As raízes do atraso
José Pastore
Paciência, generosidade
e solidariedade
Mario Sergio Cortella
Inversão de valores
Eduardo Meinberg de
revista da espm • ano 20 • edição 91 • nº1 • JANEIRo/FEVEREIro 2014 • R$ 28,00 Albuquerque Maranhão Filho
“Nossa missão vai muito além
da geração de energia”
Jorge Miguel Samek
Artigos
O Estado mastodôntico:
o poder dos poderes
Ética: a matéria-prima de
que o Brasil mais se ressente
Reformar é preciso
Tumulto ético: um país
em busca de rumo
Revolução de valor
O que as religiões podem
fazer por um mundo melhor?
Agenda para um
novo contrato social
O que está acontecendo com os
nossos jovens profissionais?
A cultura do bem estar bem
Bem ou mal, as marcas educam!
O verdadeiro sítio do
picapau verde-amarelo
We are anonymous – razão
de ser e razão de Estado
Consumidores indignados:
ativismo digital e consumo
consciente
O casamento da indústria
cinematográfica com o
marketing internacional
O poder dos internautas
O elo mais forte da
corrente do bem
Torne sua
empresa sócia
da AAMAC
e ganhe
algo em
troca: cultura.
1966.15.8 - Ismael NERY, Figura, c. 1927/28, óleo sobre tela, Coleção MAC USP
A AAMAC conta com um programa de adesão voluntária
para pessoas físicas e jurídicas interessadas em participar
das atividades do Museu de Arte Contemporânea da USP.
aamac .org.br
editorial
EXPEDIENTE
transformar o Brasil?
Thomaz Souto Corrêa
J. Roberto Whitaker Penteado
(MTB no 178/01/93)
Coordenação Editorial
S
Lúcia Maria de Souza
Editora Assistente e nossos políticos fossem éticos no trato da coisa pública, como já pedia
Anna Gabriela Araujo Aristóteles, os impostos cairiam pela metade no Brasil. Se os governos res-
Edição de Arte peitassem o cidadão, teríamos tido um Procide, antes do Procon. Se respei-
Mentes Design tássemos mais o mérito, teríamos de apelar menos ao “jeitinho”. Se investíssemos
Revisão na pré-escola, daríamos um salto no ensino fundamental. Se nossos advogados
Anselmo Teixeira de Vasconcelos fossem menos prolixos, a Justiça brasileira seria muito mais ágil. Finalmente, se
Antonio Carlos Moreira
Mauro de Barros não tivéssemos um complexo de vira-lata, a indústria brasileira não teria perdido
para os estrangeiros US$ 100 bilhões só no ano passado.
Redação
Rua Dr. Álvaro Alvim, 123
São Paulo – SP – CEP 04018-010
Tel.: (11) 5085-4508
Poderíamos ir muito além, nessa lista de expectativas que nunca se realizam. Por
Fax: (11) 5085-4646 que será que é tão difícil mudar as coisas em nosso país? Será que deixaremos
e-mail: revista@espm.br
um dia de assistir à malversação do dinheiro público, ao apego a ideologias ultra-
Comercial passadas e à vitória das mediocridades, a que já se referia Rui Barbosa? Muitos
MidiaOffice
Julio Cesar Ferreira
acreditam que sim, mas, como pensam os nossos colaboradores, impõe-se uma
(11) 9 92224497 condição: para transformar o país, teremos antes de mudar alguns de nossos
juliocferreira@uol.com.br
valores, crenças e atitudes.
Impressão
Referência Gráfica
orcamento@referenciagrafica. Mas mudar nossos valores não será uma tarefa fácil. Os sociólogos dizem que é
com.br preciso pelo menos uma geração para que os valores de uma sociedade comecem
Distribuidor Exclusivo a mudar. Até agora, pelo menos, estamos aprofundando cada vez mais a distância
FC Comercial e Distribuidora S.A. que nos separa das nações que hoje estão na vanguarda do mundo. Por exemplo,
Operação em Bancas o último estudo da Unesco sobre a qualidade de ensino no mundo coloca países
Assessoria asiáticos nos sete primeiros lugares, enquanto nós ficamos com o 58º lugar na
Edicase
www.edicase.com.br lista. Agora surge a notícia de que a China acaba de desbancar os Estados Unidos
como a maior potência comercial do mundo. Os asiáticos são hoje o motor do
Revista da ESPM
Publicação bimestral da Escola Su- progresso humano, e a vantagem que possuem são os seus valores sociais e pes-
perior de Propaganda e Marketing.
Os conceitos emitidos em artigos
soais. Até parece que a “ética protestante” de que falava Max Weber transferiu-se
assinados são de exclusiva respon- para o Oriente.
sabilidade dos respectivos autores.
Professores, pesquisadores, consul No entanto, desejamos encerrar este editorial com uma nota de otimismo. Nas pá-
tores e executivos são convidados a
apresentar matérias sobre suas es-
ginas que se seguem, o leitor encontrará análises críticas, mas também propostas
pecialidades, que venham a contribuir e sugestões de mudanças, feitas por grandes juristas, acadêmicos e empresários.
para o aperfeiçoamento da teoria e da
prática nos campos da administração
Convidamos ainda vários homens públicos a se manifestar, mas eles preferiram
em geral, do marketing e das comuni- silenciar. Aparentemente, os políticos são os que mais temem, ou menos desejam,
cações. Informações sobre as formas e
condições, favor entrar em contato com transformar o Brasil.
a coordenadora editorial.
Francisco Gracioso
Presidente do Conselho Editorial
PARA ASSINAR, LIGUE: (11) 5085-4508 OU MANDE UM FAX PARA: (11) 5085-4646 - www.espm.br/revistadaespm
instituição mantenedora
shutterstock
Pág 16
Ética: a matéria-prima de
que o Brasil mais se ressente
José Renato Nalini Revolução de valor estabelecer novos compromissos
Arthur Meucci e Clóvis de Barros Filho
Na crise contemporânea de valores, éticos entre os cidadãos do mundo
a ética perdeu lugar por inúmeras As novas gerações querem conversar, e, assim, garantir a sobrevivência
razões. Mas ainda há esperança de questionar e propor soluções para dos seres humanos na Terra
que o comportamento ético recupere tudo: política, educação, produtos,
Pág 78
sua valia, ante a permanência de serviços e até na maneira como as
sintomas, como o amor nutrido no empresas gerenciam seus recursos
seio das famílias financeiros e humanos. Saiba como O que está acontecendo
isso ocorre, na prática com os nossos jovens
Pág 24
profissionais?
Pág 48
Alexandre Prates
Reformar é preciso O líder que não dedicar tempo à
Saïd Farhat Especial – O que as educação dos jovens profissionais
religiões podem fazer
O sistema político vigente no Brasil a continuará reclamando e colhendo
ninguém representa. Precisamos de
por um mundo melhor? os frutos de uma gestão que não
Anna Gabriela Araujo
uma reforma urgente, mas não basta acompanha as mudanças. Não
dizer ”ladrão não pode ser eleito”. É A Revista da ESPM foi a campo precisamos mudar os valores que
preciso criar um modelo de política avaliar qual é o papel da religião regem nossa sociedade, apenas
baseado na honradez e na verdade. É na sociedade do século 21 e como vivê-los, de fato
difícil. Mas não impossível os princípios e valores religiosos
Pág 82
influem no comportamento das
Pág 30
famílias brasileiras. Confira o que
pensam os seguidores de oito A cultura do bem estar bem
Tumulto ético: um país igrejas diferentes Newton Branda
em busca de rumo Pág 58 O empreendedor Luiz Seabra
Renato Caporali
conseguiu construir uma das
O Brasil atravessa a mais grave crise empresas mais admiradas do Brasil:
ética de sua história, fruto de sua
Agenda para um a Natura. Seu segredo é simples:
formação cultural. Será inevitável
novo contrato social mais do que inaugurar uma loja
Oded Grajew
transformar a questão ética em para vender cosméticos, ele optou
um problema nacional, a ser tratado Hoje, no início do século 21, por praticar o ”bem estar bem” no
de forma estruturada e inovadora necessitamos, claramente, de um dia a dia de suas operações
Contrato Social, que possa
Pág 40 Pág 90
32
maior agilidade e melhor qualidade, se
A humanidade entrou em uma nova
comparadas aos canais tradicionais
fase: o ”Tecnofeudalismo”. Agora,
quem não está onde o dinheiro ou Pág 106 Paciência, generosidade
a informação trocam de mãos é
e solidariedade
classificado como ”servo”. Diante O casamento da indústria Mario Sergio Cortella
desse cenário, a realidade brasileira cinematográfica com o
descrita nas obras de Monteiro marketing internacional
Lobato parece muito atual Edmir Kuazaqui
Pág 96 O ”Pensar globalmente e agir
localmente”, de Philip Kotler, tem salvo
We are anonymous – razão
de ser e razão de Estado
muitas produções cinematográficas
norte-americanas do fracasso 52
Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos irremediável
Inversão de valores
Veja como a democracia e a liberdade, Pág 112 Eduardo Meinberg de
Albuquerque Maranhão Filho
Seções
INSC|ESPM
O poder dos internautas 118 70
Alumni ESPM
O elo mais forte da Corrente do Bem 122 “Nossa missão
vai muito além da
Leitura recomendada 130 geração de energia”
Jorge Miguel Samek
Ponto de vista
Competição ou solidariedade 134
José Pastore
Cargo: sociólogo formado pelas Escola de Sociologia
e Política de São Paulo (1960), Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1961) e
Universidade de Wisconsin (EUA), onde completou o Ph.D.
Atuação: professor (aposentado) da Faculdade de
Economia e Administração e pesquisador da Fundação
Instituto de Pesquisas Econômicas, ambas da USP. É
membro efetivo da Academia Paulista de Letras
Carreira: Além de lecionar na USP desde 1977, trabalhou
como pesquisador e professor visitante em inúmeras
universidades nacionais e estrangeiras, como a
Universidade de Brasília, a Escola de Sociologia e Política
de São Paulo e as Universidades de Wisconsin, Yale
e Califórnia. Escreveu mais de 400 ensaios e artigos
publicados nos campos da educação, relações do
trabalho e recursos humanos
Alexandre — No fim de outubro, o se- lada ao desempenho. Não só dos pro- apenas quatro vezes. A palavra “pro-
nhor escreveu um artigo para O Estado fessores, mas em outras áreas. Será dutividade” aparece duas vezes e a
de S.Paulo em que pergunta, retorica- que o Brasil é o único certo? Porque palavra “eficiência”, uma. Então, veja
mente, se “O Brasil é o único certo”. O outros países, apesar da resistência, que na nossa Carta Magna já há essa
texto critica a oposição arraigada de sin- estão conseguindo avançar e fazer concepção de que a lei é para garantir
dicatos brasileiros quanto à meritocracia contratações ligadas ao desempenho. mais direitos do que deveres.
e à busca de ganhos de produtividade.
No seu entender, esse apego ao que cha- Alexandre — Talvez a resistência à me- Alexandre — A nossa Constituição
ma de “remuneração desvinculada de ritocracia seja mais presente em nossa dificulta a introdução da meritocracia
desempenho” é um fenômeno brasileiro? sociedade. na sociedade?
Pastore — É um fenômeno internacio- Pastore — Na nossa sociedade, ela é Pastore — Há, dentro da nossa Consti-
nal. Existe uma tendência mundial vitoriosa. Nos países avançados, não. tuição, muitas fontes de agravamento
de os sindicatos quererem manter a Ela é debatida, mas já se veem avan- da desigualdade e do protecionismo.
remuneração homogênea ou isonô- ços no sentido de superá-la. Por exemplo: como você pode ex-
mica, desvinculada de produtividade. plicar racionalmente o fato de estu-
Alexandre — A resistência à merito- dantes da classe média alta e da elite
Alexandre — É o que temos visto em cracia não é nova no Brasil, mas tem passarem pelas melhores escolas
Nova York e em outras grandes cidades se tornado até violenta. Que valores médias, que custam muito dinhei-
americanas, onde os professores resis- o senhor entende estarem por trás da ro, e, na hora em que entram numa
tem à ideia de se estabelecerem rankings postura de professores do Rio de Janeiro universidade pública, como a USP,
de melhores escolas e premiar os profis- que ficaram em greve por três meses e reivindicam, batem o pé e conseguem
sionais com resultados acima da média. invadiram a Câmara Municipal duas gratuidade? Isso é garantido pela lei.
vezes, justamente porque não querem Uma lei de má qualidade, no meu
Pastore — Sim, mas, ao mesmo tempo ser avaliados e submetidos a esse siste- entender, porque ela exacerba a de-
em que há resistência dos sindicatos, ma meritocrático? sigualdade. O Brasil não tem falta de
há avanços nas negociações. Nos Es- leis, tem falta de leis de boa qualidade.
tados Unidos, muitas cidades já estão Pastore — Temos uma cultura baseada
contratando professores com base na crença de que as únicas proteções Alexandre — Quando vivemos, em ju-
no desempenho. É o caso também da que funcionam são aquelas garan- nho, as grandes manifestações popula-
Coreia do Sul. tidas pelo governo. Isso tem raízes res de rua, a presidente Dilma Rousseff
históricas. Durante o período colo- levantou, por poucos dias, a bandeira
Alexandre — Em que sentido o senhor nial, tudo era garantido pelo Estado. da convocação de uma assembleia cons-
faz essa provocação: se o Brasil seria o Arrastamos essa herança cultural até tituinte. A ideia de se mexer na nossa
único país certo? hoje. Se analisarmos a Constituição Constituição lhe parece boa?
Federal do Brasil, verificaremos que
Pastore — O Brasil insiste em detonar a palavra “direito” aparece 76 vezes, Pastore — Muita coisa poderia ser me-
todos os planos de remuneração atre- enquanto a palavra “dever” é citada lhorada sem mexer na Constituição.
Agora, se houver disposição para pro-
duzir uma Constituição mais moder-
Se analisarmos a Constituição Federal do Brasil, na e ajustada ao mundo globalizado
e competitivo, eu nada tenho contra.
verificaremos que a palavra “direito” aparece Mas não sinto que o ambiente seja
76 vezes, enquanto a palavra “dever” é citada este. Se houver a mudança, é capaz de
apenas quatro vezes termos mais protecionismo, porque
Alexandre — Isso, por si só, não seria como a Embrapa, a economia brilha, tividade. Nós ficamos estagnados. Se
negativo. As pessoas podem até não ser o país se desenvolve e desponta como nós não mudarmos os estímulos, para
qualificadas, mas é melhor vê-las incor- líder mundial. Se você mantém tudo instigar mais criatividade e produtivi-
poradas à força de trabalho, não? na base da proteção, tudo garantido dade, o Brasil não terá muita chance.
por lei ou pelo Estado, os agentes
Pastore — Melhor dentro do trabalho econômicos são pouco estimulados Alexandre — Qual é o peso de fatores
do que fora. Agora, no trabalho, elas a inovar. O Brasil sofre desse mal, se- históricos na relação dos brasileiros com
adicionam pouco. Em relação aos cularmente. Aqui, existe um excesso o trabalho?
nossos concorrentes internacionais, de proteção. Para usar a palavra mais
elas nos deixam para trás. A corrida certa, de protecionismo. Pastore — Não há dúvida de que o que
é em relação a um ponto móvel. Por acontece hoje tem raízes no passado. O
exemplo: enquanto aumentamos em Alexandre — Olhando por uma pers- peso da história é grande. Fomos um
1% a nossa produtividade, o coreano pectiva histórica mais ampla, o senhor país por muito tempo colonizado por
registra um ganho de 5% por lá. O acredita que estamos vivendo um mo- um povo extremamente autoritário,
alemão também, o japonês idem. mento turbulento numa rota de evolu- que instigava pouco a criatividade. A
Não podemos dizer que está melhor ção da nossa democracia que um dia empresa moderna dá aos empregados
porque eles [os trabalhadores pouco nos levará a ser uma sociedade mais as linhas gerais do trabalho. Quem
qualificados] estão trabalhando. Mas meritocrática e inovadora? Ou será que tem de encontrar as soluções são eles.
em função daquilo que o país precisa, estamos limitados, por uma questão his- Historicamente, nunca tivemos essa
como parte da economia global, isso tórica e cultural, em nossa capacidade cultura de autonomia. Na escravidão,
significa pouco, bem pouco. de avançar por essa via? o senhor definia a tarefa específica que
o escravo tinha de cumprir. Essa raiz
Alexandre — O senhor começou a res- Pastore — Eu não tenho bola de cris- histórica vai longe.
ponder à pergunta sobre a estagnação tal, mas penso que o Brasil chegou
da produtividade falando de inovação. a um ponto desafiador. O modelo de Alexandre — Fica a sensação de que
Na realidade, os índices de inovação proteção pelo Estado não dá mais uma parcela da nossa cultura nacional é
que tenho visto estão caindo, e não au- conta de manter a eficiência da eco- parte oculta do que chamamos de custo
mentando, com a provável exceção do nomia. Não há condições de se cons- Brasil, em termos de competitividade.
setor agropecuário, no qual a inovação truir uma economia mais eficiente
é importante por conta da Empresa com esse protecionismo estatal que Pastore — Concordo.
Brasileira de Pesquisa Agropecuária inibe a inovação, a criatividade, o
(Embrapa). No último ranking interna- desempenho, a produtividade e o Alexandre — De onde mais vêm essas
cional de inovação, o Brasil perdeu po- avanço. Nos últimos 20 ou 30 anos, o crenças e esses valores que fazem o Bra-
sições e aparece apenas no 56º lugar... mundo disparou. A produtividade da sil ser o país que é hoje?
Coreia do Sul, por exemplo, é quase
Pastore — O caso da agropecuária tão alta quanto a da Alemanha. O Pastore — Aqui vou me valer do Sér-
foi bem lembrado, porque mostra mundo em desenvolvimento foi con- gio Buarque de Holanda. Temos uma
que, quando você investe em ideias, vergindo para altos níveis de produ- cultura que começou com o espírito
da apropriação. Ele teve um aspecto
predatório muito grande para o cres-
O Brasil está vivendo uma crise institucional cimento do país no período do Brasil
Colônia. Teve também reflexos na for-
no que tange aos valores que sustentam mação da personalidade do brasileiro.
as instituições, a Justiça do Trabalho,
a legislação do trabalho, a área educacional Alexandre — Aproveito sua capacida-
O
Estado moderno é um Estado mastodôntico. repercussão que o mesmo triste fenômeno, quando ocorre
Seja desenvolvido, seja emergente, o Estado nos governos de direita. O episódio do mensalão foi uma
moderno é mais do que a sociedade. Pesa- exceção, graças ao equilíbrio de poderes que a Constitui-
lhe mais do que lhe presta serviços. Não ção garantiu. Simone de Beauvoir, no seu livro Os man-
representa o desejo de seu povo, mas sim de quem detém darins (Editora Nova Fronteira, 2002), mostrava como na
o poder. A democracia que o caracteriza é apenas a demo- França do pós-guerra tudo justificava o ataque à direita,
cracia de acesso. O eleitor é chamado a votar e depois não mesmo quando não merecia, e tudo justificava esconder
tem mais participação nas decisões do governo. os defeitos da esquerda, mesmo quando valeria a pena
Há, por outro lado, por parte de parcela da mídia uma divulgá-los por uma questão de equilíbrio e de justiça.
forte tendência a valorizar os governos socialistas e a des- Raramente, vimos os governos de esquerda colocarem
valorizar os governos de economia de mercado, até por em prática os teoremas “redistributivistas”. Quase sem-
força de uma realidade na qual os jornalistas nada têm a pre a única distribuição que praticam tem como benefi-
perder, de um lado, e a livre concorrência nada tem que ciários seus adeptos e correligionários, que se enquistam
ver com a ideologia propriamente dita, de outro. nos governos após a conquista do poder. Como disse Rui
A preferência ideológica pela esquerda de muitos inte- Falcão, inteligente e perspicaz líder da esquerda no Bra-
lectuais é, de rigor, uma preferência psicológica, farta- sil, “não há administração pura”, e as administrações de
mente enraizada numa inveja subconsciente, ou seja, de esquerda são mais impuras do que as administrações de
não se ter o mesmo sucesso que outros têm, em função da direita e menos eficientes.
falta de criatividade e inveja da criatividade dos outros, Por outro lado, nas economias de mercado, nem sem-
ou seja, aqueles que têm permitido o progresso da socie- pre se tem uma visão clara dos objetivos. Entretanto,
dade. Deseja-se retirar recursos de quem soube ganhar, elas costumam ser mais bem-sucedidas que os regimes
trabalhando, justificando tal “ideal” com o rótulo de “dis- de esquerda. Essas economias de mercado também são
tributivismo”. É mais fácil, portanto, ser de esquerda do mais geradoras de emprego e desenvolvimento, lem-
que de direita, quando os que invejam os bem-sucedidos brando que os países que obtiveram maior sucesso eco-
não conseguem ter o mesmo nível de sucesso. nômico não são socialistas. Por outro lado, os governos
A tendência, por outro lado, dos governos de esquerda socialistas que assumiram economia de mercado nos
de controlarem a mídia decorre do desconforto de terem moldes de governos capitalistas só conseguiram cres-
shutterstock
suas mazelas expostas pelo jornalismo investigativo. cer quando deixaram de ser socialistas, praticando as
É de lembrar, entretanto, que a corrupção, o cliente- mesmas técnicas e mecanismos dos governos liberais.
lismo e a ineficiência dos governos de esquerda têm menor Foi o que ocorreu com a China.
Política
latinstock
e pouco altruístas, a não ser com seus fiéis correligioná-
rios. Por outro lado, os ricos, infelizmente, só trabalham
para o social quando têm os faróis da mídia e da comuni-
cação a afagar suas vaidades, desdobrando-se, açulada-
mente, para frequentar as páginas das revistas e dos jor- Simone de Beauvoir, no seu livro Os mandarins, mostrou
como na França do pós-guerra tudo justificava o ataque
nais, em que exibem, como pavões, os sinais exteriores à direita, mesmo quando não merecia e tudo justificava
de suas riquezas. esconder os defeitos da esquerda
Nada melhor, para estimular a inveja da esquerda, do
que o fútil exibicionismo da direita rica, as mulheres osten-
tando plásticas rejuvenescedoras, roupas caríssimas e Quase todos os políticos têm projetos pessoais e utili-
frequentando festas fenomenais e os homens acolitando zam-se de seus eleitores para realizá-los. A demagogia é a
esta folclórica manifestação de futilidades e desperdícios. essência da sua pregação. Já não se importam em ser trans-
E, de rigor, esta classe social composta de invejosos da parentes ou altruístas, mas apenas em impressionar bem.
esquerda e de exibicionistas da direita vai se tornando, jun- A imagem do político não é construída a partir de sua
tamente com aqueles que exercem o poder, ou seja, políti- atuação como homem público, mas aquela que o asses-
cos e burocratas, um enorme peso morto que a sociedade sor de imprensa, o homem da publicidade, denominado
deve suportar, além do Estado e do governo, que são apenas “marqueteiro” da mídia, constrói.
os próprios detentores do poder e jamais o próprio poder. Nada é tão distante do político atual quanto a imagem
que os homens de mídia por ele contratados edificam
Os políticos perante o público e que deve ser seguida à risca para que
Uma das características do Estado mastodôntico da atu- tenha viabilidade eleitoral.
alidade é a sua classe política. Em outras palavras, o eleitor vota não no político como
ele é, mas na imagem dele produzida por especialistas
em ilusões. Criam um herói cinematográfico e vendem
Um dos aspectos da corrupção esta imagem, como se fosse de um idealista dedicado à
pátria e aos interesses da comunidade.
reside na gradativa insensibilidade Uma vez eleito, seu compromisso com o eleitorado deixa
que o corrupto vai adquirindo, como de existir e só será retomado nos últimos meses de seu man-
o drogado, nos seus desvios de conduta dato para, novamente contratando os “especialistas da ilusão”
latinstock
Rui Falcão, presidente do PT: ”Não há administração Margaret Thatcher governou a Inglaterra de 1979 até 1990,
pura. Até nas empresas existe política, disputa de poder, e só perdeu por ter acreditado que o aumento de tributação
mediações. Às vezes, o empresário admite até prejuízos do seria irrelevante para a Grã-Bretanha. O povo reagiu e a
ponto de vista da eficiência para poder ganhar lá na frente” ”Dama de Ferro” acabou derrotada
— muitas vezes “os especialistas da mentira” —, venderem e infidelidade partidária seu ideal de vida, razão pela qual,
sua imagem de dedicado cidadão e agente público exemplar. por pensar somente em si e pouco nos representantes e
Em qualquer país do mundo democrático e especial- na pátria, não auxilia o desenvolvimento da nação, nem
mente no Brasil, os melhores marqueteiros são os que a solução dos grandes problemas.
vencem as eleições e são disputados a peso de ouro. Dir-se-á que esse é um mal necessário da democracia,
À evidência, o compromisso do marqueteiro é com sua pois, de tempos em tempos, deve correr atrás de novos
profissão, “vender ilusões”; não tem nenhuma vinculação eleitores, mas, para tanto, conta sempre com os mar-
com os ideais dos candidatos que “produz”. queteiros de ocasião.
Por essa razão é que a democracia, no mundo, é uma Há de se convir, entretanto, que a verdadeira democracia
singela democracia de acesso, tanto mais frágil quanto está longe do retrato que os políticos da atualidade no mundo
mais o regime vincular-se às soluções presidenciais e inteiro apresentam — decididamente um péssimo retrato.
não parlamentares. E a democracia atual é apenas menos ruim que a ditadura.
É que, no sistema parlamentar de governo, a alternân-
cia no poder é mais rápida e só nele permanece o político Os burocratas
consistente. Margaret Thatcher governou a Inglaterra Outro aspecto a conformar o Estado mastodôntico é o
durante 11 anos e apenas perdeu por ter acreditado que papel dos burocratas: os servidores públicos de carreira.
o aumento de tributação seria irrelevante. O povo rea- Aqueles que entram no serviço público, muitas vezes,
giu e ela foi derrotada. vivem sem maior interesse pela sociedade, e pensam
O político — a maioria, visto que há sempre algumas apenas em sua aposentadoria para gozar, com folga, o
exceções — é alguém que faz do carreirismo, fisiologismo repouso futuro.
Cristo teve 12 apóstolos. Um deles o traiu. Era exata- Política e corrupção. Poder e corrupção. Burocracia e
mente o que cuidava da bolsa, manipulava o dinheiro. Pode corrupção. São características permanentes dos homens
ter sido uma coincidência, mas, em face do livre arbítrio que dominam os povos, considerando-se mais dotados
que Deus outorga a todos os seus filhos, foi ele mal usado. que a sociedade para subir na vida, à custa dela.
E vendeu Cristo por dinheiro, tendo se arrependido — não
como Pedro — e, no desespero, cometeu um segundo ato O povo
tresloucado, o suicídio. O povo pouca atuação consciente tem, nos destinos
Lord Acton, ao dizer que o poder corrompe e o poder dos governos. Seja nas ditaduras, seja nas democracias.
absoluto corrompe absolutamente, não fez senão afirmar Nas democracias, à evidência, há um verniz de atua-
o óbvio. Um dos aspectos interessantes da corrupção ção, reduzida à participação na escolha dos governan-
reside na gradativa insensibilidade que o corrupto vai tes, que, todavia, é fantasticamente manipulada pelos
adquirindo, como o drogado, nos seus desvios de conduta. marqueteiros de ocasião.
Adolf Hitler, no dia 27 de abril de 1945 — três dias antes A manipulação para a conquista do poder é a carac-
de seu suicídio —, fez uma observação anotada por seus bió- terística maior da democracia de acesso, sendo o verda-
grafos, segundo relatos daqueles que ficaram no “bunker” deiro eleitor dos candidatos o seu homem de comunica-
com ele, que serve para mostrar a insensibilidade que o ção social. A obra do candidato, seu desempenho, sua
poder vai gerando. Disse: “Se de alguma coisa tenho de personalidade, são quase sempre reconfigurados para
me arrepender é de ter sido tão generoso com as pessoas”. melhor, pelo marketing político.
No mundo inteiro, todos os preços públicos são maio- O povo não manda, nada decide, tudo suporta. Grande
res do que os preços privados, porque neles está incluído parte dele não tem condições de julgar o que é verdade e
o preço da corrupção. Os corruptos recebem uma porcen- o que é mentira nas campanhas eleitorais.
tagem paga por fora. Nos países emergentes, a incapacidade popular é ainda
Manuel Ferraz de Campos Salles foi um presidente maior e a manipulação mais fácil. Conforme o grau cul-
brasileiro que entrou rico na política e saiu pobre. A tural ou as tradições dos povos, as manipulações podem
grande maioria dos políticos — que só vivem de política gerar fanatismo e dependência a líderes carismáticos.
e com subsídios e vencimentos parcos, se comparados Nesses países, os que controlam a opinião pública são
aos padrões internacionais — entra pobre na política e os que auxiliam os governantes a governar, indepen-
dela sai rico. dentemente do povo.
Nunca se falou tanto em ética no mundo e nunca se viu Não significa, todavia, que o povo não seja manipu-
tantos problemas espoucarem nesse campo, diariamente, lado, nos países desenvolvidos. As fortunas que se gastam
desvendando corruptos, na burocracia e na política. nas campanhas eleitorais são ainda maiores do que nos
Outro aspecto negativo é a conotação ideológica. emergentes, e a elite dos grandes grupos empresariais,
Quando os órgãos responsáveis pelo combate à corrup- sindicais e de interesses corporativos da administração
ção têm preferências ideológicas, passam a ser seletivos. termina por conduzir as eleições não necessariamente
Lutam para descobrir a podridão dos que tenham ideo- para o melhor, mas quase sempre para o candidato que
logia diferente e escondem a podridão dos que pensam contratou o melhor publicitário. Quem decide a eleição,
como eles, tornando-se — mesmo que não recebendo pois, não é o povo, mas o homem da propaganda.
dinheiro do poder — corruptos de outra espécie, ou seja, Prometer, em política, não compromete. Todos os can-
“corruptos ideológicos”. didatos sabem que seu compromisso com o programa de
campanha é nenhum. Por isso prometem tudo e quase
nada cumprem.
Na democracia que idealizo para meu A omissão das elites e a permanente incapacidade do
povo de distinguir entre “marketing” e “verdade”, além da
país, o cidadão deveria ser o senhor de falta de mecanismos jurídicos para controle dos deten-
todos os direitos sobre os governantes e tores do poder, tornam a sociedade, de rigor, mero ins-
estes, apenas seus servidores trumento de domínio dos políticos.
Ética: a matéria-prima
de que o Brasil mais se ressente
Haverá futuro para a ética no mundo que sepulta os valores e repudia princípios tradicionais?
lidade da vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade e ao convívio saudável. No artigo La Famille, escrito em
a segurança. Ao mesmo tempo, denota-se o desprestígio 1956, Claude Lévi-Strauss, um dos maiores intelectuais
que eles merecem no cotidiano. do século 20, assinalou: “A vida familiar apresenta-se
latinstock
a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si
mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, auto-
biográfico, individualizado, cuja grande fratura a psica-
”Ao contrário de todos os outros bens que buscamos tendo
nálise tentará assumir durante todo o século 20”, escla- em vista outra coisa, a felicidade é buscada por ela mesma:
rece Elisabeth Roudinesco, no livro A família em desordem é o soberano bem. Naquilo em que não há acordo é sobre a
(Editora Zahar, 2003). sua natureza e a definição do que ela é”
A vida era estável e tranquila. A sociedade ainda provin- Aristóteles
ciana era em grande parte caracterizada por sólidos hábi-
tos rurais. As cidades repartiam com o campo uma popu- Abordemos, ainda que superficialmente, algumas delas.
lação equilibrada, ainda incólume à intensa urbanização, A revolução feminina garantiu à mulher uma legítima
semeadora de extensas áreas conurbadas e problemáticas. e altaneira posição na sociedade. Não se justificava man-
Poucas décadas atrás os brasileiros habitavam o interior. tê-la em situação de inferioridade legal, pois a diferença
De repente, houve uma explosão das urbes e, com ela, a de sexos não interfere na identidade comum. Ambos
implosão do caráter. São múltiplas as causas e não se mos- integram a espécie humana. Todavia, um dos efeitos
tra viável quantificar a influência de cada uma delas na perversos dessa conquista de espaços foi a entrega do
erosão axiológica hoje disseminada e reconhecida pelos infante educando a mentores nem sempre igualmente
que se preocupam com os índices civilizatórios aferíveis capazes na formação das novas gerações.
numa sociedade complexa como a brasileira. A Igreja, que sempre desempenhou um papel relevante
na consolidação de objetivos coincidentes com a moral
tradicional, começou a perder autoridade. De uma aliança
Poucas décadas atrás os brasileiros que, em algumas hipóteses, chegou à promiscuidade,
habitavam o interior. De repente, houve uma ruptura entre Estado e Igreja e, pior ainda,
entre Igreja e Sociedade e entre Igreja e Família.
houve uma explosão das urbes e, O agnosticismo não impede uma conduta ética irre-
com ela, a implosão do caráter preensível. Mas a confissão religiosa representa uma
latinstock
apontam Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, no livro A
cultura-mundo — resposta a uma sociedade desorien-
tada (Companhia das Letras, 2011). O significado de
”Ah, que sabeis da felicidade do homem, vós almas
tal mudança é o controle exclusivamente pessoal do confortáveis e bondosas! Pois felicidade e infelicidade são
tempo livre, a dedicação voltada ao próprio interesse duas irmãs gêmeas que, ou bem crescem juntas, ou então,
e a edificação de um mundo egoísta. como é o vosso caso, continuam pequenas juntas!”
Simultaneamente, acentuam-se as desigualdades e a Nietzsche
exclusão é a regra mais observada em todas as socieda-
des de hoje. A legião dos despossuídos é muito superior noite, da solidão, do abandono e do isolamento”, observa
à casta dos que sobrevivem com facilidade e não pade- o autor de A política do rebelde — tratado de resistência e
cem de escassez dos bens da vida. Autores como Michel insubmissão (Editora Rocco, 2001). Embora a realidade por
Onfray são bastante cáusticos ao comentarem o aumento ele focada seja a de Paris, cujos banlieues são tomados por
dos moradores de rua: “Sujos, hirsutos, fedorentos, vesti- uma turba marginalizada oriunda das colônias, aqui no
dos de farrapos, amarrados como embrulhos, protegidos Brasil a situação não é muito diversa. Com a agravante
por artefatos que são também uma colagem de dejetos, os de que a droga se disseminou por todos os ambientes e
mendigos aumentam frequentemente sua claudicação multiplica os sem perspectiva que renunciam a qualquer
pelo uso do álcool como único viático, único revigorante valor e ocupam espaços públicos e desvãos privados.
permitido para atravessar as provas do frio, da fome, da Aqueles que poderiam e deveriam se preocupar com
os ideais da igualdade são os que mais se beneficiam
da crescente desigualdade. Ávidos de poder, não hesi-
A legião dos despossuídos é muito tam na espoliação dos mais fracos. Traduz a formata-
ção do tipo ideal de homem para o exacerbado capi-
superior à casta dos que sobrevivem talismo reinante: “Seu retrato é conhecido: iletrado,
com facilidade e não padecem de inculto, ávido, limitado, sacrificando-se às palavras
escassez dos bens da vida de ordem da tribo, arrogante, seguro de si, dócil, fraco
com os fortes, forte com os fracos, simples, previsível, cônjuges — que às vezes escolhem não ser pais — se prote-
amante arrebatado dos jogos e dos estádios, devoto do gem dos eventuais atos perniciosos de suas respectivas
dinheiro e sectário do irracional, profeta especializado famílias ou das desordens do mundo exterior. É tardio,
em banalidades, em ideias curtas, tolo, néscio, narci- reflexivo, festivo ou útil, e frequentemente precedido de
sista, egocêntrico, gregário, consumista, consumidor um período de união livre, de concubinato ou de experi-
de mitologias do momento, amoral, desmemoriado, ências múltiplas de vida comum ou solitária”, assegura
racista, cínico, sexista, misógino, conservador, reacio- Elisabeth em sua obra.
nário, oportunista, portador ainda de alguns traços da Luc Ferry vai além. Após concluir que o século 20 agiu
mesma natureza que definem um fascismo ordinário”, como um ácido, eliminando valores tradicionais, com a
acrescenta Michel Onfray. desconstrução dos princípios da igualdade, liberdade e
Entretanto, no discurso e na retórica prevalece o tom fraternidade, ele afirma que a reconstrução desses valo-
de preocupação com os excluídos. Desde a doação de ali- res ou ideias reside exatamente no âmbito da vida pri-
mentos, desvinculada do “ensinar a pescar”, até ao midi- vada. Para o autor de Famílias, amo vocês — política e vida
ático mecenato de quem se diverte em nome da filantro- privada na era da globalização (Editora Objetiva, 2008),
pia. A caridade é um espetáculo cínico, a servir mais a não se deve abandonar a preocupação com o coletivo e
quem o protagoniza do que ao pretenso destinatário. os grandes projetos. Ao contrário: “Simplesmente nossa
Pois “na falta de justiça, o sentimento promovido como relação com o coletivo, sob o efeito da história da família
caritativo se apoia nas associações de voluntários, nas moderna, mudou de sentido: a exemplo da preocupação
sociedades de caridade, as doações solicitadas por meio ecológica, ela se formula hoje em todos os campos, em
de grandes espetáculos nos quais o mundo midiático, termos de ‘gerações futuras’. A questão poderia simples-
entrando em cena, exacerbando o sistema, distribui os mente ser formulada da seguinte maneira: que mundo
emolumentos de uma noite sob pretexto humanista de queremos deixar para nossos filhos a partir de agora?”,
tornar a miséria suportável. E quando uma coisa parece questiona Ferry. Os valores da vida privada tendem hoje
suportável, torna-se difícil, impossível, impensável sua a se tornar universais. Podemos e devemos inventar
supressão”, esclarece Elisabeth Roudinesco. outras possibilidades.
Existe perspectiva de recuperação dos valores diante Isso interfere na aceitação do afeto para a formação de
desse quadro apenas em poucos pontos abordados? novos núcleos familiares e também na forma de se enca-
Otimistas enxergam horizonte alvissareiro. No livro rar a educação. “Se quero que meus filhos se esforcem
A família em desordem, Elisabeth mostra que há futuro na escola, não é, confesso, pela grandeza da França ou a
para a família: “Para aqueles que temem mais uma vez serviço da ideia republicana, mas para eles próprios... e
sua destruição ou sua dissolução, objetamos, em contra- para os outros, para aqueles com quem compartilharão
partida, que a família contemporânea, horizontal e em a vida, porque estou convencido de não haver existên-
‘redes’, vem se comportando bem e garantindo correta- cia bem-sucedida, nem vida comum digna desse nome,
mente a reprodução das gerações”. Os jovens ainda se sem uma considerável quantidade de trabalho porque
casam. O divórcio não fez desaparecer a instituição do a gente se humaniza e se civiliza”, define Ferry no livro
casamento. É que, “despojado dos ordenamentos de sua Famílias, amo vocês.
antiga sacralidade, o casamento, em constante declínio, O surgimento de grupos que têm idênticas preocu-
tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual os pações em relação a temas que afligem a todos — meio
ambiente, consumo de drogas, criminalidade, violência,
falta de emprego, saúde, educação — mostra que ninguém
Não depende de ninguém está sozinho quando projeta o porvir.
a restauração interna da crença A espécie humana sabe o que é metamorfose. Tem
exemplos na biologia e consegue enxergar a urgência
no mundo mais fraterno, se cada de um futuro expungido das máculas que contaminam
um de nós começar a agir assim a civilização. A síntese da perplexidade presente já foi
H
á algumas semanas discutimos na ESPM no desenvolvimento da sociedade humana. E, em par-
um tema da maior importância e atuali- ticular, na vida política de toda uma sociedade.
dade: “Como (não) sou representado no Con- Creio que, com maior ou menor intensidade, todos
gresso Nacional”. Na verdade, ninguém se sentimos — no sistema político que deveria represen-
sente politicamente representado por quaisquer órgãos tar-nos, no governo e no parlamento — a falta de res-
de um país cujo sistema eleitoral beneficia os políticos peitabilidade e honradez; de representatividade legí-
que não se pejam de lançar mão de dinheiro público. tima do povão que os elege; das aspirações; dos fatos
E, ainda mais importante, fazer leis — ou executá-las e da adoção de políticas de interesse nacional e não
em benefício de determinados interesses minoritá- pessoal ou regional; e de sua implementação.
rios ou individuais. Quero dizer: o que aí está não representa ninguém.
Essa questão, da mesma forma que o tema desta edi- Na reunião passada da ESPM, declarei claramente que o
ção da Revista da ESPM, toca fundo na importância da nosso sistema eleitoral não nos representa — individual
observação de elementos éticos, morais e institucionais ou coletivamente. Muito menos os cidadãos responsáveis
Mario Sergio
Cortella
Formação: filósofo, com mestrado e
doutorado pela PUC-SP
Atuação: professor titular de teologia e
ciências da religião da PUC-SP desde 1977,
professor convidado da Fundação Dom
Cabral. É consultor e conferencista nas
áreas de filosofia, ciências da religião, ética,
responsabilidade social, liderança, educação
e gestão do conhecimento. Dentre suas
obras estão: Não nascemos prontos (Editora
Vozes, 2006), O que a vida me ensinou
(Editora Saraiva, 2010) e Pensar bem nos faz
bem! – volumes 1 e 2 (Editora Vozes, 2013)
Carreira: militante desde sempre da
causa da educação, atuou por 32 anos no
Departamento de Teologia e Ciências da
Religião da PUC-SP. Foi assessor especial e
chefe de gabinete do professor Paulo Freire
na Secretaria Municipal de Educação de São
Paulo (1989-1991), a quem substituiu no
cargo de secretário (1991-1992)
“E
u tenho aquilo que se chama esperança ativa. Aquela que se
vai buscar e que não fica esperando.” É assim, sem esconder
uma grande dose de otimismo, que se define Mario Sergio
Cortella, um personagem incomum dentro do meio acadêmico
brasileiro. Prestes a completar 60 anos, Cortella já fez um pouco de tudo desde sua
infância em Londrina, no Paraná.
Passou pela vida monástica em um convento, até que decidiu se dedicar ao mundo
dos livros, abraçando a filosofia e a teologia. É professor titular de teologia e ciências da
religião da PUC-SP desde 1977 e militante da causa da educação. Na política, foi secre-
tário de Educação da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1993),
por quem nutre enorme admiração devido à sua postura ética na política.
Autor de diversos livros, consultor e palestrante requisitado, Cortella tem na ética
um de seus temas preferidos. Tanto que sua próxima obra, em parceria com o advo-
gado e jornalista Clóvis de Barros Filho, a ser lançada em março, tem como título
Ética e vergonha na cara. “O livro não fala só sobre ética na política, mas também em
como devemos tratá-la no cotidiano, em benefício das pessoas”, destaca o autor.
Foi um pouco sobre moral, “vergonha na cara” e Black Blocks que girou esta en-
trevista concedida à Revista da ESPM. Comunicador nato, com voz de locutor, Cor-
tella reconhece que nossos valores como nação passam por um momento crucial,
mas enxerga uma luz no fim do túnel. Para o filósofo, a mudança vai ganhar fôlego
quando três valores que já tivemos no passado — solidariedade, paciência e genero-
sidade — resgatarem nosso espírito de comunidade. “Em 30 anos de democracia, o
Brasil avançou mais do que em toda a sua história e o brasileiro está cada vez mais
ciente de seus direitos. A novidade não é mais a corrupção, mas a apuração. Não é
mais a sujeira. É o início da limpeza.”
latinstock
por trás. Era justamente a questão da
tarifa de transportes. Então tudo co-
meçou com um tema candente para A violência imposta pelos Black Blocks durante as manifestações populares
a vida coletiva. A reação policial, que acabou esvaziando o Movimento Passe Livre, em meados do ano passado
foi desmedida e pouco inteligente,
transformou o que era o movimento teção policial. Poder andar no meio Cortella — Os protestos de junho
de uns em uma causa de muitos. Isso da avenida Paulista, protestar sobre do ano passado representaram uma
levou muita gente para as ruas e, qualquer coisa, sem risco e com am- crítica às pessoas que aí estão. Ago-
nesse segundo momento, o aparato paro da polícia. Mas aí veio o tercei- ra precisamos iniciar um movimen-
policial reagiu de maneira inversa. ro movimento, e esse foi negativo. to contra as pessoas que votaram
Não como cúmplice, mas calado e Quando aquilo que era uma eclosão naqueles que provocaram os pri-
sem reação. A partir daí, tivemos um democrática atraiu a presença de meiros atos. Vamos às fontes: não
segundo fenômeno muito interes- “democracidas”. E quando o “demo- vivemos em uma ditadura e todos
sante do ponto de vista da filosofia. cracídio” entrou em cena, com os que estão no poder foram eleitos.
Black Blocks e outros, aquilo que era O cidadão precisa fazer da política
Arnaldo — Que fenômeno foi esse? democracia voltou a ser risco. Entra- algo cotidiano, e não episódico.
mos na violência, na brutalidade, Nas cidades, isso é mais fácil em
Cortella — Fomos autorizados a ir que esvaziou esse movimento, por- função da proximidade da Câmara
para as ruas. Isso era uma coisa que que a rua ficou perigosa de novo. Aí a dos Vereadores. Em nível estadual
não acontecia há muito tempo nas manifestação perdeu fôlego. e federal, é mais complicado, mas
grandes cidades e, de repente, as não inviável. Precisamos fazer um
pessoas foram levadas às ruas, com Arnaldo — O que o senhor achou da acompanhamento mais efetivo do
ou sem algo concreto para reivindi- reação da classe política em geral? Legislativo e do Executivo. Afinal,
car. Isso virou programa com pro- Voltou tudo ao que era antes? as pessoas acompanham as nove-
las, os seus ídolos, e também devem
exercer esse papel em relação às
Num primeiro instante, a categoria política se pessoas públicas. A classe política,
encontrou em estado de tensão, mas depois embora esse termo não seja ade-
quado, ficou em estado de tensão.
relaxou. Afinal, ela tem muito mais medo Enfim, ninguém poderia imaginar
da mídia do que de qualquer movimento popular que rota tudo aquilo ia tomar.
shutterstock
nação é menor que o de não patifes
em larga escala. O número de pes-
soas que degradam a convivência
não chega a 10% daqueles que fazem Em outubro de 2013, a polícia do Rio de Janeiro trabalhou para manter a segurança
exatamente o contrário. São as do Consulado dos Estados Unidos durante as manifestações populares
pessoas que trabalham, que con-
tribuem com a sociedade, que são Cortella — Nós somos um país que nos definimos como contribuintes,
gentis com o outro. A imprensa livre tem 513 anos, mas que não tem 30 o que é estranho, já que imposto é
gera uma capacidade de divulgação anos de democracia, de mecanismos algo obrigatório. O norte-americano
e de persistência, que aumenta o vo- que conduzam uma partilha mais se define como tax payer, há uma
lume de denúncias. As plataformas eficaz daquilo que é coletivamente diferença de postura. Essa percep-
digitais aumentaram a fiscalização produzido. Nos primeiros 389 anos, ção do aparelho de Estado a nosso
e detecção dos ilícitos. A formação ou éramos uma colônia ou um im- serviço é muito recente. Além disso,
escolar da população, que aumen- pério. Nos primeiros cem anos da há 50 anos não éramos uma das dez
tou nas últimas décadas, contribui República, a participação popular nações economicamente mais po-
contra a alienação. era muito restrita. A primeira elei- derosas do planeta. Se não éramos,
ção geral no Brasil é de 1989. Então, é porque não tínhamos também as
Arnaldo — Mas ainda temos uma nosso aparelho de Estado ainda é condições mínimas de educação,
Justiça que não condena, uma polícia muito imperial ou colonial. saúde etc. Muitos de nossos índices
que é violenta, mas que não prende não são satisfatórios, mas a ver-
os grandes criminosos, um magistério Arnaldo — De que forma isso acon- dade é que, até pouco tempo, não
que dá aulas, mas não ensina, e um tece? tínhamos essa visão de partilha. No
sistema de saúde que, quando atende, momento em que se começa a colo-
cura pouco. Por que é tão difícil conser- Cortella — O Estado opera mais no car direitos como o Sistema Único
tar esses problemas? campo do favor que do direito. Aqui, de Saúde (SUS), quando se impõe
a ideia da educação para todos e a
Constituição de 1988 cria novos
A polícia passa boa parte do tempo, por conta da patamares de direitos, entramos no
campo da judicialização.
legislação e pelo modus operandi, cuidando do
patrimônio em vez das pessoas. Há um uso muito forte Arnaldo — O Estado, então, começa a
da estrutura de repressão em defesa patrimonial ter mais consciência de seus deveres?
Arnaldo — Temos um problema de que precisa transar com o diretor positivas. Nós tivemos homens e mu-
origem, é isso? para conseguir o papel. A ideia do lheres de ideologias e ainda os temos
mérito pessoal, em vez do favor do — como a Luiza Erundina, com quem
Cortella — Num primeiro momento, mandante, vai ser muito rara no eu convivi muito tempo, ou ainda
a nossa sociedade foi submetida a nosso cotidiano. Daí a frase do Tom a Marina Silva, que são mulheres
um Estado ibérico, depois a grandes Jobim de que o sucesso é uma ofen- de causas. Mas a política partidária
capitanias hereditárias e, por fim, a sa. Isso foi uma cultura dissemina- perdeu o encanto para as novas ge-
sesmarias. Cada uma com um pro- da pela própria elite, para descarac- rações, e restaram apenas algumas
prietário nomeado por ordem im- terizar o mérito das pessoas de fora pessoas com suas histórias pessoais,
perial ou por direito de herança. E o do seu círculo. com uma atitude até de heroísmo.
número de proprietários sempre foi Aliás, o heroísmo mudou de foco.
pequeno. Então, ou a população se Arnaldo — Embora haja essa descon-
submetia a esse proprietário numa fiança sobre a meritocracia na nossa Arnaldo — Não temos mais heróis?
relação servil, ou não sobreviveria. cultura, o empreendedorismo vem se
Muito mais do que gerar um povo tornando um valor muito admirado Cortella — As celebridades, que nos
pacífico, esse arranjo de sobrevi- no Brasil. Fazendo um paralelo à vida anos de 1970 eram os músicos, os ar-
vência gerou um povo desarmado. pública, na redemocratização, figuras tistas que faziam oposição ao regime
O que chamamos de pacifismo na de destaque, seja do pensamento mais ditatorial, migraram para o esporte,
nossa história é muito mais uma à esquerda ou à direita, tiveram papel a TV. Existe outro tipo de admira-
impossibilidade de reação. Não é importante na política. Passados 30 ção. Por isso, nossos heróis ficaram
casual que as regiões mais politiza- anos, fica a sensação de que as pessoas no século 20. O Obama, que surgiu
das do Brasil estão no Sul, onde a de maior talento e empreendedoras como um movimento de redenção
estrutura comunitária, do pequeno não querem mais fazer parte da polí- histórica, não manteve o mesmo
proprietário, que se associa a outros tica. O mesmo vale para boa parte do fôlego na sua reeleição. É interessan-
em cooperativas, é marcante. Ali há funcionalismo público, que já foi pres- te notar que nos países do mundo
uma marca maior de escolarização, tigiado socialmente. O governo não islâmico, sob forte repressão, estão
um enfrentamento maior do poder atrai mais as pessoas brilhantes? surgindo as novas heroínas. No Bra-
central. No entanto, onde não tive- sil, essa nova geração que chega não
mos essa condição é que de fato o Cortella — Até 30 anos atrás tínha- vê a participação na política parti-
modelo colonial se impôs. mos uma causa coletiva, que era o dária como honrosa. Por outro lado,
enfrentamento da ditadura. O pro- há sim a defesa de causas em outro
Arnaldo — Então, quem se destaca pósito era forte e a política surgia campo. O número de organizações
nesse ambiente acaba sendo malvisto? como serviço, não como benefício. não governamentais que canalizam
Não acredito que tenhamos perdido o desejo de mudança tornou o meio
Cortella — Ele vai ser percebido isso, mas se deslocou para a área do político mais restrito para essa mi-
como o amigo do rei. Na área mili- Ministério Público, onde a entrada litância. Então, não houve o fim do
tar, é o famoso “peixinho”, o amigo de pessoas com um ideal mais forte sonho, mas o poder público não é
do comandante. A história da atriz levou a uma série de turbulências mais o canal exclusivo.
No Rio de Janeiro e em
São Paulo, ônibus têm sido
incêndiados com frequência por
manifestantes que invadem
as ruas das grandes cidades
para protestar contra tudo: do
dinheiro gasto na construção de
estádios para a Copa, da falta de
médicos, da baixa qualidade do
transporte público...
É
preciso admitir: a sociedade brasileira patina
em profunda e complexa desordem ética. Não
significa que tenhamos sido melhores no pas-
sado, muito pelo contrário. Também não é cor-
reto afirmar que não estejam ocorrendo avanços, sobretudo
no que se refere à dimensão republicana da ética social.
Mas, sim, que predomina a percepção difusa de que o país
não está conseguindo avançar na prática de uma socie-
dade mais respeitosa dos valores que compartilha. Em
muitos domínios a coisa parece ter estancado. Em outros,
como no quesito violência, o problema se agrava dia a dia.
As relações políticas se tornaram caóticas, as instituições
que legislam o país estão sendo vilipendiadas por seus pró-
prios atos. Um deputado, no passado, era alguém respeitado.
Hoje é de antemão suspeito. O próprio Congresso tornou
sabedoria proclamada a lei da natureza de que não importa
a qualidade da última legislatura, a seguinte será pior.
Mas seria grave equívoco focar a questão da ética só
para o campo político. Predomina, atualmente, em quase
todos os domínios, uma situação de tumulto ético. As
manifestações recentes, para exprimir críticas e expor
demandas, terminavam destruindo o que estava em
volta, inclusive o que cobravam do governo, como ôni-
shutterstock
divulgação
Campanha ”Conte até 10”, desenvolvida para diminuir os índices de violência do Brasil. Dados do Conselho Nacional
do Ministério Público mostram que ocupamos o primeiro lugar no ranking mundial de homicídios. Em 2010,
quase 50 mil pessoas foram mortas no país, o que equivale a um massacre do Carandiru por dia durante um ano
Parado em uma avenida de São Paulo, motorista Segunda fase da campanha ”Conte até 10” leva
de ônibus espera o fim de mais um protesto na cidade, o projeto até as escolas brasileiras. Com um game
torcendo para que seu veículo não seja depredado ou e uma cartilha, a iniciativa visa criar uma cultura
incendiado pelos manifestantes de paz entre adolescentes e jovens
Comecemos pelo pior, aquele que é certamente o maior degradação material e desorganização dos presídios. Con-
problema social brasileiro. O nosso desrespeito pela vida trapomos ao desprezo pelo que se passa nos presídios a leni-
é algo que espanta o mundo. Chega a ser impressionante ência na execução de penas. Um paradoxo aparentemente,
a facilidade com que se saca uma arma e se puxa o gatilho mas as prisões são tão monstruosas que correntes jurídicas
para matar. É um grau de violência injustificado, selvagem, construíram a teoria de que o ideal é não prender. Lugares
irracional. Fizemos um Estatuto do Desarmamento que onde se deveria construir a ressocialização do criminoso,
se tornou a lei menos levada a sério nas últimas décadas, reordenando sua psique, os presídios se tornaram proces-
com as armas fluindo abundantes para os bandidos. Esta- sos de consolidação e agravamento da atitude criminosa.
tísticas apontam para o dobro de crimes violentos do que E não dá para argumentar que essa violência se resuma à
a Organização das Nações Unidas (ONU) considera situ- marginalidade, pois, nos conflitos cotidianos, normais na
ação de virtual guerra civil. A queda da violência, aqui e vida social, um estado de exasperação e passionalidade nos
acolá, se faz mais pela externalização dos problemas do coloca quase sempre na iminência de agressões, a ponto de
que por sua solução. fazermos campanhas publicitárias para que as pessoas “con-
E não há como falar em criminalidade sem constatar tem até dez” antes de partirem para a violência.
o outro lado, que é a crueldade e o desleixo com que trata- É notório o fracasso na oferta dos serviços públicos mais
mos os que cometeram crimes pelo estado de superlotação, essenciais. Ressalta a falta de constrangimento com que
shut terstock
Escolas viram palco de violência entre estudantes, que muros. Existe coisa mais patética do que uma televisão
utilizam celulares para registrar confrontos e postá-los enjaulada no teto da sala de aula?
na internet. Estudo revela que um terço dos alunos já
sofreu alguma forma de violência dentro da sala de aula Aulas tumultuadas, métodos e técnicas ultrapassa-
dos, a escola termina por se divorciar de um ambiente de
esforço e produtividade. A lassidão se impõe ao ímpeto
Nas escolas, onde as gerações se formam, a desestru- educativo. Com certeza, o problema da escola brasileira
turação moral alcança níveis alarmantes. É possível não é apenas de ordem moral, mas eu sugiro uma hipó-
dar como exemplo inúmeros episódios mais ou menos tese: esse deficit técnico não tem apenas fundamento
escabrosos, escolhidos a gosto no cotidiano das escolas técnico, tem também dimensão moral. A criação de um
do país, envolvendo alguma forma de desrespeito, inti- ambiente moralmente mais denso não pode, não tem
midação e violência. Fiquemos com a notícia publicada como ser prejudicial à escola brasileira.
nos jornais no dia em que escrevi este artigo: um terço A questão não seria se devemos ou não dar mais espaço,
dos estudantes já sofreu alguma forma de violência den- tempo e estatuto aos temas éticos, isso poderia ser con-
tro das escolas. O número de professores agredidos se siderado resolvido. O verdadeiro problema é metodoló-
aproxima dessa proporção e, se a agressão for apenas gico. Como fazer isso? Como criar (a expressão “recriar”,
moral, a incidência dispara. A violência nas escolas é como vimos, não seria pertinente) a atmosfera de uma
problema crescente e não está perto de ser revertida. sociedade ética? Como manter o diálogo em tom refle-
O nível de absentismo dos professores revela desejo xivo para que os debates não desandem para agressões
de fuga do ambiente de trabalho, a categoria se sen- precipitadas? Como preparar professores, líderes e ges-
tindo, mais que desmotivada, acuada, aviltada, des- tores para esse novo campo de reflexão, fazendo com que
respeitada. Alunos os desafiam, às vezes com audácia compreendam seu papel de orientadores, e não de juízes
inaudita, numa reversão lamentável do ethos histórico donos da verdade?
da escola, desde sempre fundado no respeito ao mestre. Cultivar a atitude tolerante como base do diálogo,
Pais frequentemente reagem a repreensões em nota ou celebrar o trabalho bem-feito, o zelo, o esmero e a per-
comportamento dos filhos agredindo professores. A severança é um caminho. Praticar a atitude prudente
desorganização transparece na degradação material (como somos imprudentes!) e o conceito de responsa-
das escolas, na falta de zelo com o ambiente físico. Gra- bilidade para construir uma ponte entre a vida profis-
des cercam os bens de valor, cercas elétricas alteiam os sional, a vida política e a vida privada. Transformar o
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Mobilização contra o aumento
das tarifas de ônibus
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Indígenas também reivindicam
seus direitos nas capitais do país
Brasileiros ao redor do mundo
aderiram aos protestos
latinstock
latinstock
P
oucas vezes vivemos um momento histórico maior participação nas decisões. Parece-nos que essa
tão fértil para discutirmos os valores éticos. hora chegou.
Em um país de origem colonial, tão submisso
aos mandos e desmandos dos conquistadores Repensando os valores
europeus e da nossa elite, um espírito de libertação se Quando somos convidados pelas empresas para rever
apossou dos nossos corações. Os movimentos sociais que seus códigos de ética, ou ajudá-las, duas perguntas sem-
tomaram as ruas do país foram o anúncio da mudança. pre aparecem: por que gastar dinheiro buscando os valo-
Trabalhadores exigindo transporte público de qualidade, res da instituição se podemos jogar palavras bonitas no
estudantes da Universidade de São Paulo (USP) reivindi- banner do MVV (sigla corporativa para Missão, Visão e
cando, bravamente, eleições diretas para reitor, profes- Valores) e escrever um código de ética, em forma de leis,
sores no Rio de Janeiro parando a cidade por melhores dizendo tudo aquilo que se pode ou não fazer? Por que é
salários e condições de trabalho, minorias enfrentando tão importante termos valores?
os agentes repressivos do Estado e exigindo o respeito Essas questões são muito mais reveladoras do que o senso
aos seus direitos políticos como seres humanos e cida- comum entende por ética. A primeira pergunta revela o
dãos. A mobilização para apoiar as causas sociais como caráter fascista da atual sociedade de mercado, pois todas
o Movimento Passe Livre, Parto Humanizado, Comissão as boas e más ações que um trabalhador pode exercer
da Verdade, entre outras reivindicações sociais, mostra deveriam se enquadrar em disposições legais. O filósofo
que nossa juventude não é tão egoísta como dizem. Neste Immanuel Kant (1724-1804), bem como o movimento Positi-
Brasil que deseja romper com valores éticos arcaicos e vista (1855-1947) que deu forma às nossas instituições, nos
opressivos, surge a esperança de podermos discutir aquilo ensinou que ética é liberdade, reflexão, consciência e livre
que consideramos certo ou errado de uma maneira mais escolha, ao passo que o direito é a antiética em essência,
participativa e inclusiva. pois, quando normatiza as ações, ele restringe a liberdade
Contagiados por esse espírito primaveril de renova- de decidir. Há decisões éticas que podem ser ilegais, como
ção, os agentes do mercado também começaram a ques- lutar pela liberdade e pela democracia em uma ditadura,
tionar os valores corporativos e as práticas comerciais bem como há ações legais e antiéticas, como prender e exe-
legitimadas até pouco tempo. Não estamos falando de cutar judeus na Alemanha nazista ou segregar e assassinar
decadência da sociedade ou do fim do capitalismo, mas palestinos em um Estado sionista. Um código jurídico não
daquilo que o economista checo Joseph Schumpeter pode ser considerado um código de ética, pois ambos pos-
(1883-1950) conceituou como processo de destruição cria- suem lógicas e objetivos distintos.
dora. Em outras palavras, para uma sociedade ou mer- A segunda pergunta, sobre a importância do valor,
cado se desenvolver, é necessário o rompimento com os revela lacunas importantes na formação acadêmica dos
sistemas antigos e a adequação às novas tecnologias e profissionais de mercado — problema este que não deve
comportamentos. Logo, o fenômeno das redes sociais ser creditado somente às universidades, mas também
e colaborativas não ficaria restrito somente ao mundo às políticas públicas de educação que excluíram a filo-
virtual. O aumento de interação entre o cliente e o site sofia do ensino médio.
visitado não iria ocorrer apenas na Web 2.0. Em algum Os valores éticos são conceitos de referência para que
momento esse modelo iria contagiar todas as empre- possamos orientar nossas ações em circunstâncias nas
sas fora da internet e os trabalhadores cobrariam uma quais não há uma resposta pronta para um problema.
latinstock
Se você não tivesse claro os seus valores, não saberia o
que fazer. Pior, o leitor poderia ter atitudes incoerentes a
cada novo problema, o que transmitiria uma certa inse-
Trabalhadores exigem transporte público de qualidade e
gurança sobre sua personalidade. Os valores que esco- protestam contra o aumento das passagens em todo o país
lhemos para viver ajudam a traçar nosso futuro, nossa
identidade e nossas relações sociais. consegue pagar corretamente seus trabalhadores e
fornecedores.
Valores não são tão simples assim! Se o supermercado comprar esse leite, mais caro que
Agora parece tudo mais fácil, afinal é só escolher uma os concorrentes, ele atentará contra dois de seus valores:
lista de valores para defender e bola para frente. Acha- Lucro e Disciplina. Com as outras marcas, o supermercado
mos os certos, entre cinco e dez, para que possamos lucra mais — entre 35% e 40% — e pela lei de mercado ele
ter certeza sobre como agir. Ledo engano... Apesar de não pode cobrar muito mais caro pelo leite menos lucra-
parecer tão simples, há um grau de complexidade. Ima- tivo. O leite desejado pelos consumidores afeta os lucros
gine que um supermercado de alto nível elabore uma do supermercado. Além disso, o valor Disciplina diz que é
lista de cinco valores indispensáveis, como orientação preciso que os funcionários de um setor se organizem para
e identidade do seu negócio: Lucro, Humildade, Disci- obter um lucro presumido. Opa... Se os clientes compra-
plina, Determinação e Responsabilidade Social. Agora, rem mais leite da marca menos lucrativa, o setor de lati-
pense na seguinte situação: um grupo de consumidores cínio do supermercado não bate as metas impostas, por
se manifesta pedindo um leite de determinada marca. mais que se organizem. O que fazer? Nesse caso, não há
Como preza pelo valor Humildade, a empresa deve ouvir resposta pronta, pois um valor conflita com outro.
os clientes e atender à demanda. Mas existe um pro- Vamos imaginar que, por conta da expansão de sua
blema, pois a fabricante de porte médio não consegue rede, esse supermercado tenha quebrado outros merca-
fazer um preço muito abaixo do seu valor de mercado dos menores e, com isso, gerado o desemprego em uma
— até 25% — pois não tem um portfólio de produtos. A determinada região. Seu valor Responsabilidade Social
empresa só fabrica esse leite e é com a venda dele que entra em jogo e a empresa cria programas educacionais
Eduardo Meinberg de
Albuquerque Maranhão Filho
/ agência istoé
E
le explorou a Amazônia e subiu o Alto Rio Negro para conhecer co-
munidades indígenas que agora se identificam como evangélicas.
Analisou as quatro últimas edições da Expo Cristã, entrevistando
expositores, artistas e também um grupo chamado Evangelho
Puro e Simples, liderado por Paulo Siqueira, cujo slogan é “O $how tem que
parar”. Estudou o avanço das igrejas neopentecostais no Brasil e acompanhou
as travessias religiosas de acadêmicos que se tornaram agnósticos e ateus a
partir de sua entrada na academia, abdicando de cargos eclesiais diversos,
como pastores, freiras e diáconos.
No decorrer dessa peregrinação ao mundo das religiões, Eduardo Meinberg
de Albuquerque Maranhão Filho participou ativamente de diversas delas.
Hoje é editor de duas publicações sobre religião, a Plura — Revista de Estudos de
Religião, da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), e a Revista
Brasileira de História das Religiões e Religiosidades, da Associação Nacional de
História (ANPUH).
Recentemente, ele entrou em uma espécie de “Guerra Santa” com as igrejas
neopentecostais. Seu “pecado” foi ter escrito o livro A grande onda vai te pegar
— marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church (Fonte Editorial,
2013), que sofreu uma tentativa de censura por parte da Igreja Bola de Neve
(BDN). Em outubro do ano passado, a igreja criada em 1999, pelo surfista
Rinaldo Luiz de Seixas, o apóstolo Rina, tentou impedir, na Justiça, o lança-
mento da obra que mostra o conservadorismo existente no discurso aparen-
temente liberal da maioria das igrejas neopentecostais. Resultado: a ação foi
indeferida e o livro do historiador teve sua primeira tiragem esgotada. Nesta
entrevista, ele fala sobre os novos valores religiosos do povo brasileiro.
Da Redação
Foto: Gabriel Chiarastelli
divulgação
na sociedade brasileira atual. Há, que chamo de discursos derretidos
contudo, diferenças entre a BDN e congelados, relativos à aparente
e outras igrejas neopentecostais, flexibilização das leis. É algo como
como a Igreja Universal do Reino de um “vinho velho em odres novos”. Livro que a Bola de Neve Church
Deus (IURD), a Igreja Mundial do Há uma casca nova, que envolve um tentou censurar apresenta
as estratégias utilizadas pelas
Poder de Deus (IMPD), a Igreja Inter- conteúdo conservador. igrejas neopentecostais para
nacional da Graça de Deus (IIGD), e a conquistar seguidores
Associação Vitória em Cristo (Avec). Revista da ESPM — De maneira ge-
Mas todas as igrejas neopentecostais ral, qual é a influência da religião nos esse público. O Festival Promessas
se amparam em teologias como a da valores dos brasileiros? é um reflexo disso. Outro exemplo
prosperidade, da cura e libertação, é a novela Amor à Vida, que usou a
da batalha e do domínio espiritual. Eduardo — Hoje, a religião influen- personagem de Carolina Kasting, a
cia a mídia, que influencia o público Gina, para conquistar a simpatia dos
Revista da ESPM — E qual é o im- e assim por diante, em um processo crentes. Na trama, ela se converte
pacto do crescimento das igrejas neo- contínuo. A Rede Globo, por exem- por meio de oração de aceitação a Je-
pentecostais na sociedade brasileira? plo, até pouco tempo atrás, motivada sus e ainda recebe um convite de na-
pela concorrência da Rede Record, moro de um líder da igreja, seguido
Eduardo — O Brasil é um país que do Edir Macedo, quando mencionava de um beijo de novela. Amor à Vida
se define como laico, mas tem como os evangélicos em sua programação, também apresentou um romance en-
uma de suas maiores características geralmente era a partir de um discur- tre Thales (interpretado por Ricardo
o sentimento religioso da maior par- so pejorativo e desdenhoso. Com o Tozzi) e sua ex-noiva, já desencarna-
te de seu povo. E é inegável a potên- crescimento e a maior participação da, Nicole (Mariana Ruy Barbosa).
cia que o discurso religioso tem na política dos evangélicos, a Globo tem Em outro capítulo, o personagem
constituição da maioria dos brasilei- investido numa aproximação com Jacques (Julio Rocha) fala a Pilar (Su-
sana Vieira): “Eu quero entrar em sua
casa, eu quero entrar em sua vida”.
Uma das características marcantes do “perfil Aparentemente, remete à canção
de Regis Danese que pede a Jesus:
religioso” do brasileiro é a mobilidade e a bricolagem. “Entra na minha casa, entra na mi-
Outra, infelizmente, é a intolerância à diversidade nha vida”. Curiosamente, algumas
em seus múltiplos marcadores sociais horas após a exibição deste capítulo,
latinstock
unidades e 60 mil fiéis
Eduardo — O principal desafio pro- igrejas que tocam heavy metal, como a em um colégio de freiras. Frequentei
vavelmente seja conquistar uma “re- Crash Church, é possível que surja um por quase uma década a Federação
ligious share of market” e consolidar grupo evangélico especializado em Espírita de São Paulo, fazendo vários
e manter sua marca no mercado. É um subgênero, como o doom metal. Há de seus cursos. Conheci a wicca,
atentar à concorrência e estar apto igrejas que se denominam inclusivas bruxaria natural, almas e angola,
a se reinventar, flanqueando os con- LGBT, e é plausível que surja uma co- candomblé, umbanda e hinduísmo
correntes, como já ensinavam Jack munidade evangélica que tenha como e transitei por diversas igrejas evan-
Trout e Al Ries. Em um contexto de público-alvo os travestis. E daí por gélicas. Abdiquei de um seminário
igrejas que têm basicamente o mesmo diante: para públicos não atendidos, é teológico no exterior, da Calvary
público, é comum que se reproduzam possível que novas agências religiosas Chapel, que me formaria pastor, para
características que já dão certo em ou- sejam criadas para acolhê-los. fazer minha pesquisa de mestrado
tras igrejas e que se procure inovar em sobre a Bola de Neve Church. Aliás, a
outros aspectos. E, como lembram os Revista da ESPM — Depois de es- Calvary Chapel é outra igreja que tem
estudiosos do paradigma americano tudar tantos movimentos religiosos, a os surfistas como principal nicho
da economia religiosa, para nichos que conclusão você chegou? mercadológico e que pesquisei, as-
mercadológicos não detectados, a ten- sim como os Surfistas de Cristo. Hoje,
dência é que surjam igrejas especiali- Eduardo — Pessoalmente, eu parti- nada tem um sentido acabado ou
zadas nestes. Após o aparecimento de cipei de diversas religiões. Fui criado definitivo para mim. Assim como as
expressões religiosas que pesquisei
e que se encontram em processo de
Atualmente, a situação das igrejas brasileiras pode ebulição e derretimento identitário,
ser caracterizada pelo esforço de se conquistar uma assim somos nós, pessoas em contí-
fatia do mercado religioso e, por vezes, do mercado nua (des/re)construção identitária.
secular, já que estes têm se imbricado cada vez mais Eu pelo menos sou.
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especial | religiões
C
om explicações cada vez mais detalhadas não tenho religião porque todas representam um conto de
sobre a vida em sociedade, o funcionamento fadas. Sou adepto da espiritualidade e sigo um provérbio
da mente humana e a origem da Terra e do que diz: ‘Reze como se tudo dependesse de Deus. Mas aja
universo, a ciência vem desvendando antigos como se tudo dependesse de ti’.”
mitos e fincando sua bandeira em teorias antes exploradas Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
apenas pelas religiões. Recentemente, mais uma barreira (IBGE) comprovam os efeitos desse movimento. O Censo
entre o céu e a terra foi derrubada pelos cientistas que de 2010 aponta uma redução acentuada de poder da
conseguiram reproduzir em laboratório a partícula de Igreja Católica no Brasil, que teve uma retração de 22% no
Deus. Pela teoria que explica como as partículas adquirem número de fiéis nas últimas duas décadas. Ainda assim, o
massa, o belga François Englert e o britânico Peter Higgs país manteve o posto de maior nação católica do mundo,
ganharam o prêmio Nobel de Física em 2013. Mas qual é o com 123 milhões de fiéis, o que corresponde a 64,6% da
impacto que esse tipo de descoberta tem na preservação população brasileira (ver tabela na página 60).
dos valores de uma sociedade e como esse movimento está Nesta reportagem especial, a Revista da ESPM foi a campo
alterando os princípios religiosos mais rígidos? para avaliar qual é o papel da religião na sociedade do
Em O livro das religiões (Editora Cia. das Letras), Victor século 21 e como os princípios e valores religiosos influem
Hellern, Henry Notaker e Jostein Gaarder mostram que, no comportamento da sociedade brasileira.
embora as religiões se mantenham vivas, áreas cada vez Antonio Miguel Kater Filho, diretor executivo do Instituto
maiores da vida social e cultural têm saído de sua influência. Brasileiro de Marketing Católico, foi um dos entrevistados
“Além de os princípios religiosos terem perdido influência e falou sobre o posicionamento atual da Igreja Católica.
na vida social, também os conceitos éticos ensinados Presente na história do Brasil, desde o seu descobrimento, o
pelas religiões não afetam mais as questões sociais. Este catolicismo contribuiu para a formação cultural, artística,
processo é conhecido como secularização”, asseguram os social e administrativa do país e agora está tendo de rever
autores. “Tais atos têm efeitos diversos sobre as pessoas. seus conceitos para continuar existindo. “Hoje, a grande
Alguns mantêm sua crença religiosa, mas traçam uma maioria dos católicos não consegue enumerar metade dos
linha divisória entre a religião e a ciência. Outros rejeitam dez mandamentos. Como você pode seguir e acreditar em
a religião e se tornam ateus ou agnósticos. E há ainda algo que desconhece?”, questiona o profissional que há mais
aqueles que incorporam a consciência científica à sua fé de 30 anos atua no segmento. “A Igreja precisa reaprender
religiosa. Será que somos menos religiosos hoje do que a pregar os valores cristãos, que devem ser ajustados ao
éramos cinquenta anos atrás?”, questionam os autores. perfil das famílias modernas”, assegura Kater Filho.
Para Mario René Schweriner, líder da área de A recomendação do especialista em marketing católico
humanidades e direito da ESPM, a resposta é sim. “Muitas vale de lição para todas as igrejas, que sofrem com o aumento
pessoas chegaram à conclusão de que não precisam de da concorrência gerada por novos movimentos religiosos.
uma religião, e sim de espiritualidade. Eu, por exemplo, “Eles afirmam que são universais e aplicáveis a todos, se
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especial | religiões
intitulam como ‘a religião das religiões’”, explica um dos Além de os princípios religiosos terem
capítulos de O livro das religiões. “Com frequência, a ideia
perdido influência na vida social,
é de que as velhas religiões já esgotaram seus papéis, pois
cada uma, por si só, contém apenas uma fração da verdade. os conceitos éticos ensinados pelas
Dessa forma, essa nova religião é a revelação final, a última religiões não afetam mais a sociedade
resposta, a verdade plena e completa.”
Para Schweriner, a maioria das religiões continua com
os mesmos valores e princípios de quando surgiram. Malafaia alerta: “Os brasileiros estão confundindo
“Karl Marx dizia que a religião é o ópio do povo. Na liberdade com libertinagem. Em qualquer sociedade
verdade, a religião é o esteio da sociedade, que está cada moderna democrática, valores que estão relacionados
vez mais perdida diante do excesso de informação que ao caráter e à família tradicional ainda são mantidos
recebe todos os dias”, avalia o professor da ESPM, que com muita força, mesmo com o bombardeio da mídia
está escrevendo um livro sobre ciência e religião. Nesse para um novo paradigma”.
novo cenário, a Igreja Pentecostal parece ter encontrado Depois de ser questionada por Charles Darwin na teoria
a fórmula sagrada de falar a língua do povo. De acordo da seleção natural das espécies, criticada por Friedrich
com o Censo de 2010, do IBGE, a religião que mais Nietzsche, em sua tese de que “Deus está morto” e ignorada
ganhou adeptos nos últimos 40 anos foi a evangélica, por Karl Marx quando ele expôs sua visão materialista
que já representa 22,2% da população brasileira, ante de mundo, a religião enfrenta agora um de seus maiores
os 5,2% de participação que possuía na década de 1970. desafios: a adaptação de antigos valores aos tempos
O destaque fica com a Assembleia de Deus e seus 12 modernos. Confira, a seguir, como oito grandes religiões
milhões de fiéis espalhados pelo Brasil. Um dos líderes estão trabalhando em prol da preservação dos princípios
mais atuantes dessa igreja, o pastor pentecostal Silas éticos e morais da sociedade brasileira.
Fonte: Censo 2010 x Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Budistas
O redescobrimento do Brasil
D
e todas as religiões, o catolicismo parece o que vejo são muitas famílias desestruturadas, sem
ser a que mais sente a mudança nos hábitos referenciais éticos, morais e cristãos. As pessoas
e atitudes da sociedade brasileira. Com 123 perderam o referencial do que é certo ou errado.
milhões de seguidores no Brasil, a Igreja Católica Agora, cabe à Igreja resgatar esses valores e instituí-
Apostólica Romana está encolhendo. Nos últimos dez los no dia a dia dos fiéis”, explica Kater Filho, citando
anos perdeu 12,2% de seu público, o que, segundo o como exemplo o trabalho do papa Francisco, que em
Censo de 2010, do IBGE, representa cerca de 1,7 milhão dezembro de 2013 foi eleito a personalidade do ano
de fiéis a menos. O levantamento mostra que, em 1970, pela revista Times. “Suas atitudes têm mostrado para
91,8% dos brasileiros eram católicos, fatia que em 40 o clero que para reaproximar a Igreja de seus fiéis é
anos diminuiu para 64,6%. preciso descer do presbitério e caminhar no meio da
Para A ntonio Miguel plateia. A mensagem é clara:
Kater Fi l ho, não se t rata não cabe ao padre julgar o fiel,
de u m problema rel ig ioso, e sim dar misericórdia a ele.”
Igreja Católica
e sim genérico, que af lige a De acordo com o estudioso,
Apostólica Romana
sociedade como um todo. “A o novo papa é pragmático e
influência nefasta dos meios de Início do movimento: no será capaz de provocar uma
comunicação está destruindo mundo, o catolicismo surgiu há mudança tão grande quanto
o que a Igreja levou séculos aproximadamente dois mil anos. a gerada pelo Concí lio
para construir. O egoísmo e No Brasil, está presente desde o Vaticano II, na década de 1960.
o hedon ismo represent a m descobrimento do país Organizado pelo papa João
uma espécie de epidemia no XXIII, esse grande evento foi
pa ís, cuja popu lação nut re Igreja católica em números: 123 promovido com o objetivo de
u m e x t r e mo desca so p e l a milhões de católicos frequentam modernizar a Igreja e atrair os
vida. Basta ver a quantidade as 12 mil paróquias e dioceses cristãos afastados da religião. E
de v ít i mas que mor rem no brasileiras foi assim que, a partir de 1966,
trânsito todos os anos”, avalia a missa deixou de ser rezada
o profissional que há mais de Mensagem: ”Pai, perdoai-os porque em latim, sendo adaptada ao
30 anos ensina técnicas de eles não sabem o que fazem” idioma de cada país, com o
ma rket i ng em i nst it u ições padre de frente — e não mais
catól icas. “A f idel idade no de costas — para o público. “A
casamento está fora de moda. Igreja precisa reaprender a
Roubar para obter algum tipo de vantagem não é mais pregar os valores cristãos para famílias modernas,
visto como um pecado pela maioria da população, da que muitas vezes representam apenas um aglomerado
mesma forma que alguém que encontra uma carteira de pessoas que se conhecem, morando sob um mesmo
cheia de dinheiro na rua, e a devolve, acaba virando teto. Essa é a oportunidade que temos de descomplicar
capa de revista. Hoje, o que deveria ser normal virou os processos e simplificar o discurso católico, com o
exceção e aquilo que antes era visto como anormal intuito de plantar no coração das pessoas uma semente
virou regra.” de valor que pode mudar o mundo. Afinal, como disse
Nesse cenário, os valores supremos do catolicismo Madre Teresa de Calcutá, em um encontro promovido
parecem andar na contramão. “Realizo encontro de pela ONU, o que falta no mundo não é o pão, e sim o
casais em igrejas católicas desde a década de 1970 e amor ao próximo”, assegura Kater Filho.
Judeus
Messiânicos
Em busca de rendição
E
m árabe, Islã significa “rendição” ou “submissão” islamismo e foram trazidos ao país pelos escravos, mas
às regras e aos desejos de Deus, chamado pelos o que prevalece em todo o território nacional é o famoso
muçulmanos de Allah. Ainda assim, o mundo sincretismo religioso. “Valores como família, honra e
islâmico aparece com frequência nas manchetes dos hospitalidade são um marco na cultura brasileira. O
jornais por conta de uma guerra milenar travada entre a islamismo tem se preocupado em manter seus dogmas
minoria xiitas e sunitas (que representam mais de 90% da vivos nos muçulmanos que aqui vivem. Afinal, além
população muçulmana em todo o mundo). Segunda maior de ser uma religião, o islamismo é um estilo de vida
religião do mundo, com mais de 1,3 bilhão de adeptos, o moderado, no qual atende e supre as necessidades da
islamismo foi fundado na Arábia, matéria e da alma.”
pelo profeta Maomé, no início Para Majdoub, este sincretismo
do século 7. Seus fiéis seguem religioso é a base dos valores
os rígidos preceitos do Alcorão, Sociedade Beneficente atuais da sociedade brasileira.
o livro que reúne as escrituras Muçulmana “São valores que vão se perdendo
sagradas que, segundo a crença na mesma proporção em que
islâmica, Maomé recebeu das Início do movimento: 1927
a religião perde importância.
mãos do anjo Gabriel. Todo É preciso resgatar os valores
muçulmano deve seguir as Fundadores: Primeiro, os palestinos
supremos imutáveis, como
cinco obrigações principais do Hosni Adura e Darwich Gazal
verdade e fé, que a sociedade
islamismo: acreditar em Allah fundaram a Sociedade Beneficente
moderna foi deixando para trás,
e no profeta Maomé; rezar cinco Muçulmana Palestina, que em 1929
pois eles servem como freio
vezes por dia; jejuar durante passou a ser chamada de Sociedade
moral a impulsos que hoje têm
o d ia no mês sag rado dos Beneficente Muçulmana (SBM).
sido a causa de tanta violência,
muçulmanos, o Ramadã; dar A primeira mesquita do Brasil foi
como a inveja, a ganância e a
esmola aos pobres; fazer uma inaugurada em 1952
luxúria”, avalia o muçulmano.
peregrinação à cidade de Meca “Para isso, todas as religiões
ao menos uma vez na vida. SBM em números: 1,5 milhão de
desempenham um importante
Alli Ahmad Majdoub, gestor fiéis, segundo a Federação Islâmica
papel na sociedade, pois criam
da Mesquita Brasil, explica que, Brasileira. Cerca de 50 mesquitas e
laços de solidariedade, tolerância
ao contrário do que aparece nas mais de 80 centros islâmicos estão
e amor ao próximo!”
mídias, a religião muçulmana
espalhados pelo país
No caso da religião muçulmana,
prega a paz e a tolerância e uma a Mesquita Brasil tem intensificado
das obrigações dos seguidores
Mensagem: ”Só há um Deus, e
a interação com a comunidade em
do islamismo é promover o
Maomé é seu Profeta”
geral por meio de inúmeras ações,
bem e reprimir o mal. “Nossa como mostras culturais, palestras,
preocupação é estreitar laços aulas de religião e língua árabe.
com as dema is rel igiões e “Nossos planos têm se pautado
costumes, principalmente para mostrar que, assim na desmistificação da religião, mostrando que ela e seus
como as outras religiões, o islamismo quer o bem do seguidores procuram fazer o bem ao próximo. Para tanto
Brasil e de seu povo. Queremos ajudar na construção a Mesquita Brasil tem sido um núcleo de propagação de
de uma sociedade justa e fraterna.” Ele acrescenta valores essenciais ao convívio pacífico entre os povos”,
ainda que alguns valores dos brasileiros têm origem no assegura Majdoub.
Pentecostais
P
restes a completar 40 anos, a Itaipu Binacional carrega em seu DNA os
valores de duas nações, que juntas administram a maior usina geradora
de energia limpa e renovável do planeta. Produzindo quase 100 milhões
de MWh por ano, o empreendimento, que começou a ser construído em
1974, faz muito mais do que transformar as águas do rio Paraná em energia elétrica.
Ciente do impacto que suas operações causam nas regiões onde atua, a Itaipu inves-
te em uma série de programas, projetos e ações de responsabilidade socioambien-
tal. “Como ocorre com todo termo que passa a ser usado sem parcimônia, sustenta-
bilidade virou uma palavra oca, servida ao gosto do freguês. Na Itaipu, temos busca-
do ressignificar essa palavra por meio de práticas diárias baseadas em princípios e
valores”, comenta Jorge Miguel Samek, diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional.
Ele, que tem planos de transformar a usina na geradora de energia limpa e
renovável com melhor desempenho operativo e as melhores práticas de susten-
tabilidade do mundo, afirma que o caminho para a obtenção dessa meta passa,
obrigatoriamente, por uma política de sustentabilidade bem estruturada. No
caso da Itaipu, está apoiada em quatro eixos: a busca da excelência operativa; a
produção de energia renovável e limpa; o desenvolvimento da comunidade; e a
prática da sustentabilidade, como princípio e valor, de dentro para fora. “O que
preconizamos, em última instância, é uma mudança de mentalidade, que se re-
flita tanto na atuação dentro da empresa quanto na comunidade, como cidadãos
ativos e engajados”, assegura o engenheiro agrônomo que desde 2003 está à frente
das operações brasileiras de Itaipu. Nesta entrevista, Samek fala sobre projetos
socioambientais, veículos elétricos, investimento em novas fontes renováveis de
energia e o papel das empresas na formação de valores de uma sociedade.
Francisco Gracioso — Qual é o papel sustentabilidade. De que maneira os Gracioso — Na prática, o que está sen-
de grandes empresas, como a Itaipu, na inúmeros investimentos feitos em pro- do feito para a obtenção dessa meta?
propagação de valores éticos, morais e gramas socioambientais contribuem
sociais de uma nação? para a construção de um mundo me- Samek — Introduzimos indicadores
lhor e para a formação de uma consci- claros de sustentabilidade em todas
Samek — No mundo atual, toda e ência de responsabilidade coletiva para as etapas do processo de gestão.
qualquer empresa pública ou privada o futuro? Pelo décimo primeiro ano consecu-
precisa estar atenta aos valores e exi- tivo, estamos produzindo o nosso
gências da sociedade, em constante Samek — Nos últimos dois anos, Itai- Relatório de Sustentabilidade, rela-
evolução. É uma questão de sobrevi- pu ratificou e ampliou a sua liderança tivo ao exercício de 2013, seguindo
vência. Quando uma empresa deixa mundial de geração de energia, baten- as diretrizes da Global Reporting
de refletir os valores e as preferên- do o seu próprio recorde de produção. Initiative (GRI). Esse relatório é
cias da sociedade, perde a sua função Em 2012, havíamos superado o nosso produzido com a participação direta
primordial e entra em franco declí- recorde de 2008, com uma produção de empregados de todas as áreas e
nio. A fuga da clientela é só uma con- total de energia de 98.287.128 de envolve representantes das comu-
sequência dessa perda de identidade. megawatts-hora (MWh). No ano pas- nidades e municípios localizados na
Para uma empresa pública de grande sado, estabelecemos um novo recor- área de influência de Itaipu. Avalia-
porte, como a Itaipu, as responsa- de, com uma produção acumulada de mos, portanto, com critério e rigor
bilidades são ainda maiores. Nosso 98.630.035 MWh, o que nos aproxima técnico, nossas ações e práticas
papel é gerar energia elétrica de qua- ainda mais de atingirmos a marca corporativas, com especial atenção
lidade, com responsabilidade social impressionante de 100 milhões de para os projetos de responsabili-
e ambiental, contribuindo, assim, MWh. Do ponto de vista da eficiência dade socioambiental. Ao longo da
para o desenvolvimento sustentável em geração de energia limpa e reno- última década, também elaboramos
do Brasil e do Paraguai. Como empre- vável, Itaipu é um caso de sucesso o Sistema de Gestão da Sustentabili-
endimento binacional, Itaipu traz no sem paralelo no mundo, motivo de dade (SGS) e a Política de Sustenta-
seu DNA o compromisso com a inte- orgulho para brasileiros e paraguaios. bilidade. Nosso compromisso com
gração. Hoje, as sociedades brasileira Temos bons motivos para comemorar a construção de um mundo melhor
e paraguaia compartilham alguns neste ano os 40 anos de criação de e com a formação de uma nova
valores básicos, como o apreço à de- Itaipu e 30 anos do início de operação consciência coletiva, sensível aos
mocracia e à ética da transparência, da usina. A visão definida no nosso desafios de preservar o planeta, está
da inclusão social e do respeito às planejamento estratégico estabelece refletido nas práticas corporativas
diferenças. A Itaipu tem atuado em que, até 2020, a Itaipu Binacional se e individuais. Esse engajamento
consonância com esses valores. consolidará como a geradora de ener- legitima os investimentos que rea-
gia limpa e renovável com melhor lizamos em programas, projetos e
Gracioso — Maior geradora de energia desempenho operativo e as melhores ações de responsabilidade socioam-
limpa e renovável do planeta, a Itaipu práticas de sustentabilidade do mun- biental.
figura entre as companhias brasileiras do, impulsionando o desenvolvimen-
que mais investem em programas de to sustentável e a integração regional. Gracioso — No ano passado, a Itaipu
conquistou o prêmio Pintou Limpeza,
do grupo Estado, na categoria empresa
Com a disseminação da tecnologia do biogás cidadã, por conta de suas ações susten-
táveis. Na sua visão, o que é uma empre-
e o desenvolvimento de utilitários elétricos, sa cidadã? Que valores éticos, morais e
as propriedades rurais poderão conquistar sociais a companhia visa transmitir por
autossuficiência energética meio dessas iniciativas?
Gracioso — Desde 2004, a Itaipu desen- dentro do conceito de Smart Grid. Os governos têm criado incentivos
volve, em parceria com a Fiat, um proje- Temos atuado em conjunto com fiscais para tornar os preços desses
to que transformou um Palio Weekend as empresas parceiras de forma veículos mais competitivos. A Itaipu
em um veículo elétrico. Embora exista coordenada e sinérgica, alinhando deseja que as montadoras fabriquem
demanda, ainda é inviável a comercia- esforços e compartilhando expe- mais carros utilizando tecnologia
lização desse tipo de automóvel, devido riências, com o objetivo de tornar limpa e que as fábricas de baterias e
aos custos elevados de produção. O que a tecnologia acessível e estimular eletroeletrônicos produzam os insu-
a Itaipu tem feito para levar essa experi- novas iniciativas empresariais. Em mos necessários para a montagem
ência ao mercado? poucos anos, com a disseminação de carros não poluentes no Brasil,
da tecnologia do biogás e o desen- seguindo a tendência internacional.
Samek — O projeto de desenvolvi- volvimento de utilitários elétricos,
mento de veículo elétrico de Itai- as propriedades rurais poderão con- Gracioso — Pesquisas indicam que, em-
pu teve início em agosto de 2004, quistar autossuficiência energética, bora valorize iniciativas sustentáveis, o
com a assinatura de um acordo gerando energia elétrica a partir do consumidor brasileiro não está disposto
de cooperação técnica com a em- biogás e substituindo combustíveis a pagar muito mais por um produto
presa de energia suíça, a KWO. A fósseis para abastecer os veículos. ou serviço “verde”, ou ainda amigo do
partir daí, abriu-se a possibilidade meio ambiente. Tomando como base o
de diversas parcerias com empresas Gracioso — No início de 2013, a Itaipu impacto gerado pelo uso dos veículos
de diferentes especialidades que pu- divulgou ter planos de desenvolver a elétricos na Itaipu, como o senhor avalia
dessem agregar valor ao Programa cadeia do carro elétrico no país. Como essa questão?
VE. Entre elas estão empresas do estão as negociações para o desenvolvi-
setor elétrico, institutos de pesqui- mento desse projeto? Samek — Os consumidores estão
sa, fábricas de baterias, componen- cada vez mais conscientes da impor-
tes eletroeletrônicos, motores etc. Samek — A Itaipu é uma empresa tância de fazer escolhas inteligen-
A Fiat foi a primeira montadora a geradora de energia que vem atuando tes, que levem em conta os impactos
integrar-se ao acordo de cooperação como um agente catalisador desse dos produtos e serviços no meio
técnica Itaipu/KWO, desenvolven- movimento para auxiliar o processo ambiente. Assim como já ocorreu
do o primeiro protótipo do Pálio de desenvolvimento da tecnologia com produtos tecnologicamente
elétrico. Hoje, cerca de 5% da frota do veículo elétrico no Brasil e no sofisticados, como o computador e,
de Itaipu é composta por veículos Paraguai. Se observarmos o que está mais recentemente, o telefone ce-
elétricos (carros, um caminhão e acontecendo no mundo, é fácil cons- lular — que foram tornando-se mais
um miniônibus elétrico, um off-road tatar que todas as grandes empresas acessíveis à medida com o aumento
Agrale Marruá elétrico e até um ôni- automotivas já vêm trabalhando da escala e a redução dos custos
bus elétrico híbrido a etanol). Além em projetos de desenvolvimento de de produção —, o veículo elétrico
de protótipos de demonstração, a carros híbridos e elétricos. A com- também irá tornar-se competitivo. O
Itaipu vem desenvolvendo soluções petição é acirrada. Em vários países, veículo elétrico traz como vantagens
de infraestrutura para interação do já existem modelos 100% elétricos a emissão zero de gases que geram
veículo elétrico com a rede elétrica, ou híbridos sendo comercializados. efeito estufa e a economia dos recur-
sos naturais. A mobilidade passa ne-
cessariamente pelo uso crescente de
Para nós, da Itaipu, sustentabilidade não é fontes renováveis de energia. Dessa
forma, a Itaipu incentiva e coopera
uma ferramenta de marketing. É um novo no desenvolvimento do veículo elé-
paradigma ainda em construção, que exige um trico de olho nos imensos benefícios
reaprendizado dos indivíduos e das instituições que ele traz para a sociedade.
Samek — As relações bilaterais entre com a progressiva redução do volume ção à Criança e ao Adolescente. Nos
Brasil e Paraguai vivem um momento de energia proveniente de Itaipu. últimos dez anos, graças às políticas
favorável. Desde a posse do presiden- Aliás, Itaipu já respondeu por 25% do promovidas pelo governo, a mudan-
te Horacio Cartes, em 15 de agosto mercado brasileiro. Hoje, a sua par- ça foi notável, especialmente em Foz
do ano passado, já foram realizados ticipação é de 17%, percentual que do Iguaçu. Existem problemas? Cer-
pelo menos cinco encontros entre ele deverá continuar caindo em razão tamente que sim. Mas o turismo que
e a presidente Dilma Rousseff. Esse da ampliação do parque gerador na- movimenta a economia da região
entrosamento entre os dois chefes cional e da diminuição do excedente tem contribuído para gerar empre-
de Estado também se reflete na área de energia comprada de Itaipu, que o gos, renda e inclusão social. O trade
diplomática e nas relações empresa- Paraguai não utiliza para o seu pró- turístico de Foz do Iguaçu é um dos
riais entre os dois países. Outro fator prio consumo. parceiros mais ativos no combate à
muito favorável é a fase de prosperi- exploração de crianças e adolescen-
dade vivida pela economia do Para- Gracioso — Itaipu Binacional é parte tes. O que estamos fazendo é reforçar
guai, que registrou em 2013 o terceiro de um esforço para aumentar o turismo as iniciativas que vimos realizando
maior crescimento econômico do na região de Foz do Iguaçu. Um esforço desde 2003. Uma ação coordenada
mundo, com uma taxa de aumento bem-sucedido, por sinal. O efeito cola- dos governos e organizações sociais
de 14,1%, de acordo com o Banco teral disso é o turismo sexual e a pros- dos três países tornará mais eficaz o
Mundial. É sabido que a demanda por tituição infantil. Os países da Tríplice esforço para erradicação da explora-
energia acompanha de perto o cres- Fronteira acabam de anunciar que vão ção de crianças e adolescentes.
cimento da economia. A economia trabalhar juntos no combate a esse tipo
brasileira, por exemplo, cresceu 2,2% de exploração. Esta é uma questão de Gracioso — No futuro, como deverá ser
em 2013, mas o consumo de energia sustentabilidade para o setor de turis- a matriz brasileira de produção de ener-
aumentou 3,5% e foi puxado pelo con- mo. Como enfrentá-la? gia elétrica?
sumo residencial, o que reflete o uso
de mais eletrodomésticos pelas fa- Samek — Estudos mostram que di- Samek — Nos anos 1980, foi orques-
mílias que tiveram aumento de renda minuiu drasticamente, nos últimos trada uma campanha internacional
nos últimos anos. Se o Paraguai man- dez anos, o número de crianças e contra grandes projetos de hidre-
tiver essa trajetória de crescimento adolescentes em situação de risco létricas em países em desenvolvi-
acelerado, logo vai utilizar para o seu social. Hoje, a sociedade brasileira mento. Grupos poderosos e bem
próprio consumo uma parcela cres- está mais consciente e atenta para financiados se mobilizaram para de-
cente de 50% da energia produzida combater o problema. Em Foz do negrir a opção brasileira pela hidre-
por Itaipu a que tem direito. É natural, Iguaçu, um dos principais destinos letricidade, sob o falso argumento de
portanto, que as lideranças do país turísticos do país, a situação social que seria social e ambientalmente
expressem o desejo de aproveitar essa era muito preocupante no início de insustentável. Com um discurso
abundância de energia para acelerar 2003, quando fui convidado para pseudamente comprometido com a
o seu desenvolvimento. O Brasil deve assumir Itaipu. Na ocasião, uma das defesa do meio ambiente, conquis-
estar preparado para suprir o seu pró- primeiras iniciativas que tomei foi a taram importantes aliados locais em
prio aumento de demanda, contando implantação do Programa de Prote- movimentos sociais e ambientais
que defendiam interesses legítimos
de populações atingidas pela im-
Reduzir o desperdício e promover a eficiência plantação de projetos de grande por-
te e reivindicavam uma legislação
energética não são medidas antagônicas. ambiental mais rigorosa. O Brasil
Ao contrário, são essenciais para garantir a pagou um alto preço pela paralisação
soberania energética do país nas próximas décadas dos investimentos na construção de
H
á 250 anos, Jean-Jacques Rousseau escre- centenas de anos. Destruímos centenas de milhares de
veu o Contrato Social, uma proposta de uma espécies de plantas e animais. Cerca de 50 mil espécies
nova ordem fundada em conduta moral desaparecem todos os anos e, em sua maior parte, em
e liberdade civil que estabelecia conven- decorrência de atividades humanas.
ções buscando a concórdia entre as pessoas que vivem Produzimos uma sociedade planetária escandalosa-
em sociedade. Rousseau foi um dos grandes filósofos mente e crescentemente desigual: 1.195 bilionários valem,
do Iluminismo e o Contrato Social foi uma das obras que juntos, 4,4 trilhões de dólares, ou seja, mais ou menos o
marcaram o ideário da Revolução Francesa. Tal aconte- dobro da renda anual dos 50% mais pobres. Em termos de
cimento deu início à Idade Contemporânea ao abolir a renda, o 1% dos mais ricos da humanidade recebe o mesmo
servidão e os direitos feudais e proclamar os princípios que os 57% mais pobres.
universais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, Nossos gastos militares somam US$ 1,464 trilhão por
frase de autoria de Rousseau. ano (e crescem a cada ano), equivalentes a 66% da renda
Hoje, no início do século 21, necessitamos claramente anual dos 50% mais pobres. Apesar disso, a criminalidade,
de um novo Contrato Social. Razões não nos faltam. Nós os conflitos, as guerras e ameaças bélicas não param de
já destruímos quase a metade das grandes florestas, que atingir as populações de todos os continentes.
são os pulmões do mundo, e muitas das mais importan- Há um sentimento quase generalizado na população
tes e extensas áreas verdes do planeta vivenciam um ace- mundial de que os governos estão a serviço de poderosos
lerado ritmo de destruição. Uma área maior que Bangla- interesses econômicos que financiam suas campanhas
desh é destruída por madeireiras todos os anos. Também
emitimos imensas quantidades de dióxido de carbono
e de outros gases causadores de efeito estufa na atmos-
fera, iniciando assim um ciclo de aquecimento global e
instabilidades climáticas. Nós causamos um gigantesco
buraco na camada de ozônio. Por causa disso, os níveis de
UV têm chegado a altos recordes, o que ameaça a vida de
vários organismos. Temos solapado a fertilidade do solo
e sua capacidade de sustentar a vida: 65% da terra culti-
vada foram perdidos e 15% das terras do planeta estão em
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trato Social para estabelecer novos compromissos éti-
cos entre os cidadãos do mundo, novas formas de lidar
com conflitos e choques de interesses, uma nova relação
entre governos e sociedade, entre governos nacionais e
um novo pacto “intergeracional”. O primeiro deles é promover e perseguir a constru-
Para se materializar, um novo Contrato Social deve- ção de uma sociedade mais igualitária, definindo fai-
ria comprometer toda a sociedade, pessoas e organiza- xas mínimas de renda e patrimônio (que ofereçam uma
ções públicas e privadas com uma agenda pautada em qualidade de vida digna a todos), e máximas bastante
cinco pontos essenciais. próximas. Para dar uma ideia do potencial de uma dis-
tribuição de riqueza justa, a Organização das Nações
Unidas (ONU) acaba de sugerir a criação de uma taxa
anual de apenas 1% sobre as fortunas individuais de US$
1 bilhão ou mais. Essa pequena taxa que não mudaria
em nada o nível de vida dos bilionários, representa-
ria uma ajuda importante para os países mais pobres,
estimada entre US$ 40 bilhões e US$ 50 bilhões por
ano! Ao terminar seu livro, Rousseau faz a seguinte
observação: “O pacto fundamental, em vez de destruir
a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma
igualdade moral e legítima a desigualdade física que a
natureza pode pôr entre os homens, fazendo com que
estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em
latinstock
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US$ 1,464 trilhão por ano (e crescem
a cada ano), equivalentes a 66% da
renda anual dos 50% mais pobres”
Outra ação crucial é abolir todos os armamentos e Para aqueles que possam considerar essas propostas
gastos militares, colocar todos esses recursos a serviço utópicas e irrealistas, que talvez não tenham a dimensão
da promoção da justiça social e acordar que nenhuma da necessidade e urgência de mudança de rumo, de um
disputa entre pessoas, organizações e governos seja novo Contrato Social, vale a pena reler o comunicado que
decidida pela violência e que nenhuma autoridade seja um grupo de 1,6 mil cientistas, incluindo mais de cem
exercida pela força. ganhadores do Prêmio Nobel, emitiram em 1992, o War-
O terceiro item da agenda desse novo Contrato Social ning to Humanity (de lá para cá, os indicadores ambien-
deve eliminar qualquer interferência do poder econô- tais e da desigualdade só pioraram):
mico nos processos eleitorais. A partir disso, todos os “Não mais de uma ou poucas décadas nos restam antes
candidatos passam a ter à disposição os mesmos recur- que a oportunidade para prevenir os perigos que agora
sos financeiros para fazer suas campanhas. nos ameaçam seja perdida, e com isso perspectivas para
Mais um ponto importante desse acordo a ser firmado: a humanidade serão terrivelmente diminuídas [...]. Uma
toda geração precisa se comprometer a deixar para a pró- nova ética se faz necessária — uma nova atitude para cum-
xima um planeta com maior cobertura florestal, com mais prir nossa responsabilidade de cuidar de nós mesmos e
recursos naturais, com menores emissões de gases causa- da Terra. Esta ética deve motivar um grande movimento
dores de efeito estufa, com um buraco menor na camada e convencer líderes, governos e pessoas relutantes em
de ozônio, com uma maior superfície de terra cultivável, efetuar mudanças”.
com uma menor quantidade de emissão de produtos quí-
micos que envenenam o ar, a terra e a água do planeta,
com a eliminação de dejetos nucleares e com o aumento Oded Grajew
Empresário, coordenador geral da secretaria executiva da
da quantidade de espécies de plantas e animais. Rede Nossa São Paulo e presidente emérito do Instituto Ethos.
Por último, todos os organismos internacionais devem É idealizador do Fórum Social Mundial e da Fundação Abrinq.
objetivar como sua única missão perseguir o cumpri- Também integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social (CDES)
mento de todos os compromissos acima citados.
A geração perdida
Enquanto você lê este artigo, certamente se questiona:
“como mudar isso?”. Eis a pergunta mais relevante de
todas. Os valores são fruto das nossas crenças — aque-
les ensinamentos e experiências que tivemos desde a
nossa infância e que são responsáveis pela formação
do nosso caráter e, como consequência, das nossas
intenções e comportamentos. As nossas crenças nos
acompanham por toda a vida e determinam como pen-
shutterstock
seus atos e consequências, além de um grande desejo e no mundo corporativo e que estão ocasionando sérios
muita determinação para transformar uma realidade. conflitos na relação profissional-empresa. Denominei
E quanto mais o tempo passa, maior se torna o desa- tal situação como os “3 ‘Is’ da nova geração”. É impor-
fio, pois a dificuldade aumenta, ao passo que as cren- tante enfatizar que não estou rotulando, apenas exter-
ças são mais internalizadas com as experiências, notí- nando a angústia de muitos líderes que se veem perdi-
cias e sensação de que o mundo é assim e precisamos dos diante da inconstância de diversos jovens talentos.
fazer parte do jogo. Sem mais delongas, vamos a eles:
Por mais doloroso que possa ser, serei direto, sem
romantismo: a geração atual jamais viverá os valores Impaciência — “Ou me satisfaz imediatamente, ou
que acreditamos vitais para uma sociedade mais justa não quero!” Essa é a sensação transmitida por muitos
e digna. Estou me referindo àqueles que já estão con- jovens dessa geração. “Ou a empresa me oferece opor-
taminados e que insistem em abdicar do que é certo tunidade de crescimento rapidamente, ou estou fora,
em prol do que é mais fácil e vantajoso para si. Para procuro outra.” Esse pensamento de curto prazo pode
essas pessoas, existem as leis, as normas, as regras, prejudicar (e muito) a carreira dos jovens profissionais.
que são impostas para substituir a falta de bom-senso Nesse caso, é preciso distinguir muito bem pressa de
e respeito aos valores. Além disso, existe a maior de ambição. Ter ambição é saudável, mas a pressa para
todas as armas: o contraponto comportamental — ou conquistar aquilo que se deseja, sem pensar nas con-
seja, a indignação daqueles que insistem em fazer o sequências a longo prazo, é perigoso.
certo, que dizem “NÃO” ao jeitinho, que reprimem a
injustiça, que praticam a gentileza, que, por incrível Inconsistência — Este, infelizmente, é outro com-
que pareça, respeitam o próximo. E a boa notícia é que portamento presente em muitos jovens dessa geração.
existem muitas pessoas com valores firmes e capazes Apesar da enxurrada de informações a que somos sub-
de lutar por essa conscientização. E isso já tem acon- metidos diariamente, a incapacidade crítica de alguns
tecido com uma certa frequência. As pessoas já têm jovens é assustadora. As redes sociais, que podem ser
se indignado e externado isso com mais afinco, pois uma rica fonte de informação e troca de visões sobre
estão mais conectadas e encontram alternativas para diversos temas, têm sido, a meu ver, pouco exploradas.
serem ouvidas. Basta analisarmos quem são as pessoas mais seguidas
no Twitter ou ainda perguntar a um jovem quais veícu-
A geração influenciada los de comunicação ele acessa com frequência. E não
É fato que essa crise de importância aos valores trouxe precisa ir muito longe para identificar esse comporta-
graves consequências, que prefiro não enumerar aqui, mento: ao final de uma palestra, por melhor que ela seja,
pois quero trazer a discussão para o mundo corporativo, abra para perguntas e calcule o percentual das pessoas
foco deste artigo, e salientar um problema vivenciado que se manifestam. Não chegaremos a 5%! Talvez esse
por muitos líderes: a influência dessa crise na nova gera- seja o comportamento mais preocupante dessa nova
ção de profissionais. Muitos deles, rotulados pelo mer- geração, pois a cada dia os atos de julgar, criticar, inovar
cado de geração Y, nasceram e foram educados nesse e decidir estão nas mãos de poucas pessoas. E quando
contexto. Com isso, apresentam algumas caracterís- ouço um empresário dizer que o que mais lhe preocupa
ticas que frequentemente valido em minhas atuações para o futuro da sua empresa é a falta de profissionais
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impaciência, inconsistência e iniciativa
qualificados, constato que a maior desqualificação de simples pergunta: “Por quê?”. Uma pergunta simples,
todas é a incapacidade crítica, a visão curta. mas que abre inúmeras oportunidades para a evolu-
ção profissional.
Iniciativa — Nem todo comportamento da nova
geração de profissionais é negativo, pelo contrário. Transformando empresas
Eu ouço constantemente elogios e vejo comporta- A melhor de todas as notícias ainda está por vir: temos
mentos dignos de reconhecimento. Infelizmente, a uma geração ainda em formação, com a mente aberta
iniciativa está presente na minoria, mas quando este para receber os ensinamentos necessários e seguir o
comportamento se apresenta, é bonito de ver. Chega caminho certo. O que estou querendo dizer é que jamais
a emocionar ver os jovens organizando grandes even- mudaremos aqueles que não desejam participar dessa
tos nos centros acadêmicos, enquanto outros não se transformação, mas que muitos jovens estão dispostos
dão nem ao trabalho de assistir às palestras. É incrí- a isso. Portanto, qual é a solução?
vel vê-los permanecer após o evento para conversar Precisamos investir na educação das pessoas. Isso
com o palestrante, pedir dicas, tirar dúvidas, solicitar mesmo, na educação! Nós, líderes, precisamos compre-
contato para conversar posteriormente, enfim, pen- ender que estamos diante de um deficit educacional no
sando no futuro. E certamente esse comportamento Brasil. As escolas nunca foram tão precárias, logo, os
será revertido para as suas carreiras: se empenharão, jovens saem do ensino básico sem aprender o básico.
aprenderão e, como consequência, crescerão pes- As universidades formam técnicos sem qualquer noção
soal e profissionalmente. E o que mais me admira de mercado e visão de carreira. Os pais, cada vez mais
nesse comportamento é a capacidade de fazer uma ausentes, terceirizaram a educação de seus filhos e,
Ao final de uma palestra, por melhor que ela seja, abra para
perguntas e calcule o percentual das pessoas que se manifestam.
Não chegaremos a 5%! Talvez este seja o comportamento
mais preocupante dessa nova geração
consequentemente, os jovens chegam ao mercado de é uma atribuição que você não pode deixar de exercer
trabalho cada vez menos preparados cientificamente, com afinco.
profissionalmente e, principalmente, moralmente. O tempo que você dedicar ensinando as pessoas
Então, compreenda que o líder que não dedicar tempo sobre carreira, mercado, estratégia e resolução de pro-
e energia à educação dos jovens profissionais conti- blemas retornará a você como resultado. A energia que
nuará reclamando e colhendo os frutos de uma gestão
que não acompanha as mudanças. Permitir-me-ei não Escritório do Google, na Califórnia (EUA), é exemplo
entrar na discussão se educar é papel ou não do líder, de como é possível criar um ambiente de
mas não posso me furtar em dizer que, independente- aprendizado constante, que permita às pessoas
pensarem ”fora da caixa”
mente de se você concorda ou não, educar as pessoas
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shut terstock
transparente. Muitas vezes, a sua empresa não ofe- a tão sonhada transformação na sociedade. Os pais,
rece grandes chances de crescimento na hierarquia, as escolas, as universidades, as empresas, os meios
mas pode proporcionar ao profissional uma grande de comunicação, todos têm um papel fundamental na
bagagem de experiência. O que falta, na maioria das construção desse novo cenário. Aos que acreditam
organizações, é uma comunicação transparente e, em nessa transformação cabe a dedicação na educação
muitos casos, simplesmente comunicação. das pessoas, na transmissão e no fortalecimento dos
Crie um ambiente de aprendizado constante, que valores que impulsionam a nossa sociedade. Aos que
permita às pessoas pensarem “fora da caixa”. Não não acreditam, ao menos não atrapalhem subvertendo
discuta apenas os processos, ajude os profissionais a os valores por meio de comportamentos que denigrem
evoluírem e pensarem em mercado, clientes, estraté- o ser humano e exemplifiquem a sua falta de moral.
gias, enfim, é preciso provocá-los para que ampliem Permitam que os jovens enxerguem a possibilidade
a sua visão e enxerguem o mercado, tornando-os de uma vida mais digna, justa e com um propósito
assim mais estratégicos e visionários. muito claro: conquistar o sucesso contribuindo para
Valorize a iniciativa, permita e reconheça a participa- um país verdadeiramente desenvolvido.
ção e, mais do que isso, permita o erro. Um ambiente de
forte repreensão nunca deixará florescer a inovação e a
atitude de ir além. Se quer ter iniciativa sem erros, basta Alexandre Prates
Master Coach, palestrante, sócio-fundador do Instituto de
investir na formação das pessoas. Não tem segredo! Coaching Aplicado (ICA), sócio do Grupo Alquimia e autor do livro
Por fim, precisamos de líderes com valores fortes e A reinvenção do profissional – tendências comportamentais do
com um grande desejo de liderar, de fato, para que haja profissional do futuro (Editora Novo Século, 2012)
InScrIçõES abErtaS.
w w w. e s p m . b r / p o s
Posicionamento
R
ecentemente, a Natura oficializou a aquisi- distribuía rosas brancas, junto com um cartão que dizia
ção da empresa australiana Aesop. Foi a pri- que ele estaria pensando em seus clientes.
meira vez que a empresa realizou esse tipo Essa cultura empresarial baseada na qualidade das
de movimentação e o negócio só se concre- relações que a gente reconhece está presente por todas
tizou porque havia uma crença de que o acordo era uma as partes. Estava presente na década de 1960 e vem evo-
boa decisão a ser tomada. Acontece na nossa vida pessoal luindo para o que existe hoje.
e também ocorre nas organizações. Assim como os nossos valores pessoais vão evoluindo
A compra dessa empresa foi profundamente estudada com o tempo, o mesmo acontece com as organizações. É
e analisada, principalmente no que se refere à identifica- muito importante reforçar que, se os valores da empresa
ção da proximidade de valores. Não faria sentido para a em que você trabalha não estão de acordo com os seus
Natura adquirir uma empresa que não estivesse de acordo valores pessoais — sim, aqueles que herdamos da nossa
com os seus próprios valores. E será em torno desses
valores comuns que a nossa cultura também irá evoluir.
Entendemos a cultura como algo vivo, dinâmico, que se
transforma. O desafio está em transformar e manter coe-
rência com os valores essenciais. É nesse momento que
entram a integridade, a credibilidade, o exemplo. Em 2013,
com orgulho e humildade, recebemos o reconhecimento
como A Empresa mais Admirada no Brasil. Ser uma empresa
exemplar não é algo que se constrói de uma hora para outra.
Estamos falando sobre a contínua construção de um papel
na sociedade coerente com os valores do Bem estar Bem.
Ao longo de mais de 40 anos, a Natura vem construindo
esses valores calcados na cultura do Bem estar Bem, que
significa estabelecer uma relação harmoniosa consigo
mesmo, com seu corpo e com o mundo ao redor. Isso signi-
fica interagir com as pessoas e valorizar as relações. “Nós
pensamos em você. Pense em nós” — Luiz Seabra, sócio e
fundador da Natura, já havia pensado nisso em 1969, quando
a empresa foi criada.
Não era uma simples loja na rua Oscar Freire. Era uma
divulgação
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D
efinir o sentido dos termos a serem usados é seu poder de fascínio e resta cada vez menos espaço no
a primeira tarefa a que deve se dedicar quem cotidiano das famílias ao diálogo sobre os valores.
deseja se fazer entender. Em seu título, o É nesse cenário que se insere a comunicação das mar-
artigo afirma que marcas educam, logo é cas. A necessidade comercial que move marcas a comu-
preciso aclarar o significado do verbo “educar”. A palavra nicar é algo óbvio e que todos desde sempre sabem. A evi-
vem do latim educere, ex (fora) e ducere (conduzir, levar). dência simples dessa motivação natural induz à suposição
Em sua origem etimológica, educar então descreve um de que a questão do sentido da comunicação de marcas se
movimento do interior em direção ao exterior, isto é, esgote aí. Uma dimensão implícita e sutil, mas de crucial
expressa o desenvolvimento de aptidões, a capacitação, relevância, tende a ser ignorada.
a tarefa de ajudar alguém a se aprimorar. Educação tam- Toda a comunicação de marcas transmite valores,
bém implica instruir, termo que em sua origem descreve mesmo quando ignora que o faz. Valores transmitidos
um movimento em direção oposta, do exterior ao inte- inconscientemente numa comunicação massiva podem
rior, no prover de conhecimentos. Num e noutro caso, a gerar desastres. Quase quatro décadas se passaram, a
educação envolve sempre o compartilhamento de valo- marca já não existe, mas os brasileiros que assistiram
res que estruturam e dão sentido ao que se desenvolve ao comercial em 1976 ainda hoje recriminam a frase
e ao que se adquire. A educação ajuda a formar um ser que não se quer esquecida: “Gosto de levar vantagem
humano íntegro, capaz de, por toda a vida, tornar ativos em tudo, certo?”.
e eficazes seus potenciais, para assim ser contributivo a Quem transmite valores exerce uma parte vital da
si mesmo, à sociedade e aos seus semelhantes. Os valo- educação. Vejamos mais um exemplo de valores que são
res são as fundações de sentido sobre as quais o prédio transmitidos não intencionalmente, mas que nem por
da educação deve se apoiar. isso têm menos poder de influência: quando alguns pri-
No passado, os valores eram transmitidos primeiro vate labels restringem sua comunicação à informação do
pela família e, em seguida, pela escola. Ambas mudaram preço, comoditizam tudo o que oferecem. A mensagem
muito. A visão humanista do ensino foi atropelada pelo implícita numa comunicação que se restringe apenas a
pragmatismo de resultados, que passou a pressionar as preço é que no interior daquela categoria nada se distin-
escolas para a prioridade da transmissão de conheci- gue de mais nada senão pelo preço. Mais grave ainda, esta
mentos que, ao final do ciclo escolar, capacitem o aluno mensagem no fundo induz à conclusão de que preço é a
ao vestibular, restando cada vez menos espaço para os medida que determina o valor de tudo.
valores. É significativo que tantas escolas hoje apresen- Quem escolhe a estratégia de comunicar somente
tem o sucesso de seus ex-alunos nos vestibulares mais preço deveria antes refletir se essa lhe parece ser a melhor
disputados, como evidência de excelência. Nas famílias maneira de educar as futuras gerações, se é assim que
modernas, todos os membros correm para cumprir agen- queremos que nossos filhos vejam o mundo e façam suas
das sobrecarregadas. Nas horas livres, o on-line exerce escolhas de vida. Deveríamos nos perguntar se dessa
divulgação
bilidade econômica, social e ambiental das empresas, e
cada vez menos propenso a aceitar o silêncio da omissão.
O que as marcas não dizem, estronda eloquente. Quem
Comercial de 1976 do extinto cigarro Vila Rica, que deu
origem à famosa Lei de Gerson, com a frase que não se quer não diz, fala alto no que cala. As redes sociais estão vivas
esquecida: ”Gosto de levar vantagem em tudo, certo?” e atentas. Nelas todos podem cobrar. Um post é o bastante
para estremecer pregões nas bolsas de valores mundo
forma estamos contribuindo para ajudar a formar seres afora. Os consumidores que cresceram on-line vão cada
humanos melhores, uma sociedade melhor, enfim, se é vez mais deletar as marcas avestruz, aquelas que ante
nessa direção que acreditamos estar o futuro que dese- uma “tormenta” se calam como se nada estivesse acon-
jamos para as próximas gerações. tecendo, enquanto gastam milhões de reais em comer-
Essas são questões fundamentais a qualquer plano ciais que algumas vezes se resumem a um exercício de
estratégico de marca que esteja consciente de sua res- autoglorificação. “Ei acorda, você está vivendo onde,
ponsabilidade na transmissão de valores. Marcas obvia- em Marte?”, é o que essa garotada desabrida vai dizer
mente têm de comunicar para defender ou expandir seu ao perceber que uma marca poderosa foge das grandes
market share. Só não deveriam ignorar que, queiram ou questões do nosso tempo. A contagem regressiva já está
não, sempre quando comunicarem farão mais do que em curso. O consumidor está se tornando mais crítico,
apenas perseguir seus intentos comerciais. não vai demorar a cobrar uma comunicação responsá-
Ao longo do século passado, as empresas ganharam vel, consciente, veraz e capaz de manter uma interlocu-
protagonismo cada vez maior, na economia, na política ção corajosa com as questões da atualidade. As marcas
e na questão ambiental. O peso de uma empresa como precisam assumir a responsabilidade de pensar o que é
a Samsung no PIB da Coreia é um exemplo do poder que relevante para o consumidor e saber como responder.
algumas empresas passaram a ter na vida das nações. No Japão, um acidente de carro causado por um moto-
Sendo assim, esperaríamos que as marcas passassem rista alcoolizado vitimou uma família. Uma célebre
a falar desde uma visão análoga à de estadistas. No indústria lançou em seguida uma bebida cujo sabor
entanto, poucas marcas hoje enfrentam, na comunica- era inspirado em cerveja, sem entretanto pretender ser
ção, os grandes dilemas e problemas da atualidade, com uma cerveja sem álcool. A bebida se chamava Mu, que
os quais se debatem seus consumidores. Então, as mar- significa Nada (conceito central na metafísica budista).
cas dessas empresas tão poderosas nada têm a dizer, a A comunicação falava não apenas de “nenhum teor de
álcool”, mas de nenhum descuido com a vida humana
que é sagrada. A bebida foi um sucesso. Os concorren-
Nas horas livres, o on-line exerce tes se esforçaram para entender essa receita de sucesso.
Os japoneses queriam afirmar em gestos o seu repúdio à
seu poder de fascínio e resta cada irresponsabilidade que originara a tragédia, e a indústria
vez menos espaço no cotidiano das soube responder oferecendo a oportunidade. Um fato do
famílias ao diálogo sobre os valores cotidiano inspira uma inovação de produto, num país
divulgação
ciso construir uma análise cultural, que supõe criar as
sinapses interpretativas entre as contribuições das três
disciplinas, para então chegar à compreensão do caldo
Comercial da Coca-Cola com jovens de diferentes etnias
cantando pela paz, veiculado durante a guerra do Vietnã, cultural em que se insere o consumidor. Essa síntese
mostrou a crença da marca numa hora grave da história interpretativa é tarefa da ciência do sentido, a filosofia.
Sem um questionamento sério do sentido, que é a essên-
onde o consumidor exige sentido até mesmo da bebida cia do saber e da prática filosófica, o marketing corre o
que se quer escolhida por ele. risco de continuar chafurdando em chavões da moda.
Vivemos um turbulento momento de transição na civiliza- Estratégia de marketing vai requerer cada vez mais pro-
ção, quando os indivíduos são desafiados por mudanças cada fundidade e densidade de pensamento.
vez mais aceleradas que dissolvem até mesmo os modelos Tudo isso porque as marcas educam. E o fazem sem-
de convívio que fundamentaram sociedades por séculos ou pre, independentemente de que o saibam ou queiram.
milênios. A família patriarcal, que perdurou no Brasil desde Deseducar é a frequente sina de quem educa sem refle-
a chegada dos primeiros colonizadores que aqui se radica- tir sobre o que faz.
ram, está desaparecendo no curso apenas de décadas, e nin- Para concluir, é preciso ressaltar que mesmo o que
guém ainda pode saber como será o novo modelo familiar. possa aqui soar à primeira vista inusitado, na verdade
As ideologias que incendiaram paixões no século 20 nada tem de inaugural. Muito ao contrário. Não precisa-
envelheceram, utopias ruíram. mos ir longe para encontrar os precedentes. No Brasil,
Mundos desabam, novos mundos surgem de repente. mais de quatro décadas atrás, o presente artigo pouco
Vetustas instituições são questionadas. Valores tradicio- traria de novidade para Luiz Seabra, quando então fun-
nais se esfumam. Muitas pessoas estão perplexas, outras dava a Natura, para Max Feffer, quando promovia cur-
angustiadas, inseguras, e buscam uma palavra que as ajude sos de filosofia, arte e história para os gestores da Com-
a pensar. Sobre tudo isto que é tão relevante e desafiador panhia Suzano e para Roberto Irineu Marinho, quando
para o seu público, empresas que têm tanto poder sobre ainda jovem ressaltava a importância da filosofia e das
os rumos do mundo, o que dizem na fala de suas marcas? ciências humanas para a visão de comunicação da Globo.
O que uma marca diz precisa ser significativo e rele- Assim fazem os verdadeiros precursores. Eles sabem
vante para o consumidor. Só assim a comunicação enquanto muitos ignoram, e ignoram as incompreen-
poderá ser contributiva para a marca. O consumidor sões que alguns então lhes dedicam. Eles ousam fazer
quando muitos duvidam, e seguem inovando quando
tantos passam a imitá-los.
Quem escolhe comunicar somente
pelo preço deveria refletir se essa Gustavo Pinto
lhe parece ser a melhor maneira de Sócio da ConcretoBrasil, Inteligência de Mercado para Soluções de
Marketing (www.concretobrasil.com.br), conferencista convidado nas
educar as futuras gerações Universidades de Berkeley, Oxford, Calgary, Lausanne, Viena e Otani-Kyoto
A Emília, do
Sítio do Picapau
Amarelo, é a
personagem
favorita de
Monteiro Lobato
e, sem dúvida, a
divulgação
mais malandra
de todas
I
magino que você tenha tomado conhecimento da entram também os países africanos com abundantes
reportagem sobre o Brasil que a revista The Econo- recursos naturais — países cujos líderes se perpetuam no
mist publicou no dia 28 de setembro de 2013. “Bra- poder, cujo povo é verdadeiramente pobre e oprimido,
zil’s future. Has Brazil blown it? ” não é o primeiro enquanto uma riqueza obscena vai parar nas mãos das
artigo a falar do protecionismo, da corrupção e de outras truculentas máfias no comando.
mazelas brasileiras. Preciso lembrar do mundo árabe, do Oriente Médio e de
Mas o fato é que, analisando o panorama mundial, é outros lugares abençoados com o petróleo? Contar com
fácil concluir que o Brasil não está sozinho — embora, recursos naturais nessa escala está mais para uma maldi-
infelizmente, o país não esteja fazendo jus a seu poten- ção do que uma vantagem competitiva. Basta dizer que os
cial. Talvez vá sempre ser “o país do futuro”, enquanto os países africanos desprovidos dessa dádiva tendem a ser
Estados Unidos, temo, sejam “o país do passado”, dados um pouco mais livres do que as nações do mundo árabe.
o impasse político e a crescente desigualdade social. Já a “democracia liberal” pode se tornar selvagem à
Ao que parece, a raça humana entrou numa nova fase. medida que o fosso entre “ricos” e “pobres” aumenta.
É o que chamo de “tecnofeudalismo”: quem não está onde Segundo Nicholas Kristof, do The New York Times, em
o dinheiro ou a informação trocam de mãos é classifi- termos estatísticos, a distribuição de renda nos Estados
cado como “servo”. Além de limitada, a mobilidade social Unidos é praticamente igual à da Nigéria e à da Guiana.
depende, cada vez mais, do berço ou da educação. A maio-
ria dos países, incluindo a Itália, regrediu para um sistema
de “castas” — que, embora não reconhecido abertamente
como tal, é, a meu ver, uma realidade.
Nesse cenário, há, ainda, o crescimento do “capitalismo
de Estado” versus o “capitalismo liberal”. O capitalismo
de Estado tem graus distintos de autocracia, opressão
e protecionismo. Tal fato é apontado em outra grande
reportagem publicada pela The Economist, em janeiro
de 2012, que recebeu o título de “The visible hand”. Rús-
sia e China são, na prática, o que chamo de “cleptocra-
cias”. Ali, a nação é despojada de seus recursos e o país
é governado por autocratas que não só se apossam da
riqueza nacional, como também impõem todas as regras
”Brazil’s future. Has Brazil blown it?”, artigo da revista
e se certificam de que praticamente não haja imprensa The Economist aborda o protecionismo, a corrupção
livre, mobilidade pessoal, liberdades etc. Nessa categoria e outras mazelas brasileiras
E o abismo entre ricos e pobres está aumentando a cada Cenas da vida real
ano, como aponta a reportagem especial “For richer, for O perfil demográfico do país também pesa muito nessa
poorer”, publicada na The Economist, em outubro de 2012. história. Em certas nações, a população dobra a cada 12
Quando o mito da mobilidade social é derrubado, é anos e metade tem menos de 22 anos de idade. Algumas
natural que o jovem se sinta desiludido e que o grau de — sobretudo aquelas nas quais a religião patriarcal e os
compromisso cívico despenque. É triste ver que, na Itá- autocratas religiosos querem permanecer no século 7
lia, Silvio Berlusconi é basicamente admirado — e a men- e desfrutar ao mesmo tempo do século 21, desde que a
sagem é: a pilantragem compensa! mulherada não possa dirigir — estão ideologicamente
Para que uma nação seja uma “democracia liberal”, é condenadas (os sauditas obviamente acham que pilotar
preciso transparência e, creio eu, bastante sorte na loteria um carro faz mal para nossos ovários).
histórica. Fico pensando como seria o Brasil se tivesse sido Para completar, há o destino do qual compartilhamos
“descoberto” pelos ingleses e fosse uma nação protestante... enquanto humanos — incluindo aí os luditas, que se recu-
E, sim, ter esse jeito “malandro” — ou “furbo”, como sam a aceitar que a Terra está se aquecendo e a turma do
dizem na Itália — é mais a regra do que a exceção. Um “Agora eu!”, cuja atitude não é boa para o futuro. Em geral,
mau exemplo produz coisas ainda piores. os mais velhos não dão a mínima para os jovens — seus
É interessante analisar a baderna atual pela ótica de netos, talvez até seus filhos. O crescimento populacio-
Monteiro Lobato, cuja visão do Brasil e dos valores do país nal na Rússia e na China é, na verdade, negativo, assim
apresentava sempre dois lados. O escritor obviamente ata- como na Europa, no Japão e na Coreia.
cava a corrupção e tudo o mais — e defendia a industriali- E é aí que a educação e a ESPM entram em cena. Apesar dos
zação e a “modernidade”. Por outro lado, era basicamente pesares, vocês ao menos educam o jovem. Seria muito inte-
um protecionista, para quem o petróleo não podia ser ressante saber o que esses jovens acham do tema “valores”.
nada além do que “nosso”. Em certos temas, era tido como Afinal, ficar reclamando — como os italianos fazem o
um “chato”, mas no Sítio do Picapau Amarelo, Pedrinho é tempo inteiro — só produz depressão, inação e acomoda-
o bom cidadão, o homem moderno. Já Emília, a persona- ção. É verdade que, no mundo todo, as novas gerações pare-
gem favorita de Lobato, é sem dúvida a mais malandra de cem meio preguiçosas, razão pela qual desisti de lecionar
todas, como mostro no livro A literatura infantil de Monteiro na Fordham University, em Nova York. Não suportava a
Lobato: uma pedagogia para o progresso (Instituto Cultu- indiferença e a falta de motivação e curiosidade intelec-
ral ESPM, 2012). A panóplia de personagens do autor tem tual dos alunos — que se encaravam como consumido-
muito a ver com o tema desta edição da Revista da ESPM. res, não estudantes. Na cabeça deles, estavam gastando
P
assados 40 anos do golpe de Estado contra o Apesar de sua aparente consolidação econômica e
presidente chileno Salvador Allende, a memó- política, o Chile vive no olho do furacão das injustiças.
ria política tanto da esquerda quanto da direita Os protestos estão trazendo ao cenário político temas
continuam vivas e em lados opostos. Desta de extrema atualidade, tais como: o aborto; o casamento
vez, o paradoxo raia ao paroxismo, onde duas mulheres homoafetivo; as greves dos trabalhadores; e as respos-
amigas de infância, unidas por uma mesma tragédia, vêm tas violentas por parte dos organismos de repressão. A
lutar pela presidência da República do Chile em campos enorme abstenção dos jovens nesta eleição mostra uma
antagônicos. Uma vez mais a alternância entre esquerda falta de confiança na classe política, como nunca se viu
e direita se sucede, sem aportar câmbios significativos a no Chile, o descrédito dos políticos e sua corrupção.
um sistema político injusto, excludente e desigual. Essa Em 1888, Friedrich Nietzsche produziu sua penúltima
contenda eleitoral foi realizada dentro das estreitas mar- obra escrita antes de perder a “razão”: O crepúsculo dos
gens de uma Constituição autoritária e com a tutela das ídolos — Ou como se filosofa com o martelo (Companhia das
Forças Armadas, verdadeiro Estado dentro do Estado. Letras, 2006). Sereno e funesto no tom, como um demônio
Essa eleição presidencial colocou em debate a voz das ruas que ri, o texto é a suprema exceção entre os livros. Não
no Chile. Agora, a presidente reeleita Michelle Bachelet terá há nada mais subversivo, substancioso, independente
de responder ao grito de milhares de gargantas de jovens, que e funesto do que ele. “Se alguém quiser ter alguma ideia
clamam, em alto e bom tom, seus sonhos de rebeldia: uma a respeito, de maneira mui breve, como tudo estava de
Assembleia Constituinte; o fim da Constituição de Augusto ponta-cabeça antes de mim, comece por essa obra (Ecce
Pinochet, de 1980; educação gratuita, laica, obrigatória e de Homo). Aquilo que chamo de ídolo no título é simples-
qualidade; saúde igualitária para todos os cidadãos; previ- mente tudo o que foi chamado de verdade até hoje” (a
dência social justa para todos; abertura dos arquivos das velha verdade chegou ao fim).
Forças Armadas sobre o paradeiro dos desaparecidos; a ver- Se por verdade aceitamos o bem comum, sendo este
dade sobre a utilização do gás Sarin em dirigentes políticos fundamentalmente um conjunto de condições estrutu-
de oposição; e o fim do enorme orçamento das Forças Arma- rais que se expressa na justiça da sociedade, as condições
das, obtido diretamente das vendas do cobre, sem nenhum e a justiça devem ser garantidas por meio da comunidade
controle por parte da sociedade civil ou política. política, que também deve assegurar o acesso ao bem
O momento não poderia ser mais delicado, quando uns comum a todos. Assim, a justiça promovida pelo bem
riem e outros choram, pelo triste aniversário do golpe militar, comum é a virtude por excelência da cidade, do cidadão
que foi apoiado pela Agência Central de Inteligência (CIA, na e do político. Desse modo, seria absurdo que aqueles que
sigla em inglês), dos Estados Unidos, com cerimônias som- detêm o poder (imperium) político representem somente
brias para honrar a memória de mais de três mil desapareci- grupos de interesse de indivíduos, sobretudo se esses
dos, produto do golpe militar, que pôs fim a um dos sonhos grupos são aqueles que se apropriam do bem comum. É o
mais lindos e democráticos das últimas décadas, somente caso dos mensaleiros, envolvidos no escândalo do men-
comparável com a frustração do sonho da Primavera Árabe. salão, em que as penas são brandas e com privilégios.
divulgação
Movimento jovem Cenas de A lista de Schindler (à esquerda) e
A vida é bela (à direita), filmes que nos dão pistas
Em Nietzsche, a ideia do “martelo” ou no caso do martelo
para entender os mistérios da mente humana,
“sagrado” de Thor representa uma declaração de guerra, capaz de produzir episódios como o Holocausto
uma luta sem quartel, contra a moral cristã e os erros da
filosofia e das ideias presentes no mundo atual. O espí-
rito de luta pode ser observado no subtítulo da obra, pois e inesgotável, já que “o fato de o desejo localizar-se, neces-
a palavra “martelo” deve ser entendida como um tipo de sariamente, num objeto ausente (e de os fins serem sempre
marreta capaz de eliminar e destroçar os ídolos. Colo- provisórios) elimina a possibilidade da identificação da feli-
cando os juízos de valor sobre a vida como imbecilidades, cidade como um modo de agir e introduz, inevitavelmente,
o autor nos demonstra que tais valores nem sequer exis- uma lógica de resultados. “Tudo o que os homens fazem é
tem. Esses valores, tratados pela religião como um todo, em nome da aquisição de algo que julgam um bem para si
são apenas sintomas da doença da ilusão da realidade. próprios”, como mostra Yara Fratteschi, em A física da polí-
Nas mensagens da juventude brasileira transmitidas tica: Hobbes contra Aristóteles (Unicamp, 2008).
durante o mês de junho do ano passado, em São Paulo, Para tratar do aspecto moral do estado de natureza,
temos a expressão de uma insatisfação crescente da Thomas Hobbes objetivamente define que bom é o objeto
política partidária e seus atores, que são corruptos e desejado e mau, o objeto da aversão. Nesse caso (os desejos
não representam esses jovens. O homem não quer viver dos jovens), os sujeitos estão submetidos ao subjetivismo
melhor para suprir uma falta, mas simplesmente para dos valores (daí a enorme variedade de reivindicações em
positivar seu desejo, que, sendo positivado, é insaciável. seu movimento), estabelecendo o sujeito (a ser alcançado)
O Estado, que deveria ser o tutor do bem comum e dis- como critério avaliativo. A partir dessa determinação,
tribuí-lo de forma equitativa, acaba sendo o defensor do pode-se concluir que não existe uma moral absoluta ou
bem comum das minorias. A defesa dos direitos huma- universal, pois o objeto desejado é definido como bom ou
nos é uma causa justa, mas o Estado, que deveria levar mau, de acordo com o sujeito desejado.
adiante essa causa, é um dos principais violadores dos Para nossos jovens, que com seus dedos ágeis correndo
direitos humanos. pelos teclados de seus celulares comunicaram-se, saíram
A felicidade para os jovens não consiste simplesmente às ruas em muitas cidades do mundo, explica-se esse
na concretização do desejo, mas em sua contínua marcha fenômeno sociológico como uma identidade em si na pro-
(leia-se procura), pois tal realização abre caminho para cura de mutações dentro de uma ação global de multidão.
outro desejo, que cessará apenas com a morte. O desejo Pedindo o impossível e obtendo o possível, com a redução
adquire, portanto, um caráter sempre provisório, insaciável da tarifa do ônibus, o sonho utópico desses jovens levanta
shutterstock
N
os últimos vinte anos, passamos a conviver As mudanças não param por aí, afinal estamos pas-
com uma avalanche inédita de mudanças. sando por uma profunda crise. Ao contrário do sentido
Desde a segunda metade da década de 1980 comum, uma crise, segundo a sociologia, não é um período
vimos a explosão da Aids; a queda de símbo- negativo nem positivo. Não representa uma evolução,
los do separatismo como o Muro de Berlim; a decadência mas o marco de um momento de passagem no qual valo-
de um império econômico e social, caso da ex-União Sovi- res, comportamentos, modelos, sistemas e instituições
ética; marcantes atentados terroristas num território con- se reconfiguram e se transformam, levando para outros
siderado como um dos mais protegidos do nosso sistema formatos e orientações. Não sabemos o tempo de dura-
— os Estados Unidos; a derrocada econômica da Argentina ção desta crise, nem com precisão quais serão seus fru-
— modelo de prosperidade na América do Sul; a liberta- tos, mas é certeiro que não seremos mais os mesmos.
ção, proclamação e morte de Nelson Mandela, símbolo O xeque-mate também está sendo dado para os negó-
da paz e da luta contra o racismo; a ascensão econômica cios. Os modos de condução e atuação das empresas têm
do dragão Chinês; a reconfiguração do mapa geográfico mudado profundamente. Temas que pertenciam a um ter-
mundial; a passagem do fax e da máquina de datilografar reno utópico de crenças e ideologias foram incorporados
para o computador; a explosão das redes digitais trazendo como estratégicos pelas lideranças das organizações:
novas atitudes e formas de sentir; os 15 minutos de fama cidadania; bem-estar comum; meio ambiente; susten-
para qualquer anônimo; o rompimento transgressor dos tabilidade; cuidado social; diversidade; aceitação e tole-
direitos autorais; o império do novo design; a obrigatorie- rância; respeito e transparência; consumo consciente;
dade da tolerância e do politicamente correto; o bullying; consumo responsável; e consumo com responsabilidade
os bipolares; a decadência dos fumantes; a fertilização in social. Esses termos mostram um movimento no qual o
vitro; o transsexualismo; o acesso mais fácil à reposição consumidor é qualificado com base nas suas escolhas
hormonal; a longevidade; a cultura do corpo e da malha- no consumo e não somente no seu poder de compra.
ção acompanhada do aumento da obesidade; a dissolu- Como estratégia de reputação de marca e relacio-
ção do antagonismo entre esquerda e direita; a queda da namento com o cliente, as empresas têm abordado e
credibilidade das instituições; a decepção com as ideolo- divulgado a responsabilidade no consumo. Daí como
gias políticas e os seus representantes; a transformação no mundo corporativo, já é comum nos depararmos
da composição familiar; a importância da mulher na eco- com o chamado marketing social ou Marketing con-
nomia e outras esferas da vida... tra a pobreza — como indica o próprio nome do livro
escrito por Philip Kotler e Nancy Lee (Editora Book- produção e uso da mão de obra produtiva, impacto no
man, 2009) —, entre outras correntes da disciplina do bem-estar da sociedade, consequência e impacto no
marketing, visando aproximar as ações das empresas meio ambiente, como também os direitos de inclusão
ao contexto cidadão-consumidor. É importante des- no consumo através de um acesso mais igualitário aos
tacar que esse movimento das empresas nem sempre bens por meio do poder de compra ou ajuste dos preços.
representa uma consciência cidadã de seus líderes na Foram diversos os casos dos consumidores em levante
condução dos negócios, mas, em geral, uma adaptação contra as empresas: movimentos dos norte-americanos
aos temas que compõem a pauta de interesse daqueles em oposição à indústria e comércio que utilizavam a mão
que são consumidores em potencial. de obra escrava (1764), e ainda antes, em 1756, a cha-
O consumidor que parecia tão passivo, no aguardo de mada War of Independence, contra os produtos impor-
ter suas necessidades e desejos satisfeitos e atendidos tados da Inglaterra; a criação da New York Consumers
pelas empresas, agora palpita, participa do processo League em 1891, com a formação de guias de empresas
criativo e de produção, interfere nas táticas de consumo que tinham posturas reconhecidas como éticas para a
e, mais do que reclamar da qualidade dos produtos ou época; as diversas manifestações pela Europa que atra-
serviços, denuncia as empresas que não correspondem vessaram o século 19 lutando pela qualidade da água,
aos princípios da cidadania, direitos humanos, bem-es- pão e leite, entre outros bens de primeira necessidade;
tar social e ambiental. uma série de boicotes contra as empresas e até mesmo
contra o consumo, desde o nascimento do boicote, em
Manifestação on-line 1878, passando por diversos, frequentes e marcantes
É nas redes sociais que os consumidores têm encon- momentos no século 20, quando grandes corporações
trado um palco para debate e reivindicações quanto ao multinacionais sofreram ataques de consumidores.
consumo e à conduta das empresas. Crescem os posts O que há de novo é o uso do terreno cibernético para
espontâneos nas redes sociais, em especial no Face- a manifestação dos consumidores. Nas redes sociais,
book, denunciando empresas, compartilhando recla- são frequentes os depoimentos e denúncias de cidadãos
mações contra marcas e produtos, relatando casos de comuns contra empresas, pelos mais diferentes motivos
mau atendimento e assim, com a legitimidade própria que apresentam, desde uma insatisfação particular e
e única de um consumidor — que não tem interesses pontual até delações sobre exploração de mão de obra
comerciais, mas quer somente orientar os amigos e ou trabalho escravo, uso na composição dos produtos
conhecidos —, recomenda ou não produtos e marcas e, de insumos ou itens que comprometem ou ameaçam a
muitas vezes, convida os demais para boicotes. saúde das pessoas, todo tipo de impacto nocivo ao meio
Essa voracidade dos consumidores não é recente, ambiente, como o uso de animais em testes laborato-
mas representa um embate presente ao longo da histó- riais, poluição de recursos naturais, desmatamento,
ria e da genealogia do consumidor. A escritora Michele entre vários outros tipos de reclamação. O tempo tam-
Micheletti, por exemplo, abordou o tema em 2003, no bém certificou o óbvio para os consumidores: a força do
livro Political virtue and shopping. Individuals, consume- coletivo é maior do que o ensejo individual.
rism and collective action (Editora Palgrave Macmillan). O coletivo aparece no meio digital de forma variada
Segundo ela, esse movimento não fica restrito à insatis- e, por que não dizer, criativa. Há páginas na rede social
fação do comprador quanto ao produto ou serviço rece- Facebook que incitam o boicote contra empresas diver-
bido, mas envolve questões relacionadas aos modos de sas, como O Boticário (www.facebook.com/pages/
shutterstock
Nas redes sociais, são frequentes os depoimentos e denúncias de cidadãos
comuns contra as empresas, pelos mais diferentes motivos que
apresentam, desde uma insatisfação particular e pontual até delações
sobre exploração de mão de obra ou trabalho escravo
Boicote-Boticário), contra o consumismo em geral (www. obra de menores de 16 anos e discriminação étnica. De
facebook.com/BoicoteOConsumismo). Também é possí- acordo com a análise dos auditores, ficou claro que o tra-
vel encontrar sites mais estruturados originados da orga- tamento dispensado aos indígenas quéchua e aimará,
nização da sociedade civil que acabaram dando origem contratados pela rede, era indigno, caracterizado por
a órgãos ou associações civis que cuidam de denunciar jornadas extenuantes e ambiente de trabalho degra-
e fiscalizar as empresas. Os exemplos mais significati- dante, em comparação com os funcionários brasilei-
vos são o site Reclameaqui (www.reclameaqui.com.br) e ros — conforme descrição feita no relatório de autua-
o recente BoicotaSP (www.boicotasp.com). ção publicado no Diário Oficial de 16 de agosto de 2011.
Essas reações dos consumidores no ambiente digi- A marca nacional de calçados e acessórios Arezzo é
tal colecionam resultados efetivos na pressão exercida outro exemplo. Na primeira quinzena do mês de abril,
junto às empresas, no âmbito do coletivo e da atuação também de 2011, a empresa lançou uma coleção com o
da empresa na sociedade. Alguns casos recentes ilus- título de PeleMania, que tinha como destaque o uso de
tram esses movimentos. Em agosto de 2011, após cres- peles de raposa e coelho na confecção de sapatos, bol-
centes denúncias do público pelo meio digital, a rede sas e echarpes. Mais uma vez, as redes sociais no meio
de lojas multinacional Zara foi autuada pelo Ministério digital demonstraram ser um canal rápido para convo-
do Trabalho e Emprego (MTE) em 48 infrações — entre car um boicote contra a marca. No Facebook foi criada
elas, superexploração dos empregados, uso de mão de a página “Boicote Arezzo”. No dia 18 de abril, a marca
O casamento da indústria
cinematográfica com
o marketing internacional
Ao longo do tempo, o cinema americano acertou seus passos e partiu rumo ao
mercado externo com o objetivo de maximizar lucros e evitar a falência de estúdios
Por Edmir Kuazaqui
112 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014
Sucesso de crítica e bilheteria,
Batman Begins, de Christopher
Nolan, arrecadou US$ 200
milhões nas primeiras semanas
de veiculação, em 2005. O bom
desempenho deu origem a
divulgação
M
arketing internacional é um conceito de sua exibição nas salas de cinema, como a venda direta
criado por Philip Kotler, na década de para a televisão. Episódios como o do Portal do Paraíso,
1980, que traduz a importância de as de Cimino, acabaram obrigando as grandes produtoras
empresas desenvolverem suas estraté- a adotar critérios mais seletivos na escolha das produ-
gias e negócios globalmente. Na década seguinte, a sua ções, além de otimizar custos, reduzir despesas e optar
frase “Pensar globalmente, agir localmente” marcaria por outros meios de veiculação. Tais critérios foram
definitivamente essa ideia. requisitos para a obtenção de financiamentos e seguros
Como professor de administração e relações interna- bancários, com a imobilização dos recursos financeiros
cionais, defendo a tese de que o conceito não deve ser apli- do estúdio durante o período da produção e comerciali-
cado somente à exportação (como boa parte das empresas zação do filme. Passaram a ser efetuadas parcerias com
e pessoas o faz), mas a todos os segmentos de negócios. empresas de produtos (como brinquedos) e venda de espa-
No setor cinematográfico mundial, por exemplo, essa ços dentro dos filmes, a título de exposição de marcas.
ideia tem ganhado espaço, pois antes a receita local das A partir de 2006, o crowdfunding se tornou uma opção
bilheterias dos cinemas era a mais importante para o de financiamento, não necessariamente relacionada dire-
negócio. Em segundo lugar, vinha a venda das produ- tamente aos riscos comerciais finais, mas como forma
ções para a televisão, diferentemente do que ocorre hoje, rápida para viabilizar a produção de um filme. Essa ideia
quando prepondera o pensamento global. Assim, já foi o do jornalista americano Michael Sullivan consiste num
tempo em que uma produção podia ocasionar a falência funding cujos recursos são obtidos a partir de empresas
de um estúdio de cinema, como ocorreu com Heaven’s
Gate (Portal do Paraíso, 1980), de Michael Cimino, que
custou em torno de US$ 50 milhões para o estúdio Para-
mount, mas rendeu apenas cerca de US$ 1 milhão no
mercado americano, fazendo com que o estúdio pedisse
concordata. Já em 2012, John Carter, produção de US$ 200
milhões, foi um retumbante fracasso do estúdio Disney,
que nem por isso faliu. O filme custou, ainda, outros US$
100 milhões em marketing totalmente equivocado, que
influenciou negativamente nos resultados do estúdio no
referido período. Mundialmente, deveria faturar pelo
menos US$ 700 milhões para recuperar o capital. Che-
gou a US$ 269 milhões. O erro foi tão grave que forçou a
demissão do presidente do estúdio, Rich Ross.
Com base em alguns artigos publicados em revistas
especializadas, como Preview, Monet, Cinema Brasileiro
e a saudosa Set, e em fontes virtuais (como a IMDb, por
exemplo), apresento a seguir um panorama atual da indús-
tria cinematográfica, em especial a norte-americana, e
seus desdobramentos contextualizados com o marke-
ting internacional.
No cinema contemporâneo, existem várias formas
divulgação
e, principalmente, pessoas físicas comuns (e outras nem Independentemente das críticas a respeito desse tipo
tanto, como o diretor e produtor Steven Soderbergh). Esses de financiamento (pois existem riscos para os pequenos
“doadores” obtêm reciprocidade na divisão dos lucros ou investidores e, às vezes, por serem milhares de doadores,
recebem outras formas de pagamento, como produtos há dificuldade para citá-los no final do filme), esse novo
autografados ou um jantar com o diretor do filme. Exem- formato permite ao público ter acesso a filmes diferentes
plo disso foi o filme Veronica Mars: A jovem espiã, longa- daqueles feitos pelas grandes produtoras, sempre preo-
-metragem inteiramente financiado por fãs da série de TV cupadas com a Taxa Interna de Retorno (TIR) e outros
homônima, que será lançado no dia 14 de março de 2014. indicadores econômicos financeiros em detrimento da
Segundo os sites Kickstarer, Catarse e Cineasta.cc, a campa- disseminação cultural que um filme pode gerar.
nha de arrecadação na internet rendeu o montante de US$
5,7 milhões, para o diretor Rob Thomas, que, em março do O caminho de uma obra
ano passado se uniu à atriz Kristen Bell, protagonista do De olho nos resultados financeiros, no merchandising
seriado americano — que foi exibido entre 2004 e 2007 —, e no mercado de vídeo e redes de tevê, os empresários
para lançar a tal campanha. Em apenas quatro horas, eles da indústria cinematográfica americana focalizam seus
receberam US$ 1 milhão em doações — metade da meta esforços no lançamento dos filmes em outros países.
inicial que havia sido estipulada por Thomas. O sucesso Deixam de lado os filmes de arte, que necessitam de um
da ação de crowdfunding motivou outros produtores, dire- trabalho todo especial e representam menos de 1% do
tores e atores a procurar essa forma de financiamento. faturamento do cinema mundial, para priorizarem as
latinstock
çado, teve uma apresentação especial no encerramento
do Festival de Cannes, em 1998. A partir do próximo ano,
os dois filmes terão remakes, com linguagem atualizada
Rich Ross, presidente do estúdio Disney, foi demitido após
para a geração Y. Um ano antes da estreia de Independence o fracasso do filme John Carter – Entre dois mundos, que
Day, o filme Jurassic Park: The Lost World foi lançado nesse deveria faturar US$ 700 milhões para recuperar o capital.
mesmo final de semana e faturou, em bilheteria, US$ 90 Mas atingiu apenas uma receita de US$ 269 milhões
milhões, tornando-se o segundo maior sucesso de 1997.
Esses exemplos mostram que, inicialmente, o marketing bastante diferente de produtos e serviços convencionais,
deve ser concentrado localmente, sendo válidas diferen- pois geralmente sua primeira fase é caracterizada por um
tes ações para que a bilheteria se realize de forma efetiva. grande período de pesquisa e planejamento, que culmina
Outro exemplo é o filme Batman Begins, de Christopher na pré-produção. Todas as fases seguintes, considerando
Nolan, que obteve boa bilheteria na semana de estreia, somente o filme, são curtas, mas exigem esforço e con-
em 2005, porém, quando projetado convencionalmente, trole antecipados e pesados. Essa etapa envolve desde a
o valor arrecadado não justificaria uma sequência. Entre- comunicação prévia para gerar demanda primária, na
tanto, a propaganda informal positiva dos que assistiram ocasião do lançamento, até outras produções concorren-
ao filme e a classificação CinemaScore fizeram com que a tes diretas e indiretas, implicando também negociação
bilheteria se repetisse nas três semanas seguintes, ultra- prévia com o distribuidor. Exemplo dessas características
passando a marca de US$ 200 milhões, o que justificou o diferenciadas é o filme João e Maria, de Tommy Wirkola,
investimento em novas produções sobre o mesmo tema. cuja bilheteria nos EUA não justificaria uma sequência,
Depois da estreia local, o filme parte para ser lançado porém a bilheteria mundial, aliada ao baixo custo da pro-
mundialmente. Tal estratégia costuma ser precedida por dução, sugere que esta possa ocorrer.
press releases, inserção de reportagens em veículos de Hoje, as superproduções americanas utilizam inúmeros
comunicação, visitas de atores e diretores, apresentações canais de distribuição. Um deles é o pay-per-view. Depen-
especiais (para a obtenção de crítica favorável pelos dife- dendo da duração do sucesso do filme e dos esquemas de
rentes influenciadores de opinião) e grandes ações promo- merchandising, essa é uma possibilidade, depois de um
cionais no intuito de cativar o público em geral. Às vezes, período de três a seis meses. Outra possibilidade é o sell
uma certa confidencialidade torna o evento mais atrativo. through, isto é, a comercialização para uso doméstico,
Produções como Guerra Mundial Z, de Marc Foster, e O depois de no mínimo outros três meses.
Homem de Aço, de Zack Snyder, garantem exposições, às Já os DVDs oferecem recursos extras para os apaixona-
vezes espontâneas, nos meios de comunicação, melho- dos por cinema. Além do filme, eles apresentam uma série
rando o resultado das bilheterias regionais. A bem da ver- de conteúdos adicionais, visando estimular a compra em
dade, o Ciclo de Vida do Produto (CVP) cinematográfico é pacotes especiais. O Hulk, de Ang Lee, rendeu em torno de
divulgação
dade gerada pelo formato 3-D.
Observa-se que houve uma mudança na lógica dos estú-
dios, com a diversificação dos meios de divulgação. Nessa
nova ótica, as sequências de Capitão América e Thor serão
O filme Veronica Mars: A jovem espiã estreia em março
como o primeiro longa-metragem inteiramente financiado possíveis, considerando o mercado global e outros pro-
por fãs da série de TV. Em apenas dez horas, a campanha dutos de sustentação, como Os Vingadores. Atualmente,
na internet arrecadou US$ 2 milhões em doações os mercados mais significativos e alvo das estratégias
são: China, Japão, Reino Unido, França, Índia, Alema-
US$ 130 milhões nas primeiras semanas no mercado ame- nha, Coreia do Sul, Rússia, Austrália e Brasil. Agora, de
ricano, não se constituindo necessariamente num filme nada adianta desenvolver estratégias altamente criati-
de grande bilheteria, porém vendeu mais de seis milhões vas de comunicação integrada e de marketing interna-
de DVDs na semana de lançamento no mesmo mercado, cional se não houver a oferta de um bom produto ao mer-
tornando-se um grande sucesso no segmento de home video cado consumidor. É isso que ocorre com X-Men Origens:
e possibilitando uma sequência. Nesse caso, destina-se a Wolverine e a refilmagem de The Day the Earth Stood Still,
dois tipos de público: aqueles que comercializam e outros, que pecam pela qualidade do roteiro, ritmo da história e,
como as pessoas físicas, para entretenimento. principalmente, pelos conceitos nada criativos para os
Em outra frente, a TV a cabo é utilizada em um segundo tempos atuais. O primeiro desvirtua o perfil do anti-he-
momento. Mais de um ano após o lançamento, o filme rói e o segundo não estabelece vínculo com a sociedade
é exibido na TV a cabo. Depois de mais um ano, a super- atual. Se a versão original de Robert Wise (baseada no
produção vai para a TV aberta, gerando o aluguel perió- conto Farewell to the Master, de Harry Bates) debatia poli-
dico e renovável a partir da negociação de pacotes com ticamente a Guerra Fria e nuclear, a refilmagem parte do
filmes e seriados. pressuposto de que estamos impactando a natureza, mas
Ainda é possível realizar um relançamento, como, necessitamos de redenção, sem que, contudo, haja uma
por exemplo, a versão do diretor e remasterização, como discussão aprofundada sobre o assunto. E pensar que
ocorreu com a trilogia Star Wars ou Gone With the Wind, os especialistas da área cinematográfica ainda tentam
recomeçando um novo ciclo de vida nos cinemas. Fato entender a queda sucessiva das bilheterias... O roteiro
é, por exemplo, que a atualização da tecnologia 3-D em é simples: basta pensar no marketing internacional e,
Avatar (2010), de James Cameron, impulsionou um novo principalmente, no respeito ao público!
ciclo de vida comercial a outros filmes, como a trilogia
Jurassic Park, em 2013.
Edmir Kuazaqui
Doutor e mestre em administração, pós-graduado
Sem um final feliz? em marketing, professor da ESPM, autor de livros,
Como o mercado americano tem sofrido quedas sensíveis consultor e presidente da Academia de Talentos
A
o analisarmos a evolução do INSC|ESPM nas seguintes áreas: vestuário (-7,9%); bancos (-7%);
nos últimos 19 meses, nota-se uma ten- energia elétrica (-5,1%); drogarias (-3,7%); supermer-
dência descendente nesse índice que cados (-3,5%); aviação (-3,1%); construtoras (-2%); per-
mede a satisfação do consumidor com sonal care (-1,4%); lojas de departamentos (-0,8%); e
base em informações do mundo virtual. Esse indica- indústria automobilística (-0,7%). Os demais setores
dor estuda a satisfação dos internautas em relação apresentam um aumento do índice de satisfação
aos serviços prestados e a produtos comercializa- de seus consumidores. Entre os destaques estão
dos por 96 grupos empresariais de 23 setores, que as categorias de transporte metropolitano (+4,1%);
representam 23% do PIB brasileiro. De acordo com bebidas (+2,7%); saneamento básico (+2,6%); indústria
o levantamento, o índice alcançou seu menor nível alimentícia (+1,3%); indústria farmacêutica (+1,2%);
em junho de 2013 e depois apresentou uma recu- e indústria digital (+1%).
peração nos quatro meses seguintes, como mostra O ponto fora da curva foi o setor de aviação, que
o gráfico 1. No último mês de outubro houve uma cresceu entre agosto e setembro, mas em outubro
queda de 2,4 pontos percentuais, quando o INS- teve queda de 3,1 pontos percentuais, atingindo 49,8%
C|ESPM passou de 56% em setembro para 53,6%. de satisfação entre os internautas. Como é possível
Em 19 meses, 13 dos 23 setores pesquisados regis- observar no gráfico 2 (na página 120), este valor está
traram retração. As principais quedas ocorreram abaixo da média histórica do mercado de aviação.
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O estudo mostra ainda que essa queda está fortemente Esse desempenho abaixo da média é mais um exem-
ligada às críticas relacionadas à qualidade no serviço pres- plo do impacto das redes sociais na sociedade e do poder
tado por um dos players. As reclamações estavam centra- que o consumidor tem atualmente. A queda no segmento
das em problemas rotineiros do segmento, como a demora bancário foi causada pela baixa satisfação com uma das
no atendimento, o tratamento sem cortesia, a lentidão dos maiores instituições financeiras do Brasil, que foi mani-
sites e as filas de espera. Outro fato interessante que ocor- festada por um cliente. Um internauta, bem influente nas
reu no mercado da aviação foi uma piora na percepção dos redes sociais, fez duras críticas às altas tarifas praticadas
preços das passagens. Como em setembro de 2013 muitas por um determinado banco, e isso acabou desencadeando
companhias aéreas fizeram diversas ações de desconto, uma reação em cadeia, com outros internautas relatando
no mês seguinte a percepção de preço alto acabou se tor- problemas similares. Apenas o post inicial do internauta
nando mais intensa, o que impactou diretamente o índice descontente gerou aproximadamente 600 retweets.
de satisfação do consumidor. O segmento de bebidas apresentou comportamento
Após registrar seu melhor resultado no mês de setem- inverso. Após uma queda acentuada em setembro, no mês
bro, o setor bancário apresentou uma forte queda de 7% seguinte, o setor se registrou um aumento de 2,7 pontos per-
no INSC|ESPM, atingindo 45,1% (ver gráfico 3). centuais em relação ao mês anterior (ver gráfico 4).
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GRÁFICO 5 | Satisfação do setor de transporte metropolitano
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O aumento na satisfação dos consumidores foi reflexo Após alcançar seu menor resultado em setembro de 2013,
do melhor desempenho de duas das quatro empresas ana- o setor teve uma leve recuperação no último mês de outu-
lisadas pelo INSC|ESPM. Os acontecimentos que contribuí- bro. Pode-se inferir que esse crescimento está fortemente
ram para o crescimento estão relacionados ao lançamento relacionado ao anúncio de que a presidente Dilma Rousseff
de uma nova cerveja com maior teor de álcool e à redução irá investir grande volume de recursos no sistema metro-
das menções negativas sobre uma possível falha no engar- viário de São Paulo. Outro ponto positivo foi o metrô de São
rafamento de produtos, que ocorreram em grande escala Paulo ter lançado um aplicativo que apresenta o status das
em setembro de 2013. Apesar do crescimento de 2,7 pontos estações em tempo real. Por outro lado, o setor ainda apre-
percentuais, denúncias de trabalho escravo na construção senta muitas menções negativas referentes a problemas de
de uma fábrica de um dos players do setor repercutiram de linhas, filas, demoras e outras questões que já se tornaram
forma extremamente negativa nas redes sociais. rotineiras para os usuários de transporte público.
Por último, o setor de transporte metropolitano regis-
trou um crescimento de 4,1 pontos percentuais, chegando
a 24% de satisfação de seus consumidores em outubro do Marcelo D’Emidio
ano passado, como indica o gráfico 5. Professor de marketing e pró-reitor de graduação da ESPM
arquivo pessoal
R
ecentemente, uma onda de solidariedade e ainda faltavam R$ 3 milhões para a meta do Teleton
invadiu os Estados Unidos. Tudo começou ser alcançada, ele foi até o quarto, pegou seu cofrinho,
no ano 2000, após o lançamento do filme contou as moedas com a ajuda do seu pai Francisco
Pay it forward (Passe adiante), inspirado no e perguntou para sua mãe Deborah: “Esse cofrinho é
livro homônimo de Catherine Ryan Hyde. Na trama, que meu? Eu posso doar todas essas moedas para o Tele-
no Brasil ganhou o título de A Corrente do Bem, um garoto ton?”. Ao ouvir um sim como resposta, Felipe só sos-
resolve colocar em prática uma ideia simples para mudar segou quando conseguiu fazer o pai levantar do sofá
o mundo. Incentivado por seu professor, o pequeno Tre- em pleno domingo chuvoso e levá-lo até uma agência
vor McKinney (interpretado por Haley Joel Osment) cria bancária para doar os R$ 75 em moedas, que estavam
um jogo de gentilezas, no qual cada pessoa deve retribuir em seu cofrinho. Francisco levou o filho na unidade do
a outros três indivíduos um favor recebido e assim sucessi- Bradesco montada na sede da TV Cultura, onde o Tele-
vamente. Não demorou para esse jogo de “passar adiante” ton estava sendo transmitido. Quando chegaram ao
sair das telas de cinema e ganhar adeptos tanto na vida real local, cruzaram com uma produtora do programa. Ao
quanto no mundo virtual. Logo o movimento ganhou um ver Felipe descer do carro com seu cofrinho, ela gostou
dia, o Pay it Forward Day, comemorado sempre na última da história e armou tudo para que a doação fosse feita
quinta-feira de abril, que em 2011 promoveu a prática de ao vivo e em rede nacional.
mais de três milhões de atos de gentileza em todo o mundo. No palco, o menino de apenas 8 anos fez sua doação e
Tem de tudo: de pessoas distribuindo abraços e flores na encantou os telespectadores ao aceitar o desafio proposto
rua até gente pagando almoço para desconhecidos com pelos apresentadores Silvio Santos e Hebe Camargo de no
o objetivo de fazer o dia de alguém mais feliz. ano seguinte doar dois cofrinhos — com o dobro de moe-
Muito antes da ficção virar realidade, o Brasil já possuía das — para o Teleton. “Senti vontade de fazer alguma coisa
a sua Corrente do Bem, que foi inspirada em um gesto de por aquelas crianças. Mas isso só aconteceu por influência
solidariedade de uma criança. Seu protagonista atende pelo da minha família. Meus pais aprenderam certos valores
nome de Felipe Sollito Ventura. Hoje, o publicitário formado com os pais deles, que eu, seguramente, vou passar para os
pela ESPM figura entre os maiores e mais famosos volun- meus filhos”, comenta ele, que na época acabou ganhando
tários da iniciativa criada pela Associação de Assistência o apelido de “Felipinho” do próprio Silvio Santos e o título
à Criança Deficiente (AACD), no final da década de 1990. de “embaixador do bem”. “Meu avô Wilson foi meu grande
E tudo começou quando ele tinha apenas 8 anos de idade. incentivador, além de meu ídolo. Quando ele comprava
Em 1999, enquanto assistia à segunda edição do Tele- alguma coisa, pedia o troco em moedas para colocar no
ton — programa criado para arrecadar doações para a cofrinho do Teleton”, lembra o publicitário.
AACD —, Felipe deu início a um questionamento que Desse pequeno gesto surgiu a ideia de mobilizar o
mudaria para sempre a vida da família Ventura. Ao ouvir público infantil a ajudar os deficientes físicos aten-
o Silvio Santos dizer que o programa estava acabando didos pela A ACD. Batizada de Corrente do Bem, a
divulgação
O filme Pay it forward (Passe adiante) conta a história “Quando entro em uma das unidades da AACD, sinto
de um garoto americano que resolve colocar em uma emoção enorme de saber que ajudei a construir
prática uma ideia simples para mudar o mundo
aquelas instalações e que alguns atendimentos serão
feitos graças à minha doação.”
campanha passou a instalar cofrinhos em escolas
públicas e privadas, estabelecimentos comerciais, O contador de moedas
drogarias, pedágios, hipermercados, aeroportos, esta- A trajetória de Felipe comprova a veracidade de um dos
ções do Metrô e restaurantes para arrecadar doações. mais famosos ditados populares: “A educação vem do
1999
edição do dono do SBT meses
Teleton, pelo
SBT. Na ocasião, Felipe doa os R$ 75
o evento em moedas do seu
arrecadou R$ cofrinho no palco do
14,8 milhões Teleton e promete
ao Silvio Santos que
voltará no ano seguinte
para doar o dobro
linha do tempo
2002 2003
O marketing da AACD Os R$ 2,7 mil
cria a Corrente do arrecadados são
Bem para incentivar transportados ao palco
crianças a ajudar a do Teleton em uma
entidade mochila
2009 2010
divididas em duas uma caixa de acrílico
malas para serem para armazenar as
entregues no palco Felipe começa a cursar Com a ajuda de seus doações que chegaram
do Teleton a ESPM. Na faculdade, pais, avós, tios e amigos, a R$ 22 mil
estimula os amigos a Felipe junta mais de
doar seus ”cofrinhos de R$ 20 mil, num total
moedas” ao Teleton de 30 mil moedas
linha do tempo
2012 2013
Corrente do Bem arrecada Com suas palestras em escolas,
mais de R$ 400 mil Felipinho bate um novo recorde ao
e conquista o Prêmio reunir quase R$ 1,5 milhão para a
Marketing Best de AACD. Além disso, ele também doou
Responsabilidade Social para a entidade R$ 30 mil em moedas
e Felipe doa R$ 25 mil em
moedas ao Teleton
Projeto de vida
Logo quando nasceu, Luara quebrou alguns ossos. Ainda
na maternidade, a mãe soube da deficiência da filha. O pai
não aceitou o problema e abandonou a família, deixando
Luara e seu irmão mais velho aos cuidados da mãe, que
passou a trabalhar dobrado para sustentar os filhos. Na
AACD é comum ver mães que cuidam sozinhas de seus
filhos deficientes e ainda enfrentam o preconceito dentro
da própria casa. Felipinho também foi vítima de precon-
ceito, e essa talvez seja a grande diferença que ele tem em
relação aos demais voluntários da AACD.
Dois anos depois de doar seu cofrinho de moedas para o
Teleton, ele caiu na casa do avô, ficou paraplégico e passou
a sentir na pele toda essa discriminação. “Felipe estava
brincando com as primas na casa dos avós. Durante uma
corrida, tropeçou, caiu e no chão ficou. Fomos para o hos-
pital Albert Einstein e lá os médicos disseram que o fato
de Felipe não sentir as pernas era um trauma do tombo e
que isso passaria em algumas horas. Voltamos para casa
e ele passou o domingo inteiro deitado, sem mexer as
Há 11 anos, Felipinho começou a dar palestras em escolas,
pernas”, lembra Deborah, que no dia seguinte retornou para divulgar o trabalho da AACD, por meio da Corrente do
ao hospital, onde permaneceu com o filho por 12 dias. Bem. Desde então, ele já falou para mais de 20 mil crianças
Editora Saraiva – São Paulo – 2013 Editora Soberana, Londrina – 2013 Editora nVersos, São Paulo – 2013
320 páginas – R$ 64,00 80 páginas – R$ 24,90 176 páginas – R$ 32,00
No mundo das marcas, ainda são Eis um livro que não se constituirá em A obra reúne artigos publicados pelo
dispersos os estudos que procuram best-seller, nem será encontrado em autor durante os últimos 20 anos em
entrelaçar a literatura jurídica com todas as livrarias. Mas merece ser co- alguns dos maiores veículos de comu-
os conhecimentos nas áreas da lin- mentado aqui. Hugh Thomas exerceu nicação do país. Entre os temas recor-
guística, comunicação, marketing e cargos executivos em grandes empre- rentes, estão a liberdade de expressão
outras disciplinas. Colaborando para sas e ainda hoje seu nome é lembrado, comercial e a ética na publicidade.
ampliar o entendimento do direito com respeito, no meio profissional. Atu- Preocupado com o futuro da profissão,
marcário, o livro busca esclarecer as- almente, Thomas é um cidadão aposen- Mendes afirma que não há mais gran-
pectos relacionados ao uso concreto tado, que aproveita o tempo disponível des publicitários como Ítalo Bianchi,
da marca no mercado e à percepção para fazer (e publicar) suas reflexões. Caio Domingues, Emil Farhat, Renato
por ela gerada. Nesse sentido, o uso Esse inglês, que passou a maior parte Castello Branco, Dora Pollack, David
reiterado pode atribuir distinção a da vida no Brasil, escreveu um verda- Ogilvy e Claude Hopkins. ”Os grandes
expressões que inicialmente não deiro manual, dirigido a nós brasileiros, profissionais estão acabando. De vez
continham tal característica, con- sobre como ”dar um jeito” no país. De em quando surgem novos, mas é uma
ferindo-lhe o que se convencionou fácil leitura, o livro ”pensa” o Brasil como luta danada para que eles cresçam.
denominar de secondary meaning. se fosse uma empresa privada – e, claro, Por isso, digo: sejam éticos e se dedi-
Da mesma forma, o uso inadequado é inviável de ser implementado. Sem quem para fazer história na profissão”,
da marca pode levar uma empresa a querer estragar o prazer da sua leitura, comenta o publicitário, que iniciou sua
perder toda a força distintiva que sua eis uma de suas recomendações: redu- carreira nos anos 1950, trabalhando
marca inicialmente possuía, trans- zir o número de deputados, de 513 para com artes gráficas, e atuou por mais de
formando-a em um nome banal e co- 337, o de senadores dos atuais 81 para 20 anos em agências e grandes grupos
mum, que é a chamada vulgarização. 54, e o de ministérios, dos inacreditá- editoriais, como Abril, Manchete e Visão.
veis 39 para apenas quatro: Segurança,
Lélio Denicoli Schmidt é advogado, Economia, Produção e Bem-estar. Uma Humberto Mendes é vice-presidente
especialista em processo civil pela PUC- viagem pela utopia brasileira – que vale executivo da Federação Nacional das
SP, e professor da PUC-RJ e da FGV-SP a pena fazer. (JRWP) Agências de Propaganda (Fenapro)
Competição ou
solidariedade
divulgação
Luiz Ernesto Gemignani
“Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós competição em todos os seus gestos e, principalmente,
chega para uma breve visita, sem saber por quê, parece que banaliza as virtudes, entre elas a justiça, a generosida-
às vezes por um propósito divino. Do ponto de vista da vida de, a humildade, o respeito pelo outro e o bom-senso.
cotidiana, porém, existe uma coisa que sabemos de fato: que Vivemos uma crise de valores, reconhecem todos,
estamos aqui pelo bem dos outros” mas nos recusamos a encarar o problema. “Vamos
Albert Einstein levando”, como aquele que atravessa a ponte estreita
D
sem olhar para baixo para não cair.
e uma visão estritamente mecanicista, do- Parece evidente que o que tem sido feito não é su-
minante em boa parte do século 20, em que ficiente e que precisamos encontrar novos caminhos
as empresas eram comparadas a máquinas para atuar não apenas sobre o acessório, mas sobre o
e as pessoas a engrenagens, evoluiu-se nas últimas principal, considerando o nosso planeta e o bem-estar
décadas para a compreensão de que as organizações de todos os seus habitantes como a razão de ser final
são sistemas vivos, integrantes de sistemas sociais da existência do próprio homem.
complexos dos quais dependem e pelos quais são Essa mudança, que é do corpo e da alma, é profun-
responsáveis. da, mas não impossível. É equivocada a ideia de que
Essa visão disseminou-se de forma relativamente a biologia evolutiva defina a competição como a razão
ampla na sociedade, levando, entre muitas outras da evolução das espécies. Pesquisas recentes reconhe-
iniciativas, à maior transparência das práticas empre- ceram que a colaboração sempre esteve presente e foi
sariais e à definição de novos e mais amplos critérios fundamental para que a nossa espécie evoluísse. Em
para a aferição do desempenho das empresas. outras palavras, a colaboração, ou, se preferirem, a
Essas realizações representaram um significativo solidariedade, é tão parte da natureza humana quanto
progresso, que se traduziu em mudança para melhor a competição.
no comportamento das lideranças, dos investidores As empresas, em seu conjunto, são hoje, talvez, a
e dos consumidores. mais poderosa instituição do planeta. Desse poder
Ainda estamos longe, entretanto, de sermos a so- derivam uma grande esperança e a intransferível
ciedade da qual, efetivamente, nos orgulharíamos de responsabilidade de as organizações serem agentes
fazer parte. Com o propósito de estabelecermos uma efetivos de transformação da sociedade.
economia de mercado que busca, por meio da liberdade Transformação que deve começar nelas próprias
e da eficiência, o bem-estar de todos, acabamos nos pela incorporação, de forma verdadeira e corajosa:
tornando uma sociedade de consumo, que precifica em seus propósitos, do compromisso verdadeiro pela
tudo, fomenta a natureza predatória do homem, a criação de um mundo melhor; em suas estratégias, do
equilíbrio sábio entre o presente e o futuro, a competi-
ção e a solidariedade, a parte e o todo; em sua cultura
organizacional, da prática efetiva e intransigente dos
A colaboração foi fundamental para valores e virtudes que quer ver presentes na sociedade.
a evolução da espécie. Em outras
palavras, a solidariedade é tão parte da
Luiz Ernesto Gemignani
natureza humana quanto a competição Presidente do conselho de administração da Promon S.A.
MARKETING
com Philip Kotler
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