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Daniel C.

Dennett

Quebrando o encanto
A religião como fenômeno natural

tradução:
Helena Londres

Quebrando encanto 3 11/8/06 5:17:56 PM


1. Quebra de qual encanto?

1. o que está acontecendo?

E ele lhes falou muitas coisas em parábolas, dizendo: olhai, um semeador foi
semear, e quando ele semeou, algumas sementes caíram à beira da estrada e as
aves vieram e as devoraram. [Mateus 13, 3-4]

Se a “sobrevivência do mais apto” tiver qualquer valor como slogan, então a


Bíblia parece ser um bom candidato para o prêmio de texto mais apto.
[Hugh Pyper, O texto egoísta: a Bíblia e a memética]

Observe uma formiga em um prado, laboriosamente subindo por uma


folha de capim, cada vez mais alto, até que cai, depois sobe outra vez, e
mais outra, como Sísifo rolando sua pedra, sempre tentando chegar ao
topo. Por que ela faz isso? Que benefício estará buscando para si pró-
pria nessa estranha e extenuante atividade? A pergunta é que está erra-
da. Não há benefícios biológicos para a formiga. Ela não tenta obter uma
visão melhor do território, nem procura comida ou se exibe para um par-
ceiro em potencial, por exemplo. Seu cérebro foi dominado por um para-
sita minúsculo, Dicrocelium dendriticum, que precisa entrar no estôma-
go de um carneiro ou de uma vaca para completar seu ciclo reprodutivo.
Esse pequeno verme cerebral dirige a formiga a uma situação que benefi-
cie sua progênie, e não a da formiga. Esse não é um fenômeno isolado. Do
mesmo modo, parasitas manipuladores infectam peixes e camundongos,

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entre outras espécies. Esses caronas fazem com que seus hospedeiros se
comportem de modos bizarros — até mesmo suicidas — para benefício do
parasita, não do hospedeiro.1
Será que com os seres humanos acontece alguma coisa parecida?
Acontece sim. Com grande freqüência encontramos seres humanos que
deixam de lado seus interesses pessoais, sua saúde, suas oportunidades de
terem filhos e dedicam a vida inteira a promover uma idéia que se fixou
em seus cérebros. A palavra árabe islam significa “submissão”, e todo bom
maometano dá testemunho disso, reza cinco vezes por dia, dá esmolas,
jejua durante o Ramadã e tenta fazer a peregrinação ou hajj a Meca, tudo
em nome da idéia de Alá e de Maomé, o mensageiro de Alá. Cristãos e
judeus fazem coisa parecida, é claro, devotando a vida a disseminar a Pala-
vra, fazendo sacrifícios enormes, sofrendo bravamente, arriscando a vida
por uma idéia. Os sikhs, os hindus e os budistas fazem o mesmo. E não
nos esqueçamos dos muitos milhares de humanistas seculares que deram
a vida pela Democracia, pela Justiça ou pela simples Verdade. Há muitas
idéias pelas quais se pode morrer.
Nossa possibilidade de dedicar nossa vida a algo que consideramos
mais importante que nosso bem-estar pessoal — ou nosso próprio impe-
rativo biológico de ter filhos — é um dos aspectos que nos diferenciam do
resto do mundo animal. Uma mãe ursa defenderá bravamente um espaço
que tenha alimentos e defenderá com ferocidade sua cria, ou até sua toca
vazia. Provavelmente, contudo, já morreu mais gente na brava tentativa de
proteger locais e textos sagrados do que na tentativa de proteger reservas
de alimentos para seus filhos e suas casas. Como outros animais, temos
desejos inatos de nos reproduzir e de fazermos o que for necessário para
atingir essa meta, mas também temos crenças e a capacidade de trans-
cender nossos imperativos genéticos. Esse fato nos torna diferentes, mas
é em si mesmo um fato biológico, evidente para a ciência natural, e algo
que exige uma explicação da ciência natural. Como apenas uma espécie,
o Homo sapiens, veio a ter essas perspectivas extraordinárias quanto à sua
própria vida?
Dificilmente alguém dirá que a coisa mais importante na vida é ter

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mais netos que seus rivais, mas esse é o default summum bonum de todo
animal silvestre. É tudo o que eles sabem. Eles não passam de animais.
Existe uma exceção interessante, parece: o cachorro. O “melhor amigo
do homem” não consegue mostrar uma dedicação que rivaliza com a de
seu amigo homem? O cachorro não chega a morrer, se necessário, para
proteger seu dono? Sim, e não se trata de mera coincidência o fato de
que esse traço seja encontrado nas espécies domesticadas. Os cachorros
de hoje são descendentes daqueles que nossos ancestrais mais amaram e
admiraram no passado; sem sequer tentar criá-los para a lealdade, conse-
guiram que isso acontecesse, tirando o que há de melhor (de seu ponto
de vista, do nosso ponto de vista) nos animais que nos servem de com-
panhia.2 Será que, inconscientemente, modelamos essa dedicação a um
dono segundo nossa própria devoção a Deus? Estaríamos modelando os
cachorros à nossa própria imagem? Talvez; mas, então, de onde tiramos
nossa devoção a Deus?
É provável que a comparação com que comecei este livro, entre um
verme parasita que invade o cérebro de uma formiga e uma idéia que inva-
de um cérebro humano, pareça um tanto forçada e também ultrajante. Ao
contrário dos vermes, as idéias não são seres vivos e não invadem cérebros;
elas são criadas por cérebros. As duas coisas são verdadeiras, mas não são
objeções tão reveladoras como a princípio parecem. Idéias não são seres
vivos; elas não conseguem enxergar aonde estão indo e não têm mem-
bros com os quais guiar um cérebro hospedeiro, mesmo que conseguis-
sem enxergar. É verdade, mas um Dicrocelium dendriticum também não é
exatamente um cientista de foguetes espaciais; não é mais inteligente que
uma cenoura, na verdade; nem sequer tem um cérebro. Tudo o que tem
é a boa sorte de ser dotado com características que afetam os cérebros
de formigas dessa maneira útil sempre que entram em contato com elas.
(Essas características são como as manchas semelhantes a olhos nas asas
de borboletas, que algumas vezes enganam as aves predadoras, fazendo-as
pensar que algum animal grande as está olhando. Os pássaros se afastam
e as borboletas se beneficiam, mas sem mérito algum por isso.) Uma idéia
inerte, se for projetada acertadamente, poderá ter um efeito benéfico sobre

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um cérebro sem precisar saber que isso está acontecendo! E, se tiver, ela
poderá prosperar, porque é feita por aquele projeto.
A comparação entre a Palavra de Deus e um Dicrocelium dendriticum
é inquietante, mas a iniciativa de comparar uma idéia a uma coisa viva não é
nova. Tenho uma partitura de música escrita em pergaminho de meados
do século xvi que achei há meio século em um sebo de Paris. O texto (em
latim) conta a moral da parábola do semeador (Mateus 13): Semen est ver-
bum Dei; sator autem Christus. A Palavra de Deus é uma semente, e o
semeador da semente é Cristo. Parece que essas sementes se enraízam em
indivíduos e fazem com que esses seres a disseminem, por toda parte (e,
em compensação, os hospedeiros humanos alcançam a vida eterna — eum
qui audit manebit in eternum).
Como as idéias são criadas pelas mentes? Pode ser por inspiração
milagrosa, pode ser por meios mais naturais, já que as idéias se dissemi-
nam de mente para mente, sobrevivendo a traduções entre linguagens
diferentes, pegando carona em cantigas, ícones, estátuas e rituais, unindo-
se em combinações estranhas na cabeça de pessoas em particular, onde
dão origem ainda a outras novas “criações”, que trazem semelhanças de
família com as idéias que as inspiraram, mas acrescentam características
novas e outros poderes à medida que avançam. E talvez algumas das idéias
“selvagens” que inicialmente invadiram nossas mentes tenham tido des-
cendentes que foram domesticados e amansados quando tentamos nos
tornar seus donos, ou pelo menos seus administradores, seus pastores.
Quais são os antepassados das idéias domesticadas que hoje se dissemi-
nam? Onde e por que elas foram originadas? E uma vez que nossos ante-
passados assumiram o objetivo de disseminar essas idéias, não apenas as
abrigando, mas nutrindo-as, como essa crença na crença transforma as
idéias que estão sendo difundidas?
As grandes idéias da religião têm nos mantido, nós, seres humanos,
enfeitiçados há milhares de anos, ao longo de um tempo maior que o da
história registrada, porém ainda um breve momento em termos de tempo
biológico. Se quisermos compreender a natureza da religião, hoje, como
um fenômeno natural, devemos examinar não apenas o que ela é hoje, mas

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o que era antes. Um relato das origens da religião, nos próximos sete capí-
tulos, irá nos dar uma nova perspectiva para examinar, nos últimos três
capítulos, o que a religião é agora, por que ela significa tanto para tanta
gente, e sobre o quê elas podem ter ou não razão em seu entendimento
como pessoas religiosas. Aí poderemos ver melhor aonde a religião poderá
ir no futuro próximo, nosso futuro neste planeta. Não consigo pensar em
um tópico mais importante para ser investigado.

2. um a d e f i n i ç ã o q u e f u n c i o n a pa r a a r e l i g i ã o

Os filósofos ampliam o significado das palavras até que elas pouco conservem de
seu significado original; ao chamar de “Deus” alguma abstração vaga que criaram
para si mesmos, eles se apresentam como deístas, crentes, ante o mundo; podem
até se orgulhar de terem atingido uma idéia mais elevada e mais pura de Deus,
embora o Deus deles não passe de uma sombra sem substância e não seja mais a
personalidade poderosa da doutrina religiosa.
[Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão]

Como defino religião? Não importa apenas como a defino, já que tenho pla-
nos de examinar e discutir os fenômenos seus vizinhos que (provavelmen-
te) não são religiões — espiritualidade, compromisso com organizações
seculares, devoção fanática a grupos étnicos (ou times esportivos), supers-
tição... Então, seja onde for que eu “trace o limite”, de qualquer modo irei
ultrapassá-lo. Como se verá, aquilo que em geral chamamos de religião é
composto de uma variedade de fenômenos bastante diferentes, que surgem
de circunstâncias diferentes e têm diferentes implicações, formando uma
família frouxa de fenômenos, não um “tipo natural”, como um elemento
químico ou uma espécie.
Qual a essência da religião? Esta pergunta deve ser encarada com
certa desconfiança. Ainda que haja uma afinidade profunda e importante
entre muitas ou mesmo a maioria das religiões do mundo, certamente há
variações que compartilham de alguns aspectos típicos, ao mesmo tempo

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que carecem de uma ou outra feição “essencial”. Assim como a biologia da
evolução progrediu durante o século passado, nós aos poucos avaliamos
os motivos profundos para agrupar as coisas vivas do modo como o faze-
mos — esponjas são animais, e as aves têm relações mais estreitas com
os dinossauros que os sapos —, e novas surpresas ainda são descobertas
a cada ano. Dessa forma, deveríamos prever— e tolerar — alguma difi-
culdade na tarefa de chegar a uma definição à prova de contra-exemplos
para algo tão diverso e complexo como a religião. Tubarões e golfinhos se
parecem bastante e apresentam vários comportamentos semelhantes, mas
não são de jeito algum o mesmo tipo de coisa. Talvez, uma vez conhecido
melhor o campo inteiro, vejamos que o budismo e o islamismo, apesar de
todas as suas semelhanças, merecem ser considerados como duas espécies
de fenômeno cultural diferentes. Podemos começar com o senso comum
e a tradição, considerando-os, os dois, religiões, mas não devemos nos dei-
xar cegar pela perspectiva de que nossa classificação inicial pode ter de se
ajustar à medida que aprendemos mais. Por que dar de mamar a seus filho-
tes é mais fundamental que viver no mar? Por que ter uma coluna vertebral
é mais fundamental que ter asas? Agora isso pode parecer óbvio, mas não
era óbvio no raiar da biologia.
No Reino Unido, a lei que diz respeito à crueldade com os animais
traça um importante limite moral que leva em conta se o animal é vertebra-
do: no que diz respeito à lei, você pode fazer o que quiser com um verme,
uma mosca ou um camarão, mas não com uma ave, um sapo ou um camun-
dongo vivo. Este pode ser um lugar bastante bom para traçar o limite, mas
as leis podem ser modificadas — e esta o foi. Cefalópodes — polvos, lulas
— recentemente foram promovidos a vertebrados honorários, na verdade,
porque, ao contrário de seus primos moluscos, os mexilhões e ostras têm
sistemas nervosos bastante sofisticados. Parece-me um ajuste político sábio,
uma vez que as semelhanças importantes para a lei e a moralidade não se
alinhavam perfeitamente com os profundos princípios da biologia.
Podemos achar que o problema de traçar um limite entre religião e
seus vizinhos mais próximos pertencentes aos fenômenos culturais está
cercado de questões parecidas, embora mais perturbadoras. Por exemplo,

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uma lei (pelo menos nos Estados Unidos) que separa religiões segundo sta-
tus especiais, declarando que algo que era encarado como religião na ver-
dade é alguma outra coisa, está fadada a ter mais do que interesse acadê-
mico para aqueles envolvidos. A Wicca (bruxaria) e outros fenômenos do
movimento Nova Era têm sido defendidos como religiões por seus segui-
dores exatamente com o objetivo de elevá-las ao status legal e social tra-
dicionalmente desfrutado pelas religiões. Por outro lado, há quem declare
que a biologia da evolução é na verdade “apenas mais uma religião”, e, por-
tanto, que suas doutrinas não têm lugar no currículo das escolas públicas.
Proteção da lei, honra, prestígio e uma isenção tradicional de determinados
tipos de análises e críticas — tudo isso depende bastante de como definimos
religião. Como devo lidar com essa delicada questão?
Como uma primeira tentativa, proponho definir as religiões como um
sistema social cujos participantes confessam a crença em um agente ou agen-
tes sobrenaturais cuja aprovação eles buscam. É claro que essa é uma manei-
ra tortuosa de articular a idéia de que uma religião sem Deus ou deuses é
como um vertebrado sem coluna vertebral.3 Alguns dos motivos para essa
linguagem em circunlóquios estão bastante claros; outros aparecerão com
o tempo — e a definição está sujeita a revisão, é um ponto de partida, não
algo esculpido em pedra para ser defendido até a morte. De acordo com
essa definição, um devotado fã-clube de Elvis Presley não é uma religião,
porque embora os membros possam, em um sentido bastante óbvio, adorar
Elvis, ele não é considerado por eles literalmente sobrenatural, mas apenas
um ser humano especialmente grandioso. Se alguns fã-clubes resolverem
que Elvis é realmente imortal e divino, então estarão realmente no cami-
nho de iniciar uma nova religião. Um agente sobrenatural não precisa ser
muito antropomórfico. O Jeová do Velho Testamento é sem dúvida um tipo
de homem divino (não uma mulher) que vê com olhos e ouve com ouvi-
dos — e fala e age em tempo real. (Deus esperou para ver o que Jó faria e
então falou com ele.) Muitos cristãos, judeus e maometanos contemporâ-
neos insistem em que Deus, ou Alá, é onisciente, não tem necessidade de
coisas como órgãos dos sentidos, e, sendo eterno, não age em tempo real.
Isso é intrigante, uma vez que muitos deles continuam a rezar para Deus,

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a esperar que Deus responda a suas preces amanhã, a expressar gratidão a
Deus por ter criado o universo, e a usar expressões como “o que Deus quer
que nós façamos”, e “Deus tem misericórdia”, atos que parecem estar em
contradição direta com sua insistência de que o seu Deus de modo algum
é antropomórfico. De acordo com uma tradição já bem antiga, essa ten-
são entre Deus como agente e Deus como um Ser eterno e imutável é um
aspecto que está além da compreensão humana, e seria bobagem e arro-
gância tentar entendê-lo. Até aqui é o que se pode ter, e esse tópico será
tratado com cuidado mais adiante, porém não podemos prosseguir com
minha definição de religião (ou qualquer outra definição, na verdade) até
que (de modo experimental, dependendo de maiores esclarecimentos) nos
tornemos um pouco mais explícitos em relação ao espectro de opiniões per-
ceptíveis por trás desse nevoeiro piedoso de recatada incompreensão. Pre-
cisamos buscar outras interpretações antes de decidir como classificar as
doutrinas que as pessoas esposam.
Para algumas pessoas, a prece não é literalmente falar com Deus, mas
uma atividade “simbólica”, um jeito de falar consigo mesmo a respeito de
suas mais profundas preocupações, expressadas de modo metafórico. É
como iniciar um diário com “Querido Diário”. Se o que elas chamam de
Deus realmente não é um agente, a seus olhos, um ser que pode atender
às preces, aprovar e desaprovar, aceitar sacrifícios e impor castigos ou per-
dão, então, embora elas possam chamar este Ser de Deus e reverenciá-lo
(e não a Ele), esse credo, seja lá qual for, não é verdadeiramente uma reli-
gião, de acordo com a minha definição. É talvez um maravilhoso (ou terrí-
vel) substituto da religião, ou uma religião primitiva, descendente de uma
religião genuína que apresenta muitas familiaridades com a religião, mas é
uma espécie inteiramente diferente.4 Com o objetivo de esclarecer o que
são as religiões somos obrigados a admitir que algumas delas podem ter se
transformado em algo que não é mais religião. Isso certamente aconteceu
com práticas e tradições particulares que faziam parte de religiões genu-
ínas. Os rituais de Halloween não são mais rituais religiosos, pelo menos
nos Estados Unidos. As pessoas que despendem grandes esforços e dinhei-
ro para participar desses rituais não estão, portanto, praticando uma reli-

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gião, embora suas atividades possam ser alocadas em uma clara linhagem
de descendência das práticas religiosas. A crença em são Nicolau (Papai
Noel) também perdeu seu status de crença religiosa.
Para outros, a prece significa realmente falar com Deus, que (como
pessoa, e não coisa) de fato ouve e perdoa. Seu credo é uma religião, de
acordo com minha definição, desde que seja parte de um sistema social
ou de uma comunidade mais ampla, e não a congregação de apenas um.
Sob esse aspecto, minha definição está profundamente em conflito com
a de William James, que qualificou a religião como “os sentimentos, atos
e experiências de homens, individualmente, em sua solidão, desde que se
vejam em relação com qualquer coisa que possam considerar divina” (1902,
p. 31). Ele não teria dificuldade em identificar um crente isolado como uma
pessoa dotada de religião; ele próprio, aparentemente, era um deles. Essa
concentração na experiência religiosa individual, privada, era uma escolha
tática para James. Ele achava que crenças, rituais, armadilhas e hierarquias
políticas da religião “organizada” serviam para desviar a atenção da raiz
do fenômeno, e esse caminho tático deu frutos maravilhosos. Mas James
dificilmente poderia negar que esses fatores sociais e culturais afetavam
sobremaneira o conteúdo e a estrutura da experiência individual. Hoje há
motivos para trocar o microscópio psicológico de James por um telescópio
grande-angular biológico e social, examinando os fatores ao longo de gran-
des extensões de espaço e de tempo que moldam as experiências e ações
de pessoas individualmente religiosas.
Assim como James dificilmente poderia negar os fatores sociais e cul-
turais, eu dificilmente poderia negar a existência de indivíduos que, com
grande sinceridade e devoção, se consideram os comungantes solitários
daquilo que podemos chamar de religiões particulares. Em geral essas pes-
soas tiveram uma considerável experiência com uma ou mais religiões exis-
tentes e preferiram não ser seus adeptos. Sem negar importância a elas,
mas tendo necessidade de diferenciá-las das pessoas religiosas, muito mais
comuns, que se identificam com um credo ou uma igreja em particular que
possui muitos outros membros, eu as chamarei de pessoas espirituais, mas
não religiosas. Elas seriam, por assim dizer, vertebrados honorários.

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Há muitas outras variantes a serem consideradas no devido tempo
— por exemplo, pessoas que rezam e crêem na eficácia da prece, mas não
acreditam que essa eficácia seja canalizada por um Deus agente, que lite-
ralmente ouve as preces. Quero adiar a discussão de todas essas questões
até que tenhamos um sentido mais claro a respeito de onde surgiram essas
doutrinas. Proponho que o núcleo do problema da religião invoca deu-
ses que são agentes eficazes em tempo real e que representam um papel
central na maneira como os participantes pensam sobre o que deveriam
fazer. Lanço mão aqui da evasiva palavra “invocar” porque, como veremos
adiante, a palavra-padrão “crença” tende a distorcer e camuflar alguns
dos aspectos mais interessantes da religião. Como provocação, diria que a
crença religiosa nem sempre é crença. E por que é preciso buscar a apro-
vação do agente ou dos agentes sobrenaturais? Essa cláusula serve para
distinguir religião de “magia negra” de diversos tipos. Há pessoas — muito
poucas, na verdade, embora interessantes histórias populares a respeito de
“cultos satânicos” possam nos fazer pensar o contrário — que se acham
capazes de aliciar demônios com quem formam algum tipo de aliança
pecaminosa. Esses sistemas sociais (quase inexistentes) estão nos limi-
tes da religião, mas acho apropriado deixá-los de fora, uma vez que nossas
intuições se horrorizam com a idéia de que as pessoas que se envolvem
com esse tipo de bobagem mereçam o status especial de devoto. O que
aparentemente enraíza o respeito amplamente disseminado e mantido por
religiões de todos os tipos é o sentimento de que as pessoas religiosas são
bem-intencionadas, tentam levar uma vida moralmente boa, são honestas
em seu desejo de não fazer o mal e reparar suas transgressões. Alguém que
seja ao mesmo tempo egoísta e crédulo a ponto de tentar fazer um pacto
com agentes sobrenaturais malévolos a fim de conseguir o que quer, vive
em um mundo de superstição de histórias em quadrinhos e não merece
o mesmo respeito.5

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