Manthia Diawara
Com Ela quer tudo (She’s Gotta Have It, 1986), Spike Lee criou um novo tipo de
cinema, cujos prazeres visuais estaã o associados aà casa. De Ela quer tudo para Faça
a coisa certa (Do the Right Thing, 1989) e Uma família de pernas pro ar (Crooklyn,
1994), os filmes de Lee atribuem funçoã es narrativas a imagens, simbolismos e
metaá foras caseiras. Para Lee, “lar” significa o nacionalismo negro, a comunidade
negra e a celebraçaã o e propriedade dos negros sobre os produtos culturais. Ela
quer tudo e Faça a coisa certa descrevem a tentativa de Lee de valorizar o Brooklyn
como um bairro vibrante – como uma Meca negra com tanto apelo cosmopolita e
universal como o Harlem e o Greenwich Village.
Com uma produtora, uma casa e uma loja na seçaã o de Fort Greene do distrito, Spike
Lee continua a contribuir para a míástica do Brooklyn. Quando jovens negros se
mudam para Nova York, eá mais provaá vel que procurem refuá gio no Brooklyn do que
no Harlem ou no Village. Muitas pessoas acham que Spike Lee eá o Woody Allen
negro, e que ele fez pelo Brooklyn e pela cultura negra o que Allen fez por
Manhattan e pela cultura judaica. Como Allen, Lee abraçou os estereoá tipos de sua
cultura. Ele mesmo costuma retratar um deles em seus filmes: o negro como
elemento heroico, amoroso e essencial na histoá ria e na vida cotidiana do bairro.
Nos anos 80, a identificaçaã o de Lee com os estereoá tipos masculinos negros
coincidiu com o sucesso do movimento hip-hop, dominado por essas imagens. Sua
representaçaã o de questoã es raciais mostrou que ele estava vaá rios anos aà frente de
outros cineastas independentes negros e muito aleá m de Hollywood.
Em Ela quer tudo, Lee cria a míástica do Brooklyn usando o espaço como um
dispositivo narrativo e retratando Mars como o homeboy quintessencial. Conforme
os creá ditos de abertura saã o exibidos, vemos ainda fotos de crianças brincando no
parque, moradores sentados nos degraus de preá dios em todos os tipos de clima,
homens e mulheres no trabalho, pessoas paradas na frente de suas casas. Noá s
vemos pichaçoã es na parede: “Bed-Stuy, Inc. Brooklyn Secedes da Union”. Essas fotos
em preto e branco contam a histoá ria de uma comunidade que chama atençaã o para
si mesma. Eles e a epíágrafe de Zora Neale Hurston, que faz refereê ncia a navios,
criam uma associaçaã o visual romaê ntica entre a histoá ria do Brooklyn do filme e as
experieê ncias que inspiraram o livro de Hurston, Their Eyes Were Watching God. Em
um golpe de ediçaã o, Lee apropria-se da histoá ria da Ameá rica negra para o seu
Brooklyn. Alguns podem ateá dizer que ele reduz a experieê ncia negra aà sua histoá ria
do Brooklyn. Mas, na verdade, Lee descobriu o segredo da modernidade atraveá s da
ediçaã o – tomando atalhos para chegar ao ponto ou para concluir o trabalho. Outros
filmes independentes da AÁ frica e da diaá spora saã o dolorosamente longos e literais
em comparaçaã o.
Lee tambeá m eá capaz de vincular associaçoã es e espaços pela maneira como ele edita
os alambiques, mostrando crianças brincando, temporadas passando, adultos
trabalhando, pessoas passeando. Esse tipo de ediçaã o produz o mesmo efeito de
passar por um aá lbum de famíália e posiciona o espectador para experimentar um
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Publicado originalmente em In Search of Africa. Cambridge, Massachusetts: Harvard University
Press, 1998, pp. 262-267. Traduçaã o de Julio Bezerra.
sentimento de pertencer ao lugar. Lee desenvolve sua metaá fora do espaço puá blico
ao longo do filme. A cena mais fantaá stica e a uá nica filmada em cores, a festa de
aniversaá rio de Nola, acontece em um parque. A sequeê ncia começa com Nola e Jamie
em seu apartamento. Jamie, por meio de uma refereê ncia cinematograá fica
deliberada a O mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939), pede que Nola feche os
olhos e diga: “Naã o haá lugar como o lar. Naã o haá lugar como o lar. Naã o haá lugar como
o lar.”
Quando ela abre os olhos, estamos em Fort Greene Park, e o filme mudou de preto e
branco para colorido, como se para sinalizar a transiçaã o para um sonho. O cenaá rio
contribui para a futura privatizaçaã o do parque: ao fundo, um monumento inscrito
com grafites infantis; em primeiro plano, um casal dança o baleá moderno com a
muá sica de um fonoá grafo antigo. O parque, assim, toma o lugar da casa, tornando-se
o local de uma celebraçaã o privada e adornado com objetos domeá sticos e moá veis,
como um fonoá grafo, uma mesa, uma cesta de flores e alguns petiscos.
Em contraste com Ela quer tudo, onde o espaço eá construíádo como um bairro e um
microcosmo da identidade nacionalista negra, Faça a coisa certa apresenta um
espaço contestado: os personagens saã o definidos atraveá s de suas tentativas de
reivindicar seu ambiente. A maior parte do filme se passa em um bairro urbano
centrado em um cruzamento particular de ruas. Os marcos locais incluem uma
pizzaria, uma mercearia coreana e uma parede vermelha. Na frente da parede,
sentam-se treê s homens negros sob um guarda-chuva. Descendo a rua, entre a
pizzaria e a mercearia, haá uma estaçaã o de raá dio. Do outro lado da rua, em frente aà
pizzaria, haá um grande mural. O que eá notaá vel sobre o cenaá rio e a construçaã o do
espaço eá que quando um desses marcos ocupa o primeiro plano, vemos a açaã o que
estaá ocorrendo em outro marco no fundo. Por exemplo, das janelas da pizzaria de
Sal, vemos os moradores da calçada entrando e saindo da mercearia coreana.
Quando o filho de Sal, Peno, briga com um sujeito chamado Smiley, ouvimos as
vozes das pessoas do outro lado da rua, interferindo. Atraveá s desta visibilidade
muá tua, todos os quatro cantos da vizinhança estaã o conectados.
Os personagens saã o divididos por idade, raça e classe. Cada grupo acha que tem
mais direito ao espaço que os outros. Os negros sentados sob o guarda-chuva
assistem a um carro da políácia passando como se estivesse invadindo seu espaço
privado. Os policiais, por sua vez, olham para os homens com desprezo e raiva.
Quando Peno olha pela janela do restaurante e veê os homens sentados sob o
guarda-chuva, ele diz: "Eu odeio esse lugar." Um dos negros acusa os coreanos de
terem construíádo um negoá cio em "nossa vizinhança." Buggin’ Out, um dos
personagens que organiza um boicote aà pizzaria de Sal, confronta um homem
branco que eá dono de uma casa de pedra: "Por que voceê naã o vai para o seu proá prio
bairro?"
Em suma, o espaço em Faça a coisa certa eá um espaço negativo: ele resiste aos
esforços de identificaçaã o dos espectadores. Quando um menino diz no final: "Naã o eá
seguro nesta porra de bairro." Os personagens do filme parecem solitaá rios. Na
maioria das vezes, eles estaã o em perigo: carros que passam, jovens violentos,
racismo e políácia. Em Ela quer tudo, Lee usa o espaço para fazer os espectadores se
identificarem com a boa vida dos negros. Em Faça a coisa certa, ele cria um espaço
perigoso para despertar o espectador para condiçoã es sociais hostis e destrutivas.