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Barbara Cartland

Título Original. The Hidden Evil


Resumo

França, 1555.

Enviada para ser a governanta da rainha, Sheena descobre que um duque quer governar
sua vida!

Quando menos esperava, a jovem escocesa, Sheena McCraggan, foi enviada a uma
corte luxuosa, onde os conceitos de moral e os valores humanos eram todos distorcidos!

Sua missão, tentar salvar a educação da jovem rainha da Escócia, que corria o risco
de ser corrompida.

Mas ela jamais imaginara que seria o pivô de um plano centra o rei... E muito menos
que se apaixonaria perdidamente por um duque francês rico, charmoso e muito, muito
especial!

Disponibilização - Marisa Helena


Digitalização - Marina
Revisão - Analu
CAPÍTULO I

— “Pour le nom de Dieu”, feche essa porta! — exclamou o homem, de maneira


furiosa, perto da lareira.

O vento marinho invadiu o ambiente com seu sopro gélido, castigando


impiedosamente as costas dos quatro cavalheiros, sentados diante das chamas, que
aqueciam o pequeno saguão onde os drinques eram servidos.

— Devo me desculpar, Milordes, se estou me intrometendo — respondeu uma voz


portentosa, cheia de sarcasmo.

Os quatro jovens se colocaram de pé com rapidez.

Emoldurado pelo portal de entrada da pousada, um local de teto baixo e paredes


rústicas, havia um homem de trajes esplêndidos. Sua sobrecapa de veludo reluzia tanto
quanto as jóias que ostentava nos dedos. Uma pluma adornava o chapéu de feitio luxuoso,
colocado de maneira peculiar sobre os cabelos escuros. As botas de cano alto pareciam
não haver enfrentado a lama que cobria todo o pátio que circundava o local.

— Oh, Milorde! — balbuciou um dos jovens — Não esperávamos vê-lo aqui.

— Eu mesmo não imaginei que ainda estaria neste lugar — respondeu o duque de
Salvoire, fechando a porta atrás de si e se aproximando deles, enquanto retirava as
ornamentadas luvas de pelica.

— Também está esperando o navio da Escócia? — indagou um dos rapazes, em


tom respeitoso.

-— Não, nada tão excitante — disse ele — Fiquei em Anet e estou a caminho de
Paris, para me encontrar com o rei. Porém, a duquesa de Valentinois, pediu para levar
uma mensagem ao Convento das Irmãs Pobres, que fica nesta terra que Deus esqueceu.
Só mesmo Ele, a quem essas freiras adoram com tanta devoção, sabe o motivo de
haverem se instalado tão longe.

De maneira quase inconsciente, tomado pela força do hábito, o duque se acomodou


na cadeira mais confortável do local, situada ao lado da lareira.

Um gesto vago de sua mão determinou que os outros se sentassem também. Eles o
fizeram, mas sem a mesma descontração da qual vinham desfrutando antes da chegada
do lorde. Dali por diante, certa tensão se fez presente, e todos assumiram uma postura
mais polida. Suas faces se voltaram na direção dele, aguardando que dissesse algo.

O duque notou que se tratava de quatro dos mais sóbrios e inteligentes rapazes da
corte. Como todos eram seus subordinados, imaginou que deveria ter sido a própria
duquesa, que escolhera aquele grupo para cumprir a missão, qualquer que fosse ela, à
qual haviam sido confiados.
"Ela nunca falha", pensou, esboçando um leve sorriso.

Jamais imaginara que qualquer outra mulher pudesse ser tão sábia, astuciosa e
inteligente quanto Diane de Poitiers.

A amante do rei vinha sendo, em termos práticos, a rainha da França.

Um dos rapazes interrompeu o pensamento, perguntando.

— Está triste por deixar Anet, Milorde?

A expressão do duque se suavizou de maneira surpreendente, afastando de seu


olhar o ar de tédio e de cansaço.

— Qualquer um se sente feliz por estar lá, então é normal que lamente ao deixar o
lugar. A duquesa e o rei construíram um verdadeiro lar naquele palácio, baseado em amor
verdadeiro.

O ar surpreso de sua pequena platéia foi notável. O duque era conhecido por sua
postura quase sempre cínica diante de tudo.

Tendo sofrido uma forte decepção amorosa com a tenra idade de dezoito anos,
jurou que jamais se deixaria levar outra vez pelos encantos do coração.

Tinha por hábito declarar ser desprovido de coração, alegando possuir apenas um
bom cérebro, que julgava muito mais confiável.

Como que arrependido por dizer aquela frase em tom tão terno e simpático, proferiu
ele próprio outra pergunta, com ainda mais secura e rispidez do que o normal.

— Diziam estar à espera de um navio vindo da Escócia, não é? Seria essa uma
mera desculpa para esconder algum tipo nefasto de contrabando que estão fazendo pelo
canal? Ouvi falar que os portos da Bretanha estão cheios de ouro inglês.

Um dos jovens riu e se pôs logo a responder.

— Não há nada que esteja fora do alcance de seus ouvidos, não é mesmo, Milorde?
E verdade que está havendo um grande crescimento do contrabando, mas todo ele é
benéfico à França. Nesse caso, quem somos nós para desestimular um bom cliente, por
mais desagrado que ele demonstre ao levar a mão ao bolso para pagar a conta? Mas não
me entenda mal, isso não significa que participamos de qualquer atividade desse tipo.

— Você não respondeu à pergunta do nobre senhor, Gustave — interpôs-se outro


dos jovens — Estamos aqui, Milorde, para receber a nova governanta da jovem rainha da
Escócia.

— E mesmo? Não imaginei que precisássemos pedir que enviassem uma pessoa
de lá, para cumprir tão simples tarefa. Será possível que não haja pessoa alguma, em toda
a França, que esteja apta a cumprir tal missão? Quem disse que nossas damas não
possuem tanto o conhecimento quanto a inteligência para fazê-lo?
— Concordo com sua opinião, honrado Milorde — disse o comandante Gustave de
Cloude — É quase um insulto que tenhamos de mandar buscar de além mar, em uma terra
de bárbaros quase selvagens, uma instrutora para a futura noiva de nosso príncipe. Mas
nos disseram que a jovem rainha insistiu pessoalmente, na dispensa de madame D'Paroy,
tamanho o desgosto que sentia na companhia dela.

— Apenas insistiu? — questionou o duque, com ar curioso — Aquela garota de


treze anos quase expulsou a pobre mulher do palácio.

— E o que dizem Milorde.

Aquilo fez o nobre sorrir.

— Uma personalidade admirável para alguém tão jovem. Ora, ainda bem que a
França poderá fazer uso de alguém assim. Ela será o par perfeito para nosso infante
príncipe.

Houve um momento de silêncio e reflexão no ambiente. Todos pensavam no futuro


herdeiro do trono, que era um garoto fraco e frágil, portador de uma estranha doença
sangüínea. Seria preciso uma esposa muito forte para ajudá-lo a governar o país mais rico
e culto do mundo.

— De qualquer modo — prosseguiu o duque — isso ainda é um insulto. Não acho


que precisemos de uma agigantada e grosseira babá escocesa, se esbaldando em nossos
palácios. Maldição! Tomara que o navio dela tenha afundado nas tormentas desses dias.
Assim nos poupará de tamanha vergonha.

Ao acabar de falar, a voz indignada do nobre ainda ecoava pelo ambiente quando
outra se fez ouvir, em um tom que parecia tão frio e pungente, quanto jovem.

— Lamento informá-lo, Milorde, mas seu desejo não se cumpriu. A nau escocesa
não afundou, e chegou a salvo ao porto. Aliás, já está atracada há tempo.

Após um momento de hesitação, cinco rostos se voltaram na direção da porta, para


observar a moça que ali chegava. Surpreso, o comandante Gustave ficou de pé.

— O navio ancorou? Não fomos informados! Deveríamos estar no atracadouro para


recebê-lo. O que aconteceu aos visitantes escoceses?

— A maioria já se instalou em seus respectivos quartos — respondeu a delicada


jovem.

O duque deduziu que a garota deveria ter em torno de dezessete anos.

Levantou-se então com vagar e dignidade, ao notar que os outros cavalheiros já


estavam de pé.

Os olhos verdes da linda moça que estava diante dele o confrontavam com
indisfarçável hostilidade. Era a primeira vez que se deparava com uma escocesa de
constituição física tão delicada.
Os cabelos cacheados escapavam do chapéu, sob a fúria do vento, revelando sua
cor avermelhada, que parecia ouro incandescente. A pele alva denotava algo que inspirava
pureza, pois era tão perfeita e clara que parecia translúcida.

Se permitisse a si mesmo devanear, classificaria a recém-chegada como uma fada


ou um anjo.

— A comitiva já se recolheu? — gaguejou o comandante.

— Isso é desastroso, Milady. Meus companheiros e eu estamos incumbidos de


encontrar e receber os visitantes, dando-lhes boas-vindas em nome do próprio rei.

A moça desviou o olhar da direção do duque, a quem encarara de maneira


ininterrupta, voltando-se então para o alterado rapaz.

— Como não havia pessoa alguma no porto, caminhamos até a pousada.

— E lady Sheena McCraggan? Estaria ela recolhida ao quarto? — questionou


Gustave — Poderia fazer a gentileza de persuadi-la a falar comigo por alguns minutos,
dando a oportunidade de me desculpar e de transmitir as mensagens que Vossa
Majestade enviou?

— Pode dizer o que quiser agora mesmo, desde que me permita chegar mais perto
do fogo — respondeu ela — Meus pés estão encharcados. Nunca imaginei que a França
pudesse ser tão lamacenta.

— Mas, Milady não creio que possa ser...

— Sim, sou Sheena McCraggan.

O tom de dignidade e a força na voz da dama pareciam não combinar com formas
tão suaves e delicadas, quanto às de seu rosto e de seu corpo.

Ao ver o jovem comandante gaguejar e se manter em silêncio, o duque tomou a


palavra.

— Lady McCraggan, permita-me dar-lhe nossas boas vindas à França. Perdoe-nos


se parecemos um pouco desnorteados, mas esperávamos alguém com mais idade.

— Na verdade, ouvi muito bem qual era o real intento por trás de suas expectativas,
Milorde.

Aquelas palavras severas foram acompanhadas por um virar de rosto desdenhoso,


revelando seu perfil aristocrático, de nariz arrebitado e queixo afilado, denotando uma
personalidade evidentemente forte.

Os jovens oficiais ali presentes mal podiam conter a vontade de rir.

Estavam habituado a ver o duque vencer todos com sua argumentação afiada, e era
uma experiência interessante vê-lo em apuros, principalmente contra uma oponente tão
bela, formidável e, acima de tudo, jovem.
Então abriram caminho para Sheena se aproximar do fogo. Ajudaram-na a retirar o
casaco e o chapéu, ambos encharcados.

A luz das chamas reluziu sobre os cabelos avermelhados, dando a impressão de


que a pequena sala estava sendo visitada pelo sol crepuscular. Todos pareceram ficar
impressionados com aqueles cachos brilhantes, que se amontoavam sobre os ombros
delicados.

Um dos rapazes a acomodou em uma cadeira e se pôs a ajudá-la a tirar as


pequenas botas bastante úmidas. Ofereceram vinho e conhaque, mas ela pediu apenas
chocolate quente para se aquecer.

— Aqui está — disse uma serviçal, entregando uma caneca e se curvando com
humildade — As botas não secarão depressa o bastante, Milady, pois estão encharcadas
demais.

— Peça a algum de meus acompanhantes que providencie outro par de calçados


para mim, sim?

— Pois não. Quanto àquele senhor de sua comitiva, que estava passando mal,
tudo o que tenho a dizer é que também demorará a se recuperar — informou a robusta
mulher.

— Faça o que puder por ele, por favor — disse Sheena, observando a mulher se
afastar.

— Por que o tal homem adoeceu? — questionou um dos rapazes.

— O mar esteve tempestuoso por essas proximidades, então alguns membros de


minha comitiva, justamente os mais velhos e menos viajados, passaram por maus
bocados. Não dormiram nem se alimentaram direito nos últimos dias.

— Mas isso não parece tê-la afetado — observou o duque.

— Na verdade, gostei da viagem. Minha casa fica à beira-mar, e estou acostumada


a velejar na companhia de meu pai, com qualquer tipo de clima. Só não esperava chegar
aqui e encontrar um local mais frio e úmido do que o que deixei.

Esticando as pernas para aproximar os pés das chamas, e absorver melhor o


agradável calor, teve a primeira oportunidade para avaliar o local onde estava.

Embora a pousada fosse simples, os trajes dos homens eram luxuosos ao extremo,
e todos usavam jóias.

Ao olhar para si mesma, sentiu-se vestida de maneira pouco arrojada, embora suas
roupas houvessem sido feitas dos melhores tecidos, pelas mãos mais hábeis da alfaiataria
escocesa.

A França era mesmo a terra dos exageros, pensou consigo mesma. Mas deveria
superar qualquer problema, pelo bem de seu pai e de seu país.
Semicerrando os olhos, lembrou-se das palavras que trocara com o velho patriarca
McCraggan antes da viagem.

— Não, papai. Eu não irei — dissera ela, contrariada, poucos dias antes, ainda na
Escócia — De que servirá minha presença em um lugar, onde todos estão corrompidos
pela luxúria e pelos maus hábitos?

— Ora, filha, deveria estar se sentindo grata pela oportunidade que está sendo
oferecida — censurou o pai.

— Oportunidade? Bem, é claro que estou ansiosa por prestar meus serviços à
rainha, nem duvide disso, mas como é que Vossa Majestade vai me dar ouvidos, havendo
tanta gente mais interessante em quem prestar atenção?

— Nossa jovem rainha está vivendo em um antro de iniqüidade e perdição. Um


lugar onde o mal impera e se esbalda, sem encontrar o menor obstáculo. Já tínhamos
conhecimento disso quando decidimos enviá-la à França, mas, estando sob a severa
pressão imposta pela Inglaterra, o que mais nos restava fazer? Nossas plantações
estavam em chamas, e os soldados ingleses destruíam tudo em busca da menina.

— Oh.

— Sim, minha filha. Fomos forçados a mandá-la para lá, contra nosso próprio bom
senso. Acreditamos que a governanta dela seria um bom exemplo, e que bastaria para
mantê-la distante da indecência que impera naquele reino.

Parou de maneira abrupta e se voltou para uma janela.

— Isso não está certo. Eu não deveria estar dizendo essas coisas a você.

Sheena sabia sobre o que seu pai estava falando. Todos na Escócia sabiam que
Lady Fleming, a governanta real de Maria Stuart, havia se enamorado e tido um caso com
Henrique II.

— Papai sei que ela fraquejou, mas isso pode até vir a ser bom no futuro. Afinal, é
uma escocesa, e está carregando o filho do próprio rei da França no ventre.

— O bastardo que ele gerou nela, isso sim! E pensar que fui uma das pessoas que
a avaliaram e a julgaram competente como acompanhante de Vossa Majestade, antes da
partida da nossa jovem rainha.

Uma grande ansiedade a dominou naquele momento, quando seu pai contou que a
governanta francesa, fora rejeitada pela própria Maria Stuart. Como poderia Sheena, ainda
com dezessete anos, ter sucesso onde uma pessoa experiente falhara de maneira
vergonhosa, e outra fora dispensada pela própria rainha?

Mas fora um dos anciãos do conselho, quem fizera sugestão dela se tornar a nova
acompanhante da soberana escocesa.

O velho sábio sugerira que não era de instrução ou tutela que a rainha precisava,
mas sim de companhia e de amizade. Algo que apenas alguém na mesma faixa etária,
poderia proporcionar à pequena e desafiadora herdeira do trono.
Até então sempre fora fácil chamar os franceses de pervertidos, mas a atitude de
Lady Fleming os levou a engolir o próprio orgulho e a enxergar os problemas dentro da
elite da Escócia.

Diante de tal cenário, obrigaram Sir Euan McCraggan a enviar sua própria filha,
naquela missão quase impossível, apelando para seu senso de servidão à família real, a
fim de fazê-lo concordar com a idéia, de mandar seu único ente querida àquele reino
famoso por sua perversão.

Além disso, Sheena fora incumbida de espionar o rei da França, para tentar
descobrir se ele tinha mesmo a intenção de ajudar a jovem Maria Stuart a assumir o trono
da Inglaterra, que seria dela por direito, quando a velha rainha Maria Tudor viesse a
falecer.

Se não recebessem ajuda do rei aliado, os escoceses talvez não tivessem forças
para fazer com que os ingleses cumprissem sua obrigação em deixar a verdadeira
soberana assumir.

Estava claro que aquele papel de governanta e de espiã real não seria fácil de
desempenhar. Para completar, não havia quem a orientasse quanto ao aspecto feminino
daquela viagem.

Desde que sua mãe falecera, quase dez anos antes, fora obrigada a aprender tudo
com as poucas amigas da família que mantiveram contato com eles.

De repente, um ruído no ambiente a fez voltar a prestar atenção na pequena sala


onde estava. Só então percebeu que seus pés estavam secos, assim como a maior parte
de sua roupa.

Os homens, parados como se fossem estátuas, fitavam-na de modo


desconcertante.

Percebeu que a serviçal da pousada estava se aproximando, trazendo nas mãos um


dos pares de botas que faziam parte de sua bagagem.

Calçou-as com o auxílio de um dos oficiais e logo se colocou de pé.

— Milady, não creio que queira mesmo partir agora, não é? — falou a mulher,
fitando Sheena com ar de descrença — Aquele homem ainda está mal. Não seria bom que
ele viajasse naquele estado.

— Claro. Por favor, informe minha acompanhante a respeito do estado dele, que ela
providenciará um chá de raízes, que o colocará em plena forma. Diga a todos de minha
comitiva que estou ansiosa para partir. Gostaria de tê-los prontos o mais depressa
possível, pois pretendo seguir para Paris dentro de uma hora.

— Farei como ordenou Milady, mas não sei se poderão se aprontar tão depressa.

— Apenas transmita minha mensagem, e serei grata. Eles são escoceses. Sei que o
farão — Sheena se voltou para os homens que a ladeavam — Milordes, espero que me
conduzam o mais depressa possível nessa viagem. Estou ansiosa para ver sua Majestade,
a rainha Maria Stuart, e para assumir minhas novas incumbências.
— Mas que pressa — objetou o duque, até então em silêncio — Não seria mais
sábio pousar aqui mesmo esta noite? O local pode até ser simples, mas é seco, limpo e
quente.

— Na Escócia, Milorde — falou ela, lançando um olhar fulminante na direção dele —


cultivamos o hábito de colocar o dever em primeiro lugar e o conforto em uma escala muito
menos importante.

Ao ver o sorriso cínico que tomou forma naqueles lábios másculos e bem definidos,
teve certeza de que aquilo não o abalara.

— Admirável Milady. Realmente admirável. Todos na corte ficarão impressionados,


com sua perseverança e devoção ao trabalho.

O tom sarcástico que permeou o comentário, a fez perder o parco controle sobre
seu indomável temperamento escocês.

— Em minha opinião Milorde, ficarei melhor sem seus conselhos. Palavras advindas
de uma língua tão ferina são um perigo, para aqueles que têm um trabalho sério a fazer.

Sheena mal havia acabado de pronunciar tais palavras e já sentiu um arrepio


desagradável pelo corpo. Aqueles olhos carregados de cinismo não se desviaram dos
seus, e os dois se encararam por um longo tempo. Demorou até que o duque se
levantasse, curvando-se em uma mesura exagerada.

— Como quiser Milady. Estou a seu dispor. Garanto que nos encontraremos em
Paris.

Um silêncio fúnebre se instalou no ambiente, após a partida triunfal do duque.

Naquele momento, além do cansaço e da solidão que a invadiram, só havia uma


certeza na mente de Sheena, a de haver declarado guerra contra alguém muito perigoso,
mas de quem já estava sentindo falta.
CAPITULO II

Estavam se aproximando de Paris.

Sheena se inclinou para frente, alcançando a janela da carruagem para olhar as


casas majestosas que se enfileiravam à beira da estrada. A cada quilômetro rodado, sentia
uma certeza ainda maior de que era inadequada para a missão.

Aquela altura, já tinha certeza de que fora em vão que gastara tanto dinheiro na
confecção de roupas refinadas para aquela viagem.

Não imaginara que houvesse tamanha riqueza em qualquer lugar do mundo.

O cobertor de veludo, embainhado com uma pele macia, que colocaram sobre suas
pernas para aquecê-la durante a viagem, era de um tecido mais refinado e de acabamento
mais bem trabalhado do que o vestido que ela trajava naquele momento. E aquele era um
dos melhores que mandara fazer.

A carruagem, em si, já era um grande exagero. Não imaginara que o rei teria tanta
consideração pela nova governanta de Maria Stuart.

— Deveremos viajar bastante depressa — advertira um dos jovens oficiais, antes de


começarem o percurso.

E era mesmo verdade. Sheena estava impressionada, não apenas com a


velocidade, mas com o conforto no interior do veículo. Nem parecia estar se movendo,
exceto pela inclinação eventual dos aclives, declives e curvas do caminho. Parecia difícil
acreditar no engano que cometera, ao julgar que estava mais do que bem preparada para
o que iria encontrar.

Imaginara que iria causar boa impressão em toda a corte com os vestidos que
levara na bagagem. Pensara que estariam à altura do cargo de governanta da jovem
rainha da Escócia. Entretanto, estava se sentindo como uma serviçal comum.

Comparando seus trajes aos dos jovens e galantes oficiais que a escoltavam,
percebeu que até as selas de seus cavalos eram adornadas com delicadeza e esmero,
sendo a do comandante Gustave cravejada de pedras semipreciosas.

Naquele momento, sua única acompanhante era sua própria dama de companhia,
Maggie, que viajava com ela na carruagem. Os outros serviçais da comitiva haviam
seguido em um transporte mais lento, e quase não teriam contato com Sheena.

Estavam incumbidos de cobrir a mão de obra necessária para atender aos


caprichos de Maria Stuart.

De repente, como que em um estalo, tornou-se ciente de que era tão digna quanto
qualquer francês, e que muito sangue escocês fora derramado em nome de sua futura
tutelada. Não poderia deixar que um tolo complexo de inferioridade a desanimasse.
— Não se preocupe Milady — disse Maggie pressentindo a tensão que incomodava
sua jovem patroa — Eles não são melhores do que nós. Tudo o que esse povo tem é
dinheiro. Têm tantas riquezas que só lhes restaram corrupção e preguiça nas veias.

— Não diga isso — respondeu Sheena, rindo — Veja o conforto com que estamos
viajando. Não devemos julgá-los com antecedência, se nem mesmo os conheceremos. O
rei está sendo muito cortês, não acha? Estamos sendo tratadas como membros da família
real.

A mulher avantajada deu de ombros e fez uma careta de pouco caso.

— Grande coisa. Homens que se vestem como mulheres, que usam jóias e luvas
bordadas, não me parecem lá muito másculos. Prefiro nossos guerreiros que, embora
usem roupas simples, sabem manusear a espada. Gostaria de saber se esses efeminados
lutariam para salvar Vossa Majestade, a pequena rainha.

— Quieta Maggie. Fale baixo.

— Eles não ouviram nada. Além disso, não entendem o que falamos em nosso
idioma.

— Mesmo assim, não quero que diga essas coisas. Distraia-se. Veja só essas belas
casas pelo caminho.

As duas olharam pelas janelas da carruagem, admirando a paisagem.

Sheena se sentia como se estivesse em meio a um conto de fadas. Tudo era tão
colorido e bem cuidado que nem parecia real. Os jardins, floridos a despeito do clima, eram
o complemento perfeito para as construções refinadas e pintadas com esmero.

Era um grande contraste com o estado do castelo de sua própria família, que se
encontrava em péssimo estado. Embora fossem bem cuidados, todos aqueles anos de
guerra haviam minado os recursos necessários, para fazer as reformas mais simples.
Portas e paredes precisavam de pintura, as poucas escadas de madeira estavam se
desmantelando, e as de pedra precisavam de polimento.

Na França, ao contrário, tudo parecia recém-construído. Ouvira falar que Francisco


I, antecessor de Henrique II, cobrara impostos abusivos do povo para pagar os gastos da
guerra contra a Espanha, e depois estabelecera regras quanto à manutenção das cidades
do reino. Um preço alto a se pagar pela beleza.

Diante de todo daquele luxo, percebeu que seria difícil atender à missão de que fora
incumbida. Precisaria ter muito tato para levar a rainha a compreender, que os clãs da
Escócia, lhe permaneciam fiéis, e que todos estavam dispostos a dar a própria vida por
ela. Ao se aproximar de Paris, o medo de falhar começou a incomodá-la.

Como poderia impressionar Maria Stuart com as histórias de bravura de seus


súditos, apenas contando sobre batalhas e sangue derramado? Como qualquer jovem
adolescente, ela deveria estar mais interessada nas distrações oferecidas pela corte
francesa, cheia de atrativos e de beleza.
— Maggie eu estou um pouco assustada — confessou de maneira impulsiva,
olhando para o rosto firme de sua acompanhante de tantos anos.

— Mas que vergonha, menina. Isso não é um comportamento digno para alguém na
sua posição. Na verdade, não me lembro de tê-la visto com medo de algo. Não acabou de
me dizer que estamos sendo tratadas com consideração? Seremos conduzidas à presença
do rei da França em pessoa, e depois encontraremos nossa rainha. Isso é motivo para se
orgulhar, e não para temer.

— Sim, eu sei. Mas se estivéssemos em uma situação melhor, pelo menos


poderíamos providenciar roupas mais adequadas para este país.

— Ora, eles que nos respeitem como estamos! Muitos dos homens que estão
lutando por Vossa Majestade, fazem-no com os pés descalços e com as roupas rasgadas.
Caso a pequena rainha já esteja encantada por esse antro de corrupção, faça-a se lembrar
disso. Deixe claro que muitas crianças ficaram órfãs e que inúmeras esposas se tornaram
viúvas, para mantê-la a salvo das garras dos ingleses, assim como para defender-lhe o
reino.

— Prometo que tentarei Maggie. Prometo — murmurou Sheena.

Embora estivesse um pouco mais segura, suas mãos tremeram ao se apoiar no


braço do comandante Gustave, para descer da carruagem, antes de ser conduzida para
dentro do palácio.

Esperava algumas regalias, mas não a infinidade de servos, empregados e


cidadãos que se dispuseram a recebê-la. Contudo, não lhe deram tempo para que se
trocasse e a conduziram direto à presença do rei.

Estava pronta para odiá-lo e espezinhá-lo, antes mesmo de conhecê-lo. Ouvira falar
da falta de pudor daquele homem, que chegara a mudar os monogramas de todos os
castelos para "D" e "H", homenageando sua união com a amante, Diane de Poitiers, em
total negligência à verdadeira rainha da França, sua esposa, Catarina de Medici.

Mas não esperava ver o rosto triste do homem de cabelos negros, que a fitava com
ar melancólico.

— Majestade, esta é lady Sheena McCraggan — anunciou uma voz, logo à porta,
ao mesmo tempo em que ela se ajoelhava em uma mesura de grande respeito.

— Lady McCraggan estávamos ansiosos por sua chegada — falou o rei.

— Muito obrigada Majestade — disse Sheena, surpreendendo-se com o tom seguro


de sua própria voz.

Erguendo a cabeça, encarou-o com firmeza e se posicionou de forma que a luz do


sol, que atravessava um vitral localizado atrás e acima do trono real, iluminasse seus
cabelos cacheados, realçando o brilho avermelhado. Tentou assim ocultar a simplicidade
de seus trajes.

— Fez uma boa viagem, Milady?


— O mar esteve bastante bravio, Majestade.

— Sim, imaginei que estaria. Uma pena — disse o rei, pausando para se ajeitar no
assento — Reparei que seu francês é excelente.

— Minha avó era francesa, Milorde.

— Sim, sim, não me esqueci desse detalhe. Jeanne de Bourget. Trata-se da


linhagem de uma das famílias mais tradicionais da França. O sangue que corre em suas
veias é muito nobre, Milady.

— Minha herança escocesa também me traz orgulho, Majestade.

— Sim, claro. Naturalmente.

Henrique II parecia entediado com aquela conversa. Olhou ao redor como se


buscasse a ajuda de seus cortesãos. Não houve tempo de alguém lhe oferecer apoio, pois
a porta do saguão se abriu e a expressão no rosto dele se transformou de repente. O ar
melancólico desapareceu, e sua feição pareceu se tornar mais viva.

Ao vê-lo se adiantar depressa, Sheena se virou para trás. A mulher mais bela que
ela já vira até então, estava entrando no aposento. Não era jovem, mas havia uma
vitalidade jovial em sua compleição e em seus movimentos, que parecia advir de alguma
fonte mágica. O vestido branco, com detalhes em preto, realçava a pele perfeita e alva. A
mulher se ajoelhou diante do rei.

— Perdoe-me por estar atrasada, Majestade.

Ele se curvou e levou a mão dela aos lábios.

— Sabe que cada momento que passo em sua ausência é como uma eternidade de
solidão para mim.

O murmúrio do soberano francês fora feito apenas aos ouvidos dela, mas quem
estava próximo também escutou.

Henrique II se voltou na direção de Sheena, levando a recém-chegada consigo.


Sem hesitar, continuou falando.

— Esta é Lady McCraggan, que acabou de chegar. Infelizmente, fez uma viagem
difícil.

A mulher sorriu para Sheena com tamanha ternura, que boa parte da tensão e do
cansaço da viagem pareceram se esvair de seu corpo.

— Estamos muito contentes que esteja aqui, Milady — disse a deslumbrante dama
— A jovem rainha estava ansiosa para conhecê-la. Tenho certeza de que o que Maria
Stuart mais deseja no momento são notícias da Escócia e de seu povo.

Nenhuma outra frase a teria tocado de maneira tão profunda.


— Também estou ansiosa, senhora. Em meu país, só o que ocupa nossos corações
é a esperança da breve chegada do dia em que nossa amada rainha retornará para nós.

— E assim que deve ser — concordou o rei, em tom de ponderação — No


momento, a duquesa de Valentinois a levará à presença de sua soberana.

Sheena sentiu a tensão dominar seu corpo no mesmo instante. Aquela era Diane de
Poitiers, a tão difamada mulher que seduzira Henrique II! Era quem o levara a esquecer a
própria honra e relegar ao esquecimento sua esposa, a rainha da França.

Deveria ter se dado conta disso desde o princípio. Mas sua mente parecia
tendenciosa, querendo acreditar que aquela pessoa de aparência amável e de charme e
beleza encantadora, não era a protagonista daquela história escandalosa e cheia de
revezes.

No íntimo, pensara que os boatos eram exagerados, e que a amante do rei não
tinha livre trânsito pelo palácio. Imaginara-a isolada da corte, em algum lugar inacessível.

Quando se deu conta, já havia reverenciado o rei e estava seguindo aquela mulher
controversa pelos corredores do suntuoso palácio.

— A pequena rainha esteve sob minha guarda ao longo de um bom tempo — disse
a amásia real — Supervisionei toda sua educação. Vossa Majestade é uma aluna
promissora. Ficará surpresa ao descobrir quanto ela é talentosa, e ao ver o progresso que
atingiu nos últimos anos, em termos de educação e de refinamento.

Sheena ficou tão escandalizada com aquela revelação, que nada pôde responder.
Até que ponto a jovem soberana teria sido contaminada pela educação deturpada que uma
pessoa sem escrúpulos poderia oferecer? Haveria muito a ser reparado? Em que tipo de
bruxarias aquela mulher a haveria iniciado? Estaria ela preparando Maria Stuart para a arte
de seduzir e de subjugar um homem?

— Creio que deva estar cansada, por causa da viajem — sugeriu Diane, em tom
simpático, ao ver o silêncio da recém chegada — Preparei um quarto ao lado do da rainha.
Terão muito que conversar nos próximos dias. Depois de se conhecerem, recolha-se a seu
aposento e durma um pouco. Isso lhe fará bem. Se estiver disposta a nos acompanhar,
nós a aguardaremos para o jantar de hoje à noite. Teremos um baile em seguida. Se
preferir dormir até o raiar da próxima manhã, sinta-se à vontade.

— Não preciso de descanso — falou Sheena, com um leve tom de preocupação.

Só então percebeu a magnitude da tarefa que lhe caberia. Deveria reverter um


processo de educação impingido ao longo de anos por aquele demônio em forma de
mulher. Talvez a duquesa houvesse isolado a garota de todo contato social, apenas para
poder educá-la sob seus moldes, corrompendo-lhe o modo de pensar e de agir,
distorcendo todos os valores básicos da sociedade de acordo com sua mente doentia.

— Sua rainha anda bastante atarefada nos últimos tempos — falou Diane — Tem
passado muito tempo ensaiando seu papel na peça que encenará diante do rei na próxima
semana, junto às outras crianças reais. Será um evento muito alegre. Talvez você possa
ajudá-la com os detalhes finais.
Para Sheena, aquelas palavras soaram como um duro golpe. Não conseguia
imaginar a rainha da Escócia, interpretando uma peça de teatro, como uma mera atriz,
diante de outras pessoas. Mesmo que a platéia fosse a nata da corte real, incluindo o
próprio rei da França, aquilo continuava soando como algo muito errado.

Haviam alcançado uma passagem larga e ornamentada, que levava a outro


corredor suntuoso.

— Esta ala do palácio é destinada às crianças reais. Alguns são muito jovens, mas
como já deve saber nosso príncipe herdeiro e a sua rainha são quase da mesma idade e
têm muitos interesses em comum. Mas há muitas outras pessoas fazendo companhia a
Maria Stuart. Na verdade, trinta e sete crianças de sangue nobre, participam de suas
atividades estudantis e desportivas.

— Trinta e sete? — indagou Sheena surpresa.

A duquesa sorriu com tranqüilidade.

— Sim, isso mesmo. Espero que não tenha pensado que deixaríamos nossa
hóspede escocesa, sem ter com quem se divertir e passar o tempo.

— Não, claro que não — gaguejou ela, ainda chocada.

— A princípio, as quatro amiguinhas que a acompanharam desde a Escócia, as


quatro Marias tiveram de ser afastadas dela. Era a única maneira de poder ensinar francês
para sua rainha. Não poderíamos fazê-lo na presença de pessoas, que a atendessem em
seu idioma nativo. Mas agora as cinco estão sempre juntas. Inclusive, acabaram de viajar
por um roteiro turístico que desejavam conhecer. Apenas Maria Stuart voltou a Paris. E o
fez especialmente para recebê-la, Milady.

— Foi muita consideração por parte de Vossa Majestade — falou Sheena, mais do
que depressa.

— Bem, é aqui que deveremos encontrá-la — disse a mulher, abrindo uma grande
porta, bem no meio do corredor.

O ambiente decorado com riqueza e requinte a deixou desconcertada levando a


hesitar, antes de seguir a sua anfitriã para dentro do aposento. Somente a ansiedade de
conhecer sua soberana a moveu adiante.

Foi então que a viu. Esperara encontrar uma criança, mas a moça diante de seus
olhos era mais alta do que ela própria. Embora fossem da mesma nacionalidade, a única
semelhança entre elas era a cor dos cabelos, de um tom avermelhado.

O rosto da jovem rainha era mais oval e sua pele mais alva, quase translúcida. Seus
traços pareciam tão proporcionais que não transmitiam expressão alguma.

Maria Stuart ostentava uma beleza admirável, mas mesmo assim surgiu uma
espécie de decepção na mente de Sheena, como se o que estava vendo não
correspondesse ao que esperara a princípio.
Sem perceber, caminhou até se prostrar em reverência diante da rainha, que disse
apenas.

— Então você é lady McCraggan. Pensei que me lembraria de seu rosto, mas não
me lembro.

Ao ouvir o tom desapontado da garota, ela respondeu.

— Já se passaram muitos anos desde que partiu Majestade. Quando nos


encontramos, eu mesma ainda era uma criança bem pequena.

— Pensei que seus cabelos fossem castanhos — falou Maria Stuart, com ar
petulante — Creio que estava pensando em outra pessoa. Não imagino quem poderia ser.

Naquele instante, uma pessoa que estava em outro canto do aposento se fez notar,
aproximando-se e capturando a atenção de todos.

Ao ver quem era Sheena sentiu-se tomada por um arrepio de temor. Era o mesmo
homem que a confrontara na pousada! Estava arrependida por não haver perguntado nada
a respeito dele depois de vê-lo partir.

Pensara então que seria melhor esquecê-lo, mas se enganara. Parecia tratar-se de
um inimigo perigoso, e ela não sabia nada a respeito dele.

— Ainda não deu as boas-vindas à lady McCraggan — salientou a duquesa,


dirigindo-se à rainha.

— Oh — murmurou Maria Stuart, enrubescendo ao encarar Diane — Desculpe-me,


Milady — Virou-se então para Sheena — Seja bem vinda. Estou feliz com sua chegada.
Deve ter feito uma jornada longa e cansativa. Achei admirável que tenha viajado tanto por
minha causa.

Ao sentir as mãos da rainha sobre as suas, e ver aqueles olhos ganharem uma
expressão charmosa, compreendeu a fama do carisma dos Stuart, que eram capazes de
levar as pessoas a servi-los, oferecendo um mero sorriso.

— Majestade — murmurou então, gaguejando, sem conseguir dizer as palavras que


tanto ensaiara — venho em nome de todos os seus súditos, trazendo uma mensagem de
carinho, amor e devoção. Os líderes dos clãs estão defendendo a Escócia a todo custo,
resguardando o trono que é seu por direito. Cada cidadão que encontrei antes de partir,
me pediu para dizer que estaria disposto a dar a própria vida pelo seu retorno.

A declaração emocionada de Sheena pareceu tocar o coração da jovem soberana


escocesa, pois seus olhos ficaram marejados de lágrimas.

— Oh, obrigada! Gostaria de poder dizer a eles que meu coração e minha alma
estão lá, com cada um deles -— disse Maria Stuart, de maneira envolvente.

Mas o belo momento foi interrompido pelo homem que Sheena conhecera na
pousada.

— Ora, muito bem. Mas que cena maravilhosa.


— Ainda não os apresentei, não é? — indagou a duquesa — Lady McCraggan, este
é o duque de Salvoire. Sua rainha dirá que não há, em toda a França, alguém mais
especializado no que diz respeito a cavalos. Desde a escolha da linhagem, até o método
de trato, ele é o mestre. Na verdade, todos na corte o procuram antes de comprar qualquer
montaria, não é verdade, Jarnac?

O duque se curvou ao mesmo tempo em que Sheena fez uma mesura.

— Sinto-me lisonjeado com seus elogios, Milady. Mas acho que nossa visitante não
está interessada em cavalos. Com certeza, na Escócia eles devem possuir águias para
levá-los de um lugar para outro.

Ao ser satirizada Sheena tentou fuzilá-lo com um olhar de censura, mas falhou por
completo.

Entretanto, Maria Stuart soltou um riso bem humorado, dizendo.

— Mas que comentário ridículo, Milorde. Como sempre, fazendo piada de tudo.
Porém, sua idéia é gloriosa. Se pudéssemos ser carregados por águias, teríamos o meio
de transporte mais confortável e rápido do mundo.

— Quanta imaginação — brincou Diane, dirigindo-se à jovem rainha. — Agora, por


que não mostra os aposentos de lady McCraggan, querida? — Voltou-se para Sheena —
Aliás, importa-se se eu a chamar pelo primeiro nome? Oh, ótimo — disse quando Sheena
assentiu — Ficarão hospedadas no mesmo corredor, e estou certa de que ainda têm muito
que conversar.

— Venha comigo — disse a jovem soberana, tomando a mão de Sheena — Vou


levá-la até lá.

— Sim — murmurou ela, sem conseguir se sentir feliz como deveria estar.

Estava na França, de mãos dadas com a própria rainha, e não conseguia ficar
alegre. Não poderia. Como seria possível fazê-lo, sabendo que a futura governante de seu
povo, vinha sendo educada por uma mulher sem o menor escrúpulo ou moral?

— Seus aposentos são maravilhosos. A duquesa de Valentinois me deixou escolher


a mobília e a decoração. Já vou lhe mostrar.

Antes que entrasse no outro cômodo, Sheena ouviu o duque dizer a Diane algo em
um tom baixo e abafado. Mesmo assim, conseguiu entender a frase.

— Milady eu acho aconselhável comprar roupas melhores para essa moça. Lady
McCraggan parece estar precisando!
CAPÍTULO III

O duque de Salvoire subiu a escada espiral que levava de uma ala à outra do
palácio. A iluminação havia sido quase toda apagada, e em uma área onde não havia
chama no candelabro, ele bateu o joelho em um canto.

Murmurando um gemido, lamentou-se.

— Estou com apenas vinte e seis anos e já me sinto cansado de fazer essas
travessias noturnas.

O sorriso irônico que se formou em seus lábios denotava que, depois da


contundente pancada na rótula, não estava com o humor em bom estado. Por fim,
alcançou o acesso aos aposentos da rainha da França. Hesitou um minuto, pensando se
deveria ou não prosseguir, mas continuou, conforme planejara. René estava à sua espera
e seria uma grande desfeita não comparecer ao encontro. Havia três semanas que não se
viam, devido à sua estada em Anet.

Ao chegar à porta do aposento, deu duas batidas rápidas e uma demorada, como
sempre fazia. Uma serviçal abriu a porta e fez uma mesura, sem fitar-lhe o rosto. Após
deixá-lo entrar, desapareceu por outra passagem lateral.

O perfume que dominava o local era doce e agradável. Parecia capaz de levar um
homem a ficar alucinado, de tão provocante. As luzes estavam quase todas apagadas, e a
penumbra imperava no ambiente.

Os olhos da condessa brilhavam como jóias, em um convite silencioso. Os cabelos


negros eram longos e ondulados, realçando os lábios carnudos entreabertos e sequiosos.
Estava claro que se tratava de uma mulher apaixonada.

— Jarnac! — exclamou ela — Esperei tanto por você. Pensei que houvesse me
esquecido.

— Como eu poderia? — indagou o duque, beijando a mão macia que fora oferecida.

Conforme René se movia, o robe de cetim deslizava sobre seu corpo voluptuoso,
revelando que não havia nada além daquele fino tecido sobre sua pele. Deixava
transparecer o claro vulto dos seios firmes e volumosos, assim como o contorno dos
quadris arredondados e das pernas bem torneadas.

— Sentiu minha falta?

A pergunta, que poderia parecer casual, foi feita com tanta sensualidade que o
levou ao máximo estado de alerta.

— Estava prestes a fazer a mesma pergunta — disse ele.


— Oh, sim? Nesse caso, por que passou tanto tempo com a duquesa de Valentinois
essa tarde?

Jarnac endireitou os ombros e a encarou com ar surpreso.

— Mas que coisa, René! Há algo que aconteça na corte e que não chegue a seus
ouvidos? Como consegue ter um espião em cada cômodo do palácio?

A condessa soltou um riso de satisfação.

— Esse é meu segredo, mon bravel Sabe bem que essa é a razão de eu ser tão útil
e indispensável à rainha. Não fosse por isso, meu destino seria acompanhar meu marido
até a fazenda, onde o passatempo é observar a plantação de milho crescer. O único
passeio das mulheres é ir à missa aos domingos, acompanhada de uma ninhada de filhos.
Este é um belo quadro para se admirar, mas não faz meu gênero.

O duque sabia que aquilo era bem verdade. O conde de Pouget se afastara da corte
havia um ano, cansado de tentar acobertar as estripulias da esposa. Partira para
administrar sua propriedade em Chambord, onde não mais precisaria fazer vistas grossas
às infidelidades de sua esposa.

A condessa tivera inúmeros protetores depois da partida do marido, mas nenhum


tão belo, rico e charmoso quanto o duque de Salvoire. Para desespero dela própria,
apaixonara-se por ele. Era a primeira vez que se sentia atraída daquela maneira por um
homem, a ponto de deixar seu coração sobrepujar sua mente.

Embora sempre houvesse sido volúvel, fora uma mulher inteligente o bastante para
se tornar uma das damas de companhia de Catarina, a rainha da França, tornando sua
informante oficial.

— Ainda não respondeu à minha pergunta — insistiu ela — Por que passou tanto
tempo com a "divina Diane"? Por acaso isso significa que, como nosso soberano, você
também a acha divina?

— Creio que já tivemos essa discussão antes — disse ele, com uma boa dose de
bom humor — Admiro muito a duquesa, como já disse, mas não sou adepto do suicídio.
Tentar roubar a atenção dela, sob os olhos do rei, seria assinar minha sentença de morte.

René voltou a rir.

— Sim, sei que estou sendo tola, mas estou com ciúme dela. Culpo-a por todo o
tempo que ficamos separados. Tenho bons motivos para me ressentir, não tenho? Qual o
problema de ficarmos juntos em sua propriedade, no campo? Se fôssemos separadamente
para lá, ninguém desconfiaria.

Enquanto era abraçado, o duque mal prestou atenção nela. Seu olhar parecia
distante e impessoal, mesmo tento uma mulher tão desejável a envolvê-lo entre os braços
carinhosos.

— Não precisa ficar magoada. A duquesa pediu que eu estivesse presente, quando
da chegada da nova governanta de Maria Stuart, enviada da Escócia.
A condessa se afastou dos braços dele.

— É mesmo, a substituta chegou. Como pensei que isso só ocorreria amanhã, até
me esqueci do que meus informantes disseram. Como é a tal garota? Em sua opinião é
mesmo bela como todos comentaram?

— Delicada atraente... Sim, ela é muito bonita — confirmou Jarnac.

— Nossa rainha ficará muito satisfeita — murmurou ela.

— A rainha? Por que Catarina estaria interessada?

— Ora, esqueceu-se de lady Fleming?

— Quem? Oh, sim. A primeira governanta, aquela que antecedeu madame de


Paroy, e que foi afastada, depois de se deixar seduzir pelo rei durante a ausência da
duquesa.

— Isso mesmo.

— Aquele escândalo não poderia ter ocorrido. Principalmente por se tratar de


alguém ligado a Maria Stuart — lamentou o duque — Mas o que levaria a rainha a gostar
do fato de a garota ser atraente?

— Por que mais, exceto para ver a atenção do rei desviada da odiada Diane? Nem
mesmo a bruxaria dela funcionou diante dos encantos da bela governanta anterior.

— Pelo amor de Deus! — indignou-se ele — Mas que idéia monstruosa. A rainha
ficaria satisfeita do rei ter um caso, apenas para que ele fosse infiel à mulher a quem ama
desde a adolescência?

— E que é dezoito anos mais velha que ele! — protestou René — Se isso não é um
tipo de bruxaria, eu mesma gostaria de conhecer a fórmula.

— Não discutirei isso com você. Foi a duquesa quem ensinou o rei a governar. Não
fosse por ela, a França estaria em maus lençóis hoje em dia.

— Mas que bravo defensor Diane conseguiu. Sorte dela.

— O que acaba de sugerir é ofensivo e indecente — falou Jarnac, afastando-se dela


e então se virando para encará-la.

A condessa se moveu de maneira sensual, e uma lateral do robe deslizou por sobre
seu ombro, revelando uma parte daquele corpo por tantos desejado. O gesto era um
convite à sedução, e ambos estavam cientes disso.

Mas, na mente do duque, uma imagem se interpôs entre eles. A silhueta delicada e
esguia de Sheena veio à mente. Ao se lembrar da pele alva e do olhar sincero e inocente
da jovem dama, foi impossível deixar de compará-la a René. Sua amante não transmitia a
menor pureza. Por um momento, chegou a sentir repulsa pela lembrança de havê-la
beijado.
Aceitara se aproximar dela como uma mera condição imposta por seus amigos,
durante um desafio, e depois não conseguira mais se desvencilhar. Todos os homens da
corte a desejavam, e a posição de tê-la sob seu controle era muito cômoda.

Sabendo que já estavam envolvidos demais, tinha noção de que seria desastroso
partir sem satisfazê-la. Deixou-a se aproximar e abraçá-lo outra vez. Antes que seus lábios
se encontrassem, ouviu-a sussurrar.

— Oh, Jarnac... Por que estamos perdendo tempo conversando? Senti tanto sua
falta...

Em outra parte do palácio, Sheena estava recolhida em seu quarto, exausta,


conversando com Maggie. Contava à sua acompanhante que, enquanto estivera com
Maria Stuart, encontrara algo muito diferente do que esperava. Em lugar de uma criança
assustada e insegura, teria de lidar com uma moça madura e culta.

Ficara sabendo que a jovem rainha já era fluente em latim, grego, espanhol e
italiano, além de falar inglês e francês com perfeição. A própria rainha achava que já havia
passado o tempo de parar de receber instrução.

Ao falar que não fora enviada como professora, mas sim para ser uma espécie de
acompanhante, recebera dela uma resposta sincera.

— Já tenho muita companhia, minha cara. Mas não me entenda mal. E bom que
esteja aqui também. Um novo rosto é sempre uma diversão a mais.

Contudo, quando Sheena tentara falar sobre a Escócia, a rainha dissera que não
estava interessada em saber a respeito de crises sobre as quais não entendia nada. Aquilo
fora avassalador.

Como poderia orientar uma pessoa com mais cultura do que ela própria e com
tamanha convicção em fazer apenas o que queria? Pior ainda, já estava ciente da
infiltração dos hábitos franceses no modo de pensar da soberana. Para sua surpresa,
Maria Stuart caçoava da rainha, chamando-a de ciumenta.

Pior ainda foi saber que a duquesa de Valentinois era a única pessoa a censurar a
garota com relação a tal postura. Sheena se viu obrigada a dizer que Diane estava certa.
Como poderia, mais adiante, alegar que aquela mulher era um modelo de falta de caráter,
se era obrigada a concordar com suas opiniões?

Estava tudo errado!

A primeira coisa que Maggie perguntou, assim que voltou a ver a patroa, foi a
respeito do encontro com a amada rainha da Escócia.

— Então, querida, como foi que aconteceu? Como está a menina?

— Bem — respondeu Sheena. — Sua alteza é adorável, mas não se trata mais de
uma criança. Não somos mais necessárias aqui.
— O que é isso? Está pensando em desistir antes mesmo de tentar? Acha que a
rainha, depois de tantos anos no exílio, iria se mostrar fraca e carente, sem saber se está
lidando com uma inimiga da família real? Como ela poderia diferenciá-la de uma rebelde
reformista, como aqueles que participaram do complô contra a mãe dela?

— Já disse a Maria Stuart que vim como amiga.

— Ora, mas há amigos e amigos, não é? Não se esqueça do que pode estar se
passando pela mente dela. Como ela poderia ter certeza de não estar diante de uma
potencial traidora?

— Sim, isso faz sentido. Quem sabe, com o tempo, tudo não fique mais simples. No
momento, não sei bem o que pensar.

— Claro querida. Dê tempo ao tempo.

Sem nenhum aviso, lágrimas começaram a escorrer pelo rosto delicado e adorável
de Sheena. A tensão de tudo o que passara naquela difícil viagem, o confronto com o
duque, a decepção com a rainha e o desânimo que sentia, estavam cobrando seu preço.

Aceitando o chá que Maggie ofereceu, recolheu-se para dormir. Em poucos


minutos, sua consciência se esvaiu.

Quando despertou, havia uma luz tênue por trás das cortinas. Parecia o sol da
aurora. Sabendo que não conseguiria voltar a dormir, levantou-se, fez sua toalete e se
armou. Como era muito cedo para sair, foi até a janela e ficou observando o jardim.

A bela alvorada trouxe algumas revelações. Logo abaixo de sua sacada, observou
um lindo cavalo branco sendo preparado para montaria, levando-a a cogitar sobre quem
poderia estar saindo àquela hora. Para sua surpresa, era Diane de Poitiers.

Aquilo a surpreendeu. Imaginara que, naquele país indisciplinado, todos dormissem


até a hora do almoço. Ainda mais sabendo que houvera um baile após o jantar, na noite
anterior.

Pouco depois uma voz grave se fez ouvir logo abaixo. O rei, em pessoa, montado
em seu cavalo negro, perguntou a um dos pajens qual a direção seguida pela duquesa,
seguindo então pela trilha indicada.

Pelo que viu, havia muito que aprender a respeito da França e daquela corte
desconhecida. Pôs-se a pensar no problema mais imediato que se apresentava. sendo
uma recém-chegada, quem poderia lhe falar de maneira aberta e confiável, esclarecendo
sobre o que ocorria naquele reino?

Houve então um ruído no corredor, sucedido por um leve bater à porta.

Ao atender, um serviçal entregou um bilhete, trazido sobre uma bandeja de prata.


Assim que o abriu, a primeira coisa que fez foi olhar a assinatura. Era do comandante
Gustave de Cloude, um dos jovens oficiais que a escoltaram desde Brest até Paris.
"Acabei de vê-la à janela, por isso sei que está acordada. Aceita me encontrar agora
mesmo no jardim? Há algo que gostaria de dizer, enquanto o restante da corte ainda está
a dormir."

Sheena hesitou ao acabar de ler. Aquela era uma situação que não lhe parecia
muito correta, pois não era certo ficar sozinha no jardim com um homem que mal conhecia.
Mas estava curiosa. Queria também fazer algumas perguntas, e ainda não sabia em quem
confiar.

Fitou então o rosto do garoto, que a olhava com ar solene.

— Está esperando para levar uma resposta até ele?

— Na verdade, Milady estou aguardando para escoltá-la até o jardim — disse o


pequeno pajem, curvando-se com reverência.

De repente, uma sensação agradável levou-a a sentir-se rejuvenescida e a encarar


aquilo como uma brincadeira. Sentindo-se alegre, pediu que o garoto aguardasse um
instante. Pegou seu chapéu, ajeitou-o sobre os cabelos e seguiu o menino até o local do
encontro.

O emaranhado de passagens a confundiu bastante. Nunca imaginara um local tão


cheio de portas e escadas. Se precisasse voltar sozinha, jamais o faria.

Ao atravessar parte do jardim externo, o pequeno serviçal indicou uma direção e se


afastou. O comandante a aguardava atrás de um grupo de árvores, sentado em um banco
de mármore.

Ao vê-la se aproximar, ele se levantou com um sorriso e caminhou em sua direção.

— Pensei que não fosse aceitar meu convite — disse Gustave, beijando a mão que
lhe foi oferecida.

— Foi muita gentileza sua me convidar — disse Sheena, sorrindo — Estava me


sentindo um pouco solitária e com saudades de casa. Queria mesmo conversar com
alguém.

— E eu queria falar com você. Ontem foi impossível, pois estava na companhia de
meus três companheiros e de sua pajem. Mas agora é diferente, pois poderei dizer tudo o
que quero. Acho-a adorável! Não consegui pensar em mais nada além de sua beleza,
desde que a conheci.

— Oh... — murmurou ela, embaraçada pelo tom exagerado do cavalheiro.

— Você é linda e encantadora. Venha e sente-se comigo, para que eu possa


admirá-la.

— Por favor, não me elogie assim.

— Por que não? — ele indagou, com genuína indignação.


— Não estou acostumada a isso. Na Escócia, nenhum cavalheiro diz algo desse
gênero a uma dama que mal conheça. Além disso, vim encontrá-lo porque desejo
conversar sobre assuntos mais sérios.

— Como podemos ser sérios? — questionou o rapaz, soltando o riso — E por que
deveríamos? Somos jovens, solitários, e eu estou mais do que apaixonado!

— Por favor... — murmurou Sheena, arrependida por haver aceitado o convite.

Ao tentar se afastar notou que o comandante estava segurando suas duas mãos,
cobrindo-as de beijos.

— Minha cara, você é tão linda. E... é adorável! Como podemos conversar, quando
tudo o que tenho em mente é o desejo de lhe confessar quanto sua presença me afeta?
Tudo o que consigo pensar é em seus olhos, suas mãos, seus lábios...

Ao vê-lo se curvar na direção de seu rosto, ela percebeu ainda mais a tolice que
cometera ao aceitar o convite. Com um gesto resoluto, soltou-se dele e agarrou a parte
dianteira de suas saias, começando a correr em direção à porta por aonde chegara até ali.

Após atravessar o jardim, ouvindo seu nome ser chamado em tom de súplica, atrás
de si, achou a passagem para 'dentro do palácio. Ao atravessá-la, sentiu-se desorientada.
Havia tantas portas e escadas ao longo do corredor intermediário que parecia impossível
saber por aonde viera.

Temendo estar sendo seguida, tomou um dos acessos e subiu uma escada. Não
demorou em notar que estava no lugar errado, pois chegara a uma sala diferente da que
esperava.

Notou então um vulto se aproximar pelo lado oposto, e deduziu que estava
invadindo alguma ala real. Tentou sair dali antes de ser abordada, sem nem mesmo
encarar quem quer que fosse que ali estivesse, mas não conseguiu.

Ao se virar para ver quem a segurara pelo braço, reconheceu de imediato o duque
de Salvoire. A expressão dele parecia desanimada.

— Lady McCraggan! O que está fazendo aqui? O que aconteceu?

Diante da pergunta, Sheena percebeu que estava enrubescida pela corrida. Tinha
os cabelos desalinhados, e seu chapéu havia caído em algum ponto do percurso da fuga.
Para completar, estava com as mãos trêmulas, e seria impossível esconder isso dele, já
que estavam em contato.

— Foi apenas... Um engano. Deixe-me ir. Não pretendia vir por aqui — balbuciou
ela, tentando se desvencilhar com delicadeza.

— Deixe-me mostrar a escadaria correta — Jarnac murmurou gentilmente,


conduzindo-a devagar, escada abaixo. — O que a assustou?

— Nada, Milorde. Apenas me perdi.


— E comum isso acontecer por aqui. Por essa razão é muito mais sábio que, até
que se acostume com este lugar, ande sempre acompanhada de alguém que conheça as
entradas e saídas desse labirinto gigante. Peça a uma das damas de companhia de Maria
Stuart para andar a seu lado por alguns dias. Deverá conhecê-las hoje, e acredito que fará
amizade com as crianças em pouco tempo.

— Acho isso pouco provável — respondeu Sheena, surpreendendo até a si mesma


por dizer de maneira tão espontânea aquilo que pensava.

O tom dela foi de profunda lamentação, o que a fez se arrepender de imediato.

O duque parou de caminhar e se voltou para encará-la, dizendo.

— Pensei que os escoceses não tivessem medo de nada, e que, acima de tudo,
fossem mais corajosos do que qualquer outro povo da Europa.

Aquelas palavras a fizeram estremecer. Contudo, aquele jargão orgulhoso,


proclamado por todos os clãs da Escócia, era não apenas um fardo, mas uma meta de
vida. Prosseguindo com sua atitude sincera, dirigiu-se a ele de maneira direta, já que não
restara outra pessoa a quem recorrer.

— Não acha que seria melhor que eu voltasse para meu país agora mesmo?

— De modo algum! — respondeu Jarnac, de imediato, surpreendendo-a — Levante


o rosto e encare sua tarefa. Faça exatamente o que veio fazer, e não se deixe abalar.

— Obrigada — respondeu Sheena, pondo a cabeça ereta e endireitando os ombros


de forma quase instintiva — Acho que precisava ouvir isso. Tentarei não me deixar abater
por meus medos.

— Não há o que temer aqui. Com o tempo, descobrirá que todos os medos vêm de
dentro de nós mesmos, e não de fora.

Ao notar o olhar curioso de Sheena, o duque se voltou para o caminho e continuou


a conduzi-la. Aquela expressão indiferente que ele assumiu, deixava claro que havia se
arrependido por dar conselhos que não haviam sido pedidos.

Quando chegaram à escada que levava à ala das crianças reais, ela agradeceu e
fez uma mesura para se despedir. Antes que Jarnac pudesse retribuir, o comandante
Gustave surgiu no extremo do corredor, carregando o chapéu que combinava com o
vestido dela.

O brilho nos olhos do duque, assim como sua expressão curiosa, deixaram óbvio
que a reconstituição da embaraçosa situação já ocorrera em sua mente. Diante de tal
vergonha, Sheena saiu em disparada, subindo sozinha o último lance de escada e se
trancando em seu quarto.
CAPÍTULO IV
Deus, o que o duque deve estar pensando de mim? — murmurou Sheena,
exprimindo em palavras a pergunta que tanto atormentava sua mente.

Desde que saíra correndo pela escada indicada por ele, sentia-se desorientada.
Não entendeu o olhar que recebeu de Jarnac. Seria apenas jocosa censura ou havia
mesmo decepção na expressão dele?

De qualquer maneira, seria impossível prever o comportamento do comandante


Gustave. Jamais imaginara que, na França, fosse comum se falar de amor em plena
manhã. Sempre acreditara que tal assunto devesse ser tratado apenas sob o luar, em
locais românticos e privativos.

Iria o duque entender que se tratara de uma atitude inocente, ou a julgaria vulgar e
leviana? De repente, ao perceber o que se passava por sua própria cabeça, repreendeu-se
por estar preocupada com a opinião dele. Mas, como o clima entre eles era bélico, não
pretendia lhe fornecer munição.

Então, mais uma vez, a grandiosidade da tarefa que tinha diante de si a fez
estremecer. Com sua educação escocesa, como poderia lidar com as intrigas daquela
corte corrupta? Como reverteria a influência daquelas pessoas sobre Maria Stuart?

Naquele momento, Maggie bateu à porta e entrou no quarto, repreendendo-a pelo


repentino e inadvertido desaparecimento. Ao ser avisada de que a rainha havia procurado
por ela, sentiu-se culpada por não estar à disposição logo na primeira oportunidade em
que fora solicitada.

— Diga depressa, mulher! O que nossa soberana queria comigo?

— Pelo que o pajem disse você deveria acompanhá-la até o lugar onde o rei irá
participar de um jogo chamado tênis, ao qual ambas precisariam assistir.

— Oh, espero que não seja tarde. Preciso me apressar

— Sheena começou a dizer, interrompendo-se ao olhar para o embrulho que


Maggie estava desfazendo. — O que é isso?

A dama de companhia estendeu um lindo vestido de cetim branco sobre a cama,


adornado com jóias azuis e pequenas pérolas. Outros detalhes em renda e veludo davam
ao traje um aspecto magnífico. A saia rodada e volumosa parecia tão perfeita que dava a
impressão de que nem mesmo era real. Demorou um pouco para que conseguisse
recobrar o fôlego e prestasse atenção ao que estava sendo dito por Maggie.

— Um presente.

— E mesmo? Pois não vou aceitar. Devolva-o.

A frase que ouvira o duque dizer a Diane de Poitiers, na tarde anterior, ainda ecoava
na mente. De imediato, sentiu o rosto enrubescer. Como aquelas pessoas se atreviam a
ser tão preconceituosas?
— Como assim, "devolver"? Por quê?

— Porque estou dizendo para que o faça. Vou vestir minhas próprias roupas. O que
é bom para a Escócia tem de ser mais do que suficiente para a França!

— Mas, lady McCraggan, isso é loucura! Embora seus trajes sejam o que de melhor
pudemos providenciar, em meio à guerra que nosso país está envolvido, eles nem se
comparam ao requinte extravagante desta corte.

— Mesmo assim, será isso o que vestirei. Devolva o vestido à duquesa, e diga que
não aceito presentes de desconhecidos.

— A duquesa de Valentinois? — indagou Maggie, confusa.

— Não foi ela quem enviou o vestido.

Após hesitar e fitar sua dama de companhia com ar in crédulo, Sheena perguntou.

— Então, quem foi?

— A própria rainha Catarina de Medici! E com a promessa de que outros lhe serão
dados. A soberana quer vê-la, assim que possível, nos aposentos dela.

— A rainha da França! — exclamou ela, boquiaberta, pegando o vestido nas mãos e


colocando-o em frente ao corpo.

— Mas que gentileza. Como ela pôde saber que eu estava precisando desse tipo de
vestido, se nem mesmo nos conhecemos ainda?

— Dizem que a monarca tem seus meios de descobrir tudo o que interessa —
esclareceu a dama de companhia.

— A mulher é quase uma reclusa em sua ala do palácio, dando a impressão de que
não se importa com o que acontece ao redor, parecendo até mesmo preferir que se
esqueça de sua existência.

— Isso deve magoá-la. Ninguém gosta de ser esquecida, muito menos uma rainha.

— Não sei se é bem assim. Pelo que dizem, lady Catarina só chama atenção sobre
si para levantar polêmicas contra Diane de Poitiers. Segundo os comentários, diz-se que é
a duquesa quem cuida de cada uma das crianças reais, a partir do momento em que
deixam o ventre da esposa do rei.

— Maggie! Como pode saber de tudo isso?

— Sabendo, ora... Na ala dos serviçais se comenta um pouco de tudo. Nunca ouvi
tanta fofoca como existe lá embaixo.

— Mas como consegue entendê-los? Sei que você mal sabe francês.
— Aqui no palácio, isso não é problema. Podem-se encontrar muitos escoceses
trabalhando na corte. Alguns chegaram há muito tempo, e fizeram fila para falar comigo e
ter notícias de casa.

— Tantos assim?

— Claro. Só para começar, posso citar a comitiva que acompanhou nossa rainha
até aqui, arrumadeiras, pajens, cozinheiras e serviçais, entre outros. Além disso, há os que
vieram antes e depois da chegada de Maria Stuart, alguns em busca de aventuras, outros
a serviço.

— Então já conseguiu fazer amigos. Ótimo. Mas, pelo que entendi, a rainha aceita a
presença da duquesa... Tem certeza de que foi isso o que disseram?

— Tal e qual acabei de dizer. Pelo menos é o que a rainha alega. Claro que há os
que dizem que se trata de uma fachada, e que a verdadeira vontade dela é acabar com
lady Diane, para livrar o rei de seus encantos.

— Essa seria uma reação mais humana.

Ao ver Maggie dar de ombros, Sheena começou a rir. Aquele era um hábito francês,
uma maneira de denotar pouco caso que nem mesmo era conhecida na Escócia. Então se
voltou para o espelho, e colocou o vestido à frente do corpo outra vez.

— Vamos lá, minha cara. Ajude-me a colocar este belo traje. Não devo deixar nossa
jovem rainha esperando por mim. Verei o rei da França jogar esse tal de tênis!

Algum tempo depois, já arrumada, fitou com admiração seu próprio reflexo. Mal
podia acreditar que era ela mesma. Se o comandante Gustave a estava achando
encantadora antes, o que diria se a visse naquele momento? Ao se perguntar aquilo,
percebeu quanto fora tola.

Sua inexperiência a levara a agir como criança. Uma mulher deveria saber manter
qualquer homem a uma distância segura, mas sempre por perto. Depois teria de rever sua
postura em tais situações.

De repente, lembrou-se do duque de Salvoire. Sentiu-se enrubescer de imediato, ao


lembrar-se do momento em que o comandante surgira no corredor, carregando o chapéu
que fazia conjunto com seu vestido, e Jarnac a fitara com uma expressão indecifrável.

Por instinto, ao se mirar no espelho, ergueu mais o queixo e endireitou os ombros.


Aquele vestido era maravilhoso. Algo dentro dela ecoava o desejo de que ele a visse, ao
longo do curto percurso até os aposentos de Maria Stuart. Gostaria de saber a impressão
que o belo contraste entre o branco cravejado de pedras azuis e seus cabelos
avermelhados iria causar nele.

Concluindo que estava pensando tolices, agradeceu de maneira brincalhona aos


elogios tecidos por Maggie e saiu do quarto. No corredor, não pôde deixar de notar que
todos que por ela passavam se voltavam para admirá-la. Nunca se sentira tão ciente de
sua própria beleza e elegância. Era a primeira vez que aquilo acontecia.
— Desculpe-me, Majestade, mas me atrasei um pouco enquanto me arrumava —
disse Sheena, ajoelhando-se em uma mesura, ao chegar ao seu destino.

— Mon Dieu. Que vestido lindo! — exclamou Maria Stuart, admirada — É arrasador.
Onde conseguiu um traje tão adorável? Não creio que haja algo assim na Escócia.

— E não há Milady. Na verdade, nunca vi algo tão sofisticado antes. Foi um


presente enviado a mim pela rainha Catarina.

— Como é? Não pode ser! — exaltou-se a jovem soberana — Bem, dela o vestido
não era. Com certeza, deve ter pegado de uma de suas damas de companhia. A condessa
de Saint Vincente é mais ou menos de seu tamanho, e é famosa por ter mais vestidos do
que seria capaz de usar ao longo de toda a vida.

— Quanto a isso não posso dizer nada, Milady. De qualquer maneira, foi muita
generosidade dela me enviar tal maravilha. A rainha da França deve ser uma pessoa muito
gentil e humana, por se preocupar tanto com uma pessoa desconhecida.

A expressão de Maria Stuart foi ininteligível, mas ficou claro que ela teve de se
conter para não dizer o que pensava. Com ar distante, tomou Sheena pela mão e começou
a caminhar.

— Venha. Vamos à quadra real assistir ao novo esporte que foi inventado, e que o
rei começou a treinar. Chama-se tênis. E uma versão com raquete de outro jogo francês,
inventado no século XII, chamado jeu de paume, em que se usava uma luva de couro ou
uma pá para rebater uma pequena bola.

— Oh, nunca ouvi falar disso — murmurou Sheena, impressionada — Costuma ir


sempre até lá para vê-lo jogar?

— Henrique II gosta muito de ter audiência quando exibe suas habilidades. Afinal,
qual o homem que não gosta? Isso parece ser um fator comum. Todos eles adoram
receber cumprimentos e elogios.

As palavras da jovem rainha a deixaram estupefata. Se alguém na Escócia a


ouvisse dizer aquilo, sofreria um choque. O que uma menina sabia sobre homens, para
fazer aquela afirmação com tanta segurança?

Ao perceber a expressão de sua nova governanta, a soberana sorriu com o charme


característico dos Stuart, prosseguindo.

— E ótimo tê-la aqui comigo. Embora tenha muitos amigos e amigas, é bom ter
mais uma. Conversei com uma de minhas damas de companhia, e combinamos que
vamos lhe ensinar todas as particularidades e gracejos desta corte. E difícil que uma
pessoa recém chegada não cometa gafes, mas tentaremos prevenir isso, orientando-a.

— Fico muito grata por sua atenção, Majestade — respondeu Sheena.

— Vamos conseguir você verá. Aliás, vendo como ficou bela com esse vestido,
estou certa de que haverá muitas pessoas dispostas a orientá-la. Principalmente os
cavalheiros da corte.
Naquele momento, ocorreu a intenção de lembrar à rainha de que seu papel ali era
o de orientá-la, e não o contrário. Mas, diante da postura resoluta e carismática da jovem
Maria Stuart, era fácil perceber que qualquer contestação seria inútil.

Pouco depois, estavam ao lado da quadra de terra batida, em meio a um grupo de


cortesãos, admirando a habilidade do rei. Ao chamado da monarca escocesa, alguns dos
rapazes presentes se aproximaram de Sheena e se dispuseram alegremente a explicar as
intrincadas regras daquele jogo.

Minutos após a chegada delas, a duquesa de Valentinois se aproximou pelo


gramado daquela ala dos jardins reais. O modo gracioso como ela se movia era quase
hipnótico. Sua roupa era, mais uma vez, branca, com detalhes em negro.

— Por que ela usa essas cores? — perguntou ela, em um murmúrio, inclinando-se
na direção de Maria Stuart.

— Após a morte do marido, ela jurou que manteria sempre um sinal de luto por ele.
Mas ninguém nega que suas roupas combinam muito bem com seus cabelos e tom de
pele.

— Isso é bem verdade — concordou Sheena, em tom de admiração.

— Três mulheres de cabelos avermelhados! Eu, você e a duquesa somos as únicas


da corte com essa sorte. Precisamos nos reunir para conversar sobre nossas experiências,
não acha?

Mesmo sentindo a vontade impulsiva de responder de maneira descompromissada,


a tarefa de governanta lhe obrigava a agir de outra forma.

— Creio que haja questões mais sérias que tenham prioridade sobre esse tipo de
assunto, Majestade. Quando Milady tiver algum tempo disponível, eu gostaria muito de
falar sobre a situação em que se encontra seu reino, a nossa amada Escócia.

A expressão da jovem rainha não se alterou de maneira perceptível, mas ficou óbvio
que ela se distanciou mentalmente no mesmo instante. Com olhar vago, agiu como se não
houvesse escutado, e continuou observando o jogo.

Antes que pudesse dizer algo, Sheena escutou uma voz atrás de si.

— O que está achando da habilidade de nosso rei na quadra?

Era o duque de Salvoire. Não havia dúvida quanto ao tom jocoso daquela pergunta,
pois ele estava ciente da inexperiência dela em avaliar um esporte recém inventado, e até
então desconhecido fora da França.

— Ainda há muito que preciso mostrar para lady McCraggan — interveio Maria
Stuart, não dando tempo para que ela respondesse — Não creio que haja muita diversão
ao longo das montanhas barrentas da Escócia. Precisamos entretê-la, Milorde, e deixar
claro que aqui na França podemos ser alegres e elegantes mesmo quando estamos em
guerra.

— O que não está acontecendo no momento — respondeu Jarnac.


— Não? Oh, eu nunca tenho certeza de quando as guerras começam e acabam.
Um dia estamos marchando sobre a fronteira de algum país, no próximo estamos voltando.
Nunca fui muito apegada a esses detalhes.

— Majestade não precisa se preocupar com algo tão brutal quanto às guerras —
afirmou o duque.

Sheena soltou um som de protesto e disse.

— Pelo contrário, Milorde. Os súditos da rainha Maria Stuart estão lutando nesse
mesmo instante em defesa dos interesses dela. Diariamente, muitos dão suas vidas para
manter o reino dela intacto.

Tais palavras, lançadas com intensidade e em tom de desafio, pegaram-no de


guarda baixa e o abalaram por um instante, fazendo-o hesitar de maneira desconcertada.

— Perdoe-me, Milady. Estava me referindo aos assuntos da França, com os quais


sua soberana não precisa se preocupar. Em uma demonstração de diplomacia e tato, o rei
conseguiu estabelecer a paz em janeiro último.

Sabendo que, na verdade, nenhum deles havia sequer se lembrado da Escócia,


Sheena sentiu uma grande decepção. Como diria aos anciãos que sua futura rainha estava
se comportando de maneira tão distante e infantil?

Interrompendo a pequena e acalorada conversa, a duquesa se aproximou deles.

— Por acaso ouvi-o elogiando o rei? — indagou Diane, sorrindo para Jarnac.

— Quando o faço, é óbvio que estou prestando uma homenagem à Milady, sem
dúvida alguma — disse ele, curvando-se em reverência — Todos sabemos que nosso
sucesso depende de sua habilidade estupenda em resolver assuntos de Estado.

— Suas palavras são muito gentis, Milorde — falou ela, sem negar nada, voltando-
se na direção da quadra e sorrindo com ar quase maternal — Precisarei interrompê-lo em
minutos. Quem seria tolo o bastante para desejar estar no lugar do rei? Ele não pode se
distrair nem mesmo por meia hora, que surgem assuntos que requerem sua atenção
imediata.

— A partida está acabando — explicou Jarnac — Gostaria que eu o avisasse de sua


urgência em falar com ele?

— Sim, por favor.

No momento seguinte, Henrique II estava se aproximando. Tomou a mão dela e


levou-a aos lábios, ao vê-la se ajoelhar em reverência.

— Queria me ver?

— Sim, Majestade. Os embaixadores chegaram. Não podemos começar sem sua


presença.
— Não, claro que não. Mas estou certo de que você lidaria com a situação muito
melhor do que eu.

— Ainda assim, precisaria de sua autoridade para me apoiar, Majestade.

— Sim, sim.

O sorriso que eles trocaram foi de enorme cumplicidade. Sheena sabia que havia
algum significado para aquilo, mas não imaginava o que poderia ser. Enquanto os
observava caminhar na direção do palácio, ouviu Maria Stuart reclamar que elas haviam
chegado tarde demais. Mas só prestou mais atenção ao vê-la se dirigir ao duque, dizendo.

— A rainha Catarina mandou esse vestido de presente a lady McCraggan. Não acha
que ela ficou muito bonita, Milorde?

— Claro que sim. Na verdade, fiquei surpreso com a transformação. Espere um


pouco... E mesmo verdade que foi um presente da rainha?

— Sim, é — confirmou a monarca.

— Tem certeza? — questionou ele, incrédulo.

— Sei o que está pensando. E bastante incomum que ela demonstre tamanha
generosidade por alguém. Não ganhei presente algum de Catarina, nem mesmo em meu
aniversário — reclamou a jovem rainha, parecendo intrigada.

— Com certeza, Vossa Majestade deve ter suas razões.

A frase dele foi interrompida pelo som de gritos, vindos da direção para onde o rei e
a duquesa haviam seguido.

De maneira quase inconsciente, todos foram para aquele lado. Sheena e Maria
Stuart se encontravam mais próximas, e estavam entre as primeiras pessoas que
chegaram ao local.

Um pequeno grupo de homens se agitava do lado de fora do portão daquela ala do


palácio. Pareciam indivíduos comuns, de aparência simples, mas compartilhavam de um
olhar obstinado. Um deles, em particular, era mais agitado e parecia ser o líder. Gritava
sem parar, em um dialeto que era difícil de compreender.

Aos poucos, conforme foi ouvindo o palavreado repetitivo, Sheena conseguiu


entender o que estava sendo dito pelo estranho desconhecido, que se dirigia a Diane de
Poitiers.

— Rameira! Prostituta! Meretriz! Você é uma sangria na alma da França! Duquesa


infernal destruiu a decência e a honra de nossa pátria. Seduziu nosso rei e o enfeitiçou,
prendendo-o em seu antro de orgias!

Enquanto ele recitava suas acusações, os guardas reais contornaram o portão


bloqueado e cercaram o grupo, rendendo-os. Nenhum dos arruaceiros ofereceu grande
resistência, mas o que estava gritando continuou proferindo seus desaforos.
Um das sentinelas o atordoou com uma pancada na boca, dada com a
empunhadura da espada, fazendo o lábio dele sangrar de imediato.

Diante daquela visão, Sheena estremeceu. O rei estava fazendo um gesto, como se
fosse seguir os guardas, mas a duquesa o impediu, tocando-lhe o braço e, com uma
expressão triste, caminhou para dentro do palácio.

Maria Stuart explicou que se tratava de reformistas, considerados arruaceiros e de


tratores da boa fé. Seu choque foi ainda maior ao saber que aquelas pessoas seriam
amarradas a estacas e queimadas, pena imposta pela lei a quem cometesse tal crime.

Estranhando a naturalidade com que todos encaravam aquele evento, só restou


seguir os passos de sua própria rainha, que se ofereceu para conduzi-la até a presença de
Catarina de Medici.

A ala da soberana era a mais sombria e a mais mal decorada do palácio. Tudo
parecia destoar da classe e do bom gosto de todo o resto. Chegaram então à câmara onde
os visitantes eram recebidos. Embora fosse dia, as janelas estavam fechadas e a
iluminação era feita por meio de tochas e candeeiros. Um incenso de perfume estranho e
desagradável carregava o ar.

Uma sensação horrível invadiu o corpo de Sheena naquele momento, e ficou claro
que Maria Stuart compartilhou seu mal estar.

A rainha se aproximou por uma entrada lateral, levando-a a se ajoelhar em uma


mesura humilde.

— Lady McCraggan, que bom que veio. Fico feliz que tenha aceitado meu convite
— disse Catarina, arregalando os olhos ao ver o rosto de Sheena — Mas você é linda! E
tem cabelos avermelhados... Isso é bom. Muito bom!

Confusa, tudo o que ocorreu foi agradecer.

— Majestade, sou muito grata por sua generosidade. Este vestido é maravilhoso.
Nem sei como retribuir tal gentileza e demonstrar minha felicidade.

— Haverá mais presentes. Como seu corpo é muito delicado, precisei encomendar
vestidos às minhas costureiras e estilistas. Mas encontramos alguns trajes que lhe
servirão, até que as roupas novas cheguem.

— Oh! Encomendou outros vestidos para mim? Mas que embaraçoso, Sua
Majestade. Por que está sendo tão gentil?

— Vejo que é uma pessoa grata, e isso é tudo o que espero gratidão. Você é muito
bonita, e isso é excelente. Da próxima vez quero que venha sozinha, para termos uma
conversa mais longa e particular.

Ao falar, a rainha deu um tapinha no ombro de Sheena. A mão dela era pesada e os
anéis grotescos. Foi impossível deixar de notar que suas unhas estavam sujas. O perfume
forte já não escondia mais a necessidade de um banho.

— Será uma grande honra.


Uma das damas de companhia da rainha se aproximou, anunciando que um
visitante havia chegado e estava em outro recinto.

— Lamento, mas agora há alguém à minha espera — disse Catarina — Até mais
ver, lady McCraggan.

Assim que saíram de lá, Maria Stuart, que ficara calada todo o tempo, reclamou do
mau cheiro do lugar. Embora quisesse defender a monarca da França, Sheena não pôde
discordar de sua tutelada. Ainda assim, falou.

— Que comentário tendencioso, Majestade.

— Vejo que não adianta contrariá-la. Então, vamos mudar de assunto. Sabe de uma
coisa? Aposto que o homem que chegou para ver Catarina era outro dos necromantes que
ela adora consultar a toda hora.

— Como é?

— Isso mesmo. Você ainda não sabe? A rainha só quer saber desse tipo de
assunto. Clarividentes, leitores de sorte, astrólogos, cristalomantes e todo o tipo de
adivinhos. Há dezenas deles nos aposentos da ala dela do palácio. Antes eu até achava
divertido consultá-los, mas como eles erram quase tudo o que predizem isso também
perdeu a graça. Além disso, sinto muita maldade neles.

— Por que ela estaria tão interessada nesse tipo de coisa? — questionou Sheena,
intrigada.

— Ora, por que... — começou a jovem soberana, parando em seguida e modulando


a voz em uma entonação de descaso — Deve ser porque ela é italiana.

Ciente de que aquela era uma evasiva e que a verdade não fora dita, Sheena soube
que não adiantaria pedir que Maria Stuart falasse o que estava pensando. Embora
estivesse muito curiosa, precisava ressaltar o alto valor de uma atitude discreta, e deixou
seu interesse pessoal em segundo plano.

— De qualquer maneira, foi muita gentileza da parte dela ter me enviado esse lindo
vestido.

— Claro que foi — concordou a jovem rainha — Gostaria de saber se a idéia partiu
das estrelas ou da bola de cristal. Quem sabe se foi iniciativa dela mesma?

— Mas é claro que foi dela mesma — defendeu Sheena, em tom leal.

— É provável que sim. Nesse caso, que é o pior, não tardará para descobrirmos o
real motivo que a levou a fazê-lo.
CAPÍTULO V

Quando Sheena se afastou dos aposentos de Maria Stuart, um homem se


aproximou dela.

— Permite que eu me apresente Milady? — ele indagou curvando-se de maneira


demorada — Sou o marquês de Maupré. Estou aqui por sugestão da rainha Catarina, que
achou interessante que nos conhecêssemos.

Sheena fez uma mesura, admirada com a boa aparência dele. Era um dos mais
belos homens que já vira quase tão bonito quanto o próprio duque de Salvoire.

Mas ao olhá-lo com mais atenção, percebeu que a impressão inicial não fora tão
verdadeira. Com certeza ele era mais velho do que imaginara a princípio e havia algo
repelente naquele sorriso.

— Majestade falou de Milady com muita admiração e ternura — prosseguiu o lorde


— Na verdade, disse-me que eu deveria procurar pela jovem mais adorável do palácio.
Garanto que não foi difícil reconhecê-la.

Como sempre fazia quando recebia elogios daquele tipo, ela abaixou o rosto e olhou
para o chão. Mesmo estando naquele meio por mais de duas semanas, ainda não
conseguia evitar o enrubescimento e o desconcerto, que aquela linguagem floreada e
extravagante dos homens da corte lhe causava, embora já estivesse quase se
acostumando.

— Vossa Majestade, a rainha, é muito gentil — murmurou Sheena.

— Considere mais do que isso. Pelo que ouvi Catarina de Medici a tem na mais alta
estima.

— Oh.

Ouvir aquilo a surpreendeu. Estava grata pelos diversos vestidos que ganhara, mas
não conseguia entender o motivo que levara a rainha a ter tanto apreço por sua pessoa.

— Como sempre, a rainha está certa. Temos sorte em tê-la como hóspede em
nosso país. Você brilha como o sol de nossas praias do sul. E difícil acreditar que tenha
vindo de um lugar tão frio quanto as terras do norte.

— A maioria das pessoas se engana a respeito da Escócia. O inverno lá é frio e


rigoroso, mas o verão é quente e ensolarado, e tenho me banhado no mar do norte desde
a infância.

— Pena eu não ter sido afortunado o bastante para vê-la em tal cenário. Tenho
certeza de que deve parecer a imagem de Afrodite se elevando das águas.

Sheena se moveu de maneira impaciente. Aquele tipo de galanteio exagerado e


falso a incomodava.
— Desculpe-me, Milorde, mas tenho muito que fazer. Se me der licença...

— Por favor, não vá — interrompeu o marquês — Preciso lhe falar. E algo muito
importante.

— Se é assim, está bem — concordou ela, convencida da sinceridade dele e se


deixando conduzir até um banco, em uma das sacadas.

— Como já disse, Vossa Majestade falou com tanta afeição a seu respeito, que me
senti compelido a simpatizar com Milady antes mesmo de vê-la.

Ao ouvir aquilo, ela desviou o olhar para o jardim. Ao longo do tempo em que estava
ali, descobriu que havia um campo de batalha invisível sob a aparência de paz daquela
corte.

Aqueles que serviam à rainha odiavam com fanatismo tudo o que dizia respeito à
bela duquesa de Valentinois, que era quem tinha o rei na palma da mão. Mesmo sendo
dezoito anos mais velha do que Henrique, estando já com cinqüenta e seis, ela ainda era
uma das mulheres mais lindas da França e, sem dúvida, a mais poderosa.

Embora estivesse predisposta a condenar a condição dela de "amante do rei",


Sheena se via impossibilitada de negar que a mulher era adorável. Tudo o que era da
responsabilidade de Diane funcionava muito bem, desde as alas sociais do palácio até os
negócios de Estado. Só um tolo não veria quem era a pessoa responsável por todo o país.
O fato de todos parecerem satisfeitos com o governo deixava claro que as decisões dela
eram justas e certas.

Em certa ocasião, logo depois que chegara, ficara estupefata ao ouvir o cardeal
dizer que a duquesa era uma pessoa abençoada. Na ocasião, um dos conselheiros reais
com quem o clérigo conversava respondera em tom baixo, dizendo que Diane de Poitiers
era uma grande rainha. Ao ver o representante da igreja assentir e sorrir, Sheena se
sentira desorientada.

Como o clero poderia aprovar uma pessoa adúltera? Não era aquele um pecado,
além de ser uma situação ilegal? Contudo, aqueles quinze dias foram mais do que sufi-
ciente para compreender o que levava as pessoas a admirar tanto a duquesa, e a
espezinhar tanto a rainha oficial que, em meio à sua frustração, agarrava-se a seus
adivinhos e necromantes.

Mas Sheena dissera a si mesma, dúzias de vezes, que embora fosse excêntrica e
não gostasse de tomar banho, Catarina de Medici era a esposa legítima do rei, e não havia
desculpa para a desonra à qual ele a submetia. Sua simpatia deveria ficar sempre com a
rainha, por menos que desejasse tomar partido naquela contenda.

— Como você é bastante jovem — dizia o marquês, fazendo-a voltar a prestar


atenção na conversa — creio que não compreende bem as intrigas que se desenrolam em
nossa estimada e complexa corte.

— Não estou preocupada com o que ocorre nos bastidores do palácio — respondeu
ela, de maneira contundente. — Estou aqui para servir à jovem rainha da Escócia, e nada
mais me diz respeito.
— Mas Maria Stuart será nossa rainha também. Creio que não seja difícil imaginar
as dificuldades que jazem diante de nós — O marquês olhou ao redor com ar de
preocupação — O que aquela bruxa lhe disse?

— Não sei de quem está falando, Milorde — falou Sheena, arregalando os olhos.

— Acho que sabe sim. De quem mais poderia ser, senão da mulher que enfeitiçou e
escravizou o próprio rei? Não sente piedade por ele, um jovem inocente, haver sido pego
na teia de uma mulher mais velha e esperta?

— Creio que Vossa Majestade sabe muito bem cuidar de si mesmo.

— Pelo contrário. Um homem é sempre um servo nas mãos de uma mulher esperta.
Ele nem mesmo teve chance, pois foi envolto pela duquesa, quando ainda era um bebê.
Será que é muito difícil entender que o rei deve ser salvo, pelo bem da França?

— O que isso tem a ver comigo?

— Talvez Milady seja a única pessoa que pode ter sucesso onde todos os outros
falharam. Fale com ele. Faça-o perceber que existem outras mulheres no mundo além da
duquesa. Você é jovem, bela e alegre. Leve um pouco de felicidade à vida dele. Sua
aurora pode ofuscar o sol antigo daquela bruxa, que deveria ter se posto há muito tempo.

— Em minha opinião Milorde, seria muito melhor eu não me envolver em algo que
não diz respeito às minhas tarefas oficiais.

Ao dizer aquilo, Sheena se levantou e se afastou alguns passos.

— A rainha Catarina ficará bastante desapontada. Ela pensou que encontraria um


pouco mais de consideração pela situação intolerável em que se encontra. A vida a
transformou em uma pessoa solitária e não lhe deu muitos amigos.

— Posso garantir que não sou insensível quanto à situação dela. Também sou
muito grata pelas gentilezas que venho recebendo, e jamais negarei isso.

— Creio que seja apenas isso que Vossa Majestade espera de você, um pouco de
gratidão e de amizade. Ela gostaria de recebê-la hoje à tarde, às três e meia.

— Se minha própria rainha não me ordenar o contrário, estarei lá, com todo prazer.

— Tomo a liberdade de expressar antecipadamente a gratidão real — falou o


marquês, curvando-se de maneira exagerada.

Depois de vê-lo fazer uma mesura e se afastar, Sheena observou que a expressão
dele era a de alguém bastante satisfeito com o que ouvira. Mais tarde, quando foi atender
ao compromisso, observou o ambiente desagradável em que a rainha Catarina vivia e
concluiu que ela própria havia favorecido as condições, para seu marido sair em busca de
uma amante.

— Fico feliz que tenha vindo — disse a monarca — E bom que conversemos e nos
conheçamos melhor. Ainda bem que Maria Stuart a deixou vir só. Sente-se, lady
McCraggan, pois quero lhe falar.
— Sou toda ouvidos.

— O marquês me contou a respeito das palavras gentis que você disse sobre mim.
Impressionou-me o fato de haver percebido, em tão pouco tempo, que minha realidade é a
de ser prisioneira em meu próprio palácio. Sou tão infeliz que, se não fosse por minhas
amigas, preferiria estar morta.

Ao ouvir aquilo, Sheena imaginou quanto o marquês de Maupré teria inventado.


Mas nunca conseguira ver uma pessoa sofrer sem se render ao intuito de tentar ajudar.

— Não diga isso, Majestade. Há tanto pelo que viver!

— O quê, por exemplo? — indagou a rainha — Meus filhos foram todos tirados de
mim pela duquesa de Valentinois, assim que nasceram. Não pude lhes dar nem mesmo a
amamentação. Cada roupa deles foi escolhida por ela. No momento em que dou à luz, o
bebê passa a ser dela.

— Todos nós a ajudaríamos, se nos fosse possível — lamentou Sheena.

— Mas que inferno é esse em que estou vivendo? Só pode ser resultado de
bruxaria! Sim, bruxaria. Ela é velha, mas o demônio a fez permanecer jovem. Onde estão
as rugas? Por que o corpo dela não ficou flácido? E os cabelos, por que não
embranquecem? Apenas magia poderia manter a idade à distância. Isso quer dizer que
Satanás possui a alma daquela mulher!

— Oh, meu Deus... — murmurou Sheena, perplexa.

— Às vezes, sinto o rei se aproximar, como se estivesse prestes a se libertar do


encanto maldito. Mas, antes que tenha tempo para tanto, a duquesa volta a enfeitiçá-lo —
A rainha suspirou — Tento não comentar muito meu infortúnio, nem jogo o fardo de minha
vida sobre os ombros dos outros. Quero apenas sua simpatia. Pensará em mim com
carinho?

— Claro Majestade. Eu a ajudaria se pudesse. Os olhos da rainha brilharam.

— E mesmo?

— Sim, naturalmente — falou Sheena, sem compreender o que a levou a se


arrepender por dizer algo tão comprometedor.

Naquele momento, um pajem anunciou a chegada do rei, e ambas se levantaram


para recebê-lo.

— Oh, Majestade, sua presença me alegra! — exaltou Catarina.

— Do que se trata? — ele indagou, com a expressão de alguém que já estava


cansado da vida, com apenas trinta e oito anos de idade — Como mandou me chamar
com urgência, achei que fosse algo importante.

— E é — garantiu a rainha — Mas, primeiro, não seria educado cumprimentar lady


Sheena McCraggan?
— Oh, sim, nossa visitante da Escócia! Espero que esteja gostando de sua estadia.

— Estou feliz com a oportunidade de servir minha própria rainha, Majestade.

— Que é minha sobrinha e, por acaso, futura nora. Maria Stuart é uma criança linda
e adorável, e a amamos profundamente — O rei se voltou para a esposa — Não é
mesmo?

— Sim, é verdade — respondeu a rainha, sorrindo — A menina conquistou nossos


corações. Principalmente o seu, Milorde. Há algo especial nas garotas escocesas, que as
faz atrair os homens, da mesma maneira que os magnetos atraem os metais. Dê uma
olhada em lady McCraggan. Ela terá muito trabalho para manter os rapazes da corte a
distância, não acha? Cabe a nós entretê-la. Por que não dança com ela uma tarde dessas,
meu marido? Com pés tão pequenos, essa jovem deve dar passos leves como algodão.

— Quem sabe. Agora, minha cara, por que não conversamos sobre o motivo que
me fez vir até aqui? Há pessoas à minha espera em outra parte do palácio, para tratar de
assuntos de governo.

— Oh, sim. Claro, Majestade.

Naquele momento, Sheena compreendeu que estava dispensada. Fez uma mesura
e se retirou, seguindo uma das damas de companhia da rainha. Ao sair, ouviu Catarina
exaltando sua beleza diante do rei. De fato, aquilo parecia muito confuso.

Livre do compromisso voltou até a ala das crianças reais, onde encontrou Maria
Stuart rodeada por um grupo de adolescentes. Ao se aproximar, ouviu a jovem rainha
dizer.

— Estávamos à sua procura! Onde andou se escondendo?

— Lamento que tenha precisado de mim e eu não estivesse presente.

— Ora, está bem. Mas cheguei a pensar que a houvessem raptado. Agora venha
conosco, depressa! Estamos indo ver o novo malabarista que chegou da Itália. Dizem que
o homem é fenomenal, e que consegue manter vinte bolas no ar ao mesmo tempo!

Rindo e discutindo como aquilo seria possível, a comitiva adolescente seguiu


ruidosa, rumo ao saguão de entretenimento do palácio. Sheena os acompanhou de longe,
permanecendo mais atrás.

Quando chegaram a uma escada que levava ao piso inferior, a duquesa de


Valentinois e o embaixador de Portugal se aproximaram e ela lhes deu passagem, fazendo
uma mesura.

De repente, sentindo o coração disparar, olhou para o lado e viu que Jarnac estava
caminhando ao seu lado. Ambos pararam e ele a encarou com ar de desaprovação, antes
de perguntar.

— Onde esteve?

— Qual seu interesse em saber?


— Tenho minhas razões para perguntar.

— E talvez eu também tenha meus motivos para não querer lhe dizer.

— Não acredito que estivesse no cumprimento de alguma tarefa, se é isso o que


quer deixar implícito. Gustave de Cloud, por acaso, também não faz a menor idéia de qual
era seu paradeiro.

— O que o comandante tem a ver com isso? — indagou Sheena, soltando um riso
de desdém.

— Creio que só você mesma poderia responder a tal pergunta — disse o conde,
seguindo-a até o pavimento inferior e se colocando diante dela — E então? Vai me dizer
ou não?

— Por que eu deveria?

De repente, ela sentiu a mão dele em um de seus braços.

— Não seja tola. O que você está fazendo é perigoso.

— Ora. Não sei do que está falando. Não estou fazendo nada perigoso. Só não
entendo por que devo me submeter a seu interrogatório.

— Talvez eu esteja querendo ajudá-la.

— Duvido. Não creio que seja capaz de ajudar alguém sem segundas intenções.

Assim que acabou de proferir a frase, Sheena se arrependeu de tê-la dito. Estava
ciente de que agira de forma bastante rude e infantil.

— Oh, é mesmo?

— Deixe-me em paz. Não quero ser envolvida em intrigas. Nem nas suas nem nas
de ninguém.

Para sua surpresa, Jarnac fez uma expressão de alívio ao ouvir aquilo, e então
respondeu.

— Bem que eu gostaria de ter certeza de que isso é possível.

— Pode acreditar no que estou dizendo. Tudo o que quero fazer é servir à minha
rainha.

— Poderá fazê-lo muito melhor se não se envolver em complicações com as


pessoas da corte.

— Não estou fazendo nada disso — defendeu-se Sheena — Por que fala como se
eu estivesse agindo errado?

— Porque talvez já esteja envolvida em problemas e não saiba.


— Será que é tão difícil assim entender o que acabei de falar? Não estou fazendo
nada de errado!

— Nesse caso, onde estava até agora?

— Em nenhum lugar que lhe interesse.

— Se não é algo de que precise se envergonhar, conte-me de uma vez.

Estreitando o olhar, ela percebeu que estava encurralada. Se mantivesse sua


postura, daria margem à fofoca e à difamação.

— Está bem. Estive com a rainha, nos aposentos dela. Há algo de errado nisso?

— Sozinha? — questionou ele, de maneira abrupta.

— Não o tempo todo.

— Quem mais estava lá?

Percebendo que a expressão dele era muito grave, Sheena deduziu que não
deveria provocá-lo ainda mais.

— O rei chegou durante nossa conversa.

Ao ver que Jarnac ficara tenso outra vez, pensou em perguntar qual era o problema,
mas a duquesa se aproximou e os interrompeu.

— Vamos logo até o saguão, sim? Estou curiosa para conhecer o tal artista.
Precisarei entrar em reunião com o rei e alguns embaixadores. Se nos demorarmos muito,
perderei toda a apresentação.

— Claro Milady — falou o duque, começando a caminhar depressa. — Vou indo na


frente.

Pouco depois, assistiram à apresentação do malabarista. Durante todo o tempo, a


mente de Sheena permaneceu distante, tentando compreender o que queria dizer tudo
aquilo. Parecia-lhe muito barulho por nada.

Estava sentada em uma cadeira mais afastada, quando Gustave se aproximou. Já


haviam resolvido suas diferenças e estabelecido um pacto de respeito e de amizade.
Fizeram também um acordo. para cada galanteio que o comandante dirigisse a ela,
deveria doar uma moeda de ouro para caridade.

— Você está me parecendo séria demais — disse o comandante — O que a está


incomodando?

— Nada. Por favor, não me faça perguntas. No momento, não estou disposta a
explicar nada a ninguém. Gostaria que ninguém me notasse.

— Isso seria impossível.

— Não faça isso. Lembre-se de nosso acordo. Nada de elogios.


— Que garota singular você é. Nunca pude imaginar uma mulher, jovem ou velha,
que não gostasse de ouvir alguém dizer quanto é amável, inteligente e bonita.
Principalmente quando se trata de alguém tão especial.

— Uma moeda de ouro! Acabou de violar o pacto outra vez.

Gustave levou a mão ao bolso e pegou a quantia prometida, dando a Sheena. O


sorriso no rosto dele foi espontâneo e bem humorado.

— Está bem. Mas valeu a pena. Pelo menos estou mais aliviado por haver dito o
que penso a seu respeito. Ainda bem que sou rico. Sabia que sou um bom partido?

— Já percebi meu caro. Aliás, por que não se casou ainda?

— Porque não havia encontrado, até hoje, alguém que me atraísse de verdade.

Ela ergueu o dedo na direção dele, em uma postura de advertência. Era impossível
não notar que o estava deixando cada vez mais apaixonado, por mais que tentasse
dissuadi-lo.

Por sorte, descobrira nele uma pessoa madura e tranqüila. Não apenas era de uma
das melhores famílias da França, como também se tratava de uma ótima pessoa.

— Certo — prosseguiu o comandante — Não vou mais provocá-la. Mas me diga o


que a está incomodando.

— Não há nada que possa ser contado. Não sei como colocar em palavras o que
estou sentindo.

— Apenas fale-me a respeito.

— Tudo ao seu tempo, Gustave.

— Nesse caso, prometa que vai me deixar ajudá-la!

— Sim, prometo. Sei que posso confiar em você.

— Está mesmo falando sério? — Ele se ajoelhou diante dela — Preciso dizer isso
agora. Não importa quanto isso vá me custar em doações para a caridade. Eu te amo!
Estou falando de todo o coração. Aceita se casar comigo?

Sheena balançou a cabeça negativamente. Ao fazê-lo, viu o duque observando-a de


longe. Dentro dela, a lembrança da voz dele começou a ecoar, advertindo-a de que estava
se envolvendo em algo perigoso na corte.

Teria o aviso algo a ver com o jovem e apaixonado comandante? Ao vê-lo ali,
ajoelhado, uma onda de pânico a invadiu. Era horrível não saber o que estava
acontecendo.
CAPITULO VI

Alguém bateu à porta do quarto e Maggie foi atender. Sheena a ouviu murmurar
algo quase ininteligível e então voltar.

— E o mensageiro — avisou a dama de companhia.

— Estou quase acabando — disse ela com ar de dúvida, mal desviando o olhar da
escrivaninha, onde se debruçara para escrever uma carta ao pai.

O que diria a ele? Que a futura rainha da Escócia não estava nem um pouco
interessada em saber sobre seu país? Até então, não pudera mandar nenhum dos
prometidos relatórios, pois não sabia se poderia confiar no sigilo da correspondência. A
França tinha tantos espiões que cada carta era aberta inúmera vezes antes de chegar a
seu destino.

Pelo menos fora o que sua fiel acompanhante descobrira. Havia pessoas
espionando em nome da rainha, outros para a duquesa, alguns eram financiados pela
própria igreja, muitos o faziam em prol do Estado e existiam ainda os que espionavam por
pura curiosidade.

Desde que ali chegara, quase três semanas antes, não pudera mandar nenhuma
notícia mais séria. Naquela oportunidade, porém, havia surgido um mensageiro
considerado confiável pelos criados escoceses.

Como teria coragem de contar que não investigara se o rei da França tinha intenção
ou não de lutar para colocar Maria Stuart no trono da Inglaterra, quando chegasse o
momento da coroação? Pior do que isso seria contar sobre a influência que a jovem rainha
estava recebendo daquela corte corrupta.

Em lugar de informar tais coisas, Sheena se ateve à descrição de detalhes,


tentando dar a impressão de que a carta ficara extensa e abrangente. Contou sobre seus
problemas de relacionamento com o duque e também citou o estranho comportamento da
rainha. Esclareceu detalhes sobre a duquesa e mencionou ter sido pedida em casamento
três vezes pelo comandante Gustave. Encerrou a carta discorrendo sobre o belo marquês
de Maupré.

Quando o mensageiro voltou a bater à porta, já impaciente, ela e Maggie


entregaram o envelope, selado com o desenho do escudo de armas dos McCraggan
gravado na cera, e algumas moedas de ouro.

Ao ver o mal-encarado homem partir, um desejo enorme de voltar para casa invadiu
a ambas, que começaram a conversar sobre a Escócia. Mas havia uma preocupação
intuitiva brotando no coração de Sheena, que teve a impressão de que a carta não
chegaria a seu destino.
Perdendo a disposição para conversar, olhou-se no espelho. O vestido de cetim
azul-celeste que a rainha lhe dera naquela manhã, realçava ainda mais sua pele alva e os
cabelos cor de cobre.

Imaginou o que os anciãos do clã diriam se a vissem daquela forma. Com certeza
alegariam que ela estava se vendendo em troca de conforto, e seu pai ficaria muito
magoado.

Incomodada com tal idéia, caminhou até a janela. Depois atravessou o quarto, em
direção à porta. Sem dar satisfação alguma a Maggie, saiu de lá decidida a encontrar o rei
e a perguntar sobre suas intenções.

Tinha noção de que era improvável que o encontrasse disponível àquela hora, mas
iria tentar. Não desistiria até obter uma resposta, fosse ela qual fosse.

— Para onde vai com esse ar tão orgulhoso e resoluto? — indagou uma voz vinda
de outra escada, logo atrás dela.

Ao se virar identificou o marquês de Maupré, aproximando-se depressa. Ambos


haviam alcançado um piso intermediário naquele momento, e estavam sozinhos.

— Ora... Estava apenas tentando descobrir onde todos se esconderam —


improvisou ela.

— Acho que encontrará "todos", como acabou de defini-los, no jardim. O rei vai
jogar tênis daqui a meia hora, e sua rainha convidou o delfim para jogar uma partida de
peteca,

— Oh! Então preciso ir até lá para vê-los.

— Não precisa se apressar — disse o marquês, sorrindo — Acho que fui o único a
notar sua ausência.

— Esse não foi um elogio muito bom — respondeu Sheena, rindo.

Desde que chegara à França, aprendera que era esperado que uma mulher
flertasse mais do que falasse. Olhou-o de soslaio, com um leve sorriso nos lábios, sem
muita consciência de quanto estava sensual.

— E encantadora — murmurou ele, curvando-se um pouco na direção dela.

— Tenho certeza de que diz isso a todas as mulheres que encontra.

A resposta surgira de maneira automática. Estava impressionada por ser galanteada


por alguém quase tão belo quanto Jarnac.

— Estou apenas dizendo a verdade. Aliás, é uma pena que eu não seja o único
homem a admirá-la. Há alguém que a elogia tanto que chego a me sentir bastante
enciumado.

— Não creio que esteja falando sério...


Embora quisesse encerrar aquela conversa banal, era difícil não se sentir
interessada. Havia se habituado a receber aqueles elogios exagerados, e isso já não a
incomodava tanto.

— Não está curiosa?

— Sobre o quê?

— A respeito do homem que a admira mais do que eu. Pelo tanto que o ouço falar
em sua exaltação, imagino que suas orelhas devam ficar quentes a maior parte do dia.

— Nem sequer imagino quem possa ser. Conheço as pessoas daqui a tão pouco
tempo que não consigo sequer conceber a idéia de alguém se lembrar de mim em minha
ausência.

— Nesse caso, vou contar. — Aproximando os lábios do ouvido dela, sussurrou —


O rei.

Sheena se afastou e o olhou com ar incrédulo. Então riu com ar de dúvida.

— Agora tenho certeza de que está se divertindo à minha custa. Desde que cheguei
Vossa Majestade mal notou minha presença!

— Isso é o que ele quer que todos pensem. O rei é bastante tímido, e só conta
certos detalhes aos amigos mais íntimos, como eu.

— Acho que ele só tem olhos para uma única mulher.

— Está se referindo à duquesa? Ela é uma velha. Faz tanto tempo que estão juntos,
que ele se acomodou. Quem não gosta de ter a vida facilitada por alguém? Mas sei que
faz tempo que o coração dele está livre.

— Não creio que isso seja de minha conta, Milorde — interrompeu Sheena, com
firmeza.

— Então o fato de o rei do país mais desenvolvido do mundo estar aos seus pés
não lhe diz respeito? Vossa Majestade a ama, Milady.

Algo no tom de voz dele a assustou, fazendo-a responder em um tom quase


violento.

— Mentira! Isso é mentira! E mesmo que fosse verdade, eu preferiria não saber. O
rei é um homem casado. E a rainha Catarina? Qualquer um que deserda a própria mulher,
para se juntar com outra é merecedor apenas de meu desprezo.

As palavras foram quase gritadas, e o marquês se assustou, recuando dois passos.


Quando Sheena se virou e partiu, andando depressa, não foi seguida. Contudo, se tivesse
visto o sorriso que surgiu nos lábios dele depois do susto, teria ficado muito preocupada.

Logo alcançou o local onde estava Maria Stuart. Mal se aproximou e a jovem rainha
estendeu a mão, chamando-a.
— Venha conosco e seja a juíza. Sei que vou vencer, como sempre, mas o príncipe
me forçou a conceder uma vantagem a ele, Isso não é justo!

Rindo e conversando, a pequena rainha nem sequer notou que Sheena não fez
menção em responder. Ela apenas seguiu em direção ao jardim, liderando o grupo de
jovens.

Um pajem se aproximou de Sheena e a informou de que a duquesa de Valentinois


queria lhe falar. Sabendo que ninguém ali sentiria sua falta, seguiu-o de imediato, voltando
para dentro do palácio.

O quarto de Diane era deslumbrante, mas saber que aquele era o mesmo ambiente
onde ela e o rei traíam a rainha levou-a a se sentir desconfortável.

— Oh, lady McCraggan, que bom que veio. Já faz algum tempo que venho
querendo conversar com você. Aliás, importa-se se eu chamá-la de Sheena? Acho muito
mais amigável.

— Como quiser.

Ambas se dirigiram a um sofá na lateral do aposento, mas antes que pudessem


dizer qualquer coisa, uma das damas de companhia da duquesa se aproximou e avisou
que o joalheiro havia chegado.

— Mas que distração a minha — lamentou Diane — Esqueci-me de que ele viria
hoje. Poderia perdoar minha ausência por alguns minutos, Milady? Não posso deixar o
joalheiro real esperando. O rei mandou que um bracelete de diamantes fosse
confeccionado, como um presente para meu aniversário, e não posso fazer nosso artista
das jóias esperar.

— Claro duquesa. Estou a seu dispor.

Sheena não conseguia disfarçar o desgosto que sentia em estar ali. Embora o
ambiente fosse agradável, e a duquesa gentil ao extremo, era impossível ignorar o fato de
aquele ser o local, onde era cometido o adultério mais flagrante da Europa.

Assim que foi deixada sozinha, começou a admirar a arte daquele quarto. As
esculturas eram obras incríveis, e o motivo era, invariavelmente, a beleza da própria
duquesa.

Os quadros, assim como o afresco que decorava a parede acima da cama, eram de
gosto excelentes. No teto não havia nenhuma pintura de Diane, como esperara ver quando
levantou a cabeça.

Havia, sim, uma estilização do monograma D&H dentro do brasão da monarquia


francesa.

Uma homenagem do rei à sua amada.

O rei transformara o quarto dela em uma gigantesca prova de amor.


Sheena ponderou se seria possível existir mulher mais amada do que aquela.
Enquanto admirava os detalhes daquele emblema, logo acima de si, percebeu uma falha
em um trecho do desenho que contornava as letras.

Era o centro de um amontoado de rosas, o que dificultava que se visse do que se


tratava. A princípio, pensou que um pedaço da pintura do teto houvesse descascado, mas
então percebeu que algo ali se movia.

Depois de observar por algum tempo, teve de conter um grito ao compreender o


que via, era um olho humano! E vivo! Não havia dúvida, pois o flagrara se movendo. Que
mente doentia espionaria o quarto da amásia do rei através de um furo no teto?

Não fazia sentido. Sem alarde, continuou observando o que havia ao redor, mas já
menos à vontade. Achava horrível ser observada daquele modo.

Sentiu um desejo quase incontrolável de voltar para sua casa, na Escócia, onde o
teto jamais "tivera olhos".

Antes que pudesse sair dali, notou que alguém se aproximava do aposento. Era o
próprio rei que estava entrando.

— Onde está a duquesa? — indagou como se estivesse falando com uma


arrumadeira.

— No quarto ao lado, Majestade.

De repente, lembrando-se de apresentar bons modos, a postura dele mudou.

— Você é a lady McCraggan, estou certo? Perdoe-me por não tê-la reconhecido de
imediato. Então a duquesa está aqui ao lado?

— Isso mesmo.

— Sabe me dizer quem está com ela?

— Parece-me que é o joalheiro real Majestade.

— Oh, sim, fui eu quem o chamou. Fico feliz com isso — disse o rei, em tom sério,
apressando-se em juntar-se à amante.

Sheena deduziu que o monarca ficara enciumado por deixar Diane sozinha com
outro homem. Aquela era uma prova de que o marquês havia mentido sobre os
sentimentos de Henrique II.

Ele retornou para o aposento principal depois de alguns minutos, dizendo em tom
alegre.

— A duquesa voltará dentro de alguns minutos e a levará consigo até a quadra de


tênis, para me ver jogar.

— Não quero incomodá-los com minha presença, Majestade.


— Esse é o desejo dela, Milady. Quem somos nós, meros mortais, para questionar
suas ordens?

O sorriso dele denunciava uma satisfação sem tamanho. Havia amor em sua
expressão e qualquer pessoa mais sensível perceberia isso.

Foi então que Sheena criou coragem. Que o espião do teto ouvisse se assim o
quisesse! Aquela era uma oportunidade única, e não poderia ser desperdiçada.

— Majestade, gostaria de saber se posso lhe dirigir a palavra — murmurou ela, com
timidez.

— O que seria? — indagou em tom irritadiço.

— Antes de eu deixar a Escócia, meu velho pai me informou de que a rainha Maria
Tudor, da Inglaterra, está velha e doente. Não se espera que ela viva muito mais tempo.
No caso de a rainha inglesa morrer, os anciãos de meu povo temem que Elizabeth tome o
trono para si.

— A bastarda não tem o direito. De maneira nenhuma! Os juristas da coroa francesa


decretaram que, como o próprio rei Henrique VIII declarou que seu casamento com Ana
Bolena não foi uma união legal, Elizabeth não é legítima e não tem direito ao trono inglês.

— E assim que pensa os escoceses, Majestade. Do mesmo modo, acreditam que é


Maria Stuart quem deve ser coroada.

— O direito é dela — confirmou o rei — E como minha futura nora, insistirei em vê-la
como rainha da Inglaterra.

— Pretende mandar soldados e armas para lutar por ela? — indagou Sheena,
quase sem fôlego.

A postura do rei mudou de súbito.

— Já ordenei que meus heraldistas desenhem um brasão com os escudos de


armas da Escócia e da Inglaterra, envoltos pela coroa da França.

— Mas e se os ingleses oferecerem o trono a Elizabeth?

— Maria Tudor ainda não morreu minha criança — disse Henrique II, virando e
começando a se afastar — A vontade de Deus pode ser a de que ela ainda viva por muitos
anos.

Sentindo como se houvesse sido abandonada, Sheena observou o monarca se


retirar. Aquela era a confirmação de que a França jamais entraria em batalha alguma em
nome de Maria Stuart.

Como diria isso a seu pai? E quanto às famílias daqueles que haviam morrido na
guerra? Como dar a notícia de que fora tudo em vão? Um futuro negro parecia espreitar a
Escócia.
Ao chegar a seu aposento, entrou caminhando devagar e se deitou de bruços na
cama. Não tinha ânimo nem mesmo para contar a Maggie o que acontecera.

Depois de muito pensar, encontrou consolo em uma esperança fraca, mas ainda
presente, de que o rei não houvesse expressado suas verdadeiras intenções por
considerá-la uma criança.

Lembrou-se então de que saíra do quarto da duquesa sem nada dizer, o que era
uma grande falta de educação. Então chamou sua dama de companhia.

— Maggie, leve um recado à duquesa de Valentinois. Diga que me senti mal e que
precisei me recolher.

— Milady! O que estava fazendo na companhia daquela destruidora de lares?

— Ela pediu para me ver. Bem que eu gostaria de saber qual era o assunto, mas
acho que nunca vou descobrir.

— Pelo que ouvi dizer, se a duquesa quer algo de você ela deixará isso bem claro,
cedo ou tarde.

— E provável — concordou Sheena, estreitando o olhar antes de prosseguir — Por


acaso você sabe de quem são os aposentos que ficam sobre o quarto dela? Há tantas
escadas, e a construção daqui é tão complexa, que nem consigo imaginar que parte é
aquela.

— Essa pergunta é fácil de responder. Há uma história a respeito disso, muito


comentada pelos criados. Aquela ala foi ocupada pela própria rainha Catarina. Dizem que
mesmo tendo a opção de ter qualquer ala, a excêntrica mulher exigiu aquela. Como o rei
não queria discussão, optou por não contrariá-la.

— E a rainha dorme no cômodo acima do quarto principal da duquesa?

Maggie fez uma careta antes de responder.

— Exatamente acima da cama!


CAPÍTULO VII

O comandante Gustave de Cloude estava ficando mais insistente a cada dia, e


Sheena vinha tendo cada vez mais dificuldade de mantê-lo a uma distância segura. Por
esse motivo, afastou-se da multidão que participava da festa ao ar livre naquele começo de
noite, e foi para um recanto mais isolado do jardim.

Jamais imaginara estar em um lugar tão belo e, ao mesmo tempo, corrompido. As


mulheres usavam tantas jóias que a luz do luar de verão, assim como a das tochas que
iluminavam a festa, encontrava ali um vasto campo de superfícies onde se refletir.

Os homens, usando seus trajes de gala, foram definidos por Maria Stuart como
"pavões exibindo a plumagem para as fêmeas". Fora a própria rainha da Escócia quem
sugerira aquele evento. Na França, qualquer desculpa servia de pretexto para se começar
uma festa. As pessoas da corte tinham muito dinheiro e pouco o que fazer.

O rei, por outro lado, estava sempre ocupado, parando de trabalhar apenas para
cavalgar pela manhã e para jogar tênis à tarde. A duquesa também não tinha muito tempo
para si, pois os compromissos de Estado exigiam sua presença ao lado do rei. A
supervisão do palácio também cabia a ela.

No mais, o cotidiano da corte seguia em um ritmo entediante, movido a fofocas e a


intrigas. Mas aquela festa luxuosa deixou Sheena bastante impressionada. Maria Stuart
estava se divertindo mais do que qualquer um, dançando o tempo todo com os homens
mais atraentes da corte.

Sentada em um dos bancos de mármore, cercada por arbustos, Sheena optou por
se isolar de toda aquela festividade, para desfrutar a quietude do local.

Mas não houve tempo para tanto. Enquanto observava os peixes dourados na
piscina próxima, percebeu a presença de um homem que se aproximava, vindo das
sombras do caminho. Assustada, soltou uma exclamação, e então o ouviu falar.

— Eu a estive observando. Você fica adorável sob a luz do luar.

Longe das tochas, o brilho natural daquela noite de lua cheia, também estava tendo
um efeito interessante sobre ele.

Sheena achou que o marquês de Maupré estava ainda mais atraente naquele
momento. Ao mesmo tempo, ficou curiosa por ele não estar acompanhando uma das
mulheres da corte, que pareciam muito interessadas em sua presença.

— Vim até aqui para recuperar o fôlego — explicou ela, sentindo-se inclinada a se
justificar, mesmo sem saber o motivo — Há gente demais na festa.

— Pensei que estivesse fugindo — falou ele, sorrindo — O jovem comandante da


guarda do duque de Salvoire, estava me parecendo possessivo demais esta noite.

Aquilo a embaraçou. Não estava disposta a falar de Gustave com o marquês.


— Acho que é melhor eu voltar para a festa agora mesmo — disse ela, tentando
encerrar a conversa.

— Não há pressa. Sente-se por um momento e fale-me um pouco sobre si mesma.


Nós quase não temos oportunidade de ficar sozinhos.

Seria muita rudeza sair dali sem mais nem menos, o que a levou a ceder e ficar.

— Bem, não devo me demorar muito. Minha rainha pode precisar de mim.

— Maria Stuart não parecia precisar de ninguém da última vez em que a vi, minutos
atrás. Pela expressão dela, achei-a muito feliz. E é assim mesmo que deve ser. Os jovens
devem ter a oportunidade de se divertir, sem medo de demonstrar que são felizes.

— Não apenas os jovens, Milorde. Acho que todos devem ter tal liberdade.

— Bem que eu gostaria que fosse assim — respondeu ele — Infelizmente, a maioria
das pessoas só consegue odiar e agredir todos os que estão por perto.

— Tem certeza de que também não está sendo cínico? — indagou Sheena,
percebendo que o estava comparando a Jarnac.

— E quem mais seria cínico? — questionou o marquês, com ar curioso.

— Oh, bem, a maioria das pessoas da corte — improvisou ela.

— Mas não você, que é tão diferente dos outros. E vivaz, sincera e inteligente. Além
disso, parece ser tão livre. Isso não é maravilhoso?

— Marquês, por favor, não venha me falar de amor, está bem? Estou começando a
achar esse assunto cansativo.

— Isso não é verdade. Nenhuma mulher poderia se cansar de amar. Mas não estou
aqui para falar do mesmo assunto que tratamos antes. Aquele foi um engano meu, e agora
estou ciente disso. No momento, gostaria de falar um pouco sobre mim, se me for
permitido.

— Duvido que algo que eu dissesse pudesse impedi-lo de realizar sua intenção. Em
minha opinião, Milorde acho que deveríamos voltar à festa.

— Por favor, ainda não. Não antes de eu ter a oportunidade de mostrar que a estou
amando.

— Você me ama? E isso o que está querendo dizer?

— Ora, tais palavras só têm um significado. Eu te amo. Sua bela face me encantou,
assim como sua obstinação, o brilho de seus olhos e a perfeição de seus lábios, que foram
feitos para fazer um homem se perder em beijos.

Ao vê-lo se inclinar na sua direção, Sheena ficou de pé de repente.


— Lamento Milorde, mas acho que estou sendo mesmo satirizada. Da última vez
em que conversamos, ouvi-o dizer que o próprio rei estava apaixonado por mim, o que não
era verdade. Agora alega se tratar de seu próprio amor. Ou tem problemas sérios, ou está
se divertindo à minha custa.

— Não enlouqueci, se é o que está pensando — murmurou o marquês — Meu amor


é sincero, Sheena. Dê-me a chance de lhe provar o que sinto. Vamos nos encontrar.
Fiquemos juntos algum tempo para podermos conversar. Como demonstrarei meus
sentimentos e minha devoção se nunca ficarmos próximos?

— Seu pedido não tem fundamento, Milorde. Nós nos encontramos quase todos os
dias, na corte.

— Mas não tenho a oportunidade de mostrar o que o amor significa para mim, e o
que pode vir a existir entre nós.

— Lamento, mas não estou interessada — declarou ela.

— Apenas por ser muito inocente, minha cara. Deixe-me ensinar algo novo a
respeito do amor.

Antes mesmo que Sheena pudesse reagir o marquês a segurou pela cintura,
puxando-a para si com muita firmeza e tomando seus lábios, em um beijo violento.

Era a primeira vez na vida que Sheena era beijada. Jamais tocara os lábios de
alguém antes e, por um momento, aquilo a fez sentir-se paralisada, sem saber como lidar
com aquele fervor. De súbito, descobrindo-se indignada com a impertinência dele,
começou a se debater, tentando se livrar daquele abraço repulsivo.

— Como ousa? — gritou, assim que o afastou — Solte-me, já!

— Minha querida... — ele suplicou, mas uma voz grave ecoou atrás dos dois.

— Desculpem-me se estou interrompendo esta cena tão tocante.

Conforme os braços do marquês afrouxaram, ela conseguiu se desvencilhar dele.


Observou-o se virar e ajeitar os cabelos e o colete, para encarar o recém chegado duque
de Salvoire.

— Você não tem bom senso? — indagou o furioso marquês.

— Estou apenas cumprindo ordens — respondeu Jarnac, em um tom capaz de


causar arrepios. — Maria Stuart está à sua procura, lady McCraggan.

— Então devo ir vê-la nesse mesmo instante — disse ela, com presteza e alívio.

— Se me permitir acompanhá-la mostrarei onde a jovem rainha a espera.

Ao acabar de falar, o duque se virou e começou a caminhar, parando apenas por


um segundo para se virar e lançar um olhar ameaçador na direção do marquês.
Desconcertada, Sheena o acompanhou pela trilha, demorando um pouco até que
conseguisse falar.

— Não sei o que deve estar pensando a meu respeito, mas não pretendia estar com
o marquês naquele lugar e sim sozinha. Saí da festa para me afastar da multidão e achar
um local quieto para ficar...

— Lady McCraggan, não precisa se justificar para mim. O tom de descaso dele a
levou a parar a frase no meio.

Não havia motivo racional para tanto, mas ela sentiu os olhos se encherem de
lágrimas.

Ao se aproximarem da festa, Jarnac seguiu em direção ao palácio, surpreendendo-a


ao conduzi-la para um dos corredores da ala diplomática. Entraram em um grande e
luxuoso escritório, onde havia uma pintura dele próprio pendurada em uma parede.

— Este é meu escritório. Sente-se, por favor.

— Mas... E a rainha? — questionou ela, enquanto se sentava na cadeira que lhe


fora oferecida.

— Maria Stuart perguntou mesmo por você, o que me fez notar sua ausência. Mas
antes que vá atendê-la, preciso falar sobre algo muito importante.

Enquanto falava, ele abriu uma caixa de madeira, revelando uma pilha de
envelopes. O que encabeçava a pilha foi reconhecido de imediato por Sheena, que disse.

— A carta que escrevi a meu pai!

— Sim, sei disso. Esse é o assunto sobre o qual devemos tratar.

— Mas por que ela está em seu poder? Disseram-me que...

— Que a carta chegaria à Escócia em segurança, sem ser aberta — falou Jarnac
concluindo a frase para ela — Acontece que o homem que foi incumbido dessa tarefa tem
estado sob vigilância já faz algum tempo, sob suspeita de estar a serviço da Espanha. Ao
sair do palácio com a correspondência, ele ia direto se encontrar com o embaixador
espanhol, que lia todas as cartas antes de voltar a selá-las e mandar o mensageiro seguir
caminho.

— Um espião espanhol! Então ele é um inimigo?

— Sim, isso mesmo. Embora tenhamos assinado uma trégua em janeiro último, a
Espanha ainda é inimiga da França e, por conseqüência, da Escócia.

— Mas eu nunca imaginaria isso.

— Sim, é claro que você não sabia. Mas, nesse meio tempo, sua carta me foi
trazida junto com todas as outras. Acho que devo dizer que já li seu conteúdo.
— Como ousou ler sem pedir minha permissão? — indagou Sheena, indignada —
Já não bastava minha correspondência haver sido lida por um espião inimigo?

— O fato de as cartas estarem nas mãos de um agente infiltrado me obrigou a


investigar uma a uma, para saber até que ponto os remetentes estavam envolvidos com o
suspeito. Descobrimos planos contra meu país em algumas delas.

— Acha que eu seria capaz de fazer algo assim?

— Nos dias de hoje, existem muito poucas pessoas em quem confiar — murmurou
ele, arqueando uma das sobrancelhas — Como você mesma deve ter descoberto agora há
pouco.

Sheena percebeu que havia certo desdém no tom dele, ao se referir ao marquês.
Isso a fez enrubescer.

— Já tentei explicar que não convidei aquele homem para me acompanhar ao


jardim. Também não aprovo a postura dele, mas não tive força suficiente para me
desvencilhar tão depressa quanto desejava ter feito.

— Sim, isso é compreensível.

Ao ver a expressão cínica de Jarnac, ela ficou de pé de maneira abrupta.

— E muito confortável julgar os outros, não? Mas não é nada fácil que uma pessoa
vinda de fora se adapte ao comportamento dos cavalheiros desta corte.

Em resposta, o duque pegou a carta dela, antes de falar.

— E mesmo assim vejo que demonstrou certa predileção pelo marquês. Vi que o
descreveu com termos bastante amáveis, enquanto eu mesmo não fui tão afortunado.

— Esse texto foi escrito apenas para os olhos de meu pai, e de mais ninguém! E se
citei o marquês em "termos amáveis", como acabou de colocar, era porque não o conhecia
tanto quanto agora.

— Espero que, a partir de hoje, saiba com quem está lidando. Seria sábio ficar
alerta com relação a ele — aconselhou o duque — Garanto que não é o tipo de companhia
que deveria optar em ter por perto.

— Acho que ainda não tive o privilégio de escolher com quem devo ou não me
relacionar neste palácio, mas mesmo assim, Milorde, reservo-me o direito de escolher
quem terei como amigo ou não.

— Vejo que não tenho a sorte de ser um dos escolhidos para esse seleto grupo de
pessoas.

— Digamos que nunca obtive, de sua parte, a menor demonstração de amizade —


retorquiu Sheena, em tom irritadiço.
— Talvez isso seja verdade e eu não tenha me portado com a devida amabilidade.
Mas como você mesma colocou em sua carta, tenho me especializado em ser um
"formidável inimigo".

Lembrando-se das palavras que escrevera, Sheena se sentiu ainda mais


desconfortável. Queria continuar discutindo, mas a postura dele a impedia.

Em vez do cínico com quem costumava se confrontar tinha diante de si um


cavalheiro sincero, filosofando sobre si mesmo.

Diante do silêncio dela, Jarnac caminhou até a janela e então se virou para encará-
la, antes de prosseguir.

— Como posso explicar a vida da corte a uma criança de outro país?

— Não sou mais criança.

O sorriso dele tornou sua expressão surpreendentemente terna e vivaz, parecida


com a de um adolescente.

— E necessário ser muito jovem para se querer ser mais velho. Estou com vinte e
seis anos, mas posso me lembrar muito bem de dizer o mesmo que você quando tinha a
sua idade, e de me enfurecer quando riam de mim. Por favor, vamos esquecer o que
aconteceu e começar outra vez. Permite-me dizer uma ou duas coisas que acho
necessário que saiba?

— O que seria? — indagou Sheena, com ar de suspeita.

— Há um velho provérbio que afirma. "Cuidado com os presentes dos gregos". No


lugar de "gregos", substitua por "mulheres coroadas".

— Está querendo dizer, então, cuidado com a rainha? E isso?

— Deve interpretar por si mesma o que acabei de falar — disse ele, com suavidade
— Mas deixe-me falar apenas mais uma coisa. afaste-se do marquês de Maupré. Não o
ouça. Evite-o a todo custo.

— O que está insinuando? O que tem contra o marquês?

— Ele disse que está apaixonado? Que a está amando? — indagou Jarnac, com
total ceticismo — Por sua expressão, posso ver que sim. Bem, não acredite nele. O
marquês só é capaz de amar a si mesmo. Todos seus esforços visam apenas satisfazer
suas ambições pessoais. E estamos falando de um homem muito ambicioso.

O escárnio no tom dele era tanto que Sheena começou a argumentar, sem nem
mesmo desejar fazê-lo.

— Até mesmo o marquês deve ser capaz de, eventualmente, dizer a verdade.

— Não seja tola. Ele não a ama e jamais amará.


— Como ousa me chamar de tola? Nunca lhe dei tal intimidade! Além disso, por que
eu deveria acreditar no que me diz? Está falando como se tivesse meu bem-estar em
mente, mas lembro-me muito bem do que desejou que houvesse me acontecido, assim
que cheguei. Não sei qual a razão obscura que o leva a se envolver comigo no momento,
pois já me insultava antes mesmo de me conhecer. Desde que desembarquei neste país,
tenho sido alvo de suas críticas e de seu cinismo. Não será agora que começarei a lhe dar
ouvidos, Milorde.

Sheena viu-o se alterar pela primeira vez, como se as palavras o houvessem


abatido.

— Ora, sua tola! Está distorcendo tudo o que estou dizendo. Pense o que quiser a
meu respeito, mas lembre-se de que o marquês de Maupré não merece confiança. A forma
como ele chegou à posição que ocupa hoje na corte, faz com que todas as pessoas
decentes do reino o espezinhem e o evitem. Não espero que entenda do que estou
falando, mas vejo-me obrigado a avisá-la para se manter distante dele. Tudo o que
ganhará por se aproximar será decepção, dor e mágoa.

— E por que eu deveria acreditar nisso tudo? Como saber se o que me diz não é
mentira?

— Ouça-me, Sheena! Sei do que estou falando, e você não sabe nada sobre este
lugar. Não consegue nem mesmo se manter afastada do perigo.

— Tudo o que tenho a dizer é que estou cansada de seus insultos. Acho que vou
procurar o marquês agora mesmo e contar tudo o que acabou de dizer. Seria mais sensato
pedir a ele para ser meu amigo e para me proteger de tipos como você.

— Não fará nada disso!

— Farei o que quiser, e sua opinião não vai interferir em minhas decisões.

Como se seu autocontrole faltasse por um momento, Jarnac se inclinou na direção


dela e a segurou pelos ombros, como se faz com uma criança histérica, que não quer
obedecer nem parar para ouvir.

— Ouça-me, garota! Se pensa que pode brincar com fogo e não se queimar está
muito enganada. Se repetir uma só palavra do que foi dito aqui, as conseqüências serão
lamentáveis. Não para mim, mas para você mesma, é claro. Já a avisei de que está em
perigo. Se não me der crédito, só Deus sabe o que a espera.

— Solte-me — murmurou Sheena, sem conseguir se libertar daquelas mãos fortes.

— Farei com que entre um pouco de bom senso em sua cabeça, nem que seja a
última coisa que eu faça!

Com um movimento brusco e repentino, ela se soltou.

— Seu descontrolado! Bruto! Nunca mais faça isso, pois eu não admito tal abuso!
— Claro que não. Estou certo de que gosta apenas daqueles que a cortejam com
palavras doces, determinados a usá-la como um objeto. Será que não vê que aqueles que
tentam agradá-la estão apenas querendo ganhar algo para si mesmo? Tudo o que esses
cortesãos corruptos dizem possui duplo sentido. Há sempre um motivo escuso por trás de
suas atitudes.

— Pare! Não lhe darei ouvidos. Vou procurar o marquês e contar sobre sua intenção
de difamá-lo.

Sheena se virou para sair, mas Jarnac a segurou pelo pulso, puxando-a de volta.

— Pois bem. Já que é o que quer fazer, então vá. Vejo que me enganei. Você é
igual às outras mulheres daqui, que querem um homem apenas pela promessa de ter
ardentes noites de amor. E só nisso que pensa, não? Apenas no desejo insaciável de
encontrar paixões vulgares e insinceras.

— Pense o que quiser, mas me deixe partir!

— Então vá! Ofereça seus lábios e seu coração a ele, com toda sua confiança. Logo
descobrirá a que isso a levará e quanto se magoará.

— Solte meu braço.

— Mas antes de ir se deliciar com os beijos do marquês, por que não experimenta
um dos meus? Talvez descubra que posso agradá-la ainda mais do que ele.

Antes que Sheena pudesse respirar, o duque a puxou para si e se apoderou de


seus lábios, beijando-a com uma mistura de brutalidade e de fervor, capaz de fazer seu
sangue esquentar nas veias.

Por um momento, antes de se render, ela o fitou diretamente nos olhos, e viu uma
chama, cuja origem ela não sabia explicar. Um brilho diferente, ardoroso, como se a alma
dele estivesse prestes a se unir à sua. O beijo foi se tornando mais suave e envolvente,
mas antes que pudesse se tornar apaixonado, Jarnac interrompeu o contato e se afastou
um pouco. Ao senti-la cambalear, segurou-a com cuidado. Afastou-se e foi até a janela,
ainda ofegante.

Os dois haviam sido afetados. Nenhum deles esperava reagir ao outro daquela
maneira. Tanto que demorou um bom tempo até que ela percebesse que não estava mais
sendo mantida ali à força.

— Vá falar com o marquês, se é isso o que quer — disse ele, por fim, olhando para
fora, sem encará-la.

A voz dele soou em outro tom, já sem irritação nenhuma. Havia apenas amargura
em suas palavras. Quando conseguiu se mover, Sheena caminhou para fora, sem se sentir
agredida, e sem pressa. Lançou um último olhar na direção dele, debruçado no parapeito.
Admirou os ombros largos e se sentiu intrigada. Como podia não estar mais alterada? Sem
compreender direito o que se passava em sua mente, deixou a sala com passos lentos,
com a nítida impressão de que estava em meio a um sonho. Mas se este era bom ou ruim,
parecia impossível dizer.
CAPITULO VIII

Sheena passou uma noite inquieta e mal dormida. Por mais que tentasse manter os
pensamentos em ordem, o beijo de Jarnac não saía do seu pensamento. Quando o dia
amanheceu, levantou e se arrumou. Foi então até a janela para observar a paisagem. O ar
quente que soprava em sua face fez com que se lembrasse do ar frio do norte da Europa.
Ao mesmo tempo em que sentia saudade de casa, considerava triste a idéia de partir.

Aquele tipo de confusão era apenas um reflexo da inversão de valores à qual estava
sendo submetida. Seu pai sempre ensinara que não havia meio termo, em se tratando de
honra e de fé. Mas, na corte francesa, tudo era baseado em meios termos. Nesse caso,
como distinguir o certo do errado?

Para completar, achara que o beijo que recebera do marquês fora revoltante e o do
duque, por outro lado, indefinível. Não sabia dizer se adorara ou se odiara o que havia
acontecido. "Preciso sair daqui", pensou. "Se eu for para o campo, talvez consiga
raciocinar com clareza."

O olhar de Jarnac era uma memória difícil de ser ignorada e impossível de ser
esquecida. Decidida a fazer algo para se acalmar, saiu rumo ao quarto de Maria Stuart,
para avisá-la de que pretendia sair para cavalgar sozinha naquela manhã.

Um pajem a interceptou, dizendo.

— Lady McCraggan? Vossa Majestade, a rainha da Escócia, pediu para não ser
importunada nesta manhã. A festa acabou depois da alvorada, e só agora todos se
recolheram para dormir.

— Oh, sim, está bem. Por favor, providencie um cavalo para mim. Pretendo
cavalgar pelo bosque.

— Claro Milady. Como desejar. Para que horas?

— Hum, acho que as oito estará bem. Tomarei o desjejum primeiro.

— Considere feito — disse o pajem, em tom servil — Pedirei para que levem um
cavalo ao portão sul.

— Obrigada.

Sheena tomou o desjejum, voltou para se trocar e colocou a roupa de montaria que
fora enviada pela rainha. Por algum motivo, Catarina mandara confeccionar aquele traje
nas mesmas cores das roupas da duquesa de Valentinois. Embora parecesse estranho
vestir-se daquela maneira, era o único que havia à sua disposição. Como também tinha os
cabelos avermelhados, dava a impressão de que estava imitando Diane de Poitiers.
Ao se olhar no espelho, lembrou-se das brincadeiras de Maria Stuart, dizendo que
gostava de ser diferente e chamativa, e que sua maior diversão era saber que, naquela
corte, as únicas com cabelos avermelhados eram ela mesma, a duquesa e, naqueles
últimos tempos, Sheena. Dizia que, se voltasse à Escócia, tudo perderia a graça porque
havia muitas mulheres ruivas por lá.

Quando se dirigiu ao portão sul, ainda antes das oito, Sheena ficou sabendo da
chegada de um grande adivinho, chamado Nostradamus, que havia sido contratado para
orientar Catarina de Medici, ao lado de tantos outros astrólogos, cartomantes, e toda sorte
de necromantes. Pela empolgação de todos que falavam nele, deveria ser alguém muito
famoso na França. Parecia que o tal homem era ainda mais renomado do que os irmãos
Ruggieir, conselheiros oficiais da rainha.

Como achava tudo aquilo insensato, não se conformava da própria soberana


daquele país acreditar em tais tolices. Mas a chegada de sua montaria a fez esquecer-se
da conversa banal, que estava tendo com uma das damas de companhia de Maria Stuart,
que por ali passava no momento. Só o que a incomodava era saber que não poderia sair
completamente sozinha, pois um pajem sempre acompanhava, de longe, qualquer pessoa
que saísse a cavalo. Era uma medida de segurança, para o caso de algo errado acontecer,
mas também impedia que se pudesse ficar à vontade.

Forneceram um cavalo branco como a neve. A sela era forrada de veludo preto e
bordada com o brasão da Escócia. Foi um prazer enorme saber que nem todos haviam
esquecido que a comitiva de Maria Stuart era formada por representantes de outro país.
Orgulhava-se em ver aquele símbolo em todos os pertences da jovem rainha, e ficou feliz
de tê-lo em sua montaria.

Assim que saiu pelo portão, ouviu o som de um galope a acompanhá-la. Era o
pajem que a seguiria todo o tempo, mesmo que de longe. Decidida a ignorar o detalhe de
que não estava só, começou a cavalgar depressa, sentindo o vento no rosto e o sol na
lateral da face. Não demorou a chegar a campo aberto, em uma área de mata nativa, fora
do bosque do palácio. Tentou fingir que estava nos campos da Escócia, onde costumava
passear apenas na companhia da natureza e de Deus.

Fazendo o animal ir mais e mais depressa, tentou deixar os pensamentos para trás.
Correr daquele modo a ajudava a se sentir aliviada. Atiçando um pouco mais o cavalo,
chegou a uma alta velocidade. De repente, ao ouvir gritos atrás de si, virou o rosto para
olhar para a trilha por onde seguira. O pajem estava desmontando para verificar a pata do
animal.

Sheena não parou ao sinal dele, pois não queria perder a oportunidade de estar só.
Em vez disso, fez seu cavalo correr ainda mais, e se deliciou com a sensação de
liberdade. Nada poderia pará-la. Quando as imagens da cena do beijo vinham à mente, a
sensação de velocidade a ajudava a ver com mais clareza.

Conseguiu concluir também que Jarnac parecia mesmo sincero, mas o ardor no
olhar dele permanecia um mistério. Ao mesmo tempo, sentiu em si a confirmação de que o
marquês não era confiável. O discernimento entre certo e errado parecia funcionar melhor,
enquanto estava longe daquele palácio cheio de corrupção e de falsidade.
Ela não sabia ao certo quanto tempo havia se passado, mas o cavalo estava
começando a demonstrar sinais de cansaço. Como sempre adorara animais, e não
gostava de vê-los sofrer, reduziu o passo a um trote, e então o deixou caminhar devagar.

Ambos estavam exaustos. Só então Sheena percebeu que estava ofegante. Mas,
ao mesmo tempo, sentia-se aliviada e calma. A região era cheia de árvores frondosas, em
meio a uma mata densa. A estrada havia acabado, e já estava em uma estreita trilha de
grama pisada. Finalmente sentiu-se em paz. Desde que chegara à França, não havia
ficado só. Estava sempre com alguém. Até mesmo em seu quarto, a privacidade lhe
escapava. Maggie sempre tinha algo a fazer por perto, e começava a contar as fofocas,
que havia descoberto nas horas anteriores.

Conforme Sheena avançava, a mata se tornava mais densa. O animal foi fazendo
as curvas por conta própria, e ela não se incomodou. No íntimo, estava indiferente quanto
ao local onde se encontravam. Com certeza, quando o animal sentisse fome ou sede,
voltaria para a cocheira.

Depois de algum tempo, já com o sol alto no céu, começou a sentir que era hora de
retornar. Maria Stuart poderia sair à sua procura, e não seria bom deixá-la esperando.
Ponderou se deveria voltar pelo caminho por onde viera ou se tentaria achar outra trilha. A
segunda alternativa pareceu mais interessante, pois demoraria mais para chegar ao
palácio. Pegando o acesso mais estreito na bifurcação seguinte, começou a ir em direção
ao norte, onde deveria encontrar a estrada principal.

Percorridos alguns poucos quilômetros, ouviu uma voz em meio à mata. Decidida a
pedir informações, seguiu na direção de onde vinha o som. Encontrou uma clareira onde
havia uma casa, um galpão e um bando de homens simples sentados à grama. Ouviam a
outro senhor, mais bem vestido, que lhes falava.

Pareciam lenhadores. Aquele que estava sentado no tronco dava a impressão de


ser uma espécie de pregador. Sheena saiu da trilha e perdeu a camuflagem da mata. Os
homens a avistaram de imediato e ficaram calados, paralisados, observando-a. Pela
aparência, fazia muito tempo que aquelas pessoas não tomavam banho nem compravam
roupas novas. Todos estavam com a barba comprida e maltratada.

Decidida a não se intimidar pela primeira impressão, aproximou-se devagar. Dirigiu


ao homem que estava pregando, enquanto os outros, ainda emudecidos, fitavam-na com
ar estupefato.

— Desculpe-me, Milorde, mas poderia me indicar que caminho devo seguir para
retornar ao palácio? Acho que me perdi.

Não houve resposta imediata, mas, de repente, o pregador começou a gritar.

— E ela! E ela! Ela foi enviada até nós. O Senhor a entregou em nossas mãos!

Os homens, como se estivessem obedecendo a um comando, ficaram de pé e


cercaram o cavalo. Todos começaram a tocá-los, a ela e ao animal, como se estivessem
tentando se convencer de que não estavam tendo alucinações.

Enquanto isso acontecia, o pregador continuava a gritar.


Só então Sheena percebeu que ele era um homem insano, e tentou se afastar.

— Por favor, soltem o animal — pediu ela — Estou ansiosa para retornar ao palácio.
Digam-me apenas em que direção devo seguir.

Em lugar de responder, todos começaram a falar ao mesmo tempo. Suas vozes


denotavam excitação, e o dialeto estranho que usavam dificultava o entendimento do que
diziam. Só o que era compreensível eram as exclamações que todos repetiam.

— Ela nos foi enviada! E um sinal! Chegou a hora!

Percebendo que estava em algum tipo de apuro, e que aquelas pessoas tinham
problemas sérios, Sheena tentou virar o animal para voltar pelo caminho por onde chegara.
Mas os homens estavam segurando o cavalo, mantendo-o imóvel.

— Soltem-no, por favor!

Começando a ficar desesperada, pois a estavam mantendo presa, ela tentou puxar
a rédea com mais força e ameaçou bater nas mãos deles com o chicote de montaria.

O pregador o tomou dela com um gesto brusco, subiu em um toco de árvore, para
ficar mais alto. Ergueu na mão o pequeno açoite, cujo cabo era cravejado de brilhantes.

— Vejam o que devemos fazer com ela — gritou o homem, quebrando o cabo do
chicote de montaria — Isso mesmo. Acabemos com a bruxa que vem tentando destruir a
França. Só nós podemos salvar o rei da feitiçaria dessa maldita!

— Ouçam! — pediu Sheena, começando a entendeu o que se passava na mente


daquele louco — Isso é um engano! Não sou a duquesa de Valentinois.

Houve um aumento no burburinho e, de repente, os homens a arrancaram à força


da sela, empurrando-a para outro lado, segurando seus braços para trás.

— Levem a bruxa! — berrou o pregador.

— Escutem! — ela suplicou — Não sou a duquesa. Meu nome é Sheena


McCraggan. Sou cidadã escocesa, e vocês não têm o direito de me tratar assim.

Ao acabar de falar, percebeu que a euforia os estava impedindo de ouvir. Para seu
horror, o agitador estava organizando ainda mais o grupo, instruindo-o aos gritos.

— A meretriz nos foi entregue por meios divinos! A bruxa que enfeitiçou e
escravizou o rei é agora nossa prisioneira. Aqui está uma mulher que vendeu a alma ao
diabo. O que devemos fazer? Não acham que temos o direito de castigá-la?

— Sim! Sim! — bradou o bando, em uníssono.

— Podemos açoitá-la e humilhá-la para fazê-la pagar por seus pecados, ou


podemos dar o mesmo tratamento, que nossos companheiros que lutavam pela liberdade,
receberam dela quando foram capturados. O que aconteceu a eles? Pergunto a vocês,
irmãos, o que essa bruxa fez com nossos amigos?
— Essa maldita os queimou vivos! — respondeu um dos presentes.

— Pois façamos o mesmo com ela — ordenou o pregador — Vamos fazê-la sentir o
mesmo tormento que impingiu aos outros. Oremos, enquanto ela estiver queimando, para
que o rei se liberte do feitiço demoníaco dessa bruxa.

Com um movimento súbito, Sheena se libertou do homem que a segurava e


segurou o agitador pelo braço, chamando-lhe a atenção e dizendo.

— Olhe para mim, seu tolo! Sou muito jovem. Tenho apenas dezessete anos! Como
pode acreditar que eu seja uma mulher que já tem muito mais de cinqüenta?

— O demônio a fez ficar bela e jovem — respondeu o louco, encarando-a com ar


insano — Quero ver se ele pode salvar sua vida agora.

Ao perceber que ele era um fanático, e que não havia bom senso na mente dele, o
pânico quase a dominou por completo, levando-a a gritar.

— Não! Isso é um engano!

O pregador agitou o braço para se desvencilhar dela, e outros dois homens a


agarraram com força. Erguendo a mão e apontando para o bando, ele disse.

— Vocês optaram por viver de acordo com o que é bom e correto. O Senhor foi
generoso e a enviou para nossas mãos, em um ato divino. Mas devemos ser rápidos, ou o
demônio a quem essa bruxa se associou pode vir resgatá-la.

Ao mesmo tempo em que a empurravam para o lado, os homens evitavam ficar


próximos dela, como se temessem ser contaminados.

Ao ouvi-los orar, agradecendo a Deus pela graça de ter a chance de queimá-la,


Sheena soube que não haveria meio de convencê-los de que não era a duquesa de
Valentinois.

Empilharam lenha ao pé de um tronco de açoite, e então a levaram para lá. Um


homem enorme arrancou a parte de cima do seu traje, pois a duquesa ordenava que todos
que fossem queimados estivessem seminus. Com os seios expostos, foi adicionada a
vergonha ao medo que já sentia. Amarraram-na sobre a lenha, pendurando-a ao poste.

Naquele meio tempo, o pregador orou de maneira incessante, rogando pela


libertação do rei.

— Podemos queimar a bruxa? — indagou um dos homens.

— Sim. O Senhor nos deu permissão para enviá-la — afirmou o insano líder do
grupo, dando a entender que falara com o Criador — Tragam-me uma tocha!

Após colocar fogo nas bordas da lenha, o pregador voltou a se ajoelhar e a olhar
para o céu, recomeçando a orar. Alguns o acompanharam no mesmo instante, enquanto
outros gritavam em coro.

— Queime! Queime! Queime!


Sheena olhou para baixo e viu que as chamas logo a alcançariam. Voltando o rosto
para cima, fechou os olhos e começou a fazer sua própria prece. Pedia que Deus desse
forças para não fraquejar diante da dor. Não queria demonstrar fraqueza. De repente,
sentiu uma onda de desespero, mas a imagem do rosto de Jarnac surgiu em sua mente.
Naquele momento, sem saber o motivo, rogou ao céu para que ele viesse salvá-la.

Logo as labaredas começaram a tocar seus pés, que já haviam sido descalços
pelos homens. Ao mesmo tempo, a oração e o burburinho foram interrompidos, pelo grito
desesperado de um homem que se aproximava correndo, aos berros.

— São eles! Estão Chegando!

Pouco depois, o ruído do galope de muitos animais se fez ouvir. A fumaça densa
impedia que ela visse o que estava acontecendo, pois seus olhos ardiam muito. A dor em
seus pés era tão intensa, que a estava impedindo de compreender o que ouvia. Mas o som
de espadas golpeando e os ecos de gritos de dor pareciam muito reais, para serem meras
alucinações.

De repente, ouviu alguém correndo em sua direção, soltando um grito horroroso.


Vencendo o ardor que a fumaça estava causando, e ignorando a dor em seus pés, Sheena
abriu os olhos e viu o pregador correndo em sua direção, com uma faca na mão. Um
homem a cavalo se interpôs diante dela e atravessou o maníaco com a espada. Embora
não tivesse visto o rosto dele, ela sabia que era Jarnac.

O duque desceu de sua montaria e chutou as toras, enquanto outro de seus


homens cortava as cordas que a prendiam ao tronco de açoite. O casaco de veludo de
Jarnac, com o brasão do ducado de Salvoire, foi colocado sobre seu torso, escondendo
sua pele nua.

Ao se ver nos braços dele, Sheena sentiu-se segura. Com os olhos fechados, e
sentindo-se fraca, foi colocada com gentileza na frente dele, sobre a sela do belo corcel
negro.

Cavalgando para longe da batalha que seus homens travavam contra os


arruaceiros, ele a ajeitou junto a si, murmurando palavras de conforto e carinho.

— Calma. Está tudo bem. Você vai ficar boa. Já acabou. O sofrimento passou.

Ao ouvir aquilo, toda a tensão reprimida foi vertida em alívio, choro e tremor.
Acomodada naqueles braços fortes, Sheena descobriu que estava se sentindo mais
segura do que nunca se sentira antes, em toda sua vida. Era como se a dor deixasse de
ser tão importante naquele momento. Até então, jamais imaginara que o colo de um
homem fosse tão confortador.

— Está tudo certo agora, Sheena — murmurou Jarnac, mais uma vez — Graças a
Deus, você está salva!
CAPITULO IX

Sheena se encontrava com os olhos fechados, deitada em um divã. Já estava


conseguindo respirar normalmente. O médico havia tratado de seus pés queimados, e eles
estavam envoltos em uma bandagem macia, cobertos por um lençol com o brasão da
Escócia.

A lembrança do que acontecera pouco antes parecia um horrível pesadelo. Ela


estivera mesmo à beira da morte. Até então, jamais achara a vida tão maravilhosa. Nunca
pensara que poderia morrer, e assim perder o incrível dom da vida.

— Estou viva!

Havia repetido aquela frase em sua mente milhares de vezes desde que fora
resgatada. Mas naquele momento falou em voz alta, pois Diane de Poitiers respondeu.

— Sim, graças a Deus.

Por um instante, Sheena se sentiu tensa. Ficou magoada por haver sofrido tanto por
ser confundida com a duquesa. Mas precisava encará-la.

Ao abrir os olhos, notou que a mulher estava se aproximando do divã, com o rosto
molhado de lágrimas. Segurando as mãos entre as suas, ela disse.

— Oh, minha criança, como poderei demonstrar quanto lamento por haver sido
submetida à tamanha dor por minha causa?

— Ora, não foi... Não foi nada, Milady.

— Pelo contrário. Isso foi tudo! Foi um erro grave, e também uma grande vergonha.
Estamos falando da sua vida, quase tirada no lugar da minha. Eu e o rei estamos nos
sentindo humilhados, por isso ter acontecido com uma hóspede tão admirável, que veio de
outro país acreditando que encontraria segurança sob nosso teto. Se não fosse o duque de
Salvoire, só Deus sabe o que teria acontecido.

— O duque?

— Isso mesmo. Não sabia que foi ele quem a salvou?

— Sim. Lembro-me de que foi ele quem me resgatou, quando as chamas


começaram a queimar meus pés — um tremor percorreu seu corpo — mas não entendi o
que aconteceu.

— Ele estava lá fora, cavalgando com os amigos, quando avistou seu pajem
voltando a pé, trazendo o cavalo pela rédea. Ao ser questionado, o homem disse que não
podia acompanhar uma "lady escocesa, que cavalgava como o vento".

— Oh... — murmurou Sheena, sentindo-se desconcertada.


— Qualquer outra pessoa não daria importância ao fato, mas a intuição do duque,
que já salvou a vida de muitos durante as batalhas, trabalhou hoje para salvar a sua.

— Ele disse haver sentido "nos ossos" que havia algo errado. Reunindo os amigos,
contou algo que nenhum de nós sabia ainda. Havia rumores de que um bando de
reformistas se instalara na floresta ao sul do palácio, montando ali o esconderijo onde
planejavam seus ataques contra a boa fé.

— O duque sabia da presença daqueles homens?

— Na verdade, não. Era apenas uma informação não oficial, a respeito de um


lenhador que não era digno de confiança. Uma pequena fofoca, dessas que ecoam pelo
palácio sem chamar a atenção de ninguém. Mas ele se lembrou.

— Entendo.

A duquesa se sentou na beirada do divã e acariciou as mãos de Sheena com ainda


mais delicadeza.

— Agradeço ao céu, de todo meu coração, que o duque tenha chegado a tempo.
Até já enviei um presente a Notre Dame e outro ao Convento das Filhas de Deus, para
expressar minha gratidão por seu resgate — disse Diane, curvando-se e passando a mão
pelos cabelos dela — Nem me atrevo a dizer que imagino o que deve ter passado. Seria o
mesmo que ofendê-la, pois só quem esteve na sua situação pode conceber tal horror.

— Fico feliz que não tenha sido a senhora, Milady — disse Sheena, espantando-se
por sentir o desejo sincero de falar aquilo.

— Duvido que eu possa ser tão corajosa quanto você. O duque contou que a
encontrou com o rosto erguido em direção ao céu, sem soltar nenhum grito nem chorar,
mesmo com as chamas queimando-lhe os pés. Quantas pessoas seriam capazes de
enfrentar a morte com tanta bravura?

— Na verdade, eu estava apavorada, Milady. Desesperada. Aqueles homens eram


loucos.

— Sim, completamente. O problema é que a doença não está apenas na mente


deles, mas em suas almas — falou a duquesa, levantando-se e se dirigindo à janela,
demonstrando pela primeira vez uma expressão cansada e sofrida — Eles queriam me
matar, e talvez fosse melhor que houvessem conseguido. Sempre roguei para que esses
agitadores não chegassem aqui e para que não tirassem a paz de nossos gentis
camponeses. Mas em todos os lugares aonde eles vão, criam problemas e incitam
violência.

— Isso é muito triste. Essas pessoas a perseguem há muito tempo?

— Sou o bode expiatório deles. Se eu não existisse, arrumariam outro alvo para sua
insanidade. Essas pessoas querem minar a ordem e a monarquia. Eles precisam ser
eliminados.

Ao ver o tom inflamado e as lágrimas ressurgindo nos olhos de Diane, Sheena


perguntou.
— E quanto aos homens que tentou me matar, o que acontecerá com eles?

— Os que sobreviveram ao ataque do duque serão queimados.

— Oh, não. Isso não, por favor!

— Precisa ser assim. Não apenas pela tentativa de assassiná-la, pensando que se
tratasse de minha pessoa, mas porque estão lutando contra a fé que cultivamos que é
nossa única esperança de salvação.

Naquele momento, falando daquela forma, a duquesa parecia tão fanática quanto o
pregador dos lenhadores. Seria possível que o único caminho conhecido pela humanidade
era o da violência e o da morte?

Por que não optar por algo mais harmonioso e ameno, que pudesse dar uma
chance às pessoas?

Mesmo não concordando com o que aconteceria, Sheena sabia que deveria ficar
calada, pois pessoas fanáticas não ouviam ninguém a não ser elas próprias.

— Vejo que está bastante cansada — falou Diane, fitando-a com atenção —
Desculpe-me por ter falado tanto, mas o que aconteceu a você me deixou muito abalada.
Nem se compara ao que você deve estar sentindo, mas também estou em choque.

A duquesa se despediu beijando-a na testa, e então se retirou. Enquanto pensava


no que acabara de ouvir, o cansaço e os remédios fizeram Sheena cochilar.

Quando voltou a si, a porta do aposento estava abrindo outra vez.

Era Maria Stuart, seguida pelo grupo de adolescentes, que a acompanhava por todo
o palácio. A jovem rainha se aproximou e colocou um maço de cravos sobre o lençol aos
pés dela.

— Oh, que bom que está acordada. Sua dama de companhia ameaçou nos dar as
mais severas punições se a incomodássemos. Mas que ótima guardiã você arrumou.
Sabia que eu adoro ver uma escocesa enfurecida? Mas, falando sério, nós nos
preocupamos muito com seu sumiço. Que aventura assustadora e excitante deve ter sido!
Ser queimada na fogueira e sobreviver... Poderá contar essa história por toda a vida!

— Esta é uma experiência que vou me esforçar para esquecer — disse Sheena,
com um sorriso singelo.

— Agora nos conte como se sentiu — exigiu Maria Stuart — Por acaso ficou
aterrorizada? Enquanto sentia os pés queimando, foi tomada por uma espécie de frenesi,
por saber que estava prestes a chegar ao paraíso?

— Lamento, mas não creio que possa definir com exatidão o que senti. Não ainda.

— Oh, mas que estraga prazeres é você! Já imaginei inúmeras vezes como seria
encarar a morte, tanto na fogueira quanto na frente do carrasco. Até já sonhei com a cena
de caminhar até lá, colocar a cabeça no apoio e observar os olhos dele me fitando, por trás
do capuz.
— Não diga isso — protestou Sheena, sentindo um arrepio de horror.

Os acompanhantes da jovem soberana riram.

— Está bem — concordou Maria Stuart — Para animá-la, arrumamos uma pequena
surpresa.

— E mesmo? Do que se trata?

— Conseguimos marcar uma visita com o mais novo adivinho da rainha Catarina, o
tal de Nostradamus. Ele virá até aqui para conversar comigo. O que acha disso?

— Acho que é um desperdício de uma bela tarde, que poderia ser aproveitada
fazendo algo muito mais produtivo, Majestade.

— Essa é mesmo a minha Sheena — falou a rainha — Sempre com uma visão
prática de tudo, mostrando-nos que somos todos avoados. Bem, desta vez não será do
jeito dela. Estou mais do que ansiosa para ouvir as predições desse tal profeta.

— Eu também — disse uma das damas de companhia.

— Todos nós estamos — confirmou outra delas.

Não demorou a que uma batida à porta se fizesse ouvir.

— E ele! — festejou Maria Stuart — Vamos, abram. Deixem-no entrar.

No instante seguinte, um homem de meia-idade, magro e com olheiras profundas


entrou no quarto. Ele se curvou e a jovem rainha ofereceu a mão para que ele a beijasse.

— Lorde Nostradamus, sua fama o precede. Ouvimos falar que suas profecias
nunca falham, e que sua visão do futuro é a mais precisa do mundo.

— Isso me lisonjeia muito, Majestade.

— Diga-nos nossos destinos — pediu a adolescente — Fale sobre o que vê para


nós.

O profeta sorriu.

— Vocês são todos muito jovens, e o futuro parece estar muito distante. Mas o
tempo passa depressa, e tudo se tornará presente e então já será passado.

— Conte o que vê para minha vida. Usarei a coroa tripla? Serei mesmo a rainha da
França, da Escócia e da Inglaterra?

Nostradamus a fitou longamente, então atravessou o quarto e colocou as coisas que


trazia sob o braço em cima da escrivaninha de Sheena, dizendo.

— Se Vossa Majestade permitir...

— Sim, claro. Sente-se.


Após espalhar os papéis diante de si, ele começou a fazer inúmeras perguntas, e
anotou tudo o que ouviu. Depois fez algumas notas e disse.

— Continuará linda e os homens sempre a amarão, mas sua beleza não lhe trará
felicidade. O ciúme será sempre um inimigo amargo, principalmente quando se tratar de
certa mulher que usará uma coroa. Vossa Majestade se casará, ficará viúva e desposará
um homem que não estará à sua altura.

— Existirão paixões, espadas, violência e lágrimas à sua volta. Oh, sim. Uma coroa
será colocada sobre sua cabeça. Irá amar e será amada com muita intensidade. Sua vida
será cheia de paixão. Pronto. Isso basta.

— Não, não. Diga mais. Conte tudo o que viu! — ordenou Maria Stuart.

— Foi o que fiz Majestade — falou Nostradamus, guardando seus pertences.

— Pelo menos minha vida será excitante — murmurou a jovem rainha, com um
brilho animado no olhar — Espere! Não vá ainda. E o futuro de meus amigos? E quanto ao
destino de meu noivo, o delfim?

— Lamento, mas só posso consultar uma pessoa por vez. Quando me concentro
em alguém, sua personalidade fica entre mim e qualquer outro.

— Sim, claro. Amanhã o procuraremos.

O profeta se despediu com educação e se moveu rumo à porta. Então ele avistou
Sheena pela primeira vez, desde que chegara. Como se estivesse sendo guiado caminhou
até ela.

— Foi você, Milady, a vítima daquele incidente cruel desta manhã?

— Eu mesma.

— Todos no palácio só estão falando sobre isso. Aceite minha simpatia por seu
sofrimento, e meus votos por uma rápida recuperação de seus ferimentos.

— Muito obrigada.

Nostradamus a fitou com atenção, estreitando o olhar. Então se curvou em uma


mesura, dizendo.

— Muitas vezes, uma experiência dolorosa para o corpo pode trazer um grande
conforto para o coração.

Sheena arregalou os olhos, mas não teve tempo de perguntar o que significava
aquilo, pois o estranho homem partiu sem demora.

Maria Stuart ainda estava falando animada sobre seu futuro, e pouco depois deixou
o quarto, acompanhada por seus amigos adolescentes.

O ambiente ficou tão silencioso que foi inevitável que as lembranças do que passara
nas mãos daqueles fanáticos retornassem.
Estava tão absorta que não ouviu a porta se abrir outra vez e, quando se deu por
conta, Jarnac estava ao seu lado.

Antes que pudesse ficar brava por ele haver entrado sem bater, lembrou-se de ter
estado seminua diante dele, e de ser envolta pelo mesmo casaco de veludo que o vestia
naquele momento. Aquilo a fez baixar o olhar, enrubescida.

— Está se sentindo melhor? — ele indagou.

— S...sim, obrigada.

O duque colocou uma cadeira ao lado dela e se sentou.

— O médico falou que as queimaduras não foram tão graves, e que logo estará tudo
normal.

— Já não sinto mais dor — falou Sheena, fazendo uma pausa, antes de prosseguir.
— Quero agradecer por você ter ido me salvar.

— Não precisa se preocupar com isso. Não fiz nada de especial.

— Pelo contrário. A duquesa me contou que, se não fosse por você, eu não estaria
aqui, agora.

— Como pôde ser tão tola a ponto de deixar seu pajem para trás? — indagou,
notando que Sheena enrubesceu e estreitou o olhar — Bem, esqueça. O rei já ordenou
que, de agora em diante, todos que saírem para cavalgar deve ser acompanhado por dois
homens armados, além do pajem. A próxima vítima pode não ter tanta sorte.

— Mas, pelo que entendi, os homens que me capturaram serão... Executados.

— Outros tomarão o lugar deles. Às vezes, tenho a impressão de que estamos


tentando repelir uma maré invasora com as mãos nuas, sem ver que nossa terra está
seca.

— Está insinuando que aqueles fanáticos estão certos?

— O que é certo e o que é errado? — indagou Jarnac — Essa pergunta não a tem
incomodado desde que chegou à corte francesa?

— Oh — murmurou ela, surpresa pela sensibilidade de ele haver percebido seu


dilema mais profundo.

Ao vê-lo curvar-se e segurar as mãos entre as suas, Sheena prendeu o fôlego.

— Vá embora, bela escocesa. Este é meu conselho. Neste palácio, há coisas que
ainda não posso explicar. Se me ouvir, voltará para sua casa, antes de se amargurar e se
desiludir. Sei que veio para cá cheia de positivismo, segurança e lealdade, mas, se
permanecer mais tempo, isso tudo será consumido. Talvez se torne uma pessoa infeliz e,
quem sabe, tão cínica quanto eu mesmo.

O final da frase soou um pouco amargo, mas foi bastante sincera.


— Eu...

— Parta Sheena. Não mude, por favor. Faça o que estou dizendo, e siga sua
própria carta, rumo à Escócia.

— Minha carta?

— Sim, providenciei para que ela fosse encaminhada ao seu pai, por um
mensageiro de confiança. Garanto que ele a entregará.

— Nem imagina como fico feliz com isso. Muito obrigada. Aliás, ainda não o
agradeci apropriadamente, por haver salvado minha vida. Como soube onde me
encontrar?

A expressão no rosto dele foi ininteligível, e sua resposta intrigante.

— Bem, digamos que talvez eu tenha ouvido seu chamado.


CAPITULO X

Desde que seus pés haviam se recuperado, Sheena começara a fazer tudo com ar
de urgência. Estava sempre com pressa, como se estivesse fugindo de algo. Na verdade,
tentava escapar de si mesma, ignorando os próprios pensamentos e sentimentos. Tinha
medo de parar para analisar a si mesma e descobrir alguma verdade que preferiria ignorar.

Ao chegar à ante-sala do quarto de Maria Stuart, antes de entrar no aposento


principal, ouviu a voz dela e a de um homem. Era o cardeal de Guise que estava
aconselhando a garota. Permaneceu ali, ouvindo, inadvertidamente.

— Não fique bravo comigo, Eminência — disse a jovem rainha — Não se esqueça
de que estou crescendo.

— Isso é inesquecível. Mas crescer traz uma série de responsabilidades, obrigações


e compromissos —- lembrou o cardeal.

— Ainda não cresci tanto assim.

Sheena teve de conter o riso, pois até podia imaginar o olhar de súplica da menina.
Como não houve resposta do clérigo, a própria rainha prosseguiu.

— Sou muito feliz aqui na França. Todos são muito gentis comigo, e é aqui que está
meu noivo.

— Sim, sei que Vossa Majestade é muito admirada e querida por todos. Mas não
estaria fazendo meu papel de confessor, se não a avisasse que manipular os sentimentos
dos homens é como brincar com fogo.

— E como o fogo, é algo quente e excitante — respondeu Maria Stuart — Gosto de


homens, Eminência. Sinto prazer em tê-los ao meu redor e em falar com eles. Mal posso
descrever quanto gosto de ver a admiração em seus olhos e de sentir que tenho poder
sobre todos.

— Sua franqueza é admirável, mas o que acabo de ouvir deixa-me muito


preocupado. E, sim, é um privilégio feminino o de desejar ser admirada. Contudo,
considere isso como qualquer bebida forte. Esse prazer não deve ser ingerido em grandes
quantidades, mas saboreado aos poucos.

— Mas não quero ser cuidadosa, precavida nem madura! Mesmo estando
crescendo, pretendo continuar jovem e aproveitar a vida. Quero desfrutar de cada
momento dela.

— Sua Majestade está cercada por moças muito devotadas em sua comitiva. Sugiro
que cultive a amizade delas e que aprenda a ser um pouco mais cuidadosa e discreta.

— Elas me cansam, assim como todas as outras mulheres, que são bem pouco
interessantes.
— Nem todas. Estou certo de que Vossa Majestade tem muito em comum com a
delicada lady McCraggan, que chegou da Escócia há menos de um mês.

— Sheena é o que Sua Eminência chamaria de "uma garota adorável", não é? Mas
quanto aos interesses em comum, o que poderíamos compartilhar? Ela fala o tempo todo
da Escócia, uma terra fria e barrenta, cujo povo é pobre e sem classe. Eu amo a França!
Quero viver aqui, na corte. Um dia quero ser sua rainha.

Aquilo foi o limite para Sheena. Foi preciso conter um gemido de desgosto, pois
aquela afirmação a deixou com mal estar. O que os anciãos dos clãs iriam dizer, se
ouvissem sua própria rainha falando daquela maneira de sua amada terra natal?

Seria muito sofrimento para eles, descobrir que a rainha por quem estavam lutando
e morrendo, os espezinhava como a um bando de cães sem raça. Não suportando mais
permanecer ali, recuou em silêncio e deixou a ante-sala, ciente de que falhara por
completo em sua missão.

Sempre afirmara para si mesma, de todo o coração, que a rainha estava protelando
os assuntos oficiais sobre a Escócia, por ser jovem e querer apenas se divertir. Mas estava
optando por não ver a verdade. Maria Stuart não amava sua pátria.

Que futuro negro aguardava seu país?

Sem perceber, caminhou de maneira errante pelo palácio, sem destino certo.
Sentia-se perdida. Quando se deu por conta, estava no alto de uma das escadas, que
levavam ao saguão da ala central, onde ocorriam os negócios de Estado.

Logo abaixo, em vez de encontrar o rei e alguns embaixadores, como sempre


acontecia em outros horários, avistou duas pessoas conversando. Um casal.

Ao reconhecer quem eram a atenção de Sheena voltou-se outra vez para a


realidade do momento e do local onde estava. Tratava-se de Jarnac, acompanhado por
René de Pouguet.

A condessa estava muito bem arrumada, usando os trajes extravagantes e sensuais


que lhe eram peculiares. Os olhos dela estavam fixos nos dele, e sua expressão era a de
quem dizia algo com toda a honestidade.

Então, colocando as mãos sobre o braço dele, aproximou-se mais, fazendo com que
seus corpos se tocassem. Aquele gesto simples dava a entender que ela estava se
rendendo aos encantos do duque de Salvoire.

Uma estranha emoção se fez sentir em seu ser. Era quase como uma dor em seu
peito. Depois de fitá-los por mais um momento, virou-se de repente e saiu em disparada,
retornando para seu próprio quarto.

Ao entrar, descobriu que o cômodo estava, para sua felicidade, vazio. Fechou a
porta atrás de si e a trancou a chave. Encostou-se ao portal e começou a chorar, sem
entender bem a razão, enquanto tentava controlar os soluços. Então caminhou até a cama
e se deitou de bruços, agarrando-se ao macio travesseiro de plumas, enquanto se esvaía
em lágrimas.
Naquele momento, reconheceu o que estava sentindo. Era ciúme. Precisava admitir
isso sem hipocrisia nem medo. Ciúme. E tal emoção só podia significar uma única coisa,
estava apaixonada por Jarnac.

Na verdade, Sheena soubera disso desde o momento em que fora resgatada por
ele, sendo carregada por aqueles braços fortes e depois acomodada junto àquele peito
másculo, sobre a sela do corcel negro.

Lembrando-se daquele momento, teve certeza de que já sabia que o amava, e que
apenas não quisera admiti-lo até então. Talvez o amasse desde que o vira pela primeira
vez, pois só isso explicaria a falta de ar que sentia toda vez que o via.

— Eu o amo! — murmurou, em meio ao choro.

Dizer aquilo em voz alta pareceu ainda mais desesperador. Ele próprio a
aconselhara a voltar para casa, o que significava que não era correspondida. Talvez o
brilho nos olhos dele representasse desejo e desafio perante sua presença, mas não
poderia ser amor. E se não fosse, não haveria esperança para ela.

Para completar, ao ver a condessa de Pouguet tocá-lo, tivera certeza de outra coisa.
Eles eram amantes. Jarnac não fizera a menor menção de afastá-la, porque estava
habituado a tê-la para si, com freqüência. A idéia de vê-lo nos braços de outra a fez se
sentir ainda pior. Parecia loucura que o estivesse amando.

Levantando-se da cama, caminhou de um lado para o outro no quarto, já contendo o


choro. Depois do que ouvira Maria Stuart dizer, não havia mais razão para ficar ali. Era
chegada a hora de voltar para a Escócia.

Iria retornar para sua casa. Precisaria encontrar uma maneira de dizer aos anciãos
e aos líderes dos clãs tudo o que descobrira. Ou talvez não. Seria melhor não contar nada,
e deixá-los pensar, que a jovem rainha era merecedora de seus esforços. Havia uma
remota possibilidade de o destino ser benevolente e lhes dar a oportunidade de não
precisarem encarar tamanha decepção. Se lhes tirasse a esperança naquele momento, era
provável que seu país não sobrevivesse.

De qualquer maneira, era chegada a hora de partir. Precisava fazê-lo o mais


depressa possível. Pretendia ir até a costa e pegar o primeiro navio que seguisse em
direção ao norte da Europa.

Só de pensar, já podia sentir a força emanada pelas montanhas e pela natureza


daquela região fria e pura. Já estava cansada daquela corte, onde todos só se
preocupavam consigo mesmos. Um antro de egoísmo e trivialidades, onde jogos e maus
dizeres eram mais importantes do que vidas humanas.

A resolução que sentia era tão forte quanto à dor de saber que deixaria para trás o
homem de sua vida. Seu coração jamais seria o mesmo, e seu destino seria a solidão, mas
nenhum sofrimento seria maior do que ver Jarnac nos braços de outra pessoa.

Não poderia se unir a outro homem. Quem quer que fosse ele não mereceria uma
esposa infiel.
Mesmo que estivessem separados por muitos quilômetros, seu coração sempre
pertenceria ao duque de Salvoire. Se não pudesse amar aquele com quem viesse a se
casar, permaneceria solteira. Talvez entrasse para um convento.

A única coisa que a fez hesitar foi à lembrança do beijo que recebera dele. Seria
uma memória que levaria consigo por toda a vida.

Depois de algum tempo, saiu para o corredor e pediu a um pajem que fosse a busca
de Maggie. Logo em seguida a mulher chegou pronta para atendê-la. Informou-a de que a
missão delas havia terminado, e a instruiu para começar a arrumar as malas de ambas.

A dama de companhia recebeu a notícia com festejo, e logo se pôs a preparar a


bagagem. Conforme fora instruída, deixaram no guarda-roupa todos os vestidos que
haviam sido dados pela rainha. Levariam apenas o que haviam trazido com elas.

Instantes depois, um dos pajens da rainha Catarina bateu à porta, convidando


Sheena para participar de um jantar nos aposentos reais. Trouxera consigo um lindo
vestido de seda branca, sem nenhum enfeite em outro tom, que deveria ser usado para a
ocasião.

— Diga que fico lisonjeada com o convite — ela instruiu ao mensageiro — mas que
estou muito indisposta. Leve o traje de volta, acompanhado do meu sincero pedido de
desculpas.

Já que iria partir, não pretendia mais fazer as vontades daquelas pessoas
complicadas. Não tinha a menor intenção de continuar se adequando às loucuras daquela
gente.

Não tardou para que houvesse outro chamado à porta. Era a principal dama de
companhia da rainha da França, a própria condessa René de Pouguet, e parecia estar
bastante irritada.

— Lady McCraggan acabei de enviar um pajem com um convite da rainha, para que
fosse jantar com ela nesse final de tarde, e ele retornou dizendo que a encontrou
indisposta. Parece-me que não há nada errado com você.

— Desculpe-me, Milady — falou Sheena, tentando manter a educação e a


dignidade — Não estou doente. Minha indisposição consiste em não estar de bom humor.
Achei que seria injusto amargurar qualquer tipo de festividade que Vossa Majestade esteja
promovendo, impingindo a todos minha presença desanimada.

— Cabe à rainha julgar se seu estado de espírito é ou não conveniente —


respondeu a condessa, com secura — Como você é nova na corte, creio que seu deslize
seja perdoável. Um convite como este, principalmente acompanhado de um presente, não
pode ser rejeitado.

Havia tanto escárnio no tom de voz da mulher que Sheena precisou se conter, para
responder com educação. Mesmo sabendo que estava de partida, ainda se sentia como
uma representante da Escócia naquele palácio, e não queria deixar má impressão.

— Sinto muito. Agora percebo que fui rude para com a rainha, que tem sido muito
gentil comigo.
— "Gentil" é uma palavra muito fraca para definir a conduta da rainha. Os vestidos
que ela lhe deu custaram muitos milhares de francos, e nunca se ouviu falar de Vossa
Majestade ser tão generosa, com alguém tão pouco importante quanto você.

Engolindo em seco, pois não queria prosseguir com a discussão, já que sabia ter
cometido uma gafe, Sheena disse apenas.

— Perdoe-me por minha ignorância e aparente ingratidão.

Aquela postura humilde pareceu desarmar René, que prosseguiu com mais
suavidade.

— Por sorte, a rainha Catarina não foi informada do ocorrido. Vou omitir o
desagradável detalhe de sua rejeição inicial, mas sugiro que aceite o convite e vista o traje
que foi enviado. Esteja nos aposentos dela dentro de uma hora.

Ao ver a mulher se retirar, Maggie começou a resmungar com revolta, mas Sheena
a mandou se calar. Todos comentavam que aqueles que insultavam algum protegido da
coroa se tornavam vítimas dos mais estranhos infortúnios.

Como seria inevitável, ela se vestiu conformada com a idéia de fazer aquele último
sacrifício por seu país, antes de retornar para casa. Lá, teria muito tempo para ficar
sozinha e pensar no amor que fora obrigada a deixar na França.

Uma hora depois, Sheena estava caminhando pela ante-sala do saguão de


refeições dos aposentos da rainha. Ao ver seu próprio reflexo nos grandes espelhos que
ladeavam o lugar, voltou a questionar o que levara Catarina a mandar um traje todo
branco, que a deixava parecida com um fantasma.

Se bem que se tratava da mais cara seda que ela já vira na vida. O corte do vestido
era perfeito, contornando cada curva de seu corpo como se a estivesse acariciando.

A brancura pura e absoluta dava um contraste incrível com seus cabelos


avermelhados. Sem perceber, imaginou-se com véu e grinalda, e desejou que Jarnac
pudesse tê-la visto pelo caminho.

Voltando a prestar atenção ao caminho, chegou à porta do recinto para onde se


dirigia, sendo anunciada em seguida.

A grande sala estava muito mal iluminada, e o cheiro de incenso parecia mais forte
e enjoativo do que nunca. Assim que a avistaram, todos ficaram em silêncio. A rainha
ordenou que se aproximasse e se acomodasse.

Sentando-se na única cadeira vazia, entre o marquês de Maupré e a própria


soberana, que estava à cabeceira, Sheena sentiu-se desconcertada. A mesa estava
circundada por todos os amigos e acompanhantes de confiança mais próximos à Catarina.
Não faltava ninguém, e todos a fitavam com uma expressão estranha.

A rainha fez um gesto breve, e as pessoas voltaram a conversar, como se não


houvessem parado. Ao mesmo tempo, em meio à penumbra, serviçais foram colocando
taças de vinho diante de todos. Não havia nenhuma travessa de comida à mesa, como era
comum naquele tipo de jantar. Aquilo pareceu a ela um pouco esquisito.
Mas estranho mesmo foi notar que a taça que lhe deram havia sido trazida em uma
bandeja separada das demais. Seria aquela uma medida comum? Não se lembrava de ter
visto aquilo acontecer das outras vezes em que ali jantara.

A rainha propôs um brinde, e todos ergueram suas taças. Um aperto no peito de


Sheena parecia querer avisá-la de que havia algo de errado naquilo tudo. Decidida a não
experimentar da bebida, não a levou aos lábios quando os outros o fizeram.

— Não vai honrar meu brinde? — questionou Catarina, com um tom autoritário —
Nosso vinho não é bom o bastante, ou a saúde do rei da França, futuro sogro de sua
rainha, não é de seu interesse?

Sob a pressão daquela frase, ela não pôde deixar de beber.

Um leve gole do drinque foi suficiente para Sheena perceber que ela estava
estragada, ou algo do gênero. O amargor forte foi causando uma espécie de
adormecimento em sua língua, e também em seus lábios.

Havia algo errado. Sheena concluiu que havia algo em seu vinho, e tentou se
levantar para fugir dali. Mas era tarde. Seu corpo não respondeu ao comando. De repente,
sentiu-se pesada, e uma profunda escuridão cobriu seus sentidos.
CAPÍTULO XI

Havia algo surgindo diante de Sheena. Uma luz distante e fugaz, que parecia lutar
contra a escuridão que a envolvia. O restante soava apenas como uma série de ruídos,
tanto de fragmentos de frases quanto de sons do ambiente.

De vez em quando vinha uma sensação de estar flutuando e chegando à superfície


da consciência, mas uma nova lufada de escuridão voltava a envolvê-la. Muitas tentativas
depois, ela conseguiu se manter um pouco mais lúcida. Não sabia ao certo onde estava,
mas tinha a sensação de que tiravam a roupa. Então começou a escutar com clareza.

Estava ouvindo vozes ao redor. Pôde identificar a do marquês de Maupré, a de


René e a da rainha Catarina. Mas era impossível entender o que diziam. Quando se
esforçou para compreendê-los, quase perdeu a consciência outra vez. Conseguiu discernir
o aroma do incenso característico da ala sombria do palácio, e soube onde estava. Nesse
momento, tentou abrir os olhos. Para seu terror, não conseguiu. Começou então a prestar
atenção em todo o corpo, e concluiu que estava nua, sob algum tipo de lençol que a cobria
da cabeça aos pés. Sentia-se deitada, sobre um divã frio e pouco acolchoado.

Tentou mover o corpo e se descobriu paralisada. Era capaz de pensar, mas nenhum
músculo respondia a seus comandos. Lembrou-se, naquele momento, do modo como
perdera a lucidez. Imaginou se havia sido envenenada.

Seria aquilo a morte? Mas, se estava morta, por que tinha a sensação de que seu
coração estava batendo? E por que a haviam deixado sem roupas? Imaginou o que teria
feito de mal para a rainha da França tê-la assassinado daquela maneira. Não fazia sentido.
Aos poucos, as vozes foram se tornando compreensíveis, mas seu corpo ainda não
atendia aos comandos.

— Tem certeza de que é melhor mandá-la despida? A roupa branca estava linda —
murmurou alguém.

— Assim será melhor — respondeu um homem — Esse corpo perfeito merece ser
exposto.

— Nesse caso, devem levá-la agora — falou uma voz, que parecia a de Catarina.

— Sim, Majestade — concordou outro homem, com certeza o marquês de Maupré


— Vamos agora mesmo.

Braços fortes ergueram Sheena, e então alguém colocou algo pesado sobre ela,
ainda suspensa.

— Assim está melhor — disse a condessa René — Com esse acolchoado por cima,
ninguém imaginará que o bom marquês está levando a pequena escocesa. Vou escoltá-lo
pelo caminho, para despistar qualquer curioso, enquanto ele se afasta com sua preciosa
"carga".
— Ótimo, ótimo. Agora que já escureceu mais, ninguém os questionará no trajeto
até lá — festejou a rainha.

Apavorada, Sheena concluiu que, se ainda estava viva, seria por pouco tempo.
Talvez a jogassem no lago, ou a enterrassem daquela forma mesmo. A idéia a deixou em
pânico. Mentalmente, só restava rezar. Seria pedir demais, se rogasse para que o duque a
salvasse outra vez? Então percebeu que estava em movimento. Embora não pudesse
controlar nada em seu corpo, sua percepção havia melhorado um pouco. Depois de
percorrerem certo trecho, uma onda de ânimo preencheu-lhe o coração, ao ouvir uma voz
chamando pela condessa.

— René? Por que está fazendo o marquês de estivador? Se precisava de um, por
que não me solicitou?

— Ora, Jarnac, mas que surpresa encontrá-lo aqui, há essa hora! — improvisou ela.

— Estou a caminho de me encontrar com o rei e a duquesa, que estão negociando


um novo acordo com o embaixador de Portugal. Mas, e quanto ao esforço do nosso
"amigo" aqui?

O tom dele foi cínico, e um ataque sutil ao marquês.

Sheena tentou gritar e se mover com todas as forças, mas não obteve resultado.
Queria avisá-lo de que estava ali, sob aquele acolchoado, prestes a sofrer um destino
desconhecido e, provavelmente, terrível.

— Isso? — disfarçou a duquesa — E um presente da rainha para o rei. Ela pediu


que nós mesmos colocássemos isso no quarto dele, para garantir que tudo seria feito de
acordo com a vontade dela.

— Mas quanta consideração a dela, não? — murmurou Jarnac, com sarcasmo —


Pena que não posso acompanhá-los, pois sou aguardado na tal reunião.

"Não!", pensou Sheena, ansiosa. "Peça para ver o presente! E tudo mentira! Sou eu
quem está aqui! Salve-me!"

Mas os lábios dela não obedeciam a seus pensamentos. Com pesar, ouviu o duque
se despedir. Sentiu o marquês seguir seu caminho e o escutou murmurar.

— Acha que ele suspeitou?

— De jeito nenhum — garantiu a condessa — Você poderia estar carregando


qualquer coisa. Jarnac nem mesmo vai pensar outra vez no assunto.

— Esse sujeito sempre aparece quando não é desejado — ralhou o marquês.

— Não precisa temê-lo — assegurou René — Vou me encontrar com ele daqui a
pouco, e o entreterei pelo restante da noite. Vamos, depressa!

Logo em seguida, Sheena ouviu uma porta sendo aberta, e a condessa disse a
alguém a mesma história que contou ao duque. Com certeza, era um dos pajens ou algum
guarda que os interpelara.
A próxima coisa que sentiu foi seu corpo ser depositado sobre uma cama macia.
Retiraram o acolchoado pesado e o pano que a estava cobrindo.

— Vamos logo — apressou a condessa — O rei pode aparecer a qualquer


momento.

— Calma René — murmurou o marquês, cuja voz vinha perigosamente de perto de


Sheena — Ela não é linda? Acho que eu deveria tê-la possuído, antes de colocá-la aqui,
na cama do rei.

Uma onda de pânico se apossou de Sheena. Não bastava estar nua e paralisada
sobre a cama de Henrique II, como também estava prestes a ser violentada!

— Não toque nela, seu louco! A rainha foi muito clara. Essa menina precisa ser
perfeita aos olhos do rei, para que ele a possua e se apaixone na primeira noite,
abandonando a duquesa.

— Sim, ele se apaixonará. Essa garota é lindíssima. Vamos embora de uma vez,
antes que eu me arrependa de deixá-la intacta.

— Venha. Não podemos correr o risco de sermos vistos aqui. Ainda bem que o
pajem que estava de plantão hoje é um espião da rainha. Ninguém terá certeza de onde
veio o "presente", até que seja tarde demais.

Houve outro ruído de portas sendo abertas e fechadas em seqüência, indicando que
o sórdido casal estava deixando a galeria dos aposentos reais.

Depois de algum tempo, talvez uma hora, Sheena notou que conseguia mover as
pálpebras. O efeito da droga que haviam dado a ela estava passando. Com muito esforço,
conseguiu abrir os olhos. Estava mesmo na imensa cama do rei, acomodada entre os
lençóis. Sentia-se indefesa e inútil. A qualquer momento, Henrique II entraria ali, e sua
reação seria uma incógnita.

Só lhe restava rezar, mais uma vez. Aquilo estava se tornando um hábito, e talvez
Deus já estivesse ficando cansado de atender seus apelos. Como fora possível que Jarnac
houvesse estado tão perto no corredor, e não sentira a presença dela? Mesmo assim,
continuou rogando ao céu para que o duque viesse salvá-la.

Mais um longo tempo se passou, e Sheena escutou um ruído na ante-sala do quarto


real. Tentou mais uma vez se mover, interrompendo suas preces para se concentrar, mas
não obteve sucesso. Contudo, pôde controlar o ritmo da respiração. A droga estava
cedendo, mas ainda não devolvera o controle do corpo nem da fala.

Ao notar que a porta interna do aposento fora aberta, ela voltou a fechar os olhos.
Não ousaria abri-los, pois não teria coragem de encarar o rei, talvez acompanhado da
própria duquesa, quando fosse descoberta naquela situação humilhante.

— O que você está fazendo aqui?

Ao ouvir aquela voz grave e profunda, Sheena abriu os olhos de imediato, pois
pensou que estava perdendo o juízo.
Mas não estava. Era mesmo Jarnac que estava de pé ao seu lado, fitando-a com ar
preocupado.

"Você veio! Leve-me embora depressa, meu amor!", pensou ela, mas seus lábios
permaneceram imóveis.

— Mal pude acreditar que o que descobri em meio às fofocas fosse mesmo verdade
— murmurou ele, com ar decepcionado — Sua dama de companhia me falou que a rainha
mandou um vestido todo branco, e a convidou para jantar. Ela já estava preocupada, e me
deixou também. O que aconteceu? Está aqui sob algum tipo de ameaça, ou é por vontade
própria?

Sem poder se mover, tudo o que Sheena conseguia fazer era fitá-lo, e rogar para
que seu olhar fosse compreendido.

— Quer que eu a leve embora? Diga logo, ou tomarei seu silêncio como mais uma
de suas tolices. Responda.

O restante da paralisia não estava cedendo, mas seus pulmões começaram a


responder a seus comandos, assim como os olhos.

— Qual o problema com você? Sua mania de me contrariar chegou ao limite dessa
vez. Não quer falar? Então fique aí. Acho mesmo que fui um tolo em achar que estava
sendo forçada a algo. E pensar que tive de questionar todos os pajens deste andar por
nada!

Jarnac se virou e caminhou para a saída. Em um esforço extremo, Sheena


conseguiu reter o fôlego e soltou-o de uma só vez, produzindo um estranho gemido. Aquilo
o fez parar e se virar.

— Será possível o que estou pensando? — perguntou ele, aproximando-se


depressa.

Com um movimento rápido, descobriu-a e ergueu-lhe o braço, soltando-o em


seguida. Ao ver a queda inanimada que se sucedeu, ele arregalou os olhos e hesitou um
instante, murmurando.

— Meu Deus! O que aconteceu?

Enrolou-a então em um lençol e a pegou no colo, colocando-se em movimento.


Enquanto caminhava, falou.

— Não sei o que lhe fizeram, mas juro que vão pagar caro por isso, meu amor. Oh,
meu amor. Fique tranqüila. Vou cuidar de você.

Sheena mal acreditou no que ouviu, mas, ao se esforçar para gemer, voltou a se
sentir tonta. Naquele momento, sabendo que estava segura nos braços dele, voltou a se
entregar à escuridão que espreitava sua consciência. Mas, dessa vez, entregou-se sem
medo algum.
CAPÍTULO XII

Sheena sentiu-se aninhada no colo de alguém que a balançava para frente e para
trás. De repente, como um eco em sua mente, lembrou-se do que havia acontecido. Foi
preciso fazer um grande esforço para voltar completamente à consciência.

Era Maggie quem a estava balançando.

— Acorde, minha criança, acorde. Por favor, acorde.

— O que é? — murmurou Sheena, ainda sonolenta.

— Graças a Deus! Você acordou e está se movendo outra vez.

— Qual é o problema? Maria Stuart está me chamando? — Ela se sentou na cama,


saindo do colo de sua dama de companhia e se espreguiçando — Que horas são? Por que
está vestida assim?

— Porque estamos de partida.

— O quê? Estou com tanto sono que não consigo entender nada do que você fala.

— Acorde! Temos de fugir daqui — disse Maggie, exasperada.

Sheena esfregou os olhos com as costas das mãos e então se lembrou de tudo.
Ficou de pé de repente, perdendo o equilíbrio, mas não chegou a cair. Um sorriso se
formou em seus lábios e ela foi para frente do espelho.

— Posso me mover de novo! Voltei ao normal! Oh, graças a Deus. Pensei que a
droga que me deram iria me tornar um vegetal. Veja, estou viva e bem!

— Sim, graças a Deus, mas se vista depressa, por favor. Não temos tempo a
perder.

— Estou salva, Maggie. Por que a pressa?

De repente, uma lembrança lhe trouxe uma onda de felicidade. Jarnac a havia
chamado de "meu amor"! Aquilo foi suficiente para fazê-la sentir-se nas nuvens.

— Vamos logo, Milady! — implorou Maggie, com ar apavorado.

— O que há? Vejo que ainda nem amanheceu. E cedo demais para levantar da
cama.

— Temos de partir. Fomos abençoadas até agora, mas estamos em perigo. O


duque disse que você, em particular, corre grande perigo.

— O duque de Salvoire?
— Sim. Foi ele quem a trouxe para cá, mais morta do que viva. Ele me contou o que
aconteceu e me instruiu quanto ao que deveria ser feito. Se vista, minha criança. Não há
tempo para conversarmos.

Sheena compreendia muito bem quanto perigo aquela corte poderia oferecer. Após
se vestir, olhou ao redor e viu a bagagem arrumada para partir.

— Você já preparou tudo?

— Sim. Sei que não vamos levar conosco nenhum de seus presentes, mas não
quero deixar nada nosso para trás.

— Ótimo. E para onde vamos? — indagou Sheena.

— Para casa. Por fim, voltaremos à Escócia. Isso não é maravilhoso?

— Hoje? Agora?

— Isso mesmo. Uma das carruagens do duque está nos esperando lá embaixo.
Espere um minuto, enquanto chamo o carregador para levar nossas coisas.

— Mas, Maggie não estou entendendo...

A voz dela desapareceu no meio da sentença, pois sua acompanhante saiu em


disparada. Dois homens entraram em seguida, e o brasão em seus trajes dispensava
apresentação. Eram homens da guarda pessoal do duque.

Fora Jarnac quem providenciara sua fuga, depois de resgatá-la da cama do rei. Ele,
mais do que ninguém, sabia que sua única esperança de sobrevivência seria fugir dali
antes que a rainha Catarina soubesse da falha de seu plano.

Contudo, precisava falar com o duque antes de partir. Deixaria seu amor para trás.
Teria entendido mal o que o ouvira dizer? Teria sido sua imaginação assim tão cruel?
Como era possível que ele fosse capaz de mandá-la embora, se a amasse de verdade?

Por outro lado, talvez ele a amasse tanto que preferisse vê-la viva e distante, do que
se arriscar a deixá-la morrer. E esse seria seu inevitável destino. Seria fácil forjar um delito
qualquer para mandá-la para as masmorras, e então para o carrasco. A rainha jamais
admitiria ter sido passada para trás por uma governanta estrangeira.

Então um dos homens voltou para escoltá-las até a carruagem. Percorreram o


caminho andando depressa e no mais absoluto silêncio. Com as luzes diminuídas, o
palácio parecia sombrio.

Sheena tinha a impressão de que, a qualquer momento, uma das portas pelas quais
passavam iria se abrir e algum guarda da rainha iria pará-la e prendê-la em nome de
Vossa Majestade.

Depois de uma longa e tensa caminhada, chegaram à parte menos utilizada do


jardim, que era a única que não poderia ser avistada das janelas. Jarnac pensara em tudo.
O cocheiro havia descido para silenciar os seis belos cavalos da parelha. Um dos
serviçais as ajudou a embarcar.

Era um coche menor e um pouco menos luxuoso do que aquele em que haviam
viajado antes, mas parecia ser muito mais rápido.

Então começaram a se mover. A princípio, com lentidão e em silêncio, até deixarem


a área do palácio.

A velocidade foi sendo aumentada gradualmente, e quando não precisavam mais


temer o perigo próximo, começaram a correr a uma velocidade que Sheena jamais
imaginou ser possível para uma carruagem.

— Ainda bem que conseguimos sair de lá. Pensei que alguém fosse nos deter —
falou a dama de companhia.

— O duque cuidou de tudo para nós. Agora estamos a salvo.

— Estamos mesmo? Só acreditarei nisso quando chegarmos à Escócia. Eles virão


atrás de você. O conde me contou o que aconteceu. Montados a cavalo, os soldados
podem correr mais do que nós, mesmo nesse coche especial.

— Calma Maggie. Temos uma grande vantagem sobre qualquer um que queira nos
seguir, e estamos indo bastante depressa. Mas há algo de que preciso ter certeza. Ele
mesmo disse, com todas as letras, que está me enviando de volta para casa?

— Não exatamente. Mas para onde mais poderíamos estar indo? Nenhum lugar da
França seria seguro para você, Milady.

Sheena fechou os olhos por um momento, tentando reorganizar as idéias. Era óbvio
que estava sendo mandada para casa, e não fazia sentido alimentar falsas esperanças a
respeito de poder ficar ao lado de Jarnac.

O problema era aceitar a perspectiva de deixá-lo para trás.

As lembranças de estar nos braços de Jarnac, de ver a paixão arder nos olhos
escuros, antes mesmo de ela própria descobrir que o amava, seria um tesouro que
carregaria consigo por toda a vida.

Depois de muito tempo em silêncio, as duas se surpreenderam quando o condutor


parou a carruagem de maneira repentina.

A porta se abriu e ambas se sentiram aliviadas ao ver quem era.

— Gustave! — exclamou Sheena, esquecendo-se de que não deveria tratá-lo de


maneira tão informal, principalmente quando ele estava com seu uniforme de batalha.

— Milady, ainda bem que está sã e salva. Sua demora foi tamanha que comecei a
temer pelo pior.

— O que você está fazendo aqui?


— O duque me ordenou que a esperasse. Devo escoltá-la até os arredores de
Paris, onde farão a primeira parada.

— E então, o que acontecerá em seguida?

— Não sei. Estou apenas cumprindo ordens.

— Oh — murmurou Sheena, decepcionada, pois havia se enchido de esperança,


pensando que Jarnac teria mandado alguma mensagem.

— Tudo o que interessa agora é que você está salva — ressaltou Gustave.

— Quanto da história lhe foi revelado?

— Não muito. Apenas que a rainha usou um truque sujo, mas que o duque
conseguiu salvá-la a tempo.

— Sim, foi bem na hora.

— Foi impossível pedir mais informações — prosseguiu o comandante — Havia


muitas coisas para providenciar, e ele só pôde me explicar que a situação exigia alguém
de confiança para acompanhá-la na primeira parte de viagem.

— E para onde estamos indo?

— Em direção à costa.

— Foi o que pensei — respondeu Sheena, cabisbaixa, sentindo-se triste por ter de
deixar Jarnac para trás.

— Quem foi o peão da rainha dessa vez?

— O marquês de Maupré.

-— Aquele porco! — indignou-se Gustave.

— Por que diz isso?

— Por acaso não sabe quem ele é? Estamos falando do homem mais corrupto e
sujo de toda Paris. E um alcoviteiro. Adquiriu sua riqueza conseguindo mulheres para os
nobres que podiam pagar seu preço.

— Um alcoviteiro?

— Isso. Ele é do tipo de gente que jamais deveria conseguir um título, mas que, de
tanto prestar seus "favores" aos nobres, conseguiu chantagear um deles para conquistá-lo.
O passo seguinte foi tentar oferecer seus serviços ao rei. Quando foi dispensado, graças à
interferência da duquesa, aproximou-se da rainha e encontrou ali amparo para suas
atividades. Além disso, assumiu o papel de intermediário dela em todos os serviços sujos.

— Chega. Não precisa contar mais nada — pediu Sheena.


— Desculpe-me. Saber que aquele crápula conspirou contra você fez com que eu
perdesse a calma.

— Concordo com sua opinião sobre ele, mas não falemos mais nisso.

Depois de conversarem um pouco, o sono a venceu, levando-a a adormecer,


encostada em Maggie. Assim passaram a maior parte do dia, dormindo e conversando, até
que chegaram à praia, onde havia uma pousada, na qual passariam a noite.

— Não iremos nos ver pela manhã — avisou Gustave, ao deixá-la à porta de
entrada daquele humilde retiro.

— Quer dizer que não vai ficar?

— Ficarei apenas uma hora, e depois voltarei a Paris.

— Mas por quê?

— Não sei Milady. Apenas obedeço a ordens. No que me diz respeito, basta o
duque instruir e eu faço a tarefa, sem questionar.

— Confia tanto assim nele?

— Claro. O duque de Salvoire é o homem mais humano e inteligente que já conheci.


Além disso, eu jamais poderia retribuir, de outra maneira qualquer tudo o que ele já fez por
mim desde a primeira vez em que fui a Paris.

Muito depois de se despedir dele, Sheena ainda estava pensando no que ouvira seu
jovem amigo comandante dizer a respeito de Jarnac ser muito humano e inteligente.

Sim, Gustave estava certo. Nunca encontrara alguém tão especial.

Perguntou-se outra vez qual era a razão de não poder ficar ao lado de seu amado.
Depois de conhecê-lo, jamais seria feliz com outro homem.

Arrependera-se por tê-lo julgado mal logo a princípio, devido a uma impressão
baseada em um comentário que ouvira sem ser notada, feito, na ocasião, a uma
desconhecida, e não a ela.

Uma vez dentro da pousada, Sheena e Maggie foram alimentadas e se recolheram


ao quarto simples, porém aconchegante, que um mensageiro havia reservado pouco
antes.

Após se despedirem do comandante, ambas começaram a conversar.

— Aqui estamos nós, a caminho de casa — murmurou a dama de companhia.

— E mesmo. Não pensei que nossa viagem fosse terminar dessa maneira, e muito
menos por esse motivo. Há uma pergunta que está me incomodando. Você acha que o
duque corre algum risco por ter nos ajudado? Será que ainda o verei outra vez?
— Não se preocupe com ele, pois garanto que seu herói preferido saberá se safar,
com a mesma habilidade com que a vem salvando nos últimos tempos. Mas é pouco
provável que volte a vê-lo nessa vida. Tenho a impressão de que o mensageiro que nos
encontrará aqui amanhã, como nos informou o estalajadeiro, estará de posse de nossas
passagens de navio, e nos embarcará para casa sem demora. Depois de tudo o que fez
por nós, o que mais esperar dele?

— Claro. Não poderia querer mais, não é? — murmurou Sheena, deitando-se na


cama e fixando o olhar no teto, com o coração cheio de tristeza.

A escuridão da noite envolveu o lugar, e o sono prevaleceu. Mas Sheena não pôde
descansar. Seus sonhos a perturbaram por toda a madrugada. Imagens de solidão e de
tristeza, de uma vida sem amor...

Na manhã seguinte, acordou antes de Maggie, com o raiar do sol, e foi até a
pequena sala do refeitório, onde tomaria o desjejum. Olhou pela janela e avistou outro
coche do lado de fora da pousada, parecido com o que as levara até ali. O brasão na porta
indicava que deveria se tratar do mensageiro que esperavam.

Uma tristeza enorme dominou seu coração e a alma. Sabendo que estava sozinha,
fechou os olhos e começou a chorar. A vida parecia fazer menos sentido naquela manhã.

— Está realmente tão triste assim por partir? — indagou uma voz grave, vinda da
direção da porta.

Sheena se virou de repente, abrindo os olhos e encontrando Jarnac de pé, logo


atrás de si.

— Você! Não pensei que iria encontrá-lo aqui.

— E eu jamais imaginei que a encontraria chorando — murmurou ele, aproximando


e tocando o queixo dela com os dedos — Qual a razão dessas lágrimas? Está triste por
deixar a França ou por abandonar Maria Stuart?

Sem conseguir falar, ela apenas balançou a cabeça negativamente, com


veemência.

— Nesse caso — prosseguiu Jarnac, começando a sorrir — qual o motivo?

— Bem... Eu...

— Não consegue dizer? Calma, querida. Está tudo bem. Não pensou que eu
deixaria que partisse assim, pensou? Eu te amo. Amo mais do que achei que seria
possível. Não poderia deixá-la ir embora. Mas para que possamos prosseguir, preciso
saber o que você sente realmente.

— Eu... Eu também te amo... — gaguejou Sheena, rendendo-se à proximidade e


deixando-se beijar.

Ela jamais imaginou que um beijo pudesse ser tão intenso, íntimo e promissor. Toda
a tristeza desapareceu de seu coração, e o futuro tomou a forma de um lindo horizonte a
ser descoberto.
— Minha amada agora podemos deixar essa terra de corrupção e maldade.
Consegui o consentimento do rei para que viajemos a outro lugar. E um lugar que foi
descoberto pelo navegador Cristóvão Colombo, em nome da Espanha. A França já marcou
lá suas pegadas, e é onde seremos bem vindos. Viveremos em um lugar onde o trabalho
inocente ainda é o maior valor de uma pessoa. Não é isso o que sempre quis?

— Sim, parece um sonho — murmurou ela — Mas eu seria feliz ao seu lado, em
qualquer lugar. Ainda assim, não corremos o risco de os espiões da rainha nos perseguir?

— Não. Tenho meu próprio navio, que já está pronto desde antes de sua chegada.
Estava adiando a viagem por falta de motivação, mas agora é o momento ideal. Contudo,
antes de partirmos, precisamos tornar nossa união oficial. Não sei se suportarei viajar
durante meses em alto mar, e não tê-la em minha cama. Quer se casar comigo?

— Sim! — Sheena o beijou — Oh, Jarnac, nem imagina como estou feliz. Mas não
será arriscado procurarmos uma igreja em um povoado qualquer?

— Seria se precisássemos fazê-lo. Trouxe comigo um velho amigo, o cardeal de


Guise, que celebrará nosso casamento. Juro que a farei a mulher mais feliz do mundo,
minha querida.

— Eu te amo! — sussurrou ela.

Após a cerimônia, seguiram para o navio, e então zarparam rumo ao novo


continente e ao futuro insondável.

Diante deles, tudo era desconhecido. Mas em seus corações, uma luz infinita
afastava todos os medos.

A luz do amor.

A mesma que vinha de Deus e que seria deles por toda a Eternidade.

FIM

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