Necessidade da História: visão do “todo” e frente progressista não subalterna
Por Yuri Martins Fontes
Com o agravamento da crise estrutural do capitalismo, e da consequente onda retrógrada que assola grande parte da América, torna-se urgente a construção de frentes políticas populares de viés social- progressista. Porém, mesmo dentre correntes que se propõem integrantes da “tradição crítica”, percebe-se que algumas noções-chave como a de “golpe”, “ditadura” ou “democracia” ainda são muito vagas, o que confunde até bem-intencionados formadores de opinião. A questão que se coloca então é: como reunir forças progressistas em torno de um programa de governo de viés radicalmente social, se mesmo partidos, coletivos e personalidades influentes que se reivindicam “socialistas” insistem em repetir subalternamente o “discurso dominante” – e em certos temas fundamentais? Tais posturas não são isoladas, e com frequência fazem parte de práticas organizacionais sectárias, fundadas em um modo de pensamento arcaico (embora certas vezes “atualizado” por ideias pós- modernas) – o que é preciso mudar, e em vários temas. No tocante à Política Internacional, é desgastante para um projeto social de nação ver-se partidos e porta-vozes do socialismo (ou das “esquerdas”, como hoje se usa dizer evitando maior comprometimento) bradarem contra o suposto “autoritarismo” ou “ditadura” de nações que lutam por transformações sociais, e que são muito mais democráticas do que o “resto-de-1964” vigente em nosso Brasil (e nem se fale dos EUA do limitado Trump, ou ainda da França ultraliberal de Macron, seguido de perto pela fascista Le Pen). Nações como Cuba ou Venezuela (dentre outras como a Palestina) deveriam antes ser vistas como nossas aliadas na dura luta anticapitalista, e malgrado seus equívocos (e afinal os erros acompanham todo aquele que age), merecem receber nosso apoio. Mas ocorre que a incompreensão da História – e por conseguinte da Geopolítica – leva a graves injustiças para com governos como estes, que apenas se defendem como podem da guerra (ora de “alta”, ora de “baixa intensidade”) com que o imperialismo sistematicamente os agridem. A fim de evitar tais opiniões antidialéticas, repletas de relativismo abstrato e desconectadas da vida real, é imprescindível acudirmos à “ciência da história”, que segundo Marx e Engels (“A ideologia alemã”) é a “única ciência” – já que todo conhecimento, seja da natureza, seja dos homens, seja objetivo ou subjetivo, necessariamente tem por fundamento e motivação a “realidade histórica”. Um olhar atento, mesmo que breve, sobre a História recente pode esclarecer certas confusões, o que tenderia a contribuir para a construção de um programa mais consistente para essa necessária e possível Frente Progressista.
“Ditadura”, “democracia” e a confusão da “nova esquerda”
Os exemplos de confusões por parte de agremiações e personalidades do campo das esquerdas não são poucos, o que é especialmente daninho quando se trata de partidos ou figuras públicas cuja opinião é influente – e ainda pior, quando se tratam de vozes que vêm sendo tidas como as de uma “nova esquerda”. Veja-se o caso de Jean Wyllys, um dos mais combativos e sérios deputados, e que conseguiu se destacar positivamente por entre a corja que domina o atual Parlamento brasileiro. Representante da comunidade LGBT, ele ofereceu há alguns meses seu apoio (indireto) à “limpeza étnica” e massacres de palestinos perpetrados pelo governo nazi-sionista que há décadas comanda o Estado fundamentalista de Israel, ao visitar a cidade invadida de Jerusalém – com toda a simbologia pérfida que esse gesto carrega. Noutro acontecimento de nível semelhante – que também denota seu sério desconhecimento do “todo” da História –, ele classificou publicamente o governo venezuelano eleito de “ditadura sem limites”, abraçando assim a causa dos valentões fascistas (e aliás, explicitamente homofóbicos) patrocinados pelas ONGs mais reacionárias dos EUA que, em aliança com as elites locais, esforçam-se há anos por destruir a economia do país, além de provocar mortes de civis em violentos conflitos de rua ou por meio de mercenários franco-atiradores. Atitudes desta natureza tendem a comprometer a credibilidade de partidos sérios, como o seu PSOL – maior partido de esquerda na atualidade, e portanto peça das mais relevantes para a construção de uma tal “Frente”. E não se trata somente de Wyllys: como se sabe, sua agremiação é formada por “correntes”, e algumas delas fazem sistematicamente campanha em oposição ao resistente governo cubano, para a alegria dos falcões de Wall Street. Outro episódio nessa linha, que merece atenção pelo seu simbolismo (“nova esquerda”), e por se tratar de um formador de opinião com visibilidade midiática, ocorreu algum tempo antes das últimas eleições, envolvendo Vladimir Safatle – publicitário e professor de filosofia da USP, que ganharia grande projeção ao se destacar como colaborador da imprensa corporativa (TV Cultura e Folha), chegando a ser candidato a governador pelo PSOL. Durante telejornal – ao vivo – da emissora tucana, em meio a debate com seus colegas (a maior parte neoliberal, além de uns com tendências fascistas, como Marco Villa), ele destoando do grupo tenta argumentar contrariamente a algum dos disparates que ali se dizia sobre a “crise política nacional” pré-golpe (então em gestação). Contudo, para tanto o docente não só aceitou, como repetiu em cadeia nacional o veredicto comparativo (ali aventado de passagem) de que Cuba era uma “ditadura”, de modo a contemporizar e obter algum consenso com aquela mesa reacionária, antes de expor seus “poréns”. Quanto a um consistente debate filosófico, a uma reflexão inteligente, “radical” (que buscasse a “raiz” do problema) – como por exemplo, “em que consiste uma ditadura”, “que caracteriza uma democracia”, “em alguma parte do planeta há ou houve ‘democracia’ alguma vez na história”, “a ‘democracia’ hiper-indireta meramente eleitoral dos EUA é mais ‘democrática’ que a igualmente indireta ‘democracia participativa’ cubana”? –, isto obviamente não chegou a ser desenvolvido, e nem poderia naquele torpe palco televisivo. O que restou para o grande público, já tão mal formado, foi apenas a falsa e parcial mensagem contra a “ditadura de Cuba”. Oriundo de uma tradicional escola de “marketing”, o comunicador e professor tinha a obrigação de ter em conta a dimensão do efeito propagandístico negativo que uma fala como essa pode ganhar em rede nacional. Em suma, ele incorreu, em pequena escala, no mesmo erro que tanto abalou e gerou reprovações – corretas – ao lulismo: buscou uma “conciliação subalterna” com o inimigo em um tema crucial, mimetizando um discurso reacionário e carregado de eurocentrismo, posicionando-se no mínimo passivamente, com a escusa quem sabe de ter espaço para dizer/fazer algo. Não se quer aqui negar que alianças (pontuais), numa conjuntura como a atual, sejam necessárias para se ganhar visibilidade discursiva – e mais ainda, para governar. Mas elas não podem nos rebaixar a meros coadjuvantes do processo político, sob o risco de sermos excluídos. E aliás, não muito depois, ele cometeria o mesmo erro na grande escala da política partidária, quando já filiado ao PSOL tentou costurar um acordo desse gênero subalternizante com a forte e escorregadia Rede (que logo mostraria sua cara golpista) de Marina Silva e do Banco Itaú – um dos mais poderosos representantes do fundamentalismo neoliberal no Brasil. Com relação à citada “democracia participativa” cubana, cabe mencionar que se trata de um modelo em constante aperfeiçoamento, e que começa bem pela base: com a participação de delegados representantes de bairros, mais precisamente “manzanas” (“maçãs”), que são unidades que reúnem alguns quarteirões e elegem um “delegado” (vereador). Já quanto às agressões à democracia venezuelana, eles começaram logo nos primeiros meses da primeira eleição de Chávez, como será tratado a seguir.
Declínio da “experiência” e falta de relação com as bases
Tais “opiniões”, vindas de vozes midiáticas, amplificam a desinformação popular, que já não é pouca. Na falta de uma relação próxima e dialógica com as bases político-sociais, pode-se intuir os motivos dessas concepções daninhas – resultantes de uma pobre “experiência” do real, restrita aos olhares hegemônicos do gueto “classe média” do Sudeste industrializado. E diga-se de passagem que não se pode mais omitir que o erro capital do lulismo (fato que gera as maiores desconfianças para um possível próximo governo petista) foi exatamente este: afastar-se e deixar de ouvir suas bases. Se se pretende renovar a esquerda, mediante uma frente política efetivamente “crítica”, é preciso superar essa abstrata “crítica crítica” – ironizada por Marx como tão “pura” –, tradição que lamentavelmente ainda contamina a academia, dentre outros setores com poder de discurso. O descolamento do real é marca frequente de uma esquerda asséptica (de descomprometidos traços pós-modernos “anti-classistas”), mas também de certos marxistas pouco consistentes que tão logo ingressam na universidade ou em cargos políticos, acomodam-se à carreira estável, econômica e socialmente bem colocada, esquecendo a realidade crua daqueles que habitam o chão da história. Aliás, para evitar injustiças, diga-se que a mesma lassidão “frankfurtiana” tende a afetar socialistas de qualquer ramo profissional “nobre”, que seduzidos pela comodidade do pequeno-poder, facilmente tornam-se “enólogos”, “gourmets”, “fashions”, “analistas de rede social” – abandonando as tarefas de base, fechando-se em círculos de iniciados. Desde o alto do lustroso palco “culto” acadêmico ou social, obnubila-se a vida concreta, desconhece-se as demandas urgentes do povo e as sujeiras que compõe a história. Para além dos eventos citados, não faltariam exemplos de “purismo” em variados agrupamentos socialistas – ora acometidos pela higiênica “crítica crítica”, ora pelo não menos abstrato “esquerdismo” (“doença infantil” de que trata Lenin). Quanto a esta última espécie, basta recordar o “Fora todos!” – levantado por coletivos (que se reivindicam) trotskistas, como setores do PSTU, e por anarquistas –, lema que no ano passado tanto agradou à corja conservadora durante o golpe brasileiro que derrubou a inábil presidenta e blindou a quadrilha.
Frente popular socialista
Diante deste quadro, entende-se que para a edificação de uma frente popular socialista, a equação a se resolver passa pela seguinte reflexão: – Como promover por entre a população uma consciência mais ampla da realidade socioeconômica caótica vivida pelo mundo desde 2008, se esta análise histórica sobre o “todo” que compõe a realidade concreta – sobre as articulações, causas e efeitos da crise da modernidade burguesa, decadente desde os anos 1960 –, não vem sendo realizada nem mesmo por nossos organismos e lideranças formadoras de opinião? E afinal, se é certo que a falta de “experiências” – em declínio desde o advento da civilização moderna, como nota W. Benjamin (que não foi “frankfurtiano”) – atinge a todos, a autocrítica não pode ser abandonada pelo teórico que se pretenda efetivamente crítico.
Um olhar sobre a história recente neogolpista
Nesse rumo, em busca de se propor mais elementos para uma reflexão histórica, e consequentemente para as tão vagas “opiniões” políticas (ao menos por parte de mentes progressistas, que ultrapassaram as trevas do fascismo, eurocentrismo, racismo), no próximo artigo (que fecha esse ano inglório), focaremos alguns momentos-chave da história recente de neogolpismo da América Latina, relançando luz sobre informações que caso contrário tenderiam a se perder no limbo da notícia jornalística massiva cotidiana: i) a criação nos anos 1980 da “Fundação Nacional para a Democracia” (NED), nos EUA, destinada a bancar grupelhos ultraliberais e neofascistas voltados à desestabilização política e incitação da desordem civil (como o rebanho que nesse mês de novembro, século XXI, à porta do SESC, clamava “queimem a bruxa” para a filósofa Judith Butler); ii) a ascensão surpreendente de Hugo Chávez, que tão logo assume o cargo, passa a enfrentar a violência de fundações ultraconservadoras (e seus assassinos atiradores de elite), em aliança com a grande mídia patronal que aterroriza a opinião pública com manchetes sensacionalistas e chamados à derrubada pela força do presidente democraticamente eleito; iii) o novo golpe que em 2004 agrava a calamidade haitiana, historicamente promovida pela pilhagem francesa – e depois estadunidense –, desde sua independência; iv) a marcante derrota que significou para os EUA o fracasso da ALCA (2004) – fato histórico que levaria a política externa da superpotência (já em declínio desde 2000) a uma autocrítica, fazendo com que, especialmente após 2008 (com a necessidade de socialização dos prejuízos capitalistas), Washington dedicasse mais energia para seus golpes, agora mais brandos, na América Latina, que com “objetivos” ampliados passam a ameaçar não só os governos mais “radicais” do continente, mas também os reformistas moderados (Dilma, Cristina Kirchner) – com os quais pouco antes o Império era leniente. Em uma observação de conjunto, vistos em perspectiva, tais dados podem ganhar notável nitidez e “sentido”. Artigos Relacionados
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