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UNIVERSIDADE​ ​ESTADUAL​ ​DE​ ​CAMPINAS

INSTITUTO​ ​DE​ ​ESTUDOS​ ​DA​ ​LINGUAGEM


Ana​ ​Elisa​ ​Volpato​ ​Ortolano

(Re)existência​ ​nas​ ​ruas:​ ​ ​entre​ ​punição​ ​e​ ​caridade

Campinas
​ ​2017
ANA​ ​ELISA​ ​VOLPATO​ ​ORTOLANO

(RE)EXISTÊNCIA​ ​NAS​ ​RUAS:


ENTRE​ ​PUNIÇÃO​ ​E​ ​CARIDADE

Monografia apresentada ao Instituto


de Estudos da Linguagem, da Universidade
Estadual de Campinas como requisito
parcial para a obtenção do título de
Bacharel​ ​em​ ​Linguística.
Orientador: Prof.º Drº Lauro José
Siqueira​ ​Baldini

CAMPINAS
2017

1
Dedico este trabalho à meus pais, meu namorado
e meus amigos e à todos da população de rua,
malabaristas de rua, trabalhadores de rua, malucos
(artesãos) e trabalhadores dos serviços de atendimento à
população de rua de Campinas que eu conheci durante
esse processo e tive a sorte de ter por perto - a cidade,
as ruas, os semáforos, as pessoas, as calçadas, as
praças, o movimento no centro: tudo virou coisa outra,
coisa distinta, mudou em mim tudo em volta: com certeza
fizeram​ ​de​ ​mim​ ​uma​ ​melhor​ ​pessoa.

2
Agradecimentos

Aos​ ​meus​ ​que​ ​ausentam​ ​em​ ​mim:


Ao meu querido tio Paulo, pelas primeiras fotos daquela que era eu quando abri os
olhos, por ter falado que as minhocas do jardim da vó eram macarrão e me deixado,
sem a culpa do nojo que não tinha, comê-las. Obrigada por todos os dias que
cheguei na república e os meninos disseram “seu tio ligou, pediu para você ligar
para​ ​ele”,​ ​obrigada​ ​por​ ​ter​ ​me​ ​levado​ ​à​ ​praia​ ​para​ ​se​ ​despedir.
À minha vó, Terezinha, pelo quintal encantado, por apostar dinheiro comigo no bingo
(o qual eu não tinha para colocar!) e me deixar ganhar - isso cobria os chocolates
com um sabor de jogo bem jogado… obrigada por fazer com que a melhor hora do
dia, até hoje, seja o café da tarde: só vale se tiver pão francês, café e maionese.
Obrigada​ ​por​ ​ter​ ​me​ ​ajudado​ ​a​ ​ter​ ​fé,​ ​essa​ ​doida​ ​esperança​ ​no​ ​futuro.

Aos​ ​meus:
À minha mãezinha, Rosangela, pelos cheiros, gostos, abraços, empurrões e
palavras que me puseram a caminhar: obrigada por tentar, desde sempre, mudar
para aceitar as mudanças: minhas, do nossos e do mundo todo. Agradeço por me
ensinar​ ​enquanto​ ​aprende,​ ​a​ ​ser​ ​livre​ ​-​ ​e​ ​a​ ​ser​ ​feliz.
Ao meu pai, Marcos, pelos olhos doces, sorrisos de alegria ao me ver e por gostar
tanto de viver: a sua fraqueza é a minha também e é por isso que nos fazemos
fortes,​ ​cada​ ​dia.​ ​Tudo​ ​pode​ ​parar​ ​e​ ​ainda​ ​assim​ ​se​ ​mover.
Ao meu companheiro, Jorgito, por sacudir meu mundo, pegar minha mão e me levar
para rua: enquanto você andava, saia de dentro de você tantas cores, fogos e
movimento que preenchiam a cidade - semáforo por semáforo, as luzes em
movimento circulares pareciam tão rápidas - e tudo passou tão rápido e foi tão
intenso, como a vida vista de longe. ​Vos pintaste mi pupilas con los colores de la

vida.

Aos meus primos e tia, Fábio, Fernando e Neivinha: pelos cafés, mergulhos na
piscina​ ​e​ ​carinho.

3
À tia Lú, Carlos, Gabi e Giulia por serem uma família que meus pais escolheram e
eu​ ​amei​ ​ter.​ ​Obrigada​ ​por​ ​me​ ​acolherem​ ​em​ ​Campinas!
Aos​ ​meus​ ​padrinhos,​ ​Marizete​ ​e​ ​Bandini,​ ​pelo​ ​carinho​ ​e​ ​alegria​ ​a​ ​cada​ ​visita.
Aos meus amigos que me viram tantas vezes ser outra e continuam me
reconhecendo: Carol, Raquel, Tk, Thiago e Romeu. Obrigada por continuarem
comigo e me acolherem de volta - as vezes ando por Londrina e consigo recompor
alguns​ ​caminhos​ ​que​ ​a​ ​gente​ ​fazia​ ​e​ ​me​ ​sinto​ ​em​ ​casa.
Ao Di, meu querido amigo-irmão, obrigada pelos sonhos sonhados juntos e pela
alegria​ ​de​ ​sempre​ ​se​ ​reencontrar.
À​ ​Maria​ ​Luiza​ ​e​ ​ao​ ​Nelson,​ ​por​ ​tanto​ ​me​ ​ajudarem​ ​em​ ​Londrina​ ​com​ ​tanto​ ​carinho!
Aos meus amigos que me deram carinho, suporte, cafés, colchão, comida, cigarros,
suporte acadêmico e outras coisas sempre que precisei desde que cheguei em
Campinas: Queilinha, Gabi, Jamile, Gui, Ian e Zenti: foi muito bom passar por várias
fases​ ​nesses​ ​anos​ ​e​ ​ter​ ​vocês​ ​sempre​ ​por​ ​perto.
À minhas amoras, Clara e Julia, por todas as conversas, desabafos, brisas, viagens
e​ ​todo​ ​amor​ ​que​ ​vivemos​ ​juntas.​ ​Tudo​ ​ficou​ ​mais​ ​gostoso​ ​com​ ​vocês​ ​por​ ​perto.
À todas as pessoas que dividiram anseios e brisas comigo nesses anos da
faculdade, no centro acadêmico, no bandejão, no Ademir, nas festas do IFCH, nas
ocupações​ ​ou​ ​numa​ ​mesa​ ​com​ ​café​ ​ou​ ​com​ ​cerveja.

Aos​ ​que​ ​conheci​ ​e​ ​convivi​ ​durante​ ​a​ ​realização​ ​desse​ ​projeto:

Ao meu orientador, profº Lauro José Siqueira Baldini, por ter confiado em mim
quando eu não estava confiando, pelos emails trocados de madrugada em que eu
mandava uma série de p.s. e você respondia com paciência e carinho: acho a
acadêmia​ ​um​ ​lugar​ ​nem​ ​tão​ ​ruim​ ​e​ ​nem​ ​tão​ ​distante​ ​por​ ​causa​ ​de​ ​você.
Aos membros da Comissão de Visibilidade da População de rua de Campinas, em
especial Humberto, Felipe Reque, Felipe Garcia e Geisa mas também a todos os
outros que conheci e com quem aprendi, pela abertura, parceria e paciência em
ouvir​ ​todas​ ​as​ ​minhas​ ​perguntas.
Aos membros do Movimento Nacional População em Situação de Rua - pólo
Campinas: Adriana, Bianca, Luiz e Luiz Nascimento e seus outros integrantes.

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Obrigada por (re)existirem e acreditarem que juntos são mais fortes - e por me
acolherem​ ​tão​ ​bem.
À todos que já passaram pela rádio Destilado da rua, em especial Fernando, Joeber,
Jamila, Rodrigo e seu Jair - por não me deixarem ficar quieta de cantinho na sala de
gravação e me fazerem falar numa rádio online ou numa roda de conversa, por
terem me acolhido e conversado comigo. Obrigada por confiarem em mim e me
ensinarem​ ​tanto​ ​com​ ​suas​ ​histórias​ ​de​ ​vida​ ​e​ ​de​ ​luta.
Ao Fábio Ramos Barbosa Filho, por ser um excelente professor e um paciente leitor.
Se você não tivesse me incentivado tanto não sei se eu teria terminado agora. Foi
bem​ ​melhor​ ​com​ ​você​ ​por​ ​perto.
A Tyara Veriato Chaves, pelos caminhos percorridos que me ajudaram a percorrer o
meu​ ​e​ ​pela​ ​leitura​ ​atenta​ ​e​ ​carinhosa.

5
Ainda​ ​vão​ ​me​ ​matar​ ​numa​ ​rua.
Quando​ ​descobrirem,
principalmente,
que​ ​faço​ ​parte​ ​dessa​ ​gente
que​ ​pensa​ ​que​ ​a​ ​rua
é​ ​a​ ​parte​ ​principal​ ​da​ ​cidade
Leminski,​ ​Quarenta​ ​Clics​ ​em​ ​Curitib​a

...​ ​o​ ​livro​ ​pode​ ​valer​ ​pelo​ ​muito​ ​que​ ​nele​ ​não​ ​deveu
caber.
Guimarães​ ​Rosa,​ ​Tutaméia

6
Resumo

Este trabalho se volta para as disputas de sentidos que envolvem a


presença/permanência de determinados corpos no espaço público, tecendo um
percurso de sentidos entre algo da ordem do institucional que legitima (FEDATTO,
2011) e produz a exclusão e condenação da população de rua e algo do cotidiano
dessas pessoas que rompe/não sustenta. Em outras palavras, buscamos entender
a (re)produção de/no imaginário da cidade da população de rua como uma
população perigosa, vagabunda, drogada e as falhas e resistência a esses sentidos
nos enunciados produzidos na Rádio Destilado da Rua a partir de ​um lugar de
enunciação​, que está vinculado a um ​nós-político ​(CESTARI, 2015) ​população de
rua. Entendemos, assim, a constituição dessa população enquanto ​um problema
urbano ​por diversos saberes e instituições que nos levou a percorrer diversas
instâncias textuais a fim de pensar a política de circulação: trouxemos recortes de
falas na rádio Destilado da Rua, músicas tocadas no programa, panfletos da
prefeitura, artigos da internet e a lei de vadiagem do Código Penal brasileiro.
Tomando esta posição enquanto analista do discurso e movidos pela pergunta –
como os sentidos de ‘população de rua’ se constituem na rádio Destilado da Rua? –
propomos um gesto de leitura sobre o Destilado da Rua, programa de rádio
construído no ponto de Cultura Maluco Beleza, em Campinas, como um movimento
de sentidos na história (CHAVES, 2015).O que a singularidade do nosso objeto deu
a ver é uma articulação incontornável entre três objetos paradoxais (PECHÊUX,
2011): a loucura, a pobreza e a vadiagem.. Três discursividades com genealogias
específicas que se articulam para produzir a posição-sujeito população de rua,
enquanto materialidade histórica que dá corpo a política de sentido que divide pela e
na​ ​forma-cidade​ ​as​ ​fronteiras​ ​entre​ ​o​ ​público​ ​e​ ​o​ ​privado.

Palavras​ ​chave​:​ ​Análise​ ​do​ ​discurso.​ ​População​ ​de​ ​Rua.​ ​Exclusão​ ​e​ ​Resistência.

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Abstract

This work analyses the dispute of meanings involving the presence/long stay of
some bodies in the public space, considering the ideological constitution of the
meanings in two orders: something of the institutional order that legitimate
(FEDATTO, 2011) and produce the marginalisation and conviction of the homeless
population (população de rua) and something of their everyday life that breaks it. In
other words, we sought to understand the (re)producition in the city's imaginary of the
homeless population as a dangerous, bum, strung-out and the resistance to these
meanings textualized in the utterances of the radio Destilado da Rua – the process of
construction and legitimation of the social subject – we-political (CESTARI, 2015)
“população de rua”. In order to go through such paths of meaning, this work
interrogates the sets of relations that define the homeless population as an
urban/social question - as a product of the operation of dicursive memory in historical
relations - by recovering these sayings in different areas of textualization: songs and
speeches of the radio Destilado da rua, laws, academic articles, flyers, etc. As a
discourse analyst, moved by the question – how the meanings of “população de rua”
are constituted in the radio Destilado da rua? Understanding it as a movement of
meanings through history (CHAVES, 2015) – that gave us ways to see the
confluence of three diffent discourses - with distinct genealogies (PECHÊUX, 2011)
- articulated in the singularity of our object: madness, poverty and vagrancy. The
articulation of these discourses produces the subject position população de rua, as
history materiality that defines the policy of meanings that divides in the city, the
boundaries​ ​between​ ​public​ ​and​ ​private.

Keywords:​ ​Discourse​ ​analysis.​ ​Homeless​ ​population.​ ​Exclusion​ ​and​ ​resistance.

8
SUMÁRIO

1.​ ​​ ​introdução​ ​e​ ​percurso​ ​de​ ​leitura


um​ ​percurso​ ​de​ ​(des)encontros
forma-cidade​ ​e​ ​forma-sujeito:​ ​personagens​ ​conflitivos
instituição,​ ​minoria​ ​e​ ​violência
2.​​ ​ ​corpus​ ​e​ ​análises
2.1.​ ​é​ ​morador​ ​de​ ​rua?​ ​é​ ​ladrão,​ ​é​ ​isso,​ ​é​ ​aquilo.
maluco​ ​beleza
destilado​ ​da​ ​rua
síndrome​ ​de​ ​Diógenes
2.2.​ ​a​ ​gente​ ​não​ ​é​ ​nenhum​ ​criminoso.
legislação​ ​sangrenta
vadiagem​ ​é​ ​crime?
2.3.​​ ​ ​ ​prometeram​ ​a​ ​cidadania​ ​destruindo​ ​a​ ​nossa.
troque​ ​esmola​ ​por​ ​cidadania
amigo​ ​flanelinha​ ​ou​ ​troque​ ​cidadania​ ​por​ ​esmola
3.​​ ​ ​considerações​ ​finais

9
1. introdução​ ​e​ ​percurso​ ​de​ ​leitura

Dentro da perspectiva teórica da Análise Materialista do Discurso, temos em


Pechêux (1988) que as palavras não possuem um sentido literal ou único, elas ganham e
perdem sentidos de acordo com a formação discursiva em que se encontram. E, as formações
discursivas​ ​são​ ​os​ ​lugares​ ​onde​ ​se​ ​dão​ ​a​ ​constituição​ ​dos​ ​sentidos,

são diferentes regiões que recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do


dizer) e que refletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos
sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constituem sentidos diferentes
(ORLANDI,​ ​2007,​ ​p.​ ​20).

Desse modo, “é a ideologia que fornece evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o
que são as coisas ‘que todo mundo fala’” (PECHÊUX, 1988, p. 160), pois as formações
discursivas dissimulam uma transparência de sentido, fingem uma não-dependência em
relação à memória discursiva: “as palavras já são sempre discursos na sua relação com os
sentidos e todo discurso já é uma fala que fala com outras palavras, através de outras
palavras”​ ​(ORLANDI,​ ​2007,​ ​p.15).
Todo texto se apresenta como transparente e cabe ao analista devolver a opacidade
do texto, pois “a materialidade linguística é o lugar da manifestação das relações de forças e
de sentidos que refletem os confrontos ideológicos” (ORLANDI, 2007, p.21). Não há
coincidência entre a ordem do discurso e a ordem das coisas, visto que uma mesma coisa
pode ter sentidos diferentes para os sujeitos. “Os próprios locutores (posições do sujeito) não
são anteriores à constituição desses efeitos, mas se produzem com eles” (ORLANDI, 2007,
p.21).
A partir desta posição como analista do discurso, nos propomos a pensar a produção
e circulação dos textos ​na ​e ​pela ​cidade, ou seja, se faz necessário compreender os
enunciados a partir do espaço que “tenciona o efeito de passado da memória e o vir-a-ser do
possível”​ ​(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2016,​ ​p.​ ​21).
As diferentes posições sujeito são separadas e unidas pelos regimes de ocupação, de
organização e de gerenciamento do espaço urbano, que permanecem implícitos, agindo
silenciosamente​ ​para​ ​delimitar​ ​fronteiras​ ​internas,​ ​pondo​ ​em​ ​evidência​ ​que

a forma da cidade e a forma sujeito, ou seja, o modo como os sujeitos aí estão


dispostos, estão ligadas. O modo como se dispõe o espaço é uma maneira de
configurar sujeitos em suas relações, em suma, de significá-los. (ORLANDI,
2015,​ ​p.694).

Dentro desse paradigma, Zoppi-Fontana (1997) analisa a cidade como um objeto


simbólico atravessado por processos de identificação, nos quais o sujeito captura e é
capturado, além de se produzir como uma posição sujeito. Nos propomos, então, a pensar a
organização​ ​da​ ​cidade​ ​que

está ligada ao imaginário projetado pela cidade, tanto pelos seus habitantes
como pelos especialistas do espaço, como urbanistas, administradores etc.
que, assim, se relacionam com a cidade através desse imaginário,
organizando o espaço da cidade, planejando-o, calculando-o de maneira
10
empírica ou abstrata de acordo com seus objetivos (ORLANDI, 2011,
p.694).

Então, analisaremos os espaços de atendimento à população de rua da cidade de


Campinas como gestos de interpretação que se tornam programas de intervenção na cidade,
legitimados por diversos enunciados que formam um entremeado de discursos que
interpretam​ ​e​ ​significam​ ​o​ ​espaço​ ​urbano​ ​e​ ​são​ ​organizados​ ​como​ ​saberes​ ​especializados.
Destacamos que estes espaços, foco de nosso estudo, são organizações administradas
e subsidiadas pelo poder público. “O Estado é o articulador do simbólico com o político”
(ORLANDI, 2015, p.695) e esses espaços são aparatos desse Estado que individualiza os
sujeitos, identificando-os “por sua inscrição em uma formação discursiva, em certos sentidos
e não outros, constituindo-se em uma posição sujeito com sua existência, que se inscreve,
com​ ​suas​ ​práticas​ ​na​ ​sociedade​ ​(ORLANDI,​ ​2015,​ ​p.696).
A existência dessas instituições que prestam assistência - sendo essa própria palavra
habitada por sentidos variados, a depender da formação discursiva - à população de rua, muito
representam, ainda hoje, o que Foucault (1996) descreve como um dos princípios de exclusão
do discurso, que seria o de separação e rejeição. A pessoa em situação de rua é aquela sem
endereço fixo, sem telefone e, muitas vezes, sem documentos – é o indivíduo que,
conscientemente ou não, ​nega duas bases da sociedade capitalista: a família e propriedade
privada. Nos perguntamos se não haveria consequências dessas negações e do habitar a rua - e
todo o imaginário que produz a oposição casa/rua - de maneira que seu discurso possa se
igualar ao do louco, à “aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros, pode
ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem
importância”.​ ​(FOUCAULT,​ ​1996,​ ​p.​ ​10-11).
Essa separação se exerce por meio de aparatos de saber, “toda a rede de instituições
que permite a alguém – médico, psicanalista - escutar essa palavra” (FOUCAULT, 1996,
p.12). Quem tem acesso a essa palavra, a esse discurso excluído, são os médicos, assistentes
sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, ou seja, profissionais que se produzem dentro de
uma vontade de verdade que delimita o que pode ser dito dentro das ciências: A vontade de
verdade, na perspectiva de Foucault (1996), atravessa as outras formas de exclusão como a
palavra proibida e a segregação da loucura – e reforça e torna mais profunda essas outras
formas​ ​de​ ​exclusão​ ​–​ ​se​ ​torna​ ​mais​ ​incontornável.
Mas há algo na estrutura que sempre prevê um acontecimento, há sempre uma falha,
um deslocamento de sentido possível, pois reproduzir nunca é repetir o mesmo e pode ser
visto​ ​como​ ​local​ ​de​ ​resistência​ ​múltipla:

Um local onde surge o imprevisível contínuo, porque cada ritual ideológico


continuamente se depara com rejeições e atos falhos de todos os tipos, que
interrompem​ ​as​ ​perpetuações​ ​das​ ​reproduções​ ​(PECHÊUX,​ ​2011,​ ​p.​ ​115).

Assim, objetivamos analisar os discursos da população de rua de Campinas, tendo


em vista enunciados como “o que a gente é para vocês?”, extremamente lacunar e afrontador,
em que podemos ver a presença do outro no discurso, quando o autor permite introduzir em
seu​ ​próprio​ ​discurso​ ​outros​ ​discursos.

Citação, recitação, formação do preconstruído: é assim que os objetos do


discurso, dos quais a enunciação se apodera para colocá-los sob a
responsabilidade do sujeito enunciador, adquirem sua estabilidade referencial
no domínio da memória como espaço de recorrência das formulações

11
(COURTINE,​ ​1999,​ ​p.​ ​19).

Os prés-construído ​a gente ​e ​vocês ​“corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação


ideológica que fornece-impõe ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade”
(PECHÊUX, 1988, p. 164). E essa divisão linguística e política entre ​nós ​e ​eles ​e os
processos de designação, vistos como “relações semânticas instáveis, produzidas pelo
cruzamento de diferentes posições sujeito, a partir das quais instala-se um sentido, apagando
outros possíveis/dizíveis” (ZOPPI-FONTANA, 1988, p.1164), foram tomados como ponto de
partida de nosso trabalho: ou seja, os nomes que eles negam e os nomes que eles assumem
como​ ​seus​ ​-​ ​(re)produzindo​ ​as​ ​exclusões​ ​e​ ​produzindo​ ​deslocamentos.

um​ ​percurso​ ​de​ ​(des)encontros

A Análise do Discurso se constitui na intersecção entre linguística e ciências sociais,


pensando o histórico-social e considerando a linguagem em sua materialidade, pois “o que
liga o dizer e a sua exterioridade é constitutivo do dizer” (ORLANDI, 2010, p. 14). Nessa
perspectiva, concebe-se o discurso como efeito de sentido entre locutores e não como mera
transmissão de informação e faz-se necessário articular o discurso com suas condições de
produção, que inclui os sujeitos e a situação. A situação, na perspectiva de Orlandi (2010),
envolve o contexto imediato de enunciação e o mais amplo, ou seja, o sócio histórico e o
ideológico,​ ​que​ ​por​ ​sua​ ​vez,​ ​não​ ​estão​ ​dissociados​ ​um​ ​do​ ​outro.
Interessante destacarmos que “o sujeito da análise do discurso não é o sujeito
empírico, mas a posição sujeito projetada no discurso” (ORLANDI, 2010, p.15). A posição
sujeito no discurso está diretamente ligada às condições de produção desse discurso e essas
condições envolvem: a antecipação, as relações de sentido e as relações de força. A
antecipação é, em grande parte, a responsável pela argumentação, pois pode ser explicada
como “a imagem que o locutor faz da imagem que o interlocutor tem dele” (ORLANDI,
2010, p. 16), então quando pensamos nos discursos produzidos pela população de rua, temos
que considerar essa antecipação que ele - enquanto posição sujeito – fará, a imagem que a
sociedade faz do morador de rua que será trabalhada em seu discurso e em sua argumentação.
E a relação dos sentidos é pensar que “o que dizemos tem relação com outros dizeres e isso
faz parte dos efeitos de sentidos de nosso dizer” (ORLANDI, 2010, p.16) e as relações de
força nos fazem analisar o lugar social daquele que fala, enquanto representada na posição
sujeito.
Nossa pesquisa, dessa forma, nega a filosofia idealista da linguagem – que tem a
língua como sistema neutro, abstrato – e o subjetivismo idealista – em que o sujeito é como
centro e causa de si -, pois, em nosso paradigma teórico “a ideologia interpela o indivíduo em
sujeito e este submete-se à língua significando e significando-se pelo simbólico na história”
(ORLANDI, 2010, p.19). Trabalhamos, dessa forma, na relação entre: “de um lado, a regra, a
estabilização e o acontecimento e, de outro, o jogo e o movimento, os sentidos e os sujeitos
experimentam mundo e linguagem, repetem e se deslocam, permanecem e rompem limites”
(ORLANDI,​ ​2010,​ ​p.19).
Por entender dessa maneira “explicitamente o fato lingüístico do equívoco como fato
estrutural implicado pela ordem do simbólico” (PECHÊUX, 2008, p.44), é que nos obrigamos
a pensar sobre outro real: o real do fazer, “um impossível específico que configura o que
escapa e se inscreve à revelia, muitas vezes a contrapelo, na prática intelectual e com os
encontros​ ​que​ ​dão​ ​forma​ ​ao​ ​que​ ​se​ ​inscreve​ ​e​ ​se​ ​escreve”​ ​(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2016,​ ​p.​ ​26).
Como pesquisadora iniciante, me interessava pensar ​pela ​e ​em relação a ​Análise
Materialista do Discurso, as diferentes formas de significação da palavra ​droga ​e as diferentes
12
denominações de seus usuários – ​drogados, viciados, etc ​– pensando em uma formação
discursiva da saúde em que ​a política de redução de danos se produz e nas rupturas e
(des)identificações​ ​com​ ​sentidos​ ​estagnados.
Para tanto, comecei a ler textos sobre redução de danos na internet e entrei em
contato com ​agentes redutores de danos ​de Campinas. Fui afetada nesse processo, pelo
interdiscurso, pelo ​sempre-já-ai​, pois, quando comecei a pesquisa, não pensava na redução de
danos em relação à população em situação de rua, mas o modo como fui levada a pensar
sobre essa população já demonstra “o modo como a fala pública sobre drogas, especialmente
sobre o crack, colonizou ​o debate sobre a situação de rua no país com consequências nada
desprezíveis​ ​para​ ​esses​ ​sujeitos,”​ ​(RUI;​ ​MARTINEZ;​ ​FELTRAN,​ ​2016,​ ​p.18).
Comecei a participar das atividades do ​Consultório na rua​, que é um programa de
atendimento do ​SUS ​voltado à população em situação de rua onde trabalham agentes
redutores de danos, mas me vi impossibilitada de seguir por aí minha pesquisa – não eram
todos os locais em que eu podia acompanhá-los. Pela indicação de alguns profissionais desse
programa, comecei a frequentar as reuniões da ​Comissão de Visibilidade a População em
situação​ ​de​ ​rua​ ​de​ ​Campinas​ ​e​ ​as​ ​gravações​ ​da​ ​rádio​ ​Destilado​ ​da​ ​Rua​.
Nesses espaços fui acolhida como pesquisadora e resolvi fazer da minha pesquisa um
movimento de dar visibilidade – ao dessegmentar os enunciados produzidos pela rádio,
procuro dar visibilidade multiplicando “as relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e
dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro lugar e de outro modo, a fim de se
colocar em posição de ‘entender’ a presença de não-ditos no interior do que é dito”
(PECHÊUX,​ ​2008,​ ​p.44).
Para atingir tal objetivo e por trabalhar com instâncias textuais diferentes, nos
propomos a nos aprofundar nas próximas seções em interpretações de cidade e instituições,
para assim podermos ler os textos produzidos na rádio pensando a relação violenta entre o
Estado​ ​e​ ​os​ ​indivíduos.
.
forma-cidade​ ​e​ ​forma-sujeito:​ ​personagens​ ​conflitivos

Ao realizar um processo de analista do discurso entre o ​descrever e o ​interpretar​,


tendo em vista que “todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente
descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis,
oferecendo lugar a interpretação” (PECHÊUX, 2008, p.53), nos propomos a pensar os
processos​ ​de​ ​significação​ ​pela​ ​e​ ​na​ ​cidade​ ​e​ ​suas​ ​relações​ ​com​ ​o​ ​Interdiscurso:

[...] é porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse


outro próprio ao linguageiro discursivo, que aí pode haver ligação,
identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a
possibilidade e interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações
históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em rédea de
significantes​ ​(PECHÊUX,​ ​2008,​ ​p.​ ​53).

Ou seja, é em relação às ​memórias do dizer ​que se constrói um ​outro e um ​nós ​pela ​e


na ​cidade, entre o ​institucional ​e o ​cotidiano​: “há algo da ordem do institucional que
legitima” (FEDATTO, 2011, p.23) e algo da ordem do cotidiano que rompe​/não sustenta​. Essa
relação entre as ordens é produtiva na medida que ​a população em situação de rua ​se
constitui ​sempre-já ​nessa relação como ​objeto de um saber​, sendo a afirmação de que o
objeto de um saber existe “a condição fundamental para que ele exista” (FEDATTO, 2011,
p.23).

13
Assim, a significação de certos indivíduos como ​moradores de rua ​funciona pela
relação com o imaginário de cidade que os constrói como ​uma questão urbana “sustentada e
estimulada pela confluência cruzada de variados discursos, instituições, saberes e poderes
especializados. Agenciamentos plurais que buscam de diferentes maneiras, definir o problema
e​ ​também​ ​solucioná-lo”​ ​(DE​ ​LUCCA,​ ​2007,​ ​p.​ ​16).
Em outras palavras, é como ​problema a ser solucionado ​que se constitui a existência
dessa população ​na ​e ​pela ​política de circulação “em diversas instâncias textuais (tanto
linguísticas, como em livros, panfletos e jornais, quanto imagéticas, como placas de rua e
desenhos arquitetônicos” (FEDATTO, 2011, p.23). Por interpretar desta forma as ​políticas de
circulação​, nosso ​corpus ​foi montado compondo: falas do programa Destilado da Rua,
músicas tocadas no programa Destilado da Rua, panfletos da prefeitura, artigos da internet e ​a
lei​ ​de​ ​vadiagem​ ​do​ ​Código​ ​Penal.
Por entender que esta ​política de circulação ​está estruturalmente vinculada ao “espaço
urbano enquanto produção simbólica” (RODRIGUEZ, 2014, p.261), trabalharemos com o
conceito​ ​de​ ​ambiência​ ​tanto​ ​em​ ​Fedatto​ ​(2011)​ ​quanto​ ​em​ ​Rodriguez​ ​(2014),​ ​pois

ao olharmos para os diferentes modos de estruturação do espaço,


considerando que os sujeitos históricos aí habitam, se identificam e produzem
sentidos, estamos considerando que ele atua materialmente na formulação das
práticas sociais; o espaço enquadra, determina, situa, põe em relação.
(FEDATTO,​ ​2011,​ ​p.24)

Dessa forma, “sujeito, sentidos e espaços resultam de um mesmo processo histórico,


existindo entre esses temos uma relação constitutiva” (RODRIGUEZ, 2014, p. 262), o que
nos faz destacar a distinção histórica entre ​público/privado ​como “uma das injunções que
determinam os sentidos daquilo que é percebido no espaço urbano” (RODRIGUEZ, 2014, p.
261), na medida em que essa configuração produz formas de sociabilidade que determinam a
relação​ ​entre​ ​um​ ​nós​ ​e​ ​um​ ​outro.
A divisão ​público/privado ​na medida que “institui uma ​memória​, caracterizada por
uma estética presente na produção do espaço urbano” (RODRIGUEZ, 2014, p.274) opera e
produz “modos de estar-juntos relacionados aos próprios sentidos históricos do que seja
público e privado” (RODRIGUEZ,2014, p.274). A autora propõe um quadro para pensarmos
nesses​ ​modos​ ​de​ ​estar-juntos​:

PRAÇA​ ​(RUA/CALÇADA) CASA​ ​(APARTAMENTO)

Espaços​ ​públicos Espaços​ ​privados

(bem​ ​comum) (propriedade​ ​privada)

↓ ↓

Para​ ​circular,​ ​encontrar-se Para​ ​morar,​ ​habitar

(assentar-se/fixar-se)

Normas​ ​de​ ​comportamento​ ​público Normas​ ​de​ ​comportamento​ ​privado

14
(com​ ​estranhos) (com​ ​familiares/amigos​ ​íntimos)

Espaço​ ​do​ ​pedestre Espaço​ ​do​ ​morador

(automobilista/​ ​(moto)ciclista) (proprietário/inquilino)


Este quadro nos parece produtivo para pensarmos no “o referido ​con-senso​, no sentido
de ​senso-comum​, de ​sentido partilhado​, a partir do qual o espaço [do centro da cidade] é
percebido como ‘decadente’ e ‘deteriorado’, além de ‘conflituoso’” (RODRIGUEZ, 2014, p.
272) na medida que este é o espaço onde grande parte da população em situação de rua de
Campinas habita, o que ​vai de encontro ​com ​os modo de estar-juntos​, pois eles ​habitam ​onde
deviam ​circular, encontrar-se​, ou seja, fazem do ​espaço do pedestre ​um outro ​espaço do
morador. ​Assim, borram-se os limites da permanência e das práticas ​apropriadas ​ao espaço
público, pondo em relação as fronteiras simbólicas e políticas que significam essa população
como​ ​moradores​ ​de​ ​rua​.
Retomaremos com mais profundidade este ​deslizar de sentidos estagnados ​nas
análises das sequências discursivas. Mas nos contentaremos, neste momento, em evidenciar
que é com base nesta noção de ​ambiência urbana​, ​fundada pela ​distinção público e privado​,
que vemos a população em situação de rua como ​personagens conflitivos ​na medida em que
são “aqueles identificado à ​incursão do domínio privado no domínio público e às
consequências que isso provoca na configuração material e humana do espaço”
(RODRIGUEZ,​ ​2014,​ ​p.278).
Vale ressaltar que “embora essas divisões do espaço se inscrevam numa memória
comum, elas não são significadas a partir da mesma posição, mas de FD diferentes”
(RODRIGUEZ, 2014, p.279). O que nos encaminha a pensar nos discursos assistencialistas,
urbanistas, de segurança pública, entre outros atravessados pela “percepção da ​inserção dos
sujeitos no espaço ​(na referida divisão público/privado) e das ​atividades ​que nele realizam
(consideradas próprias/impróprias, legais/ilegais, morais/imorais, de acordo com as normas de
sociabilidade​ ​mencionadas)”​ ​(RODRIGUEZ,​ ​2014,​ ​p.279).
Instituições,​ ​minoria​ ​e​ ​violência
Pechêux (2008) aponta a existência de uma “necessidade universal de um ‘mundo
semanticamente normal’, isto é, normatizado” (p.34) e que “esta necessidade de fronteiras
coincide com a construção de laços de dependências face às múltiplas coisas-a-saber,
consideradas como reservas de conhecimento acumuladas, máquinas-de-saber contra as
ameaças​ ​de​ ​toda​ ​espécie”​ ​(Idem).
Como interpretado na seção anterior, pensamos ​na população de rua ​significada como
ameaça​, dentro das múltiplas coisas-a-saber (que ‘acumulam’ reservas de conhecimento
sobre saúde, segurança, cidade, assistência, etc) e pensamos as instituições e o Estado “como
pólos privilegiados de resposta a esta necessidade ou a essa demanda [de um ‘mundo
semanticamente​ ​normal’]”​ ​(p.​ ​34).
Encontramos em Orlandi (2014) a questão da ​individuação do sujeito pelo Estado​,
tendo em vista que é na relação de interpelação do sujeito pelo Estado, através de instituições
e discursos, que “o sujeito individuado vai se identificar e constituir-se em uma posição
sujeito na formação social” (p.36). E quando pensamos em Estado na atualidade, pensamos o
Estado Capitalista, ou seja, dividido e estruturado pela diferença. Nos encontramos, enquanto
sujeitos históricos, “politicamente, socialmente e fisicamente divididos” (ORLANDI, s/d,
p.8).
15
Desse modo, nas formações sociais atuais, “o social ganhou um peso negativo”
(ORLANDI, s/d, p.15) na medida que o outro é siginificado enquanto ​perigoso​. O que
evidencia a violência do Estado, sendo que é em nome dessa violência (de divisão) “que as
pessoas fazem exclusões” (ORLANDI, s/d, p.18). Ou seja, porque “estamos vivendo muito
afastados (no sentido social) uns dos outros” (Idem, Ibdem) interpelados pelo Estado, que “a
violência se instala mais facilmente” (Idem, Ibdem) na medida que o diferente se torna
perigoso​ ​e​ ​os​ ​espaços​ ​de​ ​sociabilidade​ ​se​ ​tornam​ ​rarefeitos.
Deslocamos, a partir dessa posição, a violência entre os indivíduos para a violência da
democracia, enquanto “ilusão de igualdade (liberdade)” (ORLANDI, 2014, p.38), produzida
na ​e ​pela ​discursividade do Estado, funcionando como um discurso liberal que opera na
contradição: pensar na “demanda de inclusão do diferente é a formulação da contradição”
(Idem, p.34), pois essa diferença é constitutiva do Capitalismo enquanto sociedade de classes.
Em outras palavras, “não somos preconceituosos por natureza, mas por instituição”
(ORLANDI,​ ​2014,​ ​p.33).

2.​ ​corpus​ ​e​ ​análise

Temos em Pechêux (2008) o primado dos gestos de descrição das materialidades


discursivas, na qual os limites entre descrever e interpretar se tornam indiscerníveis quando
reconhecemos um real específico sobre o qual a materialidade discursiva se instala: o real da
língua, ou seja, a língua funcionando, abordando “explicitamente o fato linguístico do
equívoco​ ​como​ ​fato​ ​estrutural​ ​implicado​ ​pela​ ​ordem​ ​do​ ​simbólico”​ ​(p.50).
Sendo assim, nos próximos capítulos, tomaremos partido pela imbecilidade, isto é,
decidimos “não saber nada do que se lê, permanecer estranho a sua própria leitura,
acrescentá-la sistematicamente à fragmentação espontânea das sequências, para acabar de
liberar a matéria verbal dos restos de sentido que ainda aderem aí...” (PECHÊUX, 2016,
p.25).
Consideramos, assim, a materialidade da língua, a língua funcionando. O que a
singularidade do nosso objeto dá a ver é uma articulação incontornável entre três objetos
paradoxais: a loucura, a pobreza e a vadiagem. Três discursividades com genealogias
específicas, “que se encontram, se atravessam, se articulam em um determinado momento
contingente da história (BARBOSA FILHO, 2016, p.118) para produzir a posição-sujeito
população de rua, enquanto materialidade histórica que dá corpo à política de sentido que
divide​ ​pela​ ​e​ ​na​ ​forma-cidade​ ​as​ ​fronteiras​ ​entre​ ​o​ ​público​ ​e​ ​o​ ​privado.
Separamos em três sessões este processo discursivo do Destilado da rua, levando em
conta “um discurso-prévio atualizado no acontecimento da enunciação” (CHAVES, 2015, p.
22), ou seja, a construção de um efeito de sentido que não começa no programa “e sequer
possui um início detectável, mas que deve ser remetido às relações de sentido nas quais é
produzido”​ ​(CHAVES,​ ​2015,​ ​p.22):
1. As disputas de sentidos na história da Associação de Assistência Cândido Ferreira e
do Ponto de Cultura Maluco Beleza: uma disputa pela designação da loucura e de seu
portador​ ​que​ ​produz​ ​outras​ ​práticas​ ​e​ ​outro​ ​lugar​ ​de​ ​enunciação​.
2. A produção de sentidos de ​vadiagem no discurso jurídico brasileiro: a
criminalização​ ​da​ ​população​ ​de​ ​rua.
3. A textualização, nas falas da radio ​Destilado da Rua​, da resistência a duas formas
de​ ​exclusão​ ​do​ ​Estado:​ ​a​ ​criminalização​ ​e​ ​a​ ​assistência.

16
Tomando a posição de analista do discurso e movidos pela pergunta – como os
sentidos de ‘população de rua’ se constituem na rádio Destilado da Rua? – propomos um
gesto de leitura sobre o Destilado da rua, programa de rádio construído no ponto de Cultura
Maluco Beleza, em Campinas, como “um movimento de sentidos na história” (CHAVES,
2015,​ ​p.21).
2.1​ ​É​ ​morador​ ​de​ ​rua?​ ​É​ ​ladrão.​ ​É​ ​isso.​ ​É​ ​aquilo.
maluco​ ​beleza
O SANATÓRIO DR. CÂNDIDO FERREIRA foi fundado em 1919 em Campinas
sob o nome de ​Hospício para Dementes Pobres do Arraial de Sousas1. Foucault (2008)
analisa o começo das clínicas e dos hospitais como lugares que os pobres frequentam (os
ricos possuem o médico da família que faz consultas domiciliares) e onde se ensina o
exercício da medicina, isto é, faz-se uso dos doentes pobres para a pesquisa científica e
ensino, visando ensinar os ricos e melhorar os tratamentos para eles mesmos, tendo em vista
que o foco do tratamento é a doença e não o doente. O nome dado ao hospital Cândido
Ferreira reforça a análise foucaultiana, tendo em vista que explicita que seu público era ​pobre
e​ ​por​ ​se​ ​tratar​ ​de​ ​um​ ​hospício​,​ ​também​ ​demente.
Pós-reforma psiquiátrica, fruto de muita luta política em torno dos significados de
hospício, doença, dementes, etc​, se extinguem os manicômios e o Cândido Ferreira ganha o
nome de ​Associação de Assistência que tem como finalidade “a prestação gratuita de
assistência e desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa, assim como apoiar o
desenvolvimento do Sistema Único de Saúde SUS, para usuários assistidos nos campos da
saúde​ ​mental​ ​em​ ​particular​ ​e​ ​de​ ​saúde​ ​em​ ​geral”​.​ 2​
Rompe-se com os sentidos anteriores em que a loucura é designada como ​demência e
seu portador como ​demente e reveste-se do politicamente correto, gerando nomes como ​saúde
mental (ao invés de doença) e seus portadores, ao buscar tratamento na associação, tornam-se
usuários​.
Pensando em relação à presença/ ausência, vemos que no nome ​dementes pobres ​há
uma articulação entre dois objetos paradoxais – que são objetos “simultaneamente idênticos
consigo mesmo e se comportam antagonicamente consigo mesmos” (PECHÊUX, 2011,
p.115) - a pobreza e a loucura. Esta articulação é deslocada ao mesmo tempo que retomada
em ​usuário do SUS assistido no campo da saúde mental​. Além disso, os dementes
pobres/usuários do SUS assistido no campo da saúde mental continuam sendo objeto de
pesquisa​ ​e​ ​ensino​ ​(​desenvolvimento​ ​de​ ​atividades​ ​de​ ​ensino​ ​e​ ​pesquisa)​.
Apesar disto, este deslocamento mexe com as redes de memória e produz esses outros
sentidos e abre, ao nosso ver, para novos gestos de interpretação da sociedade e desses
indivíduos que são significados a sua margem. Em 2002, dentro da ​Associação de
Assistência​, é criado o ponto de cultura Maluco Beleza e a Rádio Online Maluco Beleza,
ambos tendo como propósito ​diminuir o preconceito relativo à loucura, mostrando novas
possibilidades​ ​de​ ​tratamento​ ​e​ ​de​ ​convivência​ ​com​ ​as​ ​diferenças​ ​e​ ​com​ ​os​ ​diferentes​.3
Pensando na relação entre preconceito e instituições, vemos que a ​Associação de
Assistência interpela o indivíduo em ​usuário assistido​, e esta interpelação está vinculada à
diferença - ente e o louco e o não-louco. Mas como “ ‘reprodução’ nunca significou
‘reprodução do mesmo’” (PECHÊUX, 2011, p.115), a ampliação das redes de escuta a esta
palavra do louco (com a criação da rádio) produz nomes como ​maluco beleza​, ressignificando
1
​ ​Disponível​ ​em:​ ​<http://candido.org.br/site/>
2
​ ​Disponível​ ​em:​ ​<http://candido.org.br/site/>
3
​ ​Disponível​ ​em:​ ​<http://candido.org.br/site/>
17
este termo ao colocá-lo em relação a um antigo hospício, produzindo o ​pobre demente ​como
merecedor de caridade (com o atravessamento do discurso religioso no discurso
assistencialista), deslizando-o para ​usuário assistido​, evidenciando o processo pelo qual “as
práticas de assistência aos loucos articularam de forma substancial o discurso político, da
caridade​ ​e​ ​do​ ​alienismo”​ ​(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2017,​ ​p.9).
Analisamos que ​maluco beleza​, como nome de uma rádio dentro de um antigo
hospício,​ ​é​ ​um​ ​acontecimento​ ​discursivo,​ ​ou​ ​seja,​ ​como

a irrupção do novo no discurso e como ponto de encontro de uma atualidade e


uma memória. Enquanto testemunho de um efeito de evidência, o
acontecimento pode remeter a um conteúdo aparentemente transparente e ao
mesmo tempo fortemente opaco, porque sobredeterminado pelas condições de
possibilidade que o fizeram emergir ou que impediram seu aparecimento Ele
também reorganiza as relações da memória com (mesmos e outros) sentidos
cuja repetição molda enunciados a acontecimentos, deslocando as condições
de​ ​produção​ ​do​ ​dizer​ ​(FEDATTO,​ ​2011,​ ​p.33).

Antes da reforma psiquiátrica não era possível a produção da posição-sujeito ​maluco


beleza ​que também constrói o maluco em oposição ao normal, mas o valor de maluco é
positivo. A imagem evocada por essa designação e pendurada no Ponto de Cultura é do cantor
Raul​ ​Seixas​ ​e​ ​a​ ​letra​ ​da​ ​música​ ​Maluco​ ​Beleza​ ​nos​ ​parece​ ​muito​ ​cara​ ​para​ ​nossa​ ​análise:
Sd​ ​(1)​ ​enquanto​ ​você​ ​se​ ​esforça​ ​pra​ ​ser​ ​um​ ​sujeito​ ​normal​ ​e​ ​fazer​ ​tudo​ ​igual
Sd​ ​(2)​ ​Eu​ ​do​ ​meu​ ​lado,​ ​aprendendo​ ​a​ ​ser​ ​louco​ ​um​ ​maluco​ ​total​ ​na​ ​loucura​ ​real
controlando​ ​a​ ​minha​ ​maluquez​ ​misturada​ ​com​ ​a​ ​minha​ ​lucidez​ ​vou​ ​ficar/​ ​ficar​ ​com​ ​certeza
maluco​ ​beleza.
Sd​ ​(3)​ ​E​ ​esse​ ​caminho​ ​que​ ​eu​ ​mesmo​ ​escolhi​ ​é​ ​tão​ ​fácil​ ​seguir​ ​por​ ​não​ ​ter​ ​onde​ ​ir.
Estas sequências discursivas constroem um ​eu ​em oposição ao ​você – ​maluco beleza
em oposição a ​sujeito normal​. Nos propomos a olhar para essas sequências a partir de um
gesto descritivo-interpretativo presente em Barbosa Filho (2016), negando a linearidade e
horizontalidade do enunciado, pensando que a coordenação entre dois enunciados na ​Sd(1)
marcados​ ​pela​ ​conjunção​ ​e​,​ ​estabelece​ ​a​ ​seguinte​ ​relação:
Sd​ ​(1)​ ​enquanto​ ​você​ ​se​ ​esforça​ ​para​ ​ { serf um
sujeito normal
azer tudo igual
}.
Sd(1.1)Enquanto ​[fica] ​um sujeito normal ​[aquele que] ​se esforça para
{ serf um
sujeito normal
azer tudo igual
}.
O ​eu ​é construído nas sequências discursivas em oposição a ​você, ​com base em uma
relação:​ ​{Enquanto​ ​x​ ​é​ ​aquele​ ​que​ ​y,​ ​do​ ​outro​ ​lado​ ​z​ ​é​ ​aquele​ ​que​ ​w}.
aprendendo a ser um louco total na locura real
Sd (2) Eu do meu lado { controlando a minha maluquezmaluco misturada com a minha lucidez
} ​vou ficar
maluco​ ​beleza.
Sd(2.1)Do outro lado, ​[fica] ​maluco beleza ​[aquele que] ​aprende a ser um
louco/maluco​ ​total​ ​na​ ​loucura​ ​real,​ ​controlando​ ​a​ ​maluquez​ ​misturada​ ​com​ ​a​ ​lucidez.
Com a relação de coordenação entre as ​Sd(2) e Sd(3)​, temos que ​ficar maluco beleza ​é
um caminho que se ​escolhe e é tão fácil seguir por não ter onde ir​. Essas sequências
discursivas constroem positivamente a posição sujeito ​maluco beleza como aquele que
aprende a ser louco/ maluco total na loucura real e que controlar ​a maluquez misturada com
a​ ​lucidez​ ​é​ ​necessária​ ​para​ ​este​ ​aprendizado.
A normalidade se recobre com um valor negativo, de norma, de rotina e o maluco com
valor positivo, como aquele que nega a alienação, as regras e normas impostas. A
posição-sujeito do maluco se constrói como aquele que aprende a ser louco, aprende a
18
desaprender as normas e se põe à margem por escolha (uma escolha fácil de se fazer por não
ter onde ir, ou seja, uma escolha nem tão ‘escolha’ assim). É por isso que mais uma vez
analisamos como resistência, pois desorganiza os sentidos estabilizados de normalidade e de
escolha. A loucura tem como adjetivo a palavra real, construindo em oposição o sentido da
normalidade​ ​como​ ​irreal,​ ​negando​ ​os​ ​discursos​ ​hegemônicos​ ​sobre​ ​a​ ​loucura.
​A loucura real ​em oposição a uma normalidade falsa, falsa porque nega a existência
paradoxal da loucura: é ​lucidez misturada com a maluquez. ​É como na famosa frase ​de perto
ninguém é normal. ​E nesses efeitos de sentido, ficar maluco beleza​, como um ​estado de
existência retoma uma memória da loucura como lugar da verdade, algo como um profeta ou
um​ ​xamã​ ​e​ ​não​ ​algo​ ​como​ ​um​ ​delírio​ ​do​ ​doente​ ​mental,​ ​por​ ​exemplo.
Enquanto ​ficar ​um ​sujeito normal ​requer esforço, na medida que ​fazer tudo igual
significa seguir as normas de sociabilidade e de estar juntos – pensando em relação ao quadro
de Rodriguez (2014) que trouxemos no primeiro capítulo – respeitando as fronteiras
políticas/sociais​ ​entre​ ​o​ ​público​ ​e​ ​o​ ​privado.
Assim, o nomear da rádio dentro do Cândido Ferreira a partir de enunciados da música
do​ ​Raul​ ​Seixas​ ​coloca​ ​em​ ​relação​ ​o​ ​pobre​ ​demente​ ​e​ ​usuário​ ​assistido​ ​ao​ ​maluco​ ​beleza​:
demente pobre ͢ ​usuário do SUS assistido no campo da saúde mental ͢​ ​maluco
beleza
{ demencia
pobreza } ͢ saúde​ ​mental​ ​͢ loucura​ ​real
Entendendo os processos de polissemia como um “processo de instauração da
multiplicidade de sentidos” (ORLANDI, 1984, p.11) na medida em que limita e é limitado
pelo processo de paráfrase “que é o processo pelo qual procura-se manter o sentido igual sob
diferentes formas” (ORLANDI, 1984 p.11), lemos esse trajeto como um gesto interpretativo
que faz ecoar na história uma tensão entre o Estado (burguês) e os pobres - entre os ​normais ​e
os​ ​dementes​.
Com base em Pechêux (2011), tomamos os processos de reprodução ideológicos como
um local de resistência multiplica: “um local no qual surge o imprevisível contínuo, porque
cada ritual ideológico continuamente se depara com rejeições e atos falhos de todos os tipos,
que interrompem a perpetuação das reproduções” (p.115). Assim, o ​maluco beleza ​da rádio
não é o mesmo maluco beleza cantado nos shows de rock do Raul Seixas, por ser processos
discursivos distintos que o produzem - em outras ​condições de produção - mas que mantém e
legitima a disputa pelos sentidos de loucura: não é a normalidade falando da loucura, mas a
loucura​ ​apontando​ ​a​ ​normalidade.

destilado​ ​da​ ​rua

A partir de 2014, o programa ​Destilado da Rua ​entra na programação da Rádio


Maluco Beleza​. Isso ocorreu devido à organização de profissionais de assistência, população
em situação de rua e apoiadores ​pertencentes à Comissão de visibilidade da população de rua
de Campinas, que construíram uma ponte entre o Centro-POP – Centro de referência a
população de rua e o Ponto de Cultura Maluco Beleza (que funciona no espaço da Associação
de​ ​Assistência​ ​Cândido​ ​Ferreira).
Assim, aqueles da população de rua de Campinas que frequenta, o Centro-POP, ou
seja, aqueles que são individuados em ​usuários assistidos ​dão o nome de ​Destilado da Rua ao
programa.
Destilado é uma palavra marcadamente opaca, tendo em vista que foneticamente não
há diferenças em ​deste lado ou ​destilado (e é o nome de um programa de rádio, que vai ser
ouvido e não lido). Além disso, o funcionamento da preposição ​de ​pode designar uma série de

19
relações: de posse - esse ​destilado ​é propriedade da rua? De procedência - tem origem nas
ruas?​ ​De​ ​causa​ ​-​ ​é​ ​pela​ ​rua?
Como sujeitos de linguagem, os integrantes do programa se significam e são
significados pela brincadeira com a língua que produz sentidos como deste lado da rua, em
oposição ao lado da casa, o lado daqueles que não só transitam na rua (pedestres,
(auto)mobilistas), como também fazem atividades do ​privado ​no espaço ​público ​da rua
(dormem, comem, etc). Além de serem o ​destilado da rua​, aquilo que através de um processo
de destilação é possível de ser produzido na/pela/da rua.. Evocam para dentro de seu
enunciado o pré-construído bêbado, drogado e deslizam para a droga, a bebida, o destilado, ​o
produto​ ​da​ ​rua​.
Esse​ ​movimento​ ​discursivo​ ​nos​ ​mostra​ ​que

toda dominação instala, no momento mesmo em que se constitui, a


possibilidade da resistência. Sendo a linguagem um jogo de forças e sentidos
antagônicos onde a história determina os caminhos da metáfora, seus sentidos
estão sempre em movimento apesar de parecerem bastante estabilizados
quando inscritos em uma determinada formação discursiva (FEDATTO,
2011,​ ​p.23).

Ressaltamos que o próprio Cândido Ferreira presta tratamento para ​usuários ​de álcool
e outras drogas, interpelando-o em ​usuário assistido​, pondo em relação ​drogadição​, ​loucura
e ​pobreza​. E o programa ​Destilado da Rua ​se inscreve a partir das relações já significadas no
imaginário ​entre ​rua, drogadição, loucura e pobreza – ​considerando estes três últimos como
objetos paradoxais produzidos no interior de discursividades diferentes “das quais nenhuma
pode​ ​ser​ ​considerada​ ​originária”​ ​(PECHÊUX​ ​apud​ ​CHAVES,​ ​2015,​ ​p.157).

síndrome​ ​de​ ​Diógenes

Para entendermos a existência de um sentido ​partilhado ​a partir do qual certos


indivíduos são significados como ​pobres, dementes, drogados​, num percurso de memória,
recorremos à maneira que um filósofo, que foi retratado por seus seguidores como ​um
personagem conflitivo na medida que ultrapassava as barreiras entre ​público ​e ​privado ​de sua
época (comer, urinar, se masturbar em público – barreiras ainda presentes hoje), foi
(re)significado​ ​no​ ​discurso​ ​médico.

Sd (4) ​A Síndrome de Diógenes recebeu esse nome ​em homenagem a


Diógenes de Sínope, filósofo grego representante do cinismo. O cinismo é
uma corrente filosófica que prega o desapego aos bens materiais, por
acreditar que a felicidade não depende de nada externo à própria pessoa.
Diógenes – o filósofo que vivia como um cão – morava em um barril. Seus
únicos bens eram uma túnica, um cajado e uma tigela, simbolizando desapego
e autossuficiência perante o mundo (STUMPF ; ROCHA; 2017, GRIFO
NOSSO).

Esta sequência discursiva produz efeitos de sentidos em que o nomeamento da


síndrome é uma homenagem a um filósofo e esta homenagem funciona com base no
reconhecimento de ​sintomas ​de uma doença neste filósofo – o que gera a inquietante
pergunta: como é possível que se faça uma homenagem a alguém, sendo que esta homenagem
coloca este alguém na posição de ​doente​? Ou em outras palavras: em que medida dar o nome

20
de alguém a uma doença (sendo este alguém um filósofo, não um médico que “descobriu” a
doença)​ ​pode​ ​ser​ ​uma​ ​homenagem?
Sd (4.1) filósofo Diógenes ͢ morador de barril ͢ desapegado ͢ doente mental
Sd (4.2) maluco beleza ͢ morador de rua ͢ pobre ͢ demente
Para compreendermos melhor a relação criada no enunciado entre ​os modos de vida
do filósofo (viver como um cão – morar num barril) e os ​sintomas ​da doença ​nomeada em
homenagem ao filósofo​, trazemos um relato de atendimento à uma ​paciente portadora da
Síndrome​ ​de​ ​Diógenes​:
Sd (5) No segundo atendimento, M. mostrou-se ansiosa e inadequada. Na sala
de espera, mexia na lixeira. Confirmou que costumava recolher objetos do
lixo alheio. Justificou-se dizendo que as pessoas do bairro jogavam fora
coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia vinho algumas vezes
apenas em casa. Ao exame, apresentava higiene satisfatória. Usava blusa de
inverno em dia quente. Mantinha atitude desconfiada. Estava consciente,
orientada globalmente e sem alterações sensoperceptivas. O pensamento
apresentava-se organizado. Sem alterações de memória. O humor estava
moderadamente deprimido. O juízo crítico era comprometido. O Mini-Mental
foi 27/30 e o teste do relógio foi normal. A revisão laboratorial não mostrou
alterações. Ressonância magnética do crânio evidenciou focos de alteração de
sinal na substância branca nos hemisférios cerebrais, presumivelmente
relacionados à microangiopatia, sem relevância clínica ​(STUMPF ; ROCHA;
2017)

Nesta sequência discursiva se constrói uma divisão entre aquilo considerado ​normal
(​sem alterações, satisfatório​) e o que é ​inadequado a partir da posição-sujeito ​médico
(construída​ ​também​ ​no​ ​e​ ​pelo​ ​enunciado):
É​ ​considerado​ ​normal​ ​aquele​ ​que​ ​x​.
É​ ​considerado​ ​doente​ ​aquele​ ​que​ ​y​.
X Y
apresentar​ ​higiene​ ​satisfatória​ ​ao​ ​exame mostrar-se​ ​ansioso​ ​e​ ​inadequado/​ ​mexer
na​ ​lixeira​ ​na​ ​sala​ ​de​ ​espera
estar​ ​consciente,​ ​orientado​ ​globalmente recolher​ ​objetos​ ​do​ ​lixo​ ​alheio
e​ ​sem​ ​alterações​ ​sensoperceptivas
Apresentar​ ​pensamento​ ​organizado admitir​ ​usar​ ​etílicos
Sem​ ​alterações​ ​de​ ​memória usar​ ​blusa​ ​de​ ​inverno​ ​em​ ​dia​ ​quente
Mini-mental​ ​e​ ​teste​ ​do​ ​relógio​ ​normal. manter​ ​atitude​ ​desconfiada
Apresentar​ ​alterações​ ​na​ ​ressonância ter​ ​humor​ ​deprimido
clínica​ ​sem​ ​relevância​ ​clínica
O​ ​juízo​ ​crítico​ ​ser​ ​comprometido
A ​Sd(5) ​produz uma narrativa de uma consulta, em um formato de prontuário médico,
que produz um ​efeito de real​, na medida que constrói um ​olhar clínico ​sobre o doente, a partir
de exames, construindo uma ​transparência​, como se fosse evidente que a partir das
sequências ​y ​o diagnóstico de ​síndrome de Diógenes ​(dado no primeiro atendimento) fosse
confirmado, ​mesmo ​levando em conta as sequências ​x​. O que nos aponta “os equívocos na
língua, quando a falta de um espaço conceitual preciso no discurso médico afeta a imprecisão

21
do diagnóstico, dando contornos ambivalentes aos sentidos de corpo, de doença, de desvio”
(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2017,​ ​p.​ ​13)
Podemos dessegmentar a ​Sd(5) ​para pensarmos no uso do ​discurso relatado​, por meio
do qual produz-se um espaço enunciativo marcado pela consignação da alteridade, onde o
outro ​(o doente) é ​falado ​pelo prontuário - a normalidade apontando o desvio, a doença, a
loucura:
Confirmou que costumava recolher objetos do lixo alheio. Justificou-se dizendo que
as pessoas do bairro jogavam fora coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia
vinho​ ​algumas​ ​vezes​ ​apenas​ ​em​ ​casa.
O uso de verbos como ​confirmar, justificar e admitir ​constrói ​uma confissão​, ​um
depoimento marcando o atravessamento de uma discursividade religiosa, que, assim como na
análise da ​Associação de Assistência​, nos leva por uma relação com a memória à formação do
saber /discurso médico que “inaugura não apenas outras formas de compreensão do corpo
doente, mas novas concepções de cidade baseadas na higiene e na salubridade” (BARBOSA
FILHO,​ ​2017,​ ​p.9).
Nesta confissão, é possível pensar as formas como os enunciados da paciente foi
(re)significado​ ​pelo​ ​discurso​ ​médico:
Pegar​ ​coisas​ ​boas​ ​que​ ​as​ ​pessoas​ ​jogam​ ​fora​ ​͢ recolher​ ​objetos​ ​do​ ​lixo​ ​alheio
Beber​ ​vinho​ ​algumas​ ​vezes​ ​apenas​ ​em​ ​casa​ ​͢ fazer​ ​uso​ ​de​ ​etílicos
Entendemos a partir das Sd(4) e Sd (5) que dentro de uma formação discursiva
higienista ​há uma forte oposição ​moral ​a qualquer desvio de ​normas de comportamento​,
fortemente vinculada a uma oposição ​moral ​ao ​drogado (uso de etílicos – não presente em
Diógenes), vadio-sujo (dorme num barril, mexe no lixo) e ​a loucura (na medida que uma
síndrome​ ​está​ ​dentro​ ​do​ ​campo​ ​da​ ​saúde​ ​mental)​.
Vale ressaltar que entendemos por ​higienista ​sentidos produzidos na​/​pela formação
discursiva - sempre em relação podendo ser de sobreposição, antagonismo, etc - que interdita
espaços e práticas a determinados corpos de maneira segregatória produzindo sentidos
fortemente vinculados a valores morais - saúde, segurança, normalidade. Esses sentidos
aparentemente transparentes funcionando dentro dessa formação interditam outras formas de
movimento​ ​e​ ​ocupação​ ​da​ ​cidade.
Vale a pena ressaltar, que o discurso médico se recobriu do ​politicamente correto​,
então não é possível encontrar ​demente pobre ​nos artigos sobre ​síndrome de Diógenes​, mas
parece-nos que algo disto permanece na relação de sentidos entre os ​doente ​e os ​sintomas
falado a partir da posição-sujeito médico, numa relação entre o que é (im)possível ​aparentar,
ser​ ​e​ ​usar​.
algumas​ ​pessoas​ ​tratam​ ​a​ ​gente​ ​assim​ ​como​ ​lixo
Tendo em vista que as formações discursivas sempre estão em relação e que os
sentidos não possuem uma origem detectável, analisamos a próxima sequência discursiva
retirada da rádio Destilado da Rua, onde é construído um espaço enunciativo ​na ​e ​pela
posição sujeito ​população de rua de rua, ​pondo-a em relação às sequências discursivas
analisadas​ ​anteriormente:
Sd (6)Ah! As pessoas tratam a gente ​assim como ​[assim como o que? ] ​/tipo assim, se
a gente pede uma moedinha ​aqui outra ​ali​, a gente ainda consegue ​[o que?]​, mas algumas
pessoas tratam a gente assim como lixo. É morador de rua? É ladrão. É ​isso ​[isso o que?]​. É

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aquilo.​[aquilo o que?] Você entendeu? Eu falo para vocês, a gente não é nenhum criminoso,
não​ ​é​ ​nada,​ ​a​ ​gente​ ​é​ ​só,​ ​sabe​ ​o​ ​quê?​ ​Mais​ ​um​ ​ser​ ​humano.
Analisamos, com base em Cardoso (1995) que os demonstrativos anafóricos ​isso ​e
aquilo​, não retomam um elemento referencial (não estão retomando, pelo dito, nenhum
sintagma do texto), mas sim um elemento ​exofórico​, do ​interdiscurso​. Isto produz um efeito
de ​distanciamento entre “​o espaço enunciativo do discurso que se constitui na interlocução e
o interdiscurso do interior do qual se buscam elementos socialmente já avaliados para a
constituição dos referentes” (CARDOSO, 1995, p.169). Em outras palavras, o uso do ​isso ​e
aquilo ​permite que o enunciador não assuma com as formulações pressupostas, então fica a
cargo​ ​do​ ​ouvinte​ ​preencher​ ​os​ ​sentidos​ ​de​ ​isso​ ​e​ ​aquilo​ ​neste​ ​texto.
Aqui, faz-se necessário pensarmos este uso dos demonstrativos, tendo em vista que “o
que liga o dizer e a sua exterioridade é constitutivo do dizer” (ORLANDI, 2010, p. 14) e que
“o sujeito da análise do discurso não é o sujeito empírico, mas a posição sujeito projetada no
discurso” (ORLANDI, 2010, p.15), relacionada às condições de produção desse enunciado
descrito​ ​na​ ​Sd​ ​(6)​:
O locutor, ao enunciar num programa de rádio ​da população de rua direcionado a um
público desconhecido – heterogêneo, ​se constrói ​no ​e ​pelo ​discurso a posição sujeito
população de rua ​negando (​a gente não é) ​sentidos estabilizados no ​imaginário da cidade ​que
relacionam o ​morador de rua ​a ​vadiagem, drogadição, loucura, pobreza​, etc. É a antecipação
em grande parte responsável pela argumentação, pois o uso de ​tipo assim, isso, aquilo
funciona a partir “da imagem que o locutor faz da imagem que o interlocutor tem dele”
(ORLANDI,​ ​2010,​ ​p.16).
Propomos,​ ​como​ ​gesto​ ​de​ ​interpretação,​ ​(re)ler​ ​a​ ​Sd​ ​(6)​ ​desta​ ​maneira:
Sd(6.1) Ah! ​As pessoas ​tratam ​a gente assim como [cachorro] ​tipo assim​, se a gente
pede uma moedinha [ossinho] ​aqui outra ​ali​, a gente ​ainda consegue [ser visto como
cachorro], ​mas algumas pessoas tratam a gente ​assim como lixo. É morador de rua? É
ladrão. É ​isso [demente pobre]. É ​aquilo [vagabundo drogado]. Você entendeu? Eu falo
para vocês, a gente não é { nada nenhum criminoso
[retoma o isso e aquilo] }, a gente é ​só​, sabe o quê? Mais um [tipo
de]​ ​ser​ ​humano.
Tratar​ ​como​ ​ { bicho lixo },​ ​não​ ​como​ ​humano.
O que é tratar como o lixo? Como se trata o lixo – aquilo que é produzido e deve ser
retirado,​ ​não​ ​pode​ ​permanecer.
Como cachorro – é seu dever dar um ossinho, mas ele tem que sair quando for
mandado​ ​embora.
Aqui outra ali ​– é necessário movimento para conseguir uma moedinha, não pode
pedir​ ​só​ ​aqui​ ​ou​ ​só​ ​ali​.
A formulação ​x ​é só mais um ​y – a gente é só mais um ser humano ​operando como
uma espécie de conclusão da argumentação, como resposta a pergunta ​a gente é só, sabe o
que? ​nos faz pensar acerca dos sentidos de ​humano ​e que, construir um espaço enunciativo
pela afirmação da humanidade toca no cerne da divisão capitalista - a exploração do homem
pelo homem - parece que os sentidos dominante de ​humano ​interdita outros sentidos - o
louco,​ ​o​ ​ladrão,​ ​o​ ​morador​ ​de​ ​rua​ ​não​ ​são​ ​tão​ ​humanos​ ​assim.
Vemos, a partir da progressão por justaposição da Sd(6), a maneira como se
construíram enunciativamente as disputas de sentidos em ​morador de rua (pobre
demente/pobre coitado e ladrão/vagabundo) – dando a ver o processo discursivo que produz o
pedinte/demente pobre ​(pedir uma moedinha aqui outra ali), e por isso, ​ainda ​consegue ser

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visto como ​um cão ​(um filósofo que vive como um cão – um doente que remexe o lixo
alheio) merecedor de caridade, ​mas/e ao mesmo tempo ​produz o ​ladrão/vagabundo/drogado
(imoral) e é tratado como ​um lixo ​(dispensável, desprezível, sujo, inútil), merecedor de
punição,​ ​por​ ​negação.
A argumentação, trazendo o discurso relatado, ​um discurso outro​, para dentro de outra
formação discursiva - “a formação discursiva é heterogênea em relação a ela mesma, pois já
evoca por si ‘outro’ sentido que ela não significa” (ORLANDI, 2007, p.21) – vai contra os
sentidos que evocados, “​a evocação lateral ​daquilo que se sabe a partir de outro lugar
(Pêcheux,​ ​1988,​ ​p.​ ​111)”,​ ​em​ ​ladrão.
Este outro lugar, do ladrão, é o lugar produzido ​na ​e ​pela ​discursividade de segurança
que constrói a ​vadiagem ​que “ecoa na história como uma tensão entre o Estado e aqueles que
são ‘​tratados como bichos’​, os cidadãos de terceira classe, prostitutas, desempregados,
capoeiras, negros, pobres, mendigos, inválidos; esses todos que são arrastados para a mala do
carro,​ ​ao​ ​invés​ ​do​ ​banco​ ​de​ ​trás”​ ​(CHAVES,​ ​2015,​ ​p.​ ​77).

2.2.​ ​a​ ​gente​ ​não​ ​é​ ​nenhum​ ​criminoso

Pensando a partir das análises feitas até agora, buscamos compreender como é
produzido o efeito de evidência que recupera os sentidos de ​vagabundo, ​drogado, ladrão,
demente pobre ​nas sequências discursivas analisadas anteriormente. Para tanto, daremos
início a um percurso de memória que constitui sentidos para ​vagabundo ​e ​vadiagem ​no
atravessamento​ ​com​ ​discursos​ ​jurídicos​ ​em​ ​determinados​ ​períodos​ ​da​ ​História.

legislação​ ​sangrenta

Em Marx (2017), o autor nos aponta a transformação dos plebeus em ​mendigos,


ladrões, vagabundos ​na transição dos modos de produção feudais para os modos de produção
capitalista com a criação no fim do século XV, de uma ​legislação sangrenta ​na Europa
Ocidental:
Os expulsos por dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta
e por sacões da terra, este proletariado fora-da-lei não podia, possivelmente,
ser absorvido pela manufactura nascente tão rapidamente quanto era posto no
mundo. Por outro lado, estes [homens] subitamente catapultados para fora da
sua órbita de vida habitual não se podiam adaptar tão subitamente à disciplina
da nova situação. Transformaram-se massivamente em mendigos, ladrões,
vagabundos,​ em parte por inclinação, na maioria dos casos por
constrangimento das circunstâncias​. Daqui, no fim do século XV e durante
todo o século XVI, em toda a Europa ocidental, uma legislação sangrenta
contra a vagabundagem. Os pais da classe operária actual foram, antes do
mais, castigados pela transformação, a que foram sujeitos, em vagabundos e
pobres. A legislação tratava-os como criminosos «voluntários» e pressupunha
que dependia da boa vontade deles que continuassem a trabalhar nas velhas
condições​ ​que​ ​já​ ​não​ ​existiam​ ​mais.​ ​(MARX,​ ​2017,​ ​GRIFO​ ​NOSSO)

Assim, Marx (2017) analisa ​leis sangrentas ​pondo em evidência que “a parceria entre
a burguesia e o Estado está na gênese da legislação sobre o trabalho constituída pela
exploração do trabalhador e ao mesmo tempo inimiga dele no seu decurso” (CHAVES, 2015,
p.79). As leis ​trabalhistas e a lei de ​vadiagem ​significam o ​corpo ​do proletário como
mercadoria​: é um ​corpo ​útil ​para o ​Estado/burguesia ​quando este vende sua força de trabalho

24
por um preço baixíssimo (similar [?] à escravidão), mas considerado ​inútil quando este não
vende sua força de trabalho (está sem trabalho) e transformado em ​mercadoria ​(escravidão) -
desta maneira os aparelhos repressivos do Estado controlam esse corpo para que ele se
encaixe em duas posições: proletariado ou escravizado (marcando o corpo do ​vagabundo​).
Isto​ ​no​ ​processo​ ​de​ ​consolidação​ ​do​ ​capitalismo.
Destacamos um trecho da citação de Marx pondo-o em negrito - ​parte por inclinação​,
maioria por constrangimento das circunstâncias - ​por ser um enunciado que constrói um
efeito de evidência que: há corpos que não vendem sua força de trabalho, em parte por
inclinação (no que consiste essa inclinação? inclinação a insubmissão?) e em parte por
constrangimento das circunstâncias,ou seja, ausência de trabalho - pois ​não podia ser
absolvido​ ​pela​ ​manufactura​ ​nascente​ ​tão​ ​rapidamente​ ​quanto​ ​era​ ​posto​ ​no​ ​mundo​.
Se pensarmos a sequência discursiva ​aprendendo a ser louco ​da música Maluco
Beleza em relação a esse trecho de Marx, percebemos que ela é extremamente opaca: produz
a articulação de duas dimensões - a primeira, tem sujeito e tem escolha e a segunda é um
dizer sobre o outro que o coloca na posição de essência (da ordem da natureza, do não tem
jeito, “pau que nasce torto”). A disputa por se afirmar enquanto ​população de rua ​atravessa
esse dizer de algo indomável e desliza os sentidos estagnados - opacizando ​as escolhas
quando​ ​se​ ​trata​ ​de​ ​questões​ ​de​ ​classe:​ ​trabalho,​ ​moradia,​ ​ócio,​ ​etc..

vadiagem​ ​é​ ​crime?

No Brasil, a lei da vadiagem ​toma corpo ​com a criação do Código Penal do Império
do​ ​Brasil​ ​em​ ​1830:
Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta, e util, de
que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo
renda​ ​sufficiente​.​​ ​(BRASIL​ ​apud​ ​RACHID,​ ​2017,​ ​p.5).

Temos que pensar esta lei e a que a substituirá na República em relação as suas
condições​ ​de​ ​produção:
um Rio de Janeiro tumultuado, assolado por doenças epidêmicas, como a
febre amarela, dispondo de precária infraestrutura e inchado
demograficamente devido à migração expressiva de estrangeiros - em sua
maioria de origem portuguesa - e ao contingente de escravos libertos vindos
da zona rural. Transformações políticas, econômicas e sociais que se iniciam
no fim do império para o começo da república e se ligam à transição do
trabalho escravo para o livre-assalariado, bem como à formação de uma
ordem​ ​burguesa​ ​(CHAVES,​ ​2015,​ ​p.80).

Ou seja, é em um cenário “caracterizado pela construção de uma ideologia positiva do


trabalho, regras higiênicas aplicadas ao espaço público e difusão de valores morais à figura do
cidadão” (CHAVES, 2015, p.81) que entra em vigor no Código Penal de 1890, “o caráter
geral da disposição relacionada à repressão daquele que, sendo apto para o trabalho, não o faz
porque​ ​não​ ​quer”​ ​(​ ​RACHID,​ ​2017,​ ​p.5):

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que


ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que
habite; prover a subsistência por meio de occupação prohibida por lei, ou
manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes. (BRASIL apud
RACHID,​ ​2017,​ ​p.5)

25
Esta formulação devolvida às condições de produção - transplantação do discurso
médico europeu para as relações sociais no espaço da cidade brasileira em um contexto de
transição do trabalho escravo para o livre-assalariado e de formação de uma ordem burguesa
brasileira – aponta a jurisdição do controle do ​corpo negro agora ​liberto​, não considerado ​útil
pelo Estado/burguesia ​por não ser mais ​mercadoria ​e ​não estar vendendo sua mão de obra
(​parte por inclinação, maioria por constrangimento das circunstâncias​) e por isso
considerado como um corpo ​perigoso, violento, hostil - como podemos ver em Rachid
(2017):
No próprio ano de sua ocorrência [abolição da escravidão], em 1888, surge
uma proposta de lei à Câmara dos Deputados pelo Ministro da Justiça –
Ferreira Vianna, o qual imaginava que o número excessivo de libertos, sem
emprego e sem moradia, era fator potencial ao aumento da criminalidade; isso
devido​ ​ao​ ​ócio​ ​que​ ​experimentavam.​ ​(p.5)

A questão do possuir ​domicílio certo em que habite ​vai desaparecer em 1941 no


Decreto-lei 3.688 “​Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o
trabalho, em ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria
subsistência​ ​mediante​ ​ocupação​ ​ilícita”​​ ​(BRASIL​ ​apud​ ​RACHID,​​ ​2017,​ ​p.​ ​5).

Podemos perceber que é a partir do funcionamento do ​ou que se cria uma relação de
determinação de ​ociosidade​: sendo significada como aquilo que alguém ​sendo válido para o
trabalho ​se entrega, podendo ser tanto: o não ​ter renda que lhe assegure meios bastante de
subsistência ​ou ​prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita​. Vemos então, desta
forma, que ​ocupação ilícita ​interdita ​trabalho na rua​, tendo em vista que não fica
especificado o que seria esta ​ocupação ilícita​: recobre de ​criminalidade ​qualquer forma de
ganhar dinheiro ​na rua​, na medida que o ​ilícita ​retoma ​occupação prohibida por lei, ou
manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes​. Funciona pelo implícito de dar a ver
- o problema não é exatamente o que se faz, mas ​dar ver ​o que se faz, tornar público - ou seja,
quebrar​ ​nomas​ ​de​ ​comportamento​ ​e​ ​de​ ​ocupação​ ​da​ ​rua.
Fica evidente que os sentidos de trabalho são determinados tanto pela ​lei ​quanto pela
moral e bons costumes​. Apesar do enunciado ​domicílio certo que habite ​ter sido retirado,
parece-nos que ele continua operando, também, numa relação de pressuposição, no
pré-construído​ ​ociosidade​.
Este sentido de ​ociosidade ​como ​contravenção é construído na medida em que se
constrói,​ ​no​ ​campo​ ​jurídico​ ​e​ ​político,​ ​a​ ​nacionalidade​ ​brasileira​:
Tendo a saúde sido posta como agente transformador de uma sociedade
avaliada doente, a nova ordem, que visava à civilização, passou a ser
estabelecida​ ​por​ ​meio​ ​da​ ​conjugação​ ​entre​ ​aspectos​ ​médicos​ ​e​ ​legais.
A proposta era o estabelecimento de uma sociedade aos padrões europeus de
desenvolvimento. Todavia, grande parcela desse todo social era considerada
degenerada em virtude de ‘vícios’, tais quais o alcoolismo, a prostituição e a
vadiagem; que, inclusive, representavam um perigo à medida que
impulsionavam​ ​a​ ​criminalidade.​ ​(RACHID,​ ​2017,​ ​p.6)

Vadiagem ​enquanto ​crime ​tem, deste modo, uma relação constitutiva com outras
discursividades, mesmo tendo genealogias diferentes, como a da ​loucura​, ​drogadição e
pobreza​ ​sentidos​ ​saturados​ ​em​​ ​perversão​ ​dos​ ​costumes​ ​e​ ​caráter​:

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Mendicidade, vagabundagem, roubos, lesões corporais, estupros, atentados
contra o pudor, incestos, incêndios e suicídios estavam relacionados com a
perversão dos costumes e do caráter, provocada pelo álcool, pela relaxação de
costumes, pelo desdém das conveniências, pelo abandono das ocupações,
pelo egoísmo, pela brutalidade, pela incapacidade para o trabalho e, por fim,
pela​ ​demência.​​ ​(CANCELI​ ​apud​ ​RACHID,​ ​2017,​ ​p.7)

Temos, a partir do processo de textualização ​da demência, da pobreza, da drogadição


como ​criminalidade​, a não separação entre a ​moral ​e o ​Direito​. E é a partir dos
pré-construídos ​vagabundo, demente pobre, drogado ​e ​ladrão que os discursos ​na ​e ​da ​cidade
operam por ​exclusão ​a determinados corpos, considerados ​não civilizados e que tem então sua
cidadania consignada, sob a condição de mudança de conduta, ou seja, é necessário que por
meio de penas, o indivíduo aprenda (a não ser louco-vadio) e abandone a ​ociosidade​, para
assim​ ​ser​ ​reconhecido​ ​enquanto​ ​cidadão​.
Dito de outro modo, temos que ​a ​pobreza​, a ​demência​, a ​drogadição são revestidas de
criminalidade​, a partir de uma moralidade que permite separar com base entre o ​normal ​e o
doentio​, retomado em ​moral e bons ​costumes, diferenciar ​trabalho ​de ​trabalho de rua​: aqui
incluso, dis(puta)damente no interior da formação discursiva ​higienista​, trabalhos ​perigosos,
deploráveis que não são significados como ​trabalho ​no sentidos partilhados sobre ​cidade ​que
operam​ ​numa​ ​divisão​ ​política/simbólica​ ​entre​ ​um​ ​corpo​ ​hostil​ ​e​ ​cidadão.
É esta memória de exclusão simbólica e política ​na ​e ​pela ​cidade que permite a
associação ​óbvia: é morador de rua? É ladrão, É isso, É aquilo​, ou seja, “é fundamental
compreender essa sequência nas relações que ela estabelece com outras sequências no
interdiscurso, todas afetadas (de maneiras distintas) por uma série de determinações”
(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2016,​ ​p.88).
Importante ressaltar que em Rachid (2017), ao dissertar sobre o atravessamento de
uma questão ​higienista ​no discurso ​jurídico​, defende que “tendo-se no Direito Penal o
instrumento coercitivo de proteção a bens jurídicos de extrema importância, entende-se não
haver motivo para a penalização dos ditos vadios. Pois trata-se de uma questão enraizada na
moral e que não deve ser tutelada pelo Direito” (p.12). Deste modo, a autora aponta a questão
da ​interpretação ​no ​jurídico​, na medida em que o vadio é uma questão “própria do sistema
gerador de absorção do trabalhador pelo mercado” (p.11) significada enquanto uma
contravenção​ ​prevendo​ ​pena:

Pena​ ​-​ ​prisão​ ​simples,​ ​de​ ​quinze​ ​dias​ ​a​ ​três​ ​meses.
Parágrafo único​. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao
condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena. (BRASIL,
2017).

Interessante notar a contradição em que opera esta penalização: se é preso por não ter
trabalho ​(o que é considerado ​trabalho segundo a lei e segundo a moral e os bons costumes)
e ​por não ter domicílio certo (funcionando na distinção ​não-dita ​entre desempregado e
morador de rua, retomando o ​já-dito ​sobre vadiagem no discurso jurídico – da inauguração da
lei até sua última alteração), mas pode-se ser isento da pena caso haja ​a aquisição
superveniente de renda​, ou seja, caso este indivíduo arrume um trabalho (venda sua força de
trabalho)​ ​e​ ​consiga​ ​domicílio​ ​certo.
Assim, a formulação da ​contravençã​o entende a ​ociosidade​, retomando as palavras de
Marx (2017), ​como ​inclinação ​e não como ​constrangimento das circunstâncias ​– apagando a
exclusão ​deste indivíduos do mercado de trabalho formal ​na ​e ​pela ​retomada dos sentidos
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produzidos nas ​leis sangrentas - significando, pelo silêncio, a criminalização da pobreza (e
da​ ​loucura,​ ​a​ ​partir​ ​de​ ​demente​ ​pobre)​ ​produzida​ ​no​ ​e​ ​pelo​ ​discurso​ ​jurídico.
Esta contradição é o equívoco operante entre as discursividades assistencialistas/de
saúde e de segurança, produzindo práticas (prisão e assistência) e lugares (cadeia e
instituições de assistência) entre a ​piedade ​e a ​punição​: demente pobre -> usuário
assistido/criminoso.

2.3.​ ​prometeram​ ​a​ ​cidadania​ ​tirando​ ​a​ ​nossa

Tendo em vista a construção “de um outro hostil, memória constitutiva do imaginário


brasileiro” (BARBOSA FILHO, 2016, p.88) pela ​formação discursiva higienista apontadas
nos capítulos anteriores, analisamos outros trechos de fala do programa de rádio ​Destilado da
rua​ ​pensando​ ​a​ ​articulação​ ​da​ ​pobreza​ ​urbana​ ​à​ ​caridade​:
Sd (6)Nós samo ser humano igual a eles. Entendeu? E um dia/teve um dia que eu
aprendi, mano, a num ficar assim ​[?]​, né. E tem todas as coisas que eu fiz também e tal e tá
na rua, isso não leva ao caso. A violência tá demais, tem que chega e unir todo mundo aí e
fica na frente da prefeitura, pedi pra prefeitura uma casa pelo menos, pra todo mundo\pra
quem quer mudar de vida memo né, porque tem muita gente que não gosta de mudar de vida,
gosta de ficar na rua memo. Tem uns amigos meu memo que já falo ‘eu vou embora pra
quê?Aqui tem comida, tem tudo, tem tudo que eu quero’. Num é assim, a rua num é pra
sempre​ ​pra​ ​nóis​ ​fica.
A partir de um ​gesto de interpretação ​enquanto analista, dividimos a ​Sd(6) em outras
sequências discursivas, desfazendo a relação de ​justaposição ​delas, para melhor
compreendermos​ ​sua​ ​progressão:
Sd​ ​(6.1)​ ​Nós​ ​samo​ ​ser​ ​humano​ ​igual​ ​a​ ​eles​,​ ​entendeu?
Este enunciado dobrado, pode ser entendido na ​justaposição ​de duas formulações
distintas:
(SD​1.6.1​)​ ​Nós​ ​somos​ ​seres​ ​humanos
(SD​1.6.1​)​ ​Eles​ ​são​ ​seres​ ​humanos
Se x e y são seres humanos, porque nós (x) e (y) não podem ser aglutinados em um
único pronome? Ou seja, se ​todos são seres humanos, onde se inscreve essa distinção nós/eles
no​ ​seio​ ​mesmo​ ​de​ ​uma​ ​relação​ ​de​ ​igualdade?​ ​(no​ ​caso​ ​x​ ​=​ ​y​ ​diz,​ ​ao​ ​mesmo​ ​tempo​ ​x​ ​≠​ ​y).
Se escreve em uma afirmação de igualdade ao mesmo tempo que se inscreve,
retomada num percurso pela memória, a diferença pré-construída entre o ​nós cidadãos ​e ​o
outro hostil - construção móvel que opera em duas dimensões: o outro hostil do cidadão (o
morador​ ​de​ ​rua)​ ​e​ ​o​ ​outro​ ​hostil​ ​da​ ​população​ ​de​ ​rua​ ​(aquele​ ​que​ ​o​ ​trata​ ​como​ ​bicho).
Sd​ ​(6.2)​ ​E​ ​um​ ​dia/teve​ ​um​ ​dia​ ​que​ ​eu​ ​aprendi,​ ​mano,​ ​a​ ​num​ ​ficar​ ​assim,​ ​né​.
O advérbio de modo ​assim​, tem um funcionamento similar aos pronomes
demonstrativos como o ​isso ​e ​aquilo​, na medida em que é uma ​anáfora que não retoma um
elemento no intradiscurso, mas sim no ​interdiscurso​, ou seja, retoma “filiações históricas
organizadas em memórias” (PECHÊUX, 2008, p. 53)​. Deste modo, podemos pensar a
argumentação construída na ​Sd(6) em relação a ​antecipação​, na medida, que o ​assim ​dá a ver
a ​opacidade ​da formulação ​teve um dia que eu aprendi a não ficar assim​, deixando a cargo do
locutor, a partir de uma outra ​posição sujeito​, preencher os sentidos relacionados à ​forma que
se fica quando se está na rua – podendo retomar pré-construídos presentes no ​imaginário
brasileiro​ ​como​ ​drogado,​ ​hostil,​ ​demente,​ ​vagabundo,​ ​pobre,​ ​etc.
O​ ​e​ ​marca​ ​uma​ ​relação​ ​coordenativa​ ​entre​ ​as​ ​duas​ ​sequências​ ​discursivas.
Sd(1 e 2): Nós samu ser humano igual a eles, entendeu? ​E um dia, teve um dia que eu
aprendi,​ ​mano,​ ​a​ ​num​ ​ficar​ ​assim,​ ​né.
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Paráfrases​ ​possíveis:
Sd(6.1 ​e 6.2): Nós samu ser humano igual a eles, entendeu? ​E um dia, teve um dia que
eu​ ​aprendi,​ ​mano,​ ​a​ ​num​ ​ficar​ ​assim,​ ​né.
Sd (6.1 ​mas 6.2): Nós samu ser humano igual a eles, entendeu? ​Mas um dia, teve um
dia​ ​que​ ​eu​ ​aprendi,​ ​mano,​ ​a​ ​num​ ​ficar​ ​assim,​ ​né.
Sd (6.1 ​portanto 6.2): Nós samu ser humano igual a eles, entendeu? ​Portanto ​um dia,
teve​ ​um​ ​dia​ ​que​ ​eu​ ​aprendi,​ ​mano,​ ​a​ ​num​ ​ficar​ ​assim,​ ​né.
Sd (6.1 ​pois 6.​2): Nós samu ser humano igual a eles, entendeu? ​Pois ​um dia, teve um
dia​ ​que​ ​eu​ ​aprendi,​ ​mano,​ ​a​ ​num​ ​ficar​ ​assim,​ ​né.
Esta formulação retoma, pela memória, sentidos produzidos ​na ​e ​pela ​formação
discursiva higienista, em que a possibilidade de cidadania – se reconhecer em um ​nós cidadão
da discursividade do direito burguês a partir da diferença marcada entre ​cidadão brasileiro ​e
o ​outro hostil (nós igual a eles) - é colocada a partir da condição de mudança de ​modos de
vida​: ​aprender a não ficar assim ​[como se fica quando se está na rua], similar a condição para
extinção​ ​da​ ​pena​ ​na​ ​contravenção​ ​do​ ​Código​ ​Penal.
Continuando:
Sd (6.3) E tem todas as coisas [?] que eu fiz também e tal [?] por tá na rua, [?] isso
[?]​ ​[ᴓ]​ ​não​ ​leva​ ​ao​ ​caso.
O​ ​uso​ ​do​ ​por​ ​inscreve​ ​a​ ​seguinte​ ​relação:
(causa)estar​ ​na​ ​rua ​ ​(consequência)​ ​fazer​ ​todas​ ​as​ ​coisas
O ​isso ​e o ​tal​, enquanto demonstrativos anafóricos, funcionam enunciativamente com
base em uma pressuposição, ou seja, a partir de um ‘efeito de saber’ compartilhado entre os
interlocutores- operam na sua relação constitutiva com o ​interdiscurso - retomando as
relações de sentidos produzidas na formação discursiva higienista, que inscreve em ​fazer
todas​ ​as​ ​coisas​ ​e​ ​tal​ ​por​ ​tá​ ​na​ ​rua​ ​os​ ​sentidos​ ​de​ ​loucura,​ ​pobreza​ ​e​ ​drogadição.
Há​ ​uma​ ​relação​ ​coordenativa​ ​entre​ ​essas​ ​sentenças:
Sd (6.1e 6.2 e 6.3)Nós samu ser humano igual a eles, entendeu? E um dia/teve um dia
que eu aprendi, mano, a num ficar assim [?] , né. E tem todas as coisas [?] que eu fiz também
e​ ​tal​ ​por​ ​estar​ ​na​ ​rua​ ​[mas,​ ​por,​ ​e]​ ​isso​ ​[ᴓ]​ ​não​ ​leva​ ​a​ ​caso.
Como é possível que a ligação entre as coisas feitas e o estar na rua seja óbvia?
Veremos​ ​conforme​ ​a​ ​progressão​ ​da​ ​argumentação:
Sd (6.4) Então a violência tá demais, tem que chega e unir todo mundo aí e fica na
frente da prefeitura, pedi pra prefeitura uma casa pelo menos pra todo mundo/para quem
quer mudar de vida memo, né, porque tem muita gente que não gosta de mudar de vida, gosta
de​ ​ficar​ ​na​ ​rua​ ​memo.
Esta​ ​formulação​ ​constrói​ ​por​ ​determinação​ ​muita​ ​gente​ ​e​ ​todo​ ​mundo​:
Muita gente = pessoas que não ​gostam de { mudar de vida
sair da rua
}, gostam de {
f icar na rua
f azer todas as coisas que se f az quando se está na rua
}​ ​memo​.
querem mudar de vida memo
Todo​ ​mundo=​ ​pessoas​ ​que​ ​{ aprenderam a não f icar assim },​​ ​né.
Nos perguntamos, a partir do encaixamento das ​Sd(6.1)​, ​Sd (6.2), Sd(6.3) ​e ​Sd(6.4) ​se
é​ ​possível​ ​que​ ​muita​ ​gente​ ​faça​ ​parte​ ​do​ ​nós​:
Sd (6.4.1) ​A violência tá demais ​[como resposta à essa violência] [causada pelo
que?] ​tem que chega e unir todo mundo aí e fica na frente da prefeitura ​[para] pedir pra

29
querem mudar de vida memo
prefeitura uma casa pelo menos pra [todo mundo] { aprenderam a num f icar assim ​} e não pra [muita
que não gosta de mudar de vida
gente]​ ​ { que não quer sair da rua memo
​ ​}.
Esta sequência discursiva produz um efeito de evidência da prefeitura como espaço
legítimo de demanda – uma forma de inscrever a ​revolta ​na língua política da burguesia (que
se constrói no encontro entre o ​político ​e o ​jurídico, ​igualando-os no imaginário de justiça
burguês) já saturada na legalidade de certas demandas. É na ilusão, discutida no primeiro
capítulo desta pesquisa, da ​inclusão ​impossível – pela divisão de classe – que se negocia uma
alteridade​ ​dentro​ ​do​ ​discurso​ ​higienista:
Sd(6.5) Tem uns amigos meu memo que já falo ‘eu vou embora pra quê?Aqui tem
comida, tem tudo, tem tudo que eu quero’. Num é assim, a rua num é pra sempre pra nóis
fica.
Uns amigos = ​Muita gente = pessoas que não ​gostam de { mudar de vida
sair da rua }, gostam de {
f icar na rua
f azer todas as coisas que se f az quando se está na rua
} ​memo​, porque { naaqui
rua
}, tem comida, tem tudo,
tem​ ​tudo​ ​que​ ​elas​ ​querem.
Temos, então, a construção ​no ​e ​pelo ​discurso higienista que atravessa esta sequência
discursiva, algo que retoma ​uma confissão​, enquanto reconhecimento da permanência na rua
como errada- ​num é assim, a rua num é para sempre pra nóis fica – na medida em que a rua é
significada como lugar de passagem e não de moradia, como necessária para a criação
ilusória da possibilidade de cidadania (inclusão do diferente num sistema que produz esta
diferença).
É por meio deste processo discursivo que produz a clivagem no ​nós​- posição-sujeito
população ​em situação ​de rua - na necessidade de textualizar a resistência aos sentidos de
vagabundo​, ​demente pobre​, ​drogado - ​que se constrói a interdição ao espaço discursivo de
quem ​gosta de ficar na rua memo​, operando uma separação entre ​os que querem sair ​e ​os que
querem ficar​. A divisão do ‘nós’ que quer ficar e que gostaria de sair, desembocado na
temporalidade do termo ​situação de rua​, o que retoma a lei de vadiagem sobre aqueles cuja
natureza é de insubmissão- e a casa é para ​os que querem sair​, o que dá a ver o
funcionamento do auxílio do Estado enquanto promessa das instituições assistencialistas sob
a condição de outra promessa: a do indivíduo de ​sair da rua​, em outras palavras, se inscreve a
necessidade da ​confissão ​e da promessa de mudança (moral) para que o Estado signifique este
indivíduo​ ​enquanto​ ​cidadão​ ​(como​ ​tendo​ ​moradia​ ​e​ ​trabalho​ ​lícito).

Troque​ ​esmola​ ​por​ ​cidadania


Para pensarmos no funcionamento da ​promessa enquanto discursividade
assistencialista que articula ​pobreza urbana ​à ​caridade ​(atravessada pelo discurso religioso)​,
trouxemos​ ​um​ ​panfleto​ ​da​ ​campanha​ ​da​ ​prefeitura​ ​de​ ​Campinas​ ​realizada​ ​em​ ​abril​ ​de​ ​2016:

30
Temos, nesta campanha, a determinação da permanência na rua como alteridade
inegociável ao cidadão brasileiro, que dá a ver o porque ​num é assim, a rua não é para nóis
fica​:
Sd (7) Dar comida pode atender a uma necessidade momentânea. O ato de dar
comida pode apenas fortalecer ​a permanência das pessoas na rua ​sem perspectiva de uma
vida​ ​melhor.
Sd (8)Não doe roupas, cobertores e colchão para quem está na rua. Sua doação pode
fazer apenas com que essa pessoa ​permaneça na rua embaixo das marquises, calçadas e
viadutos.
A formulação ​troque sua esmola por cidadania ​constrói uma relação de
impossibilidade de conciliação entre ​esmola ​e ​cidadania​, jogando com a própria produção do
morador de rua que precisa submeter sua cidadania – que nessa discursividade é quase a
dignidade​ ​humana​ ​–​ ​para​ ​pedir​ ​e​ ​sobreviver​ ​de​ ​esmolas.
S​aiba​ ​porque​ ​dar​ ​esmola​ ​não​ ​ajuda​ ​conjuga​ ​dois​ ​enunciados:
Dar esmola não ajuda ​com ​você precisa saber disso ​[porque você não sabe, quem
sabe​ ​somos​ ​nós].
Este ​nós ​funciona, neste do jogo pronominal, enquanto ​nós do Estado ​que sabemos o
que você não sabe - como tirar essas pessoas da rua.. Entra em disputa então, dentro da
formação discursiva higienista, pela discursividade assistencialista, o reconhecimento de uma
outra esmola – mais legítima porque intermediada por instituições que se ocupam,

31
justamente, de tirar essas pessoas das ruas – sem considerar o lugar daquele que necessita
dela,​ ​como​ ​se​ ​isso​ ​fosse​ ​uma​ ​decorrência​ ​natural​ ​das​ ​relações​ ​da​ ​cidade,​ ​articulando:
discursividades jurídicas, administrativas, científicas, políticas, pedagógicas
sinalizando um processo ao mesmo tempo universalizante e privatizante que
produz um efeito de mascaramento/simulação da divisão desigual dos
indivíduos​ ​no​ ​direito​ ​à​ ​cidade​ ​(CHAVES,​ ​2015​ ​,​ ​p.32)

Assim, o que dá materialidade a esse sujeito ​que permanece na rua ​é a consignação


de sua cidadania – deixar de ser cidadão – para ser esse sujeito inominável (o seu nome não
aparece na campanha, apenas como ​quem está na rua, pessoas pedintes ​e nome de ofícios),
nunca​ ​como​ ​cidadão​.
Amigo​ ​flanelinha​ ​ou​ ​troque​ ​sua​ ​cidadania​ ​por​ ​esmolas
Nesta seção, analisaremos a letra da música ​Amigo flanelinha ​de Osvaldo Silva,
tocada diversas vezes no programa ​Destilado da rua, ​na medida que textualiza ​a permanência
da​ ​rua​ ​e​ ​o​ ​flanelinha​ ​presentes​ ​na​ ​Campanha​ ​acima​ ​analisada:
Choro só em pensar o amiguinho [menor de idade, identificação, diminutivo indicando] ​que
eu​ ​conheci,
numa​ ​tarde​ ​de​ ​sol​ ​com​ ​um​ ​balde,​ ​água​ ​e​ ​sabão.
Com​ ​a​ ​flanela​ ​na​ ​mão​ ​no​ ​sinal​ ​vermelho.​ ​[é​ ​o​ ​lugar​ ​que​ ​o​ ​define]
Senhor,​ ​roupa​ ​suja​ ​e​ ​de​ ​pés​ ​no​ ​chão.
Todo​ ​dia​ ​toda​ ​hora​ ​ele​ ​tava​ ​alí
não​ ​tinha​ ​pai​ ​não​ ​tinha​ ​mãe​ ​[ausência​ ​de​ ​família]​,​ ​ele​ ​me​ ​falou:
Minha​ ​casa​ ​é​ ​a​ ​rua​ ​[mas,​ ​e,​ ​no​ ​entanto...]​ ​eu​ ​durmo​ ​nas​ ​praças.
após​ ​me​ ​servir,​ ​chorando​ ​me​ ​pediu:
-​ ​Senhor,​ ​um​ ​trocado​ ​por​ ​favor!​ ​Chorando​ ​suplicou.
- Vivo nas ruas a muito tempo, comendo o pão que o diabo amassou, o meu sonho é ir a
escola, não lavar carros e nem cheirar cola e na minha solidão é o meu desabafo. As drogas
me dominam, não consigo fugir ​[pra onde]. ​O povo passa e eu as vezes na praça sugando
aquela​ ​cola​ ​que​ ​não​ ​tem​ ​valor.
Sou​ ​filho​ ​do​ ​mundo​ ​jogado​ ​[por​ ​quem?]​ ​ao​ ​nada​ ​[não​ ​é​ ​só​ ​vazio...​ ​ausência,​ ​falta];
Feito​ ​poeira​ ​na​ ​estrada.
Nos primeiros trechos da música, podemos apontar “a radicalidade das práticas de
Estado e do poder econômico que se desenvolvem não apenas sobre o conceito jurídico de
‘pessoa’, mas sobre a materialidade corporal desses sujeitos: sobre a carne e sobre a pele”
(BARBOSA FILHO, 2016, p.20), que constrói o corpo do morador de rua, enquanto corpo
fragmentado pelo efeito de metonímia: ​um balde, água e sabão, com flanela na mão no sinal
vermelho,​ ​roupa​ ​suja​ ​e​ ​de​ ​pés​ ​no​ ​chão.
O corpo é inscrito pela ​ausência​, sendo escrito numa relação em que é possível
substituir ​mão ​por ​flanela ​e ​pés ​por ​chão​. O corpo ​do flanelinha ​está atado ao corpo da cidade

32
no sinal vermelho​. O espaço ocupado pelo corpo nas fronteiras simbólicas/políticas da cidade
enquadra ​o corpo-trabalho. Roupa suja ​como ​a calçada suja, ​um corpo sujo ​porque ​todo dia
toda​ ​hora​ ​ele​ ​tava​ ​ali​ ​no​ ​sinal​ ​vermelho​.
A relação constitutiva entre ​sujeito, espaço e sentidos ​textualizada nesta música, dá a
ver o processo pelo qual a ​rua ​é definida como ​falta​: de trabalho, de vestimenta (limpa), de
moradia​ ​e​ ​de​ ​família.​ ​Esta​ ​definição​ ​determina,​ ​por​ ​oposição,​ ​a​ ​posição​ ​sujeito-cidadão:
A representação dominante sobre a rua, que a configura como um espaço de
ausências, lamina dos habitantes de rua o direito à cidade, por um lado, ao
mesmo tempo que é produtora de um modo específico de conceber o social (e
a si mesmos, como donos da sociedade), como dignos, limpos, democráticos,
moralizados,​ ​familiares,​ ​autônomos​ ​e​ ​trabalhadores.​ ​(RUI​ ​[et​ ​al],​ ​2016,​ ​p.17)

Esta tensão entre as posições-sujeito produz o ​cidadão ​definido a partir do que o


flanelinha​ ​não​ ​tem​ ​e,​ ​por​ ​nada​ ​ter,​ ​seu​ ​corpo​ ​também​ ​não​ ​tem​ ​valor:
Sd​ ​(9)​ ​O​ ​povo​ ​passa​ ​e​ ​eu​ ​as​ ​vezes​ ​na​ ​praça​ ​sugando​ ​aquela​ ​cola​ ​que​ ​não​ ​tem​ ​valor.
Sd​ ​(9.1)​ ​ { euaquela
sou aquele
cola
}​ ​que​ ​não​ ​tem​ ​valor

Como ​aquele que não tem valor/ filho do mundo jogado ao nada/ poeira na estrada​, a
posição-sujeito ​flanelinha ​é construída ​no ​e ​pelo ​sofrimento, choro, desespero, servidão,
enquanto a posição-sujeito ​cidadão ​é ​na ​e ​pela ​pena, generosidade, caridade, etc. A esmola,
nesta discursividade, se escreve como ​trocado, ​podendo ser substituída numa relação
associativa por ​uma moedinha ​da fala analisada no capítulo 2 – o flanelinha, então, recebe um
tratamento​ ​de​ ​bicho​.
Lemos, dessa forma, os efeitos sentidos produzidos na música amigo flanelinha
vinculados a um ​sentido partilhado ​de morador de rua, pelo apagamento do político e pelo
uso dos verbos ​servir, pedir, suplicar, chorar que escancara um espaço enunciativo aceito –
como ​sofredor​- por gerar no ​cidadão e no Estado ​sentimentos como piedade, culpa, etc -
funcionando como na banalização e espetacularização do sofrimento na mídia hegemônica
brasileira. Enquanto o ​vadio /​ladrão / drogado​, ​pelo contrário, apesar de significado como
incômodo ​de qualquer forma – gera no ​cidadão e no Estado ​( e na mídia, principalmente em
programas sensacionalistas) o ódio, a violência, etc. Ou seja, em relação com a ​Sd (6)quando
se pede uma moedinha ali ou aqui ​é tratado como ​bicho​, mas quando não se age dessa forma,
o​ ​tratamento​ ​é​ ​igual​ ​lixo​.
Quando colocamos em relação esta posição ​flanelinha com a campanha ​Troque
esmolas por cidadania​, percebemos seu funcionamento com base numa culpa religiosa que
coloca o ​cidadão ​como ​aquele que pode ajudar em oposição aos efeitos de sentido da
campanha, que desliza este sentido para ​não ajude um morador de rua ​e sim ​ajude uma
instituição que ajuda o morador de rua​, eliminando a ​culpa ​do cidadão e produzindo um
certo alívio pois enquanto ​cidadão, não preciso mais me preocupar com isso, pois o Estado já
se​ ​preocupa​.
Há, então, uma disputa de sentidos, no interior da mesma formação discursiva, a
higienista, que se dá na articulação da ​loucura, pobreza, drogadição, vadiagem​, produzindo
práticas, lugares e discursos divididos entre o ​punir ​e o ​ajudar​. Traremos, visando criar um
efeito​ ​de​ ​fechamento,​ ​uma​ ​última​ ​fala​ ​ ​da​ ​rádio​ ​onde​ ​se​ ​escreve​ ​esta​ ​ambivalência:

33
Sd(10) Então é o seguinte, primeiro, a gente vai no SoS rua e não tem a atenção que
nós merecemos, os moradores de rua, porque querendo ou não o SOS rua é nosso. A
assistência social também, do centro pop também, nós vamos lá para pegar uma ficha para
almoçar no Bom Prato, também não é liberado, quem tem cadastro lá só almoça na parte da
tarde, isso tá errado, porque o cadastro é o tanto que vocês quer e não o tanto que nós
queremos. Porque primeiro, tudo que tá lá é nosso. ​Prometeram a cidadania para a gente
destruindo a nossa e até hoje não cumpriram isso daí. Já tá errado. Somos tratados na rua
como lixo, guarda municipal vem e nos agride, guarda municipal vem e tira da onde nóis
tamo, primeiro, o centro pop inventou um papel lá que segundo a justiça que nóis podemos
permanecer no lugar que nós estamos com direito da gente, embora ​não estejamos roubando
ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém, mas quando nós estamos nesse lugar,
nóis fala do nosso direito, assim mesmo somos agredidos e expulsos do lugar que nóis
estamos, ​pô, quem nós somos para vocês? O albergue é uma merda, perdão o palavrão, mas
tá uma merda. É só 5 dia lá e depois expulsa a gente como se fossemos um cachorro, como
se fosse um lixo, como se fosse ninguém. ​Depois nóis queremo entrar lá de novo para tomar
um banho​, falta pouco a gente ficar ajoelhado lá para pedir somente um banho​, comida?
Para o tanto de marmitex que chega lá, eles jogam tudo no lixo, verifica o lixo lá, e num dá
para ninguém, isso é errado. Acredito que meu tempo acabou, pensa sobre isso, se você quer
verdadeiramente​ ​nos​ ​ajudar​ ​ou​ ​só​ ​tá​ ​aqui​ ​fazendo​ ​cena​ ​mesmo.
Esta sequência discursiva ​fecha ​todas as análises feitas anteriormente: o Estado que
através de políticas, saberes, instituições, produz o morador de rua como não cidadão é o
mesmo que promete restituir esta cidadania e é o mesmo que, como aparelho repressor, o
pune. Evidencia a contradição dos sentidos produzidos na formação discursiva higienista,
principalmente​ ​em:
primeiro, o centro pop inventou um papel lá que segundo a justiça que nóis podemos
permanecer no lugar que nós estamos com direito da gente, embora não estejamos roubando
ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém, mas quando nós estamos nesse lugar,
nóis fala do nosso direito, assim mesmo somos agredidos e expulsos do lugar que nóis
estamos,​ ​pô,​ ​quem​ ​nós​ ​somos​ ​para​ ​vocês?
Como a (im)possibilidade da negociação da alteridade quando o que está em jogo é a
permanência​. ​A rua não é para nóis fica ​porque mesmo que exista um ​direito de permanecer
- embora não roubando ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém [?] - ​na rua, é a
partir da negação dele que se construíram, historicamente, as práticas repressoras do Estado
(vide análise da ​contravenção ​da vadiagem) e estas práticas violentas permanecem, apesar da
prática​ ​de​ ​assistência​ ​do​ ​mesmo​ ​Estado/burguesia.
Desse modo, ​a cidadania ​do cidadão brasileiro é constitutiva da posição ​burguês e o
Estado promete restituir esta ​cidadania ​somente se o ​outro ​hostil ​se submeter a uma relação
de dependência e a partir dela se (re)estabelecer nas relações burguesas (família, moradia,
trabalho, higiene), ou seja, somente se aceitar a vender sua força de trabalho enquanto
proletário e achar meios de fazer isto - inscrevendo, pelo silêncio, a exclusão que produz ​os
moradores​ ​de​ ​rua​.
Concluímos, a partir de um efeito de fechamento, que se constrói, pelo atravessamento
de discursividades assistencialistas, de segurança e de saúde dentro da formação discursiva
higienista, a posição sujeito ​população em situação de rua funcionando na contradição entre
o Estado que auxilia (por meio de instituições de assistência e de saúde) e o Estado que pune
(como infração por meio de aparelhos repressivos) - e a pergunta que ecoa desde-sempre é
34
quem nós (que vocês produzem como dementes pobres, drogados, vagabundos, ladrões)
somos​ ​para​ ​vocês​ ​(Estado,​ ​burguesia)?
Dito de outra forma, o Estado, por meio de instituições e discursos, opera por exclusão
na ​e ​pela ​cidade produzindo ​cidadãos ​e ​não cidadãos​, punindo esses últimos (tanto com a
consignação da cidadania como pela violência no corpo - ​agredidos e expulsos como lixo​) ao
mesmo tempo que ​faz cena ​de que quer ajudá-los: o que está em questão é a “organização da
sociabilidade e do limite entre a diferença tolerável e a alteridade inegociável na cena pública,
dando visibilidade à articulação entre os domínios da pobreza urbana, da medicina, do direito
e​ ​das​ ​políticas​ ​públicas”​ ​(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2017,​ ​p.3)
3.​ ​considerações​ ​finais
Tendo em vista que um processo discursivo não se encerra e não se fecha e que “o fim
parece ser só uma continuidade do percurso” (CHAVES, 2015 ,p.137), trazemos para o
diálogo a argumentação de outros pesquisadores, da área da antropologia, para traçarmos
nossas​ ​considerações​ ​finais:
Tanto a privação quanto a violência a que são submetidos os moradores de
rua contemporaneamente têm menos a ver com condições individuais de
drogadição, ruptura familiar, saúde mental ou pobreza extrema, e mais a ver
com os modos como se constrói ativamente, nos cotidianos e nos
pressupostos das políticas, a oposição moral e religiosa aos vagabundos,
drogados, dementes e ladrões. (...) As políticas que procuram reabilitar os
moradores de rua são as mesmas que, paradoxalmente, os produzem como
tais. Dada a criminalização produzida pelas políticas, por exemplo, os
moradores de rua passam a ser vistos como mais perigosos que em sua
ausência.​ ​(RUI​ ​[et​ ​al],​ ​2016,​ ​p.7)

Esse trecho que trazemos é um fragmento de uma introdução de um livro organizado


por ​Taniele Rui, Mariana Martinez e Gabriel Feltran (setembro de 2016) ​que é uma coletânea
de artigos que tematizam a situação de rua na última década (2006-2016). Esses textos não
trazem só um retrato do que se chamaria situação de rua nas últimas décadas, como também
as formas de resistência desses corpos e desses sujeitos no trato com essa situação e
constróem uma crítica às políticas públicas pelo seu funcionamento paradoxal entre o
reabilitar​ ​e​ ​o​ ​produzir:
Afinal, “as políticas que procuram reabilitar os moradores de rua são as mesmas que,
paradoxalmente, os produzem como tais” ​(RUI [et al], 2016, p.7)​. ​Crítica incisiva construída a
partir de outros percursos movidos por outras posturas analíticas, mas que “dizem bem do
meu caminho percorrido a partir de uma pergunta” (CHAVES, 2015, p.137): ​como os
sentidos de população de rua se constituem na rádio Destilado da Rua? ​Ou de outra maneira:
como se dá o atravessamento de formações discursivas assistencialistas, de segurança e saúde
pública​ ​nos​ ​enunciados​ ​produzidos​ ​no​ ​programa​ ​Destilado​ ​da​ ​Rua?
Tomamos como ponto de partida análitico, para responder tal pergunta e movidos pela
vontade de saber, uma aposta que diz que esse processo de constituição de sentidos sobre a
população de rua ​no programa ​Destilado da rua ​está fortemente relacionado às tensões que
envolvem a presença e as ações de determinados ​corpos ​no espaço público, o que nos levou a
vias diferentes e materialidades diferentes “em uma relação construída entre arquivo e ​corpus​,
abrindo possibilidade de interpretação” (CHAVES, 2015, p.137) que nos leva a apontar um
35
processo discursivo: as derivas nos sentido de ​população em situação de rua ​enquanto
demente pobre-pobre coitado ​e o ​morador de rua enquanto ​ladrão-vagabundo​, tensão entre a
vitimização e a criminalização, escancaradas na textualização da resistência a esses sentidos
pelos enunciados da rádio Destilado da rua (negação, deslocamento, rupturas e não
(re)conhecimento).​ ​(CHAVES,​ ​2015)
Nesse sentido é que como em Barbosa Filho (2017) adotamos a expressão ​corpos
perigosos “para tratar dos sujeitos (mesmo que não lhes fosse concedida uma plena
substância jurídico-política) que na fala pública” (p.5) - programa de rádio online - oferecem
“risco à suposta homogeneidade do imaginário das elites políticas e econômicas do Brasil,
que ameaçavam o corpo político, os ‘cidadãos’ e que regulavam a discursividade da diferença
e​ ​da​ ​alteridade​ ​no​ ​espaço​ ​político”​ ​(p.5).
Assim, esses ​corpos perigosos são vulneráveis às arbitrariedades das instituições,
estando expostos a violência de Estado que se exerce “não apenas no conceito jurídico de
pessoa mas no corpo” (BARBOSA FILHO, 2017, p.5): encarceramento, interdição a certos
espaços, etc (vide a existência ainda hoje da contravenção de vadiagem). E é sobre esse corpo
que os discursos médicos sobre a saúde mental articulam a loucura, pobreza e vadiagem. E
também sobre ele que se exerce o controle pela vitimização do discurso assistencialista de
suas ações (horários de entrada, promessa de mudar de situação, disciplina, abstinência, etc).
(BARBOSA​ ​FILHO,​ ​2017).

Referências
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BARBOSA​ ​FILHO,​ ​F.​ ​R.​ ​Alienados​ ​e​ ​vadios​ ​na​ ​cidade:​ ​discurso​ ​sobre​ ​o​ ​corpo​ ​negro​ ​e
mestiço​ ​na​ ​Bahia​ ​do​ ​século​ ​XIX​ ​(1801-1900).2016.​ ​[s​/​n].​ ​Projeto​ ​Pós-Doutorado​ ​Fapesp.
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36
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