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“Democratização do ensino” revisitado

José Sérgio Fonseca de Carvalho


Universidade de São Paulo

Nota prévia discurso educacional. Sua aplicação a outros


problemas ligados aos discursos sobre políticas
Em 1997, numa reunião de professores de educação pode ser extremamente elucidativa
encarregados de propor uma nova ementa para das tensões que subjazem aos consensos eivados
a disciplina Introdução aos Estudos da Educa- de retórica, cujas expressões como “qualidade de
ção — que a partir de então passava a integrar ensino”, “educação para a cidadania”, “defesa da
um programa de formação de professores liga- escola pública” e tantas outras que, por se terem
do à Cátedra USP/Unesco de Educação para a tornado palavras de ordem ou slogans educa-
Paz, Tolerância, Democracia e Direitos Humanos cionais, tendem a obscurecer as complexas diver-
— sugeri a inclusão do artigo “Democratização gências conceituais e programáticas que estão em
do ensino: vicissitudes da idéia no ensino jogo nesse campo.
paulista”, republicado nesta edição da revista
EDUCAÇÃO E PESQUISA, na bibliografia da dis- “Democratização do ensino” e
ciplina. O professor José Mário Pires Azanha, a polêmica conceitual
seu autor e então coordenador da cátedra, fez
algumas objeções à sugestão. Argumentava que É inegável que, embora não tenham ain-
era um artigo “datado”, cuja polêmica não mais da quarenta anos, as medidas que visaram pro-
fazia sentido, uma vez que o ensino fundamen- mover o acesso universal ao ensino fundamen-
tal de oito anos praticamente se universalizara tal de oito anos (antigo primeiro grau) geram
e poucos eram os que ainda apresentavam res- hoje pouca ou nenhuma polêmica. A noção de
trições às políticas de promoção do acesso que o acesso a esse segmento da educação es-
maciço a esse nível de escolaridade. colar é um direito público cuja fruição não
Na ocasião, não tive a oportunidade de pode ser impedida por qualquer tipo de exame
lhe apresentar as razões que me levam a crer seletivo, como os de admissão até então vigen-
que, contrariamente à sua opinião, não se tra- tes,2 já está bastante consolidada. A polêmica
ta de um artigo “datado”, pois sua abordagem que então mobilizou a comunidade educacio-
transcende a polêmica histórica e pode dar um nal e a opinião pública parece ter se desloca-
modelo de alto interesse para a análise dos do para outras esferas, notadamente para as
discursos pedagógicos e educacionais. Em di- políticas públicas voltadas para a regularização
versas outras ocasiões, cheguei a lhe apresen- do fluxo e a redução da evasão escolar — por
tar alguns dos argumentos, mas nunca o fiz de
forma sistemática — ele nunca se interessou em 1. Os exames de admissão, organizados autonomamente por cada giná-
discuti-los, reiterando sua posição de que só sio público, selecionavam os alunos que haviam concluído a escola primá-
ria de quatro anos e pleiteavam uma vaga nos ginásios públicos. Não era
escrevera o artigo como uma resposta aos crí- raro que os alunos que a ele se submetiam passassem por cursinhos pri-
ticos da eliminação dos exames de admissão.1 vados análogos aos cursos pré-vestibulares de hoje.
Sua republicação nesta edição pareceu- 2. As estatísticas da época não são de todo confiáveis. A Secretaria da
Educação estimava, segundo relato do professor José Mário Pires Azanha,
me, então, a ocasião propícia para a defesa da que até 1968 menos de 20% das crianças em idade escolar chegavam à
hipótese de que, mais do que uma resposta à primeira série do curso ginasial no estado de São Paulo. Seja qual for o
número preciso, a massa de alunos impedidos de continuar seus estudos
polêmica gerada, “Democratização do ensino” era bastante significativa, tanto que as matrículas praticamente dobraram
apresenta uma forma inovadora de análise do em 1968 em relação ao ano anterior.

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exemplo, a progressão continuada e o estabe- frisar aqui é que, tal como se lê no texto “De-
lecimento dos ciclos. Curiosamente, entretanto, mocratização do ensino”, essa “unanimidade na
os argumentos contrários a essas políticas lan- superfície” esconde as “divergências profundas
çam mão de expressões e conceitos muito pró- acerca do significado” das expressões recorren-
ximos — às vezes idênticos — aos então arro- tes no discurso educacional — “democratização
lados como críticas à democratização do acesso do ensino”, “qualidade de ensino” e mesmo
ao ginásio: o caráter “falsamente democrático” “uma sólida formação docente”.
das medidas adotadas, a queda na “qualidade Nesse sentido, sua permanência históri-
de ensino”, a necessidade de uma “preparação ca revela mais do que a aparente persistência
prévia” tanto da infra-estrutura como do corpo de um mesmo conjunto de problemas ao qual
docente das escolas para fazer face aos novos se vêm dando há décadas as mesmas soluções.
desafios oriundos da mudança dos alunos, etc. Ela pode significar que o caráter freqüentemente
Daí a relevância de se retomar o tipo de aná- vago desse tipo de discurso tem obscurecido a
lise proposto em “Democratização do ensino”. compreensão da cambiante realidade escolar, e
Em 1 de dezembro de 1968, o editorial que essa aparente unanimidade tem impedido
do jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, ao o afloramento de uma discussão mais clara
comentar a medida da administração Ulhôa sobre as profundas divergências de concepções
Cintra, afirmava que “para que ela surtisse efei- programáticas que ele encerra.
to seria preciso que houvesse classes e escolas É em relação a essa hipótese que um
com professores preparados (...) que as condi- retorno ao ensaio do professor Azanha pode se
ções materiais fossem previamente ou simulta- revelar promissor, transcendendo-se seus pro-
neamente criadas — sem o que teremos não pósitos imediatos. Ao explorar as vicissitudes da
uma verdadeira democratização do ensino, mas idéia de democratização do ensino, mais do
tão somente uma extensão formal da escolari- que simplesmente tomar uma posição em face
dade”. Lendo hoje essas afirmações, talvez fôs- de uma política pública, Azanha aponta para o
semos tentados a inferir que a natureza dos caráter necessariamente programático dessas
problemas em educação pouco mudou ou ape- definições educacionais e para o tipo de dis-
nas se agravou, que o diagnóstico de então cussão que devem ensejar, se não nos quiser-
ainda é válido, quase quarenta anos depois, mos confinar à superfície unânime da retórica
uma vez que já se debatiam a “qualidade da educacional.
educação”, a “formação adequada de professo- Trata-se, portanto, de reconhecer que o
res” e as condições para a “verdadeira democra- recurso a uma mesma expressão pode obscure-
tização do ensino”. A recorrência dessas expres- cer não só concepções teóricas divergentes
sões pode levar a crer que há décadas perse- como diferentes — ou conflitantes — programas
guimos os mesmos objetivos — uma educação de ação. Tomemos como exemplo a noção de
democrática e de qualidade — e temos os mes- educação de qualidade, uma reivindicação tão
mos diagnósticos: faltam verbas, condições de antiga quanto unânime, pela qual os mais di-
trabalho e um esforço de formação de professo- versos segmentos sociais no Brasil têm se ma-
res que seja capaz de responder aos desafios da nifestado há décadas. Mesmo ignorando a va-
escola contemporânea. riação histórica e atendo-nos a alguns atores e
Não é o caso, para o propósito destas re- instituições sociais, é pouco provável que, por
flexões, de entrar no mérito de cada uma des- exemplo, a Fiesp e a CUT, o Estado e a famí-
sas complexas questões ou das alegações sobre lia, os professores e os responsáveis por polí-
a razão da constante — e em parte justificada ticas públicas tenham, todos, a mesma expec-
— insatisfação em relação aos resultados da tativa quanto ao que poderia ser uma educação
escolarização em nosso país. O que interessa de qualidade. O mesmo se poderia dizer sobre

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o que leva a qualificar a ação educativa como apenas eficaz no desenvolvimento de “compe-
tendo a qualidade desejável, ou seja, com que tências” ou “capacidades”.
práticas e resultados a identificamos numa ou Poderíamos multiplicar os exemplos e
outra instituição. tornar ainda mais complexa a tarefa de definir o
Para uns, a educação de qualidade deve conceito de educação de qualidade, mostrando
resultar na aquisição de diferentes “competên- como essa expressão pode descrever expectati-
cias”, que capacitarão os alunos a se tornarem vas muito distintas não só no que diz respeito
trabalhadores diligentes; para outros, líderes sin- a seus resultados, mas também no que concerne
dicais contestadores, cidadãos solidários ou em- aos meios mais adequados para atingi-los. Para
preendedores de êxito, pessoas letradas ou con- além de uma possível função elucidativa ou
sumidores conscientes. Ora, é evidente que, em- descritiva, 3 essas expressões e esses conceitos
bora algumas dessas expectativas sejam compa- têm também um valor programático, pois a eles
tíveis, outras são alternativas ou conflitantes, pois se vinculam ideais de práticas sociais para os
a prioridade dada a um aspecto pode dificultar quais se pede ou se reforça a adesão. Por isso,
ou inviabilizar outro. Uma escola que tenha esses discursos contêm sempre a veiculação de
como objetivo maior — e, portanto, como critério valores e metas que devem orientar a ação.
máximo de qualidade — a aprovação no vestibu- Nesse sentido, não se trata simplesmente de
lar pode buscar a criação de classes homogêneas examinar qual seria o “verdadeiro conceito de
e alunos competitivos, o que evidentemente qualidade de educação” — ou de uma educação
impede a oportunidade de convivência com a democrática —, mas de confrontar as alternati-
diferença e reduz a possibilidade de se cultivar vas em função de suas implicações morais e das
o espírito de solidariedade. Assim, as “competên- práticas educacionais que implicam ou que de-
cias” que definiriam a “qualidade” em uma pro- las derivam e para as quais se pede a adesão. É,
posta educacional significariam um fracasso — pois, somente se discutidas nos planos ético e
ou ausência de qualidade — em outra. político das conseqüências e dos pressupostos
Por outro lado, para certas correntes de de cada uma das visões que as profundas diver-
pensamento, a própria idéia de que uma esco- gências vêm à tona.
la de “qualidade” deve desenvolver “competên- O recurso a essas expressões, portanto,
cias” ou “capacidades” pode comprometer o fomenta práticas sociais e não apenas elucida
ideal educativo, já que os termos “competência” uma significação. Ao definir democratização
e “capacidade” não revelam, em seu uso co- como “a universalização de oportunidades” ou
mum, um necessário compromisso ético para como “o cultivo da liberdade do educando”,
além da eficácia. Platão, por exemplo, argu- não se marcar apenas uma diferença conceitual
menta nesse sentido em seu diálogo Górgias — no plano teórico, mas sobretudo busca-se uma
um orador “competente” pode usar sua capa- adesão às práticas sociais que se consideram
cidade tanto para persuadir uma comunidade a mais valorosas.
aceitar uma “lei justa” como uma “lei injusta”. O recorte analítico proposto no artigo
A competência se mede, portanto, pela eficácia ressalta exatamente esse ponto — “não é a
dos resultados. Mas o mesmo não vale para o profissão de fé democrática que divide os edu-
cultivo de um valor moral. Pode-se dizer que cadores brasileiros”, mas os programas de ação
alguém é [um orador] competente, mas usa sua veiculados. (“É nos esforços de realização his-
competência para o “mal”, embora não tenha tórica desse ideal que as raízes das posições e
sentido afirmar que alguém é “justo” para o
mal, posto que seria injusto. Assim, a ação 3. Como ressalta Scheffler (1968, cap. 1), não é possível qualificar uma
expressão como programática ou descritiva em abstração de seu contexto
educativa de “qualidade” é, para Platão, essen- lingüístico. Ademais, num mesmo contexto, não é raro que uma definição
cialmente de natureza política e ética, e não ou uma expressão sejam simultaneamente programáticas e descritivas.

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das divergências se revelam.”) Enquanto, para alguns desses pontos. Se pensarmos nos obje-
uns, a democratização se caracteriza por polí- tivos e mesmo do momento histórico em que
ticas públicas de abertura da escola para todos, surgiu essa idéia — ou seja, no conteúdo his-
para outros, ela decorre de práticas pedagógi- tórico e programático que ela veicula —, é ine-
cas capazes de formar indivíduos livres. gável que expressa um louvável esforço de
Ora, é evidente que, ao explicitar as di- respeito à cultura do educando. Nesse sentido,
ferentes concepções subjacentes aos discursos o programa veiculado pode ainda guardar in-
aparentemente consensuais sobre a necessida- teresse para além do contexto que o originou.
de de “democratização do ensino”, Azanha não Mesmo no âmbito mais específico da educação
procurava simplesmente marcar duas possíveis escolar “regular”, a valorização do meio cultu-
formas complementares de compreensão do ral de que advêm os alunos, seus hábitos e seu
problema. Ao contrário, sua análise histórica modo de vida nem sempre são objetos do de-
revela o caráter alternativo das práticas e dos vido respeito.
princípios de ação que se proclamam favoráveis Assim, no que concerne a esse aspecto
ao ensino democrático: “É claro que expandir do conteúdo programático, pode-se afirmar que
universalmente as vagas e instituir uma prática sua ênfase — a de que os homens são produto-
educativa especial poderiam eventualmente ser res e portadores de cultura, ainda que ela nem
conjugados, mas a verdade é que historicamen- sempre coincida com a cultura escolarmente va-
te, pelo menos no caso de São Paulo, têm-se lorizada — pode ter um papel relevante no pro-
apresentado como opções que se excluem”. O cesso educativo. Sua difusão pode, portanto, ser
conflito não se resolve, pois, pela simples adi- valiosa em certos contextos específicos, nos
ção desses que seriam dois “aspectos comple- quais a escola, talvez por força de sua história
mentares” da democratização da educação. extremamente seletiva em nosso país, rejeite, por
Tampouco o fato de não ter havido com- meio de práticas discursivas e não discursivas, as
patibilidade histórica entre as duas ênfases4 sig- manifestações culturais que não coincidem com
nifica a impossibilidade lógica de sua conjuga- seu ethos específico. No entanto, nesse e em
ção. No entanto, como fica claro no decorrer outros casos análogos, mais do que o símbolo
do texto, ambas as correntes partem de pressu- de um movimento educacional, o slogan “todo
postos bastante distintos. A democratização educando é um educador e todo educador um
concebida como uma prática pedagógica visa a educando” passou progressivamente a ser inter-
formação de personalidades democráticas por pretado como uma doutrina literal e progra-
meio do cultivo da “liberdade do educando”. mática acerca das relações desejáveis entre pro-
Nesse caso, a ênfase recai sobre um certo tipo fessores e alunos, inclusive da educação básica.
de relação pedagógica: aquela capaz de supri- Por essa razão, é preciso analisá-lo também
mir — ou pelo menos reduzir drasticamente — quanto a esse aspecto, já que ele nos remete a
as hierarquias que historicamente marcam as re- uma das concepções possíveis sobre “democra-
lações pedagógicas entre professores e alunos, tização do ensino”.
tidas como invariavelmente autoritárias. Adotando a palavra educador em seu
Essa concepção, largamente difundida à sentido mais amplo, a frase é sem dúvida ver-
época e ainda hoje bastante corrente entre edu- dadeira. O ato de educar, e mesmo o de ensi-
cadores, encontrou sua expressão mais forte na nar, não é exclusivo de professores, mas, ao
propagação de um slogan oriundo da obra de contrário, é uma característica humana. Não há
Freire: “Todo educador é um educando e todo ser humano que jamais tenha ensinado algo a
educando é um educador”.
4. Vale ressaltar que as Escolas Vocacionais, que gozavam de autono-
Já nos detivemos antes no assunto (Car- mia, não aderiram de imediato ao exame de admissão facilitado, mantendo
valho, 2001, cap. 3), mas vale a pena retomar assim seu caráter seletivo.

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alguém ou nunca tenha participado da educa- mundo político para o escolar parece ingênua,
ção de outra pessoa. e pode mesmo chegar a ser danosa às institui-
No entanto, afirmar enfaticamente essa ções escolares. Numa sala de aula, assim como
alternância ou equivalência dos papéis, sobre- numa família, os cidadãos têm papéis sociais
tudo fora do contexto em que foi pensada, distintos, e ignorar tal especificidade significa
pode e tem levado ao obscurecimento de uma abolir um dos procedimentos que presidem o
característica fundamental da relação pedagó- funcionamento dessas instituições.
gica de um aluno com o professor, sobretudo Poderíamos dizer, analogamente, que
quando se trata dos segmentos fundamental e “todo pai é um filho, que filhos provavelmente
médio da escolaridade e das instituições esco- serão pais“, mas essa alternância e igualdade não
lares. Se é fato que todos os seres humanos abole o fato de que, em determinado contexto,
educam e ensinam a outros seres humanos, nos portamos como pais e, em outros, como
também é fato que o professor o faz não aci- filhos, que são papéis diferentes. A igualdade
dental ou eventualmente, mas tem no ensino e que pais e filhos têm como cidadãos não pode
na educação sua escolha de inserção profis- ser transferida para o seio da instituição fami-
sional e social. Para nós, professores, educar liar, sob pena de os pais não cumprirem com
através do ensino é mais do que uma contin- suas responsabilidades. O direito à participação
gência da condição humana, é uma escolha nas decisões sociais em igualdade de condições
profissional, que exercemos em instituições, tampouco é transposto de uma instituição para
com regras, saberes e inclusive hierarquias que outra. E isso não demonstra autoritarismo, mas
lhe são peculiares. uma autoridade institucional — ainda que por
O próprio Paulo Freire, em alguns escri- vezes essa autoridade possa ser e tenha sido
tos posteriores, chegou a afirmar que sua visão mal-exercida ou exacerbada —, na compreensão
não deveria implicar a abolição das responsa- de que duas esferas sociais distintas, devem ter
bilidades e hierarquias próprias da instituição procedimentos igualmente distintos.
escolar. No entanto, a idéia de uma equalização Da mesma forma, a igualdade que une os
como chave da “democratização” das relações cidadãos em face das leis, dos deveres, dos di-
escolares está implícita nessa formulação de reitos da cidadania e do espaço político não
que o educador é um educando e vice-versa. E, pode ser transportada mecanicamente para o
se essa tentativa de recuperação da responsa- ambiente escolar. A relação pedagógica pressu-
bilidade e da hierarquia teve uma repercussão põe diferenças que, no contexto escolar, tradu-
bem menor do que a idéia original, isso não é zem-se numa certa hierarquia. Em parte, essas
um mero acaso ou uma distorção evitável, mas diferenças derivam do fato de o professor ter
antes repousa sobre um pressuposto presente certos conhecimentos que os alunos não têm,
em sua obra — o de que as relações entre pro- que são os conhecimentos escolares. Estes evi-
fessor e aluno são relativamente análogas àque- dentemente não são os únicos, nem tampouco
las que regem ou devem reger as relações en- uma síntese dos saberes universais. Nem sequer
tre cidadãos. Pressuposto que alegadamente sabemos se são os melhores ou os mais impor-
conferiria um caráter democrático às relações tantes, mas são aqueles que compõem o currí-
pedagógicas. culo escolar, que integram as instituições em que
A ação educativa de Freire pretendia a in- trabalhamos e são conhecimentos que de algu-
serção num mundo político, era feita entre adul- ma forma valorizamos, escolar e socialmente.
tos e visava à plenitude da cidadania, para a qual Mas não é essa a única nem a principal razão da
o conceito de igualdade é absolutamente funda- autoridade do professor. A autoridade — e con-
mental. No entanto, a exportação mecânica des- seqüente responsabilidade do professor, sua
se conceito e dos procedimentos e rituais do posição hierarquicamente diferente — deriva do

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fato de que ele é o agente institucional que escola, mas pode ser e é levado a cabo por
inicia os jovens numa série de valores, conheci- várias outras instituições sociais. Originalmen-
mentos, práticas e saberes que são heranças te, é provável que seu emprego se tenha devi-
públicas (cf. Arendt, 1978, cap. 5) que uma do a uma tentativa de ênfase no fato inegável
nação escolheu preservar através de sua apre- de que Freire não desejava a simples transmissão
sentação e incorporação por parte daqueles que de uma capacidade técnica; no caso, de leitura e
são novos no mundo. Nesse sentido, somos co- escrita. Ao contrário, a educação de adultos de-
autores dessas tradições e a autoridade deriva, veria incorporar a construção de uma forma de
etimológica e eticamente da autoria — nesse ver o mundo. Pressuposto, aliás, que não é
caso, dessa co-autoria. menos verdadeiro para as escolas regulares. No
É claro que essa escolha curricular dentre entanto, um professor educa num sentido am-
a diversidade dessas heranças, bem como as prá- plo, que inclui valores, visão de mundo, enfim,
ticas pedagógicas de que nos servimos para seu uma certa forma de agir e se posicionar no
ensino, refletem uma divisão desigual de poder mundo, mas sempre o faz através do ensino , e
dentro da sociedade. É igualmente evidente que em particular do ensino dos conteúdos próprios
ela é passível de críticas e reformulações. Aliás, a das tradições públicas escolares. Mas, a bem da
própria continuidade de cada uma e do conjun- verdade, o termo “professor” indica tudo isso,
to dessas heranças culturais implica modificações, uma vez que não se confunde com “instrutor”
posto que tudo aquilo que é vivo, não só bioló- ou “treinador”.
gica mas também socialmente, se modifica com Novamente, nesse aspecto é que reside
o tempo. Mas elas sempre representarão as esco- nossa especificidade e, diria ainda mais, a pró-
lhas que o mundo adulto fez para transmitir às pria dignidade de nosso trabalho. Um padre, uma
novas gerações. Nesse sentido é que as escolhas rede de televisão, uma organização não-gover-
implicam a responsabilidade e a conseqüente namental educam, mas fazem-no a partir de
autoridade do professor. Sua autoridade não é, interesses específicos e freqüentemente privados
portanto, pessoal, mas institucional. ou restritos a um grupo específico de cidadãos.
Ao professor cabe esse papel de agente Os professores e as instituições públicas de en-
insti-tucional responsável simultaneamente pela sino educam por meio do ensino de grandes
preservação de certos saberes, valores e práti- tradições públicas — capacidades como as de ler
cas que uma sociedade estima e pela inserção e escrever, as artes como a literatura, as ciên-
social dos novos nessa parcela da cultura hu- cias, enfim, as formas de conhecimento cujo de-
mana. Assim, embora o professor ensine e senvolvimento se deve justamente ao caráter
aprenda, inclusive de seus alunos, e através de público tanto de seus resultados como dos cri-
seu ensino eduque e seja educado, o contexto térios pelos quais as avaliamos e validamos.
institucional em que ele o faz não deve permitir Os objetivos da educação escolar segura-
que os papéis se confundam, nem tampouco mente ultrapassam a mera posse dessas informa-
pode implicar uma igualdade, como se o con- ções, e mesmo a capacidade de produzir, reco-
texto político das relações entre cidadãos se nhecer e apreciar as produções nessas áreas,
reproduzisse de forma idêntica ou imediata no posto que se dirigem também para a formação
contexto escolar e entre professores e alunos. de certos tipos de comportamento socialmente
Nesse sentido, a própria sugestão, tão valorizados, mas sempre o fazem através dessas
amplamente aceita, de se substituir a palavra formas de conhecimento — por meio de seu
“professor” por “educador” também enseja uma ensino. A desvinculação dos valores e objetivos
certa ambigüidade quanto às funções específi- educacionais das disciplinas e formas de conhe-
cas dessa classe profissional e dessa instituição. cimento tipicamente escolares pode e tem leva-
Educar não é específico do professor ou da do professores a esvaziar de sentido suas pala-

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vras, tornando seu discurso freqüentemente uma matrícula num estabelecimento escolar, mas o do
retórica moralista ou doutrinária. acesso aos bens culturais públicos que nela se
Essa longa digressão pretende elucidar deveriam difundir: conhecimentos, linguagens,
que o que está em jogo nessas discussões não expressões artísticas, práticas sociais e morais,
são apenas dois aspectos distintos da democra- enfim, o direito a um legado de realizações his-
tização — a supressão da hierarquia e a tóricas às quais conferimos valor e das quais
universalização do acesso — que, se conjugados, esperamos que as novas gerações se apoderem.
se complementam. Ao contrário, são visões Nesse sentido, a política de democratização da
conflitantes sobre o papel da escolaridade na educação propõe desafios pedagógicos, ainda
constituição de uma sociedade democrática. Na que sua dimensão seja eminentemente social,
primeira, a “democratização” é concebida como mais do que simplesmente escolar.
atributo das relações pessoais entre professores Além disso, o acesso universal à escola e
e alunos, daí a crítica de Azanha de que, para tal mesmo a relativa eqüidade na distribuição dos
concepção, a democracia política resultaria da bens culturais que com ela identificamos não
simples adição de “personalidades democráticas”. garantem um compromisso da escola com a
É claro que se podem pleitear relações “cultura da democracia”. Basta lembrar, por
escolares não autoritárias sem pôr em xeque a exemplo, escolas de países como a antiga Re-
autoridade legítima e interna às instituições es- pública Democrática Alemã, que, apesar de te-
colares. Até porque, como lembra Hanna Arendt, rem logrado a universalização do acesso e dos
onde se faz necessária a coação, a autoridade bens culturais, parecem não ter tido na cultu-
falhou, uma vez que, numa relação de autorida- ra dos valores democráticos um de seus obje-
de, a submissão é voluntária, tal como numa tivos.
relação entre médico e paciente. Por outro lado, Assim, um dos grandes desafios que
a concepção de que a “democracia” resultaria de implica a democratização do acesso à escola é
um certo tipo de relação pessoal tem longa his- o de buscar meios pelos quais a educação es-
tória em nosso país, como na concepção larga- colar, através do ensino de grandes tradições
mente difundida de uma “democracia racial” intelectuais, práticas e morais, possa cultivar
baseada numa alegada harmonia entre os indi- valores como a igualdade, a tolerância, a não-
víduos de diferentes origens étnicas. violência, a solidariedade, enfim, modos de vida
O que uma tal visão obscurece é o fato que tenham na democracia política e social o
de que, independentemente das relações pes- maior de seus compromissos.
soais, no plano social, brancos e negros, por Em outras ocasiões, já tivemos oportuni-
exemplo, têm poder e direitos desiguais; que a dade de sustentar que esses compromissos não
exclusão sistemática a que estes têm sido sub- resultam simplesmente de uma exposição dos
metidos impede nossa sociedade de ser demo- alunos a uma retórica que os enalteça, nem
crática nesse aspecto. É nesse sentido que de- tampouco da simulação de rituais que imitam
vemos entender a democratização da escola não “pedagogicamente” a liberdade almejada para a
como uma reforma pedagógica que visa alterar esfera pública. Seu cultivo parece antes depen-
as relações pessoais internas à instituição, mas der da convivência com professores e demais
uma política pública que vise ampliar o direito profissionais da educação que promovam essa
à escolarização. Por essa razão, não pode haver forma de vida e, no curso de suas aulas, no con-
democratização do ensino sem esforços siste- teúdo de seus ensinamentos e em suas práticas
máticos para o acesso e a permanência de to- pedagógicas reflitam esse compromisso (Carva-
dos nas escolas. lho, 2004). Como afirma Oakeshott (1968), “só
Mas é claro que o direito cuja univer- um professor que cultive essas virtudes pode
salização se reivindica não é simplesmente o da ensiná-las. Não é o grito, mas o vôo do pássaro

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que faz com que o bando o siga”. que algo ‘ser‘ democrático seja algo produzir ,
A democratização do ensino muito deve gerar democracia” (Ribeiro, 2001, p. 66). Assim,
às ações do professor José Mário Pires Azanha, uma escola cujo acesso, gestão e compromis-
não só por seus escritos, mas por sua luta por sos educacionais sejam fundados nos ideais da
uma escola aberta à totalidade da população. democracia política e social exige de todos os
Mas democracia não é um ponto a que se envolvidos um constante esforço teórico de
chega, é antes um processo que se vive. Por compreensão dessas diferentes dimensões e um
isso, Renato Janine Ribeiro sugere que “talvez esforço prático reiterado a fim de que sua ação
o melhor seja usar não o verbo ser , mas fazer fomente a igualdade de direitos e uma cultura
para a democracia; talvez mais importante do de promoção dos valores democráticos.

Referências bibliográficas

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