Campinas
2017
ANA ELISA VOLPATO ORTOLANO
CAMPINAS
2017
1
Dedico este trabalho à meus pais, meu namorado
e meus amigos e à todos da população de rua,
malabaristas de rua, trabalhadores de rua, malucos
(artesãos) e trabalhadores dos serviços de atendimento à
população de rua de Campinas que eu conheci durante
esse processo e tive a sorte de ter por perto - a cidade,
as ruas, os semáforos, as pessoas, as calçadas, as
praças, o movimento no centro: tudo virou coisa outra,
coisa distinta, mudou em mim tudo em volta: com certeza
fizeram de mim uma melhor pessoa.
2
Agradecimentos
Aos meus:
À minha mãezinha, Rosangela, pelos cheiros, gostos, abraços, empurrões e
palavras que me puseram a caminhar: obrigada por tentar, desde sempre, mudar
para aceitar as mudanças: minhas, do nossos e do mundo todo. Agradeço por me
ensinar enquanto aprende, a ser livre - e a ser feliz.
Ao meu pai, Marcos, pelos olhos doces, sorrisos de alegria ao me ver e por gostar
tanto de viver: a sua fraqueza é a minha também e é por isso que nos fazemos
fortes, cada dia. Tudo pode parar e ainda assim se mover.
Ao meu companheiro, Jorgito, por sacudir meu mundo, pegar minha mão e me levar
para rua: enquanto você andava, saia de dentro de você tantas cores, fogos e
movimento que preenchiam a cidade - semáforo por semáforo, as luzes em
movimento circulares pareciam tão rápidas - e tudo passou tão rápido e foi tão
intenso, como a vida vista de longe. Vos pintaste mi pupilas con los colores de la
vida.
Aos meus primos e tia, Fábio, Fernando e Neivinha: pelos cafés, mergulhos na
piscina e carinho.
3
À tia Lú, Carlos, Gabi e Giulia por serem uma família que meus pais escolheram e
eu amei ter. Obrigada por me acolherem em Campinas!
Aos meus padrinhos, Marizete e Bandini, pelo carinho e alegria a cada visita.
Aos meus amigos que me viram tantas vezes ser outra e continuam me
reconhecendo: Carol, Raquel, Tk, Thiago e Romeu. Obrigada por continuarem
comigo e me acolherem de volta - as vezes ando por Londrina e consigo recompor
alguns caminhos que a gente fazia e me sinto em casa.
Ao Di, meu querido amigo-irmão, obrigada pelos sonhos sonhados juntos e pela
alegria de sempre se reencontrar.
À Maria Luiza e ao Nelson, por tanto me ajudarem em Londrina com tanto carinho!
Aos meus amigos que me deram carinho, suporte, cafés, colchão, comida, cigarros,
suporte acadêmico e outras coisas sempre que precisei desde que cheguei em
Campinas: Queilinha, Gabi, Jamile, Gui, Ian e Zenti: foi muito bom passar por várias
fases nesses anos e ter vocês sempre por perto.
À minhas amoras, Clara e Julia, por todas as conversas, desabafos, brisas, viagens
e todo amor que vivemos juntas. Tudo ficou mais gostoso com vocês por perto.
À todas as pessoas que dividiram anseios e brisas comigo nesses anos da
faculdade, no centro acadêmico, no bandejão, no Ademir, nas festas do IFCH, nas
ocupações ou numa mesa com café ou com cerveja.
Aos que conheci e convivi durante a realização desse projeto:
Ao meu orientador, profº Lauro José Siqueira Baldini, por ter confiado em mim
quando eu não estava confiando, pelos emails trocados de madrugada em que eu
mandava uma série de p.s. e você respondia com paciência e carinho: acho a
acadêmia um lugar nem tão ruim e nem tão distante por causa de você.
Aos membros da Comissão de Visibilidade da População de rua de Campinas, em
especial Humberto, Felipe Reque, Felipe Garcia e Geisa mas também a todos os
outros que conheci e com quem aprendi, pela abertura, parceria e paciência em
ouvir todas as minhas perguntas.
Aos membros do Movimento Nacional População em Situação de Rua - pólo
Campinas: Adriana, Bianca, Luiz e Luiz Nascimento e seus outros integrantes.
4
Obrigada por (re)existirem e acreditarem que juntos são mais fortes - e por me
acolherem tão bem.
À todos que já passaram pela rádio Destilado da rua, em especial Fernando, Joeber,
Jamila, Rodrigo e seu Jair - por não me deixarem ficar quieta de cantinho na sala de
gravação e me fazerem falar numa rádio online ou numa roda de conversa, por
terem me acolhido e conversado comigo. Obrigada por confiarem em mim e me
ensinarem tanto com suas histórias de vida e de luta.
Ao Fábio Ramos Barbosa Filho, por ser um excelente professor e um paciente leitor.
Se você não tivesse me incentivado tanto não sei se eu teria terminado agora. Foi
bem melhor com você por perto.
A Tyara Veriato Chaves, pelos caminhos percorridos que me ajudaram a percorrer o
meu e pela leitura atenta e carinhosa.
5
Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade
Leminski, Quarenta Clics em Curitiba
... o livro pode valer pelo muito que nele não deveu
caber.
Guimarães Rosa, Tutaméia
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Resumo
Palavras chave: Análise do discurso. População de Rua. Exclusão e Resistência.
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Abstract
This work analyses the dispute of meanings involving the presence/long stay of
some bodies in the public space, considering the ideological constitution of the
meanings in two orders: something of the institutional order that legitimate
(FEDATTO, 2011) and produce the marginalisation and conviction of the homeless
population (população de rua) and something of their everyday life that breaks it. In
other words, we sought to understand the (re)producition in the city's imaginary of the
homeless population as a dangerous, bum, strung-out and the resistance to these
meanings textualized in the utterances of the radio Destilado da Rua – the process of
construction and legitimation of the social subject – we-political (CESTARI, 2015)
“população de rua”. In order to go through such paths of meaning, this work
interrogates the sets of relations that define the homeless population as an
urban/social question - as a product of the operation of dicursive memory in historical
relations - by recovering these sayings in different areas of textualization: songs and
speeches of the radio Destilado da rua, laws, academic articles, flyers, etc. As a
discourse analyst, moved by the question – how the meanings of “população de rua”
are constituted in the radio Destilado da rua? Understanding it as a movement of
meanings through history (CHAVES, 2015) – that gave us ways to see the
confluence of three diffent discourses - with distinct genealogies (PECHÊUX, 2011)
- articulated in the singularity of our object: madness, poverty and vagrancy. The
articulation of these discourses produces the subject position população de rua, as
history materiality that defines the policy of meanings that divides in the city, the
boundaries between public and private.
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SUMÁRIO
9
1. introdução e percurso de leitura
Desse modo, “é a ideologia que fornece evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o
que são as coisas ‘que todo mundo fala’” (PECHÊUX, 1988, p. 160), pois as formações
discursivas dissimulam uma transparência de sentido, fingem uma não-dependência em
relação à memória discursiva: “as palavras já são sempre discursos na sua relação com os
sentidos e todo discurso já é uma fala que fala com outras palavras, através de outras
palavras” (ORLANDI, 2007, p.15).
Todo texto se apresenta como transparente e cabe ao analista devolver a opacidade
do texto, pois “a materialidade linguística é o lugar da manifestação das relações de forças e
de sentidos que refletem os confrontos ideológicos” (ORLANDI, 2007, p.21). Não há
coincidência entre a ordem do discurso e a ordem das coisas, visto que uma mesma coisa
pode ter sentidos diferentes para os sujeitos. “Os próprios locutores (posições do sujeito) não
são anteriores à constituição desses efeitos, mas se produzem com eles” (ORLANDI, 2007,
p.21).
A partir desta posição como analista do discurso, nos propomos a pensar a produção
e circulação dos textos na e pela cidade, ou seja, se faz necessário compreender os
enunciados a partir do espaço que “tenciona o efeito de passado da memória e o vir-a-ser do
possível” (BARBOSA FILHO, 2016, p. 21).
As diferentes posições sujeito são separadas e unidas pelos regimes de ocupação, de
organização e de gerenciamento do espaço urbano, que permanecem implícitos, agindo
silenciosamente para delimitar fronteiras internas, pondo em evidência que
está ligada ao imaginário projetado pela cidade, tanto pelos seus habitantes
como pelos especialistas do espaço, como urbanistas, administradores etc.
que, assim, se relacionam com a cidade através desse imaginário,
organizando o espaço da cidade, planejando-o, calculando-o de maneira
10
empírica ou abstrata de acordo com seus objetivos (ORLANDI, 2011,
p.694).
11
(COURTINE, 1999, p. 19).
13
Assim, a significação de certos indivíduos como moradores de rua funciona pela
relação com o imaginário de cidade que os constrói como uma questão urbana “sustentada e
estimulada pela confluência cruzada de variados discursos, instituições, saberes e poderes
especializados. Agenciamentos plurais que buscam de diferentes maneiras, definir o problema
e também solucioná-lo” (DE LUCCA, 2007, p. 16).
Em outras palavras, é como problema a ser solucionado que se constitui a existência
dessa população na e pela política de circulação “em diversas instâncias textuais (tanto
linguísticas, como em livros, panfletos e jornais, quanto imagéticas, como placas de rua e
desenhos arquitetônicos” (FEDATTO, 2011, p.23). Por interpretar desta forma as políticas de
circulação, nosso corpus foi montado compondo: falas do programa Destilado da Rua,
músicas tocadas no programa Destilado da Rua, panfletos da prefeitura, artigos da internet e a
lei de vadiagem do Código Penal.
Por entender que esta política de circulação está estruturalmente vinculada ao “espaço
urbano enquanto produção simbólica” (RODRIGUEZ, 2014, p.261), trabalharemos com o
conceito de ambiência tanto em Fedatto (2011) quanto em Rodriguez (2014), pois
↓ ↓
(assentar-se/fixar-se)
14
(com estranhos) (com familiares/amigos íntimos)
16
Tomando a posição de analista do discurso e movidos pela pergunta – como os
sentidos de ‘população de rua’ se constituem na rádio Destilado da Rua? – propomos um
gesto de leitura sobre o Destilado da rua, programa de rádio construído no ponto de Cultura
Maluco Beleza, em Campinas, como “um movimento de sentidos na história” (CHAVES,
2015, p.21).
2.1 É morador de rua? É ladrão. É isso. É aquilo.
maluco beleza
O SANATÓRIO DR. CÂNDIDO FERREIRA foi fundado em 1919 em Campinas
sob o nome de Hospício para Dementes Pobres do Arraial de Sousas1. Foucault (2008)
analisa o começo das clínicas e dos hospitais como lugares que os pobres frequentam (os
ricos possuem o médico da família que faz consultas domiciliares) e onde se ensina o
exercício da medicina, isto é, faz-se uso dos doentes pobres para a pesquisa científica e
ensino, visando ensinar os ricos e melhorar os tratamentos para eles mesmos, tendo em vista
que o foco do tratamento é a doença e não o doente. O nome dado ao hospital Cândido
Ferreira reforça a análise foucaultiana, tendo em vista que explicita que seu público era pobre
e por se tratar de um hospício, também demente.
Pós-reforma psiquiátrica, fruto de muita luta política em torno dos significados de
hospício, doença, dementes, etc, se extinguem os manicômios e o Cândido Ferreira ganha o
nome de Associação de Assistência que tem como finalidade “a prestação gratuita de
assistência e desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa, assim como apoiar o
desenvolvimento do Sistema Único de Saúde SUS, para usuários assistidos nos campos da
saúde mental em particular e de saúde em geral”. 2
Rompe-se com os sentidos anteriores em que a loucura é designada como demência e
seu portador como demente e reveste-se do politicamente correto, gerando nomes como saúde
mental (ao invés de doença) e seus portadores, ao buscar tratamento na associação, tornam-se
usuários.
Pensando em relação à presença/ ausência, vemos que no nome dementes pobres há
uma articulação entre dois objetos paradoxais – que são objetos “simultaneamente idênticos
consigo mesmo e se comportam antagonicamente consigo mesmos” (PECHÊUX, 2011,
p.115) - a pobreza e a loucura. Esta articulação é deslocada ao mesmo tempo que retomada
em usuário do SUS assistido no campo da saúde mental. Além disso, os dementes
pobres/usuários do SUS assistido no campo da saúde mental continuam sendo objeto de
pesquisa e ensino (desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa).
Apesar disto, este deslocamento mexe com as redes de memória e produz esses outros
sentidos e abre, ao nosso ver, para novos gestos de interpretação da sociedade e desses
indivíduos que são significados a sua margem. Em 2002, dentro da Associação de
Assistência, é criado o ponto de cultura Maluco Beleza e a Rádio Online Maluco Beleza,
ambos tendo como propósito diminuir o preconceito relativo à loucura, mostrando novas
possibilidades de tratamento e de convivência com as diferenças e com os diferentes.3
Pensando na relação entre preconceito e instituições, vemos que a Associação de
Assistência interpela o indivíduo em usuário assistido, e esta interpelação está vinculada à
diferença - ente e o louco e o não-louco. Mas como “ ‘reprodução’ nunca significou
‘reprodução do mesmo’” (PECHÊUX, 2011, p.115), a ampliação das redes de escuta a esta
palavra do louco (com a criação da rádio) produz nomes como maluco beleza, ressignificando
1
Disponível em: <http://candido.org.br/site/>
2
Disponível em: <http://candido.org.br/site/>
3
Disponível em: <http://candido.org.br/site/>
17
este termo ao colocá-lo em relação a um antigo hospício, produzindo o pobre demente como
merecedor de caridade (com o atravessamento do discurso religioso no discurso
assistencialista), deslizando-o para usuário assistido, evidenciando o processo pelo qual “as
práticas de assistência aos loucos articularam de forma substancial o discurso político, da
caridade e do alienismo” (BARBOSA FILHO, 2017, p.9).
Analisamos que maluco beleza, como nome de uma rádio dentro de um antigo
hospício, é um acontecimento discursivo, ou seja, como
19
relações: de posse - esse destilado é propriedade da rua? De procedência - tem origem nas
ruas? De causa - é pela rua?
Como sujeitos de linguagem, os integrantes do programa se significam e são
significados pela brincadeira com a língua que produz sentidos como deste lado da rua, em
oposição ao lado da casa, o lado daqueles que não só transitam na rua (pedestres,
(auto)mobilistas), como também fazem atividades do privado no espaço público da rua
(dormem, comem, etc). Além de serem o destilado da rua, aquilo que através de um processo
de destilação é possível de ser produzido na/pela/da rua.. Evocam para dentro de seu
enunciado o pré-construído bêbado, drogado e deslizam para a droga, a bebida, o destilado, o
produto da rua.
Esse movimento discursivo nos mostra que
Ressaltamos que o próprio Cândido Ferreira presta tratamento para usuários de álcool
e outras drogas, interpelando-o em usuário assistido, pondo em relação drogadição, loucura
e pobreza. E o programa Destilado da Rua se inscreve a partir das relações já significadas no
imaginário entre rua, drogadição, loucura e pobreza – considerando estes três últimos como
objetos paradoxais produzidos no interior de discursividades diferentes “das quais nenhuma
pode ser considerada originária” (PECHÊUX apud CHAVES, 2015, p.157).
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de alguém a uma doença (sendo este alguém um filósofo, não um médico que “descobriu” a
doença) pode ser uma homenagem?
Sd (4.1) filósofo Diógenes ͢ morador de barril ͢ desapegado ͢ doente mental
Sd (4.2) maluco beleza ͢ morador de rua ͢ pobre ͢ demente
Para compreendermos melhor a relação criada no enunciado entre os modos de vida
do filósofo (viver como um cão – morar num barril) e os sintomas da doença nomeada em
homenagem ao filósofo, trazemos um relato de atendimento à uma paciente portadora da
Síndrome de Diógenes:
Sd (5) No segundo atendimento, M. mostrou-se ansiosa e inadequada. Na sala
de espera, mexia na lixeira. Confirmou que costumava recolher objetos do
lixo alheio. Justificou-se dizendo que as pessoas do bairro jogavam fora
coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia vinho algumas vezes
apenas em casa. Ao exame, apresentava higiene satisfatória. Usava blusa de
inverno em dia quente. Mantinha atitude desconfiada. Estava consciente,
orientada globalmente e sem alterações sensoperceptivas. O pensamento
apresentava-se organizado. Sem alterações de memória. O humor estava
moderadamente deprimido. O juízo crítico era comprometido. O Mini-Mental
foi 27/30 e o teste do relógio foi normal. A revisão laboratorial não mostrou
alterações. Ressonância magnética do crânio evidenciou focos de alteração de
sinal na substância branca nos hemisférios cerebrais, presumivelmente
relacionados à microangiopatia, sem relevância clínica (STUMPF ; ROCHA;
2017)
Nesta sequência discursiva se constrói uma divisão entre aquilo considerado normal
(sem alterações, satisfatório) e o que é inadequado a partir da posição-sujeito médico
(construída também no e pelo enunciado):
É considerado normal aquele que x.
É considerado doente aquele que y.
X Y
apresentar higiene satisfatória ao exame mostrar-se ansioso e inadequado/ mexer
na lixeira na sala de espera
estar consciente, orientado globalmente recolher objetos do lixo alheio
e sem alterações sensoperceptivas
Apresentar pensamento organizado admitir usar etílicos
Sem alterações de memória usar blusa de inverno em dia quente
Mini-mental e teste do relógio normal. manter atitude desconfiada
Apresentar alterações na ressonância ter humor deprimido
clínica sem relevância clínica
O juízo crítico ser comprometido
A Sd(5) produz uma narrativa de uma consulta, em um formato de prontuário médico,
que produz um efeito de real, na medida que constrói um olhar clínico sobre o doente, a partir
de exames, construindo uma transparência, como se fosse evidente que a partir das
sequências y o diagnóstico de síndrome de Diógenes (dado no primeiro atendimento) fosse
confirmado, mesmo levando em conta as sequências x. O que nos aponta “os equívocos na
língua, quando a falta de um espaço conceitual preciso no discurso médico afeta a imprecisão
21
do diagnóstico, dando contornos ambivalentes aos sentidos de corpo, de doença, de desvio”
(BARBOSA FILHO, 2017, p. 13)
Podemos dessegmentar a Sd(5) para pensarmos no uso do discurso relatado, por meio
do qual produz-se um espaço enunciativo marcado pela consignação da alteridade, onde o
outro (o doente) é falado pelo prontuário - a normalidade apontando o desvio, a doença, a
loucura:
Confirmou que costumava recolher objetos do lixo alheio. Justificou-se dizendo que
as pessoas do bairro jogavam fora coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia
vinho algumas vezes apenas em casa.
O uso de verbos como confirmar, justificar e admitir constrói uma confissão, um
depoimento marcando o atravessamento de uma discursividade religiosa, que, assim como na
análise da Associação de Assistência, nos leva por uma relação com a memória à formação do
saber /discurso médico que “inaugura não apenas outras formas de compreensão do corpo
doente, mas novas concepções de cidade baseadas na higiene e na salubridade” (BARBOSA
FILHO, 2017, p.9).
Nesta confissão, é possível pensar as formas como os enunciados da paciente foi
(re)significado pelo discurso médico:
Pegar coisas boas que as pessoas jogam fora ͢ recolher objetos do lixo alheio
Beber vinho algumas vezes apenas em casa ͢ fazer uso de etílicos
Entendemos a partir das Sd(4) e Sd (5) que dentro de uma formação discursiva
higienista há uma forte oposição moral a qualquer desvio de normas de comportamento,
fortemente vinculada a uma oposição moral ao drogado (uso de etílicos – não presente em
Diógenes), vadio-sujo (dorme num barril, mexe no lixo) e a loucura (na medida que uma
síndrome está dentro do campo da saúde mental).
Vale ressaltar que entendemos por higienista sentidos produzidos na/pela formação
discursiva - sempre em relação podendo ser de sobreposição, antagonismo, etc - que interdita
espaços e práticas a determinados corpos de maneira segregatória produzindo sentidos
fortemente vinculados a valores morais - saúde, segurança, normalidade. Esses sentidos
aparentemente transparentes funcionando dentro dessa formação interditam outras formas de
movimento e ocupação da cidade.
Vale a pena ressaltar, que o discurso médico se recobriu do politicamente correto,
então não é possível encontrar demente pobre nos artigos sobre síndrome de Diógenes, mas
parece-nos que algo disto permanece na relação de sentidos entre os doente e os sintomas
falado a partir da posição-sujeito médico, numa relação entre o que é (im)possível aparentar,
ser e usar.
algumas pessoas tratam a gente assim como lixo
Tendo em vista que as formações discursivas sempre estão em relação e que os
sentidos não possuem uma origem detectável, analisamos a próxima sequência discursiva
retirada da rádio Destilado da Rua, onde é construído um espaço enunciativo na e pela
posição sujeito população de rua de rua, pondo-a em relação às sequências discursivas
analisadas anteriormente:
Sd (6)Ah! As pessoas tratam a gente assim como [assim como o que? ] /tipo assim, se
a gente pede uma moedinha aqui outra ali, a gente ainda consegue [o que?], mas algumas
pessoas tratam a gente assim como lixo. É morador de rua? É ladrão. É isso [isso o que?]. É
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aquilo.[aquilo o que?] Você entendeu? Eu falo para vocês, a gente não é nenhum criminoso,
não é nada, a gente é só, sabe o quê? Mais um ser humano.
Analisamos, com base em Cardoso (1995) que os demonstrativos anafóricos isso e
aquilo, não retomam um elemento referencial (não estão retomando, pelo dito, nenhum
sintagma do texto), mas sim um elemento exofórico, do interdiscurso. Isto produz um efeito
de distanciamento entre “o espaço enunciativo do discurso que se constitui na interlocução e
o interdiscurso do interior do qual se buscam elementos socialmente já avaliados para a
constituição dos referentes” (CARDOSO, 1995, p.169). Em outras palavras, o uso do isso e
aquilo permite que o enunciador não assuma com as formulações pressupostas, então fica a
cargo do ouvinte preencher os sentidos de isso e aquilo neste texto.
Aqui, faz-se necessário pensarmos este uso dos demonstrativos, tendo em vista que “o
que liga o dizer e a sua exterioridade é constitutivo do dizer” (ORLANDI, 2010, p. 14) e que
“o sujeito da análise do discurso não é o sujeito empírico, mas a posição sujeito projetada no
discurso” (ORLANDI, 2010, p.15), relacionada às condições de produção desse enunciado
descrito na Sd (6):
O locutor, ao enunciar num programa de rádio da população de rua direcionado a um
público desconhecido – heterogêneo, se constrói no e pelo discurso a posição sujeito
população de rua negando (a gente não é) sentidos estabilizados no imaginário da cidade que
relacionam o morador de rua a vadiagem, drogadição, loucura, pobreza, etc. É a antecipação
em grande parte responsável pela argumentação, pois o uso de tipo assim, isso, aquilo
funciona a partir “da imagem que o locutor faz da imagem que o interlocutor tem dele”
(ORLANDI, 2010, p.16).
Propomos, como gesto de interpretação, (re)ler a Sd (6) desta maneira:
Sd(6.1) Ah! As pessoas tratam a gente assim como [cachorro] tipo assim, se a gente
pede uma moedinha [ossinho] aqui outra ali, a gente ainda consegue [ser visto como
cachorro], mas algumas pessoas tratam a gente assim como lixo. É morador de rua? É
ladrão. É isso [demente pobre]. É aquilo [vagabundo drogado]. Você entendeu? Eu falo
para vocês, a gente não é { nada nenhum criminoso
[retoma o isso e aquilo] }, a gente é só, sabe o quê? Mais um [tipo
de] ser humano.
Tratar como { bicho lixo }, não como humano.
O que é tratar como o lixo? Como se trata o lixo – aquilo que é produzido e deve ser
retirado, não pode permanecer.
Como cachorro – é seu dever dar um ossinho, mas ele tem que sair quando for
mandado embora.
Aqui outra ali – é necessário movimento para conseguir uma moedinha, não pode
pedir só aqui ou só ali.
A formulação x é só mais um y – a gente é só mais um ser humano operando como
uma espécie de conclusão da argumentação, como resposta a pergunta a gente é só, sabe o
que? nos faz pensar acerca dos sentidos de humano e que, construir um espaço enunciativo
pela afirmação da humanidade toca no cerne da divisão capitalista - a exploração do homem
pelo homem - parece que os sentidos dominante de humano interdita outros sentidos - o
louco, o ladrão, o morador de rua não são tão humanos assim.
Vemos, a partir da progressão por justaposição da Sd(6), a maneira como se
construíram enunciativamente as disputas de sentidos em morador de rua (pobre
demente/pobre coitado e ladrão/vagabundo) – dando a ver o processo discursivo que produz o
pedinte/demente pobre (pedir uma moedinha aqui outra ali), e por isso, ainda consegue ser
23
visto como um cão (um filósofo que vive como um cão – um doente que remexe o lixo
alheio) merecedor de caridade, mas/e ao mesmo tempo produz o ladrão/vagabundo/drogado
(imoral) e é tratado como um lixo (dispensável, desprezível, sujo, inútil), merecedor de
punição, por negação.
A argumentação, trazendo o discurso relatado, um discurso outro, para dentro de outra
formação discursiva - “a formação discursiva é heterogênea em relação a ela mesma, pois já
evoca por si ‘outro’ sentido que ela não significa” (ORLANDI, 2007, p.21) – vai contra os
sentidos que evocados, “a evocação lateral daquilo que se sabe a partir de outro lugar
(Pêcheux, 1988, p. 111)”, em ladrão.
Este outro lugar, do ladrão, é o lugar produzido na e pela discursividade de segurança
que constrói a vadiagem que “ecoa na história como uma tensão entre o Estado e aqueles que
são ‘tratados como bichos’, os cidadãos de terceira classe, prostitutas, desempregados,
capoeiras, negros, pobres, mendigos, inválidos; esses todos que são arrastados para a mala do
carro, ao invés do banco de trás” (CHAVES, 2015, p. 77).
Pensando a partir das análises feitas até agora, buscamos compreender como é
produzido o efeito de evidência que recupera os sentidos de vagabundo, drogado, ladrão,
demente pobre nas sequências discursivas analisadas anteriormente. Para tanto, daremos
início a um percurso de memória que constitui sentidos para vagabundo e vadiagem no
atravessamento com discursos jurídicos em determinados períodos da História.
legislação sangrenta
Assim, Marx (2017) analisa leis sangrentas pondo em evidência que “a parceria entre
a burguesia e o Estado está na gênese da legislação sobre o trabalho constituída pela
exploração do trabalhador e ao mesmo tempo inimiga dele no seu decurso” (CHAVES, 2015,
p.79). As leis trabalhistas e a lei de vadiagem significam o corpo do proletário como
mercadoria: é um corpo útil para o Estado/burguesia quando este vende sua força de trabalho
24
por um preço baixíssimo (similar [?] à escravidão), mas considerado inútil quando este não
vende sua força de trabalho (está sem trabalho) e transformado em mercadoria (escravidão) -
desta maneira os aparelhos repressivos do Estado controlam esse corpo para que ele se
encaixe em duas posições: proletariado ou escravizado (marcando o corpo do vagabundo).
Isto no processo de consolidação do capitalismo.
Destacamos um trecho da citação de Marx pondo-o em negrito - parte por inclinação,
maioria por constrangimento das circunstâncias - por ser um enunciado que constrói um
efeito de evidência que: há corpos que não vendem sua força de trabalho, em parte por
inclinação (no que consiste essa inclinação? inclinação a insubmissão?) e em parte por
constrangimento das circunstâncias,ou seja, ausência de trabalho - pois não podia ser
absolvido pela manufactura nascente tão rapidamente quanto era posto no mundo.
Se pensarmos a sequência discursiva aprendendo a ser louco da música Maluco
Beleza em relação a esse trecho de Marx, percebemos que ela é extremamente opaca: produz
a articulação de duas dimensões - a primeira, tem sujeito e tem escolha e a segunda é um
dizer sobre o outro que o coloca na posição de essência (da ordem da natureza, do não tem
jeito, “pau que nasce torto”). A disputa por se afirmar enquanto população de rua atravessa
esse dizer de algo indomável e desliza os sentidos estagnados - opacizando as escolhas
quando se trata de questões de classe: trabalho, moradia, ócio, etc..
No Brasil, a lei da vadiagem toma corpo com a criação do Código Penal do Império
do Brasil em 1830:
Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta, e util, de
que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo
renda sufficiente. (BRASIL apud RACHID, 2017, p.5).
Temos que pensar esta lei e a que a substituirá na República em relação as suas
condições de produção:
um Rio de Janeiro tumultuado, assolado por doenças epidêmicas, como a
febre amarela, dispondo de precária infraestrutura e inchado
demograficamente devido à migração expressiva de estrangeiros - em sua
maioria de origem portuguesa - e ao contingente de escravos libertos vindos
da zona rural. Transformações políticas, econômicas e sociais que se iniciam
no fim do império para o começo da república e se ligam à transição do
trabalho escravo para o livre-assalariado, bem como à formação de uma
ordem burguesa (CHAVES, 2015, p.80).
25
Esta formulação devolvida às condições de produção - transplantação do discurso
médico europeu para as relações sociais no espaço da cidade brasileira em um contexto de
transição do trabalho escravo para o livre-assalariado e de formação de uma ordem burguesa
brasileira – aponta a jurisdição do controle do corpo negro agora liberto, não considerado útil
pelo Estado/burguesia por não ser mais mercadoria e não estar vendendo sua mão de obra
(parte por inclinação, maioria por constrangimento das circunstâncias) e por isso
considerado como um corpo perigoso, violento, hostil - como podemos ver em Rachid
(2017):
No próprio ano de sua ocorrência [abolição da escravidão], em 1888, surge
uma proposta de lei à Câmara dos Deputados pelo Ministro da Justiça –
Ferreira Vianna, o qual imaginava que o número excessivo de libertos, sem
emprego e sem moradia, era fator potencial ao aumento da criminalidade; isso
devido ao ócio que experimentavam. (p.5)
Podemos perceber que é a partir do funcionamento do ou que se cria uma relação de
determinação de ociosidade: sendo significada como aquilo que alguém sendo válido para o
trabalho se entrega, podendo ser tanto: o não ter renda que lhe assegure meios bastante de
subsistência ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita. Vemos então, desta
forma, que ocupação ilícita interdita trabalho na rua, tendo em vista que não fica
especificado o que seria esta ocupação ilícita: recobre de criminalidade qualquer forma de
ganhar dinheiro na rua, na medida que o ilícita retoma occupação prohibida por lei, ou
manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes. Funciona pelo implícito de dar a ver
- o problema não é exatamente o que se faz, mas dar ver o que se faz, tornar público - ou seja,
quebrar nomas de comportamento e de ocupação da rua.
Fica evidente que os sentidos de trabalho são determinados tanto pela lei quanto pela
moral e bons costumes. Apesar do enunciado domicílio certo que habite ter sido retirado,
parece-nos que ele continua operando, também, numa relação de pressuposição, no
pré-construído ociosidade.
Este sentido de ociosidade como contravenção é construído na medida em que se
constrói, no campo jurídico e político, a nacionalidade brasileira:
Tendo a saúde sido posta como agente transformador de uma sociedade
avaliada doente, a nova ordem, que visava à civilização, passou a ser
estabelecida por meio da conjugação entre aspectos médicos e legais.
A proposta era o estabelecimento de uma sociedade aos padrões europeus de
desenvolvimento. Todavia, grande parcela desse todo social era considerada
degenerada em virtude de ‘vícios’, tais quais o alcoolismo, a prostituição e a
vadiagem; que, inclusive, representavam um perigo à medida que
impulsionavam a criminalidade. (RACHID, 2017, p.6)
Vadiagem enquanto crime tem, deste modo, uma relação constitutiva com outras
discursividades, mesmo tendo genealogias diferentes, como a da loucura, drogadição e
pobreza sentidos saturados em perversão dos costumes e caráter:
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Mendicidade, vagabundagem, roubos, lesões corporais, estupros, atentados
contra o pudor, incestos, incêndios e suicídios estavam relacionados com a
perversão dos costumes e do caráter, provocada pelo álcool, pela relaxação de
costumes, pelo desdém das conveniências, pelo abandono das ocupações,
pelo egoísmo, pela brutalidade, pela incapacidade para o trabalho e, por fim,
pela demência. (CANCELI apud RACHID, 2017, p.7)
Pena - prisão simples, de quinze dias a três meses.
Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao
condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena. (BRASIL,
2017).
Interessante notar a contradição em que opera esta penalização: se é preso por não ter
trabalho (o que é considerado trabalho segundo a lei e segundo a moral e os bons costumes)
e por não ter domicílio certo (funcionando na distinção não-dita entre desempregado e
morador de rua, retomando o já-dito sobre vadiagem no discurso jurídico – da inauguração da
lei até sua última alteração), mas pode-se ser isento da pena caso haja a aquisição
superveniente de renda, ou seja, caso este indivíduo arrume um trabalho (venda sua força de
trabalho) e consiga domicílio certo.
Assim, a formulação da contravenção entende a ociosidade, retomando as palavras de
Marx (2017), como inclinação e não como constrangimento das circunstâncias – apagando a
exclusão deste indivíduos do mercado de trabalho formal na e pela retomada dos sentidos
27
produzidos nas leis sangrentas - significando, pelo silêncio, a criminalização da pobreza (e
da loucura, a partir de demente pobre) produzida no e pelo discurso jurídico.
Esta contradição é o equívoco operante entre as discursividades assistencialistas/de
saúde e de segurança, produzindo práticas (prisão e assistência) e lugares (cadeia e
instituições de assistência) entre a piedade e a punição: demente pobre -> usuário
assistido/criminoso.
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querem mudar de vida memo
prefeitura uma casa pelo menos pra [todo mundo] { aprenderam a num f icar assim } e não pra [muita
que não gosta de mudar de vida
gente] { que não quer sair da rua memo
}.
Esta sequência discursiva produz um efeito de evidência da prefeitura como espaço
legítimo de demanda – uma forma de inscrever a revolta na língua política da burguesia (que
se constrói no encontro entre o político e o jurídico, igualando-os no imaginário de justiça
burguês) já saturada na legalidade de certas demandas. É na ilusão, discutida no primeiro
capítulo desta pesquisa, da inclusão impossível – pela divisão de classe – que se negocia uma
alteridade dentro do discurso higienista:
Sd(6.5) Tem uns amigos meu memo que já falo ‘eu vou embora pra quê?Aqui tem
comida, tem tudo, tem tudo que eu quero’. Num é assim, a rua num é pra sempre pra nóis
fica.
Uns amigos = Muita gente = pessoas que não gostam de { mudar de vida
sair da rua }, gostam de {
f icar na rua
f azer todas as coisas que se f az quando se está na rua
} memo, porque { naaqui
rua
}, tem comida, tem tudo,
tem tudo que elas querem.
Temos, então, a construção no e pelo discurso higienista que atravessa esta sequência
discursiva, algo que retoma uma confissão, enquanto reconhecimento da permanência na rua
como errada- num é assim, a rua num é para sempre pra nóis fica – na medida em que a rua é
significada como lugar de passagem e não de moradia, como necessária para a criação
ilusória da possibilidade de cidadania (inclusão do diferente num sistema que produz esta
diferença).
É por meio deste processo discursivo que produz a clivagem no nós- posição-sujeito
população em situação de rua - na necessidade de textualizar a resistência aos sentidos de
vagabundo, demente pobre, drogado - que se constrói a interdição ao espaço discursivo de
quem gosta de ficar na rua memo, operando uma separação entre os que querem sair e os que
querem ficar. A divisão do ‘nós’ que quer ficar e que gostaria de sair, desembocado na
temporalidade do termo situação de rua, o que retoma a lei de vadiagem sobre aqueles cuja
natureza é de insubmissão- e a casa é para os que querem sair, o que dá a ver o
funcionamento do auxílio do Estado enquanto promessa das instituições assistencialistas sob
a condição de outra promessa: a do indivíduo de sair da rua, em outras palavras, se inscreve a
necessidade da confissão e da promessa de mudança (moral) para que o Estado signifique este
indivíduo enquanto cidadão (como tendo moradia e trabalho lícito).
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Temos, nesta campanha, a determinação da permanência na rua como alteridade
inegociável ao cidadão brasileiro, que dá a ver o porque num é assim, a rua não é para nóis
fica:
Sd (7) Dar comida pode atender a uma necessidade momentânea. O ato de dar
comida pode apenas fortalecer a permanência das pessoas na rua sem perspectiva de uma
vida melhor.
Sd (8)Não doe roupas, cobertores e colchão para quem está na rua. Sua doação pode
fazer apenas com que essa pessoa permaneça na rua embaixo das marquises, calçadas e
viadutos.
A formulação troque sua esmola por cidadania constrói uma relação de
impossibilidade de conciliação entre esmola e cidadania, jogando com a própria produção do
morador de rua que precisa submeter sua cidadania – que nessa discursividade é quase a
dignidade humana – para pedir e sobreviver de esmolas.
Saiba porque dar esmola não ajuda conjuga dois enunciados:
Dar esmola não ajuda com você precisa saber disso [porque você não sabe, quem
sabe somos nós].
Este nós funciona, neste do jogo pronominal, enquanto nós do Estado que sabemos o
que você não sabe - como tirar essas pessoas da rua.. Entra em disputa então, dentro da
formação discursiva higienista, pela discursividade assistencialista, o reconhecimento de uma
outra esmola – mais legítima porque intermediada por instituições que se ocupam,
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justamente, de tirar essas pessoas das ruas – sem considerar o lugar daquele que necessita
dela, como se isso fosse uma decorrência natural das relações da cidade, articulando:
discursividades jurídicas, administrativas, científicas, políticas, pedagógicas
sinalizando um processo ao mesmo tempo universalizante e privatizante que
produz um efeito de mascaramento/simulação da divisão desigual dos
indivíduos no direito à cidade (CHAVES, 2015 , p.32)
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no sinal vermelho. O espaço ocupado pelo corpo nas fronteiras simbólicas/políticas da cidade
enquadra o corpo-trabalho. Roupa suja como a calçada suja, um corpo sujo porque todo dia
toda hora ele tava ali no sinal vermelho.
A relação constitutiva entre sujeito, espaço e sentidos textualizada nesta música, dá a
ver o processo pelo qual a rua é definida como falta: de trabalho, de vestimenta (limpa), de
moradia e de família. Esta definição determina, por oposição, a posição sujeito-cidadão:
A representação dominante sobre a rua, que a configura como um espaço de
ausências, lamina dos habitantes de rua o direito à cidade, por um lado, ao
mesmo tempo que é produtora de um modo específico de conceber o social (e
a si mesmos, como donos da sociedade), como dignos, limpos, democráticos,
moralizados, familiares, autônomos e trabalhadores. (RUI [et al], 2016, p.17)
Como aquele que não tem valor/ filho do mundo jogado ao nada/ poeira na estrada, a
posição-sujeito flanelinha é construída no e pelo sofrimento, choro, desespero, servidão,
enquanto a posição-sujeito cidadão é na e pela pena, generosidade, caridade, etc. A esmola,
nesta discursividade, se escreve como trocado, podendo ser substituída numa relação
associativa por uma moedinha da fala analisada no capítulo 2 – o flanelinha, então, recebe um
tratamento de bicho.
Lemos, dessa forma, os efeitos sentidos produzidos na música amigo flanelinha
vinculados a um sentido partilhado de morador de rua, pelo apagamento do político e pelo
uso dos verbos servir, pedir, suplicar, chorar que escancara um espaço enunciativo aceito –
como sofredor- por gerar no cidadão e no Estado sentimentos como piedade, culpa, etc -
funcionando como na banalização e espetacularização do sofrimento na mídia hegemônica
brasileira. Enquanto o vadio /ladrão / drogado, pelo contrário, apesar de significado como
incômodo de qualquer forma – gera no cidadão e no Estado ( e na mídia, principalmente em
programas sensacionalistas) o ódio, a violência, etc. Ou seja, em relação com a Sd (6)quando
se pede uma moedinha ali ou aqui é tratado como bicho, mas quando não se age dessa forma,
o tratamento é igual lixo.
Quando colocamos em relação esta posição flanelinha com a campanha Troque
esmolas por cidadania, percebemos seu funcionamento com base numa culpa religiosa que
coloca o cidadão como aquele que pode ajudar em oposição aos efeitos de sentido da
campanha, que desliza este sentido para não ajude um morador de rua e sim ajude uma
instituição que ajuda o morador de rua, eliminando a culpa do cidadão e produzindo um
certo alívio pois enquanto cidadão, não preciso mais me preocupar com isso, pois o Estado já
se preocupa.
Há, então, uma disputa de sentidos, no interior da mesma formação discursiva, a
higienista, que se dá na articulação da loucura, pobreza, drogadição, vadiagem, produzindo
práticas, lugares e discursos divididos entre o punir e o ajudar. Traremos, visando criar um
efeito de fechamento, uma última fala da rádio onde se escreve esta ambivalência:
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Sd(10) Então é o seguinte, primeiro, a gente vai no SoS rua e não tem a atenção que
nós merecemos, os moradores de rua, porque querendo ou não o SOS rua é nosso. A
assistência social também, do centro pop também, nós vamos lá para pegar uma ficha para
almoçar no Bom Prato, também não é liberado, quem tem cadastro lá só almoça na parte da
tarde, isso tá errado, porque o cadastro é o tanto que vocês quer e não o tanto que nós
queremos. Porque primeiro, tudo que tá lá é nosso. Prometeram a cidadania para a gente
destruindo a nossa e até hoje não cumpriram isso daí. Já tá errado. Somos tratados na rua
como lixo, guarda municipal vem e nos agride, guarda municipal vem e tira da onde nóis
tamo, primeiro, o centro pop inventou um papel lá que segundo a justiça que nóis podemos
permanecer no lugar que nós estamos com direito da gente, embora não estejamos roubando
ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém, mas quando nós estamos nesse lugar,
nóis fala do nosso direito, assim mesmo somos agredidos e expulsos do lugar que nóis
estamos, pô, quem nós somos para vocês? O albergue é uma merda, perdão o palavrão, mas
tá uma merda. É só 5 dia lá e depois expulsa a gente como se fossemos um cachorro, como
se fosse um lixo, como se fosse ninguém. Depois nóis queremo entrar lá de novo para tomar
um banho, falta pouco a gente ficar ajoelhado lá para pedir somente um banho, comida?
Para o tanto de marmitex que chega lá, eles jogam tudo no lixo, verifica o lixo lá, e num dá
para ninguém, isso é errado. Acredito que meu tempo acabou, pensa sobre isso, se você quer
verdadeiramente nos ajudar ou só tá aqui fazendo cena mesmo.
Esta sequência discursiva fecha todas as análises feitas anteriormente: o Estado que
através de políticas, saberes, instituições, produz o morador de rua como não cidadão é o
mesmo que promete restituir esta cidadania e é o mesmo que, como aparelho repressor, o
pune. Evidencia a contradição dos sentidos produzidos na formação discursiva higienista,
principalmente em:
primeiro, o centro pop inventou um papel lá que segundo a justiça que nóis podemos
permanecer no lugar que nós estamos com direito da gente, embora não estejamos roubando
ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém, mas quando nós estamos nesse lugar,
nóis fala do nosso direito, assim mesmo somos agredidos e expulsos do lugar que nóis
estamos, pô, quem nós somos para vocês?
Como a (im)possibilidade da negociação da alteridade quando o que está em jogo é a
permanência. A rua não é para nóis fica porque mesmo que exista um direito de permanecer
- embora não roubando ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém [?] - na rua, é a
partir da negação dele que se construíram, historicamente, as práticas repressoras do Estado
(vide análise da contravenção da vadiagem) e estas práticas violentas permanecem, apesar da
prática de assistência do mesmo Estado/burguesia.
Desse modo, a cidadania do cidadão brasileiro é constitutiva da posição burguês e o
Estado promete restituir esta cidadania somente se o outro hostil se submeter a uma relação
de dependência e a partir dela se (re)estabelecer nas relações burguesas (família, moradia,
trabalho, higiene), ou seja, somente se aceitar a vender sua força de trabalho enquanto
proletário e achar meios de fazer isto - inscrevendo, pelo silêncio, a exclusão que produz os
moradores de rua.
Concluímos, a partir de um efeito de fechamento, que se constrói, pelo atravessamento
de discursividades assistencialistas, de segurança e de saúde dentro da formação discursiva
higienista, a posição sujeito população em situação de rua funcionando na contradição entre
o Estado que auxilia (por meio de instituições de assistência e de saúde) e o Estado que pune
(como infração por meio de aparelhos repressivos) - e a pergunta que ecoa desde-sempre é
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quem nós (que vocês produzem como dementes pobres, drogados, vagabundos, ladrões)
somos para vocês (Estado, burguesia)?
Dito de outra forma, o Estado, por meio de instituições e discursos, opera por exclusão
na e pela cidade produzindo cidadãos e não cidadãos, punindo esses últimos (tanto com a
consignação da cidadania como pela violência no corpo - agredidos e expulsos como lixo) ao
mesmo tempo que faz cena de que quer ajudá-los: o que está em questão é a “organização da
sociabilidade e do limite entre a diferença tolerável e a alteridade inegociável na cena pública,
dando visibilidade à articulação entre os domínios da pobreza urbana, da medicina, do direito
e das políticas públicas” (BARBOSA FILHO, 2017, p.3)
3. considerações finais
Tendo em vista que um processo discursivo não se encerra e não se fecha e que “o fim
parece ser só uma continuidade do percurso” (CHAVES, 2015 ,p.137), trazemos para o
diálogo a argumentação de outros pesquisadores, da área da antropologia, para traçarmos
nossas considerações finais:
Tanto a privação quanto a violência a que são submetidos os moradores de
rua contemporaneamente têm menos a ver com condições individuais de
drogadição, ruptura familiar, saúde mental ou pobreza extrema, e mais a ver
com os modos como se constrói ativamente, nos cotidianos e nos
pressupostos das políticas, a oposição moral e religiosa aos vagabundos,
drogados, dementes e ladrões. (...) As políticas que procuram reabilitar os
moradores de rua são as mesmas que, paradoxalmente, os produzem como
tais. Dada a criminalização produzida pelas políticas, por exemplo, os
moradores de rua passam a ser vistos como mais perigosos que em sua
ausência. (RUI [et al], 2016, p.7)
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