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= ANDREAS HUYSSEN Culturas do passado-presente modernismos, artes visuais, politicas da memoria CONTRAPONTO © Andreas Huyssen, 2014 © William Kentridge com referéncia a suas imagens © Nalini Malani com referéncia a suas imagens Direitos adguitidos para o Brasil por Contraponto Editora Ltda, ‘Vedada, nos termos da lei, a reproducHo total ou parcial deste livro, por quaisquer meios, sem a aprovacdo da Editora. Contraponto Editora Leda. 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CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, R) H1989¢ Huyssen, Andreas, 1942 alturas do passado-presente: modernismos, artes visas, politicas da smeméria/ Andreas Huyssen; [coordenacio Tadeu Capistrano] ; radveio ‘Vera Ribeiro ~ 1. ed. ~ Rio de Janeiro = Conteaponto : Museu de Arte do Rio, 2014 216 p. 525em — (ArteFissil; 9) ISBN 978-85-7866.098-7 1, Modernismo (Arte). 2. Arte moderna. 3. Artes ~ Aspectos politicos. 4, Antee sociedade. 5. Politica eculeura Tito, I. Séxie 1411508 DD: 306.47 COU: 316.7457 Resisténcia a meméria: usos e abusos do esquecimento publico Na cultura contemporanea, obcecada como é pela meméria ¢ 0 trauma, 0 es- quecimento é sistematicamente malvisto. E descrito como uma falha da me- méria: clinicamente, como disfungao; socialmente, como distorcao; academi- camente, como uma forma de pecado original; em termos de vivencia, como um subproduto lamentavel do envelhecimento. Essa visio negativa do esque- cimento, é claro, no é surpreendente nem particularmente nova. Podemos ter uma fenomenologia da meméria, mas com certeza nao temos uma fenomenologia do esquecimento. O descaso para com ele pode ser docu- mentado, na filosofia, de Platdo a Kant, de Descartes a Heidegger, Derrida e Umberto Eco, que certa vez negou, com base na semidtica, que pudesse haver algo como uma arte do esquecimento andloga a arte da meméria.’ Simples- mente, esquecer nao é tema para metafisicos, antimetafisicos ou especialistas em semidtica, a0 passo que a meméria o é, claramente. Os poetas, por sua vez, de Homero a Goethe, alertaram-nos para 0s perigos do esquecimento de si no presente, e movimentos culturais inteiros, como o Rena Romantismo, fizeram da meméria um projeto central. Até 0 cinema fez da presenca da meméria o critério para distinguir um ser humano de um cyborg (Blade Runner), ou representou 0 esquecimento como um experimento letal da CIA que deu errado (A identidade Bourne). Mas, quando se trata de teo- riz-lo, 0 esquecimento aparece, na melhor das hipéteses, como um comple- mento inevitavel da meméria, uma deficiéncia, uma falta a ser suprida, endo como o fendmeno de miiltiplas camadas que serve como a propria condigéo de possibilidade da meméria. As questdes da mem@ria e da temporalidade foram centrais, é claro, para a obra de Adorno ¢ Benjamin. Muito citada e frequentemente distorcida, a afir- magio de Adorno de que escrever poesia depois de Auschwitz seria uma barba- ridade desempenhou um papel central nos debates sobre os limites da represen- tagdo e sobre a estética e a ética de como lembrar 0 Holocausto. Menos bem conhecida, porém de igual influéncia, foi sua tese de que toda reificacdo é um esquecimento, uma tese que vé o esquecimento da mao de obra na producéo como a base do fetichismo da mercadoria e de seus efeitos insidiosos nas estru- turas de subjetividade da cultura moderna. Essa tese, proveniente de Marx e da imento ou 0 Resistincia &meméria:usos e abusos do esquecimentopdblico 155, economia politica, encontrou apelo popular na ideia de que o fetichismo do consumo se equipara ao esquecimento, e moldou a visdo, geralmente negativa e critica, dos problemas da nostalgia na cultura de consumo contemporanea. esse processo, contudo, a propria fundamentagio da tese num éthos de pro- ducdo foi esquecida. Ainda assim, a ascensdo de uma cultura memorial que & piiblica e politicamente eficaz em todo 0 globo, durante a década de 1990, no combina muito com a afirmagdo de Adorno ~ a menos que a empurremos para um abismo apocalfptico e digamos que agora o capitalismo explora ¢ comer- cializa até mesmo aquilo que é necessério para resistir ao esquecimento, a sa- ber, a propria memoria. E claro que hé certa veracidade na ideia de exploragio da meméria, mas cla no esgota os efeitos miltiplos da cultura memorial do fim do século XX. A visio de Adorno sobre a identidade entre mercadoria ¢ esquecimento no nos permitiria analisar as complexidades dos debates pibli- cos sobre a meméria, que incluem a dimensdo que inviabiliza e a dimensio que faculta a politica da meméria e os mercados da meméria. Benjamin foi ainda mais influente nos debates contempordneos sobre a me- méria. Sua conclamagio a que se escove a hist6ria a contrapelo, sua distineao entre Erinnerung [lembranca] e Geddchtnis [mem6ria], sua compreensio do poder que a meméria tem de perturbar e destruir, sua critica a todos os modos Iineares progressistas da historiografia, seu olho clinico para o elo constitutivo entre cultura e violéncia e sua manifestacdo a favor dos desvalidos de todos os tempos tornaram-se componentes essenciais e citagdes em muitos trabalhos transnacionais sobre a politica da meméria. Mas ambos, Adorno e Benjamin, travando uma luta de vida ou morte contra a politica fascista do esquecimento, nao puderam ou nao quiseram, por razdes histéricas compreensiveis, enfocar aspectos potencialmente geradores de esquecimento. De diferentes maneiras, a exigncia da meméria predominou na preocupacao fundamental deles com a temporalidade. Isso pode explicar, pelo menos em parte, a influéncia ¢ a presen- a continuas desses autores no pensamento contemporaneo. Portanto, o traba- Iho deles precisa ser visto como parte de uma longa e complexa histéria de descaso com o esquecimento no pensamento ¢ na literatura europeus. Ao mes- mo tempo, a exploracdo que Adorno ¢ Benjamin fazem da propria temporali- dade, como fendmeno hist6rico mutavel que reage a presses politicas e cultu- rais, deve ser lembrada ao tentarmos aprender a cultura memorial de nossa época, com seu senso lentamente mutavel de tempo e espago. Essa longa historia de desatengdo para com o esquecimento foi magistral- mente descrita num livro recente de Harald Weinrich, Lethe: Kunst und Kritik des Vergessens (1997)2 Weinrich postula uma “a7s oblivionis”, numa analo- gia com A arte da memoria, de Frances Yates.’ Mas, como indica 0 subtitulo, 156 Andreas Huyssen no se pode ter uma “ars oblivionis” sem uma critica simulténea do esqueci- mento. Essa diferenca de status entre a meméria e o esquecimento € ainda enfatizada na observacéo de Paul Ricceur de que falamos de um dever de lembrar, mas nunca de um dever de esquecer.‘ Provavelmente, as pessoas se escandalizariam com a sugestdo de que, tal como existe uma ética do trabalho da meméria, também poderia haver uma ética, e ndo apenas uma patologia, do esquecimento. De qualquer modo, a meméria parece exigir esforco ¢ traba- Iho, enquanto o esquecimento, por outro lado, apenas acontece. Essa estrutura bindria continua profundamente arraigada, Assim, mesmo quando historiadores como Charles Maier lamentam o excesso de meméria na cultura contemporanea, no chegam a ponto de advogar o esquecimento.* Nossos memoriadores profissionais tampouco dao importancia suficiente ao Paradoxo de que, dos pontos de vista fenomenolégico e psicanalitico, 0 esque- cimento efetivamente cria a meméria. E muito menos celebram o esquecimen- to criativo, como fez Nietzsche, certa vez, ao reconhecer que memiria sem esquecimento é um sofrimento patolégico. Nietzsche falou da hipertrofia da historia, tal como hoje poderfamos falar de uma hipertrofia da meméria.° No entanto, 0 oprébrio continua reservado para o esquecimento, nunca para a meméria, Pode haver um excesso de memoria, mas trata-se de um excesso de uma coisa boa. Enquanto isso, 0 esquecimento continua suspenso sob uma nuvem de suspeita moral, como uma falha evitavel, uma regressao indesejével € uma negligéncia critica. A meméria, por outro lado, é considerada crucial Para a coesao social ¢ cultural da sociedade. Todos os tipos de identidade de- pendem dela. Uma sociedade sem meméria é um anatema. Assim, a exigéncia moral de lembrar foi articulada em contextos religiosos, culturais ¢ politicos, mas ninguém, a nfo ser Nietzsche, jamais fez.a defesa ge. ral de uma ética do esquecimento. Também nao a farei aqui, embora esteja claro que precisamos ir além do bindrio do “senso comum” que joga a memé- ria contra 0 esquecimento, como opostos irreconcilidveis.” Também devemos it além da simples reafirmacao do paradoxo de que o esquecimento é constitutivo da meméria, pois reconhecer esse paradoxo reconcilia-se muito facilmente com continuar a privilegiar a meméria em relacao ao esquecimento. Um bom exem- plo € Sein und Zeit (Ser e tempo], de Heidegger. Num aparte pouco notado, 0 fil6sofo reconhece que a memsria s6 € possivel com base no esquecimento, ¢ nao 0 inverso, enquanto afirma, ao mesmo tempo, que a forga do esquecimen- to [die Macht des Vergessens] é destrutiva ¢ inauténtica, ao passo que somente a Erinnerung tem autenticidade.* Em outras palavras, algo de inauténtico ¢ destrutivo encontra-se na propria base daquilo que Heidegger mais valoriza: a Erinnerung, Valvez haja alguma sabedoria real na observacéo marginal feita Resisténcia & meméria:usos e abusos do esquecimento piblico 157 por ele. Sua tese geral, entretanto, que reaparece em Adorno em sua encarna- do marxista (0 esquecimento da produgio como base do fetichismo da merca- doria), impede-nos de explorar casos especificos em que 0 esquecimento pode- ria ter a legitimidade que lhe é sistematicamente negada no pensamento politico, na filosofia e na literatura. Basta lembrar a patologia da meméria total, confor- me brilhantemente descrita por Borges em seu conto “Funés, el memorioso”, para reconhecer que o esquecimento, em sua mistura com a meméria, é crucial para o conflito ¢ a resolugdo nas narrativas que compdem nossa vida piblica e nossa vida intima. Esquecer nio apenas torna a vida vivivel, como constitui a base dos milagres e epifanias da propria meméria. Weinrich ¢ Ricoeur, em sua tentativa de teorizar o esquecimento, contam uma hist6ria batida, mas esquecer, no nosso mundo pés-século XX, de fato carrega um fardo muito especifico. Os dois autores reagem as pressbes de nossa época, ao darem a memGria da Shoah um papel-chave em seus traba- Ihos. © pentiltimo capitulo de Weinrich aborda textos de Eli Wiesel, Primo Levi e Jorge Semprun. Ricoeur, incomodado com o excesso simultaneo de me- méria ¢ esquecimento na cultura mididtica contemporanea, traz para o pri- meiro plano essa preocupagio publica como um grande impulso para escrever La mémoire, Ubistoire, Voubli. No fim, porém, a fenomenologia do esqueci- mento oferecida por Ricceur ainda é apenas um pequeno capitulo de conclu- so num livro dedicado & hist6ria ¢ A meméria, embora se destaque como uma busca importante, para diferengar os modos como se dao as formas de esque- cimento nas esferas politica e publica. IL ‘Assim, eu gostaria de aceitar o desafio proposto pelo brevissimo capitulo so- bre o esquecimento no livro de Ricoeur. Meu propésito também ¢ ir além da oposigio simplista entre rememoracio ¢ olvido, diferenciando as formas de esquecimento em sua maneira de se dar nas esferas politica e publica. O esque- cimento precisa ser situado num campo de termos ¢ fendmenos como siléncio, desarticulacao, evasio, apagamento, desgaste, repressio — todos os quais rev: lam um espectro de estratégias tio complexo quanto o da prépria meméria. Ricoeur sugere algumas distincdes basicas: 0 esquecimento como mémoire em- péchée [meméria impedida], que esta primordialmente relacionado com 0 in- consciente freudiano e com a compulsdo a repeti¢ao; segundo, o esquecimento como mémoire manipulée [meméria manipulada], que tem uma relacio in- trinseca com a narratividade, no sentido de que qualquer narrativa € seletiva e implica, passiva ou ativamente, certo esquecimento de que uma hist6ria pode- Andreas Huyssen ria ser contada de outra maneiras terceiro, 0 oubli commandé [esquecimento obrigar6rio], ou o esquecimento institucional que prevalece nos casos de anis- tia. Considero construtiva a tentativa de Ricoeur de definir formas de esqueci- mento, mas gostaria de complicar suas segunda e terceita modalidades, inse- rindo-as em contextos hist6ricos especificos. Muito de meu préprio trabalho passado sobre a meméria diz respeito 3 politica da meméria piblica, tema que foi central para os alemies da minha geracio desde a década de 1960. Como critico literario e da cultura, sempre me interessei pela politica da meméria em relagdo a0 que Jan Assmann cha- mou de memoria cultural: a meméria encarnada em artefatos como a ficcao, © teatro, o cinema, porém também em monumentos, na escultura, na pintura €na arquitetura.’ Ao mesmo tempo, nunca analisei isoladamente esses objetos culturais. Sempre enfatizei seu papel constitutive para a transformac3o da propria meméria publica. Através de leituras sintomaticas da memoria cultu- ral nesse sentido, meu objetivo foi levantar as maneiras pelas quais o mundo p6s-Shoah lidou com essa catastrofe, separadamente dos discursos dos politi- cos, dos debates parlamentares, das medidas de restituicao ou reparacdo dos governos ¢ dos julgamentos e processos legais. Dada a riqueza das representagdes do Holocausto ao longo das décadas, fui ficando cada vez, mais cético em relacdo as exigéncias que postulam por principio uma estética e uma ética da nao representabilidade, amide recor- rendo a uma leitura equivocada da declaracdo de Adorno, pés-1945, sobre a poesia depois de Auschwitz. Quando 0 reconhecimento dos limites da repre sentacdo torna-se uma ideologia, ficamos imprensados numa derradeira defe- sa da pureza modernista contra o ataque de novas e velhas formas de repre~ sentacao, ¢ a ética corre o risco de se transformar numa moralizacio contra qualquer forma de representacdo que no corresponda ao padrio suposto. O resultado é um formalismo do Holocausto que, com demasiada frequéncia, recorre a velha distingZo entre arte e meios de comunicagao de massa, cultura superior e inferior. Para o historiador da cultura, portanto, é preferivel anali- sar de que maneira as representacoes, em diferentes modalidades estéticas e narrativas e em diferentes formas de midia, moldaram os processos da mem6- ria piiblica ¢ do esquecimento nos diversos paises e culturas. £ claro que as representagGes de traumas histéricos propdem assombrosos desafios teéricos € politicos, mas isso nao nos deve impedir de reconhecer as situacdes mutaveis de mediacao c de transmissio, que podem requerer novas formas, novos géne- ros ¢ novas midias para que a meméria piblica se renove. Sem questionar a necessidade continua da meméria publica da Shoah, que- ro discutir uma politica do esquecimento piblico diferente da que todos conhe- Resisténcia § meméria: usoseeabusos do esquecimento piblico 159 cemos como simples recalcamento ou negacdo. Farei uma defesa histérica do esquecimento piblico — nao num sentido abstrato ou geral, sem diivida, mas em relacdo a situagées concretas em que o esquecimento piblico revelou-se constitutivo de um discurso politicamente desejavel da meméria, Nao se trata de um gesto nietzschiano para privilegiar o esquecimento criativo. Na segunda de suas Meditacdes extempordneas, Nietzsche deu preferéncia a uma espécie de postura supra-histérica, na tentativa grandiloquente de defender uma cultura alema radicalmente nova, no espirito da Grécia classica. Em contraste, minha defesa de uma politica do esquecimento ¢ historicamente especifica, totalmente contingente, ¢ explicita sua propria politica. Tentar legislar sobre o esqueci- ‘mento, como meus exemplos mostrarao, é tao imatil quanto tentar legislar so- bre as maneiras corretas de lembrar. Meu propésito é, antes, explorar as com- plexidades ¢ 0s efeitos do esquecimento piiblico que se perdem nas descrigdes moralizantes ¢ epistemoldgicas do elo entre meméria e esquecimento. Tomarei dois debates recentes em que a meméria ¢ o esquecimento execu- tam um pas de deux compulsivo: a Argentina ¢ a lembranca do terrorismo de Estado, a Alemanha e a lembranga da Luftkrieg [guerra aérea]. O denomina- dor comum e 0 contexto das duas é 0 Holocausto, claro. O elo politico entre esses dois casos tio dispares, em termos geogrificos ¢ historicos, € que, em ambos, 0 esquecimento ¢ a meméria foram cruciais na transi¢ao da ditadura para a democracia. Ambos exibem uma forma de esquecimento necesséria para se fazerem reivindicacbes culturais, juridicas e simbdlicas em prol de uma politica nacional da meméria. Especialmente no caso alemao, sinto-me tenta- do a falar numa forma politicamente progressista de esquecimento piblico, embora reconhecendo que ha um preco a ser pago por qualquer dessas instru- mentalizagées da meméria e do esquecimento no ambito pablico. Até as for- ‘mas politicamente desejéveis de esquecimento resultam em distoredes ¢ eva- ses. O preco a ser pago inclui a abrangéncia, a exatidao e a complexidade. Na Argentina, foi uma dimensao politica do passado — a saber, as mortes causadas pela guerrilha urbana armada do inicio da década de 1970 — que teve de ser “esquecida” (silenciada, desarticulada) para permitir o surgimento de ‘um consenso nacional da meméria em torno da figura vitimada dos desapare~ cidos."" Na Alemanha, em contraste, foi a dimensio vivencial dos bombar- deios macicgos das cidades alemas, durante a Segunda Guerra Mundial, que teve de ser esquecida, para fazer do pleno reconhecimento do Holocausto uma parte central da historia e da autocompreensio nacionais. © que friso aqui € que a politica da mem6ria nao pode prescindir do esquecimento. Afinal, é esse o sentido do oubli manipulé de Ricceur, que resulta da inevitabilidade da me- diago da meméria pela narrativa. Todavia, ao contrario de Riccenr, que afir- 160 Andreas Huyssen ma que 0 oubli manipulé resulta da mauvaise foi [ma-f6] e do vouloir ne pas savoir [nao querer saber], sustento que o esquecimento consciente e volunté- rio pode ser produto de uma politica que, em dltima instancia, beneficia 0 vouloir savoir [querer saber] ¢ a construgao de uma esfera publica democrati- ca, Pretendo mostrar que, assim como 0 oubli manipulé nao tem que ser visto exclusivamente sob um prisma negativo (dependendo de quem manipula e de qual a sua finalidade), o oubli commande (anistia] pode surtir, precisamente, efeitos contrarios as intengdes que advoga. Il ‘A Argentina fornece meu primeiro exemplo das duas proposigdes. Desde o fim da ditadura militar, em 1983, 0 pais se engaja numa luta politica, juridica ¢ simbélica para nao esquecer o destino dos “desaparecidos” ~ as cerca de 30 mil vitimas do terrorismo de Estado perpetrado pela ditadura militar e seus esquadrées da morte nos anos 1976-1983. O esquecimento era claramente atraente para grande parte da sociedade argentina, depois da queda do regime, em 1983. Mas a intensa luta pelos direitos humanos travada para se reconhe- cer a criminalidade do regime militar mostrou-se bem-sucedida, no cOmputo geral. As condenagées legais continuaram insuficientes e foram interrompidas pela lei da anistia do presidente Menem, em 1990 — uma lei posteriormente contestada e derrubada pelo novo presidente da Argentina, Néstor Kirchner, 0 que, por sua vez, resultou em novos processos. A meméria da ditadura foi crucial para o sucesso da transi¢ao para a de- mocracia na Argentina. Podemos dizer que a Argentina de hoje, apesar de suas dificuldades econémicas, tem os mais intensos debates sobre a meméria entre 08 paises latino-americanos que foram atormentados pelas campanhas milita- res de repress, tortura e assassinato nas décadas de Guerra Fria posteriores aos anos 1960 - mais intensos que os do Brasil, Uruguai, Chile ou Guatemala. Esse “sucesso” certamente foi um dos fatores que mantiveram os militares nos quartéig durante a queda livee econdmica e social do pais desde 2001. Ao mesmo tempo, o proprio sucesso e a eficécia da politica da meméria decorre- ram da forma de esquecimento que Ricceur chamou de mémoire manipulée. E envolveram um oubli commandé que sé serviu para fortalecer 0 apoio moral aos ativistas dos direitos humanos. Aqui talvez seja necessario falar um pouco mais dos antecedentes. Desde 1977, os protestos populares ¢ as manifestagdes semanais das Maes e Avs da Praca de Maio, em Buenos Aires, mantiveram no centro das atengdes 0 terrorismo do Estado argentino contra seus préprios cidadios. A cobertura ResistEncia & meméria-usos e abusos do esquecimento péblico 161 internacional desses protestos, iniciada durante a Copa do Mundo de 1978, proporcionou uma espécie de garantia de seguranca, ao menos para algumas manifestantes, durante os préprios anos da ditadura. Nem as ameagas diretas nema difamacio das Mies como as loucas da Praca de Maio (Las locas) conse- guiram desviar esse grupo de mulheres corajosas do seu objetivo de determinar ‘© que havia acontecido com os desaparecidos e quem eram os responsaveis. Depois que fracassou a guerra da Argentina com a Gri-Bretanha por causa das ilhas Malvinas, ¢ logo apés o restabelecimento do governo civil em 1983. a Comissdo Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas publicou uma grande coletanea oficial de depoimentos, intitulada Nunca mas. Com um titulo que fazia referéncia explicita e enfatica ao discurso do Holocausto, 0 volume documentou em grande detalhe os horrores da guerra s6rdida travada pela campanha militar paranoide contra a “subversio” e em prol da purifica- do nacional. ‘Teve ampla distribuigao e impacto, ¢ forneceu a base simbdlica ¢ empirica para o julgamento posterior dos generais da junta militar, em 1985. Ligado que foi a audiéncias pablicas e com ampla cobertura da midia, o julga- mento tornou-se um fator central no restabelecimento do estado de direito na Argentina. Tomados em conjunto, o relatério Nunca mds e o julgamento des- legitimaram a justificacao retroativa do golpe contida na teoria de “los dos demonios” [os dois deménios}, que tivera certa aceita¢o durante os anos do governo Alfonsin, logo apés 1983. Os dois deménios seriam os grupos terro- ristas da direita radical ¢ o terrorismo da guerrilha urbana de esquerda, nume- ricamente insignificante, que nunca somou mais de seiscentos a oitocentos combatentes no pais inteiro. Ambos eram tidos como igualmente responsaveis por desencadear golpe militar. Essa teoria escusatéria dos dois deménios, que legitimava retroativamente o golpe, ignorou, como lhe convinha, a com- provada ligacdo entre os esquadrdes da morte e os militares, e respaldou os simpatizantes e beneficidrios do regime. Mas ento, aos poucos, foi substitui- da pelo consenso emergente de que haviam ocorrido graves violades dos di- reitos humanos, ideia que nem a esquerda marxista nem a direita radical ja- mais tinham levado a sério. Depois da derrota militar nas Malvinas, a vit6ria do discurso dos direitos humanos foi como que uma segunda derrota softida pelos militares. Em prazo mais longo, no entanto, 0 sucesso do discurso dos direitos humanos a partir de 1985 sacrificou a preciso histérica. Como assim? No nivel narrativo, 0 relatério Nunca mds estabeleceu a figu- ra do desaparecido como uma vitima inocente do terrorismo de Estado. Essa estratégia “esqueceu” a dimensio politica da insurgéncia esquerdista que 2 ditadura militar vinha tentando extirpar. Esse esquecimento foi necessario, na época, por duas raz6es: primeiro, foi necessério para invalidar os argumentos 162 Andeeas Huyssen apresentados pela defesa dos generais, que se baseavam na ideia de que o gol- pe € a repressao tinham sido causados pelo terrorismo armado da esquerda radical - 0s Montoneros e o Exército Revolucionario do Povo (ERP). Segundo e mais importante, foi necessario para permitir que toda a sociedade argenti- na, inclusive os nao participantes e os beneficidrios da propria ditadura, se congregassem em torno de um novo consenso nacional: a separacao clara en- tre criminosos e vitimas, culpados e inocentes. Esse novo consenso fundamen- tou-se no reconhecimento de que generais como Videla e Massera eram nao apenas ditadores no velho estilo latino-americano, mas tinham-se tornado parte da infame historia de “massacres administrados” (Hannah Arendt) do século XX. Essa ligacdo da guerra suja com outros campos de exterminio bu- rocraticamente organizados do século XX explica a forte presenca do discurso do Holocausto no debate argentino, sobre a qual escrevi em outro contexto. Eu diria que, sem esse reconhecimento, 0 julgamento das juntas militares, que levou a sentencas de prisio para os generais, nao teria sido possivel. E claro que o relatério da Comissio havia condenado explicitamente todas as formas de violéncia armada, tanto do Estado quanto da guerrilha de es- querda. Mas, ao transformar todos os 30 mil desaparecidos em vitimas passi- vas, ele apagou a historia politica do conflito, junto com as filiagdes politicas dos individuos. A figura do desaparecido tornou-se uma idée recue, um cliché da meméria social que, no fim, péde transformar-se na forma de esquecimento da propria meméria. Nos primeiros anos posteriores a ditadura, é interessante notar, os argentinos nao queriam ouvir dos sobreviventes dos campos 0 que os tinha levado, efetiva- mente, a enfrentar problemas politicos. Os protestos das Maes da Praca de Maio durante a ditadura haviam afirmado os direitos da familia nuclear e dos Parentes contra o discurso do Estado, com isso criando uma espécie de “espago de Antigona”, como sugestivamente 0 chamou Jean Franco." Para afirmarem politicamente os seus direitos, elas precisavam negar que alguns de seus filhos tinham sido guerrilheiros armados. Mas qualquer distingio entre 2 violéncia esquerdista e a politica nao violenta de esquerda fora vitima da equiparac3o oficial de qualquer politica esquerdista com a subversio € o terrorismo.** Como resultado, a figura purificada da inocente vitima no politica tornou-se ainda mais poderosa na Argentina. A politica ¢ a historia foram reduzidas 3 linguagem da familia ¢ das emogées, como se vé com clareza no poderoso filme de Luis Puenzo intitulado A historia oficial, um sucesso internacional. Mas 0 impeto de chegar a um novo consenso nacional na transi¢&o para a democracia teve seu lado negativo. A pressio por uma “reconciliac3o” ¢ pela contemporizacio com os representantes do regime militar ainda soltos nao Resistincia & meméria: usose abusos do esquecimento poblico 163 demorou a surgit. O presidente Alfonsin ja havia argumentado que os milita~ res de alta patente deveriam ser levados a julgamento junto com os lideres sobreviventes dos Montoneros. Foi a versio juridica da teoria de “los dos demonios”. Pouco depois de os generais irem para a prisdo, leis retroativas anistias concedidas nos governos dos presidentes Alfonsin e Menem, no fim da década de 1980 ¢ inicio da de 1990, tentaram absolver tanto os militares quanto a sociedade argentina de sua responsabilidade pelo terrorismo de Es- tado, impedindo novos julgamentos e isentando de culpa todos os ocupantes de cargos subalternos (por exemplo, os chamados “gerentes” e “subgerentes” dos campos), declarados pessoas que simplesmente haviam cumprido ordens. Foi um caso flagrante de oubli commandé, passados poucos anos desde o fim da ditadura. Mas nem a “lei do ponto final” de 1986, que ficou conhecida como 0 punto final para a abertura de novos processos, nem a ley de obedien- cia debida de 1987, ou mesmo a anistia geral de Menem, concedida em 1990 aos membros das diversas juntas militares julgados em 1985, conseguiram impedir as Maes ou as organizagdes de direitos humanos de buscar justiga nos tribunais. Ao contrdério, na medida em que desceu o siléncio oficial para enco- brir os crimes do passado, o clamor por justica e a demanda de que os desapa- recidos fossem lembrados intensificaram-se no ambito popular. As Maes da Praca de Maio continuaram a marchar e mudaram de tética, passando a mo- ver processos judiciais por crimes que nao eram cobertos pelas leis da anistia edo ponto final, em particular o sequestro de criancas nascidas nos campos de detencao e entregues a familias de militares, depois de suas maes serem mor- tas. Em meados da década de 1990, diversos altos representantes do sistema de represso capitularam e vieram a piblico com suas confissdes. Além disso, durante toda essa década, escritores ¢ artistas retomaram o tema da meméria ¢ das violagdes dos direitos humanos. O foco juridico na ditadura foi comple- mentado por um intenso foco cultural, que levou a projetos muito discutidos de memoriais em Buenos Aires, La Plata, Tucumén ¢ outras regides do pais. Volta e meia surgem novas revelagdes, sobretudo sobre os locais do terror. ‘Muito recentemente, tratou-se da escavacéo do pordio do Club Atlético, em Buenos Aires, usado pela policia como centro de detengao e tortura, no meio de um baitro proletério. © prédio foi destrufdo na década de 1980 para dar lugar a um elevado, mas agora seus restos se transformaram num memorial das bases populares ¢ estio sendo considerados para acolher um museu poten- cial, semelhante ao da Topografia do Terror, em Berlim, formado pelos restos do antigo quartel-general da Gestapo. Fortalecida a lembranga dos crimes da ditadura, elevaram-se novas vozes para defender a recuperacao da esquecida dimensao politica do destino dos 164 Andeeas Huyssen desaparecidos. Algumas querem o reconhecimento da luta idealista de muitas jovens vitimas por um mundo mais justo, com isso enfatizando mais a aco do que a vitimago passiva, mas sem justificar o terrorismo da guerrilha urbana armada. Outras, porém, vio mais longe. Querem recuperar uma politica da meméria em relacio a identidade politica dos militantes, ¢ o fazem sob a figura da impunidade.'* A pretensa impunidade da ditadura, obtida, segundo essa visio, pela anistia de 1990, encontra um paralelo na impunidade da ordem econémica neoliberal que, nos tiltimos anos, ndo apenas destruiu a classe mé- dia argentina, como também gerou desemprego ¢ pobreza numa escala que hoje ameaga a propria estrutura do pais. Nessa narrativa, a ditadura é vista como nada além do primeiro passo necessério para levar o neoliberalismo a0 poder e submeter a Argentina (ea América Latina) & nova dominacio imperial da globalizagao. Os militantes da década de 1960 e inicio da de 1970 so agora Iembrados por alguns como os heréis que lutaram contra a raiz de todas as formas de opressiio — a continuidade da dominag&o econdmica do Norte e da espoliacao praticada por ele. Embora essa meméria recuperada da militancia de esquerda deixe de lado, de forma reducionista, a relagio entre os militares © 0 Estado civil subsequente, ela tem 0 mérito de romper com a ficgo da com- pleta inocéncia das vitimas e com a transformagio do problema dos desapare- cidos num problema de familia. A Argentina chegou claramente a um novo estigio de discussao, no qual um esquecimento piiblico pasado vem sendo substituido por uma nova configuragio da meméria e do esquecimento. Essa nova descrico dever4 permitir uma avaliaco historicamente mais correta do periodo que levou 4 ditadura militar. Os ganhos obtidos na politica de direitos humanos, encarnados na figura dos desaparecidos e na condenagio moral do regime militar, so fortes o bastante para resistir & tentagao de uma narrativa esquerdista falsamente heroica da meméria, a qual, de qualquer modo, mais ‘me pareceria um sintoma do desespero atual que uma descricdo historicamente sustentavel. Afinal, o verdadeiro campo de luta da sociedade argentina de hoje no é tanto o da politica da meméria, mas o da tentativa de encontrar uma solucio politica para o colapso da economia do pais e para a faléncia de sua classe politica, cujas raizes encontram-se ndo apenas na ditadura, mas na cor- Tupgao ¢ na politica fantasiosa que veio com a propria transic¢ao para a demo- cracia. No nivel da vivéncia, entretanto, é possivel compreender por que se vem tracando analogias entre os anos da ditadura e 0 colapso social posterior 2 2001. Na década de 1970, milhares de argentinos foram empurrados para 0 exilio. Desde entio, muitos retornaram, apenas para enfrentar outro éxodo de proporcdes similares, agora gerado pela economia. A Argentina acha-se em meio a outra etapa do lembrar e do esquecer cujo futuro é tudo, menos claro. Resisténcia 3 memérla:usose abusos do esquecimento piblico 165 IV Se 0 relatério Nunca mds ¢ o julgamento dos generais em 1985 estabeleceram uma vitéria dos direitos humanos na Argentina, com base em certo esqueci- mento ptiblico, seria posstvel expor um caso andlogo na Alemanha do apés- -guerra, onde 0 reconhecimento da criminalidade basica do regime nazista dependeu da forca da meméria publica do Holocausto e da aceitacdo da culpa pela guerra. Claro, a hist6ria repetidamente contada é que os alemaes recalca- ram 0 Holocausto durante décadas, até que um seriado norte-americano de televisio de 1979, intitulado Holocausto, abriu as comportas dos projetos de meméria ¢ levou a uma elaboracao relativamente bem-sucedida do passado, com toda sorte de projetos de historia oral, monumentos publicos ¢ memoria lizagSes oficiais. Essa histéria simples, que joga 0 recalcamento contra a me- méria, € questionavel, uma vex que os debates sobre criminosos e vitimas, culpa ¢ responsabilidade ocuparam os historiadores e a populacdo da Alema- nha durante décadas ~ desde as conferéncias de Karl Jaspers sobre a questio da culpa, em 1946, ¢ dos julgamentos de Nuremberg, passando pelos julga- mentos de Fichmann e de Auschwitz na década de 1960, até o controvertido livro de Daniel Goldhagen, Os carrascos voluntarios de Hitler, eo debate dos historiadores sobre as causas estruturais versus a responsabilidade pessoal por Auschwitz.'” Os estudiosos mostraram que a meméria dos crimes nazistas contra a humanidade j4 era publicamente articulada na década de 1950, tanto no nivel do governo quanto nas igrejas e na cultura em geral. Foi longo e difi- , lo entanto, o caminho desde esse reconhecimento basico do Holocausto ime contra a humanidade até 0 ponto em que ele ¢ o Terceiro Reich deixaram de ser vistos como uma aberraco criminosa da historia nacional alema, passando a ser considerados partes integrantes dessa historia e, por conseguinte, da identidade alema para as futuras geracées. Isso nao é o mesmo que dizer que Auschwitz foi a conclusio légica da histéria alemd, ou, na ver- sio transnacional dessa tese, que foi a conclusao légica da modernidade escla- recida em si. Os recentes livros de Gesine Schwan e de Daniel Levi e Nathan Sanaider documentaram essa luta alema pela meméria e por um senso civico de responsabilidade ao longo de décadas.™ Contudo, até essa nova exposicdo mantém a histéria do recaleamento nocivo versus a politica benéfica da me- mOria, ainda que a ascensio da meméria do Holocausto na Alemanha tenha sido retroativamente deslocada para a década de 1950. O que quero frisar é que a propria estrutura bindria do discurso é reducionista, pois ndo reconhece uma dimensio do esquecimento popular que foi central para a vitéria dos memoriadores sobre aqueles que desejavam esquecer. Tal como no caso argen- como c1 166 Andreas Huyssen sino, algo tinha de ser esquecido no debate politico puiblico para que a politica 2 memoria do Holocausto “tivesse sucesso”, em primeiro lugar. Este € meu segundo exemplo de uma ética uma politica do esquecimento pablico: nfo, é claro, do desejo alemio de “esquecer” 0 Holocausto ~ desejo gee, em sua mescla de reconhecimento evasivo com varias outras coisas, le- sando inclusive A negacdo, continua a ser um traco permanente da direita politica -, mas da experiéncia alemi dos bombardeios estratégicos de suas principais cidades, primeiro pela Real Forga Aérea britanica, depois também pelos norte-americanos, na Segunda Guerra Mundial. E evidente que qualquer -comparaco entre 0 caso alemao eo argentino tera de reconhecer uma diferen- = fandamental: a visibilidade piblica e a documentagao. A propria natureza do “desaparecimento” deixou pouco ou nenhum vestigio no espaco urbano azgentino, ao passo que todos conhecemos as imagens das cidades alemas ‘bombardeadas. Portanto, os obstdculos & prépria possibilidade do esqueci- mento ptiblico pareceriam mais fortes no caso alemio. E, realmente, ha um sentido em que a experiéncia e os efeitos posteriores dos bombardeios nunca foram esquecidos ~ nem pela geracdo que viveu as tempestades de fogo, nem pela primeira geracdo do apés-guerra, que cresceu brincando de mocinho e bandido nas ruinas. Todavia, no debate sobre a memoria publica na Alema- sha, a guerra aérea contra as cidades alemas nunca desempenhou um grande papel. Foi “publicamente esquecida” durante varias décadas, e por boas ra~ 25es, como pretendo argumentar. Depois, o tema surgiu com forca, se bem que apenas brevemente, no debate sobre um ensaio de W. G. Sebald com dimensées de livro, Luftkrieg und Lite- ratur, de 1999.” E saltou para 0 centro das atencées no outono de 2002, com a publicago de um campe%o de vendas do historiador Jérg Friedrich, Der Brand: Deutschland im Bombenkrieg 1940-19452 Em ambos os casos, um esquecimento anterior foi questionado, embora de maneiras significativamen- te diferentes ¢ em momentos significativamente distintos. Considerados em conjunto, porém, é bem possivel que esses dois livros e seus efeitos populares tenham alterado de forma irreversivel a cultura memorial alema. Sebald ficara conhecido, no comego da década de 1990, como escritor de narrativas de meméria de uma forma nova. Die Ausgewanderten, uma cole- do de quatro histérias sobre emigrantes judeus alemies, logo se tornou um sucesso internacional, e seu romance Austerlitz, de 2001, recebeu um dos mais prestigiosos prémios literarios dos Estados Unidos."! O ensaio de Sebald sobre a guerra aérea, publicado em inglés em 2003 como The Natural History of Destruction, é interessante para nossa discussio do esquecimento, pois ques- tiona implicitamente a relacio entre a meméria popular do Holocausto ¢ 0 ResistBnciad meméria: usos eabusos doesquecimento pblico 167 esquecimento popular dos bombardeios. E claro que o Holocausto fica bem no centro de muitos estudos contempordneos sobre o trauma, além de ser 0 evento histérico que moldou a imaginacao literéria e ética de Sebald. Mas, se houve um trauma para os alemaes durante a Segunda Guerra Mundial, néo foi o Holocausto, e sim a experiéncia dos bombardeios: quase 600 mil civis mortos, um milhao de toneladas de bombas s6 da Real Forca Aérea britanica, lancadas sobre 131 cidades alemis, 3,5 milhées de residéncias destrudas, 7,5 milhdes de pessoas sem teto ao final da guerra, ¢ tudo isso antes da enxurrada de mais 11 milhdes de refugiados vindos do leste#? Sebald parte do paradoxo de que essa experiéncia traumética nao parece haver deixado nenhum Schmerzensspur [vestigio de dor] na consciéncia cole- tiva dos alemaes, e de que nunca desempenhou um papel importante nos de- bates sobre a constituicdo interna da Repiiblica Federal.” Ele atribui esse fato a um recalcamento psiquico coletivo extremamente eficiente e bem-sucedido. Afirma que os alemaes do apés-guerra (ele parece ter em mente apenas a REA) foram unidos pelo segredo das centenas de milhares de cadaveres no porao do novo Estado, uma espécie de segredo de familia, por assim dizer, que alimen- tou o fluxo de energia psiquica que possibilitou o milagre econdmico da déca- da de 1950, Esquecer, em outras palavras, aparece como mais um recalcamen- to alemao, como a hipétese de repressao ntimero dois: passado o recalcamento do Holocausto, no qual os alemaes foram os criminosos, veio 0 recalcamento dos bombardeios, no qual os civis alemaes foram as vitimas. Pessoalmente, Sebald interessa-se menos pela psique coletiva de seus com- patriotas ou pela politica de sua propria intervenco do que pela dimensao li- terdria desse segundo recaleamento alemao. Acusa os escritores alemies do apés-guerra de nao haverem representado a destruigdo das cidades alemas e lamenta a auséncia do “grande epos da guerra ¢ do apés-guerra”.* Ao menos a literatura, como ele parece sugerir, deveria nao ter-se deixado enganar por esse esquecimento de uma experiéncia que deve ter deixado tragos permanentes na consciéneia de milhdes de pessoas. Mas a queixa de Sebald nao se dirige apenas ao esquecimento dos fatos empiricos. A literatura do apés-guerra é de- clarada culpada de haver participado do tacito consenso nacional de nao abor- dar 0 que Sebald chama de “verdadeiro estado de aniquilacio material e mo- ral” do pais inteiro25 Com efeito, a Tritmmerliteratur [literatura das ruinas] do fim da década de 1940 e da de 1950, quase sempre sentimental ¢ autocompla- cente, escrita sobretudo por veteranos que regressavam do front ou de campos de prisioneiros de guerra, enfocava a vida nas ruinas depois do conilito, endo a experiéncia dos bombardeios em si, ou 0 “univers concentrationnaire” [uni- verso concentracionario].* Mesmo depois disso, era mais comum que os textos 163. Andreas Huyssen literdrios que falavam dos bombardeios viessem do exterior (Céline, Vonnegut, Pynchon) que do préprio pais. Diversos escritores alemaes lidaram de modo muito eficiente com os bombardeios em si (Bll, Nossack, Ledig, Fichte, Klu- Be), e Sebald reconhece alguns trabalhos deles. Mas essa literatura nunca alcan- gou o tipo de reconhecimento popular que a literatura do Holocausto viria a conhecer, ¢ do qual, apés grande resisténcia inicial, passou a desfrutar na Ale- manha ou no exterior: os textos de Rolf Hochhuth, Peter Weiss, Paul Celan, Jean Améry e outros. Naturalmente, seria facil se opor a essa nova hipétese de recalcamento com base em alegagGes historicas e tedricas. Nem é necessario 0 arcabouco foucaul- tiano para deixar claro que a escassez de textos literdrios sobre os bombar- deios, que decerto foi um dos fatores na aparente auséncia dessa experiéncia no debate popular, pode ser explicada de outra maneira. Seria possivel assinalas, Por exemplo, que muitos dos proprios escritores do apés-guerra nao vivencia ram os bombardeios, por terem estado no front. Como é compreensivel, con- centraram seu trabalho na vida depois da guerra, Porém, ao contrario do que sugere Sebald, varios desses textos foram muito eficazes no ataque & falencia moral do pais. Com certeza é 0 caso de Borchert, Bill e Koeppen. Quanto aos escritores do Gruppe 47 que se recusaram a falar do Holocausto e rejeitaram os escritores judeus e emigrados que voltavam, a tese sebaldiana do recalca- ‘mento tem certa forga, de fato. Como poderiam eles abordar a vitimagdo alema pelos bombardeios sem falar do Holocausto? Os dois acontecimentos estavam claramente ligados na mente das pessoas, na época. Mas a censura incondicio- nal de Sebald a toda uma geraco é um exagero. Faz-nos pensar no que estaria em jogo para ele, em termos literdrios, em sua tese do recalcamento.” Por mais questiondvel que seja o valor da hipétese sebaldiana do recalca- mento como tese geral sobre a literatura e as mentalidades alemas do apés- ‘guerra, a recepcdo popular dada ao livro desse autor torna-se interessante para minha tese sobre uma politica do esquecimento piiblico. Muitas criticas atacaram Luftkrieg und Literatur como se ele fosse parte do discurso direitista que indultava os alemaes como vitimas dos Aliados, e como se Sebald preten- desse relativizar ou até negar o papel dos alemaes como criminosos. Foi uma teacio pavloviana esperdvel de criticos que simplesmente reciclam as convic- ‘Ges liberal-esquerdistas de outrora, ignorando que a temporalidade do es- quecimento e da propria meméria alemaes se modificou nas iiltimas décadas. © ataque a Sebald reproduziu um tabu politico anterior sobre a Luftkrieg, inicialmente surgido na década de 1950 e que ganhou forca nos conflitos ge- racionais da de 1960. Naquela época, falar da guerra aérea em pablico, ou até na intimidade da familia, era inescapavelmente ligado ao discurso da vitimi- Resistincla &meméria: usose abusos do esquecimento piblico 169 zagao alema (os alemaes como vitimas dos nazistas, em primeiro lugar; dos bombardeios aliados, em segundo; por fim, da ocupacao aliada). Nao raro, falar da guerra aérea significava relativizar os crimes do Holocausto. Além disso, o sofrimento da guerra aérea era invariavelmente associado as histérias de expulsao do leste, que desempenharam um papel importante na pol direitista da Alemanha Ocidental, pelo menos até o fim da década de 1960, © que ressurgiram recentemente, apés a publicagdo do romance Im Krebs- gang, de Ginter Grass." Poderiamos inclusive indagar até que ponto tera sido essa politica “revanchista” das influentes organizacées de expatriados (Bund der Vertriebenen (Liga dos Deslocados}) que impediu o reconhecimento do sofrimento com a guerra aérea pela geracdo mais nova. Ao nao reconhecer como final a fronteira com a Polénia que seguia a linha Oder-Neisse, 0 gover- no de Bonn praticou uma politica da ilusio que tornou impossivel separar a experiéncia de perda e sofrimento reais, de um lado, e sua instrumentalizagio politica, de outro. A direita falava de Dresden e da expulsao; a esquerda, de Auschwitz. Os dois lados manifestavam resisténcia 4 meméria um do outro, e essa resisténcia reciproca alimentou 0 conflito entre geracdes que 86 viria a eclodir plenamente na década de 1960, com a ascensio da Nova Esquerda € da geragio dos protestos. Mas é importante lembrat, contrariando o que sugere Sebald, que foi o discurso ubiquo sobre os bombardeios ¢ a expulsio, conhecido por qualquer um que houvesse crescido na Alemanha Ocidental na década de 1950, que produziu o tabu sobre a discussdo da guerra aérea, para comeco de conversa. Nesse debate politico, os argumentos da esquerda eram politicamente legitimos. A ideia da vitimizacdo alema, ligada a um an- tigo discurso nacionalista, era fundamentalmente reacionéria ¢ tinha de ser combatida, para que o pais chegasse a um novo consenso a respeito do pas sado alemio. © prego pago por essa vit6ria foi o esquecimento da Luftkrieg, © esquecimento de uma experiéncia traumdtica nacional. Com a publicagao de Der Brand [O incéndio], livro de enorme sucesso de Jorg Friedrich, no outono de 2002, debate alcangou um novo patamar, apon- tando para uma paisagem mnémica alterada na Alemanha. Em poucos meses, centenas de milhares de exemplares foram vendidos. O livro recebeu criticas em toda parte, e sua publicagao foi seguida por uma enxurrada de documenté- rios e programas de entrevistas na televisio, ¢ de edigdes especiais de Der Spie~ gel (Als das Feuer vom Himmel fiel), Geo (Verbrechen gegen die Deutschen?) ¢ outras revistas de circulagao de massa. Friedrich, um historiador independente, conhecido por seu trabalho critico sobre a maquina de guerra nazista ¢ os jul- gamentos do apés-guerra, apareceu repetidamente na televisdo, ocasionalmen- te varias vezes por noite, em canais diferentes. No auge desse frenesi miditico, ica 170 Andreas Huyssen parecia impossivel passar uma tnica noite assistindo & televisdo sem ver bom- bas caindo sobre cidades alemas, incéndios devastadores e sobreviventes des- crevendo suas experiéncias atrozes. Luftkrieg und Literatur, o livro de Sebald, de 1999, que foi o primeiro a romper o siléncio pablico sobre a guerra a¢rea, que claramente serviu de referéncia oculta para Friedrich, parece agora apenas © prehidio dessa nova onda do discurso memorial piblico, na qual a expe- rigncia de uma geragio mais velha de alemfes, que comeca a desaparecer, vai sendo transmitida a seus filhos e netos. Tal como aconteceu com Sebald, alguns criticos tém mobilizado os antigos tabus contra a poderosa nazrativa dos bom- bardeios feita por Friedrich, mas, claramente, sem grande sucesso e até, talvez, sem grande convic¢o.” A meméria da Luftkrieg j4 nao é um tabu popular, nem deve s@-lo. Mas levanta, de fato, problemas histéricos espinhosos. Ainda esta saber para que finalidades piiblicas se prestard a longo prazo. Algumas estratégias narrativas de Friedrich so claramente passiveis de cri- tica, Ele foi censurado por seu tom enfatico, por sua ambiguidade a respeito de os bombardeios serem ou nao crimes de guerra, pelo uso ocasional de uma linguagem reservada para 0 Holocausto (abrigos antiaéreos chamados de cre- matérios, tripulagdes dos bombardeiros chamadas de Einsatzgruppen [grupos de intervengio], até o préprio titulo do livro, Der Brand, que se aproxima de uma tradugao alema de Holocausto etc.). No cmputo geral, porém, hé ampla concordancia em que esse nao é um livro revisionista sobre os alemaes como vitimas, uma espécie de Goldhagen as avessas, mas um livro sobre vitimas alemas cujas experiéncias precisavam ser reconhecidas ¢ absorvidas na narra- tiva nacional sobre os anos da guerra e do apés-guerra. Mesmo essa diferenciago, contudo, s6 vai até certo ponto nao explica plenamente o fascinio despertado pelo livro. Sua enorme repercussio na Ale- manha sé faz sentido a luz do fato de ele ter sido langado a meio caminho entre o 11 de setembro em Nova York e o bombardeio de Bagdé. E claro que 0 livro no menciona nenhum dos dois, e sabemos pelas entrevistas que, na verdade, Friedrich apoiava a Guerra do Iraque, assim como nunca deixou grande divida de que, pelo menos no comeco da guerra aérea, era licito que os Aliados combatessem a maquina de guerra nazista com tudo de que pudes- sem dispor. Mas a recepcao popular da erudicao hist6rica é uma coisa compli- cada. £ claro que o livro foi oportuno para os debates sobre a meméria alema. No entanto, a guerra iminente contra o Iraque proporcionava um contexto mais amplo ¢ intensificou a recepcao que Ihe foi dada. O livro alimentou 0 movimento pacifista alemio, por suas estratégias para discutir a guerra aérea nos termos de uma sensibilidade contempordnea contréria as guerras € 20s bombardeios, expandindo o presente para o passado e oferecendo & crescente ResletBnciad meméria:usos eabusos do esquecimento publico 171 oposi¢&o Guerra do Iraque uma visdo descontextualizada e vivencial da his t6ria alema, que fez Bagd assemelhar-se a Dresden e as tempestades de fogo da década de 1940 parecerem a campanha de “choque e pavor” dos Aliados. Friedrich nao nos da fatos novos sobre a hist6ria. Quase tudo que ele nos diz é sabido, a partir do trabalho de historiadores britanicos e norte-america- nos, bem como, eu gostaria de acrescentar, dos textos literdrios de autores como Hans Erich Nossack, Alexander Kluge e Hubert Fichte. O poder do li- vro reside, antes, na forca de sua narrativa, que o distingue de uma historio- grafia mais distanciada e contextual. A falta de énfase no contexto politico foi uma das principais criticas. Por seu foco na vivéncia dos bombardeios e tem- pestades de fogo, sua mescla de descrigdes anatémicas do horror, obsessiva- mente detalhadas, com uma reconstrucdo enfética da experiéncia subjetiva de sofrimento, Friedrich leva o leitor diretamente ao local da destruicdo, trans- formando os alemaes em espectadores de horrores inimagindveis, visitados nos préprios locais onde eles habitam hoje. Na medida em que as fronteiras entre passado e presente tornam-se fluidas, é como se participassemos da pr6- pria experiéncia. Ela se torna imaginavel de modos nao encontrados no traba- Iho historiogréfico anterior sobre o comando aéreo estratégico dos Aliados e sua campanha. O leitor é captado por um imaginario em que as tempestades de fogo de Hamburgo ¢ de Dresden tornam-se imediatamente presentes, pron- tas para serem ligadas a outros conjuntos de imagens prestes a explodir nas telas de televisao, ao se iniciar © bombardeio de Bagd. Nas telas dos televiso- res alemaes, a quase simultaneidade entre as filmagens de bombardeios de Hamburgo ou de Goldnia e as sequéncias de imagens das bolas de fogo sobre Bagdad encarregou-se do resto. A proximidade do tipo de escrita da hist6ria feito por Friedrich, concentra~ do na experigncia, combinada com a falsa impressao de simultaneidade gera- da pelas imagens visuais, produz uma meméria visceral que j4 ndo permite a comparaco ¢ a avaliacio sbrias. Em vez disso, temos uma nova forma de mediacdo para vivenciar outros tempos ¢ espagos em que o passado imagina- do é projetado na tela do presente. Essa historiografia da proximidade e do imediatismo ¢ muito diferente da abordagem de Sebald, que combina uma frieza melancélica com a distancia dos sujeitos hist6ricos de seus livros. O efeito do livro de Friedrich intencional ou no ~ é fazer desaparecer a la- cuna entre passado e presente, eliminando diferencas politicas fundamentais: os Estados Unidos ¢ a Inglaterra bombardeiam e os civis sofrem — uma analo- gia hist6rica simplista e falaciosa entre o passado alemao ¢ o presente iraquia~ no, mais questionével ainda na medida em que, ao mesmo tempo, o movimen- to pacifista encobriu a natureza do regime brutal de Saddam com um siléncio 172 Andreas Huyssen gentil, ou com referéncias ao fato de que esse ditador era culpa dos norte- -americanos, para comeco de conversa. O lema simplista “Nao a guerra pelo petréleo” abafou qualquer argumento que pudesse questionar a desejabilida- de da paz completa diante de um ditador homicida. Essa foi, afinal, uma ligg0 alema totalmente esquecida, ou raivosamente rejeitada no debate. E como se, no fundo, alguns alemaes ainda nao houvessem perdoado os norte-america- nos por té-los libertado. Nao estou defendendo aqui a manutengao do tabu sobre a guerra de bom- bardeios contra cidades e civis alemaes. Hoje, na presenca de um discurso bem estabelecido da meméria do Holocausto na Alemanha, nao vejo justificativa para a permanente ma vontade quando se trata de discutir a experiéncia dos bombardeios, sua legitimidade ou sua utilidade militar. Mas me oponho, sim, & maneira simplista ¢ interesseira pela qual 0 sofrimento alemao durante a guerra aérea é amalgamado com uma critica politica legitima & nova doutrina do governo Bush ~ a da guerra preventiva e da “democratizagao” & forca. Sempre e inevitavelmente, hé muito esquecimento arraigado nessas analogias histéricas simplistas. Scjam quais forem os métitos do livro de Friedrich fora do contexto politi- co em que ele foi recebido, reconhego que a ideia dos alemaes como vitimas, ou simplesmente de vitimas alemas, encontrard vociferante resisténcia entre as vitimas dos nazistas ¢ entre as nacées que lutaram contra a ditadura nazista, com grande sacrificio. Vistos de fora, 0s bombardeios continuarao a ser julga- dos por muitos como um castigo legitimo imposto a Alemanha nazista. Por mais compreensivel que seja, essa 6 uma légica retrospectiva, é claro, e nio deve nos impedir de questionar a estratégia das guerras de bombardeios hoje em dia. Nao questioné-la seria deixar de lado 2 questo moral e politica fun- damental desses bombardeios e de suas inevitdveis baixas entre os civis. Estd claro que o limiar de aceitacao de bombardeios de civis foi significativamente clevado desde a Segunda Guerra Mundial. Se a descrigao dramética de Frie~ drich puder nos ajudar a focalizar essa questo num contexto internacional, boa sorte para ela. Mas, para que isso aconteca, ela precisa ser desvinculada das Befindlichkeiten [susceptibilidades] alemas ¢ do discurso da vitimizac3o alema. Uma coisa é levantar essa questdo na Alemanha; outra, bem diferente, é levanté-la num contexto internacional. A perspectiva realmente importa. v ‘Tanto tabu anterior contra a discussio publica da Luftkrieg quanto a mo- bilizagao atual de Jembrangas da guerra aérea tém uma dimensio politica ex- Recistncia & meméria:usos e abusos do esquecimento poblico 173, plicita. No entanto, so fundamentalmente distintos. O modo como o atual movimento pacifista alemao abraca a “Leideform” - “forma de sofrimento”, como a chama Friedrich ~ da guerra de bombardeios atua primordialmente no nivel da experiéncia e pratica sua prdpria forma de politica do esquecimento. A atual rememoracao da guerra aérea unifica a nagdo, as Alemanhas do leste e do oeste, velhos ¢ jovens, conservadores, liberais e esquerdistas — uma homo- geneidade meio sinistra entre 0 governo e 0 povo, unidos contra a América. O tabu da guerra aérea numa época anterior, por outro lado, expressava uma au- téntica luta democrética dentro da Alemanha Ocidental, a luta para reconhecer 08 crimes do Terceiro Reich sem fazer 0 balanco dos sofrimentos. Naquela épo- ca, esquecer teve uma influéncia benéfica e purgativa na consciéncia nacional. Em comparacio, recordar a guerra aérea, hoje, parece muito autogratificante. Assim como na Argentina, o esquecimento piiblico na Alemanha, naqueles primeiros tempos, ficou a servigo de uma politica da meméria que, em ‘ltima instancia, péde forjar um novo consenso nacional, aceitando a responsabilida- de pelos crimes de um regime anterior. A ironia dessa danca entre meméria esquecimento est em que, quando certas lembrancas, inclusive as “corretas”, sio codificadas no consenso nacional e se transformam em clichés, como ocorreu com a meméria do Holocausto na Alemanha e com a meméria dos desaparecidos na Argentina, surge uma nova ameaca a meméria. A repressio gera discurso, inevitavelmente, como aprendemos com Foucault. Um discurso piblico onipresente e até excessivo da meméria, somado a sua comercializa~ cdo em massa, pode gerar outra forma de esquecimento, um olvido por exaus- to que é diferente da mémoire manipulé de Ricceur, como um “ne pas vouloir savoir” [ndo querer saber]. A ameaca de esgotamento afeta hoje tanto a me- méria do Holocausto quanto as memérias da guerra aérea. E nesse ponto que © foco intenso nas lembrancas do passado pode bloquear nossa imaginacao do futuro e criar uma nova cegueira no presente. Nesse estagio, talvez convenha limitarmos 0 futuro da meméria, a fim de nos lembrarmos do futuro. Notas + Umberto Eco, “An Ars oblivionalis? Forget it”, PMLA 103, 1988, p. 254-261 2 Harald Weinrich, Lethe: Kunst wnd Kritik des Vergessens, Munique, C. H. Beck, 1997 [Lete: arte ¢ critica do exquecimento, trad. Lya Luft, Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 2001]. > Frances A. Yates, The Art of Memory, Londres, Pimlico, 1966 [A arte da meméria, trad, Flavia Banches, Campinas, SP, Ed. Unicamp, 2007]. 4+ Paul Ricoons, La Mémoire, Mbistoire, Poubli, Paris, Editions du Seuil, 2000, p. 543 [A meméria, a historia, o esquecimento, tad. Alain Frangois etal, Campinas, SP, Ed. Unicamp, 2007] 174 Andreas Huyssen Charles S. Maier, “A Surfer of Memory: Reflections on History, Melancholy, and Denial”, History and Memory 5, 1992, p. 136-151. Friedrich Nietsche, On the Advantage and Disadvantage of History for Life, trad. e inte. Peter Preuss, Indianapolis, Hackett, 1980, p. 8 [Segunda consideragio intempestiva: da utilidade e des- vvantagem da historia para a vida, trad. Marco AntOnio Casanova, Rio de Janeiro, Relume Dumari, 2003} Para uma boa critica desse bindrio, ver Tayetan Todoroy, Les Abus de la mémoire, Paris, Arléa, 1995. “Martin Heidegger, Sein und Zeit, Taibingen, Max Niemeyer Verlag, 1963, p. 339 ¢ 345 [Sere tempo, trad. revisada Marcia S.C. Schuback, Petropolis, RJ, Vozes/Braganca Paulista, SP, Edusf, 2006]. Jan Assmann, “Collective Memory and Cultural Identity”, New German Critique 65, primaveral verdo de 1995, p. 125-134. Cf. Andreas Huyssen, Twilight Memories: Marking Time ir C of Ammesia, Nova York, Routledge, 1995, e Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of ‘Memory, Stanford, Stanford University Press, 2003, A propésito dessas leituras equivoeadas de Adorno, cf. Michael Rothberg, “After Adorno: Culture in the Wake of Catastrophe”, New German Critique 72, outono de 1997, p. 45-81, também repro- duzido in Michael Rothberg, Traumatic Realisnt: The Demands of Holocaust Representation (Mix nedpolis e Londres, University of Minnesota Press, 2000), p. 25 lure Para a anilise politicamente mais incisiva do desenvolvimento do discurso da meméria na Argenti- na, ver Hugo Vezzeti, Pasado y presente: Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina, Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2002, Minha tese sobre as mudancas na cultura argentina da me- méria deve muito ao livro de Vezzeti. Ver também Elizabeth Jelin, Los trabajos de la meméria, Madr, Siglo Veintiuno de Espafia Editores, 2002. Um debate animado sobre a meméria e sua poli- tica também é conduzido na revista Puentes, publicada em Buenos Aires. 2 Nunca més: Informe de la Comision Nacional sobre la Desaparicién de Personas, Buenos Aires, Endeba, 1984, Ver Andreas Huyssen, “Memory Sites in an Expanded Field: The Memory Park in Buenos Aires”, Present Pasts, p. 94-109. Jean Franco, Critical Passions: selected essays, Durham, Carolina do Norte, Duke University Press, 1999, p, 50. Esse padrao faz lembrar a situagio alema em meados da década de 1970, quando 0 terrorismo da Favgdo do Exército Vermetho foi equiparado ao esquerdismo politico dos chamados simpatizantes, € a Fscola de Frankfurt foi atacada como tendo servido de mentora dos terroristas. Mas no houve solpe militar, é claro. Devo este argumento a Hugo Vezzett, Pasado y presente (ver supra). Karl Jaspers, The Question of German Guilt, Westport, Connecticut, Greenwood Press, 1978. Da- nicl Goldhagen, Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust, Nova York, Vintage Books, 1997 [Os carrascos voluntirios de Hitler: 0 povo alemo e o Holocausto, trad. Luis Sérgio Roizman, Sao Paulo, Companhia das Letras, 2002). Gesine Schwan, Politics and Guilt: The Destructive Power of Silence, Lincoln, University of Ne~ braska Press, 2001; Daniel Levy e Nathan Smaider, Erinnerung im Globalen Zeitalter: Der Holo- caust, Frankfurt am Main, Subrkamp, 2001, W. G. Sebald, Luftkrieg und Literatur, Munique, Hanser, 1999, traduzido por Anthea Bell (com dois ensaios adicionais que nao figuram no original alemao) sob 0 titulo The Natural History of Destruction, Toronto, Alfred A. Knopf Canada, 2003 [Guerra aérea e literatura, com: uns ensaio sobre Alfred Andersch, trad. Carlos Abbenseth ¢ Frederico Figueiredo, Sio Paulo, Companhia das Letras, 2011]. Resistancla & meméria: usose abusos do esquecimento piblico 175 % Jorg Friedrich, Der Brand: Deutschland im Bombenkrieg 1940-1945, Munique, Propylien, 2002 [0 incéndio: como os Aliados destruiram as cidades alemas, 1940-1945, trad, Roberto Rodrigues, tev, tée, Marcio Scalercio, Rio de Janeiro, Record, 2007]. 2 W. G. Sebald, The Emigrants, trad. Michael Hulse, Nova York, New Directions, 1996; ¢ Austerlitz, trad. Anthea Bell, Nova York, Random House, 2001. ® Sao essas as estatisticas citadas por Sebald; ver Luftkrieg, p. 11. 2 Sebald, Luftkrieg, p. 12. % Ibid. p. 6. 2 Thid., p. 18. 2 A ativa relutdncia dos membros do famoso Gruppe 47 (Richter, Andersch, Grass eral.) em lidar com © Holocausto e com os judeus que retornavam do exilio foi recentemente elaborada, com tristes rminticias, por Stephan Braese em Die andere Erinnerung: Jldische Autoren in der westdeutschen ‘Nachkriegsliteratur, Berlim/Viena, Philo, 2001. Ver também a dentincia do antissemitismo alemio depois da Shoah em Klaus Briegleb, Missachtung und Tabu. Eine Streitschrift cur Frage: “Wie anti- semitisch war die Gruppe 47”, Berlim/Viena, Philo, 2003. 27 A propisito dos aspectos literdrios do ensaio de Sebald, cf. Andreas Huyssen, “Rewritings and New Beginnings: W. G. Sebald and the Literature of the Air War”, in Present Pasts, p. 138-157. 2% Ginter Grass, Im Krebsgang, Gottingen, Steidl Verlag, 2002, traduaido para o inglés como Cra- brwale [Passo de caranguejo, trad. Flavio Quintiliano, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002). 2» Para uma colego de algumas das principais reagdes a Friedeich na Alemanha e na Inglaterra, ver Lothar Kertenacker (org.), Ein Volk von Opfern? Die neue Debatte um den Bombenkrieg 1940-45, Berlim, Rowohlt, 2003. 176 Andreas Huyssen

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