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A SECRETA

OBSCENIDADE
DE CADA DIA
Texto de Marco Antonio de La Parra
Tradução de Antonio Carlos Brunet
PERSONAGENS
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SIGMUND

KARL

Entra Sigmund em cena. Veste-se como a caricatura


de um exibicionista. Ao centro do palco, um banco de parque,
branco. Uma espécie de pracinha, em uma rua qualquer de um
bairro burguês de Santiago do Chile. Sigmund percorre o
palco, como se procurasse alguém, com cautela. Olha para
frente, algumas vezes, onde, supõe-se estar, o colégio das
meninas, do qual esperará a saída. Logo, senta-se ao banco e
espera, resfolegando. Logo, entra Karl, também vestido de
exibicionista. Sigmund levanta-se, assustado, tratando de
esconder suas pernas, desnudas, atrás do encosto do banco.
Karl coloca óculos escuros, e senta-se, também procurando
esconder seus joelhos. Sigmund dirige-se até o outro lado do
banco e senta. Pausa.

SIGMUND (Pigarreando) – Você... você tem alguma filha neste


colégio? (Pausa.).

KARL – Faz muito tempo que começou a cerimônia, ou não?


(Pausa.).
SIGMUND – O que eu lhe perguntei foi se você é responsável por
alguma menina deste colégio... (Pausa.). 3
KARL – Não...

SIGMUND – Ah... Ou... se é parente de alguma delas, ou não.


Não?

KARL – Não... E você?

SIGMUND - Eu?... Bom, de certo modo... Sim!...

KARL – Ah... E de certo modo não?

SIGMUND – Por que acha isso?

KARL – Não sei... estava pensando...

SIGMUND – Ah... sei...

KARL – Não acho que seja bom que você me olhe... tanto!

SIGMUND – Certo, mas é que...

KARL – É que o quê?

SIGMUND – É que eu pensava que o outono não é uma estação


tão quente, que dê para se andar sem calças...

KARL – Certo! E nem tão fria para se andar de gabardine!


SIGMUND – Sim: é verdade! Porém, você sabe... O outono é
muito traiçoeiro. Às vezes chove sem aviso prévio... 4
KARL – Sim, mas hoje, não há uma única nuvem no céu.

SIGMUND (Olhando o céu) – Ora, ora... e eu que não havia


sequer reparado. Veja só!

KARL – E dizer que hoje parecia que ia chover a cântaros!

SIGMUND – Sim, de manhã estava nublado... completamente


nublado!

KARL – Não estava nublado.

SIGMUND – Não estava nublado?

KARL – Não.

SIGMUND – Então, por que disse o que disse?

KARL – Não sei... Foi um palpite!

SIGMUND – Hmm!... que estranho!...

KARL – O quê?

SIGMUND – Não, nada...

KARL – Hmm!...
SIGMUND – Hmm!... (Pausa.) Na verdade, o que eu me
perguntava, era a troco de que santo, você, hoje, anda... sem
calça.
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KARL – Curioso!... Eu me perguntava o mesmo ao seu respeito.

SIGMUND – Certo! É curioso... mas, eu perguntei primeiro.

KARL – Sim, bom, já lhe digo... O que acontece, é que eu tive um


acidente: a minha calça abriu-se ao meio...

SIGMUND (Com prazer) – Nos fundilhos?

KARL (Com risinhos cúmplices) – Como uma melancia...

SIGMUND – Deixando toda a polpa vermelha à mostra?...

KARL (Malicioso) – Com as sementinhas e o suco... Mas...


(Ficam sérios.) fui até a minha tia Frida. Ela mora aqui perto, na
rua do restaurante francês, e como ela mora num JK, enquanto
costura a calça, resolvi sair para dar uma volta com a gabardine do
meu tio Herbert...

SIGMUND (Irônico) – Seu tio Herbert? Ah... que sorte a sua em


ter tios tão bons... e que morem tão perto...

KARL – Mas, eu também lhe perguntei...

SIGMUND – A mim?

KARL – Sim, a você!


SIGMUND – Bem, eu... o que acontece, é que eu não ando sem
calça, sabe? Eu ando de shorts. Eu corro todas as manhãs.
Jogging: é isto o que eu faço – Jogging! E, como eu não tenho
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abrigo, ponho a gabardine. Portanto, você está enganado! É o meu
trabalho esportivo! Corro todas as manhãs aqui pelo Bairro Pedro
de Valdívia Norte, pela Costanera, e, como este banco fica justo na
metade do caminho, sento para descansar. Corrida em dois
tempos, se chama! Você já deve ter lido sobre isso: é muito bom
para o coração, o Jogging!...

KARL – Que estranho!...

SIGMUND – O que tem o Jogging de estranho?

KARL – Não o vejo suando, nem cansado...

SIGMUND (Ansioso) – Bom, é que... é que...

KARL – Ah sim!... Acontece é que quando eu cheguei, você já


havia corrido e descansado o suficiente. É isso?

SIGMUND – Sim, claro que sim! Corri e já descansei o suficiente.


É isso!

KARL – Então... já se vai?

SIGMUND (Com contida raiva) – Acho que a sua tia Frida já


costurou a sua calça...

KARL – Talvez...
SIGMUND – Mesmo porque, ela deve ter muita prática, se lhe
costura as calças todos os dias, durante o ano escolar – como
imagino -, não?
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KARL – Quem sabe?... E você, se corre tanto por aqui, é muito
estranho que eu não lhe tenha visto antes...

SIGMUND – Estranho é eu vê-lo pela primeira vez e justo no


primeiro dia de aulas! E logo aqui, em frente ao Colégio das
Meninas! Isso sim é que é estranho!

KARL – Hmm!...

SIGMUND – Hmm!...

KARL – A você lhe parece convincente a minha história?

SIGMUND – E a você a minha?

KARL – Para dizer a verdade...

SIGMUND – O que faz você, realmente, aqui?

KARL – E você? Por acaso vende doces, caramelos, amendoins,


chicletes ou picolés, hein?

SIGMUND – Não!

KARL – Pois eu, tampouco!


SIGMUND – Tenho a impressão de que tudo é um desagradável
mal-entendido! 8
KARL – Claro que sim!

SIGMUND – Um de nós dois deve ir embora!

KARL – Adiante, pois, continue correndo, senhor atleta!

SIGMUND – E você, por que não vai até à sua doce e famosa tia
Frida, para ver se desta vez ela lhe costura a calça com arames, e
de preferência, direto na bunda?

KARL – Está sendo grosseiro, senhor!

SIGMUND – Ora, você é que está me tirando do sério!... Não tem


por quê seguirmos disfarçando! Creio que nos entendemos!

KARL – Eu creio que não nos entendemos!

SIGMUND – Mas – senhor -, nós não podemos fazer, os dois, a


mesma coisa no mesmo lugar! É contraproducente, grotesco, e
inclusive, indecente! Além do mais, perde o sentido.

KARL – Absolutamente de acordo!

SIGMUND – Por isso, você deve ir!

KARL – Você!... É claro! Você é o recém-chegado, o forasteiro!


SIGMUND – Senhor, se aqui há um legítimo proprietário desta
prática e deste lugar, é quem lhe dirige a palavra. 9
KARL – Ah: olhem o abusado que viemos a encontrar!

SIGMUND (Indignado) - Abusado? Eu conheço as leis! Trata-se,


aqui, do legítimo direito à propriedade, que outorga o uso...

KARL – E o abuso!!!

SIGMUND – Senhor!!!

KARL – Segundo você, trata-se de um simples problema de


propriedade. Conforme eu vejo...

SIGMUND – Não, não é só por isso que eu estou discutindo...


Imagino que você compreende muito bem, o que é ter ficado todo
o verão me segurando... Todos estes malditos meses de férias
metido em casa, contendo o desejo, refreando a paixão, sem
poder fazê-lo...

KARL - Como? Você faz somente nas escolas?

SIGMUND – Mas é claro que sim!

KARL – Nunca experimentou em praças ou em parques de


diversões?

SIGMUND – Mas são meninas muito pequenas! Seria vergonhoso!


KARL (Irônico) – Que homem de respeito! Um típico burguês:
abusado e pudico! 10
SIGMUND – Trata-se de princípios, senhor, princípios!... Pelo
menos alguns – aqueles que vejo que a você lhes faltam em
absoluto! Nesta cidade, para que você saiba, faço somente nesta
Escola!

KARL – Ah, eu compreendo! Em um bairro residencial... Ao senhor


lhe agradam as meninas bem...

SIGMUND – Não é um defeito, como você quer que seja!... É uma


preferência, um refinamento, uma fidelidade! Isto é o que é!...

KARL – Ah, sim, um refinamento...

SIGMUND – E por quê não? Por acaso esta não é uma paixão tão
nobre, como o amor mais puro?

KARL (Irônico e despeitado) – O amor: a típica frivolidade petit


bourgeois!

SIGMUND (Complacente) – Petit bourgeois, avez vous dit?


Vraiment? C’est etonnant... Parlez vous français, monsieur?

KARL – É cínico, além de tudo! Eu sabia: você é um velho esnobe,


burguês, decadente e cínico!

SIGMUND – Ora, senhor!...

KARL – Gente como você deveria ser varrida da face da Terra,


sabe? Sem querer ofender-lhe, é claro!
SIGMUND – Mais uma dessas, e eu lhe arrebento a cara! Você
está me aporrinhando o saco!
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KARL – Você está sendo grosseiro, de novo!

SIGMUND – Ahhhhh!... Eu não agüento mais! (Contém sua fúria.)


Olhe, não discutamos mais. No fundo, há somente uma coisa, que
eu quero pedir-lhe, e peço-a, por favor, peço-a pelo que você mais
quer, por Deus, por sua família, pelo que mais lhe importe, um só
favor, rogo-lhe, suplico-lhe, se quiser, peço de joelhos, uma só
coisa: por que você não vai embora, agora? Vá, sim?...
KARL – E, por que eu?

SIGMUND – Bom, a você, tanto faz. Você parece não ter


pruridos... Poderá ir a qualquer outra escola pública, e fazê-lo para
qualquer negrinha fedorenta... Não?

KARL – Não! Aqui elas são mais bonitas!

SIGMUND – É que este colégio é meu!

KARL – Possessivo! Dominador! Autoritário e ditatorial! Pústula da


sociedade!

SIGMUND – Ora, não me amole!...

KARL – Parasita! Você vai ou não vai embora?

SIGMUND - Parasita? A mim, você chama de parasita?


KARL – Você vai ou não vai?

SIGMUND – Certamente que o quê você vem fazer aqui é muito


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lindo...

KARL – Vai ou não?

SIGMUND – É que você está me pedindo algo impossível, a dor


máxima!... Você não sabe o quê isto significa para mim!...

KARL – Algo muito importante, parece...

SIGMUND (Suplicante) – Claro que sim: fazer isto é a minha


única grande realização, a única realização de uma vida obscura,
metida entre arquivos e confissões alheias, ouvindo queixas de
gente aflita... todo o tempo...

KARL – Ah: é funcionário público, então?

SIGMUND – O mais certo seria dizer funcionário íntimo!

KARL – Não entendo.

SIGMUND – Bom, isto não importa que não entenda. A única coisa
que quero que entenda, é que fazer isto, e fazê-lo aqui, é a minha
vida, senhor, a minha vida...

KARL – Vamos: esqueça-se dos prejuízos e vá a outro colégio


qualquer... Isto lhe fará bem.
SIGMUND – Acaso pensa que já não tentei? É inútil... Não
funciono... Abro a gabardine e não me sai o disparo... 13
KARL – Sssshit! (Olham para os lados, alterados.) Puxa, isto é
terrível!...

SIGMUND – Claro que é terrível, sobretudo, quando o resto de


minha vida pode ser resumido numa cabeça de alfinete! (Olha
para o colégio, excitando-se, gradualmente, à medida que
fala.) Fazer isto é o que me revigora e me mantém, o que me
inflama... Sentar neste banco, perto do meio-dia, e de repente
ouvir que soa a sineta da escola... talán-talán!... Música divina -
não é mesmo? -... e ver que começa a saída da classe destas
cândidas e inocentes menininhas!... Você as imagina, com suas
jaquetas azuis, seus cabelos soltos, suas tranças, seus
chapeuzinhos, seus rabos-de-cavalo?... (Vai demonstrando o
que diz, possuído pelas emoções que descreve.) E, então... eu,
lentamente, vou me levantando e lentamente vou abrindo a
gabardine, botão um: fora! Botão dois: fora! Botão três: fora! E elas
vêm, incautas, distraídas, cantando, conversando... e não sabem o
quê as espera, porque logo que cruzarem o portão, vou destruí-las
com toda a minha fúria, fazer em pedaços suas vergonhas: toda a
sua pureza irá para o diabo, toda a sua asquerosa virgindade, sua
maldita inocência será manchada para sempre, sua brancura
imaculada será tingida para o resto de suas vidas e seus gritos,
seus gritos... seus gritos me excitam... e eu não agüento mais! Não
agüento mais! E... (No clímax do seu relato, abre sua gabardine,
exibindo-se ante Karl.) Tantantantán! (Dá-se conta do que fez, e
cobre-se, bruscamente, envergonhado, abotoando-se com
rapidez.) Desculpe o meu rompante: é que depois de tantos
meses sem fazê-lo, me descontrolo só em pensar. Acontece até
mesmo em frente ao espelho. Me descontrolo, me descuido...
KARL – A verdade é que dá mais vontade de chorar do que de
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gritar ao vê-lo!

SIGMUND – Sim, pode ser...

KARL -... É que com este calibre (mostra um pequeno espaço


entre o polegar e o indicador.).

SIGMUND (Saltando bruscamente) – Não diga isto!... (Sussurra,


alarmado.) Eles têm microfones de longo alcance... Inclusive é
possível que estejam nos observando... (Olha para Karl,
assustado.) Ou acaso... você é um deles?...

KARL – Deles quem?

SIGMUND (Cauteloso) – Deles... (Karl fica inquieto. Sigmund


esmurra o banco e pragueja.) Claro que você é um deles! Como
não me dei conta antes? Como posso ser tão ingênuo? Que prazer
vocês têm em andar amedrontando a gente? Não podem sequer
ver um cidadão digno, que satisfaz, dignamente, suas paixões e
sem molestar ninguém?

KARL – Creio que isto é algo discutível...

SIGMUND – Não tem nada de discutível, não senhor! O que estas


meninas vão presenciar, vai-lhes servir como grande experiência!
Poderão, depois, contar ao seu psiquiatra, por exemplo, ou aos
seus maridos, na noite de núpcias, quando eles falharem... ou...
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ou... ou poderão, inclusive, usar isto como fantasia!... (Deleitando-
se.) Você sabe que algumas ex-alunas me procuram?...

KARL – Procuram... você?

SIGMUND – Sim.

KARL – Com isso? (Repete o gesto com os dedos.).

SIGMUND – E por que não?

KARL – Bom: há gosto para tudo!


SIGMUND – E o quê você sabe se não passa de um espião?...

KARL – Não continue com isso, para o seu próprio bem!...

SIGMUND – Ameaça-me, então? O que você ganha, ameaçando-


me, se já o descobri?

KARL – Não continue com isto, por favor...

SIGMUND – Já lhe descobri! Não compreende? Já lhe descobri!...


O que espera para chamar seus gorilas, os carros, o caminhão, a
caminhonete, a carrocinha de amendoins? Que disfarces estão
usando agora?...

KARL – Não continue com isto, eu lhe suplico...

SIGMUND (Totalmente fora de si) – SIM, JÁ LHE DESCOBRI!


Vamos: bata-me com um cassetete, meta-me num saco, torture-
me, coloque-me algemas, dinamite-me, degole-me! O que estão
astutos, mas o descobri imediatamente! Era tudo um disfarce, um16
fazendo agora, hein? Ah! Eu já lhe descobri! Vocês se crêem muito

ardil! Venha! Satisfaça a sua perversão, talvez muito mais imoral e


sádica do que a minha! Vamos! Eu já sei que você é um deles!

KARL (EXPLODINDO) – Eu não sou um deles!

SIGMUND - Sério? É que eu pensei que...

KARL – Quem você pensa que é? Acha que vou andar vestido
deste jeito, para agarrar um pobre diabo como você?

SIGMUND – É que...

KARL – Porque eu sim poderia pensar que você é um deles...

SIGMUND - Eu?... Eu não... Você está equivocado!...

KARL – Você não é? De verdade?

SIGMUND – Claro que não, claro que não!... Isto eu sempre faço
por minha conta, completamente só...

KARL – Sozinho, hein?... Um autêntico individualista!... (Com


desprezo.) Já entendi!...

SIGMUND – Que eu saiba, isto sempre se faz sozinho, em todas


as partes do mundo!

KARL – Depende, exclusivamente, do significado que se queira


dar ao ato.
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SIGMUND – Eu diria que não depende de nada! Eu diria que está
na sua própria essência, se me permite... Além do mais, não é só
individualismo, como você diz: também é segurança! Eu tenho
muito bem planejado, como escapar, depois de cometido o ato...
mas, e você? Aposto que é um principiante, que não planejou
absolutamente nada! Você pode ser a minha perdição! – Vamos
ver... Como pensa em fugir, depois de cometido... o ato?

KARL – Penso em me incendiar, como um monge tibetano!

SIGMUND – Como um monge? Era só o que me faltava... um


fanático...

KARL – E eu vou tocar fogo em toda a praça, sabe? E ao colégio!


Eu trouxe uma bomba, com a qual vou explodir no momento exato
em que abra a minha gabardine: BUM! (Assusta Sigmund,
perseguindo-o pelo palco.) E tudo, TUDO o que estiver ao meu
lado, desaparecerá! Serei respingado como gotas de sangue e
sêmen pelo chão inteiro... Assim, é melhor que se vá! Pelo seu
bem, lhe digo... BUM! BUM! BUM! (Sigmund, completamente
acuado, cai num canto, tremendo.).

SIGMUND – Basta, louco!... Você é um terrorista!...

KARL – Você não? (Pausa. Karl volta a sentar-se, enquanto


Sigmund jaz, feito um novelo ao chão.) Idiota: acredita em tudo
o que lhe dizem!...

SIGMUND - Como?...Não é verdade?...


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KARL – Como isso pode lhe ocorrer?... Posso odiar muito essa
sociedade repulsiva e corrupta, mas que não merece o sacrifício
de minha pele!

SIGMUND – Então, tudo isto de bomba... Você estava me


testando?

KARL – BUM! (Sigmund cai, aterrorizado, enquanto Karl


segura uma gargalhada.).

SIGMUND – Imbecil! É só papo-furado! É o que você é: puro


embuste! Papo-furado!

KARL – Você é que é puro papo! Você se assusta com uma


espoleta, e pretende assustar as meninas. Você está
absolutamente gagá!

SIGMUND – Não, não é isto! Se eu reagi assim, foi por causa do


nervosismo...

KARL – Por causa do quê?

SIGMUND – Do nervosismo: a neurose que se expressa...

KARL – A neurose... Você parece uma velha solteirona!...

SIGMUND – É a angústia da morte que me surpreende e me


derruba...

KARL – A angústia, a neurastenia, a fadiga... Você não tem


remédio!
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SIGMUND – Olhe, senhor, para que você saiba: neuroses temos
todos... todos!

KARL – Claro que sim! É a conseqüência clara do


desenvolvimento social, da sociedade em que vivemos...

SIGMUND – Não me faça rir: o que determina a presença da


neurose no indivíduo é a história sexual de cada um!

KARL – De maneira nenhuma: trata-se do desenvolvimento social!

SIGMUND – A história sexual, lhe digo!

KARL – O desenvolvimento social!

SIGMUND – Sexual!

KARL – Social!

SIGMUND – Sexual!

KARL – Social!

SIGMUND – Sexual! E não discuto mais!

KARL (Malicioso) – Não podemos trabalhar juntos!

SIGMUND – Trabalhar, você disse?

KARL – Agir juntos, quis dizer!


SIGMUND – Ah, então, se não podemos agir juntos, isso quer
dizer que você vai embora!
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KARL – Não!

SIGMUND – Pois eu tampouco, para o seu entender... e, vamos


ver como nos arranjamos. (Karl olha-o com ódio inflamado,
impotente.).

KARL – Você me dá pena, sabe?

SIGMUND - Pena?

KARL – Lástima... Você é somente um velho dengoso, atrelado a


modelos desgastados, descomposto, podre, pretensioso e
retrógrado!

SIGMUND – Você não compreendeu uma palavra do que isto


representa para mim...
KARL – Sim, eu me dei conta: é um vício!

SIGMUND – Um vício?... Fico anos, anos neste banco... Isto é


uma tradição! Isto é que é: uma tradição!

KARL – Você, por acaso, não sabe que as tradições são vícios?

SIGMUND – Olhe, eu vou lhe mostrar: gravei minhas iniciais neste


mesmo banco, à primeira vez que aqui estive... devem estar por
aqui... (Empurra Karl.) Levanta o cu, imbecil!
KARL – O que é que você está pensando? Eu nem penso em
levantar! (Sigmund empurra-o, derrubando-o no canto do
banco.).
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SIGMUND (Mostrando onde Karl estava sentado) - Viu? Aqui
estão... S. F. – 1974... No outono de 1974 fiz minha estréia...

KARL – Somente alguém como você pode ser tão imbecil, a ponto
de andar deixando coraçõezinhos e flechas. Por que não deixou
também o seu número de telefone ou sua carteira de identidade
para que a polícia lhe encontrasse? Seu sentimentalismo me dá
náuseas... Vou vomitar na sua gabardine!

SIGMUND – Você está louco!

KARL (Fazendo arcadas sobre a cabeça de Sigmund) –


Apodreça, velha solteirona!...

SIGMUND (Alarmado) – Vem vindo um carro! (Karl volta para o


seu lugar ao banco. Olham o carro passar.).

KARL – Era uma senhora.

SIGMUND – Por sorte...

KARL – Você pensou que eram...

SIGMUND – É claro, não?... Estando vários ministros na


cerimônia...

KARL – Certo, com todos esses ministros aí dentro...


SIGMUND – Está o Ministro da Educação!

KARL – O da Defesa Interna...


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SIGMUND – O da Defesa Externa também está...

KARL – O Superintendente...

SIGMUND – O Subsecretário...

KARL – O Plenipotenciário...

SIGMUND – O Interino...

KARL – O Substituto... (À medida que vão listando os


ministros, vão se entusiasmando de maneira contida,
contendo risinhos.).

SIGMUND – O Itinerante... todos!...

KARL (Quase cantando) – E nem imaginam...

SIGMUND – Que estamos aqui...

KARL – Os dois...

SIGMUND – Dois!...

KARL – Dos melhores!...

SIGMUND – Sim, dois... esperando-os!...


KARL – E dois... profissionais! (Sigmund esbofeteia Karl,
violentamente, jogando-o ao chão. Karl emudece.).
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SIGMUND – Eu te perdôo somente porquê eu também me
excedi!... Isto não se diz, ouviu?... Não se diz!... Vai se portar bem,
agora?

KARL (Cheio de remorso) – Eu me surpreendo... Depois de tanto


treinamento, cometi um erro tão infantil...

SIGMUND (Em tom de interrogatório policial) – Claro que é um


erro infantil! Além de ser um erro bastante grave!... De onde você
tirou esta palavra, hein?

KARL – Qual palavra?

SIGMUND – Como ‘qual palavra’? Esta: a que nós dois éramos...


éramos...

KARL – Uns profis...

SIGMUND – Não a repita!... E, outra coisa: como soube que


estavam todos aí dentro?

KARL - Quem?

SIGMUND – Como ‘quem’? Não se faça de tonto! Estou


perguntando pela relação dos ministros... de onde a tirou?

KARL – Qual relação?


SIGMUND – Como ‘qual relação’? Você, por acaso, anda lendo 24
pensamentos? A relação dos ministros, eu disse... Onde conseguiu
a informação?

KARL – E você?

SIGMUND – EU estou fazendo as perguntas! (Caminha, olhando-


o, acusadoramente.) Você deve saber muito bem que a
informação não havia sido entregue a nenhum meio de
comunicação, que a relação não havia sido publicada em nenhum
diário e nem a leram em nenhum noticiário... Acho que é melhor,
para o seu próprio bem, que vá me dizendo para quem trabalha,
senhor como se chame!

KARL - Trabalha?

SIGMUND – Atua, quis dizer, você me entende... Vamos:


responda-me! (Karl olha para a porta do colégio.) O que é que
você está olhando?... Responda-me, de uma vez por todas...

KARL – Cuidado! O porteiro do colégio! (Ambos olham para


frente.).

SIGMUND – Sim: é melhor que disfarcemos! (Sigmund simula


pular corda, como uma criança. Karl joga uma bola de pano,
pião ou outro jogo infantil. Sigmund fala com voz de criança.)
Vou lhe tirar uma foto... (Simula fotografar Karl, que posa, sobre
o banco, como Atlas, várias vezes.) Olha o passarinho!... Outro
passarinho!... Mais um passarinho!... (Sentam-se. Sigmund olha
com certa admiração para Karl.) Sabe: agora que tive a
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oportunidade de vê-lo de corpo inteiro, dou-me conta de que você
é um homem robusto, são, bem-feito, apolíneo, entende?... E, me
despertou uma curiosidade... Bom, você já conhece o meu, e eu
me perguntava de que cali... perdão, de que tamanho seria o seu!

KARL – Não me diga, que além de tudo, você é veado!

SIGMUND – Eu não tenho nenhum problema sexual!

KARL – Com certeza?

SIGMUND – Você me ofende! Meu interesse é o de um... colega!

KARL – Um concorrente!

SIGMUND – Como quiser entender: porém, é um interesse


puramente... profissional, como você disse... Assim se não houver
nenhum inconveniente, poderíamos... dar-lhe uma olhada... uma
espiadinha, que seja...

KARL – Você quer ver mesmo, de verdade?

SIGMUND – Bom, eu já disse: poderíamos aproveitar agora, que


não tem ninguém por aí, para fazermos uma inspeção... formar-se
uma idéia, digo, sabermos com o quê contamos... Se você não
achar inconveniente, é claro! (Karl levanta-se, com prazer, e
exibe-se a Sigmund, com orgulhosa sobriedade, dando as
costas ao público. Sigmund, que esperara, ansiosamente,
espanta-se e emudece, desviando o olhar.) Meu Deus: é um
exagero!
KARL – É impressionante, não lhe parece?
SIGMUND – E você o usa?... Eu diria que é exorbitante! 26
KARL – Assustado, hein? Não é deveras chocante?

SIGMUND – Redundante, para dizer a verdade! Para que tanto?


Parece que a única coisa que você quer, é que prestem atenção
em seu gran... gran... gran...

KARL – O meu grande canhão!

SIGMUND – Quieto! Você realmente parece querer que nos


agarrem! Sim, eu já entendi o que você é: você é um narciso, um
vaidoso, um egocêntrico! Um exibicionista: isto é o que você é! Um
exibicionista! (Karl aponta assustado, para o público.).

KARL – Um carro!

SIGMUND – Buceta! (Os dois olham o carro passar,


lentamente, prendendo a respiração, cautelosos.).

KARL – Típico...

SIGMUND – O quê?

KARL – Um furgão!

SIGMUND - Típico?

KARL – Sempre andam em cinco, não sabe?


SIGMUND – Ah! Claro, eles sempre andam em cinco (tira um
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jornal dobrado de seu bolso, abre-o e oculta-se atrás dele.).

KARL – Quem está dirigindo é o gordo Romero.

SIGMUND - Romero? Evaristo Romero?

KARL – Você o conhece?

SIGMUND – O que trabalhava de garçom no restaurante onde


encontraram os cadáveres no banheiro?

KARL – Ahã!...

SIGMUND – Claro que conheço!

KARL – Você caiu nas mãos dele, alguma vez?

SIGMUND – Sim, e você?

KARL – Também!...

SIGMUND – A mim, me dá medo só de lembrar.

KARL – Experiência dolorosa, sem dúvida!...

SIGMUND – Claro que sim... E a sua?

KARL – Claro que sim... Como esquecê-la? (Karl estica a mão


até Sigmund, como se fosse lhe aplicar um choque com uma
vara elétrica. Sigmund sobressalta-se.).
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SIGMUND – Não faça isso nem por brincadeira! (Dobra o jornal,
apressadamente, e tira um cãozinho de pelúcia com uma
corrente no pescoço, do bolso, enquanto Karl disfarça-se,
alimentando pombas imaginárias, esmigalhando um pão, que
também tirou do seu bolso.).

KARL – Você contou tudo?

SIGMUND – Por que me pergunta isso?

KARL – É difícil resistir-se ao gordo Romero. (Sigmund


desconversa, passeando com o cãozinho.).

SIGMUND – Bom, isso dizem... Você contou?

KARL – Entreguei até a alma!... Mas você não me respondeu,


ainda...

SIGMUND – Bem, como você disse: é muito difícil resistir-se ao


gordo Romero. Eu diria que impossível!

KARL – Quando o agarraram?

SIGMUND – A quem? A mim?

KARL – A quem seria? Ao cão?

SIGMUND – Faz tempo... pouco depois que tudo começou... nos


primeiros meses.
KARL – Ah! Eu comecei depois...

SIGMUND – Eu já devia ter saído quando lhe agarraram.


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KARL – Sim. Teríamos nos reconhecido.

SIGMUND – Talvez! É difícil saber... se bem que... A você, não lhe


fizeram ameaças quando lhe soltaram?

KARL – Fugi... Estive escondido na Argentina.

SIGMUND – Aposto que na Escola Mecânica da Marinha...

KARL – Não! Quer dizer... nem sei!

SIGMUND – E você não tem medo que o agarrem de novo?

KARL – Claro que sim!

SIGMUND – E você não tem medo que eu seja um deles?

KARL - Você? Não! Você não se assustaria como se assusta!

SIGMUND – Não sei... Talvez tenha demasiado confiança,


senhor... Senhor?...

KARL – Karl. Pode me chamar de Karl.

SIGMUND - Karl?

KARL – Sim, Karl!


SIGMUND (Guardando o cão) – Sabe que, de repente, seu rosto
me pareceu conhecido...
30
KARL – Bom, a gente vê tanta gente neste... perdão, neste meio,
por assim dizer.

SIGMUND – Sim: vê tantas caras... e das maneiras mais


estranhas... De cabeça para baixo, entrando e saindo d’água, por
exemplo, (olha de relance para Karl, com tom cúmplice. Aos
poucos vão se contagiando, mutuamente, com risinhos
maliciosos.).

KARL – Nos paus-de-arara?

SIGMUND – Sim, nos paus-de-arara!

KARL – Com o sangue lhes saindo pela boca...

SIGMUND – E lhes entrando pelas narinas...

KARL – O que pareciam os coitados?

SIGMUND – Sim, o que pareciam? (Com nostalgia.) Todos


ensangüentados!... Pareciam gado no matadouro!...

KARL – A mim foi Romero quem ensinou...

SIGMUND - Como? A você também?

KARL – Também!
SIGMUND – E não me diga que também lhe ensinou o
submarino?...
31
KARL – Também!

SIGMUND – E também?...

KARL – Também!

SIGMUND – Ou seja, você também foi meu colega!...

KARL – Ainda somos, não?

SIGMUND – E também usou a... ? (Faz mímica de uma vara


elétrica.).

KARL – Também!

SIGMUND – O que são as voltas desta vida!

KARL – Metidos naquilo...

SIGMUND – E agora...

KARL – Metidos nisto!

SIGMUND – Incrível, absolutamente incrível!... Venha cá com esta


mão, colega! (Apertam-se as mãos, como velhos camaradas.)
Você deve se lembrar da Olga Pradodovna!...
KARL – Sim, claro, a Olga Pradodovna! Com este nome e metida
nisto! Tinha um quiosque, onde vendia empadas e bebidas no
quar... perdão, na ‘vila’!
32
SIGMUND – Sim, ela fazia uns sonhos deliciosos no inverno.

KARL – Sim, nós comíamos sonhos aos domingos. Você sabe:


trabalhávamos toda a semana corrida. Havia muito trabalho e
ouvíamos as partidas dos finais de semana.

SIGMUND – Ouviam futebol? Sério? Sabe o que nos aconteceu


uma vez? Estávamos, então, trabalhando, dando o maior duro,
com o rádio de pilhas na cartucheira, ligado, e usando fones de
ouvido, escutando futebol, quando, de repente, houve um alarido
de gol!... Levamos um cagaço, como se tivéssemos levado um
choque elétrico! (Os dois explodem numa gargalhada, ante a
‘anedota’.) Como se a nós, fossem dar choque! Imagine! Como se
nós não estivéssemos trabalhando em segurança absoluta... (Ri
para si próprio.).

KARL (Sério) – E você... nunca mais levou este tipo de ‘cagaço’


ou voltou a dar choque?... (Sigmund emudece.).

SIGMUND – Não, nunca mais! Quero que saiba que eu também


estive escondido na Argentina.

KARL – É, a gente se arrepende!

SIGMUND – E precisa fazer alguma coisa, quando volta...

KARL – Outra coisa!...


SIGMUND – Algo que nos redima. 33
KARL – Que nos absolva.

SIGMUND – Você tentou rezar?

KARL – Você está louco!

SIGMUND – Bom: é o que tanta gente faz...

KARL – Esqueça! Deus não existe para nós!

SIGMUND – Sim: tem razão! Eu acho que se chegasse a


comungar, me apodreceria a hóstia, na boca!

KARL – E eu sonho que quando estou confessando me agarram!

SIGMUND – Portanto decidiu-se a fazer isto...

KARL – Sim.

SIGMUND – E... Você gosta?

KARL – Muito!

SIGMUND – A mim também, embora não saiba como iremos nos


arranjar, porque sempre que o fiz, foi sozinho, e não sei como
fazer para expulsar um colega!
34
KARL – Isto nós já veremos, porque você ainda não me disse para
quem trabalha!

SIGMUND – Bom: você tampouco, Karl!

KARL (De súbito) – O carro!

SIGMUND – Outra vez?

KARL – Nos pegaram!

SIGMUND – Você acha?

KARL – Tenho quase certeza...

SIGMUND – E você está preparado?

KARL – Claro: sempre estou! (Sigmund levanta-se,


bruscamente, tirando um pacote de salgadinhos do bolso,
gritando uma lista de pregões, vendendo chocolates ou
bolachas, como um camelô. Karl, por sua vez, anuncia, como
um charlatão, eletrodomésticos de Taiwan, artigos em oferta,
falsificações, etc. Logo, Sigmund pára e olha para o horizonte,
onde o carro, a julgar pela sua atitude, parece ter
desaparecido. Detém Karl com um gesto. Fala com calma,
como um perito militar.).

SIGMUND – Tudo bem! Já passaram!... Não é bom que


continuemos, pois pode juntar gente, e isto não nos convém.

KARL – Parece que disto você entende bem!


SIGMUND – E você também... Por acaso, você tem outros 35
disfarces por aí? (Karl explode numa gargalhada, enquanto tira
um nariz vermelho, de palhaço, do seu bolso, colocando-o e
subindo no banco.).

KARL – O Palhaço Melocotón!* *(pêssego em calda).

SIGMUND (Tira um apito do bolso, que faz soar,


estrondosamente, enquanto adota a atitude de um
apresentador de circo) – Meninos e meninas! Senhoras e
senhores! O Circo Ambulante das Águias Humanas apresenta: O
Palhaço Melocotón!

KARL – Como vai, senhor Corales?

SIGMUND – E você, como vai, Melocotón?

KARL – Poderia fazer-lhe uma pequena pergunta?

SIGMUND – A que você quiser, Melocotón!

KARL – O que você faz, realmente, neste lugar?

SIGMUND (Sempre em tom circense) – Só lhe respondo, se


você, primeiro, me disser para quem VOCÊ trabalha! (Ri. Vai ao
fundo, e troca a sua caracterização pela de um vendedor
ambulante, com um brinquedo na mão, que começa a
anunciar. Karl vacila um pouco, e logo faz o mesmo, com
outro brinquedo, que anuncia, ao suposto fluxo de
transeuntes. Sigmund salta para trás, e troca, de novo, seu
personagem, pelo de um pregador evangélico. Karl continua
nesta competição, alegrando-se a cada vez que consegue
empatar, neste jogo de disfarces e dissimulações. Afinal,
36
Sigmund tira uma garrafa de seu bolso e faz um bêbado, com
ar douto. Karl tira, também, uma garrafa e faz outro bêbado,
porém mais vulgar. Sigmund, sempre bêbado.) Parece que
você veio da mesma escola!... Brindemos, cidadão, por esta feliz
coincidência!

KARL – Permita-me fazer-lhe uma pergunta, aproveitando o seu


estado, digamos... curtido! Diga-me uma coisa: esta luz (aponta
um spot do teatro.) é o sol ou a lua? (Sigmund ajeita seus
óculos imaginários, e pede-lhe apoio para examinar o
“experimento científico”. Depois de olhar, um pouco, parece
ter uma opinião.).

SIGMUND – Cidadão: tenho o meu relatório! Declaro-me


incompetente!
KARL - Incompetente?

SIGMUND – É que eu não sou deste bairro! (Gargalhada.).

KARL – Outra pergunta, outra pergunta: se o país estivesse


atolado na merda – uma suposição, é claro, uma desvairada
suposição...

SIGMUND – A suposição de alguém que não está no completo


domínio dos seus cinco sentidos, é claro...

KARL – Sim, sim... Portanto, se o país estivesse atolado na


merda, deveríamos dizê-lo ou não?
SIGMUND – Temos que dizê-lo! 37
KARL – Não, nós não temos que dizê-lo! Tome cuidado!
Shhhhhhit!

SIGMUND – Temos que dizê-lo, eu lhe digo! Olhe: eu vou dizer o


que acontece com você – o problema é que você está perdido
naquilo que se chama de dilema hamletiano do homem chileno do
nosso tempo. Temos que dizê-lo, ou, até quando vamos andar nos
fazendo de borrachos para dizermos o que pensamos? Ou de
palhaços para conseguirmos rir um pouco? Ou de lunáticos? Ou
andar matando a fome vendendo bugigangas no Paseo Ahumada?
Não! Temos que dizê-lo! Ipso facto, per omnia secula seculorum et
pluribus unum, in situ, labor omnia vincit... (Karl senta-se,
recuperando a sua lucidez e o aplaude, interrompendo sua
série de latinismos e lugares comuns. Sigmund recupera-se,
de chofre, guardando a garrafa.) Perdão, eu passei do ponto, me
entusiasmei e não pude parar...

KARL – Não: está muito bem, muito bem!...

SIGMUND – Você acha?

KARL – Você é um profissional completo!

SIGMUND – Não! Você está equivocado! Eu sou apenas um


amateur! Além disso, ajo assim, exclusivamente para a minha
satisfação pessoal. Por isso, acho que nós não podemos fazer
juntos, sabe?
KARL – Vai voltar a este assunto? (Vai tomando,
progressivamente, sua atitude de líder político.) Olhe: 38
aceitemos o inevitável! Este é um trabalho coletivo! A história é
feita por uma classe – a classe dos sem-posses e dos marginais,
como você e eu!

SIGMUND – Cai fora, meu! Eu não sou nenhum marginal!

KARL – Somos! Somos!

SIGMUND – Você pode viver numa favela, mas eu tenho a minha


casa na ‘cité’, e muito boa, por sinal!

KARL – Você é um homem sem classe! Um homem simples, que


deve assumir sua responsabilidade histórica, porque foi a história
que fez nos encontrarmos aqui, para cometermos juntos este...

SIGMUND – Cala a boca, Karl!

KARL – Vamos fazer juntos!

SIGMUND – Pare com isso, Karl!

KARL – Mas... Não lhe parece fantástico! Acreditávamos que


estávamos sós, que estávamos desamparados e órfãos, e, logo
descobrimos que a nossa é a história de uma coletividade, de uma
nação. Somos a consciência ferida de um país desgarrado!

SIGMUND – Ora: cala essa boca! Que tanto país, que tanta
nação? Somos uma dupla de vagabundos encagaçados. Vivemos
na corda bamba, aos trancos e barrancos com a águia, com o cu
cheio de coca-cola e você vem me dizer que somos o país e
nação! 39
KARL – Não me diga que você é daqueles que crêem que nós
somos apenas e somente mendigos e delinqüentes?

SIGMUND – E que outra coisa somos, hein? O Condor e o Veado


do Escudo Nacional, por acaso?

KARL – Somos a consciência da opressão! A força reprimida que


tenta uma saída desesperada, desnudando... (começa a abrir sua
gabardine. Sigmund o detém, à força.) nossa condição de seres
frustrados, hostis, agressivos e castigados!

SIGMUND (Tentando acalmá-lo e sentá-lo) – Cale-se! É melhor


que se acalme!

KARL – Diga-me de uma vez por todas: qual é a sua chapa?

SIGMUND – Minha o quê?

KARL – Sua chapa, seu codinome...

SIGMUND – Meu codinome?

KARL - Como? Você não usa codinome?

SIGMUND – E você usa?

KARL – Claro que sim...


40
SIGMUND – Quer dizer que você, então, pertence ao... (Levanta o
punho como os membros do Partido Comunista.).

KARL – Mais ou menos! Abaixe esta mão!

SIGMUND – Pois saiba que eu trabalho por conta!

KARL – Isto eu já sei. Diga-me, então, seu codinome!

SIGMUND – Já lhe disse que não uso codinome!

KARL – Então me diga o seu nome!

SIGMUND – Meu nome? Eu pensei que você já havia me


reconhecido!

KARL – E como eu poderia reconhecê-lo?

SIGMUND – Não sei. Talvez, por cultura geral, de Viena, de


Londres, de palavras cruzadas, de alguma capa de livro...
KARL – Permita-me olhá-lo?

SIGMUND – Sim, mas só um pouco. (Sigmund assume uma


atitude estatuária, enquanto Karl observa-o, brevemente.
Logo, voltam à sua atitude habitual.).

KARL – Sua cara me parece conhecida, porém não recordo o seu


nome.

SIGMUND – Comigo acontece exatamente o mesmo com relação


a você.
KARL – Seu nome, por favor! 41
SIGMUND - Sério?

KARL – Sim...

SIGMUND – Meu nome é... Freud. Sou Sigmund Freud!

KARL – Freud?... O famosíssimo Professor Freud?

SIGMUND – Sim. Disfarce, por favor!

KARL – De verdade? O célebre psicanalista Sigmund Freud, de


Viena?

SIGMUND – Mantenha a sua compostura, por favor, sim?

KARL – Quer dizer que estou nada mais e nada menos do que
com o genial Professor Freud, aqui, junto a mim?

SIGMUND – Por favor, pare com isto! Estou totalmente retirado da


vida pública. Considere-me morto! Assim, menos alvoroço, eu lhe
suplico!

KARL (Em êxtase, como um fã de Freud) – Analise-me! (Joga-


se de costas sobre o banco. Sigmund resiste, empurrando-o
para o outro lado. Forcejam.).

SIGMUND – Por favor, eu lhe rogo, sente-se! Guardemos, pelo


menos, as aparências.
KARL – Analise-me, por favor! Só uma vez, uma vez só... 42
SIGMUND – Mas, agora, nós não podemos. Teríamos de estar de
acordo em muitas coisas...

KARL – Nunca pude. Sempre quis fazê-lo. Entraremos de acordo


no que você quiser. Que maravilha! Ser analisado pelo próprio
Professor Freud!

SIGMUND (Empurrando-o, violentamente) – Imbecil! Por que


não põe um anúncio no jornal? FREUD! FREUD! FREUD! Ah meu
Deus: a minha sina é encontrar gente histérica!

KARL – Professor! Você me surpreende!

SIGMUND – Parece que você não aprendeu nada com o Romero!

KARL (Recuperando o ar suspeito) – Por quê?

SIGMUND – A você, alguma vez, encarregaram de seguir


pessoas?

KARL – É claro!

SIGMUND – Usavam microfones?

KARL – Usávamos.

SIGMUND - Tocaias?
KARL – Óbvio!

SIGMUND – Carros brancos com vidro fumê?


43
KARL – Sim.

SIGMUND - Delatores?

KARL – Sim...

SIGMUND – Então, disfarce...

KARL (Como terminando uma revista militar) – Pronto! (Pausa.


Olha para ambos os lados, lentamente.).

SIGMUND – Eles não estão vindo.

KARL - Não?

SIGMUND – Não.

KARL – Devem andar por aí!

SIGMUND – Hum, hum!... Em meia hora, mais ou menos, as


meninas devem sair.

KARL – Então... (Salta, como que impulsionado por uma mola,


para voltar a deitar-se sobre o banco.) analise-me neste meio
tempo!
44
SIGMUND – Já lhe disse que temos de estar de acordo em muitas
coisas!

KARL – No quê? No preço?

SIGMUND – Entre outras.

KARL (Senta-se, abruptamente, fazendo Sigmund cair pela


inércia do seu esforço) – Judeu!

SIGMUND – Bom: está bem, deite-se!... Deite-se, estou dizendo!


(Karl deita-se.) Isto é absolutamente anormal. Deveríamos ter
feito, pelo menos, algumas entrevistas preliminares.

KARL – Para quê?

SIGMUND – Para conhecer seu caso, é claro!

KARL (Como na cena dos bêbedos) – Mas se já nos


conhecemos da vida toda, não é certo, compadre?

SIGMUND (Pigarreando) – Isto já é claramente desrespeitoso!


Você tem que entender que não pode ter estas manifestações de
confiança, durante a sessão e, além do mais, você deve deitar-se
um pouco mais para lá! Está me esfregando essa cabeça imunda!
(Karl afasta-se.) Bom: vamos nos ver umas quatro ou cinco vezes
por semana, por uns sete, oito, nove ou dez anos, conforme a
evolução!

KARL – Mas isto é muito tempo!


SIGMUND – Ah! Mas isso é assim! A psicanálise é radicalmente
infinita. 45
KARL – É que eu quero algo finito!

SIGMUND – Você quer que eu o analise ou o quê?

KARL – Sim! Mas só um pouquinho, mais nada!

SIGMUND – Ah não! Assim não pode ser!

KARL – Você é muito formal!

SIGMUND (Com tom empolado, muito doutoral) – Talvez, esta


formalidade, a que você se refere, seja um sentimento interior seu,
que você projeta em mim! Ou não?

KARL – Você é muito formal, repito! Tremendamente formal! Fica


observando se eu estou assim, se eu estou assado, se faço isso
ou se faço aquilo. Enfim, você é um pedante!

SIGMUND – Poderíamos dizer que você se encontra aflito, cheio


de barreiras, conforme disse, e deve rompê-las...

KARL – Eu não falei aflito! (Começa a levantar, gozando o erro


do outro.).

SIGMUND – Eu não disse? Teria dito, então, constrangido?...


Oprimido?... Ansioso?... Nervoso?... Complicado?...
Encurralado?... Que sei eu!... De onde eu tirei esta palavra: aflito!
Não! Eu me desconcentro! Não, não, não posso analisar ninguém
num parque! Não! Eu me vou, sabe? Vou! Volto para Viena, para
Londres, para New York, para Buenos Aires, seja para onde for! 46
KARL (Ficando desesperado com a possibilidade de que
Sigmund se vá, e trata de detê-lo) – Não, por favor! Não me
deixe! Não me deixe! Seria terrível, insuportável! Não, por favor...

SIGMUND – Você não acha que foi uma mudança muito rápida?
Bem: vamos, deite-se! (Karl deita-se.) Agora vou lhe explicar a
regra fundamental da psicanálise, que é a livre associação!

KARL - Livre?

SIGMUND – Sim, livre! Ainda que você não acredite. É rápido.


Escute, e, por favor, não me interrompa...

KARL (Interrompendo-o) – Ai: eu me imagino em seu consultório,


em Viena! Sua estufa, seus desenhos orientais, sua poltrona de
couro, seu divã capitoné...

SIGMUND – Por favor...

KARL (Sem deixar-lhe falar) – Diga-me uma coisa, agora que


confiamos um no outro: é verdade que você ia para a cama com a
sua cunhada? É o que dizem por aí! E, é verdade que o seu filho
seduzia as pacientes na sala de espera e as... hummm? Não?
Diga-me: não enchem o seu saco estas histórias de pacientes que
querem dormir com a mãe ou com o pai, hein? (Sigmund
pigarreia. Karl desculpa-se.).
SIGMUND – Bem, eu lhe dizia... ou tentava lhe dizer... que a
47
associação livre consiste em que você, durante as sessões, fale da
primeira coisa que lhe vier à cabeça, por mais trivial, inadequada,
absurda, improcedente ou dolorosa que possa parecer. (Pausa.) E
então?

KARL – Eu acho que você é um comedor de grã-finas!

SIGMUND – Mas que insulto mais rebuscado!

KARL – É o único que me veio à cabeça!

SIGMUND – Então está bem!

KARL – Me lembrei, agora, de que... bom, quando você abriu sua


gabardine, eu lembrei de uma piada... Trata-se de um cara que
tem um enorme... pênis... e, chega a um restaurante, e golpeia o
balcão com... com ele!...Pam! Pam! Pam! E diz: um engradado de
cerveja!

SIGMUND – Sim! Sei!

KARL – Não acha engraçado?

SIGMUND – Você acha?

KARL – Me fazia rir muito, quando estava no colégio! Imagine: um


tipo com um pênis enorme, que golpeia o balcão com ele, e diz
(voz grossa.): um engradado de cerveja!
SIGMUND – E que idade você tinha quando esta piada o fazia rir
tanto? 48
KARL – Bom, eu não sei, eu era criança...

SIGMUND – Entendo. Continue!...

KARL – Bem...aí, o moço do balcão já estava de saco cheio,


porque todos os dias, o cara com o tremendo... com o tremendo...
bom, na verdade, não é pênis que eu costumo dizer, e sim... pica...

SIGMUND – Está bem...

KARL – E também digo pissa, vara, pepa, cobra, manga, piorra,


verga, enguia, bengala, pua, seringa, cabeça de bolo inglês... tudo
isso eu digo!

SIGMUND – Não sei se você se deu conta, mas todos os


sinônimos que você usa, estão no sexo feminino!

KARL – Não, não havia me dado conta... (Senta.) O que é que


você quer dizer com isso?

SIGMUND – Nada, no entanto, pode deitar-se...

KARL (Deita-se) – Bom: então, o moço se aborrece, e decide que


dá próxima vez que o cara chegar, ele vai lhe cortar a mangueira
com uma machadada!

SIGMUND – “A” mangueira, como você percebe.


49
KARL – Bom... sim!... Daí, o cara chega, e tira a vara, a manga, a
que sei eu lá o quê que ele tira para fora e põe sobre o balcão e -
pam! pam! pam! Um engradado de cerveja! -. Aí, o moço vem,
pega a machadinha e ZÁS... lhe arranca o aparato!... Aparato é
masculino! E também peru, e pinto, e pintinho, e pau, e pirulito, e
dedo-sem-unha, e microfone, etc., etc., etc. Todos são masculinos!
Viu? Viu? Viu?

SIGMUND – Sim, sim, vi!

KARL – E a piada continua...

SIGMUND - Continua?

KARL – Sim continua! No outro dia, o cara chega e tira um


pedacinho, um tiquinho, assim como o seu, e (ri.) diz... (Voz
efeminada.) “Uma coca-cola, por favor!” (Gargalhada grosseira.
Repete uma ou mais vezes a fase, quase chorando de rir.) Não
lhe parece divertida? Não? Você não acha muito engraçada?
Nenhum pouco engraçada? Nada?

SIGMUND (Permanece impávido) – A mim, me parece muito


mais dramática, sabe, porque é evidente que o que você teme é
que lhe aconteça isso: o que aconteceu ao senhor da piada, como
castigo pelo ressentimento que tem contra o poder que tanto
detesta, e que agora, eu represento...

KARL (Sentando-se) – Não gostei da psicanálise! (Pausa.) Sabe,


eu me lembrei de um sonho...

SIGMUND - Sim?
KARL – Tive um sonho! (Deita-se.) Não há ninguém escutando? 50
SIGMUND – Claro que não!

KARL – Sonhei com um fantasma que recorria toda a Europa.


(Sigmund sobressalta-se.) E sonhei com a Internacional
Trabalhadora, que avançava pelos campos do mundo... (Sigmund
tapa-lhe a boca, apavorado.).

SIGMUND – Como você disse que se chamava?

KARL – Bem, na verdade, não lhe disse. Sou escritor... escrevi


várias novelas! Pena que algumas delas foram levadas muito a
sério!...

SIGMUND – Como, por exemplo?

KARL – Por exemplo, Das Kapital...

SIGMUND (Abismado) – Das... quanto?

KARL – O Capital! Nela pretendo dar uma visão... (Um manotaço


de Sigmund fecha a sua boca.).

SIGMUND – Você é Karl Ma... Ma... Não, não o diga, não o diga!...

KARL – Posso continuar?


SIGMUND – Não! Acabou a hora, agora! Ficamos por aqui! Nos
51
veremos amanhã! Já estava na hora! Pode levantar-se e não fale
comigo...

KARL – Mas... depois de tudo o que sabemos um do outro?

SIGMUND – É assim: o analisado jamais dirige a palavra ao seu


psicanalista, fora da sessão! A não ser frases banais ou de
cortesia, tais como bom dia, boa tarde, a conta... Isso é tudo!

KARL (Furioso) – Ora, mas isso é outro dos seus arroubos


pequeno-burgueses, proibitivos e repressores!

SIGMUND – Olhe, senhor: se aqui há alguém reprimido, este


alguém é você!

KARL – Sim... e você, que tanto fala da liberdade dos instintos,


olhe bem onde viemos parar, agora...

SIGMUND – E você, que diz associar, livremente, e a única coisa


que consegue fazer são associações ilícitas?

KARL – Ora: torra o meu saco este seu vitalismo retrógrado,


senhor Sigmund Freud!

SIGMUND – E, quanto a mim, estou até o pescoço do seu


racionalismo século dezenove, senhor Karl Marx!

KARL – Você disse!

SIGMUND – Sim, eu disse, e daí?


KARL – Judeu! 52
SIGMUND – E você? Judeu e marxista, além de tudo!

KARL – Cala a boca, elitista!

SIGMUND – Bolchevique!

KARL – Metafísico!

SIGMUND – Burocrata!

KARL – Individualista barbado!

SIGMUND – Coletivista horroroso!

KARL – Você despreza o poder das massas!

SIGMUND – E o que sabe você, se desconhece, absolutamente,


os mais profundos segredos dos homens?

KARL – Vaidoso! Paranóico! Megalomaníaco!

SIGMUND – Narciso! Egoísta! Egocêntrico!

KARL – Você é um obscurantista! Um místico! Você é um


idealista! (A gritaria e a troca de insultos chega ao máximo.).

SIGMUND - Idealista? Eu? Eu sou um positivista! Você não


entende nada, porque é um cabeça-dura materialista!
KARL – Idealista! 53
SIGMUND – Materialista!

KARL – Idealista, vil e podre!

SIGMUND – Sai, oh materialista de supermercado!

KARL – De supermercado, eu? E dialético, também, para o seu


conhecimento!

SIGMUND – Sim, claro, materialista dialético, o machão!

KARL – E considera-se psicanalista este filho da puta!

SIGMUND – Isso sim é que não! Não ponha a minha mãe no meio!
Jamais se leva a público a mãe de um psicanalista, ouviu?

KARL – Não me diga! Sabe, não me fale mais... Não quero nunca
mais saber de você. Eu, que acreditei que poderíamos fazer uma
boa dupla, como O’Higgins e San Martin, como Sacco e Vanzetti,
como Quixote e Sancho Pança...

SIGMUND (Debochando) – Como Marx e Engels, não?

KARL – Sim, justamente, algo assim...

SIGMUND – Teríamos resultado como O Gordo e O Magro, como


Tom e Jerry! (Começa uma briga ao estilo das disputas de
crianças, tendo chiliques. Progressivamente, dão-se
empurrões e manotaços, até chegarem aos chutes e coices.). 54
KARL – Cale-se! Quem você pensa que é?

SIGMUND – Você não vai me fazer calar a boca, ouviu?


(Insultam-se como crianças que discutem para ver quem fica
com a última palavra. Terminam, os dois, sentados cada um
num extremo do banco, completamente emburrados. Aos
poucos, acalmam-se.) Na verdade... eu não quis dizer... isso!...

KARL – Isso o quê?

SIGMUND – Não sei, tudo...

KARL – Mas... sou eu quem devo desculpar-me...

SIGMUND – Não!... Sou eu! Eu fui grosseiro. Aproveitei-me do


meu papel. Deveria ter permanecido indiferente, absolutamente
neutro... e fui grosseiro, vil e abusado! Rogo-lhe que me perdoe!

KARL – Bom! Na verdade, você foi um pouco grosseiro e


abusado!...

SIGMUND – Certo! E você, um pouco rude e irritante! Suponho


que como você tem uma estrutura meio primitiva, não pôde evitá-
lo.

KARL – É, mais ou menos...


SIGMUND – No fundo, eu sou um homem muito arrebatado, muito
55
apaixonado... Toda a minha vida, todo o meu trabalho foi dedicado
a estudar e a entender estas paixões, que às vezes me dominam,
por completo, me consomem, senhor Marx, como agora...

KARL – Eu também lhe peço desculpas, senhor Freud. Na


verdade, sou um tipo ressentido, mesquinho, brusco, que me deixo
levar pela violência, pelo vandalismo...

SIGMUND – Ora: não exagere! Todos nós temos uma carga


tanatológica, um impulso de morte, uma força destrutiva, que às
vezes impõe-se. É natural...

KARL – Claro que sim! (Retórico.) É a conseqüência clara do


sistema de relações de trabalho e a dialética exercida entre...

SIGMUND – Vai insistir com isso, senhor Marx?

KARL – Perdão! O senhor está certo, senhor Freud!

SIGMUND – Saiba que eu estou realmente arrependido.

KARL – Receba minhas desculpas.

SIGMUND – Não se preocupe... e tem mais! (Vacila,


envergonhado.) Eu não sei como você irá receber isso, mas no
fundo, aqui... (mostra o peito.) eu o admiro, sabe?

KARL (Também parecendo envergonhado) – De verdade? Eu


estava tentando livrar-me de você... Estávamos tão... tão...
enfurecidos!...
SIGMUND – Sim. Chegava a dar pena ver-nos... 56
KARL – Tão sós...

SIGMUND – É. Tão sozinhos que estávamos, e brigando,


chutando-nos como crianças...

KARL – Você não percebe? É que no fundo, todos os homens são


iguais!

SIGMUND – Você acha?

KARL – Claro: é a sociedade que nos marca!


SIGMUND – Eu diria que, se algo chega a nos marcar, é a história
individual de cada um. Mas, se você insiste...

KARL – A verdade é que somos todos iguais, Sigmund! (Sigmund


levanta-se emocionado, e abre os braços para Karl.).

SIGMUND – Karl!

KARL – Sigmund! (Abraçam-se, sinceramente, comovidos.).

SIGMUND – Tudo é culpa da minha história familiar, sabe?


Começando por meu pai: ele foi uma figura tão apática, por assim
dizer. Eu vou lhe contar uma piada, também, só uma. Eu tinha uns
dez ou doze anos, e ele me contou que, uma vez, indo ao sabbath,
um cavalheiro, como ele disse, tomou-lhe o chapéu, jogou-o ao
barro e gritou-lhe – “Porco judeu!” -. E, sabe o que fez o meu pai,
ante tamanho insulto a ele e à sua raça? Sabe o que ele fez?
Nada! Nem sequer se defendeu! Você se deu conta? Depois, isso
aconteceu com o meu sobrinho, com o meu companheiro de 57
infância e... nunca mais... nunca mais, então, pude deixar de ver
em cada conhecido, um amigo e um inimigo, ao mesmo tempo.
Nunca mais, durante toda a minha vida...

KARL (Interrompendo-o) – Sim! Eu já sabia. Li isso no Die


Traumdeitung!

SIGMUND - Onde?

KARL – Na Interpretação dos Sonhos!

SIGMUND – Ah sim, claro! É que faz tanto tempo que não falo em
alemão! Você sabe, Karl, eu tenho inveja de você. Sim, eu o
invejo... porque você sim, soube captar as forças da história, o
verdadeiro significado das coisas, como se destruía a identidade
do homem,sua classe, sua raça... Eu gostaria que o meu pai...

KARL – Não, não Sigmund... Sou eu quem invejo você!

SIGMUND – A mim? O que você inveja em mim, Karl?

KARL – Invejo sua cortesia, sua perseverança, a sua capacidade


de trabalho...

SIGMUND – Isso são neuroses, nada mais...

KARL – Seus modos, sua elegância, seu porte vienense... Você é


todo um cavalheiro, Sigmund, enquanto eu... eu sou um
molambento... um rufião...
SIGMUND – Vamos: não dramatizemos! 58
KARL – Não! Isso tudo é por culpa da minha mãe, sabe? Ela era
uma mulher com ares de aristocrata, muito preocupada com a
ordem e a limpeza. Era famosa, em toda Teveris por suas manias.
E, você sabe, o que ela sempre me dizia? Sabe o que ela me
dizia? (Parodiando.) “Filhinho... ao invés de escrever O Capital,
melhor seria se você construísse um capital!” Entende? Uma
exploradora capitalista! Isso era a minha mãe: uma exploradora
capitalista!

SIGMUND – E pensar que, agora, temos tantos problemas no


mundo, por culpa de sua mãe, não? Bom... vamos ver... Eu
conhecia essa passagem tão pessoal de sua vida... Talvez seja
uma deslealdade dizer-lhe, mas tocou-me atender alguns
descendentes seus, em Londres, nos primeiros anos da Guerra...
Eu acho que você nem sequer imagina o quão profundamente eu o
compreendo, Karl...

KARL – Sim, eu acredito em você! Com você me sinto


compreendido e confortado, Sigmund.

SIGMUND – E mais: creio que juntos, como você já disse, vamos


nos sentir muito melhores!

KARL – Você acha isso mesmo?

SIGMUND – Mas é claro! Basta olhar-nos, nada mais! Almas


gêmeas! Para ambos, a história do homem é a história de suas
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repressões, sejam elas quais forem... E, antes, estávamos tão
solitários, os dois...

KARL – Anos a fio, lutando como Quixotes!

SIGMUND – E, negando, estupidamente, neuroticamente, diria eu,


a existência um do outro.

KARL – Como podemos prescindir um do outro?

SIGMUND – O cosmo intrapsíquico...

KARL – Do macrocosmo extrapsíquico! (Olham-se nos olhos.).

SIGMUND – Eu já não sei se poderei viver sem você, Karl!

KARL – E eu sem você, Sigmund! (Aproximam-se os rostos.


Quando parecem a ponto de beijar-se, canta, em coro, um
bolero romântico. Acabam com a música e separam os rostos,
confusos, envergonhados como duas garotinhas. Pausa.)
Sigmund?

SIGMUND - Karl?

KARL – Poderia fazer-lhe uma pergunta?

SIGMUND – A que você quiser! Acho que já não pode haver


segredos entre nós dois!

KARL – O que você fazia, quando trabalhava para eles?


SIGMUND – Mas que pergunta é essa? Não acha que, se vamos
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iniciar uma amizade, seria melhor adiá-la, ou seja, considerar isso,
como um feito do passado? Além do mais, é muito doloroso, não
há remédio que cicatrize!

KARL – Não, Sigmund!

SIGMUND – Você dá tanta importância para isso? (Karl balança a


cabeça, confirmando.) Bom... Se você pensa assim. (Aflito.) A
verdade é que eu... interpretava os sonhos... recebia depoimentos,
interpretava os sonhos, ou seja, colaborava no interrogatório – não
me leve a mal, não tome assim ao pé da letra -, tratando de
conseguir a maior informação possível com a menor tortu... com a
menor dor, quero dizer, dos interrogados... Era uma forma de
ajudar... aos prisioneiros, é claro... Era solidariedade pela dor. Não
acredita? Eu estava lá, e tinha de fazer algo... Fiz o que sabia
fazer...

KARL – Como é possível? Tudo o que você descobriu pôs a


serviço deles?

SIGMUND – Sim: é verdade, mas era para ajudar... Entenda-me:


eu estava metido no baile... Pelo menos eu fiz algo... Tem gente
que prefere nem falar no assunto, enterrá-lo, fechar a porta... Mas,
e você?... Eu poderia fazer-lhe a mesma pergunta, não?... Que fez
você quando trabalhava para eles?

KARL – Quem, eu?

SIGMUND – Sim, você!


KARL – Bom, bobagens, coisas sem importância...

SIGMUND - Bobagens? Todos nós fizemos bobagens! Passamos


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todos esses anos fazendo bobagens, mas quais você fez?

KARL – Bom, eu escrevia-lhes manuais, decifrava códigos,


planejava atentados... alguns confusos... conjeturava golpes,
ocorrências estranhas... e, também interpretava... os fatos, os
jornais, a informação, você sabe, dos outros...

SIGMUND – Eu que tanto admirei o seu cérebro, mal usado nisto!

KARL – Não me leve à mal! Eu também colaborei. Há coisas que


vi e nunca disse... Inclusive, entreguei dados falsos!

SIGMUND (Irônico) – Você também? Não!

KARL – Sim, também!

SIGMUND – Porém, tudo isto, não bastou para salvar-nos!...


Segundo eu percebo, não serviu para salvar ninguém!... Ah, Karl,
às vezes penso que, a única coisa que realmente ajudaria, seria
atrevimento... Atrevermo-nos, tratarmos de voltar a ser o que
éramos!... Tratarmos de juntar coragem e voltarmos aos nossos
postos, aos lugares que deixamos vagos... e, que permanecem
vagos!... Ah, você, sobretudo você, Karl, deveria voltar... Agora,
que é quando mais se precisa de uma cabeça como a sua... Sim,
você deveria voltar com seus discursos escaldantes, que eram
como trens carregados de bandeiras, suas palavras inflamadas,
suas frases explosivas e ardentes, cheias de uma carga
premonitória, que você nem sequer imaginava quando as
pronunciou pela primeira vez... Ah, Karl, têm discursos que você
disse, que eu ainda sei de memória... sobre todos, um, que é como
se você o tivesse dito, ontem... Você tem que recordá-lo... Era
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magnífico, atual, vigente, imortal... Você tem que recordá-lo, você
pronunciou-o em... em... 24 de julho de 1864! Lembra?... Sim, em
St. Martin Hall, em Londres... Como pode esquecê-lo, se foi o
discurso inaugural da Primeira Associação Internacional de
Trabalhadores?... A Primeira Internacional! (Canta-lhe, ao ouvido,
os primeiros acordes da Internacional.) Eu mesmo vou lembra-
lo... se a memória me ajudar, é claro!... Você deve ter-se colocado
assim: (coloca-se detrás do encosto do banco.) e deve ter dito
algo como, se me perdoa a versão (voz de orador.) “As Classes
Superiores da Europa contemplaram, com desavergonhada
satisfação, ou com fingida piedade, ou com estúpida indiferença, a
invasão pelos Russos, do reduto das montanhas do Cáucaso, ou o
assassinato da heróica Polônia!” (A Karl.) Você se dá conta? Você
falava dos russos na Polônia há mais de 120 anos!... E,
continuava: (retoma o tom de orador.) “As grandes invasões,
jamais questionadas, deste poder bárbaro, cuja cabeça está em
São Petersburgo, e - cujas mãos ativas estão em todas as
chancelarias européias -, ensinaram aos trabalhadores que têm
um dever: penetrar nos mistérios da política internacional, vigiar as
manobras dos seus respectivos governos, opor-se a eles, se
preciso for... e, através de todos os meios ao seu alcance,
denunciá-los, e, reivindicar as leis fundamentais da moral e da
justiça! Este é o primeiro dever dos trabalhadores!” (Karl soluça.
Sigmund, inebriado, não se apercebe do que acontece.) Que
maravilha! Como o aplauso deve ter rompido de todos os
trabalhadores da Europa, juntos, pela primeira vez! (A Karl.) Mas o
que foi que houve, hein? Ah, você está emocionado! Claro que
está emocionado! Sim, até a mim corta-me a voz, ao dizê-lo...
Você tem que voltar, Karl. Tem que voltar com estas frases. Este
mesmo discurso pode ter, ainda, um efeito terrível. Você tem que
voltar! Você está me ouvindo? Já! Agora! Imediatamente! Você
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não sabe o que fizeram com o seu nome, Karl! Vamos: iremos às
rádios, às revistas, à televisão, se for necessário. Volte agora, com
estes mesmos discursos, sim?

KARL (Pondo-se em pé, furioso) – Basta!... Saiba que isto da


Polônia, dizia até mesmo o maldito Romero! Você não se dá
conta? Roubaram-nos e deturparam até mesmo as nossas
próprias palavras! ... (Sigmund baixa a cabeça, sentido.)
Inclusive as suas!

SIGMUND – As minhas? O que é que há com as minhas?

KARL – “O Homem dos Ratos”, “O Homem dos Lobos”, “O Caso


Dora”, “O Pequeno Hans”...

SIGMUND – Isso são livros meus... O que é que há com eles?

KARL – Por acaso você não sabia que o gordo Romero se


masturbava quando lia os seus relatórios clínicos? O quê
justificava a porcaria que ele fazia? Nada! Ele chegava a imaginar
coisas, inclusive!

SIGMUND – Sim, eu sei, eu estava lá!

KARL – Eu também estava lá! Todos estivemos lá, de uma


maneira ou de outra!... Mas onde deveríamos estar, hein, onde?
SIGMUND – Bom, eu acho... (Balbuciante, abobalhado com a
reação de Karl.). 64
KARL – Deveríamos estar nos palanques, não é? Deveríamos
estar nos palcos... Nas Universidades deveríamos estar! Nos
Parlamentos! Aí, sim, deveríamos estar! Nos Parlamentos! Porém,
onde estamos?... Estamos aqui! (Golpeia o banco.) Neste banco!
Aqui nos jogaram... Não abaixe os olhos! Olhe-me! Olhe-se!...
Transformaram-nos em caricaturas! Em seres obscenos!
Obscenos!... Você percebe agora, porque temos que atuar
juntos?...

SIGMUND - Juntos?

KARL – Sim, e, agora, é inevitável! Não nos deixaram outra


alternativa!
SIGMUND – É o destino, não? (Pausa tensa. Sigmund treme,
contendo um soluço.).

KARL – Saiba que foi Maravilhoso ter conhecido você... como


amigo!

SIGMUND – Como amigo? (Karl confirma, balançando a


cabeça.) Você gosta de mim, como parece? Há muito tempo
ninguém me dizia isso!

KARL – Pois eu o digo... ainda que seja demasiado tarde,


Sigmund!
Karl salta para sua postura de alerta. Sigmund segue-o,
sobressaltado. Olham para frente, rígidos.) O carro!
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SIGMUND – Eu lhe agradeço, de qualquer maneira, Karl! (Chora.

KARL – Você sabe fazer um flanelinha?

SIGMUND – Você quer que eu faça? (Karl confirma. Sigmund


põe-se em pé, e tira um pano amarelo e sujo, do bolso,
daqueles usados para limpar pára-brisas, e, grita, a um
suposto carro, que estacione. Karl o detém, com um gesto.).

KARL – Está bem! Já passaram... Da próxima vez, eu faço o


flanelinha e você pode fazer...

SIGMUND – O vendedor de guarda-chuvas automáticos!

KARL – E eu, o vendedor de amendoins...

SIGMUND – E eu posso fazer... sabe? (Com entusiasmo


infantil.) Posso fazer um especial, um que você não conhece. Eu
o inventei, e vou fazê-lo agora, dedicado a você! Olhe: é com um
pouco de música e sapateado americano. Você sabe: a mim,
sempre me agradou muito o teatro... Trata-se de um músico de
rua, com um pente envolto em papel celofane, que dança, mais ou
menos assim... (Começa a dançar e a tocar pente, porém, Karl
o interrompe. O som de uma banda e um coro de meninas
cantando um hino vem do colégio.).

KARL – O hino!
SIGMUND – Está terminando a cerimônia... Já vão sair as
meninas! Parece que terminou o nosso tempo, Karl... Vamos ter
que trabalhar... (Inseguro, tratando de valorizar-se.) Vamos,
66
Karl!

KARL (Puxando-o por uma manga, para que se sente) –


Espere...

SIGMUND – O que é agora?

KARL – Não sei! De repente me deu medo!

SIGMUND - Medo? Você com medo?

KARL – Não sei, parece que me fez mal a psicanálise! Não sei...

SIGMUND – A estas alturas, o medo não nos serve para nada,


Karl. Temos que fazer o que viemos fazer.

KARL – Mas será necessário? Terá algum sentido?

SIGMUND – Não sei, porém, já não creio que sirvamos para outra
coisa! Assim, é melhor que se acalme, para que, pelo menos,
possamos fazê-lo bem!

KARL – você tem razão! Não se preocupe... vai sair melhor, muito
melhor que a encomenda...

SIGMUND – Não o duvido, com este tremendo calibre que você


tem... Imagino, como poderá sair... (Ri, malicioso.).
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KARL – Bom, você prefere calibre pequeno... Deve ser um grande
atirador.

SIGMUND – A falta de tamanho sempre se supre com habilidade e


pontaria, não é assim?... Vamos: ponha-se em pé e abra a sua
gabardine! (Ambos, em pé, avançam, lentamente, para o
colégio.).

KARL – Aí vêm as meninas!...

SIGMUND – Sim: estão abrindo o portão... Escuta: você é


realmente Karl Marx?
KARL - Como? Por acaso você não é Sigmund Freud?

SIGMUND – E se eu não fosse... você seguiria considerando-me


seu amigo?

KARL (Sorri) – Talvez isso não seja o mais importante, agora, não
lhe parece?

SIGMUND – Sim, e, além do mais, a quem vai interessar?...


Vamos?

KARL – Vamos... Aí vêm os ministros!

SIGMUND – Boa sorte, Karl!

KARL – Boa sorte, Sigmund!

SIGMUND – Um...
KARL – Dois...
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SIGMUND – Três!... (Ambos sacam, cada um, uma pistola. Karl,
uma magnum ou um Parabellum, grande e potente. Sigmund,
um revólver pequeno. Apontam, em posição profissional,
dando um enorme e gutural grito. Ficam imóveis, congelados,
como estátuas. Após alguns segundos, blecaute total).

FIM

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