Resumo: O presente trabalho tem por objetivo trazer apontamentos analíticos sobre a interpretação
do guitarrista Heraldo do Monte para a música “Pau de Arara” (Luiz Gonzaga/Guio de Moraes).
Consideramos dados de carreira e traços estilísticos do músico, a fim de circunstanciar a análise,
que é da estrutura, mas sensível à expressividade. À luz da gravação de Luiz Gonzaga e da
transcrição do arranjo de Heraldo pudemos reconhecer seus procedimentos de releitura utilizados
na elaboração para guitarra solo. Recursos de rearmonização dão a tônica.
Title of the Paper in English: Heraldo do Monte's Solo Guitar: Analysis Notes on “Pau de Arara”
Abstract: This work aims to present some analysis notes over Heraldo do Monte's rendition of
song “Pau de Arara” (Luiz Gonzaga/Guio de Moraes). We take into account some information
concerning the musician's carreer and also aspects of his style in order to give meaning to the
structural analysis with questions related to expressivity. Considering Luiz Gonzaga original
recording and the transcription of Heraldo's arrangement as well we could find the elements that
stand for his solo guitar recreation. Re-harmonization features have special emphasis.
Keywords: Electric Guitar. Heraldo do Monte. Brazilian Instrumental Music. Solo Guitar
Arrangement.
Este texto1 traz reflexões acerca do modo como o guitarrista Heraldo do Monte
aborda a guitarra solo como recurso instrumental, na produção de seus álbuns. Trata-se aqui,
especificamente, da interpretação dada à canção “Pau de Arara” (Luiz Gonzaga/Guio de
Moraes), em longo trecho presente na introdução do fonograma que integra o Álbum Heraldo
do Monte (Eldorado, 1980). Pernambucano de Recife, nascido em 1935, Heraldo do Monte
começou sua vida musical tocando clarinete, mas logo passou para a guitarra, e no início dos
anos '50 já se apresentava nos bailes e bares de sua cidade. Aos 21 anos mudou-se para São
Paulo para tocar com o quinteto de Walter Vanderlei. Nesse período, além de participar desse
quinteto atuou como músico de estúdio e tocou em orquestras de rádio e televisão. Gravou
alguns discos próprios para a RCA, até que em meados de 1966 montou com Airto Moreira,
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Théo de Barros e Hermeto Pascoal o Quarteto Novo. Esse grupo transformou a história da
música instrumental em solo pátrio, por pensar uma linguagem de improvisação brasileira,
principalmente nordestina, tentando deixar de lado a influência de estilos de música vindos de
fora do país, especialmente do jazz, característica nos trios de bossa nova e conjuntos
instrumentais da época. O próprio músico coloca essa busca por uma pronúncia própria de
improvisação na época do Quarteto, que era influenciado pelas ideias do Nacional-Popular, e
que de certa forma as traduziu de modo tanto enfático quanto imprevisto, na música do único
álbum do grupo, o disco Quarteto Novo (EMI-Odeon, 1967):
"[…] Houve primeiro uma espécie de disciplina, logo no começo do Quarteto Novo,
pra gente poder criar a linguagem. Porque, você sabe, que improvisação não é uma
coisa de fora pra dentro, só vale quando você interioriza, quando ela vem de dentro
pra fora. Então a gente começou, além de escutar essa coisa de folclore, começou a
um policiar o outro nos ensaios, né, quando começava a improvisar; só naquela
época, depois a gente relaxou um pouco, ou bastante; quando começava a sair do
esquema um já dizia - ih, tá muito bebop - e aí voltava a fazer. Então houve uma
certa disciplina e até uma falta de liberdade no começo. Foi estudado mesmo, foi".
(Heraldo do Monte: entrevista concedida ao SESC Brasil, 2001).
Nos anos '80, Heraldo retoma sua carreira discográfica trazendo uma concepção
musical já bastante madura e consolidada. Nesse período o músico produziu também três
discos que ele próprio considera serem os seus primeiros realmente artísticos: o já referido
Heraldo do Monte (Eldorado, 1980), o Cordas Vivas (Som da Gente, 1983) e o Cordas
Mágicas (Som da Gente, 1986). É deste primeiro a peça “Pau de Arara”, sob análise neste
estudo. Embora seja principalmente um instrumentista de guitarra elétrica, Heraldo do Monte
é multi instrumentista de cordas, tocando cavaquinho, bandolim, viola, violão. O domínio do
repertório feito universal, adquirido na noite, nos estúdios e orquestras, aferido por ouvido
privilegiado, faz de Heraldo um dos grandes guitarristas de seu tempo. Porém, muito além de
ser um proficiente e criativo instrumentista, Heraldo do Monte é um criador, e coloca os
recursos instrumentais de que dispõe, com sua larga experiência, a serviço de um projeto
artístico bem delineado. Tudo isso, aliado a uma espécie de compromisso com uma
“identidade brasileira” – ou “brasilidade”, na maneira de forjar um toque guitarrístico, um
estilo, uma história contada em cordas – produz uma tensão que não dispensa a presença da
figura do “violeiro”:
“Acho que vesti de vez a roupa do violeiro. E acho que é possível permanecer
violeiro tocando guitarra elétrica, cavaquinho ou bandolim. O que conta, afinal, é a
essência. E na essência os meus pés não saem mais da minha terrinha”. (Heraldo do
Monte: entrevista a Silvio Lancellotti, 1983)
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expressão mais usuais entre os guitarristas elétricos, ocorrendo mais nos círculos jazzísticos.
Mesmo assim, aqui e ali encontramos algumas realizações de Heraldo atuando solo, mesmo
não sendo uma atuação integral, ou seja, uma tomada inteira de guitarra solo que resulte ela
mesma num fonograma. Há uma outra introdução, dessa vez de um choro de sua autoria,
“Giselle”, gravado com o Zimbo Trio em 1978, que revela o interesse do músico por esse
mesmo formato – e que se diga em linhas claras, formato esse incômodo para a maioria dos
guitarristas. Um outro choro, que está no álbum Consertão, o “Pedacinhos do Céu” de Waldir
Azevedo, tem também uma intervenção solo digna de nota. Essa é uma peça que aparece com
alguma frequência nos shows do guitarrista. Outro baião, “Bebê”, de Hermeto Pascoal, que
está no mesmo disco de “Pau de Arara”, também inclui uma exposição da melodia pela
guitarra solo que, como em “Pau de Arara”, traz a exuberância técnica e a sonoridade peculiar
do músico.
Em “Pau de Arara” o músico faz a exposição completa do tema à guitarra solo,
tocada com liberdade técnica e interpretativa, com uma expressividade fluida, posicionada em
algum lugar entre o universo nordestino arraigado e o vasto campo de expansão que a música
instrumental propicia e convida a percorrer. Após essa introdução de guitarra começa o baião,
propriamente, com a entrada do grupo, sendo os músicos: Ubiraci (percussão), Dirceu
(bateria), Cláudio Bertrami (baixo elétrico), Dominguinhos (acordeon) e Hermeto Pascoal
(flauta). Nesse ponto do arranjo Heraldo atua com duas violas nordestinas (designação sua,
que é em verdade um termo correlato para a viola caipira), sobrepostas na gravação de modo a
obter uma trama encordoada que produz diversas colorações e contrastes. Cabe menção que a
opção pela viola, captada em duas tomadas que se somam na faixa, reflete um contraste entre
a inclinação regionalista do instrumento, usado na seção do baião, com a suposta inclinação
da guitarra elétrica a uma pronúncia mais 'universal', esta usada na introdução, e de modo bem
particular.
No contexto da releitura de um clássico o trabalho do intérprete de música popular
depende muito de sua capacidade de estabelecer um diálogo criativo com a obra, provocando
uma tensão entre o que é mais instituído como referência, mais conhecido, e sua interpretação,
investindo numa assinatura estilística pessoal, ou mesmo na 'expansão' da obra que interpreta.
Heraldo do Monte opta pela guitarra solo, e a fim de favorecer esse recurso instrumental em
seu arranjo faz uso do modo ad libitum2, tendo o músico mesmo já declarado que pensa ser
esse um bom jeito de resolver a situação da guitarra desacompanhada. Na primeira parte da
música ele sugere uma atmosfera concertante, intercalando nota isoladas com blocos de
acordes, justapondo arpejos, retomando ideias e as contrastando com outras, convertendo a
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canção numa peça instrumental elaborada. A densidade harmônica da primeira parte, cheia de
acordes adicionados, de variação quanto aos movimentos das vozes, cede espaço na segunda a
uma expressão mais ‘regional’, com articulação viva, ligados que evocam o ponteado dos
violeiros repentistas, tudo isso a promover um contraste mais acentuado desta com a primeira
parte. Mas logo o ambiente inicial é retomado, e a primeira parte é então reapresentada, com
algumas variações, conduzindo o desfecho da introdução ao início do baião. Portanto, com a
expansão harmônica obtida e os recursos de seu toque guitarrístico, Heraldo consegue propor
uma interpretação que bem estiliza a própria imagem do “pau de arara”, que traz o seu
universo cultural “no matulão”, mas que tem fibra e força para chegar na ‘cidade grande’ e
vencer.
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Heraldo do Monte nos mostra o caminho para ser a um só tempo um guitarrista sofisticado e
“matuto”.
Bibliografia:
- Livro
CONTIER, Arnaldo. Música e ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1978.
- Dissertações ou Teses
FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da Harmonia na Música Popular: uma definição
das relações de combinação entre os acordes na harmonia tonal. 1995. Dissertação de Mes-
trado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulis-
ta. São Paulo: UNESP, 1995.
LIMA JUNIOR, Fanuel Maciel de. A elaboração de arranjos de canções populares para vio-
lão solo. Campinas, 2003. Dissertação (Mestrado em Música) Universidade Estadual de
Campinas.
- Gravação em CD ou em vídeo
MONTE, Heraldo do. Cordas Vivas. LP. Gravadora Som da Gente, 1983.
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MONTE, Heraldo do. Cordas Mágicas. LP. Gravadora Som da Gente, 1986.
Pau de Arara. Luiz Gonzaga e Guio de Moraes (Compositor). Heraldo do Monte (Intérprete).
LP. Estúdio Eldorado, 1980.
Pau de Arara. Luiz Gonzaga e Guio de Moraes (Compositor). Heraldo do Monte (Intérprete).
Consertão – Elomar, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura e Heraldo do Monte. LP. Kuarup
Discos, 1982.
Pau de Arara. Luiz Gonzaga e Guio de Moraes (Compositor). Luiz Gonzaga (Intérprete).
78rpm. RCA Victor, 1952.
1
O presente trabalho integra uma pesquisa que conta com o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa de São Paulo (FAPESP).
2
O termo ad libitum aplicado à música diz respeito a um modo de abordar a interpretação que
se caracteriza pela liberdade rítmica, mais livre quanto ao pulso, principalmente, e que inclui
‘licenças’ também quanto tratamento melódico e das demais componentes estruturais da peça.
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