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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Populismo e Trabalhismo

Getúlio Vargas
e
Leonel Brizola

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Aloysio Bohnen, SJ

Vice-reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ

Gerente Administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 1 – Nº 1 – 2005
ISSN 1807-7862

Editor
Inácio Neutzling, SJ

Conselho editorial
Dárnis Corbellini – UNISINOS
Jacinto Schneider – UNISINOS
Laurício Neumann – UNISINOS
Rosa Maria Serra Bavaresco – UNISINOS
Vera Regina Schmitz – UNISINOS

Responsável técnico
Laurício Neumann

Revisão – Língua Portuguesa


Mardilê Friedrich Fabre

Revisão Digital
Camila Padilha

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Impressão
Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467
www.ihu.unisinos.br

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Sumário

Getúlio Vargas
Carta Testamento.................................................................................................................. 7

“A Era Vargas foi um período de profundas modificações na sociedade brasileira”


Entrevista com Pedro Cezar Dutra Fonseca........................................................................... 8

“Por ora, não se fala mais no fim da Era Vargas”


Entrevista com Werneck Vianna ............................................................................................ 14

O populismo na América Latina: Getúlio, Perón e Cárdenas


Entrevista com Werner Altmann............................................................................................ 18

A passagem do Brasil rural para o Brasil industrial


Entrevista com Marco Antonio Villa....................................................................................... 23

Vargas pôs os valores religiosos a serviço de seu projeto político


Entrevista com Artur Cesar Isaia............................................................................................ 25

Getúlio na memória popular ......................................................................................... 29


“Sua marca ficou para sempre” ............................................................................................ 29
“Ainda guardo o busto de Getúlio que ganhei de meu tio”.................................................... 30
“Getúlio parecia mais nosso que de outros Estados” ............................................................. 30

“Um estadista não hesitaria entre os nazifascistas e os aliados”


Entrevista com João Aveline ................................................................................................. 31

“Vargas entrava em pânico ao ouvir falar de centrais sindicais”


Entrevista com Lauro Hagemann .......................................................................................... 34

Getúlio, os sindicatos e a greve de 1953


Entrevista com José Alvaro Moisés........................................................................................ 37

Getúlio e a revolução brasileira


Entrevista com Gilberto Vasconcellos .................................................................................... 39

Um romance historiográfico sobre a vida de Getúlio


Entrevista com Juremir Machado da Silva............................................................................. 41

Samba e identidade nacional na Era Vargas


Entrevista com Magno Bissoli................................................................................................ 45

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios


Entrevista com Eloísa Capovilla ............................................................................................ 49

Leonel de Moura Brizola ............................................................................................... 51


Biografia ............................................................................................................................... 51
A notícia de sua morte........................................................................................................... 51
Leonel Brizola, um político radical e apaixonado .................................................................. 51
Do Palácio Piratini para o palco da política nacional foi um simples passo............................. 51
Modelos ................................................................................................................................ 52
Saiba mais sobre Brizola ....................................................................................................... 52

A categoria populismo não serve para caracterizar a democracia brasileira


Entrevista com Jorge Luiz Ferreira........................................................................................ 54

O homem de um único partido


Entrevista com Maria Celina Soares D’Araujo ....................................................................... 58

“O País não está produzindo líderes”


Entrevista com Gunter Axt .................................................................................................... 61

Um homem contraditoriamente coerente


Entrevista com Paulo Markun ............................................................................................... 64

“Brizola despertou ódios e amores”


Entrevista com Luiz Alberto Moniz Bandeira......................................................................... 68

Histórias sobre um político que se “podava” para renovar-se


Entrevista com João Aveline ................................................................................................. 72

A educação no centro de seu projeto político


Entrevista com Cristovam Buarque ....................................................................................... 76

“É imprevisível o que possa acontecer com o trabalhismo brasileiro”


Entrevista com Sereno Chaise............................................................................................... 79

“A história da resistência não deve ser esquecida”


Entrevista com Flávia Schilling .............................................................................................. 82

Entre o passado e o presente


Por Eloisa Helena Capovilla.................................................................................................. 85

“Sentiremos a lacuna deixada por Brizola”


Por José Odelso Schneider ................................................................................................... 87

Vale a pena ler de novo


Discurso de Brizola em 28 de agosto de 1961, convocando a Cadeia da Legalidade............. 89

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-
ne, num caderno, entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados no Boletim IHU On-Line.
Deste modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, em torno de temas considerados
de fronteira, relacionados com a ética, trabalho, teologia pública, filosofia, política, economia, literatura,
movimentos sociais, etc. que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Apresentação

Com este primeiro número de Cadernos desenvolvido política marcante que preencheu
IHU em formação o Instituto Humanitas Unisi- um largo período da história política brasileira e, o
nos – IHU, dá início, em boa hora, a mais uma im- outro, tenha sua trajetória política, que fazia pre-
portante frente editorial. sumir também eventual chegada à presidência da
A nova publicação concentrará – e estenderá República, cortada na esteira do golpe contra Var-
– temática específica que tenha sido publicada no gas de agosto de 1954 e sua projeção no golpe mi-
já consagrado semanário Boletim IHU On-Line. litar de dez anos depois, em 1964.
Desse modo, a concentração de artigos e entrevis- Getúlio Vargas, como ninguém, na História
tas de idêntico eixo temático pretende proporcio- do Brasil, foi o estadista a serviço de um projeto
nar a abrangência de visão para quem deles se nacional, fazendo dele seu próprio projeto de
aproxima, fornecendo, ao mesmo tempo, fontes vida. Esse projeto se configura na política efetiva
para a pesquisa acadêmica mais alentada. de modernização do Estado, vale dizer, criação e
Os artigos e as entrevistas referentes a Getú- consolidação de um novo tipo de estado, com re-
lio Vargas são provenientes, inicialmente, do forma administrativa ancorada em burocracia de
evento A Era Vargas, realização conjunta do Insti- mérito, com empresas estatais em áreas estratégi-
tuto Humanitas Unisinos e do Programa de cas, com legislação social e trabalhista que envol-
Pós-Graduação em História da UNISINOS, realiza- via o estabelecimento de pacto político capital/tra-
do de 23 a 25 de agosto de 2004, que permitiu ao balho e a relação de troca entre o Estado e o siste-
IHU a publicação dos magníficos boletins A Era ma sindical. A propósito, o trabalhismo, como in-
Vargas em Questão (ano 4, n.º 111, de 16 de clusão social, ensejou a criação do Partido Traba-
agosto de 2004) e Getúlio (ano 4, n.º 112, de 23 lhista Brasileiro (PTB) e a organização de todo o
de agosto de 2004). De outra parte, a morte do restante do sistema partidário com o Partido So-
herdeiro político de Vargas, Leonel de Moura Bri- cial Democrático (PSD) e também a União Demo-
zola, ocorrida dois meses antes, havia ensejado crática Nacional (UDN). Vargas tornou-se, então,
igualmente um magnífico Boletim, Leonel de criador e articulador de um Estado Nacional ali-
Moura Brizola – 1922 – 2004 (ano 4, n.º 107, de cerçado em planejamento e no nacionalismo
28 de junho de 2004). Os acontecimentos e as pu- como motor da construção da soberania nacional.
blicações do IHU On-Line estavam, portanto, Característica marcante desse Estado Nacional
apontando para esta publicação conjunta. Mais em projeto foi a adesão entusiasta da população
uma vez a História mostrava o caminho. aos valores desse projeto político que encaminha-
O desdobramento do eixo temático nas figu- va uma tendência à igualdade econômica, política
ras históricas de Getúlio Vargas e de Leonel Brizo- e cultural com alguma, ainda que incipiente, parti-
la se faz naturalmente pela percepção da proximi- lha dos bens do País.
dade dos personagens ao mesmo projeto político, De outra parte, à medida que o nacionalismo
o do nacional-desenvolvimentismo, ainda que a como motor da soberania nacional foi, crescente-
trajetória política de ambos esteja revestida de mente, se opondo às instâncias externas de domi-
considerável assimetria, na medida em que um te- nação impeditivas da efetiva soberania nacional,
nha chegado ao poder político e, nele instalado, ele foi adquirindo a marca correlata do antiimperi-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

alismo. O nacionalismo que fundamenta ideologi- aos dias atuais, com realização política de desen-
camente o projeto nacional desenvolvimentista volvimento oposto ao do nacional-desenvolvi-
pretendeu, portanto, suplantar as contradições mentismo varguista. Os artigos e as entrevistas
com o imperialismo sem, no entanto, enveredar aqui apresentados fazem realçar a importância
pelo terreno da xenofobia. Dessa maneira, o nacio- dessa reapropriação histórica para poder se ali-
nalismo e o próprio populismo, como se passou a nhavar o horizonte e a marca do desenvolvimento
denominar toda a marca política da época, forne- político-econômico brasileiro nesse início do sécu-
ceram a fundamentação ideológica da construção lo XXI.
do Estado Nacional e seu enfrentamento com o A Era Vargas revela-se, portanto, mais atual
imperialismo. Com efeito, o populismo na Améri- do que nunca para a discussão sobre os destinos
ca Latina apresenta um caráter básico de resistên- da nação brasileira. É certo que estamos diante de
cia, no sentido da autonomia relativa do Estado um Getúlio Vargas multifacetado – em aspectos
em relação às classes sociais e como antagonismo pontuais e, em essência, irrelevantes – mas, extre-
ao imperialismo. O populismo na América Latina mamente coerente e linear em seu lugar na Histó-
só pode ser entendido se visto na esteira do nacio- ria, isto é, em sua vinculação ao projeto nacio-
nalismo e da busca da autonomia nacional como nal-desenvolvimentista que encarnou magistral-
projeto político. mente como personagem histórico invulgar. Por
Vale a pena estabelecer aqui a relação com o outro lado, a parte referente a Leonel Brizola en-
pensamento do filósofo mexicano Leopoldo Zea, caixa-se de forma natural para a publicação que
quando se referiu à contraposição cultural euro- se apresenta, desde logo pela morte ocorrida em
péia e latino-americana, afirmando não aceitar a junho de 2004. Porém, mais que isso, os artigos e
existência de uma matriz cultural à qual todas as as entrevistas referentes a Brizola, aqui reunidos
demais culturas devam submeter-se, mas que to- indicam incorporação e acréscimo às discussões
das possam dialogar em pé de igualdade (escutar sobre a relevância do significado do período na-
o outro, reconhecê-lo como outro para a possibili- cional-desenvolvimentista direcionado à constru-
dade do diálogo igualitário). Para que tal possa ção de um autêntico Estado Nacional autônomo,
acontecer, Zea aponta para a necessidade da rea- pois, afinal de contas, o Brasil ainda não resolveu
propriação da memória histórica latino-america- o impasse e a contradição entre nacional-desen-
na, passo necessário para a desalienação e o esta- volvimentismo e antinacionalismo integrado à
belecimento da auto-afirmação própria sem a pre- globalização.
tensão do estabelecimento de nova dominação, Oferece-se, então, ao leitor, esse mosaico do
aquilo que, na obra de Zea, configura um lati- pensamento político sobre eixo temático específi-
no-americanismo universal. co na concordância de que a Era Vargas deixou
Assim, os textos deste primeiro número de legado fundamental que afirma o açodamento
Cadernos IHU em formação evidenciam a im- aistórico dos que pretendem proclamar o seu fim.
portância da reapropriação da memória desta eta-
pa histórica brasileira do século XX, em relação
Dr. Werner Altmann

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Getúlio Vargas

Carta Testamento hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo
de quem fui escravo não mais será escravo de nin-
“Lutei contra a espoliação do povo. Tenho guém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua
lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calú- alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
nia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a
vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada re- espoliação do povo... Eu vos dei a minha vida.
ceio. Serenamente dou o primeiro passo no cami- Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio.
nho da eternidade e saio da vida para entrar na Serenamente dou o primeiro passo no caminho
História”. da eternidade e saio da vida para entrar na
“E aos que pensam que me derrotaram res- história.”
pondo com a minha vitória. Era escravo do povo e

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“A Era Vargas foi um período de profundas modificações
na sociedade brasileira”

Entrevista com Pedro Cezar Dutra Fonseca

O professor do Departamento de Ciências nomia industrializada do hemisfério sul. Foi uma


Econômicas da UFRGS, Pedro Cezar Dutra Fonse- mudança substantiva que houve na sociedade
ca, entrevistado pela redação do IHU On-Line, brasileira. Nos últimos anos dessa Era Vargas,
abordou as características do modelo econômico principalmente após 1944, quando a Segunda
do período Vargas. Pedro Dutra Fonseca é gra- Guerra vai chegando ao fim, há também o apare-
duado e mestre em Economia pela UFRGS, tendo cimento do que chamamos de trabalhismo, que
sua dissertação o título Reorientação da Economia alguns autores denominam também de populis-
Gaúcha na República Velha: A Política Econômica mo. Esse movimento marcou uma tentativa de in-
e os Fundamentos dos Conflitos Políticos. Douto- corporação das grandes massas nesse projeto de
rou-se também em Economia pela USP e deu à desenvolvimento com uma certa distribuição de
sua tese o título Vargas: O Discurso em Perspecti- renda. É um projeto muito marcante para a socie-
va e o Capitalismo em Construção. É autor de, en- dade brasileira. O legado dessa Era é muito forte
tre outros livros, RS: Economia e Conflitos Políti- até hoje no Brasil.
cos na República Velha. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983; Vargas: O Capitalismo em Constru- IHU On-Line – Como se relaciona isso com o
ção. São Paulo: Brasiliense, 1989; e, com Gentil livre mercado? Foi uma reação à idéia de li-
Corazza, A Junta Comercial no Contexto da Eco- vre mercado?
nomia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pedro Dutra Fonseca – Sim. Podemos dizer
UFRGS, 2003. que há dois movimentos. Desde a sua formação,
Vargas sempre foi um defensor da propriedade
IHU On-Line – O que caracterizou o modelo privada, das instituições capitalistas, mas ele não
econômico da Era Vargas? era liberal no sentido estrito da palavra, ou seja, li-
Pedro Dutra Fonseca – Esse modelo significou beral no sentido de achar que o Estado não deve
o mais importante movimento, até hoje, pela in- participar da economia. A formação inicial de
dustrialização do País. Na verdade, essas décadas Vargas é positivista, e o positivismo difere do libe-
que compreendem a Era Vargas, que, grosso ralismo nesse aspecto, porque ele aceita uma cer-
modo, vai de 1930 até 1954, praticamente 25 ta intervenção do Estado. Na década de 1930, po-
anos, representaram um período de profundas demos dizer que o espírito da época era estatiza-
modificações para a sociedade brasileira, que dei- dor. Todas as economias que dão certo nessa dé-
xou de ser tipicamente rural para ser urbana, pas- cada, como o fascismo italiano, o nazismo ale-
sou de sociedade agrária para sociedade indus- mão, a Rússia, de Stalin, são de países com forte
trial. A economia brasileira estava concentrada na intervenção governamental. Aonde o mundo vai
produção de poucos produtos primários, princi- mal? São os países liberais que vão mal. A crise de
palmente a exportação e passou a ser extrema- 1929 vai atingir em cheio os Estados Unidos, a
mente diversificada e se constituiu na única eco- Inglaterra, a França, a Holanda, os países tipica-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mente liberais e com pouca participação do Esta- pós-1930 reconhece a existência das classes e que
do. Então nas décadas de 1930, 1940, Vargas se- são desiguais. Então, ele tenta fazer uma media-
gue o espírito desse momento em que cada país ção dessas classes. Ele quer ser o elemento har-
vai, por suas próprias mãos, buscar uma alternati- monizador delas. Claro que é um Estado que não
va. Esses grandes estadistas, para o bem ou para o aceita a idéia de luta de classes, capital e trabalho,
mal, são grandes nomes em vários países, o pró- ao contrário do socialismo, porque nele capital e
prio Perón, na Argentina, Nasser, no Oriente Mé- trabalho têm que estar unidos em prol da Nação.
dio, sugerem saídas individuais e com certo nacio- É outra veia que brota no governo Vargas, que
nalismo. Nos Estados Unidos, que é talvez o país fica clara no Estado Novo, a perseguição política
mais liberal do mundo, é o momento do new deal, aos comunistas e aos integralistas, aqueles que se
de Roosevelt, que propõe uma participação forte desviam desse projeto.
do Estado na economia. Na Inglaterra, que é um
país de tradição liberal, a pátria do liberalismo, IHU On-Line – Pode-se dizer que essa carac-
surge Keynes, sugerindo também a intervenção terística de incentivo às corporações em-
do Estado. Esse comportamento de Vargas não é presariais e um apelo aos trabalhadores é
exótico. Ele age conforme o espírito da época, de algo tipicamente brasileiro ou, nos demais
acordo com o que vinha acontecendo no mundo, países que o senhor mencionou, acontece-
naquele momento. ram movimentos assemelhados?
Pedro Dutra Fonseca – Cada país tem a sua for-
IHU On-Line – E no lado da iniciativa privada ma, suas peculiaridades, mas de maneira geral, da
e dos empresários, qual foi a contrapartida década de 1930 até meados da de 1950, com a
a essas proposições? própria guerra que se avizinha, esses movimentos
Pedro Dutra Fonseca – Nesse momento, há um de estatizar a questão social se travam nos países,
apoio empresarial ao Governo. Há uma tentativa, com conotações diferentes. Por exemplo, na
desde o início, de cooptar esses empresários. E Argentina, com a Evita Perón, este tipo de siste-
não só os empresários da indústria, mas também ma, que chamo de populista, é muito mais radical.
os empresários do setor primário. Na ausência de É um diálogo direto com os descamisados da Evi-
instituições liberais, o Governo começa a criar ór- ta, inclusive, muitas vezes, passando por cima das
gãos estatais. Começa com o Instituto do Café, instituições parlamentares e sindicais dos capitalis-
depois surgirão institutos de vários produtos, do tas. No caso do Brasil, o governo Vargas nunca
açúcar e do álcool, do pinho, do mate, do cacau... chegou a romper em definitivo, principalmente
Todos são órgãos criados pelo Estado que vão após 1946. Vargas constituiu dois partidos, o PSD
permitir um diálogo direto, uma participação dire- e o PTB. Há um entrelaçamento com os sindicatos,
ta desses empresários com o Governo. O poder que é feito depois por João Goulart, de uma forma
executivo se abre a essas classes sociais, da mes- muito clara, com lideranças do PTB. O governo
ma forma que ele tenta também trazer os trabalha- Vargas, a partir daí, não vai deixar de lado a luta
dores para esse projeto com a criação do Ministé- parlamentar. A constituição desses dois partidos e
rio do Trabalho, Indústria e Comércio, que é um o fato de eles serem hegemônicos, no caso brasilei-
dos primeiros atos de Vargas ao assumir, e depois ro, dá uma certa calmaria política, mas isso não dis-
com a legislação trabalhista. Uma coisa interes- pensa as instituições parlamentares. E os empresá-
sante desse Estado, após 1930, é que ele reconhe- rios, nesse momento, participam desses partidos, e
ce a existência das classes sociais. Enquanto antes os trabalhadores também, e há lideranças, tanto de
de 1930 se tenta apagar a existência de classes so- empresários como de trabalhadores, representadas
ciais, depois se parte para uma ideologia de que- neles, que dão sustentação ao Governo.
rer que todos os brasileiros sejam iguais. Aí sim,
em nome do liberalismo – ou seja, no mercado to- IHU On-Line – Que papel a Era Vargas reser-
dos são livres para ter acesso –, o Estado do vou aos bancos, às instituições financeiras?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Pedro Dutra Fonseca – Uma das grandes carac- IHU On-Line – Vem da Era Vargas a expansão
terísticas do capitalismo brasileiro, na sua forma- de caixas de previdência, de iniciativas na
ção, e desse período de Vargas, é que os bancos área de seguros?
tiveram um papel secundário. Os bancos brasilei- Pedro Dutra Fonseca – Sim. A parte principal-
ros tinham uma legislação específica, mas era um mente de previdência e de seguros integra toda a
sistema muito frágil. É um desafio que temos mui- política de proteção ao trabalhador. Na verdade,
tas vezes que explicar na história econômica do tanto um como o outro, tanto a previdência como
Brasil, como o País chegou até 1960 sem ter um os seguros, existiam antes de 1930, mas para cate-
Banco Central, que só foi criado pelos militares, gorias específicas. Por exemplo, os portuários ti-
depois de 1964, num dos primeiros atos do gover- nham um Instituto de Previdência ou regras de
no militar. Vargas chegou a cogitar, no final da previdência, uma caixa. Chamava-se, naquela
guerra, em criar um Banco Central, mas não o fez, época, de aposentadoria de pensões, que tam-
criou a Superintendência da Moeda e do Crédito bém já existia para os militares e funcionários pú-
(Sumoc), de tal maneira que quem executava a blicos. O que aconteceu a partir de 1930 é que
política monetária era o Banco do Brasil e quem essa previdência, assim como todas as leis sociais
normatizava e estabelecia a parte doutrinária das em geral, se estenderam a todas as categorias de
políticas monetária e cambial era a Sumoc. Quan- trabalhadores. Gradualmente, se implantam insti-
do se constituem os grandes grupos econômicos tutos específicos para todas as categorias de traba-
brasileiros, como Itaú, Bradesco, Banco Nacional, lhadores. Começa pela indústria, pelo comércio...
que era do Magalhães Pinto, ou Banco Econômi- Os únicos excluídos desse setor são os trabalhado-
co? Eles se formam por fusões de bancos meno- res do campo. Há uma análise tradicional da eco-
res, de incorporações, mas isso já no período do nomia brasileira que é mostrar que Vargas conse-
“milagre brasileiro”, estimulado pelo Delfim Neto, gue fazer um grande pacto político para gerenciar
após 1968, 1969, 1970. Nesse momento, que e tornar hegemônico esse projeto de industrializa-
abrange o governo Costa e Silva e principalmente ção. Para isso, ele conta com os proprietários de
o governo Médici, é que esses grandes grupos na- terra. Para a maior parte dos proprietários de terra
cionais são constituídos, e é modernizado o siste- que têm um enorme poder político, principalmen-
ma financeiro brasileiro, para servir como financia- te, porque ainda têm muito controle sobre os vo-
dor. A caderneta de poupança e o sistema finan- tos no interior, ele dá em troca, de um lado, o
ceiro de habitação são manifestações do pós-1964. compromisso de não haver reforma agrária, e de
Então podemos dizer que essa era uma das fragili- outro lado, a restrição da legislação trabalhista à
dades desse momento do sistema brasileiro. Na cidade. Só vai aparecer carteira do trabalho, féri-
Argentina, o Banco Central foi criado na década as, obrigatoriedade de décimo terceiro no campo,
de 1930, enquanto no Brasil só o foi em 1964. na década de 1970, já no governo militar. A idéia
Esse é um dos gargalos da Era Vargas, a escassez de reforma agrária só aparece no período do tra-
de fontes de financiamento. O Juscelino vai ter balhismo na década de 1960, quando Vargas já ti-
esse problema muito sério. Não tinha um merca- nha morrido, e da forma mais radical encampada
do de ações desenvolvido no Brasil e não tinha por Brizola, que se torna seu grande líder, forçan-
um mercado de títulos. A dívida interna é um fe- do o trabalhismo a levantar essa bandeira, que até
nômeno posterior, porque não existia um merca- então Getúlio Vargas pregava, mas com muita
do claro de títulos nesse momento. Isso limitava o calma. Reforma agrária era quase o sinônimo de
Estado na sua fonte de financiamento. O Governo colonização; “Vamos colonizar o Oeste do Para-
só poderia expandir seus gastos se ele emitisse, o ná”; “Vamos colonizar a Amazônia”. Então a re-
que poderia gerar inflação, ou por meio de impos- forma agrária era quase um eufemismo, mas não
tos ou empréstimos externos, porque não havia em si uma distribuição de terras ou dos latifúndios
um mercado interno de captação. improdutivos. Isso acontece bem mais tarde.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – O senhor acha que a Era Var- indústria nacional, e a desnacionalização dos
gas foi sucedida por algum ciclo com im- grandes bancos. Nesse momento, ocorre o encer-
portância assemelhada? ramento do ponto de vista estritamente econômi-
Pedro Dutra Fonseca – A Era Vargas, se pegar- co da Era Vargas. É o final de um grande ciclo da
mos o sentido amplo da expressão, encerra-se em industrialização pela via da substituição de impor-
1964, com a deposição de João Goulart, com a tações. Não há uma certa coincidência entre o fim
ditadura militar. Vargas morre em 1954, mas ain- da Era Vargas na economia e na política. Parece
da os partidos e os líderes formados no trabalhis- que, na esfera política, a Era Vargas se encerra em
mo são muito fortes, haja vista que, logo em segui- 1964, com o golpe militar. Do ponto de vista eco-
da, é eleito Juscelino com o Jango de vice, reavi- nômico, os militares ainda continuaram a manter
vando os dois partidos que ele tinha criado: o PSD uma forte presença do Estado na economia, com
e o PTB. Mesmo com a eleição de Jânio, em 1960, prioridade para a industrialização. O governo Gei-
Jango é reeleito vice-presidente e depois assume sel criou enormes empresas estatais e manteve as
com a renúncia de Jânio. Como é a política brasi- empresas estatais do período anterior. Isso foi fei-
leira após a morte de Vargas? É como se ele fosse to por todos os governos militares. Do ponto de
o personagem central. São os varguistas e os anti- vista econômico, essa Era Vargas só vai se encer-
varguistas, liderados pela UDN e, aqui no Rio rar com a eleição do Collor, praticamente, já no
Grande do Sul, pelo Partido Libertador (PL). Na início dos anos 1990, final dos anos 1980.
economia, da mesma forma, os projetos são de in-
dustrialização acelerada, com barganha com rela- IHU On-Line – É possível traçar algum para-
ção ao capital estrangeiro. Isso era o contrário da lelo entre essa forma de operar política da
política proposta pelo maior partido da oposição, Era Vargas e do atual Governo?
que era a UDN, mais liberal, mais adepta do capi- Pedro Dutra Fonseca – Há certas semelhanças.
tal estrangeiro. Achava que era essencial o capital Inclusive há algo muito interessante: Vargas é elei-
estrangeiro para haver a industrialização do País e to pela esquerda e com uma retórica nacionalista,
que acusava esse nacionalismo de Vargas de de- em 1951, no segundo Governo. Mas ele assume e
magógico, inclusive de explorador das massas faz algo parecido com o que Lula está fazendo. Ele
pelo populismo. Essa era se encerra, definitiva- nota que a inflação está muito alta e que está ha-
mente, em 1964, quando, pela primeira vez, a vendo um problema sério nas finanças públicas.
oposição a Vargas assume o poder e inicia a cas- Ele diz que precisará fazer uma política ortodoxa:
sação de mandatos parlamentares e tira da cena elevar a taxa de juros, cortar gastos públicos e não
política não só os comunistas mas aqueles nacio- elevar salários, apertar os cintos. Nesse momento,
nalistas mais exaltados e ligados mais diretamente a oposição se cala. No bloco governista e princi-
à figura de Vargas. Sobram poucos, como Tancre- palmente na esquerda, começam as críticas a Var-
do Neves, que era moderado e que foi ministro da gas. Os comunistas começam a dizer, por exem-
Justiça de Vargas; Ulysses Guimarães, que tam- plo, que não há diferença nenhuma entre Vargas
bém era do PSD; Pedro Simon, aqui no Rio Gran- e os Estados Unidos, que Vargas é um represen-
de do Sul, porque a maior parte de opositores são tante dos Estados Unidos no Brasil, que aquela
cassados naquele momento. Aí se encerra um forma de pedir para apertar os cintos é reacioná-
grande ciclo da história política do Brasil, muito ria. Então começa uma grande discussão em
mais do que da história econômica. Do ponto de 1951, 1952. Vargas acaba cedendo, elevando os
vista econômico, no final dos anos 1980, quando salários. Quando ele eleva os salários, a oposição
começam as privatizações, é que ocorre a mudan- ainda diz que é insuficiente. A UDN fica calada e
ça substantiva, quando começa a se dizer que pre- entre os trabalhistas e a esquerda em geral é que
cisa haver a privatização das empresas estatais, há a maior oposição ao Governo. Isso vai levar a
flexibilizar a legislação trabalhista, atrair o capital uma sucessão de greves, até que acontece a maior
estrangeiro para constituir setores importantes da greve da história do Brasil de então, que é chama-

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da a Greve dos 300 mil e que força Vargas a tomar distribuição de renda e acreditam que mecanis-
decisões. Nesse momento, ele coloca Jango no mos extramercados vão levar a essa distribuição.
Ministro do Trabalho, na tentativa de acalmar es- Outra coisa é que os dois governos mostram, pelo
ses movimentos, porque Jango é considerado o menos no início, que não são governos radicais.
político do trabalhismo que tem mais trânsito no Ao contrário, são governos que tentam fazer uma
meio sindical, entre os chamados pelegos, que são política ortodoxa e com prioridade para a estabili-
aqueles sindicatos que apóiam o Governo, que dade econômica. Isso é uma novidade. E, em
eram do lado do trabalhismo, e não necessaria- uma pesquisa que eu fiz, as pessoas dizem que “o
mente comunistas. Esse sindicalismo, que era ra- populismo significa que o Governo quer fazer a
dical, no governo Vargas fica moderado, porque economia crescer e quer distribuir renda sem se
não faz uma oposição direta ao presidente. Em preocupar com a estabilidade”. Não é assim. Tan-
certo sentido, há alguma semelhança com a situa- to o governo Goulart, como o governo Vargas, e
ção atual. A diferença básica é que o governo Lula agora o governo Lula, eleitos pela esquerda no
está conseguindo uma base de apoio muito maior sentido amplo de que estão concorrendo contra
que a de Vargas. Era difícil, naquela situação, um outro bloco que é mais conservador, não dis-
constituir uma base de apoio. Jango, principal- pensam a idéia de estabilidade e tentam fazer uma
mente, enfrenta uma luta no Congresso Nacional composição ampla no Congresso Nacional para
radicalmente contra ele. Ao que tudo indica não é garanti-la. A diferença é que o governo Vargas foi
o que está acontecendo no governo Lula. Parece precipitado por uma crise política muito séria. E o
que ele consegue uma legitimidade muito maior governo Goulart também. No governo Lula, pare-
dos atores políticos, e a crítica a ele provém de ce que está havendo uma certa habilidade ou uma
alas mais à esquerda do espectro político. Ele está radicalização política menos séria do que naquele
calando as críticas do centro para a direita e de momento. A oposição hoje não é uma oposição
uma parte da esquerda. Isso Vargas não conse- golpista. A UDN dizia claramente que os militares
guiu. Até porque surgiu a campanha da Petrobrás tinham que ajudar a salvar o Brasil do comunismo
que ele teve que liderar. E a UDN fazia uma oposi- na época de Jango e, na época de Vargas, que
ção muito séria ao Governo. A situação não esta- nunca tinha sido comunista, pelo contrário, tinha
va como está hoje, com uma defesa maior da de- mandado prender todos os comunistas no Estado
mocracia. A UDN claramente dizia que a saída Novo. Vemos o grau de radicalização que existia
para o Brasil era um golpe militar, já desde essa então, que hoje parece não acontecer. A radicali-
época. Ela não aturava essa forma de populismo, zação maior contra o Governo hoje parte de seto-
mesmo que fosse moderado, uma vez que Vargas res da própria esquerda.
não era um político radical. Esse radicalismo polí-
tico udenista, eu não o vejo no momento atual. IHU On-Line – Há semelhanças no projeto
Essa é uma grande diferença. Mas são governos dos dois governantes de atribuir ao Estado
que têm uma grande semelhança, porque vêem a um papel indutor do desenvolvimento?
luta política, de um lado mais à esquerda, e con- Pedro Dutra Fonseca – Sim. Essa é uma carac-
correm com outro lado considerado mais conser- terística comum, do ponto de vista ideológico,
vador. São dois momentos muito semelhantes da ambos os governos defendem uma maior partici-
história. E o comportamento dos dois presidentes pação do Estado na economia. Eles são não-libe-
em algumas atitudes é muito parecido. rais, ou pelo menos antiliberais, de uma forma
ideológica mais ampla, o que não quer dizer que
IHU On-Line – Por exemplo? eles não façam políticas de estabilização ortodoxa
Pedro Dutra Fonseca – Eles são semelhantes na a curto prazo. Mas a retórica desses dois governos
sua proposta maior que, em certo sentido, é tentar é que eles se propõem a fazer uma distribuição, se
incorporar os trabalhadores ou incorporar as propõem a um certo nacionalismo. Por exemplo,
grandes massas. Os dois governos acenam para a a posição que Lula está tomando com relação à

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Alca e às relações internacionais é muito parecida idéia: não vamos romper com os Estados Unidos,
com a de Vargas, que era uma política que não mas não vamos aceitar tudo o que os Estados Uni-
rompia com os Estados Unidos. Era uma política dos querem. Sempre há uma política de barga-
realista suficiente para entender que romper com nha, essa barganha que se manifesta na Alca hoje,
os Estados Unidos seria loucura, não era possível, ou no grupo do G-20, de fazer políticas, de recor-
sendo no caso de Vargas mais sério ainda, porque rer à Organização Mundial do Comércio, para cri-
estava acontecendo a Guerra Fria, significaria ticar a política dos países do primeiro mundo. Isso
uma aproximação com a União Soviética, que se- existia muito na época de Vargas. Embora fosse
ria impensável. No caso do governo Lula, signifi- uma política de barganha, chamada política exter-
caria romper com a única grande potência do na independente, que também aconteceu no go-
mundo hoje e que responde por grande parte dos verno de João Goulart, com Santiago Dantas, era
investimentos estrangeiros no Brasil e por cerca de uma política de convivência, e isso, em determi-
1/4 das exportações e importações brasileiras. Os nados momentos, irritava profundamente os Esta-
dois governos têm muita semelhança na seguinte dos Unidos.

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“Por ora, não se fala mais no fim da Era Vargas”

Entrevista com Werneck Vianna

O professor Luiz Werneck Vianna é enfático ção dos Magistrados Brasileiros – AMB, 1996 (com
quanto à permanência do legado de Vargas na Carvalho, M. A. R., Melo, M. P. C., Burgos, M. B);
cena política brasileira. Na sua opinião, os traços Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de
constitutivos da Era Vargas estão bem presentes e Janeiro: Revan, 1997 (com Melo, M. P. C., Carva-
foram, mesmo, reforçados pelo governo petista, lho, M. A. R., Burgos, M. B.); A Revolução Passiva:
ao criar o Conselho de Desenvolvimento Econô- Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janei-
mico e Social (CDES). Ele considera o CDES em- ro: Revan, 1997(com Carvalho, M. A. R., Melo, M.
blemático no que diz respeito à influência varguis- P. C., Burgos, M. B); A Judicialização da Política e
ta, pois as relações entre o Estado e as corpora- das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Re-
ções assumiram antigas feições, com o primeiro van, 1999 (com Carvalho, M. A. R; Melo, M.P.C.;
chamando a sociedade civil organizada às referi- Burgos, M.B.); Liberalismo e Sindicato no Brasil.
das corporações, para deliberar sobre o País. Des- 4. ed. rev. Belo Horizonte: UFMG, 1999. Luiz Wer-
sa maneira, renunciando ao seu discurso históri- neck Vianna é o atual presidente da Associação
co, o PT, no Governo, teria induzido os trabalha- Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciênci-
dores a abdicarem do protagonismo político, be- as Sociais – ANPOCS.
neficiando interesses que se expressariam em va-
lores republicamos de discutível importância na IHU On-Line – Qual foi, em linhas gerais, o
conjuntura atual. Esta prática, no entender de impacto da Era Vargas na história sociopo-
Werneck Vianna, que é doutor em Sociologia pela lítica brasileira?
USP e mestre em Ciência Política pelo Instituto Werneck Vianna – Foi determinante, com as-
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iu- pectos positivos e negativos. Os aspectos positivos
perj), onde é professor, não transforma o atual estiveram, sobretudo, referenciados a mudanças
Governo em “inimigo do povo”, mas revela as de paradigmas, quando saímos da dominação do
suas dificuldades em superar a práxis varguista. interesse agrário e fizemos a transição para a or-
Dificuldades, aliás, que também não foram venci- dem urbana em que estamos. Isso é obra da Era
das pelos governos anteriores, pois, de acordo Vargas. A industrialização, a inserção do País no
com o professor, a Era Vargas “foi determinante” cenário internacional de uma forma mais autôno-
na história sociopolítica brasileira e abriga uma ma. De um outro ponto de vista, muito relevante a
parte do que há de melhor na tradição política na- meu ver, na medida em que, pela primeira vez, as
cional, como ele demonstra na entrevista. Wer- elites apresentaram um projeto de incorporação
neck Vianna é autor de Liberalismo e Sindicato de uma parte dos segmentos modernos da socie-
No Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976; A dade à ordem republicana, muito especialmente
Classe Operária e A Abertura. São Paulo: Hucitec, dos trabalhadores urbanos. Isso se fez por via da
1983; Travessia – da Abertura A Constituinte 86. fórmula corporativa, em que esse segmento de
Rio de Janeiro: Taurus, 1986; De Um Plano Col- trabalhadores passou a fazer parte da esfera públi-
lor A Outro. Rio de Janeiro: Revan, 1991; O Perfil ca e a gozar, de outro modo, os benefícios da le-
do Magistrado Brasileiro. Rio de Janeiro: Associa- gislação protetora do trabalho, tendo acesso aos

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direitos sociais. O aspecto negativo foi que tanto dos desejos e dos apetites, moderação essa regu-
este movimento no sentido de romper com o Bra- lada pelo Direito e por uma moralidade que esta-
sil agrário, tradicional, como o de promover a in- va aplicada à idéia de construção da Nação. Os
corporação dos trabalhadores urbanos se fez com trabalhadores e seus sindicatos, nesse sentido,
perda da liberdade, da autonomia, no momento atuavam como um corpo intermediário, à moda
em que o Estado trouxe tudo para si. de Durkheim, se integravam ao Estado. Esse foi o
movimento feito por Getúlio Vargas. A negativi-
IHU On-Line – Como esse trabalhador foi dade disso esteve em que nós passamos para o
incorporado? mundo moderno, para a indústria, realizamos
Werneck Vianna – Ele não foi incorporado pura essa transição sem conhecermos liberdade de mo-
e simplesmente. Aos trabalhadores foi reconheci- vimentos no plano político, no plano associativo.
do, além dos direitos, o papel de personagem na
história republicana do Brasil. E continuou sendo IHU On-Line – O senhor acredita que a Era
na sociedade fragmentada como era a nossa. Na- Vargas persiste, de certa forma?
quele momento, pelos sindicatos e pela ordena- Werneck Vianna – De 1945 a 1964, ela se pro-
ção corporativa se pretendeu realizar um verda- jeta inteiramente. Se lermos a Carta de 1946, ve-
deiro processo de educação cívica, pelo menos remos que ela não é descontínua em relação às
dos trabalhadores urbanos industriais. Eles deve- instituições da década anterior. Ela introduz o li-
riam fazer com que os seus interesses, imediata- beralismo político, algumas instituições do libera-
mente classistas, sofressem a inflexão do que se lismo político passam a ter peso, mas no que im-
chamava, na época, de “interesses nacionais”. Na portou, por exemplo, ao desenho do Estado, o de-
verdade, esse foi um republicanismo imposto e senho das relações do Estado com os sindicatos e
autoritário, porque essa tradução de interesses com a vida associativa dos trabalhadores, isso
classistas em nacionais não nascia de baixo, não persistiu até 1964. Então, a Era Vargas teve uma
era um movimento espontâneo dos trabalhado- longa projeção entre nós. O golpe de 1964, de iní-
res, mas não deixou de se constituir numa escola cio, parecia uma grande ruptura em relação a
de civismo. Todas as instituições criadas nesse pe- tudo isso, mas o que se viu é que a ditadura militar
ríodo se referem a isso. Podemos dizer que, de manteve muitas instituições do Estado Novo, her-
maneira geral, o projeto de Vargas é um projeto dadas da Era Vargas, só que sem esse espírito
durkheimiano, de Durkheim. durkheimiano. Manteve-as instrumentalmente,
onde se buscava apenas a coerção. O modelo pre-
IHU On-Line – O senhor poderia detalhar dominante na Era Vargas conheceu coerção e
essa ligação da concepção getulista com as busca do consenso. A partir de 1964, o “esquele-
concepções de Durkheim? to” da Era Vargas foi mantido, mas apenas usado
Werneck Vianna – Caracterizava-se pela consti- no que era funcional para a ditadura, muito espe-
tuição de corpus intermediário entre o Estado e a cialmente na vida sindical.
sociedade civil, fazendo com eles se comportas-
sem como escolas cívicas, morais. Aí está todo o IHU On-Line – A ruptura com a Era Vargas
tema da valorização do trabalho, do trabalhador, começa a ocorrer no governo de Fernando
predominante muito especialmente a partir da Collor?
Constituição estadonovista de 1937. Destacam-se Werneck Vianna – Os governos de Fernando
os temas da Moral, da Ética e do Direito. Do Direi- Collor e Fernando Henrique, que pareciam ser
to claramente, porque as relações de mercado, es- vocacionados para a ruptura com a Era Vargas,
pecialmente de mercado de trabalho, passavam a avançaram muito, mas não foram às últimas con-
ser jurisdicionadas pelo Direito – o Direito do Tra- seqüências. Com o governo Lula, esperava-se
balho – e por um aparato do Direito: o judiciário que os resquícios da Era Vargas fossem removi-
trabalhista. Qual era a idéia? Era a de moderação dos, porque o sindicalismo petista construiu a sua

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trajetória em oposição às instituições herdadas de IHU On-Line – Por que essa tradição é
Vargas. No entanto, logo no início do governo recuperada?
Lula, no discurso que ele fez para os principais di- Werneck Vianna – Essa tradição é recuperada
rigentes sindicais do País, ele disse que os interes- por sua força. Portanto, temos a permanência de
ses dos trabalhadores deveriam se subordinar aos traços fortes da Era Vargas. O único esforço seve-
interesses da República. Além do mais, ele criou ro para jogar a Era Vargas para o lixo da história
um novo ministério, inicialmente confiado ao atual foi o de Fernando Collor. Ele deixou para os de-
Ministro da Educação, Tarso Genro, denominado mais um legado, ele mudou a agenda política do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e So- País, sobretudo na relação entre o Estado e a eco-
cial, com uma composição fundamentalmente nomia, ele soltou as amarras entre um e outro. Ele
corporativa. Ali estão corporações patronais, de queria um mercado livre, o neoliberalismo no Bra-
trabalhadores. A Ordem dos Advogados do Brasil sil entra aí.
(OAB), que é uma corporação no sentido clássico,
foi criada na época de Vargas, em 1931. Além do IHU On-Line – Mas Fernando Henrique Car-
mais, como disse, os interesses dos trabalhadores doso também não tentou encerrar a Era
devem se subordinar aos interesses da República, Vargas?
a representação corporativa é relegitimada, e o Werneck Vianna – Também, mas ele foi bem
Estado passa a ser personagem central na indução mais plástico. Ele apresentou momentos de radi-
do desenvolvimento econômico. E mais: a ques- calidade, como naquele discurso no Senado, an-
tão nacional passa a ser revalorizada. Não deixa tes de tomar posse, quando declarou que rompe-
de ser a persistência da modelagem que prevale- ria com a Era Vargas, mas, com o tempo, sentindo
ceu entre nós nos anos de 1930 e que, apesar de as pressões e deixando-se guiar pelas circunstân-
vários esforços de orientação ortodoxamente libe- cias, foi moderando o seu ímpeto. O segundo
rais, ainda não foram removidos. mandato dele foi muito diferente do primeiro. No
segundo mandato, uma série de temas claros à
IHU On-Line – Quando o senhor se refere à tradição brasileira foi reposta, como a indepen-
subordinação dos interesses dos trabalha- dência da política externa, da soberania nacional.
dores aos da República, o senhor está con- O PT, que chega ao Governo falando em ruptura,
trapondo esses ideais à idéia de ruptura começa a consultar a nossa tradição, e uma parte
institucional? importante da nossa tradição está na Era Vargas.
Werneck Vianna – Estou dizendo que os traba- Enfim, não se fala mais em fim da Era Vargas.
lhadores deveriam levar em conta interesses mais Essa é uma questão, pelo menos por hora, fora de
altos. cogitação. Sabemos que uma parte do que veio
com ela faz parte da nossa tradição. E tem mais:
IHU On-Line – Como poderia ser diferente? uma parte do que há de melhor na nossa tradição.
Werneck Vianna – Poderia deixar-se que os tra-
balhadores agissem como força no mercado sem IHU On-Line – Portanto, começa a surgir uma
que levassem em conta interesses externos aos nova compreensão sobre a Era Vargas...
seus. Isso era o que o PT falava sempre, que os in- Werneck Vianna – Sim, inclusive no próprio PT,
teresses dos trabalhadores não deveriam se subor- no próprio Governo. Nada evoca tanto a Era Var-
dinar aos da Nação... Mas Lula, chegando ao Go- gas, por exemplo, como o Conselho que foi dirigi-
verno, chama os trabalhadores para serem atores do por Tarso Genro: o Estado chamando para
na esfera republicana, e não apenas na esfera dos uma esfera pública que ele constituiu, para um
seus interesses. Isso os leva a viver apenas no Conselho que ele constituiu, a sociedade civil, or-
mundo da fábrica, e não no mundo da esfera ganizada em corporações para deliberar sobre o
pública. País.

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IHU On-Line – Considerando o quadro des- constituir o Estado como lugar de tomada de deci-
crito, o senhor está otimista com relação ao são; um governo que está tentando pensar a sobe-
futuro do Brasil? rania nacional, que começa a se inquietar com o
Werneck Vianna – Otimista? Não sei. Eu não es- crescimento econômico – que é a questão central
tou catastrófico. – e faz isso baseado em uma relação entre Estado
e empresários. Os trabalhadores não estão exer-
IHU On-Line – O senhor acha que os traba- cendo protagonismo algum. Por hora, estão imo-
lhadores podem assumir o protagonismo bilizados. Mas, de modo algum, esse governo
que o senhor sugere? vem se comportando como inimigo do povo.
Werneck Vianna – Não estou vendo isso. O que Entretanto, não é o melhor desempenho que ele
eu estou vendo é um governo que quer refazer, re- poderia ter.

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O populismo na América Latina: Getúlio, Perón e Cárdenas

Entrevista com Werner Altmann

De uma visão crítica e revisionista do concei- exportações. São indústrias de bens de consumo:
to de populismo, o coordenador do PPG em His- tecidos, confecções, bebidas, alimentos elabora-
tória da Unisinos, prof. Dr. Werner Altmann, com- dos, que a expansão das exportações tornava
para os três importantes líderes políticos da Améri- possível. A oferta de mão-de-obra era, relativa-
ca Latina: Getúlio Vargas, no Brasil, Juan Perón, mente, abundante e propiciava um reforço ao
na Argentina e Lázaro Cárdenas, no México. mercado interno, pois colocava em condições de
Werner Altmann é graduado em História consumidores monetários importantes contingen-
pela UFRGS, mestre em Estudos Latino-america- tes humanos antes dedicados a atividades
nos de História, pela Universidad Nacional Autó- pré-capitalistas. Isso se constituía em reforço con-
noma de México, com a dissertação El Proyecto siderável ao mercado interno. Como disse Celso
Nacional Peronista (1943-1955), e doutor em His- Furtado, “o setor industrial se comportava como
tória Econômica pela USP, tendo sua tese o título um multiplicador de emprego do setor exporta-
O Estado no Capitalismo Periférico Latino-ameri- dor.” A partir da década de 1920, esse processo
cano: os projetos Cardenista e Peronista de Unida- inicial de industrialização complementador da
de Nacional. O professor é autor do Cadernos economia agrária exportadora se estanca, para
IHU n.º 3, que tem como título O pensamento mudar de inflexão a partir da crise de 1929. A pró-
político e religioso de José Martí. Altmann é pria crise, a depressão e a 2ª Guerra Mundial, logo
autor de, entre outros, El Proyecto Nacional Pero- depois, protagonizaram um período de crise do
nista. México: Editorial Extemporâneos, 1979; A comércio internacional que oportunizou, nos paí-
trajetória contemporânea do México. São Paulo: ses periféricos, uma inflexão para a industrializa-
Pensieri, 1992; México e Cuba: Revolução, nacio- ção por meio da substituição de importações. A
nalismo, política externa. São Leopoldo: Unisinos, crise de 1929 suprimiu a capacidade de importar,
2001. contraiu o setor exportador e interrompeu os ca-
nais de financiamento internacional, acarretando
IHU On-Line – Quais as características básicas dos a expansão do setor industrial ligado ao mercado
populismos varguista e peronista? Suas origens e interno, o que configurou um processo de substi-
contextos são assemelhados? São diferentes? Em tuição de importações. Procurou-se substituir os
que aspectos isso ocorre? bens anteriormente adquiridos no exterior. A crise
Werner Altmann – As origens e contextos são do setor exportador permitiu, também, por outra
assemelhados, sim. O Brasil e a Argentina (e tam- parte, a transferência de recursos financeiros, ago-
bém o México) experimentaram, a partir de inícios ra disponíveis, para as atividades industriais.
do século XX, um processo de industrialização que Assim, a anterior complementaridade passa a ser
antecedeu ao das demais nações latino-america- substituída crescentemente por uma oposição en-
nas. A característica básica dessa industrialização tre o desenvolvimento industrial e as atividades
inicial está na sua complementaridade com a eco- agrário-exportadoras. Ao Estado está reservado,
nomia primário-exportadora, na medida em que então, importante papel nesse incremento da pro-
seu desenvolvimento dependia da expansão das dução industrial, e o intervencionismo governa-

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mental cresce no jogo dos interesses privados. Por tido das classes médias, foi, no entanto, incapaz
outra parte, o poder no Estado é disputado, nessa do enlace com os novos setores populares urba-
fase da industrialização substitutiva, por diferentes nos, o que abriu caminho ao peronismo. Perón, a
setores, tanto pelos tradicionais agrário-exporta- partir do Estado, soube aproximar-se das massas,
dores como pela burguesia industrial em ascensão fazendo concessões, o que se tornou possível pelo
e pelos grupos médios urbanos. O proletariado e período favorável da 2ª Guerra Mundial. Perón,
demais setores populares, na perspectiva de as- portanto, retirou e tomou para si a hegemonia so-
censão social, funcionam como base de sustenta- bre o movimento operário dos Partidos Comunis-
ção. Ao Estado ficou reservado, assim, importante ta e Socialista. Discordando da posição majoritá-
papel de articulador dos interesses sociais em ria da esquerda argentina, que rompeu com Pe-
jogo, de promotor do desenvolvimento industrial rón, Rodolfo Puiggrós considerou que, pelo fato
e de realizador da justiça social. É um Estado em- de as massas estarem com Perón, o peronismo
penhado na superação da economia primário-ex- abarcava um período nacional-revolucionário
portadora via industrialização no pós-1929 e, em que levaria ao socialismo. O legado político pero-
conseqüência, empenhado na plena autonomia nista, em certo sentido superior ao varguismo, se
nacional. delineia a partir daí. A Argentina de Perón sofreu
boicote econômico norte-americano. Perón criou
IHU On-Line – O conceito ao qual usualmen- o Partido Peronista, transformado depois em Mo-
te se recorre para definir o populismo brasi- vimento Peronista, ou Justicialista. Perón efetivou
leiro também explica o fenômeno uma burocratização dos quadros sindicais com a
argentino? CGT para ser mais adiante ignorado pela burgue-
Werner Altmann – Os antecedentes da etapa sia nacionalista que abandonou seu porta-voz
populista acima descritos encaminham a forma- máximo. Foi, no entanto, impossível acabar com
ção dos estados ditos populistas no Brasil e na o movimento do qual era líder, e o Partido Pero-
Argentina, semelhantes entre si, mas que desen- nista transcendeu à própria vida de Perón até tor-
volvem, com o tempo, peculiaridades próprias nar-se, no final do século XX, um partido que ne-
historicamente determinadas. gava as próprias premissas nacionalistas básicas
das origens do Partido Peronista (nada mais anti-
IHU On-Line – A presença e a influência do nacional do que o governo do “peronista” Me-
legado político peronista, bem como o seu nem). Ainda uma outra característica original e
culto, são superiores aos do caso varguista? por isso não encontrável no caso brasileiro do po-
Werner Altmann – De certa maneira, sim. Ve- pulismo peronista refere-se à liderança de Eva Pe-
ja-se que, na Argentina, havia uma prática já ante- rón com atribuições específicas nos quadros do
rior, de política externa independente. A neutrali- poder argentino da época. A atividade de Eva Pe-
dade da política externa provinha desde o início rón concentrou-se especificamente na direção da
do século XX. A política de imigração, efetuada Fundação de Ajuda Social Maria Eva Duarte de
pelo Estado oligárquico argentino, foi de grande Perón, criada por decreto especial e modelada na
envergadura, mas sem contemplar a propriedade estrutura da Legião Brasileira de Assistência. A
da terra aos imigrantes, o que determinou as mi- Fundação alcançou, desde o início, dimensões
grações internas desses imigrantes em busca de enormes, já que recebeu praticamente o monopó-
oportunidades de trabalho nos centros urbanos. A lio da caridade no país. Com o tempo, Eva Perón
ascensão das massas populares urbanas daí de- passou a ser diretora virtual de todos os sindicatos
corrente levou ao desenvolvimento da indústria operários do país, estabelecendo normas dos mais
leve. Assim, na primeira metade do século XX, a variados tipos e exercendo o papel de líder inter-
velha oligarquia agropecuária começou a perder a mediário entre Perón, o líder supremo, e as mas-
capacidade do controle político da situação. A sas. Esse papel permitia a Eva Perón uma mais
União Cívica Radical, que então surgiu como par- ampla liberdade para utilizar uma linguagem

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emotiva e aparentemente não-racional, com o lucionária relutava em realizar (com Madero e


que se aproximava mais do tipo ideal de “domi- Carranza). Cárdenas participou da Revolução
nação carismática”, conforme o formulou Max Mexicana, integrando a “família revolucionária”,
Weber. A própria Evita definiu, de maneira sim- isto é, a burguesia revolucionária, vitoriosa, tor-
ples, mas com extrema lucidez, sua função no es- nando-se, inclusive, general da Revolução. Cár-
tado argentino: uma ligação entre o poder e as denas pertencia, portanto, a uma classe plena-
massas, desde seu papel específico de líder efetiva mente vitoriosa, com o aval de uma revolução.
da CGT: “Quando olho para Perón me sinto povo, Não tinha oligarquia latifundiária para enfrentar
e por isso sou fanática pelo General, e quando ou neutralizar. Esta havia sido destruída pela re-
olho o povo me sinto esposa do General, e então volução, assim como o Exército e o positivismo no
sou fanática pelo povo”. O próprio Perón, por sua plano das idéias. E as classes subalternas tinham
vez, já havia dito em 1950: “Os dois braços do Pe- passado pela revolução e obtiveram certa ascen-
ronismo são a Justiça Social (Perón) e a ajuda so- são social pelo enquadramento realizado pela
cial (Evita): com eles damos ao povo um abraço burguesia revolucionária hegemônica e pelas pró-
de justiça e amor”. Se tal realidade for estendida, prias reformas preconizadas pela Constituição de
ainda, até a posterior veneração do cadáver de 1917. Assim, as reformas de Cárdenas são muito
Evita, que “percorreu” diversos locais de Buenos mais profundas e de longo alcance, pois foram fei-
Aires, estaremos diante de um quadro diferencial, tas por um Estado nascido da revolução. Cárde-
em relação ao varguismo, de grande magnitude. nas pôde, então, ir ao encontro das massas com
muito mais desenvoltura.
IHU On-Line – Quais as características do A estruturação do Estado Nacional, realizada por
populismo cardenista? Como ele pode ser Lázaro Cárdenas entre 1934-1940, ocorreu em
definido? Onde se dá a confluência entre os torno de três eixos de atuação:
populismos varguista, peronista e cardenis- 1. O relacionamento com os sindicatos e frente
ta e quais são os contrapontos do último aos conflitos trabalhistas.
aos dois primeiros? 2. A política de reforma agrária com a transforma-
Werner Altmann – A confluência é basicamente ção da estrutura agrária mexicana [ao final de seu
temporal. Poderia arrolar-se, ainda, nessa condi- governo, 47% das terras aráveis mexicanas ha-
ção, o nacionalismo como móvel ideológico. Na viam se constituído em ejidos (propriedade coleti-
verdade, considero que o cardenismo transcende va inspirada na comunidade indígena)].
o populismo. Teríamos que encontrar outra defi- 3. A política de nacionalização, que teve seu ápice
nição para o caso mexicano. O nacionalismo com a nacionalização das companhias petrolíferas
identifica os três personagens, mas Cárdenas tem estrangeiras em 1938.
uma revolução atrás de si e, não, pela frente, O renascimento cultural (o muralismo, a filosofia
como eventual possibilidade futura (o que seriam mexicana, a universidade autônoma), o asilo a
os casos brasileiro e argentino). Tem como ante- perseguidos políticos (republicanos espanhóis,
cedente a Revolução Mexicana, a maior revolu- Trotski e o próprio Fidel Castro) são outras tantas
ção da história mundial (1 a 2 milhões de mortos características de um regime que, pelo seu passa-
para 15 milhões de habitantes à época) e que é do revolucionário, transcendeu o populismo.
inauguradora do ciclo revolucionário popular Dessa maneira, Cárdenas não se suicidou, nem
mundial do século XX. Esta revolução revelou foi ao exílio e o Estado Nacional por ele estrutura-
uma aliança inicial entre os camponeses e uma do revelou-se, durante todo o século XX, um esta-
vertente burguesa (o modernismo) para a derru- do estável, duradouro. Estado civilista, o único na
bada de Porfiriato. Logo depois, a aliança se des- América Latina que nunca sofreu golpe militar,
fez e os dois grupos, antes aliados, passaram a se pois, inclusive, os militares mexicanos também
defrontar pelo projeto político nacional. O móvel haviam sido temperados pela revolução. O estado
básico foi a reforma agrária que a burguesia revo- mexicano é, então, o único na América Latina em

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que a sucessão presidencial ocorreu sempre de liberalismo procurou desqualificá-lo. Desde o iní-
acordo com a Constituição. cio, apontava para o oportunismo dos líderes,
O cardenismo só pode, portanto, ser entendido acusava-os de demagogia, ambição de poder e de
pela Revolução Mexicana de 1910. Isolá-lo da Re- manipulação das massas, visão simplista e parcial
volução Mexicana e atribuir-lhe o populismo im- de um fenômeno complexo e que era expressão
plicaria uma avaliação aistórica. Os principais es- da complexidade das condições históricas em que
pecialistas em História Mexicana, ou da Revolu- se formou. A estruturação do poder político para
ção Mexicana ou do próprio governo Cárdenas, os grupos dominantes, na fase pré-monopólica
não o consideram populista. Enrique Senno con- em que ocorreu, é uma realidade, mas é realidade
cebe o regime cardenista como protagonista da também a emergência popular no processo de de-
via revolucionária do desenvolvimento do capita- senvolvimento industrial e urbano. Esta questão é
lismo, Hans Werner Tobler conceitua-o como ápi- essencial e quase sempre esquecida: a do determi-
ce do “sistema revolucionário tardio” mexicano, nismo histórico dos grupos populares na origem
Arnaldo Córdova fala em política de massas do do populismo. As massas não são amorfas, não
cardenismo, e o exilado em terras mexicanas são apenas objetos de manipulação. Assim, o po-
León Trotski rotula-o como “bonapartismo sui ge- pulismo tem raízes sociais profundas e, como fe-
neris”. O nacionalismo e outras características típi- nômeno político e social, não está integralmente
cas da época aproximam, por certo, os três gover- examinado e o discurso exclusivo da manipulação
nantes em questão (Perón, Vargas e Cárdenas), e da demagogia funciona como manto encobridor
mas Cárdenas sempre condenou o fascismo e o da insuficiência de sua compreensão. Grande nú-
imperialismo norte-americano e depois, como es- mero de liberais, também intelectuais de esquerda
tadista, aproximou-se da Revolução Cubana, de- e parte da produção acadêmica, vê a questão pela
clarando, inclusive, ser ela a revolução que gosta- superficialidade da imagem para revestir o termo
ria de haver feito e que as circunstâncias históricas populismo com um caráter de negatividade. Auto-
impediram que chegasse a tanto. Por isso, situa- res há que o ligam ao que chamam de autoritaris-
mos aqui Cárdenas como contraponto do pero- mo e totalitarismo, identificando o desejo de uni-
nismo e do varguismo, mas na condição de haver dade, presente no pensamento político de então,
transcendido o populismo. com o espírito totalitário – o eliminar de diferenças
ou o próprio nacionalismo visto como totalitaris-
IHU On-Line – O conceito atribuído ao popu- mo. Esses autores não conseguem responder a
lismo brasileiro está sendo revisado, com uma pergunta bem elementar: se o populismo é
vários pesquisadores destacando o precon- totalitarismo, o que são as ditaduras militares que
ceito político nele embutido. Como essa re- o golpearam de forma tão cruenta? Considero o
visão pode ser relacionada com a análise populismo como a resistência possível das socie-
que o senhor faz dos três fenômenos popu- dades ou estados do mundo periférico – o Estado
listas mencionados? populista centraliza a resistência possível das clas-
Werner Altmann – Sociólogos começaram a ses sociais, empenhadas na construção da auto-
usar o termo populismo nas décadas de 1960 e nomia nacional – ao contrário dos estudos sobre o
1970. Não conseguiram conceituá-lo, descreve- populismo que se contentam com as representa-
ram algumas de suas características e abandona- ções ou as imagens que retratam, mas não expli-
ram o discurso. Para os historiadores é um proble- cam o fenômeno, ou examinam, exclusivamente,
ma até hoje. Não é conceito científico, provavel- as relações estritas, governante/governados, no
mente é apenas um fenômeno temporal, mas, de âmbito interno das nações, sem atenção à conjun-
alguma forma, todos sabem do que se trata. Tor- tura internacional onde se apresentam, inclusive,
nou-se um termo popular de uso político e com outros exemplos populistas correlatos disponíveis
forte conotação pejorativa. É um termo muito uti- para a comparação histórica. De outra parte, o
lizado politicamente para atacar um adversário. O conceito da autonomia relativa do estado capita-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lista em relação à sociedade nos indica um cami- ação imperialista das grandes potências. O esta-
nho com possibilidades para compreender a di- do populista centraliza, portanto, a resistência
nâmica do estado populista latino-americano. possível das classes sociais dedicados à constru-
Esse estado, que se caracteriza por ser uma enti- ção da autonomia nacional. Esta visão percebe o
dade autonomizada, por ser uma emanação do populismo, colocado na esteira de um processo
sistema capitalista, opõe-se às classes sociais. Ne- que tende à autonomia nacional, estágio não al-
cessita colocar-se à parte e, inclusive, enfrentar cançado pelas nações latino-americanas. O gol-
os interesses particularistas do capital individual, pe nesse processo foi evidente em todas as na-
vigiando a economia em seu conjunto. Em ter- ções latino-americanas, e a posterior desqualifi-
mos latino-americanos, na etapa populista, esta cação do populismo, em textos acadêmicos e dis-
autonomia relativa, interna, com respeito às clas- cursos políticos, faz parte dessa ação que está
ses sociais, encontra uma correspondência am- embebida da mentalidade colonizada que o pro-
pliada na esfera do antagonismo relativo em refe- cesso tenderia a superar. Ao historiador compete
rência ao imperialismo. A tentativa de consolida- examinar adequadamente o fenômeno, suas de-
ção do mercado interno, na qual a burguesia in- limitações teóricas e seu enquadramento no pro-
dustrial está empenhada no âmbito de seu cresci- cesso histórico como etapa de um caminho que
mento social e de sua peculiar relação com o pro- poderia chegar à transformação da sociedade,
letariado – empenhado também em converter-se mas lá não chegou. A História tornou evidente,
em classe para si – determina a elevação do esta- então, o populismo com essa característica de
do à condição de organismo de choque frente à transitoriedade.

22
A passagem do Brasil rural para o Brasil industrial

Entrevista com Marco Antonio Villa

Marco Antônio Villa é professor e pesquisa- isso sem buscar o personalismo na história – foi
dor na Universidade Federal de São Carlos fundamental para esta transição.
(UFSCar). Ele afirmou em entrevista ao IHU
On-Line que a Era Vargas foi o elemento de corte IHU On-Line – Nesse quadro, onde se posici-
entre o Brasil rural, arcaico, e o Brasil industrial, ona a face autoritária da Era Vargas? Como
moderno. Villa é mestre em Sociologia e doutor ela integra o contexto delineado na respos-
em História pela USP, com tese intitulada Canu- ta anterior?
dos, o povo da terra. É o autor da coleção Socie- Marco Antonio Villa – O autoritarismo, propria-
dade e História do Brasil, escrita para o Instituto mente dito, é o período que vai de 1935 até 1945,
Teotônio Vilela. Na obra, Villa discute os mitos da pois grande parte da repressão estadonovista já
história brasileira ao destronar heróis como Tira- está presente desde novembro de 1935, após a
dentes, ao questionar a idéia de que a República tentativa fracassada de golpe comunista. Sei que é
realmente tenha significado progresso ao País e uma temeridade, porém boa parte da legislação
ao classificar o ex-presidente João Goulart como trabalhista só foi adotada e aplicada devido ao
incapacitado. Villa é autor de numerosos livros, longo período ditatorial. Creio que não seria exe-
entre eles destacamos: Canudos, o campo em qüível que, se vivêssemos na plenitude do regime
chamas. São Paulo: Brasiliense, 1993; Canudos, o democrático – e isso nos anos 1930 e com aquela
povo da terra. São Paulo: Ática, 1995; Vida e elite política reacionária –, fosse possível aprovar e
morte no sertão. História das secas no Nordeste implementar as leis trabalhistas. Obviamente, não
nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000; Ca- estou dizendo que a ditadura foi “boa”, mas aler-
minhos da História: da Independência aos nossos tando para a dificuldade de modernizar o Brasil
dias. São Paulo: Ática, 2003; Jango, um perfil naquela conjuntura e os paradoxos da História do
(1945-1964). São Paulo: Globo, 2004. Brasil.

IHU On-Line – Poucas fases da história brasi- IHU On-Line – Diferentemente de 1994, quan-
leira produziram um legado tão amplo do, já com a abertura política consolidada,
como a Era Vargas. Quais os traços básicos se completaram 30 anos do golpe de 1964,
do contexto social, histórico, político e eco- os 40 anos do suposto fim da Era Vargas es-
nômico que deram sustentação preliminar tão sendo marcados pelo lançamento de
para a referida fase? muitas publicações e a realização de mui-
Marco Antonio Villa – A Era Vargas foi o ele- tos eventos sobre o tema. O que mudou no
mento de corte entre o Brasil rural, arcaico, e o Brasil, gerando tanto interesse pelo assunto?
Brasil industrial, moderno. Evidentemente, esta Marco Antonio Villa – Pode ser que o processo
transição não foi pacífica nem fácil de ser realiza- de privatização da década de 1990 tenha lançado
da, principalmente se pensarmos que o Brasil era novas luzes sobre a Era Vargas. Afinal, o interlocu-
um país atrasado e com uma elite política arqui- tor (mudo) daquela década foi o varguismo. Vale
conservadora. Dessa forma, a ação de Vargas – e ressaltar que os últimos quatro presidentes (Col-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lor, Itamar, Fernando Henrique e Lula) desmonta- entre Jango e Getúlio. Porém, diversamente de
ram o Estado construído no pós-1930. Vargas, Jango deixou raríssimas realizações e é
mais lembrado pela sua deposição e o significado
IHU On-Line – A Era Vargas, em tese, encer- do golpe militar para a história recente do País.
rou-se com a deposição de João Goulart?
Ele pode, de fato, ser apontado como o her- IHU On-Line – João Goulart foi, de fato, “um
deiro do legado varguista? Quais as respon- homem que amava o poder mas detestava
sabilidades que lhe cabem pelo fim da men- governar”, segundo a definição atribuída a
cionada era? Leonel Brizola?
Marco Antonio Villa – No meu livro Jango, um Marco Antonio Villa – Desculpe voltar ao meu
perfil, discordo da afirmação de que o herdeiro livro, mas lá demonstro que o Brizola estava abso-
político de Vargas seria João Goulart. Mas é ine- lutamente correto.
gável a associação realizada naquela conjuntura

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Vargas pôs os valores religiosos a serviço de seu projeto político

Entrevista com Artur Cesar Isaia

Simultaneamente ao desenvolvimento de do livro Portugal-Brasil no século XX. Sociedade,


uma política de centralização, consolidando a pre- Cultura e Ideologia. Bauru: EDUSC, 2003.
sença do Estado em várias frentes da vida nacio-
nal, Getúlio Vargas desenvolveu “uma política IHU On-Line – A constituição da identidade
cultural de valorização telúrica, com ênfase nos ti- nacional foi marcada por um tensionamen-
pos regionais. Nesse sentido, foi fundamental a to com a identidade étnica, seja por parte
presença dos valores religiosos, sedimentando e das “raças” autóctones, seja por parte da
legitimando a experiência política”. Essa é a opi- cultura imigrante. Como, no campo religio-
nião do professor Artur Cesar Isaia, da Universi- so, esse tensionamento foi enfrentado du-
dade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele ob- rante a Era Vargas?
serva que, nesse processo, o catolicismo foi “parti- Artur Cesar Isaia – Durante o longo período
cularmente importante”, disponibilizando ao em que Vargas aparece de maneira saliente na
Estado “um arsenal imagético extremamente im- realidade nacional brasileira, temos um processo
portante e mobilizador”. Doutor em História So- de intensificação na complexidade do campo re-
cial pela Universidade de São Paulo (USP), Artur ligioso nacional. Novos atores sociais entram em
Cesar Isaia destaca que, no discurso católico do cena, o cenário urbano passa a ter uma impor-
período, a “brasilidade passa a ser lida como sinô- tância antes inusitada. Com essas transforma-
nimo de catolicidade”. Paralelamente, assinala o ções é que Vargas vai ter que contar para levar
professor, constata-se que, no mesmo período, o adiante uma política de relacionamento eficaz
espiritismo e a umbanda “se auto-representam com as religiões. Se a supremacia da Igreja Cató-
como aliados do progresso e do desenvolvimento, lica era indiscutível, relacionando-se com as dife-
tentando descredenciar o discurso católico”. Des- rentes religiões com estranhamento, condenação
sa maneira, “o desafio da política varguista em re- e oposição, atitudes típicas do período pré-Vati-
lação às religiões parece ter sido o de, ao mesmo cano II, a atitude de Vargas era de extrema caute-
tempo, garantir o lugar proeminente do catolicis- la. Cautela para, a um só tempo, garantir a tradi-
mo e de uma situação de mercado religioso”, afir- cional base de apoio entre a hierarquia católica e
ma o nosso entrevistado. O professor é também seu laicato, não dando ao catolicismo status de
graduado em História pela UFRGS e pós-doutor religião oficial e fugir de uma situação de mono-
pela École des Hautes Études en Sciences Socia- pólio religioso e possibilitar o trânsito das diver-
les, em Paris, na França. Sua tese de doutorado sas correntes religiosas. O grande desafio da polí-
na USP se intitula O Cajado da Ordem. Catolicis- tica varguista em relação às religiões parece ter
mo e Projeto Político no Rio Grande do Sul. D. sido o de, ao mesmo tempo, garantir o lugar pro-
João Becker e o Autoritarismo. Artur Isaia é autor eminente do catolicismo e de uma situação de
de Catolicismo e Autoritarismo no Rio Grande do mercado religioso.
Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998 e organizador

25
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Qual o tratamento dispensado Como ele se liga à idéia de identidade
às manifestações religiosas, como a um- nacional?
banda e assemelhadas? Havia um lugar Artur Cesar Isaia – Sem dúvida. Vargas tentou
para elas no ideário desenvolvimentista do assentar sua experiência política em conexão ime-
período de Vargas? A idéia de progresso, diata com uma prévia comunhão simbólica. Ao
por exemplo, foi associada à religiosidade? contrário dos militares que ascendem ao poder
Qual religiosidade? em 1889, Vargas é extremamente cauteloso em
Artur Cesar Isaia – Essa é uma das questões relação aos valores e símbolos previamente assu-
mais complexas a ser analisada por quem se aven- midos pela população. Nesse sentido, aprofunda
ture a estudar o assunto. Isso, porque quase temos toda uma política cultural voltada para a valoriza-
resumido as contradições de Vargas no terreno re- ção do nacional. Aí se encontra um dos grandes
ligioso, ao enfocarmos sua política em relação às desafios de Vargas: ao mesmo tempo que leva
chamadas religiões afro-brasileiras, bem como em adiante uma política de centralização, consolidan-
relação ao espiritismo. Há uma luta de representa- do a presença do Estado em várias frentes da vida
ções pelo monopólio do que se entende como nacional, desenvolve uma política cultural de va-
progresso no período. O Estado, com seus órgãos lorização telúrica com ênfase nos tipos regionais.
de assessoramento técnico, tentava traçar diretri- Dessa forma, foi fundamental a presença dos va-
zes que se colocavam como a última palavra do lores religiosos, sedimentando e legitimando a ex-
que se entendia como progresso e desenvolvi- periência política. O catolicismo é particularmente
mento. Nesse sentido, a hierarquia católica vai importante nesse processo, fazendo confluir em
claramente ao encontro dessa realidade, “aben- direção ao Estado todo um arsenal imagético ex-
çoando” as diretrizes estatais e salientando o que tremamente importante e mobilizador. No discur-
entendia como sintoma de atraso no País. É dessa so da hierarquia católica do período, por exem-
forma que o discurso eclesiástico tenta construir a plo, brasilidade passa a ser lida como sinônimo de
imagem da umbanda, das religiões africanas e do catolicidade. Essa associação foi muitíssimo favo-
espiritismo, como ligadas ao atraso atávico de po- rável para manter a legitimidade de Vargas antes,
pulações que precisavam urgentemente da ação durante e depois da ditadura estadonovista.
messiânica das elites, do estado e, principalmente,
do catolicismo. Por outro lado, ao consultarmos a IHU On-Line – Vargas estabeleceu alguma
documentação referente ao espiritismo e à um- aliança significativa com alguma religião?
banda, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, vamos Quais as relações com a predominante Igre-
constatar que os mesmos, igualmente, se au- ja Católica?
to-representam como aliados do progresso e do Artur Cesar Isaia – Vargas foi extremamente
desenvolvimento, tentando descredenciar o dis- hábil ao conseguir o apoio incontestável da hie-
curso católico nesse sentido. Assim, se o ideário rarquia católica brasileira, capitaneada pelo car-
desenvolvimentista de Vargas se evidenciava deal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião
como laico, contaria com o apoio decidido de Leme, e pelo arcebispo de Porto Alegre, D. João
grande parte da hierarquia católica. Apoio esse a Becker. Contudo, esse apoio, longe esteve de con-
que não se furtavam umbandistas e espíritas, que figurar uma política exclusivista, de busca de uma
desenvolviam uma representação peculiar do que situação de monopólio religioso. A habilidade po-
consideravam ser o progresso nacional. lítica de Vargas foi fundamental para, a um só
tempo, selar um compromisso com a hierarquia
IHU On-Line – Podemos dizer que a Era Var- católica, em um momento em que o catolicismo
gas se caracterizou por um determinado usufruía uma comodidade muito grande como
universo simbólico religioso? Em caso po- produtora de significados sociais, e manter o Esta-
sitivo, quais são seus traços básicos? do aberto a possíveis contatos com forças religio-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sas que, embora não desfrutando da força católi- fluência da Igreja Católica no terreno educacional,
ca, mostravam-se em disponibilidade política e como o projeto de criação dos cursos de Serviço
apareciam como forças virtuais de enquadramen- Social, planejado pelo padre jesuíta Sabóia de
to da opinião pública. Isso, particularmente, acon- Medeiros1.
teceu em relação às religiões afro-brasileiras (ape-
sar da perseguição em alguns momentos) e, prin- IHU On-Line – O senhor gostaria de acres-
cipalmente, à umbanda e ao espiritismo. centar algum comentário ao tema em
debate?
IHU On-Line – No campo da educação, a Era Artur Cesar Isaia – Um tema que me parece
Vargas destinou algum lugar privilegiado extremamente relevante e pouco estudado é o da
para a questão religiosa? Como se dava o forma como Vargas se comportou frente às cha-
relacionamento educação/religião? madas religiões mediúnicas, enfatizando aqui a
Artur Cesar Isaia – O trabalho de pesquisa que umbanda e o espiritismo. Gostaria apenas de sa-
efetuamos (e lá se vão mais de dez anos) disse res- lientar a complexidade das relações entre Var-
peito ao Rio Grande do Sul, centrado na relação gas, o catolicismo e essas religiões. Se como dis-
catolicismo e poder político. Essas pesquisas mos- se anteriormente, Vargas ancorou-se em um ar-
tram que não podemos analisar a atuação de Var- senal imagético e nos valores propalados pela re-
gas, esquecendo de que sua formação política se ligião católica, não deixou de ir ao encontro de
deu no cenário rio-grandense do borgismo, her- parceiros minoritários do campo religioso, mas
deiro da experiência governativa castilhista. Nessa que se mostravam com virtualidade política de
realidade, apesar da influência teórica e prática do enquadrarem a opinião pública. Assim, a um-
comtismo, a Igreja Católica longe esteve de cerrar banda, em um determinado momento de sua tra-
fileiras contra o PRR. Se algumas chefias locais jetória, passou a ser bem mais tolerada. É interes-
eram explicitamente anticlericais, o Governo do sante que esse processo aconteceu à medida que
Estado e a hierarquia católica não chegaram a ba- a umbanda passou a revelar um discurso extre-
ter de frente. Uma das questões que mais colabo- mamente conciliador, com uma representação
raram para esse clima de harmonia foi a política essencialmente sincrética da nacionalidade, indo
educacional. No Rio Grande do Sul, assim como ao encontro dos significados sociais propalados
em Minas Gerais, o Ensino Religioso era facultado pelos órgãos do Estado. Se perseguições existi-
desde a República Velha. Igualmente, o Estado ram (inclusive no Rio Grande do Sul, onde a con-
não criou dificuldades para a hierarquia católica siderada primeira casa de Umbanda, hoje ainda
manter uma rede de ensino. No âmbito nacional, existente, os “Franciscanos de Umbanda” sofreu
já em 1931, o governo provisório de Vargas pro- perseguição), Vargas, ao mesmo tempo, tolerou
mulgava o decreto que possibilitava o Ensino Reli- a organização e estruturação de nova religião,
gioso facultativo nas escolas. Esse vai ser, inclusi- que se mostrou mais como aliada em potencial
ve, um ponto de atrito entre Vargas, o interventor do que como desafiadora do regime. Assim, Var-
de São Paulo que o descumpria e a hierarquia ca- gas tolerou o Primeiro Congresso Nacional da
tólica. Por outro lado, Vargas apoiou uma série de Umbanda, realizado durante o Estado Novo, o
medidas concernentes a aumentar a esfera de in- qual conseguiu, inclusive, publicar suas teses em

1 No início da década de 1940, ainda na era de Getúlio Vargas, o padre jesuíta Roberto Sabóia de Medeiros fundou em São
Paulo a primeira escola de administração de empresas do País, a Escola Superior de Administração e Negócios (Esan-SP), com
base na sua experiência e conhecimento da Graduate School of Business Administration da Universidade de Harvard. Na
seqüência, em 1946, ele fundou a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), posteriormente transferida para a cidade de São
Bernardo do Campo, SP. Com o objetivo de integrar suas diversas especialidades para acompanhar as inovações no campo do
conhecimento e da prática do mercado, a Esan-SP, a Esan-SBC, a FEI e a Faculdade de Informática (FCI) juntaram-se em
dezembro de 2001 para compor o Centro Universitário Unifei, mantido pela Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de
Medeiros. O atual reitor da Unifei é o prof. Dr. Marcio Rillo.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Anais. Em relação ao espiritismo, podemos cons- citiva mais dura, não tivemos uma repressão tão
tatar algo semelhante. Se a vigência do Código visível em relação à Federação Espírita Brasilei-
Penal de 1890 dava ampla margem de ação legal ra. Como a nascente umbanda, o espiritismo, in-
contra as práticas espíritas, o novo Código, vi- clusive, estruturou-se, aparecendo como força
gente a partir da ditadura varguista, continuava religiosa a ser considerada pelo Estado. Isso,
com as possibilidades de sanção governamental apesar da pressão da Igreja Católica pela aplica-
contra o espiritismo. Contudo, apesar desse arca- ção da lei e por sua interpretação em um sentido
bouço legal que lhe possibilitaria uma ação coer- mais coercitivo.

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Getúlio na memória popular

A equipe de comunicação do IHU On-Line na Previdência Social, porque queria estar mais
escutou diversas pessoas da área acadêmica, polí- próximo na educação dos meus filhos. Alguns
tica e cidadãos que tinham diversos graus de pro- anos depois, o pessoal do PTB-PRP insistiu para
tagonismo na vida do País, cinqüenta anos atrás, que eu me candidatasse a prefeito. Eu não queria,
com o objetivo de resgatar parte do que há na me- mas eles insistiram, apelaram para a questão do
mória popular e no debate político de historiado- patriotismo, e nós tínhamos isso muito forte na
res e sociólogos sobre a importância da Era Var- nossa formação. Aceitei como missão. Getúlio me
gas na história brasileira. tinha causado um grande impacto, quando eu era
jovem. Eu tinha ouvido falar muito nele, quando
foi Governador do Rio Grande do Sul. Tinha um
“Sua marca ficou para sempre” carisma, um poder de atração e domínio muito
grande. Minha geração tinha adoração por Getú-
Martins Avelino Santini, 85 anos, define-se lio e um pouco também por João Goulart. Ele era
como um dos poucos sobreviventes de sua gera- “uma cria” de Getúlio. A ele, sim, conheci pesso-
ção. Atualmente aposentado, mora com sua espo- almente, inclusive esteve na minha casa, em Novo
sa em Novo Hamburgo e desfruta da companhia Hamburgo, em 1963. No dia 24 de agosto de
de seus três filhos, netos e bisnetos. O pai da pro- 1954, eu ia para o trabalho de manhã e encontrei
fessora Emi Maria Santini Saft, diretora da Unida- pessoas na rua, pedindo para fazer uma concen-
de Acadêmica de Graduação da Unisinos, foi pre- tração na praça. Ali um colega tomou a palavra e
feito de Novo Hamburgo pela coligação PTB-PRP, disse que Getúlio tinha se matado. Foi um impac-
no período de 1959 a 1963 e deputado estadual to muito forte, tristeza geral, perplexidade... Não
entre 1967 e 1975. Santini afirma que Vargas dei- dava para entender como ele, com todo aquele
xou sua marca no País para sempre. “Eu estive carisma, tinha tirado sua própria vida. E cada vez
com Getúlio Vargas, sendo militar, porque fui de- iam chegando mais pessoas na concentração. Fi-
signado como um dos representantes para a ho- camos com um grande desconcerto. Não sabía-
menagem aos heróis de Laguna (da Guerra do mos o que iria acontecer sem Getúlio.
Paraguai). Eu ia compor o pelotão que se dirigia Tempo depois, o Congresso do Partido Tra-
ao Rio de Janeiro para a solenidade. Lá estavam o balhista Brasileiro decidiu colocar uma placa co-
Ministro de Guerra Eurico Gaspar Dutra, que de- memorativa com a carta testamento de Getúlio,
pois seria presidente, e o Presidente da República na Praça da Alfândega, em Porto Alegre e eu fui
Getúlio Vargas. Como militares, nos mantivemos designado para falar no evento. Durante a noite
à distância, mas foi muito importante para mim ter anterior, não consegui dormir, preparando o dis-
estado como guarda de honra de Getúlio na sole- curso, as palavras da carta testamento davam vol-
nidade, junto a outros 35 soldados gaúchos. Eu ti- tas na minha cabeça.
nha saído do exército para cuidar dos filhos, mas, Getúlio tirou o País de um estágio indefinido
na época da Segunda Guerra, fui chamado nova- para o de um país forte agrícola e industrial.
mente. Como militar, eu servia no batalhão ferro- Transformou a política e a economia. A importân-
viário. Saí para trabalhar como servidor público cia de Getúlio foi decisiva. A marca de Getúlio

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

está por todas as partes: na Petrobrás, em Volta porque sabia que eu era fã de Getúlio Vargas, que
Redonda... Foi o patrono de toda a legislação até hoje guardo comigo”.
trabalhista e da previdência social. Quando eu
tinha 14 anos, aprendi um ofício e tinha que tra-
balhar um ano de graça, sem horário. Quando “Getúlio parecia mais nosso que de
veio o regime de oito horas foi uma bênção. Ge- outros Estados”
túlio nos fez passar de um regime de escravatura
para uma relação bem mais ordenada de capital Maria Lony Becker, 68 anos, residente em
e trabalho”. Montenegro, é professora aposentada, formada
em Letras-Inglês pela Unisinos. Ela guarda muito
bem entre suas lembranças o dia da morte de Ge-
“Ainda guardo o busto de Getúlio que túlio Vargas. “Foi no ano do meu casamento, há
ganhei de meu tio” 50 anos. No dia 24 de agosto, saí a cavalo até a
casa da minha madrinha, no interior do municí-
Com as dificuldades próprias do distancia- pio de Maratá, para levar meu convite de casa-
mento temporal, Osvaldo Valin de Oliveira, 64 mento. Quando estávamos todos lá, alguém li-
anos, que foi funcionário da indústria calçadista e gou o rádio para ouvir as notícias do correspon-
delegado sindical em São Leopoldo, recorda fatos dente “Repórter Esso”. Foi então que ele anunci-
que considera marcantes da vida do ex-Presiden- ou que Getúlio tinha se matado. Foi uma loucu-
te Getúlio Vargas. “O trabalho dele foi bem elabo- ra. As pessoas tiveram uma reação muito séria.
rado, e o povo não esquece o que é bom. Getúlio Ficava tocando uma música característica do as-
Vargas foi um grande homem. Os direitos que ad- sunto da morte dele o tempo todo. A notícia se
quirimos, foram obra dele. Vargas ficou como espalhou entre os vizinhos feito rastilho de pólvo-
símbolo na política. Ele sempre lutou pela demo- ra. O povo só falava nisso. Tinha no ar uma sen-
cracia. Lembro o dia da morte dele. Acho que foi sação de perda muito grande. Aqui no Sul, acho
às 9 horas da manhã. Eu estava no engenho, mo- que mais. A gente sabia que Getúlio era daqui e
endo cana, com os bois, lá em Três Cachoeiras, por isso ele parecia mais nosso do que dos outros
quando veio a notícia que Getúlio Vargas tinha se estados. Eu, até então, mal sabia o nome do pre-
matado. Soubemos por um mensageiro. A gente sidente. Naquela época, política era assunto de
era fã de Getúlio. Ficou todo o mundo amedron- homem. As mulheres se encontravam na frente
tado, porque pensamos que ia dar uma guerra. Fi- da igreja, antes da missa, ou nas festas de kerb,
camos apavorados, porque ninguém sabia o que mas não falávamos de política. Eu só fiz o título
ia acontecer, só sabíamos que as coisas não iam de eleitora em 1955. Lembro que Getúlio criou
mais ficar como eram. Depois tinha aquela carta as leis que davam direito para os trabalhadores.
que ele deixou. O meu irmão Edílio era mais ve- Mas fiquei sabendo disso, porque ouvia os ho-
lho, muito getulista, fez uma letra de música, base- mens que tinham empregados se preocupando
ado na carta de Getúlio, e eu cantava. A música com o registro e essas coisas. Hoje a política é di-
começava assim: ‘Mais uma vez, meus patrícios, a ferente, parece que eles estão dentro da casa da
força da reação, revolta contra seu povo...´ Eu ga- gente. Naquela época, nem televisão tinha, e a
nhei um busto de Getúlio Vargas, de ferro fundi- gente passava dias sem saber o que o Presidente
do, que meu tio, Armindo Silveira, fez e me deu, fazia”.

30
“Um estadista não hesitaria entre os nazifascistas e os aliados”

Entrevista com João Aveline

O jornalista João Aveline amou e odiou Ge- de oito horas por dia, veio a carteira do Ministério
túlio Vargas. Primeiro, influenciado pelo padrão do Trabalho, que era uma carta de cidadania. E o
de honradez gaúcho, herdado do positivismo e voto feminino, na Constituição de 1934. Os traba-
simbolizado em Vargas. Depois, já militante do lhadores passaram a ter seus sindicatos de classe,
Partido Comunista, horrorizado com a truculência ele estimulava a sindicalização. Governou demo-
do Estado Novo que, sob as ordens do Presidente craticamente até 1937 e deu um golpe militar. Ele
que, entre outras atrocidades, entregou aos nazis- tinha uma influência muito grande sobre os milita-
tas Olga Benário Prestes, grávida de um brasileiro. res. Quando ele deu o golpe, que foi decorrência
Hoje, Aveline procura olhar para o legado var- de uma situação revolucionária que existia no
guista com isenção. Reconhece os méritos da Re- Brasil, a Revolução de 1935, que foi um erro dos
volução de 1930, dos esforços para a industriali- comunistas, mas de qualquer maneira foi uma re-
zação do País, da política nacionalista e, até, dos volução que aconteceu e ele se aproveitou desse
avanços organizativos dos trabalhadores – mal- erro. E promulgou uma carta fascista, “a polaca”,
grado o controle que o Governo mantinha sobre denominada assim, porque era uma cópia da car-
os sindicalistas. Mas de uma coisa nosso entrevis- ta da constituição polonesa. Nesse processo, ele
tado tem certeza: os crimes patrocinados por Var- revelou um componente acentuadamente nacio-
gas não permitem que ele seja chamado de esta- nalista, quando incluiu, na Carta, um artigo em
dista, assim como um verdadeiro estadista não que dizia que tudo aquilo que estivesse no subsolo
hesitaria entre os nazifascistas e os aliados, na Se- era propriedade da União. Isso queria dizer: ouro
gunda Grande Guerra. e petróleo são propriedades da União. Mas o Esta-
do Novo foi um período muito duro para o Brasil,
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre de muita prepotência, muita gente foi morta, hou-
Vargas e o seu legado? ve tortura... Nesse período, numa madrugada, ele
João Aveline – No meu tempo de adolescência, mandou tirar da prisão Olga Benário Prestes, uma
aluno do Colégio Militar, eu era apaixonado por mulher grávida com um filho brasileiro no ventre.
Vargas. A minha geração foi educada sob o positi- Botou num porão de um navio e entregou para a
vismo, com Borges de Medeiros e Júlio de Casti- Alemanha. Getúlio cometeu muitos crimes. Che-
lhos, dois padrões de honradez. Essa era a escola gou a Segunda Guerra, houve então a campanha,
de Getúlio, um homem honrado. Depois, numa de Norte a Sul, com a participação dos comunis-
fase posterior, já começando a militar na juventu- tas, inclusive, defendendo o envio de uma força
de comunista, chegamos à conclusão, no partido, expedicionária para a Europa. Por que, do ponto
que Vargas não era aquilo que eu imaginava que de vista comunista? Primeiro: era uma obrigação
ele fosse. Mas a revolução de 1930 não foi um gol- nossa, como brasileiros, participar da luta que a
pe militar. Foi uma revolução de fato, que trouxe humanidade travava em defesa da democracia.
algumas transformações. Houve progresso. Os Segundo, já do ponto de vista tático-político,
trabalhadores que eram obrigados a trabalhar até mandando uma tropa expedicionária para a Eu-
quatorze horas, passaram a ter uma carga horária ropa, para lutar ao lado da democracia, essa tropa

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

expedicionária, quando voltasse para o Brasil, na- lhar das responsabilidades? Não. Ele foi um políti-
turalmente teria que encontrar um clima democrá- co, planejou seu suicídio. Com seu sangue, ele
tico, ou pelo menos um movimento fortíssimo em respondeu à investida imperialista e golpista, com
favor da democracia, e foi o que aconteceu. grande eficácia, porque a crise, que era acentua-
díssima, deu um giro de 180º graus. E os golpistas
IHU On-Line – Como o senhor analisa a rela- então recuaram e deram a solução constitucional
ção de Vargas com os trabalhadores? à crise. Essa solução foi a posse do vice-presidente
João Aveline – Sabe como se realizava uma as- Café Filho. O povo estava na rua, e isso assusta
sembléia de trabalhadores no Estado Novo? Fica- qualquer um. Para se ter a idéia de que não se tra-
vam na mesa o presidente e os demais dirigentes tou de um gesto tresloucado, na cabeceira da
do sindicato, o representante do Ministério do cama tinha uma carta datilografada. Nessa carta,
Trabalho, e o representante do Departamento ele denunciava as ingerências externas do País e
Trabalhista do Departamento de Ordem Política e dizia que saía da vida para entrar na história. Esse
Social (Dops). Claro que as forças mais avançadas era Getúlio.
da sociedade criticavam isso, mas como havia
censura, essas críticas nem sequer chegavam aos IHU On-Line – O senhor o considerava um
ouvidos do público. Nesse período, Getúlio se estadista?
comportou assim com os trabalhadores. Mas em João Aveline – Tem gente que diz que ele foi um
1950, já há um outro arejamento. Ele procurou estadista. Eu não me atrevo a tanto, porque um
desenvolver uma política de capitalismo indepen- estadista, em primeiro lugar, não pode cometer os
dente do Brasil, longe da tutela do imperialismo crimes que cometeu no Estado Novo, principal-
norte-americano. Criou Volta Redonda, a Petro- mente aquele que levou a Olga Benário a um
brás, de onde resultou o monopólio estatal do pe- campo de concentração para morrer na câmara
tróleo. Por causa dessa política de capitalismo in- de gás. Ele também tinha, nas suas prisões, no
dependente para o Brasil, Getúlio feria interesses Estado Novo, um camarada chamado Ari Berger,
imperialistas norte-americanos no Brasil e seus que era um alemão que estava aqui no Brasil para
agentes internos. Carlos Lacerda, um jornalista dar instruções aos comunistas brasileiros em rela-
muito inteligente, muito capaz, um agitador de ção à revolução de 1935. Esse homem foi tão
primeira grandeza, um homem muito culto, atre- maltratado pela polícia que o advogado Sobral
vido e agressivo, liderou uma campanha nacional Pinto, advogado do Prestes, invocou a lei de pro-
contra Getúlio, praticamente com os meios de co- teção aos animais para salvá-lo da tortura que es-
municação na mão. Chegamos ao dia 24 de agos- tava sofrendo na prisão. Quem procede assim não
to, numa reunião do Ministério que começou no pode ser estadista. Quem diz que o voto não en-
meio da tarde e foi até a madrugada. Desta reu- che barriga, como ele dizia durante o Estado
nião, resultou a seguinte resolução: o Presidente Novo, não é um estadista. Um estadista não vaci-
Getúlio Vargas seria afastado provisoriamente por laria na Segunda Guerra Mundial, sem saber para
seis meses do Governo. Terminada a reunião, Ge- que lado ia, se para os nazifascistas ou para os
túlio se retirou para seus aposentos e deu um tiro aliados. Se vacilou foi porque admitia a hipótese
no peito. de que pudesse ganhar um dos dois lados. Se ga-
nhasse o lado alemão, ele naturalmente admitia a
IHU On-Line – Foi um gesto político? hipótese de participar de um mundo nazista.
João Aveline – Ele conhecia o poder de fogo dos Então não tinha visão de mundo. Por essa razão,
inimigos nos planos externo e interno. Viu que eu digo: Getúlio foi um dos políticos mais impor-
não tinha salvação e que não voltaria mais ao po- tantes do século vinte em nosso país. Não dá para
der. Por que ele fez isso, por que se suicidou? Var- negar a sua contribuição ao processo de desenvol-
gas foi um homem que, apeado do poder, covar- vimento do nosso país; não dá para negar que, em
demente deu um tiro no peito para se desvenci- determinados momentos de sua vida, ele teve po-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

sições políticas corretas, como o próprio suicídio. por Getúlio, já tive ódio dele, hoje tenho mais ou
Foi um homem muito importante. Mas, no meu menos uma posição isenta, do ponto de vista de
entender, ele cometeu muito mais erros do que análise. Getúlio foi o único homem na nossa his-
acertos, por isso ele não chegou a ser um estadista. tória que fundou dois partidos, o Partido Social
Democrático – PSD –, que atendia os interesses do
IHU On-Line – Especificamente sobre o que latifúndio, e o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB
diz respeito aos avanços trabalhistas, como –,que era voltado para a área urbana, o proletari-
o senhor o classificaria? ado urbano, porque ele sabia que não dava para
João Aveline – Não dá para negar que Getúlio, misturar as duas coisas.
quando assumiu o governo em 1930, vinha im-
buído de mudanças, impulsionado também pelo IHU On-Line – Mas ele foi abandonado pelo
movimento tenentista dos anos 1920, pela peque- PSD depois...
na burguesia militar, reivindicando mais progres- João Aveline – Não sei se dá para dizer que ele
so para o Brasil ou mais liberdade, mais democra- foi abandonado, porque Getúlio, a rigor, estava
cia, mais desenvolvimento. Estimulou a organiza- muito acima dos partidos. Ele tinha uma persona-
ção dos trabalhadores, houve um salto em favor lidade tão forte que os partidos andavam a rebo-
dos interesses dos trabalhadores não só do ponto que dele. Getúlio só não teve uma influência mar-
de vista das suas reivindicações, mas também do cante, decisiva, inquestionável, em São Paulo,
ponto de vista de sua organização como classe, porque, em São Paulo, predomina um outro tipo
como categorias profissionais. Mas ele fez uma de populismo, que vem do Norte. Quem vem
política toda fracionada, para que os trabalhado- num pau-de-arara e chega a São Paulo e vai tra-
res não tivessem condição de fazer a sua política balhar de mestre de obra, ou vai trabalhar de vigia
do ponto de vista global. As organizações de clas- de uma obra com carteira assinada, ganha uma
ses dos trabalhadores, suposta ou aparentemente carta de alforria. E São Paulo sempre teve políti-
independentes, eram todas manobradas pelo Mi- cos que manobraram muito bem isso. Dois deles,
nistério do Trabalho. E esse Ministério se valia, no podemos dizer, foram mestres: o Ademar de Bar-
movimento sindical, de alguns pelegos. No gover- ros e o Jânio Quadros. Getúlio só se elegeu Presi-
no Getúlio, era muito comum ver um pedreiro de dente da República em 1950, quando fez um
mão feita em manicura. acordo com Ademar de Barros. Esse acordo era
de que, em 1950, Vargas seria o candidato e, no
IHU On-Line – Esse peleguismo atrasou mui- mandato seguinte, o candidato seria o Ademar,
to o sindicalismo brasileiro. que era do Partido Social Progressista, que ele
João Aveline – Claro. Getúlio deu tudo, mas fi- fundou, um partido pequeno, mas que tinha uma
cou com as rédeas, por meio do movimento sindi- influência muito grande em São Paulo e no resto
cal todo compartimentado, apoiando-se em pele- do País. Ele se apoiava em determinados estados,
gos e, ao mesmo tempo, fazendo uma política po- até em forças da esquerda. Quando o Partido Co-
pulista de agrado aos trabalhadores. Hoje precisa- munista estava na iminência de ser cassado, ele-
mos ter uma visão muito isenta. Já fui apaixonado geu alguns parlamentares sob a legenda do PSP.

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“Vargas entrava em pânico ao ouvir falar de centrais sindicais”

Entrevista com Lauro Hagemann

Getúlio Vargas dedicou boa parte dos seus Lauro Hagemann – Eu vivi a Era Vargas. Estava
esforços políticos para impedir a emancipação em Novo Hamburgo, quando Vargas passou por
dos trabalhadores, adotando uma legislação tra- lá, em campanha, em 1950. A história é longa,
balhista inspirada no fascismo. Essa é a consta- posso recordar fatos incidentais. A minha vivência
tação do jornalista e radialista Lauro Hage- está mais ligada à questão sindical. Quando eu fui
mann. Por isso, considera o legado varguista dirigente sindical, eu tive de aturar a Consolida-
“negativo”, com destaque para a referida legis- ção das Leis do Trabalho (CLT), que foi herança
lação. Foi apoiado nela que, como ditador e, dele. A Consolidação é de 1942. Ele usou o pior
depois, Presidente da República, Vargas impe- método para criar uma estrutura sindical. Nunca
diu a unificação dos trabalhadores brasileiros e apoiei nem aplaudi a estrutura sindical que o Var-
o seu reconhecimento como classe. Segundo gas nos legou, porque era nitidamente fascista. Ele
Hagemann – líder sindical que fundou e presidiu proporcionou algo imperdoável: nunca permitiu
o sindicato dos radialistas gaúchos e presidiu o pela Consolidação que se aproximassem as cate-
sindicato dos jornalistas – Vargas “entrava em gorias profissionais. Manteve-as todas estanques.
pânico” ao ouvir falar na criação de centrais sin- Por isso é que, por longos anos, nós não tivemos
dicais, já poderosas em toda a América Latina, uma central sindical. Essa é uma das razões para a
cujo nascimento ele tratou de impedir no Brasil. demora do surgimento das centrais. A outra foi a
Entretanto, Hagemann reconhece que, em sua falta de iniciativa da própria classe operária, que
fase democrática – que não impediu as perse- não quis quebrar esse status quo. Além disso, ele
guições aos comunistas – Vargas conduziu im- sempre beneficiou todos os dirigentes e as entida-
portantes mudanças econômicas, modificando des sindicais. Foi o que se denominou depois de
a face do País. E observa que somente agora “pelegagem sindical”. Claro, isso não acontecia
está começando a interpretação dos fatos e da- com todos, tínhamos honrosas exceções, mas a
tas da Era Vargas, e finalmente sendo produzida estrutura varguista favorecia os pelegos.
a sua história. Militante do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), ex-deputado estadual cassado IHU On-Line – O senhor pode falar sobre as
em 1968, vereador porto-alegrense por cinco le- tentativas de organização das centrais
gislaturas, Hagemann atualmente está filiado ao sindicais?
PMDB. Lauro Hagemann foi locutor, de 1950 a Lauro Hagemann – Tínhamos que conviver
1964, da edição local “Repórter Esso”, noticiá- com a CLT, não tinha outro jeito. Mas mesmo as-
rio transmitido pela Rádio Farroupilha, então sim, aqui no Sul, tentamos, várias vezes, formar
pertencente aos Diários Associados. uma central, não conseguimos. Quando não es-
barrávamos no problema político, esbarrávamos
IHU On-Line – Quais são as suas recordações no problema legal. A lei não permitia que se jun-
marcantes do período varguista? tasse marceneiro com radialista, por exemplo, em

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

uma central. Assim as categorias ficavam estan- que era partido. A minha vida sindical começou
ques, como eu disse. Isso é o que queria o Vargas, em 1950 e poucos, sempre ligada ao jornal, ao rá-
com a estrutura sindical imposta: comerciário de dio, à comunicação. Quanto ao clima, era bagun-
um lado, industriário de outro, marítimo de outro, ça generalizada – semelhante ao clima político de
aeroviário, bancários, todos separados. Não era hoje – ninguém tem noção das coisas certas, tudo
permitido agir em conjunto, porque uma vez jun- é improvisado, muita politicagem, muita questão
tos, ninguém mais nos dominaria. Então, o movi- pessoal. O caso é que a classe operária brasileira
mento dos trabalhadores era fraco por isso, era di- sempre foi muito atrasada, é preciso dizer isso
vidido, e dividido por cima. As centrais que sur- com todas as letras. E ela não tinha noção do que
gem depois, como a CUT, surgem à revelia da fosse classe operária. Cada um brigava pelo seu
CLT, que não permitia e não permite isso. Só que pedacinho. Não havia noção de conjunto, senso
agora ninguém se preocupa com essa unificação. de pátria. Essa fragilidade começou com Vargas, e
continua. Essa influência foi tão forte que essa dis-
IHU On-Line – Como essa prática se refletia sensão continuou mesmo depois da fundação da
na sua atividade como radialista e CUT. Só agora é que estão falando em revisar a
sindicalista? CLT, coisa que nós tentamos desde 1950.
Lauro Hagemann – A primeira legislação sobre
rádio foi dele, em 1932. Foi um decreto que obri- IHU On-Line – Nesse aspecto, o senhor consi-
gava os locutores a se tornarem jornalistas. Foi an- dera negativo o legado varguista?
tes da CLT, portanto. Eu comecei no rádio, em Lauro Hagemann – Sim, foi negativo, pois ele
1946. Na atividade sindical, fundamos o Movi- copiou a estrutura sindical do fascismo, como sa-
mento Intersindical Antiarrocho (MIA). Foi uma bemos. Não havia democracia. Mas é verdade
tentativa de fundar uma central, mas esbarráva- que a vida do País mudou com Vargas, pois quan-
mos na própria concepção “sindicaleira” dos diri- do ele chegou à cena política pela via democráti-
gentes. Aí, já estávamos no final dos anos 1970. ca, surgiram a Petrobrás, a base da indústria do
Mas essa foi a herança dele. Aliás, a CLT é uma aço, que gerou a indústria automobilística. Ele
herança também do Lindolfo Collor2, pai do “Co- teve duas personalidades políticas, uma autoritá-
lorzinho”3, que começou a trabalhar nessa idéia. ria e outra democrática. Essas modificações eco-
Essa história da CLT ainda precisa ser esmiuçada nômicas foram muito importantes, deixaram um
com uma lente de aumento... O Vargas e a sua rastro. Mas o Partido Comunista vivia numa semi-
turma entravam em pânico, quando se falava em legalidade. E as lutas políticas do Vargas eram
central sindical. As centrais já existiam, na Améri- pela “governadoria” do País, pois, no Brasil, o po-
ca, e eram poderosas. Obrigavam os governos a der nunca mudou de mãos. Vamos deixar isso
andar na linha. Como Vargas tinha um vezo auto- bem claro, a classe econômica mais abonada
ritário, pensar em união dos trabalhadores era sempre foi a predominante, mesmo no tempo
algo insuportável. A legislação trabalhista veio dele.
para manter a divisão.
IHU On-Line – Como se explica a presença
IHU On-Line – Quando o senhor ingressou no marcante da memória de Vargas?
Partido Comunista? Como era o clima polí- Lauro Hagemann – Ele foi um populista, ficou
tico dessa época? conhecido como “o pai dos pobres”, fazia muitas
Lauro Hagemann – Eu ingressei no partido, em concessões demagógicas... embora muitas mu-
1973. Foi nele que aprendi o que era política, o danças tivessem algum conteúdo. Tanto que o

2 Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, no período de 1930 a 1932. A CLT origina-se do Decreto-Lei 5.452, de 1º de
maio de 1943. (Nota do IHU On-Line).
3 O entrevistado refere-se a Fernando Collor de Mello, Presidente do Brasil de 1990 a 1992. (Nota do IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

País passou da economia agrícola para a indus- va voltando para Porto Alegre, depois de ter parti-
trial. Na minha profissão é que nada mudou. cipado de um Congresso da União Nacional dos
Estudantes (UNE). Como estudante de jornalismo,
IHU On-Line – Como locutor, o senhor notici- eu era delegado. Daí por diante, tudo aconteceu
ou a morte de Vargas… muito rápido, muitos fatos, muitas notícias... Mui-
Lauro Hagemann – Sim, é algo que vou levar ta coisa não se sabia. E o desfecho foi ligeiro. To-
comigo. Profissionalmente, é uma coisa muito in- das essas coisas que eu estou falando são apenas
teressante. Não é todo mundo que tem a possibili- fatos e datas, e isso não é história. O que vale é a
dade de ter feito algo assim. Eu soube do atentado interpretação, e somente agora está se começan-
da Rua Tonelero, no Rio de Janeiro, quando esta- do a fazer isso.

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Getúlio, os sindicatos e a greve de 1953

Entrevista com José Alvaro Moisés

A despeito dos apelos de Vargas no sentido ca aberta com o ministro do Trabalho, discordan-
de obter a cooperação dos trabalhadores para um do de sua orientação e procurando criar canais
projeto de reconstrução econômica, o movimento para uma aproximação maior de Vargas com a
sindical começou a fazer reivindicações. Com o classe operária. Realizou, assim, sua primeira in-
objetivo de atenuar os efeitos da crise, a classe tervenção nas relações entre o Governo e o movi-
operária começou a lutar pela obtenção de vanta- mento operário, num momento em que ficava cla-
gens econômicas, já que o Governo concedeu, ra a necessidade de uma reformulação na orienta-
em dezembro de 1951, sobre o salário mínimo, ção política oficial em relação às classes trabalha-
estabelecido em 1943, um aumento de 14%, que doras. Nesse contexto, ocorreu a reforma ministe-
foi considerado irrisório pelos trabalhadores, pois rial de junho de 1953 e a indicação do nome de
o custo de vida, entre 1943 e 1951, tinha subido João Goulart para ocupar a pasta do Trabalho.
100%. Nesse quadro, eclodiu em São Paulo, em Sobre essa importante greve IHU On-Line conver-
março de 1953, a chamada Greve dos 300 mil, sou com José Álvaro Moisés, que é professor do
que reuniu diversas categorias de trabalhadores, departamento de Ciência Política da USP. Soció-
visando à obtenção de melhorias salariais e culmi- logo e mestre em Política e Governo pela Univer-
nou com a criação de um órgão de comando in- sity of Essex, U.E., Colchester, Inglaterra, e doutor
tersindical que originaria mais tarde o Pacto de em Ciência Política pela USP, com tese intitulada
Unidade Intersindical (PUI). Com a deflagração Classes populares e protesto urbano. Moisés é
desse movimento, ficou evidenciado o desconten- também pós-doutor pela University of Oxford,
tamento da classe trabalhadora com a política sa- UO, Oxford, Inglaterra e pela USP. Autor de di-
larial de Vargas e sua possibilidade de escapar ao versos livros, entre eles, Greve de Massa e Crise
controle da estrutura sindical oficial. Pressionado Política Estudo da Greve dos 300 Mil em São
por todos os lados, Vargas procurava transformar Paulo – 1953-54. São Paulo: Polis, 1978; Lições
as relações difusas que mantinha com a massa de Liberdade e de Opressão – Os trabalhadores e
operária em relações mais organizadas e estáveis, a luta pela democracia. Rio de Janeiro: Paz e Ter-
tarefa para a qual se achava despreparado, já que ra, 1982; Os brasileiros e a democracia – bases
mantinha sobre o assunto sérias divergências com sócio-políticas da legitimidade democrática. São
seu ministro do Trabalho, José Segadas Viana. Paulo: Ática, 1995.
Com isso, o prestígio político do Presidente no
meio sindical deteriorava-se rapidamente. Essa si- IHU On-Line – Qual foi a contribuição de Var-
tuação atingiu seu ponto máximo com a deflagra- gas para o movimento dos trabalhadores?
ção da greve dos marítimos no Rio de Janeiro, José Álvaro Moisés – Vargas foi o grande esta-
Santos e Belém, em junho de 1953, quando, no- dista brasileiro do século XX. Sem que isso signifi-
vamente, eclodiram as divergências de Vargas que um julgamento de valor positivo sobre a obra
com seu ministro. Diante dessa situação, João de Vargas, é incontestável que ele foi, do ângulo
Goulart, presidente do PTB e detentor de alguma da construção do Estado brasileiro, um dos seus
influência nos meios sindicais, entrou em polêmi- principais artífices, para o bem e para o mal. E isso

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

teve repercussões também na área sindical, por- com as orientações de esquerda que estavam pre-
que a herança deixada e proposta pelo governo sentes no movimento, como foi o caso do Partido
Vargas é até hoje o de uma estrutura corporativis- Comunista.
ta, unicista, de sindicato único na base de cada
categoria. IHU On-Line – Qual foi a diferença entre o
sindicato pré-greve e depois de 1953?
IHU On-Line – Qual foi a dimensão da grande José Álvaro Moisés – A greve de 1953 se orga-
greve de 1953-1954? nizou na base de comissões de empresa, organis-
José Álvaro Moisés – Foi uma grande greve de mos de base, que, em um certo sentido, era uma
massa que, naquela época, não era um evento co- contestação do sindicalismo corporativista oficial.
mum no Brasil. Ela teve repercussões, não apenas Ela agregou a estrutura previamente existente,
do ponto de vista sindical, mas também político, uma estrutura mais flexível, menos rígida, e que ti-
porque, em certo sentido, ela colocou em questão nha maior capacidade de mobilização da base dos
o governo de Getúlio cujo suicídio lembramos 50 trabalhadores na área metalúrgica, na área têxtil,
anos depois. Ela teve uma interferência muito for- que eram os setores de liderança na época. Signi-
te no cenário social e no cenário político. Do pon- ficou agregar à estrutura corporativa uma dimen-
to de vista social, ela abriu uma mudança à estru- são de mobilização social que não existia, porque
tura sindical. A greve foi uma manifestação, em os sindicatos oficiais não conseguiam mobilizar.
grande parte, organizada pelo Partido Comunista, Acho que o interessante dessa situação é que nem
pelas suas lideranças sindicais comunistas e, do uma coisa nem outra sozinha conseguia dar conta
ponto de vista político, ela colocou em questão do problema da mobilização. Foi necessário arti-
um equilíbrio de forças que apoiavam o governo cular uma estrutura corporativa e uma estrutura
Vargas, no qual o pólo sindical tinha um papel im- com maior liberdade. Por isso eu falo de uma es-
portante. Com uma greve contestatória que le- trutura paralela. A estrutura do sindicalismo popu-
vantou dúvidas na forma como o Governo condu- lista, que perdurou até o golpe de 1964, se apoiou
zia o processo, parte dessa aliança se desmoronou. nessa estrutura paralela, que nasceu com a greve
de 1953.
IHU On-Line – Essa greve marca uma nova
etapa no mundo dos trabalhadores da época? IHU On-Line – Hoje o senhor vê o sindicalis-
José Álvaro Moisés – Ela marcou as limitações mo atual com a independência que ele bus-
da estrutura corporativista, estritamente herdadas cava na época?
do Estado Novo. Para que funcionasse a estrutura José Álvaro Moisés – Acho que os sindicatos,
corporativa, o sindicato teve que criar uma espé- de fato, se autonomizaram. Uma das grandes con-
cie de estrutura paralela, as estruturas dos organis- quistas do período da democratização foi uma
mos paralelos que nasceram com a greve de 1953 maior autonomia sindical e um movimento sindi-
e depois deram origem ao Pacto de Unidade e cal mais independente do Estado. Há, porém, al-
Ação (PUA), que foi tão importante para os últi- guns problemas que permanecem. A estrutura
mos meses antes do golpe de 1954. Nesse sentido, unicista, de sindicato único, não é o melhor cami-
a greve foi um evento social que colocou em ques- nho. Pessoalmente, defendo a pluralidade sindi-
tão, nos termos de participação dos trabalhado- cal, por pensar que representa melhor os interes-
res, uma estrutura herdada do período autoritário ses dos trabalhadores. Deste ponto de vista, talvez
do Estado Novo, que já não funcionava mais. Ela seja uma reforma que está faltando fazer para que
demandou, ela pediu a entrada de uma estrutura a independência e a autonomia, que foi conquis-
nova, paralela, que continuou tendo a influência tada nos anos 1970-1980, seja levada até o fim.
do populismo, mas uma mescla do populismo

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Getúlio e a revolução brasileira

Entrevista com Gilberto Vasconcellos

“A esquerda que combateu Getúlio é uma a classe trabalhadora ao poder. Isso não faz o me-
esquerda abstrata que, como diria Darcy Ribeiro, nor sentido, diria até que quem professa estas
tinha uma revoluçãozinha na cabeça, haurida ou idéias é nostálgico da República Velha, ou quiçá,
não nos textos marxistas. Aliás, o marxismo entre saudoso da escravidão. O pior de tudo é que essa
nós, não está imune a uma abordagem coloniza- estupidez aparece em livros didáticos que fizeram
da, embora a teoria da colonização tenha apareci- a cabeça da juventude pró-PT e antivargo-jango-
do pela primeira vez na obra O Capital, de Karl brizolista.
Marx”. Essa é a opinião de Gilberto Vasconcellos,
que defende a idéia de que Karl Max seria getulis- IHU On-Line – Quais as principais concep-
ta se tivesse nascido no Brasil. Gilberto Vasconcel- ções e análises da esquerda que, basica-
los é professor no Departamento de Ciências So- mente, a orientaram no combate ao getulis-
ciais da Universidade Federal de Juiz de Fora. So- mo? Como elas se articulavam com a idéia
ciólogo pela USP, ele é doutor em Sociologia pela de uma revolução brasileira?
mesma universidade, com tese intitulada Ideolo- Gilberto Vasconcellos – A esquerda que com-
gia Curupira e pós-doutor pela École Pratique Des bateu Getúlio é uma esquerda abstrata que, como
Hautes Études (EPHE), França. É autor de diver- diria Darcy Ribeiro, tinha uma revoluçãozinha na
sos livros, entre eles, Collor a Cocaína dos Pobres. cabeça, seja ou não haurida nos textos marxistas.
São Paulo: Icone, 1989; O Príncipe da Moeda. Aliás, o marxismo entre nós, não está imune a
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997; O Poder uma abordagem colonizada, embora a teoria da
dos Trópicos. São Paulo: Casa Amarela, 1999; colonização tenha aparecido pela primeira vez na
Petrobrás – Um Clarão na História. Brasília: Insti- obra O Capital, de Karl Marx. Se tivesse dado a
tuto do Sol, 2001; A salvação da lavoura: receita cara por estas bandas, Karl Marx seria getulista.
da fartura para o povo brasileiro. São Paulo: Casa De resto, o marxista Glauber Rocha dizia que o
Amarela, 2002. câncer da política brasileira foi o racha entre os co-
munistas e os nacionalistas antiimperialistas. Em
IHU On-Line – Historicamente, de maneira ge- 1954, Getúlio ficou sozinho, ainda que estivesse
ral, a esquerda brasileira responsabiliza Ge- numa batalha barra pesada a favor da Petrobrás e
túlio Vargas pelo aborto da revolução brasi- contra o imperialismo norte-americano. Poucos
leira. À luz dos fatos políticos da última dé- marxistas na época entenderam a política antiim-
cada, especialmente, o senhor considera perialista de Vargas. Trata-se de um paradoxo: o
que tal premissa mantém sua validade? maior líder burguês da história do Brasil ser um
Gilberto Vasconcellos – Isso é mais uma diatri- adversário do imperialismo norte-americano.
be dos historiadores levianos e superficiais que di- Destarte, o conceito de revolução brasileira so-
zem que as Leis Trabalhistas tiraram o proletaria- mente começou a circular depois da Carta Testa-
do brasileiro do caminho revolucionário, como se mento de Vargas, na acepção de um país com au-
não tivesse aparecido Getúlio Vargas, e o marxis- tonomia, soberania e emancipação popular. A
mo, aliás tênue, da década de 1930, e conduzido Carta Testamento é um documento trágico em

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

um país sem tragédia. Ninguém foi capaz de es- me e Damião. Essa simbiose já ganhou o batis-
crever outro documento mais contundente do mo de “petucanismo”, ou seja, “petistas e tuca-
ponto de vista político. nos, uni-vos!”

IHU On-Line – Enfocando a questão por outro IHU On-Line – O senhor acredita que a es-
ângulo: o legado da Era Vargas poderia ter querda brasileira, representada pelo PT,
contribuído à revolução brasileira? Ou, se será capaz de responder à questão nacio-
descartada essa hipótese, ao aperfeiçoa- nal? De transitar, de maneira conseqüente,
mento da democracia e das instituições na- entre os ideais históricos e contraditórios
cionais? Como? de ruptura institucional e de mudanças, por
Gilberto Vasconcellos – A Era Vargas poderia assim dizer passivas, apoiadas no aperfei-
ter realizado a revolução brasileira se não tivesse çoamento e consolidação das instituições
sido interrompida em 1945 pelo golpe imperialis- republicanas?
ta, em 1954 pela conspiração da UDN pró-ameri- Gilberto Vasconcellos – O PT está desconecta-
cana, depois por Dutra, boneco de eletrodomésti- do da questão nacional e da questão cultural bra-
co, por JK “frixopi”, por Jânio entreguista, pela sileira, tanto é que a sua palavra de ordem se con-
deposição do nacionalista João Goulart, pela tru- centra na cidadania, separada da soberania na-
culência do golpe de 1964, seguido da comédia cional, como se fosse possível existir uma sem a
de direita de Sarney, Collor, FHC e Lula. outra. O PT opera com a tesoura epistemológica
na história do Brasil: tudo começou nas greves do
IHU On-Line – Fernando Henrique Cardoso, ABC paulista, em 1979. Tudo que vem antes deve
quando Presidente da República, manifes- ser apagado: Vargas, Jango, Darcy Ribeiro, Leo-
tou, por diversas vezes, seu desejo de por nel Brizola.
um fim definitivo à Era Vargas. Nesse as-
pecto, seus propósitos identificavam-se aos IHU On-Line – O senhor gostaria de acres-
da esquerda, já reunida no PT, especialmen- centar outros comentários ao tema em
te. Como se explica essa contradição? debate?
Gilberto Vasconcellos – FHC não foi o pri- Gilberto Vasconcellos – Gostaria de acrescen-
meiro a se vangloriar de ser o “coveiro” da Era tar que não consigo entender o Rio Grande do
Vargas. E não será o último. Vide o exemplo de Sul, uma região libertária do Brasil, ter colocado
Lula que ainda não foi bater a cabeça no túmulo no ostracismo a tradição castilhista de Getúlio
de Getúlio Vargas em São Borja, onde estão en- Vargas. Acredito que um dia Getúlio Vargas, que
terrados João Goulart, Leonel Brizola e Dona não está nem no céu nem no inferno, possa baixar
Neuza. O PT e o PSDB são xifópagos, como Cos- de novo nos pagos gaúchos.

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Um romance historiográfico sobre a vida de Getúlio

Entrevista com Juremir Machado da Silva

“Getúlio me pareceu personagem antes de IHU On-Line – Porque a escolha de construir


qualquer coisa. Chamamos em teoria literária de uma biografia de Getúlio Vargas no gênero
“personagem redondo”, personagem com pro- romanesco?
fundidade, contraditório, paradoxal. Ele foi tudo: Juremir Machado – Primeiro, porque eu me
oligarca, revolucionário, ditador, eleito pelo povo, considero escritor antes de tudo. Tenho múltiplas
corajoso, suicida, calculista, maquiavélico, impla- atividades, todas elas por paixão, mas também
cável, capaz de afastar seus amigos, de pren- como forma de ganhar a vida. E aquela que elejo
dê-los, de mandá-los para o exílio, de chamá-los como minha atividade predileta é ser escritor. A
de volta, de perdoá-los, de se aliar a eles, então ele ficção é uma forma superior de decifrar a comple-
era um personagem antes de qualquer coisa”, xidade da vida. Ela é mais capaz de decifrar as coi-
essa é uma das razões pela qual Juremir Machado sas, às vezes, do que as próprias ciências huma-
da Silva resolveu escrever o romance historiográfi- nas. Getúlio me pareceu personagem antes de
co Getúlio, lançado nos 50 anos da morte do qualquer coisa. Chamamos em teoria literária de
ex-presidente. Juremir Machado da Silva é jorna- “personagem redondo”, personagem com pro-
lista, historiador formado pela PUCRS, e doutor fundidade, contraditório, paradoxal. Ele foi tudo:
em Sociologia pela Universidade René Descartes, oligarca, revolucionário, ditador, eleito pelo povo,
Paris V, Sorbonne, França. Leciona nos cursos de corajoso, suicida, calculista, maquiavélico, impla-
graduação e de pós-graduação da Faculdade de cável, capaz de afastar seus amigos, de pren-
Comunicação Social da Pontifícia Universidade dê-los, de mandá-los para o exílio, de chamá-los
Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisador do de volta, de perdoá-los, de se aliar a eles, então ele
CNPq, fez pós-doutorado em Sociologia da Cultu- era um personagem antes de qualquer coisa.
ra, na Sorbonne, orientado por Michel Maffesoli, Além disso, um romance tem um tipo de discurso
Jean Baudrillard e Edgar Morin. Publicou onze li- que atrai mais as pessoas, que as traz mais para
vros, entre eles: Anjos da perdição – futuro e pre- essa interlocução. Eu queria isso, falar de Getúlio
sente na cultura brasileira. (Tese de doutorado). como quem fala em uma mesa de bar, ou em uma
Porto Alegre: Sulina, 1996) e A miséria do jorna- conversa de amigos, de maneira que se pudesse
lismo brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. Na provocar o interesse de todos pelo homem, pelo
França, publicou Le Brésil, pays du présent. Paris: personagem, e não só por uma rigorosa revisão
Desclée de Brouwer, 1999. Atualmente, é editor histórica. Foi uma associação das minhas múlti-
da Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia, plas possibilidades profissionais em prol de algu-
correspondente das revistas francesas Sociétés e ma coisa que pudesse tentar dar conta de um per-
Cultures en Mouvement, membro do Conselho sonagem fabuloso, que, além de tudo, diz muito
Editorial do site Trópico, pertencente à Folha de para mim do ponto de vista afetivo, porque sou da
S. Paulo e coordenador da coleção Comunicação, fronteira oeste, porque meu avô se chamava Ge-
da EDIPUCRS. Sua mais recente obra, Getúlio, foi túlio e se suicidou como Getúlio. Na minha famí-
publicada pela editora Record. lia, tinha muitos getulistas. Tudo isso me atraiu
para fazer o romance. Além de tudo, meu amigo

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Décio Freitas4 me estimulou. Sempre quis que eu vestigar o motivo da sua expulsão, se era verdade,
fizesse uma biografia de Getúlio. Eu achei o ro- como se diz em alguns livros, que ela havia sido
mance mais prazeroso do que a biografia e menos descoberta como espiã alemã, passando informa-
provocador de ilusão. As biografias normalmente ções do governo Vargas para o nazismo, porque o
têm muita ficção. Eu prefiro assumir algo como casamento dela com Lutero acabara subitamente.
ficção ainda que eu tenha feito uma longa pesqui- Eles tinham uma filha, que ela não pôde ver du-
sa histórica de documentos, de fontes primárias, rante muitos anos. Eu entrevistei essa filha tam-
de leituras dos jornais da época, mas também de bém, em São Francisco de Assis, no início da pes-
revisão de toda a bibliografia possível. É uma quisa, para saber o que tinha acontecido com a fa-
mescla de reportagens e investigação histórica, mília dela, com a mãe dela. Essa senhora morreu
transformada em romance. no ano passado. Outras pessoas foram os ajudan-
tes de ordens de Getúlio que ainda estão vivos, da
IHU On-Line – Quais o senhor assinalaria época do suicídio, a filha do Carlos Lacerda, o fi-
como as entrevistas mais marcantes feitas lho do Major Rubem Vaz, que morreu no atentado
para o livro? da rua Tonelero, etc. As últimas mulheres do fa-
Juremir Machado – Primeiro, Guilherme Ari- moso Ivo Vargas, irmão de Getúlio, um boêmio. A
nos, que é o pai de Gustavo Franco que foi presi- neta de Getúlio, Edith, que me pareceu muito in-
dente do Banco Central. Guilherme Arinos foi, teressante. Ela me contou da família, que é a parte
durante 12 anos, uma espécie de secretário pesso- menos visível dos Vargas. A Celina Vargas é muito
al de Getúlio. Não um secretário de fato, funcio- mais visível. A Edith, que é filha da Jandira, a filha
nalmente, administrativamente, mas uma espécie mais velha de Getúlio, era outro ramo menos visí-
de secretário oficioso, e que conheceu profunda- vel. Então fui falando com todas essas pessoas
mente Getúlio. É um senhor que está com 89 para reconstituir a vida da família Vargas.
anos. Acompanhou Getúlio até no exílio, em São
Borja, em Itaqui. Ele conheceu muito bem o IHU On-Line – Como foi a experiência em re-
ex-presidente e me contou a vida de Getúlio de lação às outras pesquisas, de jornais e de
um ângulo mais do homem e menos do político. documentos?
Também foram muito marcantes as entrevistas Juremir Machado – Fui fazer a leitura dos jornais
que fiz com Alcino João do Nascimento, o pistolei- da época, na Biblioteca Nacional do Rio. Li a Tri-
ro contratado para atirar em Lacerda e que provo- buna da Imprensa, A Última Hora, O Globo do
cou o atentado na rua Tonelero, cuja conseqüên- ano de 1954, por exemplo. E é sempre muito inte-
cia foi o suicídio de Getúlio. Eu fui com ele, que ressante, porque descobri um outro jornalismo,
tem 82 anos, dos quais passou mais de 20 na ca- com uma outra linguagem, violenta, agressiva,
deia, até a rua Tonelero, para fazer uma reconsti- sensacionalista, que também serviu para relativi-
tuição do crime. Isso foi muito marcante. Aquele zar um pouco nossos conceitos de hoje. Nós acha-
homem se reencontrando 50 anos depois com o mos o nosso jornalismo, às vezes, muito ruim, ten-
local de um crime que mudou a vida dele, e que ti- demos a idealizar o jornalismo do passado. O jor-
nha sua versão, as suas informações, a sua manei- nalismo do passado, dessa época pelo menos, era
ra de ver, as suas explicações. Depois uma outra um jornalismo talvez com mais defeitos do que o
entrevista muito marcante para mim foi com Inge- de hoje, um jornalismo muito menos comprometi-
borg ten Haeff, uma alemã com quem Lutero Var- do com a demonstração do que dizia, um jornalis-
gas, filho de Getúlio, foi casado, e que, mais tarde, mo quase assustador em que se podiam usar qua-
foi expulsa do Brasil. Ela vive em Nova Iorque, é se todos os tipos de palavras, de insultos, de acu-
uma artista plástica bastante conhecida. Eu fui in- sações e de calúnias, de maneira que ler esses jor-

4 Sobre Décio Freitas, conferir o boletim IHU On-Line n.º 92, de 15 de março de 2004, os depoimentos de Gunter Axt e Ieda
Gutfriend.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nais me revelou o quanto os costumes, os valores, de ou não. É possível que, no futuro, se possa tra-
a forma de fazer política, na época, era diferente, balhar melhor isso com o surgimento de novos
muito mais violenta, mais frontal, mais implacá- documentos. Tem coisas que ficam vagas. Por
vel. Essas leituras de jornais foram importantes exemplo, será que Lacerda foi ferido realmente no
para reconstituir esse pano de fundo cultural da pé? Francamente é impossível provar. Há teste-
época. munhas que dizem que o viram caminhando meia
hora depois, sem nenhum ferimento no pé. Os la-
IHU On-Line – O livro chega a desvendar no- udos periciais existentes não falam de nenhuma
vos dados sobre o crime na rua Tonelero? mancha de sangue entre o local do crime e o apar-
Juremir Machado – O meu livro, como um ro- tamento dele, para onde ele subiu depois do aten-
mance, tem personagens que encarnam as múlti- tado. O prontuário de Lacerda no hospital, onde
plas possibilidades. Se existem cinco ou seis hipó- ele foi atendido e onde ele teve o pé engessado,
teses sobre o que aconteceu na rua Tonelero, sumiu ainda na década de 1950. Então nunca foi
cada um dos meus personagens encarna uma des- possível saber realmente. Esse é um item ainda a
sas possibilidades. Eu levo, com esses persona- ser pesquisado. É muito polêmico, porque Lacer-
gens, ao extremo, o desvendamento disso, até da teria sido ferido no pé, claro, com um tiro de
onde dá para chegar. Como é um romance, não é 45, com uma bala potente. No mínimo, o que se
feita uma escolha do tipo “essa é a verdade”. É a imaginaria era Lacerda alguns dias hospitalizado,
verdade encarnada por cada personagem, segun- de cama, sofrendo um pouco. E isso não aparece.
do o máximo de informações que foi possível ob- Lacerda engessou o pé e seguiu em atividades
ter. Por exemplo, o personagem que encarna a como se nada tivesse acontecido, o que alimenta
tese de que houve um mandante acima de Gregó- as suspeitas de uma invenção, de uma fraude.
rio, que isso não foi decidido no andar de baixo, Mas também não há hoje como demonstrar que
mas no andar de cima, embora Getúlio não sou- foi uma fraude, porque o próprio médico que
besse, mostra com indícios, elementos de infor- atendeu Lacerda na época, apesar do sumiço do
mação coletados por entrevista ou documentos, prontuário, sempre jurou de pés juntos e sempre
que a sua hipótese é melhor. Mas fica, no fundo, considerou uma calúnia que dissessem que não
para o leitor tirar a conclusão entre todas havia ferimento. É um ponto que ficou nebuloso.
possibilidades. A família de Lacerda e a família do Major Vaz
acham que sim, que houve isso e que dizer o con-
IHU On-Line – Que fatos o senhor acha que trário é falsificar a história. Mas a prova cabal não
merecem ainda muita pesquisa? existe. Muita gente acha que o processo deveria
Juremir Machado – Existem coisas que nunca ter sido reaberto, porque é truncado. É esse tipo de
vão ser totalmente reveladas, mas que ainda exi- coisa que nunca ficou bem esclarecida. Gregório
gem mais reflexão. Uma delas é a hipótese, um Fortunato foi assassinado na cadeia. Nunca soube-
tanto estranha, em princípio, de que Getúlio teria mos exatamente por quê. Um episódio banal den-
sido assassinado, e não se matado. É uma hipóte- tro de um presídio, uma briga com outro prisionei-
se que vai e volta, tem quem a defenda. Ela nunca ro, por uma pendenga qualquer, uns dizem que
foi suficientemente investigada, porque envolve- por homossexualismo, outros dizem que por quei-
ria militares graduados da época. Se existe docu- ma de arquivo. Esses pontos assim são nebulosos
mentação, ela não é acessível aos pesquisadores. mesmo. Claro que dá para seguir alguns indícios e
É uma hipótese que fica; saber o que realmente há tirar algumas conclusões, mas dizer categoricamen-
de verdade. Pode ser uma hipótese simplesmente te nesses casos, “foi isto ou aquilo”, não dá.
sensacionalista ou a racionalização de algumas
pessoas, mas não existe como tal. Ela aparece nos IHU On-Line – Atualmente, 50 anos depois
discursos e em jornais, mas não tem como investi- da morte de Getúlio, onde o senhor vê que
gar hoje para saber se ela tem um fundo de verda- ele está mais presente, em nosso País?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Juremir Machado – Ele está antes de tudo pre- importante. Quando pensamos na concepção de
sente naquilo que é mais importante para nós no uma identidade nacional, com a defesa do petró-
dia-a-dia e que é mais combatido pelos conserva- leo, a Petrobrás, é Getúlio Vargas. Posso estar er-
dores e empresários gerais, que é a legislação tra- rado, mas, que eu saiba, o único presidente a ter
balhista. Elio Gaspari sempre faz essa brincadeira, dado um aumento de salário mínimo de 100% foi
quando tira férias. Ele escreve no jornal “graças à Getúlio, em 1954. Já imaginou hoje Lula chegar e
legislação varguista, ainda não derrubada pelo dizer assim “100% de aumento!”. Para bem e
governo FHC ou pelo governo Lula, vou gozar as para mal, Getúlio era um político fenomenal. Ele
minhas merecidas férias”. A legislação trabalhista teve as contradições da época e operou dentro de-
que nós temos, tudo o que nós temos de garantias las. Quando perguntavam para ele se não podia
trabalhistas e de que usufruímos e que os gover- ter feito isso tudo numa democracia, ele respondia
nos, volta e meia, querem nos tirar, é Getúlio. Nós com um sorriso: “O senhor acha?”. Na época,
não podemos esquecer de Getúlio, porque o salá- todo o mundo era golpista, todos. Todo o mundo
rio mínimo é Getúlio, as férias pagas é Getúlio, a pensava assim: “Não gostei desse governo; vamos
nossa legislação trabalhista essencial é do período derrubá-lo”. Lacerda era um grande golpista, que-
Vargas. Claro que ele também está muito no ima- ria que os seus assumissem o poder. Era uma polí-
ginário popular. Ele está muito também no imagi- tica feita numa outra época, com outras noções.
nário das oposições. Quando vemos um filme
como Olga, ele é um requisitório contra a Era Var- IHU On-Line – O que Getúlio Vargas pensou
gas. Às vezes, boa parte com razão e, em alguns nos cinco minutos antes do suicídio, segun-
aspectos, um tanto alterado com relação a alguns do o romance?
detalhes históricos. Todo o mundo imagina que Juremir Machado – Claro, estamos no reino da
Olga foi expulsa do Brasil, extraditada, deportada, ficção, não tem como saber o que ele realmente
durante o Estado Novo. E não é verdade. Ela foi pensou antes do suicídio, mas conforme o tipo de
deportada em 1936, quando o Estado Novo ain- comportamento que ele tinha, acho que ele se re-
da não tinha começado. Em 1936, não era muito portou ao começo de tudo, ao dia 3 de outubro de
melhor que o Estado Novo, mas ainda não era o 1930, dia em que ele começou a escrever o seu
Estado Novo. Getúlio está por toda a parte, do diário, no momento em que a revolução vai im-
mal e do bem, na idéia de um estado autoritário, plodir, e ele anota lá: “Talvez só o sacrifício da mi-
mas também no que temos de mais progressista nha própria vida possa vir a resgatar um eventual
em termos de legislação trabalhista. fracasso”. Quer dizer, 24 anos antes, quando tudo
começou, ele já pensava que, em caso de fracas-
IHU On-Line – O senhor disse “que as melho- so, ele teria de se suicidar. Penso que nos últimos
res iniciativas políticas até hoje no Brasil 5 minutos, ele fez o famoso flash back da sua exis-
partiram dele”; está se referindo a essas tência. Pensou em São Borja, na infância, no co-
questões trabalhistas? meço de tudo, no dia 3 de outubro, na reconstitui-
Juremir Machado – É só pensar, por exemplo, ção da sua longa trajetória e nesse compromisso
que o voto feminino no Brasil veio na Era Vargas. que ele tinha com ele mesmo de se suicidar em
Antes do voto feminino na França. É uma coisa caso de fracasso.

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Samba e identidade nacional na era Vargas

Entrevista com Magno Bissoli

O músico e historiador Magno Bissoli, autor com a chamada Revolução de 1930, inseria-se
da tese de doutorado em História Caixa Preta: em contexto de circunstâncias sociopolíticas favo-
samba e identidade nacional na Era Vargas. ráveis. Valeu-se das condições objetivas da con-
Impacto do samba na formação da identidade na juntura internacional e logo da guerra mundial,
sociedade industrial: 1916-1945, apresentada em com a emergência e o fortalecimento de estados
maio de 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e nacionais e regimes autoritários. Na esfera econô-
Ciências Humanas (FFLCH) da USP, concedeu a mica, a idéia de nacionalização tomou vulto desde
entrevista a seguir ao IHU On-Line. Magno Bis- 1930. Expressou liderança de grupos da pequena
soli tem, desde 1974, desenvolvido suas ativida- burguesia, com correntes oligarco-governistas.
des na área da música tanto no palco como fora Sua ação não apresentou o sentido radical defen-
dele. No palco, trabalha como músico, composi- dido, então, pelo movimento operário. Naquele
tor, arranjador e band leader e, fora dele, é educa- momento, nacionalismo significaria restrição à ini-
dor e produtor. Em sua carreira, trabalhou simul- ciativa estrangeira tanto política como econômica.
taneamente com a música erudita, com jazz, com Entretanto, o projeto nacional varguista contava
MPB e com world music, apresentando desde con- com ideólogos que, com habilidoso projeto políti-
certos solo a performances com orquestra sinfôni- co-ideológico, conseguiu convencer a opinião pú-
ca. Viveu na Dinamarca, do início de 1981 ao fi- blica a uma “nova ordem”, centrada no fortaleci-
nal de 1983, onde se apresentou com os mais re- mento do Estado. Projeto de controle e manipula-
nomados músicos daquela região e, desde então, ção da população, buscando a integração nacio-
tem dividido suas atividades entre os dois países. nal, com metas que visavam a estabelecer o con-
Dentre suas atividades atuais, é percussionista da senso dos agentes sociais e do povo. A cultura, en-
Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São tendida como foco de educação cívica, foi organi-
Paulo, participa de grupos de câmara nas áreas da zada politicamente, com propósitos de “elevação
música erudita, popular e jazz, e desenvolve traba- do nível da cultura brasileira” e de fundamentar “a
lho pedagógico para o ensino de crianças. grandeza da Nação”, com base no valor intelectu-
al do indivíduo e na “educação profissional apu-
IHU On-Line – Qual era o conceito de identi- rada”. No entanto, não havia uma tolerância plu-
dade brasileira que se foi formando na Era ral neste projeto. Talvez se possa interpretar o
Vargas? Como ele usou as diversas expres- conceito de identidade nacional de Vargas por
sões culturais para traçar um imaginário suas palavras em entrevista publicada em 1938,
brasileiro? as quais indicavam ser necessário formar nas cri-
Magno Bissoli – O conceito de identidade brasi- anças e adolescentes, “a mentalidade capaz de le-
leira só pode ser compreendido à luz da perspecti- var o País aos seus destinos, mas conservando os
va ideológica, de um mito criado da necessidade traços fundamentais da nossa fisionomia histórica,
de se atingir objetivos específicos, impostos pelos com o espírito tradicional da nacionalidade”.
interesses do grupo ou camada social dominante. Invertia-se, assim, uma “fisionomia histórica”.
No caso em questão, o governo Vargas, instalado Quanto ao uso das expressões culturais, o varguis-

45
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mo utilizou-se de um poderoso aparato para con- que sentido o samba foi percebido como um
trolá-las, como para o controle da informação, potencial para uma “nova ordem”, centrada
cultuando a propaganda patriótica. Cinema, tea- no fortalecimento do Estado?
tro, música, ficaram subordinados ao poder públi- Magno Bissoli – O samba conquistou o Brasil e
co, que os moldava, legitimando o projeto de cul- o mundo. Ainda hoje é o centro do grande espetá-
tura nacional autoritária. Em discurso de 25 de ju- culo do carnaval. Talvez até por sua simplicidade
nho de 1934, Vargas descrevia o cinema como formal, ao surgir no ambiente urbano como resul-
elemento de influência direta sobre o raciocínio e tado de diferentes musicalidades, o samba possi-
a imaginação, divulgando o conhecimento sem a bilitou, primeiro ao setor de trabalhadores urba-
erudição dos livros. Pretendia ele aproximar os nos e depois ao conjunto da população da cidade,
núcleos humanos, como o Norte e Nordeste aos uma forma de expressão coletiva para a qual po-
centros urbanos, onde “se elabora o nosso pro- diam convergir as diferentes expressões corporais,
gresso”. Como um livro de imagens, as popula- musicais e lúdicas. Ele efetiva, portanto, como ele-
ções aprenderiam a amar o Brasil, nesta versão mento de encontro das massas trabalhadoras, o
urbana, industrializante e varguista. Outro aspecto encontro de diferentes experiências musicais no
importante foi a Rádio Nacional, estatizada, que ambiente do “terreiro”, da “gafieira”, das “festas”,
possibilitou criar uma orquestra brasileira, contan- sendo gradualmente assimilado pelos meios de
do com cavaquinho, violão e instrumentos de per- radiodifusão e pelo mercado fonográfico. Isso
cussão tocados por sambistas negros, dando aos porque a expressão negra no samba pode tornar
arranjos a ginga brasileira e a idéia de integração públicos sentimentos de seu aparente ser privado,
do negro. Este, como força de trabalho, seria fun- o que não seria tolerado que um branco o fizesse.
damental para o projeto da construção nacional. Defini, em minha tese, os conceitos de samba pe-
Tem-se, assim, o êxito do varguismo, ao criar uma rene e samba derivado. Neste, a autofagia e re-
“identidade brasileira” que sobreviveu, de muitas nascimento do samba implica sua crescente estili-
que seriam antes possíveis. zação. Abstraído de sua temática inicial, o samba
poderia, então, avançar como forma musical de
IHU On-Line – Por que o samba estava proibi- todos, eminentemente urbana e capaz, portanto,
do antes de 1930? de expressar uma identidade nacional, contrapos-
Magno Bissoli – Porque era uma manifestação ta a outras metropolitanas. Este processo de reco-
de negros, ex-escravos, considerada desclassifi- nhecimento acabou por incorporar um novo sam-
cante e perturbadora da ordem pública estabeleci- ba, com novos autores, novo ideário e novas re-
da. Assim como também o foram a capoeira e de- presentações sociais, posteriormente trabalhadas
mais manifestações religiosas e atividades típicas e moldadas em mass media. Dentre os derivados,
das culturas negras no Brasil. Após 1930, sua re- tem-se o “samba de branco”. O samba, para po-
cuperação se ajusta a um novo cenário em cria- der ser aceito como símbolo da música popular
ção. Em minha tese, trabalho com o conceito de nacional, teve que se embranquecer. Este proces-
profanização da cultura negra pelo colonizador, so foi gradual a partir dos anos 1920, culminando
que detinha apenas uma visão parcial daquele com a Aquarela do Brasil de Ary Barroso em
universo cultural. Este é um ponto fundamental 1938. Este embranquecimento significou que can-
para se compreender a cultura negra no Brasil, tores brancos gravaram sambas de autores ne-
mas tratar dele exige maior espaço do que o que gros, comprando, às vezes, a parceria, e também
se tem aqui. que compositores brancos passaram a compor na-
quele estilo. Portanto, as transformações não fo-
IHU On-Line – Quais as transformações pelas ram apenas na forma, mas na apropriação da cul-
quais foi passando para chegar a ser uma tura do negro pelo status quo. Ao mesmo tempo,
espécie de consenso nacional, inclusive o samba negro das comunidades que, com ele se
uma das marcas do Brasil no exterior? Em identificavam, serviu de elemento de cooptação

46
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

espiritual daquela massa trabalhadora para o pro- tado no rádio, fixou a idéia da grande Nação pro-
jeto de integração nacional do Estado. O samba, pagada pelo Estado na população. Lembremos,
saindo do seu ambiente para ganhar as ruas, criou ainda, que Vargas era popular entre os artistas.
vida própria no comércio musical da cidade. De Como deputado, em 1928, ele foi autor do decre-
fato, uma variante da industrialização que gira vo- to legislativo 5.492, que regulava a organização
lumoso capital em suas diferentes esferas de atua- das empresas de diversões e defendia os interes-
ção, como direitos autorais, produção de discos, ses de quem recebia direitos autorais. Em suas re-
partituras, instrumentos, o rádio entre outras. Isso cepções, Mário Reis e o Bando da Lua eram con-
e o seu poder de penetração e movimentação no vidados a tocar e cantar. Autores de sucesso com-
povo, possibilitaram que se criasse em seu redor a puseram músicas em sua homenagem, enaltecen-
aura da nacionalidade, espalhada pela cidade e do sua política e o Estado Novo. Sua veiculação
refletida em todo o País pelo rádio e pelo disco, denotou a percepção do poder comunicativo da
que eram, então, as principais mídias de comuni- música sobre a população, servindo como instru-
cação de massa, e em parte, também pelo cinema. mento de formação de opinião. Talvez isso possa
Em um contexto onde condições objetivas e reais explicar esta força na memória popular. Conheço
da vida material e a correlação entre as forças das pessoas que ainda hoje se lembram daquelas
classes às quais pertenciam os compositores ne- músicas.
gros (pobres) e os compradores do samba (bur-
guesia), determinaram que, embora houvesse IHU On-Line – No contexto histórico da Era
sido o agente da mudança histórica, ao negro fos- Vargas, que coincide, em parte, com a era
se subtraída a grandeza do seu papel, para ser de ouro do rádio, o samba e a música, em
dada a outrem. A tradição de um samba nacional geral, retratavam fortemente o contexto po-
é, portanto, criada, como as “tradições inventa- lítico, tanto como propaganda quanto como
das”, descritas por Eric Hobsbawm e Terence crítica. O que o senhor acha disso? Poderia
Ranger5. dar-nos alguns exemplos de letras musicais
da época?
IHU On-Line – Quais os paralelos que podem Magno Bissoli – Naquele período, a informação
ser traçados entre o samba, o rádio e a figu- era controlada pelo Departamento de Imprensa e
ra de Getúlio Vargas? Até que ponto esses Propaganda (DIP) e para passar pela censura, as
dois instrumentos ajudaram a deixar a me- letras das músicas tinham que conter metáforas,
mória de Vargas tão fortemente marcada na caso fizessem alusão a algo contrário à política do
memória popular brasileira? Governo. É o caso, por exemplo, de Wilson Batis-
Magno Bissoli – O samba, como expressão co- ta. Em parceria com Ataulfo Alves, compôs O
letiva, conquistou a população nas ruas e praças a Bonde São Januário, uma apologia ao trabalha-
partir das festas dos negros. O rádio foi posterior- dor. Entretanto, visto pela dubiedade de se au-
mente mais um dos meios para sua divulgação e to-enquadrar na forma textual, mas resistir na sua
difusão nacionais, como um elemento da cultura essência, não seria exagero, em uma visão bakhti-
urbana. O samba já era sucesso antes do estabele- niana, supor que, ao contrário, há uma satirização
cimento da rádio comercial no Brasil nos anos das instituições e poderes e da própria condição
1930. O varguismo usufruiu deste contexto e o de trabalhador, pois em lugar de “O bonde São
ampliou. Naquele período, alto-falantes foram Januário / leva mais um operário”, o significado
instalados em praças das pequenas cidades, le- da letra original e também o que o povo cantava
vando o rádio com a voz e as idéias de Vargas à era “O bonde São Januário / leva mais um otá-
grande parte do território nacional. O samba, can- rio”. Transformado em deboche pelo povo, evi-

5 Eric Hobsbawm e Terence Ranger (org.). A invenção das tradições. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dencia a permutabilidade do espírito popular en- IHU On-Line – Há algum paralelo que possa
tre os termos “otário” e “operário”. Em minha ser traçado entre a identidade nacional do
pesquisa, utilizei a música como fonte e muito samba na era Vargas e a música brasileira
pouco as letras. Entretanto, no sentido em que ex- tocada no cenário político atual?
pus o caso de Wilson Batista, muitas são as suas Magno Bissoli – Sim. A tentativa de reconstru-
composições que tratam do tema “trabalho”, ção de uma outra identidade das organizações co-
como Lenço no Pescoço, O Bonde São Januário, munitárias, que hoje tende a se generalizar no
Acertei no Milhar. De Assis Valente, a música Re- País.
censeamento (1940), gravada por Carmen Miran-
da diz: IHU On-Line – Algum outro aspecto que de-
“Em 1940, lá no morro, seje acrescentar e não foi perguntado?
começou o recenseamento Magno Bissoli – É conveniente esclarecer que
E o agente recenseador
não é gratuito encontrarmos nos pronunciamentos
esmiuçou a minha vida que foi um horror.
Quando viu a minha mão sem aliança, de Getúlio Vargas, a relação entre cultura e política.
encarou com a criança que no chão dormia Expressões como a “nacionalidade” e “grandeza
E perguntou se meu moreno era decente, da Nação” em geral se associam à “cultura brasilei-
se era do batente ou era da folia”.
ra” A ela subentende-se a idéia do apreço paterna-
Os visionários desta realidade tornaram-se resis- lista à cultura popular, ao samba, aos sambistas.
tências, como Assis Valente, Wilson Batista, Ge- Isso porque Vargas precisou da força produtiva dos
raldo Pereira, Moreira da Silva e outros. Eles em- afro-descendentes para elaborar a sua propagada
butiam uma psicologia em seus sambas, jogando “grandeza da nação”, a nacionalidade como tal. A
duplamente, pois buscavam driblar a censura, manipulação daquelas forças produtivas era fun-
mas, ao mesmo tempo, obter algum ganho para a damental para o crescimento industrial. Com efei-
sobrevivência. to, o momento histórico em que o samba é definiti-
vamente aceito, é o momento em que o negro se
IHU On-Line – Acha que, na atualidade, o torna operário industrial. E naquele modelo fascis-
samba e a música estão muito mais distan- ta do Estado, pressupõe-se que, com o desenvolvi-
tes da realidade política do País? Ou é a mento das novas gerações, os negros iriam sendo
realidade política que se distancia da coti- substituídos pelos mestiços6. Paradoxalmente, de-
dianeidade cantada pelo samba? sejava-se, ao mesmo tempo, promover uma “lim-
Magno Bissoli – O Brasil passa há anos por um peza” racial, que seria operada gradualmente. Ela
processo de afastamento, levado a cabo pelos me- enfatizava o desenvolvimento “eugênico” da
ios de comunicação e pela má qualidade do ensi- “raça”7. Vargas, portanto, afirmava um Estado au-
no público fundamental e básico. Há focos de re- toritário e se apoiava no mito de uma cultura popu-
sistência crítica e criativa artístico-cultural tanto lar. Toda a população teria que ser convocada para
quanto política, mas infelizmente sem espaço para “construir a nação”. Os sambistas, disciplinados
divulgação. Tem-se muito trabalho para encon- pela censura do DIP, deveriam abstrair da “malan-
trá-los. Só a luta comunitária pode constituir um dragem” e exortar ao trabalho, agindo no sentido
papel positivo no atual cancioneiro popular. Veja- de integrar negros e “mestiços” ao trabalho, ao
mos o exemplo do rap. projeto nacional.

6 A teoria da mestiçagem de Gilberto Freyre data da década de 1930. (Nota do entrevistado).


7 A propósito, vide discurso de 07 de setembro de 1938: “As comemorações da PÁTRIA e da RAÇA deverão ser, daqui por diante,
uma demonstração inequívoca do nosso esforço pelo levantamento do nível cultural e eugênico da mocidade, fonte de
revigoramento das energias nacionais e penhor seguro do progresso da Pátria”. (p. 337) [...] “É inacreditável despontar
solução ao problema do fortalecimento da raça, assegurando o preparo cultural e eugênico das novas gerações” (p. 313).
Apud Getúlio Vargas. As Diretrizes da Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. (Nota do entrevistado)

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Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios.

Entrevista com Eloísa Capovilla

A professora do PPG em História da Unisi- vida e, inclusive, sua morte, quando “sai da vida
nos, Eloísa Capovilla, organizadora da exposição para entrar na história”. Essa parte da exposição
Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios. concedeu a terá também, uma linha de tempo com os princi-
entrevista ao IHU On-Line. Capovilla é graduada pais acontecimentos de sua vida.
em História, mestre em História pela UFRGS, com
dissertação intitulada O Partido Republicano IHU On-Line – Ele Getúlio expressaria qual
Rio-Grandense e o poder local no Litoral Norte do olhar sobre a vida de Vargas?
Rio Grande do Sul, e doutora em História pela Eloísa Capovilla – Esse seria o olhar tanto dos
mesma instituição, tendo a sua tese o título O tea- adversários quanto das representações que se
tro da sociabilidade: os clubes sociais como espaço construíram a seu respeito. “Ele Getúlio”, na sua
de representação das elites urbanas alemãs e teu- conotação acusadora, como se estivessem apon-
to-brasileiras – São Leopoldo 1858-1930. É tando com o dedo, é a versão dos seus inimigos e
co-autora do livro Sociedade Orpheu: da história desafetos. Circulava, na época, um grande núme-
de um nome à identidade de um clube. Porto Ale- ro de charges e caricaturas, acentuando determi-
gre: Palotti, 1998. nados traços de Vargas. Parte desse material esta-
rá na exposição. Incluiremos também material de
IHU On-Line – A que se propõe a exposição alguns dos grandes opositores de Getúlio. O pri-
Eu Getúlio. Ele Getúlio. Nós Getúlios? meiro deles era o jornalista Carlos Lacerda, da
Eloísa Capovilla – Surgiu de uma necessidade UDN, diretor do jornal Tribuna da Imprensa. Ele
de resgatar diversos olhares sobre o ex-Presidente era seu principal inimigo desde antes da eleição
Getúlio Vargas, no período de 1950 a 1954, de 1950. Foi contra o populismo e contra a elei-
quando governou como presidente eleito. Será ção, porque partia do princípio de que alguém
uma exposição basicamente visual: com fotos, al- que havia sido ditador não ia poder governar de-
gumas legendas, músicas, vídeo e outros materiais mocraticamente. Ele era autor de discursos fero-
sobre Getúlio que poderão ser acessados nos zes contra Vargas, criticava muito o fato de ele es-
computadores que estarão disponíveis. tar governando com amigos e parentes ao redor,
inclusive, Lacerda chegou a dizer que não foi Ge-
IHU On-Line – Qual seria o olhar de “eu túlio quem escreveu a carta-testamento, que ela já
Getulio”? estaria escrita e ele simplesmente a modificou.
Eloísa Capovilla – Fotos do Presidente, como Esse discurso para um país getulista é quase um
ele se mostrava na ação política, isto é, Getúlio go- sacrilégio. Um outro desafeto de Getúlio era o jor-
vernando o Brasil. Ele como presidente eleito, nalista David Nasser, da revista O Cruzeiro. Entre
com uma votação extremamente expressiva que os historiadores, lembro de Affonso Henriques,
se propõe a uma política diferenciada. As fotos re- que fez uma leitura histórica do período com base
gistram os diversos momentos dessa política, des- em denúncias e erros do governo Vargas. Mas,
de a campanha eleitoral, passando por suas diver- “ele Getúlio” quer também mostrar as representa-
sas ações governamentais, seus discursos, sua ções mais diversas construídas sobre o Presidente

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Vargas. Assim, teremos, a exposição, um busto do derada como os anos dourados, a época de
ex-Presidente, que pertence ao pai de uma colega ouro. Foi uma época de desenvolvimento, de
nossa da Unisinos, e era de seu avô. Haverá músi- crescimento nas áreas de cultura, teatro, cine-
cas que falavam do então Presidente e, inclusive, ma, os anos de ouro do rádio, o surgimento da
a receita de um pudim chamado Getúlio Vargas8, televisão. Foi parte do período mais democráti-
que é feito por uma senhora de São Leopoldo co do País até então, porque o governo Dutra foi
(Vovó Verlaine), que o recebeu das gerações an- de transição, e um governo de transição nunca é
teriores, e que é feito de coco e abacaxi. muito democrático. Esse florescer da democra-
cia se viu expressado no florescer cultural. Até o
IHU On-Line – Qual seria o significado do futebol se tornou extremamente importante
“nós Getúlios” na exposição? para o Brasil a partir de 1950, em que se cons-
Eloísa Capovilla – Essa parte tenta resgatar o truiu o Maracanã para o mundial sediado no
que ficou de Getúlio 50 anos depois, de uma for- Brasil (o qual tínhamos certeza de que ganharía-
ma original. Entrevistaremos uma série de pessoas mos). Em 1954, uma brasileira, Marta Rocha,
chamadas Getúlio, perguntando a respeito de seu foi a segunda mulher mais bonita do mundo
nome. Alguns dirão que não tem nenhuma rela- (embora tivesse duas polegadas a mais nos qua-
ção com Vargas, outros que talvez tenha. Isso des- dris); até esse tipo de coisas era intensamente vi-
cobriremos com as entrevistas. Consideramos que vido pelo brasileiro em um clima de alegria e es-
esta é também uma forma de perpetuação do perança certamente impregnados do sentimen-
personagem. to de democracia. Havia uma forte crença de
que viriam tempos melhores. É também o tem-
IHU On-Line – Em que vai consistir a oficina po da Bossa Nova, o cinema tenta mostrar um
que a senhora ministrará no dia 24 sobre a tipo de brasileiro. É claro que não era tudo cor
cultura na Era Vargas? de rosa, mas a abertura e o avanço das forças
Eloísa Capovilla – A década de 1950 foi mui- populares refletem-se muito na cultura, e isso é
to importante no Brasil. Para muitos, foi consi- o que analisaremos na oficina.

8 A coluna do jornalista Ancelmo Góis, publicada no jornal O Globo, 15-8-04, noticia que Getúlio Vargas também é nome de um
legume. Tanto que uma leguminosa getuliana será plantada dia 24 de agosto no Museu da República, no Rio de Janeiro, em
homenagem ao Presidente. (Nota do IHU On-Line).

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Leonel de Moura Brizola

Biografia Jardim da Paz. Não houve cerimônias oficiais, so-


mente alguns pronunciamentos de autoridades do
As informações sobre a vida e a obra de Leonel Estado e de companheiros políticos que falaram
Brizola, que apresentamos a seguir, podem ser com- sobre o líder trabalhista. Brizola foi sepultado no
plementadas nos sítios http://busca.estadao.com.br/ jazigo da família, onde já estavam sua mulher
agestado/noticias e http://www.cati.com.br/noti- Neuza Goulart Brizola e o ex-presidente João
cia.asp?CodNotic=308 Goulart.

A notícia de sua morte Leonel Brizola, um político radical e


apaixonado
O presidente nacional do PDT, Leonel Brizo-
la, morreu na noite do último dia 21 de junho de Crítico, combativo, radical, exatamente
2004, aos 82 anos, de enfarte. Ele estava interna- como era já nos idos de 1945 – então com 23
do no Hospital São Lucas, em Copacabana, bair- anos – quando entrou no recém-fundado Partido
ro onde morava no Rio de Janeiro. Brizola teve Trabalhista Brasileiro e mergulhou de cabeça na
uma infecção pulmonar e foi submetido a uma ba- causa do trabalhismo, pregada por Getúlio
teria de exames. Por volta das 18 horas, quando já Vargas.
estava liberado, o ex-Governador do Rio de Ja- E antes não tinha sido diferente. Nascido de
neiro e do Rio Grande do Sul teve uma parada família humilde, o pequeno Leonel bem cedo tra-
cardiorrespiratória e foi transferido para a emer- balhou como engraxate e ascensorista e batalhou
gência, onde recebeu sedativos. Os médicos, en- muito, depois, para completar o curso de Enge-
tão, passaram a lutar para reanimá-lo, mas Brizola nharia em 1949. Mas foi um misto de radicalismo
não reagiu. e valentia que fez dele uma figura nacional.
O diretor da Unidade Cardiointensiva do Embalado nas campanhas do PTB gaúcho,
Hospital São Lucas, Marcos Batista, informou que foi deputado federal em 1954. No ano seguinte,
a morte de Brizola ocorreu às 21h20min. O médi- prefeito de Porto Alegre, e em 1958, aos 36 anos,
co contou que, durante a tentativa de reanimar o elegeu-se Governador do Rio Grande do Sul.
ex-Governador, ele recebeu um marca-passo. E
confirmou a causa oficial da morte: enfarte agudo
do miocárdio. Do Palácio Piratini para o palco da po-
O corpo do ex-Governador do Rio Grande lítica nacional foi um simples passo
do Sul e do Rio de Janeiro foi enterrado dia 24 de
junho, em São Borja, na fronteira oeste do Rio O País vivia, a meio caminho do governo de
Grande do Sul. A cidade parou para acompanhar Juscelino Kubitschek, um intenso debate naciona-
o cortejo, que saiu da Igreja Matriz de São Francis- lista, mais à esquerda, e um modelo econômi-
co de Borja, no centro. O povo seguiu a pé o cor- co-liberal, pró-americano, à direita. O engenhei-
tejo por quase cinco quilômetros até o cemitério ro, como começavam a chamá-lo, simplesmente

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

estatizou empresas multinacionais e começou um tenceu a Passo Fundo (RS) até 1931, quando pas-
processo de reforma agrária. sou à jurisdição de Carazinho (RS). Seu pai, o la-
A renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o le- vrador José de Oliveira Brizola, morreu na Revo-
vou a criar e comandar uma “cadeia da legalida- lução Federalista de 1923, lutando nas tropas de
de” para garantir a posse do vice-presidente João Joaquim Francisco de Assis Brasil, que combati-
Goulart, que os militares da época não aprova- am os republicanos de Borges de Medeiros.
vam. Microfone na mão, voz dramática, ele falava Alfabetizado por sua mãe, Oniva de Moura
em patriotismo e desafiava os militares. Pregava Brizola, começou na escola primária em 1931, em
em comícios e auditórios, em defesa das chama- Passo Fundo. Em 1936, matriculou-se no Instituto
das reformas de base. Agrícola de Viamão, perto de Porto Alegre, for-
mando-se técnico rural em 1939. Nessa época,
trabalhou como graxeiro numa refinaria em Gra-
Modelos vataí (RS). Embora de origem católica, Brizola dei-
xou transparecer outra marca do passado: a in-
Em 1962, foi o deputado mais votado do fluência do pastor metodista Isidoro Pereira. Ain-
País, pelo Rio de Janeiro. Ele, do PTB, de um da adolescente, Brizola morou na casa de Isidoro
lado, e Carlos Lacerda, do outro, pela UDN, trava- durante dois anos. Chegou a fazer pregações na
ram uma batalha histórica. Cada um defendia um igreja do pastor. “As falas de Brizola são rechea-
modelo para o Brasil. Lacerda e os militares ven- das de imagens rurais, de inspiração bíblica. Ele
ceram, em 1964, e Brizola foi cassado. fala através de parábolas”, comentou o vereador
Exilado no Uruguai, foi de lá expulso em do PSB Saturnino Braga, ex-prefeito do Rio. Ante
1977, indo viver nos Estados Unidos e depois em as eventuais contestações ao domínio que exercia
Portugal. Sua volta ao País, com os anistiados de no PDT, Brizola costumava utilizar uma de suas
1979, foi marcada por um trauma: a sigla PTB foi imagens favoritas. Dizia que os dissidentes estão
“tomada” dele, na reorganização partidária de en- “costeando o alambrado”, referência aos bois que
tão, por Ivete Vargas, e lhe restou fundar um novo estão prestes a ultrapassar as divisas de uma fa-
partido, o Partido Democrático Trabalhista (PDT). zenda. Isidoro significou para Brizola o acesso a
Pelo PDT, ele foi eleito duas vezes Governa- um conhecimento mais cultivado.
dor do Rio de Janeiro, em 1982 e em 1990. Ten- Em 1940, mudou-se para Porto Alegre e ob-
tou duas vezes a Presidência, perdendo para Fer- teve emprego no Serviço de Parques e Jardins da
nando Collor em 1989 e para Fernando Henri- Prefeitura. Para continuar seus estudos, matricu-
que Cardoso em 1994. Amargou uma terceira lou-se no Colégio Júlio de Castilhos para fazer o
derrota em 1998, como vice de Luiz Inácio Lula curso supletivo. Em 1945, começou a cursar
da Silva. Restavam-lhe o prestígio internacional, Engenharia Civil na Universidade Federal do Rio
como militante da Internacional Socialista – da Grande do Sul, formando-se em 1949.
qual ainda era vice-presidente – e a amizade com Em 1º de março de 1950, Brizola casou-se
figuras, como Mário Soares, Felipe Gonzalez e ou- com Neuza Goulart, irmã do então deputado esta-
tros líderes. dual João Goulart. O casal teve três filhos: João
Nos últimos dez anos, seu PDT perdeu espa- Otávio, José Vicente e Neusa, que lhes deram oito
ço na esquerda nacional, e ele passou a criticar netos. O padrinho do casamento foi o próprio Ge-
Lula e o PT. túlio Vargas, que, em 3 de outubro, foi eleito Pre-
sidente da República. No mesmo pleito, Brizola foi
reeleito deputado estadual. Em março de 1951,
Saiba mais sobre Brizola Brizola tornou-se líder do PTB na Assembléia Le-
gislativa e pouco depois se candidatou a prefeito
Leonel de Moura Brizola nasceu em 22 de ja- de Porto Alegre. Perdeu o pleito, em 1º de novem-
neiro de 1922, no povoado de Cruzinha, que per- bro, por pouco mais de 1% dos votos.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Em 1952, foi nomeado secretário de Obras do do Rio Grande do Sul. Criou a Aços Finos Piratini
Governador Ernesto Dornelles (PTB). Dois anos e a Companhia Rio-Grandense de Telecomunica-
depois, foi eleito deputado federal pelo PTB em ou- ções e pressionou o Governo Federal a instalar
tubro de 1954. Tomou posse na Câmara em 1955, uma refinaria no Estado. Encampou a Compa-
mas ficou pouco tempo na Casa: em outubro de nhia Telefônica Rio-Grandense, uma subsidiária
1955, foi eleito prefeito de Porto Alegre. Sua gestão da ITT. No setor de educação, construiu 5.902 es-
foi marcada pela construção de escolas primárias e colas primárias, 278 escolas técnicas e 131 ginási-
melhoria dos transportes coletivos na cidade. os e escolas normais.
Em outubro de 1958, foi eleito Governador Em 1960, apoiou as candidaturas do general
gaúcho, com mais de 55% dos votos. Empossado Henrique Lott (PSD) à Presidência e de João Gou-
em janeiro de 1959, criou a Caixa Econômica Es- lart (PTB) para vice. Lott perdeu, mas Goulart foi
tadual e adquiriu o controle acionário do Banco eleito vice de Jânio Quadros.

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A categoria populismo não serve para caracterizar
a democracia brasileira

Entrevista com Jorge Luiz Ferreira

O conceito de populismo mascara projetos apoiavam-se nas pesquisas dos demais co-autores
políticos importantes, não oferece ferramentas (os historiadores Angela de Castro Gomes, Maria
para a compreensão da história política brasileira Helena Rolim Capelato, Lucília de Almeida Ne-
contemporânea e, sobretudo, descaracteriza a de- ves, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa,
mocracia nacional, vendo as massas como subser- Eliana G. da Fonte Pessanha, Regina Lúcia M.
vientes e incapazes de votar. Essa é a opinião do Morel, Daniel Aarão Reis Filho).
professor Jorge Ferreira que, com outros historia-
dores, está empenhado em rever e combater o re- IHU On-Line – Como o senhor define o popu-
ferido conceito, recusando-se a utilizá-lo, conside- lismo brasileiro?
rando a sua imprecisão. Ele é professor no Depar- Jorge Ferreira – O conceito de populismo foi
tamento de História da Universidade Federal Flu- criado e elaborado numa determinada conjuntura
minense. Graduado e mestre em História pela política brasileira, na segunda metade dos anos
Universidade Federal Fluminense (UFF), escreveu 1960. Políticos, militares, jornalistas e sociólogos
a dissertação “Trabalhadores do Brasil. A cultura elaboraram o conceito no sentido de desmerecer e
política popular no primeiro Governo Vargas descaracterizar a democracia brasileira de 1945 a
(1930-1945)”,. O professor é doutor em História 1964. O conceito de populismo remete a uma per-
Social pela Universidade de São Paulo (USP). Sua cepção negativa da política. Quando dizemos “o
tese de doutorado intitula-se “Prisioneiros do político fulano de tal é um populista”, insinuamos
mito: cultura e imaginário político dos comunistas que ele foi eleito devido à sua capacidade de ma-
no Brasil (1930-1956)”. Ferreira é autor de Tra- nipular e de enganar o povo. Portanto, o eleitora-
balhadores do Brasil. O imaginário popular. do não sabe votar. Trata-se de uma massa de elei-
Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Var- tores despreparados e destituídos de discernimen-
gas, 1997; Prisioneiros do mito. Cultura e to político. A democracia, por sua vez, sofre pela
imaginário político dos comunistas no Bra- deformação de caráter de líderes políticos sem es-
sil (1930-1956). Rio de Janeiro/Niterói: Mauad/ crúpulos. Assim, o eleitorado e o regime democrá-
Eduff, 2002. Como organizador, publicou, em tico são desmerecidos. Impreciso teoricamente,
parceria com Mariza de Carvalho Soares, A His- conceito não dá conta de diversas realidades ao
tória vai ao Cinema. Rio de Janeiro, Civilização apresentar em uma mesma dimensão, em um
Brasileira, 2001. Com Lucília de Almeida Neves, mesmo patamar, personalidades de diferentes tra-
organizou O Brasil Republicano, em 4 volu- jetórias. Avaliando os projetos políticos de cada
mes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. um, o que tem em comum Carlos Lacerda e Leo-
Organizou, também, O populismo e sua histó- nel Brizola? Getúlio Vargas e Eurico Dutra? Jusce-
ria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. lino e Ademar de Barros? Alguns dizem que o ge-
Foi especialmente a partir dessa obra que ele con- neral-presidente João Figueiredo também era um
cedeu a entrevista para o IHU On-Line, ressal- populista; depois foi a vez de Fernando Collor e
tando sempre que muitas das opiniões emitidas de Fernando Henrique Cardoso – este último cha-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mado de neo-populista; agora o presidente Lula mida por uma sociedade de massa. Isto es-
igualmente recebe o insulto. Mas que conceito é tava incorreto?
esse que dá conta de realidades das mais diferen- Jorge Ferreira – O livro de Octávio Ianni, O co-
tes, das mais distintas? Afinal, Lula, Lacerda e Du- lapso do populismo no Brasil10, situa-se em um
tra são iguais? O conceito de populismo, desse contexto muito preciso – sua primeira edição é de
modo, encobre projetos importantes, permitindo 1968. A leitura do livro tem que ser contextualiza-
que o projeto liberal udenista se iguale ao projeto da no conflituoso período das presidências de
nacionalista e estatista dos trabalhistas e comunis- Castelo Branco e Costa e Silva. O que o autor está
tas, por exemplo. Perde-se as diferenças, apaga os dizendo é o seguinte: a sociedade brasileira está
projetos políticos. É um conceito, sobretudo, que diante de uma ditadura que se fecha cada vez
descaracteriza a democracia brasileira: o eleitora- mais. A ditadura não tem mais nada a oferecer à
do não sabe votar, porque se deixa manipular por sociedade brasileira, nem em termos econômicos.
líderes espertos, demagógicos, mentirosos ... Argu- Ianni, afinado com as expectativas das esquerdas,
mento, aliás, utilizado pelos generais durante a di- não admitia sequer a possibilidade de uma expan-
tadura para impedir a livre manifestação popular são econômica que se avistava com o “milagre”,
por meio do voto. Nesse sentido, eu não considero mas apenas via o impasse. Desse modo, no livro,
Leonel Brizola um político populista, como não ele apresentava duas alternativas à sociedade bra-
considero nenhum político brasileiro populista. Isso sileira: a primeira, oferecida pela ditadura que se
não significa que não existam políticos que façam fechada cada vez mais, o fascismo; a segunda, a
demagogias e que tentam manipular o eleitorado. derrubada da ditadura com a implantação do so-
Mas tais práticas não são originalidade brasileira. cialismo. Muitos jovens universitários, ansiosos
Políticos cínicos e sem escrúpulos existem no Brasil por pegarem em armas, leram o livro com muita
e em qualquer democracia ocidental. satisfação. O que eu quero ressaltar, nesse mo-
mento, é que não se trata de desmerecer as refle-
IHU On-Line – Quando esse conceito começa xões de Weffort e Ianni sobre o populismo, mas
a surgir? que é preciso situá-las numa determinada conjun-
Jorge Ferreira – Nos anos 1950, quando se insti- tura p olítica muito precisa. É a conjuntura da pri-
tui o chamado Grupo de Itatiaia, um grupo de so- meira fase do regime militar, de Castelo Branco e
ciólogos que se reunia em Itatiaia, cidade que fica Costa e Silva. Nessa época, a direita que derrubou
a meio caminho de Rio e São Paulo. Um desses João Goulart necessitava desmerecer o presiden-
intelectuais, não identificado, escreveu um artigo te, dizendo que ele era subversivo, corrupto, inca-
para entender o fenômeno Ademar de Barros em paz, despreparado, etc. Mas as esquerdas fizeram
São Paulo, chamado “Que é o ademarismo”, no o mesmo, descrevendo-o como um líder burguês
qual diz que o populismo é o resultado da conjun- de massa que colocava um véu sobre os olhos da
ção de uma burguesia fraca, de um proletariado classe operária, etc. Os liberais também torceram
ainda em formação e de um líder carismático. Co- o nariz para o projeto de reformas de base de Jan-
meçou, desse modo, a se formar o embrião de go – e daí acusá-lo de agitador e demagogo. Ou
uma tendência sociológica que teve o seu trabalho seja, havia uma convergência para desqualificar
mais sofisticado na obra de Francisco Weffort “O aquela liderança trabalhista. Nesse sentido, o con-
Populismo na Política Brasileira”9. ceito de populismo surgiu como adequado às ne-
cessidades de vários grupos sociais que queriam
IHU On-Line – Octávio Ianni, quando escreve desqualificar a democracia brasileira na época de
sobre o colapso do populismo no Brasil, re- João Goulart. É preciso repensar sobre isso, com
fere-se a ele como uma forma política assu- calma, porque senão corremos o risco de repetir

9 O Populismo na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 (Nota do IHU On-Line).
10 O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975 (Nota do IHU On-Line ).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

chavões, a exemplo de que o fulano foi eleito por- ção, no desenvolvimento baseado no capital na-
que é um populista. Mas será que existe um indiví- cional e estatal. Quem votava na UDN também sa-
duo esperto o suficiente para enganar milhões de bia o que estava fazendo: era anticomunista e an-
outras pessoas? E que milhões de pessoas são es- tigetulista, votava contra greves, votava com o ali-
tas incapazes de votar corretamente e que sempre nhamento incondicional aos Estados Unidos e
erram nas suas escolhas? Quem dizia isso era os pela abertura econômica. Existia fidelidade do
políticos da UDN que, ao perderem as eleições para eleitor com seu partido. Quem votava no PTB não
o PTB e o PSD, alegavam que o povo não sabia vo- votava na UDN, e vice-versa. Os políticos, via de
tar porque, claro, não votava nos seus candidatos. regra, eram fiéis aos seus partidos. PTB, UDN e
Temos que ter cuidado com tais argumentos para PSD eram partidos organizados nacionalmente e,
não incorrer nos mesmo equívocos da crise de sobretudo os dois primeiros, consistentes em ter-
1964. Tanto a democracia foi desvalorizada, tanto mos ideológicos. Somente no estado de São Pau-
foi desmerecida, que entrou em colapso. lo os três partidos eram fracos: a UDN era nada, o
PTB fraquíssimo e o PSD um zero. Ali sim, existiam
IHU On-Line – Pode-se dizer que os teóricos personalidades acima dos partidos, como Ademar
formuladores do conceito não perceberam de Barros e Jânio Quadros – como alegou Wef-
a realidade brasileira na sua totalidade? fort. Portanto, não se pode tomar a realidade de
Jorge Ferreira – Em um certo momento, nos São Paulo como se fosse o Brasil.
anos 1950-1960, quem escrevia a história brasi-
leira, quem produzia pesquisa de ponta, era a Uni- IHU On-Line – Mas o trabalhismo não tinha
versidade de São Paulo, sobretudo na Pós-Gra- também líderes com características
duação em Sociologia e Ciências Políticas, onde semelhantes?
profissionais capacitados produziam conhecimen- Jorge Ferreira – No âmbito do trabalhismo, Getú-
to original. No entanto, e não sem razão, dedica- lio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, todos os
vam-se àquilo que estava mais perto deles, São três, começaram lá de baixo e foram subindo dentro
Paulo. Surgiram, assim, trabalhos da maior im- do partido. Mesmo Getúlio Vargas, no Partido Re-
portância na historiografia brasileira sobre indus- publicano Rio-grandense, começou nos quadros de
trialização, economia cafeeira, classe operária, base e foi subindo. Depois Goulart e Brizola come-
partidos políticos, mas tomando o estado de São çaram das bases e também foram subindo. Jango
Paulo como referência. Ora, nós sabemos que começou no diretório do PTB em São Borja. Brizola
São Paulo é o estado mais importante da Federa- começou na ala estudantil do PTB gaúcho. Eles não
ção em termos econômicos, mas o Brasil não é eram líderes carismáticos que se impuseram sobre o
São Paulo. As realidades do país são muito distin- partido; cresceram com o partido. Há outros aspec-
tas. Por exemplo, o livro do Weffort, já referido, tos a considerar: em um certo momento, a partir de
diz que no Brasil, no período de 1945 a 1964, os 1951, houve a aliança do PTB com o PCB. Forman-
partidos eram inexpressivos e o mais importante do chapas, trabalhistas e comunistas, unidos, toma-
eram as lideranças carismáticas. Isso pode ter ram vários sindicatos importantes até formarem o
acontecido em São Paulo, mas não no resto do CGT. Durante o governo de João Goulart, o movi-
país, onde predominavam três partidos consisten- mento sindical deflagrou uma série de greves.
tes, o PTB, a UDN e o PSD, sem contar o PCB que Como, então, sustentar a tese de que líderes caris-
estava na ilegalidade. Esses partidos eram fortes e máticos controlam as massas, que eles estão acima
organizados nacionalmente. Pelo menos o PTB e do movimento operário, do sindicalismo, dos parti-
a UDN eram partidos ideológicos, tinham projetos dos? Com o avanço da pesquisa, a tese não se sust
políticos reconhecidos pela população. Quem vo- enta. A história é muito mais complexa, é muito
tava no PTB sabia o que estava fazendo. Votava mais complicada. Não se pode explicar a história de
no nacionalismo, na reforma agrária, no rompi- um país, de toda uma sociedade, a partir da dema-
mento com capital estrangeiro, na industrializa- gogia de suas lideranças políticas.

56
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Não há nada de positivo a res- um poder excessivo que, na realidade, não teve –
gatar do conceito de populismo? A entrada porque, teoricamente, impraticável.
das massas na estrutura do poder não foi le-
gitimada por movimentos populistas, como IHU On-Line – A maneira como o senhor se
afirmou Octávio Ianni? refere aos partidos de então dá a idéia de
Jorge Ferreira – A crítica que fazemos ao con- que os atuais são muito fracos e que tínha-
ceito de populismo refere-se à sua utilização para mos fortalezas partidárias no passado. Qual
explicar a política brasileira, como também à ma- é a avaliação que o senhor faz deles?
neira como os trabalhadores alcançaram a cida- Jorge Ferreira – No passado pré-1964, os parti-
dania social. Foi após a Revolução de 1930 que dos tinham projetos políticos mais delineados e
ocorreu, no Brasil, o processo em que os assala- isso era percebido para a população. A força dos
riados tiveram acesso aos direitos sociais e, após projetos do PTB e da UDN foi tão marcante que
1945, aos direitos políticos. Enquanto na expe- suas proposições, antes mencionadas, ainda
riência européia os trabalhadores, primeiro, tive- constituem tradições muito presentes na política
ram acesso aos direitos de votar e ser votado brasileira. Exemplo: o projeto neo-liberal do presi-
para, mais adiante, alcançarem os direitos so- dente Fernando Henrique Cardoso pode ser com-
ciais, no caso brasileiro, ocorreu o processo in- preendido como sendo herdeiro das propostas
verso. Ou seja, no Brasil, os trabalhadores se tor- udenistas no plano econômico levadas às últimas
naram cidadãos não pelo direito de votar e ser conseqüências. Em outro aspecto, de onde vem a
votado, mas com a obtenção de seus direitos so- tradição que afirma ser necessária a existência de
ciais: regulamentação da jornada de trabalho, fé- empresas estatais em setores estratégicos? Essa
rias, descanso semanal remunerado, pensões, idéia nasceu em algum lugar, entre os anos 1930 e
aposentadorias, etc. Isso marcou a cultura políti- 1950. A idéia de que é preciso fortalecer o Estado,
ca brasileira. A partir dessa experiência elabo- defender o patrimônio público, realizar a reforma
rou-se uma forte crença que vincula o ideal de ci- agrária, garantir as leis sociais, entre outras medi-
dadania plena aos direitos sociais e não aos direi- das nacionalistas, vem do nacional-estatismo de
tos políticos. Nesse sentido, os trabalhadores, a trabalhistas e comunistas. As bandeiras das es-
partir dos anos de 1930, tiveram acesso à cidada- querdas pré-1964, do PCB e do PTB, estão pre-
nia com leis sociais e reconheceram o papel do sentes hoje. Não é casual que alguns analistas, in-
Estado naquele processo. A partir de 1945, par- clusive Leonel Brizola, diziam que Lula seria o
celas significativas do eleitorado identificaram herdeiro do trabalhismo.
seus direitos sociais com a pessoa de Getúlio Var-
gas e, conseqüentemente, com o PTB e o traba- IHU On-Line – O legado dele, o trabalhismo,
lhismo. Mas isso é um processo de reconheci- o PDT, sobreviverão?
mento, resultado de experiências vividas pelos Jorge Ferreira – Eu acho que o PDT, com o de-
próprios trabalhadores – e não de manipulação. saparecimento de Leonel Brizola, tem condições
Os trabalhadores, nesse sentido, fizeram suas es- de crescer em termos organizacionais. Creio que,
colhas. Estado e trabalhadores interagiram um até então, o partido vivia uma situação muito si-
com o outro. Contudo, na ótica do populismo, milar a do que o antigo PTB vivia com Getúlio
tudo não teria passado de manipulação das mas- Vargas. O líder era muito maior que o partido. O
sas. Getúlio Vargas foi um político importante, PTB era muito pequeno diante de Vargas e da sua
sem dúvida, mas, em termos teóricos, não se liderança. Ele não tinha como crescer diante da
pode eleger uma personalidade política a uma monumentalidade de um mito político vivo. O an-
categoria de homem todo poderoso, capaz de tigo PTB só cresceu depois da morte de Vargas.
manipular milhares de pessoas e continuar, pelas Sem o grande líder, outras inúmeras lideranças ti-
décadas seguintes, sendo lembrado de maneira veram condições de se projetarem. De maneira si-
positiva pelos mesmos trabalhadores. É dar a ele milar, PDT era muito pequeno diante do Brizola.

57
O homem de um único partido

Entrevista com Maria Celina Soares D’Araujo

O cenário político do século XX não pode ser com uma grande liderança pessoal, políticos que
compreendido sem olhar para Leonel Brizola, não tinham apreço muito grande pelas instituições
João Goulart e Getúlio Vargas, contudo podemos representativas, que achavam mais importante
olhar para Brizola antes e depois do exílio, porque mobilizar a massa, articular diretamente com o
seus perfis são bem diferentes. Essa é a opinião da povo, pensar as grandes questões nacionais, políti-
professora Maria Celina D’Araujo, da Universida- cos populistas. Assim foram também Getúlio [Var-
de Federal Fluminense (UFF) e do Centro de Pes- gas] e, em parte, João Goulart. Até 1964, não po-
quisa e Documentação de História Contemporâ- demos dizer que Brizola era um grande democrata.
nea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas Era, sim, um grande líder político, um grande nacio-
(CPDOC/FGV). Maria Celina Soares D’Araújo é nalista, um homem que tinha uma visão muito for-
graduada em Ciências Sociais pela UFF, é mestre te do Estado, que tinha, para ele, um papel estraté-
em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) gico para o desenvolvimento brasileiro, por isso ini-
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de ciou as nacionalizações das companhias estrangei-
Janeiro (IUPERJ) e sua dissertação intitula-se O se- ras no Brasil. Criticava muito o Congresso Nacio-
gundo governo Vargas. A professora é doutora em nal. Dizia que o Congresso era reacionário, conser-
Ciência Política e Sociologia também pelo IUPERJ, vador e obviamente criticou muito as Forças Arma-
e o título de sua tese é A ilusão trabalhista. O PTB das. Por outro lado, ele teve um papel importante
de 1945 a 1965. Seu pós-doutorado foi cursado em 1961, na cadeia da legalidade, mas, em 1964,
na University of Florida, em Gainesville, Estados podemos olhar para Brizola de dois lados: de um
Unidos. É autora de, entre outros, O Segundo Go- lado resistiu ao golpe militar, mas de outro lado, ele
verno Vargas: Democracia, Partidos e Crise Políti- não facilitou muito as coisas para João Goulart. O
ca. Rio de Janeiro: Zahar, 1982; O Golpe Silenci- governo João Goulart radicalizou, e ele não soube
oso: As Origens do Estado Corporativo. Rio de Ja- negociar, nesse momento, uma composição, nem
neiro: Rio Fundo, 1989; Getulismo e Trabalhis- com Goulart, nem com a direita. No entanto, teve
mo. São Paulo: Ática, 1989; A Era Vargas. São uma posição coerente. O interessante, em Brizola
Paulo: Moderna, 1998; O Estado Novo. Rio de Ja- e, talvez isto seja um aspecto relevante, é que ele foi
neiro: Zahar, 2000; Capital Social. Rio de Janeiro: uma pessoa sempre coerente. Ele não fazia estelio-
Zahar, 2003. nato eleitoral, não dizia uma coisa e fazia outra.
Teve muita ousadia, muita coragem de reagir aos
IHU On-Line – Qual foi contribuição de Leo- golpes de 1961 e de 1964, só que em 1964 ficou
nel Brizola à política brasileira? isolado, e o apoio que ele esperava da sociedade,
Maria Celina Soares D’Araujo – Brizola é de dos grupos dos onze11, não aconteceu, porque es-
uma geração de políticos típica dos anos 1950, no sas pessoas não tinham recursos, armas para
Brasil. Políticos muitos personalistas, carismáticos, reagir.

11 Denominação de grupos de militantes sob a influência de Brizola, integrado por onze pessoas, uma das quais estava ligada a
outro “grupo dos onze”, e assim sucessivamente, organizando uma rede de apoiadores, que fracassou. (Nota do IHU On-Line).

58
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – É possível assinalar diferenças o PTB em 1979, houve uma articulação política
em Brizola que volta com a anistia pelas mãos do poderio, a sigla do PTB, que era si-
Maria Celina Soares D’Araujo – Sim. Brizola gla dele, foi para as mãos da Ivete Vargas, mas ele
que vem depois da anistia é democrata, no senti- criou um outro partido trabalhista e ficou nele até
do de respeito à democracia representativa, de o fim. Logo, ele teve coerência partidária e perma-
respeito às instituições, à ordem constitucional. nência ideológica.
Continua sendo o caudilho, o centralizador. O
PDT, partido que ele criou, como herdeiro do tra- IHU On-Line – Que aspectos permaneceram
balhismo, foi sempre muito ligado à sua figura, constantes na sua proposta?
nunca houve uma liderança concorrente interna. Maria Celina Soares D’Araujo – Tem duas
Sempre que essa liderança concorrente aparecia, questões importantes, a questão do nacionalismo
ela saía do partido, Marcelo Alencar, César Maia, econômico e a educação. Ele fez um bom Gover-
Saturnino Braga, foram lideranças que cresceram no no Rio Grande do Sul, quando foi Governa-
dentro do PDT, mas que tiveram que deixar o dor. Já quando foi Governador do Rio de Janeiro,
PDT. Brizola conta com esse estilo de política se- duas vezes, ele insistiu nessa política de educação,
nhorial. Ele mandava no partido, que era um ins- sem os resultados positivos que se esperava, mas
trumento para ele fazer política, mas não se vê de toda a forma, colocou, na agenda, a questão
mais Brizola, depois da anistia, depois de 1969, de que criança tinha que estar na escola.
articulando ou denunciando conspirações. É um
homem muito mais acomodado, muito mais IHU On-Line – Por que os resultados não fo-
adaptado a uma ordem política, em uma prática ram como ele esperava?
muito problemática. Em 1990-1991, ele ficou Maria Celina Soares D’Araujo – Porque foram
muito preocupado com a situação do Collor, che- todos empreendimentos muito caros, que é o ensino
gou a apoiar o Collor, acho que temia um golpe. de tempo integral, que precisa ter turnos de profes-
Ele apoiou a prorrogação do mandato de Figuei- sores, e isso as administrações posteriores não conti-
redo também, porque ele temia, sempre que ele nuaram, foi descontinuado esse trabalho, considera-
achou que podia haver uma ruptura constitucio- do muito caro, uma escola cara. Então os CIEPs fun-
nal, ele tomou decisões, na contramão da oposi- cionam, mas funcionam como escolas normais,
ção, mas isso vem em nome de uma trajetória co- quase todos, e não como escolas de tempo integral,
erente, que era evitar golpes, que era evitar ruptu- nas quais as crianças chegam de manhã e saem à
ras institucionais, que ele achava que poderiam tarde, de banho tomado, indo para casa dormir.
vir. Esse Brizola, após a anistia, embora continuas- Funcionam como escolas convencionais.
se uma pessoa centralizadora, personalista, sem-
pre muito carismática, trouxe novidades no cam- IHU On-Line – Acha que está havendo uma
po da esquerda brasileira, falando de socialismo redescoberta da Era Vargas?
democrático, pluralidade ideológica, falando do Maria Celina Soares D’Araujo – A Era Vargas,
Brasil como um país de socialismo moreno. O do ponto de vista social, vai ser revista pelo PT, já
PDT foi um partido que fez questão de colocar nos foi revista a questão da Previdência, será revista
seus quadros e nas suas listas de candidatos, pes- agora a questão da CLT. Está na agenda do gover-
soas negras e índias. O Rio de Janeiro elegeu o Ju- no Lula fazer isso, e certas normas, que estão ali,
runa, que teve uma importância simbólica muito podem ser revistas, mas parece uma coisa contra-
grande. As mulheres, então... Ele traz esse discur- ditória: o governo dos trabalhadores desregular,
so inovador, a política como um espaço de repre- rever os direitos dos trabalhadores, mas, em gran-
sentação para as minorias. Por outro lado, ele tem de parte, isso vai ser necessário. O governo do PT
uma grande qualidade também, no Brasil, que é sempre teve uma reação muito grande ao traba-
muito rara: ele foi homem de um partido só, basi- lhismo getulista, por causa do peleguismo, do fisi-
camente foi homem do PTB. Quando ele quis criar ologismo, da ligação muito forte com o sindicato

59
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

do Estado. Era uma crítica que se fazia, uma arti- IHU On-Line – Considera que, com a morte
culação muito grande dos sindicatos no Estado, a de Brizola, e o fim dos políticos de sua gera-
dependência das lideranças em relação aos líde- ção haverá um vazio na vida política do
res. Isso é tudo o que o PT está fazendo agora. País?
Essa crítica não prevalece mais, o que o governo Maria Celina Soares D’Araujo – Eu não
do PT até hoje faz é uma convocação constante acho que ficou um vazio sem Brizola. Com ele se
das lideranças sindicais e, de certa forma, repete o encerrou um tipo de política que o Brasil tinha,
que fez o sindicalismo getulista. cujo auge ocorreu nos anos 1950 e 1960, políti-
ca de um tempo passado, não tem outra gera-
IHU On-Line – Em relação à questão da refor- ção. O vazio talvez fosse a voz nacionalista que
ma agrária, Brizola conseguiu de fato avan- tínhamos, que não era a voz do Partido Comu-
çar como Governador tanto do Rio Grande nista do Brasil, talvez fosse a voz de cen-
do Sul quanto do Rio de Janeiro? tro-esquerda, que mais defendia o nacionalis-
Maria Celina Soares D’Araujo – A Reforma mo, que mais defendia o papel do Estado. Mas
Agrária não foi um tema importante para ele no Go- acho que esse sentimento de defesa do Estado,
verno do Rio de Janeiro, porque não é um estado de desenvolvimento nacional, está bem dissemi-
tão grande, os problemas maiores estão na região nado hoje na sociedade brasileira, não acho que
urbana, na grande Rio. Eu lembro que esse assunto deixa um vazio. Ele cumpriu um bom papel, é
foi muito importante no governo de João Goulart, uma liderança impagável, não podemos pensar
que era uma das reformas que mais amedrontavam a política do século XX no Brasil, sem pensar em
a elite política, e a reforma que João Goulart achava Brizola. Foi, realmente, um homem que mobili-
que devia ser feita. Ele tinha um lema “Reformas na zou massas, que inquietou as instituições, pro-
lei e na marra”, teriam que vir, mas aqui, no Rio de vocou os militares, e que sofreu muito por causa
Janeiro, não lembro de ser um aspecto importante disso e que voltou e quis continuar a luta por
da administração de Brizola como Governador. seus ideais. Brizola, Getúlio e João Goulart são
figuras centrais, no século XX, não acho que dei-
xou vazio, porque o Brasil mudou, e hoje outras
questões estão na agenda.

60
“O País não está produzindo líderes”

Entrevista com Gunter Axt

Brizola era um político que mantinha viva, enfrentar uma situação de extrema adversidade,
no País, a idéia de construir um projeto nacional. em defesa de um ideal, atitude que acho muito
Fica um vácuo nesse sentido. As autoridades pe- importante, especialmente num país como o Bra-
dem sacrifício à população, mas não explicam o sil, onde, cada vez menos, as pessoas estão dis-
rumo para o qual o País se dirige. Ninguém sabe postas nesse sentido. Essa é uma marca de Brizo-
para onde caminhamos. Com essas afirmações, la. Por outro lado, e aí vem a tensão, ele me pare-
Gunter Axt, em entrevista ao IHU On-Line, assina- ce alguém que passou pela trajetória política com
la a morte de Brizola como um fato que desvela uma marca muito pessoal, o projeto pessoal dele
uma carência na política nacional. sempre sobrelevou, sobrenadou o projeto partidá-
Gunter Axt é professor na PUCRS, historiador rio ou mesmo um projeto ideológico mais amplo.
e pesquisador do Memorial do Judiciário e do Me- Daí a grande dificuldade que Brizola tinha de con-
morial do Ministério Público do Rio Grande do viver com outras lideranças do próprio partido, di-
Sul. Axt é graduado e mestre em História pela ficuldade de manter alianças por longo prazo. O
Universidade Federal do Rio Grande do Sul projeto dele parecia estar acima dos demais. Essa
(UFRGS), e doutor em História Social pela Univer- me parece ser uma contradição histórica que esse
sidade de São Paulo (USP), com tese intitulada personagem tão rico que é Brizola, tinha. Ele não
Gênese do Estado burocrático-burguês no RS era um demagogo populista. O demagogo é
(1889-1929). aquele que não realiza, e Brizola era populista, há
um consenso em torno disso de parte dos analis-
IHU On-Line – Qual é o significado histórico tas, mas jamais foi um demagogo. Ele era um ho-
da morte de Leonel Brizola? mem de realizações.
Gunter Axt – Eu diria que Brizola foi uma síntese
da política brasileira no século XX, uma síntese IHU On-Line – Podemos falar de um vazio po-
das aspirações, dos limites e dos medos dessa po- lítico com a ausência de Brizola?
lítica. Acho que Brizola – e essa é uma visão muito Gunter Axt – Ele deixa um vácuo sim. A grande
pessoal – era uma espécie de celebridade pop. E o carência do Brasil hoje é um projeto nacional.
vazio que ele deixa é o que qualquer celebridade Esse é um país em que as pessoas não sabem para
pop deixa ao morrer, ou seja, ela tem algo só dela, onde estamos indo. É triste quando um país não
algo único que ninguém mais tem e não pode ser sabe para onde vai. Quando os governantes pe-
reposto no lugar. Minha segunda observação é dem mais e mais sacrifício da população, aumen-
que Brizola viveu uma tensão como personagem tando os impostos, cortando gastos, deixando de
político, talvez existam várias tensões, mas uma fazer tais e tais investimentos que estavam previs-
tensão em especial me chama a atenção. Por um tos. É triste, quando os governantes pedem mais e
lado, ele era uma pessoa com uma capacidade ex- mais sacrifício da população e são incapazes de
traordinária de doação para uma causa que fosse dizer-lhe para onde o País está indo. Não há se-
comum, pública e, nesse afã de se doar ele era ca- quer uma proposta consistente de um projeto na-
paz de sair de uma situação de comodismo para cional. Eu acho que isso Brizola representava. Po-

61
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

demos criticar o projeto nacional de Brizola. Algu- urbanos, pois ele está disposto a desenvolver um
mas pessoas podem dizer que era uma proposta projeto industrial para o Brasil. Além disso, ele cria
superada, nacionalismo até de cunho mais atávi- toda a legislação trabalhista, portanto ele estabele-
co, mas era um projeto nacional que a existência ce uma aliança estratégica com a classe operária
de Brizola representava. Alguém que não estava urbana, mas também faz uma aliança com os
de acordo com esta geléia que se estabeleceu no grandes estancieiros, cafeicultores paulistas e es-
País, então eu acho que esta falta, sem dúvida ne- tancieiros sulistas. Uma aliança com aquela bur-
nhuma, ele faz. guesia agrária do Brasil todo que muitos conside-
ram como sendo uma classe mais conservadora e
IHU On-Line – Em que sentido se afirma que é por isso que Getúlio Vargas é incapaz de desen-
Brizola era um herdeiro de Getúlio Vargas. volver uma legislação trabalhista rural. Bem,
Qual foi a herança? quanto a Brizola, uma das características dele é o
Gunter Axt – Quando se fala isso, a primeira per- fato de levantar a bandeira da reforma agrária, e
gunta que se deve fazer é a seguinte: de qual Ge- ele o faz com propostas concretas. Toda desapro-
túlio Vargas estamos falando? Porque Getúlio foi priação do “Banhado do Colégio” durante o Go-
tantos em tantos momentos diferentes da histó- verno dele sinaliza isso. É um dos primeiros líderes
ria... Se nós pensarmos no Getúlio deputado esta- e um dos primeiros governantes brasileiros que,
dual do Rio Grande do Sul, nós vamos ver Getúlio com propostas concretas nessa área da reforma
absolutamente integrado ao sistema coronelista agrária, chama a atenção para a necessidade de
de poder e à rede de poder borgiana e castilhista levar em consideração também as necessidades
do antigo PRR, o político comum, com capacida- das populações e dos trabalhadores rurais. Nesse
de discursiva muito boa, mas um político como ponto, ele avança, ele inova em relação a Getúlio
qualquer outro da época. Já o Getúlio do governo Vargas.
de 1928, aqui no Estado, é um homem que conse-
gue compor com uma habilidade fantástica. O IHU On-Line – Ambos eram populistas?
Getúlio da Revolução de 1930, assim como o do Gunter Axt – Nesse sentido é, sim, claramente,
Governo Provisório, é revolucionário, que refor- um herdeiro de Getúlio. Se nós considerarmos o
ma as instituições do País, sem abrir mão do com- tipo de relação com as lideranças e os movimen-
promisso democrático. O Getúlio de 1937 é um tos sociais, eu acho que Brizola é tributário de
ditador que não tem o menor compromisso com uma visão antiga dessa relação, ou seja, é um líder
as instituições democratas e com a democracia e o quase paternalista, pouco contestado populistica-
Getúlio pós-45 é populista com muito menos mente pelas massas populares, com grande difi-
compromisso, por exemplo, com a estabilidade culdade de entender os novos papéis que os mo-
orçamentária, e nisso consiste a importante dife- vimentos sociais vão ter no Brasil pós-abertura
rença de Perón, que teve muita responsabilidade política. Podemos entender, por exemplo, porque
com a estabilidade orçamentária, em que pese o PT cresce tanto nesse período pós-abertura e o
Getúlio ter sido um líder autoritário populista du- PDT, de Leonel Brizola vai definhando, porque o
rante o Estado Novo. Mais uma vez chamo a aten- PT é o partido que tem uma outra visão que surge
ção: populista sim, mas demagogo não, irrespon- nesse período – eu falo do PT da década de 1980
sável não. Então, para vermos Brizola como her- – que surge com uma outra visão na relação entre
deiro de Getúlio, nós precisamos saber a que Ge- as lideranças e os movimentos sociais, admitindo
túlio nos referimos. Suponhamos que seja o Getú- que os movimentos sociais têm um papel mais
lio desse período populista, que estabelece uma participativo no fazer política.
aliança estratégica com a classe trabalhadora. Aí
eu chamaria a atenção também para a aliança IHU On-Line – Pode ser que a figura de Brizo-
que Getúlio faz, que já começa a desenhar logo la, de certa forma, simbolize o imaginário
depois da revolução de 1930, com os industriais do gaúcho forte, coerente, lutador, incor-

62
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ruptível, e por isso seja tão admirado no Rio por um período que passou. Hoje a política é mui-
Grande? to mais pragmática, muito mais técnica, muito
Gunter Axt – Acho que sim. Brizola condensava menos romântica do que era na época de Brizola,
um pouco uma certa imagem que os gaúchos fa- para não dizer outras coisas que aconteceram
zem de si mesmos. A morte dele põe fim a um tipo com a política nacional. Vemos, realmente, uma
de política que se fazia no século XX, no Brasil. superficialidade cada vez maior, mais imperante.
Nós estamos entrando num outro momento ago- Assistimos, por exemplo, aos discursos nos legisla-
ra, que me parece, em termos de qualidade, muito tivos e percebemos a incapacidade da maior parte
pior do que era. Mas Brizola tem essa característi- dos políticos de fazer concordância verbal, concor-
ca, e as pessoas se identificavam com ele, acha- dância nominal, há uma queda de nível, de quali-
vam que ele tinha alguma coisa da alma do Rio dade na política nacional, que é amplamente per-
Grande do Sul. Sua maneira de falar, a sua mor- ceptível pelos analistas. Isso fragiliza as instituições.
dacidade felina, que encanta o gaúcho, a sua inte- O poder legislativo tem se fragilizado em conse-
ligência luminosa, sua capacidade de oratória... E qüência desse problema. Onde está a massa crítica
Brizola tinha uma imagem incorruptível, apesar do País para fazer uma oposição consistente a cer-
de que todos aqueles assuntos em torno do famo- tas proposições que surgem de repente, do dia para
so ouro de Cuba, e o próprio afastamento que se a noite, e parecem, então, tão maravilhosas?
verificou depois entre Fidel Castro e Brizola, – isso
a história ainda precisa elucidar. Brizola condensa IHU On-Line – E onde está? Entre os
um pouco dessa alma do Rio Grande do Sul, não intelectuais?
é à toa que ele está sendo enterrado, na cidade de Gunter Axt – Pois é, eu acho que os intelectuais
São Borja, que tem todo um poder simbólico para estão cuidando da sua vida, eu não vejo os inte-
o Estado, a cidade dos Vargas, onde Jango tam- lectuais ocupando espaços públicos, defendendo
bém está enterrado, mas especialmente simboliza projetos, defendendo idéias, como se fazia muito
uma época em que o Rio Grande produzia gran- no passado. No Rio Grande, há algumas tradições
des líderes nacionais. Faz tempos que o Rio Gran- peculiares, o antigo Partido Democrata Cristão e o
de deixou de produzir essas grandes lideranças antigo Partido Libertador (PL) foram partidos que
nacionais. surgiram da redemocratização do País, antes do
golpe de 1964, justamente na esteira de um proje-
IHU On-Line – Algum Estado tem produzido to de fazer uma política diferenciada, intelectuali-
essas grandes lideranças nas últimas zada, trazendo acadêmicos e intelectuais para o
décadas? campo da política. Não encontramos mais esses
Gunter Axt – Acho que há uma crise de grandes projetos. O PSDB tentou um pouco isso, mas, há
lideranças sem dúvida nenhuma. Por isso há um no campo político brasileiro, uma enorme dificul-
certo saudosismo e um romantismo das pessoas dade de definir um projeto de nação.

63
Um homem contraditoriamente coerente

Entrevista com Paulo Markun

Episódio único na História do Brasil e, prova- foi a razão dessa renúncia. Tudo leva a crer que
velmente, do mundo. A figura carismática de Leo- ele pensava que seria um movimento de renún-
nel Brizola foi o único a levantar a voz e liderar cia rapidamente revertido numa espécie de for-
uma mobilização contra um golpe anticonstitucio- talecimento de sua posição e voltaria nos braços
nal. É o que destaca Paulo Markun, em entrevista do povo, mas não houve o protesto popular, e o
a IHU On-Line. Markun é jornalista desde 1971. Congresso não discutiu a renúncia, simplesmen-
Bacharel em Jornalismo pela USP, Markun já foi te aceitou. Foi uma jogada dos congressistas.
repórter, editor, comentarista, chefe de reporta- Jânio ficou, tudo nos leva a crer isso, muito frus-
gem e diretor de redação em emissoras de televi- trado e foi embora do País. Os três ministros mi-
são, jornais e revistas. Atualmente, apresenta o litares não queriam que Jango assumisse a Pre-
Roda Viva da TV Cultura, faz comentários de polí- sidência e deram posse ao Presidente do Con-
tica no Jornal do Terra, e preside o Sindicato da gresso Nacional como Presidente da República.
Indústria Audiovisual do Estado de Santa Catari- Brizola foi o primeiro a se revoltar contra essa
na, onde vive desde 1998. Paulo Markun criou ve- atitude e começou, imediatamente, a transmitir
ículos de comunicação, como Pasquim São Pau- pela rádio Guaíba de Porto Alegre, única emis-
lo, Imprensa, Radar, Deadline, Jornal do Norte e sora que não fora colocada sob censura. Isso
dirigiu documentários e vídeos. No momento, o teve repercussão. Ao longo do tempo, ele modi-
jornalista está concluindo a biografia comparada ficou, inclusive, a direção em que o sinal da
de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula emissora era transmitido, de ondas curtas, para
da Silva. É autor de diversos livros, entre eles Dom justamente atingir o resto do Brasil, e outras
Paulo Evaristo Arns, o cardeal do povo. Editora emissoras foram captando até que, ao longo de
Alfa ômega, 1978 (com Getúlio Bittencourt); Ma- doze dias, tempo que demorou o processo, ha-
riel Mariscott, a máfia manda flores. Editora Glo- via 104 emissoras integradas numa rede e, com
bal, 1981 (com Ernesto Rodrigues); Como perder isso, ele conseguiu “incendiar” o País, de Porto
as eleições. Feeling; Editora Três, 1989; Anita Ga- Alegre. Nunca tinha sido feita também, em ter-
ribaldi, uma heroína brasileira. São Paulo: Senac, mos técnicos, uma rede de rádio tão poderosa e,
1999; Muito além de um sonho, a história da Uni- no momento em que o comandante do 3º Exér-
sul. Editora Unisul, 2001 (com Duda Hamilton). cito, instalado no Rio Grande do Sul, General
Machado Lopes, aderiu a essa rede da Legalida-
IHU On-Line – Qual é a importância histórica de, o quadro, de alguma forma, se equilibrou
da Cadeia da Legalidade? melhor do ponto de vista militar, porque o 3º
Paulo Markun – Foi a única vez, no Brasil, e Exército, na época, era o exército mais podero-
uma das poucas no mundo, em que um movi- so do País, em função da desavença com a
mento civil conseguiu impedir o golpe militar Argentina e aí começou a ficar possível algum
que tinha a adesão dos três ministros militares e tipo de resistência. Até então, ele só se apoiava
70% da força militar do País. Jânio Quadros ha- na Brigada Militar, que é a força pública do Rio
via renunciado – nunca se soube até hoje qual Grande do Sul, e na mobilização de voluntários.

64
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Chegou a inscrever quarenta mil voluntários IHU On-Line – Como aconteceu a aproxima-
num movimento de resistência. Isso virou o pro- ção entre Brizola e Fidel Castro, na década
cesso e acabou com o golpe. Houve uma ordem de 1960?
expressa do Governo Federal, dos ministros mi- Paulo Markun – Em 1964, ele saiu do Brasil e foi
litares para bombardear o Palácio Piratini e si- para o Uruguai. Lá manteve contato com Fidel
lenciar o Governador a qualquer preço, mas os Castro e recebeu dinheiro dele para montar uma
sargentos da Aeronáutica impediram que os guerrilha no Brasil. Essa guerrilha estava para ser
aviões levantassem vôo. Fizeram uma espécie desenvolvida na região central do País, mas aca-
de boicote, tiraram peças dos aviões, e, nesse baram descobrindo, antecipadamente, um outro
meio tempo, o general mudou de posição. foco e ela foi desmontada. Isso recentemente foi
relatado pelo jornalista Flávio Tavares, no último
IHU On-Line – Em que se baseava a liderança livro dele que se chama O dia em que Getúlio ma-
de Brizola, nessa época, para ser capaz de tou Allende. Flávio Tavares, inclusive, era um des-
uma mobilização tão grande? ses integrantes do grupo guerrilheiro financiado
Paulo Markun – Na sua fantástica oratória. Na por Brizola. O apelido de guerra de Brizola era Pe-
capacidade que ele tinha de comunicação pelo rá- drinho e o grupo funcionava, nitidamente, com
dio. Ele era muito experiente, fazia desde que ti- recursos fornecidos por Fidel Castro, mas, depois
nha sido prefeito de Porto Alegre e depois como do fracasso, Flávio Tavares acabou sendo proces-
Governador, programas de rádio toda a semana sado e condenado. E esta história até hoje não foi
em que ele, durante mais de uma hora ou, às ve- claramente desvendada. Está começando a se es-
zes, duas horas seguidas, ficava contando o que clarecer neste momento, mas a liderança era de
estava acontecendo, fazendo uma pregação radio- Brizola. Fidel mandou um telegrama altamente
fônica. O outro fato é que aquele momento da re- elogioso para ele. Depois disso, Brizola se afastou
núncia do Jânio desorganizou completamente a dessa idéia da guerrilha, mas, certamente, o pri-
sociedade, porque ninguém esperava aquilo, nem meiro movimento de resistência armada à ditadu-
a decisão dos militares de proibir a posse do Presi- ra militar foi inspirado por Brizola, comandado
dente que deveria assumir. O Vice-Presidente ti- por ele lá do Uruguai.
nha sido eleito– porque naquela época não se vo-
tava no Presidente apenas, votava-se numa cédu- IHU On-Line – Ao voltar do exílio Brizola
la no Presidente e na outra no Vice-Presidente. mudou?
Jango tinha sido eleito com Juscelino, porque era Paulo Markun – Eu vejo que há dois mundos,
do PTB, aliado com o PSB e, depois, tinha tido um antes da Guerra Fria e outro depois. Quem
mais votos do que o próprio Vice do Jânio Qua- mudou não foi Brizola, foi o mundo. Ele talvez
dros, da UDN. Jânio tinha legitimidade, então, não tenha compreendido suficientemente quanto
essa tese de que era preciso garantir a posse do Vi- o mundo tinha mudado e, até mesmo, no que
ce-Presidente no cargo era muito fácil de defen- toca à comunicação. Ele era um homem muito efi-
der. Além disso, o Marechal Teixeira Lott, o ho- ciente para falar no rádio, mas nunca entendeu a
mem mais respeitado no Exército, tinha sido Mi- televisão. Tentava manter aquele mesmo discurso
nistro da Guerra, candidato a Presidente da Repú- longo, demorado, cheio de pausas. O que funcio-
blica e perdido para Jânio Quadros, defendeu a nava no rádio, na televisão não funcionou, e o dis-
posse de Jango e foi preso por causa disso, pelos curso dele no que representa a questão do nacio-
militares. Então, era um golpe palaciano, uma nalismo, da importância da educação, das restri-
quartelada que eles queriam dar por telefone. Se ções ao capital estrangeiro, da participação popu-
Brizola não tivesse comandado essa resistência, lar, parecia fora de tempo. Tanto que se examina-
justamente por essa cadeia de rádios, não se teria mos também as relações dele com o PT que é, na
passado nada. prática, o herdeiro do trabalhismo – o PT não é
trabalhista no sentido de vínculos com João Gou-

65
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lart ou com Getúlio Vargas, muito menos com Bri- dava para entender. Mas, se traçarmos uma linha
zola, mas ele é trabalhista no sentido que busca de conduta dele ao longo do tempo, essa linha é
organizar os trabalhadores – as relações sempre mais coerente do que a de muitos políticos.
foram muito tensas. Ele até admitiu a aproxima-
ção com o PT e foi até vice de Lula, mas, ao mes- IHU On-Line – Essa coerência se mostrou
mo tempo, foi quem chamou Lula de sapo barbu- muito na idéia de um projeto de desenvolvi-
do e a primeira briga dele – isso está no livro que mento nacional. Por que essa idéia parece
eu estou publicando agora em outubro12 – foi logo não avançar muito na atualidade?
que ele voltou ao Brasil, porque alguém dos sindi- Paulo Markun – A força do processo da globali-
calistas ligados a Lula falou mal de Getúlio Var- zação de um lado e, de outro, o fascínio que a pos-
gas. Brizola começou a defender Getúlio, e a reu- sibilidade de entrar no primeiro mundo exerceu
nião acabou. no Brasil desde o governo Collor. Quem apresen-
tou essa idéia foi Collor, e isso pegou de tal manei-
IHU On-Line – Como você definiria o populis- ra que, passado o intervalo de Itamar Franco, vêm
mo de Leonel Brizola? oito anos de FHC, em que essa foi a receita. Brizo-
Paulo Markun – Brizola é uma cria de Getúlio la ficou muito marcado como alguém que defen-
Vargas e do seu populismo e seu trabalhismo. Po- dia um projeto nacional que era impossível de ser
demos pensar que, às vezes, o populismo estaria levado adiante, porque já não tinha mais espaço
menos ligado à defesa dos interesses dos trabalha- para isso e hoje acho que o que Lula tenta fazer, é,
dores ou dos menos valorizados. Brizola não era de alguma forma, retomar essa idéia do projeto
apenas um defensor dos trabalhadores que têm nacional em um outro patamar. A discussão é se
carteira assinada e emprego, ele sempre trafegou está conseguindo ou não.
muito bem e conseguiu muita simpatia com o cha-
mado campesinato, aquelas pessoas populares IHU On-Line – Em que sentido iria essa
não organizadas, que não têm consciência de busca?
uma classe social. Por isso digo que Brizola era Paulo Markun – No caso de Lula, na política ex-
populista, mas era mais trabalhista, no sentido de terna. Na inserção do Brasil em um protagonismo
que defendia esses interesses e não necessaria- na América do Sul. Eu acho que é muito discurso.
mente pensava somente no seu próprio desempe- Brizola tinha muito o discurso, porém marcado
nho. Se não fosse assim, ele jamais seria vice de por certas atitudes ao longo da vida dele, que
Lula em 1998. Eu nunca fui brizolista, não sou eram radicais ao extremo. Por exemplo, a de en-
nada, um jornalista, simplesmente, nunca concor- campar a ITT e a Companhia de Energia Elétrica,
dei com as idéias de Brizola, mas acho que a so- depositando um cruzeiro, que era apenas valor
ciedade, de alguma forma, está rendendo home- histórico das empresas. Isso ocasionou uma con-
nagem – com aquele desconto natural de que fusão tão grande que o próprio Presidente Ken-
todo brasileiro que morre vira santo – à coerência nedy cobrou de João Goulart a mudança dessa
de Brizola. Mesmo, por exemplo, que ele, em regra. Ele queria que Jango fizesse Brizola reverter
1989 e 1994, tenha se voltado contra Lula, em essas decisões de encampar essas duas empresas
1998, tenha sido vice de Lula e, em 2002, tenha pelo valor histórico. Ele tinha um argumento jurí-
apoiado Lula e, em 2003, já tivesse sendo uma dico para defender isso. Mesmo, no próprio Go-
das principais vozes da oposição. Na cabeça dele, verno do Rio de Janeiro, as atitudes dele foram
havia uma coerência nessa trajetória. Ele era con- muito de não aceitar o predomínio do capital in-
traditoriamente coerente, se é que se pode dizer ternacional, usava sempre a expressão “perdas in-
isso. Em certos momentos, fazia acordos que não ternacionais do Brasil”.

12 O sapo e o príncipe. Trata-se de uma biografia de Luís Inácio Lula da Silva e de Fernando Henrique Cardoso. Será publicado
pela Editora Objetiva.

66
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Quais os principais fatos que, parece que ele é mais consistente ou mais bri-
na trajetória de Brizola, não se explicam lhante que outros. Um outro dado é esse fenôme-
muito bem até o momento? no típico do Brasil, não sei se em outros países é
Paulo Markun – O apoio ao Presidente Collor. A assim, que, quando a pessoa morre se fala bem
sua aproximação com o Presidente Figueiredo, dela. No velório de Brizola, estavam Garotinho e
quando a oposição toda falava em Campanha Rosinha, a esposa, que eram adversários até bem
das Diretas já, em certo momento Brizola queria pouco tempo, embora agora já tivessem se rea-
esticar o mandato de Figueiredo mais um pouco. proximado, e o filho de Roberto Marinho, depois
Outra contradição é que foi ele quem propôs ini- foi Lula. Não estou dizendo que eles não deve-
cialmente a idéia da renúncia de Fernando Henri- riam ir, mas é difícil não ver aí um excesso de en-
que no início do seu segundo mandato. Essa tese deusamento de quem morre. Ontem, eu li no jor-
cresceu, porque uma parte do PT aderiu, mas a nal O Globo uma matéria que dizia que Brizola ti-
idéia foi de Brizola. Ele foi o mais entusiasmado nha empurrado o Brasil para uma guerra civil em
defensor. Outra foi ele declarar, como fez no últi- 1962. São dois erros históricos numa frase só:
mo 31 de março, que FHC e Sarney foram piores primeiro que não foi em 1962, e sim em 1961,
que os militares. Algumas coisas não batiam muito que ele liderou a chamada Cadeia da Legalida-
com a lógica. de, segundo, que ele não empurrou o Brasil para
a guerra civil, ao contrário, ele se insurgiu contra
IHU On-Line – Durante os últimos dias, deba- o golpe militar. Com coragem, sem temor, com
te-se, na imprensa, se a morte de Brizola firmeza. Naquele momento, e aí eu acho que ele
empobrece ou até esvazia a política brasi- se inscreveu na história do Brasil marcantemen-
leira. O que o senhor acha disso? te, ele não mediu as conseqüências, e esse é um
Paulo Markun – Isso tem a ver com o desencan- episódio apagado da história brasileira. Eu escre-
to em relação ao governo Lula. Como estamos vi, junto com a jornalista Duda Milton, um livro
vivendo um momento em que se esperava muito que conta essa história, pelos 40 anos da legali-
que as coisas fossem mudar, e nada mudou, e dade, mas até então havia uma geração inteira
percebemos alguém que persistiu nas suas idéias, que não sabia dela.

67
“Brizola despertou ódios e amores”

Entrevista com Luiz Alberto Moniz Bandeira

Amigo e companheiro de Leonel Brizola, IHU On-Line – As idéias de Brizola estavam


Luiz Alberto Moniz Bandeira, conheceu-o em ultrapassadas?
1958. Como cientista político, sustentou a tese de Luiz Alberto Moniz Bandeira – O problema de Bri-
que o Partido Trabalhista desempenhava, no Bra- zola foi que o seu discurso não acompanhou o
sil, um papel equivalente ao da social democracia tempo. Não é no sentido de formulação de idéias,
e apresentou o líder trabalhista à Internacional So- porque ele nunca as expôs efetivamente de um
cialista. Moniz Bandeira, 69 anos, é doutor em modo sistemático. Ele tinha algumas bandeiras
Ciência Política e professor emérito de Política pelas quais se batia, lutava, porém temos que des-
Exterior da Universidade de Brasília. Um dos mai- tacar a sua vida e o seu comportamento nos diver-
ores estudiosos do governo João Goulart tem sos acontecimentos políticos. Ele não deixou uma
mais de 20 obras publicadas. Entre elas, citamos doutrina ou uma teoria, pois o trabalhismo em si
O 24 de Agosto de Jânio Quadros. Rio de Janeiro: não é doutrina dele. Foi gerado durante um certo
Melso, 1961; O Caminho da Revolução Brasileira. tempo e teve o seu desdobramento, a sua conti-
Rio de Janeiro: Melso, 1963; Cartéis e Desnacio- nuidade, inclusive agora no governo Lula, ainda
nalização (A Experiência Brasileira – 1964-1974). que eles não queiram assumir formalmente esse
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975; O legado. O trabalhismo foi e é a expressão brasilei-
Governo João Goulart e As Lutas Sociais No Bra- ra da social-democracia.
sil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1977; Brizola e o Trabalhismo. Rio de Janei- IHU On-Line – Como o senhor caracterizaria
ro: Civilização Brasileira, 1979; A Renuncia de Jâ- o trabalhismo de Vargas e Brizola?
nio Quadros e a Crise Pré-64. Rio de Janeiro: Bra- Luiz Alberto Moniz Bandeira – É uma política
siliense, 1979; De Martí a Fidel – A Revolução Cu- nacionalista, que não é liberalizante, uma política
bana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civiliza- a favor dos interesses nacionais, como tem de-
ção Brasileira, 1998; e O feudo – A Casa da Torre monstrado o governo Lula com a sua política ex-
de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à inde- terior. O governo Vargas lutou pelos interesses na-
pendência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização cionais. Getúlio foi um grande desenvolvimentis-
Brasileira, 2000. ta, e nós devemos o Brasil atual a ele. Sem a Side-
rúrgica de Volta Redonda, não haveria o Brasil in-
IHU On-Line – Que tipo de política está mor- dustrial de hoje. O Brasil continuaria sendo um
rendo, ao morrer Leonel Brizola? país agroexportador, baseado na cultura do café e
Luiz Alberto Moniz Bandeira – Está morrendo subordinado ao capital financeiro. Vargas desem-
uma grande personalidade que, de uma forma ou penhou importante papel. Foi a maior personali-
de outra, marcou a história do Brasil na segunda dade política do Brasil no século XX. Seu Governo
metade do século XX. Despertou ódios, amores, construiu as bases do Brasil moderno. Brizola, po-
paixões, mas desempenhou um papel muito im- rém, nunca chegou à Presidência da República.
portante na História do Brasil. Nos governos do Rio de Janeiro, realizou alguns
feitos importantes, obras como o Sambódromo e

68
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

a Linha Vermelha e destacou-se na política educa- Lula não assuma o legado de Vargas, ele é quem
cional. Embora esse aspecto muito importante da está executando uma política mais próxima do
visão dele tenha fracassado, porque a política que foi a política do trabalhismo.
educacional não é construir escolas somente; tem
que preparar professores, dar-lhes condições, re- IHU On-Line – Considera que Brizola era
cursos; não basta construir escolas sem ter condi- autoritário?
ções de sustentá-las, de melhorar o ensino básico. Luiz Alberto Moniz Bandeira – Brizola era per-
Agora o Governo Federal estabeleceu cotas para sonalista. Não era autoritário. Pelo contrário, até
admissão de negros e alunos de escolas públicas discutia, conversava, mas só que, depois, fazia o
nas Universidades. Isso é bobagem. O problema que ele queria. Reunia as pessoas ficava até a ma-
não é estabelecer cotas, mas melhorar o ensino drugada ouvindo todo mundo, mas fazia como
básico, nas escolas públicas, que já foram muito ele queria. Não era autoritário, porque não obri-
boas, e o regime militar degradou, para dar preva- gava ninguém a fazer nada. Era uma pessoa cor-
lências às escolas privadas. O problema é fazer as dial, amável, tinha qualidades excelentes, excep-
escolas públicas melhores que as escolas privadas, cionais, tanto que ele foi um grande líder. Há pes-
como era antigamente. soas que até hoje sentem a sua liderança, estão
sob a sua liderança, mas o seu temperamento não
IHU On-Line – Brizola era, de fato, o herdeiro permitia agregá-las durante muito tempo.
de Vargas?
Luiz Alberto Moniz Bandeira – Brizola não IHU On-Line – Há episódios que parecem
chegou à Presidência, ele discursou, falou, falou, contraditórios, como a relação de Brizola
mas não construiu do ponto de vista político uma com Fidel Castro e o posterior refúgio na
obra. Valorizou as minorias, os negros... Teve embaixada americana...
uma importância muito grande. O maior feito de Luiz Alberto Moniz Bandeira – Não são contradi-
Brizola foi a Cadeia da Legalidade, quando ele tórios. A política muda conforme a época. Ele, du-
garantiu a posse de João Goulart na Presidência. rante um tempo, aliou-se ao Fidel Castro como ele
Ele foi, durante muito tempo, símbolo da resistên- se aliaria, ao diabo e à avó do diabo, contra o regi-
cia e da oposição, enquanto houve o regime mili- me militar. Ele mesmo dizia: “Se o diabo apare-
tar no Brasil. Esse, sim, é o período dele. Ele re- cesse e estivesse contra o regime militar, eu me
presentou a oposição ao regime militar. O primei- aliaria a ele”. No tempo em que preferiu ir para os
ro e único civil em toda a América Latina a derro- Estados Unidos, ao ser expulso do Uruguai, a polí-
tar um golpe militar, mobilizando o povo. A ade- tica de Jimmy Carter era democrática, em favor
são dele, por exemplo, à social-democracia foi dos direitos humanos, e estava contra o regime
proposta por mim. A tese está no meu livro O Go- militar no Brasil e na América Latina.
verno de João Goulart, cujos originais levei para
ele no Uruguai, em 1977, antes de sua expulsão. IHU On-Line – Como foi a sua história com
Mostrei que o trabalhismo foi, em realidade, um Brizola, como o conheceu?
partido do tipo social-democrata, nas condições Luiz Alberto Moniz Bandeira – Conheci Brizo-
sociais do Brasil. Brizola aceitou essa idéia e foi la em 1958, quando estive no Rio Grande do Sul,
um contributo que ele deu também, ao aceitar o acompanhando o Presidente italiano Giovanni
trabalhismo como a versão brasileira da soci- Gronchi. Aproximei-me mais dele em 1961, de-
al-democracia, o que ele chamou, aliás com muita pois da ascensão de Jango à Presidência, e passa-
propriedade, de “socialismo moreno”. Na verda- mos a ter maior convivência no Uruguai, em
de, porém, ele nunca compreendeu a teoria e a 1964, quando fui para lá como exilado, quando
prática da social-democracia, nem mesmo a orga- Jango foi deposto. Depois voltei ao Brasil, clan-
nização. Ele continuou conduzindo o partido destino, fui preso dois anos e, em 1975, voltei ao
como se fosse apenas ele. Por outro lado, embora Uruguai e à Argentina a fim de pesquisar para a

69
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

minha tese de doutoramento sobre a Bacia do compromissos. Uma vez, Bernt Carlson, secretá-
Prata. Foi nessa época que comecei a escrever o rio da Internacional Socialista, me pediu que o
livro sobre Jango. Estive, várias vezes, com Brizo- PDT organizasse um secretariado internacional e
la, que ainda estava rompido com Jango, e convi- lhe disse das pessoas que o comporiam. Falei com
vi muito com ele, após sua ida para os Estados Brizola, e combinamos os nomes. Mas, depois,
Unidos, onde o recebi no aeroporto de Nova Brizola veio com outros e sempre mudava, con-
York. Quando Jango morreu, levei os originais do forme suas conveniências, para agradar a Fulano
meu livro O Governo João Goulart para Brizola, ou Beltrano, porque, na verdade, o secretariado
na sua estância, em Durazno. Como já lhe disse, nada representava para ele. Ele, Brizola, era o se-
nesse livro, eu sustentei a tese de que o Partido cretariado, era tudo no PDT. Certa vez, Bocaiúva
Trabalhista desempenhara no Brasil um papel Cunha pediu-me um esquema do Secretariado In-
equivalente ao da social democracia, e ele aceitou ternacional. Preparei-o e, quando Bocaiúva o
essa idéia. E sugeri, também, que Brizola assumis- mostrou a Brizola, ele disse que era europeu de-
se o legado de Jango e reorganizasse o Partido mais, que não valia para o Brasil, pois no Brasil
Trabalhista Brasileiro. O ex-deputado Carlos Ola- tudo era mesmo improvisado. Brizola racionaliza-
vo Simão da Cunha estava comigo durante essa va o improviso, a desorganização e dizia que eu
conversa. E a partir desse momento, começamos era “sociedade industrial”. Jango me disse uma
uma nova fase de reorganização do PTB. vez que Brizola não sabia escolher seus auxiliares.
E é verdade. Somente gostava daqueles que con-
IHU On-Line – Acompanhou essa ruptura en- cordassem com tudo que ele dizia e fazia. Com
tre Brizola e Jango? Brizola era uma dificuldade marcar qualquer coi-
Luiz Alberto Moniz Bandeira – Eles brigaram. sa, porque ele autorizava, depois desmarcava e
Aliás, Brizola brigou, porque Jango não brigava fazia outra coisa diferente. Esse era o grande pro-
com ninguém. Brizola brigou com ele, porque blema de lidar com Brizola.
queria que Jango apoiasse seus projetos de insur-
reição no Rio Grande do Sul, e Jango não quis. IHU On-Line – Quando foi a última vez que se
Preferiu a opção política. Ele evitava derrama- falaram?
mento de sangue. Luiz Alberto Moniz Bandeira – Foi antes das
eleições de 1994. Não rompi com Brizola. Apenas
IHU On-Line – Brizola costumava falar de sua me afastei dele, porque não mais queria ser coni-
relação com Getúlio Vargas? vente com os erros que ele andava cometendo,
Luiz Alberto Moniz Bandeira – Não. Brizola ouvindo pessoas que não ousavam discordar
era muito jovem na época de Vargas. Não creio abertamente do que ele dizia. Sabia, pelos meus
que tivesse convivência com Getúlio, que era bem cálculos, que ele não teria mais de 4% dos votos,
mais velho, apesar de ter sido seu padrinho de ca- na eleição, para a Presidência da República. Seu
samento. Jango, sim, foi que conviveu com Var- índice de popularidade caíra no Rio de Janeiro e
gas, desde que ele foi para São Borja, após o gol- no Rio Grande do Sul, suas principais bases eleito-
pe que o derrubou em 1945. rais, para a metade do seu nível histórico, ou seja,
despencara de 33% em média (nível histórico),
IHU On-Line – Quais foram as suas principais para 16%. Ele quase passara para o segundo tur-
diferenças com Brizola? no, em 1989, porque, naqueles dois colégios elei-
Luiz Alberto Moniz Bandeira – Sempre gostei torais, sua votação ultrapassara a casa de 63%.
de Brizola, admirei-o, respeitei-o, mas tinha mui- Naquele ano, ele teve 16%, e Lula, 16,04. Se sua
tas divergências com ele. Sou um homem organi- popularidade, em 1994, voltasse no Rio de Janei-
zado e nunca fui acaudilhado. Brizola pedia-me ro e no Rio Grande, para seu nível histórico de
para fazer algo, eu combinava uma coisa e cum- mais ou menos 33%, ele obteria apenas 8% dos
pria, mas ele depois mudava tudo. Não respeitava votos, ou seja, metade do que ganhara em 1989.

70
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Aconteceu, porém, que as pesquisas indicavam mais me comprometer com desacertos. Ou ele
que sua popularidade baixara para cerca de 16% apoiava Fernando Henrique Cardoso, ou apoiava
no Rio e igual percentagem no Rio Grande do Sul, Lula. Fernando Henrique, inclusive, quis o apoio
o que significava que ele não teria mais de 4%. dele que contrabalançaria o apoio do Antônio
Aconselhei-o, então, a renunciar. E, como ele não Carlos Magalhães. Eu não entendo como ele, ten-
me quis ouvir, eu o fiz publicamente para não do apoiado Collor, não quis apoiar FHC.

71
Histórias sobre um político que se “podava” para renovar-se

Entrevista com João Aveline

Jornalista, sindicalista, ex-militante do Parti- IHU On-Line – Como se deu a sua convivên-
do Comunista Brasileiro, João Aveline conviveu cia com Brizola
com Leonel Brizola na intimidade palaciana, da João Aveline – Brizola era três anos mais moço
qual nos relatou algumas passagens. Ele “põe a do que eu, que tenho 85 anos. Fui seu companhe-
mão no fogo” pela honestidade e integridade do iro durante toda a vida. Ainda muito jovem, ele foi
ex-Governador gaúcho, de quem destaca as prefeito de Porto Alegre, quando criou uma rede
transformações no seu perfil político, originalmen- de escolas. Eu trabalhava na Tribuna Gaúcha, na
te conservador. Mudanças que Brizola explicava,
época, e fiz uma reportagem sobre as escolinhas
como lembra Aveline, comparando-se a uma ár-
de Brizola, como ficaram conhecidas. Eram casas
vore em tempo de poda: às vezes, ele cortava um
de madeira pintadas de cinza e padronizadas.
“galho” inconveniente, para que viesse a nova
Essa foi a preocupação central dele como admi-
brotação. Aveline iniciou sua vida profissional
nistrador de Porto Alegre, e também quando ele
como repórter do jornal Tribuna Gaúcha, na se-
foi Governador do Estado13. Brizola era um jovem
gunda metade da década de 1940. Por algum
do interior muito conservador, é bom que se diga
tempo, atuou como noticiarista do Departamento
isso. Mas, como Governador, ele passou a organi-
de Notícias da Rádio Itaí. Nesse período, início
zar reuniões com o movimento sindical, reuniões
dos anos 1950, foi revisor no Correio do Povo.
privadas, das quais eu participava. Numa dessas
Ingressou na Rádio Gaúcha em agosto de 1956,
ocasiões, ele reconheceu que era inicialmente
tendo chefiado o Departamento de Notícias. Aju-
muito conservador. Disse que havia dirigido a
dou a fundar e participou da edição gaúcha do
Prefeitura de Porto Alegre dando atenção apenas
jornal Última Hora, onde chefiou a reportagem
ao plano administrativo, que as coisas tinham cor-
geral. Com o golpe militar de 1964, o jornal foi fe-
chado, e João Aveline passou a trabalhar na revis- rido bem, sem maiores preocupações, pois o orça-
ta A Granja. Em 1971, foi para o jornal Zero mento era relativamente bom, a receita era boa.
Hora, onde foi secretário do jornal e da gráfica e Lembro-me de que ele disse: “Quando eu cheguei
chefe de reportagem. Foi editor da Revista da TV e ao Governo do Estado, aí a situação ficou diferen-
do Caderno Zona Norte, suplementos do jornal. te. Passei a levar em conta uma série de fatores, a
Dirigente do Sindicato dos Jornalistas em várias me preocupar com o desenvolvimento do Estado.
gestões, atualmente é membro da Comissão de E cheguei à conclusão de que uma das coisas que
Ética dos jornalistas. É autor do livro Macaco pre- travava o desenvolvimento era o fato de que nós
so para interrogatório: retrato de uma época. Por- não dispúnhamos, como coisa nossa, do potencial
to Alegre: AGE, 1999. energético. A Companhia de Energia Elétrica es-

13 As referidas escolas eram construídas segundo um modelo padrão e ficaram conhecidas como “brizoletas”. Também foram
denominados “brizoletas” os títulos mobiliários, resgatáveis em datas pré-estabelecidas, criados e usados por Brizola, durante o
seu período como Governador do Estado, para o pagamento do funcionalismo e de obras públicas. Tais títulos, utilizados para
enfrentar a escassez de recursos, eram aceitos pelo comércio como moeda, de maneira geral.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tava nas mãos dos norte-americanos, então eu fui ele também dava um caráter discreto, serviam
me dando conta dos tentáculos que estavam em para ele dar trânsito a certas informações, que ele
cima de nós e que nos sugavam, e resolvi tomar gostaria de ver publicadas.
algumas medidas, entre elas a encampação das
Companhias”. IHU On-Line – Ele era anticomunista?
João Aveline – Em determinado momento sim,
IHU On-line – Quando foi isso? mas depois ele foi evoluindo, a situação foi modi-
João Aveline – Lá pelos anos 1950, não me lem- ficando. Inicialmente, ele não tinha contato direto
bro exatamente a data. Ele realizava muitas reu- conosco, mas por de um intermediário não-comu-
niões. Nelas comentavam-se muitas coisas, como nista. Com o correr do tempo, ele passou a ter um
o episódio das encampações. Aí é que entra em comportamento menos agressivo, mais fraterno
cena a evolução do ser humano, do ser político. A em relação a nós. Ele foi anticomunista porque,
prática levou-o a uma concepção de governo por exemplo, em 1958, quando ele foi eleito, nós,
mais nacionalista e também social, mas funda- comunistas, o apoiamos, porque fizemos uma
mentalmente nacionalista. Numa dessas reuniões, avaliação e chegamos à conclusão que, naquele
um dirigente sindical chamado Vilson Lima, dos momento, o melhor candidato era ele. Brizola não
gráficos, perguntou: “Brizola, você era um cara re- aceitou o nosso apoio, não só não aceitou como,
acionário conservador e hoje você tem concep- depois de eleito, mandou protocolarmente devol-
ções arejadas, é nacionalista. Como foi essa mu- ver, nos Correios e Telégrafos, um telegrama que
dança?” Brizola, que era um homem muito “fra- o Prestes enviara, cumprimentando-o. Quando
sista” e de metáforas muito inteligentes, disse o se- ele não aceitou os nossos votos, nós respondemos
guinte: “Olha, de fato, eu era isso que tu disseste. a ele publicamente, que independentemente da
Quando eu cheguei ao Governo do Estado me vontade dele, nós éramos donos dos nossos votos
defrontando com os problemas, resolvi me ‘po- e, na nossa concepção, apesar do anticomunismo
dar’. Cortei esse galho! Cortei aquele galho! Cor- dele, apesar disso, ele era o melhor candidato na-
tei aquele outro galho! E agora eu estou ‘brotan- quele momento. Depois ele mudou.
do’ ”. A metáfora foi inteligente, brotar significa
renovação e Brizola foi isso, foi um homem que se IHU On-Line – O senhor acompanhou também
renovou, um homem em constante renovação. as iniciativas referentes à reforma agrária?
João Aveline – A primeira experiência de refor-
IHU On-Line – Na época o senhor trabalhava ma agrária no Brasil foi feita por ele aqui no “Ba-
aonde? nhado do Colégio”. Eu estive lá com ele, junto
João Aveline – Eu trabalhava no departamento com as delegações que vinham de todo o Brasil
de notícias da Rádio Gaúcha, onde eu era chefe, e para ver a experiência. Ele dividiu as terras. Fez
no jornal Última Hora, que apoiava Brizola. Entre um trabalho no sentido da implantação de uma
as coisas que eu fiz lá foi cobertura sindical, daí a reforma agrária com efetivos rendimentos. Foi
minha proximidade com o Governador. Como muito caluniado na época, pois, como muitos
disse, eu participava das reuniões que ele organi- camponeses não tinham rendimentos para pagar
zava. Elas me interessavam como jornalista. Mas seus compromissos com o Banco do Rio Grande
eu me credenciei junto a Brizola por meio do mo- do Sul, ele, por intermédio das propriedades da
vimento sindical, do qual eu era próximo. Fui mulher, proporcionou as condições para que to-
apresentado como uma pessoa de confiança e dos pudessem financiar as terras. João Calmon,
mantive a lealdade. Aos sábados, ele reunia al- dos Diários Associados, chegou a afirmar que ele
guns jornalistas no Palácio Piratini, com os quais tinha utilizado a reforma agrária para vender as
ele gostava de conversar, e eu estava entre eles. terras da mulher aos camponeses. Isso não é ver-
Nessas reuniões, ele abria os “esquemas” para dade. Eu meto a mão no fogo por Brizola, no que
nós. Alguns diziam que essas reuniões, às quais diz respeito ao seu comportamento ético em rela-

73
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ção a dinheiro. Foi um homem extremamente alti- zola havia trazido para o partido. Ao mesmo tem-
vo, com um escrúpulo incomum. Quando eu digo po que ele aglutinava pessoas, ele também as ex-
“incomum”, estou me referindo a um comporta- cluía. Antes, havia perdido o Senador Saturnino
mento ético, que não é comum nos políticos de Braga. Também rompeu com Garotinho, todos
hoje. eles de um quadro político que crescera com Bri-
zola. Grandes personalidades foram absorvidas e
IHU On-Line – Que destino foi dado ao dinhe- expelidas por ele, como [Jaime] Lerner, Governa-
iro que Brizola teria recebido para custear dor do Paraná e Sereno Chaise, no Rio Grande do
um movimento guerrilheiro? Sul. Os casos desse tipo são vários. Esse talvez te-
João Aveline – Sinceramente, eu não estou “por nha sido o seu maior defeito, à medida que algu-
dentro” disso. O que se sabe é que o Fidel Castro mas pessoas iam se projetando nos quadros políti-
meteu na cabeça que tinha que exportar a revolu- cos, com pensamentos definidos e com capacida-
ção, fazer a revolução na América Latina. Efetiva- de de divergir, em determinadas circunstâncias,
mente, veio dinheiro para os grupos de guerrilhas. elas eram expelidas.
Esses recursos, no caso de Brizola, foram gastos
em questões relativas à organização da luta arma- IHU On-Line – Do homem Brizola, o que o
da. Eles não serviram para locupletar Brizola marcou mais?
como pessoa, repito que eu boto a mão no fogo João Aveline – O homem Brizola era muito vol-
pela honestidade de Brizola. Além disso, ele era tado para a política, tinha a política correndo nas
um homem rico. Havia casado uma mulher rica. veias, respirava política, comia política, vivia polí-
tica vinte e quatro horas por dia. Naturalmente, a
IHU On-Line – Essas características positivas primeira prejudicada em função disso foi a famí-
não foram prejudicadas por um traço forte- lia. Brizola enfrentou problemas na família. Ele vi-
mente autoritário, que o levou a cometer veu com Neusa quarenta e seis anos, acho que foi
muitos erros? feliz, mas era um homem divorciado da família,
João Aveline – Em determinados momentos, ele era um homem que cuidava mais da coisa públi-
foi autoritário, até demais. Entre os erros está, por ca, encarava isso como uma tarefa. Brizola impôs
exemplo, o cometido na ocasião em que era o esse sacrifício à família. No plano político, era uma
Governador do Rio de Janeiro e precisava de re- síntese dos políticos gaúchos. Carlos Bastos, hoje
cursos do Governo Federal, na época chefiado no Jornal do Comércio, diz que Brizola é uma sín-
por Collor. Em decorrência desse fato, ele chegou tese dos nossos políticos do passado. Herdou de
a dizer que Collor estava sendo vítima da classe Júlio de Castilhos o autoritarismo, de Borges de
dominante que queria golpeá-lo. Outro erro dele Medeiros, a sede de poder, de Gétúlio, as preocu-
sério, para um homem que foi submetido ao mais pações nacionalistas e sociais, de Flores da Cu-
longo exílio do Brasil até hoje – ele sofreu um exí- nha, o caráter democrático e o jeito de fazer frases,
lio de quinze anos – ocorreu, quando ele propôs a de João Neves da Fontoura, a oratória, de Osval-
prorrogação do mandato do Figueiredo, que era do Aranha, a capacidade de articulação e a condi-
um dos generais golpistas. Brizola calculava que, ção de democrata. Brizola era um homem assim.
se houvesse a prorrogação por um ano, ele teria Estão dizendo que Brizola encerra um ciclo, e efe-
mais condições de enfrentar uma disputa pela tivamente encerra. Até aqui, vivemos a era Brizo-
Presidência da República. la, fazendo uma política em que o debate se dava
no terreno das idéias, adotando um comporta-
IHU On-Line – Outra característica negativa mento republicano. Com o fim dessa era, o que se
dele era a dificuldade de conviver com lide- constata é que o político, candidato em qualquer
ranças novas? nível, é uma espécie de sabonete é vendido via
João Aveline – Sim. Recentemente o PDT per- publicidade, por meio do chamado marketing,
deu o deputado Miro Teixeira, que o próprio Bri- como se faz em relação a um produto comestível

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ou de uso pessoal. Brizola tem, na carreira dele, pôs esse ponto de vista com o apoio do Rio Grande
algo que poucos políticos têm, no Brasil. Em 1961, do Sul, conquistando o apoio do País. Na carreira
quando Jânio renunciou, e os militares queriam de Brizola, se mais nada houvesse, só o fato de ter
impedir a posse de Jango, não confiavam nele, aparado esse golpe de 1961, com muita valentia,
porque era tido como comunista, Brizola desfral- com muita determinação e com muita capacidade
dou a bandeira da legalidade constitucional e im- de aglutinação de forças, isso já bastaria.

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A educação no centro de seu projeto político

Entrevista com Cristovam Buarque

Petista, brizolista é a forma como se define o 1999; Admirável mundo atual. São Paulo: Gera-
Senador e ex-Ministro de Educação Cristovam ção Editorial, 2001; Os Instrangeiros. A aventu-
Buarque em entrevista ao IHU On-Line, no dia se- ra da opinião na fronteira dos séculos. Rio de Ja-
guinte à morte de Leonel Brizola, diretamente da neiro: Garamond, 2002. O Senador Cristovam
Câmara, durante a sessão de homenagens ao lí- Buarque foi Ministro da Educação no atual Go-
der trabalhista. Para o Senador, se Brizola tivesse verno Federal, no período de 1º de janeiro de
sido eleito Presidente no lugar de Fernando Collor 2003 a 27 de janeiro de 2004.
de Mello, em 1989, o rumo do País teria sido dife-
rente, e o Brasil e a América Latina poderiam ter IHU On-Line – Como o senhor avalia a contri-
visto um governo que colocaria em primeiro lugar buição política de Leonel Brizola?
os interesses nacionais e a educação. Cristovam Buarque – Em primeiro lugar, esta-
Cristovam Buarque é Engenheiro Mecâni- mos falando de cinqüenta anos de militância. Isso
co, pela Universidade Federal de Pernambuco, é muito raro, uma militância tão duradoura. Em
e doutor em Economia pela Universidade de segundo lugar, a valentia dele em defesa da legali-
Paris, Sorbonne. Cristovam Buarque foi eleito dade, quando foi preciso pegar em armas para de-
Senador da República em outubro de 2002, fender a legalidade contra o golpe militar. Ele fez
com 60% dos votos, cerca de 461 mil, o mais vo- isso e venceu os militares. Em terceiro lugar, o que
tado da história do Distrito Federal. Entre 1995 mais me aproximou dele é que foi o único dos
e 1998, foi Governador do Distrito Federal, grandes líderes nacionais que colocou sempre a
onde implantou o Programa Bolsa-Escola. Criou educação em primeiro lugar. Nenhum outro fez
a ONG Missão Criança para promover a idéia da isso. Nenhum dos grandes políticos, como Getúlio
bolsa-escola no Brasil e no exterior. Desde [Vargas], Juscelino [Kubitschek], Fernando Henri-
1979, é professor da Universidade de Brasília, que, Luís Inácio Lula da Silva, nenhum desses
onde foi reitor no período 1985-1989, como pri- grandes, pôs a educação na frente. Essa foi sua
meiro reitor eleito da UnB após o fim da ditadura grande diferença. Com a mesma coerência pas-
militar. É autor de 19 livros. Entre eles, citamos: sou à oposição ao governo Lula, quando sentiu
A Desordem do Progresso: o fim da era dos eco- que, na sua opinião, o Governo não dava priori-
nomistas e a construção do futuro. São Paulo: dade à educação, não defendia a nacionalidade
Paz e Terra, 1991; A aventura da universidade. com o vigor que ele queria.
Co-edição Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Pau-
lo: Unesp, 1994 (Prêmio Jabuti, 1995); A Revo- IHU On-Line – O senhor afirmou no seu dis-
lução nas Prioridades. Da modernidade técnica curso de homenagem a Brizola na Câmara,
à modernidade ética. São Paulo: Paz e Terra, que “A eleição de Brizola em 1989 poderia
1994. Os tigres assustados – uma viagem pela ter permitido a virada responsável à esquer-
fronteira dos séculos. Rio de Janeiro: Record, da de que o Brasil e a América Latina preci-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

savam nas vésperas da aventura neoliberal mostrou, como engenheiro, sensibilidade política.
iniciada pelo vencedor das eleições”. Pode No Rio de Janeiro, já foi mais difícil. Foi um outro
explicar um pouco mais essa afirmação? tempo que ele encontrou com a criminalidade ge-
Cristovam Buarque – Em 1989, às vésperas da neralizada, com a Rede Globo fazendo uma cam-
afirmação neoliberal no Brasil e na América Lati- panha sistemática contra ele. Ele não estava em
na, aconteceu o fim da União Soviética, a consoli- ascendência no Rio de Janeiro, quando assumiu.
dação da política de [Margaret] Tatcher e de [Ro- Não dá para dizer com a mesma emoção, porque
nald] Reagan. Se Brizola tivesse ganhado no lugar eu defendo que, no Governo do Rio de Janeiro,
de [Fernando] Collor, não há dúvida de que tería- não houve o mesmo êxito que no do Rio Grande
mos tido possibilidade de testar, no Brasil, uma al- do Sul. Mesmo assim, ele criou símbolos, como a
ternativa diferente, mais comprometida com o so- vinculação do Carnaval com a vida da cidade por
cial, investindo convictamente, como ele iria fazer, meio do sambódromo no qual ninguém acredita-
na educação, defendendo os direitos dos traba- va, a construção de centenas de escolas chamadas
lhadores e, sobretudo, a política de defesa nacio- CIEP’s, com horário integral. Ele conseguiu fazer
nal. Para ele, as relações de interesse internacio- isso, sem dar uma dinâmica econômica ao estado
nais deviam se submeter aos interesses nacionais. do Rio, num momento em que a economia brasi-
Ao eleger Collor, o que nós tivemos foi o inverso. leira estava entrando na chamada década perdida
Foi a abertura completa do País, apressadamente, dos anos 1980.
foi a destruição e desarticulação do Estado, foi a
mudança da prioridade para a economia liberal. IHU On-Line – Em relação à reforma agrária,
Se Brizola tivesse sido eleito, poderíamos ter tido ele deu uma contribuição importante
uma experiência nova no Brasil e impedido a ex- também?
periência neoliberal no continente inteiro. Cristovam Buarque – Ele foi um exemplo no
Rio Grande do Sul na luta pela reforma agrária.
IHU On-Line – Como o senhor vê Leonel Bri- Quando ele foi Governador, conseguiu fazer uma
zola como herdeiro de Getúlio Vargas? reforma agrária. Mas, sobretudo no Brasil, ele foi
Cristovam Buarque – Eles são herdeiros da o grande defensor da reforma agrária desde os
mesma origem, nasceram no mesmo lugar. Brizo- anos 1960, quando apoiou as ligas camponesas,
la começou a militar durante o segundo governo apoiou o Instituto da Reforma Agrária, que foi cria-
Vargas. A relação dele era familiar, como cunha- do naquela época, e até hoje ele se manteve fiel a
do de João Goulart, que era Ministro de Getúlio isso. Brizola representa aquilo que eu defendo
Vargas. Eram do mesmo partido, o Partido Traba- sempre, que é o político brasileiro que quer com-
lhista Brasileiro (PTB). Brizola é o herdeiro direto, pletar a Abolição e a República. Os últimos movi-
não é nem filho, o herdeiro-irmão, que é mais pró- mentos revolucionários no Brasil foram a Aboli-
ximo ainda da herança do que filho, de Getúlio ção e a República. Os dois ficaram incompletos
Vargas, que não deixa herdeiros. Isso é que é inte- até hoje. Brizola representa esse grupo de políticos
ressante. O trabalhismo ficou órfão. brasileiros que quer completar a República.

IHU On-Line – Como o senhor avalia os pe- IHU On-Line – E com relação a seu relaciona-
ríodos em que Brizola ocupou cargos no mento pessoal?
Governo? Cristovam Buarque – Tive relacionamento pes-
Cristovam Buarque – Na Prefeitura de Porto soal com ele desde quando eu morava nos Esta-
Alegre e no Governo do Rio Grande do Sul, Brizo- dos Unidos, e ele foi expulso do Uruguai e foi mo-
la foi um exemplo de governante, na construção rar em Nova Iorque, quando entrei em contato
de escolas, na reforma habitacional, no desenvol- com ele pela primeira vez. Ele aceitou o convite
vimento do estado, na economia. É isso que afir- para debater política naquela mesma época, o
mo muito, o chamado engenheiro Brizola, que que mostrou que não ficara abatido. Depois, eu

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

apoiei, em 1989, a sua candidatura à Presidência. muito forte. Não faz dois meses, ele me ligou para
Meu primeiro voto para presidente foi para ele. falar da minha saída do Ministério. Sempre manti-
No primeiro turno de 1989, eu não votei em Lula, vemos contato, um respeito profundo. Eu sempre
eu não era de nenhum partido. Eu votei e fiz cam- insisti em dizer que eu sou petista brizolista.
panha para Brizola. E formamos uma amizade

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“É imprevisível o que possa acontecer com o trabalhismo brasileiro”

Entrevista com Sereno Chaise

O ex-prefeito de Porto Alegre e ex-compa- com a morte de Leonel Brizola e abre-se uma
nheiro de Brizola, Sereno Chaise, guarda lem- nova etapa da política brasileira.
branças históricas de grandes vitórias e grandes
derrotas junto ao líder pedetista. Apesar de ambos IHU On-Line – O que caracteriza essa nova
terem se distanciado por divergências em relação etapa? Seguramente não seria a busca de
à aliança do PDT com o PT durante o governo de um projeto de desenvolvimento nacional?
Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, Chaise guar- Sereno Chaise – Não. Caracteriza-se pela mo-
da profunda admiração por Brizola e considera dernização dos métodos de política, pela facilida-
que a herança trabalhista foi retomada pelo PT, de da comunicação, pelo papel da televisão, as
como disse em entrevista concedida ao IHU pesquisas... enfim, a partir de agora, a política se
On-Line. Chaise nasceu em Soledade, em 1928. torna bem diferente daquela de 40 ou 50 anos
No dia 10 de novembro de 1963, foi eleito prefei- atrás, devido a um avanço tecnológico de toda a
to de Porto Alegre pelo PTB com mais de 100 mil sociedade.
votos. O mandato, iniciado no dia 2 de janeiro do
ano seguinte, foi interrompido quatro meses de- IHU On-Line – Que continuidade deu Brizola
pois, no dia 8 de maio, por força do Ato Institucio- ao trabalhismo de Getúlio Vargas?
nal n.º 1, primeira medida tomada pelo governo Sereno Chaise – O trabalhismo brasileiro teve o
militar após o golpe de 31 de março de 1964, que Dr. Getúlio e Alberto Pasqualini como ideólogos,
depôs o Presidente João Goulart. Sereno nunca e João Goulart como executor daquela política
aceitou o exílio. Foi preso outras vezes durante o social e seus pontos fundamentais e princípios
regime militar e, segundo ele próprio, teve ofertas básicos. Leonel Brizola era o herdeiro legítimo,
de Brizola e de João Goulart para deixar o País, continuador de toda aquela obra. Sem ele, fica
mas não quis. De 1946 a 2001, ano em que Sere- agora um vazio. Estamos diante de uma página
no e Brizola romperam uma amizade de 55 anos, em branco. É imprevisível o que possa acontecer
foram grandes companheiros de luta. daqui para frente com o trabalhismo brasileiro.
Acho que, já nos últimos anos, essa política de
IHU On-Line – Ao perder Brizola o que o Rio defesa do trabalhador, de defesa do primado do
Grande do Sul e o Brasil estão perdendo? trabalho sobre o capital, já vinha sendo assimila-
Sereno Chaise – A morte dele significa o encer- da pelo Partido dos Trabalhadores. Eu entendo
ramento de um período de lutas pelos avanços so- que o PT é que vinha desempenhando, nos últi-
ciais, que se desenvolve desde que o País foi rede- mos anos, aquela luta que outrora foi do velho
mocratizado, desde 1947. Um período de quase PTB, sob inspiração do Presidente Vargas. Agora
60 nos, de intensa atividade, na defesa dos ideais, o que vai acontecer com a história do antigo PDT
dos interesses legítimos do povo trabalhador, na é uma incógnita, não dá para dar palpites. Vai
defesa da riqueza nacional por meio de uma polí- depender de uma série de fatores realmente
tica nacionalista. Acho que esse ciclo se encerra imprevisíveis.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Quando veio o golpe militar de IHU On-Line – Apesar de que podia ser preso.
1964, o senhor era prefeito de Porto Alegre, E o foi, de fato...
foi cassado, mas nunca quis sair do País, Sereno Chaise – Sim, fui várias vezes. Esse era
nem quando o próprio Brizola o convidou. um preço que tinha que pagar...
Isso foi porque pensava que a resistência
passaria se ficasse no Brasil? IHU On-Line – Permaneceu preso durante
Sereno Chaise – Não. Nunca disse isso. Acho muito tempo?
que o presidente João Goulart não teve opção e Sereno Chaise – Durante os dois ou três primei-
agiu como verdadeiro estadista, preferindo sua re- ros anos, volta e meia, era recolhido por qualquer
núncia à Presidência e ao prestígio pessoal a fazer coisa, mesmo por aquelas das quais eu não tinha
com que corresse sangue entre irmãos e a colocar o menor conhecimento, mas sempre na hora de
em perigo a integridade territorial do Brasil. Hoje prender, o primeiro era eu. Mas não sofri tortura.
é conhecido o acordo que havia entre os conspira- Eu tinha a decisão de que o cara que fosse me tor-
dores aqui, especialmente entre o Governador de turar, iria me matar. Eu era entregue aos quartéis
Minas, Magalhães Pinto, e o governo americano da Brigada Militar, uma instituição gaúcha cem
por intermédio do embaixador Lincoln Gordon. por cento. É gente muito boa. Eu que sempre fui
Aliás, Gordon, professor universitário, depois que admirador da Brigada, passei a admirá-la mais
deixou a embaixada e voltou para os Estados Uni- ainda.
dos, escreveu um livro no qual ele mesmo detalha
a chamada operação brother Sam, desembarque IHU On-Line – O senhor confirma a informa-
de 30 a 50 mil marinheiros norte-americanos no ção de que se ocultou algumas vezes no
Norte e no Nordeste do Brasil. Foi um dos motivos Convento dos Capuchinhos?
que pesou muito na decisão do Presidente João Sereno Chaise – Não, não. Nem eu, nem Brizo-
Goulart de não deixar correr sangue entre irmãos la. Eu era muito amigo daqueles Capuchinhos do
e não comprometer a integridade territorial do Morro Santo Antônio, ia seguido lá onde pousei
nosso País. No exílio, no Uruguai, conversamos muitas vezes, mas quando ainda era prefeito e
muito sobre isso, e ele me repetiu que, se tivesse todo o mundo sabia que estava lá. É que tinha
resistido, ganharia a parada, continuaria Presi- muita gente na minha casa; passava gente aplau-
dente da República, mas o Brasil ficaria reduzido dindo e vaiando também, condenando, amea-
aos países da Bahia para baixo, o que seria um çando. Então, às vezes, para aliviar a família eu
prejuízo inestimável. Tenho a impressão de que me retirava um pouco. Mas, não estava escondi-
daqui a cem ou duzentos anos, se o Brasil manti- do, não, e Brizola já estava no Uruguai.
ver o controle da Amazônia, vai ocupar um papel
muito importante no cenário mundial. A Amazô- IHU On-Line – Como eram as relações de Bri-
nia pode ser considerada o pulmão para o planeta zola com a Igreja e com o então Arcebispo
daqui a muito pouco tempo. de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer?
Sereno Chaise – Eles se davam bem. Dom Vi-
IHU On-Line – E por que o senhor nunca quis cente aparecia de vez em quando, no Palácio. A
sair do País? comadre Neuza ia toda a hora à Missa, na Matriz,
Sereno Chaise – Brizola e Jango mandaram um todos os domingos, religiosamente. Eu próprio
carro me buscar, mas eu era um homem pobre, me dava muito bem com Dom Vicente. Era uma
com filhos pequenos, não ia deixar meus filhos pessoa muito humilde e hoje vejo o trabalho mag-
aqui passando fome e eu vivendo lá nas costas de- nífico que ele fez na Santa Casa. Ele reergueu
les. Eu decidi que não iria, que tinha que trabalhar aquela instituição que estava abandonada. Ele a
aqui, ganhar minha vida aqui, cuidar de minha deixou como um exemplo do que deve ser uma
família. casa de saúde.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Quais as lembranças históricas Sereno Chaise – Foi a ruptura de um acordo
mais importantes que guarda de Brizola? que nós fizemos com o PT, quando Olívio Dutra
Sereno Chaise – Quando ganhamos a primeira era Governador do Estado. Nós tínhamos feito
eleição para a Prefeitura, aliás, a primeira perde- uma aliança depois de um amplo debate interno
mos, mas ganhamos a segunda. Quando ganha- no PDT, depois de fazermos reuniões com os vere-
mos a eleição para o Governo do Estado em adores, os prefeitos, o Partido tinha na época 30
1958. Guardo também amargas lembranças de coordenadorias no interior, realizamos reuniões
algumas derrotas importantes, quando, por exem- em todas elas, discutindo o assunto. Finalmente,
plo, ele, como candidato à Presidência da Repú- reunimos o diretório regional e por voto pratica-
blica, perdeu para Enéas, e se retirou para Uru- mente unânime foi aprovada a coligação e come-
guai. Fui lá na Fazenda e o encontrei realmente çamos a participar do governo Olívio Dutra, base-
abatido. Ele me disse: “Bah! Compadre, estou ados numa decisão profunda do Partido. Dois
com os cascos em ferida”, isso dizíamos no interi- anos depois, Brizola resolveu simplesmente desfa-
or, quando um animal se “esbroqueava”, ficava zer aquilo. Mas eu me neguei. Como a gente faz, a
até com dificuldades de caminhar. “Estou com os gente desfaz. Se a aliança foi fruto de um longo
cascos em ferida, mas vou reerguer a cabeça”. E debate interno, vamos fazer um novo debate e se
reergueu, e voltou à luta. a maioria resolver voltar atrás, o fazemos. Essa foi
minha divergência principal.
IHU On-Line – Uma das qualidades que se
unem à pessoa de Leonel Brizola é sua coe- IHU On-Line – Atualmente ao que o senhor
rência política, mas há fatos que são difíceis está mais dedicado?
de explicar, como o apoio dele até o fim ao Sereno Chaise – Ao trabalho como diretor da
Presidente Collor, sua ligação com Fidel Companhia de Geração Térmica de Energia Elé-
Castro... Como o senhor vê isso? trica. Energia produzida à base do carvão, apro-
Sereno Chaise – Todo líder tem suas coerências veitando essa riqueza do Rio Grande. É uma
e incoerências. A vida de Brizola foi uma vida de imensa riqueza de nosso Estado que o mundo in-
luta feita de pontos altos e de pontos baixos. Nós teiro usa para energia. Hoje, no mundo, 42% da
divergimos há seis anos, nunca mais conversa- energia produzida é originária do carvão. Na Ale-
mos. Eu acho que, no fim da vida dele, afloraram manha, esse percentual chega a 55%, nos EUA é
mais essas incoerências. Mas, isso não desmerece de 42%, aqui no Brasil infelizmente é de 1,2%, e o
toda a luta pela qual ele viveu e morreu: pelo povo carvão brasileiro está localizado aqui no Rio Gran-
trabalhador e pelo desenvolvimento de nosso de. A luta de aproveitar o carvão para gerar ener-
Estado e de nosso país. Isso tudo foi muito maior gia é basicamente do Rio Grande do Sul. Hoje o
de que os defeitos que, evidentemente, ele tinha, carvão brasileiro está assim dividido: 0,5% no Pa-
como todos temos. raná, 9,5% em Santa Catarina, na região de Cri-
ciúma e 90% aqui no Rio Grande do Sul. O apro-
IHU On-Line – Qual foi a principal divergên- veitamento dele para gerar energia, como todo o
cia entre o senhor e Brizola? mundo faz, é a nossa causa.

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“A história da resistência não deve ser esquecida”

Entrevista com Flávia Schilling

A socióloga e professora na Faculdade de Gaúcha coletou assinaturas em favor da sua liber-


Educação da USP, Flávia Schilling, viveu sua his- tação. A mobilização e as sucessivas pressões fize-
tória familiar muito ligada à figura de Leonel Bri- ram com que uma lei fosse decretada, o que levou
zola. Tendo sido protagonista de um dos momen- a sua libertação e de mais de 20 estrangeiros pre-
tos mais difíceis para a América Latina, nas déca- sos no Uruguai. A liberdade veio no dia 14 de abril
das de 1960-1970, Flávia concedeu uma entrevis- de 1980, cinco anos antes do fim do regime militar
ta ao IHU On-Line, tentando olhar para o passado no Brasil.
com o cuidado próprio de uma história recente à Flávia é, atualmente, membro do Conselho
que falta muito por esclarecer. Consultivo do Instituto Sou da Paz, entre outras
Santa-cruzense, Flávia Schilling tem uma tra- organizações. Graduada em Pedagogia pela
jetória peculiar. Embora tenha permanecido fora PUCSP, Flávia é mestre em Educação pela Uni-
do Brasil durante quase todo o período militar, camp, com dissertação intitulada Estudos sobre
teve sua vida, de certa forma, determinada pelo Resistência. É doutora em Sociologia pela USP, e
31 de março de 1964, quando seu pai, o jornalista sua tese tem o título Corrupção: ilegalidade intole-
Paulo Schilling, se viu forçado a buscar exílio no rável? Comissões Parlamentares de Inquérito e a
Uruguai. Junto a outros milhares de adolescentes, luta contra a corrupção no Brasil (1980-1992). É
Flávia participou de diversos atos de protesto nas autora dos livros: Querida Família. Porto Alegre:
ruas de Montevidéu e, posteriormente, foi Inte- Coojornal, 1978; Querida Liberdade. São Paulo:
grante do Movimento de Libertação Nacional Global, 1980; Violência Urbana: dilemas e desafi-
(MLN). Durante uma perseguição, ela reagiu à pri- os. São Paulo: Atual, 1999; Corrupção: ilegalidade
são, levou um tiro no pescoço e graças aos proce- intolerável? CPIs e a luta contra a corrupção no Bra-
dimentos cirúrgicos considerados milagrosos, so- sil (1980-1992). São Paulo: IBCCrim; Centro Jurídi-
breviveu. Depois de passar cinco semanas inter- co Damásio de Jesus, 1999; Sociedade da insegu-
nada no Hospital Militar, Flávia foi transferida rança e violência na escola. São Paulo, Ed. Mo-
para a prisão feminina de Punta Rieles, bairro lo- derna, 2004.
calizado a 14 quilômetros do centro de Montevi-
déu, onde permaneceu até a manhã do dia 20 de IHU On-Line – Quais as lembranças mais vi-
junho de 1973. Considerada uma prisioneira peri- vas que você tem da relação entre seu pai e
gosa, ela e mais oito companheiras foram levadas Leonel Brizola?
para sucessivos quartéis, em condição de isola- Flávia Schilling – A história familiar está absolu-
mento. A experiência dramática se estendeu por tamente ligada à presença de Brizola. A partir da
mais quatro anos, ao final dos quais foi transferida publicação do livro A questão do trigo e do traba-
novamente para a prisão feminina de Punta Rie- lho do meu pai na formação de cooperativas, ele
les. Durante o período em que esteve presa no foi chamado para compor a assessoria econômica
Uruguai, Flávia Schilling teve seu nome publicado de Brizola, quando era Governador do Rio Gran-
em diversos artigos e reportagens de jornais. A re- de do Sul. Fizeram trabalhos muito bons, extre-
gional do Comitê Brasileiro pela Anistia, Seção mamente importantes e precursores, na gestão

82
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

agrária. Marcante foi a defesa da legalidade, em na minha dissertação de mestrado. Considero que
1961. De muitas formas, naqueles tempos, foi pensar sobre o tema, ontem e hoje, também é
criada a perspectiva da construção de um Brasil uma forma de resistência neste país que prima
democrático, de uma democracia com direitos e pela construção do esquecimento.
inclusiva. Chamo a atenção para isso, pois até
hoje este é o desafio maior do Brasil: como cons- IHU On-Line – No Uruguai, você esteve mui-
truir uma democracia que vá além de um mero to próxima da morte. O que se sente ou
formalismo, de uma democracia com direitos hu- pensa nesse momento? Como vê a vida, a
manos, com direitos econômicos e sociais? sociedade, a luta depois de passar por esse
momento?
IHU On-Line – Qual é a imagem que você foi Flávia Schilling – As formas de luta se transfor-
fazendo de Brizola e qual a que hoje tem, mam o tempo todo: não há repetição possível, es-
com as contradições próprias que possa tão contextualizadas por um momento histórico e
haver? social bem preciso. O conteúdo das lutas, porém,
Flávia Schilling – A história de um país é cheia demora mais para transformar-se, gira em torno
de contradições, não há linearidade, e isso acon- da possibilidade de justiça, acesso à justiça, possi-
tece com a história de um indivíduo, também cheio bilidade de construção coletiva de uma vida justa
de contradições. A potencialidade daquele Brizola em comum. Este conteúdo permanece: é de on-
(com uma confiança na organização popular) se tem e é de hoje. As formas mudam. Creio que
esvai e penso que ele se dedica, nos últimos anos, sempre vale a pena, desde o lugar que se ocupa,
a uma visão de política mais restrita, a uma visão tentar um mundo melhor. É uma responsabilida-
de partido, que comporta sempre um grau mais de que temos como cidadãos, como pais e mães.
ou menos elevado de burocratização. Hoje, o Bra- Creio que hoje as formas de luta – em tantas orga-
sil tem uma realidade de organização da socieda- nizações e de tantas maneiras tão originais- reto-
de civil que vai muito além dos partidos, que cons- mam de alguma maneira as lutas dos anos 60 com
trói, no cotidiano, experiências de democracia características peculiares. Novos atores entraram
mais profundas do que as propostas pelos parti- em cena: a cena atual é mais complexa e mais rica.
dos políticos existentes. Tenho muito orgulho de ter podido participar on-
tem e hoje, de estar presente. Trabalhei um tempo
IHU On-Line – Recentemente, lembraram-se em atendimento a vítimas de violência. Hoje, tra-
os 40 anos do golpe militar aqui e 30 no balho na educação, centrando esforços na sensibi-
Uruguai, no ano passado. Como avaliaria a lização em torno das questões que envolvem os di-
resistência ao autoritarismo de seu pai e de reitos humanos. Creio que há uma linha de coerên-
Brizola e como foi a sua? cia interessante em todas estas atividades.
Flávia Schilling – Foi uma resistência externa,
da parte dos exilados e interna, de muitos setores IHU On-Line – Quais foram os momentos
da sociedade, que não deve ser esquecida. É uma mais duros vividos no Uruguai e como foi
das páginas importantes da história brasileira. Da seu retorno ao Brasil?
parte do meu pai, foi uma resistência de grande Flávia Schilling – Foram muitos e de diferentes
dignidade e integridade, de compromisso real características. Penso que o período de isolamen-
com as transformações sociais tão necessárias to foi muito difícil. Tive, como companheiros, os
neste país. São muitos os setores da sociedade livros. Os livros povoaram os silêncios, me enri-
que resistem e esta cobre diferentes formas: algu- queceram diariamente. Foram essenciais para a
mas mais visíveis e publicizadas, outras mais hu- sobrevivência e para minha vida posterior. O re-
mildes e cotidianas. Todas, juntas, fazem a dife- torno ao Brasil foi difícil para todos. Foi necessário
rença e prometem sinais de um país diferente. reconstruir a vida em todas as suas dimensões.
Tentei elaborar estas idéias e formas da resistência Creio que foi um processo duro, porém exitoso,

83
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

gratificante, como é qualquer vida. Não houve tradas de lá, uma companheira que teve o filho se-
apoios institucionais nesta trajetória, mas conta- qüestrado. Eram reflexos das ações conjunta entre
mos com apoio de alguns amigos que sempre esti- as ditaduras da Argentina e do Uruguai. Não te-
veram presentes. Houve muita dificuldade pois nho notícias sobre a ação da ditadura brasileira no
éramos “estrangeiros”, de mil maneiras, já tínha- Uruguai: hoje há pesquisas que mostram esta di-
mos o olhar do “exilado”, daquele que estranha o mensão. Mas, para nós, permanecia oculta.
que vê. Muitos códigos eram incompreensíveis e
foi um tempo de aprendizagem. IHU On-Line – A forma de fazer política hoje
não é mais a de Brizola, nem, seguramente,
IHU On-Line – Havia grandes diferenças polí- a da sua juventude. Onde ficou o impulso
ticas entre seu pai e Leonel Brizola? de sua geração de construir uma sociedade
Flávia Schilling – Havia, principalmente após o diferente? Como é canalizado hoje?
retorno do exílio. Meu pai soube buscar caminhos Flávia Schilling – Este impulso está presente
novos, e Brizola buscou manter-se nos caminhos sempre e aparece de muitas e criativas formas:
conhecidos. como viver diferentemente e como mudar a socie-
dade são temas constantes para todos nós, inde-
IHU On-Line – De que maneira, na sua per- pendentemente da geração e da situação social. A
cepção do momento, e depois, podiam se quantidade de gente organizada em torno de di-
detectar as relações entre as ditaduras mili- reitos (ambientais, culturais, econômicos) ou de
tares do cone sul, especialmente, entre Uru- identidades (mulheres, jovens, negros, etc.) muda
guai e Brasil? a face do País a cada dia. Este país (mesmo reco-
Flávia Schilling – Houve, em 1977 várias com- nhecendo as permanências da desigualdade so-
panheiras presas na Argentina que foram levadas cial) é muito diferente em sua qualidade do que
para o Uruguai. Tivemos companheiras seqües- existiu em décadas passadas.

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Entre o passado e o presente

Por Eloísa Helena Capovilla Ramos

O depoimento, a seguir, foi escrito pela prof.ª nou ao Brasil em 1979, com a anistia. Foi eleito,
Dr.ª Eloísa Capovilla Ramos, do PPG em História então, por duas vezes, Governador do Rio de Ja-
da Unisinos. Eloísa Capovilla é graduada e mestre neiro. Foi candidato à Presidência da República
em História pela UFRGS, com dissertação intitula- mais de uma vez, mas não logrou eleger-se para
da O Partido Republicano Rio-Grandense e o po- este cargo. Faleceu no Rio de Janeiro, em 21 de
der local no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, e junho de 2004.
doutora em História pela UFRGS, tendo a sua tese Esta microbiografia não nos dá a dimensão
o título O teatro da sociabilidade: os clubes sociais da vida privada nem da vida pública de Leonel
como espaço de representação das elites urbanas Brizola. Sua trajetória pessoal, de menino pobre
alemãs e teuto-brasileiras – São Leopoldo que saiu de uma cidade do interior, veio para a
1858-1930. É também co-autora do livro Socie- Capital, estudou e formou-se em Engenharia Ci-
dade Orpheu: da história de um nome à identida- vil, é vitoriosa. Seus objetivos foram alcançados.
de de um clube. Porto Alegre: Palotti, 1998. Acrescida a ela está a sua militância política no
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a partir de
– O Brizola morreu! 1945. Nesse contexto, é que virão outros aspectos
– O quê? de sua vida privada, como o namoro e o casa-
– É, morreu. mento com Neuza Goulart, irmã de Jango. E, nes-
Foi assim que a notícia se espalhou. De boca se mesmo contexto, sua vida de homem público
em boca, como um rastilho de pólvora. Alguns en- alcançará degraus cada vez mais altos. Assim, aos
tristecidos, outros sinceramente emocionados, e 36 anos, já era Governador do seu Estado natal.
alguns indiferentes, mas todos, literalmente, to- No plano político, era fiel aos princípios do
dos, comentando o fato, já que a morte de Leonel trabalhismo, representado pelo Partido em que
de Moura Brizola não era um acontecimento qual- militava. Nacionalista e antiimperialista, estas
quer. Tratava-se de um personagem que estivera eram suas bandeiras mais constantes na ação polí-
presente nos últimos 50 anos da vida política tica até os dias atuais. É fiel a esses princípios que
sul-rio-grandense e brasileira. As imagens do pe- encampa algumas empresas estrangeiras no Rio
ríodo, como num filme, sucediam-se pelo teste- Grande do Sul, quando Governador, nacionali-
munho de uns e outros. zando-as. Em busca do desenvolvimento de seu
Nascido em Carazinho, no Rio Grande do Estado e do seu País, Brizola aposta, também, na
Sul, em 22 de janeiro de 1922, Brizola iniciou sua educação. Como Governador do Rio Grande do
vida política em Porto Alegre como deputado es- Sul, construiu centenas de escolas primárias, (as
tadual e federal, chegando a prefeito da Capital “brizoletas”), oportunizando a real ampliação do
(1955) e Governador do Estado do Rio Grande ensino básico no Estado. Repetiu a receita, quan-
do Sul (1958). Daqui, sua carreira e suas preten- do Governador do Rio de Janeiro, com a constru-
sões o levaram para o Rio de Janeiro, então capi- ção das escolas de tempo integral. Para ele, a edu-
tal do Estado da Guanabara, onde se elegeu de- cação era um princípio fundamental para o desen-
putado federal. Cassado e exilado em 1964, retor- volvimento de um país. Sua ação estender-se-á

85
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ainda à reforma agrária, desenvolvida no âmbito Lutador, Brizola funda o Partido Democráti-
de sua fazenda do “Banhado do Colégio”, em Ca- co Trabalhista (PDT) e nele busca novamente o
maquã. Essas ações o colocam como um líder à caminho do executivo regional, para o qual foi
esquerda, no início dos anos 1960. eleito por mais duas vezes. É nessa sigla partidária
Foi, porém, a defesa da “legalidade” consti- que ficou até o fim da vida. Sempre líder, sempre
tucional, que garantiria a posse do Vice-presiden- autoritário, sempre carismático.
te da República, João Goulart, em 1961, o episó- Na quarta-feira pela manhã, a trajetória que
dio que mais marcou a vida política de Brizola. o grande líder fazia já não era com um microfone
Defendida a ferro e fogo, desde o Palácio Piratini, ou uma metralhadora, como em 1961 ou com
a posse do Vice-presidente foi garantida sob a li- uma pilcha e uma bandeira do Brasil, como em
derança do Governador do Rio Grande do Sul. 1979. Agora, o povo, que fora seu fiel escudeiro
O movimento da Legalidade pode ser inter- naquelas oportunidades, estava de novo na rua,
pretado como um ato de convicção, de crença nas mas em silêncio, vendo passar, pela última vez, o
instituições democráticas e movimento de rebel- corpo daquele que tanto admirara. A rua, palco
dia do líder gaúcho. 1964 confirmou a desconfian- de tantas passeatas de Brizola, travestia-se de luto,
ça dos militares com as ações de Brizola e de Jan- de silêncios e choros ao receber em seu trajeto o
go e indicou a ruptura total. Exilado, começava a cortejo fúnebre. Na ida e na volta, o processo fora
via crucis de Brizola e também o crescimento do o mesmo. Em novo vôo, Brizola rumou para São
seu prestígio como estadista. Borja. Lá o mesmo cenário. Silêncios, choros,
A volta, depois de 15 anos de peregrinação emoções, aplausos. São Borja metamorfoseou-se
“sem lenço e sem documento”, permitiu-lhe reto- em cidade-síntese da vida política brasileira con-
mar a vida política. Mas, a perda da bandeira e da temporânea, pela importância dos que a escolhe-
sigla do PTB, numa manobra política dos militares, ram como sua última morada. Seu cemitério será
marcavam as novas condições de vida no Brasil. doravante, seu ponto mais visitado. Seus homens
mortos continuarão governando os vivos?

86
“Sentiremos a lacuna deixada por Brizola”

Por José Odelso Schneider

Publicamos o depoimento do Dr. José Odel- triota, nacionalista, visava a afirmar e consolidar
so Schneider, do PPG de Ciências Sociais da Uni- uma economia nacional, com um empresariado e
sinos, sobre Leonel de Moura Brizola. Impressio- lideranças sindicais adultas, mais autônomas em
nado com as massivas manifestações populares relação às injunções da economia e das finanças
por ocasião da perda do importante político, José internacionais.
Odelso lembra seus feitos no decorrer da trajetória Por tudo isso, ele representava bastante esses
de quase 60 anos de vida pública. valores que hoje estão sendo esquecidos... E o
Todo mundo verificou que Brizola, como povo, ao dar essas manifestações de carinho, de
pessoa e figura política, marcou o coração do apreço pela pessoa dele, por ocasião do seu faleci-
povo. Todas aquelas manifestações durante o ve- mento, mostrou o quanto valoriza esse tipo de po-
lório, mais de 200 mil pessoas no Rio de Janeiro e líticos que hoje estão escassos no País. A classe de
mais de 50 mil pessoas aqui no Rio Grande do políticos empenhados em lutar por causas, por
Sul, tentando dar o último adeus a ele, evidencia- projetos históricos de sociedade, está em franca
ram isso. Durante toda a vida dele, esses longos diminuição, e seu lugar passa a ser ocupado por
anos de vida pública, sempre manifestou ser uma políticos fisiológicos, que lutam por interesses...
pessoa coerente com seus princípios e seus ideais, Brizola era um homem que alimentava a esperan-
coerente com a visão que tinha de lutar por causas ça, a possibilidade de construir uma sociedade
nobres, causas patrióticas. Foi um político que pri- melhor.
mou na luta por causas e não por interesses. Nisso Evidentemente, ele tinha seus defeitos. Era
ele foi um lutador, um homem corajoso que con- bastante intransigente na defesa de suas idéias, e
seguiu iniciar sozinho, em Porto Alegre, a Campa- por isso, gerava atritos dentro e fora do Partido.
nha da Legalidade, que em 1961, com a renúncia Por outro lado, como líder e presidente do Parti-
do Presidente Jânio Quadros, iniciou a resistência do, ele tinha muita dificuldade em coexistir com
contra um golpe militar, assegurando a ascensão outras lideranças que estavam emergindo. Os que
ao poder presidencial de João Goulart. Todo começavam a fazer-lhe sombra, em pouco tempo,
mundo, no começo, estava contra. Essa atitude de ele os eliminava. Expulsava essas lideranças. Por
honestidade e integridade ele manifestou durante isso ele perdeu pessoas importantes, como Dante
toda a sua vida. Por maior que fosse o cerco e o de Oliveira, Jaime Lerner, Sereno Chaise, e pes-
assédio cerrado que a Rede Globo fez contra ele soas do Rio de Janeiro. Tudo por causa de uma
durante os oito anos em que foi Governador do atitude caudilhesca. Mas, apesar destas limita-
Rio de Janeiro, nunca conseguiu surpreendê-lo ções, prevaleceram nele os aspectos positivos.
com “a mão no pote”. Só isso já é um grande elo- Pessoalmente, admirava Brizola como prefe-
gio para sua vida pública. ito de Porto Alegre e Governador do Estado. Dis-
Ultimamente ele era acusado de anacrônico, tanciei-me mais dele depois que foi para o Rio de
por causa da grande e constante preocupação que Janeiro e ingressou na política nacional. Aí passei
tinha em construir uma economia e uma socieda- a divergir de certas posturas exageradas que pas-
de realmente nacional. Nesse sentido, ele era pa- sou a assumir. Mas como prefeito e, sobretudo,

87
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

como Governador, ele foi um homem de muita vi- ca, e a Refinaria Alberto Pasqualini, que hoje é de
são de futuro. As grandes obras que marcaram o tanta relevância no processamento dos derivados
Rio Grande do Sul e persistem até hoje, são da do petróleo aqui no Rio Grande do Sul. Ele tam-
época dele. Por exemplo, as famosas “brizoletas”, bém fundou a Companhia de Energia Elétrica do
as escolinhas plantadas em tantos rincões interio- RS, resultado da desapropriação da empresa ca-
ranos do Rio Grande do Sul, levando o ensino nadense Bonde and Share, empresa que depois
fundamental e público aos mais distantes povoa- foi parcialmente privatizada. Ele também deu
dos do interior rural, numa época em que o Esta- grande força à criação e consolidação do Banrisul.
do não se sentia ainda tão responsável pela instru- O próprio Jardim Zoológico de Sapucaia do Sul é
ção pública. Em 1979, quando voltou ao Brasil, obra dele. Na época, foi muito criticado por isso...
vindo por São Borja, manifestava sua alegria, ao Por fim, Brizola deve ser recordado por ter
poder divisar do avião (que voava baixo), as “bri- iniciado a Reforma Agrária no Brasil, quando im-
zolistas” ao longo do percurso. Ele abraçou essa plantou no “Banhado do Colégio”, em Cama-
causa com muito carinho e deu-lhe continuidade quã, o primeiro assentamento. Apesar de sua
posteriormente como Governador do Rio de Ja- avançada idade, ele ainda estava participando
neiro, com os Cieps, mantendo, na escola, crian- na elaboração de um amplo projeto de alternati-
ças e pré-adolescentes por oito horas, com diver- va nacional, que iria além do atual processo capi-
sas atividades educativas, artísticas, esportivas, talista neoliberal globalizado, projeto no qual se
além das de cidadania. envolvera de corpo e alma nos últimos meses.
Como Governador do Rio Grande do Sul, Sentiremos a lacuna deixada por Brizola como
ele também começou a construção da estrada da pessoa e como político, mas oxalá as idéias dele
produção, a estrada Presidente Kennedy. Ele já permaneçam e possam servir como importantes
previa naquela época que a região do planalto era referenciais na construção de um novo projeto
grande produtora de grãos, que precisava de boas histórico e de um sistema econômico e social
vias de escoamento da produção. Brizola igual- mais justo, eqüitativo e participante, que preser-
mente iniciou a implantação da Aços Finos Pirati- ve a identidade nacional, sem fechar-se ao pro-
ni, tão necessária para nosso Estado naquela épo- cesso de globalização.

88
Vale a pena ler de novo

Discurso de Brizola em 28 de agosto de 1961,


convocando a Cadeia da Legalidade

“Peço a vossa atenção para as comunicações Aqui se encontram os contingentes que julga-
que vou fazer. Muita atenção. Atenção, povo de mos necessários, da gloriosa Brigada Militar – o
Porto Alegre! Atenção Rio Grande do Sul! Atenção Regimento Bento Gonçalves e outras forças. Reu-
Brasil! Atenção meus patrícios, democratas e inde- nimos aqui o armamento de que dispúnhamos.
pendentes, atenção para estas minhas palavras! Não é muito, mas também não é pouco para aqui
Em primeiro lugar, nenhuma escola deve ficarmos preocupados frente aos acontecimentos.
funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as esco- Queria que os meus patrícios do Rio Grande e
las. Se alguma estiver aberta, fechem e mandem toda a população de Porto Alegre, todos os meus
as crianças para junto de seus pais. Tudo em or- conterrâneos do Brasil, todos os soldados da mi-
dem. Tudo em calma. Tudo com serenidade e frie- nha terra querida pudessem ver com seus olhos o
za. Mas mandem as crianças para casa. espetáculo que se oferece.
Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que Aqui nos encontramos e falamos por esta es-
cada um deve tomar, de acordo com o que julgar tação de rádio, que foi requisitada para o serviço
conveniente. Quanto às repartições públicas esta- de comunicação, a fim de manter a população in-
duais, nada há de anormal. Os serviços públicos formada e, com isso, auxiliar a paz e a manuten-
terão o seu início normal, e os funcionários devem ção da ordem.
comparecer como habitualmente, muito embora Falamos aqui do serviço de imprensa. Esta-
o Estado tolerará qualquer falta que, porventura, mos rodeados por jornalistas, que teimam, tam-
se verificar no dia de hoje. bém, em não se retirar, pedindo armas e elemen-
Hoje, nesta minha alocução, tenho os fatos tos necessários para que cada um tenha oportuni-
mais graves a revelar. O Palácio Piratini, meus pa- dade de ser também um voluntário, em defesa da
trícios, está aqui transformado em uma cidadela, legalidade.
que há de ser heróica, uma cidadela da liberdade, Esta é a situação! Fatos os mais sérios quero
dos direitos humanos, uma cidadela da civiliza- levar ao conhecimento dos meus patrícios de todo
ção, da ordem jurídica, uma cidadela contra a vio- o País, da América Latina e de todo o mundo. Pri-
lência, contra o absolutismo, contra os atos dos meiro: ao me sentar aqui, vindo diretamente da
senhores, dos prepotentes. No Palácio Piratini, residência, onde me encontrava com minha famí-
além da minha família e de alguns servidores civis lia, acabava de receber a comunicação de que o
e militares do meu gabinete, há um número bas- ilustre General Machado Lopes, soldado do qual
tante apreciável, mas apenas daqueles que nós tenho a melhor impressão, me solicitou audiência
julgamos indispensáveis ao funcionamento dos para um entendimento. Já transmiti, aqui mesmo,
serviços da sede do Governo. Mas todos os que antes de iniciar minha palestra, que logo a seguir
aqui se encontram estão de livre e espontânea receberei S. Ex.ª com muito prazer, porque a dis-
vontade, como também grande número de ami- cussão e o exame dos problemas é o meio que os
gos que aqui passou a noite conosco e retirou-se, homens civilizados utilizam para solucionar os
hoje, por nossa imposição. problemas e as crises. Mas pode ser que essa pa-

89
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

lestra não signifique uma simples visita de amigo. ril, meus patrícios! Não nos encontramos nesse di-
Que essa palestra não seja uma aliança entre o lema. Que vão essas ou aquelas doutrinas para
poder militar e o poder civil, para a defesa da or- onde quiserem. Não nos encontramos entre uma
dem constitucional, do direito e da paz como se submissão à União Soviética ou aos Estados Uni-
impõe neste momento, como defesa do povo, dos dos. Tenho uma posição inequívoca sobre isso.
que trabalham e dos que produzem, dos estudan- Mas tenho aquilo que falta a muitos anticomu-
tes e dos professores, dos juízes e dos agricultores, nistas exaltados deste país, que é a coragem de
da família. Todos, até as nossas crianças desejam dizer que os Estados Unidos da América, prote-
que o poder militar e o poder civil se identifiquem gendo seus monopólios e trustes, vão espolian-
nesta hora para vivermos na legalidade. Pode sig- do e explorando esta Nação sofrida e miserabili-
nificar, também, uma comunicação ao Governo zada. Penso com independência. Não penso ao
do Estado da sua deposição. lado dos russos ou dos americanos. Penso pelo
Quero vos dizer que será possível que eu não Brasil e pela República. Queremos um Brasil
tenha oportunidade de falar-vos mais, que eu forte e independente. Não um Brasil escravo dos
nem deste serviço possa me dirigir mais, comuni- militaristas e dos trustes e monopólios nor-
cando esclarecimentos à população. Porque é na- te-americanos. Nada temos com os russos. Mas
tural que, se ocorrer a eventualidade do ultimato, nada temos também com os americanos, que es-
ocorrerão, também, conseqüências muito sérias, poliam e mantêm nossa Pátria na pobreza, no
porque nós não nos submeteremos a nenhum gol- analfabetismo e na miséria.
pe, a nenhuma resolução arbitrária. Não preten- Esses que muito elogiam a estratégia nor-
demos nos submeter. Que nos esmaguem! Que te-americana querem submeter nosso povo a esse
nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! processo de esmagamento. Mas isso foi dito pelo
Chacinado estará o Brasil com a imposição de Ministro da Guerra. Isso quer dizer que S. Ex.ª to-
uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta mará todas as medidas contra o Rio Grande.
rádio será silenciada tanto aqui como nos trans- Estou informado de que todos os aeroportos do
missores. O certo, porém, é que não será silencia- Brasil, onde pousam aviões internacionais de
da sem balas. Tanto aqui como nos transmissores grande porte, estão guarnecidos e com ordem de
estamos guardados por fortes contingentes da Bri- prender o Sr. João Goulart no momento da desci-
gada Militar. da. Há pouco falei, pelo telefone, com o Sr. João
Assim, meus amigos, meus conterrâneos e Goulart, em Paris, e disse a ele que todas as nos-
patrícios ficarão sabendo por que esta rádio silen- sas palestras de ontem foram censuradas. Tenho
ciou. Foi porque ela foi atingida pela destruição e provas. Censuradas nos seus efeitos, mas a rigor.
porque isso ocorreu contra a nossa vontade. E A companhia norte-americana dos telefones deve
quero vos dizer por que penso que chegamos a vi- ter gravado e transmitido os termos de nossas con-
ver horas decisivas. versas para essas forças de segurança. Hoje eu
Muita atenção, meus conterrâneos, para esta disse ao Sr. João Goulart: “Decide de acordo com
comunicação. Ontem à noite o Sr. Ministro da o que julgares conveniente. Ou deves voar, como
Guerra, Marechal Odílio Denys, soldado no fim de eu aconselho, para Brasília, ou para um ponto
sua carreira, com mais de 70 anos de idade, e que qualquer da América Latina. A decisão é tua! De-
está adotando decisões das mais graves, as mais ves vir diretamente a Brasília, correr o risco e pa-
desatinadas, declarou através do “Repórter Esso” gar para ver. Vem. Toma um dos teus filhos nos
que não concorda com a posse do Sr. João Gou- braços. Desce sem revólver na cintura, como um
lart, que não concorda que o Presidente constitu- homem civilizado. Vem como para um país culto e
cional do Brasil exerça suas funções legais! Por- politizado como é o Brasil e não como se viesse
que, diz ele numa argumentação pueril e inaceitá- para uma republiqueta, onde dominam os caudi-
vel, isso significa uma opção entre comunismo ou lhos, as oligarquias que se consideram todo-pode-
não. Isso é pueril, meus conterrâneos! Isso é pue- rosas. Voa para o Uruguai, então, essa cidadela

90
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

da liberdade, aqui pertinho de nós, e aqui traça os Desde ontem, organizamos um serviço de
teus planos, como julgares conveniente”. captação de notícias por todo o território nacional.
Vejam, meus conterrâneos, se não é loucura É uma rede de radioamadores, num serviço orga-
a decisão do Ministro da Guerra. Vejam, soldados nizado. Passamos a captar, aqui, as mensagens
do Brasil, soldados do III Exército! Comandante, trocadas, mesmo em código e por teletipos, entre
General Machado Lopes! Oficiais, sargentos e o III Exército e o Ministério da Guerra. As mais
praças do III Exército, guardiões da ordem da nos- graves revelações quero vos transmitir. Ontem,
sa Pátria. Vejam se não é loucura. Esse homem por exemplo – vou ler rapidamente, porque talvez
está doente! Esse homem está sofrendo de arterios- isso provoque a destruição desta rádio – o Minis-
clerose ou outra coisa. A atitude do Marechal Odí- tro da Guerra considerava que a preservação da
lio Denys é uma atitude contra o sentimento da ordem “só interessa ao Governador Brizola”.
Nação. Contra os estudantes e intelectuais, contra Então, o Exército é agente da desordem, soldados
o povo, contra os trabalhadores, contra os profes- do Brasil?! É outra prova da loucura! Diz o texto:
sores, juízes, contra a Igreja. Ainda há pouco, con- “É necessário a firmeza do III Exército para que
versando com S. Ex.ª Revma., Arcebispo D. Vi- não cresça a força do inimigo potencial”.
cente Scherer, recebi a comunicação de que todos Eu sou inimigo, meus conterrâneos?! Estou
os cardeais do Brasil haviam decidido lançar pro- sendo considerado inimigo, meus patrícios, quan-
clamação pela paz, pela ordem legal, pela posse a do só o que queremos é ordem e paz. Assim como
quem constitucionalmente cabe governar o Brasil, esta, uma série de outras rádios foi captada até no
pelo voto legítimo de seu povo. Essa proclamação Estado do Paraná, e aqui as recebemos por telefo-
está em curso pelo País. As igrejas protestantes, ne, de toda a parte. Mais de cem pessoas telefona-
todas as seitas religiosas clamam por paz, pela or- ram e confirmaram. Vejam o que diz o General
dem legal. Não é a ordem do cemitério ou a or- Orlando Geisel, de ordem do Marechal Odílio
dem dos bandidos. Queremos ordem civilizada, Denys, ao III Exército: “Deve o Comandante do III
ordem jurídica, a ordem do respeito humano. É Exército impedir a ação que vem desenvolvendo
isso. o Governador Brizola”; “deve promover o deslo-
Vejam se não é desatino. Vejam se não é lou- camento de tropas e outras medidas que tratam
cura o que vão fazer. Podem nos esmagar, num de restituir o respeito ao Exército”; “o III Exército
dado momento. Jogarão o País no caos. Ninguém deve agir com a máxima urgência e presteza”;
os respeitará. Ninguém terá confiança nessa auto- “faça convergir contra Porto Alegre toda a tropa
ridade que será imposta, delegada de uma ditadu- do Rio Grande do Sul que julgar conveniente”; “a
ra. Ninguém impedirá que este país, por todos os Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for
seus meios, se levante lutando pelo poder. Nas ci- necessário”; “está a caminho do Rio Grande uma
dades do interior, surgirão as guerrilhas para defe- força-tarefa da Marinha de Guerra”, e “mande di-
sa da honra e da dignidade, contra o que um lou- zer qual o reforço de que precisa”. Diz mais o Ge-
co e desatinado está querendo impor à família neral Geisel: “Insisto que a gravidade da situação
brasileira. Mas confio, ainda, que um homem nacional decorre, ainda, da situação do Rio Gran-
como o General Machado Lopes, que é soldado, de do Sul, por não terem, ainda, sido cumpridas
um homem que vive de seus deveres, como cente- as ordens enviadas para coibir ação do Governa-
nas, milhares de oficiais do Exército, como esta dor Brizola”.
sargentada humilde, sabe que isso é uma loucura Era isso, meus conterrâneos. Estamos aqui
e um desatino e que cumpre salvar nossa Pátria. prestes a sofrer a destruição. Devem convergir so-
Tenho motivos para vos falar desta forma, viven- bre nós forças militares para nos destruir, segundo
do a emoção deste momento, que talvez seja, determinação do Ministro da Guerra. Mas tenho
para mim, a última oportunidade de me dirigir aos confiança no cumprimento do dever dos solda-
meus conterrâneos. Não aceitarei qualquer dos, oficiais e sargentos, especialmente do Gene-
imposição. ral Machado Lopes, que, esperamos, não decep-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

cionará a opinião gaúcha. Assuma, aqui, o papel sistiremos até o fim. A morte é melhor do que vida
histórico que lhe cabe. Imponha ordem neste país. sem honra, sem dignidade e sem glória. Aqui fica-
Que não se intimide ante os atos de banditismo e remos até o fim. Podem atirar. Que decolem os ja-
vandalismo, ante esse crime contra a população tos! Que atirem os armamentos que tiverem com-
civil, contra as autoridades. É uma loucura. prado à custa da fome e do sacrifício do povo! Jo-
Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio guem essas armas contra este povo. Já fomos do-
Grande do Sul, não desejo sacrificar ninguém, minados pelos trustes e monopólios norte-ameri-
mas venham para a frente deste Palácio, numa canos. Estaremos aqui para morrer, se necessário.
demonstração de protesto contra essa loucura e Um dia, nossos filhos e irmãos farão a indepen-
esse desatino. Venham, e se eles quiserem come- dência do nosso povo!
ter essa chacina, retirem-se, mas eu não me retira- Um abraço, meu povo querido! Se não pu-
rei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. der falar mais, será porque não me foi possível!
Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Eu, a Todos sabem o que estou fazendo! Adeus, meu
minha esposa e muitos amigos civis e militares do Rio Grande querido! Pode ser este, realmente, o
Rio Grande do Sul. Não importa. Ficará o nosso nosso adeus! Mas aqui estaremos para cumprir o
protesto, lavando a honra desta Nação. Aqui re- nosso dever”.

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