IDENTIFICAÇÃO
Título do Plano de trabalho: A Relação Entre a Música de Joe Hisaishi e a Direção de
Hayao Miyazaki
2. Introdução
O presente estudo busca reflexão na animação japonesa do Studio Ghibli. Por ser se
tratar de um estúdio impar no mercado japonês, foi escolhido como objeto de estudo
o longa-metragem Mononoke Hime (1997), de direção de Hayao Miyazaki e trilha
sonora de Joe Hisaishi. Este filme foi o primeiro grande sucesso de bilheteria
internacional do Studio Ghibli, sendo uma das obras de maior relevância na carreira
de Miyazaki.
Mononoke Hime (1997) é um dos últimos filmes da atualidade feito em sua maioria
com celuloide, e com pouca utilização do computador na sua construção. Segundo
Toshio Suzuki, produtor do estúdio, o longa metragem foi criado em um momento
onde a equipe de desenhistas estava mais preparada para a criação manual destes
desenhos animados.
Tratando de forma crítica temas como ecologia e questões gênero, o longa-
metragem mostra os impactos de uma industrialização na natureza e uma sociedade
na qual as mulheres possuem poder e liberdade. No âmbito técnico Miyazaki traz o
silêncio através de pausas e contemplações sem perder o ritmo de um filme de ação,
utilizando do conceito japonês Ma.
Ambientada no Japão, Hisaishi compõe uma trilha musical que compactua com o
local, utilizando instrumentos e escalas musicais tradicionais japonesas, além de uma
orquestra completa. Sobre esse trabalho Hisaishi diz “Eu queria expressar seus
sentimentos (Miyazaki) através da música. Nas músicas que fiz no passado tentei me
aproximar dos sentimentos do público e do ambiente da tela” (URATANI, Toshiro.
1998).
Portanto, devido sua importância e singularidade, buscou-se uma compreensão de
como a trilha sonora de Joe Hisaishi dialoga com a direção de Miyazaki.
3. Metodologia
A analise da relação do som e imagem no filme foi feita ancorando-se em livros e teses
de diversos teóricos do cinema. Atentamo-nos a ter um olhar mais sensível a cultura
japonesa e seus desdobramentos. Analisamos as primeiras cenas do filme, pois essas
se mostraram frutíferas em questão de conteúdo. Com essas cenas foi possível
averiguar diversas técnicas de aplicação de som e imagem, tanto as averiguadas nas
bibliografias especializadas quanto as encontradas em entrevistas ou analises sobre o
filme Mononoke Hime.
San: humana criada pela Deusa loba Moro, ela é a Mononoke Hime. Ela odeia
os humanos e passa toda a trama tentando afugentar os humanos do bosque para
assim cessar a sua destruição. Diferentemente de Ashitaka, San não enxerga
possibilidade de viver em harmonia com os humanos, a única salvação que ela enxerga
para o bosque é destruição da Cidade do Ferro e a morte de Lady Eboshi.
Shishigami: Deus do bosque. Sua forma de dia é de um cervo com um rosto que
se assemelha a um rosto humano, porem de noite ele se transforma em um gigante
humanoide com uma forma translucida. Tem o poder de dar e tirar a vida. Ashitaka o
procura para poder se livrar da sua maldição.
6. MA
O Ma pode ser um entre espaço, aquilo que ata dois pontos, ou aquilo que esta
entre dois pontos; pode ser uma respiração entre uma fala e outra, uma fronteira. A
priori, apesar de passar a noção de estar lá por uma incidência natural entre dois
eventos, o Ma por si só já este cheio de significados, ou por vezes o seu significado
esta em dar maior significância aos eventos, objetos ou tempo que o precede ou
sucede.
Na pintura japonesa o vazio se encontra por uma questão proposital, seja para
significar um espaço em si, ou para dar significância a aquilo que não é espaço. Na
arquitetura o espaço entre duas pilastras é visto como um espaço Ma. As construções
das casas japonesas se utilizam do pensamento Ma, a unidade de medida para os
tatames é Ma, as portas de correr nas casas tradicionais japonesas modificam o
tamanho do ambiente, podendo tornar uma sala menor ou maior conforme o numero
de portas abertas, demostrando nesse instante uma utilização do espaço de forma
intencional.
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Teatro de bonecos japoneses.
No cinema japonês o Ma é extensamente usado por diretores como Akira
Kurosawa, Ozu Yasujiro e Kitano Takeshi. Com cenas de longos silencio de música ou
de conversa, apenas com o som ambiente, ou por vezes com música. Porem nada
acontece na trama, e muitas vezes pode ocorrer silencio nos dois campos, seja na
trama ou na trilha sonora. Essas pausas são uma clara utilização do conceito Ma, seja
para ambientar, seja para dar uma pausa na trama ou para mostrar sentimentos que
são inefáveis. O Ma pode se expressar em cenas que demostram caminhos, ou
mudanças, expondo a transitoriedade da vida, ideias e/ou ciclos em seus filmes.
Apesar de existir muitas definições para o Ma, elas sempre acabam apenas
cercando seu real significado e/ou definindo só uma parte do que ele realmente
representa. Para muitos japoneses o Ma é indefinível com palavras, ou seja, ele é
inefável, sua presença é sentida porem não explicada, exatamente pelo fato de ele ser
polissêmico e se apresentar em varias formas e momentos diferentes.
7. ANALISE
7.1. Cena 1
Podemos comparar esta cena com as ouvertures2 das operas. Apesar de não
apresentar os vários temas musicais que compões o filme, ele apresenta os
personagens e as problemáticas que irão compor a obra. A trilha sonora contribui para
fazer o caminho para essa exposição:
2
É comum ao inicio de uma ópera haver uma musica inicial que na qual possui todos os temas da ópera.
3
Entendemos aqui como sons naturais os sons do vento e os cantos dos animais.
melancolia. Segundo, é possivelmente algo de forma grande, pois, há sons e imagens
de arvores sendo derrubadas. A terceira parte apresentada trabalha som e imagem,
revelando os pés do tatari-gami juntamente a um som que remete uma imagem de
algo viscoso. Sobre a articulação de uma imagem com determinado som, Chion traz
uma definição a partir da sincronia audiovisual, a síncrese:
A partir destas três exposições citadas acima, o espectador deduz que se trata
de um grande animal que possivelmente carrega uma maldição.
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The legend of Ashitaka.
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As traduções das musicas foram feitas a partir das traduções em inglês.
“Contudo, a impressão de silêncio numa cena de filme não é o simples
efeito de uma ausência de ruído; só se produz quando é trazido por todo um
contexto e por toda uma preparação, que consiste, no mais simples dos
casos, em fazê-lo proceder de uma sequência barulhenta. Por outras
palavras, o silêncio nunca é um vazio neutro; é o negativo de um som que
ouvimos anteriormente ou que imaginamos; é o produto de um contraste.
“ (CHION, Michel 1994)
7.2. Cena 2
Torre de vigia: Em 2’30’’ Ashitaka sobe a torre de vigia, não há trilha sonora.
Quando Ashitaka para e olha floresta, naquele exato instante a musica da inicio,
mesmo o filme estando em silêncio. Aqui consideramos que há uma expressão da
percepção japonesa sobre o espaço, ou seja, uma aplicação do Ma. Sobre isso
Steuernagel pontua:
“Enquanto para nós, ocidentais, o espaço está para ser preenchido, numa
perspectiva japonesa tradicional o espaço já faz parte da composição em si.
Ele precisa ser relacionado, concretizado, mas não necessariamente
preenchido. Uma tela branca não seria necessariamente neste caso um
convite ao preenchimento; seria algo próprio e com um Ma específico.
“ (STEUERNAGEL, M. S. 2008).
Sobre o argumento de que a música começa sem ao menos haver musica, nos
basearemos no gesto de Ashitaka e na citação acima descrita. Em relação ao gesto
comentaremos uma pesquisa feita por Vines, a respeito de como o gestual de um
clarinetista pode mudar a percepção de quem o assiste. Nesse artigo, foi exibido para
três grupos diferentes uma gravação da interpretação da peça solo para clarinete do
compositor Stravinsky. Para um grupo foi exposto um vídeo com som, para outro
apenas o som sem o vídeo e para o grupo restante apenas o vídeo sem som. Foi feita
uma analise da reação de cada grupo sobre as apresentações. A partir dos dados
coletados pode-se perceber que o gestual não somente muda a expressividade da
apresentação como muda a percepção da mesma. Os grupos com vídeo tinham a
percepção de o instrumentista estar tocando antes mesmo da nota soar, tudo graças
ao gesto do clarinetista. “Antes do começo da nova frase, o instrumentista faz alguns
movimentos que antecipam o som6.” (VINES, B. 2003).
Assim compreendemos que o gesto incita o som que o procede. Nesta pequena
cena o que vemos é uma incitação de que algo vai acontecer a partir da atitude do
Ashitaka. O espectador nesse momento pode passar a esperar alguma música para
pontuar a cena, porém não há música alguma, mas há uma intencionalidade.
Entendemos que a tensão causada pelo silêncio faz com que o espectador esteja
preparado para uma música. Podemos fazer uma analogia a este trecho do filme com
um instrumentista que segundos antes de iniciar sua apresentação se coloca em
posição para tocar, e o público se coloca em posição para ouvir em um momento de
reação ao gesto do instrumentista. Aqui é uma aplicação do Ma comumente feita por
Miyazaki. Sobre isso citamos uma entrevista que Miyazaki cedeu ao Roger Ebert:
Após esse silêncio uma nota grave começa a soar, ela segue até 3’10’,
finalizando com um toque de tambor e sendo procedida pelo som da maldição do
tatari-gami. A nota grave é utilizada com o intuito de causar desconforto, a ideia é que
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Traduzido pelo autor. Before the new phrase begins, the performer makes some movements in
anticipation of the sound. (Vines, B. 2003)
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Traduzido pelo autor. I told Miyazaki I love the “gratuitous motion” in his films; instead of every
movement being dictated by the story, sometimes people will just sit for a moment, or they will sigh, or
look in a running stream, or do something extra, not to advance the story but only to give the sense of
time and place and who they are. “We have a word for that in Japanese,” he said. “It’s called ma.
Emptiness. It’s there intentionally.” <https://www.rogerebert.com/interviews/hayao-miyazaki-
interview> acessado no dia 21/06/2018.
ela seja sentida e não ouvida. Sobre a utilização da musica como um elemento a ser
sentido, Gorbman diz:
Perseguição dois: Existe uma maior tensão na cena, mesmo havendo falas, a
música não troca sua instrumentação para dar destaques a elas, aqui o volume sonoro
da música compete propositalmente com o da fala. Neste momento, conversas já não
adiantam mais, Ashitaka é forçado a agir, soltando a flecha no tatari-gami.
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Traduzido pelo Autor. “The thirties also saw the development of guidelines for composing and
orchestrating music to be placed behind dialogue. Musicians and soundmen felt that woodwinds create
unnecessary conflict with human voices, and they stated a preference for strings. They concurred on
questions of range, too: even in the seventies Laurence Rosenthal advised “keeping the orchestra well
away from the pitch-range of the speaker – low instruments against high voices, and vice versa,”
although other composers note that combining voice and orchestra in the same register can sometimes
be a creative move, if a sort of indistinguishable tone color is desirable.”
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Técnica de percussão ou bateria, quando se é tocado varias vezes em uma alta frequência, formando
um som continuo.
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Originalmente o termo mickeymousing diz respeito à técnica de composição pela qual a música
acompanha a ação descritivamente, ilustrando-a e comentando-a. É a técnica usada nos desenhos
7.3. Cena 3
Iniciando-se aos 8’, essa cena pode ser dividida em cinco partes:
animados tradicionais, onde a forma, ritmo, andamento e até mesmo a estrutura melódica e harmônica
da música estão subordinadas aos seus correspondentes imagéticos. (CARRASCO, Ney 1993)
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Journey to the west
Ponto 3: Novamente se utiliza a mesma técnica orquestral utilizada na sessão
anterior. A cena mostra que Ashitaka se encontra mais distante ainda da sua terra
natal.
O que ocorre aqui é uma demonstração do espaço tempo Ma, pois se explora o
caminho no qual o Ashitaka percorreu. Ele é feito por quatro estados, um em sua
cidade natal, dois em distantes pradarias e o quarto no rio. No quarto instante é
reconhecível que ele chegou a uma possível parada, porque a forma como a musica é
conduzida nos demostra isso. Sobre essa citaremos Okano, a citação é longa, porém
consideramos necessária para melhor explicação dessa espacialidade Ma.
Essa viagem foi dividida em quatro partes devido a forma como a musica e a
cena foram elaboradas. O primeiro e ultimo ponto da orquestração é construída com
poucos instrumentos, já no segundo e terceiro a orquestração é construída com
muitos instrumentos. Esse jogo com a dinâmica dos instrumentos meche com a
sensação de temporalidade (dilatação do tempo), pois, quando a instrumentação é
pouca a sensação de tempo corrido é normal, porem quando a orquestração é massiva
a sensação é que se passaram dias. A musica aqui é utilizada para manipulação o
tempo. Sobre esse efeito Carrasco discursa:
7.4. CENA 4
Conversa com Jiko-bo: A próxima cena se inicia aos 15’50’’, logo após Ashitaka
conhecer o Jiko-bo. A música tocada aqui é usada como transição entre duas cenas
distintas. A primeira cena é o Ashitaka e o Jiko-bo fugindo dos ladrões que os seguem e
a segunda cena é Ashitaka e Jiko-bo conversando. A musica até a próxima pontuação
tem função de dar dinamismo e humor a cena. Sobre a aplicação como transição
Carrasco pontua:
Ou seja, não se faz necessário mostrar na cena o Tatari-gami, seja essa cena
reminiscência ou não. Ao utilizar a música o Tatari-gami já se encontra presente,
mesmo que não esteja fisicamente.
7.5. CENA 5
Esta é a ultima cena a ser discursada nessa primeira parte da analise, pois nesse
momento Ashitaka termina sua viagem se encontrando pela primeira vez com San.
Não dividiremos essa parte, pois além de ser curta ela não demonstra partes divisíveis.
A cena se inicia aos 22’04’’. Ashitaka avista San indo socorrer Moro do outro
lado do rio. Nesse momento não há trilha musical, o que se ouve apenas é o som do
rio e os rosnados da Moro. No momento em que San se da conta de Ashitaka seus
brincos fazem um som, após isso todo o som do rio é suprimido e começa-se a ouvir as
cordas tocando o inicio da música, ainda até o presente momento se ouve também os
sons resultantes das movimentações de Ashitaka, San e Moro. Porém quando Ashitaka
sobe na pedra e começa a sua auto apresentação12 todos os sons de movimentação de
corpo e sons naturais tem uma diminuição considerável no seu volume sonoro. Toca-
se novamente o tema A Viagem para o Oeste, mas dessa vez ele vem com uma
instrumentação reduzida, e mais delicada, tendo a harpa e a flauta fazendo a melodia
principal. Entendemos que essa mudança se da porque Ashitaka finalmente terminou
sua viagem. A voz do Ashitaka em sua auto apresentação contem um eco que não é
natural para o ambiente em que ele esta. A trilha sonora nesse momento se restringe
a música e a voz do Ashitaka. No vídeo um vento toma conta da cena e seu volume
sonoro é bem baixo. Ao término da auto apresentação Ashitaka se mantem em
silêncio enquanto troca olhar com San. Quando San manda Ashitaka ir embora, sua voz
não contém eco como a de Ashitaka e os sons das movimentações dos corpos tem um
volume bastante reduzido se comparado com a música.
Miyazaki cria nessa cena uma situação de caráter etéreo. A diminuição sonora
dos sons naturais, a utilização da música e a voz de Ashitaka com um eco que não
existia até o momento. E a parte sonora dialoga perfeitamente com a parte visual, o
vento que passa por Ashitaka e que move os cabelos de San, e os enquadramentos
bem lentos, criam uma sensação de contemplação e profundidade.
8. Conclusão
自己紹介 jikoshoukai, é comum na cultura japonesa sempre se fazer uma auto apresentação para as
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A feitura desse trabalho só foi possível graças a bolsa PIBIC/CNPq, sem ela
dificilmente ele teria sido completado.
Agradeço ao meu orientador Dr. Ney Carrasco, por toda a sua ajuda e suporte.
Agradeço também a Ma. Carolina Leão, hoje doutoranda do Dr. Ney Carrasco, por sua
ajuda e visão sobre animações.
Gostaria de agradecer as minhas professoras de japonês Ma. Maria Emiko Suzuki,
Ma. Ayako Akamine e Bartira Takiuti Ginde que apesar de não ter tido ações diretas
nessa pesquisa, foi a partir delas que eu pude ter uma visão menos ocidentalizada e
mais sensível à cultura japonesa.
Agradeço também aos meus amigos do benkyoukai (grupo de estudos, em tradução
literal), tanto os brasileiros quanto ou japoneses, por me indicar leituras acerca dos
temas sobre cultura japonesa, emprestar DVDs do Studio Ghibli, ou conversar comigo
sobre minha pesquisa.
E a minha família, por todo o suporte e força.
11. Bibliografia