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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES I

P ARTE I: INTRODUÇÃO

S ECÇÃO I: CONCEITO, ESTRUTURA E NATUREZA DA OBRIGAÇÃO

1. Conceito de obrigação

1.1 A obrigação em sentido técnico

O termo obrigação é utilizado, tanto na linguagem corrente como na literatura jurídica, em vários
sentidos. É necessário distinguir obrigação em sentido técnico de certas figuras próximas:
i) Dever jurídico: é a necessidade imposta pelo direito a uma pessoa de observar certo
comportamento, que visa a protecção de um interesse alheio, sancionado pelo ordenamento
jurídico com a cominação de uma sanção. Ao dever jurídico corresponde um direito subjectivo,
que é o poder conferido pela ordem jurídica a certa pessoa de exigir determinado
comportamento de outrem, como meio de satisfação de um interesse próprio ou alheio. Os
deveres jurídicos são uma categoria bastante mais ampla que os deveres de prestação
correspondentes às obrigações, incluindo deveres de carácter:
a. Geral: situações de vinculação de uma pessoa a um comportamento genérico (como
sucede nos deveres gerais de abstenção, correspondentes aos direitos reais);
b. Especial: situações de vinculação de uma pessoa a uma conduta específica, como sucede
nas obrigações.
ii) Sujeição: a sujeição traduz-se na situação inelutável de uma pessoa ter de suportar na sua própria
esfera jurídica a modificação a que tende o exercício do poder conferido a uma outra pessoa.
Constitui o contrapolo dos direitos potestativos, que se traduzem no poder conferido a uma
pessoa de, mediante acto unilateral, criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica com outra
pessoa.
iii) Ónus: o ónus consiste na necessidade de observância de certo comportamento, não por
imposição da lei, mas como meio de obtenção ou de manutenção de uma vantagem para o
próprio onerado.
iv) Direitos-deveres ou poderes funcionais: são direitos conferidos no interesse, não do titular ou não
apenas do titular, mas também de outra ou outras pessoas e que só são legitimamente exercidos
quando se mantenham fiéis à função a que se encontram adstritos.

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Qual, então, o conceito de obrigação em sentido técnico? O art. 397.º dá-nos uma definição: “é o vínculo
jurídico pelo qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação”, por outras
palavras, diz-se obrigação a relação jurídica por virtude da qual uma pessoa pode exigir de outra (ou
outras) a realização de uma prestação. Ao direito subjectivo de um dos sujeitos corresponde o dever
jurídico de prestar, caracterizando-se este dever por ser imposto no interesse de determinada pessoa e
por ter como objecto uma prestação. A prestação é assim a conduta a cuja realização uma pessoa se
vincula perante outra e mediante a qual dá satisfação aos interesses desta. A obrigação em sentido técnico
abrange por isso a relação no seu conjunto, que é composta, no lado activo, pelo crédito e, no lado
passivo, pelo débito.

1.2 Relação obrigacional simples e complexa

Todavia, o art. 397.º dá-nos uma visão simplista da relação obrigacional, olhando apenas para os direitos
e deveres que a integram (na compra e venda, dever jurídico do vendedor da entrega da coisa devida e
correlativo direito subjectivo do comprador de exigir a entrega). A intenção do legislador terá sido a de
descrever a estrutura da obrigação, através de um modelo explicativo pouco complexo. Mas a verdade é
que há outros direitos e deveres que integram a relação jurídica obrigacional ab initio (dever jurídico do
comprador de entregar o preço e direito subjectivo do vendedor a exigir o preço); e sobretudo esta pode
sofrer ao longo da sua vida várias vicissitudes, o que faz nascer novas figuras jurídicas no seu seio. Para
expressar a ideia de que a obrigação, na sua acepção mais ampla, compreende todos os poderes e deveres
que se vão constituindo no seio da relação, LARENZ defendia a concepção da obrigação como uma
estrutura ou um processo.

A relação jurídica em geral diz-se simples quando compreende o direito subjectivo atribuído a uma
pessoa e o dever jurídico ou estado de sujeição correspondente; e complexa quando abrande o conjunto
de direitos e de deveres ou estados de sujeição nascidos do mesmo facto jurídico. Assim, falamos da
relação jurídica obrigacional complexa ou em sentido amplo para designar o conjunto de vínculos
jurídicos que nasce do mesmo facto e se conexiona tendo em vista a mesma unidade de fim.

Que vínculos são estes? Podemos encontrar deveres jurídicos, ónus e sujeições. Dentro dos deveres
jurídicos, temos:
1. Deveres de prestação:
a. Deveres primários ou principais: são todos aqueles que surgem com o nascimento do
vínculo obrigacional, sem necessidade de ocorrência de um qualquer evento, e
qualificam a relação obrigacional como uma relação típica. Exemplo: a entrega da coisa

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vendida, por parte do vendedor, e a entrega do preço, pelo lado do comprador – arts.
879.º, a) e b).
b. Deveres secundários ou acessórios:
i. Deveres acessórios da prestação principal: são deveres que concorrem para a
prestação principal, destinando-se a preparar o cumprimento ou a assegurar a
perfeita execução da prestação. Exemplo: dever de guardar, embalar ou
transportar a coisa, quando esta não seja logo entregue ao credor.
ii. Deveres secundários com prestação autónoma: são todos aqueles que precisam de
um outro evento, além do facto constitutivo, para a sua produção. Podem ser
sucedâneos da prestação principal (ex: obrigação de indemnizar em virtude do
não cumprimento definitivo) ou concorrentes com a prestação principal (ex:
obrigação de pagar juros de mora).
2. Deveres de conduta: são deveres que não interessam à prestação principal, todavia são essenciais
ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação integra. Nas relações
obrigacionais laterais, onde estes deveres mais avultam, cada um dos contraentes tem o dever de
tomar todas as providências necessárias para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do
credor na prestação. É exemplo a obrigação do locatário de avisar o locador sempre que tenha
conhecimento de vícios na coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo ou que terceiros se
arrogam direitos em relação a ela, desde que o facto seja ignorado pelo locador – art. 1038.º/h).

- Deveres de conduta

Apesar de estes deveres de conduta estarem espalhados pelo Código Civil e legislação avulsa, estes
decorrem hoje genericamente do princípio da boa fé, art. 762.º, que impõe a ambas as partes um padrão
de conduta segundo o qual estas devem agir com honestidade, correcção e lealdade. Estes deveres são
mais frequentes no caso das relações obrigacionais duradouras e, dentro destas, naquelas que
comprometam especialmente a personalidade dos contraentes (ex: contrato de trabalho ou de
sociedade).

A doutrina tradicional negava a estes deveres a qualidade de verdadeiros deveres jurídicos, posto que não
são dotados de coercibilidade. Esta ideia está hoje completamente ultrapassada, com fundamento em
dois argumentos: há casos de incumprimento de deveres de conduta em que se pode intentar uma acção;
e há casos de deveres jurídicos em que não se pode exigir o seu cumprimento. A doutrina tem vindo a
desenvolver esta ideia, identificando os deveres de conduta mais comuns:
a. Dever de lealdade ou correcção;
b. Dever de informação ou de notificação;

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c. Dever de protecção;
d. Dever de cooperação.

Justificam-se mais algumas notas sobre os deveres de conduta:


- Distinguem-se dos deveres de prestação em dois aspectos: na possibilidade de os deveres de
conduta surgirem antes ou independentemente de se ter constituído a relação obrigacional
(art. 227.º/1); e na possibilidade dos deveres de conduta terem como titular activo pessoas
estranhas à relação donde nasce o dever de prestação (contrato com eficácia de protecção
para terceiros).
- Quanto à sua disciplina jurídica, apesar de a generalidade destes deveres não dar origem à
acção judicial de cumprimento (art. 817.º), a sua violação pode obrigar à indemnização dos
danos causados à outra parte ou dar mesmo origem à resolução do contrato ou sanção
análoga (ex: art. 1003.º, al. a)).
- Estes deveres tanto podem recair sobre o devedor, como afectam o credor, a quem incumbe
evitar que a prestação se torne desnecessariamente mais onerosa e proporcionar a cooperação
de que o devedor razoavelmente necessite.

- Relações obrigacionais sem deveres de prestação

Existem relações obrigacionais sem deveres de prestação, onde apenas existem deveres de conduta que,
quando violados, dão origem a outros deveres secundários, como o dever de indemnizar.
1. Relação obrigacional de negociações contratuais: quando as partes se encontram e preparam uma
negociação, gera-se entre elas uma relação especial que fundamenta o aparecimento de
determinados deveres de conduta. Nomeadamente, existe um dever de protecção quanto aos
bens jurídicos envolvidos no negócio. A violação destes deveres pode gerar responsabilidade pré-
contratual, art. 227.º. A doutrina tem tipificado os casos que dão origem à responsabilidade pré-
contratual:
a. Ruptura abusiva de negociações: se uma das partes romper as negociações sem qualquer
fundamento, isto gera responsabilidade pré-contratual, que pode gerar a obrigação de
indemnizar. A outra solução, de execução da obrigação de contratar mesmo contra a
vontade de uma das partes, é inviável – não só atenta contra a liberdade negocial, como
também não é desejável, na medida em que cada contraente iniciaria as negociações
sabendo que o contrato poderia vir a ser celebrado contra a sua vontade.
b. Celebração de um contrato ineficaz, inválido ou carecido de ratificação em virtude da
violação de deveres de conduta: se uma das partes incorre em erro nas negociações e a

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contraparte não o avisa, se daqui decorrerem prejuízos aquele que violou o dever de
conduta será obrigado a indemnizar.
c. Celebração de um contrato válido e eficaz, mas com graves prejuízos para uma das
partem em virtude da violação de deveres de conduta, designadamente do dever de
informação: para além da indemnização, pode ainda, cumulativamente ou não, existir
uma execução por via específica (a parte lesada põe fim unilateralmente ao contrato).
2. Responsabilidade pós-contratual: após a extinção da relação entre as partes através do
cumprimento do dever de prestar, podem ainda subsistir alguns deveres de conduta que, quando
violados, geram responsabilidade. Por exemplo: um trespassante que se recusa a participar na
escritura pública do trespasse.
3. Contrato com eficácia de protecção para terceiros: determinadas relações contratuais, embora não
envolvam terceiros, podem acabar por os afectar. Nestes casos, a doutrina vem tentar proteger
esses terceiros, fazendo derivar da relação obrigacional uma protecção para o terceiro. Recorre-
se a esta figura uma vez que as soluções normais em matéria de responsabilidade civil não
permitem a protecção de terceiro.
4. Relação corrente ou permanente de negócios: esta é também uma relação onde só existem deveres
de conduta e não de prestação. Em dadas relações negociais duradouras, a relação pode
projectar-se fora dos comuns deveres que dela resultam, gerando deveres de conduta – por
exemplo, na relação entre banco e cliente, se um terceiro pedir ao banco informações financeiras
sobre o cliente e se o banco optar por fornecer essas informações, deverá fazê-lo com diligência e
cuidado.

1.3 Obrigações autónomas

Apesar de sermos obrigados a recorrer ao conceito de relação obrigacional complexa, o conceito de


relação simples do art. 397.º é significativamente operatório. Às obrigações que não assentam num
vínculo jurídico preexistente ou que pressupõem, na sua constituição, um vínculo de carácter genérico
(como a que recai sobre quem danificou coisa alheia) dá-se o nome de obrigações autónomas. As
obrigações não autónomas são as obrigações que, estando integradas em relações de tipo diferente
(direitos reais, de família ou de sucessões), pressupõem a existência de um vínculo jurídico especial entre
as partes. São exemplos de obrigações não autónomas:
- Obrigação do comproprietário de concorrer para as despesas de conservação ou fruição da
coisa (art. 1411.º);
- Obrigação de prestar alimentos (art. 2009.º/1);
- Obrigação do herdeiro de cumprir, com as forças da herança, os legados feitos pelo testador
(art. 2068.º e segs.).

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A questão que se levanta é a de saber se as obrigações não autónomas são obrigações em sentido técnico,
e se estão subordinadas ao mesmo regime das autónomas. Ora, a disciplina legal das obrigações em geral
considera deliberadamente as relações creditórias na sua natureza intrínseca, abstraindo da sua fonte,
pelo que as obrigações não autónomas não podem deixar se considerar obrigações em sentido técnico,
aplicando-se-lhes o regime geral. O argumento histórico concorre igualmente para a afirmação desta
teses: apesar de a questão da autonomia ter sido suscitada no decurso dos trabalhos preparatórios, o
legislador não faz, no art. 397.º, alusão a este requisito na definição de vínculo obrigacional, pelo que o
terá omitido deliberadamente.

No entanto, o regime geral das obrigações não pode deixar de sujeitar a desvios impostos pela natureza
especial dos vínculos que precedem as relações não autónomas. Alguns destes desvios estão
expressamente consagrados na lei, de que são exemplos:
- A possibilidade de o comproprietário se eximir a obrigação de participar nas despesas da coisa
comum, renunciando ao seu direito a favor dos credores (art. 1411.º/1);
- A variabilidade do objecto da obrigação alimentícia (art. 2012.º);
- A indisponibilidade e impenhorabilidade do direito a alimentos (art. 2008.º/1 e 2);
- A separação de patrimónios ligada à satisfação de encargos da herança (arts. 2070.º e 2071.º).

Fora dos desvios previstos na lei, o regime geral das obrigações poderá ainda sofrer outras derrogações,
sempre que se demonstre que a origem da obrigação não autónoma ou o seu fim não se compaginam
com a solução prescrita.

2. Estrutura da Relação Jurídica Obrigacional (seus elementos)

2.1 Sujeitos

Sujeito activo e passivo

O primeiro elemento constitutivo da relação jurídica obrigacional é composto pelos sujeitos:


1) Sujeito activo ou credor: é a pessoa a quem se proporciona a vantagem resultante da prestação,
isto é, o titular do interesse que o dever de prestar visa satisfazer. Isto significa que;
a. O credor é portador de uma situação de carência ou necessidade;
b. Há bens (coisas ou serviços) capazes de preencherem tal necessidade;
c. Há um desejo de obter esses bens para suprimento da necessidade.

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Mas o credor é mais do que titular de um interesse, é também titular da tutela do seu interesse,
que está subordinada à sua iniciativa e vontade – enquanto titular de um direito subjectivo à
prestação, o direito oferece-lhe meios coercitivos para exigir o seu cumprimento, que o credor
pode exercer livremente.
2) Sujeito passivo ou devedor: é a pessoa sobre a qual recai o dever de efectuar a prestação,
ocupando na relação uma posição de subordinação jurídica em relação ao credor. Se não
cumprir pontualmente, é sobre o devedor que recaem as sanções estabelecidas na lei,
respondendo com o seu património (que funciona como garantia geral, art. 817.º.

Só o credor tem direito à prestação, e esta só do devedor pode ser exigida – a obrigação tem carácter
relativo (ao contrário dos direitos absolutos, como os direito reais e de personalidade), vinculando
apenas determinadas pessoas.

Coloca-se também o problema de saber se:


i) Pode haver situações de sujeito passivo indeterminado. Com efeito, a pessoa do credor pode não
ser determinada no momento em que a obrigação se constitui, mas tem de ser determinável, sob
pena de nulidade – art. 511º. Temos duas situações em que isto ocorre:
a. A determinação do credor depende de evento futuro e incerto: é o que sucede nas
promessas públicas (arts. 549.º e segs.) e nos contratos para pessoa a nomear (arts. 452.º e
segs.).
b. A determinação do credor depende da qualidade de possuidor do título: é o que sucede
nos títulos ao portador (bilhetes de cinema, transportes públicos, etc.).
ii) Pode haver situações de sujeito activo indeterminado. Em princípio, a lei não admite situações de
sujeito passivo indeterminado. Todavia, certos autores admitem esta possibilidade – são as
obrigações ambulatórias (exemplo: obrigação de os condóminos contribuírem para as despesas
de um determinado prédio, que mudam quando mudam os condóminos).

Tendo em conta os sujeitos, podemos classificar as obrigações em:


1. Obrigações singulares: de cada lado da relação há apenas uma pessoa (um só credor e um só
devedor).
2. Obrigações plurais: quer do lado do sujeito passivo, quer do lado do sujeito activo, quer
simultaneamente do lado activo e passivo há várias pessoas. As obrigações plurais podem ser:
a. Conjuntas: é a regra no Direito Civil (art. 513.º). Há tantos vínculos quanto os lados da
relação.

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b. Solidárias: é a regra no Direito Comercial e, por vezes, no Direito Civil, por motivos de
protecção do lesado. Se, no lado passivo, tivermos vários devedores, o credor pode exigir
a cada um deles a totalidade da dívida.

Modificação subjectiva da relação creditória

A permanência dos sujeitos originários do vínculo não é, no direito moderno, condição essencial à
persistência da obrigação. Assim, encontramos situações de modificação subjectiva da relação creditória
– sucessão. A obrigação como que se desloca do património de uma para o de outra pessoa, ao contrário
do que sucede na novação (arts. 857.º e segs.), que implica a constituição de uma nova obrigação em
substituição da antiga. Podemos ter vários tipos de transmissão.
1. Do lado activo:
a. Cessão de créditos, arts. 577.º e segs.: é um negócio através do qual o credor cede o seu
crédito sem necessidade de autorização do devedor.
b. Sub-rogação, arts. 589.º e segs.: ocorre quando um terceiro, como o fiador, paga em vez
do devedor e a lei o investe, em virtude do pagamento efectuado, na posição do credor.
2. Do lado passivo:
a. Assunção de dívidas, arts. 595.º e segs.: é um negócio através do qual um terceiro ocupa a
posição do devedor, com consentimento do credor.

Para além destes casos, encontramos ainda o da cessão da posição contratual, arts. 424.º e segs: toda a
posição contratual, incluindo direitos e deveres, se transmite, o que exige igualmente o consentimento do
credor.

2.2 Objecto

O objecto da obrigação é a prestação debitória devida ao credor, que se traduz num comportamento,
numa conduta do devedor. A prestação é o fulcro da obrigação, o seu núcleo.

Objecto mediato e imediato

Tendo em vista principalmente as obrigações com prestação de coisa, os autores distinguem entre:
- Objecto imediato: consiste na actividade devida, ou seja, no comportamento do devedor –
entrega da coisa, restituição, etc.
- Objecto mediato: consiste na coisa sobre que versa o comportamento, ou seja, no objecto da
prestação.

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Prestação de coisa

1) Modalidades

A prestação de coisa consiste na entrega ou restituição de uma determinada coisa, que constitui o objecto
mediato da prestação. Encontramos três modalidades:
i) Prestação de dar: a prestação visa constituir ou transferir um direito real definitivo sobre a coisa.
Há certos casos em que o domínio ou a constituição de um direito real depende, por força da lei
ou da convenção das partes, do acto de entrega da coisa. Exemplos típicos de prestação de dar
são: a entrega da coisa feita pelo mutuante ao mutuário (art. 1144.º); a prestação de coisa feita
pelo mandatário ao mandante (art. 1181.º/1); e a entrega da coisa ao legatário feita pelo sucessor
onerado nos casos previstos no art. 2251.º/2.
ii) Prestação de entregar: consiste na entrega de determinada coisa quando vise apenas transferir a
posse ou detenção dela, para permitir o seu uso, guarda ou fruição. É exemplo a obrigação do
locador de entregar ao locatário a coisa locada (art. 1031.º/1).
iii) Prestação de restituir: ocorre quando através dela o credor recupera a posse ou detenção da coisa,
ou o domínio sobre coisa equivalente, do mesmo género e qualidade. São exemplos: a obrigação
do locatário de restituir a coisa locada findo o contrato (art. 1038.º/i)); a obrigação do
comodatário de restituir a coisa comodada (art. 1135.º/h)); e a obrigação do mutuário de restituir
coisa equivalente, do mesmo género e qualidade (art. 1142.º).

2) Prestação de coisa futura

A prestação de coisa pode também ter por objecto coisas futuras, possibilidade expressamente admitida
pela lei no art. 399.º (em especial para a compra e venda, arts. 380.º e 383.º). O art. 211.º define coisa
futura numa acepção ampla, abrangendo:
i) Coisas que ainda carecem de existência física;
ii) Coisas já existentes, mas que ainda não existem na esfera jurídica do disponente ao tempo da
declaração negocial.

O intuito prático desta disposição legal é o de sujeitar os actos de disposição relativos a coisa não
pertencente ao disponente, mas que este conta vir a adquirir em momento posterior, ao regime dos
negócios sobre bens futuros e não ao da venda de coisa alheia. É o que se passa na compra e venda: a
venda de bens alheios pode ser tratada como venda de bens futuros se as partes tratarem a coisa como um
bem futuro – art. 893.º.

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Para fixar o regime da prestação da coisa futura é necessário conhecer a vontade das partes que está na
base da constituição da obrigação. Assim, quando a coisa futura, contra a expectativa dos contraentes,
não chega a existir ou vem a ser criada em quantidade inferior, por causa não imputável ao devedor...
i) Em princípio, a obrigação extingue-se total ou parcialmente, ficando o credor desonerado da
contraprestação – arts. 795.º/1, 880.º/1 e 793.º/1.
ii) Se, porém, as partes tiverem atribuído ao contrato carácter aleatório, ou seja, se tiverem negociado
a própria chance da prestação, o risco da não existência definitiva da coisa corre por conta do
credor e o contrato é válido. O credor tem de pagar o preço ainda que não se verifique a
transmissão dos bens – art. 880.º/2.

Prestação de facto

1) Modalidades

As prestações de facto são aquelas cujo objecto de esgota num facto, ou seja, num comportamento do
devedor. A prestação de facto pode ser:
i) Prestação de facto positiva: o comportamento a que está adstrito o devedor é um facere, uma
acção. São prestações de facto positivas típicas a do mandatário na do contrato de mandato ou a
do trabalhador no contrato de trabalho. Por outro lado, assumem especial configuração as
prestações de facto positivas emergentes dos contratos-promessa (arts. 410.º e segs.) e dos pactos
de preferência (arts. 414.º e segs). As prestações de facto positivo podem ser:
a. Obrigações de facto material: por exemplo, a realização de uma empreitada (art. 1027.º)
b. Obrigações de facto jurídico: por exemplo, a emissão de uma declaração de vontade.
ii) Prestação de facto negativa: traduz-se num non facere, ou seja, numa abstenção, omissão ou mera
tolerância. Dentro desta categoria, podemos ter duas variantes distintas.
a. Obrigação de abstenção (em sentido estrito): o devedor compromete-se apenas a não
fazer, ou seja, a não praticar certos actos (por exemplo, não abrir estabelecimento de
determinado ramo de comércio).
b. Obrigação de tolerância: o devedor compromete-se a tolerar que o credor pratique actos
a que, de contrário não teria direito. É exemplo a obrigação do locatário de consentir,
nos termos do art. 1038.º/e), a realização das reparações urgentes do prédio.

2) Prestação de facto de terceiro

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Em princípio, a prestação de facto refere-se a um facto do devedor; mas pode o facto devido reportar-se a
factos de terceiro, isto é, admitem-se as promessas de facto de terceiro, desde que a prestação do
promitente corresponda a um interesse do promissário, digno de protecção legal (art. 398.º/2). Todavia,
tendo em conta que os contratos só produzem, em princípio, efeitos entre as partes, naturalmente que a
prestação de facto de terceiro não vincula o terceiro a quem se refere – art. 406.º/2. Por conseguinte,
conclui-se que a promessa de facto de terceiro é, na verdade, promessa de facto próprio: a de conseguir
que o terceiro realiza a prestação.

E no caso de incumprimento? O compromisso, assumido pelo promitente, de conseguir o facto de


terceiro nem sempre reveste o mesmo sentido, de acordo com a intenção de contraentes. É necessário
averiguar a vontade das partes, no sentido de saber se a promessa de facto de terceiro se reconduz a uma
obrigação de meios ou a uma obrigação de resultados.
i) Obrigação de meios: o promitente obriga-se apenas a despender os esforços razoavelmente
necessários para que o terceiro pratique o facto, sem assumir qualquer responsabilidade na
hipótese de este não cumprir. Em caso de incumprimento, o promitente não está obrigado a
indemnizar a outra parte.
ii) Obrigação de resultados: o promitente garante a própria verificação do facto, obrigando-se a
indemnizar a outra parte se o terceiro, por qualquer razão, não cumprir.

Prestações fungíveis e infungíveis

i) A prestação diz-se fungível quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem
prejuízo do interesses do credor.
ii) A prestação diz-se infungível no caso de o devedor não poder ser substituído no cumprimento
por terceiro. São as obrigações a que ao credor não interessa apenas o objecto da prestação, mas
também as qualidades pessoais do devedor, como a sua habilidade ou conhecimentos
específicos.

A distinção entre prestações fungíveis e infungíveis coloca-se no âmbito das prestações de facto. As
prestações de coisa são, em regra, fungíveis, quer a coisa seja fungível, quer seja infungível (art. 207.º): é
indiferente, para o credor, quem entrega a coisa.

A regra, no Direito Civil, é a da fungibilidade, art. 767.º/1: “a prestação pode ser feita tanto pelo devedor
como por terceiro”. Todavia, o n.º 2 ressalva duas excepções:
i) Infungibilidade convencional: casos em que expressamente se tenha acordado que a prestação
deva ser feita pelo devedor.

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ii) Infungibilidade natural: casos em que a substituição prejudique o credor. Isto sucede quando há
interesses especiais do credor que para tal concorram ou quando há uma relação especial de
confiança que possa ser posta em causa.

Para além destes casos de infungibilidade, temos ainda a infungibilidade relativa, que ocorre quando a
substituição do devedor é possível, ainda que apenas em determinadas direcções (exemplo: escolhe-se
um cirurgião A, mas admite-se que este possa ser substituído pelo B ou C).

Esta distinção reflecte-se ao nível do regime jurídico das obrigações, em dois aspectos.
i) Regime da impossibilidade de cumprimento: a fungibilidade da prestação interessa à questão de
saber quando é que a impossibilidade relativa à pessoa do devedor importa, por equiparação à
impossibilidade objectiva, a extinção da obrigação – art. 791.º. No regime da impossibilidade de
cumprimento, distingue-se entre impossibilidade objectiva e subjectiva.
a. Impossibilidade objectiva: ocorre quando a prestação se torna irrealizável quer pelo
devedor, quer por qualquer outra pessoa. Nos termos do art. 790.º, quando há uma
impossibilidade objectiva não imputável ao devedor, a obrigação extingue-se.
b. Impossibilidade subjectiva: a impossibilidade é relativa à pessoa do devedor, isto é, em si
mesma a prestação mantém-se possível, apenas não pode ser realizada pelo devedor. O
art. 791.º diz-nos que, quando a prestação é fungível, a obrigação não se extingue;
todavia, sendo infungível, como o devedor não se pode fazer substituir por terceiros a
impossibilidade subjectiva tem os mesmos efeitos que a objectiva – a extinção da
obrigação.
ii) Regime do incumprimento:
a. No caso das prestações fungíveis: tratando-se de uma prestação fungível, pode o credor
requerer, no processo de execução, que o facto seja prestado por terceiro à custa do
devedor – art. 828.º.
b. Se a prestação for infungível, não faz sentido a substituição por terceiro, logo o credor
apenas pode exigir o cumprimento do devedor (art. 817.º) e, na hipótese de este não
cumprir, terá de contentar-se com a indemnização do prejuízo resultante do não
cumprimento. Também pode ser fixada, nestes casos, uma sanção pecuniária
compulsória.

A sanção pecuniária compulsória está prevista no art. 829.º-A, limitando-se o seu âmbito de aplicação às
prestações de facto infungíveis – algo criticado pela doutrina, uma vez que se deveria aplicar às
obrigações em geral. A previsão da sanção pecuniária compulsória para as prestações infungíveis
justifica-se pois como o devedor não pode ser substituído sem prejuízo do credor, a lei não encontra

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outra forma de satisfazer o interesse do credor interessado no cumprimento. A sanção pecuniária


compulsória visa coagir o devedor ao respectivo cumprimento, impondo ao obrigado uma espécie de
multa civil por cada dia que tarde a cumprir. Este valor reverte em parte para o Estado e em parte para o
credor, no entanto, a parte que reverte para o credor não o é a título indemnizatório, sendo cumulável
com uma eventual indemnização por mora ou incumprimento (n.º 3). A inserção sistemática deste artigo
está incorrecta, uma vez que deveria estar na área do cumprimento forçado e não da execução específica.

Obrigações instantâneas e duradouras

Atendendo a um critério temporal, as obrigações podem ser instantâneas ou duradouras.


i) Obrigações instantâneas: o comportamento exigível do devedor esgota-se num só momento ou
num período de duração praticamente irrelevante. Exemplo: entrega de certa coisa, pagamento
do preço numa só prestação, etc.
ii) Obrigações duradouras: o seu cumprimento protela-se no tempo. Todavia, o tempo pode ou não
ter relevo no respectivo objecto, o que nos leva a fazer uma outra classificação:
a. Obrigações fraccionadas ou repartidas: obrigações cujo cumprimento se protela no
tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, todavia o objecto da prestação está
previamente fixado, sem dependência da duração da relação contratual. O tempo tem
uma simples influência no modo de execução, mas não no objecto. Exemplo: preço pago
a prestações.
b. Obrigações duradouras em sentido restrito: a prestação devida depende do factor tempo,
que tem influência decisiva na fixação do seu objecto. Por sua vez, estas dividem-se em
duas modalidades.
- Obrigações de execução continuada: são aquelas cujo cumprimento se prolonga
ininterruptamente no tempo. Exemplo: obrigação do senhorio de permitir o
gozo da coisa.
- Obrigações reiteradas ou de trato sucessivo: o cumprimento renova-se em
prestações singulares sucessivas, em intervalos regulares ou irregulares.
Exemplo: obrigação do arrendatário de pagar a renda. A lei chama a estas
obrigações periódicas, no entanto estas podem ser periódicas, se se renovarem
em intervalos regulares; ou não periódicas.

Esta distinção tem relevo a nível do regime jurídico.


i) Efeitos da resolução:
a. Quando estejam em causa obrigações duradouras em sentido restrito, a resolução do
contrato não abrange, em princípio, as prestações já efectuadas – art. 434.º/2 e 277º/1.

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Isto é assim não porque seja materialmente impossível dar-lhe eficácia retroactiva, mas
porque as obrigações se encontram idealmente ligadas às diversas fracções de tempo, em
que é possível dividir a sua duração, gozando assim as prestações já efectuadas e as que
devem ser realizadas no futuro de uma certa independência entre si. Por outro lado,
algumas das prestações realizadas podem constituir o correspectivo de benefícios
irreversíveis pela contraparte.
b. Tratando-se de obrigações fraccionadas, a resolução tem eficácia retroactiva,
abrangendo em princípio todas as parcelas da prestação, incluindo as já efectuadas.
ii) Consequências do não cumprimento:
a. Nas obrigações fraccionadas, o não cumprimento de uma das prestações leva ao
vencimento antecipado de todas as outras (art. 781.º e 934.º), precisamente porque a
formação ou constituição destas não está dependente do decurso do tempo. Falamos
aqui em perda do benefício do prazo: as partes fixam um prazo mais amplo para o
pagamento, em benefício do devedor; deixando este de pagar uma das prestações, isto
origina uma quebra de confiança, legitimando a perda do benefício do prazo.
b. Nas obrigações duradouras em sentido restrito, não existe um crédito formado em relação
às prestações futuras, logo o art. 781.º não se aplica. A falta de pagamento poderá dar ao
senhorio o direito de indemnização previsto no art. 1041.º/1, mas não lhe confere o
direito de exigir imediatamente o pagamento das rendas correspondentes aos meses
futuros.

Existe uma regulamentação especial, quanto aos efeitos do não cumprimento, para o contrato de compra e
venda a prestações – art. 934.º. Em princípio, o legislador não admite a resolução do contrato de compra e
venda, dado que este é um contrato com eficácia translativa e a resolução tem efeitos retroactivos – se
com a resolução a propriedade se transferisse novamente para o credor, isto levaria a insegurança no
tráfego jurídico. Apenas se admite a resolução do contrato de compra e venda quando as partes
apuserem ao contrato uma cláusula de reserva de propriedade, que impede a transferência da propriedade
no momento da celebração do contrato, ou seja, esta cláusula é condição de resolução do contrato de
compra e venda. Não havendo cláusula de reserva de propriedade e não se podendo resolver o contrato,
o credor pode optar pelo vencimento antecipado (a resolução e o vencimento antecipado são caminhos
alternativos).

Todavia, se nos termos do art. 781.º basta a falta de uma prestação para se poder exigir o vencimento
antecipado, na compra e venda o legislador dá mais uma oportunidade ao devedor: se a prestação não
cumprida não for superior a 1/8 do preço (valor a partir do qual o legislador entende haver prejuízo para
o credor), o devedor tem mais uma oportunidade para pagar. Assim:

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i) Estando apenas uma prestação em falta ou esta for inferior a 1/8 do preço, o vendedor nada pode
fazer.
ii) Se houver mais do que uma prestação não cumprida ou, havendo apenas uma, esta seja superior a
1/8 do preço, o credor pode:
a. Lançar mão da resolução, havendo cláusula de reserva de propriedade;
b. Exigir o vencimento antecipado.
iii) Estando em falta duas prestações, qualquer que seja o seu montante, há direito à resolução ou
vencimento antecipado. Esta é a opinião do curso apesar de não haver unanimidade na doutrina,
uma vez que a ratio deste preceito é a de dar mais uma oportunidade ao devedor e, na falta de
duas prestações, a quebra de confiança é demasiado grande para ser tutelada.

A questão da patrimonialidade da prestação

Para que a obrigação se constitua validamente, a prestação deve obedecer a determinados requisitos –
possibilidade, licitude e determinabilidade. Porém, em tempos os autores discutiram se também não se
deveria incluir, nestes requisitos de validade da obrigação, a patrimonialidade. Nestes termos, a
patrimonialidade da prestação aferia-se, segundo uns, pelo interesse do credor, que tinha de ser de
carácter patrimonial; ou, segundo outros, pela própria prestação, que necessitava de possuir valor
económico, de ser susceptível de avaliação pecuniária.

Os autores que defendiam a patrimonialidade da prestação argumentavam para tal com a execução
forçada do património do devedor, que só é possível se a prestação tiver valor pecuniário. Todavia, a
execução forçada não se propõe necessariamente obter a realização coactiva da prestação (pode servir
para compensar o credor dos danos causados pelo incumprimento da obrigação – indemnização por
equivalente); e a execução não é a única forma através da qual se pode revelar a coercibilidade do dever
de prestar, embora seja a mais importante (encontramos também a execução específica, a acção directa,
o emprego de outros meios coercitivos como a resolução do contrato, a aplicação das sanções
pecuniárias compulsórias, o recurso aos procedimentos cautelares, etc.).

A doutrina responde hoje em sentido afirmativo à questão da validade das obrigações de prestação não
patrimonial, com fundamento na protecção que merecem alguns deveres de conteúdo não patrimonial
estipulados entre as partes e na função disciplinadora da vida social atribuída ao direito, que não se pode
confinar aos valores de pura expressão económica. A própria lei responde exemplarmente a esta questão
no art. 398.º/2: “a prestação não necessita de ter valor pecuniário, mas deve corresponder a um interesse do
credor, digno de protecção legal”. Não se exige a patrimonialidade, mas apenas:
i) Que a prestação corresponda a um interesse real do credor;

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ii) Que esse interesse seja digno de protecção legal.

Nas prestações patrimoniais, não se levantam quaisquer dúvidas quanto à sua validade; nas restantes,
para que sejam válidas, estes dois critérios terão de ser respeitados e explicitados. Com a imposição destes
dois requisitos, a lei quis afastar as prestações que correspondam a um mero capricho do credor, e
excluir as prestações que, podendo ser dignas de outros complexos normativos como a religião ou a
moral, não merecem a tutela do direito.

Relação entre o direito à prestação e o dever de prestar

Entre o direito à prestação e o dever de prestar há uma relação normal de correspondência – o


cumprimento do dever de prestar, satisfazendo o interesse do credor, extingue o direito à prestação. Por
outro lado, a satisfação do interesse do credor é o efeito normal do cumprimento do dever que recai
sobre o obrigado. Todavia, esta relação pode falhar, num duplo aspecto:
i) Há várias formas de extinção do direito do credor, para além do cumprimento do dever de
prestar (ex: prescrição, confusão, novação, dação em cumprimento, etc.).
ii) O devedor pode ficar desonerado do dever de prestar, ou cumprir mesmo esse dever, sem que
seja exercitado o direito do credor à prestação (ex: consignação em depósito declarada válida por
decisão judicial, arts. 841.º e 846.º).

A obrigação como instrumento de satisfação do interesse do credor

A obrigação não constitui um fim em si mesma, é um meio ou instrumento técnico-jurídico criado pela lei
ou predisposto pelas partes para a satisfação de um interesse do credor. É este interesse que define a
função da obrigação e, apesar de se tratar de um elemento exterior à sua estrutura, tem influência em
vários aspectos do regime jurídico – por exemplo, se um terceiro quiser realizar a prestação em lugar do
devedor, a lei não só autoriza a fazê-lo (art. 767.º/1), como impõe ao credor o dever de a receber, uma
vez que esta satisfaz plenamente o seu interesse; se o interesse do credor na prestação desaparecer por
causa superveniente, a obrigação extingue-se pois cessa a razão de ser de ser do vínculo obrigacional, etc.

A obrigação é ainda um valor do património do credor – mesmo antes de a prestação debitória ser exigida
ou efectivamente realizada, já o poder jurídico do credor, economicamente considerado, representa um
elemento actual do seu património. O valor patrimonial do crédito assenta na expectativa do cumprido,
reforçada pelas garantias geral e especiais. Através do poder de disposição, o credor pode utilizar o valor
económico do seu direito, quer como objecto de alienação ou oneração, quer como instrumento de

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crédito. O crédito é, por conseguinte, um objecto do comércio jurídico como qualquer outro direito
patrimonial.

3. Natureza Jurídica da Obrigação

Ao longo dos tempos, os autores foram elaborando várias teorias sobre a natureza jurídica da obrigação.

1) A obrigação como poder do credor sobre a pessoa do devedor. Elaborada por Savigny como uma reacção
contra as teorias que, rompendo com a orientação clássica, pretendiam deslocar o centro de gravidade da
obrigação para o património do devedor, na linha desta concepção a obrigação é uma forma especial de
propriedade do credor, não sobre toda a pessoa do devedor, mas sobre um dos seus actos. Esta tese é
facilmente rejeitada:
i) Desde logo, esquece a vontade do devedor que, embora sujeita a medidas coercitivas, assume um
valor decisivo na obrigação – é o instrumento essencial de ligação entre o direito do credor e a
prestação a que o devedor se encontra adstrito.
ii) Não dá nenhuma explicação lógica para o poder de agressão do património do devedor.

2) A obrigação como poder do credor sobre os bens do devedor. Numa posição diametralmente oposta da
anterior, os autores consideram a obrigação como um poder do credor sobre os bens ou património do
devedor. Não fará sentido falar de um direito do credor à prestação, uma vez que esta depende da
vontade do devedor; assim, a essência da obrigação só se revela quando há incumprimento, através dos
meios coercitivos facultados ao credor. Esta doutrina também não se encontra isenta de críticas,
confundindo a substância da prestação com as medidas subsidiariamente cominadas para o caso do não
cumprimento:
i) Este conceito deixa de fora a grande massa de obrigações que nascem, vivem e se extinguem sem
necessidade de recorrer à acção creditória. Desde logo, não abrange as obrigações cuja prestação
consiste num facere ou num non facere – como a prestação carece de valor pecuniário, não há
quaisquer bens no património do devedor sobre os quais incida o direito do credor.
ii) Mesmo nas próprias obrigações de dar, entregar ou constituir não se pode falar num poder do
credor sobre os bens do devedor, uma vez que, para que assim fosse, este teria de se traduzir num
direito directo e imediato sobre a coisa, com os atributos da preferência e sequela. Todavia, o
credor sofre a concorrência de todos os outros credores na execução do património; e, se o
devedor alienar a coisa devida, o credor não pode reivindicá-la do terceiro adquirente, posto que
o seu direito é relativo.

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3) A obrigação como relação entre patrimónios. Esta doutrina explica-se como uma reacção contra a tese
que via na obrigação um vínculo de sujeição pessoal do devedor, vendo antes na obrigação uma relação
entre patrimónios – quando se constitui a obrigação, o devedor efectuaria uma alienação de bens do seu
património, cuja eficácia fica apenas dependente da faculdade que ele tem de resgatar os valores
alienados mediante o cumprimento voluntário da prestação. Estes autores exageraram o alcance do
fenómeno da despersonalização e, para além das críticas à posição anterior que são também aqui válidas,
pode dirigir-se ainda as seguintes críticas:
i) Ao reduzir a obrigação a um nexo entre dois patrimónios, não atende a que esta, como toda a
relação jurídica, postula a existência de dois sujeitos. São os sujeitos quem dispõe dos meios de
tutela concedidos pelo direito.

4) Obrigação como relação complexa, integrada por dois elementos: o débito e a responsabilidade. Esta
doutrina, de origem alemã e difundida em Itália, Espanha e Portugal, decompõe a obrigação em dois
elementos distintos: o débito, que consiste no dever de prestar; e a responsabilidade, que se traduz na
sujeição dos bens do devedor ou do terceiro aos fins próprios da execução. A novidade desta doutrina
está no facto de conceber estes dois momentos como duas relações distintas, autónomas entre si,
argumentando para tal com algumas figuras especiais em que se verifica esta separação (ex: obrigações
naturais e dívidas condicionais ou futuras, asseguradas por fiança ou por garantia real). Apreciação
crítica desta doutrina:
i) A relação obrigacional deve ser concebia como unitária e não como fraccionada. Aqueles casos
especiais invocados falham em comprovar o desmembramento da obrigação: por exemplo, as
obrigações naturais não são verdadeiras obrigações jurídicas. A responsabilidade não se pode
constituir sem uma dívida, ainda que futura ou condicional, em vista do qual ela se forma; e a
responsabilidade não persiste depois de extinto o débito.
ii) Esta tese, ao limitar o crédito ao dever de prestar do devedor, reduz o direito à prestação do
credor a uma simples expectativa. Todavia, a interpelação do devedor tem o sentido de uma
exigência, feita sob a cominação dos meios coercitivos predispostos pela ordem jurídica para a
tutela da obrigação. Esta doutrina desloca o direito de crédito para a relação de responsabilidade,
identificando-o com o direito de agressão do património do devedor, o que equivale a confundir
a substância da obrigação com os meios acessórios que a tutelam.

5) Teoria clássica: a obrigação como direito pessoal e como relação unitária. A teoria clássica, adoptada por
A NTUNES V ARELA, é aquela que reconduz a essência da obrigação a um comportamento pessoal do
devedor, ou seja, a acção ou omissão a que este está adstrito. Para além disto, a relação obrigacional é
também uma relação unitária, ou seja, que envolve todas as facetas que reveste o poder do credor e,
correlativamente, o dever do obrigado numa unidade ontológica.

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S ECÇÃO II: A OBRIGAÇÃO E OUTRAS CLASSES DE RELAÇÕES JURÍDICAS

1. As Obrigações e os Direitos Reais

1.1 Carácter absoluto dos direitos reais e carácter relativo das obrigações

O traço mais saliente da distinção assenta no carácter absoluto dos direitos reais, por um lado, e no
carácter relativo das obrigações, por outro.
i) Dizer que os direitos reais revestem carácter absoluto significa dizer que valem erga omnes – o
titular do direito real pode afastar todos os restantes membros da colectividade jurídica, ficando
estes com uma obrigação de não ingerência
ii) Por seu turno, os direitos de crédito operam apenas inter partes, vinculando pessoas
determinadas ou determináveis – em regra, o credor e o devedor.

Do carácter absoluto dos direitos reais decorrem importantes consequências – o direito de preferência o
direito de sequela.

1) Preferência: a preferência ou prevalência consiste no facto e o direito real sacrificar toda a situação
jurídica construída posteriormente sobre a mesma coisa, sem o concurso da vontade do titular daquele,
na medida em que uma e outra sejam incompatíveis entre si. Numa palavra, existindo dois direitos reais
total ou parcialmente incompatíveis, prevalece o primeiro – a prioridade temporal confere prioridade
jurídica. Isto só não é assim:
- Nos bens sujeitos a registo: prevalece o bem primeiramente registado e não o constituído.
- Em alguns direitos reais de garantia: por exemplo, o promitente comprador a quem é entregue
uma coisa tem um direito de retenção até que seja paga a indemnização pelo incumprimento do
contrato-promessa. Este direito de retenção é um direito de garantia que prevalece sobre outros
anteriormente constituídos, designadamente a hipoteca.

Nos direitos de crédito, a regra é a de que os credores têm de sofrer o concurso dos restantes, executando
o património do devedor no peso relativo de cada um dos créditos – art. 604.º. Isto significa que não se dá
qualquer prioridade jurídica aos credores anteriores. Podemos no entanto encontrar uma excepção:
- Direitos pessoais de gozo: o art. 407.º parece estabelecer a prevalência ou preferência, uma vez que
afirma que, se sobre a mesma coisa se celebrarem contratos que confiram aos respectivos
credores direitos pessoais de gozo (direito de gozar a coisa alheia mas sem carácter real, como o
arrendamento, comodato, etc.) prevalece o mais antigo tendo em conta a data de celebração –

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protecção possessória contra terceiros. Todavia, há interpretações diferentes deste artigo. Como
categoria mista entre os direitos reais e de crédito, os direitos pessoais de gozo pressupõem para a
sua constituição duas fases – uma meramente creditória, desde o momento de celebração do
negócio até à entrega da coisa (apenas se tem o direito de exigir a entrega); e outra que se inicia
com a entrega da coisa. Assim, certos autores entendem que a entrega da coisa é que confere
prioridade jurídica, é este momento que conta. Qualquer que seja a solução, mesmo que
entendamos que pela simples celebração se adquire um direito pessoal de gozo e que em matéria
destes direitos vigora o princípio da prevalência, esta regra será sempre uma excepção.

2) Direito de sequela: o direito de sequela é o poder do titular do direito real de perseguir a coisa, ou seja, a
faculdade conferida ao titular de fazer valer o seu direito sobre a coisa, mesmo estando no domínio
material ou jurídico de outra pessoa. Este direito manifesta-se de forma diferente nos vários tipos de
direitos reais.
i) Direito de propriedade: este poder manifesta-se através da acção de reivindicação, expoente
máximo da ideia de sequela. Se o proprietário se vir privado da coisa, pode lançar mão desta
acção para a recuperar, não só na propriedade, mas também direitos reais limitados.
ii) Direitos reais de aquisição: neste direitos, que são direitos legais de preferência, em determinados
casos a lei confere direito de preferência a determinados sujeitos - arrendatário, comproprietário,
etc. Como se manifesta aqui a sequela? A e B são senhorio e arrendatário e A decide alienar o
prédio, pelo que B tem um direito legal de preferência. E se A vender a C sem dar conhecimento a
B (notificação da preferência)? Há aqui violação do direito de preferência e B pode lançar mão da
acção de preferência, art. 1410.º, para se substituir na posição de C, pagando os valores entregues
pelo comprador.
iii) Direitos reais de garantia: A e B, respectivamente cliente e banco, celebram um contrato de
mútuo no valor de 10.000 e B exige a constituição de uma hipoteca sobre o imóvel X. O credor
hipotecário pode executar o bem objecto de garantia, e pagar-se o valor preferindo sobre os
restantes credores. E se A vender o imóvel a C? Parece que B não pode pagar-se o valor do bem –
mas não é assim por esta ideia de sequela, isto é, B pode seguir o bem e executá-lo onde quer que
esteja. Como sucede na prática? O registo da hipoteca tem carácter constitutivo, logo não existe
nenhuma hipoteca que não esteja registada. Como a compra e venda de imóveis é um negócio
formal (até 2004, por escritura pública, a partir de 2005, também por documento particular
autenticado), e no momento da celebração se exige um documento onde constem todas as
inscrições relativas aquele imóvel, C tem sempre conhecimento da hipoteca, logo se quiser
celebrar a compra e venda à mesma sabe que o bem pode ser executado – não há nenhuma
expectativa que fica defraudada. A posição do terceiro adquirente não é merecedora de tutela.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Todavia, o carácter relativo das obrigações não obsta a que...


i) A lei considere excepcionalmente oponíveis a terceiros algumas relações que, na sua essência,
são autênticas relações obrigacionais. É o que sucede, como vimos, nos direitos pessoais de
gozo, mas também no contrato-promessa com eficácia real: A promete vender certo prédio a B,
atribuindo os contraentes eficácia real à promessa. Se A vender o mesmo imóvel a C, ou o
hipotecar a favor do credor D, B continuará a poder exigir de A a realização do contrato
prometido. Assim, o direito de D, ainda que de carácter obrigacional, é oponível a C e D, ou a
quaisquer outros posteriores adquirentes da coisa. O mesmo vale para o pacto de preferência
com eficácia real.
ii) A relação de crédito, na sua titularidade, constitua um valor absoluto, e como tal oponível a
terceiros.
iii) Os terceiros possam intervir ou colaborar na relação creditória: a prestação pode ser efectuada
por terceiro; há contratos a favor de terceiro, e há terceiros a quem a relação obrigacional
reflexamente abrange através dos deveres de conduta (como sucede com os familiares do
arrendatário no arrendamento para habitação, art. 76.º do RAU).

1.2 Doutrina da eficácia externa das obrigações

A doutrina da eficácia externa veio defender que também os direitos de crédito seriam oponíveis a
terceiros, desde que estes tivessem deles conhecimento. Assim, todo o terceiro que tivesse conhecimento da
relação creditória seria juridicamente obrigado a respeitá-la, pelo que a responsabilidade extracontratual
abrangeria aqui também a infracção dos direitos de crédito cometida por terceiros. Quando é que tal
ocorre? Os autores falam na tipologia da violação direito de crédito por terceiro, que abrange duas
situações:
i) Quando há um ataque directo ao próprio crédito, isto é, quando o terceiro colabora com o
devedor na violação desse direito. Exemplo: A, tendo celebrado um contrato com B, deixa de
cumprir para celebrar outro contrato com X. Para a doutrina da eficácia externa, bastaria que X
tivesse conhecimento do contrato inicial para ser responsabilizado.
ii) Quando há um ataque a um dos elementos do substrato do crédito (sujeitos ou objecto).

Podemos perguntar-nos se esta doutrina terá sido consagrada entre nós. Do ponto de vista do direito
constituído, a resposta é negativa – para além de haver normas que a contrariam, também concorre para
esta resposta um argumento histórico. No momento da elaboração do Código, esta doutrina estava a ser
debatida, sendo contrariada pela doutrina tradicional; logo, se o legislador quisesse contrariar a tradição,
tê-lo-ia feito expressamente. Quais são as normas que afastam a doutrina da eficácia externa?
i) Art. 406.º: consagra a regra geral de que os direitos de crédito têm eficácia relativa, ou seja, só

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nos casos expressamente previstos serão estes direitos oponíveis a terceiros. Esta é uma
indicação, pese embora não ser decisiva.
ii) Arts. 412.º e 421.º: dizem, respectivamente, respeito aos contratos de promessa e pactos de
preferência. Estes contratos têm, em princípio, uma mera eficácia obrigacional, podendo
todavia as partes atribuir-lhe eficácia real, verificando-se quatro requisitos cumulativos:
a. Tratar-se de bens imóveis;
b. Haver declaração expressa no sentido da atribuição;
c. Registo;
d. Submissão à forma especial da forma do contrato definitivo.
Parte da doutrina, como A NTUNES V ARELA, entende mesmo a atribuição de eficácia real a estes
contratos faz com que os direitos de crédito se transformem em direitos reais de aquisição.
Todavia, para efeitos de regime, não interessa saber se são considerados direitos de crédito ou
direitos reais de aquisição, mas apenas se têm eficácia real ou não. Destas normas podemos
concluir que se o legislador teve de vir estabelecer requisitos especiais, é porque estes contratos
em regra não têm eficácia real, só sendo oponíveis ao devedor.
iii) Art. 495.º/3: dá direito ao credor de alimentos de reagir, pedindo uma indemnização ao terceiro
que impeça o cumprimento do direito de alimentos. Regra geral, perante um terceiro lesante,
quem tem direito a indemnização é o lesado; mas a lei permite nestes casos que o próprio credor
de alimentos possa pedir uma indemnização a terceiro por violação do direito a alimentos.
Consagra uma certa eficácia externa do direito a alimentos, todavia esta é uma regra excepcional,
justificada pelo carácter especial deste direito, que visa assegurar a sobrevivência de
determinada pessoa. Não podemos pensar em aplicar esta regra fora do âmbito do direito a
alimentos, esta não é extensível a qualquer outro direito (nem por interpretação extensiva, nem
por interpretação analógica). Simplesmente podemos utilizá-la para fazer um raciocínio a
contrario – se o legislador teve necessidade de, para proteger o direito de alimentos, consagrar
esta protecção, é porque não é um princípio genérico.
iv) Art. 1306.º: este artigo diz-nos que há restrições ao direito de propriedade que são oponíveis a
terceiros; fora disso, temos restrições com carácter meramente obrigacional. Se partíssemos da
ideia de que os direitos de crédito são oponíveis a terceiro, este artigo ficaria esvaziado de
utilidade
v) Art. 794.º: estabelece o "commodum" de representação, que consiste numa espécie de sub-
rogação do devedor pelo credor. Se um estranho à relação de crédito destruir ou deteriorar coisa
devida e esta pertencer já ao credor, incorrerá em responsabilidade perante este, mas por ter
violado o direito absoluto do lesado. Mas se a coisa devida pertencer ainda ao devedor, é este
quem tem direito à indemnização. Através do “commodum” de representação, o credor vai
reagir contra o terceiro, mas substituindo-se ao devedor, dado que na indemnização haverá uma

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

quantia em dinheiro que substituirá o objecto da prestação.

Concluímos, assim, que os direitos de crédito não tem eficácia perante terceiros; contudo, isto não
significa que não possamos responsabilizar terceiros que violem ou contribuam para violar o direito do
credor. Como?
i) A responsabilidade civil exige que o facto praticado seja ilícito, o que se pode traduzir numa
violação de direito alheio, numa violação de uma disposição legal destinada a proteger direito
alheio ou num abuso do direito. Ora, os direitos de crédito, ainda que sejam direitos alheios,
não são oponíveis a terceiros, devendo entender-se que apenas a violação de um direito
absoluto de outrem gera responsabilidade civil.
ii) Assim, apenas podemos ir pela via do abuso do direito (art. 334.º), mais concretamente, pela
violação dos bons costumes. Quando o devedor celebra um novo contrato com terceiro, mesmo
que este terceiro tenha conhecimento do contrato inicial, este parece não ser um
comportamento censurável. Todavia, quando é o próprio terceiro a promover a quebra
contratual, abordado ele o devedor e convencendo-o, há aqui uma indução à quebra do
contrato com intuito de prejudicar o concorrente. Podemos entender que esta situação
configura um abuso do direito, uma vez que o terceiro tinha a intenção de prejudicar e as regras
da concorrência ditam que os comportamento tragam benefícios e não prejuízos.

1.3 Outras diferenças

A distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito passa por outros dois aspectos:
i) O direito real como poder directo e imediato sobre a coisa; a obrigação como relação de cooperação.
Apesar de vários autores negarem aos direitos reais a natureza de poder sobre a coisa, uma vez
que toda a relação jurídica é uma relação entre sujeitos, A NTUNES V ARELA defende a concepção
clássica, segundo a qual os direitos reais consistem em autênticos poderes de soberania, direitos
sobre os bens. A concepção personalista do direito real pecaria por partir da falsa premissa de
que as situações reguladas pelo direito só interessam à ordem jurídica enquanto vínculos entre
pessoas; ora, interessa ao direito a ligação do titular com a res. Já as obrigações consistem num
direito à prestação, só realizável através do intermediário, que é o devedor. O credor necessita da
cooperação do devedor, logo a obrigação só conferirá ao credor, nos casos de prestação de coisa,
um direito aos bens, mas nunca um direito sobre os bens,
ii) Princípio da tipicidade dos direitos reais e princípio da liberdade contratual nos direitos de crédito.
Por força do princípio da liberdade contratual, as partes têm grande liberdade no conteúdo dos
contratos que celebram; enquanto que nos direitos reais, as partes não podem criar direitos para
além dos previstos – art. 1306.º. A criação de outros direitos reais para além do de propriedade

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

implica restrições a este, isto é, o direito de propriedade é o direito-mãe, que é elástico: inclui os
poderes de usar, fruir e dispor, que podem ser limitados, comprimindo-se assim o direito de
propriedade e criando-se através desta limitação os restantes direitos reais, que são direitos
menores ou limitados. Extinguindo-se estes direitos, o direito de propriedade volta a expandir-
se. Temos ainda os direitos reais de garantia, que visam garantir os direitos de crédito (ex:
penhor); e finalmente os direitos reais de aquisição - ex: direitos legais de preferência, nos quais a
lei atribui a dadas pessoas o poder de preferir numa dada aquisição sobre todos os terceiros que
nela estejam interessados. Todas as outras limitações do direito de propriedade têm carácter
obrigacional, cabendo na segunda parte do art. 1306.º. O que justifica o princípio da tipicidade
dos direitos reais?
a. Tendo os direitos reais eficácia erga omnes, a livre criação de instrumentos neste domínio
poderia causar séria perturbação no comércio jurídico.
b. A experiência ensina que a contitularidade de direitos de gozo tem graves inconvenientes
– no aspecto económico, a exploração dos bens não é tão frutuosa; e, no aspecto social, a
comunhão de direitos é fonte frequente de litígios.
c. A organização da propriedade é matéria de interesse e ordem pública, que o Estado
procura regular directamente no seu sistema legislativo.
iii) Objecto: enquanto que os direitos reais são direitos sobre uma coisa, os direitos de crédito são
direitos a prestações. O direito real é um dever soberano sobre uma coisa, ou seja, o titular tem
um verdadeiro ius in re, podendo utilizar de forma exclusiva os poderes de facto que o direito lhe
dá. Já o objecto dos direitos de crédito é a prestação, um comportamento do devedor; estes
nunca são direitos sobre uma coisa – mesmo que incidam sobre uma coisa, distingue-se entre
objecto mediato e imediato da obrigação.

1.4 Afinidades

Também há afinidades ou pontos de contacto entre os direitos reais e as obrigações:


i) fonte comum: quer as obrigações, quer os direitos reais podem nascer por mero efeito do
contrato.
ii) Outras atinências: a violação dos direitos reais, bem como de outros direitos absolutos, cria
obrigações entre o titular do direito violado e o autor da lesão; há direitos reais destinados a
assegurar o cumprimento de obrigações; os direitos de crédito podem servir de base, por mera
aquisição derivada constitutiva, à constituição de direitos reais, etc.
iii) Obrigações reais e ónus reais:
a. As obrigações reais são obrigações impostas, em atenção a certa coisa, a quem for titular
desta. São obrigações que nascem e existem por causa de uma coisa, todavia não deixam

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de ser obrigações – sendo chamadas de “reais” para destacar a sua origem. É obrigado
quem for titular do direito real, havendo assim uma sucessão no débito fora dos termos
normais da transmissão da obrigação; e ao devedor é algumas vezes concedida a
faculdade de se libertar do vínculo obrigacional, renunciando ao seu direito real a favor
do devedor (arts. 1411.º, 1428.º/3 e 4, e 1472.º/3). Para que a sucessão na obrigação se dê,
é necessário que a obrigação continue de algum modo ligada à res. São exemplos de
obrigações reais: a obrigação de contribuir para as despesas de conservação ou fruição
da coisa comum, art. 1411.º; obrigação de contribuir para as despesas de conservação ou
fruição das partes comuns do edifício e de reconstrução do edifício, arts. 1424.º e 1428.º;
bem como as previstas nos arts. 1472.º e 1567.º/4.
b. Enquanto que nas obrigações reais o titular da coisa só fica vinculado às obrigações
constituídas na vigência do seu direito, nos ónus reais o titular da coisa fica obrigado
mesmo em relação às prestações anteriores, por suceder na titularidade de uma coisa a
que está visceralmente unida a obrigação. Os ónus reais são também obrigações. A
obrigação acompanha a coisa, como se se tratasse de um ónus sobre ela. Todavia, para
que estejamos perante um verdadeiro ónus real e não um direito de garantia, é necessário
que o titular da coisa seja realmente sujeito passivo de uma obrigação e não titular de
uma coisa cujo valor assegure o seu cumprimento; e para que haja um ónus e não uma
mera obrigação propter rem, é necessário que a coisa sirva de garantia à obrigação. Esta
figura tinha uma grande importância prática no período anterior ao liberalismo; hoje,
encontramos alguns ónus reais na nossa legislação, como o apanágio de um cônjuge
sobrevivo, art. 2018.º CC e art. 1.º/1/p) do Cód. Reg. Predial.

2. As Obrigações e os Direitos de Família

A diferença entre as obrigações e os direitos de família passa pelos seguintes pontos:


- As relações de família integram-se numa instituição social (família), cujos fins exercem uma
vincada influência no seu regime jurídico. É esta a única diferença entre as obrigações e as
obrigações de carácter patrimonial nascidas no âmbito das relações familiares.
- Já quanto aos deveres de carácter pessoal, as diferenças são mais profundas: estas não podem
ser objecto de qualquer relação obrigacional; são verdadeiros deveres morais impostos no
interesse da própria pessoa vinculada e da comunidade familiar; e têm carácter duradouro,
envolvendo a própria personalidade dos respectivos sujeitos.

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2. As Obrigações e os Direitos Sucessórios

Não há, entre as obrigações e as relações jurídicas correspondentes, integradas no fenómeno sucessório,
nenhuma diferença de estrutura – da relação mortis causa nascem relações obrigacionais. A sua principal
diferença está na sua finalidade específica, a de assegurar, no interesse geral, a continuidade das relações
jurídicas patrimoniais encabeçadas na pessoa do falecido. Esta função transparece em pontos específicos
do seu regime, como o relevo especial de que goza a vontade real do declarante na interpretação e
integração dos testamentos (art. 2187.º). O confronto entre as obrigações e as relações sucessórias
resume-se nos seguintes pontos:
- Há nas relações sucessórias, a par das obrigacionais, muitas outras relações de tipo diferente;
- As obrigações enquadradas nas sucessões têm o seu regime geral fixado no livro das
obrigações;
- Uma vez concluído o processo de sucessão, as obrigações compreendidas na herança
retomam o regime normal das obrigações.

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P ARTE II: FONTES DAS OBRIGAÇÕES

S ECÇÃO I: CONTRATOS

Capítulo I: Generalidades

1. Noção

A principal fonte das obrigações é constituída pelos contratos. Diz-se contrato o “acordo vinculativo,
assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro),
contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição”
(A NTUNES V ARELA); ou seja, “o contrato, ou negócio jurídico bilateral, é formado por duas ou mais
declarações de vontade, de conteúdo oposto mas convergente, que se ajustam na sua comum pretensão
de produzir resultado jurídico unitário” (M OTA PINTO ).

Notas sobre o regime dos contratos:


i) O contrato não é integrado por dois negócios jurídicos unilaterais; antes cada uma das
declarações (proposta e aceitação) é emitida com vista do acordo. O Código Civil de 1966 não
destacou os contratos numa secção particular, ao contrário do BGB – no entanto, dentro do
regime da declaração negocial, referem-se expressamente aos contratos os arts. 227.º a 235.º.
ii) Sendo o contrato formado por duas declarações, coloca-se o problema de saber qual o
momento da sua perfeição. O art. 224.º parece consagrar a doutrina da recepção: o contrato está
perfeito quando a resposta contendo a aceitação chega à esfera de acção do proponente, isto é,
quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer, ou quando a conhecer
efectivamente, se este momento foi anterior.
iii) A proposta do contrato é irrevogável depois de recebida pelo destinatário ou de ser dele
conhecida (art. 230.º.
iv) Uma proposta contratual só existirá se for suficientemente precisa, dela resultar a vontade de o
seu autor se vincular e houver consciência de se estar a emitir uma verdadeira declaração
negocial.

2. Classificação

A mais importante classificação dos contratos é a que se faz entre contratos unilaterais e contratos
bilaterais:

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i) Contratos unilaterais: geram obrigações apenas para uma das partes. Exemplos: doação e
mútuo.
ii) Contratos bilaterais ou sinalagmáticos: geram obrigações para apenas uma das partes,
obrigações estas ligadas entre si por um nexo de causalidade e correspectividade. Exemplos:
compra e venda e locação.
a. Contratos bilaterais imperfeitos: nestes há inicialmente apenas obrigações para uma das
partes, surgindo eventualmente mais tarde obrigações para a outra parte, em virtude do
cumprimento das primeiras e em dados termos. Exemplos: mandato e depósito (quando
gratuitos).

Qual a importância prática desta distinção?


i) A excepção de não cumprimento do contrato, art. 428.º, é privativa dos contratos bilaterais;
ii) Mas não já a faculdade de resolução com fundamento em inadimplemento ou mora, ou
condição resolutiva tácita, prevista no art. 801.º/2, que pode ter lugar em alguns contratos
unilaterais (art. 1140.º e art. 1150.º).
iii) Nos contratos bilaterais imperfeitos, não há lugar nem à excepção de não cumprimento, nem à
condição resolutiva tácita.

3. Relações contratuais de facto

A figura das relações contratuais de facto foi criada pela doutrina e jurisprudência alemãs, tendo sido
HAUPT quem primeiro estudou aprofundadamente a questão. Com efeito, se a doutrina tradicional
considerava como elemento essencial do contrato o acordo bilateral dos contraentes, traduzida no
encontro das declarações de vontade das partes, HAUPT veio apontar algumas categorias de situações
jurídicas, a cuja disciplina seria aplicável o regime dos contratos, sem que haja na sua base um acordo de
declarações de vontade dos contraentes. Estas são as relações contratuais de facto, assentes em puras
actuações de facto, e que se dividem em três categorias:
i) Relações pré-contratuais;
ii) Relações jurídicas provenientes de contratos ineficazes;
iii) Relações massificadas e de comportamento social típico.

3.1 Relações pré-contratuais

Muitos contratos formam-se rapidamente, pelo mero encontro de uma oferta e aceitação, sem que
existam anteriores aproximações dos contraentes ou negociações prévias, Todavia, no meio
industrializado contemporâneo, são cada vez mais frequentes os contratos onde os respectivos preliminares

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se alongam e pormenorizam, fenómeno que se explica pela importância e complexidade crescentes dos
bens e serviços objecto do comércio jurídico e dos meios através dos quais este se realiza. Estas relações
dirigem-se à obtenção da convergência da vontade das partes nas cláusulas sobre as quais qualquer delas
tenha considerado necessário, sem o qual o contrato não fica concluído (art. 232.º). Nem sempre é fácil
distinguir as negociações do contrato promessa e do contrato definitivo:
1. Distinção entre a negociação e a conclusão de contratos: é obrigatoriamente um problema de
vontade das partes, ou seja, se estas ainda estão a conceber e a ditar os termos da regulação
contratual ou se vinculam já à regulamentação ditada e acordada por elas.
2. Distinção entre negociações e contrato prometido: o negócio prometido no contrato promessa
deve ficar logo negociado, ou seja, determinado ou determinável no seu conteúdo, sob pena de
nulidade. Não é necessário que os promitentes regulem o conteúdo integral do contrato
definitivo, mas apenas que o contrato promessa contenha os mesmos requisitos de determinação
ou determinabilidade requeridos para o contrato prometido (por força do princípio da
equiparação). Aqui, o critério de distinção é o mesmo, o do respeito pela vontade das partes:
apurar se estas se vinculam ou não ao conteúdo definitivo. Com efeito, a obrigação de contratar
emergente do contrato promessa importa a eliminação de subsequentes negociações ou tratativas
do futuro contrato – o que motiva os contraentes a celebrarem este contrato é precisamente a
segurança ou garantia da realização futura do contrato definitivo nos termos acordados.

Assiste-se mesmo, na moderna contratualística, à tendência para introduzir novos instrumentos no


procedimento de formação dos contratos, sobretudo quando este é complexo e demorado. Esta tendência
assenta na vontade de dotar a praxis negocial de uma maior maleabilidade, sendo que no quadro desta
evolução se assiste a um progressivo desaparecimento do contrato-promessa, pouco flexível, em virtude
de um conjunto de novas figuras jurídicas ad hoc, todas elas se traduzindo em acordos preliminares com
declarações de intenção das partes sobre a conclusão de um futuro contrato (heads of agreement, letters of
intent, etc.). A par disto, assiste-se também a uma crescente técnica de documentação das negociações, ou
seja, dos pontos de encontro que vão sendo alcançados pelas partes em certa fase do andamento de
tratativas longas ou complexas.

É neste quadro que assumem relevo as minutas ou punctações. A minuta é um escrito donde constam os
acordos a que as partes chegaram, ou vão chegando, acerca do contrato a realizar – acordos parciais ou
parcelares. Através da redução a escrito destes pontos, estabiliza-se o consenso formado acerca deles,
sendo que estes depois serão as cláusulas do contrato definitivo. Assim, as partes estão como que
amarradas a estes pontos, que não admitem mais discussão (salvo por novo acordo), tendo porém a sua
eficácia suspensa até à celebração do contrato definitivo (não são vinculantes).

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Para HAUPT , estas relações nascidas do simples contacto social entre as pessoas, antes da celebração de
um negócio jurídico, seriam uma categoria das relações contratuais de facto. Mas como é que estas são
reguladas? A lei estabelece, no art. 227.º/1, que todo aquele que “negoceia com outrem para conclusão de
um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé,
sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”. Assim, sanciona-se a
responsabilidade por culpa na formação de contratos ou responsabilidade pré-contratual: nas fases
anteriores à celebração do contrato, o comportamento dos contraentes terá de pautar-se pelos cânones
da boa fé (sinceridade, seriedade, honestidade correcção e lealdade), aqui em sentido objectivo.
1. A boa fé em sentido objectivo constitui uma regra jurídica, um princípio normativo, que aplicado
aos contratos constitui um regra de conduta segundo a qual os contraentes devem agir de modo
honesto e leal, não só impedindo comportamentos desleais (obrigações de escopo negativo),
como impondo deveres de colaboração entre eles (obrigações de escopo positivo). Esta
acompanha a relação contratual desde o seu início, permanecendo durante toda a sua vida e
subsistindo mesmo após se ter extinguido: art. 227.º, art. 236.º, art. 239.º, art. 334.º e art. 762.º/2.
2. Já a boa fé em sentido subjectivo reporta-se a um estado subjectivo, tendo em vista a situação de
quem julga actuar em conformidade com o direito, por desconhecer ou ignorar,
designadamente, qualquer vício ou situação anterior – exemplos: art. 243.º/2, art. 291.º/3, art.
612.º e art. 1260.º.

A lei não concede, porém, o direito ao cumprimento ou à execução específica da obrigação, quando as
negociações, eventualmente prolongadas, não desemboquem na conclusão do contrato. Com a
responsabilidade pré-contratual, o legislador quis consagrar para o processo de formação do contrato uma
solução intermédia, conciliadora de dois grandes princípios: o princípio da liberdade contratual e o
princípio da boa fé.
i) Em nome do primeiro, as partes conservam a autonomia decisória ou deliberativa até ao último
minuto, sem que possa haver lugar ao cumprimento coercitivo (sanção pecuniária compulsória)
ou execução específica. Se tal fosse possível, ou seja, se a entrada em negociações implicasse a
obrigação de concluir o contrato, isto originaria um grande golpe para o comércio jurídico – o
livre jogo da concorrência implica a faculdade de negociar sem ter de celebrar o contrato, ou seja, a
possibilidade de romper negociações.
ii) Em nome do segundo, responsabiliza-se a parte que viole culposamente a confiança e
consequentes expectativas legítimas, criadas ao longo do processo formativo, na conclusão do
contrato.

Daqui se conclui que a liberdade de concluir o contrato constitui a regra e a responsabilidade pela ruptura
das negociações a excepção. Com efeito, a responsabilidade decorre, mais das vezes, da ruptura ilegítima

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das negociações. A responsabilidade pré-contratual do art. 227.º pressupõe a verificação cumulativa de


dois requisitos:
i) Existência de efectivas negociações que gerem confiança e expectativas legítimas na conclusão do
contrato em formação. A minuta funciona assim como um documento escrito probatório das
tratativas em marcha.
ii) Ruptura ilegítima, arbitrária e sem justa causa das negociações. Nos contratos de formação
complexa e progressiva, assume especial importância o art. 232.º: se não houver acordo sobre a
totalidade dos pontos em discussão entre as partes, não pode ser celebrado o contrato. Isto
independentemente de se tratar de elementos essenciais ou secundários – o próprio artigo
refere-se às “cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo” –, uma
vez que, se durante as negociações as partes discutem certos pontos, esses são elementos
determinantes da conclusão do contrato. Assim, não havendo acordo sobre todos os pontos
discutidos, uma das partes pode romper legitimamente as negociações, desde que se tenha
comportado segundo os ditames da boa fé.

A indemnização em sede de responsabilidade pré-contratual visa colocar o lesado na situação em que


estaria se não tivesse acreditado, sem culpa, na boa fé ou actuação correcta da contraparte. É o que se chama
dano negativo ou dano de confiança, que pode assumir relevância tanto sob o aspecto da afectação de
valores já existentes na titularidade do lesado (dano emergente) como a respeito de vantagens que o
mesmo deixou de auferir, ou porque não celebrou outros negócios que dependiam daquele, ou porque a
expectativa deste desviou a sua actividade de outras direcções possíveis (lucros cessantes). Assim, só são
indemnizáveis os danos adequadamente ligados por um nexo causal ao facto gerador da
responsabilidade (doutrina da causalidade adequada, arts. 562.º a 564.º), e aqueles que resultem da
diferença entre a situação real e a situação hipotética do lesado a actualidade (teoria da diferença, art.
566.º/2). Designadamente, quanto aos lucros cessantes, não basta alegar hipóteses alternativas teóricas,
não especificadas, sem fundada possibilidade: é necessário demonstrar a existência de outras efectivas
possibilidades negociais.

A minuta ou punctação pode igualmente ter relevo em sede de determinação dos danos, pois pode verter
em certos pontos verdadeiros deveres jurídicos (por exemplo, o dever de negociação exclusiva), cuja
violação pode dar origem à indemnização.

3.2 Contratos inválidos ou anulados: o art. 289.º

A segunda categoria de relações contratuais de facto abrange as relações provenientes dos contratos
inválidos ou anulados, regidas pelo art. 289.º e segs.

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3.3 Relações massificadas e de comportamento social típico: a dispensa de declaração de aceitação

A terceira categoria, e mais importante, abrange as relações massificadas de comportamento social típico –
são relações que assentam em actos materiais reveladores da vontade de negociar, mas que não se
reconduzem aos moldes tradicionais do mútuo consenso. É o caso da utilização dos transportes
públicos: quando se entra no autocarro, ainda que não se emita nenhuma declaração de vontade ou
estabeleça um contrato com a empresa transportadora, a própria prática do facto “entrar no autocarro” é
uma forma típica de utilização do serviço.

Entre nós, estas relações encontram apoio legal no art. 234.º: dispensa de declaração da aceitação. Estão
em causa casos em que a lei tem o contrato por concluído sem declaração de aceitação, sem todavia
prescindir da vontade de aceitação – esta está na prática dos actos materiais que a exprimem. Não há
motivos para reconduzir estas relações a uma nova figura de negócio jurídico, ao lado dos contratos – a
lei admite, no art. 217.º, que são declarações negociais todas as formas de comportamento do homem
que exteriorizam uma vontade, cabendo nela os comportamentos sociais típicos.

4. Princípios fundamentais dos contratos

- Princípio da autonomia privada: no âmbito dos contratos, assume a forma da liberdade contratual, que é
um princípio estrutural e fundamental. Reconduz-se à faculdade que as partes têm, dentro dos limites da
lei, de fixar, de acordo com a sua vontade, o conteúdo dos contratos que realizarem, celebrar contratos
diferentes dos prescritos no Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (art. 405.º). Sabemos
que para além da liberdade de fixação do conteúdo do contrato, cabe também no art. 405.º a liberdade de
contratar ou não contratar e a liberdade de escola do outro contraente.

- Princípio da confiança (pacta sunt servanda): os contratos são para cumprir pontualmente, em
conformidade com as cláusulas, por força da protecção da legítima expectativa criada nos contraentes.
Este princípio informa vários aspectos do regime dos contratos, como a doutrina em matéria de
interpretação e integração(art. 236.º, 238.º e 239.º), a regra da imodificabilidade do contrato por vontade
unilateral de um dos contraentes (art. 406.º/1), a irrevogabilidade da proposta contratual (art. 230.º), etc.

- Princípio da justiça comutativa ou da equivalência das prestações: entre as prestações deve haver uma
justiça, uma equivalência – equivalência esta que é principalmente subjectiva, ou seja, atendendo à
vontade das partes. Mais uma vez, este princípio está na base de várias disposições importantes: a

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anulação ou modificação de negócios usurários (arts. 282.º e segs.), direito à redução do preço no caso de
venda de coisas defeituosas (art. 913.º), etc.

- Princípio da utilidade: diz-nos que os contratos devem ser úteis, ou seja, proporcionar utilidades que
satisfaçam os interesses das partes.

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Capítulo II: Cláusulas Contratuais Gerais

1. Noção

A massificação das relações de prestação de serviços deu origem a uma nova forma de contratar, através
de contratos pré-formulados que se destinam a servir de modelo, com um conjunto de cláusulas que os
clientes não estão em condições de discutir, restando-lhes apenas aceitar ou não o contrato. Este
fenómeno justificou-se por uma racionalização da técnica de contratação, ou seja, por exigências de
simplificação e racionalização de custos, de eficiência, de celeridade e de segurança na contratação.

Esta técnica de contratar significa uma restrição de facto à liberdade contratual, uma vez que apenas um
dos contraentes ocupa, de forma unilateral, o poder de modelar o contrato; o outro apenas tem a
possibilidade de aceitar ou não. Mesmo nas hipóteses em que não exista monopólio, a liberdade de
rejeitar o contrato pode não ser real. Esta restrição à liberdade contratual representa o perigo de não
atender convenientemente aos interesses da contra-parte, prevalecendo os interesses da parte que tem o
poder de modelar. Daí a lei vir estabelecer limites ao poder do utilizador das cláusulas contratuais gerais,
no Decreto-Lei 446/85.

No art. 1.º/1 desde Decreto-Lei, estabelece-se o seu âmbito de aplicação, descrevendo o fenómeno das
cláusulas contratuais gerais. As cláusulas contratuais gerais são aquelas que preenchem três requisitos
cumulativamente:
i) Pré-formulação: têm de ser formuladas previamente. Não é necessário ser o utilizador a formular
ele própria as cláusulas que utiliza; de facto, o que muitas vezes sucede é que são associações
representativas que recomendam as cláusulas – falamos aqui da existência de um pré-
recomendante. Se as cláusulas não resultarem de negociação, são pré-elaboradas, logo está
preenchida esta característica.
ii) Generalidade: destinam-se a fazer parte de uma série de contratos, ou seja, são elaboradas com a
intenção de servirem de modelo a vários contratos individuais, determinados ou determináveis.
iii) Rigidez: o aderente ou contra-parte do utilizador não tem qualquer possibilidade de modificar o
conteúdo do contrato, ou seja, a cláusula é apresentada na sua versão final.

2. Contratos de adesão: o Decreto-Lei 446/85 e a Directiva 93/12/CE

Todavia, é necessário fazer a distinção entre cláusula contratual geral e contrato de adesão: todos os
contratos que contêm cláusulas contratuais gerais são contratos de adesão, mas nem todos os contratos

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de adesão contêm cláusulas contratuais gerais. A noção de contrato de adesão é mais ampla. O n.º 2 do
art. 1.º do Decreto-Lei alarga o âmbito de aplicação aos contratos de adesão, e resultou da transposição
da Directiva 93/13/CE em 1999, uma vez que se tinha feito uma transposição incorrecta da directiva na
elaboração original. Esta Directiva tinha um âmbito mais abrangente que o diploma legislativo, já que
este se aplicava apenas às cláusulas contratuais gerais e aquela aos contratos de adesão. Para haver um
contrato de adesão, as notas que têm de existir são as de pré-formulação e rigidez, independentemente de
o conjunto de cláusulas se destinar ou não a fazer parte de uma generalidade de contratos. A maioria dos
contratos de adesão contém cláusulas contratuais gerais, mas pode acontecer que os contratos de adesão
se destinem a regular apenas um contrato na sua individualidade, o que tem igualmente o perigo de
apresentar um clausulado que a parte não pode modificar e que pode não ter devidamente em conta os
interesses da contra-parte.

3. Controlo da inclusão das cláusulas nos contratos singulares

3.1 Plano da inclusão

O contrato de adesão, pelo facto de ter características específicas, não deixa de ser um verdadeiro
contrato, logo é necessário que exista uma proposta e uma aceitação. Mas só se aceita conscientemente
uma coisa que se conheça e em relação à qual haja informação, daí o legislador ter imposto um conjunto
de regras ao nível da informação e comunicação para que as cláusulas se considerem incluídas, em nome
da transparência e publicidade (art. 4.º).

1) Dever de comunicação, art. 5.º: a inclusão das cláusulas no contrato individual não pode ocorrer sem o
consentimento são e consciente do aderente, daí a lei impor regras quanto à sua comunicação.
i) Desde logo, a comunicação tem de ser integral.
ii) Mas deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária, de forma a que, tendo
em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne
razoavelmente possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum
diligência – art. 5.º/2. Não se desresponsabiliza completamente o aderente, este tem de ser
diligente; caso contrário, a responsabilidade é dele. Se, apesar da comunicação, o conhecimento
não ocorreu porque o aderente se comportou de forma pouco diligente, isto é responsabilidade
sua e não do utilizador, isto é, se for provado pelo utilizador o exacto cumprimento do dever
(art. 5.º/3), o consentimento dado pelo aderente será válido, de nada adiantando este alegar que
não teve o conhecimento efectivo.

2) Dever de informação, art. 6.º: o dever de comunicação diz apenas respeito ao facto de levar o teor da

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cláusula ao conhecimento do aderente; aqui, trata-se de fornecer informações acerca do conteúdo, de


modo a que o aderente perceba as cláusulas e as suas implicações. Distinguimos dois deveres de
informação:
i) Dever de informação: é um dever activo, que determina que, por iniciativa própria, o utilizador
tem de informar o aderente acerca dos aspectos cuja clarificação se justifique, de acordo com as
circunstâncias objectivas e subjectivas do contrato concreto. Este dever não é um dever geral de
informação que exista em todos os contratos, porém o desnível entre as partes que existe nos
contratos de adesão leva a que se tenha de esclarecer a contra-parte de certas questões que
possam não ser facilmente perceptíveis.
ii) Dever de esclarecimento: é um dever reactivo, de resposta às dúvidas, questões ou interrogações
do aderente, prestando os esclarecimentos, explicitações ou aclarações razoáveis que são
solicitados ao aderente.

Este processo de comunicação, informação e esclarecimento das cláusulas contratuais visam


salvaguardar a possibilidade de um consentimento do aderente com conhecimento de causa, num clima
de total transparência da formação do contrato concreto conforme o princípio da boa fé – art. 227.º do
Código Civil. Quando as cláusulas não sejam devidamente comunicadas, ou haja o incumprimento do
dever de informação e esclarecimento, consideram-se não escritas e excluídas do contrato – art. 8.º/a) e
b).

3) Proibição de cláusulas-surpresa, art. 9.º/2/a): as cláusulas-surpresa são aquelas cláusulas que, por causa
do seu aspecto gráfico, sendo redigidas dissimuladamente, ou pela sua epígrafe, sendo colocadas fora do
seu contexto sistemático ou racional, acabem por passar despercebidas a um aderente normal, colocado
na posição do aderente real. A lei procura potenciar a compreensibilidade das condições negociais
gerais, logo em face do próprio texto, que se quer conciso e não prolixo, tendo em vista a possibilidade
do seu conhecimento efectivo e completo (art. 5.º/2). Como o aderente não pode tomar conhecimento
efectivo e completo de uma cláusula redigida nestes termos, consideram-se como não escritas e excluídas
do contrato – art. 8.º/c).

A lei presume ainda que todas as cláusulas inseridas em formulários depois da assinatura de algum dos
contratantes não são cláusulas atempadamente cognoscíveis e compreensíveis em termos da sua válida
aceitação e inserção no conteúdo – art. 9.º. Acresce a isto que as cláusulas especificamente acordadas
prevalecem sobre as cláusulas inseridas em formulários, mesmo que constantes de formulários assinados
pelas partes – art. 7.º.

Consequência: exclusão de cláusulas e subsistência do contrato singular

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Já vimos que o efeito da adesão a cláusulas que o aderente, usando de comum diligência, não teve
oportunidade de conhecer de modo completo e efectivo antes da celebração do contrato é o de
considerá-las excluídas do contrato individual – art. 8.º.

O que acontece então ao contrato? O art. 9.º do Decreto-Lei 446/85 diz que, apesar de as cláusulas se
considerarem não incluídas, o negócio mantém-se – isto origina lacunas de regulamentação, que têm de
ser preenchidas – art. 9.º/1.
i) Em primeiro lugar, aplicar-se-ão as normas legais supletivas.
ii) Se não existir direito supletivo, recorre-se às regras de integração do negócio jurídico, seguindo
o critério da vontade hipotético-conjectural das partes salvo se esta for contrária à boa fé, caso
em que esta prevalece (art. 239.º).

Se, apesar do recurso às normas supletivas, vontade hipotética das partes e boa fé, ainda assim não for
possível determinar aspectos essenciais do contrato, o contrato será nulo (art. 280.º). Esta solução está
consagrado no art. 9.º/2 do Decreto-Lei, que consagra igualmente a solução da nulidade se, após a
integração das lacunas, houver uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais e um desequilíbrio
de prestações. Esta hipótese não é muito plausível, uma vez que, em última instância, o contrato é
integrado de acordo com os ditames da boa fé.

3.2 Plano da interpretação

O art. 10.º, primeira parte, estabelece que as cláusulas contratuais gerais devem ser interpretadas segundo
as regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos, o que remete para o art. 236.º do Código Civil
(teoria da impressão do destinatário).

A segunda parte deste artigo tem, todavia, um alcance decisivo. Quando se discutiu a interpretação das
cláusulas contratuais gerais, colocou-se uma dúvida: será que o sentido a dar a uma cláusula deve ser
geral, válido para todos os contratos que tenham aquela cláusula, ou deve ser individualizado, podendo-
se dar um sentido diferente em função das circunstâncias? Esta é uma opção entre uma interpretação
generalizante ou individual. A doutrina, sobretudo a alemã, discutiu muito esta questão; mas o legislador
português optou pela interpretação individual – vale o sentido normal apurado no contexto do contrato
singular em apreço. Isto é, a mesma cláusula pode ter um sentido diferente em função das próprias
expectativas do aderente, apesar de o fenómeno das cláusulas contratuais gerais ser um fenómeno
generalizante.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Podemos, então, perguntar-nos o que é diferente na interpretação dos contratos de adesão. A diferença
está no art. 11.º/2, que estabelece o princípio da interpretação mais favorável ao aderente. Quando,
eventualmente, através do recurso às regras interpretativas se mantenha alguma ambiguidade, ou seja,
quando for possível dar ao comportamento declarativo sentidos diversos, o sentido que se deve optar é
por aquele que for mais favorável ao aderente - in dubio pro aderente. Este princípio tem uma justificação:
- Em termos de justiça distributiva, quem retira vantagens da utilização de dados meios e com
isso cria determinados riscos, deve suportar os riscos decorrentes dessa forma de contratação.
É mais justo ser o utilizador a suportar os riscos da ambiguidade do que o aderente, que em
nada contribuiu para o conteúdo das cláusulas.
- Mas não é só uma questão de justiça: também se pretende evitar determinados
comportamentos, como a chamada ambiguidade intencional: muitas vezes, o utilizador
formulava as cláusulas de modo genérico, por forma a poder realizar os seus objectivos.

3.3 Controlo do conteúdo

Até agora, o controlo imposto pela lei foi um controlo meramente formal. Porém, na prática, as mais das
vezes a adesão formal não assenta numa análise cuidada do conteúdo material das cláusulas ou
condições negociais, daí a lei vir impor igualmente restrições ao nível do conteúdo.

1) No art. 15.º, vem desde logo prevista um cláusula geral de controlo: são proibidas (e, logo, nulas – art.
12.º) todas as cláusulas atentadoras da boa fé (em sentido objectivo). Na aplicação da boa fé como
critério e princípio geral de controlo do conteúdo, o art. 16.º manda ponderar os “valores fundamentais
do direito”, relevantes em face da situação considerada, em especial a confiança suscitada nas partes e o
objectivo que as partes visam atingir negocialmente. Um destes valores fundamentais é precisamente a
justiça contratual – é em nome da justiça contratual que se coloca este princípio da boa fé, a fim de evitar
que, tendo em conta o fim contratual e a legítima confiança das partes, as cláusulas sejam abusivas, dando
origem a um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes.

2) A cláusula geral de controlo da boa fé é classificada como uma espécie de "última rede", uma vez que,
para além dela, encontramos listas de cláusulas proibidas – arts. 18.º, 19.º, 21.º e 22.º. Estas listas são
concretização da cláusula geral, na medida em que são cláusulas violadoras da boa fé; e são concretizações
meramente exemplificativas. Como tal, podemos ter cláusulas contratuais gerais que, ainda que não
estejam na lista de cláusulas proibidas, podemos considerá-las nulas por violarem a cláusula geral do
15.º, que funciona nestes termos como um último crivo, uma “rede de justiça última”.

Quanto às listas de cláusulas proibidas, podemos fazer as seguintes distinções:

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i) Cláusulas que se aplicam às relações profissionais e que se aplicam aos consumidores finais: o
utilizador pode celebrar um contrato com outro profissional, actuando no âmbito da sua
actividade profissional; ou com um consumidor. A Directiva europeia 13/93/CE aplica-se
apenas a este último caso; no entanto o Decreto-Lei tem um âmbito de aplicação mais alargado,
aplicando-se também aos contratos profissionais. Ainda assim, teve-se a preocupação de se
encontrar uma protecção mais forte para o consumidor, que está menos apetrechado em termos
técnicos que um profissional. É partindo desta ideia que temos de analisar as listas das cláusulas:
o sentido é o de que as duas primeiras listas, 18.º e 19.º, são de aplicação geral, sejam celebrados
com um profissional, sejam com um consumidor; enquanto que as listas do art. 21.º e 22.º se
aplicam aos consumidores, constituindo a tal protecção suplementar.
ii) Cláusulas relativamente proibidas e absolutamente proibidas: esta distinção tem a ver como o
modo como as proibições funcionam. Nas cláusulas absolutamente proibidas, a proibição
funciona de modo absoluto, ou seja, o desvalor das cláusulas é pressuposto à partida sem dar
qualquer possibilidade de concretização no caso concreto, não há qualquer margem de
apreciação do aplicador de direito. Já nas cláusulas relativamente proibidas, o legislador recorre
a vários conceitos indeterminados (exemplo: “prazos excessivos”), decorrendo daqui uma
possibilidade de valoração judicial, ou seja, a sua proibição depende da economia contratual de
cada contrato. No entanto, é o cliente-padrão ou cliente-tipo e não o cliente concreto de cada
contrato que o legislador impõe ao tribunal como paradigma de valoração objectiva e abstracta
das cláusulas em apreço. CALVÃO DA SILVA faz antes uma distinção entre as listas negras, que são
as cláusulas absolutamente proibidas; e as listas cinzentas, que correspondem cláusulas às
relativamente proibidas.
a. Cláusulas absolutamente proibidas, art. 18.º (aplicação geral):
- As primeiras quatro alíneas dizem respeito à exclusão ou limitação da
responsabilidade civil, extracontratual e contratual.
- As restantes alíneas visam evitar a derrogação do direito comum pelo utilizador
em detrimento do aderente.
b. Cláusulas absolutamente proibidas, art. 21.º (aplicação a consumidores):
- As alíneas a) a d) visam proteger a confiança do aderente na entrega do bem
pretendido. Destaca-se a alínea d), que proíbe cláusulas que excluam os deveres
que recaem sobre o utilizador em resultado de vícios da prestação, ou
estabeleçam, nesse âmbito, reparações ou indemnizações pecuniárias
predeterminadas, visando salvaguardar ao consumidor os direitos primários à
reparação ou substituição da coisa e à redução do preço ou resolução do
contrato (direitos irrenunciáveis).
- As alíneas e) e h) visam evitar a derrogação do regime comum em prejuízo do

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consumidor.
c. Cláusulas relativamente proibidas, art. 19.º (aplicação geral):
- As alíneas a) e b) proíbem cláusulas que estabeleçam “prazos excessivos” para a
aceitação ou rejeição de propostas, e para o cumprimento, sem mora, das
obrigações.
- A alínea c) proíbe cláusulas que consagrem cláusulas penais
“desproporcionadas” aos danos a ressarcir (afastando-se do regime comum, que
só permite a redução equitativa da cláusula penal manifestamente excessiva, art
812.º CC). A cláusula penal define o montante indemnizatório que uma parte
terá de pagar à outra no caso de incumprimento do contrato.
d. Cláusulas relativamente proibidas, art. 22.º (aplicação aos consumidores): perpassa
nestas cláusulas o propósito de assegurar que o consumidor possa efectivamente receber
o bem ou serviço contratado, não tendo de cingir-se à indemnização, em aplicação do
princípio geral e natural do cumprimento.

4. Redução do contrato parcialmente nulo

A consequência para a inclusão de uma cláusula com conteúdo proibido é a sua nulidade da cláusula,
art. 12.º. Todavia, o contrato permanece? A lei permite que o contrato permaneça ou não, mas com uma
novidade aqui: o aderente pode optar pela manutenção do contrato, apesar da nulidade de algumas das
cláusulas – art. 13.º. Note-se que a opção do aderente é entre a subsistência do contrato integrado nos
termos do art. 239.º do Código Civil e o regime geral da redução do negócio jurídico, previsto no art.
292.º; isto é, o aderente não tem a liberdade de escolha entre a manutenção ou não do contrato, pois se a
faculdade do art. 13.º não for exercida vigora o regime da redução dos negócios jurídicos – art. 14.º.

Muitas vezes, as cláusulas são formuladas de modo genérico de forma a terem um conteúdo que só
parcialmente é inválido. No direito comum, o princípio é o da conservação do negócio jurídico, ou seja,
sempre que a nulidade seja parcial, devemos optar pela redução, no sentido de retirar a parte inválida.
Não devemos fazer também este raciocínio para cada uma das cláusulas parcialmente inválidas,
considerando inválida apenas a parte do conteúdo que viole a lei? Por exemplo: se uma cláusula limitar
ou excluir a responsabilidade contratual em termos genéricos, e face à proibição (art. 18.º/c)) de exclusão
ou limitação da responsabilidade em caso de dolo ou culpa grave, poderíamos pensar em manter a
cláusula apenas na parte em que exclua ou limite a responsabilidade no caso de negligência. No entanto,
a doutrina tem entendido que não se deve proceder à redução de cláusulas parcialmente inválidas: uma
coisa é a redução do contrato, art. 14.º, outra é a redução das cláusulas. Se fosse possível a redução das
cláusulas, estaríamos a premiar o infractor.

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5. Acção inibitória

A nulidade das cláusulas abusivas é invocável nos termos gerais (art. 24.º), ou seja, nos termos do art.
285.º e segs. do Código Civil – é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada
oficiosamente pelo tribunal. Todavia, para além deste controlo repressivo, as cláusulas proibidas pelos
arts. 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º e 22.º podem ser proibida por decisão judicial, independentemente da sua
inclusão efectiva em contratos singulares – art. 25.º. A legislação portuguesa cumpre assim o dever
imposto pela Directiva: “os Estados-membros providenciarão ... meios adequados e eficazes para pôr
termo à utilização das cláusulas abusivas” (art. 7.º/1).

Este controlo preventivo e abstracto é realizado, entre nós, através da chamada acção inibitória, um
complemento indispensável da prevenção legislativa sempre que a proibição legal não é respeitada, pela
utilização ou recomendação dessas cláusulas contratuais gerais abusivas. A acção inibitória tem natureza
abstracta no sentido de que não depende da inclusão das cláusulas apreciadas num caso em concreto,
podendo não só ser deduzida a posteriori, quando as cláusulas abusivas estejam já inseridas em contratos
singulares, mas também a priori, quando utilização de cláusulas proibidas é ainda só recomendada por
profissionais ou respectivas associações. É uma acção normal de condenação numa obrigação de non
facere, com vista à abstenção do uso ou recomendação de cláusulas proibidas. A fiscalização nesta acção
é sempre do conteúdo das cláusulas, uma vez que o seu objectivo é erradicar do comércio jurídico
cláusulas contrárias à lei.

Legitimidade processual

Quem pode propor esta acção?


i) Têm legitimidade activa as entidades do art. 26.º – legitimidade colectiva.
ii) Todavia, a Lei 24/96 (Lei de Defesa do Consumidor) veio também atribuir a possibilidade aos
consumidores lesados de intentarem esta acção – arts. 13.º e 21.º. Está aqui em causa a figura da
substituição processual – os legitimados agem em nome próprio, logo não se trata de
representação, mas para a defesa de interesses de outrem.

Outras notas processuais:


i) Contra quem deve ser proposta esta acção? Contra todas as entidades que utilizem ou
recomendem as cláusulas gerais ou eventualmente cláusulas semelhantes, ou seja, pode-se
demandar os simples recomendantes – art. 26.º.
ii) É competente o tribunal de comarca no lugar em que o utilizador tenha a sua sede ou centro de

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actividade – art. 27.º/1. Se o autor quisesse propor acções contra várias entidades, poderia ser
forçado a intentar acção nos vários tribunais das suas sedes – isto não só desincentivaria o
recurso a estas acções, como poderia gerar decisões contraditórias; pelo que a lei veio evitar este
problema permitindo uma coligação de réus ainda que esta viole as regras de competência
territorial. A entidade pode demandar a acção contra várias entidades que predisponham e
utilizem ou recomendem as mesmas cláusulas, ou cláusulas substancialmente idênticas, num
único lugar – art. 27.º/2.
iii) Encontramos na lei outros indícios de que o legislador pretendeu facilitar o recurso a esta acção,
art. 29.º: a forma de processo é a sumária; são acções isentas de custas judiciais; o valor é sempre
1 cêntimo a mais do que a alçada da Relação, permitindo recurso até ao Supremo.

Conteúdo e eficácia da sentença inibitória

A decisão que proíba as cláusulas contratuais gerais deve especificar o âmbito de proibição,
designadamente pela referência concreta do seu teor e a indicação do tipo de contratos a que a proibição
se reporta (art. 30.º/1). O legislador mantém assim a regra da eficácia relativa do caso julgado, o que
significa que a sentença produz apenas efeitos perante o demandado (daí a importância da coligação
prevista no art. 27.º/2). Outros predisponentes de cláusulas iguais ou semelhantes não demandados são
terceiros perante os quais o caso julgado não produz efeitos.

Todavia, ainda que isto seja verdade, a doutrina tem alertado para o facto de se permitir aqui uma eficácia
ultra partes, ainda que limitada – art. 32.º/2. Se houve uma acção e o tribunal condenou certas entidades
na proibição de utilização destas cláusulas, a decisão é apenas oponível aos demandados; apesar disso, se
as entidades continuarem a utilizar as cláusulas, um contraente que venha a ser afectado pode fazer apelo
à decisão embora não tenha participado no processo. O contraente do demandado que seja prejudicado
pode fazer apelo à decisão judicial a todo o tempo e em seu benefício, nas acções individuais que venha a
deduzir, mediante pedido da declaração incidental de nulidade contida na decisão inibitória – neste
sentido, há aqui uma eficácia para fora dos próprios intervenientes no processo, embora com carácter
limitado.

Isto não valerá no caso da acção colectiva, já que, uma vez proposta acção inibitória por uma associação
de defesa dos consumidores, pelo Ministério Público ou pelo Instituto do Consumidor, não podem as
demais entidades com legitimidade activa intentar as suas acção: a acção preventiva é una, com a eficácia
do caso julgado a estender-se a todos os colegitimados para a apreciação do mesmo pedido e causa de
pedir (o Ministério Público, o Instituto do Consumidor e uma associação de defesa do consumidor são
consideradas como a mesma parte activa, ou seja, há identidade se sujeito para efeito de repetição da

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

causa e excepção do caso julgado).

Sanção pecuniária compulsória

Tratando-se de uma obrigação de facto infungível (a obrigação de não utilização ou não recomendação é
uma obrigação de prestação de facto negativo, que é sempre infungível), a sentença pronunciada na
acção inibitória pode ser seguida de sanção pecuniária compulsória (art. 829.º-A CC). Esta sanção é um
meio indirecto de constrangimento decretado pelo juiz, a pedido do credor, para que o devedor cumpra
a obrigação e respeite a injunção judicial.

Com efeito, o art. 33.º prevê a possibilidade do tribunal fixar uma sanção pecuniária compulsória, mas
esta apenas pode ser pedida e decretada depois da violação da obrigação ocorrida pós-trânsito em julgado
da sentença. A ser assim, esta sanção não passaria de uma verdadeira multa, uma sanção repressiva,
quando o carácter preventivo da sanção determina que esta deva ser aplicada pelo tribunal logo na
própria sentença. No entanto, CALVÃO DA SILVA entende que o art. 33.º/2 se encontra revogado pelo art.
10.º/2 da Lei de Defesa do Consumidor, que estabelece que “a sentença proferida em acção inibitória
pode ser acompanhada de sanção pecuniária compulsória” (lei posterior derroga lei anterior).

Por último, saliente-se que as decisões tomadas na acção inibitória são decisões sujeitas a registo, art. 34.º.
Este preceito diz que devem as decisões ser enviadas no prazo de 30 dias para um serviço, que veio a ser
fixado pela Portaria 1093/95, de 6 de Setembro: Gabinete de Direito Europeu do Ministério da Justiça. O
registo destas decisões serve duas finalidades:
i) Pode de alguma forma servir de precedente judicial, pois os juízes tendem a consultar as
proibições já decretadas no julgamento dos casos.
ii) Tem um certo efeito preventivo no sentido da não utilização de cláusulas proibidas, pois a
publicidade do registo é uma publicidade negativa, que as empresas querem evitar.

Pode acontecer que entre a propositura da acção e a sentença sejam as cláusulas integradas em contratos
individuais, pelo que a lei dá a possibilidade de requerer uma providência cautelar, a inibição provisória
da utilização das cláusulas que estão a ser apreciadas (art. 31.º).

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Capítulo III: Contratos Mistos

1. Noção

Diz-se misto o contrato no qual se reúnem elementos de dois ou mais negócios, total ou parcialmente
regulados na lei. As partes, porque os seus interesses o impõem, celebram por vezes contratos com
prestações de natureza diversa ou com uma articulação de prestações diferente da prevista na lei, mas
encontrando-se ambas as prestações ou todas elas compreendidas em espécies típicas directamente
reguladas na lei. O art. 405.º/2 refere-se expressamente a esta possibilidade, querendo destacar a
importância desta categoria de contratos. É o caso típico do contrato da viagem em cruzeiro.

2. Junção, união e fusão de contratos

O contrato misto distingue-se, pela sua natureza, quer da simples junção, quer da união ou coligação de
contratos.
i) Junção de contratos: o vínculo que prende os contratos é puramente exterior ou acidental, como
quando são celebrados ao mesmo tempo ou constam do mesmo título. Como os contratos não
são só distintos, mas autónomos, aplica-se a cada um deles o regime que lhe compete. Exemplo:
A compra um relógio e manda consertar outro ao mesmo tempo.
ii) União ou coligação de contratos: aqui, o nexo que une os contratos não é puramente exterior ou
acidental, mas sim um vinco substancial, uma vez que se cria uma relação de interdependência
entre eles. Esta relação pode revestir as mais variadas formas: um dos contratos pode funcionar
como condição, contraprestação ou motivo do outro; pode um deles constituir a base negocial
do outro, etc. Porém, nem as cláusulas acessórias, nem o nexo de correspectividade ou de
motivação que prendem um dos contratos ao outro destroem a sua individualidade. Exemplo: A
encomenda refeições no restaurante de B, mas só as quer se B lhe puder reservar aposentos num
hotel próximo.

No contrato misto, pelo contrário, há a fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que,
além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do
conteúdo deste. Como distinguir entre a fusão e a união? Pode não ser fácil determinar se, perante um
contrato, estamos perante dois ou mais contratos substancialmente correlacionados entre si (união), ou
se há, pelo contrário, um só contrato atípico, de diversas prestações (fusão). Esta questão pode ter relevo
prático, nomeadamente na aplicação do art. 292.º (redução) e do art. 232.º (que só considera o contrato
incluído quando houver acordo das partes sobre todas as cláusulas que o integram.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

i) Este é um problema de interpretação de cada contrato em concreto, determinando a vontade das


partes e o grau de interdependência dos vários elementos contratuais que o integram. Para que
as diversas prestações a cargo de uma das partes façam parte de um só e o mesmo contrato, e não
de dois ou mais contratos, é necessário que elas integrem um processo unitário e autónomo de
composição de interesses.
ii) Todavia, podemos encontrar alguns critérios orientadores:
a. Critério da unidade ou pluralidade da contraprestação – se às diversas prestações a cargo
de uma das partes corresponder uma prestação única, será de presumir, até prova em
contrário, que elas quiseram realizar um só contrato, possivelmente de carácter misto.
b. Critério da unidade ou pluralidade do esquema económico subjacente à contratação: se
houver um esquema ou acerto económico unitário, de tal modo que a parte obrigada a
realizar várias prestações as não queira negociar separada ou isoladamente, mas apenas
em conjunto (é o caso típico da viagem em cruzeiro), será de presumir que estamos
perante um contrato misto.

3. Modalidades do contrato misto

A doutrina alemã elaborou uma sistematização dos contratos mistos em três modalidades:
i) Contratos combinados: são contratos em que a prestação global de uma da partes se compõe de
duas ou mais prestações integradoras de contratos típicos diferentes, enquanto que a outra se
vincula a uma contraprestação unitária. Exemplo: contrato realizado entre o campista e a
entidade titular do parque de campismo.
ii) Contratos de tipo duplo: uma das partes obriga-se a uma prestação de certo tipo contratual, mas a
contraprestação do outro contraente pertence a um tipo contratual diferente. Exemplo: A cede a
B uma casa para habitação em troca da prestação de serviços, que integra o contrato de trabalho.
iii) Contratos mistos em sentido estrito: um contrato serve de meio ou instrumento de realização de
um outro. É o caso da doação mista, em que o contrato que serve de instrumento é o contrato de
compra e venda. A doação mista é o contrato em que, segundo a vontade dos contraentes, a
prestação de um deles (em regra, a transmissão de coisa) só em parte é coberta pelo valor da
contraprestação, para que a diferença de valor entre ambas beneficie gratuitamente o outro
contraente.

4. Regime

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

A fixação do regime dos contratos mistos tem dado lugar a muitas hesitações na jurisprudência e a largas
divergências na doutrina. São três as teorias desenvolvidas pelos autores quanto ao regime dos contratos
mistos:
i) Teoria da absorção: é necessário saber qual é, entre as diversas prestações reunidas no contrato
misto, aquela que prepondera dentro da economia do negócio, pois este tipo contratual
dominante absorveria os restantes elementos na qualificação e na disciplina do negócio. O
regime do contrato equivale ao regime da prestação principal, com as devidas adaptações.
ii) Teoria da combinação: outros autores, com o fundamento de quem nem sempre é possível
determinar o elemento principal do contrato e de que não se justifica a extensão indiscriminada
do seu regime a todo o contrato, tentam harmonizar as normas aplicáveis a cada um dos
elementos típicos que integram o contrato. Procura-se, assim, respeitar ao máximo o regime de
cada um dos elementos do contrato, uma vez que este deve não só valer para os contratos
típicos, mas também para as espécies em que cada um destes elementos se instala.
iii) Teoria da aplicação analógica: finalmente, outros autores, considerando os contratos mistos
como espécies omissas na lei, apelam ao poder de integração de lacunas do juiz. É este que deve
fixar o regime do contrato, nomeadamente com recurso à disciplina dos contratos análogos.

Entre nós, existe uma disposição legal que regula expressamente este problema, mas fá-lo apenas para a
locação com vários fins – art. 1028.º. No entanto, se o legislador consagrou um determinado regime para
este caso, é porque o considera o melhor, pelo que podemos ver nesta norma um afloramento de um
princípio e aplicá-la aos restantes contratos mistos.
i) Sempre que o contrato misto se traduza numa simples justaposição ou contraposição de
elementos distintos (como sucede nos contratos combinados e nos contratos de tipo duplo),
deve aplicar-se a cada um dos elementos integrantes da espécie a disciplina que lhe corresponde
dentro do respectivo contrato típico. É este o critério geral enunciado no art. 1028.º/1 para a
locação com vários fins, e significa uma consagração da teoria da combinação.
ii) No entanto, pode suceder que exista entre os diversos elementos contratuais uma relação, não
de justaposição ou contraposição, mas de subordinação. Aí, o que as partes quiseram
fundamentalmente celebrar foi um determinado contrato típico, ao qual juntaram, como
cláusula puramente acessória ou secundária, elementos de outra espécie contratual. Nestes
casos, o regime dos elementos acessórios só será de observar na medida em que não colida com o
regime da parte principal do contrato. É o disposto no n.º 3 do art. 1028.º, que constitui um
afloramento da teoria da absorção.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Capítulo IV: Reserva de Propriedade

1. Contratos com eficácia real

O art. 408.º diz-nos que a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se
por mero efeito do contrato, ou seja, a propriedade transfere-se imediatamente por mero acordo das
partes, sem necessidade da traditio. A este princípio dá-se o nome de princípio da consensualidade, que
vigora entre nós por influência do Código de Napoleão. Aos contratos que operam imediatamente a
transferência da propriedade a doutrina dá o nome de contratos com eficácia real; todavia, subsistem
excepções – os contratos reais quanto à constituição, que exigem, para além das declarações de vontade
das partes, a prática de um acto material (ex: mútuo, comodato e depósito).

Já não sucede assim, por exemplo, no sistema germânico, no qual o contrato de alienação, não
dispensando um acto posterior de transferência da propriedade, torna o adquirente um simples credor
da transferência da coisa. Esta diferença entre os dois sistemas reflecte-se ainda em dois aspectos:
i) No sistema de translação imediata, o risco do perecimento da coisa passa a correr por conta do
adquirente, antes mesmo de o alienante efectuar a entrega (arts. 408.º/1 e 796.º/2), ao invés do
que sucede no sistema germânico.
ii) A nulidade ou anulação do contrato de alienação tem como consequência, no nosso regime, a
restauração do domínio na titularidade do alienante; ao contrário do que sucede nos actos de
transmissão do direito germânico, no qual a validade do acto de transmissão não depende da
validade do contrato obrigacional.

2. Reserva de propriedade: noção

A reserva de propriedade está prevista no art. 409.º e consiste na possibilidade, conferida ao alienante de
coisa determinada, de manter na sua titularidade o domínio da coisa até ao cumprimento, total ou parcial,
das obrigações que recaiam sobre a outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. É uma figura
que faz sentido no nosso sistema jurídico, de translação imediata da propriedade, e convirá por
excelência às vendas a prestações (art. 934.º) e às vendas com espera de preço. Esta é, no fundo, uma
cláusula suspensiva, que suspende a transmissão da propriedade até ao pagamento do preço ou à
verificação de outro evento futuro.

Para que esta cláusula tenha efeitos perante terceiros, e tratando-se de coisas imóveis ou coisas móveis
sujeitas a registo, é necessário o registo da cláusula de reserva de propriedade, art. 409.º/2 e art. 2.º/1/u) do
Cód. Reg. Predial. Tendo a alienação por objecto coisas móveis não sujeitas a registo, a reserva vale,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

mesmo em relação a terceiros, por simples convenção das partes. Nestas situações, não há, entre nós,
tutela quer dos credores do adquirente, quer dos próprios subadquirentes (ao contrário do que sucede
no direito francês, no qual a posse vale como título de propriedade, ou seja, os terceiros podem confiar
nos gestos efectivos de posse) – os terceiros podem supor, na ignorância da cláusula, que a coisa alienada
que se encontra no poder do adquirente já lhe pertence. Isto explica-se, todavia, pelo intuito de facilitar a
concessão de crédito ao adquirente e ainda pela possibilidade que, em regra, não faltará a um contraente
prudente de conhecer a real situação das coisas.

3. Distinção da venda com cláusula resolutiva expressa (art. 886.º)

Diferente da reserva de propriedade é a cláusula resolutiva prevista no art. 886.º. Pelas regras gerais do
cumprimento das obrigações, se, uma vez transmitida a propriedade da coisa, o adquirente não pagar o
preço, o alienante pode apenas exigir o pagamento do preço; persistindo o incumprimento, há direito à
resolução do contrato por incumprimento grave, com o efeito retroactivo de restituição da coisa (art.
801.º/2). Quer isto dizer que não há direito à resolução do contrato pelo não pagamento do preço.

No entanto, o art. 886.º admite “convenção em contrário”, ou seja, há uma reserva do direito de resolução
de contrato, que é uma cláusula resolutiva expressa que não opera automaticamente, exigindo uma
declaração do titular do direito da resolução em como se vai exercer o mesmo. Nesta medida distingue-se
da reserva de propriedade, que opera automaticamente. Apesar de, na prática, visarem resultados
semelhantes, são figuras distintas.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Capítulo V: Contrato-Promessa

Bibliografia: CALVÃO DA S ILVA, Sinal e Contrato Promessa

1. Noção

O contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo negócio jurídico (art.
410.º/1: apesar de este preceito de referir apenas a "contrato", devemos estender a noção para abranger
também os negócios unilaterais). O contrato-promessa frequentemente prece um contrato, seja de
eficácia real, seja de eficácia meramente obrigacional, mas pode igualmente preceder um negócio
unilateral. Do contrato-promessa nasce uma obrigação de prestação de facto positivo, que consiste na
emissão de uma declaração negocial correspondente ao negócio prometido ou definitivo.

O contrato-promessa pode ser bilateral, se ambos os contraentes assumem a obrigação de contratar; ou


unilateral, se apenas um deles se vincula a celebrar o negócio definitivo.

Podem ainda admitir-se:


- Contrato-promessa do qual nasça a obrigação de contratar com terceiro (pactum de contraheno
com tertio): uma das partes não assume a obrigação de contratar, mas indica expressamente o
terceiro titular do direito à celebração do contrato definitivo directamente com a outra parte
(arts. 433.º e segs.). Exemplo: A assume perante B a obrigação de vender a C (promessa de
venda a favor de terceiro).
- Contrato-promessa para pessoa a nomear (arts. 452.º e segs.), quer relativamente à própria
promessa, quer com referência à obrigação de celebrar o contrato prometido ou definitivo.
› Na primeira hipótese, por exemplo, o promitente-comprador reserva o direito de
nomear um terceiro que adquira os direitos e assuma as obrigações provenientes desse
contrato. Se houver designação, a pessoa nomeada adquire esses direitos e assume essas
obrigações; não havendo, o contrato produz efeitos em relação ao promitente-
comprador que não se fez substituir (art. 455.º). Ocorre aqui uma cessão da posição
contratual, sendo que a celebração do contrato promessa com cláusula de reserva do
direito de nomeação de terceiro traduz um consentimento prévio da outra parte (art.
424.º).
› No segundo caso, verifica-se a inserção no contrato-promessa (sobretudo no de compra
e venda) de cláusula que prevê a conclusão do contrato definitivo por pessoa a nomear,
ou seja, o promitente-comprador reserva a nomeação de terceiro, que assumirá a
obrigação de comprar, ou reserva a nomeação de terceiro para o momento da conclusão

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

do contrato definitivo - caso da venda feita a terceiro.

2. Função preparatória e de segurança

O contrato-promessa é dos contratos celebrados com maior frequência, uma vez que serva múltiplos
interesses e exigências práticas dos operadores económicos. Tem uma dupla função - uma função
preparatória e uma função de segurança. Tem uma função preparatória pois através dele os contraentes
fixam o conteúdo do futuro contrato e obrigam-se a celebrá-lo, sem, contudo, procederem à sua imediata
conclusão. E tem uma função de garantia pois empresta certeza e segurança à celebração do contrato
definitivo, já que, na linha do princípio pacta sunt servanda, os contratos são para cumprir, havendo
regras e sanções para o incumprimento do contrato-promessa. Esta cisão em duas fases do procedimento de
formação do contrato - a fase preliminar e a fase definitiva - tem o seu campo privilegiado de utilização
no contrato de alienação de bens imóveis, principalmente na promessa de venda de andares a construir.

3. Eficácia real

Em princípio, e segundo a geral do princípio da relatividade (art. 406.º/2), o contrato-promessa goza


apenas de eficácia obrigacional, inter partes.

Todavia, a lei faculta às partes a possibilidade de atribuir eficácia real à promessa de transmissão ou
constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou bens móveis sujeitos a registo (art. 413.º). Tratando-
se este de um caso excepcional, a lei subordina a atribuição de eficácia real à verificação cumulativa de
três requisitos:
i) Declaração expressa: a declaração da atribuição da eficácia real não pode ser tácita mas antes
expressa, por meio directo de manifestação da vontade (art. 217.º).
ii) Forma: a promessa tem de ser solenizada.
a. Por escritura pública, se o contrato prometido exigir igual forma.
b. Por documento particular, em todos os negócios prometidos não sujeitos a forma (ex:
compra e venda de veículos automóveis) ou não sujeitos a escritura pública (caso dos
bens móveis sujeitos a registo, para cuja transmissão e oneração apenas é exigia a forma
escrita).
iii) Registo: a promessa deve ser inscrita no registo respectivo (para a promessa de bens imóveis, art.
2.º/1/f) do Registo Predial; para a promessa de bens móveis sujeitos a registo, art. 11.º/1/h) do
Código de Registo de Bens Móveis).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Verificados os três pressupostos, os direitos de crédito nascidos do contrato-promessa vêem a sua


eficácia ampliada perante terceiros, graças ao registo efectuado e correspondente publicidade (art. 5.º
Código de Registo Predial, com primado sobre todos os direitos (pessoais ou reais) relativos ao mesmo
objecto, não registados anteriormente. Assim, a aquisição feita por terceiro será ineficaz em relação ao
promissário, que pode exigir o cumprimento do seu direito à celebração do contrato prometido nos
termos do art. 830.º.

4. Figuras próximas

Desde logo, nem sempre é fácil, na prática, saber se estamos perante negociações, um contrato-promessa
ou um contrato definitivo. Esta tratar-se-á de uma questão da interpretação da vontade das partes. As
negociações ou tratativas são a actividade instrumental da conclusão de um contrato (podendo anteceder
também o contrato-promessa), na qual as partes devem agir segundo a regra da boa fé (art. 227.º). Mas
através destas negociações as partes não assumem a obrigação de celebrar o contrato. Nas negociações as
partes frequentemente redigem minutas ou punctações, que são documentos provisórios cujo conteúdo
integrará o futuro contrato se este vier a ser celebrado (o contrato apenas fica concluído quando houver
acordo sobre todas as cláusulas, art. 232º).

Ora, o contrato-promessa situa-se entre a fase pré-contratual e o contrato definitivo, e apenas podemos
dizer que há contrato-promessa quando as partes tenham querido obrigar-se à celebração do contrato
definitivo. Nem sempre é fácil distinguir o contrato-promessa unilateral de algumas figuras próximas:
i) Proposta irrevogável, art. 230.º: é uma declaração unilateral, cuja aceitação perfaz o contrato.
ii) Pacto de opção: é um contrato (distinguindo-se nestes termos da proposta irrevogável), tendente
à celebração de um contrato futuro, distinguindo-se do contrato de promessa uma vez que para
a conclusão do contrato definitivo é suficiente a manifestação da vontade do beneficiário, sem
necessidade de nova declaração da contraparte.
iii) Pacto de preferência, art. 414.º e segs.: é um contrato que faz nascer a obrigação de escolher
outrem como contraente, no caso do obrigado à preferência se decidir, livremente, a contratar.
Diferentemente do que sucede no contrato-promessa, não há uma obrigação de contratar.
iv) Venda a retro, art. 917.º e segs.: dá ao vendedor a faculdade de resolver o contrato por meio de
simples notificação judicial, sem necessidade de nova declaração do vendedor.

5. Princípio da correspondência

O art. 410.º/1 diz-nos que é aplicável ao contrato-promessa o regime do contrato prometido – princípio
da correspondência ou equivalência. Isto significa que se aplicam ao contrato-promessa, em princípio,

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

as regras gerais dos contratos e as normas específicas do contrato prometido. Note-se que o contrato-
promessa deve fixar todos os pontos sem os quais o contrato definitivo, se imediatamente concluído,
seria inválido por inteterminidade ou indeterminabilidade do objecto, apenas podendo ficar em branco
elementos susceptíveis de serem subsequentemente preenchidos por acordo das partes ou pelo tribunal
mediante recurso às regras da integração.

Todavia, o princípio da correspondência encontra duas excepções, quer quanto à substância, quer
quanto à forma do contrato-promessa.

1) Substância: constitui uma excepção ao princípio da correspondência as normas do contrato prometido


que, pela sua razão de ser, não devam considerar-se extensivas ao contrato-promessa (art. 410.º/1, in
fine). Para tal, é necessário analisar uma dada norma do contrato prometido e apurar a sua ratio.

A nível exemplificativo, são inaplicáveis à promessa de venda, por não transmitir a propriedade, as
seguintes normas:
i) Normas da compra e venda relativas à eficácia real translativa (art. 879.º/a)), e subsequente
distribuição do risco (art. 796.º) ou afastamento do direito de resolução do contrato por falta de
pagamento do preço (art. 886.º).
ii) Normas relativas à proibição de venda de coisa alheia (art. 892.º e 939.º). Como a promessa de
venda não tem eficácia real, é totalmente ineficaz perante o verdadeiro proprietário da coisa; e
nada impede o promitente de obter a coisa necessária a realização do negócio. O mesmo se diga
em relação à venda de coisa comum por um só dos comproprietários (arts. 1405.º e 1408.º), que
carece do consentimento dos restantes proprietários.
iii) Normas relativas à venda de imóveis feita por um dos cônjuges, em que se exige o consentimento
do outro (art. 1682.º-A). Esta regra não se aplica à promessa de venda de um imóvel por um dos
cônjuges, uma vez que nada impede que venha posteriormente a obter o consentimento
necessário do outro cônjuge. O mesmo se diga em relação à promessa de venda a filhos ou netos
feita sem o consentimento dos outros filhos ou netos, em que é inaplicável o art. 877.º.

Estes dois últimos exemplos referem-se à promessa de facto de terceiro, pela qual o promitente se vincula a
obter uma prestação de facto de terceiro – contrato válido à luz da liberdade contratual e uma vez que,
em última instância, a promessa de facto de terceiro se reconduz a uma verdadeira promessa de facto
próprio (a de conseguir a coisa ou o consentimento necessário). Esta doutrina encontra afloramento na
locação de coisa alheia (arts. 1032.º e 1034.º). Se o promitente não conseguir a prestação de facto de
terceiro, haverá incumprimento do contrato-promessa por impossibilidade subjectiva, culposa ou não

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

consoante o alcance da promessa. A existência ou não de responsabilidade indemnizatória depende do


grau de vinculação do promitente:
i) Se este tiver assumido uma obrigação de meios, obrigando-se apenas a fazer o que estivesse ao
seu alcance no sentido de adquirir a coisa alheia ou obter o consentimento necessário, e se
provar que procedeu às diligâncias adequadas, não haverá responsabilidade civil pelos danos
sobrevindos (arts. 798.º e 801.º).
ii) Se o promitente tiver assumido uma obrigação de resultados, assegurando ao promissário a
celebração do contrato prometido, haverá lugar à responsabilidade civil (mas não à execução
específica, uma vez que o contrato não vincula o terceiro).

2) Forma: outra excepção ao princípio da correspondência está no regime especial da forma do contrato-
promessa, como iremos ver.

6. A excepção da forma

6.1 Análise do art. 410.º/2

Validade do contrato-promessa unilateral ou bilateral constante de documento assinado pelo promitente


ou promitentes

A regra do contrato-promessa é a da consensualidade ou liberdade da forma (art. 219.º). No entanto, o


art. 410.º/2 vem estabelecer certas excepções ao princípio da equiparação, ou seja, casos em que a forma
exigida para o contrato-promessa não equivale à forma exigida para o contrato prometido: “a promessa
respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só
vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-
promessa seja unilateral ou bilateral”. Isto significa que:
i) Se o contrato prometido for um contrato consensual, para o qual a lei não exija qualquer forma,
também o contrato-promessa será um contrato consensual.
ii) Se o contrato prometido for um contrato formal, o contrato-promessa tem de constar de
documento particular assinado pelo promitente ou promitentes, consoante seja unilateral ou
bilateral. Assim, se a forma exigida para o contrato prometido for o documento particular, é esta
a forma do contrato-promessa. A excepção ao princípio da equiparação está nos casos em que a
lei exigir para o contrato prometido a forma mais solene – documento autêntico (escritura
pública ou documento particular autenticado) –, caso em que basta, no contrato-promessa, a
forma de documento particular.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

A fórmula original do art. 410.º/2 falava apenas de “documento assinado pelos promitentes”, porém já era
doutrina assente que, tratando-se de promessa unilateral, basta a assinatura da única parte que se vincula
a contratar, por só ela ser promitente e por não haver razão para exigir a assinatura do outro contraente,
que estava livre de celebrar ou não o contrato definitivo. O Decreto-Lei n.º 379/86 veio alterar o texto
deste artigo neste sentido, dispondo que se exige “documento assinado pela parte que se vincula ou por
ambas, consoante o contrato-promessa ser unilateral ou bilateral”.

Promessa unilateral com contraprestação: o preço da promessa ou preço de imobilização

Por vezes, no chamado contrato-promessa unilateral, em que só uma das partes de vincula à celebração
do contrato, também o promissário se constitui na obrigação de realizar uma prestação. Por exemplo, na
promessa unilateral de venda, em que só o promitente-vendedor se obriga a concluir o contrato
definitivo, o beneficiário da promessa assume a obrigação de efectuar uma prestação, em rega de carácter
pecuniário (em França é de 10% do preço total de venda), no caso de não exercer o seu direito creditório à
celebração do contrato. Se o promissário exercer o seu direito creditório, a soma entregue na conclusão do
contrato-promessa unilateral será imputada no preço da alienação; se não foi entregue, não terá de ser
paga.

CALVÃO DA SILVA prefere a terminologia “preço de imobilização” ou “preço da promessa”. Mais do


ressarcimento de um eventual prejuízo sofrido pelo promitente, a contrapartida pecuniária a pagar é o preço
ou compensação da vantagem por este proporcionada ao beneficiário da promessa. Ou seja, ao celebrar a
promessa unilateral de venda, o promissário adquire um direito de crédito à conclusão do contrato
definitivo, que passa a fazer parte integrante seu património, susceptível de constituir objecto de penhora
e de comércio jurídico. É este valor patrimonial que o promitente concede ao beneficiário, não
gratuitamente, mas a título oneroso, contra o pagamento da prestação. Apesar de não haver uma
sinalagmaticidade perfeita entre as duas prestações, mas antes uma sinalagmaticidade imperfeita e de
segundo grau (a obrigação de vender é a obrigação principal), podemos dizer que a obrigação de vender
não existiria sem a estipulação da contrapartida, daí ser preferível a expressão “preço da promessa”.

- Validade formal, se assinado apenas pela parte que promete contratar

Outra questão prende-se com a forma exigida para o contrato-promessa unilateral acompanhado de
indemnização de imobilização: necessita este, para ser válido, da assinatura de ambas as partes, ou basta
a assinatura daquela que se vincula a contratar? Para A NTUNES V ARELA, apesar de apenas uma das partes
se obrigar a contratar, a outra também se obriga ao pagamento de uma contraprestação pecuniária, sem a

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

qual a outra parte não quereria contratar. Assim, deverá ficar sujeito aos mesmos requisitos formais que o
contrato-promessa bilateral, sendo necessária a assinatura de ambas as partes.

Porém, CALVÃO DA SILVA rejeita esta doutrina: na promessa unilateral de venda de coisa imóvel
acompanhada da indemnização de imobilização, como o beneficiário não promete comprar e a forma é
imposta por causa da obrigação de adquirir, a redução a escrito da sua declaração de vontade não é
necessária. Os perigos, os riscos, a irreflexão que a lei quer precaver com ao imposição de forma referem-
se exclusivamente ao promitente-vendedor. Daqui retiram-se duas conclusões:
i) A promessa unilateral com contraprestação constante de escrito assinado apenas pela parte que
promete contratar é válida.
ii) Admite-se a prova testemunhal como meio probatório da estipulação verbal de preço de
imobilização, uma vez que esta não tem de ser reduzida a escrito – art. 393.º/1. Uma vez que a
cláusula de indemnização de imobilização não é compreendida pela razão de ser da redução a
escrito, as dificuldades probatórias resultantes da conjugação do art. 221.º com o art. 394.º não se
colocam – ao contrário do que sucede no contrato-promessa bilateral com cláusula verbal de
sinal.

Contrato-promessa bilateral assinado por uma das partes: a redução do negócio jurídico (art. 292.º)

A promessa bilateral deve ser exarada em documento assinado por ambas as partes, nos casos abrangidos
pelo art. 410.º/2. Porém, não raras vezes apenas uma das partes assina, normalmente o promitente-
vendedor. Qual o valor do contrato nesta hipótese? Faltando um requisito de forma, a consequência é a
nulidade por vício de forma (art. 220.º).

Todavia, a doutrina e jurisprudência não são unânimes quanto a saber se o caso é de nulidade parcial ou
total – CALVÃO DA SILVA entende que o caso deve ser resolvido em sede do art. 292.º, logo estamos
perante uma nulidade parcial. Não é de excluir a priori, automática e sistematicamente, a possibilidade
do contrato querido como bilateral valer como promessa unilateral do promitente que assina (à validade
deste basta a assinatura da parte que se vincula), pois a não obediência à forma atinge só a declaração
negocial do outro contraente. Significa isto que, em abstracto, o contrato-promessa bilateral assinado
apenas por um dos promitentes é objectivamente divisível em partes. Este é um argumento contra a tese da
nulidade total (que defende a conversão do negócio jurídico), mostrando como o problema que se
coloca é o da redução, que pressupõe precisamente a divisibilidade do negócio jurídico.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

No entanto, é ainda necessário perguntar pela divisibilidade subjectiva do contrato-promessa bilateral


assinado por apenas um dos contraentes: as partes celebrariam o contrato independentemente da
vinculação da outra? A resposta a este problema tem de ter em conta dois factores:
i) A natureza preliminar e preparatória do contrato-promessa – é necessário ligar a reciprocidade
instrumental das prestações os promitentes à sinalagmaticidade final do contrato definitivo, uma
vez que o contrato final pode ser validamente celebrado apesar da nulidade parcial do contrato-
promessa. Isto sem qualquer prejuízo para o interesse final do promitente vinculado, que pode
obter a fixação judicial do prazo para o promissário exercer o seu direito creditório, sob pena de
caducidade.
ii) Os critérios legais dos arts. 292.º e 239.º. Nos termos do art. 292.º, a nulidade parcial não
determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido
celebrado sem a parte viciada. Ou seja, o art. 292.º contém uma presunção de divisibilidade
subjectiva do negócio, invertendo o ónus da prova (art. 350.º/1): a parte que pretende a nulidade
de todo o negócio é que tem de alegar e mostrar que este não teria sido concluído sem a parte
viciada.

Assim, na hipótese de o promitente-vendedor querer invalidar todo o contrato-promessa, por o


promitente-comprador não o ter assinado (é este o caso sistematicamente submetido à apreciação dos
tribunais), tem de alegar e mostrar que o não teria concluído sem que o outro contraente tivesse
assumido a obrigação de comprar. Se não o fizer, o contrato será válido como promessa unilateral de
venda, com o beneficiário a ter o direito creditório à celebração do contrato prometido ou ao dobro do
sinal no caso de não cumprimento definitivo da obrigação de vender. Rejeita-se, deste modo, a posição
do Supremo Tribunal de Justiça, expressa no Acórdão de 7 de Fevereiro de 1985:
i) O Tribunal veio consagrar a tese da validade parcial, invertendo assim a sua jurisprudência (a
tese seguida desde o Acórdão de 26 de Abril de 1977 era a da nulidade necessária e automática).
ii) Porém, a nulidade do contrato apenas daria lugar à redução se a parte interessada na
manutenção do contrato provar que o teria concluído mesmo sem a parte nula. O Tribunal
afastou assim a presunção de divisibilidade consagrada no Código Civil, aproximando-se da
solução da lei alemã, que consagra uma presunção de divisibilidade. CALVÃO DA SILVA critica
esta solução, uma vez que está a violar a solução de princípio do art. 292.º: a partir do momento
em que se permite a redução do negócio, não há fundamento válido para não aplicar as regras
do Código Civil.
iii) De resto, a solução do sistema jurídico português é mais simples e mais lógica do que a do
Código alemão, posto que obriga o contraente interessado na nulidade total a fazer valer os seus
próprios interesses, provando que sem a parte inválida não teria celebrado o contrato. Para além

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disto, a solução portuguesa serve o princípio da conservação do negócio jurídico, ou seja, a


exigência de estabilidade e segurança contratual requerida pelo complexo comércio jurídico.

Porém, mais das vezes o promitente-vendedor não tem interesses legítimos em arguir a nulidade total, ou
seja, a invocação da nulidade total pode não passar de um pretexto para se subtrair às consequências do
incumprimento da promessa, bem mais gravosas do que as da nulidade: enquanto que esta tem eficácia
retroactiva, determinando a restituição de tudo aquilo que se recebeu, o incumprimento pode, por
exemplo, obrigá-lo a restituir o sinal no dobro. Assim, o exercício do direito à nulidade total pelo
promitente-vendedor seria de má fé e constituiria um claro abuso do direito, combatido pela redução
imperativa. O promitente-vendedor não tem qualquer interesse legítimo, digno de tutela, na invocação da
nulidade. Como este se trata de um problema de integração do negócio jurídico, a boa fé intervém aqui a
título correctivo.

E se for o promitente-comprador a querer invocar a nulidade? Poderá sempre fazê-lo?


i) Sendo a regra a da nulidade invocável por qualquer interessado, o promitente-comprador
interessado na não celebração do negócio pode fazê-lo. Teremos assim a redução do contrato-
promessa bilateral em promessa unilateral de venda, que o promitente-vendedor pode ainda
assim querer fazer valer. Neste caso, o promitente-comprador não tem o dever de comprar
(embora a lei permita ao vendedor obter a fixação judicial de um prazo para que ele exerça o seu
direito).
ii) Todavia, o promitente-comprador não poderá arguir a nulidade quando tal configure uma
situação de abuso do direito: ou seja, quando a inobservância da assinatura tenha sido
deliberadamente preparada por ele, ou quanto todo o seu comportamento subsequente à conclusão
do contrato-promessa tenha sido, apesar de conhecer o vício, do cumprimento da cláusulas nele
inserido (por exemplo, entregando as várias prestações escalonadas de sinal). Em casos desta
natureza, o promitente-vendedor deve ter a possibilidade de afastar a invocação da nulidade
pelo promitente-comprador, opondo a exceptio doli generalis ou o venire contra factum
proprium.

Esta questão foi objecto foi objecto do assento do Tribunal de Justiça, de 29 de Novembro de 1989, que
veio adiantar: “o contrato-promessa bilateral de compra e venda exarado em documento assinado apenas
um dos contraentes é nulo, mas pode considerar-se válido como contrato-promessa unilateral, desde que
essa tivesse sido a vontade das partes”.
i) O assento veio consagrar a tese da posição do problema em sede de redução do negócio
jurídico, afastando quer a tese da nulidade total automática e sistemática, quer a tese da
conversão. No entanto, ao afirmar que a parte interessada na validade parcial é que terá o ónus

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da prova, afasta-se do regime geral da redução consagrado no art. 292.º: a sinalagmaticidade da


promessa assinada apenas pelo promitente afasta, segundo o assento, a presunção legal da redução,
incumbindo ao promitente-comprador interessado a alegação e prova da validade parcial (caindo
uma vez mais na solução do Código alemão).
ii) CALVÃO DA SILVA pronunciou-se pela inconstitucionalidade do assento – uma vez reconhecido
o problema como de redução, não podem os tribunais furtar-se à lei, aplicando uma solução
contrária à do art. 292.º. Tendo sido declarada a inconstitucionalidade dos assentos, este valeria
como acórdão uniformizador da jurisprudência no sentido da redução do contrato-promessa
bilateral assinado apenas por uma das partes a contrato-promessa unilateral.
iii) O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1993 veio precisamente esclarecer
que o assento deveria ser interpretado no sentido de consagrar a tese da nulidade parcial e
redução do negócio, que será todavia nulo se o contraente que o subscrever provar que o
contrato não teria sido celebrado sem a parte viciada (art. 292.º).

6.2 Análise do art. 410.º/3

O art. 410.º/3 foi aditado ao texto originário pelo Decreto-Lei n.º 236/80, impondo, para os contratos-
promessa nele previstos, dois requisitos adicionais de forma: o reconhecimento presencial das assinaturas,
e a certificação, pelo notário, da existência da licença de utilização ou de construção do edifício.
Enquanto que o n.º 2 tem um alcance geral, este preceito apenas se aplica quando o contrato prometido
preencha três requisitos:
i) Seja um contrato oneroso;
ii) Transmita ou crie direitos reais (não bastando a transmissão ou criação de direitos pessoais de
gozo);
iii) O objecto do contrato seja um edifício ou fracção autónoma dele, já construído, em construção
ou a construir.

Invalidade correspondente à omissão das formalidades

Na versão original do artigo, a omissão destes requisitos só era invocável pelo promitente-vendedor no
caso de ter sido o promitente-comprador que directamente (ou seja, intencional e deliberadamente) lhe
deu causa; na versão actual, o promitente-vendedor pode invocar a omissão destes requisitos quando a
mesma tenha ido culposamente causada pela outra parte – parte final do art. 410.º/3. O propósito
legislativo foi o de facilitar ao promitente-vendedor a invocação da sanção correspondente à omissão dos
requisitos formais prescritos, podendo fazê-lo quando esta se deva a uma conduta negligente da outra parte.

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No entanto, é necessário ter em conta que impende sobre o promitente-vendedor o dever de promover o
cumprimento e a observância dos requisitos prescritos.
i) Quanto à providência da licença de construção ou utilização, dificilmente se concebe alguma
situação em que a sua omissão se deva a culpa do promitente-comprador.
ii) Quanto à omissão do reconhecimento presencial da assinatura do promitente-comprador, é
necessário ponderar, por um lado, o dever que o promitente-vendedor tem de recolher a
assinatura do promitente-comprador e o reconhecimento presencial respectivo; e, por outro, a
mera culpa ou negligência deste na inobservância da formalidade em apreço, para averiguar que
cometeu falta mais grave.
iii) Quanto à omissão do reconhecimento presencial da assinatura do promitente-vendedor, este
não poderá invocar a falta de reconhecimento presencial da sua própria assinatura por ter sido
culposamente causada pela outra parte, considerando estar na sua própria esfera o poder de
disposição e o dever de assinatura e reconhecimento presencial respectivo.

Rejeição da tese da nulidade invocável por terceiros e de conhecimento oficioso

Qual a sanção correspondente à inobservância dos requisitos formais prescritos? Tratando-se de


requisitos formais, a doutrina e jurisprudência entenderam unanimemente que o problema seria de
nulidade do contrato-promessa (art. 220.º). Por conseguinte, começou igualmente a ser entendido que se
aplicaria integralmente o regime geral de nulidade, com a excepção da legitimidade do promitente-
vendedor para a arguir, prevista na parte final do artigo – excepção que motivou a classificação da
nulidade como uma nulidade mista.

CALVÃO DA SILVA tem opinião diferente: a preocupação fundamental deve ser a de adaptar o regime da
invalidade contido na parte final do art. 410.º/3 ao fim da norma, não devendo a sanção ir para além
deste fim. Assim, é necessário saber qual a ratio legis das formalidades previstas no art. 410.º/3:
i) Argumento da ratio legis: os requisitos formais prescritos visam a tutela dos promitentes-
compradores, sobretudo numa zona socialmente muito sensível, que é a da aquisição de
habitação própria, evitando que estes, por falta de preparação e por estarem perante
promitentes-alienantes profissionais, sejam vítimas de abuso, injustiças e imoralidades. O n.º 3
do art. 410.º tem, asism, em vista proteger o promitente-comprador contra os inconvenientes
resultantes da promessa de alienação e aquisição de edifícios clandestinos.
ii) Argumento da ordem pública de protecção ou ordem pública social: a ordem pública de protecção
opõe-se à ordem pública de direcção, através da qual os poderes públicos realizam certos
objectivos de interesse geral e dirigem a economia nacional. Estes formalismos integram a
ordem pública de protecção, cujo objectivo é a de tutelar os consumidores, ou seja, a parte

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

considerada contratualmente mais débil. O legislador, em face dos abusos contratuais,


imoralidades e injustiças de que eram vítimas, na conjuntura económica, os promitentes-
compradores de edifícios, veio em auxílio destes, instituindo um controlo notarial, por julgar os
promitentes-adquirentes impreparados e incapazes de sozinhos defenderem os seus interesses.

Assim, não estando em causa interesses gerais da sociedade e do comércio jurídico mas tão-só do
promitente-comprador, a invalidade não deve ser invocável por terceiros nem oficiosamente conhecida
pelo tribunal.
i) Invocabilidade por terceiros: um banco que goze de hipoteca sobre uma casa objecto de contrato
prometido não deve poder invocar a invalidade do art. 410.º/3 para deste modo afastar a
prevalência do direito de retenção que o legislador concede ao promitente-comprador que
obteve a traditio da casa (art. 759.º/2). A concessão do direito de retenção ao beneficiário da
promessa foi introduzida pela reforma de 1980 (DL 236/80); enquanto que a sua prevalência
sobre hipoteca anteriormente registada, alargando-se o âmbito desta protecção em nome da
defesa do consumidor, foi estabelecida pela de 1986 (DL 379/86). Ora, a arguição da invalidade
por terceiros subverteria a finalidade destas reformas e das formalidades prescritas para a protecção
do promitente-comprador. O mesmo se passaria com o conhecimento oficioso pelo tribunal.
ii) Invocabilidade pelo promitente-vendedor: a circunstância de estarem em causa formalidades
constitutivas da ordem pública de protecção faz com que a invocação da nulidade seja em
princípio reservada ao destinatário da protecção. É este o ensinamento da civilística francesa,
segundo a qual, no domínio da ordem pública de protecção, o direito de arguir a invalidade
deve ser denegado aquele contra quem a protecção tenha sido instituída. Assim, a lei não
concede ao promitente-vendedor o direito de invocar a invalidade decorrente da omissão das
formalidades, porque o presume culpado da celebração do contrato nessas circunstâncias e
entende que não pode prevalecer-se de uma disposição da protecção da outra parte. A lei
presume que a omissão destes requisitos é da responsabilidade do promitente-vendedor, pois é
a ele que cabe assegurar o seu cumprimento: se não o fizer, a lei impede-o de arguir a
invalidade decorrente dessa omissão, a não ser que prove que esse incumprimento foi culpa da
outra parte.
a. A lei expressamente confere ao promitente-vendedor a faculdade de invocar a omissão
quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte – o que poderá
ocorrer frequentemente na inobservância do reconhecimento presencial respectivo.
b. Todavia, em bom rigor, sempre que a omissão de formalidades se impute ao promitente-
comprador, a sanção adequada será a de denegar-lhe a arguição da invalidade, e não a de
reconhecer legitimidade ao promitente-vendedor, uma vez que este não precisa de
protecção. Esta faculdade concedida ao promitente-vendedor tem sentido em alternativa

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

ao direito de conservação do contrato: o promitente-vendedor deve ter a possibilidade de


preferir o cumprimento e execução específica da promessa. Assim, quando a falta do
reconhecimento presencial se deva deliberadamente ao promitente-comprador (e
quando este tenha comportamentos que levem o promitente-vendedor a confiar na
manutenção do contrato, como o pagamento das prestações do sinal), a este deve ser
recusada a arguição da omissão através da figura do abuso do direito, uma vez que esta
excederia manifestamente os limites impostos pela boa fé (proibição do venire contra factum
proprium) e pelo fim social e económico desse direito. O abuso do direito é de
conhecimento oficioso pelo tribunal, tratando-se de um princípio supremo do Direito.

Adopção da tese da nulidade atípica

Sabemos já que se trata de uma invalidade com regime especial; ora, CALVÃO DA SILVA defende que se
trata de uma nulidade atípica. Vejamos porquê.
i) Nulidade: CALVÃO DA SILVA propende para a nulidade e não para a anulabilidade, uma vez que
a lei quer proteger o melhor possível o promitente-comprador, recusando automaticamente os
efeitos a que o contrato-promessa tende. É este elemento da exclusão da produção de efeitos
automaticamente que leva o autor a defender a tese da nulidade, uma vez que este se adequa com
o escopo legal do art. 410.º/3. Para além da não produção de efeitos, a nulidade é invocável a
todo o tempo.
ii) Atípica: trata-se de uma nulidade atípica por ser invocável, não por qualquer interessado, mas
apenas pelo promitente-comprador – aproximando-se nesta medida do regime da anulabilidade,
É assim nula a cláusula pela qual o promitente-comprador renuncia antecipadamente ao direito
de a inovar, para o proteger da sua própria inexperiência e inadvertência. E ainda por dever ser
passível de sanação ou convalidação, ou seja, é uma nulidade sanável. Pense-se, por exemplo, na
superveniente legalização da construção ou na ulterior apresentação da licença e no posterior
reconhecimento das assinaturas dos promitentes

Diferentes são as formalidades da forma imposta pelo n.º 2 do art. 410.º, que já integra a ordem pública de
direcção, logo a invalidade correspondente à sua omissão constitui uma nulidade típica, oficiosamente
conhecida pelo tribunal e de que se pode prevalecer qualquer interessado. Já o regime que melhor se
adequa às finalidades das formalidades previstas no art. 410.º/3 é o da nulidade atípica, próxima da
anulabilidade, própria da ordem pública de protecção, de que se pode prevalecer apenas o protegido.
Resumindo:
i) Nulidade por não produzir efeitos automaticamente e por ser invocável a todo o tempo.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

ii) Atípica por ser apenas invocável pelo promitente-comprador (com as excepções que
conhecemos) e por ser sanável.

Já há hoje jurisprudência uniforme neste sentido – o Supremo Tribunal de Justiça acolheu a tese de
CALVÃO DA SILVA nos assentos de 28 de Junho de 1994 e 1 de Fevereiro de 1995, que hoje funcionam
como acórdãos uniformizadores de jurisprudência. Quanto à doutrina, ainda continua a haver autores,
nomeadamente A LMEIDA COSTA, que quanto à questão da falta de licença, como está em causa o
interesse público de combate à construção clandestina, o tribunal deve ser admitido a conhecer
oficiosamente a invalidade. Todavia, contra isto pode argumentar-se que não é necessário desproteger o
promitente-comprador para proteger o interesse público, este pode – e deve – proteger-se no momento
da celebração do contrato e não antes.

O interesse público de combate à construção clandestina no DL 281/99

O DL 281/99, em nome do interesse público do combate à construção clandestina, veio proibir que se
celebrassem escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade sem que se faça, perante o
notário, prova suficiente da existência da correspondente licença de utilização (art. 1.º/1). A licença de
utilização tem como finalidade atestar o uso a que se destina o edifício ou fracção, e que se encontram
aptos para o respectivo fim.
i) Esta pode ser substituída pela licença de construção, desde que o transmitente prove estar
requerida a licença de utilização e declare que a construção se encontra concluída.
ii) Na transmissão de prédios urbanos que o alienante declare como não concluídos, com licença
de construção em vigor, baste que se apresenta esta.

Assim, independentemente de qual seja o culpado, os promitentes não podem celebrar o contrato
definitivo – logo, o art. 830.º não pode funcionar – sem a apresentação da licença de construção ou
utilização, nos termos previstos pelo DL 281/99. Aqui, os interesses gerais imperam, pelo que se o notário
lavrar a escritura pública de transmissão de prédio sem licença de utilização, o negócio enfermerá de
nulidade típica.

Para além deste requisito, o DL 68/2004 veio impor um conjunto de mecanismos que visam reforçar os
direitos dos consumidores à informação e à protecção dos seus interesses económicos na aquisição de
prédio urbano para aquisição, bem como a transparência do mercado. Um destes mecanismos é a
chamada “ficha técnica de habilitação”, um documento descritivo das principais características técnicas e
funcionais do prédio urbano para fim habitacional, a cargo do promotor imobiliário. Assim, não pode ser
celebrada a escritura pública sem que o notário se certifique da existência da ficha técnica da habitação e de

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

que a mesma é entregue ao comprador. A inobservância desta formalidade constituirá uma nulidade
atípica, invocável apenas pelo comprador, irrenunciável e sanável: está em causa a ordem pública de
protecção.

Promessas relativas à celebração de contrato oneroso de modificação ou extinção de direito real

Uma última alteração que o DL 379/86 introduziu no n.º 3 do art. 410.º diz respeito ao âmbito dos
contratos-promessa sujeitos a este regime específico. Na versão de 80, a lei referia apenas a “promessa
relativa à celebração de contrato de compra e venda”, entendendo-se que, da mesma forma que o
contrato de compra e venda é o paradigma de todos os contratos onerosos de alienação ou oneração de
bens (art. 939.º), também o contrato-promessa de compra a venda deveria ser o paradigma das promessas
relativas à celebração de contrato oneroso. Assim, quando na versão actual se fala de “promessa relativa à
celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real”, esta é apenas uma ampliação
literal, não vindo alterar o âmbito de aplicação do artigo face ao que já se entendia.

Mas e quanto às promessas relativa à celebração de contrato oneroso de modificação ou extinção de direito
real sobre edifícios? A resposta depende de saber se a ratio legis impõe a extensão do preceito a estes casos:
i) Quanto às promessas de contrato oneroso de extinção: não há identidade de razão que justifique
a extensão do n.º 3 do art. 410.º. Não se justifica aqui a protecção do promitente-comprador
através do controlo notarial, de modo a impedir a entrada no comércio jurídico de prédios
clandestinos; pelo contrário, há um interesse público de pôr termo aos direitos reais limitados.
Acresce a isto que na promessa de extinção o proprietário continua a ser o mesmo, recuperando
apenas a plenitude de poderes devido à elasticidade do direito de propriedade. Pela aquisição
restitutiva, repõem-se as coisas no estado anterior à constituição do direito real.
ii) Já no que toca às promessas de contrato oneroso de modificação de direito real, é necessário
distinguir entre as seguintes situações:
a. Se a modificação prometida é de ampliação do direito real, justifica-se a extensão do n.º 3
do art. 410.º, de modo a proteger o promitente-comprador da construção clandestina.
b. Se a modificação prometida é de diminuição do direito real, não há identidade de razão
que justifique a aplicação extensiva.

7. Regime do Sinal (arts. 440.º a 442.º)

Noção e classificação

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

O sinal é uma coisa, normalmente uma quantia pecuniária, que um dos contraentes entrega ao outro, no
momento de celebração do contrato ou em momento posterior.

O sinal pode ser:


i) Sinal confirmatório: funciona como uma prova, para o exterior, da celebração do contrato,
visando reforçar o vínculo negocial e o cumprimento das obrigações assumidas.
ii) Sinal penitencial: o sinal é penitencial quando, através dele, as partes quiseram reservar (para
uma ou para ambas) a faculdade de retractação ou de recesso do contrato. É o “preço do
arrependimento” do cumprimento do contrato.

É a liberdade contratual que molda o carácter do sinal, cabendo ao tribunal apurar se as partes quiseram
um sinal confirmatório ou penitencial. Este é um problema de interpretação da vontade das partes;
porém, em caso de dúvida, o sinal deve ter-se como confirmatório, só devendo valer como penitencial
quando tal resulte expressamente da lei (art. 830.º/2) ou de uma inequívoca vontade das partes.
i) O sinal confirmatório, dirigindo-se a reforçar o vínculo negocial e a garantir o cumprimento das
obrigações, integra-se na regra geral do pacta sunt servanda.
ii) O sinal penitencial significa uma renúncia prévia ao direito de pedir o cumprimento, e o nosso
sistema jurídico consagra a regra da irrenunciabilidade prévia deste direito (art. 809.º).

O sinal confirmatório tem uma dupla função:


i) Coerção ao cumprimento – o sinal visa reforçar o vínculo contratual, o sinal constitui indirecta
medida de coerção ao cumprimento do contrato. O accipiens vê no sinal uma garantia e um
reforço da obrigação do tradens; enquanto que este sente, com o desapossamento da coisa que
entrega, razão para sentir a pressão ao cumprimento.
ii) Determinação prévia da indemnização em caso de incumprimento – se a finalidade coercitiva
falhar, ainda assim ele determina previamente o quantum indemnizatório, independentemente
do montante ou até da existência de dano efectivo. Não se pode aplicar aqui o enriquecimento
sem causa, dada a subsidiariedade desta figura.

Presunção de sinal no contrato-promessa de compra e venda

No contrato-promessa de compra e venda, presume-se que toda a quantia entregue pelo promitente-
comprador pelo promitente-vendedor tem a natureza de sinal, ainda que a título de antecipação ou
princípio de pagamento do preço (art. 441.º). O que sucede normalmente na prática é que o promitente-
comprador, ao entregar, na celebração do contrato-promessa, uma quantia pecuniária, antecipa a

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

entrega parcial ou total do preço, ao mesmo tempo que as partes qualificam a referida entrega como sinal
– “entrega como sinal e princípio de pagamento”.

Nos demais contratos, a existência de sinal não é presumida – art. 440.º. Assim, a entrega por um dos
contraentes ao outro de coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito é
havida como antecipação total ou parcial do cumprimento (se for parcial, falamos em começo do
cumprimento; se for total, em antecipação do cumprimento), salvo se as partes expressamente lhe
atribuírem carácter de sinal.

O regime do sinal – art. 442.º

O DL 379/86 veio dar nova redacção aos arts. 442.º e 830.º, relativos ao sinal e à execução específica do
contrato-promessa. Ora, apesar de o art. 442.º disciplinar o regime geral do sinal para todos os contratos, o
legislador introduziu, no n.º 2, segunda parte, e no n.º 3, uma regulamentação específica para o contrato-
promessa, o que é criticado por CALVÃO DA SILVA – seria preferível separar as regras do regime geral e do
especial.

Regime do sinal em caso de cumprimento – art. 442.º/1

Quando haja sinal, presumido (art. 441.º) ou convencionado (art. 440.º), a coisa entregue deve ser
imputada na prestação devida, ou restituída, quando a imputação não for possível – art. 442.º/1. Assim:
i) No caso de cumprimento tempestivo do contrato, a coisa entregue pelo tradens a título de sinal
deve ser deduzida automaticamente à prestação devida, sem a intervenção activa do accipiens. É
o que sucede via de regra, traduzindo-se a coisa entregue numa quantia pecuniária.
ii) Se a coisa entregue a título de sinal não for uma quantia em dinheiro mas um bem de outra
natureza, pode não ser possível a sua imputação na prestação devida, pelo que se impõe a
restituição da coisa entregue como sinal para se evitar o enriquecimento injustificado do
accipiens.

Regime do sinal em caso de incumprimento imputável a um dos contraentes – art. 442.º/2

No caso de o incumprimento ser imputável a um dos contraentes, o art. 442.º/2 regula os efeitos do sinal:
i) Se o incumprimento é imputável ao tradens, o outro contraente tem a faculdade de fazer sua a
coisa entregue, originando a perda do sinal.
ii) Se o incumprimento é imputável ao accipiens, este é obrigado à restituição no dobro do que
recebeu. Porque não restituição em singelo? Havendo incumprimento, o outro contraente tem o

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

direito a resolve o contrato com eficácia retroactiva (art. 432.º e segs.), sendo o accipiens
obrigado a restituir aquilo que recebeu. Ora, esta não seria nenhuma sanção – apenas a
restituição no dobro pode configurar uma sanção pelo incumprimento culposo.
iii) Tratando-se de contrato-promessa em que tenha havido tradição da coisa objecto do contrato
prometido, o promitente-comprador pode optar entre a restituição no dobro e o valor da coisa.

O regime especial do sinal do contrato-promessa: art 442.º/2

Como vimos, nos termos do art. 442.º/2, a parte que constitui o sinal, se o não cumprimento do contrato
for devido ao accipiens, tem a faculdade de exigir como indemnização, em vez do dobro do sinal, o valor
da coisa, se tiver havido tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. Esta faculdade visa
estimular o promitente accipiens a celebrar o contrato, uma vez que o regime do sinal poderia não
constituir sanção suficiente, incentivando o incumprimento.

- Na vigência do DL 236/80, discutia-se a questão de saber se este preceito se aplicava todos os contratos-
promessa em geral, ou apenas aos contratos previstos no art. 410.º/3. CALVÃO DA SILVA entende ser o art.
442.º/2, 2ª parte, de aplicação genérica, ou seja, aplicável a todos os contratos-promessa com tradição da
coisa a que se refre o contrato prometido, independentemente do objecto deste:
i) O DL 379/86 veio alterar o regime geral do contrato-promessa.
ii) A querer circunscrever o art. 442.º/2, 2ª parte, aos contratos promessa previstos no art. 410.º/3, o
legislador tê-lo-ia feito expressamente, tal como o fez no art. 830.º/3 e 4.

- Relativamente à determinação valor da coisa, impõem-se algumas notas.


i) O n.º 2 consagra a teoria defendida por V ASCO XAVIER , segundo a qual é necessário deduzir ao
valor da coisa o preço convencionado e não pago, e ainda restituído o sinal. A redacção inicial
dizia que o promitente accipiens teria de restituir o valor da coisa, o que é uma sanção exagerada.
ii) No entanto, o n.º 3 e o n.º 4 já falam do “aumento do valor da coisa”, que corresponde à tese
defendida por CALVÃO DA SILVA. Que dizer disto? Em regra, o aumento do valor da coisa entre a
data da celebração e a do incumprimento será igual à diferença entre o valor da coisa e o preço
convencionado, se este corresponder ao valor objectivo da coisa ao tempo da celebração do contrato.
No entanto, a razão de ser da tese de CALVÃO DA SILVA prende-se com aquelas situações em que
o preço convencionado não corresponde ao valor objectivo da coisa – por exemplo, por se tratar
de um preço de favor ou afectivo. Aqui, a indemnização que o promitente tradens do sinal terá
direito será apenas o aumento do valor da coisa, determinado objectivamente – diferença entre
o valor objectivo actual e o valor objectivo ao tempo da celebração do contrato.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

a. Esta interpretação decorre da ratio legis do art. 44.2.º/2, parte final, que visa evitar um
regime desrazoável, que importe um injustificável enriquecimento do contraente
insatisfeito. Assim, quando o preço não corresponda ao valor objectivo da coisa no
momento da celebração do contrato, deve-se atender a este e não aquele; interpretação
que é favorecida pela fórmula “aumento do valor” (e não do preço).
b. Não se argumente contra isto com as incertezas de fixar o valor objectivo da coisa,
reportado à data da promessa. Cabe à parte interessada afastar a presunção de que o
preço estipulado traduz o valor real da coisa, o que não será difícil de demonstrar com
base nos critérios do art. 883.º.
c. Não se argumente ainda que o beneficiário da promessa não cumprida deve ser
indemnizado do prejuízo que a violação do contrato lhe causou, sendo este prejuízo
medido pela diferença entre o preço e o valor da coisa. No entanto, não é exacto que
assim seja – o n.º 4 estatui que não há lugar a qualquer outra indemnização, ou seja, o
aumento do valor não contém outros prejuízos. Só se houver estipulação em contrário é
que o promitente-comprador poderá ir buscar indemnização de dano maior.

- Onde for de concluir pela inexistência da traditio rei, deve o tribunal condenar na restituição do dobro
do sinal recebido, se tiver sido pedido o valor da coisa – que pede o mais pede o menos, considerando-se
aquele pedido contido neste. A sentença condena em quantidade inferior e não em objecto diverso
daquilo que foi pedido, logo não atenta contra o princípio do pedido (art. 609.º/1 do Código de Processo
Civil).

Existindo traditio, o credor pode pedir o dobro do sinal em vez do valor da coisa, mas neste caso o
tribunal apenas pode condenar o devedor na restituição do sinal em dobro e vice-versa. Isto é o que
decorre do igualmente do art. 609.º/1 do Código de Processo Civil.

Análise do art. 442.º/3: inadequação da referência à execução específica (1ª parte)

A primeira parte do art. 442.º/3 dispõe o seguinte: “em qualquer dos casos previstos no número anterior,
o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do
art. 830.º”. Este preceito é altamente criticado por CALVÃO DA SILVA:
i) Desde logo, o legislador disse mais do que queria – a possibilidade de requerer a execução
específica não é própria de qualquer contrato (como dispõe o art. 442.º/2, 2ª parte), mas apenas
dos contratos-promessa. Deve-se assim fazer uma interpretação restritiva deste artigo, o que
significa, por conseguinte, que a traditio rei não constitui requisito da execução específica.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

ii) Nos termos do art. 830.º/1 e 2, o direito à execução específica existe na falta de convenção em
contrário, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida, sem mais
requisitos ou condições. Assim sendo, a referência à execução específica é meramente remissiva
para o art. 830.º, e é uma remissão meramente supérflua e dispensável.
iii) Mais – o recurso à execução específica (direito ao cumprimento) por parte do credor só tem
sentido quando perdure o interesse deste na execução possível, lançando mão deste mecanismo
para evitar o incumprimento definitivo. Sempre que haja incumprimento definitivo, não tem
cabimento a execução específica, recorrendo o credor à resolução do contrato com direito à
indemnização compensatória do art. 442.º. Ora, se o regime do sinal foi sempre concebido para a
hipótese de incumprimento definitivo, não é correcto o legislador fazer qualquer referência à
faculdade de execução específica, cujo pressuposto é a mora, pelo que se deve ter como não escrita a
primeira parte do art. 442.º/3.

Análise do art. 442.º/3: inaplicabilidade do sinal em caso de mora (2ª parte)

A segunda parte do art. 443.º/3 dispõe: “se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou
do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa
faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no art. 808.º”. O artigo 808.º fixa duas
maneiras em converter uma mora em incumprimento definitivo:
i) 1ª parte: prova da perda do interesse na prestação, que o n.º 2 completa dizendo que esta é
apreciada objectivamente (não se podem aceitar caprichos), ou seja, a mora consubstancia uma
perda objectiva e razoável de interesse.
ii) 2ª parte: fala-nos da interpelação admonitória. Interpelar é intimar para cumprir, fixando um
prazo razoável para o cumprimento com a cominação ou admoestação da sanção de que, findo
o prazo e persistindo o incumprimento, declara-se o incumprimento definitivo (não exige que
seja feita por escrito, mas deve-se fazê-lo para efeitos de prova). É necessária a verificação
cumulativa de três requisitos:
a. Interpelação;
b. Num prazo suplementar peremptório;
c. Com a cominação de uma sanção – continuando o incumprimento, o contrato tem-se
como definitivamente não cumprido, sendo automaticamente resolvido pela parte, que
depois não pode vir requerer a execução específica do contrato – esta acção não
procederá (apesar de haver acórdãos minoritários que aceitam isto).

Este preceito parece aplicar o regime do sinal à mora – mas será assim? CALVÃO DA SILVA começa por
fazer uma análise de todo o art. 442.º:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

i) O n.º 3, 2ª parte, remete para o n.º 2 (“como se estabelece no número anterior)”. Porém, o n.º 2
pressupõe o incumprimento definitivo do contrato-promessa, como decorre das fórmulas “se
quem constitui o sinal deixar de cumprir” e “se o não cumprimento for devido”. Também a
obrigação de restituir o sinal e a parte do preço que se tenha pago mostra que a faculdade de
exigir o valor da coisa anda ligada à resolução do contrato-promessa acompanhado de tradição da
coisa.
ii) Esta ligação decorre ainda do preâmbulo do DL 238/80: “a indemnização devida por causa da
resolução do contrato...”.
iii) A mesma conclusão se pode retirar da primeira parte do n.º 3, uma vez que só relativamente ao
direito de resolução a execução específica é alternativa, pela qual o credor opta se ainda for
possível e útil o cumprimento. Assim, o promitente-comprador só opta pela execução específica
no caso de mora ou provisório inadimplemento; logo que haja incumprimento definitivo, não
tem cabimento a execução específica, recorrendo-se à resolução com a indemnização do art.
442.º.
iv) Do n.º 4 resulta claramente que o aumento do valor da coisa, a perda do sinal ou o pagamento
em dobro deste são a indemnização devida pelo não cumprimento.
v) Nos termos do art. 442.º/1, no caso de cumprimento do contrato, o sinal não é cumulável com
ele, antes devendo ser imputado na prestação devida. Pelo que não cabe um sinal moratório
cumulável com o cumprimento, nem, portanto, a opção pelo valor da coisa.
vi) Não é de crer na sobreposição da tutela moratória e compensatória nos mesmos termos e no
mesmo artigo, e sobretudo que previsse a mesma sanção indemnizatória para ilícitos tão
distintos. Nem seria razoável a lei substituir-se às partes e julgar sempre suficientemente grave
qualquer mora no contrato-promessa sinalizado, a ponto de a ficcionar equiparada a
incumprimento definitivo.
vii) A perda do sinal dobrado ou o valor da coisa ligados à simples mora não se apresentam como
sanção razoável e proporcionada num contrato preparatório como é o contrato-promessa, em
que factores múltiplos (principalmente quando esteja em causa a construção de prédios) vão
contra uma resolução automática por simples atraso. Pelo que a opção pelo valor da coisa,
alternativa ao dobro do sinal, não pode ser transformada em mais uma simples interpelação do
promitente-vendedor para que cumpra. A oferta do cumprimento pode ter lugar enquanto o
credor não perder o interesse ou enquanto a mora não se converter em incumprimento por
interpelação admonitória, não fazendo por isso sentido a ressalva do art. 808.º.
viii) O próprio direito de retenção, concedido ao promitente-comprador, não tem sentido na mora,
uma vez que o beneficiário da promessa não está obrigado a entregar a coisa, sendo esta uma
consequência da resolução.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Do exposto pode-se concluir que a 2ª parte do art. 442.º/3 é anómala e contraditória com os restantes
números do mesmo artigo:
i) Quando o credor recorre ao regime do sinal, já deve ter convertido a mora em incumprimento
definitivo e resolvido o contrato mediante interpelação admonitória ou mediante declaração à
outra parte (art. 808.º) – a simples mora não atribui direito à resolução, pressuposto da
indemnização compensatória do sinal dobrado ou aumento do valor da coisa. Logo, não faz
sentido dar ao contraente faltoso, quando demandado para pagar o aumento do valor da coisa,
a possibilidade de se opor a esta faculdade, cumprindo o contrato – com a resolução do
contrato, o devedor já não pode cumprir e o credor deixa de poder exigir o cumprimento. E
também não tem qualquer utilidade a ressalva do art. 808.º, visto que se aplica previamente ao
regime do sinal.
ii) As sanções do sinal dobrado e do aumento do valor da coisa estão associadas – não tem lógica
atribuir-lhes regimes diferentes, uma vez que este surge como actualização daquele, com os
mesmos pressupostos e requisitos.
iii) A opção pelo valor da coisa em caso de mora não teria qualquer interesse, dado que se trataria
de uma mera interpelação, envolvendo a renúncia ao dobro do sinal no caso de incumprimento
definitivo do promitente-vendedor. Para o credor, é preferível manter em aberto a opção (dobro
do sinal ou valor da coisa), pelo recurso a uma verdadeira interpelação admonitória.

O que levou o legislador a consagrar este preceito? Ora, a 2ª parte do n.º 3 do art. 442.º parece ter recebido
inspiração na doutrina de M ENEZES CORDEIRO , segundo o qual, quando o promitente-comprador
exigisse o valor da coisa, o promitente-vendedor poderia “sempre oferecer-se para cumprir o contrato-
promessa, antecipando-se à execução específica”, já que aquele teria sempre interesse no cumprimento
da prestação nos casos de aquisição de habitação. O art. 808.º não funcionaria previamente ao regime do
sinal, já que este poderia operar assim que haja mora – “quem exija uma indemnização correspondente
ao valor da coisa terá de se contentar com a própria coisa”. Havendo incumprimento definitivo, o
promitente faltoso teria de ressarcir, para além do valor da coisa, os demais danos emergentes e todos os
lucros cessantes (algo que está expressamente negado no n.º 4). Esta doutrina foi refutada por V ASCO
XAVIER , uma vez que é possível, em situações de incumprimento definitivo do promitente-vendedor, que
seja legítimo à contraparte recusar a oferta tardia da celebração do contrato prometido (mesmo nos
contratos relativos à habitação). Foram estas duas posições que o legislador tentou conciliar, porém estas
são inconciliáveis – a possibilidade de o promitente faltoso oferecer o cumprimento é precludiade pelo
incumprimento definitivo e pela opção de resolução do contrato feita pelo promitente-comprador.
Note-se que a resolução de um contrato constitui um direito potestativo, logo os efeitos impõem-se
inelutavelmente à contraparte.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Assim, CALVÃO DA SILVA defende que se deve fazer uma interpretação abrogante do art. 442.º/3, 2ª parte.
Apesar de a jurisprudência nunca o ter reconhecido, a verdade é que este artigo não é aplicado.

Regime do sinal em caso de incumprimento imputável a ambos os contraentes

O caso de não cumprimento bilateralmente imputável do contrato deve ser resolvido pela compensação
de culpas concorrentes, verificados os respectivos pressupostos (art. 570.º). Se as culpas dos dois
contraentes forem iguais, a indemnização deve ser excluída, ficando apenas o accipiens obrigado a
restituir o sinal em singelo. O facto de o não cumprimento ser imputável, em igual medida, a ambas as
partes, não deve precludir o direito de resolução de uma delas – a culpa não é pressuposto do direito de
resolução.

A restituição do sinal em singelo terá igualmente lugar, por força do art. 289.º, na hipótese de imputável
impossibilidade originária (art. 280.), ou qualquer outra causa de nulidade ou anulabilidade do
contrato. Pode aqui intervir a responsabilidade pré-contratual, por culpa in contrahendo (art. 227.º), se a
exclusão do dever de indemnização não resultar do art. 570.º.

Regime do sinal em caso de incumprimento não imputável a qualquer dos contraentes

O regime jurídico do art. 442.º/2 pressupõe um incumprimento devido ao tradens ou ao accipiens do


sinal. Assim, em causa de incumprimento devido a causa não imputável a qualquer dos contraentes, os
efeitos do sinal não se produzem. Quando a prestação se torne impossível por causa não imputável ao
devedor, a obrigação extingue-se (extinguindo-se também a do devedor, pela interdependência das
prestações sinalagmáticas) – logo, a eficácia do sinal extingue-se, uma vez que este é acessório da
obrigação principal. O accipiens deve restituir a coisa que lhe foi entregue como sinal, a fim de evitar o
enriquecimento sem causa, sem haver lugar a indemnização por falta de culpa.

A restituição do sinal em singelo terá igualmente lugar, por força do art. 289.º, na hipótese de não
imputável impossibilidade originária (art. 280.º), ou qualquer outra causa de nulidade ou anulabilidade
do contrato.

8. Execução específica (art. 830.º)

Noção

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Começa-se por dizer que o pressuposto da execução específica é a mora, não o incumprimento definitivo.
Com efeito, se um dos promitentes não cumpre pontualmente, e o outro intenta a acção de execução
específica, é porque o credor considera como simples atraso a violação do devedor e está ainda
interessado na prestação. Ao invés, se este não tivesse mais interesse na prestação, consideraria a violação
como incumprimento definitivo e optaria pela resolução do contrato.

Isto porque a execução específica equivale, em última instância e no plano funcional, à acção de
cumprimento: enquanto que esta visa a condenação do devedor no cumprimento, aquela produz
imediatamente os efeitos da declaração negocial do faltoso. Através da sentença constitutiva prevista no
art. 830.º, que é uma sentença substitutiva da declaração negocial do promitente faltoso, o credor obtém o
cumprimento funcional da promessa, ou seja, o resultado prático do cumprimento. Este efeito produz-se
imediatamente e mesmo contra a vontade do promitente faltoso, sem ter de recorrer à sentença de
condenação nem ao processo executivo. O legislador português seguiu, assim, a doutrina de POTHIER ,
CHOIVENDA e do Código Civil italiano; afastando-se da solução alemã, na qual o promitente faltoso é
condenado e ficciona-se que a sentença produz os mesmos efeitos que a declaração. Percebe-se que a
solução seja esta e não outra: a condenação no cumprimento seria inútil e meramente repetitiva, uma vez
que a obrigação de contratar já nasce do contrato-promessa e não se poderia executar a sentença
(ninguém pode ser coagido ao próprio facto).

Pressupostos da execução específica

1) Mora: como vimos, para que o promitente fiel possa requerer a execução específica do contrato, o
promitente faltoso tem de se encontrar numa situação de mora, culposa ou não. Porém, é necessário
fazer a prova da mora: na maioria dos contratos promessa, não se fixa um prazo para a mora, ou este é
meramente indicativo, pelo que é necessário interpelar a outra parte para cumprir, pedindo ao juiz que
fixe um prazo. Findo esse prazo, o promitente faltoso está numa situação de mora e pode-se intentar a
acção de execução específica.

2) Inexistência de convenção em contrário: o art. 830.º/1 dispõe que o promitente fiel pode pedir a
execução específica “na falta de convenção em contrário”, o que significa que a regra geral da execução
específica é supletiva, podendo as partes afastá-la por convenção expressa ou tácita. O n.º 2 entende haver
convenção em contrário sempre que existir sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não
cumprimento – multa penitencial e não cláusula penal compensatória, uma vez que esta não afasta ao
credor a possibilidade de exigir o cumprimento.

Resulta daqui que a existência de sinal no contrato-promessa faz presumir convenção contrária à
execução específica – ao entregar o sinal, presume-se que as partes quiseram afastar a execução

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

específica, logo reservar o direito ao arrependimento (sinal penitencial). Assim, não só se presume que
tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente vendedor (art.
441.º), como ainda esse sinal se presume penitencial no art. 830.º/2. CALVÃO DA SILVA critica
severamente esta opção:
i) O direito de arrependimento não se coaduna com os princípios fundamentais do direito das
obrigações, como o são o pacta sunt servanda e a irrenunciabilidade prévia ao direito de exigir o
cumprimento das obrigações (art. 809.º).
ii) No contrato promessa já se admite como regra a possibilidade de as partes convencionarem a
exclusão da execução específica, num claro desvio ao regime geral do art. 809.º.

Esta solução é exagerada, e se os promitentes querem reservar o direito de arrependimento, deverão


manifestar vontade inequívoca neste sentido. A natureza do sinal deve antes presumir-se confirmatória,
em conformidade com o início de cumprimento do contrato expressamente querido. Esta norma tinha
sido eliminada pelo DL 236/80, mas foi posteriormente repristinada. Se a sua consagração, em 1966, se
justificava pelos termos cautelosos em que o legislador permitiu a execução específica pela primeira vez,
hoje a mente jurídica é outra: a execução específica e o sinal confirmatória são hoje tidos como regra,
reivindicando-se mesmo a extensão do art. 830.º de sorte a que se aplique noutras situações.

3) Não oposição da natureza da obrigação assumida: o art. 830.º/1 afirma ainda que a execução específica
não tem lugar sempre que a ele se oponha a natureza da obrigação assumida, tendo em conta que o juiz,
ao emitir a sentença, se substitui, na declaração negocial, ao promitente faltoso. É o que sucede quando o
contrato prometido for:
i) Contrato de natureza pessoal, como o contrato promessa de trabalho. Aqui, o juiz não se pode
substituir ao promitente faltoso, dada a natureza pessoal da obrigação assumida.
ii) Contrato real quanto à constituição, como o mútuo, o comodato e o penhor. Como estes
contratos carecem de um acto material, como a traditio rei, para a sua validade, a declaração
negocial do faltoso não chega para celebrar validamente o contrato.
iii) Contrato que pressuponha um facto de terceiro: quando o contrato prometido dependa do
consentimento de terceiro, ou de uma declaração negocial de terceiro que transfira para o
promitente vendedor a propriedade da coisa (venda de coisa futura), a declaração negocial do
faltoso não basta para a celebração do contrato, pelo que não é possível a execução específica.

Execução específica imperativa

Nos termos do art. 830.º/3, o direito à execução específica não pode ser afastado pelas partes nas
promessas a que se refere o art. 410.º/3. Pelo que a cláusula que exclua a execução é nula, não valendo

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qualquer convenção em contrário, expressa ou tácita, incluindo-se nesta a presunção legal do n.º 2. Nada
obsta, porém, à renúncia após a violação da promessa ou atraso no cumprimento. Fala-se aqui de uma
execução específica imperativa.

Já a 2ª parte do art. 830.º/3 dispõe que o promitente faltoso pode requerer, na acção de execução específica, a
modificação do contrato por alteração das circunstâncias, ainda que esta seja posterior à mora. Enquanto
que a possibilidade de invocar a alteração das circunstâncias na execução específica é geral e existe
também nos casos do art. 830.º/1, por força do princípio da equiparação, a possibilidade de modificação
da promessa ainda que a alteração seja posterior à mora já se deve considerar exclusiva das promessas do
art. 410.º/3. Trata-se de uma excepção introduzida pela reforma de 1986, por se mostrar “necessária ao
relativo equilíbrio de posições das partes”. CALVÃO DA SILVA não é sensível a esta argumentação, uma vez
que não existem motivos sérios que justifiquem este privilégio do promitente faltoso relativamente aos
devedores.

Registo da acção de execução específica e dupla alienação imobiliária

Nos termos do art. 3.º/1/a) do Código do Registo Predial, estão sujeitas a registo as “acções que tenham
por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de”
direitos reais sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo. A acção de execução específica tem
por fim a celebração do contrato prometido – logo, tratando-se da promessa de venda de imóveis, a
acção de execução específica está sujeita a registo, uma vez que a celebração do contrato definitivo pela
sentença transfere a propriedade da coisa.

O registo da acção, feito nos termos do art. 53.º do Código de Registo Predial, é provisório por natureza
(art. 92.º/1/a) CRPred). Quando transitada em julgado, a decisão final está igualmente sujeita a registo
(art. 3.º/1/c) CRPred), sendo este feito por averbamento à inscrição da acção, nos termos do art.
101.º/2/b). O legislador estabelece que “o registo convertido em definitivo conserva a prioridade que
tinha como provisório, o que significa que a publicidade se inicia com o registo da acção, com a
consequência da ineficácia perante o autor das transmissões da coisa registadas depois do registo da
acção. A prioridade do registo da sentença reporta-se ex lege à data do registo da acção.

Assim, CALVÃO DA SILVA critica a posição firmada pelo STJ, no Acórdão 4/98: a execução específica não
é admitida no caso de impossibilidade de cumprimento por o promitente-vendedor haver transmitido o
seu direito real sobre a coisa antes de registada a acção, ainda que o terceiro adquirente não haja obtido o
registo da aquisição antes do registo da acção pois esta não confere eficácia real à promessa. Com efeito,
com o registo da acção, não se confere eficácia real à promessa, ou seja, o direito de crédito do

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promitente-comprador é inoponível ao terceiro-adquirente do promitente-vendedor. Porém, aplicando


as regras gerais do registo, o registo da sentença favorável ao promitente-comprador prevalece sobre o
registo da aquisição de terceiro ao promitente-vendedor feito depois do registo da acção, ainda que a
venda tenha sido anterior. Ou seja, uma vez registada a acção de execução específica, a alienação a
terceiro da coisa objecto do contrato prometido é ineficaz, pois tudo se passa como se tivesse sido o
próprio promitente-vendedor a alienar a coisa ao promitente-comprador na data do registo da acção: ao
produzir os efeitos da declaração negocial do faltoso, a sentença celebra o contrato definitivo de compra e
venda e o seu registo produz efeitos desde o registo da acção. Este mecanismo publicitário torna
cognoscível a terceiros a possibilidade de a titularidade registada a favor do réu vir a ser prejudicada pela
pretensão do autor, caso este obtenha ganho de causa. Por outro lado, não existe qualquer
impossibilidade de execução específica quando a venda a terceiro anteceda o registo da acção, como
defende o STJ, uma vez que a venda celebrada pela sentença prevalece nos termos em que vimos.

Execução específica e depósito do preço

Tratando-se de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de


direito real sobre edifício ou fracção autónoma, em que caiba ao adquirente a faculdade de expurgar a
hipoteca a que o mesmo se encontre sujeito (art. 721.º), caso a extinção da garantia não ocorra o
promitente-comprador pode exigir que a sentença condene também o promitente faltoso a entregar-lhe o
montante do débito garantido (ou o valor nele correspondente à fracção do edifício ou do direito objecto
do contrato). Temos, assim, uma sentença compósita: constitutiva, na medida em que produz os efeitos
da declaração negocial do faltoso, e condenatória, ao condenar o promitente-vendedor a entregar o
montante do débito garantido (valendo, nesta parte, como título executivo).

Por outro lado, o art. 830.º/5 dispões que, nos casos em que seja lícito invocar a excepção de não
cumprimento – leia-se nos contratos bilaterais ou sinalagmáticos –, a acção improcede se o requerente
não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal. Ou seja, se o
promitente-comprador requerer execução específica da promessa, a acção apenas procede se este consignar
em depósito o preço devido. Com a consignação em depósito como requisito necessário da procedência
da acção, o legislador visa salvaguardar o princípio da simultaneidade do cumprimento das prestações
(art. 428.º), querendo evitar o risco da transmissão da propriedade com falta de pagamento simultâneo
do preço.

CALVÃO DA SILVA rejeita a solução segundo a qual a consignação em depósito do preço constituirá
condição suspensiva da procedência da acção de execução específica, uma vez que esta não se coaduna

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

com a letra do art. 830.º/5, que diz “a acção improcede se...”, e o seu espírito: apesar de a solução da
sentença sob condição suspensiva ser uma solução possível, esta coenvolve o risco de uma decisão inútil.

Cúmulo da execução específica com a redução do preço ou a eliminação dos defeitos da coisa

Pode o promitente-comprador, que intenta a acção de execução específica, depositar um preço inferior
ao convencionado por entender que a coisa objecto do contrato prometido é defeituosa? Isto significa
cumular o pedido de redução do preço com o de cumprimento do contrato – CALVÃO DA SILVA
considera que a solução de permitir ao promitente-comprador cumular o pedido de redução do preço com o
de cumprimento do contrato é a solução que melhor se coaduna com a sinalgamaticidade das prestações:
i) A dar-se o entendimento contrário, estaríamos a empurrar o promitente-comprador para a
resolução do contrato.
ii) A alternativa à resolução não é a aceitação pura e simples da coisa defeituosa, mas a redução do
preço – sendo que as normas relativas à redução do preço se devem considerar aplicáveis por
força do princípio da equiparação.
iii) Assim, dada a falta de conformidade entre o bem prometido e a coisa entregue ou oferecida em
cumprimento, o sinalagma das prestações só é efectivamente conseguido se o juiz as puder
reequilibrar, reduzindo o preço.
iv) Esta é igualmente a solução mais condizente com o princípio da economia processual – não faz
sentido exigir ao promitente-comprador que faça dois pedidos distintos, quando estão os dois
tão ligados que traduzem o cumprimento pontual. A sentença será uma sentença complexa –
constitutiva numa parte e condenatória noutra, valendo nesta parte como título executivo. O que
o promitente não pode fazer é depositar o preço reduzido que entender suficiente, sem que o
juiz tenha atendido ao pedido de redução.

Por fim onde o contrato não tenha sido ainda concluído, em alternativa ao cúmulo defendido pode o
promitente-comprador lançar mão da exceptio non adimpleti contractus, independentemente de culpa do
promitente-vendeor no cumprimento defeituoso pela entrega de objectos com vícios.

Execução específica e embargos de terceiros

O art. 342.º/1 do Código de Processo Civil dispõe que “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente
ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a
realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo
valer, deduzindo embargos de terceiro”. Os embargos de terceiro, que antes estavam ligados apenas à
defesa da possa do embargante, permitem efectivar qualquer direito incompatível com a agressão

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patrimonial, judicialmente ordenada: os direitos atingidos ilegalmente pela penhora ou outro acto
judicial de apreensão de bens podem ser invocados pelo lesado no processo, obstando à venda dos bens.

Como tal, o promitente-comprador com direito à execução específica pode deduzir embargos de
terceiros fundados no seu direito, ainda que não tenha havido tradição da coisa.
i) No caso de contrato-promessa de eficácia meramente obrigacional, o promitente-comprador
tem apenas um direito de crédito à celebração de contrato, sem eficácia real. Porém, por força
das regras da prioridade do registo, pode o promitente-comprador reagir através de embargos
de terceiro contra a penhor posterior ao registo da acção da execução específica.
ii) No caso de contrato-promessa de eficácia real, sendo o direito de crédito oponível erga omnes
por força do registo, o promitente-comprador pode reagir contra a penhora posterior da coisa,
mediante embargos de terceiro.

Note-se que o promitente-comprador mero detentor da coisa não poderá deduzir embargos de terceiro –
só poderá embargar o promitente-comprador que tenha a verdadeira posse.

9. O direito de retenção

O DL n.º 236/80 veio conceder ao promitente-comprador, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do
contrato definitivo, o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do incumprimento (art.
442.º/2). Note-se que o direito de retenção, nos termos do art. 759.º/2, prevalece sobre a hipoteca, ainda
que anteriormente registada (logo, prevalece também sobre o penhor). Não obstante as críticas tecidas a
esta solução, em 1986 o legislador veio acrescentar o art. 755.º/1/f): “o beneficiário da promessa de
transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato
prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos
termos do artigo 442.º”. Apesar de ter havido uma melhoria de ordem sistemática (está previsto no
capítulo adequado, das garantias especiais das obrigações), as críticas substantivas permanecem,
mormente da parte de CALVÃO DA SILVA, que entende ser esta uma protecção exagerada.

O direito de retenção serve uma finalidade dupla:


i) Funciona como uma garantia – é um direito real de garantia.
ii) Visa constranger o promitente-vendedor ao pagamento do crédito resultante do incumprimento
– por força da eficácia retroactiva da resolução do contrato, o promitente-comprador teria de
restituir tudo o que lhe fora prestado; possuindo o direito de retenção da coisa, este constitui um
meio de coacção fortíssimo ao cumprimento.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Âmbito e requisitos de aplicação do direito de retenção

Para que o promitente-comprador seja titular do direito de retenção, é necessário que se verifiquem os
seguintes requisitos:
i) Traditio rei: goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou
constituição de direito real que obteve a tradição da coisa objecto do contrato prometido.
ii) Crédito resultante do incumprimento: o que está em causa é o crédito (dobro do sinal, valor da
coisa ou indemnização convencionada nos termos do art. 442.º/4) derivada do incumprimento
definitivo, de que o direito de retenção constitui garantia acessória.

E no caso da promessa de transmissão ou constituição de direito real sobre fracção autónoma de edifício em
construção ou a construir, ainda não submetido ao regime da propriedade horizontal? Temos aqui uma
situação transitória, em que a fracção autónoma apenas pode ser vista como coisa futura dado que a
propriedade horizontal não foi ainda constituída – e o direito de retenção só pode recair sobre coisas
presentes, uma vez que a coisa retida tem de estar na posse do detentor.

No entanto, o imóvel construído, em construção ou inacabado, não sujeito ao regime da propriedade


horizontal ou do direito real de habitação periódica, constitui uma coisa em sentido jurídico, podendo
ser objecto do direito de retenção. Só que a existir, o direito de retenção pertencerá aos diversos
promitentes-compradores, na proporção do valor relativo da fracção autónoma ou do direito real de
habitação periódica que cada um deles tenha prometido adquirir. Pelo art. 824.º, a coisa vendida em
execução é transmitida livre dos direitos reais de garantia que a onerarem (n.º 2), com esses direitos de
terceiros assim caducados a transferirem-se para o produto da venda dos respectivos bens (n.º 3). Assim, há
uma sub-rogação do objecto do direito de retenção, transferindo-se este para o produto da venda na
proporção do valor de cada um (os direitos de crédito serão graduados na proporção do valor
correspondente à fracção autónoma – a entender-se o contrário, teríamos o absurdo da extensão do
direito de retenção sobre uma fracção sobre todo o imóvel, o que se traduziria numa sobregarantia de
autotutela contrária à boa fé.

Embargos de terceiro e reclamação de créditos

Quais os mecanismos jurídico-processuais de aplicação do direito de retenção? Desde logo, o titular do


direito de retenção pode
i) Usar das acções destinadas à defesa da posse (art. 670.º/a) e arts. 758.º e 759.º/3).
ii) Executar a coisa retida (art. 675.º e arts. 758.º e 759.º).
iii) Ser pago com preferência sobre os demais credores (art. 666.º, por força dos arts. 758.º e 759.º).

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iv) Recorrer aos embargos de terceiro, em caso de diligência ordenada judicialmente que não
acarrete a caducidade do seu direito.

A caducidade do direito de retenção ocorre em consequência da venda executiva, art. 824.º/2: o bem é
transmitido livre dos direitos de garantia que o oneram. Esta é a forma de a lei proteger os compradores
nestas vendas forçadas, uma vez que o direito de detenção (ao contrário da hipoteca, que é sujeito a
registo) não tem qualquer forma de publicidade. Por outro lado, o art. 824.º/3 diz-nos que o direito de
crédito do promitente-comprador se transfere para o produto da venda – há uma sub-rogação do objecto.

Assim, na hipótese de diligência judicial de que resulte a caducidade do direito de retenção, o


promitente-comprador não poderá embargar de terceiro para fazer valer o seu direito de retenção, uma
vez que este caducou (art. 824.º/2). Deve distinguir-se consoante o promitente-comprador se apresente
ou não a reclamar o seu crédito no processo executivo:
i) Se o promitente-comprador reclamar o seu crédito (tendo sido citado para tal ou reclamando
espontaneamente), o direito de retenção caduca em consequência da alienação e o direito de
crédito transfere-se para o produto da venda do respectivo bem (art. 824.º/3), com a mesma
prioridade ou preferência que o direito caducado lhe conferia.
ii) Se o promitente-comprador não reclamar o seu crédito, (apesar de citado pessoalmente, ou por
não apresentar reclamação espontaneamente), o direito de retenção caduca sem transferência do
direito de crédito para o produto da venda do bem, o que significa que o promitente-comprador
apenas se pode pagar o crédito na qualidade de credor comum.
iii) Se o promitente-comprador não reclamar o crédito por não ter sido citado, pode ele arguir a
nulidade da falta de citação. No caso de ainda não ter sido vendido nem adjudicado o bem
onerado, o juiz anula todo o processo posteriormente à citação e o beneficiário pode reclamar o
seu direito de crédito. Se já tiver sido vendido o bem, o art. 786.º/6 do Código de Processo Civil
dispõe que não haverá anulações das vendas das quais o exequente não haja sido exclusivo
beneficiário, restando à pessoa que deveria ter sido cita o direito a uma indemnização, segundo
as regras do enriquecimento sem causa, e sem prejuízo da responsabilidade civil da pessoa a
quem seja imputável a falta de citação. Estas indemnizações serão pedidas em acção de
condenação especialmente proposta para o efeito.

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Capítulo VI: Pacto de preferência

1. Noção

O pacto de preferência, previsto no art. 414.º e segs., é o contrato pelo qual alguém assume a obrigação de,
em igualdade de condições, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como seu contraente, no
caso de se decidir a celebrar determinado negócio. Os pactos de preferência são admitidos em relação à
compra e venda (art. 414.º), mas também relativamente a todos os contratos onerosos em que faça
sentido a opção por certa pessoa sobre quaisquer outros concorrentes (art. 423.º).

Quanto à forma do pacto de preferência, a lei estabelece os mesmos requisitos que para o contrato
promessa, art. 415.º): se a preferência respeitar a contrato para cuja celebração a lei exija documento
autêntico ou particular, o pacto só é válido se contar de documento escrito, assinado pelo obrigado.

Tal como o contrato promessa, o pacto de preferência pode ter eficácia meramente obrigacional ou
eficácia real, quando se reporte a bens móveis ou imóveis sujeitos a registo, desde que se verifiquem os
requisitos exigidos para o caso paralelo do contrato promessa (art. 421.º/1). Quando assim suceda, a
promessa torna-se um verdadeiro direito real de aquisição, oponível ao terceiro adquirente da coisa,
igualmente atendível nos processos de execução e liquidação.

2. Figuras próximas

O pacto de preferência não se confunde com...


i) Contrato promessa: enquanto que no contrato promessa o promitente obriga-se a contratar, no
pacto de preferência o vinculado não se obriga a contratar, prometendo apenas, se contratar,
preferir certa pessoa a qualquer outro interessado.
ii) Venda a retro: a venda a retro assenta sobre uma cláusula resolutiva e implica a faculdade de
resolução da venda anterior por simples declaração de vontade do vendedor. O pacto de
preferência prevê a celebração de um contrato futuro, sobre o qual se exerce então o direito
conferido ao titular da preferência.
iii) Pacto de opção: consiste na declaração contratual de uma das partes num contrato em
formação, enquanto que o pacto de preferência prevê a celebração de um eventual contrato
futuro.

3. Modalidades

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

O pacto de preferência pode ter fonte na lei – preferência legal – ou num contrato – preferência
convencional. Dentro da preferência convencional, esta pode ter, como vimos, eficácia real ou
obrigacional. Quid iuris se tivermos, num caso, três tipos de preferências? Estas são graduadas de
seguinte forma:
i) Preferência real;
ii) Preferência convencional de eficácia real;
iii) Preferência convencional de eficácia obrigacional.

4. Cumprimento do pacto de preferência

Como se cumpre o pacto de preferência? Se o obrigado quiser celebrar o contrato, terá de comunicar ao
preferente, por meio de notificação judicial ou extrajudicial, não apenas a sua intenção de contratar,
mas também as cláusulas do contrato que está pronto a celebrar, para que ele possa usar do seu direito –
art. 416.º. Ou seja, se o obrigado à preferência quiser celebrar o contrato com terceiro, tem de comunicar
ao preferente o projecto de venda que tem com esse terceiro, para que o preferente possa exercer o seu
direito. Se o notificado declinar a preferência ou nada disser dentro do prazo devido, o seu direito
caduca. Nos termos do art. 416.º/2, o titular do direito de preferência deve exercer o seu direito dentro de
oito dias, salvo se estiver vinculado a uma prazo mais curo ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.

Será que este dever de comunicação implica que o contrato seja comunicado na íntegra? À primeira vista,
pela letra do art. 416.º/1, parece que sim. No entanto, o art. 1410.º/1 (acção de preferência) fala-nos dos
“elementos essenciais da alienação”: com efeito, a ratio da comunicação aponta para que devam ser
comunicadas todas as cláusulas determinantes e fundamentais para a formação da vontade do preferente,
ou seja, o dever de comunicação abrange as cláusulas essenciais para a determinação da vontade do
preferente. O que se deve entender por cláusulas essenciais?
i) Condições do preço: é, sem dúvida, essencial.
ii) Identidade do terceiro: apesar de, na maior parte dos casos, ser irrelevante a identidade do
terceiro que se dispôs igualmente a contratar, poderá haver casos em que isto será determinante.
Por exemplo, na preferência legal conferida ao arrendatário, será essencial a comunicação da
identidade do terceiro, uma vez que, a celebrar-se o contrato com este, será o seu novo
senhorio.

4. Violação da preferência

Podemos conceber duas situações de incumprimento:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

i) O preferente exerce o seu direito de preferência e a outra parte opõe-se. O direito de preferir é um
direito potestativo, que não pode ser violado: o que pode ser violado é o direito de crédito daí
resultante. Para estes casos, CALVÃO DA SILVA defende que se deveria recorrer ao art. 830.º, para
a celebração do contrato que resulta do exercício do direito potestativo de preferência: este é
um contrato promessa. Atenção: temos uma situação destas quando o obrigado comunica o
projecto de venda, o preferente diz que quer preferir e o outro opõe-se. Situação diferente é a
que ocorre quando, independentemente de qualquer projecto de venda que tenha com
terceiro, o obrigado pergunta “queres comprar?” (proposta), o preferente diz “sim” e o obrigado
vende a coisa a terceiro. Aí, já temos um contrato celebrado, pois houve proposta e aceitação,
logo o problema que se coloca é de venda de coisa alheia – não confundir a notificação para
preferência com a proposta de contrato.
ii) O dever de comunicação é violado, quer não havendo comunicação, quer havendo
comunicação defeituosa. É esta situação que importa resolver.

Quando o obrigado à preferência A aliena a coisa a terceiro C, sem notificar, ou fazendo-o


defeituosamente, o preferente B, só através da acção de preferência o direito de preferência prevalecerá
sobre o negócio já efectuado. Mas quando é que se pode recorrer à acção de preferência? Segundo o
ensino tradicional, o preferente apenas pode recorrer à acção de preferência no pacto de preferência de
eficácia real; quanto este tiver eficácia meramente obrigacional, terá de se contentar com a indemnização
dos danos causados pela violação do pacto.
i) Pacto de preferência com eficácia real, art. 421.º: a doutrina tradicional restringe a acção de
preferência aos casos em que o pacto goza de eficácia real, pois tem a publicidade garantida por
registo, sendo o direito oponível a terceiros. Através da acção de preferência, prevista no art.
1410.º, o preferente irá ocupar o lugar do terceiro, ou seja, este é sub-rogado pelo verdadeiro
preferente – a procedência da acção de preferência tem como resultado a substituição do
adquirente pelo autor, com efeito retroactivo, no contrato celebrado, tudo se passando como se o
contrato tivesse sido celebrado entre o alienante e o preferente. O prazo para intentar esta acção é
de 6 meses a partir do conhecimento dos elementos essenciais da alienação, devendo o
preferente depositar o preço do negócio nos 15 dias posteriores à propositura da acção. Se a
violação da preferência tiver sido precedida de promessa de venda ao adquirente, mantém-se o
prazo de 6 meses, porém esta pode servir de objecto à acção quando o alienante não se tiver
reservado ou a lei não lhe conceder o direito de arrependimento.
ii) Pacto de preferência com eficácia obrigacional: neste caso, o preferente apenas pode propor
uma acção de indemnização pelos danos causados. No entanto, CALVÃO DA SILVA entende que
também aqui se poderia recorrer ao art. 1410.º, à semelhança do que sucede no contrato
promessa e execução específica, com as regras da prioridade do registo: se A violar o pacto, não

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

comunicando, e vender a C, se B vier a propor uma acção de preferência e registar a acção antes
do registo de aquisição por C, o direito de preferência prevalecerá.

Outra questão que se coloca é a seguinte: contra quem deve ser proposta a acção de preferência?
A NTUNES V ARELA defende, contra uma orientação jurisprudencial do Supremo que vingou durante
certo tempo, que esta deve ser intentada não só contra o adquirente, mas também contra o alienante,
visto a lei mandar citar os réus, no plural.

5. Venda de coisa conjuntamente com outra: art. 417.º

Pode suceder que o obrigado aliene, por um preço global, uma ou mais coisas juntamente com a que é
objecto da preferência – muitas vezes, esta é uma forma de o obrigado tentar contornar o pacto de
preferência a que está vinculado. A lei veio tentar resolver este problema no art. 417.º:
i) Concede-se ao preferente a faculdade de restringir o direito de preferência à coisa a que o pacto se
refere, reduzindo o preço devido à importância que proporcionalmente corresponde a essa
coisa. Na falta de acordo sobre o preço, terá de se recorrer à acção de arbitragem necessária para
fixar o valor proporcional da coisa.
ii) O obrigado pode, contudo, opor-se à separação das coisa, se ela envolver um prejuízo apreciável
para os seus interesses. Neste caso, o titular da preferência terá de exercer o seu direito, se não o
quiser perder, relativamente ao conjunto das coisas alienadas e pelo preço global.

Este é um jogo casuístico, na qual o juiz terá uma grande margem de discricionariedade para apreciar, no
caso concreto, se a preferência recai apenas sobre uma coisa ou sobre todas no global. Pressupõe-se a
boa fé do vendedor; porém, se se provar que este está de má fé, o direito de preferência abrangerá apenas
a coisa sobre a qual recai o direito.

6. Venda de coisa com prestação acessória: art. 418.º

Pode também suceder que o obrigado receba de terceiro uma proposta com prestação acessória, que o
preferente não possa satisfazer: A celebra um pacto de preferência com B, dando-lhe o direito de
preferência sobre a sua casa. Passados 15 anos, C quer comprar a casa, comprometendo-se a prestar a A,
que tem já idade avançada, a prestar todos os cuidados de saúde. Como funciona o direito de preferência
nestes casos?
i) Esta prestação acessória é de todo irrelevante se tiver sido convencionada com o mero intuito de
afastar a preferência (art. 418.º/2).

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

ii) Esta também não terá qualquer efeito se, não sendo avaliável em dinheiro, não for essencial ao
contrato que o obrigado pretende celebrar.
iii) Se a prestação for essencial, e não havendo intuito fraudulento das partes:
a. Não sendo avaliável em dinheiro, a preferência fica excluída, mas sem prejuízo da
indemnização a que o seu titular tenha direito.
b. Sendo avaliável em dinheiro, o titular da preferência que pretenda exercer o seu direito
terá de acrescentar o valor dela ao preço convencionado.

7. Pluralidade de preferentes: art. 419.º

Podemos distinguir duas situações de pluralidade de preferentes:


i) Titularidade conjunta, 1ª parte: a preferência deve ser exercida conjuntamente por todos os seus
titulares, como no caso de dois ou mais herdeiros haverem sucedido ao titular de um direito de
preferência que os interessados consideraram transmissível por morte (art. 420.º). Nesse caso, se
algum dos interessados não puder ou não quiser usar da preferência, o direito dos restantes
amplia-se imediatamente a todo o objecto do pacto.
ii) Titularidade disjuntiva ou sucessiva, 2ª parte:
a. Titularidade disjuntiva: o direito pertence a vários titulares mas apenas pode ser exercido
por um deles. Se não chegarem a acordo, abrir-se-á uma licitação entre eles, a partir do
preço estipulado, revertendo o excesso a favor do alienante.
b. Titularidade sucessiva: existe uma ordem de preferência entre os vários titulares, que
deve ser observada (se não prefere o primeiro, prefere o segundo, etc.).

8. Natureza jurídica

Rejeitam-se as teses que reconduzem a natureza do pacto de preferência a:


i) Contrato promessa: há certos autores que enquadram os pactos de preferência na figura mais
ampla dos contratos-promessa; porém, não há, nos pactos de preferência, nenhuma obrigação
de contratar. A isto argumentam os defensores da tese com a afirmação de que o pacto de
preferência é um contrato promessa unilateral, feito sob uma dupla condição: a de o obrigado
querer efectuar o contrato a que a preferência se refere, e a de o titular da preferência querer
aceitar. Porém, esta dupla condição desfigura por completo o sentido do pacto de preferência:
não faz sentido afirmar que alguém está obrigado a contratar quando tal dependa da sua livre
vontade; e enquanto que a condição é um elemento exterior ao contrato, a liberdade de decisão
da parte que decide celebrar e da que prefere é um elemento essencial do esquema do pacto de
preferência.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

ii) Pacto de opção: na opção, mais do que uma obrigação de contratar, há uma proposta contratual
que, para se aperfeiçoar e converter num contrato definitivo, carece apenas da aceitação da
outra parte.

O pacto de preferência é assim um contrato sui generis, cujo objecto típico está na obrigação de escolha
daquele que será o futuro contraente, se o obrigado vier a contratar. É um contrato com prestação de
facto positiva: a de escolher determinada pessoa, no caso de o obrigado se decidir a realizar o negócio. Se
o obrigado à preferência celebrar o negócio com terceiro, passa o titular da preferência a gozar de um
verdadeiro direito potestativo, por virtude do qual, mediante uma simples declaração unilateral de
vontade integrada pela sentença judicial, se pode substituir ao adquirente.

Há quem sustente que a prestação de facto a que o obrigado se encontra vinculado é uma prestação de
facto negativa, de não contratar com terceiro. No entanto, não é esta a concepção que se melhor se
coaduna com a lei, uma vez que, tanto na notificação para preferência, como na acção de preferência,
não se trata apenas de destruir o projecto de contrato ou o contrato, mas sim de investir o titular da
preferência na posição contratual prometida.

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Capítulo VII: Contrato a favor de terceiro

1. Noção

O contrato a favor de terceiro é o contrato pelo qual uma das partes (promitente) se obrigada perante
outra (promissário) a realizar uma prestação (de coisa ou de facto) a favor de terceiro, estranho à relação
contratual – art. 443.º. Algumas notas sobre os termos em que a lei admite este contrato:
i) Apesar de não estar previsto no Código de Seabra, o Código de 1966 veio admitir em termos
bastante amplos os contratos a favor de terceiro. O requisito estabelecido para a validade destes
contratos é paralelo ao que vigora para a constituição de qualquer obrigação: o promissário tem
de ter na prestação prometida ao terceiro um interesse digno de protecção legal, ou seja, um
interesse sério, atendível à luz da ordem jurídica, em atribuir o direito ao terceiro beneficiário.
Este interesse pode revestir carácter patrimonial ou não.
ii) O contrato a favor de terceiro pode ter eficácia meramente obrigacional (n.º 1) ou ainda eficácia
real (n.º 2) – através deste, as partes podem remitir dívidas e constituir, modificar, transmitir ou
extinguir direitos reais.
iii) Não é essencial a esta figura o carácter gratuito da vantagem proporcionada ao beneficiário.

Exemplos de contratos a favor de terceiro:


i) A promete a B pagar a dívida de C;
ii) A promete a B dar de hipoteca uma sua casa a um empréstimo que C quer contrair junto do
banco;
iii) A celebra com B, companhia seguradora, um contrato de seguro de vida a favor de C.

2. Figuras próximas

- Contratos autorizativos de prestação a terceiro: são contratos cuja prestação principal se destina a
terceiro, mas sem que este adquira previamente, segundo a intenção dos contraentes e o próprio
conteúdo do contrato, qualquer direito de crédito à prestação. Não há nestes casos nenhuma obrigação
que o devedor assuma perante o terceiro destinatário. Ao contrário, no contrato a favor de terceiro, os
contraentes procedem com a intenção de atribuir, através dele, um direito de crédito a terceiro. São
exemplos de contratos autorizativos de prestação a terceiro:
i) A compra na florista B um ramo de flores para ser enviado a C;
ii) A, lavrador, obrigado a fornecer 5 00 litros de azeite a um armazém C e não chegando a sua
produção, compra ao lavrador vizinho B a quantidade em falta, com a indicação do armazém C
para onde deve ser remetido.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

- Contratos com eficácia de protecção em relação a terceiros (Bibliografia: CALVÃO DA SILVA,


Responsabilidade civil do produtor): os contratos com eficácia de protecção em relação a terceiros são
contratos com eficácia protectora ou protecção acessória para terceiros, ou seja, frente aos quais gera certos
deveres de conduta ou deveres de protecção, fundando uma relação obrigacional secundária, sem qualquer
dever primário de prestação. Esta figura foi inicialmente criada pela jurisprudência alemã a coberto do
contrato a favor de terceiro, mas rapidamente se emancipou deste, na esteira da distinção de STOLL entre
obrigações de prestação e obrigações de protecção, sendo que aqui se estendem a terceiros apenas
obrigações de protecção e não de prestação. Os terceiros não têm, assim nenhum direito à prestação
principal nem direito ao cumprimento, distinguindo-se nesta medida do contrato a favor de terceiro. São
exemplos de contratos com eficácia de protecção para terceiros:
i) A dá de arrendamento uma casa a B, pai de família. Em virtude de defeitos nela existentes, ocorre
um acidente que fere o inquilino e a sua mulher e filhos. Apesar de estes não serem titulares da
prestação principal, o dever acessório de manutenção da segurança do imóvel (dever lateral
integrante da obrigação do locador assegurar o gozo da coisa locada) estende-se aos restantes
familiares, que por isso também podem pedir uma indemnização ao senhorio. Está por isso em
causa um alargamento da responsabilidade contratual face a pessoas que não são partes
contratuais, devido à rigidez e desvantagem da responsabilidade extracontratual.

Que terceiros são estes abrangidos no círculo de protecção? Tendo em conta que está precisamente esse
alargamento da responsabilidade, com afrontamento do princípio da relatividade dos efeitos dos
contratos, a jurisprudência e a doutrina alemã limitam este contrato a uma situação de “contacto social”,
caracterizada pelos três elementos seguintes:
i) Proximidade dos terceiros da prestação devida ao credor.
ii) Interesse especial do credor em proteger os terceiros dos eventuais riscos resultantes da
prestação.
iii) Previsibilidade ou cognoscibilidade dos dois elementos anteriores, por parte do devedor, no
momento da conclusão do contrato.

3. O direito à prestação e o direito a exigir o cumprimento

O contrato a favor de terceiro é, no seu aspecto instrumental, o meio de que o promissário se serve para
efectuar uma atribuição patrimonial indirecta em benefício de terceiro. A relação entre o promitente e o
promissário é a relação que alimenta, subsidia ou cobre o direito conferido a terceiro, sendo que é dela
que o promitente tira cobertura para a atribuição a que fica adstrito – daí chamar-se relação de cobertura.
Já a relação estabelecida entre o promissário e o terceiro beneficiário é a relação de valuta.

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Como efeito imediato do contrato, o terceiro adquire o direito à prestação, independentemente da sua
aceitação ou conhecimento. Este direito coenvolve o poder de exigir o cumprimento do contrato – é esta
faculdade que dá ao direito à prestação a sua exequibilidade. Porém, a lei atribui igualmente o poder de
exigir o cumprimento do contrato ao promissário, que é um poder instrumental e acessório, ao serviço do
interesse fundamental do terceiro. A lei distingue assim, devidamente, o direito à prestação e o poder de
exigir o seu cumprimento:
i) Art. 444.º/1: o terceiro adquire o direito à prestação, que inclui o direito de exigir o
cumprimento.
ii) Art. 444.º/2: o promissário pode “igualmente” exercer a faculdade de exigir o cumprimento, para
além do terceiro.

No entanto, quando se trate de promessa de exonerar o promissário de uma dívida que este tenha com um
terceiro, só o promissário pode exigir o cumprimento da promessa. Isto permite distinguir o contrato a
favor de terceiro da assunção de dívidas, em que o credor adquire o direito de exigir do assuntor a
realização da prestação devida (art. 595.º) – já na promessa de exonerar o promissário de uma dívida
deste para com um terceiro, o promitente obriga-se a pagar a dívida, mas não a assume.

4. Adesão ou rejeição da prestação pelo terceiro

Vimos que o terceiro adquire direito à prestação como efeito imediato do contrato, independentemente
da aceitação ou até do conhecimento da celebração do contrato. Porém, nos termos do art. 447.º, o
terceiro pode aceitar ou rejeitar a promessa:
i) A aceitação ou adesão deve ser comunicada ao promitente, uma vez que é sobre este que recai o
dever de cumprir, e ao promissário. A comunicação da adesão ao promissário justifica-se por
esta ter um efeito útil, a de precludir a revogação da promessa por parte do promissário. Assim,
enquanto que a adesão não for comunicada ao promissário, mesmo que o seja ao promitente,
pode aquele revogar a promessa; enquanto não for comunicada ao promitente, não incorrerá
este em mora, nem estará vinculado aos deveres secundários de conduta.
ii) O terceiro pode também rejeitar o direito: embora a sua atribuição representa para o
beneficiário uma vantagem, entende-se que esta não deve ser imposta contra a sua vontade. O
direito de rejeitar é um direito potestativo do terceiro beneficiário, e destrói retroactivamente os
efeitos da aquisição imediata do direito, reconstituindo a situação jurídica existente no
momento anterior à celebração do contrato. A rejeição faz-se mediante declaração ao promitente,
uma vez que é este que tem o dever de cumprir, devendo comunicá-la ao promissário. Se aquele,
culposamente, não o fizer, será responsável perante o promissário.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

Algumas notas sobre a revogação – art. 448.º.


i) A faculdade de revogação pode ser afastada por convenção em contrário.
ii) Se a prestação for para ser realizada post mortem, presume-se que só depois de o promissário
falecer é que o terceiro adquire o direito à prestação, logo a promessa é revogável enquanto o
promissário for vivo – art. 448.º/1 e art. 451.º.
iii) O direito de revogação pertence ao promissário (art. 448.º/2, 1ª parte); porém, se for feita em
benefício de ambas as partes, a revogação pressupõe o consentimento de ambos (2ª parte).
Exemplo: A, banco, promete a B que abre um crédito a favor de C. Como esta promessa é feita
igualmente no interesse do banco, a revogação por parte de B depende do seu acordo.

5. Excepções oponíveis pelo promitente ao terceiro

O promitente apenas pode opor ao terceiro, nos termos do art. 449.º, os meios de defesa derivados do
contrato, ou seja, da relação de cobertura. É o que sucede, por exemplo, se o contrato for nulo ou
anulável por carência de forma ou por falta ou vícios da vontade; se caducar por verificação da condição
resolutiva ou não verificação da condição suspensiva; se houver fundamento para a excepção de não
cumprimento – todos estes meios de defesa são oponíveis quer ao promissário, quer ao terceiro.

O que o promitente não pode fazer é invocar os meios de defesa baseados em qualquer outra relação entre
ele e o promissário, ou na relação de valuta entre promissário e terceiro – é assim que se deve ler o art. 449.º,
2ª parte. O direito à prestação está afectado pelos vícios genéticos do contrato (entre promitente e
promissário), sendo alheio a vícios de outras relações.

6. Prestação em benefício de pessoas indeterminadas

O destinatário da prestação estipulada nos contratos a favor de terceiro é, em regra, uma ou mais pessoas
determinadas; mas pode suceder, e acontece frequentemente nas liberdades modais ou com encargos (o
modo é uma cláusula acessória típica pela qual, nas doações e liberalidades testamentárias, o disponente
impõe ao beneficiário da liberalidade um encargo, ou seja, a obrigação de adoptar um certo
comportamento no interesse do disponente, de terceiro ou do próprio beneficiário – art. 963.º e 2244.º)
que a prestação vise proteger um interesse público ou se destine a um conjunto indeterminado de pessoas.
Por exemplo: doam-se certos quadros, mas com o encargo de o donatário os manter expostos ao público;
doa-se um prédio rústico com o encargo de o jardim continuar a ser utilizado pelas crianças de uma certa
localidade.

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

A natureza dos interesses favorecido e a falta de pessoa determinada que zele pelo cumprimento da
prestação fazem com que a lei introduza certas especialidades no tratamento jurídico:
i) O direito de exigir o cumprimento pertence ao promissário e aos seus herdeiros (esta é a regra
geral), mas também às entidades competentes para a tutela dos interesses em causa – art. 445.º.
ii) Por outro lado, recusa-se a essas entidades, bem como aos herdeiros do promissário, o poder de
disporem da prestação, uma vez que esta não se destina a satisfazer o interesse particular deles,
mas o interesse ideal do doador e, nalguns casos, o interesse público – art. 446.º/1.
iii) Por último, atribui-se às entidades competentes e aos herdeiros do promissário o direito de
exigirem a indemnização devida, no caso de impossibilidade imputável ao promitente. Ponto é
que o montante indemnizatório ficará adstrito à realização do fim social, dos interesses vidados
pelo doador.

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Capítulo VIII: Contrato para pessoa a nomear

1. Noção

O contrato para pessoa a nomear é o contrato em que uma das partes se reserva a faculdade de designar
uma outra pessoa que assuma a sua posição na relação contratual, como se o contrato tivesse sido celerado
com esta última – art. 452.º/1. Não há aqui nenhum desvio ao princípio da eficácia relativa dos contratos:
o contrato produz os seus efeitos apenas entre os contraentes que, enquanto não há a designação do
amicus electus, são os outorgantes do contrato. Depoos da designação, o contraente passa a ser já não o
outorgante, mas a pessoa designada – art. 455.º/1.

2. Figuras próximas

O contrato para pessoa a nomear distingue-se das seguintes figuras:


i) Negócio por meio de representação: enquanto que este produz imediatamente os seus efeitos na
esfera jurídica do representado, o contrato para pessoa a nomear começa por produzir os seus
efeitos em relação ao interveniente no negócio, apenas podendo vir a produzir efeitos na esfera
de uma pessoa. É esta alternatividade potencial que caracteriza o contrato para pessoa a nomear.
ii) Negócio em nome de pessoa que posteriormente se designará ou contrato para a pessoa a quem
pertencer: neste caso, o interveniente não é contraente, e o negócio só produzirá efeitos em
relação à pessoa prevista se esta o ratificar ou se o interveniente tiver, de facto, poderes de
representação.
iii) Contrato a favor de terceiro: o promitente e o promissário são os únicos contraentes, mesmo
após a adesão do terceiro; no contrato para pessoa a nomear, uma vez efectuada e aceite a
nomeação, um dos intervenientes perde a qualidade de contraente e o terceiro nomeado passa a
figurar como contraente deste a celebração do contrato.
iv) Gestão de negócios: além de esta se poder exprimir em actos que não contratos, envolve a
intervenção do gestor em negócios alheios, enquanto que o contrato para pessoa a nomear pode
consolidar-se definitivamente na sua titularidade.
v) Mandato sem representação: o mandatário não deixa de ser contraente em face dos terceiros
com quem negociou, mesmo depois de transferir para o mandante os direitos e obrigações; no
contrato para pessoa a nomear, uma vez efectuada a nomeação, os efeitos do negócio
encabeçam-se retroactivamente na titularidade da pessoa nomeada.
vi) Contrato promessa: o contrato para pessoa a nomear é um contrato definitivo.

3. Regime jurídico

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Desde logo, a lei não admite a reserva de nomeação quando (art. 452.º/2):
i) Não seja possível a representação – temos aqui uma espécie de representação.
ii) Seja indispensável a determinação dos contraentes.

Para que a declaração de nomeação seja eficaz, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos –
art. 453.º:
i) A nomeação tem de ser feita por documento escrito;
ii) Dentro do prazo convencionado ou, na falta de convenção, dos cinco dias posteriores à
celebração do contrato;
iii) E deve ser acompanhada do instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior ao
contrato.
a. Ratificação: tem de constar de documento escrito, art. 454.º/1, salvo se o contrato tiver
sido celebrado por documento mais solene, caso em que a ratificação tem de ter forma
igual à do contrato (art. 454.º/2 e 413.º).
b. Procuração: também pode suceder que o terceiro nomeado, antes de um dos contraentes
ter celebrado o contrato, tenha passado uma procuração, caso em que esta deve constar
da declaração de nomeação.

Quais os efeitos da nomeação?


i) Sendo a nomeação feita nos termos em que vimos, o terceiro ocupa o lugar de um dos
contraentes como se tivesse sido ele a celebrar o contrato. Isto significa que há uma eficácia
retroactiva da declaração de aceitação – art. 455.º/1.
ii) Não sendo feita a declaração de nomeação nos termos legais, o contrato produz os seus efeitos
relativamente ao contraente originário, desde que não haja estipulação em contrário (n.º 2).
iii) Se o contrato estiver sujeito a registo, para que a designação da pessoa produza efeitos em
relação a terceiros, admite-se a inscrição originária em nome do contraente originário, com
indicação da cláusula para pessoa a nomear, e a inscrição subsequente em nome do
interveniente, mediante o averbamento adequado (art. 456.º).

4. Natureza jurídica

1. Tese da representação: segundo alguns autores, o contrato para pessoa a nomear é uma modalidade
especial da representação, em que o dominus negotii é designado em data posterior, ou seja, o titular do
contrato seria representado “de modo anónimo”. Existem algumas semelhanças entre a representação e o
contrato para pessoa a nomear:

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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014

i) Uma vez nomeada a pessoa, tudo se passa como se tivesse havido representação.
ii) Se a cláusula tem por trás uma procuração anterior, maiores são as afinidades com a
representação (embora se aproxime mais de um mandato sem representação).
iii) Não se admite a cláusula para pessoa a nomear nos casos em que não é admitida a
representação.

Porém, o recurso à ideia da representação anónima não toca num aspecto fundamental da cláusula: não
só o contrato é celebrado em nome próprio, ou seja, não existe a contemplatio domini característica da
representação; como existe a possibilidade de o contrato se vir a consolidar na titularidade do
interveniente. Na representação os efeitos produzem-se directamente na esfera do representado ab initio,
não há qualquer eficácia retroactiva. Também não se aplica o preceito relativo à representação sem
poderes, art. 268.º.

2. Tese da condição: esta tese, mais certeira, defende que a cláusula para pessoa a nomear é uma condição
do contrato – de efeito resolutivo, quanto à titularidade do interveniente, e de efeito suspensivo, quanto à
aquisição da pessoa nomeada. No fundo, o contrato para pessoa a nomear tem, quanto a uma das suas
partes, dois sujeitos em alternativa: quando uma das partes se reserva o direito de nomear, fica o contrato
celebrado suspenso da aquisição pelo nomeado; quando há a nomeação, esta nomeação tem um efeito
resolutivo da aquisição pelo nomeante. Não havendo este efeito resolutivo, o negócio mantém-se válido
e eficaz entre os contraentes originários.

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Capítulo IX: Negócios unilaterais

1. Princípio da tipicidade

Nos negócios bilaterais, vale o princípio da liberdade contratual, e nos negócios unilaterais? Deverá
admitir-se livremente como fonte de obrigações? O art. 457.º dá-nos uma resposta: a promessa unilateral
de uma prestação só obriga (ou seja, só é fonte de obrigações) nos casos previstos na leis, pelo que nos
negócios unilaterais vale o princípio da tipicidade. Para A NTUNES V ARELA, a explicação deste princípio
assenta no facto de não ser razoável manter alguém irrevogavelmente obrigado perante outrem, com base
numa simples declaração unilateral de vontade, visto não haver conveniências práticas do tráfico que o
exijam, nem quaisquer expectativas do beneficiário dignas de tutela.

CALVÃO DA SILVA interpreta este princípio como assente no sistema da causalidade – o nosso sistema é o
da causalidade, não da abstracção, o que significa que não devemos admitir declarações abstractas, das
quais não se saiba qual a causa material subjacente. Ao contrário do direito alemão, que funciona num
sistema de abstracção, o ordenamento português quer sempre saber qual a causa real dos efeitos
jurídicos, sendo que a última ratio deste princípio podemos vê-la no enriquecimento sem causa. Isto
com excepção do Direito Comercial, no qual, em nome da circularidade dos títulos de crédito, se entra
na abstracção – os cheques, por exemplo, circulam abstraindo da sua causa inicial, da primeira relação
que lhe deu origem; caso contrário (por exemplo, se a primeira compra e venda fosse nula e o cheque
devesse ser restituído), não haveria fiabilidade no cheque como meio de pagamento.

Assim, CALVÃO DA SILVA defende que se deve fazer uma interpretação restritiva deste artigo de acordo
com a sua racionalidade, expandido ao máximo a validade das promessas unilaterais. E a interpretação
restritiva é a que coincide com o princípio da causalidade: a promessa unilateral de uma prestação não
causada só obriga nos casos previstos da lei. É esta a ratio legis desta limitação, posto que, a partir do
momento em que uma promessa unilateral tem uma causa real, tem-se controlo sobre ela.

2. Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida

A promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, previstas no art. 458.º, formam um caso de


promessa unilateral expressamente prevista na lei? Por exemplo: A promete pagar 1000, ou reconhece ter
uma dívida de 1000, perante B, sem indicar a causa dessa promessa. Ora, a promessa de cumprimento e
reconhecimento de dívida não constituem fonte autónoma de obrigações: a verdadeira fonte de obrigações é
a relação fundamental a que se referem (por exemplo, um negócio de compra e venda, em que A fica
obrigado a pagar 1000 a B). Estas criam apenas uma presunção da existência de uma relação negocial ou

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extranegocial, que lhes está na base, por isso que se inverte o ónus da prova: B está dispensado de provar a
relação fundamental, que se presume até prova em contrário; mas se A ou os seus sucessores provarem
que a relação não existe, a promessa é inválida.

3. Promessa pública

Assim, abstraindo dos negócios unilaterais instrumentais (ex: a resolução do contrato), o Código apenas
prevê e regula as promessas públicas. Diz-se promessa pública a declaração, feita mediante anúncio, na
qual o autor se obriga a dar uma recompensa ou gratificação a quem se encontre em determinada situação
ou pratique certo facto. O anúncio pode ser feito por intermédio da imprensa, televisão, rádio, afixação em
lugar público, etc., e tem geralmente o sentido de um prémio ou recompensa pela prática de certo facto:
por exemplo, a descoberta de um criminoso, a entrega de um animal perdido ou o melhor
aproveitamento numa escola. Não se confunde com as ofertas ao público a que se refere o art. 230.º/3,
que são propostas negociais que, fazendo parte de um contrato em formação ou em mera expectativa, só
se aperfeiçoam com a aceitação da outra parte, que completa o ciclo da formação contratual.

Notas sobre o regime da promessa pública:


i) A constituição da obrigação prescinde da aceitação do credor, nascendo directamente da
declaração do promitente (n.º 1).
ii) O promitente fica obrigado mesmo em relação aqueles que se encontrem na situação prevista ou
tenham praticado o facto sem atenderem à promessa ou na ignorância dela (n.º 2). A lei adere à
doutrina segundo a qual a promessa pública é fonte de uma obrigação sob condição, realizando-
se a prestação se se vier a verificar o acontecimento futuro e incerto, rejeitando a tese da proposta
contratual a incertos, segundo a qual a prática do facto previsto corresponderia a uma aceitação
tácita, que exigiria pelo menos o conhecimento da promessa.
iii) A promessa pública é revogável a todo o tempo; se tiver prazo, apenas se houver justa causa –
art. 460.º.
iv) Quando mais do que uma pessoa tenha praticado o facto ou tenha concorrido para a sua prática,
a lei manda dividir equitativamente a prestação, desde de que todas tenham direito à prestação –
art. 462.º.

Os concursos públicos, previstos no art. 463.º, são um tipo de promessa pública, na qual a intenção
normal do promitente é a de galardoar um ou alguns dos concorrentes.

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Capítulo X: Gestão de negócios

1. Noção

A gestão de negócios caracteriza-se pela intervenção, não autorizada, das pessoas na direcção de negócio
alheio, feita no interesse e por conta do respectivo dono. Com efeito, surgem na prática diversas situações
em que é necessário prover em lugar do titular do direito, a fim de evitar graves prejuízos – é o que sucede
no caso de a pessoa estar afastada e haver actos urgentes que importa praticar para a defesa, conservação
ou frutificação dos bens. O exemplo típico da gestão de negócios é aquele que, carecendo o imóvel de
reparação urgente numa altura em que o dono se encontra ausente, um vizinho diligente encarrega o
empreiteiro de efectuar a obra.

A gestão de negócios tem de ser encarada num duplo aspecto:


i) Por um lado, a intervenção do gestor, assente numa atitude solidária, tem uma utilidade
apreciável na conservação ou exploração de bens que, de outro modo, correriam o risco de
perder-se, deteriorar-se ou manter-se improdutivos, ou na realização de actos cuja omissão
poderia acarretar prejuízos irreparáveis.
ii) Por outro lado, a gestão nasce de um facto em princípio ilícito, dado tratar-se de uma
intromissão não autorizada na esfera jurídica alheia que, além de constituir um abuso, pode
causar prejuízo sério ao dono do negócio.

2. Requisitos

Para que haja gestão de negócios, é necessário que estejam verificados os seguintes três requisitos.

1) Direcção de negócio alheio: a expressão negócio não é aqui utilizada no seu sentido técnico-jurídico,
tendo antes o significado de assunto, interesse alheio. Esta expressão denota que a gestão de negócios não
se estende, em princípio, a todo o património do beneficiário, mas apenas a algum ou alguns interesses
isolados. Notas:
i) A actuação do gestor tanto pode concretizar-se na realização de negócios jurídicos em sentido
estrito, como na prática de actos jurídicos não negociais, como ainda em simples factos
materiais.
ii) Este interesse tanto pode ser um interesse material como um interesse espiritual.
iii) Aqui cabem não só os actos relativos a bens pertencentes ao dono do negócio como os actos
que a este incumba realizar.

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iv) Se estiverem em causa interesses próprios, que o agente erroneamente considere de outrem,
não chega a pôr-se nenhum dos problemas específicos da gestão. Se, pelo contrário, estiverem
em jogo interesses alheios, que o agente erroneamente supõe serem seus, também não há
gestão, uma vez que esta pressupõe a consciência e a vontade de dirigir negócio alheio.

2) Actuação no interesse e por conta do dono do negócio: é necessário que o gestor actue no interesse, e
ainda por conta, do dono do negócio, ou seja, que a sua intervenção decorra intencionalmente em
proveito alheio.
i) Não é necessário, note-se, que actue em nome alheio, como iremos ver. É, sim, necessário que a
actividade do gestor se destine a satisfazer um interesse alheio, preenchendo uma necessidade de
outra pessoa, e que aja por conta de outrem, ou seja, na intenção de transferir para a esfera
jurídica de outrem os proveitos e encargos da sua intervenção – senão os efeitos jurídicos, pelo
menos os efeitos práticos.
ii) Se o gestor agir no seu exclusivo interesse, falta um requisito essencial do espírito do sistema, que
é precisamente o de estimular a intervenção útil nos negócios alheios carecidos de direcção. É
preciso distinguir duas situações:
a. O gestor age no seu interesse por supor erroneamente que o negócio lhe pertence:
aplicam-se as regras do enriquecimento sem causa.
b. O gestor age no seu interesse conscientemente: temos uma falsa gestão ou gestão
imprópria, em que o gestor gere negócio alheio com a intenção de carrear para o seu
património os proveitos da intromissão na esfera jurídica de outrem. Neste caso,
aplicam-se as regras da responsabilidade civil.

3) Falta de autorização: a gestão pressupõe por fim a falta de autorização, ou seja, a inexistência de
qualquer relação jurídica entre o dono do negócio e o agente, que confira a este o direito ou lhe imponha
o dever legal de se intrometer nos negócios daquele. A gestão supõe, portanto: a falta de mandato, de
poderes voluntários, de poderes legais de representação ou administração, etc. Havendo uma causa pela
qual o agente esteja obrigado ou autorizado a intervir no negócio alheio, os direitos e obrigações entre as
partes são os derivados dessa relação. Se o agente supuser erroneamente que tem o dever de intervir, aí já
não há motivos para não se aplicar as regras da gestão de negócios, uma vez que todos os seus requisitos
essenciais estão preenchidos – note-se que não é necessário que o dono do negócio ignore a intervenção do
gestor.

3. Relações entre o gestor e o dono do negócio

3.1 Deveres do gestor para com o dono do negócio

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1) Continuação da gestão: a gestão de negócios inicia-se por livre iniciativa do gestor, sendo que, uma vez
iniciada, o gestor não é livre de a interromper:
i) A sua actuação pode criar compreensíveis expectativas.
ii) O início da gestão pode constituir um obstáculo para a intervenção de outras pessoas, dispostas a
levar a gestão a bom tempo.
iii) Isto pode constitui uma vantagem, na medida em que afaste as intromissões fáceis e precipitadas
em assuntos alheios.

A nossa lei não impõe directamente ao gestor o dever de prosseguir a gestão iniciada, todavia consagra
este dever de continuação indirectamente, ao responsabilizar o gestor pelos danos que resultarem da
injustificada interrupção da gestão (art. 446.º/1).

2) Dever de fidelidade ao interesse e à vontade (real ou presumível) do dono do negócio: o principal dever
do gesto é o de obediência simultânea ao interesse e vontade do dono, art. 465.º/a). Assim, o gestor
responde pelos danos que causar, por culpa sua, no exercício da gestão, sendo que a sua actuação se
considera culposa sempre que agir em desconformidade com o interesse ou a vontade, real ou
presumível, do dono do negócio (art. 466.º/1 e 2). É de harmonia com o interesse, objectivamente
considerado, do dono do negócio, que a conduta do gestor deve ser apreciada, quer para saber se a
gestão é cabida, quer para determinar se ela, uma vez iniciada, é regularmente cumprida:
i) Estamos perante uma gestão irregular quando esta não satisfaça objectivamente o interesse do
credor.
ii) Havendo várias formas de satisfazer o interesse do dono, ao gestor cumpre escolher a que
melhor se adapta à sua vontade, Havendo dúvidas sobre esta vontade, o gestor optará pela
solução que melhor realize os interesses em causa.

Quanto ao padrão da actividade do gestor, a lei afastou-se da solução consagrada na legislação francesa,
aproximando-se dos modelos dos Códigos alemão, suíço e brasileiro. Quer isto dizer que o gestor se deve
orientar, não pelo padrão do homem médio, mas por aquilo que faria o dono do negócio.

Quanto à capacidade e diligência com que o gestor deve agir, discute-se se o critério deve ser objectivo, ou
seja, baseado na diligência exigível quanto à administração de bens alheios, ou um critério subjectivo,
assente no grau de capacidade e diligência revelado pelo gestor na administração dos seus próprios
interesses. A NTUNES V ARELA defende que se deve aceitar a tese da culpa in concreto – pelo carácter
espontâneo e altruísta da acção do gestor e pelos riscos a que desnecessariamente se expõe, seria injusto

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exigir dele que pinha na direcção de interesses alheios maior zelo do que na gestão do seu próprio
património.

Como resolver um conflito entre o interesse e a vontade do dono? Note-se que a lei apenas considera haver
conflito quando a vontade seja contrária à lei ou ordem pública, ou ofensiva dos bons costumes – art.
465.º/a). No entanto, podemos dizer que o gestor deve:
i) Abster-se de praticar os actos que o dono do negócio não praticaria, por mais favoráveis que
sejam aos seus interesses;
ii) Abster-se de praticar o actos que o dono praticaria, mas que sejam condenados por uma
judiciosa ponderação dos seus interesses;
iii) Praticar os actos favoráveis que o dono só não queira realizar por ignorância de certos factos
conhecidos do gestor (art. 1162.º).

3) Outros deveres do gestor:


i) Entrega dos valores detidos, art. 465.º/e): não só se incluirá aqui o produto de todas as prestações
devidas ao dono do negócio, mas também dos lucros que o gestor tenha arrecadado.
ii) Prestação de contas, art. 465.º/c): estas devem ser prestadas quando a gestão é finda ou
interrompida ou quando o dono as exigir.
iii) Aviso e informação o dono do negócio, art. 465.º/b) e d): impõe-se ainda ao gestor o dever de
avisar o dono do negócio, quando tiver possibilidade de o fazer, de que assumiu a gestão, para
que este possa prover como melhor entender, e ainda de lhe prestar todas as informações
relativas à gestão, para que o interessado possa acompanhar a sua evolução e tomar
oportunamente as providências que considerar necessárias.

3.2 Deveres do dono do negócio para com o gestor

A aprovação é o juízo global de concordância com a actuação do gestor, emitido pelo dono do negócio,
ou seja, é a declaração de que considera a gestão, no geral, conforme ao seu interesse e à sua vontade.
Havendo aprovação da gestão (mesmo que esta não tenha correspondido ao seu interesse e vontade!)
resultam deste facto duas consequências, art. 469.º:
i) Por um lado, cessa a responsabilidade do gestor pelos danos que eventualmente tenha causado;
ii) Por outro lado, reconhece-se ao gestor o direito de ser reembolsado das despesas que fez, com os
respectivos juros, e de ser indemnizado do prejuízo que sofreu por causa da gestão.
iii) A gestão não dá, porém, direito a ser remunerado, salvo se corresponder ao exercício da
actividade profissional que o gestor exerça (art. 470.º/1 e 2).

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E se não houver aprovação? É aqui que se reflecte a distinção entre gestão regular e gestão irregular:
i) Gestão regular: se se fizer prova da regularidade da gestão, ou seja, que o gestor agiu em
conformidade com o interesse e a vontade do dono, mesmo não havendo aprovação, ele terá os
mesmos direitos que lhe competiriam, no caso de a gestão ter sido aprovada: direito a reembolso
das despesas com juros e direito de ressarcimento dos danos sofridos.
ii) Gestão irregular: se a gestão tiver sido contrária ao interesse e vontade do dominus e este não a
tiver aprovado, o gestor só terá direito à restituição do valor com que o dono do negócio
injustamente se tiver enriquecido à sua custa, para além de responder pelos danos que haja
causado, já que agiu ilicitamente.

Note-se que a aprovação, como juízo global de valor sobre a actuação do gestor, distingue-se da
ratificação, que é a declaração de vontade pela qual alguém faz ou chama a si o acto jurídico realizado por
outrem em seu nome, mas sem poderes de representação. Pode haver:
i) Aprovação sem ratificação: se o dono não quiser contestar os direitos atribuídos por lei ao
gestor, mas não se dispuser a chamar a si algum ou alguns dos negócios que celebrou em seu
nome.
ii) Ratificação sem aprovação: se o dono quiser chamar a si os negócios que o gestor realizou em
seu nome, ou alguns deles, mas entender que este não respeitou a sua vontade ou não agiu em
conformidade com os seus interesses.

3.3 Posição do dono do negócio em face de terceiros

Se o gestor tiver realizado quaisquer actos jurídicos no âmbito da sua actividade, em que termos se
repercutem tais actos na esfera jurídica do titular dos interesses atingidos?

É necessário distinguir entre a gestão representativa, quando o gestor age em nome de outrem, e a gestão
não representativa, quando o gestor age em nome próprio.

1) Gestão representativa, art. 471.º, 1ª parte: temos uma gestão representativa quando o gestor celebra
negócios jurídicos em nome do dono do negócio. O art. 471.º/1 manda aplicar a estes negócios os
princípios da representação sem poderes, art. 268.º: no fundo, temos aqui uma gestão, uma vez que o
gestor não tem poderes jurídicos que o autorizem; e uma representação, uma vez que actua em nome do
dono. Qual o regime da representação sem poderes:
i) O negócio será eficaz se for ratificado pela pessoa em cujo nome foi celebrado, considerando-se
a ratificação recusada se não for feita dentro do prazo que a outra parte estabeleceu para o efeito.
ii) O negócio será ineficaz em relação ao dono, se não for por ele ratificado.

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2) Gestão não representativa, art. 471.º, 2ª parte: temos uma gestão não representativa quando o gestor
celebrar negócios em seu próprio nome. Neste caso, o regime é o do mandato sem representação, art.
1180.º e segs. O mandato é uma modalidade do contrato de prestação de serviços, aplicando-se o seu
regime aos demais contratos de prestação de serviço (é o contrato modelo). Note-se que a gestão
representativa não é um mandato – este serve apenas para realizar actos jurídicos, podendo ser um
mandato com representação (existe a contemplatio domini) ou sem representação (actua-se apenas no
interesse e por conta de outrem). Qual o regime do mandato, aplicável à gestão não representativa?
i) Os efeitos do negócio aproveitam imediatamente ao gestor, ou seja, este fica vinculado pelos
actos que celebra, tudo se passando como se não tivesse havido gestão (ainda que esta seja
conhecida).
ii) No entanto, este tem a obrigação de trasnferir para o dono os direitos e obrigações que adquiriu,
o que se faz através de um segundo negócio.

4. Gestão de negócio alheio julgado seu (art. 472.º)

Se alguém gerir negócio alheio, convencido de que esse assunto é seu, temos uma gestão de negócio
alheio juglado seu. Nestes casos, se houver aprovação do verdadeiro dono, aplicam-se as regras da gestão
de negócios; se não houver, aplicam-se as regras do enriquecimento sem causa – o dono deve reembolsar
a diferença entre as despesas que o vizinho efectuou e aqueles que ele efectuaria. No entanto, se houver
culpa na violação do direito alheio, serão aplicáveis as disposições relativas à responsabilidade civil (n.º
2), ou seja, o aquele que geriu negócio alheio terá de indemnizar o verdadeiro dono pelo prejuízo que
causou com a gestão.

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