrava no local. Ele pôde ver os olhos de pavor da mulher, que correu de volta para o cômodo que
tinha a luz acesa, gritando por socorro. Érico fechou a porta da casa e correu atrás dela.

Ele encarou a jovem e fez sinal pedindo silêncio.

— Não vou te machucar, mas não faça nenhum barulho — ordenou o invasor.

A mulher estava com tanto medo, que não via alternativa a não ser obedecer.

Ele então avançou na direção dela e agarrou-a pelo braço. Ela fez menção de que ia gritar, mas
desistiu quando ele puxou a faca do bolso e mostrou-a ameaçadoramente para ela.

— Você entende o que eu digo? — perguntou Érico. — Você fala português?

Ela fez que sim, com a cabeça. Ela havia aprendido português depois de trabalhar por quase dois
anos na cozinha de uma organização não governamental brasileira que atuava no Haiti.

— Você sabe quem eu sou?

Lágrimas começaram a brotar nos olhos da jovem, que acenou positivamente com a cabeça.

— O assassino — disse a mulher, enquanto tentava proteger o bebê, uma criança de menos de um ano.
— O monstro que matou meu Antoine.

Érico sentiu uma pontada forte em seu olho esquerdo e, por um momento, ele esfregou-o com a mão
que segurava a faca, tentando aliviar a pressão.

— Você sabe por que eu estou aqui?

A viúva respondeu negativamente apenas com uma movimentação da cabeça.

— Deixa de ser mentirosa, sua piranha! É claro que sabe — gritou Érico, ameaçadoramente. O bebê
voltou a chorar a plenos pulmões. — Cadê a porra do boneco? A porra do boneco vodu que você fez
para infernizar minha vida.
A mulher passou a fazer coro com o choro do bebê.

— Por favor, não machuca a gente.

— Então me devolve o maldito boneco, sua bruxa miserável!

Érico levou a faca até o pescoço da mulher, que começou a soluçar, junto com o choro. Uma pontada
mais forte atingiu o olho esquerdo dele, o que fez com que ele quase largasse a faca.

— Por favor... — ela implorou.

A faca saiu do pescoço da mulher e passou para o do bebê. Ela deu um grito e implorou de forma
ainda mais desesperada.

— Nãããoooo... Meu bebê não.

A raiva tomou conta de Érico, mas ele percebeu que a situação estava fugindo do controle. Se a
mulher não lhe desse logo o boneco vodu, alguém poderia ouvir os gritos e entrar na casa, para saber o
que estava acontecendo.

— Eu não estou brincando — disse Érico.

— Tá bem, tá bem. Eu vou dar o boneco pra você — respondeu a viúva. — Mas ele não tá aqui com
a gente.

Érico afastou-se dela, socou o ar e soltou um palavrão, diante de mais um problema. Fervendo de
ódio, ele encostou a faca de novo no bebê. A mulher soltou um grito de espanto.

— Eu vou dar o boneco!

Ele recuou a faca. A mulher suspirou.

— Foi ideia do meu tio. Ele é um bokor, um feiticeiro. Eu queria que você tinha sofrimento, que você
pagava por que fez para Antoine. Meu bebê... — ela soluçou. — Meu filho vai crescer sem pai, porque
você matou ele.

Érico puxou seus próprios cabelos, angustiado.

— Quando eu vi Antoine no chão e você com aquela arma, eu queria que você pagava pelo que você
fez. Eu procurei meu tio para que ele jogava uma maldição em você. Ele fez o ritual com o boneco.

— Eu quero o boneco de volta. E eu quero que você desfaça essa maldição — disse Érico, dessa vez
em um tom de voz mais baixo.

A jovem abraçou o bebê com mais força e beijou sua testa.

— Tudo bem — disse ela. — Ele mora aqui atrás. Nós vamos até a casa dele. Eu pego o boneco com
ele. Mas, por favor, não faz mal pra nós. Pega o boneco e vai embora. Apenas vai embora e deixe nós em
paz.
Érico suspirou. Seu coração começava a desacelerar.

— Eu não quero fazer mal a vocês, só quero minha saúde de volta — disse ele.

A jovem viúva colocou seu bebê no berço, enrolou-o com um pano e o pegou de volta no colo. Ela
então andou até os fundos da casa, onde havia um beco. Érico seguiu-a por alguns metros até que
entraram por uma porta entreaberta.

Logo que eles entraram, Érico sentiu um cheiro de carne podre e quase vomitou. Seu olho voltou a
latejar e ele soltou um palavrão. A dor era insuportável. Por favor, acabe com essa dor, pensou. Ele
abaixou o corpo e ajoelhou-se no meio da sala.

Quando ele finalmente levantou a cabeça, deu de cara com um velho, com um cachimbo na boca,
encarando-o a três palmos de distância. Érico quase caiu para trás. Que diabos?! O ancião parecia ter
mais de cem anos.

A jovem, com o bebê ainda no colo, falou com o idoso algo em crioulo haitiano, a língua popular da
ilha. O velho cuspiu no chão e, olhando com desprezo para Érico, respondeu algo na mesma língua.

— Quem é esse velho e o que ele está dizendo? — perguntou para a viúva.

A jovem demorou um pouco para responder, mas disse que era seu tio e que ele achava que não
deveriam se desfazer do boneco vodu.

Érico xingou os dois e levantou-se do chão, brandindo a faca na direção deles. O idoso pareceu não
se abalar com a ameaça, mas a jovem disse que conversaria com o tio. Os dois conversaram naquela
língua estranha por alguns minutos, até que Érico, impaciente, interrompeu o diálogo.

— O que vocês estão falando? Eu quero a porra do boneco! — gritou.

A jovem deixou o bebê em um cesto, um tipo de berço.

— Ele disse que não adianta dar o boneco — disse, agora já mais calma, a jovem haitiana.

— Como?! — disse Érico, impaciente. — Eu preciso levar esse boneco para o Brasil. O bruxo me
falou que eu precisava levar o boneco para ele...

Érico foi interrompido pela moça, que aproximou-se dele. Ela viu que o suor pingava de seu rosto e
que seu olho esquerdo estava inchado, como se tivesse sido tomado por um grande tumor.

— A maldição. Só pode acabar com ela aqui. Você não consegue acabar com a dor, se levar o boneco
embora. Só o bokor que fez o ritual pode acabar com a maldição.

— Eu não acredito em você. Você quer me ver morto. Anda! Pede a merda do boneco pro velho!

O bokor falou algo em crioulo para a sobrinha e apontou para umas imagens de madeira nos fundos da
sala. Depois encarou com dureza o homem com olho inchado que estava desesperado perante ele.

A jovem haitiana aproximou-se ainda mais de Érico e segurou seu queixo, com aparente compaixão.
— Você não entende. Ele fez pacto com um loa, uma entidade que só responde pra ele. Só ele pode
pedir pra maldição ir embora. A maldição é só ele que tira — disse a jovem viúva, apontando para o tio
idoso. — Depois do feitiço acabar, o boneco vai ser destruído, devolvido pro loa.

Érico andou de um lado para o outro, não acreditando que estava preso aos desígnios de uma mulher
que o odiava e de um velho feiticeiro. Ele mostrou novamente a faca para a jovem e depois a direcionou
para o bebê, mostrando o que faria caso não desfizessem o feitiço.

A mulher pareceu entender. Ela falou algo para o idoso, que resmungou de volta e saiu da sala.

— Onde ele está indo? O que vocês estão falando? — perguntou o brasileiro, colocando a faca na
direção da moça novamente.

A jovem nem chegou a responder, porque o bokor voltou para a sala onde eles estavam, com um
boneco vodu nas mãos.

Érico viu o boneco e andou em direção ao velho. Ele arrancou o objeto amaldiçoado da mão do
feiticeiro. Era apenas um tosco pedaço de pano. Ao contrário do que ele poderia imaginar, não havia
nenhum alfinete enfiado no boneco. O velho gritou algo para ele, mas ele não pôde entender.

Com o boneco nas mãos, ele voltou a sentir uma dor intensa no olho esquerdo. O velho começou a
falar, sem parar. Érico direcionou a ponta da faca para ele. A jovem então pediu que o tio parasse de
falar e dirigiu-se para o brasileiro.

— A maldição que tá em você é uma das mais horríveis. Ela deve ser tirada em um ritual. E você
deve fazer parte dele. Se não tirar o feitiço, a dor vai piorar. Todo seu corpo vai ser comido pelo loa e
você morre.

— Não acredito nisso! Não posso acreditar que isso está acontecendo! — esbravejou Érico. — Foi
sem querer! Foi sem querer, porra! Eu não queria matar o seu marido! Eu era um soldado! Numa guerra,
essas coisas acontecem!

A jovem virou-se para o tio e falou algo para ele. O velho respondeu, com rispidez. A moça disse
outra coisa e depois se virou para o agoniado homem.

— Ele vai tirar o feitiço — disse a viúva. — Você já sofreu o bastante. No início, eu queria que você
morria, mas acho que você já pagou pelo que fez ao Antoine.

Érico colocou as mãos sobre o rosto, contorceu-se um pouco, como se sentisse um grande incômodo.
Com as costas da mão que segurava a faca, ele enxugou seu suor. Sabia que havia a possibilidade de ser
enganado pelos dois haitianos. Ele seria submetido a um ritual que ele desconhecia. Não sabia se a
maldição seria realmente retirada ou se jogariam um feitiço ainda pior sobre ele.

Mas, no fundo, ele sabia que não tinha escolha. Era provável que a jovem viúva estivesse falando a
verdade. O místico que ele visitou no Brasil talvez não conseguisse acabar com aquilo. Se o velho tinha
jogado a maldição, ele saberia, melhor do que qualquer pessoa, como reverter aquela bruxaria.

— Se vocês me enganarem... Se vocês me passarem a perna... Sou eu... Sou eu que vou transformar
sua vida num inferno — disse Érico, ao mesmo tempo em que olhava com ódio para o bebê. — Acho que
você está entendendo o que eu quero dizer.

A moça fez que sim com a cabeça e falou com seu tio, o bokor. O velho se arrastou até um altar e
acendeu as velas, ao mesmo tempo em que cantava algo em uma língua estranha.

Depois, ainda cantando, voltou-se para Érico e pediu o boneco vodu de volta.

— Quando acabar, você não vai sentir mais dor — disse a jovem.

Sem saber se deveria, ele devolveu o objeto para o bokor, que foi levado até o altar.

O feiticeiro então foi até a outra sala e voltou com uma caixa de madeira. Dali, tirou cinco potes,
contendo diferentes tipos de pós. Recitando versos na língua popular haitiana, ele colocou um pouco de
água em uma vasilha de barro e despejou uma porção de cada pó, sempre antes erguendo o pote em
direção às imagens que estavam sobre o altar.

Érico sentiu mais uma pontada no olho esquerdo e, novamente, caiu de joelhos no chão, soltando a
faca. O velho misturou a poção, com a ajuda de um pedaço de madeira e, então, parou de cantar,
voltando-se para o homem que estava ajoelhado no meio da sala.

Sem ajoelhar-se, o bokor ofereceu o recipiente com a bebida para Érico. Ele olhou para aquilo com
repulsa e afastou o rosto.

— Você deve beber. Você deve estar preparado para a presença do loa, que o bokor vai chamar.

Érico não sabia que relação poderia aquilo ter com a quebra da maldição que o atingia através de um
boneco vodu.

— Bebe... — disse, com uma voz calma, a jovem viúva. O bebê, estranhamente, permaneceu todo o
tempo calado. — O ritual deve continuar.

Ele pegou a vasilha e, com hesitação e um pouco de medo, levou-a até sua boca. A primeira golada
desceu tão amarga que ele chegou a cuspir um pouco de volta ao recipiente. Mas, com muito esforço,
engoliu parte do líquido.

O velho sinalizou para que ele bebesse o resto, que estava na vasilha. As demais tragadas não foram
menos desagradáveis. Ele desconhecia, e nem fazia questão de conhecer, os ingredientes daquela poção.
Se era sua chance de se livrar daquele infindável ciclo de absurdas dores, ele teria que beber. Seu
ceticismo já tinha sido demolido há algum tempo.

Por fim, ele esvaziou a vasilha e devolveu-a ao velho, que começou a cantar. Érico imaginou que ele
estivesse invocando o loa. A cantoria prosseguiu por vários minutos, até que o brasileiro começou a
sentir algo estranho em seu corpo.

— O que está acontecendo?

Uma sensação de dormência começou pela sua língua e rapidamente se espalhou pelo seu rosto. As
mãos e pés renderam-se a um formigamento e também ficaram dormentes.
O canto do bokor começou a parecer cada vez mais distante, menos real. Sua visão começou a
embaçar, mas ele achou ter visto que outras duas pessoas entraram na sala. Ele tentou perguntar quem
eram, mas não conseguia mexer os músculos de sua boca ou emitir qualquer som. Aparentemente, elas
dançavam ao redor dele.

As imagens começaram, então, a girar. Ele sentiu uma vontade de vomitar, mas não tinha forças para
expelir nada de sua garganta. Seu corpo ficou paralisado e ele caiu no chão. Ele ainda ouvia o som dos
cânticos, mas sua visão escureceu totalmente.

Com o corpo completamente imobilizado, ele ouviu a música cessar. A jovem viúva falou algo no
dialeto crioulo e riu. Ela estava rindo com todas suas forças. Foi a última coisa que ele escutou, antes de
apagar completamente.

***

Memorando 32.1-a

Seção de Inteligência

Batalhão de Infantaria — Missão de Paz do Haiti

Exército Brasileiro (EB)

Durante um patrulhamento em Cité Soleil, na manhã de hoje, o blindado EE-11 Urutu do batalhão
quase atropelou um cidadão, que atravessava a rua sem prestar atenção ao tráfego de veículos. Segundo
relato do sargento Silva, o referido cidadão, ao ser abordado, parecia estar sob efeito de entorpecentes.
Ele não respondia a nenhum estímulo e não falava qualquer palavra. O homem, de pele branca, de idade
aparente de 40 anos, não tinha nenhum documento e trajava apenas uma camisa e uma calça rasgadas.
Depois da frustrada tentativa de comunicação, o sargento percebeu que o cidadão tinha em seu pescoço
uma plaqueta de identificação padrão do EB. A plaqueta o identificava como “Cabo Érico Vanzi”. O
nacional foi então trazido para o batalhão, onde foi entregue aos cuidados do serviço médico. Nos
registros, consta que Érico Vanzi serviu neste batalhão de outubro de 2012 a abril deste ano. O senhor
Vanzi deu baixa no serviço militar logo após o término de sua missão no Haiti, portanto não tem mais
vínculo com o EB. Não temos informações sobre o motivo de sua estada atual no Haiti. Sugerimos
comunicar o ocorrido à Embaixada Brasileira em Porto Príncipe.

Cap. Chagas

18 de setembro de 2013

***
Memorando 43-1.a

Serviço de Saúde

Batalhão de Infantaria — Missão de Paz do Haiti

Exército Brasileiro (EB)

O paciente Érico Vanzi encontra-se sob observação há duas semanas, sem deixar as dependências do
posto médico do Batalhão. Até agora, não temos nenhum avanço a reportar. O senhor Vanzi não responde
a qualquer estímulo visual, sonoro ou tátil, parecendo em estado de permanente apatia. O paciente
tampouco fala qualquer coisa. Ele também se encontra extremamente debilitado, com hipotensão arterial,
bradicardia, dispneia e anemia. Após exames, encontramos resíduos de toxinas em seu organismo.
Entretanto, ainda não é possível afirmar até que ponto essas toxinas contribuíram para o estado atual do
paciente. Aguardamos uma melhora de seu quadro, a fim de que providenciemos a transferência do
senhor Vanzi para um hospital, onde possam ser realizados exames complementares.

TC Amarante

Médico — Serviço de Saúde

***

2 de outubro de 2013

Embaixada do Brasil em Porto Príncipe

Despacho diplomático nr. 28/2013

Caso Érico Vanzi (documento sigiloso)

Ao Ministério das Relações Exteriores,

A Embaixada Brasileira informa que, a seu pedido, a Polícia Nacional do Haiti abriu um inquérito
para investigar o caso do cidadão brasileiro Érico Vanzi, encontrado mentalmente afetado e com a saúde
debilitada em Cité Soleil. As primeiras informações das autoridades haitianas mostram que Vanzi chegou
a Porto Príncipe em um voo proveniente da cidade do Panamá, em 10 de julho de 2013. Ele hospedou-se
em um hotel no bairro de Pétionville no mesmo dia e não chegou a fechar a conta. Ele foi visto pela
última vez saindo com seu carro, alugado no aeroporto, na noite de 11 de julho. O carro foi encontrado
pelos investigadores em Cité Soleil, bem próximo de onde os soldados da Missão de Paz das Nações
Unidas avistaram Vanzi na manhã de 18 de setembro.

A Embaixada também recebeu, do Exército Brasileiro, os registros militares de Érico Vanzi. Através
de uma análise dos documentos, foi constatado que o senhor Vanzi, enquanto ainda era cabo do Exército,
envolveu-se em uma ocorrência de disparo de arma de fogo que resultou na morte acidental do cidadão
haitiano Antoine Abellard, em março deste ano.

Curiosamente, quando o senhor Vanzi foi encontrado em setembro deste ano, pelas tropas brasileiras,
ele estava em um local bem próximo de onde ocorreu a morte do sr. Antoine. Pela sua relevância, a
informação foi imediatamente repassada para a Polícia Nacional do Haiti.

Porto Príncipe, 20 de outubro de 2013

Ari Fagundes

Oficial de chancelaria

***

Polícia Nacional do Haiti

Ofício — Andamento do inquérito 1.450

Informações sobre o caso Érico Vanzi

À Embaixada Brasileira em Porto Príncipe,

A Polícia Nacional do Haiti informa que colheu o depoimento da senhora Beatrice Abellard, viúva de
Antoine Abellard, morto em março deste ano, em um incidente envolvendo militares da Missão de Paz
das Nações Unidas.

O depoimento foi colhido no dia 12 de novembro de 2013. A senhora Beatrice negou conhecer o
senhor Érico Vanzi, mesmo sendo confrontada com a informação de que seu marido havia sido morto pelo
senhor Vanzi, em março deste ano. Ela também disse que não sabia por que motivo, meses depois, o
brasileiro tinha voltado ao local onde seu marido havia morrido. Tentando conseguir sua colaboração, o
investigador informou para Beatrice que, por enquanto, ela não estava sendo investigada, porque não
havia, a princípio, nenhum crime envolvido. O policial disse para ela, ainda, que a Polícia Nacional
estava apenas atendendo a um pedido do governo do Brasil, que queria descobrir por que um cidadão de
seu país havia sido encontrado em uma rua de Porto Príncipe, com sua saúde debilitada. Nesse momento,
a senhora Beatrice não conseguiu segurar o riso e disse que, provavelmente ele tinha se drogado. Depois
disso, ela negou-se a prestar qualquer outra informação e o depoimento foi encerrado.
Cerca de uma semana depois, no dia 20 de novembro de 2013, em uma diligência nas proximidades
da casa da senhora Beatrice, conseguimos localizar um homem, chamado Eugène Auguste. Ele afirmou já
ter participado de rituais na casa do senhor Emmanuel Leblanc, tio-avô da senhora Beatrice, e disse que
tinha informações sobre o caso Érico Vanzi, mas que temia contá-las aos policiais. Segundo ele, o senhor
Emmanuel Leblanc é um bokor. Eugène teme que o bokor jogue algum feitiço ou maldição sobre ele.

Já o intimamos a depor e esperamos que ele venha à delegacia, contar o que sabe.

Comissário Tardieu

Chefe do Escritório de Assuntos Criminais

***

Polícia Nacional do Haiti

Inquérito 1.450

Depoimento do senhor Eugène Auguste

Às 15h do dia 2 de dezembro de 2013, o sr. Eugène Auguste esteve presente na sede da Polícia
Nacional do Haiti e prestou o seguinte depoimento:

O depoente afirmou que tem 53 anos, que é casado e trabalha como vendedor de frutas no mercado de
Porto Príncipe. Ele disse que mora em Cité Soleil há mais de 20 anos e que conheceu a senhora Beatrice
há cerca de cinco anos, quando ela e o tio-avô, Emmanuel Leblanc, chegaram a Porto Príncipe, vindos da
cidade de Jacmel. Pouco tempo depois, ele conta que descobriu que o senhor Leblanc era um feiticeiro e
procurou-o para tratar de uma dor no estômago. Depois de tomar uma infusão medicinal receitada pelo
senhor Leblanc, ele disse que se curou da dor de estômago e passou a frequentar a casa desse senhor, que
também funcionava como um templo vodu. Ele contou que havia cerimônias religiosas nesse local e que
ele participou de várias delas. O investigador, então, perguntou-lhe o que havia acontecido com o senhor
Vanzi. O depoente começou a chorar e disse que não queria ter participado daquilo, mas que tinha medo
do senhor Leblanc. Ele contou que, na madrugada de 12 de julho, Jérôme, um homem que costumava
ajudar o senhor Leblanc, no templo vodu, foi chamá-lo em sua casa. Ele disse que, ao entrar no templo,
viu o bokor e sua sobrinha, a senhora Beatrice, além de outra mulher que costumava frequentar o templo,
a senhorita Rose-Marie. Ele só reparou que havia uma pessoa caída no chão depois que o senhor Leblanc
exigiu que ele ajudasse a carregar o corpo. Era o senhor Vanzi. Ele, Jérôme e Rose-Marie levantaram o
corpo e o levaram até outra sala da casa do senhor Leblanc, onde havia um caixão. Eles colocaram o
corpo dentro do caixão e o depoente pôde ver que o senhor Vanzi estava aparentemente morto. Eles
fecharam a tampa e o levaram até o cemitério de Porto Príncipe. Eugène conta que ele ajudou a colocar o
caixão dentro de uma gaveta funerária e que ele viu o coveiro, Jean-Claude, fechando a sepultura com
cimento. Três dias depois, quando Eugène voltou ao templo, para uma cerimônia religiosa, viu um vulto
na sala ao lado. No final do culto, ele foi até lá e viu o senhor Vanzi. Ele estava vivo, andando
vagarosamente pela sala escura e babando sem parar. Eugène concluiu que Leblanc tinha feito um ritual
para roubar a alma do senhor Vanzi e torná-lo um zumbi. Em seguida, o depoente disse que não estava se
sentindo bem e pediu para encerrar o depoimento.

Diante do depoimento do senhor Eugène, reconhecemos ser necessário convocar novamente a senhora
Beatrice, além do senhor Leblanc, de seu ajudante, senhor Jérôme, da senhorita Rose-Marie e do coveiro,
senhor Jean-Claude.

***

Polícia Nacional do Haiti

Memorando interno

Inquérito 1.450

Em relação ao andamento do inquérito policial número 1.450, comunicamos ao senhor comissário que
já foram coletados os depoimentos dos senhores Eugène Auguste, Jérôme Thébaud e Jean-Claude Blaise,
e da senhorita Rose-Marie Rouzier, todos testemunhas oculares do caso Érico Vanzi. A senhora Beatrice
Abellard e o senhor Emmanuel Leblanc não foram localizados. Mesmo sem as oitivas dos dois últimos
citados, consideramos ter elementos suficientes para indiciar a senhora Beatrice Abellard e o senhor
Emmanuel Leblanc pelo envenenamento do sr. Vanzi, com base no artigo 246 do Código Penal.

Equipe de investigação

Escritório de Assuntos Criminais

***

Embaixada do Brasil em Porto Príncipe

Despacho diplomático nr. 2/2014

Caso Érico Vanzi (documento sigiloso)

Ao Ministério das Relações Exteriores,


A Polícia Nacional do Haiti encaminhou, ao senhor embaixador, o relatório final do inquérito sobre o
cidadão brasileiro Érico Vanzi, depois de ouvir todas as testemunhas disponíveis. A investigação
concluiu que Vanzi foi vítima de uma vingança da senhora Beatrice Abellard, por ter matado seu marido,
Antoine Abellard, em uma operação militar em Cité Soleil, em março de 2013. Segundo o inquérito,
Beatrice conseguiu atrai-lo até um templo vodu, onde ele foi submetido a um ritual de magia negra,
conhecido como “zumbificação”. De acordo com a polícia, o senhor Vanzi foi obrigado a tomar uma
poção que tem, entre seus ingredientes, veneno de cobra, ossos humanos e uma toxina potente, chamada
tetrodotoxina, encontrada no peixe baiacu. Essa toxina o deixou em estado letárgico e ele foi enterrado
vivo. No dia seguinte, o senhor Vanzi foi desenterrado e levado para as casas da senhora Beatrice e de
seu tio-avô, senhor Emmanuel Leblanc. Nesse ritual, ele tornou-se, segundo a polícia, um “zumbi”, um
“homem sem alma”. Ele foi mantido como cativo naqueles locais por cerca de dois meses, até o dia em
que os militares brasileiros o encontraram vagando pela rua. A polícia pediu e a Justiça concedeu
mandados de prisão contra a senhora Beatrice e o senhor Leblanc, já que esse ritual é considerado crime
no Haiti. Nenhum dos dois, no entanto, foi encontrado. Os mandados continuam em aberto.

Porto Príncipe, 5 de março de 2014.

Ari Fagundes

Oficial de chancelaria

***

Hospital Estadual Santo Antônio

Unidade de Psiquiatria

Prontuário do paciente Érico Vanzi

Depois de cerca de dois anos de tratamento nesta unidade de saúde, constatou-se que Érico Vanzi não
apresentou nenhuma melhora em seu quadro psicológico. O paciente continua sem se comunicar e sem
reagir a qualquer estímulo externo, em um estado semivegetativo. O senhor Vanzi passa o dia olhando
para o canto da parede, sem pronunciar qualquer palavra, e só se move dali com a ajuda da equipe de
enfermagem, para se alimentar e para se deitar em sua cama. Há uma opinião unânime, da junta de
psicólogos e psiquiatras, de que Érico Vanzi foi submetido a um trauma psicológico extremo, decorrente
do enclausuramento em uma sepultura, por seguidas horas, após a ingestão de tetrodotoxina. Os danos
causados em sua mente são, provavelmente, permanentes e irreversíveis.

Rio de Janeiro, 19 de outubro de 2015.



AMANHÃ VAI SER PIOR

Levantei-me da cama com uma coceira no pulso direito. Era um corte superficial na pele, mas não me
lembrava de como eu tinha me ferido. Depois que a coceira passou, esqueci-me dele até o dia seguinte,
quando acordei sentindo que havia um corte um pouco mais profundo no pulso esquerdo.

Merda! Me cortei de novo! Só que, de novo, não me recordava de onde tinha me machucado. Desta
vez, tinha sangrado. Fui até o banheiro, coloquei um antisséptico e vedei a ferida com uma gaze e um
esparadrapo.

No terceiro dia, comecei a ficar preocupado. Havia um corte ainda mais profundo, mas, desta vez, no
meu tornozelo direito. Eu senti a dor quando acordei pela manhã. Mal conseguia colocar o pé no chão.
Era impossível que eu tivesse me machucado no dia anterior, sem perceber. Era um corte considerável,
feito, aparentemente, por um objeto afiado.

E só quando me pus sentado, foi que parei para pensar sobre aqueles cortes. Então, o medo tomou
conta de mim. O que está acontecendo?! Alguém está entrando na minha casa à noite e me fazendo
esses cortes! E se esse invasor ainda estivesse ali?

Então, eu vi uma folha de caderno, meio amassada e suja de sangue, no chão do quarto. Parecia ter
algo escrito, com sangue. “Amanhã vai ser pior”, diziam as letras meio tremidas do bilhete. Entrei em
pânico.

Fiquei de pé e peguei um pesado cofrinho de metal, para me proteger. Andei com dificuldade, até
chegar à porta do quarto. A casa estava toda apagada.

Vagarosamente, fui até a porta da sala. Era a única entrada para o meu apartamento, porque a porta da
cozinha ficava bloqueada por uma pesada geladeira. Estava trancada. As janelas também estavam
fechadas, mas era praticamente impossível alguém entrar por ali. Meu apartamento ficava no nono andar
do prédio.

Ainda me esforçando, andei por toda a casa, escorando-me na parede, em busca do suposto invasor.
Olhei na sala, na cozinha, na área de serviço e no quarto. Procurei atrás de cada cortina, embaixo de cada
mesa e da cama, dentro de cada armário. Nada. Apenas tratei a ferida com antisséptico e cobri-a com
gaze.

No outro dia, mais um corte, dessa vez, no tornozelo esquerdo. Quando eu acordei pela manhã, sentia
uma dor insuportável. Fiquei até com medo de olhar. Temia que meu tendão de Aquiles tivesse rompido
com o corte. Quando olhei, realmente pude ver muito sangue na cama e na minha perna.

Demorei uns dez minutos, até criar coragem para levantar-me da cama. No chão do quarto, mais um
bilhete. Em letras feitas com sangue, estava escrito: “Amanhã vai ser pior”. Fiquei apavorado. Percorri
toda a casa, pulando em um pé só, procurando por alguém. A porta continuava fechada, com o trinco que
só pode ser aberto pela parte de dentro da casa. As janelas também estavam trancadas por dentro.
Vistoriei cada canto da casa. Não havia ninguém ali dentro.
Fui ao hospital, para me tratar do ferimento. O médico da emergência receitou-me um anti-
inflamatório e um creme antibiótico. Para minha sorte, minha vacinação contra o tétano estava em dia.
Segundo ele, o tendão tinha sido atingido, mas não havia se rompido. O corte foi suturado e tudo o que
tinha que fazer era usar os remédios para evitar inflamações e infecções.

Na noite seguinte, acordei sobressaltado várias vezes, checando meu corpo, em busca de novos
cortes. Não encontrei nada. Também levantei-me, duas vezes, para checar se havia alguém dentro da
minha casa. A porta continuava trancada e as janelas, fechadas. Tudo em silêncio.

Apesar de toda a minha vigilância, amanheci com mais um corte no corpo, desta vez um pouco acima
do cotovelo. A ferida era profunda. Eu jurava que podia ver o osso do meu braço pelo buraco do corte,
mas podia ser só minha imaginação, afetada pela dor que eu sentia. Minha cama estava toda
ensanguentada.

Como?! Como isso é possível? Esse corte não estava aqui da última vez em que chequei meu
corpo! Como não posso ter sentido alguma coisa me cortando?

Olhei assustado em todas as direções. Eu estava com muita dor, mas também com muito medo. Peguei
uma camisa no meu armário e amarrei sobre a ferida no cotovelo, para que parasse de sangrar. No chão,
mais uma vez o bilhete: “Amanhã vai ser pior”.

Voltei ao hospital. O médico era diferente do que me atendeu no dia anterior, mas a recepcionista me
reconheceu e encarou-me como se perguntasse “de novo?”.

O ferimento foi suturado e expliquei que já estava sendo medicado para um ferimento no tornozelo
desde o dia anterior. O médico fez uma cara de quem queria saber o que eu havia feito para ter dois
cortes profundos em dois dias seguidos, mas ele conteve sua curiosidade.

Voltei para casa angustiado e com vontade de chorar. O que estava acontecendo comigo? Eu nunca fiz
mal a ninguém, por que aquilo estava acontecendo? Decidi que não dormiria naquela noite.

Quando anoiteceu, bebi três latas de energético e mais cinco xícaras de café. Sentei-me no sofá e
fiquei vendo televisão a noite inteira. Ao amanhecer, meus olhos já davam sinais de que se renderiam ao
cansaço.

Chequei todo o meu corpo. Nada de errado com ele. Nenhum corte novo.

Fui para o trabalho com muito sono. Mas, tendo tirado um cochilo de cinco minutos sentado no
banheiro do escritório, não dormi mais o dia inteiro. Cheguei em casa acabado. Pensei em passar mais
uma noite em claro, mas sabia que não conseguiria, nem com dez latas de energético ou com cafeína
injetada na veia.

Preguei os olhos e só acordei pela manhã, sentindo uma dor excruciante na mão direita.

Meu Deus!!!

Minha mão não estava lá. Meu pulso estava encharcado de sangue. Acendi o abajur e pude ver a
ponta do osso do meu antebraço e a carne cortada. Minha mão havia sido decepada.
Soltei um grito assustador, que ecoou por toda a casa e provavelmente foi ouvido até pelo porteiro do
edifício, nove andares abaixo.

Puta que o pariu!!! Minha mão foi cortada!!!

Procurei desesperado pela minha mão amputada e encontrei-a no chão. Se eu não estivesse com tanta
dor, talvez tivesse borrado minhas calças de medo. Peguei a mão e corri para o hospital.

Dessa vez nem passei pela mesa da recepção. Quando entrei pela porta do hospital, eu caí no chão e
fui acudido por dois maqueiros, que me levaram para a emergência.

Mais tarde, quando o efeito dos sedativos passou, demorei um pouco para me lembrar de onde estava.
Olhei assustado para o meu braço direito. Eu continuava sem a minha mão. Na ponta do antebraço, havia
apenas um curativo.

Apertei o botão de emergência do quarto, sem conseguir controlar o choro. Uma enfermeira chegou
correndo. Perguntei onde estava minha mão. Ela respondeu que lamentava, mas que não tinha sido
possível reimplantá-la, então os cirurgiões apenas fizeram uma operação para fechar o ferimento.

Isso não pode estar acontecendo! Estou tendo algum pesadelo maluco e não consigo acordar!
Como minha mão pode ter sido decepada? Como eu não senti nenhuma dor na hora da amputação? Quem
fez isso?

A enfermeira perguntou se eu estava me sentindo bem e eu respondi, aos berros:

— Não, sua puta! Não estou nada bem! Será que você não vê que estou todo machucado e que
cortaram fora a minha mão? — e chorei como um bebê.

A enfermeira saiu do quarto irritada. Então, eu vi que havia um bilhete no chão, perto da porta.
Apertei o botão de emergência de novo. Ela reapareceu mal-humorada, algum tempo depois. Desculpei-
me por tê-la xingado e apontei para o bilhete no chão.

Perguntei se ela tinha visto alguém deixando-o ali. Ela disse que não. Que o posto de enfermagem
ficava em frente ao quarto e não tinha visto ninguém passando por ali, depois que os maqueiros me
trouxeram do centro cirúrgico.

A enfermeira abaixou-se e pegou o bilhete amassado e sujo de sangue. Ela fez uma cara de nojo e
colocou-o na minha barriga. Com certo esforço, levantei minha cabeça e pude ler:

“Amanhã vai ser pior”.



SOTERRADOS

Em janeiro de 2011, o maior desastre natural do país castigou a região serrana do Rio de Janeiro.
Quase mil pessoas morreram e outras centenas desapareceram, sem deixar vestígios, quando uma
tempestade desabou sobre municípios com encostas de terra densamente povoadas. Bairros inteiros
desapareceram de um dia para o outro. Morros se desfizeram como se fossem meros montinhos de areia,
construídos por uma criança na praia. Famílias inteiras, com dezenas de integrantes, deixaram de existir.

Dizem que a gente sempre se lembra exatamente de onde estava e do que estava fazendo quando ouviu
uma notícia muito impactante. Comigo não foi diferente. Já se passaram quatro anos desde a tragédia, mas
me lembro como se fosse ontem, com todos os detalhes possíveis. Eu havia dormido na casa da minha
namorada, justamente por causa da chuva forte que caíra na noite anterior, quando ouvi meu celular
tocando insistentemente. Eu era assessor do prefeito, uma espécie de braço direito, que arrumava sua
agenda e o ajudava com tudo que se referisse a relações públicas.

Apesar disso, era raro ser acionado de madrugada. Nas primeiras duas vezes, eu simplesmente deixei
o celular tocar. Mas quando ouvi minha namorada me xingar e me mandar desligar o maldito telefone,
decidi atender. Eu tinha dormido pouco. Ainda nem tinha amanhecido. Levantei-me, só de meias e cueca,
e saí do quarto para atender.

Do outro lado da linha, uma voz histérica gritou para mim, perguntando por que eu não atendia a
porcaria do telefone. Era o prefeito. Depois do “cumprimento” inicial ele começou a falar, mas eu não
conseguia entendê-lo direito. A ligação estava péssima, com muito chiado e o áudio chegando picotado
até mim. O prefeito continuou gritando, insensível para a minha dificuldade de entendê-lo. Eu sabia que
se referia a algo como um grande desastre na cidade. Então, a ligação caiu, sem que eu pudesse
compreender que “grande desastre” era esse. Andei até a cozinha e enchi um copo com água.

Então, o prefeito ligou-me de novo e, desta vez, pude ouvir claramente: o temporal tinha provocado
deslizamentos e enchentes em vários lugares, deixando mortos. Foi ali, olhando para uns ímãs de
geladeira, de cueca e com uma grande olheira, que tomei conhecimento da gravidade daquele desastre.
Esse momento vai ficar para sempre na minha memória.

Corri para a janela e olhei para baixo. Não era possível enxergar a rua ou as calçadas. O rio que
cortava o centro da cidade tinha transbordado. Voltei para o quarto, com o coração a mil e quase caí no
chão, quando tentava colocar minha calça. Acendi o abajur e consegui vestir a calça direito. Depois pus
minha camisa. Minha namorada resmungou algo e me mandou ter respeito com o sono dela. Dei um beijo
nela e corri para a prefeitura. Chegar até lá não foi fácil, porque a água estava na altura do meu joelho.

Por sorte, minha namorada não morava muito longe da prefeitura. Pude ir andando. No caminho, tive
uma ideia do caos que a chuva tinha causado. Carros, sofás, geladeiras, brinquedos, árvores. Tudo
boiava na inundação.

Ao chegar à prefeitura, vi uma movimentação muito grande de pessoas. Parecia que eu tinha sido um
dos últimos a saber do desastre. Entrei no prédio e procurei o prefeito. Várias pessoas com coletes da
Defesa Civil entravam e saíam apressadas.

Encontrei-o na sala do secretário de Defesa Civil. O número de mortos na cidade estava em 20


quando eu cheguei. Dois minutos depois, já tinha subido para 23. E, antes que eu pudesse falar com o
prefeito, o número tinha chegado a 25.

Ele tinha o rosto pálido e parecia desnorteado, assim como o secretário de Defesa Civil, seu chefe de
gabinete e dois vereadores aliados, que tinham corrido para a prefeitura depois de também receberem
ligações do prefeito. Inicialmente, ele não me viu porque estava hipnotizado com os alfinetes vermelhos
que rapidamente tinham se multiplicado em um mapa do município. Eles marcavam o número de vítimas e
os locais onde elas tinham morrido.

Quando pude me aproximar dele, puxou-me para um abraço e começou a chorar.

Foi a primeira vez que o vi chorando, mas, a partir dali, ele pareceu ganhar uma força descomunal e
buscou lidar com aquela tragédia com toda a coragem possível. O número de mortos na cidade superou
os 300. Eu mesmo vi, pessoalmente, dezenas de corpos sendo retirados debaixo da terra e de escombros.
No total, em todos os municípios afetados, a contagem oficial chegou a quase mil. Até militares das
Forças Armadas foram convocados para ajudar nos resgates.

Governador e presidente da República visitaram as cidades e aprovaram repasses de dinheiro


milionários para ajudar na reconstrução e na limpeza das cidades afetadas.

Toda aquela movimentação de reportagem, equipes de socorro, políticos e militares durou alguns
dias, cerca de um mês. Depois, o bizarro circo da notícia foi desmontado e a cidade voltou à
normalidade.

Mas não demorou para que a cidade voltasse a ser foco da atenção da imprensa. Dias depois, o
Ministério Público anunciou que havia aberto uma investigação para apurar desvios das verbas
emergenciais, destinadas pelo governo federal.

Os promotores haviam percebido que políticos da região contrataram empresas de parentes e amigos
para executar as ações de emergência. O Ministério Público tinha indícios de que, através desses
contratos fraudulentos, os políticos superfaturaram o valor dos serviços e desviaram boa parte do
dinheiro. O prefeito era um dos investigados.

Naquela época, eu ainda trabalhava como seu assessor. Lembro-me que ele me ligou indignado com a
acusação. Disse que era um absurdo ser acusado daquela forma, depois de ter “dado seu sangue” nos
trabalhos de resgate e reconstrução da cidade.

No mesmo dia, nos reunimos em seu gabinete. Ele estava irado. Precisava preparar uma resposta para
a imprensa. Tinha que limpar seu nome, que havia sido “jogado na lama” por alguns promotores
irresponsáveis, que só queriam ganhar os holofotes através da maior tragédia natural da história.

Lembro-me de ter sacado um bloco da minha pasta e começado a rascunhar alguma coisa. Foi então
que eu o questionei sobre até que ponto aquela história era verdade. Ele pareceu indignar-se com a minha
pergunta e preparou-se para esbravejar algo contra mim, mas ficou sem falar nada por algum tempo.
Depois, ele socou a mesa e disse que contratar empresas, sem licitação, para fazer serviços emergenciais
numa cidade em estado de calamidade pública, não era o mesmo que roubar dinheiro.

Foi a minha vez de ficar em silêncio. Larguei a caneta e o bloco de anotações em cima da mesa e
depois perguntei se ele tinha superfaturado o valor dos serviços contratados, porque era disso que se
tratava a acusação dos promotores.

Ele direcionou um olhar cínico na minha direção e, com uma franqueza que me assustou, respondeu
que todos os políticos superfaturavam obras e embolsavam o dinheiro pago a mais pela prestação dos
serviços. Disse que ele tinha conseguido tirar a cidade de um estado de calamidade em poucos dias. E, se
ele tinha recebido alguma coisa por isso, qual era o problema?

Sua indignação aparentemente não se devia ao fato de ter sido acusado de um crime, mas, sim, de ter
sido descoberto pelos promotores. Logo ele, que tinha trabalhado “dia e noite” pelo restabelecimento da
normalidade na cidade?!

Lutei para manter minha calma e não expressar meu assombro com aquele homem que tinha se
aproveitado da morte de centenas de pessoas e da destruição de incontáveis casas e ruas para roubar
dinheiro público.

Levantei-me, peguei meu material, disse que pensaria em algo e saí da sala. Minha vontade era ir
direto ao Ministério Público e contar o que havia acabado de ouvir. Mas busquei me controlar. Eu ainda
era funcionário da prefeitura e, acima de tudo, eu era amigo de longa data do prefeito.

Na verdade, eu não estava tão surpreso com o fato de ele ter desviado dinheiro público. Eu já estava
envolvido na política há um bom tempo para conhecer a podridão do “sistema”. E também já tinha
ouvido rumores sobre esquemas fraudulentos comandados pelo prefeito. Mas o que me deixou indignado
foi seu sangue-frio de roubar dinheiro em meio ao desespero de várias famílias, que tinham perdido
parentes e suas casas.

No final, decidi preparar uma nota à imprensa, com a resposta padrão de que o prefeito negava as
acusações. A nota dizia que ele tinha seguido a legislação, que permitia a contratação sem licitação em
situações de emergência, e que as empresas contratadas eram as únicas capazes de atender prontamente
ao chamado da prefeitura. A confissão do prefeito, é claro, ficou de fora da nota oficial.

Senti-me um pouco cúmplice daquela canalhice, mas considero que foi o melhor a fazer naquele
momento. No dia seguinte, aleguei que precisava resolver uns problemas pessoais e que precisaria me
ausentar por uma semana.

Ao final dessa semana, simplesmente pedi demissão da prefeitura, sem sequer falar com o prefeito.
Ele me ligou no mesmo dia, questionando o motivo da minha demissão. Eu disse que precisava de um
tempo para tocar alguns projetos pessoais e depois me apressei em desligar o telefone.

Depois disso, ficamos sem nos falar por muito tempo. Com o passar dos meses, o caso do Ministério
Público acabou sendo arquivado “por falta de provas”, seu mandato de prefeito encerrou-se e ele
separou-se de sua mulher.

Então, um dia, de repente, ele me ligou de novo.


Ele estava estranho. Falava coisas desconexas. Disse que precisava de ajuda, que estava sendo
perseguido e estava com medo, muito medo. A ligação caiu, sem que eu conseguisse entender direito o
que estava acontecendo.

Duas horas depois, ele me ligou mais uma vez. Estava sussurrando. Percebi que ele estava chorando.

— Por favor, me ajuda... — era a súplica de uma pessoa em desespero. — Eles querem me pegar,
aqui dentro da minha casa.

Ele estava sem fôlego, mas teve forças para gritar com alguém que parecia estar ao lado dele.

— Meu Deus, por favor, parem com isso!

Então, a ligação caiu novamente. Ele não ligou de novo. Eu, tampouco, consegui ligar de volta.

Fiquei sem saber o que fazer. Já era tarde da noite. Sabia que o ex-prefeito morava sozinho em uma
fazenda, na zona rural do município. Eu morava no centro da cidade, um pouco distante da casa dele.
Decidi então ligar para a polícia e contar sobre a ligação que havia recebido. Parecia que alguém tinha
invadido sua casa e estava ameaçando sua vida. Por favor, parem com isso, eu ouvi-o gritar antes da
ligação cair. Os policiais prometeram mandar uma patrulha para o local.

Mais tarde, liguei para a polícia e falei com os policiais, que já tinham retornado para o batalhão. Eu
conhecia o sargento que chefiava a patrulha mandada para o local. Ele disse que não encontraram
ninguém na casa além do ex-prefeito e que não havia sinais de arrombamento. Eles perceberam apenas
que a casa estava toda apagada, sem energia elétrica.

Os policiais relataram ter batido na porta e o ex-prefeito ter gritado, lá de dentro, para que fossem
embora. Quando eles disseram que eram da polícia, passos apressados foram ouvidos dentro de casa e o
ex-prefeito abriu a porta. Ele estava com olheiras, o cabelo bagunçado e as roupas rasgadas, e abraçou
um dos policiais.

O sargento disse que o ex-prefeito parecia desorientado e falava coisas sobre sombras que se
movimentavam pela casa. Os policiais perguntaram se ele tinha ingerido algum medicamento. Ele disse
que as sombras queriam pegá-lo, que queriam matá-lo. De acordo com o sargento, uma busca foi feita e
nada foi encontrado, além de alguns livros e peças de decoração caídos por alguns lugares da casa. Em
seguida, eles foram embora.

Aquilo me tranquilizou e fui dormir.

***

Dois dias depois, o telefone tocou de novo. Já era madrugada. Estava com muito sono e, ao pegar o
celular, deixei-o cair no chão. Soltei um palavrão e estiquei meu braço para pegá-lo, sem conseguir abrir
os olhos.
— Alô!

— Meu Deus, eles estão me cercando! Eles estão me cercando. Eles vão me matar!

O ex-prefeito estava, mais uma vez, apavorado, falando sobre pessoas que o perseguiam.

— Calma... Calm...

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah — ele gritou, me interrompendo e quase me matando de susto.

— Prefeito. O senhor está bem?

— Eles estão dentro da minha casa! Dentro da minha casa!

— Você está sozinho em casa?

— Não, droga. Eles estão aqui! O que eu faço?

— Estou perguntando se os seus filhos estão aí. Algum empregado na casa? — tento manter a
tranquilidade, para não deixá-lo ainda mais nervoso.

— Não, todos foram embora... É por isso que esses malditos estão aqui! Oh, meu Deus.
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah — berrou ele, mais uma vez. — Eles estão aqui na sala. Eles estão aqui
na sala.

A ligação caiu. Preocupado, tentei retornar a ligação várias vezes, sempre encontrando o telefone do
ex-prefeito desligado ou fora da área de cobertura. Levantei-me, coloquei uma calça e fui até a cozinha,
beber um copo d’água.

Peguei o celular e liguei para o número do celular do sargento que havia verificado a casa do ex-
prefeito, na primeira vez. O policial se disse preocupado, não com a segurança do meu amigo, mas com a
saúde mental dele. Para o sargento, o ex-prefeito precisava de algum apoio psicológico. Ele não parecia
estar normal.

Perguntei se a polícia poderia ir ao local só mais uma vez, para verificar se tudo estava bem. O
sargento disse que não deveria ser nada. Pedi, por favor, que ele fosse até lá só mais uma vez. Poderia
ser alguém querendo assustar o ex-prefeito, que tinha feito alguns inimigos durante sua vida política.

O policial bufou insatisfeito e disse que, da primeira vez, não havia visto sinal da presença de outras
pessoas e que as poucas coisas fora do lugar, dentro da casa, provavelmente foram desarrumadas pelo
próprio dono. Mas, no fim, respondeu que iria até lá, se fosse para me tranquilizar.

Agradeci e pedi que ele me ligasse de volta assim que possível.

Voltei para a cama, mas não consegui pegar no sono. Liguei a televisão e fiquei vendo um filme. O
telefone tocou cerca de três horas depois. Eu tinha tirado um breve cochilo, que foi interrompido pelo
toque.

— Alô.
— Nós fomos até lá — era o sargento da polícia e ele parecia preocupado. Isso me deixou nervoso.

— O que houve? Está tudo bem com o prefeito?

— Como da primeira vez, não vimos sinal de arrombamento. Nem vimos ninguém lá na casa. Mas,
quando chegamos, porta estava aberta, escancarada. Também havia várias coisas fora do lugar.

— E o prefeito? Tudo bem com ele?

— Estava tudo escuro. Mais uma vez, a casa estava sem energia. O prefeito estava num canto, atrás
da poltrona. Ele ficava falando baixinho: “Vão embora. Vão embora”. E tinha ferimentos superficiais nos
braços e no rosto. Pareciam arranhões. Também estava um pouco sujo de lama — disse o policial. —
Suas mãos e unhas também estavam sujas de sangue e de terra. Não sei se ele mesmo se feriu ou se
alguém tentou machucá-lo.

Fiquei calado, enquanto o policial continuava o relato.

— Olha, seu amigo claramente não está bem. Ele está em choque e precisa, sim, da ajuda de algum
profissional, algum psicólogo. Mas também preciso te dizer outra coisa — o sargento parecia intrigado.

— O que foi?

— Havia pegadas pela casa. Marcas de pés enlameados, por todo lado. Os pés tinham tamanhos
diferentes. Ou seja, alguém esteve lá com ele. Quando o colocamos sentado na poltrona, ele falou sobre
sombras invadirem sua casa, sobre corpos em decomposição se aproximando dele e tentando matá-lo.

— Meu Deus.

— Acho que realmente alguém pode estar tentando assustá-lo. Não acho que sejam assaltantes ou
alguém querendo matá-lo, senão ele já estaria morto ou seriamente machucado. Creio que seja apenas
alguém querendo deixá-lo com medo. E devo dizer que, seja quem for o responsável, está conseguindo. O
prefeito está fora de si.

O policial disse, então, que já tinha levado o ex-prefeito para o hospital. Ele ficaria em observação,
sob cuidados médicos pelo menos até o dia seguinte. Uma patrulha seria posicionada na entrada da
fazenda, para evitar que os invasores tentassem repetir a intimidação.

Desliguei o telefone e fui tomar banho. Já estava amanhecendo e eu queria conversar com o ex-
prefeito. Havia muito tempo que eu não me encontrava com ele, mas, apesar de seu erro imperdoável, ele
havia sido amigo do meu pai e meu amigo por muitos anos.

Não sabia por que ele tinha escolhido ligar para mim, para pedir ajuda, depois de quatro anos
afastado. Mas entendi que ele devia me considerar uma pessoa com quem podia contar.

O hospital ficava no centro da cidade, então não demorei a chegar até lá. De início, os médicos não
me deixaram falar com ele, mas eu disse que sabia o que estava acontecendo com o ex-prefeito e que isso
podia ajudá-lo. Depois de algum tempo, a equipe médica autorizou minha subida até o quarto no qual ele
estava internado.
Quando entrei, ele estava deitado, olhando para o teto. Chamei seu nome e ele demorou um pouco
para olhar, mas abriu um breve sorriso quando enfim percebeu que eu estava ali.

Ele pôs-se sentado na cama, com as pernas para fora do leito, como se fosse ficar de pé para me
receber. Sinalizei para que ele não levantasse. Apertei sua mão e ele me puxou para me abraçar. Demorei
um pouco para corresponder àquele abraço, mas enfim também o abracei e depois me sentei em uma
cadeira à sua frente.

Eu nem precisei puxar o assunto. Ele já começou falando sobre as sombras que estavam rondando sua
fazenda e sobre as pessoas mortas que tinham entrado na sua casa e tentado arrastá-lo para fora. Ele me
mostrou os arranhões, ao mesmo tempo em que ficava mais exaltado. Tinham sido mesmo feitos por unhas
(ou garras!).

Lembrei-me do sargento dizendo que as unhas do ex-prefeito estavam sujas de sangue e lama. Tratei
de acalmá-lo.

— Foi você que se feriu dessa forma? — perguntei, buscando não deixá-lo mais nervoso.

Ele balançou a cabeça, de forma negativa.

— Você não acredita em mim. Não faz ideia de quem são eles — disse o ex-prefeito, com as mãos
nos meus ombros. — Eles querem me matar. Querem me arrastar para baixo da terra, de onde eles
vieram.

Tomei coragem e perguntei:

— E quem são eles?

Ele baixou a cabeça e começou a chorar, mas não respondeu.

— Tem alguém querendo te assustar. Tem alguém querendo fazer você ficar com medo. Você tem
inimigos que podem estar por trás disso — afirmei.

— Você não entende... Você não acredita em mim — ele disse, voltando a deitar-se na cama e
colocando a mão sobre a testa. Ele chorava. Era possível ver que ele estava em agonia.

— Você precisa descansar. Mas saiba que você pode contar comigo para qualquer coisa — eu falei,
ao mesmo tempo em que me levantava da cadeira, já me preparando para deixar o hospital.

— Por favor, não vá embora. Não me deixe sozinho.

Voltei a sentar-me e segurei sua mão, em silêncio. Ela estava fria e tremia levemente. Ele fechou os
olhos. Em seu rosto, transparecia o cansaço. Era provável que ele não tivesse dormido por dias. Parecia
que só esperava uma companhia para entregar-se ao sono.

Esperei uns dez minutos e, quando vi que ele estava dormindo, decidi que já podia ir embora.

Saí do hospital com a cabeça cheia. Não conseguia mais sentir o desprezo que tinha nutrido por ele
nos últimos quatro anos. Agora eu só conseguia ter pena. O ex-prefeito parecia uma criança assustada,
implorando para que seus pais deixassem a luz do quarto acesa. Ele realmente acreditava que fantasmas o
estavam atormentando.

Era estranho, porque ele sempre havia se mostrado uma pessoa racional, com pouca disposição para
questões sobrenaturais. O susto que tinham pregado nele realmente havia tido um efeito devastador em
sua mente.

Cheguei à minha casa e liguei o computador. Fiz uma busca rápida com o nome dele e, como era de se
esperar, apareceram milhares de resultados. A maioria deles eram notícias sobre os dias posteriores ao
desastre de janeiro de 2011, em que o ex-prefeito aparecia como fonte das notícias.

Havia também muitos sites que citavam a denúncia do Ministério Público sobre o desvio das verbas
que seriam usadas para mitigar os efeitos da tragédia.

Fechei o computador. Estava cansado, então acabei dormindo um pouco. À noite, liguei para o
hospital e me disseram que ele estava bem. Provavelmente, receberia alta em alguns dias.

***

Dois dias depois, ao falar com o hospital, eles me disseram que o ex-prefeito tinha recebido alta.
Tentei falar com ele pelo celular, mas não consegui. Estava desligado. À tardinha peguei o carro e fui até
a fazenda dele. A casa estava fechada e silenciosa. Os únicos sons que eu ouvia eram os cantos de
pássaros, o farfalhar das árvores ao vento e o correr da água de um riacho que descia, em pequenas
cascatas, a colina localizada atrás da propriedade. Rodeei a casa e encontrei um dos funcionários da
fazenda.

Perguntei se ele sabia onde seu patrão estava. Ele disse que o ex-prefeito já tinha voltado do hospital
e resolveu caminhar pela mata. Ele estava sereno, segundo disse o funcionário.

Aproveitei para perguntar sobre a invasão à casa do ex-prefeito. O funcionário disse que deixava o
serviço sempre no início da noite, mas nunca tinha percebido ninguém rondando o terreno enquanto ele
estava ali.

Ele disse ainda que, desde o dia em que o ex-prefeito foi para o hospital, uma patrulha da polícia
ficava posicionada no portão principal, do início da noite até a manhã do dia seguinte.

O homem, que já era idoso, disse que sua mulher também trabalhava na casa e, no dia seguinte à
invasão, fez a limpeza da sala. Para ele, a mulher descreveu a cena como algo caótico. Havia lama para
todos os lados. Não só as pegadas. Havia também marcas de mãos pelas janelas e paredes. Também
havia um pouco de sangue na parede e no chão onde o ex-prefeito havia sido encontrado pela polícia.

— Deu uma trabalheira danada, moço. Ela ficou aqui até de noitinha.

Assim que o funcionário terminou de falar, o ex-prefeito apareceu entre as árvores, vindo do bosque
que cercava a propriedade. Ele realmente parecia mais tranquilo.
Apertamos as mãos e o ex-prefeito convidou-me para entrar em casa. Ele preparou um café e nos
sentamos à mesa. Ele evitou falar sobre a invasão à sua casa e ficamos conversando, por alguns minutos,
sobre a caminhada que ele tinha feito naquela tarde e sobre os pássaros que ele havia encontrado.

Então, quando ele terminou de falar, entrei no assunto:

— Você parece bem melhor. Como está?

— O hospital me fez bem. Acho que eu só precisava de umas noites de sono.

Beberiquei o café.

— Agora que você está mais calmo, acho que devia conversar com a polícia. Essa brincadeira que
estão fazendo contigo pode acabar mal.

Ele não falou nada, ficou apenas bebendo o café e olhando para o bosque lá fora. Então, eu continuei.

— Aparentemente, ninguém quebrou ou roubou nada. Mas isso não te fez bem. Você podia ter se
machucado ou, sabe-se lá, tido um ataque cardíaco.

Ele moveu a cabeça de um lado para outro, desaprovando o que eu falava.

— Não creio que alguém esteja querendo me assustar. Sabe, eu acho que apenas exagerei no remédio
para dormir e passei a ver coisas que não existiam.

Pensei nas pegadas de lama, mas não falei nada. Não queria deixá-lo nervoso ou assustado.

— Apenas acho que os policiais deveriam investigar isso. Alguém entrou na sua casa. E esse alguém
pode te machucar. Você deveria conversar com os policiais sobre as pessoas que podem estar querendo o
seu mal.

Ele colocou a xícara de café sobre a mesa e levantou-se, aproximando-se da janela.

— Mais uma vez: não há ninguém tentando me assustar. Não vou tentar te convencer do que eu vi, até
porque eu mesmo não tenho mais certeza do que vi. Eu estava sob efeito de remédios que podem
confundir à beça sua mente — ele disse, ao mesmo tempo em que voltava para perto da mesa. — Eu
agradeço muito pelo que você fez por mim. Eu sabia que podia contar contigo.

Ele colocou a mão no meu ombro e continuou:

— Nós nunca mais conversamos sobre aquela história da denúncia. Sei que você se afastou de mim
depois daquilo. E fiquei bravo com você no início, por me deixar na mão. Mas você provou que
amizades podem superar essas coisas.

— Você está certo — respondi. — Eu fiquei muito decepcionado com essa história, mas eu não quero
falar sobre isso agora. A Justiça já arquivou o caso. Apesar de tudo, você era considerado como um
irmão pelo meu pai e sempre demonstrou uma grande consideração por mim e por toda a minha família.

— Mais café? — perguntou.


— Não. Na verdade, preciso ir andando. Só queria ver se você estava bem. Já vi que você está legal.
Se precisar de algo, me liga. E, sim, pode contar com a minha amizade sempre. O que passou, passou.

Apertei sua mão e voltei para o carro. Não falei mais com ele até que, três dias depois, recebi outra
ligação. Vinha do número do ex-prefeito, mas ele não falava nada. Tudo o que eu ouvia era um som
parecido com uma tempestade e gritos desesperados. Então, a ligação caiu.

Minutos depois, o telefone tocou de novo. O som era mesmo de uma chuva torrencial. Trovões
podiam ser ouvidos. Ao fundo, os mesmos gritos de socorro. Eram várias vozes, de homens, mulheres e
crianças. Chamei o ex-prefeito várias vezes, mas não ouvi sua voz. A ligação caiu em seguida.

Tentei retornar a ligação, mas não consegui. Olhei para o relógio. Eram 3h30 da manhã. Liguei para o
sargento e ele me disse, depois de algum tempo consultando os colegas, que a patrulha ainda estava
posicionada no portão da fazenda, mas não tinha registrado mais nenhuma tentativa de invasão ou
qualquer coisa estranha.

Liguei para o ex-prefeito de novo e, desta vez, ele atendeu, com uma voz de quem acabou de acordar.
Ele disse que estava tudo tranquilo, que não tinha me ligado e nem tinha ouvido qualquer barulho de
chuva ou de pessoas gritando.

Desliguei, mas não consegui dormir. Provavelmente era apenas uma linha cruzada ou algumas
daquelas interferências nas telecomunicações que você não consegue explicar.

***

Uma semana depois, o ex-prefeito voltou a me ligar. Mas, desta vez, ele estava novamente estranho.
Ele me ligou por volta das 21h. Disse que estava ouvindo barulhos do lado de fora de casa e pediu que
eu fosse até lá. Perguntei sobre a patrulha da polícia e ele respondeu que, há dois dias, eles não
mandavam mais o carro para a porta de sua fazenda.

Coloquei uma roupa o mais rápido que pude e saí em direção à fazenda. Levei 20 minutos para fazer
o trajeto.

No caminho, liguei para o sargento e relatei o que o ex-prefeito havia me dito. Ele comprometeu-se a
arranjar uma viatura e mandar para o local assim que possível.

Quando cheguei à fazenda, ainda havia luz na casa. As árvores dançavam com vento, o riacho fazia
um som agradável ao descer pela encosta e as cigarras cantavam em uma verdadeira sinfonia. Mas fora
isso, não ouvia barulho algum.

Bati na porta e o prefeito prontamente atendeu. Estava assustado, com os olhos inchados, o cabelo
bagunçado. Antes que eu pudesse cumprimentá-lo, ele me puxou para dentro da casa e trancou a porta,
com todos os trincos possíveis.

— O que houve?
Ele colocou o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio.

— Eles voltaram.

Ele parecia outra pessoa. A serenidade do nosso último encontro não tinha deixado vestígios. Talvez
estivesse mesmo sob o efeito de remédios. O ex-prefeito me puxou e me colocou sentado no sofá ao seu
lado.

— Eles voltaram — disse, em um tom angustiado. — Achei que eles iam me deixar em paz, mas eles
estão de volta. Eu posso ver as sombras se movendo ao redor da casa. Posso ouvir os sussurros.

Rapidamente fui até a janela e olhei para a fora. Podia ver apenas as árvores balançando.

— Fique calmo. Não há nada lá fora. Apenas as árvores e as cigarras.

Ele fechou os punhos com força e mordeu a mão.

— Eles estão quietos agora. Uns cinco minutos atrás, eles pararam. Mas é sempre assim. Eles ficam
me atormentando. Eles começam a aparecer apenas como vultos ao redor da casa. Eles ficam apenas se
movendo e sussurrando. Depois sossegam e, quando eu acho que tudo acabou, é aí que o pesadelo
começa.

Olhei para fora mais uma vez. Não podia ver nada além das árvores e do meu carro estacionado na
frente da casa.

— Não há ninguém aqui — eu disse.

Realmente não havia sinal de ninguém em volta da casa. Pedi que o ex-prefeito ficasse sentado na
sala, enquanto eu ia até a cozinha preparar um café.

Ele agarrou meu braço desesperado, para que eu não saísse do seu lado. Tentei acalmá-lo, dizendo
que estaria ali ao lado, se precisasse de alguma coisa. Ele largou meu braço, mas ficou olhando para
todos os cantos da sala e para as janelas.

Entrei na cozinha, peguei o café, o coador e já me preparava para ligar a cafeteira, quando as luzes
começaram a piscar e depois se apagaram. Os pelos do meu corpo se eriçaram instantaneamente.

Fiquei um tempo tateando pela cozinha, até que meus olhos se acostumaram à escuridão. Toda a casa
havia se apagado. Estávamos às escuras. Apalpei meus bolsos, mas meu celular não estava ali. Eu o
havia esquecido dentro do carro.

— Prefeito! — gritei, sem saber muito bem por que gritava.

Ele não respondeu. O silêncio era total. Foi aí que as coisas começaram a ficar esquisitas e eu
comecei a sentir um medo irracional. Uma queda repentina de energia tem esse poder sobre as pessoas.
De repente, senti que alguma coisa passou correndo atrás de mim. Olhei para trás. A porta havia sido
aberta, mas não vi ninguém.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah!
Um grito veio da sala. Era o ex-prefeito.

Tentei correr até lá, mas bati com a coxa na mesa da cozinha e caí no chão. Senti a presença de
alguém ali. Estava escuro, mas era possível perceber movimentações. Sem levantar-me, arrastei-me para
a sala. As luzes piscaram e pude ver figuras escuras movendo-se pela cozinha.

Com certa dificuldade, e uma horrível dor na perna, levantei-me e gritei pelo ex-prefeito de novo.

Ele não estava mais no sofá e a porta da sala estava aberta. Com a pouca luz que entrava através da
porta e das janelas, pude ver as pegadas. As luzes voltaram a piscar. Eram dezenas de marcas de pés
enlameados.

— Prefeito! — gritei de novo e percebi, através da janela, silhuetas escuras movendo-se, com
rapidez, fora da casa.

Então ouvi alguém choramingando. Vinha de trás da poltrona. Abaixei-me e vi o ex-prefeito. Ele
estava encolhido.

— Eles vieram me buscar. Eu sei disso — ele disse, finalmente.

— Quem vem te buscar? Quem são essas pessoas?

— Os mortos... As pessoas que perderam suas vidas naquela tragédia. Oh, meu Deus, o que eu fiz?

Ouvi o som de passos entrando na sala e vozes se lamentando. O barulho vinha de todos os lados.
Então, eu senti que havia alguém atrás de mim. Senti a presença de várias pessoas. Eram várias
respirações, fungando nas minhas costas, e um cheiro forte de terra molhada. Não tive coragem de olhar
para trás.

Uma mão fria e úmida se encostou no meu ombro e, na mesma hora, molhei minha calça com urina.
Havia definitivamente alguma coisa atrás de mim e o ex-prefeito podia ver o que era. Devia ser algo
pavoroso, porque seus olhos estavam tão esbugalhados que faltava pouco para saltarem do rosto. Ele
estava tão assustado que queria gritar, mas não conseguia. Fechei os olhos e lembro-me de ter começado
a rezar. No meio da oração, a mão largou o meu ombro e os lamentos cessaram. A luz da casa voltou.

Todos os pelos do meu corpo voltaram a se arrepiar. Quando olhei para trás, não vi ninguém ali, mas
reparei que as paredes estavam todas sujas com marcas de mãos enlameadas. A porta ainda estava
escancarada.

Vi então que luzes vermelhas se aproximavam da casa. Era a patrulha da polícia, que o sargento
prometera enviar para a fazenda. Dois policiais saltaram do carro e foram até a porta. Eu os recebi e os
levei até o ex-prefeito, que estava imóvel, com uma respiração ofegante.

Os dois o ajudaram a levantar-se e o colocaram sentado na poltrona. Contei o que havia acontecido e
um dos policiais fez o sinal da cruz. Chamamos uma ambulância, que levou o prefeito novamente para o
hospital.

Nem eu, nem os policiais quisemos ficar na casa depois que a ambulância foi embora. Aquela havia
sido a experiência mais assustadora que eu já tive em toda a minha vida. Agora sabia por que o prefeito
tinha ficado tão afetado das outras vezes. No meu lugar, qualquer um teria mijado nas calças.

Quando cheguei à minha casa, fiquei com medo de entrar naqueles cômodos escuros. Ao esticar meu
braço para alcançar o interruptor e acender a luz, fiquei imaginando que, a qualquer momento, aquela
mão fria e molhada ia me agarrar de novo.

Enfim, depois de um pouco de hesitação, entrei em casa e corri por todos os cômodos para acender as
luzes. Até agora, não conseguia acreditar naquilo que havia presenciado na fazenda do ex-prefeito.

Na noite seguinte, cheguei a visitá-lo no hospital, mas ele estava ainda em choque e não falava nada.
Lembrei-me do seu olhar aterrorizado, vidrado em alguma coisa assustadora que estava atrás de mim
naquela noite. O que podia ser tão horrível que o fez ficar imobilizado? Senti um calafrio ao me lembrar
daquelas sombras. De repente, eu estava com tanto medo que rapidamente me levantei daquele quarto
semiescuro e saí para o corredor iluminado do hospital.

Uma enfermeira, que passava pelo corredor na hora, ficou me olhando, espantada. Fechei a porta do
quarto e saí do hospital, ainda com todos os pelos do corpo arrepiados.

O ex-prefeito logo recebeu alta, mas aquela foi a última vez que o vi.

Um mês depois, uma grande chuva caiu na cidade novamente. Não foi tão terrível quanto a catástrofe
de 2011, mas casas desabaram e algumas pessoas morreram soterradas.

Lembro-me de ter lido o jornal e visto que uma das casas soterradas era a sede da fazenda do ex-
prefeito, que tinha sido engolida pela colina vizinha. Não consegui lamentar. Só senti um calafrio de
novo. Seu corpo havia sido resgatado, sem vida, de dentro da lama, após dois dias de trabalho dos
bombeiros.

***

Alguns dias depois, meu celular apitou. Era uma mensagem de voz. Quando vi o remetente, quase
deixei o aparelho cair no chão. Minhas mãos tremiam: era uma mensagem do ex-prefeito. Ela tinha sido
enviada três semanas atrás, exatamente na noite do temporal. Mas, por algum motivo, só chegou ao meu
telefone naquele dia.

Demorei mais dois dias para criar coragem e ouvir a mensagem. Abri o celular e, com uma
tremedeira no dedo, pressionei o botão para tocar a gravação com a voz do ex-prefeito.

— Alô... Alô... Por favor, atenda... Eles estão aqui de novo... (silêncio) Oh, meu Deus, eles
entraram aqui em casa... O que vocês querem? O que vocês querem, seus malditos? (sons
incompreensíveis de inúmeras vozes são ouvidos) Alô... Você está aí? Socorro! Socorro! (mais vozes
fazem sons incompreensíveis) Eles estão todos na minha frente. Homens, mulheres e crianças... com seus
corpos... seus corpos... em decomposição. Eles vão me levar hoje à noite! Eles vão me levar para o
inferno hoje à noite! (gritos do ex-prefeito misturado ao de outras pessoas; então, um grande estrondo é
ouvido e a gravação se encerra).


MENSAGEM INSTANTÂNEA

ID restrito

Boa noite 23H00

Eu disse: boa noite 23H10

Célia

Quem é você? 23H11

ID restrito

Por favor, diga boa noite 23H11

Célia

Eu nem sei quem é você. Seu número de telefone nem aparece para mim 23H14

Como você conseguiu meu número? 23H15

ID restrito

Você é mal educada 23H15

Célia

Vou te bloquear 23H19

ID restrito

Por favor, não faça isso, quero te conhecer 23H19


Célia

Mas eu não quero te conhecer. Adeus 23H23

ID restrito

Só quero conversar com você 23H24

Oi. Você está aí? 23H35

Eu sei que você está aí 23H39

Célia

Para de me encher. Não sei por que não estou conseguindo te bloquear, mas vou chamar a polícia 23H41

ID restrito

Você pode tentar, mas vai ver que não consegue fazer ligações telefônicas também 23H42

Hahahahaha. Como estão as tentativas? Já conseguiu sinal para seu telefone? 23H50

Aposto que não 23H50

Célia

Quem é você? Vou falar com o meu pai. Ele é policial 23H55

ID restrito

Você não consegue me enganar. Eu sei que você está sozinha em casa 23H56

E aí? Vai me dar boa noite ou não? 23H57

Você é uma mulher difícil. 0H04

Tudo bem. Eu espero seu banho acabar 0H07


Linda calcinha azul 0H10

Célia

Seu doente! Para com isso! Como você pode saber dessas coisas? 0H12

ID restrito

Preciso invadir sua privacidade para conseguir sua atenção? 0H12

Não adianta me ignorar 0H20

Estou vendo que você se trancou no quarto aí no segundo andar 0H25

Está com medo? 0H25

Não adianta tentar mandar mensagens para outras pessoas. Você não vai conseguir 0H26

Você está sem conexão à internet. Sou a única pessoa com


quem você consegue se comunicar 0H27

Que pena. Você está sozinha e isolada 0H28

Por favor, abra suas cortinas e olhe para fora da janela. Estou aqui 0H31

Célia

Estou olhando. Não tem ninguém aqui na rua 0H37

ID restrito

Quem disse que eu estou na rua? 0H37

Célia

Você pediu para eu olhar pela janela 0H38

ID restrito
Mas não disse que estava na rua 0H38

Célia

Onde você está então? 0H38

ID restrito

Olha para frente 0H39

Para o outro lado da rua 0H39

O que você está vendo? 0H39

Célia

Não vejo nada. Só o cemitério vazio 0H40

ID restrito

Isso! 0H40

Hahahahahahahaha 0H41

Célia

Você é só um doente, que quer me assustar 0H43

ID restrito

Você quer me encontrar? 0H48

Estou atravessando a rua agora e vou entrar na sua casa...0H50

Célia
Você não vai me assustar, seu babaca. Eu não estou vendo ninguém atravessar a rua 0H51

ID restrito

Não adianta tentar me ver, você não vai conseguir 0H51

Por que você não desce as escadas agora? Já estou aqui embaixo, te esperando 0H52

Por que está demorando? Anda, desce logo 0H55

Vou ter que te buscar aí em cima? 0H58

Célia

Por favor, não me machuque 1H01

ID restrito

Hahahahahahahaha 1H01

Como você sabe que eu vou te machucar? 1H02

Célia

Por que você está fazendo isso? 1H03

Para! Por favor! Para! Eu não vou abrir a porta! Vai embora! 1H05

ID restrito

Eu só estou arranhando a porta para te assustar. Não precisa abrir a porta, porque eu já estou aqui dentro
do seu quarto1H06

Não adianta me procurar, você só vai conseguir me ver se eu quiser aparecer 1H08

Não chora... 1H08

Bu 1H10

HAHAHAHAHAHAHAHAHA 1H10


TEM UMA COISA DENTRO DE MIM

Eu estava em casa, me preparando para sair com uns amigos, quando meu irmão entrou arfando, com
uma cara péssima, queixando-se de um incômodo no estômago.

Conheço meu irmão desde o ventre da nossa mãe e posso afirmar que nunca o vi com um aspecto tão
horrível quanto naquele dia. Nós éramos aqueles gêmeos inseparáveis. Dividíamos um apartamento
desde que passamos para o vestibular numa universidade pública e tivemos que nos mudar do interior
para a cidade do Rio de Janeiro.

Moramos juntos durante a faculdade. Eu me formei no curso de odontologia, enquanto ele optou por
história, porque queria ser professor universitário.

Quando ele se formou, continuou morando comigo. Só nos mudamos para um apartamento maior, com
dois quartos. E quando, dois anos depois, foi a vez de eu me formar, também optei por continuar
dividindo a casa com meu irmão.

Eu amparei-o na porta e levei-o até o sofá. Eu disse que devia ser algo estragado que ele comeu na
escola. Ele estava fazendo seu doutorado, mas trabalhava como professor numa escola pública. E, às
vezes, a comida do refeitório não lhe caía bem. Ele concordou comigo e tomou um sal de frutas.

No dia seguinte, ele me acordou, dizendo que não tinha melhorado e que a dor estava mais forte. Ele
não estava com diarreia nem nada, apenas sentia aquela dor dentro da barriga. Parecia que alguma coisa
estava arranhando a parede de seu estômago. Tem uma coisa dentro de mim, ele disse.

Eu disse que ele devia estar com gastrite.

Naquele mesmo dia, eu consegui marcar uma consulta para ele com um especialista. O médico fez os
exames rotineiros e recomendou uma endoscopia, porque suspeitava que fosse mesmo gastrite.

Ele passou aquela semana reclamando de dores na barriga. Tinha medo de que fosse alguma coisa
mais grave do que uma gastrite. Passei o tempo todo tentando acalmá-lo.

No dia da endoscopia, parecia que ele estava indo para o abatedouro. Ele tinha certeza de que algo
muito terrível seria descoberto dentro de seu estômago. Cheguei a ver lágrimas brotando em seus olhos e
ele me abraçou, como se despedisse de mim.

No final, não havia nada. A médica que fez o exame não constatou nenhuma anomalia em sua barriga.
Assim como o exame de fezes não constatou a presença de qualquer parasita.

O gastroenterologista disse que, aparentemente, não tinha nenhum problema com ele. Meu irmão ficou
muito angustiado. Ele disse para o médico que, com certeza, havia alguma coisa dentro da sua barriga,
que parecia querer rasgá-la, de dentro para fora.

O médico passou exames complementares de imagem, mas confirmou-se que ele não tinha nenhum
problema. E a dor continuou. Tinha noites que meu irmão não conseguia dormir. E, com seus gritos de
dor, eu tampouco conseguia pegar no sono. Ele se contorcia na cama. Apesar de tomar doses absurdas de
analgésico, não conseguia aliviar a dor.

Até que um dia, a dor simplesmente desapareceu. Ele disse que ainda sentia um estranho incômodo
em seu estômago, mas não sentia mais dor. Sinto que tem alguma coisa dentro de mim, como se fosse um
peso na minha barriga, mas nada que chegue a me incomodar, ele me disse.

Ele voltou a trabalhar e, por alguns dias, voltou a ser a pessoa tranquila que ele sempre foi.

Mas, cinco dias depois, meu irmão voltou da escola pálido. Eu estava jogando videogame e só vi que
ele estava aflito quando entrou na minha frente e abriu sua mão. Nela, havia quatro pedaços de unha.

— Que porra é essa? — eu perguntei. — Por que você está me mostrando pedaços da tua unha?

— Não são minhas — ele respondeu, assustado. — Elas estavam dentro de mim. Eu senti uma coisa
arranhando minha garganta e, depois, elas subiram para a minha boca.

— Você andou fumando meus baseados? Foi por isso que você parou de sentir aquelas dores?

Ele fechou as mãos e saiu da minha frente. Eu voltei a jogar.

— Eu estava na sala de aula, dando uma explicação para os alunos, e essas unhas subiram pela minha
garganta até chegar à minha boca.

— Para mim, parece que você cortou suas unhas no ônibus e, não sei por que, resolveu guardar essas
coisas nojentas para a posteridade — eu disse, mais preocupado em fazer o gol na minha partida de
futebol virtual do que nos devaneios do meu irmão.

— Você é um imbecil. Minha mãe tinha que ter te abortado, seu merda.

— Você também morreria — eu disse, rindo, enquanto driblava com meu jogador, na boca da área, e
chutava para fora do gol.

Ele se trancou no quarto e não falou mais comigo pelo resto do dia.

Na manhã seguinte, eu estava tomando café, já me preparando para ir ao consultório, quando ele se
juntou a mim, cheio de olheiras. Ele não deu bom-dia, mas disse que tinha voltado a sentir alguma coisa
arranhando seu estômago. Não sentia dor, mas era como se tivesse um animal dentro da sua barriga.

Eu comecei a ficar preocupado. Achava que meu irmão podia estar enlouquecendo.

Ele tomou um gole de café e, um segundo depois, vomitou-o sobre a mesa.

— Jesus! O que foi isso?

— Tem alguma coisa na minha garganta — ele respondeu e colocou o dedo na goela.

Ele fez menção de vomitar, mas não expeliu nada. Então, ele colocou a mão dentro da boca e tirou um
dente. Era um molar e dos grandes. Eu olhei espantado, enquanto ele punha o dente em cima da mesa.

— Deixa eu olhar sua boca — eu falei, sem pensar muito.

Meu irmão abriu a boca e constatei que todos os seus dentes estavam lá. Todos os 32. Eu sabia que
ele só tinha 32 dentes mesmo, porque eu o tratava no meu consultório. Mas, mesmo assim, eu procurei um
buraco onde aquele dente poderia ter estado, antes de cair. Nada. Não havia nenhuma ferida em sua boca.

Peguei o dente e analisei-o. Ele era amarelado e bem maior do que os dentes do meu irmão.

— Como isso veio parar na sua boca?

— Eu... eu não sei — ele respondeu, atordoado.

Primeiro, a história das unhas. Agora, um dente emergia da goela do meu irmão.

— Só para eu saber: você não colocou esse dente dentro da sua boca só para me sacanear, colocou?

Antes que ele pudesse responder, ele vomitou mais uma vez sobre a mesa. Dessa vez, vi mais quatro
dentes molares, do mesmo tamanho daquele.

Aquilo era realmente bizarro. Eu tinha acabado de olhar sua boca. Olhei até dentro da sua goela. Não
havia nada. De repente, meu irmão vomita quatro dentes? Que porra era aquela?

Ele disse que não estava se sentindo bem e foi para sua cama. Fui atrás e pedi para olhar sua boca
mais uma vez. Enfiei um palito na goela e ele quase vomitou novamente. Mas não havia nada lá.

Fiquei uns dez minutos examinando sua boca e não encontrei nada.

— Tem uma coisa dentro de mim. Eu sei disso — ele repetiu e reclamou mais uma vez de arranhões
dentro do estômago.

— Não há nada dentro de você. A gente já fez endoscopia e todos os exames possíveis. Acho que é só
sua imaginação.

— Esses dentes são minha imaginação?

Realmente, não havia explicação lógica para que cinco dentes emergissem da sua garganta. Achava
improvável que ele tivesse engolido dentes daquele tamanho. E para que ele faria isso?

— Tem algo dentro de mim...

Eu liguei para sua escola e disse que ele não iria trabalhar naquele dia. Ele ficou o tempo inteiro
deitado. Eu também desmarquei minhas consultas daquele dia. À noite, ele me chamou no quarto. Ele
dizia que alguma coisa estava querendo rasgar seu estômago. Então, ele virou para o lado e cuspiu duas
unhas inteiras. Não eram pedaços, como ele tinha mostrado no dia anterior. Eram unhas inteiras.

Foi a minha vez de quase vomitar. Não havia explicação para aquilo. Eu olhei para as unhas. Eram
unhas humanas. Eram um pouco maiores do que aquelas do dedo do meu irmão, mas, sem dúvida, eram
unhas de gente.

Ele começou a chorar. E eu não sabia o que fazer para confortá-lo. Na verdade, eu estava custando a
acreditar naquilo. Era irreal demais.

Naquele dia, nada mais de estranho aconteceu, mas, no dia seguinte, ele acordou vomitando um
pequeno pedaço de carne. Quando eu me aproximei, vi que parecia o lóbulo de uma orelha. Não tinha
sangue, nem nada. Era apenas um pedaço de orelha. Dessa vez, eu não consegui segurar e vomitei no
chão.

Quando meu irmão se deu conta do que tinha saído de sua boca, ele deu um grito de horror. Eu tentei
chegar perto dele, mas ele começou a me empurrar para sair do quarto. Antes que eu pudesse reagir, eu já
estava do lado de fora e ele tinha trancado a porta.

Podia ouvir os gritos desesperados do meu irmão, do lado de dentro. Eu esmurrei a porta várias
vezes.

Depois de alguns minutos de silêncio, em que só podia ouvir o choro misturado aos soluços do meu
irmão, ele finalmente falou:

— Tem algo muito estranho acontecendo comigo — e eu concordava com ele, era estranho demais. —
Tem algo dentro de mim. Não sei o que é, mas está querendo rasgar o meu estômago.

Eu tentei falar algo, mas não sabia o que dizer. Ele deu um grito. Parecia estar sofrendo muito.

— Está doendo. Está voltando a doer, como os infernos! — ele disse, quase urrando de dor. — Isso
precisa acabar. Eu me sinto uma aberração!

— Do que você está falando? Abra essa porta. Vamos ao médico. Tem que haver uma explicação para
isso.

— Qual a explicação para eu estar vomitando dentes, unhas e um pedaço de orelha? O médico já
disse que não há nada de errado comigo.

— Por favor, abra essa porta. Senão, eu vou arrombá-la!

Então, eu ouvi os gritos mais apavorantes que eu já tinha ouvido em toda a minha vida. Gritei o nome
do meu irmão, várias vezes. Mas ele não respondeu. Empurrei a porta várias vezes, sem sucesso.

Lembrei-me de que havia chaves-reserva de todos os cômodos da casa, guardadas em alguma gaveta
da cozinha. Eu demorei cerca de meia hora para achá-las.

Quando eu finalmente abri a porta do quarto, vi meu irmão jogado no chão, com várias facadas na
barriga e uma poça enorme de sangue. Ele tinha usado seu canivete suíço para retalhar sua barriga,
provavelmente numa tentativa desesperada de acabar com a dor. Seu coração ainda batia quando eu
chamei a ambulância, mas ele já estava morto quando a equipe de socorro chegou.

A necropsia não encontrou nada em sua barriga e, aparentemente, não havia nenhum problema com
sua saúde. Eu fiquei curioso para saber se tinham achado algum outro dente, unha ou pedaço de orelha na
sua barriga, mas tive vergonha de perguntar.

A polícia chegou a abrir um inquérito, que foi arquivado quando a perícia comprovou que meu irmão
tinha tirado sua própria vida.

No enterro, meus pais estavam arrasados. Contei sobre as queixas de dor na barriga e sobre sua ideia
fixa de que havia alguma coisa querendo rasgar seu estômago de dentro para fora. Mas não mencionei os
dentes, as unhas e o pedaço de orelha. Eram detalhes tenebrosos demais para dois pais de luto.

Quando voltei para casa depois do enterro, fiquei deitado o dia inteiro na cama, lembrando-me de
todos os bons momentos que vivemos juntos. Após a morte dele, fiquei sem chão por algum tempo. Senti
falta do meu companheiro, que passou nove meses agarrado comigo na barriga da minha mãe e que viveu
toda a vida ao meu lado.

Lembrei-me dos últimos dias de vida do meu irmão. Ele havia sofrido muito com as tais dores no
estômago. No final, não havia mesmo nada dentro da barriga dele, como a necropsia pôde confirmar, mas
não posso dizer que era apenas algo criado por sua mente.

Algo estranho e sem explicação aconteceu. Eu vi, com meus próprios olhos, aquelas coisas saindo da
boca do meu irmão.

Alguns meses depois, quando eu já tinha esquecido aquele pesadelo, eu senti uma indisposição
estomacal. Fui ao banheiro, mas não tive vontade de evacuar.

Enquanto eu andava até a sala, comecei a sentir uma sensação estranha. Alguma coisa arranhava o
interior do meu estômago. Meus batimentos cardíacos se aceleraram e senti alguma coisa subindo a
minha garganta. Era algo incômodo, que me machucava.

Então, eu senti aquilo chegando até minha língua. Meu Deus, era...

... UM PEDAÇO DE UNHA!


PRISÃO PERPÉTUA

Acordo sozinho em uma cela escura. Demoro um pouco para me situar. Onde estou? Com dificuldade,
caminho até a porta, que está aberta. Todo o meu corpo dói. Olho para baixo e vejo que estou com
feridas, cheio de sangue e hematomas.

Aos poucos, as lembranças retornam. Estou detido em um presídio no centro do Rio de Janeiro. Antes
de perder a consciência, lembro-me de ter sido encurralado nessa mesma cela, por vários detentos. Eles
me espancaram e me perfuraram com facas. Não sei como pude sobreviver àquelas agressões.

Quando eu senti as primeiras facadas na barriga e no pescoço, depois de receber muitos pontapés, eu
desmaiei. Alguém deve ter me socorrido e levado para o posto médico do presídio. E alguém — talvez a
mesma pessoa — trouxe-me de volta para essa cela. Quantos dias se passaram desde que eu apaguei?
Não sei dizer.

Estou em um setor do pavilhão, chamado de “seguro”, que é separado dos demais porque é aqui que
colocam estupradores, dedos-duros e presos jurados de morte.

Em penitenciárias, monstros são normalmente aceitos pelos colegas, mas algumas vezes o pecado
cometido é tão terrível, que causa repulsa até nos outros monstros. Eu sou um desses pecadores
imperdoáveis. Pessoas da minha espécie são piores do que lixo.

Você deve estar se perguntando sobre que crime eu cometi. Provavelmente você não vai achar nada
monstruoso, mas meus colegas de prisão discordariam. Eu denunciei o chefe do tráfico na favela onde eu
moro. Denunciei porque a polícia tinha provas para me manter 30 anos na cadeia e eu esperava que, com
a delação, eles retirassem meu nome dos inquéritos policiais. Eles sabiam que eu conhecia o esconderijo
do chefe, porque eu trabalhava para a quadrilha. Então, um dia, colocaram uma máscara no meu rosto e
me escoltaram pela favela, até que eu mostrasse o local onde ele se escondia.

É claro que minha traição foi descoberta pela quadrilha. Não dá para confiar na polícia, que não só
espalhou a informação de que eu era “X-9”, como também se esqueceu do compromisso de limpar minha
barra com a Justiça. Fui preso no mesmo dia, com um mandado de prisão preventiva, e levado para o
presídio na mesma viatura que o chefão, mesmo sem ter sido julgado.

Fui colocado na ala do “seguro” e consegui sobreviver bem por três meses. Mas, um dia, acordei com
os carcereiros abrindo todas as celas e deixando os presos da ala sem proteção. Não demorou muito para
que uma horda de presidiários entrasse na nossa ala e me encurralasse na minha cela.

Não sei quanto dinheiro os carcereiros receberam, mas o meu ex-chefe não costumava economizar
quando precisava subornar alguém. Era óbvio que eu não sairia ileso dessa. Em um presídio, escórias
como eu nunca podem dormir tranquilos.

Agora, o pior parece ter passado. Olho para as outras celas e vejo que estou sozinho na ala. Todas as
celas estão abertas, mas não há mais ninguém. Não sei se eles foram mortos no ataque que sofremos ou se
já foram transferidos para outra penitenciária. Esse presídio está sendo desativado e será implodido,
para dar lugar a casas populares. Antes de ser espancado, eu vi algumas levas de presos deixando a
cadeia.

Ando até o final da minha ala. É possível ouvir pessoas conversando em outras alas. Meu andar ainda
está ocupado. Ele será um dos últimos a ser esvaziados.

Encosto na grade que isola minha ala do restante do presídio e, com grande pavor, percebo que ela
também está aberta. Minha ala está aberta para quem quiser entrar e terminar o serviço que deixaram
inacabado. Sinto um medo grande. Afasto-me dali e volto para minha cela. Fecho a grade, na expectativa
de parecer trancada para os outros presos.

Pela janela, vejo mais presos sendo escoltados para os veículos que vão tirá-los da penitenciária. Há
uma forte guarda de policiais e carcereiros. Não devem restar mais muitos detentos dentro desse
presídio. E, pelo que percebo, sou um dos últimos prisioneiros. Nos próximos dias, todos serão retirados
e levados para outra cadeia.

Meus ferimentos parecem não ter cicatrizado. Coloco a mão em um dos vários buracos feitos pelas
facadas e ainda sinto o sangue úmido. Como é possível? Não sei. Só sei que sobrevivi e consigo
caminhar de um lado para outro, mesmo com todos esses ferimentos.

Fico com medo de voltar para o corredor. Prefiro ficar quieto, encolhido naquela cela. Deito na
estrutura de concreto que me serve de cama. Fico ali estirado por longas horas, sem conseguir dormir,
apavorado com a possibilidade de meus agressores retornarem.

Na manhã seguinte, ainda sem conseguir dormir, ouço um barulho vindo da cela em frente. Está muito
escuro, porque nossa ala está sem luz. Aproximo-me das grades para tentar ver quem é. Alguém está
deitado na cama. Posso ver as pernas flexionadas de uma pessoa deitada.

Tento chamá-lo, sem fazer muito barulho, para não atrair atenção de outros presos. Ele também deve
ter sobrevivido ao ataque feito à ala do “seguro” e ainda não foi transferido.

— Psiu, psiu — eu repito.

Vejo uma cabeça se erguer e me encarar. Não o reconheço. Ele se levanta e anda até a grade aberta de
sua cela. Ele não está ensanguentado e nem tem hematomas pelo corpo. Tem apenas uma marca roxa no
pescoço. Quem será? Instintivamente dou um passo para trás, buscando afastar-me dele.

— Calma — ele diz —, eu não vou te machucar. Somos colegas de ala.

— Como eu nunca te vi por aqui?

Ele não responde e continuo preparado para o pior. Mas ele não avança na minha direção. Seja quem
for meu vizinho, ele não parece querer me agredir, ele apenas volta para sua cama e se deita de novo.

Fico um pouco mais relaxado.

Nós só voltamos a nos falar mais tarde, quando eu ouço barulhos de pessoas próximo de mim e corro
para a grade para ver se alguém tinha entrado na nossa ala.
— Não se preocupe. Ninguém vai entrar aqui — diz o desconhecido, ainda deitado na cama.

— Como você pode saber? Se descobrirem que ainda estamos aqui e que todas as portas estão
abertas, vão acabar com a gente.

— Acredite em mim. Você não precisa se preocupar com isso.

Ainda estou curioso para saber o que ele está fazendo ali. Novamente, pergunto quem é ele, mas, mais
uma vez, fico sem resposta. Desisto de saber. Ele provavelmente arrumou problemas com outros presos e
vai aguardar a transferência na ala do “seguro”. Olho para o pátio, pela janela da minha cela. Ainda está
vazio.

Mais tarde, passo a mão pelo meu corpo. Ainda dói. O sangue na minha pele está seco, mas, dentro
das feridas, ainda está molhado, como no dia anterior. Tento abrir o chuveiro, mas está sem água.

— Ei. Estamos sem luz e sem água — falo para o meu vizinho de ala, com o cuidado de não fazer
muito barulho. — Não consigo tomar um banho ou lavar minhas feridas. Estou preocupado com isso.
Posso pegar uma infecção.

Meu vizinho nada responde.

— Preciso chamar um carcereiro, mas não sei como. Se eu for até a grade e chamar alguém, os outros
presos podem perceber que ainda estou aqui.

Silêncio. Olho para a cela dele e não consigo encontrá-lo. Vagarosamente, ando até lá, preocupado
em ser visto no corredor. A porta está aberta, mas ele não está lá dentro. Onde ele se meteu?

Ando com cautela pelo corredor, olhando em cada uma das outras oito celas daquela ala. Todas estão
vazias. Volto para minha cela e vejo, no pátio, mais um grupo de 50 presos deixando a penitenciária.

No dia seguinte, acordo com alguém falando comigo. Levanto-me num sobressalto. É o meu vizinho
misterioso. Ele está de volta a sua cela.

— O último grupo está deixando a prisão hoje — ele diz, em voz alta.

Ouço barulho dos presos, que fazem uma algazarra próximo dali.

Olho para o corredor. Graças a Deus, não há ninguém na nossa ala. O barulho é dos presos das outras
alas daquele andar, que parecem estar sendo mobilizados para a transferência.

— Ninguém veio falar com a gente ainda — eu respondo, tentando não falar muito alto. — A gente
deveria estar nesse último grupo.

Ele apenas ri e volta para sua cama.

Mais tarde, olho pela janela e vejo um grupo de 40 presos reunido no pátio. Eles são divididos em
grupos menores e encaminhados para diferentes camburões.

— Lá se vão os últimos presos — ouço meu vizinho comentar, na outra cela. — Estão felizes porque
vão deixar esse inferno.

O presídio onde estamos é um dos piores do país. É velho, sujo, úmido, claustrofóbico. Suas paredes
não devem ver uma camada nova de tinta há pelo menos três décadas. Manchas de sangue e fezes estão há
anos decorando as alas da penitenciária.

Até agora ninguém veio até mim, para me preparar para a transferência. Sinto que é hora de chamar
alguém. Não podem me esquecer ali. Saio pelo corredor e vou até a grade da ala. Está tudo em silêncio.

— Boa sorte, companheiro — meu vizinho grita, enquanto eu deixo a ala do “seguro”.

Com cuidado, abro a porta e saio pelo pavilhão, procurando alguém. Nada. Está tudo vazio. Não há
ninguém no andar, mas não consigo descer porque a grade da escada está trancada. Não há viva alma nas
seis alas daquele andar do pavilhão.

Eu perco o medo de atrair atenção dos outros presos e dou um grito alto.

Eu grito por alguns minutos, mas ninguém vem até mim. Decido voltar para a minha cela e gritar pela
janela. Será que os malditos vão me esquecer trancado naquele andar?

Ninguém olha para o alto. Nem policiais, nem carcereiros, nem detentos. Vejo os dois últimos grupos
de presos entrando nas viaturas blindadas de transferência.

— Não adianta gritar — avisa o vizinho.

— Por quê? Por que ninguém olha? Eu devia estar naquele grupo — sinto o desespero tomando conta
de mim. — Eles me esqueceram aqui.

Continuo tentando chamar atenção. Por um instante, penso que dá certo, porque um dos policiais olha
para cima. Mas minha esperança se esvai quando ele volta a baixar o olhar, como se não tivesse me
visto. Todos os presos já entraram nos carros. Os carcereiros fecham as portas das viaturas, que saem do
presídio.

Os policiais também deixam o prédio. Apenas dois carcereiros voltam para dentro do pavilhão.

— Eles vêm me buscar. Eles entraram no prédio de novo. Lembraram que estou aqui e vêm me
buscar.

Meu vizinho se levanta e anda até a grade. Ele está esquisito. Seu rosto parece mais pálido. Seus
lábios estão quase sem cor. Seus cabelos parecem fios de palha.

— Eles não vêm te buscar. Acredite em mim. Eles só vão pegar alguns documentos e vão deixar o
presídio antes de anoitecer.

Eu corro de volta à escada e continuo a gritar pela grade. Estou preso ali, sem poder sair, sem poder
chamar ajuda, correndo o risco de ser esquecido naquele prédio, que será dinamitado em alguns dias.
Grito por cerca de duas horas. Ninguém vem até mim.

Volto desolado para a minha cela.


— Olhe pela janela — é a voz do meu vizinho. Ela parece mais rouca do que antes. — Os carcereiros
já terminaram de arrumar o que precisavam e devem estar saindo do prédio nesse momento.

Olho para baixo e, realmente, os dois estão deixando o pavilhão com duas caixas. Eles andam até o
portão principal e depois deixam o presídio.

— Eles ainda vão voltar depois para limpar os escritórios, nos próximos dias. Mas ninguém vai
passar por essa ala. Eles já tiraram tudo o que queriam desse andar — diz o meu vizinho.

Já está anoitecendo e, naquela penumbra, não consigo enxergar direito o meu colega. Vejo apenas uma
magra silhueta no canto da cela em frente.

— Por que eles estão deixando a gente para trás? — pergunto desanimado.

— Eles não estão deixando ninguém para trás. Todos que tinham que ser transferidos já foram.

— Mas eu continuo aqui. Como eles podem esquecer um prisioneiro?

Ele ri mais uma vez. Fico com vontade de esmurrar sua cara. Como ele pode rir dessa situação?
Corremos o risco de ser esquecidos ali, sem luz, água ou comida por vários dias.

— O nosso destino é ficar aqui, meu amigo — diz a voz cada vez mais rouca do meu vizinho.

— Como? — pergunto, sem entender o que ele quer dizer.

— Já se perguntou por que ninguém te ouviu gritar? — pergunta, soando cada vez mais incômodo. —
Ou por que suas feridas não cicatrizam? Aliás, há quanto tempo você não come nada?

Eu não respondo nada. De repente, começo a sentir uma grande angústia. Tudo à minha volta escurece
e me vejo no meio de um espaço vazio. Um vazio de escuridão. Aquela sensação dura uma eternidade.
Então, a voz de meu vizinho me traz de volta à minha cela.

— Não há como você ter sobrevivido àquele ataque. Já parou para contar quantas perfurações de faca
existem no seu corpo? Lamento dizer, mas você não teve sorte.

— Q-quem é você?

— Eu sou um prisioneiro. Assim como você. Estou preso aqui desde 1946. Fui morto algum tempo
depois, pelos meus companheiros, assim aconteceu com você. Eu já devia estar fora dessa prisão, mas
vou ficar aqui para sempre, assim como você.

— E-eu estou m-morto?

— Seu corpo, sim. Mas, infelizmente, sua alma não teve essa sorte. Pelo menos, se você tivesse
morrido mesmo, se tivesse deixado de existir, você não estaria condenado a vagar por esse prédio por
toda a eternidade.

Coloco a mão nos diversos furos de faca pelo meu corpo. Meu sangue ainda está úmido. Olho para
um pequeno espelho na parede da minha cela e não vejo minha imagem refletida. Eu estou mesmo morto.
— E mesmo quando demolirem esse presídio, nós vamos continuar presos aqui, na memória desse
prédio — meu companheiro continua. — Essas celas em que estamos não são feitas de tijolos. Elas são
eternas.

Olho para a janela e não consigo mais ver o pátio do presídio ou o morro que eu conseguia enxergar
além dos muros. Não há nada do lado de fora da minha janela. Está tudo escuro. Grito por ajuda e meus
gritos ecoam pelo prédio vazio. Sei que ninguém vai me levar embora. Eu não vou ser transferido. Minha
pena agora é perpétua.


O ASSASSINO HESITANTE

Wanderson não sabia dizer exatamente quando começou a sentir vontade de matar. Com oito ou nove
anos, ele já gostava de matar bichos. Matou seus peixes a sangue frio. Todos os cinco peixinhos dourados
e dois cascudos de seu aquário. Pescou-os, colocou-os no chão e esmagou-os com seu pé.

Depois, matou seu hamster. Pegou o ratinho e enforcou-o com um cadarço de tênis. Quando já não
havia mais bichos dentro de casa para matar, passou a satisfazer-se com filhotes de cachorro e gato que,
de vez em quando, apareciam na sua rua. Seu método de assassinato favorito era encurralar o animalzinho
e apedrejá-lo até a morte.

Ele lembrava-se perfeitamente, no entanto, quando ele sentiu um impulso para fazer sua primeira
vítima humana. Wanderson estava com 15 anos e apaixonou-se por uma menina de sua escola. Mas, ao
mesmo tempo em que surgiu a paixão, apareceu o desejo animalesco de assassinar a menina.

Ele não tinha nada contra a menina, porque ela até gostava dele e o tratava bem. Era simplesmente
uma vontade irracional de agarrar o pescoço dela e sufocá-la até que ela morresse.

Isso lhe causou muito sofrimento. Como ele poderia estar apaixonado pela menina e, ao mesmo
tempo, querer acabar com a vida dela? Mas era algo mais forte que ele. Era um pensamento que ele não
conseguia controlar.

Quando ele encontrava-a na sala de aula, seu primeiro pensamento era beijar sua boca. Mas logo em
seguida, uma ideia doentia invadia sua cabeça e ele não conseguia parar de pensar no assassinato da
garota.

No final, ele já não conseguia parar de pensar naquilo. Ele tentava se distrair com outros
pensamentos, contava até 50, resolvia equações mentalmente e buscava imaginar-se longe dali, em uma
praia deserta. Mas seu instinto assassino prevalecia e ele logo voltava a pensar na morte da menina.

Um dia, ele decidiu que tinha que matá-la. Era a única forma de tirar aqueles pensamentos da sua
cabeça. Ele planejou tudo com muito cuidado. Combinou de estudar com ela, em sua casa, em um dia que
seus pais não estavam. Chamou outros dois colegas, para que ela não desconfiasse de nada.

Em cima da hora, ele desmarcou com os outros colegas, mas não falou nada para a menina. Ela entrou
na sua casa, perguntou pelos outros dois e Wanderson disse que eles já deviam estar chegando.

Wanderson ofereceu um refrigerante e pediu que ela se sentasse no sofá. Ele foi até a cozinha, pegou a
bebida e uma faca de cortar carne. Mas quando ele voltou para a sala e viu o rosto da menina, ele
desistiu.

Na meia hora seguinte, enquanto a menina esperava a suposta chegada dos dois colegas, ele ainda
pegou e largou a faca mais duas vezes. Não adiantava, ele não teria coragem de matá-la.

Como os colegas não chegavam, a menina achou melhor ir embora e marcar outro dia para o estudo.
Wanderson não tentou convencê-la a ficar. Apenas despediu-se dela. Estava frustrado. Havia falhado na
sua primeira tentativa de matar.

A paixão e a vontade de matar a menina acabaram passando. Mas, aos 16 anos, seu desejo assassino
voltou com força total, quando ele retornava do curso de informática para casa. Ele viu uma mulher mais
velha, de cerca de 30 anos, sentada sozinha no fundo do ônibus, e passou a sentir uma vontade
incontrolável de enfiar a cabeça dela num saco plástico e asfixiá-la.

Já estava de noite e a mulher saltou do ônibus em um ponto relativamente deserto. Wanderson desceu
atrás e seguiu-a por um tempo. Mas, de repente, a mulher parou para pegar alguma coisa na bolsa e ele
amarelou. Passou direto pela potencial vítima, sem saber o que fazer. Ele ainda esperou mais à frente, na
esquina seguinte, mas quando a mulher passou, falando ao celular, Wanderson novamente ficou sem
reação, paralisado pelo medo.

Depois disso, ele passou a sentir vontade frequente de matar, mas sempre desistia em cima da hora.
Ele não escolhia suas potenciais vítimas. O que acontecia era que, de repente, ele olhava para alguém e
seu instinto assassino aflorava. Ele não conseguia entender por que sentia vontade de tirar a vida daquela
pessoa. A ideia apenas surgia e o consumia de tal modo que ele não conseguia tirar aquilo da cabeça.

Desde seus 15 anos, depois que ele fracassou em matar sua paixão adolescente, ele nunca mais teve
desejo de matar ninguém de seu círculo de amizades. Ele não entendia por que, mas o impulso agora só
aparecia com pessoas desconhecidas, sempre mulheres. Mulheres que ele via no ônibus, no shopping e na
rua.

Não era um desejo sexual, ele simplesmente sentia que deveria matá-las. O curioso, no entanto, era
que ele nunca tinha coragem de atender a seu desejo e assassinar as vítimas. Ele sempre chegava muito
perto de agir, mas sempre desistia.

Ele não ficava o tempo inteiro pensando em matar. Mas, em geral, depois que seu impulso assassino
escolhia a vítima, a vontade ficava martelando na sua cabeça por vários dias seguidos.

Como eram pessoas desconhecidas, ele nunca as via novamente. Se ele perdia a chance de matar, ele
ficava frustrado por muito tempo, sem a possibilidade de tentar de novo com aquela vítima.

Aos 20 anos, cinco anos depois de muitas frustrações, ele decidiu que teria que matar alguém. Dessa
vez, ele decidiu fazer um planejamento de antemão. Ele tinha um velho carro e conhecia as ruínas de uma
velha fazenda abandonada no Grande Rio. As ruínas ficavam próximas a um aglomerado com poucas
dezenas de casas humildes, onde seus avós moravam e que ele costumava frequentar quando criança.

Fosse qual fosse a vítima escolhida por seu “eu assassino”, ele a levaria para lá e a mataria.

Antes mesmo de saber quem seria sua vítima, ele foi e voltou à fazenda várias vezes, para que nada
saísse errado. Naquelas ruínas isoladas, ele teria tempo suficiente para reconquistar sua coragem, caso
amarelasse de novo.

Só teria que garantir que conseguisse levar sua vítima até seu carro e não arruinasse tudo como das
últimas 20 vezes.
Levou mais de um mês até que ele sentisse aquele impulso irracional de novo. Dessa vez ele estava
andando do trabalho para o ponto de ônibus, à noite, quando viu uma jovem dobrando a esquina e
caminhando na calçada oposta.

Como sempre, ele não conseguia entender por que, mas ficou se imaginando fazendo um grande rasgo
na barriga dela e deixando as tripas saírem pelo buraco. Ele não tinha controle algum sobre aquela
vontade. Era seu impulso assassino implorando para ser saciado.

Wanderson acompanhou a jovem, à distância, por três quarteirões até que ela entrou em uma casa.

Ele ficou rondando pelo local, por cerca de três horas, até que as luzes da casa se apagaram. Então,
voltou para o ponto de ônibus e seguiu para sua casa.

No dia seguinte, no mesmo ponto de ônibus, ele ficou esperando a jovem passar pela rua. Ela
demorou mais tempo do que na noite anterior. Wanderson teve que deixar cinco ônibus passarem.

Andando pela calçada oposta, ele seguiu-a até a mesma casa do dia anterior. Tinha certeza de que ela
morava ali.

Um dia depois ele resolveu ir ao trabalho de carro. Ele estacionou bem próximo da esquina de onde a
moça costumava aparecer. Quando saiu do trabalho, ele andou até o carro e esperou em pé encostado no
muro de uma casa. Nos dois últimos dias, não conseguia parar de pensar na morte da mulher. Antes de
chegar ao carro, ele tinha parado num bar e bebido uma dose de cachaça, para criar coragem para a
abordagem. Ele não aguentava mais ser um assassino frustrado, simplesmente porque seu superego ficava
censurando seu ID na hora H.

O momento chegou quando a jovem dobrou a esquina. Ele ainda titubeou alguns segundos e, por um
instante, achou que ia vacilar de novo. Mas, então, agarrou a vítima, tapou sua boca com um pano cheio
de clorofórmio e entrou com ela no assento traseiro do carro. Quando ela já estava inconsciente com a
inalação do produto químico, ele saiu e olhou para os lados. Só havia um casal namorando no ponto de
ônibus, mas eles estavam de costas e não perceberam a ação.

Wanderson sentou-se no assento do motorista e saiu com o carro vagarosamente, para não chamar a
atenção de ninguém. Seu coração estava disparado. Sua mente não sossegava um só instante, imaginando
o momento em que ele tiraria a vida daquela pessoa.

Demorou uma hora e meia até chegar à ruína. O portão, de madeira, estava fechado apenas com um
arame amarrado. Depois de tirar o arame, ele abriu-o com um chute e dirigiu o carro até a sede da
fazenda.

A moça ainda estava desacordada. Com dificuldade, ele puxou-a do assento e buscou erguê-la nos
braços. Nas primeiras tentativas, ele não conseguiu levantá-la. Suando, ele bufou. A vítima mexeu-se
como se fosse acordar.

Wanderson reuniu suas forças e tentou erguê-la mais uma vez. Desta vez, ele conseguiu, mas quase
caiu para trás.

Não imaginava que uma mulher magra pudesse pesar tanto. Com muito esforço, ele carregou-a até um
cômodo imenso, que devia ser a sala da antiga fazenda, e colocou-a, sentada, escorada em uma pilastra.

No carro, ele pegou uma corda que usou para amarrar a mulher. Ela mexeu-se novamente. Wanderson
estava radiante. Pela primeira vez, acreditava que finalmente iria até o fim. Olhou para o rosto da mulher
e não sentiu pena ou qualquer arrependimento. Não sabia se era o efeito da cachaça ou se tinha finalmente
amadurecido como assassino, mas ele realmente iria matar sua primeira vítima.

Ele voltou ao carro e lá pegou uma mochila de camping, onde tinha guardado várias ferramentas que
poderia usar para torturar e matar sua vítima. A mulher acordou meio grogue e, só então, ele percebeu
como ela era bonita. Ainda não tinha prestado a devida atenção nela.

Seu instinto assassino simplesmente apontou a seta para ela e Wanderson cegamente seguiu seu
impulso. Mas ele não tinha reparado no rosto dela. Sua primeira vítima era linda e ele ficou, de uma
forma doentia, satisfeito com aquilo.

— Onde estou? — perguntou a jovem, ainda sem conseguir se situar direito. — Eu estou amarrada?
Por quê?

Ela devia ter a mesma idade de Wanderson, mas sua voz era doce, como de uma menina. Ele nada
respondeu, apenas sentou-se em dois tijolos no meio da sala e ficou sorrindo para ela.

A moça tentou se desvencilhar da corda e começou a gritar por socorro. Ele continuou olhando para
ela e pôde reparar que, quanto mais o efeito entorpecente ia passando, mais assustada sua vítima ficava.
O desejo assassino simplesmente assumiu o controle e ele sentia prazer com o medo da mulher.

Ele abriu a mochila e viu o que tinha à sua disposição. Ele primeiro pegou um serrote e mostrou para
a mulher, que deu um grito de pavor.

— Me solta! Me solta, seu maluco!

Ele não conseguia parar de sorrir. Wanderson se tornaria um assassino, algo que sua mente doentia
sempre desejou, mas que ele nunca teve coragem para concretizar. Ele aproximou-se dela e arrastou o
serrote pela sola do pé da mulher.

A lâmina serrilhada feriu levemente o pé e logo o sangue começou a escorrer. Ela gritou mais alto.
Wanderson não se incomodou. Seu lado animal tinha tomado conta de si e ele nem estava preocupado se
alguém ouviria os gritos dela.

Voltando para a mochila, ele guardou o serrote e pegou uma faca. Era uma faca de churrasco. Ele
encostou o objeto afiado na barriga dela, enquanto ela se debatia. Com o desespero da vítima, a faca
acabou cortando sua pele. Mais sangue escorreu.

Desta vez, ele riu alto. Achava que podia ficar torturando-a a noite inteira, sem se entediar.

— Qual seu nome, coisinha linda?

— Jé... Jéssica... Por favor, me deixa ir embora, moço. Eu só quero ir embora.

— Jéssica, sinto te dizer, mas você não vai sair daqui, meu anjo.
Wanderson deu um tapa na cara dela e gostou. Então, ele deu um soco e depois, uma pancada ainda
mais forte. Ela não parava de gritar.

Ele andou até a mochila e, desta vez, voltou com um martelo e um prego. Ela deu um grito agudo ao
ver aqueles objetos. Ele encostou o prego no ombro dela e ela parou de se sacudir, com medo de se
machucar mais.

— Por favor... por favor... por favor... — ela ficou repetindo, dando uma pausa nos gritos.

Um grito ainda mais agudo saiu da garganta da jovem quando o martelo empurrou o prego para dentro
do osso de seu ombro. E depois, ela desmaiou. Wanderson parou de rir um instante. Não era para morrer
tão rápido. Ele pegou o pulso da mulher e viu que seu coração ainda estava batendo. Sua vítima
provavelmente tinha desmaiado com a dor. Ele deu dois tapas na cara dela, mas ela não despertou.

Com o martelo na mão, ele levantou-se e ficou olhando a mulher desmaiada à sua frente. Queria que
ela despertasse logo, para voltar a torturá-la.

Alguns minutos depois, ainda com os olhos fechados, ela sussurrou algo. Estava despertando. Ele
aproximou-se e ela continuou a falar bem baixinho.

Como ainda não era possível ouvir o que ela dizia, ele precisou chegar seu ouvido perto da boca da
jovem. Nesse momento, ele sentiu dentes mordendo com força a lateral da sua cabeça. Eles rasgaram sua
pele e arrancaram sua orelha. Aquela dor súbita fez com que ele soltasse um berro e se afastasse da
mulher.

Wanderson colocou as mãos sobre a ferida e percebeu que sangrava sem parar. A mulher cuspiu a
orelha decepada e deu uma risada estridente, que ecoou pela velha casa. Quando ele voltou a encarar a
jovem, viu que os olhos dela estavam abertos, mas estavam completamente brancos. Não era possível ver
a íris ou a pupila. Tudo estava branco.

Ela continuava a rir alto. Era um riso que provocava calafrios em Wanderson. Ele arrastou-se para
mais longe dela.

Então, ela parou de rir e fitou-o, em silêncio. E abriu sua boca. Ela abriu tanto, que parecia que sua
mandíbula tinha se soltado do resto da cabeça.

Como se fosse uma cobra, a língua da mulher saiu serpenteando da boca e desceu quase até seu peito.

Instintivamente, ele segurou o martelo com mais força. O impulso assassino parecia tê-lo abandonado
e ele estava com medo.

Ela percebeu que Wanderson estava assustado e voltou a rir. Era uma gargalhada macabra. O que
aconteceu com essa menina?, ele pensou.

A língua dela, tão longa que não parecia humana, ergueu-se na direção de Wanderson. Ele tentou
levantar-se, mas não conseguiu. Alguma força sobrenatural mantinha-o sentado.

Então, ela abaixou a cabeça, dobrou-se como uma contorcionista e começou a morder a corda que
prendia sua cintura e suas mãos. Wanderson olhava espantado. Ele não conseguia acreditar que o corpo
humano podia adotar uma posição tão extrema. Parecia que a coluna vertebral dela e suas costelas eram
feitas de gelatina.

Enquanto ela roía a corda, emitia sons animalescos. Até que ela conseguiu se livrar das amarras e
colocou-se de quatro, encarando Wanderson. Uma baba viscosa escorria da boca da jovem.

Ela arqueou seu corpo, como se fosse um felino em posição de ataque e deu mais uma daquelas
risadas estridentes.

Wanderson tentou levantar-se mais uma vez, sem sucesso, enquanto aquela mulher — se é que podia-
se chamar de mulher aquela criatura — se aproximava dele, andando com as solas dos pés e as palmas
das mãos no chão, e com sua coluna absurdamente encurvada. Parecia um animal.

Wanderson, que estava preso ao chão, tentou se arrastar para longe dela, em vão. Então, ela chegou o
rosto bem perto do seu. Seus olhos completamente brancos, aquela baba escorrendo pela boca, a pele
pálida, um hálito com cheiro de tabaco e cachaça e um perfume de rosas, que parecia cheiro de
cemitério.

Com uma voz rouca, quase masculina, a mulher perguntou:

— Por que eu estava amarrada e machucada?

Wanderson mal conseguia falar.

— Jéssica?!

A mulher riu como uma insana.

— A Jéssica não está aqui — respondeu, depois de terminar a risada.

Mantendo uma das mãos e os dois pés no chão, ela usou sua segunda mão para tirar o prego de seu
ombro.

— Por acaso, foi você que colocou isso no meu ombro?

— Eu sinto muito, Jéssica...

Ela pôs-se de pé, em um movimento súbito, ao mesmo tempo em que gritava:

— Eu já falei que a Jéssica não está aqui!!!

Wanderson ainda continuava grudado no chão, preso por uma força invisível.

— Achei que esse fosse o seu nome...

— Jéssica era a pobre criatura que você estava torturando. Ela foi só o canal que eu usei para
aparecer aqui.

— Quem é você? — perguntou Wanderson, aterrorizado. Seu impulso assassino tinha mesmo o
abandonado e o deixado a sós com aquela criatura assustadora.

Outra risada fez gelar os ossos de Wanderson.

— Rainha das Sete Encruzilhadas, Rosa Caveira, Pombagira. Eu tenho vários nomes...

Wanderson, que ainda estava sentado, tentou fazer o sinal da cruz, mas antes que pudesse concluí-lo,
foi derrubado no chão.

— Por favor...

Então, a criatura voou sobre ele e, com suas unhas, rasgou o pescoço de Wanderson.

— Por fa...av... — ele tentou dizer, enquanto o sangue jorrava.

A mão direita da criatura pegou o prego e, sem precisar de um martelo, enterrou-o no olho dele.

Wanderson soltou um grito. A Pombagira soltou uma risada.

A família de Wanderson comunicou seu desaparecimento à polícia no dia seguinte, mas seu corpo
nunca foi encontrado.


ÍNDIOS

O que você vai ler a seguir é a reprodução de um diário, assinado pelo doutor Gláucio Ribeiro,
pesquisador da UFRJ. O documento foi encontrado por uma equipe de resgate do Corpo de Bombeiros do
Pará enviada ao acampamento “Xavante”, às margens do Rio Xingu, ao sul do município de São Félix do
Xingu.

A busca foi iniciada depois de um pedido de socorro emitido pelo equipamento de rádio do
acampamento. Apesar disso, quando as equipes de resgate chegaram ao local, ninguém foi encontrado.

Os pertences dos pesquisadores e do pessoal de apoio foram recolhidos pelos bombeiros e entregues
às autoridades policiais.

***

2 de julho de 2015

Acordei cedo, depois de passar a noite sem conseguir dormir direito. Cheguei a ligar a televisão, mas
nada na programação me interessou. Então, com a adrenalina a mil, resolvi desistir do sono e sentei para
começar a escrever nesse diário.

Parto hoje para um trabalho no sul do Pará e quero deixar tudo registrado nesse caderno, que será
meu “diário de bordo”. Sou antropólogo, especialista em culturas indígenas, e há pelo menos dez anos
estudo os povos da região do Xingu. Interesso-me por culturas tradicionais desde bem jovem. Lembro-me
de brincar com meu irmão de forte apache. Eu sempre queria ser o índio. Meu irmão não reclamava,
porque ele queria ser sempre o soldado do forte.

A terceira língua que eu aprendi, depois do português e do inglês, foi o nheengatu, um “parente” mais
moderno do tupi que os índios brasileiros falavam quando os portugueses chegaram por aqui. Depois,
aprendi a falar a língua guarani, com amigos gêmeos que estudavam na minha turma, no ensino médio, e
tinham nascido em uma tribo no Mato Grosso do Sul.

As pessoas sempre me perguntaram para que eu aprendia essas línguas. Onde eu iria usar esse
conhecimento se nem os índios falavam mais esses idiomas, eles questionavam.

A verdade é que eu nunca usei mesmo essas línguas nas ruas ou para me comunicar com meus amigos,
à exceção dos gêmeos guaranis, com quem convivi por três anos.

Mas, por outro lado, elas foram bastante úteis, quando ingressei no curso de ciências sociais, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e, depois, nas minhas pós-graduações na área de
antropologia. E certamente foram vitais quando me candidatei a um cargo de pesquisador no Museu
Nacional da UFRJ.

Na minha carreira acadêmica, acabei aprendendo mais duas línguas: o xavante e o caiapó. Nada mal,
né?

Mas voltando ao trabalho que vamos fazer no sul do Pará, essa será minha quinta missão à Amazônia.
Para esse trabalho, vou me juntar a outros três pesquisadores do Museu Nacional: meu ex-orientador do
doutorado e hoje colega, doutor Ariston, e duas arqueólogas, as doutoras Karen e Inácia.

O objetivo da missão é fazer o estudo de achados arqueológicos em uma área às margens do Rio
Xingu, onde será construído um parque de extração de gás de xisto. O trabalho científico é uma exigência
das autoridades brasileiras para liberar a implantação da unidade, que vai tirar o gás do subsolo.

No reconhecimento do terreno, funcionários da empresa que construirá o parque energético relataram


ter encontrado pedaços de cerâmica, que podem ser de grande interesse para a compreensão das culturas
indígenas que habitam ou habitaram esse local.

Nesse momento, estou terminando de arrumar minha mochila. Vamos passar cerca de um mês no local.
Pode ser que encerremos o trabalho antes disso, ou que o trabalho demore até mais. Vou levar alguns
livros, cadernos de anotação, roupas impermeáveis e muito repelente.

Nosso voo sai daqui do Rio de Janeiro na tarde de hoje. Já fiz o check-in do voo pela internet e nem
preciso chegar tão cedo ao aeroporto. A expectativa é chegar ao local da pesquisa apenas no dia 4 de
julho.

Vou ver se consigo descansar um pouco, porque a viagem será longa.

4 de julho

Finalmente chegamos ao nosso acampamento, no sul do Pará. A viagem foi longa e estamos todos
exaustos. Nosso voo fez uma conexão demorada em Brasília. Ali, antes de entrar no avião para Marabá,
no Pará, eu consegui tirar um cochilo, na sala de embarque. Chegamos em Marabá já de madrugada.
Fomos para um hotel, que era uma verdadeira espelunca. Só consegui dormir umas quatro horas, apesar
de muito cansado, porque, logo cedo, um carro da construtora veio nos buscar no hotel, para nos levar
para o sul do Pará. A viagem de carro até a sede do município de São Félix do Xingu, mais ao sul do
estado, demorou quase nove horas.

Chegamos em São Félix no final da tarde. Só passamos uma noite na cidade, mas, pelo menos dessa
vez, consegui dormir um pouco mais. Saímos logo cedo em direção ao nosso acampamento. Não há
estradas até aqui. Estamos no meio da Floresta Amazônica. Só se chega aqui de barco ou de helicóptero.

Viemos de voadeira, uma lancha muito usada aqui na Amazônia, e a viagem durou algumas horas.
Apesar do cansaço que estou sentindo, o cenário é inspirador e isso me dá forças para escrever esse
diário.

A noite amazônica é hipnótica. Nesse momento, estou sentado na raiz de uma árvore, olhando para o
reflexo da lua nas águas do Xingu. Meus ouvidos captam sons de grilos, cigarras, corujas e pássaros,
todos juntos, como se fizessem parte de um coro selvagem.

O acampamento onde estamos é algo muito simples, sem qualquer tipo de conforto. Há dois
funcionários de apoio, que dividem o espaço com a gente. Um índio caiapó, que nasceu aqui na região e
conhece a mata. Foi ele quem nos trouxe de barco e também será nosso guia. Além disso, há um
funcionário da empresa que construirá o parque energético “Xavante”. Ele é o “gerente” do
acampamento. Está aqui para acompanhar nosso trabalho e fazer nossa ponte com a empresa, caso seja
necessário.

Já montamos nossas barracas e uma tenda de lona para armazenar o material coletado. Além dos
abrigos que montamos, o acampamento tem uma pequena oca de madeira e teto de palha, que serve de
morada para o caiapó, uma tenda de lona que serve de dormitório e escritório para o funcionário da
empresa e um pequeno banheiro improvisado também de madeira. Também há uma mesa ao ar livre, onde
nós faremos nossas refeições.

Vou encerrar por aqui o registro de hoje. Estou muito cansado e preciso de uma boa noite de sono.
Amanhã vamos dar uma olhada nos achados arqueológicos.

5 de julho

Os mosquitos não me deixaram dormir na noite passada. Apesar de ter me enchido de repelente, os
pernilongos invadiram minha barraca e ficaram zunindo no meu ouvido. Pude contar pelo menos três
picadas.

Os mosquitos são tão ferozes que eles nem parecem se intimidar com repelentes. A Karen, que está
em sua primeira missão na Amazônia, também reclamou dos mosquitos e disse que só conseguiu tirar um
cochilo rápido. Os mais velhos da expedição, Ariston e Inácia, não fizeram nenhuma reclamação e só
riram do mau humor da novata. Ariston perdeu as contas de quantas vezes viajou pela Amazônia. São 30
anos estudando os índios amazônicos. Inácia também já faz missões na Amazônia há pelo menos duas
décadas.

Tomamos um café da manhã improvisado, à base de beijus que nosso guia caiapó preparou e de café
com açúcar. Paiakan é o nome do nosso novo amigo. Ele é simpático e gosta de puxar assunto com a
gente. Disse que nasceu na região, mas passou parte da adolescência em Belém. Voltou para sua aldeia
para se casar. Sua tribo vive alguns quilômetros rio acima.

O outro membro da equipe de apoio, senhor Roberto, acordou mais tarde e só chegou para tomar café
da manhã quando já estávamos indo olhar os achados arqueológicos. Roberto é paraense, mas não se
sente muito à vontade no meio da floresta. Ele diz que viveu toda sua vida em cidades, já tendo passado
por Belém, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, mas veio para o acampamento por causa do bom salário
oferecido.

Depois do café, Paiakan nos levou até os achados arqueológicos. Inácia reclamou quando viu que
eles haviam sido tirados de seu local original. O índio disse que, quando chegou ao acampamento, cerca
de um mês atrás, os objetos já tinham sido movidos. Provavelmente foram os funcionários da construtora.
Analisamos os achados por um bom tempo. A maioria do conjunto era formada por potes de barro,
mas também havia restos de pequenos ossos de animais. Karen tirou fotos e começou a catalogá-los.

Logo depois, descobrimos que, ali perto, havia mais artefatos. Eles estavam semienterrados e não
tinham sido movidos pelo pessoal da construtora. Era um conjunto de artesanato interessante.

Percebemos que não eram artefatos caiapós, o povo que habitava aquelas terras. Paiakan confirmou
que não se pareciam em nada com as panelas e vasos usados em sua aldeia. Eu complementei, dizendo
que, na verdade, aquelas cerâmicas eram diferentes de qualquer padrão que eu já tivesse visto, inclusive
de outros povos, que habitavam aquela região da Amazônia.

Ao final da manhã, recolhemos os objetos que já tinham sido manuseados pelos funcionários da
construtora e os levamos de volta para o acampamento, que ficava a dois minutos de caminhada dos
achados arqueológicos.

No almoço, comemos um tucunaré frito, que havia sido pescado vinte minutos antes pelo Paiakan.
Estava delicioso. Depois, Ariston e eu fomos ambos descansar, enquanto Inácia e Karen seguiram de
volta ao local onde estavam os objetos semienterrados. À tardinha, fui até o local das escavações e vi
que elas tinham encontrado artefatos semelhantes aos primeiros, mas que estavam quase intactos.

Antes de encerrar o dia de trabalho, isolamos a área e esticamos um pedaço de lona sobre a
escavação.

À noite, nos sentamos em volta da fogueira e conversamos sobre os achados. Quem seriam os autores
daqueles trabalhos de artesanato? Ariston estava tão perplexo quanto eu, porque não conhecíamos
aqueles padrões artísticos, apesar de ambos sermos especialistas nos povos daquela região.

Inácia disse acreditar que pertencessem a algum povo já extinto. Ainda seria necessário fazer exames
mais detalhados no laboratório da universidade, mas ela se arriscava a dizer que era algo que precedia a
colonização portuguesa.

6 de julho

O professor Ariston e eu vasculhamos o entorno do acampamento com Paiakan, em busca de


possíveis novos achados, enquanto as duas arqueólogas continuaram trabalhando na área de escavação.
Choveu um pouco na manhã de hoje. O calor e a umidade dentro da mata tornam o clima quase
insuportável.

Encontramos uma imensa jiboia, comendo um animal, que parecia ser um pequeno macaco. Paiakan
não conseguiu identificar a espécie da presa. Quando chegamos, a cobra já estava terminando de engolir
sua refeição. Ficamos ali hipnotizados, por um tempo, com aquela cena. Depois ainda avistamos um casal
de tucanos se bicando na copa de uma árvore.

Nosso amigo índio nos ensinou algumas técnicas de sobrevivência na selva. Muitas delas já
conhecíamos, de nossos contatos anteriores com caiapós e outros povos da região, mas, mesmo assim,
deixamos que nosso anfitrião as mostrasse.
Depois de caminharmos por cerca de três horas, não vimos nada de interesse arqueológico ou
antropológico naquela região.

Quando voltamos ao local da escavação, Inácia e Karen já tinham avançado bastante nos trabalhos e
estavam tirando fotos e catalogando os objetos. É um trabalho demorado, que precisa ser feito com
cuidado para não danificar nada. Ariston e eu as ajudamos nas escavações.

Agora, à noite, estou de volta à margem do rio Xingu. Não canso de admirá-lo. É um rio majestoso.

9 de julho

Ariston e eu passamos os últimos quatro dias, esquadrinhando o terreno em volta do acampamento,


em busca de novos achados, enquanto a Karen e a Inácia continuaram trabalhando nas escavações. Nos
três primeiros dias, foram buscas infrutíferas. Mas, no quarto dia, tivemos muita sorte.

Foi o Ariston que fez a descoberta, ao pisar em um pedaço de osso, numa trilha da floresta. Ele
inicialmente achou que tinha pisado num galho seco. Só depois viu que era um osso. Paiakan e eu
corremos para olhar, acreditando que se tratava do osso de um animal. Mas era um osso humano, um
pedaço de fêmur.

O professor e eu chegamos mais perto para analisar aquilo. Tirei um facão da mochila e comecei a
desmatar a área próxima de onde tínhamos encontrado o osso. Ainda estava decepando galhos e arbustos
quando ouvi o grito de surpresa de Ariston. Havia vários ossos humanos semienterrados em uma camada
de terra escura. Vi parte de pelo menos dois crânios saindo da terra. Paiakan ficou nervoso. Ele pediu
para que não mexêssemos naqueles ossos.

Era uma espécie de cova coletiva, mas os corpos não tinham sido enterrados. Pareciam ter sido
simplesmente largados ali, naquele local, e só tinham sido cobertos por finas camadas de material
orgânico e terra sedimentadas ali com o tempo.

Paiakan se afastou, sem querer olhar os restos humanos. Ariston aproximou-se das ossadas e disse
que aquele era um achado incrível. Seriam esses os responsáveis pelos artefatos de cerâmica que
encontramos nas escavações?

Eu não conseguia conter minha empolgação. Achei que sairíamos dali apenas com aquelas peças de
cerâmica, mas tínhamos encontrado uma cova coletiva.

Aquelas ossadas estavam a cerca de 500 metros de distância das cerâmicas. Havia a possibilidade de
que aqueles esqueletos pertencessem à mesma tribo que tinha feito aquelas peças de artesanato.

Depois da excitação inicial da descoberta, fomos chamar Inácia e Karen. Não queríamos mexer
naqueles ossos antes da chegada das especialistas.

Quando as duas viram a nossa descoberta, não conseguiram esconder o entusiasmo. Karen fez várias
fotos e disse que elas deveriam começar a trabalhar naquele local imediatamente. Inácia concordou e
levou seus equipamentos de escavação até lá.
No final do dia, as arqueólogas recolheram uns poucos pedaços de ossos e voltamos para o
acampamento. Inácia disse que seria preciso fazer mais exames para tentar datar aquilo, mas apostava
que as ossadas eram bastante antigas.

Mais uma vez sentamos em volta da fogueira depois do jantar: um ensopado feito pela Karen. Paiakan
voltou a falar sobre os ossos. Ele estava incomodado com aquilo e disse que não deveríamos mexer nas
pessoas mortas. Inácia disse que era exatamente isso que arqueólogos costumavam fazer e todos rimos.
Menos o caiapó.

Hoje, decidi escrever o diário deitado na minha barraca. O céu está nublado, então, provavelmente
não verei minha amiga lua refletida no Xingu.

10 de julho

Passamos o dia escavando a cova coletiva e catalogando os pedaços de ossos encontrados. Pelo
menos cinco crânios foram encontrados, um deles de criança, além de outras partes de corpos humanos.
Quando voltamos para o acampamento já era noite. Um homem idoso estava com Paiakan. Eles
conversavam na língua caiapó. Karen e Inácia ficaram surpresas em ver aquele visitante.

Quando chegamos, eles pararam de conversar. O idoso estava extremamente nervoso. Paiakan
também parecia angustiado.

Ariston chegou perto do visitante e cumprimentou-o, em caiapó. O professor era fluente na língua
indígena. Eu, que conhecia um pouco da língua, também falei com o senhor. Ele era sogro de Paiakan.

Nós o convidamos para jantar com a gente. Ele agradeceu, mas disse que tinha apenas ido até a
cidade de São Félix, comprar algumas ervas na feira, e que precisava voltar para a aldeia. Ariston
insistiu para que ficasse, porque já era noite. O velho indígena apenas respondeu que estava acostumado
a navegar à noite. Ele despediu-se e caminhou em direção ao rio, onde sua lancha o esperava. Paiakan
acompanhou-o e depois voltou, ainda angustiado.

Karen e Inácia já tinham voltado para suas barracas para se arrumar para o jantar. Ariston e eu
perguntamos por que seu sogro estava tão nervoso. Paiakan tentou desconversar, mas o professor disse
que tinha ouvido o final da conversa. Eles falavam sobre as ossadas encontradas na floresta.

Paiakan respondeu, então, que seu sogro era o pajé da aldeia e que ele achava não devíamos
perturbar os mortos. O índio disse apenas que concordava com o sogro dele. Os espíritos dos mortos
deveriam ser deixados em paz.

Fomos interrompidos por Roberto, o funcionário da construtora, que disse que o jantar estava pronto.
Hoje ele tinha ficado de preparar a comida e fez um macarrão. Comemos e não voltamos mais àquele
assunto durante a noite.

11 de julho
Hoje eu acordei com o grito da doutora Inácia. Ela estava irritada. Os objetos que tinham sido
catalogados e armazenados em caixas, dentro de uma tenda específica para isso, foram espalhados no
centro do acampamento.

A exceção eram os ossos que a gente tinha marcado com etiquetas e recolhido no dia anterior. Esses
não estavam espalhados e nem guardados nas caixas. Eles tinham sumido. Paiakan também saiu de sua
barraca e nós dois olhamos para ele. Karen e Ariston apareceram em seguida.

Inácia estava muito irritada. Eu puxei Paiakan para um canto e perguntei se ele sabia quem havia feito
aquilo. Ele respondeu que não, mas eu não consegui acreditar. Ele, que tinha sido simpático e
comunicativo com a gente nos primeiros dias, ficou esquisito desde que encontramos as ossadas e
pareceu ainda mais estranho depois que o velho pajé conversou com ele na noite anterior.

Perguntei se ele tinha algo a ver com aquilo. Ele ficou bravo comigo. Disse que foi dormir na mesma
hora em que todo mundo e só tinha acordado depois de ter ouvido o grito da Inácia. Eu, então, voltei para
o centro do acampamento, onde os artefatos haviam sido jogados.

Inácia se abaixou para começar a recolher o material esparramado, sendo seguida por mim, Ariston e
Karen. Paiakan ficou só olhando. Seu olhar estava mais do que estranho. Ele parecia estar com medo.

Por sorte, todas as peças ainda estavam etiquetadas, então o trabalho de catalogação não foi perdido.
Levamos cerca de 20 minutos para colocar tudo nas caixas. Inácia estava um pouco mais calma, mas pude
perceber que ela também suspeitava de Paiakan.

Em seguida, fomos até o local onde estavam as ossadas. Não fiquei surpreso ao ver que os ossos
tinham sido colocados de volta ao lugar. Provavelmente, o sogro de Paiakan tinha-o orientado a colocar
os restos mortais de volta ao seu local de origem, para não “perturbarmos os espíritos dos mortos”. Eu
levei os ossos de volta para o acampamento e recoloquei-os dentro das caixas, enquanto Ariston, Karen e
Inácia deram prosseguimento aos trabalhos de escavação da cova.

Até o final do dia, já tinham sido encontrados os ossos de pelo menos mais três pessoas. Um deles
tinha uma bala alojada no crânio. Inácia pegou o osso com cuidado e viu que era um projétil usado em
mosquetes antigos. As duas arqueólogas se entreolharam e vibraram com a descoberta. Aquilo certamente
será útil para datar as ossadas.

12 de julho

No dia seguinte, as escavações continuaram. Mais esqueletos foram encontrados e, entre a costela de
um deles, havia sido cravada uma espada. Inácia deu um grito de satisfação e sorriu. Era uma descoberta
extraordinária.

A peça era, certamente, do período do Brasil Colonial. Nós apostávamos que era da época dos
bandeirantes, os exploradores que entraram no interior do país procurando riquezas minerais e
aprisionando índios.

No decorrer do dia, outros dois punhais de metal, certamente do mesmo período, foram encontrados
junto das ossadas. Só paramos os trabalhos quando a escuridão ficou total. Voltamos para o acampamento
satisfeitos, com as armas e os ossos que tinham sido feridos pelos artefatos.

Comunicamos felizes as descobertas para o Roberto. Ele não compartilhou do nosso entusiasmo de
cientistas, mas nos parabenizou. Paiakan, ele disse, havia comido mais cedo e já tinha ido deitar.

Jantamos rápido e, depois, nossa equipe reuniu-se na tenda que armazenava os artefatos recolhidos.
Acendemos um refletor alimentado por um gerador de óleo diesel e pudemos analisar com mais detalhes
as armas encontradas.

Com uma lupa, Inácia percebeu que havia três pequenas letras em um dos punhais, bem próximo ao
cabo. “F.M.X”. Tratavam-se provavelmente das iniciais do proprietário da arma. As duas arqueólogas
mal podiam conter sua felicidade.

O acampamento contava com um equipamento de radiocomunicação e com um roteador que


amplificava o sinal de internet, recebido por satélite. Graças a essa conexão sem fio com a rede, Karen
conseguiu enviar as fotos para um historiador conhecido dela, especializado no período das bandeiras.

Estou de volta à minha barraca e já é tarde da noite. Mal consigo dormir, empolgado com as
descobertas de hoje. Acho que elas podem lançar uma luz sobre a quem pertencem as ossadas e os
artefatos encontrados no acampamento.

13 de julho

Hoje a doutora Inácia acordou indisposta, sentindo um mal-estar. Ela disse que queria tirar a manhã
para descansar. Mas também tivemos boas notícias. A Karen estava radiante. Ela disse ter recebido um e-
mail do colega historiador. Enquanto tomávamos café da manhã, ela nos leu a mensagem recebida.

Segundo o historiador, as iniciais podem se referir a Fernão Manuel Xavier, um bandeirante


português que liderou uma pequena expedição ao longo do rio Xingu, entre 1689 e 1691. Sua história não
costuma aparecer nos livros de história e poucas fontes oficiais fazem referência a ele ou a sua
“bandeira”.

No entanto, de acordo com o historiador, há um registro manuscrito de sua viagem pelo interior do
Brasil, que está hoje arquivado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Como ele já tinha pesquisado
aquela “bandeira” e tinha uma cópia do registro em sua casa, pudemos conhecer vários detalhes de sua
expedição. Seu grupo era composto por cerca de 40 bandeirantes e mais algumas dezenas de índios
paulistas.

O objetivo de Fernão Manuel Xavier, que já vivia há 15 anos no Brasil quando começou a expedição,
era encontrar ouro no interior do país. Entretanto, ele foi mal sucedido e, por algum motivo, seu nome
acabou sendo deixado de lado pela história.

No manuscrito de Xavier, prosseguiu o historiador, o bandeirante relata, com detalhes, a luta feroz
com uma tribo no meio da expedição. Pelo relato, quando os bandeirantes chegaram onde hoje é o sul do
Pará, integrantes de seu grupo começaram a desaparecer, um em cada noite. Depois de um mês, o grupo
de 40 bandeirantes estava reduzido à metade. Cerca de dez índios paulistas também haviam sumido.

Então um dia, contou o historiador, os corpos foram encontrados. Estavam todos pendurados de
cabeça para baixo, amarrados nos galhos das árvores, com toda a pele do corpo arrancada. Fernão
Manuel Xavier sabia que era obra de alguma tribo feroz da região. Ele chamou aqueles índios de
“juruparis”, nome de uma figura mitológica da cultura indígena brasileira que os cristãos associavam ao
diabo.

O bandeirante preparou seus homens para ficarem alertas. Quando os índios atacassem, eles estariam
prontos para contra-atacar. Naquela noite, houve a tentativa de matar mais um bandeirante e seis juruparis
foram capturados. Cinco foram mortos, tiveram suas peles arrancadas e foram pendurados nas árvores,
assim como os índios fizeram com seus homens. Apenas um jurupari foi mantido vivo, para que
mostrasse onde ficava sua aldeia.

O grupo de bandeirantes avançou pela mata até chegar à aldeia. Foi uma verdadeira carnificina.
Pegos de surpresa, os índios ainda tentaram lutar bravamente e infligiram baixas aos agressores, mas
acabaram sucumbindo. Cerca de cem homens, mulheres, velhos e crianças juruparis foram mortos a tiros,
facadas e golpes de espada. Tudo foi destruído. Toda a tribo foi exterminada e nunca mais ninguém ouviu
falar deles.

Algumas mulheres e crianças também tiveram suas peles arrancadas e foram penduradas de cabeça
para baixo. Os corpos se amontoavam ao redor da aldeia. Depois do massacre, os bandeirantes seguiram
com a expedição rio abaixo.

Karen olhou para a gente sorrindo e disse que elas tinham acabado de descobrir os traços de uma
tribo indígena desaparecida há mais de 300 anos. Todos nos abraçamos e fomos até a Inácia, contar a
novidade.

A velha arqueóloga, apesar de ainda indisposta, reuniu forças para se levantar e nos abraçar. A
felicidade era aparente entre todos nós. É claro que não estávamos felizes pela destruição da tribo, mas
por redescobrir aquele povo.

Corri para contar a novidade para o Roberto. Ele nos deu os parabéns novamente.

Paiakan não estava no acampamento. Roberto disse que ele tinha saído para pescar algo para o
almoço.

Passamos a manhã por ali mesmo, esperando que Inácia tivesse alguma melhora e pudéssemos voltar
às ossadas. Com sorte poderíamos encontrar mais objetos.

Paiakan voltou da pescaria, com três grandes peixes em seu cesto. Ele preparou o pescado e,
enquanto almoçávamos, a Karen contou a novidade para nosso companheiro caiapó. Quando ela falou
que havia uma grande possibilidade dos ossos e cerâmicas pertencerem a uma tribo antiga, que tinha sido
massacrada por bandeirantes, Paiakan quase se engasgou com uma espinha de peixe que ele mastigava.

Ele nos olhou espantado e disse que não deveríamos perturbar espíritos antigos, principalmente as
almas daqueles que pereceram de forma violenta. Tudo o que eles esperavam era descansar em paz na
floresta, disse Paiakan. Depois, pediu licença, levantou-se e saiu em direção à sua barraca, deixando sua
comida no prato.

Nós quatro ficamos em silêncio por um longo período. Depois que todos terminamos de comer, Karen
preparou um prato e levou para Inácia, que se mantinha deitada em sua barraca. Já o nosso colega
funcionário da construtora pediu licença e voltou para sua tenda. Ele disse que comunicaria a nossa
descoberta aos seus chefes.

Fiquei um tempo conversando com o professor Ariston e depois fui fazer uma sesta na minha barraca.

À tarde, Inácia já estava se sentindo melhor, mas achou melhor permanecer deitada. Então, Ariston e
eu acompanhamos a Karen até a cova. Continuamos escavando em busca de novas descobertas, mas não
achamos nada que se equiparasse àquelas armas. Karen etiquetou os ossos com grandes tarjas numeradas,
fez medições e tirou fotos do local.

Depois, com cuidado, começamos a retirar os restos mortais que já tinham sido completamente
escavados.

Fizemos algumas viagens entre a cova e o acampamento, até que todos os ossos já desenterrados
fossem guardados em caixas, na tenda dos achados arqueológicos.

Inácia jantou com a gente. Ela disse que estava mais disposta e que, no dia seguinte, provavelmente
faria novas escavações próximas ao local onde encontramos as ossadas. Todos ficamos aliviados com a
recuperação e a disposição da professora.

14 de julho

Hoje, Ariston e as duas arqueólogas prosseguiram com os trabalhos de escavação das ossadas. Eu
fiquei no acampamento, porque Paiakan disse que queria conversar comigo. Sentamos à mesa e ele me
disse que tinha visto algo rondando o acampamento ontem. Ele tentou identificar os visitantes, mas não
conseguiu, porque estava muito escuro.

Ele estava assustado. Achava que eram os espíritos dos juruparis. Ele disse que rapidamente acendeu
um cachimbo para fazer fumaça e não permitir que os mortos entrassem em sua oca. Os caiapós acreditam
que os espíritos temem fumaça.

Conversei com ele e disse que, apesar de não partilhar de suas crenças, respeitava seus costumes e
seus temores, mas que nós, pesquisadores, tínhamos que fazer nosso trabalho.

15 de julho

Hoje de madrugada, eu fui acordado por barulhos estranhos em volta da minha barraca. Fiquei quieto,
temendo ser um animal selvagem. Percebi que alguma coisa estava rondando por ali.

Depois de algum tempo, percebi que o visitante tinha ido embora. Saí da minha barraca e vi que
estava tudo em ordem, mas não vi nenhum vestígio de animal.
Acabei dormindo até mais tarde. Os trabalhos de escavação da cova coletiva prosseguem. Alguns
poucos ornamentos indígenas têm sido encontrados. Ariston e eu estamos tentando descobrir se esses
juruparis seriam jês, tupis ou de algum outro grupo étnico. Ainda não temos elementos suficientes para
saber.

16 de julho

Estamos todos preocupados e assustados. Quando acordei, pela manhã, Paiakan disse que o Roberto
havia sumido do acampamento. Não sabemos onde ele foi. O caiapó e eu fomos até sua tenda e ele não
estava mesmo lá. Não havia nada bagunçado e aparentemente estava tudo no lugar. Apenas o equipamento
de radiocomunicação, ligado em baterias de carro, emitia um som de estática.

Gritamos o nome dele algumas vezes, mas não tivemos nenhuma resposta.

Paiakan demonstrou um grande nervosismo. Procurei acalmá-lo, dizendo que provavelmente ele tinha
ido dar uma volta pela mata. O índio disse que não acreditava nisso. Roberto normalmente só saía do
acampamento sozinho para ir até o rio e só entrava na mata se estivesse acompanhado de Paiakan. Ele
tampouco estava no rio e os dois barcos, a voadeira usada para ir até a cidade e a canoa usada para
pescar nas proximidades, estavam no mesmo lugar.

Mesmo assim, pedi a Paiakan que déssemos uma volta em torno do acampamento, para ver se o
acharíamos. O índio respondeu que era uma perda de tempo, mas disse que procuraria pela mata.
Desligamos o rádio e fui acordar o professor Ariston. Contei a ele o que havia acontecido com o nosso
colega e expliquei que sairia em busca dele.

Caminhamos pela mata por cerca de duas horas, sem qualquer sinal do Roberto, e voltei para o
acampamento com grande desânimo. Meus três amigos pesquisadores também ficaram desolados ao
saber que não tínhamos encontrado o colega.

Paiakan ficou repetindo que eram os espíritos que havíamos perturbado.

Resolvemos ficar todos no acampamento hoje. As escavações podiam esperar, pelo menos até o dia
seguinte. Decidimos que, até descobrirmos o que tinha acontecido com Roberto, deveríamos ficar ali.

Mas já é noite e Roberto ainda não chegou ao acampamento. Se ele não voltar até amanhã de manhã,
decidimos que vamos buscar ajuda.

17 de julho

Hoje fui acordado logo cedo. Ainda nem tinha amanhecido quando Paiakan me chamou na minha
barraca. Ele tinha o rosto lívido e estava ofegante. Demorou um tempo até que ele conseguisse falar
alguma coisa. Ele disse que tínhamos que ir embora, que precisávamos deixar o acampamento o mais
rápido possível.

Tentei, em vão, acalmá-lo. Ele disse que não devíamos ter mexido naqueles ossos, que ele tinha nos
alertado sobre isso e que agora os espíritos daqueles mortos estavam querendo vingança. O caiapó
estava descontrolado.

Perguntei por que ele estava tão nervoso. Ele disse que, dessa vez, conseguiu ver os espíritos
rondando o acampamento. Eram figuras horríveis. Ele disse que ficou com tanto medo que só pensou em
se encolher em sua oca e rezar para que fossem embora. Paiakan acreditava que esses espíritos tinham
pegado Roberto.

Pedi mais uma vez para que ele ficasse calmo e esperasse ali, porque eu acordaria o Ariston e
repassaria seu relato. Ele viu quando eu acordei o professor.

Ao ser acordado de madrugada, Ariston achou que tínhamos alguma notícia sobre Roberto. Eu disse
que não e comecei a contar o que o caiapó tinha me falado. Eu queria que o professor conversasse com o
índio, porque aquele descontrole de Paiakan só prejudicaria a nossa tarefa de localizar o nosso colega
desaparecido.

Quando olhei para trás, o caiapó não estava mais no acampamento. Ele tinha subido na voadeira e
ligado o motor. Ainda tentei correr em sua direção, mas ele saiu rio acima, em direção à sua aldeia.

Ariston e eu ficamos arrasados. Primeiro, um sumiço inexplicável, agora outro integrante do


acampamento fugia dali, com nosso único barco a motor. A situação não era nada boa.

Achei que era hora de chamar ajuda pelo rádio ou pela internet. Ariston concordou e fomos os dois
para a tenda do Roberto. Mas, depois de várias tentativas, não conseguimos nenhuma resposta.

Tentamos várias frequências e só ouvimos ruídos de estática. A internet também estava fora do ar.

Quando a Karen e a Inácia acordaram, contamos sobre a deserção do Paiakan. Agora éramos só nos
quatro e não conseguíamos pedir ajuda. Decidimos continuar no acampamento, até porque nossas únicas
opções eram remar com a canoa pelo rio ou entrar em contato com alguém pelo rádio.

A opção da canoa foi logo descartada. Demoramos horas para viajar da cidade de São Félix até o
acampamento em um barco a motor. Quem sabe quanto tempo demoraria se fizéssemos o trajeto de
canoa? Se fôssemos rio acima, talvez encontrássemos a aldeia de Paiakan. Mas sequer sabemos onde ela
fica e a que distância.

A única opção realmente viável é tentar comunicação com equipes de resgate, mas até agora não
conseguimos contato com ninguém.

De qualquer forma, não podemos nos desesperar. Apesar do sumiço do Roberto, não acredito que
haja algum risco imediato para a nossa segurança. O Roberto desapareceu, mas não sabemos o que
aconteceu com ele. Ele pode ter se perdido na mata, se afogado no rio ou sido atacado por um animal
selvagem.

Mas acho improvável que ele tenha sido atacado por um animal selvagem, porque não vimos nenhuma
pegada de grande felino nas redondezas do acampamento.

Logo, não vejo motivos para desespero. Por via das dúvidas, Karen e Inácia decidiram dormir na
mesma barraca. Ariston preferiu dormir desacompanhado. E eu também estou sozinho na minha própria
barraca.

Vamos ver o que podemos fazer amanhã.

18 de julho — madrugada

Meu Deus, estou tão nervoso que nem sei se vou conseguir escrever aqui. Fui acordado com um grito.
Parecia ser o professor Ariston. Eu me levantei rápido da minha barraca e corri para ver o que tinha
acontecido. Sua barraca estava caída no chão, toda desarrumada, mas não havia sinal dele. Ó, Deus, meu
coração está disparado. Peguei minha lanterna e procurei em todas as partes do acampamento. Cheguei a
buscar dentro da mata, próximo ao acampamento, mas não encontrei nada.

Chamei seu nome várias vezes e não tive respostas. Acabei acordando a Karen e a Inácia, com meus
gritos. Nós três recolhemos nossas coisas e viemos para a tenda principal. As duas estão chorando muito
no dormitório, enquanto eu escrevo meu relato, aqui no escritório. Estou olhando a porta a todo momento.
Minha mão está tremendo tanto, que a letra está quase ficando ilegível e nem sei se vou conseguir ler
depois o que eu mesmo estou escrevendo.

Senhor, todo poderoso, nos proteja, estou escutando barulhos lá fora.

18 de julho — noite

Essa madrugada foi assustadora. Estávamos nós três na tenda principal, que servia de escritório e
dormitório para o Roberto, quando comecei a ouvir barulhos estranhos lá fora. Chamei a Karen e a Inácia
e pedi que elas fizessem silêncio. Era um som de pegadas. Depois ouvimos alguém mexer nas nossas
barracas lá fora. Por fim, escutamos alguns sons que pareciam vozes humanas, mas eram indecifráveis.
Parecia que estavam falando de trás para frente. Não se parecia com nenhuma língua indígena que eu
conhecesse. O som parecia o de uma fita cassete ou de uma fita de vídeo rebobinada, em uma velocidade
normal. E, no meio das vozes, havia roncos, parecidos com de leões, e sibilos, como se fossem
serpentes. O vento também começou a soprar forte, fazendo a tenda tremer.

Depois, os sons e o vento cessaram. Precisei de alguns minutos para criar coragem e olhar lá fora.
Não havia mais ninguém (se é que houve alguém ou algum animal ali). Mas todas as barracas tinham sido
jogadas no chão.

Mas o mais chocante foi ver todos os objetos, que levamos tanto tempo para catalogar, esparramados
pelo chão. Dessa vez, os ossos também estavam espalhados.

Karen e Inácia voltaram a chorar quando viram tudo desarrumado. Acho que dessa vez, o motivo das
lágrimas não era o trabalho jogado fora. Elas estavam realmente com muito, muito medo. O choro era de
desesperança. As duas mulheres, assim como eu, estamos muito assustados com tudo isso. A internet está
mesmo fora do ar, mas finalmente consegui travar comunicação com os bombeiros pelo rádio agora há
pouco.

O problema é que a comunicação foi interrompida no meio. Então, não posso ter certeza de que eles
entenderam nossa situação e se eles vão mandar alguém aqui para nos ajudar e buscar nossos dois
colegas desaparecidos.

Passamos o dia dentro dessa tenda. O único momento em que deixei o local foi por volta de meio-dia,
depois de ouvir o som de um barco cortando o rio, mas quando eu cheguei até a margem, ele já tinha
passado. Com o barulho do motor, a pessoa provavelmente não me ouviu chamando.

A boa notícia é que temos suprimento para vários dias dentro dessa tenda. E não precisamos nos
arriscar fora dela, caso os invasores — rezo eu para que sejam apenas animais — voltem a rondar o
acampamento. A má notícia é que essa tenda não é segura. Só contamos com uma lona para nos separar
do que quer que esteja lá fora.

Karen e Inácia choraram durante boa parte do tempo, mas parece que elas agora estão resignadas com
a situação. Consegui passar uma fagulha de esperança para elas depois da minha comunicação com os
bombeiros.

Está chovendo lá fora e hoje devo passar a noite em claro. Estou cansado, mas não posso dormir. Há
algo lá fora, que atacou nossas barracas na madrugada passada e pode tentar algo contra a tenda onde
estamos hoje. Descobri que havia uma espingarda de caça guardada no armário, aqui dentro. Já estou
com a arma posicionada ao meu lado, enquanto escrevo meu relato.

De qualquer forma, sinto que a ajuda está a caminho. Só temos que esperar sua chegada nas próximas
horas.

19 de julho

Estou com muito medo. Dá para perceber pela minha letra tremida. Estou escrevendo apenas para ver
se consigo controlar meus nervos e não deixo o pavor tomar conta de mim. Eu tirei um cochilo em cima
da mesa, mas fui acordado agora de madrugada por barulhos do lado de fora da tenda. As duas mulheres
estão dormindo aqui ao lado e não sei se devo acordá-las.

Enquanto uma mão escreve, com dificuldade, esse relato, a outra está posicionada sobre a espingarda.
Aquelas vozes voltaram. São as mesmas coisas que estavam aqui na madrugada de ontem. E agora tenho
certeza: não são animais.

Não quero admitir, porque tenho que manter minha sanidade, mas não consigo parar de pensar no que
o Paiakan disse sobre os espíritos dos mortos. Enquanto escrevo, peço a Deus para nos guardar de
qualquer mal.

Deus santo, o barulho parece estar mais perto. Essas coisas estão se aproximando da tenda. Elas
estão aqui ao redor, cercando a gente (algumas letras ilegíveis e o diário termina).

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