o
-Estas aulas sobre a história do pensamento aparecem num momento
em que a compreensão da ,~istória tomou-se tarefa central e problema
~
urgente da atual reflexão teológica. Evidenciam a maneira como o próprio .-I-[/J
Tillich utilizava a história. Para ele o passado carregava em si o presente, U
e seu estudo era como uma afameda aberla para o futuro. Só se pode
viver no presente plenamente, aberlo para o futuro, em diálogo com
o passado, interpretando seus monumentos e compreendendo seus movimentos.
.8C História
do Pensamento
(j)
Este livro demonstra o poder da histÓlia para um teólogo que jamais
mergulhou no passado para escapar do presente. A história toma-se viva E
para o estudante que se deixa introduzir por Tiflich na sua força.' ~
C
&o
Cristão
"O
Carl E. Braaten
Editor .-CO
I-
'o
.....
.-[/J
I:
PAUL TILLICH
AS
TE
História
do Pensamento
Cristão
PAUL TILLICH
A publicaçoo deste livro foi possível
graças às contribuições da
Evangclischcs Missionswerk in Deutschland
(Hamburgo, Alemanha) e das
Igrejas Protestantes Unidas na Holanda-
Ministérios Globais (Utrecht),
às quais a Associaç5.o de Selninários
Teológicos EV~lngélicos agradece.
Vogais:
Prof Dr PaI/h D. Siepiers/ú (Recife)
Pro! Gi'IJOII /111)- Lindm (Sáo LeopoMo)
Pro! Dr \\7erner Wiese (Sáo Bento do Sul)
Secretário Geral
PIO! Ferlll/i1do Borlolleto Filho
Nota biográfica
1886 Pau] Tillich nasce no dia 2() de agosto em Star/:cddc! (atual Staroslcdle,
hoje 11<1 Po]Ôllla).
1921
1926 Die re!ígíü.~e Lilge der Gegemuart. Deu DdmoniJche. Kfúros und Logos.
1927-1929 Professor c:ltedr,úico !wllocírio de filosofia da religiilo e de filosofia
da cul tura da L: llt'i'ersidadc ele Leipzig.
1928 Das reLigúiJe ,)]lJltbo!.
1929-1933 Professor calcdní tin) em 111 ()SO fia c soei o]ogia, LI n i vcrsldadc de Iira 11 k-
furt-l\lain.
1942-1944 Discursos tl1l rneine dcutschen Freunde ((lOS m.eus amigos alem,lcs).
1955 Biblieal religioll and the search fir ultimaie realiil The New Beillg
1965 Paul Tillich rllurrc tlU dia 22 de outu bro e111 Chica6'1).
A coragem de ser
(1"'11(' couragc to bc), Rio de .Janeiro, Paz c
.
TCJ:rJ., 1972.
A ertl protestante
(rile protestal1t era), Sào Paulo, Ciências d:l Religião, 1992.
li:ologia SiStemática
(Systematic thcology), S:lo Paulo-Silo Leopoldo, Paulinas-
Sínocbl, 19H4.
Cristão
PAUL TILLICH
terceira edição
tradução de
Jaci Maraschin
ASTE
São Paulo
2004
Título origilLll: 11IJi.r/OI)! r{C),ri([illIl T!I()II<~/It. l'ubliGH!o prilllcir,llllclHC cm NOV~l York por HarJlCl
~llld Row em 19G8. © I Luuuh Tillieh ]9GS. Primcir'l cdi'iJO em língua portllglles,l ,b Assocúç:lo
de Selllin:írios Teolrígieos Evang~licos © I:JKS, Scgumb ediç:io em língua portuguCSJ da Associa'i:lo
de Scmin:írios To:ológícus EV'lllglqicos © lO(}O. Tnccira b.lí'i:io cm língua portllgues:l dei Assocúç:io
de SClllill,íríos Teológicos FV:1llgélicos © ;".()()·1. ']()t1II'i os diro:iros n:scrVJdos.
Di/"cção cditorial
FCJ"I/llIIdo Bar/alia0 FilIJo
Rcvisiio
Femrll/{lo BO/"lollao FiIIJo c Otfrúr Per/roso Matel/S
Diagrrlll/flç!io
KtltIJil/"i/Jrl Volllllcr Malcus
Capa:
i\1t1rCOS (,'iallclli
FdilO/"tfçiio
/-;'miJInllt! Idéias ViJlflfiJ'
Clii/)/'·iildirl{·;,f.(~i{/I!! ,-Oll!
PREFÁCIO 16
INTRODUÇÃO
OCONCEITO DEDOGMA 18
CAPÍTIJLOI
APREPARAÇÃO PARA OCRISTIANISMO 24
A. Kairos 24
B. Universalismo do império romano 25
C. Filosofiahelênica 25
1. Ceticismo 26
2. A uadição platônica 28
3. Estoicismo 29
4. Ecletismo 31
D. Período intertestamentário 32
E. Religiães de mistério 35
EMetodologia do Novo Testamento 36
CAPÍTULO 11
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NAIGREJAANTIGA 38
A. Pais apostólicos 38
B. Movimento apologético 44
1. Filosofia cristã 47
2. Deus c Lagos 49
11
C. Gnosticismo 52
D. Os pais antignósticos 56
l. Sistema de autoridades 57
2. A reação monranista 58
3. Deus criador 60
4. História da salvação 62
5. Trindade e crisrologia 64
6. O sacramento do batismo 66
E. Neoplatonismo 68
EClemente eOrígenes de Alexandria 72
1. Cristianismo c fllosol1a 72
2. Método alegórico 74
3. Doutrina de Deus 76
4. Cristologia 78
5. Escatologia 80
G. Monarquismo dinâmico emodalisra 81
1. Paulo de Samosata 82
2. Sabélio 83
H. Controvérsia trÍnitária 84
1. Arianismo 85
2. Concílio de Nicéia 87
3. Atanásio e Matcelo 89
4. Teólogos capadócios 92
l. Cristologia 95
1. Teologia anrioquena 95
2. Teologia alexandrina 99
3. Concílio de Calcedônia 100
4. Leôncio de Bizâncio 102
j. Pseudo-Dionísio Areopagita 104
K Tertuliano e Cipriano 112
L. Vida epensamento de Agostinho 117
1. O itinerário de Agostinho 117
2. A epistemologia de Agostinho 124
3. Idéia de Deus 128
4. Doutrina do homem 131
5. Filosofia da história 133
6. Controvérsia pelagiana 134
7. Doutrina da Igreja 142
12
CAPÍTULO III
OMUNDO MEDIEVAL 145
A. Elcolasticismo, misticismo ebiblicismo 146
B. Método escolástico 148
C. Feiçães do escolasticismo 150
I. Dialética e tradição 150
2. Agostinismo e aristotelismo 151
3. Tomismo e escotismo 151
4. :-Jominalismo c realismo 152
5. Panteísmo e doutrina da ig['ej~l 154
D. Forças religiosas 154
E. AIgteja medieval 158
ESacramentos 163
G. Anselmo de Cantuária 166
H. Abelardo de Paris 174
I. Bernardo de Claraval 179
J. Joaquim de Fiori 182
K. OSéculo treze 186
L. Doutrinas de Tomás de Aquino 1%
M. Guilherme de Ockham 202
N. Misticismo germânico 205
O. Os pré-reformadores 206
CAPÍTIJLO IV
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTOAO SÉCULO VINTE 212
A. OSignificado da Contra-Reforma 212
B. Doutrina das autoridades 213
C. Doutrinado pecado 214
D. Doutrina da justificação 215
E. Sacramentos 216
EInfalibilidade papal 219
G. Jansenismo 222
H. Probabilismo 224
I. Catolicismo atual 225
13
CAPÍTULO V
ATEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES 227
A. Martinho Lutero 227
1. A ruptura 227
2. A crírica de Lutero à igreja m
3. Conf1iro com Erasmo 236
4. O conflito de Lurcro com os evangélicos r~l(licais 237
5. Doutrinas de Lutero 241
a. Princípio bíblico 241
b. Pecado e fé 243
c. Idéia de Deus 245
d. Doutrina de Cristo 247
e. Igreja e Escado 249
B. Huldreid, Zwínglio 254
C. João Calvino 259
\. A majestade de Deus 259
2. Providência c predesrimç:io 261
3. Vida cristã 266
4. Igreja e Escado 268
5. Autoridade das Escriwras 270
CAPÍTULO VI
ODESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE 272
A. Ortodoxia 272
1. Razão e revelação 274
2. Princípio formal c princípio materi;"!l 275
B. Pietismo 279
C. Iluminismo 282
14
Prefácio àsegunda edição brasileira
Ao publicar esta segunda edição brasileira das aulas de Paul Tillich que recebe-
ram o nome de jJistóritl do PeWt17nento Crútão, a Associação de Seminários Teológi-
cos Evangélicos - A5TE completa o conjuIllo que este livro forma com outro, Pers-
pectivils da 'j"t'o!ogia ProtCSlfllllC NOS Sécu!os XIX e XX, publicado também elll segunda
cdiçáo, no segundo semestre do ano passado. 550 obras que se completam e permi-
[em o acesso ao pensamento de um dos maiores rcólogos do nosso século.
Assim como ocorreu com PenpectivflJ, csra obra teve seu texto revisado e tIve-
mos condições de torná-la disponível com lima apresentação gráfica de excelente
qualidade. Além disso, es(;} segunda ediç5.o brasileira inclui Ulll índice de nomes,
importante recurso neste tipo de obra.
Para a A5TE é um privilégio publicar mais uma vez esta obra e, assim, ajudar a
aumentar o j;i imenso número de "alunos" dos cursos de Paul Tillich.
Agosto de 2000
editor da ASTT.
15
•
PREFÁCIO
Esta edição das aulas de Paul Tillich sobre a história do pensamento cristão
revisa ü texto da segunda edição de 1956. A primeira edição reunia essas mesmas
aulas proferidas por ele em 1953, no Seminário Teológico Unido de Nova Yorlc As
palavras de Tillich foram esrenograbdas e transcritas por Peter H. John e por cle
distribuídas numa pequena edi\~jo. No prefácio da "segunda ediçáo" desse traba-
lho, Percr Johl1 observava que "tentara corrigir erros de tipografia, de ortografia c
outros de transcrição", E reconhecia ;1 necessidade de uma revisão mais profunda do
texto "no que conccrne ao estilo c ao conteúdo", que talvez viesse a ser feita no
futuro. Em termos ideais, (aI revisão teria que ser realizada com a assistência do
próprio Tillich. Sem a sua ajuda esta revisão n:1o seria tão completa como seria de
esperar. Embora eu tenha sido liberal 110 tratamento do estilo, modiflcando-o quando
necessário, tratei do conteúdo de (orma conservadora.
Esta Hútória rio PCllSfllilClllO Cristão de Tillich pode ser recebida como comple-
mento ao seu livro PenpectiuilS tia Tt'ologia ProlC.lftllltc dOJ SéculoJ XIX c )0\" formando
com este '0 conjullto da vis:1o do autor da tradiç:1o clássica cristã. Esse livro começa
onde o outro termina. Há certa coincidência no tratamento da ortodoxia c do
iluminismo em relação com o pwtesrantismo. Os estudantes da história intelectual
do cristianismo e da teologia colltemporJnea terão necessidade de ler as duas obras
para apreciar plenamente a maneira como Tillich apreende essa tradição. Essas obras
revelam a profundidade histórica ela percepção de Tillich mais diretamente do que
seus OlltroS ensaios incluindo mesmo a 'It'ologia Sistemática.
16
mergulhou no passado para ~scapar do presente. A história (Orna-se viva para o
estudante que se deixa introdu/.ir por Tillich na sua força.
Os que foram alunos de Tillich conhecem estas aulas muito bem. Espera-se,
conrudo, que esta ediç~ão sirva às necessidades de uma nova geração de estudantes
de teologia que não tiveram a sorre de ter Tillich corno professor ou de conviver com
ele. Sinto-me honrado por editar esta obn bem como as Perspectivas. Desejo expres-
sar minha profunda gratidão J. senhora Hannah Tillich e a Robert C. Kimball,
encarregado do testamento de Tillich, pela permissão que deram a este trabalho.
Também agradeço ao meu colega, Roben I-I. Fischer, pelas sugestões que me deu
para melhorar o texto.
C/ir! E. Braaten
Oxford, Inglaterra
setembro de 1967
17
INTRODUÇÃO
OCONCEITO DE DOGMA
18
o CONCEITO DE DOCMA
gras da lógica que se miliza de certos métodos para tratar com experiências. Quan-
do esse pensamento metodológico se expressa, por meio da fala ou de escritos e é
comunicado a outras pessoas, produz doutrinas teológicas. Trata-se de um passo
além do liSO lluis primitivo do pensamento. Idealmente, tal procedimento conduz
a sistemas teológicos. Ora, os sistemas não são feitos para permanecermos neles. Os
que se prendem dentro de determinados sistemas começam a sentir, depois de
algum tempo, que os sistemas se transformam em prjs5o.S~yo_cês c6<lrell1 sistemas
teológicos, como cu criei a minha teologia sistemática, scrál'reciso ir além do sisrc-
~~ • _ _~ ~ ..... - O" ._"._ " __ 0 ' _
. ma para não sc aprisionar nele. Não obstaIlte, o sistema é nccessário por causa de
sua consistência._Na minha experiência, os estudantes que mais se rebelam contra o
.~~~E~!.~e:Tsistemático de minl:~~~.~c:.l?gj~'~'~~"_~:T'~1~!:_~~~~:~:.~E:O:-'~h!12_~_~sLl.l~'p~l~ien~e~..cLl:~.~~
c.Lt:s~obre_l!1 (lue dois enunciados de minh;l autoria se contradizem entre si. Sentcm-
se frustrados quando encontram pontos vulneráveis na estrutura do sistema. E en-
tão, quando consigo superar essa contradição, acham que estou tentando aprisioná-
los rnaldosamenre no meu sistema. Trata-se de curiosa reação. Mas é uma reação
compreensívcl. Quando se considera o sistema resposta definitiva e final, c1e se
torna pior do que qualquer prisão. Mas se entendermos o sistema como esforço de
reunir conceitos teológicos em formas consistentes de expressão, sem contradições,
ele se [Orna inevitável. Mesmo se pensarmos fragmentariamente, como certos filó-
sofos e teólogos (alguns até mesmo extraordinários), cada Fragmento conterá o siste-
ma implicitamente. Quando lemos os fragmentos de Nietzsche - em minha opi-
nião o melhor filósoFo que escreveu nesse estilo - encontramos todo um sistema de
vida implícito em cada um deles. Não se pode, pois, evitar o sistema, a não ser que
se escolha dizer asneiras ou escrever dc modo contraditório. Naturalmente, às vezes
ISSO acontecc.
19
INTRODUC,:ÃCJ
211
o C:OJ\:CEITO m: DOCMA
Uma vez que essas novas formulações protetoras estavam sujeitas à interprera-
_S?CS errôneJs, sempre havia a necessidade de formulações teóricas mais precisas. _
Não se podia realizar essa tarefa sem a ajuda ~ie termos filosóficos. Foi assim que
lnuitos conceitos tllosótlco~ entraram nos dogmas cristãos: Não é que as pessoas se
interessassem por eles enquanto conceitos filosóficos. Lutcro era muito franco a
respeito. Dizia abertamente que não gostava de termos como "trindade", "/'ornoollsius",
e outros do mesmo tipo, embora admitisse a necessidade de seu uso, certamente
impróprio, porque não tínl1Jmos termos melhores. Novas formulações teóricas pre-
cisam ser feitas sempre que J. subst,lncia da fé comece a ser ameaçada por doutrinas
ou teologias inadequad;ls.
Deu-se mais UIll passo na história desse conceito. Os dogmas começaram a ser
aceims como lei canôniCl da igrejJ. A lei, segundo o cânon, é a regra do pensamento
ou do comportamellto.:....~ lei canônica é a lei ~clesi,í.stica à qU;l1 todos os q~lep<?J:~~"':::'
cem à igreja devem se submeter.. Assim, o dogma recebe sanção legal. Na Igreja
Romana o dogma faz panc da lei canônica. Sua autoridadc cmana do domínio da
lei. roi assim que se desenvolvcu a Igreja Romana. A própria palavra "romana"
cano ta esse desenvolvimento legalista.
Entretanto, a enorme reação contra o dogma nos últimos quatro séculos não
teria havido se talvez não tivesse surgido um novo fato: a aceitação da lei eclesiástica
pela sociedade medieval como lei civil. Com isso, a pessoa que quebra a lei canônica
das doutrinas náo é só herege, discordando das doutrinas fundamentais da igreja,
mas criminoso contra o Estado. roi precisamente o que produziu a reação radical
na época moderna contra o dogma. Posto que o herege não apenas subverte a igrej;l,
mas também o Estado, não lhe basta a excomunhão; dcve ser entregue às autorida-
des civis para ser punido como criminoso. roi cOl1tra essa situação que o iluminismo
se rebelou. A Reforma, na verdade, não ll1u(brJ. esse procedimento. Não há dúvida,
porém, de que desde o iluminismo rodo o pensamento liberal se caracterizou pela
21
INTRO[)UÇÃO
recusa do dogma. Essa atitude teve o apoio do desenvolvimento da ciência. Para que
a ciência e a filosofia pudessem crescer criativamente era preciso que tivessem com-
pleta liberdade.
22
o CONCEITO DE DOCIvIA
23
CAPÍTULO I
APREPARAÇÃO PARA OCRISTIANISMO
A. Kairos
Segundo o apóstolo Paulo nem sempre existe a possibilidade de acontecer o
que, por exemplo, aconteceu no aparecimento de Jesus, o Cristo. ~ vinda de Jesus
~~~1I num momento especilL~a história em que tudo esrJ.':.9- preparado. Vamos
discmir, agora, essa "preparação". Paulo fàb de l.:airos, para descrever o sentimento
de que ü tempo estava pronto, lll:1duro, ou preparado. Esta palavra grega cxcmplifica
a rique:t,a da língua grega em comparação com a pobreza das línguas modernas. Só
temos um vocábulo parJ. "tempo". Os gregos têm dois, chronos e k,ziros. CIlrollos é o
tempo do relógio, que se pode medir, como aparece em palavras como "cronologia"
c "cronômetro". KaÍros não tem nada a ver com esse tempo quantitativo do relógio,
mas se refere ao tcmpo qualiutivo da ocasião, o tempo ccno. Algumas histórias do
Evangelho falam dcssc tempo. Detcrminados t~tos acontccem quando o tempo
certo, o luziros, não chega. C~ualldo se Ella cm kairos se qucr indicar que alguma coisa
aconteccu tornando possíveis ou impossíveis cerras ações. Todos nós experimenta-
IllOS momentos em nossas vidas quando sentimos que agor:l é o tempo certo para
agirmos, que já estamos suficientemente maduros, que podemos tomar decisões.
Trata-se do latiros. Foi nesse sclltido que Paulo e a igreja primitiva falaram de kftiroS,
o tempo ccrro para a vinda do Cristo. A igreja primitiva e Paulo até cerro ponto
telHaram mostrar por que esse tempo era o tempo cerro, c de que maneira o scu
aparecimento tinha sido possibilitado por uma constelação providencial de btores.
24
A PRFI'ARN,:AO PARA O Cl\IST1AN1SMO
C. Filosofia helênica
No contexto desse 111undo únICO, dess;l hisrória lllundial e dessa monarquia
criada por Roma, encontramos o t-lcnSa!11Cnto grego. É o que se conhece como
período helênico da fllosotla grega.. Fazemos distinçG.o entre o período clássico do
_pCl!~?m.ento__gr~g~l_: _q~I_~ ~~_I~_1~~~_~~_I.12.? 111?rr~_.~I~_:'\:J~tótelcs, e o helênico, em que se
25
CAPíTULO I
1. Ceticismo
Esse V;lSto projeto dos filósofos gregos de criar UIll lllundo de signiflcados co-
meçou ;1 desmoron;H [10 ;lpag:n cLts luzes do mundo antigo e produziu o que chamo
de epílogo cético do desenvo!viIl1l,nto antigo. Originalmente, o termo s/;:epús queria
dizer "observar as COiS:1S". tVL1s :lSSUllliu um sentido negativo de examinar os dogmas,
;ué mesmo ;lS d()L~Tllflltt chs CSCOL1S greg:1S de fIlosofIa, paL1 rejeid-!os . .9.5. céticos,
assim, _(Jl!:~idaralll de rodas ~lS f'orJl1ubcoes das escolas de filosofia. Não que essas
escolas n8.o contivessem em seu ensino boa parte desses elementos céticos, como,
por exemplo, a aGldemia platôllicl. O cl'ticis~~2_~_llão<-:.~~~_~L~~Zl~'~I.~Ç,~L_~1~é,~._~
probabilismo e~_~~}_gc)~_que a.s O_ll.l:L~lS escob.s_.tS:l.r}}ar:V!.~ _ ::0t;._pra,g!I!;~~_ic.~~. Assim, essa
atmosfera cética invadiu todas as escobs e pcrmeou a vida toda no mundo antigo de
então. Trauva-se de assullto ViL11 e muito sério. Não se tratava novamente de se
sentar em lllesas de estudo Vlr;\ ckscoLnir que se podia duvidar de todas as coisas.
Essa rarcb seria comparativamente L-ici!. Na verdadc, csse movimcnto signiflcava o
desabamento de todas as convlcç~oes. A conseqüência dessa atitude - bastante carac-
26
A PREPARAÇÃO PARA O CRIS'['IANISlvIO
terística da ,mentalidade grega - foi uma espéCIe de .E~·:'l:.alisia da ação. Se não somos
mais capazes de pronunciar juízos teóricos, não podemos agir na pr;itica. Portanto,
introduziram a doutrina da cjJoché, "suspens:ío de juízo, reserva, não julgar nem
agir, não decidir nem teórica nem praticamente". A doutrina da cpoché significava a
resignação do juízo em todos os aspectos. Por isso os céticos retiraram-se para os
desertos vestidos de tlllla simples túnica ou manto. Os monges cristãos, mais tarde,
seguiram-nos nessa atitude, porque eles também se desesperaram sobre a possibili-
dade de se viver neste mundo. Alguns céticos da igreja primitiva eram sérios e
agiam de acordo, ao conrLÍrio ele certos céticos esnobes de nossos dias que não se
animam a arcar com as conseqüências de seu ceticismo, que levam vidas alegres e
conr'ordveis enquanto duvidam de todas as coiS:1s. Os céticos gregos retiraram-se da
vid:1 e assim mostraram-se consistentes.
gregas eram também comunidades cúlticas; eram meio ri[Uais e meio filosóficas.
Seus memT;~~~~'~I~I'~~~-i-;~-Il~'''\~;7e7'de acor~lo com as dourrinas de seus mestr~s.- Quando
sl~'rgiu o ;llovim'ento cético, procllr;~v:lI11 ;~il~~a (t~ tudo a certeza; queriaI;;--;~~~'-para
P9.4~E._y.i.:~!:. Acreditavam que os grandes mestres, Platão ou Aristóteles, o estóico
Zen30 ou Epicuro, e mais urde Plotillo, não eram apenas pensadores ou professo-
res, mas homens inspirados. Jv1uiw :lllles do cristianismo existir, a idéia de inspira-
çJO j<l se desenvolvia nessas escolas gregas: seus fundadores eram inspirados. Quan-
do membros dess:ls escolas entrar;lm lll:li,,; urde em discuss50 com crist:íos, diziam,
por exemplo, que não eLl Moisés o inspirado, ]lUS lled.clito. Ess~!:...doutrina da
~Ilspiração também ajudou o cristi:ltlislllO ,1 elHLU no mUl~~I~~:~~!.:2-.~ pur~~_náo era
_capaz de construir a realidade na qual se pudesse viver.
27
CAl'íHJLO [
~ra Ch~lIllado de Juta porque flzera a coisa m:lis imr.0rtantc ,que alguém poderia
h;.~~:--}~~l~s seus seguidores: li~~e:.EE~,:'_a-os ,cL~__ i!_~lJi0~~ia. --E'p'i~~l-r~:"~~>Z;~u sistema
materialista de átomos, libcruv:l ;IS pessoas dos demônios prescnt:cs !la roralidade
da vida do Illundo antigo. Vê-se bem que :I fllosofia era assullto muiw sério nessa
época.
2. A tradição platônica
.livrar da ~scravidão desse corpo, P:lI"d flllallllen.t.:.. se elevar acima do mundo materi-
al. _Q12.r-ºq::~_~9Y:t:i_:l,._~:~tgaxos~ C__P.O r etapas. Essa~j~~j~,,~~lp~lE~_~~~~~~_~~_~~,~I::,na ,igreja,
._. __ ~~o apeI~:::~.~.l:_~_?_:'_~l~_~sti~os crlsrJ.üs, I~a.':i também no ensino oficial dos pais da
Igreja.
3. Estoicismo
"
Os estóicos foram n1alS llllporrantcs do que Pbt:í:o e Aristóteles juntos para a
vida c o destino do mud9'/;ultigo. As vidas das pessoas educadas nessa época eram
moldadas principalmentc pela rradis<io cstóic~l. Em meu livro A Coragem de Ser,
tratei da idéia estóica de coragem Clpaz de levar as pessoas a aceitar o destino c a
morte. Demon.':;trei que o cristianismo e o estoicismo slo os grandes competidores
no mundo ocidenral. l\/bs quero demonstrar, Jgora, algo diferente. O cristianismo
tomou de seu rival muitas idéias fundamenuis. A prirTleira é a doutrina do Lagos,
doutrina que pode desesperar muita gente quando começa a estudar a história do
29
CAPÍTUlO I
Para os estóicos Lagos CLl o poder divino presente na realidade toda. Observe-
mos, a seguir, três aspecws desse pensamento, muim importantes nos desenvolvi-
mentos doutrin:írios pos[criore.s.--º-EriIllcir9._~_~)eida rL1tl.!..!:.~~~,~J;:g_gos é o prir~.çiP.io
__ ~1~~.~~:Il~~~~~1te do movimentO s-lt::_~g~Jº=:s__~l:~ __c:ojS3:.12..:....É a semente divina, o poder divino
criador, que faz COIll que as cois:ls sejam o que SJo. E é o poder çXi~,ÜY_~_S.tQ movimen-
to de todas as coisas. Em ~~~,I_~_~~!g:_ll:,!~g~.s.S)g!l.inCl, lei moral. Podemos chamá-
la, com Kant, de "razão pdtict, a lei illatZi em [Dcios os seres humanos que se
aceltZim como personalidade, com a dignidade e a grandeza do ser humano. Ao
lermos a expressão "lei narur:l!" em obras cLíssicas, não devemos confundi-la COIIl
lei físicas, mas entendê-h como lei morai. Por exemplo, quando se fala de "direitos
humanos" na constiruição americana, estj se blando de lei natural. EI~~ terceiJ:.2.,
.tugar, Logos também sigJ.2it~':~l.~~",c~p~~,i,ªade humana de reconhecer a realidade. É o
que se pode chamar de ,"1":11.50 teórica". Trata-se da capacidade hununa da razão.
Tendo o Lagos em si, o homem pode descobri-lo também na natureza c na história.
Para o estoicismo, decorre daí :1 idéia de qlLe os seres humanos quando determina-
dos pela lei natural, pelo Lagos, [OrJl:llll-se logil:os, dbios. }..1as os estóicos não eram
otimistas. Não acreditZivam que todas as peSSO:1S fossem d.bias. Achavam, até mes-
_ mo, que poucas pess0i.~~~~,?:l:S~~Y·~:ll1t~lL~~~elência. A maioriZi não passava de néscios
que, às ve~~~.,JLC:_~l~r~l!}l,[,l;l posiSª()Jl!tcrmec!dria entre esses e os sábios. () estoicismo
professava um pessimismo fundamental a respeito da maioria dos seres humanos.
50
A PREPARAÇÃO PARA. O CRlSTLANIS,\'1C)
que todo o mundo usasse adequadamente a raz5.o, nus entendiam que por meio da
educação rodos poderiam ud-la um dia. A concessão de cidadania romana a todos
os cidadãos das nações conquistadas representou trcmendo avanço nivelador. As
mulheres, os escravos e as crians:as, considerados interiores sob a antiga lei romana,
tonuvam-se iguais perallte as leis dos imperadores romanos. Não foram os cristãos
que inventaram essas coisas, mas os estóicos, por ;1creditarem na idéia de que todos
participam do Logos univcrsal. (Naturalmcnte, o cristianismo mantém a mesma
idéia em base diferente: todos os seres humanos são filhos de Deus Pai). Dessa
maneira, os estóicos concebcram a idéia de um cstado todo abrangedor, envolvendo
o mundo intciro, baseado na racionalidade comulll de todas as pessoas. O cristia-
_."----
n iSIll.<2 pod:Ei2.~,cr ._~"~!?E:9..?_~~sa idé ia desen vo Ive n ~.?_~.0_.~!L~.erenç~.~._(1 ue ?~._es~ói.~_
não tinham o conccito de pecado. ralavam em inscnsatez, mas não em pecado.
Assi::!.~"?_...:~~r~'l~~,?s.i-~~I~~~~~~,~v_:\_'por,meio
da- sabedoria..~~·~~~~~ti'~!SIllO·, a salvação-
!lOS é concedida pela ,graça divina. SJ.o duas atiru~1es conflitantes até hoje.
4. Ecletismo
.-- A igreja cristã absorvcu também o ecletismo. ,0 termo vem do grego e quer
\1~ dizer escolher alguma:. possibilidades entrc muitas. Os americanos não deveriam
estranhar essa atitude porque se assemclll:11l1 aos Jlltlgos romanos não só nessa pos-
tura como em muitas outras. Os ecléticos nio er;l.ll1 filósofos criativos como os
antigos filósofos gregos. Esses pensadores rOllunos combinavam, em geral, a políti-
Cl com preocupações sobre o Estado. Enquanto ecléticos não criaram novos siste-
mas. Em vez disso, escolheram (Cícero, por exemplo) os conceitos mais importan-
tes dos sistcmas cb.ssicos gregos que lhes pareciam pr:lgmaricarnente úteis para os
cidadãos romanos. Dessc ponto de vista, escolheram o que poderia produzir o me-
lhor modo de vida possível para os ciebd5.os romanos, enquanto cidadãos do mun-
do. Estas são as principais idéias selccionadas por eles, retomadas pelo iluminismo
do século dezoito: providência, porque dava segurança J vida do povo; Deus, por
scr inata em todos, induzindo ao temor dc Deus c à disciplina; liberdade moral e
responsabilidade, possibilitando a educaçao do povo e tornando o povo resistente
diante das falhas morais; c, finalmcnte, imortalidade, capaz de ameaçar com a pu-
nição num outro mundo os que CSClp;lVJlll do castigo aqui na terra. Essas idéias
rodas também preparam de cert;l forma o mundo antigo par;} o cristianismo.
51
CilPÍTULO I
D. Período intertestamentário
33
CAPÍTULO I
Lemos no quarto livro de Estiras: "Nós que recebemos a lei nos perderemos por
causa de nossos pecados, mas a lei jamais se perderá". Esse versículo expressa a
34
A PREPARAÇÃO PARA O Cm5TLANI5MO
E. Religiões de mistério
As religiões de mistério também influenciaram a teologia cristã primitiva. Tais
religiões não devem ser equacionadas com o misticismo. EnC?_lltra-se misticismo
._em Filan, por exemplo, em Slla dourrina do êxtase, ou ek-stasis, significando "ficar
for<~~~ si". Trata-se da mais alta forma de piedade além da fé. O misticismo reúne
o êxtase profético com o "entusiasmo", palavra que vem de en-theosmania, signifi-
cando possuir o divino. Surgem daí os sistemas místicos mais sofisticados dos
neoplatônicos como, por exemplo, Dionísio Arcopagica. Nesses sistemas místicos o
êxcase do indivíduo leva-o à união com o único c absoluto Deus.
35
CAPÍTULO I
__~ __~I<2~.umentado no Novo TCSl<lmCf1[(), Não podemos oferecer aqui \ü'i'r tcologia do
Novo Tesramenw, mas podemos mostrar, por meio de alguns exemplos, como o
Novo Testamento recebeu das religiões ao redor certas categorias de inrcrpreração e
as transformou à luz da realidade de Jesus, o Crismo Temos, então, dois momentos:
recepção e transformação. A~ categoria~ desenvolvidas nas várias religiõcs, no Anti-
go '!cstamento, e no pcríodo illtencstamendrio, foram utilizadas para interpretar o
evento da vinda de Jesus, mas os signifIcados dessas categorias foram transformados
quando aplicados a ele.
No que concernc à crisrologia, por exemplo, Messias erd antigo símbolo profé-
tico. Esse símbolo foi aplicado a Jesus pelos primeiros discípulos, provavelmente
desde os primeiros encontros com ele. Tratava-se de enonne paradoxo. Por um lado,
era adequado porque Jesus traziJ o novo ser, mas por outro lado, não era, porque
muitas das conotações do termo "i\J1cssias" iam além do surgimento histórico de
Jesus. Segundo os rclaros que temos, o próprio Jesus sentia a duplicidade dessa
interpretação. Portanto, proibiu os discípulos de usarem o termo. Pode ser que essa
proibição tenha aparecido apenas nos documentos posteriores, mas, seja como for,
reflete a ambigüidade existente.
36
li PREPARAÇAO PARA O CRISTIANISMO
muito utilizado pelos cultos de mistério. Aí rodos os deuses são Iqrioi, senhores.
Além disso, Jesus sempre Foi descrito como um ser finito e concre(Q. Por outro lado,
os deuses das religiões de mistério cram objetos dc união mística, como Jesus. Para
Pendo espeClalmentc, (lll<llquel peSSO,-l pode estai em Cristo (en Chrútó), isto é, no
_ poder,_ll? santidade e no temor de sel,l__ .~ex~
37
CAPÍTULO II
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA
A. Pais apost61icos
38
DESENVOLVIMENTO TEOU)GICO NA IGREJA ANTIGA
39
CAPíTULO 11
ros, dentre os gregos e judeus, para ser o povo de Deus. É verdade que os judeus
anteciparam a igreja e se constituíram eles mesmos numa espécie de ekldes1rt, l\1as
não constituíam o verdadeiro povo de Deus porque o verdadeiro povo de Deus
tinha que ser universalmente chamado de rodas as nações. Sendo esse o caso, era
necessário distinguir os chamados qllC se conformavam com o credo eclesiástico,
dos de fora c dos hereges de de!Hro. De que mancira~ De que modo se poderiam
determinar as verdadeiras doucrinas da igreja em contraste com ensinamentos oriun-
dos dos bárbaros, dos gregos ou dos judeus? A resposta é que esse julgamento só
poderia ser fcito pelo bispo que Cfa o "supervisor" da congregaçáo. O bispo repre-
sentava o Espíri(O supostamente prcsentc no intcrior da vida da congregação. O
bispo foi se tornando cada vez mais importante nas lutas dos cristãos contra os
pagãos, os judcus, os bárbaros e os hereges. Inácio escreveu na carta aos esrnirnianos:
"Onde est;í o bispo aí deveria estar a congregação".~,~._profetas que aparecessem
~deri_~1!2._~~_~a_r.~~!.:.t_C?:(~ll errados, mas o bispo senlpre estaria certo. Ele representava
a doutrina verdadeira. Originalmente, os bispos não se distinguiam dos presbíteros
ou anciãos. Gradualmentc, contudo, ele se tornou uma espécie de monarca entrc os
anciãos, fazendo nascer o episcopado monárquico. Tratava-se de um desenvolvi-
mento natural. Pois se a autoridade que garante a verdade pode se concretizar em
seres humanos, é quase inevitável a tendência para reduzi-la a um único indivíduo
capaz de fazer decisões em ú\tinlJ. insdncia. Já encontramos em Clemente de Roma
o'aços da idéia de sucessão apostólica, isro é, que os bispos representam os apósto-
los. Vê-se claramente quão cedo o problema da autoridade se tornou decisivo na
igreja, dando início à tendência que acabou plenamente desenvolvida na Igreja
Romana.
Estava nessa mesma linha a ênfase no Deus todo poderoso, o dejpoté.~, como era
chamado, o Senhor poderoso que tudo governa. Clemente exclama: "6 grande
demiurgo!", falando dele como o grande construtor do universo e Senhor de todas
40
DFSFNVOLVIMENTO TI:OL(lC;ICO NA IGRFJA ANTIC;A
as coisas. Esses conceitos que nos parecem tão naturais hoje em dia eram importan-
tes porque serviam de proteção coIHra o paganismo. A_º-º.!!_~.Li!1'::1_c:la~Fi~çáu a partir
. do r~~.9"~~.,._~_i;;,~i"~~~~~~"~E~~_ º~~1~_,,I1.~? encontrara a m~t~_l:ia_j_á pré-exi_~t_~~~~~.quando
começou a criar. Não podia haver matéria que resistisse à forma, como no
neoplatonismo pagão, que deva, porranto, ser transcendida. Em lugar disso, o mundo
material é objeto da criação de Deus: é um mundo bom e não deve ser menospre-
zado para enaltecer a salvação. _A palavra "demiurgo" era usada por Platão e pelos
gnÓ~I~~~,_p...:1}",a d~_s!_g_I~_ar um ser inf~~'i_C?L,~_"~ºeus altíssimo. O Deus altíssimo paira
acima de coisas tão humildes como a criação do mundo, deixando essa tarefa para o
demiurgo. Queria-se dizer que a realidade divina não estava presente no a(Q da
criação. Conrr;:uiando essa noção, Clemente afirmava que o grande demiurgo era o
próprio Deus. Não poderia haver dicotomia entre Deus altíssimo c o criador do
mundo. A criação tinha que ser um ato absoluto a partir do nada. Proclamava-se,
assim, o poder insupedvel de Deus. Mas a afirmação de que Deus era rodo-podero-
so não queria dizer que ele se sentava num trono e podia fazer qualquer coisa que
lhe viesse na cabeça como qualquer tirano arbitrário. Mas que Deus era a única base
das coisas criadas, e que n50 existe matéria alguma capaz de lhe oferecer resistência.
É o que quer dizer o primeiro artigo do Credo Apostólico: "Creio em Deus Pai Todo
Poderoso, criador do céu c da terra". Deveríamos pronunciar essas palavras com
grande reverência, porque, por meio dessa confissão, o cristianismo se separou da
interpretação dualista da realidade presente no paganismo. Não há dois princípios
eternos, o princípio mau da matéria tão eterno corno o bom princípio da forma. O
primeiro artigo do Credo é a grande muralha que o cristianismo ergueu contra o
paganismo. Sem essa separação a crisrologia teria inevitavelmente se dereriorado
num ripo de gnosticismo no qual o Cristo não seria mais do que um dos poderes
cósmicos entre outros, embora, ralvez, o maior dcles. Somente à luz do primeiro
anigo do Credo é que o segundo tem sentido. Ele não reduz Deus à segunda pessoa
da Trindade.
41
CAPÍTULO II
---.f~.4~-se dizer, em geral, que Jesus, o Cristo, era considerado um ser espiritual
pré-existente que transformara o Jesus histórico num agente de sua atividade
__salvadora. O Espírito era uma hypostflSis em Deus, um poder independente em
completa união com Deus. O filho desceu aos domínios da carne. "Carne" sempre
quer dizer realidade histórica. Ele aceitou a carne; pode-se igualmente dizer que a
carne cooperou com o Espírito nele. () Espírito Santo habitou na carne que esco-
lheu. E ele se tornou o Filho de Deus por meio de sua ação.
Ao lado desta, havia outra idéia. Poder-se-i:::t dizer também que o primeiro
Espírito, o praton pnfltma, se fizera carne. Inácio dizia, por exemplo: "Cristo é
Deus e perFeito homem ao mesmo tempo. Procede do Espírito e da semente de
Davi". Queria dizer que ele não era apenas um poder espiritual que aceitara a carne,
mas que enquamo poder espiritu:d se fizera carne.
filtros, médico, era um ouno termo empregado. A salvação era aqui ainda en-
tendida como cura. Esse médico curava tanto carna!meIHc como espiritualmente.
Idéias bastante misturadas eram usadas para sublinhar o evento de certa forma
paradoxal do Cristo. Esse poder espiritual divino aparecera, afinal, nas condições da
humanidade e da existência. Assim, ele é descrito como tendo origem genética e, ao
mesmo tempo, sem origem genética. Vem na carne. Enfrenta a morre. Mas é Deus
que vem na carne e vence a morte. E tem vida eterna. Nasce de Maria e de Deus. É
capaz de sofrer e de não sofrer, por causa de sua elevação a Deus.
Inácio podia dizer: "Pois h~l um único Deus que se manifestou por meio de
Jesus Cristo seu filho, que é seu logos, procedeme de seu silêncio". E na segunda
carta de Clemente lemos: "Sendo o primeiro Espírito, o cabeça dos anjos, tornou-
se carne. Sendo o que aparece em forma humana, Cristo é o verbo procedentc do
silêncio". Ele procede do silêncio, apo sigés. Ele quebra o silêncio cterno do funda-
mento divino. Como tal, é Deus e completamentc homem. A mesma realidade
histórica é um c outro, ambos numa só pessoa. Poder-se-ia falar de uma mensagem
dupla (uma diplon ker)lgrna), que esse mesmo ser era ao mesmo tempo Deus e
homem.
12
DESENVOlVIMENTO TEOI()GICO NA IGREJAANTICA
Cristo nos chamou das trevas para a luz; levou-nos a servir o Pai da verdade. A
nós que não tínhamos ser, ele nos chamou para que tivéssemos ser, a partir de seu
novo ser. O conhecimento, portanto, trazia o ser. Ser e conhecimento andavam
juntos da mesma maneira corno a mentira e o não-ser. Verdade é ser; nova verdade
é novo ser. Os que possuem esse conhecimento do ser possuíam igualmente o co-
nhecimento salvador. Devemos proclamar essa verdade com muita ênfase, pois essa
idéia foi denegrida por ter sido mal entendida. Harnack e seus seguidores achavam
que o cnStlaIllsmO antigo havia sido infetado pelo intelectualismo grego. Mas há
duas coisas erradas nessa crítica. Em primeiro lugar, "intelectualismo grego" é ter-
mo inadequado porque os gregos sempre estiveram profundamente interessados na
verdade. Com poucas exceções, a verdade que buscavam era a verdade existencial,
concernente à sua existência, capaz de salvJ-los da existência deformada e elevá-los
ao Uno permanente. As congregações cristãs da igreja primitiva entendiam a verda-
de do mesmo jeito. A verdade não era mero conhecimento teórico sobre os objetos,
43
CAPÍTULO II
mas participação cognitiva !la nova realidade aparecida no Cristo. Sem essa partici-
pação, 3 verdade não era possível e o conhecimento seria apenas abstrato e sem
sentido. Era o que queriam dizer quando combinavam conhecimento e ser. A parti-
cipação no novo ser era participação na verdade, no verdadeiro conhecimento.
44
DESENVOlVIMENTO TEO\()CICO NA ICREJA ANTIGA
Essas respostas eram necessárias por causa de duas acusaçóes__ ~_~ntr~_,?~ ~:_~.s_tãos:
JI).?5.ristianismo ameaçava o império romano, tratava-se ~e uIl1a_~_cllsa~~?J??}í~_ca.:_
pensava-seque o crist.ianismo _subvertia a estfuClIra do ,império; (2) o cristianismo
era, _~o.._P9_I~to de vista filosófico, pura [01 ice, não mais do que supers~ição misn.l_r~5!~
com fragmentos filosóficos. Esses ataques se apoiavam mutuamente. As autoridades
políticas se utilizavam dos arguIl1cnrosfilosóficos contrários ao cristianismo em
slIas aCllsaçóes. Dessa forma, os ataques filosóficos se tornavam perigosos por causa
de Sllas conseqüências políticas. C:clsus, médico e filósofo, foi o mais imponame
representante desses ataques. Convém conhecer o seu pensamento para se avaliar
como um filósofo e cientisra grego, muiw bem educado, considerava o cristianismo
na época. Celsus entendia o cristianismo como misrura de superstição fanática e
pedaços de filosofia. Para ele os rclatos bíblicos eram contraditórios e, desp'~'?vidos
de qualquer e:vi(.I~~~"i.:::....Enc~~~~~~amos_.~!_' _ 2~h.J-~-,"jmeira vez, _a crírica históri:::~_. çl.9
_,._~.r:~igo e dO_,No_"2?_I~srament<2.:..~~~?~.-'l~ seria i~~~_~_c:.~~~Y~?'~_.~~I'.~tj_do ~ longo da
história. l'das em CelSllS essa crírica era motivada pelo ódio. Mais tarde, no século
dezoito, tesremunhamos uma outra crítica movida pelo amor, em face da realidade
presente, por detd.s desses rclaros.
45
CAPÍTULO II
Seu ataque era séno e tem sido repetido muitas vezes ao longo da história do
cristianismo. Cristãos educados como Celsus, na mesma tradição filosófica, procu-
raram responder-lhe em nome e]a igreja. Os apologistas não responderam tJ.nro no
nível da crítica histórica, mas 110 pbno filosófico. Em suas respostas :lparecem três
características de qualquer trabalho apologético .. Em primeiro lugar, para se [dar
significativamentc com alguém devc have,,:uma ,bas~ comllm ..~~e idéia~~!1..L~llamente
co mp reens~.~~~. As~~~~(;:~. ~lJ?olo~~~~·ta"~ J?~··e_c.\~.~~_~;~~:~el:'l?l,~:i!~_~_~ existência de verd a-
"de,"<::?~l.~um t:ll1to aos crist~02".':.Clmo aos pagãos. Se não houvesse nada em comum o
diálogo não teria sido possível. Todo o trabalho missionário cristão posterior procu-
rou seguir esta rcgrJ.: que o outrO deve entender o que estamos querendo dizer. Mas
não há compreensão sem pelo menos algum tipo de participação parcial. Se o mis-
46
DESENVOLVIMENTO TEOLOC;ICO NA IGREJA ANTIGA
1. Filosofia cristã
Justino Mártir foi talvez o mais importante dos apologistas. Ao falar do cristi-
anismo, dizia: "Esta é a Única filosofia cerra c adequada que encontrei". Que queria
dizer? Alguns inimigos da apologética entcndiam que lustino dissolvia o cristianis-
mo em fIlosofia. E mais, que toda a teologia apologética acaba assim. Mas quando
Justino dizia que o cristianismo era uma filosofia, precisamos entendet o que enten-
dia por filosofia._Ne§sa~pocao tcrmo "filosofia"__s.e referia a movimentos de caráter
e~piritual ~postos à lnagia e à superstição. Era, pois, natural que ]ustino se referisse
ao cristianismo como a Única filosofia certa e adequada, porque não era mágico nem
supersticioso. Já vimos que a filosofia grega no pcríodo pós-socrático não era disci-
plina meramentc teórica, mas principalmente prática. Devorava-se à interpretação
existencial da vida, constituindo-se em assunto de vida ou morte para a existência
das pessoas na época. O filósofo pertencia quase sempre a uma escola filosófica que
era um tipo de comunidade ritual reunida ao rcdor de seu fundador que, segundo
se cria, rccebera cerra percepção revelada da verdade. Para se ingressar nessas escolas
não era preciso ostentar-se o grau de dourar em filosofia, mas se submeter a certos
ritos de iniciação à atmosfera da escola.
47
CAPÍTULO 11
Jusrino ensinava que essa filosofia cristã era universal; continha a verdade total
sobre o significado da existência. Em conseqüência, onde quer que a verdade apare-
cesse ela pertenceria ao cristianismo. /\ verdade da existência sed sempre verdade
cristã, não importando o lugar onde venha a surgir. "Tudo o que já foi dito sobre a
verdade pertence a nós, cristãos". E não se tratava de pura arrogância. Ele não
queria dizer que os cristãos agora são os donos da verdade roda, ou que sozinhos
chegaram a ela. Queria dizer, nos termos da doutrina do Lagos, que não poderia
haver manifestações da verdade que não incluíssemos, em princípio, a verdade cris-
tã. Era a mesma coisa afIrmada pelo quarto evangelho: o Logos apareceu cheio de
verdade e graça. E vice-versa. Justino dizia: "Os que vivem segundo o Lagos sáo
cristãos". Incluía aí gente como Sócrates, Heráclito e Elias. Mas acrescentava que o
logos total aparecera no Crisro feito carne, mente e alma. Portanro, os filósofos llJO
Que quer dizer tudo isso? Removia a impressão de que os cristãos fossem ape-
nas lnembros de uma OLL[ra religião e!ltre muitas existentes. Na verdade, neg::wa-se
:lO cristi:lnismo o conceiro de religi50 mesmo se a melhor ou a mais verdadeira de
todas:. Os apologistas jamais dinam que sua religião era verdadeira e as outras erra-
das ou falsas, mas que o Logos aparecera nos fundamentos do cristianismo. Tratava-
se do Lagos pleno do próprio Deus, aparecendo com todo o seu ser. Era mais do
que religião. Era o aparecimento da verdade no tempo e no espaço. Assim, a pala.vra
"cristianismo"
.
não po.dia
--
ser entelldida_c:.~_!:"10_"_!·eligiã92
---
'--- -
__mas como a negação de todas
as r~!~iªes. Por causa de sua universalidade o cristianismo pôde abrangê-las todas.
]ustino afirmou o que me parece a1Jsoluumente necessário afirmar. Se hou~_s_~e no
I:_~~l~~_~~_lln_la verdade existencial~. .s:~".-!!_~.?_pud~~,=-_~..:.-!~~~:-?J_~~ pelo cristian~~_mo
como parte de seu próprio pensamento, Jesus não poderia ter sido o Cristo. Teria
sido apenas ltl~l--~st;·e entre outros mes~res:-Ú-;lli~::;dos e parciallnente enganados.
Jv'Ias não foi isso o ci-~~~ disseram os primeiros cristãos. Eles afirmaram - como deve-
ríamos rambém afirmar - que se chamamos Jesus, o Cr-isto, ou o Logos, como que-
riam os apologistas, estamos também dizendo por definição que não poder haver
nenhuma verdade que em princípio não possa ser assumida pelo cristianismo. Se
não for assim não se poderá aplicar a Jesus, o Cristo, o termo "Lagos". Não estamos
dizendo que Jesus, em quem o Logos apareceu, sabia roda a verdade; essa afirmação
não tem senrido e destruiria a sua humanidade. Estamos afirmando, isso sim, que
48
DESENVOLVIMENTO TEOll"lGICO NA IGREJA ANTIGA
2. Deus e Logos
49
CA PÍTUI.O 11
mente, é também salvador. A oscilação é necessária tão logo a idéia de Deus se (Orna
objeto de pensamento. Não se podem evitar certos elementos como o eterno, o
incondicional, o imutável etc. Por outro lado, porém, a piedade prática c a experi-
ência da criatura pressupõem o relacionamento de pessoa para pessoa. O cristianis-
mo oscila entre esses dois elemcJ1(os porque ambos estão presentes no próprio Deus.
Entre Deus e os seres humanos há anjos e poderes, bons e maus. Mas seu poder
mediador é insuficiente. O Logos é o verdadeiro mediador. É difícil q::plicJT.o.~
~ significa a palavra "Lagos", especialmcmc aos nominalistas de berço. É difícil por-
. 9.~.~c._~_..~~.::_~eito não d_c_~5:.~:~~~_,'-:_~1LE:~,_.i~1divid lial, m~E_~,_~[pl()~universa!_.~, Esse con-
ceito não pode ser entendido pelos que nJo estão acostumados a pensar em termos
universais enquanto poderes de ser. O conceito de Logos pode ser explicado mais
inteligivelmente em relação com o platonismo ou com o realismo medieval.
50
DESENVOLVIMENTO TEOL(JGICO l'A IGJ(EJA ANTIGA
51
CAPÍTULO 11
1 C. Gnosticismo
Não eram uma seita; talvez se pudesse dizer que eram muitas seitas. Na verda-
de, porém, o gnosticismo representava vasto movimento religioso espalhado pela
época. Em geral, o gnosticismo é considCl"ado um sincretismo. Misturava todas as
tradições religiosas de então. Ao se Lspalhar pelo mundo, penetrou tanto a filosofia
52
DESEKVOLVIMENTOTEouíCICO NA IC;REJA ANTIC;i\
grega como a religião judaica. t:ilo de Alexandria foi um típico precursor do movi-
mento. O gnosticismo conseguiu até mesmo se imiscuir na lei romana e na teologia
enstJ..
53
CAPÍTULO 11
possível. Mas, fala da tensão radica! entre o nltIndo natural da razão e da moralidade,
e o domínio religioso da revelação. Era o mesmo problema de Marcião, resolvido
por ele com a separaçáo radical do dois Inundos no dualismo gnóstico.
Jara os gnósticos, o mundo criado é mau; foi criado por um deus mau reconhc-
.
__ ~_i~o por eles no.. PCll~ _.9.~~~:_~~go Testamento. Ponanto, salvação é libertação deste
ll1ull_do, a s_~~_~lcan_~~.~l mediante cx~_~~í~ios ascéticos. Não há lugar para a escatologia
nessa visão dualista do mundo, pois o fim do mundo não a ultrapassa. Não pode
haver realização dualista: ela pressupõe a divisão do próprio Deus.
54
DESENVOLVIMENTO TEOLClCICO NA ICREJA ANTIGA
55
CApíTULO II
menta teria desaparecido, e com ele a imagem histórica do Cristo. Essas ameaças
foram superadas graças ao trabalho de homens que são ainda hoje conhecidos como
"pais antignósricos" Eles lutaram contra o gnosricisl110 c conseguiram expeli-lo da
Igrep.
D. Os pais antignósticos
tJrineu foi o mais importante dos pais anti gnósticos, rellglos<~l_:~_nte falando.
Entendeu o espírito de Paulo e se mostrou sensível ao que essa teologia representav8
para a igreja cristã, Entretanto, a doutrina paulina relevante para Irineu não foi a da
justitlcaç5.o pela gl-aça por meio ch f~, utilizada por Paulo contra o judaísmo, mas o
ensino mais central do apÓstolo, a doutrina do Espírito Santo. De certo modo, a
teologia de Irineu acha-se mais prÓxima do protestantismo do que a maior parte
das teologias do catolicismo primitivo; contudo, ele é o pai desse catolicismo - e, na
verdade, nada protestante - na medida em que a doutrina paulina da justificação
por meio da fé, que cu gosto de chamar de "lado corretivo" da teologia de Paulo,
não ocupava o centro do pensamento de lrineu.
56
DESENVOLVIMENTO TEOLClc;ICO NA IGREJA ANTIGA
1. Sistema de autoridades
o problema colocado pelos gnóscicos perante a igreja situava-sc no domínio da
autoridade. Que era mais importantc: as Escrituras Sagradas ou os ensinamentos
secretos dos gnósticos? Os mestres .gnósticos ensinaval'!.1,quc .J._es~~~~.~s pa:sar~..0.=-
formações secretas nos quarenta dias d.epois da ressu.~:~e.ição,_.q_uan.do_y~.:.[~!"::..~::~:!~_
lado dos discíp~los. Esse corpo de doutrina havia sido preservado pela filosofia e
pela teologia dos gnósticos. Contra tal pretensão, os pais anti gnósticos precisavam
estabelecer a doutrina das Escrituras.
~As Santas Escrituras haviam sido dadas pelo Lagos por meio do Espírito divi-
no. Portanto, era preciso fixar-se o cânon. Os próprios fundamentos da igreja eram
ameaçados pela intromissão de tradições sccretas quc afirmavam coisas bcm dife-
rentes das que se liam na Bíblia. _F()i_,_~~I~[5.9, a partir dessa luta de vida ou morte
contra o gnosticismo que se tomou a decisão de se fIxar o cânon. Com isso, a igreja
sempre teve que retornar ao período clássico de sua existência que foi o período
apostólico. O que se cscreveu na ocasião passou a ser válido para todas as ocasiões;
qualquer novidade aparecida posteriormente jamais seria canônica. É por isso que
tantos livros na Brblia foram editados com o nome de autores da era apostólica,
mesmo quando escritos depois.
57
CAPíTULO II
2. A reação montanista
Contra a ordem ern desenvolvimento surge a reação do Espírito, comandada
por I'vlonranus. Foi de tal forma séria que um teólogo como Tertuliano ingressou
mais tarde no movimento. A reaçJo ll10nranista contra a fixação cclesi<ística do cris-
tianismo vai se estender pela história da igreja de um ou outro modo.
5K
DESENVOLVIMENTO TEOLl)CICO NA IGREJAANTICA
59
CAPÍTULO 11
3. Deus criador
Vamos considerar agora o ensinamento dos pais antignósricos dentro dos limi-
tes das proteções que erigir:lm contra o gnosticismo. Os gnósticos haviam cOl~~ras
tado De~ls}~~l~._~o.m P~.~_I_S ~ç~G:~~~_~r. A teoria gnóstica era tida como b!mphemia creatoris,
blasfêmia do criador. Os teólogos neo-orrodoxos de hoje precisam se dar conta
disso. Eles, na verdade, conserVztl1l em sua teologia elementos gnósticos, como
i\1arcião. l\l1antêm essa mesma bbsfêmia dualista em relação ao Deus criador. Esta-
belecem a oposição entre o salvador e o criador de tal maneira que, embora sem cair
em heresia, blasfemam implicitamente contra a criação divina ao identificá-la com
o estado pecaminoso da realidade. Contra essa tendência, IrinÇ.u.~_firmavaa unicidade
de Deus; não há qualquer d~~lisl~~.<:_~:e~: ~ranro .a lei como o evangelho, a criação
como a salv~_~~~2 __ ~-Le~~~~!Tl ..~i? lnesmo qeus.:. ._
GO
DESENVOlVIMENTO TEOuíGICO KA IGREJA ANTIGA
no amor com que vem a nós. Portamo, para se conhecer Deus é preciso estar dentro
de Deus; participar nele. Não se pode vê-lo como se fora mero objeto lá fora (ou
fora da gente). Esse Deus criou o mundo a partir do nada. Essa expressão, "a panir
do nada", não é descritiva, mas conceito protetivo com significado apenas negativo.
. Q~er dizer que não havia antes da criação divina ql1aIq~ler mat~l:i~._<"l.p~~~_~~-9...t:.~L.
. Pe:.~"~e:~:~_~
criado o mundo, como se pensava no paganismo. Ao criar o rnunclo,
Deus não dependia dessa lnaréria destinada a resistir à forma que o demiurgo, o
construtor do mundo, desejava lhe impor. A idéia cristá é que tudo foi criado dire-
umente por Deus sem qualquer matéria anteriormente existente. Deus é a causa de
.tod_~~ coisas.:. Seu propósito, o telos imanente de tudo, é a salvação da humanida-
de. Proclama-se, como resultado, a bondade da criação: o Deus criador é o mesmo
Deus salvador. A blasfêmia do Cri3.dor, nova ou antiga, baseia-se sempre na confu-
são da bondade do mundo criado com a sua distor<;ão.
61
CAPÍTULO 11
alimento dos deuses, proveniente da árvore da vida. Mas perdeu esse poder ao
desobedecer a Deus. Por isso deve ser reconquiscado. A imortalidade, como já dis-
semos, não é qualidade natural, mas algo a ser recebido como dádiva dos páramos
cternos. Não há outro modo de ganhá-Ia. O pecado é tanto espirimai como carnal.
Adão perdeu a possível Jirnilitudo (semelhança) de Deus, que era a imortalidade,
embora não tenha perdido a imagem natural, uma vez que é essa imagem natural
que o Fez humano. Temos aqui a conhecida distinção feita por lrineu entre similitur/o
e imago. Essas duas palavras foram empregadas na Vulgata, em Gêllcsis 1,26, para
dizer que Deus criou o homem à sua imagem, segundo sua semelhança. J..r.in~u inter-
preta essas dll~S palavras te.?~o,gicamente. Todos os homens possuem a im~gem na-
tural de ~eus; ?__ ~C?_~:1e~~l? como tal, Finito e racionai, é capaz de se relacionar com
Deus, A sirni!itud~ si.!?I~~f1ca que o homem P.9de se tornar semelhante a Deus. A
marca dessa sem~l~a_!~s_a_(a vida ctefll.~. Ao alcançar a vida eterna, o homem supera
a mortalidade natural e participa na vida eterna de Deus. Trata-se de dom divino.
4. História da salvação
62
DESENVOIVIMENTOTEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA
pensar que a sua revelação é a única, incapacirando-o de perceber que ela se situa no
contexto mais amplo da história da revelação. Essa estreiteza acaba, como em Mareiao
e, pelo menos em parte, na escola barthiana, em isoiamemQ da revelação como se
nada tivesse a ver com a história inteira da humanidade.
}Sobrc a crisrologia, Irineu dizia: "O invisível do Filho é o Pai; o visível do Pai é
o Filho", Eternamente. Sempre id. alguma coisa potencialmente visível em Deus,
ao mesmo tempo em que também sempre !ú algo misterioso que poderíamos cha-
mar de abismo em Deus. Esses dois lados podem ser simbolicamente distinguidos
com os nomes de Pai e Filho. O Filho que eternamente é o visível do Pai manifesta-
~_?_.~~E~recir_nel_l~_c:'J?~~soalde Jesus, o Cristo. Os pais antignósticos sublinharam o
aspecto monoteísta do cristianismo muito mais do que os apologistas, porque esta-
vam enfrentando tendências politeístas no próprio cristianismo. Os apologistas,
com sua doutrina do Lagos, aproximavam-se perigosamente desse pensamento
politeísta ou triteísta, quando interpretavam o Espírito nos mesmos termos do Lagos.
Na linha de pensamento que vai de João a Inácio e a Irineu, o Lagos não é mera
hypMtasú menor, forma ou poder inferior do ser em Deus, mas o próprio Deus
enquanto revelado r, e'nquanro auto-manifestação divina.
63
CAPÍTULO 11
5. Trindade e cristologia
Tenuliano criou uma fórmula fundamental para expressar a trindade c a
crisrologia. A linguagem jurídica que empregou com grande habilidade tornou-se
decisiva para o futuro. A fórmula de Tenuliano acabou entrando para os credos
latinos da Igreja Católica Romana: "Preservemos o mistério da economia divina que
dispôs a unidade em trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, três não em essência, mas
em grau, não em substância, mas em forma". Temos aqui pela primeira vez a palavra
trinit/H, introduzida por Tertuliano na linguagem eclesiástica. falou também da
unidade na trindade, negando qualquer Forma de tendência triteísta. Em vez disso,
introduziu a palavra "economia" na linguagem teológica. Essa palavra tornou-se
muito importante na igreja antiga. Ellar de economia divina é falar de Deus "cons-
truindo" suas manifestações nos períodos da história. A trindade é edificada de
modo vivo e JinClInico por meio de mani[esrações históricas. Mas nessa trindade só
há uma essência divina. Se traduzinllos "essência" por "poder de ser" chegamos ao
que o termo queria dizer. Só há um poder divino de ser, e cada uma das três malll-
festações econômicas do poder de ser participa no pleno poder se ser.
Deus possui eternamente a ratio (razão) ou fogos em si mesmo. f., sua palavra
interior, que caracteriza, nJtlIra\mt'nte, a existência espiritllal. Quando afirmamos
que Deus é Espírito, precisamos também acrescentar que ele é trinid.rio; ele possui
a palavra dentro de si e a unic1Jele com sua alHo-objetivação. A palavra procede de
Deus como os raios de luz procedem do sol. No momento da criação, o Filho se
torna a segunda pessoa, e o Espírito, a terceira. A subsráncia ou essência divina,
significando podcr de ser, pertence ~lS três pessoas. O (crmo "persona" de Tertuliano
64
DESENVOLVIMENTO TEOI(lCICO NA rGREjAANTIGA
não quer dizer a mesma coisa que a nossa palavra "pessoa". Vocês e eu somos pessoas
porque somos capazes de raciocinar, de decidir, de agir com responsabilidade etc.
Esse conceito de pessoa não foi aplicado a Deus nem mesmo às três hypostasis de
Deus. Mas, então, que queria dizer "persona"? Persona, como o vocábulo grego,
prosopali, era a m;íscara usada pelos atores para representar certos personagens. As-
sim, remos na trindade três [lCes, três semblantes, três expressões características da
divindade, no processo da auro-explicação divina. fazem parte da fórmula clássica
do monoteísmo rnnltáno.
65
CAPÍTULO 11
(IVO, mas não é proresran te. No protestantismo a renovação se d~í. por meio da
justificação pela fé.
GG
DESENVOlVIMENTO TEOLÓGICO NA J(;REJA ANTIGA
Essas idéias estavam nas bases da criação da Igreja Romana; c acabaram exer-
cendo enorme influência nos séculos seguintes. A Igreja Católica já estava pronta
por volta do ano 300 de nossa era. Não se pode dizer, pois, que o protestantismo
tenha sido uma volta aos primeiros tempos. As feições católicas já eram poderosas
nessa época. Essa é uma das razões porque a "via media" do anglicanismo, que seria
em si a solução ideal para o cisma das igrejas, não funciona. A assim chamada
67
CAPíTULO II
concordância dos primeiros cinco séculos não representa de modo algum qualquer
concordância com os princípios da Reforma. Portanw, se alguém disser que nos
uniríamos voltando ao que se pensou de Irineu a Dionísio Arcopagita, eu diria que
é melhor ficar católico, porque o protestantismo não pode fazer isso. Há muitos
elementos nesses primeiros séculos que o protestantismo não pode aceitar como,
por exemplo, na doutrina da igreja, o sistema da autoridade e a teoria dos sacra-
mentos, não tanto em rclaçáo com a trindade e com a cristologia, embora as impli-
cações dessa doutrina da igreja aí também se façam presentes.
E. Neoplatonisrno
68
DESENVOLVIMENTO TEOI()CICO NA IGREJA ANTICA
Platina foi o mais import~_~:-~ fi}ó~.s:fo des~e sistema. Não entram aí elementos
apenas científicos e religiosos, mas também políticos. O imperador ]uliano, o
apóstata, tenWl1 jmfoduzir o sistema neo-platônico contra o cristianismo, demons-
trando que o considerava não só ciência, mas um sistema todo abrangente de eleva-
ção religiosa da alma.
69
CAPíTULO"
Todas as coisas exisrcntes tênl seu lugar neste sistema de hierarquias que vão
desde o fundamento do ser à mentc, à alma e à matéria. Platina conseguiu, assim,
incluir em seu sistcma todo o mundo mitológico depois de o purificar com a filoso-
fla. Os deuses pagãos transformaram-se em poderes de ser bastante limitados, ocu-
pando lugares específicos na totalidade do real. O mundo é harmonioso; dirige-se
pelo princípio da providência. A junção de providência e harmonia - principal
princípio do Iluminismo e da crença moderna no pl"Dgresso - fundamenta a visão
otimisra do mundo. Esse otimismo é imediatamente sentido em ourra afirmação de
Plotino de que as forças planed.rias, consideradas forças demônicas, não passam de
ilusão. Não possuem poder independente; submetem-se à providência, bem como
Paulo as descreve em Romanos 8. A diferença é que Platina deriva seu ensino dessa
filosofia da harmonia cósmica, enquanco Paulo, do triunfo vitorioso de Cristo sobre
os demônios.
H,Í muitas almas diferentes no cosmos; almas mortais, como as das plantas, dos
animais e dos seres humanos; e imorrais, como a dos seres divinos e meio divinos da
70
DESENVOLVIMENTO TEOLCíCICO NA IGREJA ANTIGA
mitologia antiga. Os deuses mitológicos, como j~l vimos, são restaurados neste sis-
tema como poderes de ser. Não se contradizem entre si porque ocupam lugares
próprios no sistema hierárquico.
Por causa dessa ambigüidade, a alma é capaz dc abandonar o nous, e com ele a
fonte eterna do Uno abissal. Pode se separar da origem eterna e cair em regiões
inferiores. A natureza é o domínio do inconsciente; situa-se entre a matéria e a alma
conscielHe. Mas a natureza está cheia de almas inconscientes; é só no homem que a
alma tcm consciência plena. A fonte do mal é o abandono do nous pela alma na
direção da matéria, do reino corpóreo. O mal não é poder positivo. É a negação do
espiritual. É panicipação na matéria, não-ser, participação no que não tem poder
de ser em si mesmo. O mal ap;:nece quando a alma se volta para o não-ser. Nem os
gregos nem os cristãos admitiram que o mal pudesse ter realidade ontológica. .6...
_i9{ii:1 da ~::,istência de um fundamento divino d~__~aL de um ser divino encarregado
~rod_l!_~ir o mal, é heresia maniqueísta. O_~l~'~L_(...!lâo-ser. Quando se faz esta
afirmação, venha ela de Pio tino, de Agostinho, ou de mim mesmo, argumenta-se
que nesse caso o pecado deixaria de ser levado a sério e que, afinal, não é coisa
alguma. O som da palavra "não-ser" cLí a impressão a algumas pessoas de que o
pecado seja imaginário, não real. Entretanto, a distorção de algo que tem ser é tão
real como o estado de perfeição desse mesmo ser. Apenas diríamos que não é
ontologicamente real. Se o pec;:Ido fosse ontologicamente real, haveria então um
princípio criador do mal, como no maniqueísmo; mas é isso, precisamente, que a
doutrina cristã da criação nega. Agos_~inho__ dizia_.::.~s-=~q~a esse bonu"!L_~s!::~ o ser
enquanto ser é bom. O mal é a deformação da boa criação.
- - - ' - - - --------------- ----------------- -_ .. -- . ---.-----
Plotino descreve esse não-ser (me on) como a matéria que se pode transformar
em ser. Este não-ser do qual ele fala é o que ainda não tem ser e que resiste ter ser.
É o que não tem medida, limite e forma. Está sempre em falta, não se define e tem
71
CAPÍTULO II
A alma voIra-se para este não-ser porque acredita poder se manter por si mesma
cOln o seu auxílio. Dessa forma, separa-se do fundamento c do nous com quem vivia
originalmente. Mas logo se volta na procura do fundamento de onde saíra. Amoro-
sa, a alma ascende ao que é digno de ser amado: o fundamento e origem do próprio
ser. Quando a alma alcmça esse alvo supremo de sua aspiração, torna-se como
Deus. Ao possuir a intuição suprema do divino, une-se a Deus. Mas não é fácil.
Esse caminho passa primeiramente pelas virtudes e depois pela purificação ascética.
A união flnal com Deus l1áo é alcançada pela moral ou pela ascese nesta vida. Só
pode ser alcançada por meio dJ. graça, Oll seja, quando o poder divino do Uno
transcendental apreende a mente em êxtase. Isw só acontece raramente, mediante
grandes experiências jamais Forçadas.
No mais alto êxtase acontece o que Platina chama de vôo do um para o Uno,
isto é, dos indivíduos para o supremo Uno, além de todo número. Qual é o telos, o
alvo interior, o propósito, do ser humano? Platáo já dera a resposta: hOJJloiosis tou
theou ktltt.l do d)'natol! (tornar-se semelhante a Deus tanto quanto POSSLvel). Era esse
o alvo das religiões de mistério, nas quais se pensava que a alma participaria no Uno
eterno. É esse o esquema do pensamento alexandrino. Trata-se de um círculo que
começa no Uno abissal, e vai descendo por meio de emanações pelas hierarquias até
chegar às situações ambíguas em que se encontra a alma, quando ela cai no poder
do mundo material, determinado pelo não-ser. O círculo continua, então, com a
elevaçáo da alma, de volta por todos esses caminhos até o grau mais alto, alcançando
o seu alvo por meio de êxtase. Guardemos este sistema em nossa memória, pois náo
poderemos entender a relação do cristianismo com o misticismo e com a filosofia
grega sem ele.
1. Cristianismo e filosofia
o sistema n~o_pb(ônico desenvolv.eu-se em Alexandria. Ammônius Saccas ensi-
nou (anto Platina como Orígcncs. Orígen~~._"~,?_i o principal teólogo e filósofo da
__ ~~_~_?.!a de ~l~;-.lI1dria. Era uma escola catequética, uma espécie de seminário teológi-
72
DESENVOlVIMENTO TEOICÍCICO KA IC;REJA ANTIGA
co. O primeiro grande mestre dessa escola foi Clemente de Alexandria. Utilizava a
doutrina do Lagos de modo radical. Nesse aspect~ depe~di~-;nuito mais do estoicismo
do que da escola platônica. Deus é o Uno além dos números. Mas o Lagos é o
mediador de todas as coisas nas quais o divino se manifesta. O Lagos é o órgão
divino destinado a amar os seres humanos e, portanto, o educador da humanidade
no passado e no presente. O Lagos, Juto-manifestação do divino, age constante-
mente llas mentes humanas. Preparou os judeus por meio da lei, e os gregos pela
filosofia. Tem sempre preparado as nações. Jamais se ausenta de seu povo.
73
CAPÍTULO 11
Orígenes começa o seu sistema com a questão das fontes. Leva-as mais a sério
do quc Clemente. São os escritos bíblicos e seu resumo no ensino e na pregação da
igreja. A antiga "regra de fé" dav;1-lhe a estrutura sistemática para seu pensamento,
Illas as Escrituras fundamentavam os conteúdos. _O primeiro passo do verdaci,:j"r<!
teólogo é a aceitação da n~~~~agem bíblica. Ninguém pode ser ~~~}~!2?_~~Ll:_J~~:.ten
cer à igreja. Os filósofos livre-atiradores não são tcólogos cristãos. Requer-se muito
mais do que isso do tcólogo. Ele precisa procurar entender a mensagem em termos
filosóficos. Para Orígenes significava entender a mensagem em tcrmos de filosofia
ncoplatô nica.
74
DE.IENVOLVIMENTO TEOL()GICO NA IC;REJA ANTIGA
tua!. Alcançado apenas pelos perfeicos, não no sentido moral, mas místico. •...Há Casos ~_ .. ~--
_em que . o._ texto ~g?}}_~_~__ ~? _ t5:_~~~,"~s..se ~~_~Iltido místi~.?_;_n5;s~e caso, coincide com o
senricioHrcral. En[re~a~~o~_~_mg~LaIL?_.~~~!~.t}9:l?,._~~~s_ticose distingue do literal. Ele é
.e.!1contrac!?-E~:__~l~io do método alegórico; com es~c méto.~o sep?~:_--Eerc~
signiEc;}do oculto n~0 te_)(~~~ _
75
CAPÍTULO 11
alegórica ou metafórica dos que vão além do sentido literal à interpretação transfor-
mada desse sentido. Orígcnes referia-se à aritude dos cristãos primitivos como "mera
fé", Representava um grau inferior da perfeição cristã. Todos os cristãos começam
aÍ. 2. Há outros que recebem o carisma da gnósú, a graça do conhecimellto. Dessa
maneira, os gregos educados que se convertem tornam-se cristãos perfeitos, natu-
ralmente, na base da fé. Este concciro de fé difere do sentido de fé no protestantis-
mo. Aqui a fé quer dizer aceitação de dOllrrinas, enquanto no protestantismo, é a
aceitação da graça conciliadora de Deus.
3. Doutrina de Deus
76
DESENVOLVIMENTOTEOLCicICO NA ICREJA ANTICA
realidades geradas, mas menor do que o Pal. O mesmo se diz do Espírito que age
nas almas dos santos. Embora a tradição religiosa das congregações exija a tria_s
Ju~~t~~rn~~!ic!_? __de ~14_()!~ção, o Espfrito é consid~E~~l~_menor d?ClU~ o [.ilha e o
FUho, me~:.~r __ ~~o "que o Pai. Às vezes, até mesmo os seres espirituais mais elevados são
também chamados de deuses. Há, pois, dois princípios conflitantes no pensamen-
to de Orígenes. Um deles é a divindade do Salvador; se não for divino não poderá
salvar. O olltro é o esquema das emanações. Há graus de emanação a partir do
absoluto, que é o Pai, até os níveis mais baixos. A linha divisória entre os três mais
altos (Pai, hlho e Espírito Santo) e o resto dos seres espirimais é, de certo modo,
arbi trária.
As luturezas racionais, ali espíritos, que são eternas, eram originalmente iguais
e livres, mas romperam a unidade llue tinham conl Deus, em diferentes graus de
distância. Como resultado dessa revolta celeste contra Deus, caíram e receberam
corpos materiais. Foi a Slla punição e, ao mesmo tempo, a forma para se purifica-
rem. A alma humana é mediadora entre esses espíritos caídos e o corpo humano. A
alma humana é o espírito congebdo, isto é, o fogo intenso, símbolo do Espírito
divino, reduziu-se a um processo vital. A queda é transcendente. Precede nossa
existência no telnpo e no espaço. E é livre: decidida em liberdade. A liberdade não
foi perdida na queda, permanecendo presente e real em todas as situações concre-
tas. Em nossas diferentes maneiras de agir, a queda transcendental se torna realida-
de histórica. Poderíamos dizer que os atos individuais representam a natureza eter-
na da queda. Em outras palavras, nossa existência individual no tempo e no espaço
j~l teve um prelúdio nos céus. O Luar decisivo a nosso respeito já aconteceu antes de
aparecermos na terra. Coisa que tem a ver com a noç..í.o de pecado. O pecado baseia-
se na queda transcendental. Essa doutrina da queda transcendental é difícil de ser
entendida pelos que estão habituados com o pensamento nominalista. Só se torna
compreensível quando percebemos que os poderes transcendentais são realidades e
não coisas individuais.
Esta doutrina contém profundo significado que a torna necessárIa como sím-
bolo cristão. Quer dizer que a existência humana e a existência da realidade, como
um rodo, não podem scr consideradas apenas como criação divina, mas também
como culpa e julgamento. Quando cOlltemplamos o mundo, vêmo-lo universal-
mente caído. Essa queda permeia rodas as coisas, no ser humano e fora dele. Se
perguntarmos: De onde procede a queda~ Por que é universal~ Por que não h~í.
exceçõe.s~ A resposta devc ser: Porque aqueda precede a criação da mesma maneira
77
CAPÍTULO li
como vem depois dela. Orígencs conra dois mitos da queda. O primeiro é de cad-
(ef transcendental. Mitologicamente filando, a queda não se deu no espaço. Trara-
se da transição eterna da união com Deus para a separação de Deus. O outro é
imanente. A queda se dá dentro da história. A queda transcendental se realiza por
meio de aros especiais no plano histórico. O pecado é espiritual, mas a existência
física e social o fortalece. É de car:lrcr transcendental. É um destino que, como todo
destino, une-se à liberdade.
-i( 4. Cristologia
A pane mais difícil do pensamento de Orígenes é a sua crisrologia. O Lagos se
une à alma de Jesus, que é um espírito eterno como os demais. É pré-existente
como todas as almas. Mas o Logos se une precisamente com esta alma. A alma do
homem Jesus recebe o Lagos completamente. A alma de Jesus imergc no poder c na
luz do Logos. Trata-se de união mística que pode ser processada em rodos os santos.
A alma medeia entre o Lagos de Deus e o corpo humano. Há, deste modo, duas
naturezas claramente separadas que se unem em Jesus. A declaração do quarto evan-
gelho de que o Lagos se fez c(Jrne é um modo literal de falar. A verdade é que o Logos,
ao se fazer carne, se faz carne de tal lllJneira que se poderia dizer que se transforma
em carne. Coisa muito parecida com o pensamento adopcionista. O sentimento
popular no Oriente, por outro lado, desejava um Deus na terra caminhando conosco,
não um poder divino traIlscendental que apenas se faz carne e, depois, retorna ao
lugar de onde viera. Orígenes não podia aceitar essa idéia, porque o Logos nunca
deixara de ser o que er;l. mesmo fora de Jesus. O Lagos era a forma de rodas as coisas
que tinham forma. Depois da encarnação, o Logos deixa de ser homem, coisa co-
mum entre os seres espirltuals que, por essa razao, são chamados de deuses. Mas, se
78
DESENVOIVIMENTOTEOLÓGICll0JA IC;REJi\i\NTIGA
não deuses, que diferença há entre eles e a terceira pessoa da trindade? O problema
não foi resolvido nem poderia ser resolvido l1a base da doutrina da emanação. Na
doutrina da emanaçao há contínua descida e subida. O cristianismo, no entanw,
pertencia à esfera do monoteísmo. De que maneira seria possível manter o monoteísmo
num sistema de emanações menores do que Deus e ao mesmo tempo igualmente
divinas~
A idéia do engano de Satan;ís não era apenas noção teológica de Orígenes, mas
fazia parte da piedade popular. A Idade Média é fértil em histórias ele camponeses
e, especialmente, de suas esposas, que conseguem enganar o diabo para dcle se
livrarem. Para nós tudo isso parece grotesca mitologia. E não deixa de ser quando
tomada literalmente. Mas contém profunda intuição religiosa: afirma que o ele-
menm negativo não haved. de prevalecer em últilna análise. E não prevalecerá pre-
cisamente porque depende do positivo para existir. (~uando Satards toma Jesus em
seu poder, não pode maIHê-lo prisioneiro porque, afinai, depende dele. E assim se
demonstra a completa futilidade do pecado. O pecado não pode manter em seu
controle, indefinidamente, () poder positivo do ser, porque esse poder de ser depen-
de do bem. O bem e o poder de ser são a mesma coisa. A doutrina de Orígenes,
então, ensina que é impossível que Satanás prevaleça, porque ele só vive a partir
daquilo contra o qual quer prevalecer.
79
CAPÍTULO 11
Na minha velha BíbliJ. lutcrana, que eu amo bastante porque me foi dada no
meu batismo, lê-se logo no início do CtÍJltico rios Cântico!" alguma coisa sobre a
relação de Deus com a igreja. Mas Orígenes intcrprerou-a em termos do casamento
místico entre Cristo e a :llma. Temos aí, naturalmente, um exemplo de misticismo,
que j~í é uma transformação do misticismo não-cristão. Trata-se de um misricisrno
concreto. A alma, ao ser apreendida pelo Espírito de Deus, não sai de si mesma na
dires~ão do abismo da divindade, mas é o Lagos, lado concreto de Deus, que vem
visitar a alma. Vejo aqui o primeiro passo para o "batismo" do misticismo. O misti-
cismo só pode enrrat na igreja tornando-se concreto. Quando Orígenes e, mais
tarde, Bernardo de Cbraval falam de casamento místico cntre a alma e o Logos, a
personalidade humana não é destruída. l~ preservada, como no matrimônio a união
das pessoas não destrói as pessoas.
5. Escatologia
O ü!timo ponto da teologia de Orígenes é a doutrina do fim da história e do
mundo. Esse fim é interpretado espiritualmente. O imaginário primitivo é inter-
pretado em termos espirituais. A segunda vinda de Cristo é o aparecimenro espiri-
tual de Cristo nas almas das pessoas piedosas. Ele retoma muitas vezes à terra, não
em termos dramáticos e físicos, mas :ts almas humanas. As pessoas piedosas reali-
zam-se nessa experiência espiritual. O "corpo espiritual" de que fala Paulo é a essên-
cia ou idéia do corpo material. É o que os retratistas pintam quando fazem seus
retratos. É o que significa a participação do corpo no eterno.
Esta espiritualização da escatologia foi pelo menos uma das razões pelas quais
HII
DESENVOLVIMENTO TEOI,(JCICO NA ICREJA ANTIGA
HI
CAPíTULO []
1. Paulo de Samosata
82
DESENVOlVIMENTO TEOL()GICO NA IGREJA ANTIGA
" coisas. Se afirmamos que Deus escava em Jesus, diz-se igualmente que o Pai estaVa
nele. Portanto, Praxeas e seus seguidores atacaram os assim chamados ditheoi, que
acreditavam em dois deuses, e os tritheoi, que acreditavam em três deuses. Lutavam
pela monarquia de Deus e pela plena divindade de Crisw em quem o Pai aparecera.
Essas duas noções receberam forte apoio popular, porque a mente popular queria
(cr o próprio Deus na terra, Deus conosco, participando de nosso destino, visível c
audível no homem Jesus.
2. Sabélio
"fi Quando Sabélio afirma que o mesmo Deus está essencialmete no Pai, no Filho
e no Espírito Santo, e que as diferenças são apenas de faces, de aparências, ou de
manifestações, está afirmando que todos são homoowios. Em outras palavras, todos
têm a mesma essência, o mesmo poder de ser. Não são três seres, mas possuem o
mesmo poder de ser em três diFerentes manifestações. Embora essa tendência tenha
sido condenada, nunca desapareceu. Reapareceu nas ênfases monoteístas de Agosti-
nho e por seu intermédio na teologia ocidental em geral. O pensamento modalista
se opunha à cristologia do Lagos. Ao compreendermos essas duas tendências bási-
cas, compreendemos igualmente as discussões aparentemente incompreensíveis a
respeito desse iota em homoouúos e homoiousios. Não se discutia meramente a respei-
to de conceitos abstratos, mas em favor da tendência monoteísta contra a tentativa
do estabelecimento da hierarquia divina entre Deus e os seres humanos. O Oriente,
em geral, d.ependente de Platão, Platina c Orígenes, estava mais interessado nas
83
CAPíTULO 11
H. Controvérsia trinitária
84
DESENVOLVIMENTon:or()GICO NA IGREJA ANTIGA
nada foi criado ou permanece subordinado na trias; nada novo apareceu na trindade
que já não estivesse nela desde o começo. O Pilho não é inferior ao Pai, nem o
Espírito ao Filho. Os representantes dessa corrente desejavam o que se chama, hoje
ern dia, de "alta cfisrologia", O Filho, em Jesus, não é menor do que o próprio Pai.
,'. I. Arianismo
A controvérsia ariana representou uma luta clássica e singular causada por inú-
meros motivos. Até mesmo a política dos imperadores se envolveu no caso. Queri-
am manter a unidade da igreja uma vez que o cristianismo se tornara a religião
85
favorita do lmpeno romano. Temia-se que a divisão da igreja viesse a afetar a união
do império. Havia por detrás da polêmica oficial inúmeras brigas entre bispos e
teólogos, bem como o conflito entre o tradicionalismo estreito e a especulação sem
fronteiras. A forre ênfase nas soluções teóricas a problemas teológicos colidia com o
fanatismo monástico popular. Mas a história não termina aí. A questão realmente
decisiva, de significado básico e permanente, era esta: de que maneira seria possível
a salvação num mundo de trevas c mortd Esta tem sido a questão teológica central
desde a época dos pais apostólicos, presente também nas grandes controvérsias
cristológicas e trinitárias.
86
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA
homem dono de alma humana natural. Maria concebera um meio-Deus, nem ple-
namente Deus nem plenamente homem. Esta foi a solução dada por Ária. Estava
na mesma linha do culto aos heróis do mundo antigo. Esse mundo antigo era
povoado por meio-deuses, derivados do único Deus e incapazes de plenitude divi-
na, mesmo quando no Olimpo. Jesus teria sido um desses deuses, quase Deus, mas
não o próprio Deus.
2. Concilio de Nicéia
A crisrologia de Ária foi rejeitada pelo Concílio de Nicéia. realizado em 325 de
_.nossa era. O Credo Niceno começa: "Cremos em um só Deus, Pai Onipotente,
Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis". São palavras importantes. O termo
"invisível" referia-se às "idéias" platônicas. Deus era o criador não apenas das coisas
terrenas, mas das "essências", segundo as conclusões da filosofia de Platão. O Credo
continua: "E em um só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus; gerado do Pai, unigênito
da essência do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro
Deus, gerado não feito, consubstanciai (hornoousios) com o Pai, por quem todas as
coisas foram feitas no céu e na terra; o qual, pot nós homens e pela nossa salvação
desceu do céu e encarnou e foi fcito homem. Padeceu e ao terceiro dia ressuscitou;
subiu ao céu. E rerornará para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo". Para
depois dizer: "Todos os que dizem que houve um tempo em que ele não existiu, ou
que não existiu antes de ser feito, e que foi feito do nada ou de alguma outra subs-
tância ou coisa, ou que o Filho de Deus é criado ou mutável, ou alterável, são
condenados pela Igreja Católica". Essa é a confissão cristã fundamental. A frase
central é "consubstanciaI com o Pai". Não se diz a mesma coisa acerca do Espírito
Santo. Daí o surgimento de novas controvérsias e decisões. Convém observar que a
condenação mais abrangedora se dirige contra Ário: "Todos os que dizem que houve
um tempo em que ele não existiu ... são condenados peia Igreja Católica".
1. Superava-se a mais séria das heresias cflstãs. Cristo não é qualquer semi-
Deus; não é nenhum herói._EIe é o prÓprio Deus que aparece numa pessoa h..u.ma..ua.
com a sua essêrJç.ta_gj.Y,ina. O paganismo havia tentado reafirmar-se novamente por
meio de Ária depois de já ter sido vencido pelos pais antignósticos---.Ayitóriª--ÂQ
arianisl1}QJeri~ tr.'~U])LQE!~lado o cristianis~o em apenas mais uIll:ª_~ntr~.a~. !:~Ji.glQ~:L
_já existentes:
87
CAPíTULO 11
6. Daí para a frente a unidade da igreja passou a ser a decisão da maioria dos
bispos. Desenvolveu-se um cOllciliarismo em termos hierárquicos; a maioria dos
bispos fica acima de qualquer outra autoridade. Foi somente mais tarde que as
reivindicações do bispo de Roma a Ulll status especial entre os bispos foram aceitas,
substituindo a autoridade da maioria dos bispos.
7. A igreja rransformara-se numa igreja estatal. Era o preço pago para a manu-
tenção da unidade. O imperador não determinava o conteúdo dos dogmas, mas
exercia suas pressões. Em face de revoltas contra o dogma, os imperadores depois de
Constantino tiveram que exercer pressões cada vez mais fortes. Com isso se iniciava
uma nova etapa na história da igreja c, na verdade, na história universal.
88
DESENVOlVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA
O Crisi2-~:carreHl.gg._4a o.~!a c\? ~.?:lvação n8..? pode ser e.ntendido JJ_~la. ~'!1~~~~!.~.
human.,!_.a não_ ~er medial~te o poder do Espíri_t9.S.-ª'l:iQ. Somente pelo Espírito
alcançamos união com Cristo. O Espírito de Cristo precisa, pois, ser tão divino
como o próprio Cristo. Surgiran1, depois de Nicéia, alguns grupos negando a divin-
dade do Espírito. Atanásio opôs-se também a estes: "Estão errados querendo trans-
formar o Espírito em criatura. Se o Espírito for criatura, Cristo também deverá ser
criatura". O Espírito de Cristo não é espírito humano do homem Jesus; nem é
função psicológica. O Espírito de Cristo é o próprio Deus em Jesus por meio dele
em nós. Assim a fórmula rrinirária, não concluída em Nicéia, veio a ser completada.
Para nos unir com Cristo, o Espírito deve ser tão divino como o Cristo, não semi-
divino, mas Deus na plenitude.
89
CAPÍTULO 11
90
DESENVOLVIMENTO n:oLCíc;rco NA IGREJA ANTIGA
~Havia, no entanto, uma falha na teologia oriental: unira-se apenas nas decisões
negativas, não nas positivas. Não foi difícil, pois, reduzir o seu poder de resistência
à Nicéia. Houve, no Oriente, teólogos que praticamente retornaram ao pensamen-
to de Ária; chamavam-se anomoioi (anomoieus), significando: "O filho é diferente
do Pai em rodas as coisas". É plena criatura. Havia outros que ficavam entre Nicéia
e o sentimento oriental. Eram os homoiousittnoi, assim chamados porque preferiam
o tcrmo homoiollSio~- em lugar de hornoollsios. Homoiousios deriva-se de homoios que
quer dizer "scmelhantc". Diziam, então, que o rilho era semelhante em essência ao
Pai. Assim, cncontramos aí a polêmica cntre homoousios e homoiollSios. Na verdade,
lutava-se muiro mais do que por um iota. A diferença entre os dois termos cra a
diferença entre dois tipos completamente opostos de piedade. Para os homoiou.lianoi
o Pai e o Filho são iguais em rodas as coisas, muito embora não tenham substâncias
idênticas. Interpretavam, então, o tcrmo hornoousios da fórmula de Nicéia, que não
mais podiam modificar, corno se fossc hornoiousios. Depois de muita discussão, Ata-
ILÍsio e o Ocidentc concordaram flnalmentc que não havia nenhum problcma nessa
interprctação desde quc a fórmula dc Nicéia fosse mantida. O Ocidcnte, por sua
vez, aceitava a idéia da ctcrna gcração do Filho, oriunda da tcologia dc Orígcnes,
com a qual não simpatizava, e acabavJ aceitando a teologia da trindade eterna,
intradivina, que é uma noção não-histórica (não-econômica) da trindade. O Orien-
te, por sua vez, aceitava o termo homoousios ao saber que podia interpretá-lo como
se fosse homoioltsios. E sob essas mesmas condições accitou também a aplicação do
termo ao Espírito.
91
CAPÍTULO li
4. Teólogos capadócios
Os três teólogos capadócios fOLlIll Basílio Magno, Gr~.~o de Nyssa, seu ir-
mão, e Gregório de Nazianzo. Basílio Magno era bispo de Cesaréia; foi muitas
coisas: eclesiano, bispo, grande reformador do monasticismo, pregador c moralista.
Lutou tremendamente contra os amigos arianos, os neo-arianos, os semi-arianos, e
contra qualquer tendência de transformar o Cristo num semideus ou num serni-
homem. Basílio morreu, entrccanw, antes da decisão favorável de Constantinopla.
92
DESENVOLVIMENTO TFOLc)CICO!':A ICRFJA ANTICA
e doador da vida, que procede do Pai, c com o Pai e o Filho é adorado e glorificado".
São frases plenas de poder místico destinadas a uso litúrgico.
Essa decisão pôs um ponto final na polêmica rrinitária. Ária e Sabélio, com
todos os seus seguidores, foram excluídos. O lado negativo desta decisão é claro,
ma,'; as implicações positivas para o desenvolvimento da doutrina da trindade de-
monstram enormes dificuldades. Vamos examinar, a seguir, quatro dessas dificulda-
des.
93
CAPÍTULO II
4. A idéia das três h)'P0staseis ou das três diferentes personae poderia levar ao
rrireísmo. Esse perigo se torna mais próximo quando a fIlosofia de Aristóteles subs-
titui a de Platão. A filosofia de Platão sempre esteve na base do realismo místico
medieval. Nessa filosofia, os universais são muito mais reais do que os indivíduos
particulares. Em Aristóteles, as coisas são bem diferentes. Aristóteles dizia que a
coisa individual era o telos, o objetivo interior, de qualquer desenvolvimento natu-
ral. Dessa rnaneira, os três poderes de ser em Deus se tornam três realidades inde-
pendentes ou, mais exatamente, as três manifescaçõcs de Deus se transformam em
poderes de ser independentes, pessoas independentes. Os nominalistas por educa-
ção sentem grande dificulda~~_yara~:~~l1dc~:
__~ __~~~~lla trinitário. Pois, para o
nominalism0:Ll~:~5E!:~r~?!~.~ .que existe deve s~r lII2.~~ ~oisa definida, limitada e sepa-
rada de todas ~s olltra~_~oisa~. _No realismo místico, encontrado em Platão, Orígenes
e na Idade Média, o poder de ser um universal pode ser algo superior e diferente do
poder de ser presente nos indivíduos. Portanto, quase não existia perigo de inter-
pretar o dogma da trindade em termos de triteísmo, enquanto o ponto de partida
para a interpretação permanecesse a filosofia platônica. O triteísmo tornou-se peri-
goso quando as categorias aristotélicas começaram a predominar, e com elas a dou-
trina nominalista com sua enorme ênfase nas realidades individuais. Nesse caso, o
Filho e o Espírito poderiam se tornar, por assim dizer, seres individuais especiais; e
aí j;í estaríamos nos domínios do triteísmo.
94
DESENVOlVIMENTO TEOIC1GICO!':A IGREJA ANTIGA
r. Cristologia
A controvérsia trinitária criou historicamente o que conhecemos como proble-
ma cristológico. Em princípio, no entanto, foi o contrário que se deu. A trindade
surgiu como resposta ao problema rrinitário. Trata-se de uma resposta que, na for-
mula final akançada, parece renegar a base de onde surgiu~ A questão era esta: se o
Filho é da Illesma substância do Pai, de que maneira se pode entender a pessoa
histórica de Jesus~ O dogma rrinitário queria responder a essa pergunta. Mas, se-
gundo a formulação nicena do dogma rrinirário, era ainda possível entender a pes-
soa de Jesus? De que maneira essa pessoa totalmente divina, sem qualquer restrição,
poderia ao mesmo tempo ser ainda humana~ A controvérsia crisrológica que durou
alguns séculos e quase arrastou a igreja novamente à beira da destruição, procurava
dar respostàs a essa questão.
Sempre houve ~dois tipos de pensamento crisrológico: ou Deus Pai (ou Logos,
_._c.?~~_É:spíriro) usara o homem Jesus de Nazar~rando-o,. inspirando-o ou adotan-
do~o como Filho, ou o ser divino (Lagos ou Filho eterno) se teria tornado homem
- ._- ---------""._.-.-.-.. _-"_
..,----_. --_'''.-."''---'---'
.I}_~ ?-to.cl~ tr~nsforma.ção. O credo de Nicéia, com o conceito de homoousios e suas
tendências mon~lrquicas, favorecia a primeira solução. Assim também a teologia
romana. A ênLlse na divindade do Filho eterno facilita a ênfase na humanidade
histórica do Pilho. ,Um semi.~_ª.~,~!~,_p.oge..r"0l!i!t?_bem se _tran§fot.".fI1,~T, S~I~~ b()}!~.~m.z.~l1as
o verdadeiro Deus só pode adotar um homem. Essa primeira solução não estava na
linha de Orígencs. Segundo Orígencs, o Logos eterno é inferior ao Pai e tem, por
meio da união com a alma de Jesus, os traços do Jesus histórico, mesmo na eterni-
dade. Pode, ponanto, transformar-se em Jesus sem muito problema, com o auxílio
do corpo, resultando daí uma cristologia de transformação. Não se fez claras distin-
ções entre as duas possibilidades. O conceito de homoousios podia ser intcrpretado
no espírito de Sabélio ou de Ária. Dessa forma, as interpretações cristológicas, de-
pois de Nicéia, podiam ser de tipo adopcionista ou transformadora. Essa dubicda-
dc foi logo notada por alguns teólogos. A controvérsia apareceu quando alguém
resolveu fazer o que Ária fizcra cm relação à trindade, tirando as conseqüências do
pensamento de Orígines, desta vez em relação à cristologia. Esse teólogo foi Apolinário
de Laodicéia,
L Teologia antioquena
95
CAPíTULO 11
96
DESENVOLVIMENTO TEOL6GICO NA IGREJA ANTIGA
97
CAPÍTULO 11
rito Santo, totalmente fcita de graça e de vontade. Estabeleceu, entáo, UDla analo-
gia de Jesus com os profetas, que também haviam sido dirigidos pelo Espírito. A
diferença era que em Jesus o evento havia sido singular, sem limites, enquanto que
nos profetas o Espírito se mostrara limitado.
-l Seguindo essa lógica, Teodoro afirmava que a natureza humana devia ser adora-
da e, por outro lado, que Deus sofrera. Essas coisas podiam ser ditas apenas em
relação à unidade da pessoa. Naturalmente, porque o que se diz da unidade pode
também ser dito do ser inteiro. Mas rejeitava a idéia da transformação do Lagos em
ser humano. Os teólogos ocidentais afirmavam que a unidade de natureza só é
alcançada quando Cristo é elevado ao trono de Deus na ressurreição. Nessa hora, o
corpo c a alma humana de Jesus teriam sido glorificados e transformados. O evento
da absorção do lado humano de Jesus é evento transcendente que acontece apenas
no céu e não na terra. Assim,_Teodoro ensinava_ q~~-:~~~~"~lte.~_~':..:!:~_.i::?_~,.~l..E.essoa
.~:stó.!ic.<l.,.,?o.frer:~~!!2.orrera. A natureza divina em Cristo não passara por essas coi-
sas. Considerava blasfêmia dizer-se que a divindade e a carne pertenciam à mesma
natureza. Ambrósio também achava que Cristo, embora tendo duas naturezas, so-
frera apenas em sua natureza humana. A mesma graça que aceitara a natureza hu-
mana em Cristo e o transformara cm Filho de Deus, também nos justificava perantc
Deus e nos transformava em seus filhos.
98
DESFNVOLVIMEI'TO TEOL(JGICO NA IGREJA ANTIGA
2. Teologia alexandrina
1. Durante muito tempo, a lenda de Maria, sem muita base na Bíblia, crescera
a partir da imaginação piedosa. A figura de Maria fascinava as mentes românticas.
99
CAPÍTULO II
Osíris, a deusa e seu filho, mas o cristianismo não tinha nada do gênero. Nisso,
seguia o judaísmo que descartava qualquer elemento feminino. O Espírito não era
capaz de substituir o elemento feminino. _Em primeir~_L~~~!! __ .'?_.§spírito ap~rcce,
nas histórias do nascimento de Jesus, co~)~tor masculino. Em segundo lugar, é
_con~_t:_i~.l? <l1>~_~.~<l.to. Assim, na mentalidade popular o Espírito jamais poderia vir a
ser esse elemento. A religião cristã herdava, do Antigo Testamento, formas centradas
em imagens masculinas.
3. Concílio de Calcedônia
O Papa Leão I havia escrito importante carta que se tornara decisiva para a
realização do Concílio de Calcedônia. Dizia que as propriedades de cada natureza c
substância eram inteiramente preservadas e reunidas para formar uma só pessoa. A
humildade fora assumida pela majesrade, a fraqueza pela força, c a morralidade pela
eternidade. O uno e verdadeiro Deus habitava a natureza inteira e perfeita do ver-
dadeiro homem. O Filho do Homem, portanto, descera de seu trono, dos céus, sem
abandonar a glória do Pai, e ingressara neste nosso mundo, mantendo em cada
natureza a unidade da pessoa. Entendia-se, então, que o Pilho do Homem viera do
100
DESENVOLVIMENTOTEOU)GICO NA IGREJA ANTIGA
céu, e, por outro lado, que o Filho de Deus fora crucificado e sepultado. Temos aqui
o mesmo fenômeno presente na teologia dos antioquenos. Combina-se a formula-
ção radical com demasiada Facilidade com idéias tradicionais. E foi nessa base que
se chegou à decisão de Calcedônia. Sua importância, bem maior que a de Nicéia,
vai além de todas as outras decisões sinodais..Não é possível se estudar teologia,
hoje em dia, sem o conhecimento desta decisão de Calcedônia. A substância dela se
.,~){pressa numa fórmula paradoxaL_
1. Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se
devc__ C_ollt~s_<!-r um sº-,~__~Il.~.§Qlº_ Filb.-9...LD9J~9._Sel!h~ÇlL.l~~ys Cristo, peli~itº_.cI.u<l!lto à
divindade, e perfei[O quanto à humanidade.
4. Gerado segundo a divindade, antes dos séculos, pelo Pai e, segundo a huma-
nidade, nestes últimos dias, por nós e pela nossa salvação, gerado da Virgem Maria,
mãe de Deus (theotokos).
101
CAPÍTULO II
Essas Igrejas foram engolidas pela reação islâmica, que eu chamo de reação purita-
na, manifesta na rejeição das superstições sacramentais nas quais o CrISUJnlsmo
cada vez mais se afundava. Eu tenho uma tese - e não sei se o padre Florovsky
concordaria comigo - de que os ataques do Is15.0 não teriam tido êxito contra o
cristianismo oriental se esse cristianismo tivesse conservado os elementos teológicos
da personalidade c da história. Mas em lugar disso, o cristianismo dessa parte do
mundo se deixou levar, cada vez mais, pela superstição popular, tornando-se, dessa
maneira, vulnerável ao tipo islâmico de reação.
4. Leôncio de Bizâncio
O imperador Justiniano queria reunir os ca1cedonianos com os monoflsitas.
Conseguiu, para esse fim, a ajuda de um teólogo monacal, Leôncio de Bizâncio.
Leôncio combinou Cirilo e Leão numa nova idéia escolástica alcançando para o
problema cristológico uma solução que perdurou por muito tempo no Oriente.
Ensinou que a natureza humana de Cristo não tinha hypoJtasis própria; devia ser
considerada anhypostasú' (sem !JypostrtJis). Neste contexto a palavra queria dizer "ser
independente". Em vez disso, a natureza humana era enhypoJtasis, significando que
a natureza humana escava na hypostaj'ú' do Logos divino. Chega-se, dessa maneira,
ao escolasricismo. Não sahemos realmente que quer dizer essa fórmula, enhyposttlSú.
102
DESENVOLVIMEl'TOTEOLOC;ICO NA IGREjA ANTIGA
Mas se entende bem a razão que levou Leôncio a inventá-la. Perguntava-se: podem
existir duas naturezas sem um centro independente, sem uma hypostrlSis? A resposta
era negativa. Portanto, Crisw tinha que ter uma só hypostasis representando as duas
naturezas.
A tílrima controvérsia oriental tinha a ver com os ícones. Eikon quer dizer "ima-
gem". Os ícones eram imagens dos pais e santos da igreja. Mereciam veneração,
mas não adoração. Entretanto, quando se busca a diferença é difícil de situá-la, pois
no sentimento popular a veneração sempre acaba em adoração.
103
CAPÍTULO []
ram protestando em silêncio contra tamanha ênfase na igreja Oriental. Por certo,
essa igreja não é tão importante para vocês como, por exemplo, a Reforma Protes-
tante ou a teologia moderna. Entretanto, o [·1tO é que se vocês conhecerem os fun-
damentos da teologia nascente, tudo o que vem depois se torna comparativamente
fácil. Se, por outro lado, nos contentarmos em conhecer apenas a situação con-
temporânea, sem roda essa história que a antecipou, tudo fica no ar. Sed. como a
casa construída a partir do telhado e não dos alicerces. Acredito que as controvérsias
teológicas do passado são verdadeiros fundamentos e, como tais, devem ser conside-
radas imediatamente depois das bases bíblicas.
J. Pseudo-Dionísio Areopagita
Dionísio Areopagita é o..-c::l~~~i_<:.?)l1ístico CflStãO que se tornou uma das mJ1S
104
DESENVOlVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA
Deixou-nos
-_.-- ----_ _------ --_ ..Sobre
duas obras fundamentais:
.. ~_ ... ,
os nomes divinos e Sobre as hierar-
-
quiaJ. Este último faz distinção entre as hierarquias celestiais e as da igreja. É pro-
vável que a palavra "hierarquia" tenha sido criada por ele; pelo menos não temos
notícia de seu uso por qualquer outro escritor antes dele. O termo vem de hieros,
que quer dizer "santo", "sagrado", e de arché, "princípio", "poder", "começo". O
termo é, então, definido por Dionísio como "sistema sagrado de graus a respeito do
conhecimento e da cficácià'. É o que caracteriza o sistema católico, até certo ponto.
Não se circunscreve ao ontológico; abrange também o epistemológico. Há graus
não apenas no ser, mas também no saber. O sistema de graus sagrados vem do
neoplatonismo, onde apareceu pela primeira vez depois de Aristóteles e Platão
(Symposium). O principal pensador desse ripa de filosofia chamava-se Produs,
neopiatânico, comparado às vezes com Hegel. Desenvolveu o mesmo tipo de pen-
samento triádico - tese, antítese e síntese - trazendo a realidade toda sob esse siste-
ma de graus sagrados.
105
CAPÍTULO li
grego, resumindo tudo o que a sabedoria grega tinha a dizer sobre a vida, foi intro-
duzido no cristianismo que p<1SSüU a utilizá-lo. Um pouco antes, o mesmo sistema
havia sido utilizado por Juliano, o apóstata, para combater ü cristianismo. Ora,
]uliano e os teólogos cristãos que tanro lutaram entre si, uniam-se, afinal, num
cristão grego, místico e teólogo, o Pseudo-Dionísio.
;1.;..0 outro livro que vamos examinar é Sobre os nomes divinos. O termo "nomes
divinos" é também neoplatônico, utilizado por eles para designar todos os deuses
pagãos quando os reuniram em sell sistema. Como fizeram isso? Nada mais fizeram
do que seguir a crítica filosóficl, segundo a qual, nenhum grego educado da época
acreditava, literalmente, nos deuses pagãos. Havia, certamcntc, a tradição, a religi-
osidade popular, e algo dcvia ser feito a respeito dos nomcs divinos. Procuraram
demonstrar que as qualidadcs do divino expressavam-se nesscs nomes. Também
expressavam diferentes graus e poderes do fundamento divino c da sua emanação.
Indicam princípios de poder, de amor, de energia e de outras virtudes, embora não
possam ser tomados como nomes de seres especiais. Tudo isso significa que desco-
briam, em nossa terminologia moderna, o cadtcr simbólico de toda a nossa fala a
respeito de Deus. Ao longo da Idade Média, se encontram muitos escritos sobre
esse mesmo assunto. Os teólogcos escreviam sobre o significado simbólico de todas
as coisas que dizemos a respeito de Deus. Mas não empregavam a palavra "sírnbolo"
nessa época. Em vez disso falavam de "nome" para expressar características ou qua-
lidades. Seguindo as descobcna~; da teologia clássica a esse respeito, não diríamos,
como às vezes se flZ, que a nossa Llla a respeito de Deus seja apenlls simbólica. Esse
llpenas está muito errado! Não podemos cair em literalismo, pois foi contra esse
literalismo que tanto lutaram m reformadores, especialmente Calvino.
Deus paira acima dos mais :lItOS nomes que a teologia lhe tem conferido. Deus
é, segundo Dionísio, super-essencial. Esd além das idéias platônicas, que são as
)OG
DESENVOLVIMENTO TEOLCíC;ICO NA IGRI'JA AN'I'IGA
essências. Está além dos superlativos. Ele não é o mais alto dos seres, mas se situa
além de qualquer ser mesmo que seja o mais alto e sublime que possa ser concebido.
É supradivino, além de Deus, se Deus for para nós um ser divino. Portanto, Deus
é "escuridão indizível". Por meio desta combinação de palavras, Dionísio nega que
Deus, em virtude de sua natureza, possa ser falado Oll visto. Assim, todos os nomes
atribuídos a Deus devem desaparecer tão logo se faça essa atribuição, até mesmo o
santo nome de "Deus". Talvez essa tenha sido a fonte - inconscientemente - do que
eu disse no final de meu livro A Coragem de Ser, sobre "Deus acima de Deus", isto
é, Deus acima de Deus que é o fundamento verdadeiro de tudo o que existe, e que
se situa acima de qualquer nome especial que lhe possamos dar, mesmo que seja o
nome do mais aIco ser.
107
CAPíTULO 11
mística; a união é o estado da perfeição, o retorno à união com Deus. Nesse último
estágio, Dionísio percebia o que chamou de ignorância mística. É a mesma coisa
que Nicolau de Cusa passou para o mundo moderno com o nome de ignorância
doura (docta ignorantia). Para esses dois pensadores reside apenas aí o conhecimen-
to supremo verdadeiro. A palavra "ignorância" significa que não sabemos nada es-
pecial quando conseguimos penetrar nos fundamentos do que existe. E, posto que
todas as coisas especiais estão sempre mudando, das não podem ser a verdade c a
realidade última. Mas se penetrarmos, a partir do mundo mutável, na esfera do
supremo, alcançaremos a rocha da eternidade; aí está a verdade que só repousa
nessa rocha.
Cada hierarquia recebe sua luz do que está mais acima e a transmite ao que lhe
é imediatamente inferior. Cada hierarquia, pois, é, ao mesmo tempo, ativa e passi-
va. Recebe o poder divino de ser e passa-o de modo restritivo aos que lhe são infe-
riores. Entretanto, esse sistema de graus acaba sendo dualista. Há duas hierarquias
fundamentalmente diferentes, a celestial e a terrena. As hierarquias celestes são as
essências ou idéias platônicas, transcendidas apenas por Deus. São essas as primei-
ras emanações de Deus, interpretadas por Dionísio como hierarquias angélicas.
Essas idéias já haviam aparecido no judaísmo posterior (no período
intertestamentário). O conceito de anjos - que já é um conceito simbólico personalista
- se une ao conceito de essências ou poderes hipostatizados de ser. Tornam-se um
mesmo ser representando as hierarquias celestes. Se vocês quiserem interpretar o
conceito de anjos, nos dias de hoje, de maneira significativa, falem dos anjos como
essências platônicas, como poderes de ser e não como seres especiais. Se vocês inter-
pretarem os anjos como seres especiais, vocês caem numa crua micologia. Por outro
lado, se vocês interpretarem os anjos como emanações do poder divino de ser em
essênCias, em poderes de ser, o conceito de anjos se torna significativo e talvez até
108
DESENVOLVIMENTO TEOLClcICO NA IC REJA ANTICA
mesmo importante. A figura sentimental dos anjos como bebês alados não tem
nada a ver com o grande conceito das emanações divinas em termos de poderes de
ser.
3. Os três graus dos não-clérigos: os imperfeitos, que ainda não são membros
da congregação, os leigos, c os monges, com suas funções especiais.
Essas nove hierarquias terrenas medeiam o retorno da alma a Deus. São igual-
mente necessárias e, da mesma forma, poderes de ser. Na qualidade de filhos do
nominalismo, vocês já devem estar perguntando: como se pode dizer que os sacra-
mentos sejam igual a povo (clero, leigos) enquanto hierarquias? É preciso se enten-
der que as pessoas funcionam aqui na qualidade de portadoras de poder sacramen-
tal, do poder de ser. O mesmo se aplica aos sacramentos. É por isso que Dionísio
chama as nove de hierarquias. São igualmente poderes de ser, algumas visíveis em
pessoas, outras em sacramencos, e ainda outras em pessoas cuja única função consis-
te em ser membros da congregação.
109
CAPÍTULO 11
110
DESENVOLVIMENTO TEOuíGICCJ NA IGREJA ANTIGA
das pelo protestantismo, que boa parte delas foram retiradas das igrejas. Assim, no
calvinismo, os objetos naturais perderam a transparência. Esse é o sentido de todos
os movimentos iconoclastas (destruição de imagens). Trata-se de reação bastante
compreensível ao modo supersticioso com que muitos católicos oram às suas ima-
gens etc. Mas quando nos damos conta de que pelo mesmo aro rodos os objetos
naturais perderam a transparência natural, já não se pode tcr tanta certeza sobre a
validade da medida. As coisas passaram a ser meros objetos da atividade técnica, a
natureza desdivinizoll-sC, perdendo a função que sempre possuíra de representar o
sagrado. Diríamos que a cultura bizantina conseguira cspiritualizar a realidade roda.
Esse faro não deve ser confundido com idealizaçáo, que é coisa bem diferente. A
imagem de Jesus pintada por Hofmann é uma idealização. As imagens bizantinas
de Jesus têm transparência e jamais poderiam ser confundidas com imagens ideali-
zadas. Vê-se, por meio delas, a majestade divina. Não se limitam a retratar um
mero ser humano bem proporcionado e agrad~i.vel que nos servisse de modelo ideal.
É por isso que eu digo que a igreja oriental representa aspectos religiosos que perde-
mos. E me alegro ao saber que as igrejas ortodoxas orientais foram, afinal, recebidas
no Conselho Mundial de Igrejas, tornando possível, novamente, o nosso encontro
com elas. Não devemos pensar que elas não têm nada para nos ensinar. Pode até
mesmo acontecer que depois de alguns séculos de contatos mais íntimos com essas
Igreps, o pensamenm ocidental venha a recuperar a tão valiosa dimensão da pro-
fundidade.
o sistema de Dionísio foi recebido pelo Ocidente. Duas coisas contribuíram
para isso, cristianizando-o ou batizando-o. Em primeiro lugar, a emanação foi com-
preendida num quadro pessoal, não natural. Deus dera existência aos seres por
causa de sua benevolência. Os pagãos jamais teriam pensado dessa forma. Remove-
se o dualismo neoplatônico com esse elemento personalista. Em segundo lugar, o
sistema hiedrquico gira em torno da igreja e de Crismo É daí que as pessoas e as
coisas derivam o poder iluminador. Cristo não é uma hierarquia entre outras. Nicéia
não permitiria tal doutrina. Cristo era o próprio Deus manifesto, presente em todas
as hierarquias e agindo por meio delas. Assim, superava-se o sistema das divindades
e dos mistérios pagãos, ainda persistentes no neoplaronismo, e a igreja ocidental
podia aceitar as hierarquias e os mistérios. Como resultado disso, o misticismo
medieval não se opôs à hierarquia eclesiástica. Foi só mais tarde que os conflitos
apareceram.
111
CAPÍTULO li
K. Tertuliano e Cipriano
Vem com ele a ênfase no pecado que se tornaria tão importante mais tarde no
Ocidcnte. Falava do vicium originis, vício original, identificado com a sexualidade.
Foi com ele que se iniciou propriamente essa tendência presente no cristianismo
romano de depreciar o sexo ao lado da idéia da universalidade do pecado.
Tertuliano achava que o Espírito era uma espécie de substância tênue, como
era também considerado na filosofia estóica. Essa substância superior, que era o
Espírito, era também a graça e o amor. Na verdade, sempre quiseram dizer a mesma
coisa na teologia católica. Assim, a teologia católica romana podia falar de gratia
infusa, graça infusa, como qualqucr líquido, muito fino, a se derramar nas almas
humanas para transformá-las. Esse é o elemento não-personalista no pensamento
sacramental católico romano. Essa graça pode ser vertida sacramentalmente dentro
112
DESENVOLVIMENTO TEOLCíC;ICCl NA IGREJA ANTIGA
Por outrO lado, ainda se ensinava com suficiente ênfase que o Espírito é quem
decide sobre quem pertence e quem não pertence à igreja. Então, Cipriano dizia
que os bispos é que são os "espirituais", os que possuem o Espírito, isto é, o Espírito
da sucessão dos primeiros apóstolos, em outras palavras, a sucessão apostólica. Des-
I 13
CAPÍTUlO 11
Perguntava-se ainda que atitude se deveria tornar com as pessoas barizadas por
hereges e cismáticos. Tratava-se de mais um problema existencial. Espero que seja
clara a diFerença entre herege c cism;íticos, Hercgcs sãoos que acreditam de modo
di Ferente..9~!1~~!.....~~iE~ 2~~_~sv i~!.'-1.:!.~i~.rdcm do li ui ~!~L.93._~.Sta,c_~i,stã._,Ç i.S}l~_~E~
". sã{)__ g_s_CL~_~,,_~~~~m _~~~rmi_~~9._~.J.i~~ha de desenvolvime~0j_~_~c:.?~~~~~í_~_ticoe se
~~r_~~_A~_Jg~.eja! _motivad<?s talvez _P.o~_<:_?.!~-ª_~~~~._~,!1!~_~._~i~p.?S O~l p,or.!_~_~_apacidade
_ de ac,:i.~~r..~_bispo d.~?_~~ __g,'por isso que a separação entrc as igrejas do Orientc c
do Ocidcnte se chama de cisma. A igrcja oriental é considerada cism;:ítica e não
herética, pela igreja de Roma. Já o protestantismo é considerado por Roma um
movimento herético, porque não recusa apenas a autoridade do bispo de Roma,
mas põe em dúvida postulados de fé, aceitos por Roma como fundamentais.
1. "Quem não tcm a igrg''!.-_s:º..r!~g.-B.la "mã.~.!láo poª~ __~~r Deus como seu Pai".
"Não há salvação fora da igreja" (cxtrrt ccc!esiarn nuffa sa/us). A igreja é a instituição
onde se obtém a salvação. Essas idéias diferem dos ensinamentos do período primi-
tivo, quando a igreja era considcrada a comunidade dos santos e não a instituição
da salvação. Naturalmente, naqueles tempos tJmbém se acreditava que a salvação
acontecia na igreja; os que sc salvavam do paganismo e dos demônios reuniam-sc na
igreja. Mas a igreja, em si, não era considerada a instituição da salvação, lTlas a
comunidade dos santos. A ênfase de Cipriano é bastante consistente com o pensa-
mento legalista do Ocidente.
2. A igreja está edificada sobre o episcopado. Essa convicção vem da lei divina
e é, por isso, objeto de fé. "Portanto, vocês devem saber que o bispo esrá na igreja e
a igreja está no bispo, e que se alguém não estiver com o bispo, não estará na igreja".
Essa é a mais pura forma de episcopalismo, muito embora a palavra tenha sentido
114
DESENVOLVIMENTO TEOU)CICO NA IGREJA ANTIGA
115
CAPíTULO Ii
116
DESENVOLVIMENTO n:OL(lCICO NA ICREJAANTIC;A
ser uma cOisa bonita! Foi terrivelmente feia - e é isso que o Ocidente accicou c
C11 rendeu.
Os reformadores refe!:}~21-se~~~:~tan~~lel:5,~_~
..1&~~1110 na luta contra a Igrc-
j.<1-RQ.man;b. EX~~S:~.~EXgf~~~l~_a influência na fllosofia mo(ietna, começando.p?~D~
ca~ss} e sua escola, e pass~~Ao._P?.r_.Y~pin~~.0.: Também influenciou a teologia mo-
derna. Devo confessar, sem ambigÜidade, 5L~e tO~~n~~i,~~~?-_.teolo_g_ia_XI5.~1~~~~':2~
linha da tradição agostiniana do qu~. tomist3. Podemos traçar essa linha de pensa-
mento que pane de Agostinho, até os franciscanos da Idade Média, e vê-la passando
pelos reformadores, pelos filósofos dos séculos de:t,essete e dezoito, chegando aos
filósofos alemães cLíssicos, incluindo Hegel, e terminando na atual filosofia da reli-
gião. O agostinianismo expressa-se llltma filosofia da re1igiJo baseada na imediatez
da verdade em cada ser humano, e não I1tlm~l filosofia empírica da religião, que
seria, certamente, uma contradição em termos.
1. O itinerário de Agostinho
117
CAl'ÍTU LO II
118
DESENVOLVIMENTO TEOI/1CICO NA IGREJA ANTIGA
119
CAPÍTULO li
Agostinho foi atraído pelo maniqueísmo durante dez anos. Havia razões para isto.
Em primeiro lugar, a verdade não era para o grupo mera questão teórica, esgotada
na análise lógica, mas assunto religioso relacionado com preocupações existenciais e
práticas. Em segundo lugar, a verdade era salvadora. O maniqueísmo era um siste-
ma de salvação. Os elementos do bem, cativos pelo princípio do mal, encontram no
sistema maniqueu a salvação. Em terceiro lugar, a verdade refulge na luta entre o
bem e o mal e assim se pode interpretar a história.
120
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA ICREJAANTIGA
o ocidente europeu.
121
CAPÍTULO II
f) A superação do ceticismo não foi alcançada por ele apenas com o auxílio
fIlosófico do neoplatonismo, Illas também COIll a ajuda da autoridade da igreja.
Muito .lb.~jn8J.!.ÇQ\:XOl!,_~~ra tap!.9LSJIJ.i?J).Q. _d~.. Mj~.Q-, _~.,!rHq. Ambrósio, represe~1tan-
..__J;.~_qes~~L~g9.1~.i.40-de-=-- A consciência do novo arcaísmo, ou do novü período arcaico
iniciado com a tradição eclesiástica, torna-se consciente no princípio da autoridade.
A catástrofe do ceticismo levou Agostinho cada vez mais para a aceitação da autori-
dade, para a autoridade da revelação, concretamente concedida a ele por meio da
autoridade eb igreja.
122
DESENVOlVIMENTO TEOLOCICO NA IGREJA ANTIGA
123
CAl'fTULO 11
Ora, essas duas atitudes diferentes estavam fadadas a entrar em choque logo
que Aristóteles fosse redescoberto no século treze. Por essa razão esse século tornou-
se o mais importante século da teologia cristã; foi completamente dominado pela
tensão entre Aristóteles e Agostinho. Essa tensão foi de tal maneira importante que
continuou a se expressar pelos séculos seguintes. Se VQ.cês. quiserem aplicar uma
etiqueta em meu pensamento, po~~~em me chamar de "agostiniano" e, nesse sentido,
de "antiarisrotélico" e "antitomista". Concordo plenamente com Agostinho no gue
diz respeito à filosofia da religião, mas não necessariamente com tudo o que ensi-
nou. Por exemplo, enquanto teólogo e filósofo na linha gestáItica, aproximo-me
bastante de Aristóteles e não tanto de Platão ou Agostinho, porque a idéia de estru-
tura viva ou de organismo é aristotélica, enquanto que a ciência atomista, mecál11ca
e matemática, permanece agostiniana e platônica.
124
DESENVOlVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA
]25
CAPÍTULO 11
Ora, essas idéias se assemelham muito ao que Descartes queria dizer com o seu
cogito ergo sum (penso, logo sou). A diferença é que para Descartes a autoeerteza do
ego é o princípio da evidência matemática - deriva daí seu sistema racional da
natureza - quando para Agostinho a evidência interior era a imediatez da presença
de Deus. Assim, Agostinho aflrma: depois de se ir à alma, precisamos nos transcen-
der. O que significa que na alma há alguma coisa que a transcende, algo imuGÍvel,
que é, em outras palavras, o fundamento divino. Refere-se aqui à percepção imedi-
ata do incondicional. Não se trata certamente de mais um argumento em favor da
existência de Deus, mas de um modo de demonstrar que Deus esd pressuposto na
própria situação de dúvida a respeito dcle. "À m~~ma 1~~ªXS{;:t, que não pqdemosver
o que cremos, podemos ver a crença gue temos". Isto é, somos capazes de perceber
a situaçáo na qual somos tomados por algo incondiconal.
126
DESENVOLVIMENTOTEOL(lCICO NA IGREIAANTIGA
127
CAPÍTULO II
mar que o Lagos se fizera carne. E assim mostrava a diferença fundamental entre
filosofia e teologia. A fIlosofia poderia levar os teólogos a falar do Lagos, mas no
momento em que a teologia afirma que o Lagos se fizera carne, baseava-se em men-
sagem religiosa capaz de distinguir o cristianismo de qualquer filosofia clássica. A
afirmação da encarnação do Lagos é de natureza teológica: vem da revelação, não da
filosofia. O Logos, princípio universal do cosmos, aparece em forma histórica. Esse
é o evento histórico único, incomparável.
3. Idéia de Deus
o amor, segundo Agostinho, é o poder unificador dos elementos místicos e
éticos em sua idéia de Deus. Vamos considerar primeiramente sua idéia de amor,
antes de examinarmos slIa idéia de Deus. Anders Nygrcn, teólogo sueco que escre-
veu Agape e Eros, criticou Agostinho e a teologia cristã, em geral, porque combina-
ram eros e agape numa síntese. Nygren está certo ao afirmar que esses dois elemen-
tos aparecem em Agostinho. A (ape é o elemento de amor no sen~L~~_~_~?tcstamc:nrário
do caráter pessoal e compass~::.9_A;:..P_~~s. Eros representa c!_.~.~seio da~_cTiaruras por
Deus engual~_~º bem sUE~emo, buscando unir-se a ele, para se rcalizare~._~terna-
__ mente. Agape ressalta quando falamos de Deus descendo ao homem em caritt{J -
prefiro a palavra latina à táo degenerada "caridade" -, humilhando-se em Cristo, em
graça e misericórdia, e parricipando nos humildes para elevá-los. Eros, por outro
lado, vai de baixo para cima; rrata-,~e de um desejo, de uma busca, provocada pelo
mais alto, ramada por sua plenitude e abundância. O Lagos que se faz carne é
agape. Mas roda a carne (toda a realidade natural e histórica) deseja Deus; isso é
eros. Em rninh~ TÇJ}jr}gitz Sist~;~ldLiC/l d~!D9!!§Ut;Lgue IlãQ se pode falar de amor para
_ comJ2_~.~_ se eliminarmos erM~Tr.at.a-s~.9?__a.mor ~"'!!;:Lc:-ºQ) __9__ ~_ais alto poderde ser
------S.!:!-~xist~, no qual nos realizamos.
128
DESENVOLVIMENTO TEOLcJGICO NA IGREJA ANTIGA
Temos, assim, dois elementos nesse conceito de Deus. À medida que Deus se
situa além de qualquer diferença, situa-se também além do sujeito e do objeto. O
amor não poderá ser, pois, um sentimento subjetivo que se dirige para determinado
objeto. Em última análise, não amamos objews, mas por meio de nosso amor a eles
dirigidos, é o próprio amor que é amado. Amor amatur, o amor é amado; só possível
porque o fundamento divino do ser é amor. O amor supera a separação de sujeito e
objeto. É a essência pura, a bem-aventurança, o fundamento divino de rodas as
coisas. Quando amamos as coisas corretamente, incluindo a nós mesmos, amamos
a substância divina presente nelas e em nós. Quando amamos as coisas em si, sepa-
radas do fundamento divino delas, amamos erradamente; e nos separamos de Deus.
Há, no pensamento de Agostinho, certo tipo de amor correto por nós mesmos. É o
amor com que nos amamos, enquanto amados por Deus. Em outras palavras, ama-
mos a Deus, fundamento divino do ser, por meio de nós mesmos.
129
CAPfTULO 11
Deus cria sem qualquer substância prévia. Por isso a finidade será ameaça constan-
te. Acredito que quando nossos pensadores existencialistas modernos, incluindo eu
mesmo, dizem que a finidadc é a mistura de ser e não-ser, ou que o não-ser se
presentifica nas coisas finitas, estão na linha do pensamento de Agoscinho, quando
afirmou que todas as coisas correm o perigo de cair no tremendo abismo do nada.
O mundo é criado a cada instante pela vontade divina, que é a vontade do amor.
Portanto, conclui Agos~inho,_,~egui4(?_,d<;Eº_i~_J?5~JQ_~_~~fQIrp.aº_.op~~s,
__ ~_çriª_0o e a pre-.
_~.s.<=rvação_s_~?,_~ .~~?esma coisa; em nenhum momento o mundo se torna independente
deJ2_~l!s. As formas, leis e estruturas da realidade não são capazes de transformá-lo
numa realidade independente. Deus é o poder sustenta_4_0_~d()_pydc:rde ~<:r~ cuj.~
__ ~~At_t::r é__? amo._r~_~ssirn, não é possível a fixação deísta destas duas realidades, Deus
e mundo. Deus é o fundamento contínuo e amoroso do mundo.
130
DESENVOlVIMENTO TEOL()GICO NA IGREJA ANTIGA
131
CAPÍTULO li
somos, e amamos nosso ser e nosso conhecimento". O que significa que nos auto-
afirmamos e nos Jutorelacionamos. Afirmamo-nos por meio do conhecimenw e da
vontade.
132
DESENVOlVIMENTO TEOL()GICO NA IGREJA ANTIGA
5. Filosofia da hist6ria
A filosofia da história de Agostinho baseia-se. como em geral qualquer filosofia
da história, num dualismo ontológico, não obstante tal dualismo ser impossível.
De um lado está a cidade de Deus, do outro, a da terra ou do diabo. A cidade de
Deus realiza o amor de Deus. Está presente na igreja, mas a igreja é um corpus
mixtum, um corpo misturado, com pessoas que pertencem essencial e espiritual-
mente a ela e outras que não lhe pertencem. Entre essas duas características da
igreja (representação do reino de Deus e corpo misturado) a mediação se dá por
meio da hierarquia. A hierarquia é representada pelos que têm o poder de consagrar.
Na hierarquia, Cristo governa a igreja e se faz presente por meio dela._As~im, 2..
~~Ç~tólica~..l~Xl.tf..9J.!_A~._~~~s_~inho de ~ua~ maneira~. I9~!~~iBf.9Y-.. º- ~~Ú!º ge
Deus com a igrelª--ª-2-2!l~~__ 4<:""'~P..?9'-~1~iz~-la. Isso realmente aconteceu. Por outro
lado, as diferenças entre a igreja e o reino de Deus poderiam ser claramente revela-
das. Foi o que fizeram os movimentos sectários e a reforma protestante. Agostinho
percebia cerra relação dialética entre o reino de Deus e a igreja. Mostrava-se de tal
133
CAPÍTULO II
maneira ambígua que podia ser uti,lizada por diferentes teólogos. Mas uma COIsa
lhe era clara: não havia o período de mil anos na história mundial, nenhuma tercei-
ra época. Negava o chiliasmismo ou o milenarismo. Cristo governa a igreja já, ago-
ra; estes são os mil anos. Não há outros estágios na história além do tempo em que
vivemos. O reino de Deus governa por meio da hierarquia, e os chiliastas estavam
enganados. Não devemos pensar que o reino de Deus vai se fazer presente na histó-
ria em outros períodos além do nosso.
A história tem três períodos: antes da lei, sob a lei e depois da lei. Temos aí uma
completa interpretação da história. EstaIl1?s_.~~~~l~A~~~_.~!?.A!!~~'? p~ríodo; cairíamos
_.em h~res~ª~cre9itáss~,~l..21._~_yiriaainda mais outro período. As seitas meclie-
vais, por certo, expressaram essa heresia. Assim, torna-se evidente a luta entre o
conservadorismo da filosofia da história de Agostinho e as tentativas revolucionárias
dos movimentos sectários.
6. Controvérsia pelagiana
134
DESENVOLVIMENTO TEOlflCICO NA ICREJA ANTIGA
Até agora apenas examinamos o homem na sua relação essencial. Ao vê-lo nessa
relação essencial com Deus, consigo mesmo e com os outros, Agostinho considera o
homem fundamentalmente vontade, cuja substância é amor. Esse amor é o funda-
mento criativo de tudo o que existe. Nessa idéia de amor, agape e eras afinal se
reúnem. Entretanto, a natureza essencial do homem não é igual à sua natureza
existencial; a natureza essencial não aparece no tempo e no espaço. Pelo contrário,
essa natureza essencial é deformada pelo que Agostinho chama de pecado, especial-
mente de pecado original, na tradição do Novo Testamento e da igreja. Sua doutri-
na do pecado, centro de sua doutrina do homem, desenvolveu-se na controvérsia
que manteve contra Pelágio.
135
CAPÍTULO II
Podemos afirmar que o pe1agianisrno possui forte ênfase ética com muitos ele-
mentos ascéticos, mas perdeu inteiramente o aspecto trágico da vida. Não devemos
menosprezá-lo; devemos levá-lo a sério. Não digo que tenhamos todos nascido,
pelagianos - como digo do nominalismo - mas diria que o pelagianismo está muito
próximo de nós todos, especialmente desses países mais dependentes de movimen-
tos sectários como os Estados Unidos. Transparece em nós sempre que nos dispo-
mos a forçar a vontade de Deus em nosso favor. É o que, em geral, chamamos de
"moralismo", termo demasiadamente abusado. Pelágio dizia que o bem e o mal
dependem de nós: somos nós que os praticamos. Não são dados a nós, de fora. Se
isso fosse verdade, a religião correria o perigo de se transformar em moralismo.
137
CAPÍTULO 11
O homem queria scr autônomo e dirigir a própria vida. Com isso, amou-se a si
mesmo erradamente e se desligou do amor devido a Deus. Segundo .Agostinho "O
___começo do ..peçad.o _é o orgulho; o começo dq 5:Hgulho é _0 abandono de. D~us". Se
dissermos hybris em lugar de orgulho, estaremos empregando um conceito mais
profundo, porque, em geral, orgulho cano ta uma atitude psicológica especial. E
não é disso que se trata. Até mesmo as pessoas mais humildes podem demonstrar
enorme orgulho psicológico.
138
DESENVOLVIMENTO n:OL<)GICO NA IGREJA ANTIGA
mesmo por nosso intermédio. Sendo essa a natureza do pecado) não deveria ser
confundido com "pecados", referentes a atos morais. Pt;~gdQ é. c;.rn primeiro lugar c
basica~lls~J~_9_~.~I=~~t~J.ti~i.!:ill!H5?:;~J2~li~ .I?or !§§.9 n~~_I-§---!~.!l:!édJo moral possível.
Só existe um único rc_~édio: retornar_l~~~peus. Mas essa volta só é possível,
naturalmente, se promovida pelo poder de Deus, uma vez gue o homem perdeu
esse poder sob as condições da existência.
139
CAPÍTULO II
o pecado de Adão é original por duas razões. Todos nós existíamos potencial-
mente em Adão, no seu poder procriador, e dessa forma todos participamos na sua
.livre decisão tI assim, somos culpados. Trata-se, naturalmente, de um mito bastan-
te questionável. Em segundo lugar, Adão introduziu a libido! 09-~_sejo) no~rocesso
_ da ger~'Lão sexual, c esse elemento passoup"ra_ "l'_Qsterid"de comoherafl.Ça. Todos
somos nascidos do mal do desejo sexual. Basicamente, o pecado original é espiritual
(a11(Q em Adão como em qualquer outra pessoa. Mas também é físico. Agostinho
teve muita dificuldade para rcunir o caráter espiritual do pecado humano com o
caráter hereditário derivado de Adão.
Por causa desse pecado original, hereditário, todos nós pertencemos à "massa
da perdição", à unidade da negatividade. A mais desconcertante conseqüência dessa
doutrina é que até mesmo as crianças que morrem se perdem. Posto .sue todos
pcnencem à massa da perdição, ninguém se salva a não _?~~.E9~._ .'!!1:. __~.E-<? especial de
Dcus. Essa é a mais poderosa ênfasc na solidariedade da r~ç~J~u"man~IJ_~_tragédia
_~.?'p.:~ado. Assim, ele ncga radicalmente - quase num sentido maniqueu - a liber-
dade da personalidade individual. A unidade abrangente da humanidade faz com
que sejamos o que somos. Ora, à luz da moderna pesquisa, levada a efeito pela
psicologia profunda c pela sociologia, podemos provavelmente entender melhor do
que nossos pais o que Agostinho queria dizer, ou seja, a panicipação inevitável de
cada pessoa na existência humana, na estrutura social, bem como na estrutura psi-
cológica individual, neurótica ou não. A pergunta que fica é esta: mas por que os
indivíduos participam também na culpa? Não há resposta para esta pergunta nos
cscritos de Agostinho .
14ü
DESENVOlVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA
141
CAPÍTULO II
narnente recebida pela igreja, muito embora tenha sempre sido considerado o mai-
or dos mestres da igreja. O pelagianismo foi rejeitado. O semi-pelagianismo, flores-
cido mais tarde, foi também condenado cem anos depois. Contudo, tais rejeições
não impediram que idéias desse tipo volta e meia retornassem à igreja. Os histori-
adores se referem a esse tipo de pensamento como criptosemi-pelagianismo. Não se
pode negar que, especialmente na escola agostinista, dos franciscanos dos séculos
seguintes, o semi-pelagianismo não se mostrasse ainda com certo vigor. Natural-
mente, não se [ratava, em hipótese alguma, de reviver Pelágio na igreja oficial. Mas
o semi-pelagianismo, que negava a irresistibilidade da graça e acentuava a necessi-
dade das obras para a manutenção da graça, voltava à igreja e tornava possível a
doutrina educativa de Agostinho. Já falamos a respeito disso. Não se pode advogar
uma doutrina como a de Agostinho numa instituição educacional, e a igreja cristã
era a LÍnica instituição educacional existente, por ainda mil anos. Nessa situação era
preciso se apelar à vontade livre dos educandos. Nenhuma doutrina extrema pode
ser apresentada ~l maioria do povo de modo direto. Assim, o elemento trágico mais
importante não se perdia inteiramente, mas se restringia até certo ponto por causa
das necessidades educativas. Quando os reformadores entraram em cena essa era a
situação. Nessa ocasião, o elemento tdgico havia sido reduzido a quase nada pelas
ênfases educacionais, éticas e ascéticas, dominantes na igreja. As igrejas, com pou-
cas exceções, suspeitam de qualquer doutrina de predestinação - pelo menos o cato-
licismo - porque faz com que a relação suprema com Deus se torne independente
da igreja, ou pelo menos tend:l :l se tornar independcnte. Encontramos também
aqui uma daquclas tensões de que já falamos em relação a Orígines e a outroS teólo-
°
gos, entre ponto de vista teológico ültimo c o educativo penúltimo. Esses elemen-
tos sempre se acham em tensão na instrução religiosa, no aconselhamento e na
pregação. A grande disputa entre Agostinho e Pelágio talvez tenha sido o principal
exemplo clássico desse problema na Igreja CrIstã.
7. Doutrina da Igreja
A doutrina da igreja de Agosrinho tcm exercido enorme influência em todas as
igrejas cristãs e não apenas na Igreja Romana. Vamos, pois, considerá-la. J~í. vimos
que Cipriano definia a igrcja como instituição da salvação, substituindo, cm boa
parte, o antigo conceito de comunhão dos santos (communio sanctorum). Com isso,
modificava-se também a idéia cLt santidade da igreja. Agostinho entrava em conflito
com o movimento donatista. Originalmente, a ênfase recaía na santificação dos
membros individuais e do grupo como um rodo. Foi daí que veio a idéia da realida-
142
DESENVOlVIMENTO TEOLOCICO NA IGREJA ANTIGA
Havia gente na África do Norte, onde Agostinho era bispo, que não acompa-
nhava tais doutrinas e que estava interessada na santificação da igreja e dos seus
membros, especialmente do clero. Discutia-se a respeito do seguinte:
3. se valia a ordenação feita por trarlitores, traidores, que haviam entregue livros
sagrados durante as perseguições ou negado que eram cristãos.
-; Seriam as graças objetivas válidas se mediadas por pessoas que não eram subje-
tivamente santas~ Os donatistas excluíam essas pessoas da igreja e não permitiam
ÇJue fossem ministros, porque a santidade da igreja é a santidade pessoal de seus
representantes. Em conseqÜência disso, os cristãos passavam a depender do status
moral e religioso do clero. Ora, Agostinho foi claro sobre a impossibilidade de
julgamentos desse tipo sob pena de se cair em terríveis conseqüências - adotar o
papel de Deus que é o único capaz de olhar os corações humanos. Queria preservar
a objetividade da igreja em face dessas exigências de santidade subjetiva de seus
representantes. Seguia o pensamento de Cipriano. Para esse fim, introduziu no
debate a distinção entre fé (incluindo esperança) e amor. A fé e a esperança podem
exisrir fora da igreja porque são determinadas pelo conteúdo. Pode-se viver entre os
hereges e até mesmo ser um deles, mas desde que se satisfaça a fórmula do batismo
corretamente, o conteúdo será decisivo e não o status pessoalmente herético ou
moralmente indigno da pessoa. As fórmulas são as da Igreja Católica. Se as igrejas
heréticas empregam as mesmas fórmulas da Igreja Católica, seus sacramentos são
válidos por causa dos conteúdos objetivos.
O amor, por outro lado, não pode existir sem a fé correta. É o pflncíplO
unificador da igreja. Não se trata de mera bondade moral, capaz de ser encontrada
em qualquer parte, mas da relação fundamentada em agape entre os indivíduos.
Esse espírito de amor, encarnado na igreja, enquanto unidade de paz, enquanto
restabelecimento da unidade divina original, rompida no estado da existência, é
143
CAPÍTULO II
algo que só pode ser encontrado na igreja. Por essa razão só há salvação dentro da
igreja. A salvação é impossível sem esse derramamento do agape; da graça dada
como um fluido nos corações dos homens. Embora possam haver sacramentos váli-
dos fora da igreja, a salvação só se dá no seu interior.
A distinção entre fé e amor é de extrema importância. Faz com que a igreja seja
o único lugar da salvação para os católicos. Vem daí a distinção entre a validade e a
eficácia dos sacramentos. Os sacramentos dos hereges são válidos quando realizados
nos termos da tradição ortodoxa. Assim, ninguém deve ser rebatizado. Por outro
lado, os sacramentos não têm eficácia dentro dos grupos heréticos, mas apenas na
igreja. Por exemplo, o batismo sempre deixa um character indelebilis, como reza o
termo técnico; é uma qualidade <'lue vem de Deus e que permanece durante toda a
vida do batizado, não importando o que faça. Essa doutrina era muito importante,
porque permitia à igreja medieval tratar os pagãos e os judeus diferentemente dos
cristãos batizados. Os cristãos batizados submetiam-se à lei da heresia, enquanto os
judeus e os pagãos, não. Mesmo se os cristãos batizados quisessem se tornar judeus
ou pagãos ou muçulmanos, não podiam, porque o ato do batismo lhes conferia um
caráter indelével, não importando quem tivesse realizado o sacramento, se ortodoxo
ou herege.
144
CAPÍTULO III
>:
OMUNDO MEDIEVAL
A Idade Média não era tão uniforme como nossa ignorância nos leva a crer.
Havia muitas diferenças. Podemos distinguir os seguintes períodos:
(1) Transição, de 600 a 1.000. O ano 600 é marcado pelo papado de Gregório
Magno, em quem ainda vivia a tradição antiga e com quem a Idade Média realmen-
te começa. Nesse período temos um tempo de preservação - quando se procurou
preservar tudo o que foi possível e que não era grande coisa - e outro de recepção; as
tribos germânico-romanas que governaram a Europa haviam sido assimiladas. Nes-
sa época, o mundo antigo passava para o medieval. É o período, em geral, chamado
de "idade das trevas", especialmente os séculos nono e décimo. Mas não foram
assim tão obscuros como se pensa. Aconteceram grandes coisas que prepararam o
advento do novo mundo, a partir das quais nós existimos, mesmo se já nos esquece-
mos delas.
145
CAPÍTULO lU
(2) Primeira Idade Média, de 1.000 a 1.200. Nesta época formas novas e
originais se desenvolveram decisivamente diferentes do que se conhecia no mundo
antigo. Este período criativo e profundo é representado pela arte romanesca.
(3) Alta Idade Média, de 1.200 a 1.300. São aqui elaborados todos os motivos
básicos que vão formar os grandes sistemas dos escolásticos, da arte gótica, e da vida
feudal.
146
o MUNDO MEDIEVAL
147
CAPÍTULO IH
B. Método escolástico
148
o MUNDO MEDIEVAL
sentenças. Muito embora a fé sempre fosse pressuposta, seus conteúdos tinham que
ser interpretados. Veio daí o moto: credo ut inte!!igam, creio para entender. Queria
se dizer que a substância da fé era dada; podia-se participar nela. Não havia na
Idade Média a "vontade de crer". O credo era dado como era dada a natureza. Da
mesma forma, a razão apenas interprecava a tradição dada; não criava a tradição.
Essa analogia pode nos ajudar a entender melhor a Idade Média.
o próximo passo foi dado, menos especulativarnete e com mais cautela, por
pensadores que levavam a sério Aristóteles, na sua elaboração teológica, como de-
monstra, especialmente, Tomás de Aquino. Achavam que a razão era adequada para
interpretar a autoridade.J'\L~.Yf:rEiªde, a r~zã9.. iamajs se opõe à autoridade; a tradição
_~jy~~-l20dg. ser i_!l_t_~_rpreç;).da_~!n_.. ~.~!:.1Jl2~~,._qÇ~9~Q.jlj~A y<!z.ãq _nã9"._preci~i1__ .$eJ.. destruíd<l _
!Iara interpretar o significado da tradição viva. Esta ainda é até hoje a posição tomista.
O último passo foi a separação entre razão e autoridade. Duns Escoro e Gui-
lherme de Ockham, o nominalista, entendiam que a razão não se prestava para
interpretar a autoridade nem a tradição viva, nem mesmo para expressá-las. O
nominalismo posterior diria isto, claramente. Entretanto, se a razão não pode in-
terpretar a tradição, a tradição se transforma em autoridade de modo bem diferen-
te; passa a ser a autoridade mandatória a exigir submissão, mesmo se não for enten-
dida. É o que chamamos de "positivismo". A tradição é dada positivamente: está aí
e a vemos; aceitamo-la e nos submetemos a ela do modo como nos é dada pela
igreja. A razão não tem capacidade de mostrar o sentido da tradição; só pode mos-
trar as diferentes possibilidades derivadas das decisões da igreja e da tradição viva. A
razão pode chegar a probabilidades e a improbabilidades, mas nunca a realidades.
Não pode dizer como as coisas deveriam ser. Isso depende da vontade de Deus. A
vontade de Deus é irracional e dada. É dada na natureza. Precisamos, pois, de certo
empirismo para descobrir como são as leis naturais. Não estamos no centro da
natureza. Relacionamo-nos com as ordens da igreja, com a lei canônica, de modo
que é a essas decisões que nos submetemos positivamente; devemos aceitá-las como
leis positivas, pois não as podemos entender em termos racionais.
149
CAPÍTULO III
150
o MUNDO MEDIEVAL
muitos "não", por causa dos povos primitiVOS a quem se dirigia a pregação, por
causa da tradição da igreja que era a única então existente, e por causa do processo
de transformação e consolidação permeando todas as coisas. Por isso, os teólogos
tradicionalistas rebelaram-se contra os teólogos dialéticos.
2. Agostinismo e aristotelismo
3. Tomismo e escotismo
151
CAPÍTULO JII
4. Nominalismo e realismo
152
o MUNDO MEDIEVAL
Paulo, somente aquela árvore particular ali na esquina da rua 116 com a Riverside
Drive e não a "arvoridade", o poder de ser que faz com que essa árvore particular
seja, afinal, árvore. Trata-se de uma diferença na maneira de sentir a realidade. Os
nominalistas olham para essa árvore e sentem: "Ela é uma coisa real; se eu me jogar
contra ela vou me machucar". Mas é também possível olharmos para essa mesma
árvore e fLearmos deslumbrados ao nos darmos conta de que, entre tantas sementes
plantadas, surgiu esta estrutura particular que cresceu e se desenvolveu. Então,
podemos ver, nesta árvore grande, a presença da "arvoridade" e não apenas essa
forma particular. Da mesma forma, podemos ver em Pedro e Paulo não apenas dois
indivíduos particulares, mas também a própria natureza humana, a "humanidade",
que é o poder capaz de fazer com que todos os seres humanos sejam dessa forma.
Essa importante discussão era levada em termos lógicos e ainda persiste, hoje em
dia.
É difícil o dia em que eu não tenha que lutar contra o nominalismo a partir do
meu pensamento realista de tipo comparativamente medieval, que concebe o ser
enquanto poder de ser. Eu sei que se trata de um pecado contra o "espírito santo"
do nominalismo, bem corno contra o "espírito nada santo" do positivismo lógico e
contra ainda outros "espíritos". Acredito que, muito embora o realismo extremo
esteja errado, contra o qual Aristóteles se rebelou, essa luta é digna. Há estruturas
universais que se atualizam constantemente. Para isso não é preciso entender, corno
Platão, que os universais sejam coisas especiais em algum lugar do céu. Para mim, o
poder de ser está sempre resistindo em face do não ser. Por isso, não podemos ser
nominalistas apenas, muito embora devemos conservar sua atitude de humildade
perante a realidade que recusa se aproximar dela, pela via da dedução.
153
CAPíTULO lI!
D. Forças religiosas
154
o MUNDO MEDIEVAL
155
CA I'ÍTULO IJI
remos dizer que os grupos eslavos retomavam para si o que as ordens monásticas
militares lhes haviam tirado na Idade Média, e suprimiram o cristianismo substitu-
indo-o por uma forma comunista e não-cristã de secularismo. A Conferência de
Berlim, de 1945, foi, em especial, um grande evento histórico mundial, semelhan-
te às grandes batalhas dos cavaleiros da Idade Média, quando a Europa orienraI se
rendeu c a população germânica que aí vivera por cerca de mil anos, teve de ser
dividida. Quando olharmos para esta situação em perspectiva, talvez entendamos a
importância dessas ordens medievais.
Outra força religiosa foi o sectarismo; nio devemos entendê-lo tanto a partir
do ponto de vista dogmático, como se faz, em geral. É verdade que as seitas tinham,
às vezes, doutrinas estranhas e, por isso, abandonavam a igreja. Mas a razao verda-
deira era mais psicológica e sociológica do que teológica. O sectarisnJ,.o e_~a a crf~i_c:~_
-.ft:Ü?- à igreja por causa da distância entre ° que dizia e o que fazia. Expressava °
desejo de grupos especiais por ideais de consagração, de santificação e de santidade.
Procuravam desenvolver o radicalismo monacal em termos contrários à hierarquia.
Até cerro ponto, OS_'D.9_yi!'!1~~}?:~~~_~~~s1rio~~"3mleigos. Como a própria palavra ser/tlre
significa, "cortavam-se" do corpo da igreja. Entretanto, a introdução não-sectária
dos ideais monásticos, na vida secular, fazia-se, pelo menos em parte, por meio das
ordens terciárias, tertitlrii. Havia a primeira ordem de São Francisco, para monges; a
segunda, para freiras, c mais tarde, a terceira para leigos. Estes não ingressavam no
mosteiro nem faziam vOto de celibato. Submetiam-se a certos aspectos da disciplina
monástica, responsáveis pelo surgimento de uma piedade leiga que se tornou muito
influente ao final da Idade Média e acabou preparando o caminho para a Reforma.
156
o MUNDO MEDIEVAL
157
CAPÍTULO [IJ
É curioso que nos sistemas teológicos medievais não havia lugar especial para a
doutrina da igreja. Indicava, entre outras coisas, que a igreja era auto-evidente; era
a base da vida inteira e não questão doutrinária especial. É claro que nas discussões
a respeito da hierarquia, dos sacramentos, e das relações com o poder civil, desen-
volvia-se implicitamente certa doutrina da igreja.
158
o MUNDO MEDIEVAL
sua vida. Mas precisava identificá-la com o reino de Deus a partir da graça sacra-
mental, presente na hierarquia. O ponto de partida podia ser qualquer um desses:
a identificação ou não identificação da igreja com o reino de Deus. Esse foi sempre
o problema da Idade Média. A igreja, naturalmente, procurava se identificar com o
reino de Deus em termos das graças hierárquicas. Entretanto, não é correto pensar
que os representantes medievais, teólogos, papas ou bispos, estivessem sempre iden-
tificando sua bondade ou santidade particular com o reino de Deus. O que se
identificava com o reino de Deus era a santidade sacramental com o seu poder
sacramental objetivo. Essa objetividade da realidade sacramental é que se [Ornou
decisiva para a compreensão do pensamento medieval. De outro lado, a igreja em
si, era um corpo ambíguo e as representações das graças sacramentais nem sempre
claras. Assim, a partir daí, podia-se atacar a igreja. Os debates medievais sobre a
igreja oscilavam, pois, entre esses dois pólos.
A ênfàse recaía na identidade do estado com o reino de Satã, ou, pelo menos,
do mundo pecaminoso, ou na negação dessa identidade, concedendo-lhe a função
divina controladora do caos. Só se entende esse tipo de pensamento quando se leva
em consideração o período vivido por Agostinho, em que o império romano e, mais
tarde, os reinos germano-românicos não eram poderes cristãos. Mesmo depois da
cristianização de Constantino, continuava o jogo do poder. A substância da cultura
antiga se mantinha, não sendo ainda substituída pela substância religiosa da igreja.
Mas a situação mudou. Com a expansão do cristianismo, no Ocidente, a igreja se
tornou a substância cultural da vida, o poder determinante das relações individu-
ais, de todas as expressões da arte, do conhecimento, da ética, das relações sociais,
das relações com a natureza e de rodas as demais formas da vida humana. Agostinho
aceitou, em parte, a antiga substância, e em parte a rejeitou. O que permaneceu foi
submetido ao princípio teônomo da igreja.
159
CAPÍTULO 111
Numa situação dessas não se podia mais dizer que o estado era o remo do
diabo, porque a substância do estado passara a ser a própria igreja. Essa nova situ-
ação trouxe conseqüências não apenas para as relações entre a igreja e o estado, mas
para o próprio estado. De que maneira o estado germânico relacionava-se com a
igreja? Antes da conversão das tribos germânicas ao cristianismo, seus príncipes,
que eram seus líderes, representavam não apenas o poder terreno, mas também o
poder sagrado. Representavam, automaticamente, os dois domínios. A mesma situ-
ação persistiu, nos estados germânicos, na medida em que o clero pertencia à ordem
feudal das tribos. O grande bispo de Rheims, na França, Hinchmar, representava o
protesto feudal do poder político sagrado - político e sagrado ao mesmo tempo -
contra o universalismo da igreja. Os reis germânicos, obrigados a conceder poder
político aos mais altos senhores feudais, tinham também que conferir o mesmo
poder aos bispos que eram, igualmente, altos senhores feudais. A igreja chamava de
simonia essa prática, a partir da história de Simão que desejou comprar o poder
divino. Esses senhores feudais tinham que dar alguma coisa em troca pelo que
recebiam. Tudo isso ligado ao sistema territorial das tribos germano-românicas que
se opunha à universalidade da igreja.
A oposição aos bispos feudais e aos reis ou príncipes veIO de três segmentos
sociais: I. do baixo clero; 2. dos papas, especialmente de Gregório VII; 3. das
massas proletárias que eram antifeudais, especialmente no norte da Itália. O Papa
se utilizava dos bispos mais pobres, mais próximos do baixo clero do que ele, para
resistirem, em seu nome, ao clero feudal dentro de seus próprios territórios. Essa
era a situação que, afinal, desencadeou a grande luta entre Gregório VII c Henrique
IV. Em geral, se pensa, erroneamente, que se tratava de uma luta entre igreja e o
estado. Mas, "estado" no sentido moderno, é um conceito do século dezoito. Assim,
quando falamos de "estado" em referência à Grécia, a Roma ou à Idade Média,
devemos sempre escrever essa palavra entre aspas. O que existia, realmente, era a
autoridade legal apoiada por poder militar e político.
160
o MUNDO MEDIEVAL
am ser essa única cabeça. O "estado", representado pela ordem feudal, achava que
também representava o corpo cristão como um todo, mas a igreja, por sua vez,
representada pelo Papa, achava que lhe cabia esse mesmo papel. Os dois lados aspi-
ravam ao mesmo poder, representando ao mesmo tempo o secular e o religioso. O
rei queria representar e proteger a cristandade. Principalmente, quando o rei se
tornou o imperador germânico continuando a tradição do santo império romano.
Por outro lado, o Papa Gregório VII reclamava para si a mesma posição a partir do
lado hierárquico. Reivindicava direitos que ultrapassavam tudo o que se conhecera
até então. Idenrificava-se com todos os bispos na qualidade de bispo universal.
Toda graça episcopal vinha do Papa; Pedro estava presente nele, e em Pedro, o
próprio Cristo. Não se podia conceber a existência de bispos independentes do
Papa para o exercício do poder sacramental. O Papa era o monarca universal na
igreja. E foi além: a igreja era a alma do corpo, e o corpo, a sociedade secular. Os
representantes da vida secular relacionam-se com ele que representa a vida espiritu-
al, como o corpo humano se relaciona com o seu interior, que é a alma. Como a
alma governa as panes do corpo, assim o Papa governa os reinos com suas ordens
feudais.
Essa atitude se expressava por meio da doutrina das "duas espadas": a terrena e
a espiritual. Assim, como a existência corporal se submete à espiritual, assim tam-
bém a espada do rei e dos senhores feudais se submete à espada do Papa. Portanto,
todos os seres na terra têm que se submeter ao Papa de Roma. Essa era a doutrina
do Papa Bonifácio VIII, que expressava radicalmente as aspirações papais. Os impe-
radores se rebelaram contra isso, e surgiram muitos acordos. Mas, em geral, os
papas venceram, pelo menos enquanto existiu uma só cristandade dentro da qual as
lutas prosseguiam.
Mas surgiram novas forças na Idade Média. Entre elas, os estados naCIOnaiS
ocuparam lugar de enorme importância. Queriam ser independentes tanto do im-
perador como do Papa. Apoiavam-se em forte sentimento nacionalista. O naciona-
lismo francês apareceu, pela primeira vez, em conflito direto com o Papa na figura
de Joana D'Arc. Daí a sua importância. No final da Idade Média, os estados naci-
onais conseguiram retomar boa pane do poder papal. A França esteve de novo na
liderança: Felipe, o belo, levou o papado para Avinhão, na França, provocando o
conhecido cisma entre os dois papas, para minar radicalmente a autoridade deles.
Os príncipes e reis, que iam gradualmente se tornando independentes e criando
novos estados, eram também senhores religiosos. E assim surgiu na Inglaterra a
161
CAPÍTULO lI!
teoria de que o rei representava Cristo para a Igreja Inglesa da mesma forma em que
o Papa é o vigário de Cristo.
Surgiu uma outra teoria, desta vez contra o Papa. Os bispos dos diferentes
estados nacionais não queriam ser meros súditos do Papa; desejavam recuperar o
prestígio que os bispos possuíam, digamos, na época do concílio de Nicéia. Desen-
volveram a idéia de conciiiarismo; o concílio dos bispos deveria ser a autoridade
eclesiástica suprema. Contrariavam, assim, o curia!ismo (de curia, corre papal); era
aí que residia o poder monárquico sobre a igreja e o estado. Dessa maneira, o
conciliarismo, aliado à reação nacionalista contra o império e o papado, se transfor-
mou num movimento radical que ameaçava a sobrevivência do papado. Com o
passar do tempo, no entanto, o Papa conseguiu acabar com os concílios reformadores
de Constança e Basiléia, onde o conciliarismo triunfara por certo tempo. As separa-
ções nacionais e outras divisões, mais o desejo, dos últimos tempos da Idade Média,
de unidade apesar de tudo, fizeram com que o ec1esiasticismo e o monarquismo
afinal prevalecessem na Igreja Romana.
162
o MUNDO MEDIEVAL
F. Sacramentos
Dissemos, antes, que a Idade Média foi dominada por um problema principal.
Buscava-se urna s9s~,4~~,e,_çp.j?_~,? ~,~_~t;L,g_Ú~~~~.~calidadepresente, de caráter
divino transcendente. Diferia dos tempos do Novo Testamento, quando o proble-
ma central era a salvação da alma dos indivíduos. Diferia também do período
bizantino (cerca dc 450 - 950), quando os mistérios interpretavam a realidade toda
em tcrmos do seu fundamento divino, mas quase nada era mudado. Era, também,
diferente do período pós-renascentista que tcrminou no século dezenove, quando o
mundo era dirigido pela razáo humana e o homem ficava no centro de todas as
coisas. Não tinha nada a vcr com o período grego, quando a mente procurava o
imurável eterno. Todas essas épocas tiveram seus problemas particulares. O proble-
ma da Idade 10~~L~ er~ __?P!"?bl~:na do mundo (sociedade e natureza), ond~._()_.cl~:rir~?_
se fazia P~E~,I1t~,'p0r mei5?_ c.l~_.formas sac..~~I::.~J1[~,~~. À luz desse fato, perguntamos:
que queria dizer "sacramental"? Significava uma porção de coisas na história da
igreja. Eram os feitos de Cristo e seus sofrimentos (as estações da Cruz); eram os
evangelhos, também chamados de sacramenros; cram os símbolos da Bíblia; o cará-
ter simbólico dos edifícios eclesiásticos, com as atividades desenroladas aí dentro,
em rcsu~'?2__ ~.oA~s as coisas-P~.~t:..~0_c!E~~_ do divino. Es~_~ cr.a. a qtl~st~{)_.m_~E.liev?-l: ter ª-_
._pres_cn~<:t.d9 sagrad<;-l.
163
cAPí'ruLo lU
164
o MUNDO :VIl'OIEVAL
produz efeitos; age no interior da alma; faz com que aconteça algo divino. Mas não
em termos absolutos. O sacramento depende de Deus como sua causa final. É um
meio de graça. A palavra "graça" deve ser traduzida por poder divino de ser, ou
poder do novo ser, que justifica ou santifica. /ustificação e santificação são a mesma
coisa no catolicismo. Mas são bem diferentes no protestantismo. Essa graça, ou
poder divino do novo ser, é derramada pelos sacramentos na essência da alma, no
seu mais profundo interior. Não há outro meio para a recepção da graça justificadora
e santificadora fora dos sacramentos. A substância derramada no interior da alma
produz efeitos nas diferentes funções da alma, ou mente, como diríamos hoje. O
intelecto inclina-se à fé por meio da graça sacramental; a vontade dirige-se para a
esperança; e o ser inteiro se volta para o amor.
O importante é que o sacramento age em nós ex opere operato, por sua própria
realização e não por qualquer outra virtude. Só há um pressuposto subjetivo, isto é,
que se creia que os sacramentos scjam sacramentos. Não se pede a fé enquanto
relação especial com Deus. É uma teoria do "mínimum"; mesmo os que resistem à
graça divina podem recebê-la não importando a própria indignidade. Basta que
não neguem que o sacramento é meio da graça divina. A teoria do ex opere operato
faz do sacramento um evento objetivo, quase mágico. Os reformadores foram muito
radicais a respeito dessa idéia.
IG5
CAPÍTULO lI!
menta da penitência? Alguns queriam que fossem muito fáceis, outros, ao contrá-
rio, bastante difíceis. Todos acreditavam na necessidade do arrependimento - em
maior ou menor grau - conservando, ao mesmo tempo, a necessidade do sacramen-
to. Entretanto, nenhum escolástico tenWu explicar a relação entre o elemento sa-
cramental e o pessoal. Foi neste ponto, precisamente, que a igreja medieval explo-
diu, com a intensificação do lado subjetivo da confissão. Foi essa a experiência de
Lutero, e foi por isso que se tornou o grande reformador da igreja.
G. Anselmo de Cantuária
lGG
o MUNDO MEDIEVAL
adquirido o semido de olhar para as nuvens; em vez disso, referia-se à análise das
estruturas básicas da realidade.
lG7
CAPÍTULO JII
Vemos, pois, que Anselmo não era autônomo num sentido vazio e formal, nem
hctcrônomo procurando submeter sua razão a urna tradição ininreligível, seme-
lhante ao mistério mágico. Eu chamo de autônoma a atitude de Anselmo. EsCüu
sempre usando esse conceito em minhas discussões e escritos. Quando alguém per-
gunta, "que quer dizer economia?", podemos responder: "o método filosófico de
Anselmo, de Agostinho e .... com certa hesitação. de Hegel". Apesar de todas as
minhas críticas, menciono Hegel. Esse método ecônomo significa o reconhecimen-
to do mistério do ser, sem no entanto recebê-lo como elemento transcendente c
autoritário, imposto sobre nós, ou contra nós, destruindo nossa razão. Isso equiva-
leria a dizer que Deus estaria destruindo o seu próprio Logos, que é a profundeza da
razão. A razão e o mistério andam juntos, como a substância e a forma.
mistérIO divino cai-se em dualismo, e Deus acaba sendo dividido em seu próprio
III terio r.
168
o MUNDO MEDIEVAL
Deus (pois não são argumentos nem provam a "existência" de Deus) expressam o
pensamento ecônomo de Anselmo. Conseguem, no entanto, resultado bem me-
lhor. São dois os argumentos, o cosmológico e o ontológico. O argumento
cosmológico aparece no Monologium e o ontológico, no Pros!ogium. Vou demonstrar
como esses argumentos em favor da existência de uma duvidosa e desconhecida
peça da realidade, mesmo se chamada de "Deus", não são argumentos. São coisas
bem diferentes.
Essa é a primeira parte do argumento cosmológico. Até este ponto é uma aná-
lise existencial da finidade, boa, verdadeira e necessária para qualquer filosofia da
religião. Na verdade, é a filosofia da religião. Entretanto, essa idéia se mistura com
o realismo metafísico que identifica os universais com os graus do ser. Corno já
vimos, o realismo medieval atribui poder de ser aos universais. Desse modo, cons-
trói-se urna hierarquia de conceitos na qual o incondicionalmente bom e grande, e
o ser, não são apenas qualidades ontológicas, mas realidades ônticas, seres entre
outros seres. O mais alto ser é o mais universal de todos. Precisa ser só um, caso
contrário um outro ocuparia o seu lugar. Deve tudo abranger. Em outras palavras,
o significado ou a qualidade do infinito de repente se transforma no mais alto ser
infinito, no mais alto, maior e melhor ser incondicionado. O argumento é correto
na medida em que descreve o encontro humano com a realidade, enquanto ser
169
CAPÍTULO 111
1. Até o tolo - do Salmo 53, que diz no seu coração, "Não há Deus" - entcnde
o significado do termo "Deus". Ele entende que o mais alto, o incondicional, se
concebe no termo "Deus".
170
() MUNDO MEDIEVAL
3. Mas existe uma forma superior de ser, não apenas na mente humana, mas no
mundo real fora da mente humana.
4. Uma vez que estar na mente e fora dela é superior a estar apenas no intelecto,
esse ser é o incondicional.
Cada passo do argumento está construído de tal maneira que pode ser facil-
mente refutado como, de fato, aconteceu muitas vezes já no tempo de Anselmo. Por
exemplo, se dizia que o argumenro poderia ser igualmente válido para provar qual-
quer coisa suprema, como, por exemplo, uma ilha perfeita. Seria mais perfeito se a
ilha existisse também na realidade e não apenas na mente. Além disso a expressão
"na mente" era ambígua. Na verdade, queria dizer "ser pensado", "intencionado",
"ser objeto da intencional idade humana". "Na" é expressão metafórica que não deve
ser tomada literalmente.
Anselmo respondeu à primeira objeção dizendo que uma ilha perfeita não era
um pensamenro necessário, e que só era necessário o pensamento do mais alto dos
seres, do incondicionado. À segunda crítica respondeu dizendo que o incondicionado
deve superar a separação entre a subjetividade e a objetividade. Não pode estar
apenas na mente. O poder do significado do incondicional supera a separação entre
sujeito e objeto, abrangendo a ambos. Se Anselmo tivesse dito isso, a forma falaciosa
do argumento teria sido abandonada. O argumento deixa, assim, de ser em favor
do mais alto dos seres, mas simples análise do pensamento humano. Nesse caso, o
argumento afirma: deve haver um momento em que a necessidade incondicional de
pensar e ser se tornam iguais sem o que não pode haver certeza alguma, nem mesmo
aquele grau de certeza pressuposto pelos céticos. Estamos diante do argumento
agostiniano de que Deus é a verdade, e a verdade pressupõe, até mesmo, o que o
cético reconhece. Deus é idêntico, então, à experiência do incondicional enquanto
verdadeiro, belo e bom. O que o argumento ontológico realmente faz é analisar no
pensamento humano algo incondicional que transcende a subjetividade e a objeti-
vidade. É uma necessidade. Se não for assim, a verdade é impossível. A verdade
pressupõe que o sujeiro conhecedor da verdade e o objero conhecido esrejam, de
certa forma, no mesmo e único lugar.
171
CAPÍTULO III
172
o MUNDO MEDIEVAL
prius de qualquer coisa, jamais ele será alcançado. Se não se começa com Deus, não
se chega a Deus. Foi o que sentiu Anselmo quando percebeu a patcialidade do
argumento cosmológico.
1. A honra de Deus foi violada pelo pecado humano. É necessário, por causa
disso, que Deus reaja negativamente.
4. Por ourro lado, porque o homem pecou, é ele, e não Deus, que deve dar
satisfação. Portanto, somente quem for Deus e homem é que deve fazê-lo, pois
enquanto Deus pode e enquanto homem deve. Somente o Deus-homem é capaz
disso.
6. Embora o nosso pecado tenha sido infinito, esse sacrifício - feito pelo pró-
prio Deus - foi também infinito. Então Deus pôde dar a Cristo o que merecia em
virtude de seu sacrifício, isto é, a posse dos homens. Mas Cristo não precisava de
nada. Mas necessitava e desejava para si a humanidade. Foi o que Deus lhe deu.
173
CAPÍTULO III
Mas surgiu outra questão: de que maneira o homem participa nessa história? A
mente jurídica de Anselmo não sabia responder. Nesse momento, intervém Tomás
de Aquino: o homem pode participar em todos os a!.9_~_de Iei!:!§~R9.!: __ I~.leio .da união
mística entre a cabeça e os membros, entre C~isto e a igreja.
H. Abelardo de Paris
174
Não queria deduzir esses mistérios da razão, mas compreendê-los com a razão.
Naturalmente, sempre haverá o perigo de se esvaziar o mistério, mas esse perigo
também ameaça o próprio pensamento. O pensamento, uma vez começado, inevi-
tavelmente acaba com a imediatez da vida. A questão é se é possível chegar-se a um
tipo mais alto de imediatez. Esse raciocínio também se aplica às aulas que vocês
ouvem aqui. Ouvi-las significa expor-se a diversos perigos. É por isso que muitos
dos fundamentalistas não gostariam de ver seus futuros teólogos educados num
lugar como o Seminário Unido de Nova York que, como Abelardo, gosta do pensa-
mento dialético. Mas se não se passa esse risco, a fé jamais virá a ser verdadeiro
poder.
175
CAPÍTULO III
Sua obra, 5ic et Non (Sim c Não), empregou um método dialético bem mais
antigo do que Abelardo. Vinha da literatura canônica (da lei sagrada) na jurispru-
dência eclesiástica. Os advogados papais procuravam harmonizar os decretos dos
diferentes papas e sínodos. Os papas e seus conselheiros precisavam tomar decisões
que não entrassem em conflito com a tradição da lei. Assim, a lei precisava ser
harmonizada. Entretanto, as decisões dogmáticas de papas e sínodos faziam parte
dessa lei canônica, e também tinham que se submeter a esse "sim e não". Ao escrever
seu livro, Abelardo queria apenas harmonizar as doutrinas, e não revelar diferenças
dogmáticas para despertar dúvida e ceticismo. Ao contrário, queria mostrar que a
unidade se mantinha na tradição e quc isso podia ser provado com os métodos da
harmonização. As autoridades eclesiásticas aceitaram essa argumentação porque
prccisavam dela; na verdade, todos os escolásticos aceitaram o método do "sim" e do
"não" de Abelardo. Faziam perguntas, colocavam as respostas em questão, discuti-
am os pontos de vista opostos, e finalmente chegavam à conclusão.
17G
o MUNDO MEDIEVAL
177
CAPÍTULO III
dos sao, pois, sempre questionáveis quando aplicados a situações concretas. Jamais
poderão ser absolutizados. A consciência haverá de ser o guia. O bem perfeito,
naturalmente, será a exata correspondência entre a norma objetiva e a intenção
subjetiva, desde que a consciência esteja de acordo com o que é certo. Mas, em
geral, esse não é o caso. Quando não for o caso, é melhor seguir a consciência
mesmo quando estiver objetivamente errada. Para Abelardo, "não há pecado a não
ser contra a nossa consciência". De certa forma, até Tomás de Aquino aceitava essa
noção. Dizia: "se algum superior de minha ordem, a quem jurei obediência, me
pedir para fazer alguma coisa contra a minha consciência, eu não o farei, embora
esteja obrigado a obedecê-lo". A consciência era considerada o juiz supremo mesmo
quando objetivamente errada. Essas formulações anteciparam os protestantes e Kant,
muito embora na época de Abelardo não funcionassem, porque ele se descuidara do
elemento educacional. Se as massas sem educação fossem ensinadas a seguir a cons-
ciência, sem quaisquer normas estritas suficientemente objetivas, certamente se
perderiam. Sobre esse e outros temas, Abelardo antecipou idéias que mais tarde
vieram a se impor, como, por exemplo, na França do século dezoito.
Abelardo negava que todos pecaram em Adão. O pecado não era sensualidade;
era aro da vontade. Não há pecado sem a concordância da vontade e, posto que não
concordamos com a nossa vontade quando Adão pecou, o seu pecado não é pecado
para nós. Vemos aí a maneira como a subjetividade, precisamente como no século
dezoito, dissolveu a doutrina do pecado original, porque essa doutrina revela o lado
trágico do pecado, que é objetivo e não pessoal e subjetivo.
Ele é melhor conhecido entre os protescantes que o citam bastante por causa de
sua idéia de salvação. Como vimos, Anselmo, na sua doutrina da expiação, faz um
trato entre Deus c Cristo, a partir da situação produzida pelo pecado humano.
Descreve a expiação em termos quantitativos de satisfação. Abebrdo, no entanto,
acredita que na cruz de Cristo é o amor de Deus que se torna visível, produzindo,
por sua vez, o nosso amor. Não tem nada a ver com mecanismos objetivos entre
poderes transcendentes para a concessão do perdão divino, como em Anselmo. O
ato subjetivo do amor divino evoca em nós o responso do amor. A salvação é a
178
o MUNDO MEDIEVAL
resposta etlca e pessoal ao perdão procedente do amor divino. Esta é apenas uma
das doutrinas da expiação. Situa-se no centro da pessoa. Não se admite qualquer
tipo de sofrimento substitutivo. A doutrina de Anselmo situa-se no ambiente mi-
tológico em que Deus e Cristo estabelecem acordos; Cristo se sacrifica, mas recebe
certas vantagens de Deus, em troca. Neste sentido, Abelardo é pré-protestante e
pré-autônomo. Trata-se da subjetividade da razão e da personalidade interior. Mui-
tas das idéias de Abelardo foram rejeitadas. Ele viera cedo demais em relação à
situação educacional da igreja. Por exemplo, se dissermos a nossos catecúmenos que
o ato da confissão (isto é, do arrependimento) só é válido se tiver nascido de nosso
amor por Deus, e não por causa do temor, acabamos com os efeitos educativos da
pregação da lei. Abelardo, enquanro teólogo, não pensava sobre o que era bom para
o povo, mas sobre o que era verdadeiro, em última análise, e bom para os autôno-
mos. Embora muitas de suas doutrinas tenham sido rejeitadas, tornou-se um dos
mais influentes pensadores no desenvolvimento do escolasticismo, graças à grande-
za de seu método dialético.
I. Bernardo de Claraval
179
CAPÍTUI.ü III
3. Excessus (sair de si, numa atitude que excede a existência normal, em que o
180
o MUNDO MEDIEVAL
Ao chegarmos ao final desta discussão sobre este período da Idade Média, pre-
cisamos ainda mencionar Hugo de São Vitor, que foi o teólogo mais influente do
século doze. Realizou o pensamento sistemático bem mais que Anselmo, Abelardo
e Bernardo. Em seu livro, Os sacramentos da fé cristã, empregou a palavra "sacramen-
to" em sentido muito amplo. Referia-se a todas as obras de Deus e a todas as coisas
transparentes ao divino. As obras de Deus se dividem em dois grupos: opera
conditionis, obras de condição, e opera reparcztionis, obras de reparação. Essa divisão
nos ajuda a perceber com mais profundidade a vida medieval. Todas as coisas são
formas visíveis de seu fundamento invisível. Não se trata de panteísmo porque não
obstante todas essas obras serem sacramentos, elas se concentram em apenas sete. A
idéia de sacramento torna-se muito dinâmica porque os sacramentos não são apenas
realidades físicas, mas também atos divinos. Temos, assim, uma interpretação do
mundo na forma sacramental dinâmica, ao redor dos sete sacramentos da igreja, da
missa, e da penitência, em particular.
181
CAPÍTULO 1II
J. Joaquim de Fiori
Joaquim renovou a idéia dos mil anos de Cristo ainda no futuro. Falava de três
dispensações, que se desenrolam na história, caracterizadas por figuras históricas. O
primeiro período teria ido de Adão a João Batista, ou a Jesus Cristo; seria a era do
Pai. Mas Cristo a superara. O segundo período teria decorrido do rei Uzias (Is. 6)
até o ano 1260 de nossa era. Segundo as genealogias do Antigo Testamento, esse
período abrangeria quarenta e duas gerações. A terceira dispensação, iria de Benedi-
to (ou Bento) no século VI depois de Cristo, com o surgimento do monasticismo
ocidental, de novo até o ano 1260. Chamava-se era do Espírito e seu cômputo se
baseava na existência de vinte e uma gerações depois de Cristo.
dências entre elas. A segunda coincide com a primeira a partir da época de Uzias até
o nascimento de João Batista ou de Jesus. A segunda coincide com a terceira a partir
de Benedito até o ano 1260. Que querem dizer essas coincidências~ Na verdade,
uma profunda compreensão do desenvolvimento histórico. Os períodos históricos
nunca são perfeitamente delimitados, demonstrando certas coincidências. Não se
pode falar, a rigor, do "fim do período gótico" e do "começo da Renascença", nem
182
o MUNDO MEDIEVAL
183
CAPÍTULO 111
Outra idéia é que a verdade não é absoluta, mas válida na sua época - bonum et
necessarium in suo tempore - boa e necessária no seu tempo. Nesse conceito dinâmi-
co, a verdade se modiflca de acordo com a situação. A igreja primitiva sempre apli-
cava esse princípio ao Antigo Testamento. A verdade do Antigo Testamento diferia
da do Novo embora fosse também a palavra de Deus, divinamente inspirada. Le-
vando esse argumento em consideração, os teólogos falavam de dispensações ou
alianças. Usava-se a idéia de !aúros para a afirmação de que assim como os tempos
eram diferentes também havia diferentes verdades. Essa idéia contrariava o absolu-
tismo da Igreja Católica, identificada com o último período da história, idêntico à
verdade final. Para Joaquim, havia uma verdade superior à da igreja que era a do
Espírito. Por isso a igreja era relativa. Era inter utrumque, entre o período do Pai e do
Espírito. Suas falhas não vêm apenas de deturpações, mas de sua relativa validade.
Nesse esquema, a igreja é relativizada. Somente o terceiro período é absoluto; deixa
de ser autoritário para ser autônomo. Todos os indivíduos têm o Espírito dentro de
si. Assim, o ideal do cristianismo situa-se no futuro e não no passado. Chamava-o
de intelfectus spiritualis e não literaiÍJ, isto é, de intelecto espiritualmente formado e
não dependente de leis literalistas.
184
o MUNDO MEDIEVAL
serão necessários porque todas as coisas se relacionarão diretamente com Deus por
meio do Espírito, sem o apoio de intervenções autoritárias. Joaquim falava de um
papa angélico que seria mais um princípio do que um ser humano. Uma espécie de
papa que representaria a presença do Espírito sem autoridade. A hierarquia se trans-
formará em monasticis1110 bem como o laicam. Quando isso acontecer, estaremos
no terceiro período. E haverá perfeição, contemplação, liberdade e Espírito. Tudo
isso se dará na história. Para Agostinho, o fim será transcendido; nada novo aconte-
cerá na história. Para Joaquim, o novo se dará na história.
185
CAPÍTULO [][
Até onde vai o meu conhecimento, esse pensamento revolucionário não aparece nas
religiões orientais, porque, por definição, não são religiões históricas. Em Joaquim,
surge nova compreensão da dialética da história. Sua influência foi mediada pelos
monges franciscanos radicais.
o
século treze é o mais importante da Idade Média. O destino inteiro do
mundo ocidental foi definitivamente decidido nessa época. Todos os escolásticos
dependeram de Pedro Lombardo, que ainda não estudamos, embora tenha vivido
no século doze. Não se mostrou tão original como os outras, mas representa o tipo
sistemático e didático da Idade Média. Organizou as sentenças dos pais numa obra
denominada, Os quatro livros de sentenças, transformada em livro texto da época, se
é que podemos falar assim. Todos os grandes escolásticos começaram a carreira es-
crevendo comentários sobre as Sentenças de Lombardo.
lR6
o MUNDO MEDIEVAL
Ele cambém ensinava que os leigos devem ser trazidos ao círculo do sagrado. O
clero e os monges eram os vcrdadeiros representantes do sistema sacramental en-
quanto os leigos se mantinham passivos. Para trazer os leigos a esse círculo, fundou
a assim chamada "ordem terceira", os tertiaries. A primeira ordem é masculina, dos
mongcs; a segunda, feminina, das freiras; e a terceira, de leigos que podem se casar
ao mesmo tempo em que aceiram certos princípios. Todas essas coisas foram sub-
metidas por Francisco à auroridadc do Papa. O famoso quadro de Giotto em que
Inocêncio In, o maior dos Papas, e Francisco, o maior dos santos da Igreja Romana,
se encontram, grava um momento clássico da história universal. Contudo, tais ati-
vidades representavam ameaça ao sistema hierárquico. O perigo tornou-se real na
revolução dos franciscanos radicais que procuravam unir Francisco com Joaquim,
protótipos de inümeros outroS movimentos antiec1esiásricos e anti-religiosos. O
princípio leigo era também perigoso para as pretensões absolutistas da autoridade
hierárquica. Além disso, era rambém perigoso o novo relacionamento com a natu-
187
CAPÍTULO lI!
Foi nesse ambiente que se desenrolou o século treze. A teologia da época não
pode ser entendida sem constante referência a esses movimentos. Devemos pensar
em Tomás de Aquino como teólogo da mediação. Entendeu melhor do que nin-
guém a função mediadora da teologia. O termo Vcrmittlungstheologie, da teologia
alemã, foi usado no século dezenove de forma depreciativa. Saí em deFesa desse
termo afirmando que a teologia é sempre mediadora; mediadora da mensagem do
Evangelho com as categorias existcnres da compreensão num dado período históri-
co.
1. A lógica aristotélica sempre fora conhecida, mas era utilizada como lIlstrU-
188
o MUNDO MEDIEVAL
menta, sem exercer qualquer influência direta sobre a teologia. Quando a obra de
Aristóteles foi descoberta, percebeu-se que era um sistema completo voltado para
todos os domínios da vida - natureza, política e ética. Representava uma visão de
mundo independente e secularizada, com seu sistema de valores e significados.
Perguntava-se: de que maneira um mundo, educado na tradição eclesiástica
agostiniana, poderia enfrentar o sistema secularizado de idéias e significados então
vigentd Assemelhava-se à pergunta levantada pela teologia, em séculos recentes: de
que maneira a revolução científica, iniciada no século dezessete, pode ser mediada
pela tradição cristã?
189
CAPÍTULO JJ!
da verdade, do bem e do próprio ser ]a estão presentes sempre que dissermos que
alguma coisa é, ou que emitirmos qualquer juízo lógico. Segundo Boaventura, "a
primeira coisa que aparece no intelecto é o ser", que é, por sua vez, a declaração
básica a respeito de Deus. Qualquer ato cognitivo dependia, então, do poder dessa
luz divina. Os franciscanos diziam que essa luz divina e esses princípios eram inatos
e que, portanto, participávamos neles. De certa forma, estavam dizendo que não
existe conhecimento secularizado. Todo o conhecimento acabava dependendo, de
certa forma, do conhecimento do divino dentro de nós. Há, na alma, um ponto de
identidade que precede qualquer ato especial de conhecimento. Diríamos, em ou-
tras palavras, que qualquer ato de conhecimento -- sobre animais, plantas, corpos,
astronomia e matemática - é sempre religioso. As proposições matemáticas e as
descobertas médicas são implicitamente religiosas, porque são possíveis apenas pelo
poder desses princípios absolutos da luz divina inata na alma humana. Essa é a
famosa doutrina da luz interior que também foi utilizada pelos movimentos sectá-
rios e por todos os místicos medievais e da época da Reforma, e que, em última
análise, está por detrás, até mesmo, do racionalismo do iluminismo. Todos os
racionalistas foram filósofos da luz interior mesmo quando mais tarde essa luz foi
cortada de seu fundamento divino.
Deus podemos che~ar à causa, Em outras palavras, o homem está separado do ser,
da verdade c do bem. Tomás de Aquino, por certo, não negava que esses princípios
fazem parte da estrutura do intelecto humano, mas os considerava luz criada e não
inata. Não representavam a presença divina em nós; são, ao contrário, obra de Deus
190
o MUNDO MEDIEVAL
em nós; são finitos. Assim, no ato do conhecimento, não temos Deus, mas por
meio desses princípios podemos chegar a ele. Não começamos com os princípios
divinos em nós c daí descobrimos o mundo finito, como os franciscanos; começa-
mos com o mundo finito e depois, talvez. chegamos ao conhecimento de Deus em
nossos atos cognltIVos.
Em oposição a essa teoria tomista, os franciscanos diziam que este método que
depende da experiência sensorial - bastante aristotélico - era bom para a scientia
(para a "ciência" em sentido amplo), mas destruía a sapientia, sabedoria. Sapientia
era o conhecimento dos princípios fundamentais, o conhecimento de Deus. Houve
até, entre os seguidores de Boaventura, quem vaticinasse a perda desses princípios
se o método aristotélico-tomista viesse a prevalecer com seu ponto de partida no
mundo exterior. Ganhar-se-ia o mundo exterior - pois se sabia que o conhecimento
externo não vinha de outro modo - mas se perderia a sabedoria capaz de apreender
intuitivamente os princípios fundamentais dentro de cada pessoa. Tomás respondia
que o conhecimento de Deus, como qualquer outro conhecimento, devia igual-
mente começar com a experiência sensorial e chegar a Deus na forma de conclusões
raClOnalS.
191
CAPÍTULO IH
próprio Tomás conseguia perceber suas conseqüências. Somente Duns Escoro con-
seguiu, depois, perceber essa falha.
Duns Escoro não era um mediador, mas um pensador radical. Dividiu o que
parecia unido. Lutou contra as mediações de Tomás de Aquino. Tampouco seguiu
os seus antecessores franciscanos. De certa forma, seguia Tomás ao aceitar o
aristotelismo, muito embora se dando conta das conseqüências que Tomás não con-
seguia perceber. Duns Escoro percebia a enorme distância que existia entre o finito
e o inflnito. Portanro, o flnito não podia alcançar Deus cognitivamente, nem em
termos de imediatez, como queriam os antigos franciscanos, nem em termos de
demonstrações, como queriam Tomás de Aquino e os dominicanos. Os nominalistas
apreciam ainda hoje as críticas que Duns Escoto fazia aos princípios fundamentais,
à transcendenfalia. Ele dizia que o ser em si (esse ipsum) é ap'cnas uma palavra; indica
certa analogia entre o infinito c o finito, e nada mais. A palavra "ser" não se aplica a
Deus e ao mundo, ao mesmo tempo. A distância é tão grande que não pode ser
superada com uma só palavra nem mesmo acrescida de verum, bonum e unum (ver-
dadeiro, bom e uno), em termos do próprio ser. Há, portanto, um só caminho para
se chegar a Deus, que é ° da autoridade, ou seja, o caminho da revelação recebido
pela autoridade da igreja.
, A distância aberta por Duns Escoto veio a alargar-se em um século depois com
Ockham, o verdadeiro pai do nominalismo. Acreditava que Deus não cabia no
conhecimento autônomo; na verdade, estava fora do nosso alcance. Todas as coisas
podiam ser o oposto do que eram. Portanto, Deus só pode ser alcançado sujeitando-
nos às autoridades bíblica e eclesiástica. E isso é possível por meio do hflbitus, do
hábito da graça. Someme pela açáo da graça é que podemos receber a autoridade da
igreja. O conhecimento cultural (ciendfico) é totalmente livre e autônomo; o reli-
gioso, heterônomo. A teonomia original da tradiçao agostiniana-franciscana divi-
diu-se em completa autonomia científica, de um lado, e completa heteronomia
192
o MUNDO MEDIEVAL
A teoria do poder duplo apareceu nessa época. Havia gente que pensava seria-
mente - não apenas para ser diplomático, ou para se ocultar - que, de fato, qualquer
declaração sobre um mesmo assunto poderia, ao mesmo tempo, ser teologicamente
verdadeira e filosoficamente falsa, e vice-versa. Dessa forma, era possível aceitar
inteiramente o sistema heterônomo da igreja, ao mesmo tempo em que continua-
vam a desenvolver o próprio pensamento autônomo. Quando proposições filosófi-
cas conflitavam com a tradição tcológica, refugiava-se nessa teoria da "dupla verda-
de". Para outras pessoas, essc procedimento não passava de fuga. Entretanto, se
acreditava que esses dois domínios eram tão separados que se podia muito bem
afirmar num deles o que se negava no outro.
193
CAPÍTULO III
Essa era a idéia medieval de Deus. Esse Deus não era uma pessoa. A palavra
"pessoa" jamais foi aplicada a Deus na Idade Média. É que os três membros da
trindade eram chamados de personr!e ("faces" ou "semblantcs"): o Pai é persona, o
Filho é persona e o Espírito é persona. Essa palavra, perJOna, queria dizer nesse con-
194
o MUNDO MEDIEVAL
texto certa característica especial do fundamento divino, expressa por meio de uma
hypostasis independente. Podemos, então, dizer que foi o século dezenove que trans-
formou Deus numa pessoa, destruindo com essa linguagem a grandeza da idéia
clássica de Deus. Naturalmente, essa estrutura pessoal que envolve ser, intelecto e
vontade, é análoga à experiência de nosso próprio ser, de tal maneira que se nos
chamamos de "pessoas" podemos igualmente chamar Deus de "pessoa". Mas é bem
diferente de considerá-lo uma pessoa. Em primeiro lugar, ele é o próprio ser, é o
fundamento do ser de todas as coisas. O aspecto pessoal expressa-se por meio do
intelecto e da vontade, e da união desses dois elementos. Para os medievais, seria
heresia dizer que Deus era uma pessoa. Tratar-se-ia da heresia unitária, conflitando
com a declaração de que Deus era três personae, três expressões de seu ser.
195
CAPÍTULO III
Que queria dizer com essa idéia? Queria dizer que temos de aceitar o dado da
realidade, que esse dado não pode ser deduzido e que, portanto, temos de ter hu-
mildade em face do que existe. Não podemos deduzir o mundo nem o processo da
salvação em termos de necessidade. Comparemos essas idéias com a doutrina da
expiação, de Anselmo, em que procurou ded uzir o processo da salvação envolvendo
Deus, Cristo c homem, em tefInOS de necessidade. Duns Escoro diria que não
havia tal necessidade, mas apenas a ordem positiva de Deus. A idéia de poder abso-
luto de Deus [1.vorece o positivismo tanto na ciência como na política, na religião
como na psicologia. Seu Deus é vontade - isto é, determinado pela vontade e não
pelo intelecto - o mundo se torna incalculável. incerto e inseguro. E somos compe-
lidos a nos submeter ao que nos é dado positivamente. Todos os perigos do positivismo
emanam desse conceito de Duns Escoto. É por isso que o considero decisivo na
história do pensamento ocidental.
196
o MUNDO MEDIEVAL
197
CAPÍTULO lI!
Tomás de Aquino entendeu l1ue esse argumento não é válido enquanto prova.
Duns Escoro pensou da mesma maneira. Mas para preencher o espaço vazio criado
pelo fracasso do argumento ontológico e da percepção imediata do divino, no ho-
mem, Tomás precisava encontrar uma outra via que fosse do mundo para Deus. O
mundo, embora não sendo primeiro em si, é primeiro enquanto dado a nós. Os
agostinianos-franciscanos diziam o contrário: o primeiro em nós é o princípio da
verdade e apenas a partir daí é que podemos duvidar. Dessa forma, Tomás precisava
demonstrar outra via que veio a se chamar de argumento cosmológico. Segundo
esse argumento, Deus é conhecido a partir do exterior. Olhamos para o mundo e
descobrimos a necessidade lógica da existência de um ser superior. Tomás elaborou
cinco argumentos nessa linha, que volta e meia aparecem na história da filosofia.
19X
o MUNDO MEDIEVAL
2. Cada efeico tem sempre sua causa, mas cada causa é efeito de llma causa
anterior. Assim, vai-se de causa em causa, mas para evitar a regressão infinita, preci-
samos falar de uma causa primeira. Essa causa não é primeira em sentido temporal,
segundo Tomás, mas em dignidade; é a causa de todas as outras.
199
CAPÍTULO III
Duns Escoro acentuava de tal maneIra a vontade que tanto a vontade humana
como a divina tornavam-se absolutas, ontologicamente absolutas, não determina-
das por nenhum outro elemento a não ser por si mesmas. Duns Escoro e os
franciscanos deram-se conta da importância da liberdade (elemento pclagiano) e
introduziram na teologia medieval certo cripto-pelagianismo, enquanto Tomás de
Aquino, b~~<!-_~tq__nq_ inelectualismo pensava em termos deterministas. Tomás se
j
4,~ mostrava, pois, religiosamente muito mais forte do que a crítica protestante da
teologia escolástica, em geral, admice. Parece que Lutero não conhecia Tomás de
ACJuino. Conhecia bem os teólogos nominalistas que vieram depois, dos quais se
pode corrcml11ente dizer que deformaram o escolasticismo. Lutero atacava-os. Mas
poderia muito bem ter encontrado o seu pensamento e o de Calvino, sobre a
predestinação, nos escritos de 'Jomás de Aquino.
o
ensino ético de Tomás de Aquino corresponde a seu sistema de graus, como,
aliás, todas as áreas de seu pensamento. Sua ética apoia-se numa infra-estrutura
racional iluminada pela superestrutura teológica, Relacionam-se entre si da mesma
maneira como a graça e a natureza. A inFra-estrutura contém as quatro principais
virtudes pagãs, tomadas de Platáo: coragem, temperança, sabedoria e a justiça toda
abrangedora. Essas virtudes nos trazem felicidade natural. Pelicidade não quer di-
zer divertir-se, mas a realizaçáo da natureza essencial de cada um. A palavra grega
para felicidade é eudaimonia, e há uma escola filosófica chamada eudaimonismo. O
cristianismo tem muitas vezes aucado essa tendência, porque o propósito da exis-
tência humana seria a glória de Deus e não a felicidade humana. Eu acho que se
trata de uma interprcraçáo completamente errada de eurlahnonia. Essa palavra quer
dizer exatamente o que a teologia cristã chama de bem-aventurança, baseada nas
virtudes naturais; Tomás sabia-o muito bem. Portanto, ele não combateu essa esco-
la. EudtÚmonia vem de duas palavras gregas, eu e daimon significando "bem" e "de-
mônio" - em outras palavras, poder divino que nos conduz bem (Cf. o daimon de
Sócrates). O resultado dessa orientação é eudaimonia, ser conduzido pelo caminho
certo para a auro-realização.
21111
o MUNDO MEDIEVAL
Tomás de Aquino combinava ética com estética. Foi o primeiro pensador medi-
eval a criar uma teologia estética. ''A beleza é a espécie de bem onde a alma repousa
sem posse". Podemos fruir a beleza de um quadro sem possui-lo. Podemos nos
satisfazer na beleza dos bosques, dos oceanos, das casas ou dos seres humanos, apre-
ciando suas formas, sem precisar possui-los. Nas artes plásticas e na música, a fruição
é desinteressada. A beleza ,D9§__eJ.ª-J?Iª"ZÇ,r em si. Essa maneira de ver a beleza desen-
volveu-se na direção do humanismo, mas de um humanismo que não era autôno-
mo, posro que voltado para cerra realidade capaz de transcender todas as possibili-
dades humanas.
201
CAPÍTULO II[
202
o MUNDO MEDIEVAL
Ora, se apenas as coisas individuais existem, que são os universais para Ockham?
Identificam-se com o ato de conhecer. Surgem na mente, e devemos usá-los para
poder falar. São naturais. Chamava-os de universafia natura/ia. Além deles situam-
se as palavras simbolizando-os. São universais convencionais. As palavras podem
mudar; existem mediante convenções. As palavras são universais porque podem ser
ditas a respeito de coisas diferentes. Os que pensavam assim foram também chama-
dos de "rerministas", porque diziam que os universais não passavam de meros "ter-
mos". Também eram chamados de "conceirualisrJs" porque os universais eram sim-
ples "conceitos", sem qualquer poder de ser. O conceito universal apenas indica
semelhança entre coisas diferentcs, e nada mais. No final, acaba-se dizendo que
apenas as coisas individuais são reais. Não o homem enquanto homem, mas Paulo e
Pedro e João é que são realmente indivíduos. Não a "arvoridade", mas esta árvore
particular ali na esquina é que é real, como todas as demais árvores particulares.
Nós as chamamos de árvorcs porque descobrimos certa semelhança entre elas.
203
CAPÍTULO III
Só conhecemos as outras pessoas por meio de sinais e palavras que nos capaci-
tam a nos comunicar e a ter atividades comuns. Antecipava-se a vida, na sociedade
tecnológica primeiramente desenvolvida nos países dominados pelo nominalismo,
como Inglaterra e Estados Unidos. Nos Estados Unidos e em países sob a influência
de sua filosofia, como, por exemplo, na Inglaterra e em alguns outros países do
ocidente europeu, o nominalismo determinou atitudes sobre o relacionamento en-
tre as pessoas e entre estas c as coisas. Desaparece aí a antiga unidade substancial
preservada até então pelo pensamento realista. Nosso conhecimento dos Outros não
se dá mais por participação, mas por meio de experiências sensoriais - Ver, ouvir,
tocar. Estão agora cm jogo nossas cxperiências sensoriais e os seus reflexos na mente.
Vem daí, naturalmente, o positivismo; precisamos prestar atenção ao que nos é
dado positivamente.
Mas nesse caso é fácil compreender porque a autoridade acaba se tornando tão
importante. Fé é submissão à autoridade. Ockham achava que a autoridade era
mais a da Bíblia do que a da igreja. Elc havia dissolvido a unidade realista não
apenas no pensamento, mas também na prática. E ficou ao lado do rei germânico
contra o Papa. Fez surgir tanto a economia autônoma como a política nacional
autônoma. Optava pelo estabelecimento de esferas independentes em todos os do-
mínios da vida. Assim, contribuiu radicalmente para a decadência da Idade Média.
204
o MUNDO MEDIEVAL
N. Misticismo germânico
205
CAPÍTULO III
A igreja, por muito tempo, influenciada por esse misticismo e, até hoje, muita
gente ainda o experimenta. O misticismo dominicano contrabalança o isolamento
nominalista entre os indivíduos. Pode-se dizer que no terreno religioso prevalece-
ram os impulsos do misticismo germânico, mas no terreno secular foi a atitude
nominalista que persistiu. Tanto o nominalismo como o misticismo germânico pre-
param, até certo ponto, o caminho para o advento da Reforma.
::'- O. Os pré-reformadores
o período anrerior à Reforma foi bem diferente da alra Idade Média. Nessa
época, os princípios leigos começaram a adquirir importância e o biblicismo a pre-
valecer em face da tradição da igreja. O inglês João Wyclif foi, talvez, a mais impor-
tante expressão dessa situação. Foi ele quem, certamente, preparou o caminho para
a reforma inglesa, e suas idéias foram amplamente usadas pelos reformadores. O
206
o MUNDO MEDIEVAL
207
CAi'fTULü III
208
o MUNDO MEDIEVAL
Se, afinai, precisarmos de um papa, ele deverá ser o líder espiritual da igreja
verdadeira dos predestinados. Se não for assim, ele não poderá ser o vigário de
Cristo, o poder espiritual do qual se derivam todos os outros poderes espirituais.
Mas o papa é um homem que erra. Não pode conceder indulgências; só Deus pode
concedê-las. Pela primeira vez, antes das Noventa e Cinco Teses de Lutero, critica-
se o sistema de indulgências. Se o papa não vier humildemente, em caridade e
pobreza, não será o papa verdadeiro. Quando o papa aceita o domínio do mundo,
como o faz, passa a ser um herege permanente. O papa passou a proceder assim
baseado no documento "Dádiva de Constantino", que lhe serviu corno fonte de
podet, fazendo-se príncipe de Roma e sobetano da metade do impétio ocidental,
apesar desse documento não passar de falsiflcação histórica. É heresia o papa tor-
209
CAPÍTULO III
nar-se príncipe quando o seu poder é apenas espiritual. É assim que cle se transfor-
llJ:1 no Anticrisro. Esse termo vel~~-~G." Bíblia c foi ucilizado na iZ~f~~·~;~a. Tem" s~do
empregado na história da igrej~l, especialmente pelos sectários, em suas críticas à
igreja. Quando o papa se f:lz representante de Cristo c, ao mesmo tempo, governa
este mundo que se opõe a Crisro, rransforma-sc no Amicristo.
Certa vez conversei com Visscr'r Hoofr, secretário geral do Conselho Mundial
de Igrejas, sobre o período de Hitler, na Holanda. Ele disse: Nós, holandeses c
I11uiws outros cristãos pensávamos no começo que Hitler talvez pudesse ser o
Allticristo, por causa das coisas Jlltidivillas que fez. Mas logo vimos que ele não era
suficientemente bom para ser o Amicrisro. O Amicrisro deve manter, pelo menos,
algo da glória religiosa do verdadeiro Cristo, para que possa ser confundido com ele
e adorado. Mas Hitler não tinha nada disso. E assim sabemos, dizia ele, que o fim
dos tempos ainda n5.o chegou e que Hitler n5.o fora o AntÍcrisro.
210
o MUNDO MEDIEVAL
A Igreja Romana não podia ser reformada por um mero movimento sectáno,
embora radical, como o de Wyclif. Somente um novo princípio, ao lado de uma
nova relação com Deus, teria suficiente poder. Foi o que aconteceu com a Reforma
do século dezesseis.
(t) N. dtl "I' N:l vcnbtk,:l lIadiç:lo litúr gica.\ nglic:lna r cc(lnhecc, em gcml, ~ctc ~acramenrn~,cml10ra faça
di"titl<,~;"j( I l:ll t re ()~ doi~ '\1<) L'vallgdho" 0xlti"lllo l: l.:\lclristia) c dcnomine os outros CillCO de "ritos
~;JCl-:lllll"Tlt:l i,," (con fi rllla~<io, tlrdclll. m :ltlim t)ll i t I, pCll i1tnci:l c \111 ~~il( I dos cll termos),
211
CAPÍTULO IV
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE
A Contra-Reforma não foi apenas uma rcação, mas verdadeira reforma. A Igreja
Romana, depois dela, já não era a mesma. Estava determinada a se afirmar corHra o
grande ataque da Reforma. Quando alguma coisa é atacada e se defende, iá não é
mais a mesma coisa. Um dos resultados característicos desse fato foi o esrrcitamento
da igreja. A igreja medieval não deve ser vista à luz desse catolicismo pós-tridentino.
A igreja medieval sempre csteve ~lbena a todas as influências, assimilando tremen-
dos contrastes, como por exemplo, franciscanos e dominicanos (agostinistas e
aristotélicos), realistas e nominalistas, e biblistJS e místicos. Esse espírito desapare-
ceu na Contra-Reforma. A Igreja Romana tendeu a se tornar "contra" - o "contrário"
da Reforma - assim como a igreja protestante, com o seu princípio profético, tor-
nou-se o princípio do protesto contra Roma.
212
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉ,CULO VINTE
tal e observem como as liberdades pelas quais os Estados Unidos se mantêm fe-
cham-se tremendamente em nome dessas mesmas liberdades. A Reforma, em si, foi
muito aberta, mas quando começou a sofrer todos os tipos de ataques, fechou-se
nllma estreitíssima ortodoxia protestante - chamada neste país de "fundamentalismo"
- que representa o fechamento da Reforma para resistir aos ataques sofridos.
213
CAl'ÍTU LO IV
C. Doutrina do pecado
214
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE
Igreja Romana pode admitir muito mais liberdade na vida diária, mais alegria, e
maior nt'Imcro de expressões das forças vi tais humanas, do que o protestantismo.
D. Doutrina da justificação
215
CAPITULO IV
ará a ser dada à medida que ele coopere com Deus. Quanto maior for a cooperação
humana com Deus, nessa graça preveniente, maior será a graça da justificação.
E. Sacramentos
216
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE
Não se disse muita coisa sobre o modo da eficácia dos sacramentos nem sobre
o lado pessoal da recepção dos sacramentos. Ficou decidido que os sacramentos são
eficazes ex opere 0perato non ponentibus obicem, isto é, por sua própria operação
naqueles que não opõem resistência à sua eficácia. Se vocês não levantarem nenhum
impedimento Cobicem) dentro de vocês para a sua eficácia, não importará o estado
subjetivo de vocês. Os sacramentos são eficazes ao se realizarem (ex opere operato).
Com respeito ao número dos sacramentos, reduzidos a dois por Lutero e Calvino,
os católicos declararam a existência de sete, todos instituídos por Cristo. Essa ques-
tão é de lide, isto é, aceita pela fé pelos católicos. Não se permite nenhuma dúvida
histórica se foram ou não realmente instituídos por Cristo. Sempre que vocês en-
contrarem esta expressão de fide relacionada com formulações dogmáticas, em al-
gum livro católico, significa que é um dogma da Igreja Romana que não pode ser
negado e do qual não se pode duvidar, a não ser correndo o risco de ser expelido
dessa igreja.
217
CAPÍTULO IV
lica, nem todos os cristãos recebiam poder para pregar e administrar os sacramen-
tos; essas funções eram privilégio dos ordenados. Ser ordenado queria dizer ter
recebido poder sacramental. O poder sacramental materializa-se até mesmo na for-
ma ritual dos sacramentos. A forma ritual não pode ser mudada nem alterada por
sacerdotes ou bispos sem incorrerem em pecado. O poder sacramental procede de
sua origem e se realiza na igreja por meio de formas autorizadas; nenhuma arbitra-
riedade é possível.
Nessa base, a Igreja Romana também preservou a missa contra a crítica dos
reformadores. Não apenas a missa pelos vivos, mas também a missa - sacrifício do
corpo de Cristo - pelos mortos no purgatório. O Concílio de Trenro não fez nenhu-
ma reforma nessa prática nem elaborou fundamentação tcológica convincente. Apenas
confirmou e consagrou a tradição.
218 1,
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE
Y
,
F. Infalibilidade papal
219
CAPÍTULO IV
220
CAfOUCISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE
A constituição de 1870, Pastor AeternU5, declarou que o papa tinha poder uni-
versal de jurisdição sobre qualquer outro poder na igreja. Não há nenhum corpo
legal que se submeta ao papa. Em segundo Jugar, ele passou a ser o bispo universal.
Com isso o papa, por meio do bispo local, podia interferir na vida de qualquer
católico, e se não conseguisse o apoio do bispo podia levar o povo a se revoltar
contra ele. Em terceiro lugar, o papa é infalível quando faz pronunciamentos ex
cathedra. Essa foi a mais desconcertante decisão do Concílio Vaticano I que ocasio-
nou a separação de um grupo de católicos conhecidos como "velho-católico". Esse
grupo não conseguiu influenciar a Igreja Romana e permanece até hoje, principal-
mente na Alemanha Ocidental.
A primeira decisão ex cathedrtl, desde 1870, foi feita em nossa época, em 1950,
sobre a assunção corporal da Virgem Maria. A decisão só foi tomada depois de
ampla consulta aos bispos. A maioria manifestou-se favorável contra reduzida opo-
sição. Na verdade, a tradição a esse respeito é bem antiga, remontando a mais de
mil anos. São inúmeras as pinturas e desenhos, em diferentes períodos da história
da igreja, que representam Maria elevada aos céus e coroada por Cristo, ou recebida
por Deus. Tratava-se de mera opinião piedosa a ser tolerada pela igreja, ou era
matéria de iir/e? À medida que não passasse de mera opinião piedosa, qualquer cató-
lico poderia discordar dela sem perder a salvação da alma. No momento em que o
221
CAPÍTULO IV
A infalibilidade do papa não significa que todas as suas palavras sejam infalí-
veis. Num período de oitenta anos, de 1870 a 1950, nenhum papa pronunciou
qualquer sentença infalível, nesse sentido. Mas, em 1950, a infalibilidade foi apli-
cada. E assim ficamos sabendo que o dogma da infalibilidade do papa é levado a
sério e sem restrições. Os protestantes e os humanistas não podem, de maneira
alguma, aceitar essa doutrina nem suas conseqüências.
G. Jansenismo
Surgiu na Igreja Rom_~n....~:E5:~movirnento de retorno ao agostllllamsmo ~~!5.i-
~!BL1:~l~_I!10vimentos~s:b!~~J.~.~~s.~rÜsmo, por causa de CorD~li.t;;I.úª.!li.~D-=..O jesu-
íta Molina escrevera contra os dominicanos tomistas a respeito da doutrina da
predestinação. Os jesuítas se opunham a essa doutrina e lutaram em favor da liber-
dade humana. Os jansenistas, começando pelo próprio Jansen e envolvendo gente
como Blaisc Pascal, atacaram os jesuítas. Os jesuítas venceram a disputa e os papas
ficaram de seu lado. Representavam a modernidade da Igreja Romana. Eram disci-
plinados, levando um estilo de vida semelhante às modernas formas totalitárias de
222
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SF,CULO VINTE
223
CAPÍTULO IV
teológicas com inúmeros grupos católicos e fiquei surpreso ao constatar como estamos
próximos uns dos outros. Mas percebi também que eles sabem que correm perigo!
E quanto! Tudo isso indica que a condenação do agosrinianismo, na controvérsia
jansemsta, oscila como uma espada sobre todas as formas espiritualizadas do cato-
licismo.
H. Probabilismo
Afonso Maria de Liguori tentou modificar a situação, sem êxito, pois também
acreditava que, em última análise, é o confessor que decide. De que maneira decide
o confessor? Por meio do princípio do provável. Além disso, todos os pecados torna-
vam-se veniais. O jesuitismo e a burguesia - os maiores inimigos - aliavam-se para
acabar com a seriedade do pecado mantida pelos jansenistas c pelos primeiros pro-
testantes.
224
CAroUCISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE
I. Catolicismo atual
Muito mais se pode dizer sobre o catolicismo atual. Mencionei algumas deci-
sões mais recentes do papa. Há uma decisão, no entanto, não tão conhecida corno o
dogma da assunção da Santa Virgem. Encontra-se na encíclica papal Hurrulnigelleris.
Nela o papa faz afirmações que vao além do que foi dito no Vaticanum sobre a
infalibilidade do papa. No Vaticanum, a infalibilidade se referia apenas às declara-
ções ex ctlthedra, quando o papa se pronuncia oficialmente sobre questões de dogma
ou ética. Mas na Humani generis, de 1950, ele tratou de filosofias e dirigiu COI1WIl-
dente ataque contra o existencialismo. Com isso, nenhum católico fiel pode traba-
lhar na linha do existencialismo. Trata-se de uma declaração jamais pronunciada
por nenhum papa antes deste. )?~!!§s de Aguino l?~ssa ~2"~r..E_on~iderado o filó~<2.f2...
..9.l.!glif..Q-':MAlguns dos existencialistas franceses - como Lubac e outros - tiveram que
deixar de ensinar porque eram existencialistas, filosoficamente, muito embora res-
pondessem às q uestóes existencialistas em termos religiosos.
225
CAPiTULO IV
melhanres tem sido muito fraca. Não consegue mais ferir a Igreja Romana. Por
outro lado, a oposição humanista é quase inexistente porque se acha em processo de
auro-desintegração. A grandeza dos existencialistas está em descrever essa desinte-
gração, muito embora estejam no meio dela.
Não vamos nos demorar muito no eS[lldo da Reforma, pois de acordo com o
professor Handy, vocês precisam mais tempo para o estudo da igreja antiga e medi-
eval, uma ve?, que procedem de tradições protestantes e já conhecem as idéias pro-
testantes. Mas não estou muito convencido disso! O tipo de protestantismo desen-
volvido na América não expressa tanto a Reforma, mas os assim chamados evangéli-
cos radicais. Há grupos luteranos e calvinistas bastante forres, mas se adaptaram,
surpreendentemente, ao clima do protestantismo americano. Esse clima não foi
estabelecido por eles, mas pelos movimentos sectários. Quando cheguei nos Esta-
dos Unidos, há vinte anos, a teologia da Reforma era quase desconhecida no Semi-
nário Teológico Unido de New York, por causa das diferentes tradições e da redução
da tradição protestante à tradições já basrante distanciadas da Refotma.
226
CAPÍTULOV
>-/. ATEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
A. Maninho Lutero
1. A ruptura
227
CAPÍTULO V
Pode-se fazer acordos a respeito de doutrinas; mas diferentes religiões não entram
em acordo! Ou adotamos a relação protestante para com Deus ou a católica. Não se
pode ter as duas. Não se pode entrar em acordos a esse respeito.
Sob tais condições jamais alguém poderia saber se seria salvo, pois jamais se
pode fazer o suficiente; ninguém podia receber doses suficientes do tipo mágico da
graça, nem realizar número suficiente de méritos e de obras de acese. Como resul-
tado desse estado de coisas havia muita ansiedade no final da Idade Média. Em
meu livro, A Coragem de Ser, descrevo a ansiedade da culpa como um dos três
grandes tipos de ansiedade, e relaciono essa ansiedade provocada pela culpa com o
fim da Idade Média, tanto histórica como socialmente. É claro que essa ansiedade
sempre está presente, mas tornou-se avassaladora e foi quase como uma doença
contagiosa. As pessoas não conseguiam encontrar a misericórdia de Deus e se livrar
da má consciência. A arte do período expressa intensamente essa ansiedade. Mas
também é vista nas eXigênCIaS de peregrinações cada vez mais freqüentes, no
228
A TEOLOGIA DOS RHORMADORES PROTESTANTES
'* Que tinha Lutero a dizer contra o ponto de vista quantitativo, objetivo e rela-
tivo de Roma? Dizia que a relação do homem para com Deus era pessoai. Era uma
relação de tipo Eu-Tu, sem qualquer mediação de pessoas ou coisas, estabelecida
pela aceitação da mensagem da aceitação, que era o conteúdo da Bíblia.J'.J:ªQ_,_~
_~~~1~age determinado estado o~)je~iv~ noqt~_~l se está;, trata-se,de 1!I'"0,~!.~laçã~~~~?--=
.~9~e L~~~ro chamava de "fé", não fé sujeita à crença em,..alg~ma coisa ou doutrina,
~a.s aceitação do fato de sermos aceitos. Qualitativa, não quantitativa. Ou a pessoa
se separa de Deus ou não. Não há graus quantitativos de separação ou de não-
separação. No relacionamento entre pessoas pode-se dizer que há conflitos e ten-
sões, mas à medida que a relação é de conflança e amor, é qualitativa. Não é quan-
titativa. Da mesma forma, é incondicionada e não condicionada, como no sistema
romano. Não s~~~_<:,~.~~i.~_perto de Deus trabalhaI:do-se mais p~,l_~_.!!?{ej~, ou
mortifica~:.do-se o próprio corpo, mas apenas e unicamente_ ao sel:l''l,iT,S9!!!._~k.. E se
alguém não se une a Deus permanece separado dele. Um dos casos é incondicional-
mente positivo; o outro, incondicionalmente negativo. A Reforma redescobriu as
categorias incondicionais da Bíblia.
229
CAPÍTULO V
230
A TEOLOc;IA DOS RFFOIUvlADORES PROTES1ANTES
2ji
CAPÍTULO V
relação não se expressava num comércIO entre Deus c homem, mas era pessoal c
penitente, em primeiro lugar. E, em seguida, relação de fé.
É provável que sua expressão mai.~ notável c paradoxal tenha sido dada por
Lutero nas seguintes palavras: "A penitência oscila entre a justiça c a injustiça.
Portanto, arrependemo-nos porque somos pecadores, mas por essa mesma razão
somos igualmente justos, e no processo da justificação, é assim que somos, parcial-
mente pecadores e parcialmente jusws - na verdade, o que importa é o arrependi-
mento". O arrependimento está sempre ~se!!~_~~_t:!!.51~laIguer~l<:l:ç.ioCl0-n.1~}1toh u-
mano com Deus. Lutero não atacav.~,_!~~~sião,~-ª-~ne'!toda penitência em si.
Até mesmo acreditava que as illdulgê!1Ci~J~?-deri~~_~·."E?!~~adas. Mas não se~~.~l
formava com o centro de onde ~01ham to~?~_.~~:_~,~.~?~~-.-:.~~~aera ~_quest~~ fund!-
mental da Reforma.
2.J2
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
~~~.. ~_~_~_~~~_cad~"2or Lutero por não acei~~_~gs reparos que fa:?:~a ao sacra-
mento da---l2.f!litência. O critério fundamental para a compreensão do cristianismo
era a mensagem do Evangelho. Por essa razão não era possível a aceitaçao da infali-
bilidade do papa. O papa podetia errar e até mesmo os grandes concílios da igreja.
Não se podia aceitar nem a teoria curialista, na qual o papa é monarca absoluto,
nem a conciliarista que transferia a infalibilidade para os grandes concílios da igre-
ja. Tanto o papa como os concílios são humanos e podem errar. O papa poderia ser
tolerado como chefe e administrador da igreja, baseado na lei humana, a lei da
conveniência. No entanto, o papa reivindica um governo de direito divino e faz de
si mesmo um personagem absoluto na igreja. Lutero não podia tolerar essa doutri-
na porque nenhum ser humano poderia se arvorar em vigário do poder divino. O
diteito divino do papa é teivindicação demônica, na vetdade, procedente do
Anticrisro. Quando afirmou essas coisas, a ruptura com Roma se tornava clara. Só
havia uma cabeça da igreja, o próprio Cristo, e o papa, como era então, fora criado
pela ira divina para punir o cristianismo por causa de seus pecados. Lutero não
queria apenas ofender o papa: falava teologicamente, Falava com seriedade teológica
ao acusar o papa de Anricristo. Não se rebelava contra uma pessoa particular por
233
CAPÍTULO V
causa de suas falhas. Havia muita gente que fazia isso, que critICava o comporta-
mento do papa na época. Lutero criticava a posição do papa e sua reivindicação de
ser o representJpte de Crist~9L~~~eito divino. Nesse sen!}d~"~-R.a~_~~~~i~_a.:.
almas. Q~eha~.!:1.I1].,P_~~~! .. ~~ J~.::~·~~!1E~apen'lL~J2~l!~
Lutero, enquanto monge, experimentaria a importância do monasticismo para
a Igreja Romana. Dessa atitude monástica surgiu o padtão duplo de moralidade: os
conselhos, para os que viviam mais perto de Deus, e as regras, para os outros. Os
conselhos superiores para os monges, como o jejum, a disciplina, a humildade, o
celibato etc., tornavam-nos ontologicamente superiores aos mortais comuns. Esse
duplo padrão surgiu da situação histórica em que a igreja cresceu depressa demais.
Pensava-se que as massas não poderiam assumir, como se dizia, o jugo de Cristo,
demasiadamente pesado para elas. Então, um grupo especial tomou sobre si esses
conselhos voltados para formas superiores de moral e piedade. Eram os religiosi, os
que faziam da religião a vocação.
Lutero fazia, dessa maneira, uma reviravolta na religião e na ética. Não se cum-
pte a vontade de Deus longe de Deus. Precisamos do petdão dos pecados. Até
mesmo as melhores pessoas sentem desespero, agressividade, indiferença e
autocontradição. O jugo de Cristo só pode ser imposto às pessoas por meio do
perdão divino. Trata-se de interpretação completamente diferente do moralismo. A
ação moral é conseqüência - que pode ou não acontecer, embora se espera que
234
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES
Que tinha Lutero a dizer sobre o elemento sacramental na Igreja Romana, que
tanto poder lhe dera~ A Igreja Romana é essencialmente uma igreja sacramental.
Nessa estrutura, essencialmente, Deus se pl'esentifica sempre. Não se coloca à dis-
tância nem apenas faz exigências. A visão sacramental do mundo percebe o divino
presente nas coisas, nos atos, visíveis e reais. Portanto, qualquer igreja sacramental
será sempre uma igreja que experimenta a presença de Deus. Por outro lado, a
hierarquia, e apenas ela, administrava os sacramentos na Igreja Romana de modo
mágico. de tal maneira que 05 não participantes se perdiam e os participantes,
mesmo indignos, sempre os recebiam. Lutero respondia dizendo que nenhum sa-
cramento é eficaz por si mesmo sem a plena participação de quem o recebe, isto é,
sem ouvir a Palavra relacionada com o sacramento e sem a fé que o aceita. Os sacra-
mentos enquanto tal nada valem. E assim Lutero destrói o lado mágico do pensa-
mento sacramental.
235
CAPÍTULO V
236
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
237
CAPÍTULO V
238
A TEOLOGlA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
239
CApITULO V
240
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES
poder.
Lutero afirmava que a Bíblia era a palavra de Deus - mas sabia muito bem o
que dizia. Mas quando queria realmente expressar o que pensava, dizia que na
Bíblia se encontrava a palavra de Deus, a mensagem de Cristo, a expiação, o perdão
dos pecados e a dádiva da salvação. Deixava bem claro que a Bíblia continha a
palavra de Deus no sentido em que transmitia a mensagem do Evangelho. Mas
entendia que essa mensagem existia antes da Bíblia, na pregação dos apóstolos.
Como Calvino diria mais tarde, Lutero entendia que os livros da Bíblia eram uma
situação de emergência, posto que necessários. Por isso, o que importava era o con-
teúdo religioso; a mensagem era objeto de experiência. "Se eu sei o que creio, co-
241
CAPÍTULO V
nheço o conteúdo das Escrituras, pois elas não contêm outra COIsa a não ser o
Cristo", As Escrituras são o critério da verdade apostólica; e sabemos se são verda-
deiras se tratam de Cristo e sua obra - ob sie Christum treiben, se tratam de Cristo, se
nele se concentram e se nos levam a de. Somente os livros da Bíblia que tratam de
Cristo e sua obra contêm poderosa e espiritualmente a palavra de Deus.
A partir dessa idéia, Lutero fazia distinções entre os livros da Bíblia. Os livros
que tratavam de Cristo mais diretamente eram o quarto Evangelho, as epístolas de
Paulo e I Pedro. E fazia afirmações ousadas. Dizia, por exemplo, que se Judas e
Pilaras tivessem transmitido a mensagem de Cristo, teriam sido apostólicos, e Pau-
lo e João, se não tivessem proclamado essa mensagem, não poderiam ser considera-
dos apostólicos. Afirmava até que q~laL9!!5:.~_~ss~~"~<::"~ojeem dia tivesse o ESpf!~~~
tão poderosamente como os profetas e os apóstolos, poderia criar decálogos e outros
testamentos. Bebemos na fonte das Escrituras só porque não temos a plenitude do
Espírito. Tal ensino é profundamente contrário ao nominalismo c ao humanismo.
Salienta °
caráter espiritual da Bíblia. Ela é a criação do Espírito divino que a
escreveu, embora não tenha sido um ditado. A partir dessa base, Lutero fazia uma
crítica metade religiosa e metade histórica dos livros da Bíblia. Não lhe importava
se Moisés escreveu ou não os cinco livros de Moisés. P~rcebia a grande des_ordem
=-- )
em que se encontravam os textos dos profetas. E até mesmo sabia gue aS_.p'~<?fec:i~~
concretas dos profetas mostravam-se muitas vezes erradas. O livro ~~ J;,3~~E.~"_~
Apocalipse de João, de f~~9.:....não p~_:_t,~~.:i:!22.....~__~~_~ituras .._Qmq~~~rtO Evang_~lh? __
excedia em valor e poder ,,~2.~L~~ó.~~:_?~s:_ .e_~__ ~yíst<:?!::_.~~ _!j.~12.() não tinha caráter evan-
. , .. !2élico.
242
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
b. Pecado efé
Vamos examinar as doutrinas de Lutero sobre o pecado e a fé porque são bas-
tante superiores ~~~q~~~.~!~~.?Sh?j_~_~o c_~i~~L~I:i~:!.:~.~P5~P~J~~:..Para Lutero,
pecado é falta de fé. "Falta de fé é o verdadeiro pecado". "Nada justifica a não ser a
fé; nada é pecaminoso a não ser a falta de fé". "A falta de fé é todo o pecado". "A
principal justiça é a fé; o mal principal é a falta de fé". "Portanto, a palavra pecado
inclui tudo o que fazemos se vivemos fora dessa fé". Essas declarações pressupõem
um conceito de fé que nada tem a ver com a aceitação de doutrinas. A respeito do
conceito de pecado, significam que diferenças de quantidade (pecados leves e gra-
ves) e de relativídade (pecados possíveis de perdão desta ou daquela maneira) não
têm a menor importância. Tudo o que nos separa de Deus tem o mesmo peso; não
há "mais" nem "menos".
243
CApITULO V
ouvimos. Não significa que não haja nada bom no ser humano; nenhum reformador
nem neo-reformaclor jamais fez essa afirmação. Quer dizer, isso sim, que não há
pane alguma do ser humano isenta dessa deFormação existencial. Esse conceiro,
traduzido em termos de psicologia moderna, significa que o homem "depravado"
está em conflito consigo mesmo bem no centro de sua vida pessoal. Tudo se inclui
nessa deformação, e era essa a idéia de Lutero. Se a "depravação total" fosse entendi-
da de modo absoluto, seria então impossível a sua afirmação. O ser humano total-
mente depravado seria incapaz de dizer que era totalmente depravado. Mesmo a
afirmação de que somos pecadores pressupõe em nós algo além do pecado. O que
podemos dizer é que não há no ser humano o que não seja tocado por autocontradição,
tanto o intelecto como tudo mais. O mal é mal porque não cumpre ° mandamento
de amar a Deus. A base do pecado é essa falta de amor a Deus. Poderíamos dizer,
em outras palavras, que é a falta de fé. Lutero afirmava as duas coisas.
Só que a fé sempre precede o amor porque é nela que recebemos Deus, e o amor
é o ato no qual nos unimos a Deus. Todas as pessoas se encontram nesta situação de
pecado, e ninguém conhecia melhor do que Lutero o poder estrutural do mal nos
indivíduos e nos grupos. Não o chamava de compulsão, como se diz hoje em dia na
psicologia. Mas ele sabia que o pecado era isso, que era um poder demônico de
Satã, acima das decisões individuais. Essas estruturas demônicas eram reais; Lutero
sabia que o pecado não podia ser entendido apenas em termos de atos particulares
de liberdade. O pecado tinha que ser entendido em termos de estrutura demônica,
com seu poder compulsório sobre as pessoas, capaz de ser vencido apenas pela
estrutura da graça. Estamos todos envolvidos no conflito entre essas duas estrutu-
ras. Algumas vezes somos tomados, como dizia Lutero, pela compulsão divina, e
outras vezes pela demônica. Entretanto, a estrutura divina da graça não é posse
nem compulsão, porque é libertadora; ela nos deixa ser o que somos em essência.
244
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES mOTES'IANTES
~, para L.litera, era receber Deus quando Deus se dá a nós. Distinguia este
tipo de fé de fé histórica (jides historica), que reconhece os fatos históricos. Fé é a
aceitação do dom de Deus, da presença da graça de Deus que nos envolve. A ênfase
recai no caráter receptivo da fé - nihif ficere sed tantum recipere, nada fazer a não ser
receber. Todas essas idéias se concentram na aceitação de ser aceito, no perdão dos
pecados, que aquieta a consciência e desenvolve vigorosamente a espiritualidade. "A
fé é viva e ativa. Não é jamais preguiçosa". Na fé, o conhecimento é elemento exis-
tencial, do qual tudo decorre. "A fé produz a pessoa; a pessoa produz as obras e não
as obras a pessoa". A psicologia profunda contemporânea confirma tudo isso. O que
faz a pessoa é o sentido último da vida. As boas obras podem ser feitas por pessoas
divididas. Há muita gente devotada a boas obras que não percebe esse sentido
supremo em sua vida. É isso que Lutero chama de fé. E é o que faz a pessoa ser
humana. Não se trata da aceitação de doutrinas, nem mesmo de doutrinas cristãs,
mas da aceitação do poder do qual procedemos e para o qual vamos, não importan-
do as doutrinas por meio das quais o aceitamos. Em meu livro, A Coragem de Ser,
chamei-a de "fé absoluta": essa fé pode perder o conteúdo concreto e ainda existir
enquanto afirmação absoluta da vida como vida e do ser como ser. Assim, a única
coisa negativa é o que Lutero chama de "falta-de-fé", consubstanciada no estado de
não se unir ao poder do próprio ser, à realidade divina em oposição às forças da
separação e da compulsão.
c. Idéia de Deus
A idéia de Deus nos escritos de Lutero é uma das mais importantes na história
do pensamento humano e cristão. Não se trata de um Deus ao lado de outros; só o
encontramos por meio de contrastes. O que se oculta de Deus se vê no mundo, e o
que se oculta do mundo se v~~'peus.
245
CAPÍTULO V
Negava tudo o que pudesse dar a idéia de finidade em Deus ou de que Deus
fosse um ser entre outros. "Entre as coisas menores, Deus é ainda menor. Entre as
maiores, maior. É indizível, acima e fora de tudo o que podemos nomear e pensar.
Quem sabe o que é Deus? Situa-se além do corpo e do espírito e de tudo o que
podemos dizer, ouvir e pensar". Afirmava que Deus está mais próximo de nós do
que nós mesmos. "Deus descobriu o modo de estar presente completamente em
todas as criaturas, e em cada LIma especialmente, com mais profundidade, mais
internamente do que a própria criatura se acha presente a si mesma. Mas não está
localizado em lugar nenhum e não pode ser compreendido por ninguém, de tal
maneira que tudo abrange e está no âmago de todas as coisas. Deus está ao mesmo
tempo totalmente em cada grão de areia e, não obstante, em todos eles, acima deles
e fora de todas as criaturas". Nessas fórmulas resolve-se o antigo conflito entre as
tendências teístas e panteístas a respeito de Deus; demonstram a grandeza de Deus,
sua presença constante e, ao mesmo tempo, sua absoluta transcendência. Eu direi
de maneira bastante dogmática que qualquer doutrina de Deus que deixe de lado
um desses elementos, não fala realmente de Deus, mas de algo bem menor do que
ele.
246
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES
kairos. Fora desse kairos nada podem fazer; aliás, ninguém pode fazer nada fora
desse momento certo. Nessa hora certa não há quem resista aos que agem. Entre-
tanto, apesar de Deus agir em tudo o que acontece na história, ela é a luta entre
Deus e Satanás e entre seus domínios diferentes. Lutero fazia essas afirmações por-
~,Qe~s <l:gi.~Eriativan.~~_at~.~esmonas (?~s:~~_AeJ!l_~.~,~~.
Essas forças não teriam ser se não dependessem de Deus como fundamento de
seu ser e como poder criador do ser presente nelas em todos os momentos. Deus
possibilita que Satanás seja o sedutor, mas também, ao mesmo tempo, torna possí-
vel a derrota de Satanás.
d. Doutrina de Cristo
247
CApfTULOV
diz o sistema humano de valores. Este paradoxo aplica-se também à igreja. Na sua
forma visível, a igreja é miserável e humilde, mas é nessa humildade, como na
humildade de Cristo, que reside sua glória. É por isso que a glóri~~~.:.i,.~_.,~:_~?E~_~_
especialmente visível nas épocas de perseguição, sofrimen!.2._c-º.!!I,"!!.U.9adc..:.-
:Y~-Cristo é Deus para nós, nosso Deus, Deus relacionado conosco. Lutero tam-
bém o considerava Palavra de Deus. A partir daí o protestantismo deveria repensar
sua cristologia em termos existenciais, mantendo imediata correlação entre a fé
humana e o que se diz sobre Crism, Todas as fórmulas sobre as duas naturezas
(humana e divina), ou que falam de Filho de Deus e Filho do Homem, só fazem
sentido quando entendidas existencialmente.
24R
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
e. Igreja e Estado
Os que conhecem a Reforma devem indagar se é possível que alguma igreja viva
segundo seus princípios. Não precisam as igrejas viver em forma de comunidade
organizada c autoritária, com regras fixas c tradições? Não deverá a igreja ser neces-
sariamente católica? O princípio protestante não contradiz a possibilidade da exis-
tência da igreja, ou seja, o princípio de que apenas Deus é que importa e que a
aceitação de Deus pelo homem é secundária~
249
CAPÍTULO V
A distinção que Lutero faz entre a igreja visível e a)n\.:Ü;iy~L~ ~!:!}.~_.4?:,s _,mais _
_ difíceis de entender. Para se comp_~~ender o pensamento A"~ !:':l_tero a eS~,~_re~.~ito _~_
devemos ter em men.t~.51~~__ ~ão sã~,._4~?:~,".~~~~2~,,_A--,_!gF~ja invisível é a qualidade
espiritual da igreja visível. A igreja visível é a materialização empírica e sempre
deformada da igreja espiritual. Talvez tenha sido esse o ensinamento mais impor-
tante dos reformadores contra as seitas. Estas queriam descrever a igreja segundo
seus lados visível e invisível. A igreja visível deve ser purificada e purgada - como se
diz hoje em dia em todos os grupos totalitários - dos que não forem membros da
igreja espiritualmente. Esse tipo de procedimento pressupõe que se pode saber
quem é espiritualmente membro da igreja, e que se o pode julgar olhando-se o seu
coração. Mas só Deus pode fazer uma coisa dessas. Os reformadores não podiam
aceitar essa prática porque sabiam que todas as pessoas penencem à "enfermaria"
que é a igreja. Essa "enfermaria" é a igreja visível destinada a todos; ninguém conse-
gue se manter fora dela definitivamente. Portanm, todos pertencem essencialmente
à igreja, mesmo se estiverem espiritualmente longe dela.
250
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
Essa solução resultou de situação de emergência. Não havia mais bispos nem
autoridades eclesiásticas e a igreja precisava de administração e governo. Criaram-se
bispos de emergência: ninguém melhor do que os eleitores e príncipes para isso. Foi
dessa situação de emergência que surgiu a igreja estatal da Alemanha. A igreja se
transformou mais ou menos - para mim, "mais" do que "menos" - num departa-
mento da administração estatal e os príncipes em árbitros da igreja. Não fora essa a
intenção, mas o que aconteceu demonstra que a igreja sempre necessita de certo
apoio político. O catolicismo tinha o papa e a hierarquia; o protestantismo teve que
251
CAPÍTULO V
buscar o apoio dos membros mais desracados da comunidade, os príncipes ou, nos
países mais democráticos, certos grupos sociais.
Como Lutero podia aceitar uma coisa dessas? Como era capaz de aceitar o
poder despótico dos estados de sua época, quando, mais do que ninguém, valoriza-
va o amor como princípio supremo da moral? Sua resposta era muito curiosa. Dizia
que Deus realizava dois tipos de obras. Unu era propriamente a sua obra: de amor
e misericórdia, de doação de sua graça. A outra era a sua obra estranha; era igual-
mente de amor, mas de um amor estranho. Realizava-se por meio de punições, de
ameaças, do poder compulsório do Esrado, por meio de rodos os tipos de cruelda-
des, como exige a lei. Os que acham que o amor não se expressa dessa maneira
252
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
Não tem sentido dizer-se que o nazismo foi produzido primeiramente por
Lutero e, depois, por Hegel. Não tem sentido, porque mesmo se Hegel afirmasse
que o Estado era Deus na terra, não se referia ao poder estatal. Tinha em mente a
unidade cultural entre religião c vida social organizada em Estilo. Hegel poderia,
assim, afirmar a união entre a igreja e o Estado. Mas para ele o Estado era a socieda-
253
CAPiTULO V
B. Huldreich Zwínglio
Lutero ensinava uma forma dinâmica de vida cristã. Zwínglio, e também Calvino,
ensinavam, ao contrário, uma forma estática. Fé era saúde psicológica. As pessoas
psicologicamente equilibradas podem ter fé e vice-versa. Na verdade, essas duas
coisas eram idênticas. Para Lutero, a fé era dinâmica, com altos c baixos. Para
Zwínglio, era muito mais humanisticamente equilibrada. Assemelhava-se à idéia
burguesa de saÍlde. "A fé cristã é sentida na alma do crente, como a saúde no cor-
po". Segundo Lutero, a comunidade morre e ressurge constantemente, em relação
com o Deus pessoal de ira e amor. Jamais essa união com Deus seria assim dinâmica
em Zwínglio. Zwínglio acreditava em progresso; Lutero era paradoxal. É difícil
encontrar o paradoxo no pensamento de Zwínglio. Ou se acaba com o paradoxo ou
se o aceit~~.jLQ!Ji~t:I}ça funqamentaL<;,l1t[ç Lu~er,o ~.Zwínglio: o paradoxo da
vida cristã de Lutero se opÔ~, __~jdéi~_ de progressismo de Zwínglio.
254
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
255
CAPÍTULO V
mais pecaminoso. Nem Zwínglio nem Calvino chegaram a esse tipo de pensamen-
to. O conceito de lei tinha, para eles, conotação bastante positiva. E a lei era, em
geral, a lei natural. A lei natural significava na literatura antiga, antes de mais nada,
a lei da razão, a lei lógica, ética.e justa. A lei da jurisprudência. Em segundo lugar,
era a lei física. Não devemos, pois, pensar imediatamente em lei física quando le-
mos em obras antigas a respeito da lei natural. Geralmente, quer dizer a lei ética
dentro de nós, pertencente ao nosso ser segundo as premissas do Decálogo e do
Sermão da Montanha. Existe em virtude da natureza, da natureza criada, sendo,
portanto, o que somos em essência. Esse tipo de lei é o que está na mente de
Zwínglio e de Calvino mais do que na de Lutero. Lutero detestava a idéia de que
Deus estabelecera qualquer lei entre ele e o mundo ou entre ele a as ações, coisas e
decisões. Entendia todas as coisas de modo não racional e não legal na medida do
possível, não apenas 110 processo da salvação, mas também na interpretação da his-
tória e da natureza. Zwínglio e Calvino aceitavam a natureza em termos de lei. A
definição da natureza de Kant, na qual o domínio da lei física adquire validade, está
mais na linha calvinista e zwingliana do que luterana. Segundo Lutero, a natureza
é a máscara de Deus por meio da qual age com a humanidade de maneira irracional
- bastante semelhante ao livro de ló, A atitude zwingliana e calvinista em face da
natureza acha-se mais em harmonia com as exigêndas da sociedade industrializada
burguesa, decidida a analisar e transformar a natureza de acordo com propósitos
humanos; a relação de Lutero para com a natureza fundamenta-se no senso da
presença do divino, em todas as coisas, mística e irracionalmente.
Segundo Zwínglio, a lei do evangelho é igualmente lei. Não apenas lei, natu-
ralmente, posto que também aceitou a doutrina luterana do perdão dos pecados,
como todos os reformadores. Mas falou a respeito de uma nova lei evangélica, à
maneira dos humanistas e nominalistas. Essa lei deveria ser a base da lei do Estado.
Wyclif e Ockham tiveram a mesma idéia, demonstrando que neste ponto entrou no
pensamento reformado a idéia católica de que o evangelho pode ser interpretado
como nova lei. O termo "nova lei" é muito antigo, remontando aos primeiros tem-
pos da história da igreja. Lutero achava o termo abominável. Para Lutero, o evange-
lho é graça e nada mais; jamais poderia ser "nova lei". Mas para Zwínglio, esta nova
lei não era válida apenas para a situação moral, mas também para o Estado, na
esfera política. Politicamente, a lei do evangelho determinava as leis da cidade. As
cidades que não se submeterem a essa lei poderão ser atacadas por outras cidades
que a aceitam. Essa lei, pensava Zwínglio, mostra-se contra o catolicismo: por isso
ele desencadeou a guerra contra os cantões suíços católicos e morreu numa batalha.
256
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
Mas o princípio permaneceu de que a lei do evangelho era a base da lei do Estado.
Essa idéia exerceu tremenda influência na história universal e salvou o protestantis-
mo de ser sufocado politicamente pela 19teja Romana da contra-tefotma.
257
CAP[TULO V
~ ~
separar nem um sem cortar do outro; Deus e homem são uma só pessoa". E do
demônio afirmar-se que o caráter divino do Cristo corpóreo nao passa de símbolo
ou metáfora. Lutero rejeitava completamente a idéia de que a divindade de Cristo
se separara de sua humanidade no céu. Até mesmo no céu estão juntas. Expressou
essa idéia na doutrina profunda e fantástica da ubiqüidade do corpo de Cristo, ou
da onipresença do corpo de Cristo subido ao céu. Cristo se faz presente em qual-
quer coisa, na pedra, no fogo, nas árvores, mas para nós se faz presente quando nos
fala. Mas pode nos falar por meio do que quiser. Queria dizer que Deus rende ao
corpóreo e que a onipresença do corpo de Cristo no mundo é a forma por meio da
qual o eterno poder de Deus se presentifica no mundo. Se desenvolvermos esta
idéia em termos escolásticos, e tomá-la literal ou supersticiosamente, teremos como
resultado uma doutrina absurda, porque pertencerá a um corpo destinado a ser
circunscrito. Mas quando tomada, simbolicamente, transforma-se em doutrina pro-
funda, afirmando que Deus está presente na terra em qualquer coisa. Faz-se presen-
te, além disso, por meio da manifescação concreta e histórica em Cristo. Lutero
queria dizer isso, muito embora o tenha feito de maneira bastante primitiva. Mas
queria dizer que em qualquer objero natural podemos ter a presença de Cristo. Por
causa deste símbolo da participação do Corpo de Cristo no mundo, veremos, por
ocasião da primavera, nas igrejas lureranas, grande quantidade de flores e de outros
elementos da natureza.
,').' Ao final desse debate sobre a Ceia do Senhor, os reformadores chegaram a certo
acordo. Negaram a doutrina da transubstanciação; muito embora não conseguis-
sern concordar a respeito da ubiqiiidade da presença de Cristo. Lutero admiüu a
existência de diferença fundamental entre ele e Zwínglio ao escrever: "Eles (os
zwinglianos) não têm o mesmo espírito que temos". Que queria dizer~ Em primei-
ro lugar, referia-se à relação entre a existência espiritual e a física. A partir do
neoplaronismo, Zwínglio compartilhava com os humanistas, intelecrualistas, pro-
funda separação entre o espírito e o corpo. É por isso que no calvinismo não se
percebe interesse no problema da expressão. Segundo Lutero, no entanto, o espíri-
to se faz presente apenas em suas expressões. Daí seu interesse no corpóreo. Octinger,
o místico, dizia: "A materialidade é o fim dos caminhos de Deus". Veio daí o grande
interesse na realidade corpórea de Cristo, na história e no sacramento. A segunda
diferença espiritual tinha a ver com o sentido religioso de natureza. Segundo o
pensamento de Zwínglio, a natureza é controlada e sujeita a cálculo por causa da
regularidade de suas leis. O naturalismo dinâmico de Lutero, ao contrário, desven-
da até mesmo os abismos demônicos da natureza e não se interessa por nenhuma lei
258
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES
da natureza.
1. A majestade de Deus
259
CArfTULOV
A verdade do símbolo nos leva para além do símbolo. "A melhor contemplação
do ser divino se dá quando a mente se transporta para além de si com admiração".
A doutrina de Deus não pode ser jamais assunto de contemplação teórica. Precisa
ser questão de participação existencial. A famosa declaração de Karl Barrh, derivada
do texto bíblico (Eclesiastes 5,2), de que "Deus está no céu e você, na tcrra", foi
muitas vezes empregada por Calvino e por ele explicada. O céu "acima" não é um
lugar onde Deus se confina, mas expressão de sua transcendência religiosa. Chega-
mos, assim, à atitude central calvinista de temor à idolatria. Calvino lutou contra os
ídolos sempre que acreditava vê-los. Por isso não se interessava pela história da
teligião, que condenava porque lhe parecia idólatra. Na verdade, a religião não
consegue evitar certos elementos idólatra~.~~A!~~Pgiª_º~_~,~rnPE~J'?Li~bricade íd?_los.
Portanto, o cristão e o teólogo precisam estar alerras contra essas tendências idóla-
tras prontas a interferir no seu relacionamento com Deus.
Calvino se opôs ao uso dc quadros nas igrejas e a qualquer coisa que pudesse
desviar a mente do Deus transcendente. É por essa razão que as igrejas calvinistas se
caracterizam por espaços sagrados vazios. Persiste scmpre o temor da idolatria nas
profundezas dos homens que já vcnceram a idolatria. O que se deu com os profetas,
e depois com os maomctanos, dá-se agora com os reformadores. O calvinismo pode
ser considerado um movimento iconoclasta, destruindo ídolos e todas as represen-
tações pictóricas, sob a alegação de que nos desviam de Deus. A idéia de que a
mente humana é "fabricadora de ídolos" é uma das mais profundas afirmações feitas
sobre o nosso pensamento a respeito de Deus. Até mesmo a teologia mais ortodoxa
não passa, muitas vezes, de mera idolatria.
260
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTFSIANTES
Por outro lado, a situação humana é descrita por Calvino em termos muito
mais negativos que por Lutero. "Por causa de nossa tendência natural à hipocrisia,
qualquer aparência vã de retidão contenta-nos muito mais do que a própria realida-
de". E a realidade é o nosso pecado. O homem não suporta sua realidade. Não se vê
como é. Como dizemos hoje em dia, o homem é ideológico a respeito de si mesmo.
Produz imagens irreais sobre o seu próprio ser. Trata-se de ataque radical à situação
humana, embora corresponda a Deus enquanto o Deus da glória. Quando Calvino
se refere ao Deus de amor, sempre o faz no contexto dos eleitos. É para eles que
Deus revela seu amor. Os que não foram eleitos estão desde o começo excluídos
desse amor. Se Calvino estiver certo, não teríamos que dizer também que Deus cria
o mal? Esta pergunta tem que ser respondida em relação com a doutrina da provi-
dência e da predestinação.
2. Providência e predestinação
261
CAP[TULO V
Vem daí o problema que Calvino ainda discutia em seu próprio leito de morte:
se as coisas são assim, não será Deus, então, a causa do mal? Não temia afirmar que
o mal natural era conseqüência natural da deformação da natureza. Mas também
afirmava que era um modo de trazer os eleitos a Deus. E disse mais. É também um
meio de demonstração da santidade de Deus, por meio da punição dos que foram
escolhidos para a condenação, e para a salvação dos eleitos. Entendia que Deus
havia produzido os maus com a finalidade de lhes punir, e os outros, que eram
maus apenas por causa de sua na[Ureza má, ele os salvara. Esta idéia exclusivamente
teocêntrica, enraizada na glória de Deus, foi compreensivelmente atacada, e Calvino
acabou muito preocupado com a acusação de ter atribuído a Deus a causa do mal.
262
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES
afirmações que parecem fazer de Deus a causa do mal só podem ser entendidas à luz
da idéia de Calvino de que o mundo é "o teatro da glótia de Deus". Deus mostra a
sua glória nesse cenário que chamamos mundo. Para mostrar essa glória ele causa o
mal, até mesmo o mal moral. Calvino refutava a idéia de que Deus permite o mal
por causa da liberdade. Essa idéia lhe parecia Frívola, porque Deus age em tudo o
que acontece. Os maus seguem a vontade de Deus, embora não sigam seus manda-
mentos. Ao seguir a vontade de Deus, os lnaus desafiam os mandamentos de Deus
e, assim, tornam-se culpados.
A questão por detrás desta doutrina é esta: por que nem todas as pessoas rece-
bem a mesma possibilidade de aceitar ou de rejeitar a verdade do evangelho? Nem
todos têm a mesma possibilidade histórica, pois nunca ouviram falar de Jesus. Nem
todos têm a mesma possibilidade psicológica; vivem numa tal condição que não
conseguem nem mesmo entender o significado da pregação. A resposta a essas per-
263
CAPíTULO V
Todas as pessoas fazem perguntas desse tipo. Calvino dizia que não devemos
deixar de fazer essas perguntas, movidos por falsa modéstia. Elas devem ser feitas.
"Nunca estaremos c1aramentc convencidos '" que nossa salvação flui da fonte da
misericórdia livre de Deus a não ser que reconheçamos sua eleição eterna, que ilus-
tra a graça de Deus da seguinte maneira: ele não adota a todos promiscuamente,
dando-lhes a esperança da salvação, mas dá a alguns o que recusa a outros". Mas há,
também, um outro lado nesta doutrina. Os que fazem essas perguntas recebem a
certeza da salvação porque a predestinação torna a salvação completamente inde-
pendente das oscilações de nosso ser humano. O desejo de certeza de salvação é a
segunda razão para a doutrina da predestinação em Paulo, Agostinho, Lutero c
Calvino. Não podiam encontrar certeza ao se sondarem a si mesmos, porque a fé era
sempre fraca e mutável. Só encontravam essa certeza fora deles, na açáo de Deus.
O caráter concreto da graça divina torna-se visível numa eleição que me inclua
especificamente ao mesmo tempo em que exclua outros. Chegamos, assim, ao con-
ceito da predestinação dupla. "Chamamos de predestinação o eterno decreto de
Deus que determina o que vai acontccer com cada ser humano individual, pois
nem todos são criados para o mesmo destino; a vida eterna é predeterminada para
alguns e a perdição eterna para outros. Os homens todos, portanto, são criados para
um ou outro desses fll1s, isto é, predestinados para a vida ou para a morte". Essa é
a definição de Calvino. Qual é a causa dessa eleição? Apenas a vontade de Deus e
nada mais. "Se, por um lado, não podemos encontrar razão alguma pela qual Deus
concede misericórdia ao seu povo a não ser o scu prazer, tampouco encontraremos
outra causa para a explicar a não ser a sua vontade para reprovar os outros". A
vontade irracional de Deus é a causa da predestinação. E assim somos introduzidos
ao mistério absoluto. Não podemos pedir que Deus nos preste contas. Temos que
aceitar a vontade de Deus pura c simplesmente e abandonar os nossos critérios de
264
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
bem e de verdade. Quando alguns dizem que se erara de injustiça, Calvino assevera
que não podemos ir além da vontade divina procurando alguma outra natureza
capaz de determinar Deus, porque a vontade de Deus não pode ser determinada
por coisa alguma, nem mesmo por ele. Reafirma-se, assim, com todo o vigor, o
pensamento de Ockham e de Escoro de que a vontade de Deus é a única causa do
que Deus faz, e nada mais.
atacado, especialmente nos últimos anos de sua vida - em face da morte - sua res-
posta era um pouco diferente: "Sua perdição depende da predestinação divina, de
tal maneira, que a causa e a matéria dessa perdição se acham neles próprios". A
causa imediata, portanto, passa a ser a livre vontade do ser humano. Como Lutero,
Calvino estava pensando em dois níveis. A causa divina não é realmente uma causa,
mas um decreto, algo misterioso, para o qual a categoria da causalidade emprega-se
apenas simbolicamente e não em sentido literal. Além disso Calvino sabia, como os
outros reformadores e todos os adeptos da doutrina da predestinação, que quando
Deus decreta a predestinação, o faz por meio da liberdade finita do homem.
Se quisermos criticar essa doutrina, não devemos dizer que se trata de simples
contradição entre a causalidade de Deus e a liberdade humana. Seria demasiada-
mente fácil, uma vez que os níveis sao diferentes, e não existe possibilidade de
contradição entre níveis diferentes. As contradições ocorrem sempre no mesmo ní-
vel. Temos, de um lado, o nível da ação divina, misterioso porque não cabe em
nossas categorias, e, de outro, o nível da ação humana, misturando liberdade e
destino. Não vamos pensar nos reformadores ou em qualquer outro grande teólogo,
em termos de um Linico nível de pensamento. Caso contrário, teremos de enfrentar
todos os tipos de declarações impossíveis que não só se contradizem entre si, mas
também destroem nossas mentes quando, num aro heróico, decidimos aceitar as
contradiçóes desse tipo. Em vez disso, devemos pensar em termos de dois níveis.
Por exemplo, podemos dizer: "Não posso fugir da caregoria da causalidade quando
falo da ação de Deus, e quando assim falo, derivo tudo de Deus, incluindo o meu
próprio destino eterno". Essa afirmação soa como determinismo mecânico. Mas
não é isso que a predestinação quer dizer. No nível divino, a causalidade é emprega-
da, simbolicamente, para expressar que todas as coisas que nos conduzem a Deus
265
CAPfTULO V
ocalvinista fica sempre indagando se ele está ou nao entre os eleitos. De que
maneira pode ter certeza dessa eleição? E assim começa a procura de critérios, de
marcas da eleição. Calvino conhecia alguns desses critérios. O primeiro e principal
é a relação interior do homem com Deus no ato de fé. Segue-se imediatamente a
bênção de Deus e uma vida de aIra padrão moral. São sinramas. Psicologicamente,
o indivíduo alcançava certa certeza ao reproduzir em sua existência as marcas da
eleição: vida moral e bênçãos econômicas. Em outras palavras, o calvinista procura
se transformar num bom cidadão burguês, segundo as normas da sociedade indus-
trializada. Acreditava que só dessa maneira podia ostentar as marcas da predestinação.
Naturalmente, sabia-se pela teologia, que a predestinação não dependia de tais
marcas. Mas quando essas marcas apareciam, os indivíduos passavam a ter certeza
da eleiçáo. Escondia-se aí o perigo dessa teologia envolvida com essas marcas de
predestinação.
3. Vida cristã
2GG
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
vida cristá é uma linha ascendente, que sobe mediante estágios metódicos.
Era isso o que Max Weber queria dizer. Se vocês não acreditam no acerto das
análises de Weber, posso lhes dizer que na Alemanha Oriental, antes das catástrofes
do século vinte, as cidades protestantes eram ricas, e as católicas, pobres. É provável
267
CAP[TULOV
que os pobres fossem mais felizes do que os ricos. Mas as cidades e capitais, influen-
ciadas pelo calvinismo, produziram o capitalismo na Alemanha. As cidades influ-
enciadas pelos católicos e pelos luteranos não acompanharam as tendências
calvinistas.
4. Igreja e Estado
268
A TEOLOGLA DOS REfORMADORES PROTESTANTES
Além dessas três marcas da igreja, há outros elementos determinados pela lei
divina. Há quatro ofícios: pastores ou ministros, doutores ou mestres, presbíteros e
diáconos. Os pastores e os presbíteros são os ofícios mais importantes. Todos proce-
dem da ordem divina; são, portanto, necessários; derivam-se da Bíblia.
Nesse status misturado, a igreja sempre conserva, em seu interior, uma comuni-
dade de santificação ativa. Essa comunidade é criada pela igreja e se manifesta na
Ceia do Senhor. É por isso que a recepção da Ceia vem sempre precedida de disci-
plina. Não vou entrar na discussão pormenorizada da doutrina calvinista dos sacra-
mentos. A coisa mais importante, no entanto, é a preocupação de Calvino de medi-
ar entre Lutero e Zwínglio. Não queria que a Ceia do Senhor fosse apenas uma
refeição comemorativa; queria a presença de Deus, mas não uma presença derivada
da superstição e magia, como achava encontrar na doutrina de Lutero, na qual até
mesmo os descrentes comiam o corpo de Cristo.
Calvino, por ser humanista, concedeu ao Estado muito mais funções do que
Lutero. Lutero lhe dava apenas uma função; suprimir o mal e preservar a sociedade
do caos. Calvino desenvolveu as idéias humanistas de bom governo, de ajuda ao
povo etc. Mas Calvino jamais chegou ao extremo de afirmar, como certos movimen-
tos sectários, que o Estado poderia ser o próprio reino de Deus. Considerava tal
afirmação mera loucura judaica. Mas acreditava, juntamente com Zwínglio, que se
poderia chegar ao estabelecimento de uma teocracia, visível na aplicação das leis
evangélicas na situação política, com a conseqiiente soberania de Deus. Calvino
muito se esforçou para que isso viesse a acontecer. Exigiu dos magistrados de Gene-
bra não apenas o cumprimento das leis ou a solução de problemas de ordem geral,
mas também preocupação pelo mais importante fator da vida diária, a saber, a
igreja. Não que lhes competisse ensinar na igreja ou decidir sobre o conteúdo do
ensino, mas lhes cabia supervisionar a vida da igreja e punir os blasfemadores e
hereges. Calvino pretendia, assim, com o auxílio dos magistrados de Genebra, criar
uma comunidade governada pela lei de Deus. Os sacerdotes e os ministros não
precisavam se envolver necessariamente com esse governo. Os governadores
teocráticos não precisavam ser normalmente os sacerdotes. Se fosse assim, a teocracia
correria o perigo de se transformar em hierocracia. Os governadores eram, pois,
leigos. Segundo Calvino, o Estado devia punir os ímpios. São criminosos porque se
269
CAPÍTULO V
Todas essas idéias podem ser lIlócuas - ou bem o seu oposto. Muita discussão
ainda se faz a respeito da maneira de se interpretar a doutrina das Escrituras de
Calvino. Seja como for, a resposta terá sempre de aceitar a autoridade absoluta da
270
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES
Bíblia. Essa autoridade, no entanto, destina-se apenas aos que, agraciados pelo
divino Espírito, dele recebem o testemunho de que a Bíblia contém a verdade
absoluta. Quando essa atividade do Espírito se dá, passamos a testemunhar a auto-
ridade da Bíblia inteira. Essa autoridade venl do fato de a Bíblia ter sido composta
sob o ditado do Espírito Santo. Esse termo "ditado do Espírito Santo", desembo-
cou na doutrina da inspiração verbal, transcendendo tudo o que Calvino ensinou,
ao mesmo tempo em que contradizia o próprio princípio protestante. Os discípu-
los teriam sido "penas" ("canetas") de Cristo.
Tudo o que procedia deles, enquanto seres humanos, era sobrepujado pelo
Espírito Santo, que testificava a presença dos oráculos de Deus nesse livro. "Entre
os apósmlos e seus sucessores, contudo, existe ... esta diferença: que os apóstolos
eram os secretários do Espírito Santo, e que, portanto, seus escritos devem ser rece-
bidos como oráculos de Deus". A Bíblia inteira teria sido escrita "a partir da boca de
Deus". Desaparece qualquer distinção entre o Antigo e o Novo Testamento. Essas
idéias ainda persistem em todos os países calvinistas.
271
CAPÍTULOVI
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE
A. Ortodoxia
272
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE
A teologia ortodoxa teve também importância política, uma vez que era neces-
sário definir o status da religião, na atmosfera política do período imediatamente
depois da Reforma. Foi nesse período que se prepararam as Guerras dos Trinta
Anos. Sob o imperador alemão, cada território tinha que definir precisamente o que
acreditava, coisa básica para ser reconhecido, legalmente, dentro da unidade do
Santo Império Romano. A teologia, além disso, era uma reologia dos príncipes
territoriais. Queriam saber de suas faculdades de teologia que, exatamente, se espe-
rava da pregação e ensino dos ministros. Queriam saber essas coisas porque eram os
senhores oficiais da igreja, os bispos supremos, 5ummi episcopi. Assim, todos os
problemas teológicos da época relacionavam-se com problemas legais. Quando,
hoje em dia, lemos a respeito da Confissão de Augsburgo sobre Variata e lnvariata
ralvez pensemos: "Que bobagem!" Quando em lugar da Invariata (Confissão de
Augsburgo inalterada), introduziu-se a Variata (Confissão de Augsburgo alrerada),
sem a permissão dos príncipes, a unidade do protestantismo foi ameaçada e muita
gente foi morta. Mais do que bobagem! Tratava-se da diferença entre o gnesio-
luteranismo e o filipismo. A primeira designação aplica-se ao luteranismo original,
ou genuíno, representado por Flacius, o maior historiador eclesiástico do protes-
tantismo. Suas idéias assemelhavam-se às da escola barthiana de nossos dias, dando
ênfase na depravação total do ser humano. Empregando terminologia escolástica,
Flacius dizia que a substância da natureza humana era o pecado original. A ortodo-
xia não aceitou essa idéia.
273
CAPiTULO VI
~. Razão e revelação
Tornou-se, imediatame lHe claro, que a teologia não pode ser ensinada sem o
auxílio da filosofia, e que as catss:orias filosóficas de:,_em ~E_,~~ilizadas, consciente:_
" .m.~JJ_~~.~,Q}.LDª_.o, n(L~'!sino.~_._9.._L!.~~ler que seja. 'por essa razão, Lutero não impediu
Melanchton de se relacionar com Aristóteles e de utilizar diversos elementos
humanistas. Entretanto, sempre havia quem atacasse a filosofia, o humanismo e
Aristóteles. Daniel Hoffmann dizia, por exemplo:~'.9.s_f:lló§Q.fºs~~9__ ()~_Rª!rjª_.~~.ª,s_~_
heresia". É o que muitos teólogos também afirmam hoje. Mas quando desenvolvem
suas teologias, pode-se demonstrar facilmente de que "patriarcas da heresia", isto é,
de que filósofos, tomam suas categorias. Afirmavam: a verdade filosófica é erro teo-
lógico; os filósofos não são regenerados enquanto filósofos. Trata-se de declaração
interessante por afirmar que existe um domínio da vida que náo pode ser regenera-
do. E assim se conttadiz a ênfase protestanre no seculatismo. Os filósofos, segundo
Hoffmann, "procutam set como Deus potque desenvolvem filosofias que não fotam
274
o DESENVOlVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE
dadas teologicamente". Hoffmann não conseguiu desenvolver essa idéia, mas pro-
duziu constante suspeita contra os filósofos nas igrejas e na teologia, muito maior
do que a existente na Igreja Romana. Esta mesma suspeita persiste, ainda, na situ-
ação teológica contemporânea.
275
CAPíTULO VI
somos filhos de Deus ("O Espírito de Deus se une ao nosso esplrlto para afirmar
que somos filhos de Deus", Rm 8,16). Em lugar disso, ele testemunha que as
doutrinas das Santas Escrituras são verdadeiras e inspiradas por ele. Em lugar da
imediatez do Espírito nas relações entre Deus e seres humanos, o Espírito dá teste-
munho da autenticidade da Bíblia enquanto documento do Espírito divino. A di-
ferença, entre as duas atitudes, é que se o Espírito nos diz que somos filhos de
Deus, temos uma experiência imediata, e não há lei nessa experiência. Mas se o
Espírito dá testemunho de que a Bíblia contém doutrinas verdadeiras, a coisa toda
deixa de fazer parte dessa relação entre pessoas e se transforma num relacionamento
objetivo e legalista. Foi exatamente o que fez a ortodoxia.
A partir desse ponto de vista, surgiram debates bastante vivos sobre a theologitl
irregenitorum, que era a teologia dos não convertidos, dos não regenerados. Se a
Bíblia é a lei do protestantismo, todos os que podem lê-la e interpretá-la, objetiva-
mente, poderiam também escrever teologias sistemáticas mesmo sem participar na
fé cristã. Teriam apenas que entender o sentido das palavras e das frases da Bíblia.
Essa postura foi negada inteiramente pelos pietistas, para os quais só poderia haver
theologia regenitorum, teologia dos regenerados. Tentando interpretar essa discussão
antiga em termos atuais, poderíamos <!izer que a ortodoxia acre_dit~v.~!~,a p?ssi~!~
dade de teologias sistemáticas não existenciais, enquanto que os pietistas entendi-
am que qualquer teologia tin_~~__g~~~~_~xiste.~,:~~_l~ ..,"_
As duas posições oferecem certas dificuldades. Os não regenerados são capazes
de saber que a mensagem da igreja ou da Bíblia é essencial para a salvação, mas não
são capazes de aplicar essa mensagem à situação presente. A função do teólogo
ortodoxo independe de sua qualidade religiosa. Não importa se ele estiver comple-
tamente fora dessa situação. Por outro lado, o teólogo pietista pode dizer de si
mesmo, e mesmo os outros podem afirmar, que ele é convertido, regenerado e ver-
dadeiro cristão. Mas tudo isso precisa ser dito com certeza. Será que há pessoas
capazes de tomar essa atitude e dizer: "eu sou um verdadeiro cristão"? No momento
em que faz afirmações desse tipo, deixa de ser cristão, pois busca em si mesmo a
certeza nas relações que tem com Deus.. Trata-se, certamente, de total impossibili-
dade. Esse mesmo problema ainda existe#hoje em todas a9 igrejap proteswantes_.
_Ja minha#Teologib Sistemática, resolvi o problema da seguinte maneira: somente
guem experimenta a mensagem cristã, enguanto sua preocupação suprema, é capaz
de ser teólogo. Nada mais além disso pode ser exigido do teólogo. Pode bem acon-
tecer que o teólogo em dúvida, sobre cada doutrina específica, seja melhor teólogo
276
o DESENVOLVIMENTO DATEOLO(;IA I'ROTES1ANTE
do que outros, à medida que sua dúvida a respeito das doutrinas envolve também a
sua preocupação suprema. Assim, ninguém precisa ser ('convertido" para ser teólo-
go - qualquer que seja o sentido desse termo. Nenhum teólogo precisa passar por
testes que comprovem se é ou não "bom cristão", de modo que poderia dizer: "Posto
que sou bom cristão, posso ser teólogo". Os pietistas diriam: "Antes de ser teólogo
é pr~~i,s_9_:::"E~!:~:.:~!!iclo: A rcsposra a essas atitudes é a seguinte: "A única coisa que
vem, em primeiro lugar, é a preocupação suprema vinda de Deus que toma conta
de mim, de tal maneira que dscou ~n_~olv"ido com ele d com SUS" ~c;Q~~g~'n:. Não
sosso dixer nada mais além disso. Às vezes, nem mesmo consigo me expressar nesses
.~. .-- ,-
......
termos, porque até a palavra 'Deus' desaparece. De qualquer forma, não posso uti-
lizar esse termo para fundamentar qualquer pretensão de ser bom cristão e, portan-
to, teólogo".
277
CApITULO VI
Tratava-se de mais uma ajuda ao povo que era obrigado a engolir a doutrina da
inspiração verbal. A questão era esta: como aceitar as muitas doutrinas encontradas
na Bíblia? São todas necessárias para a salvação? A Igreja Católica tinha uma respos-
ta muito boa. Vocês não precisam conhecê-las; basta acreditar no que a igreja acre-
dita. Somente os ministros e as pessoas educadas precisam conhecer as doutrinas
específicas. O leigo católico acredita no que a igreja acredita, sem saber muito bem
do que se trata. O protestantismo não podia fazer isso. Sendo a fé pessoal a coisa
mais importante no protestantismo, era impossível distinguir-se entre fides implicita
e explicita (fé implícita e explícita).
Com isso, surgiu uma tarefa impossível: como podem as pessoas simples, os
camponeses, os sapateiros e os proletários nas cidades e no campo entender essas
inúmeras doutrinas encontradas na Bíblia, que até mesmo os mais educados têm
dificuldade de conhecer, por ocasião dos exames teológicos? A resposta veio na dis-
tinção entre artigos fundamentais e não fundamentais. Essa distinção ainda é po-
pular hoje em dia. Mas, em princípio, tal distinção não poderia ser feita, porque se
o Espírito divino revela alguma coisa, até que ponto se poderia dizer que não é
fundamental? De qualquer forma, essas doutrinas não fundamentais acabaram sen-
do, mais tarde, muito fundamentais, quando certas conseqüências apareceram de
desvios não fundamentais.
Embora a coisa fosse perigosa, tinha que ser feita por razões educacionais. As
pessoas, na maioria, não são capazes de entender todas as implicações das doutrinas
da igreja. Havia dois interesses conflitantes. De um lado, o teólogo sistemático
+ queria aumentar os fundamentais tanto quanto possível; todas as coisas são impor-
tantes, não só porque ele escreve sobre elas, mas porque estão na Bíblia. Por outro
lado, os educadores contradizem es.~.~" interesse do teól~.é2<:...~~~.~te~_~tico..:~ed~-=ador
____:i_esej~w?_~~nor número po~.~.í:~e}~4..~ d<:ll_t:_i.I~~s, par::-q~~<~~~,.~.~:~i~os~i~, c:omp~ee~_~
._-"v",el,,-, Gostaria de abandonar as doutrinas de importância secundária. Na verdade, o
educador sempre acaba vencendo. O que encontramos no racionalismo do
iluminismo é, em geral, a redução dos fundamentais ao nível da aceitação popular.
A educação foi parcialmente responsável pelo advento do iluminismo: todos os
grandes filósofos do período tinham essa preocupação. Até hoje, os departamentos
de educação inclinam-se mais a tipos de teologia, baseados no iluminismo, do que
os demais departamentos teológicos. A razão é que as necessidades educacionais
forçam a redução do conteúdo, enquanto que as necessidades teológicas procuram
alargá-lo.
278
o DESENVOLVIMENTO DATEOLOCIA PROTES"lANTE
f~. Pietismo
279
CAPÍTULO VI
São Tomé, por exemplo, teria ido à Ásia. Não lhes parecia, portanto, necessáno
renovar a tarefa missionária. Os pietistas sentiam de maneira diferente. As almas
humanas, onde quer que estejam, podem ser salvas por meio da conversão. Come-
çaram, pois, o trabalho missionário em tcrras estrangeiras, coisa que lhes deu pers-
pectivas históricas mundiais. Homens como Zinzenclorf e Wesley olharam para a
América enquanto a ortodoxia se confinava às próprias igrejas territoriais.
A liturgia foi também alterada. Uma das mais importantes modificações foi a
reintrodução da confirmação, enquanto confirmação do sacramento do batismo~
pietismo é importante para a teologia em três aspectos. Tentou reformar a teologia,
a igreja e a moral. Segundo o pietislllo, a teologia é disciplina prática. Para se co-
nhecer é preciso, antes, acreditar - antiga exigência da teologia ~ristã. Essa exigência
traz consigo o reconhecimento da importância central da exegese. A importância
fundamental recai na teologia do Antigo e do Novo Testamento, não mais na teolo-
gia sistemática. Sempre que a teologia bíblica se sobrepõe à sistemática, é quase
sempre por causa da influência do pietismo. Antes que o teólogo possa edificar os
outros, deve ter sido capaz de se educar a si mesmo.
A igreja não é apenas grupo de pessoas com a finalidade de ouvir a Palavra. Ela
se compõe não só de ministros, mas também de leigos. Os leigos devem participar
ativamente nas funções sacerdotais em diferentes lugares - às vezes na igreja, mas
principalmente em suas casas, em conventículos especiais dedicados à piedade,
collegia pietatis, onde se reünern para cultivar a piedade. Gastam horas inteiras na
interpretação da Bíblia, e sublinham a importância da conversão. Dão ênfase espe-
cial à idéia de urna ecc!esio/fl in ecc!esia, de uma pequena igreja dentro da igreja
maior.
280
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGLA PROTESTANTE
281
CAPfTULO VI
Assim, podemos dizer que o racionalismo não se opõe ao mlstJelsmo, se, por
misticismo, entendemos a presença do Espírito nas profundezas da alma humana.
O racionalismo nasceu do misticismo, e ambos se opõem ao autoritarismo da orto-
doxia.
C. Iluminismo
o socinianismo é uma das fontes do iluminismo. Trata-se de um mOVImento
iniciado por Faustus Socinus, que fugira da Itália para a Polônia onde se refugiou
tanto contra as perseguições da Contra-Reforma como de algumas igrejas reforma-
das. Ele e seus seguidores escreveram um livro chamado Catecismo Racoviano, que
descreve uma teologia protestante predominantemente racionalista. Harnack afir-
ma, em sua História do Dogma, que o socinianismo representava o fim da história do
dogma cristão. O protestantismo preservava alguns dogmas. pelo menos os dogmas
da igreja primitiva. O socinianismo, por sua vez, dissolvera todos os dogmas cris-
tãos com o auxílio do racionalismo e do humanismo da Renascença. Esse movimen-
to é muito mais importante do que sua reedição no deísmo inglês, no qual se
radicalizou, ou na teologia liberal moderna, incluindo o próprio Harnack, na qual
continuou a existir.
282
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE
283
CAPITULO VI
Assim como a autonomia não se confunde com desejo obstinado, a razão não é
cálculo. A razão é a consciência dos princípios da verdade e da justiça. Em nome
284
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE
O milagre é que tudo isso realmente aconteceu, que de fato a profecia, sob o
princípio da harmonia, acabou sendo realmente verificada em todos esses domíni-
os. Houve, na verdade, enorme desenvolvimento econômico. Surgiu um conformis-
mo protestante não obstante as inúmeras denominações. E a democracia funcionou
e ainda funciona, apesar das tendências negativas tão visíveis hoje na América. A
285
CAPÍTULO VI
286
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE
287
CArfTULOVI
288
Índice de nomes
A
Abelardo 147, 151, 166, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 181
Agosrioho 34,71,78,80,83,93, 114, 115, 117, 118, 119, 120, 121,
122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134,
135, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 151, 158, 159, 168, 172,
175, 179, 182, 184, 185, 186, 187, 188, 190, 196, 203, 207, 223,
262, 263, 264
Ambrósio 98, 116, 122
Ammônius Saccas 72
Anselmo de Canruária 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174,
177, 178, 181, 188,196, 198
Apolinário 95, 97
Ário 86, 87, 91, 93, 94, 95
Arisróreles 20,26,27,29,94,105,117,118,123,124,130,134,149,
151, 153, 186, 188, 189,201,274
Ataoásio 86, 88, 89, 90, 91
Averroes 154
B
Barrh, Karl 135, 239, 241, 260, 287
Basílio Magno 92
Bergson, Henri 152
Bernardo de Claraval 80,147,151,179,180, 181, 187, 188
Blanshard, Brand 152
Boaventura 151, 186, 189, 190, 191, 193
Booifácio Vlll 161
Bradwardine, Tomás 207
Bultmann, Rudolf 286
289
c
Calvino, João 10G, 200, 217, 238, 240, 241, 249, 254, 255, 259, 2GO,
261, 2G2, 263, 264, 265, 266, 268, 2G9, 270, 277
Celsus 45,46
Cícero 31,119
Cipriano 111,112,113,114,115,142,143
Cirilo de Alexandria 102
Clemente de Alexandria 18, 68, 72, 73, 74
Clemente de Roma 38,39,40,41,42,43
Constantino 88, 91, 92, 159, 208, 209
D
Descartes, Renê 117, 126
Dionísio Arcopagira 35,68, 104, 105, 106, 108, ]09
Dionísio de Roma 85
Domingos 187, 188
Duns Escoro 149,151,172, 18G, 188, 192, 193, 195,196,198,199,
209
E
Eckhart, Meiste, 154, 188, 205, 20G
Epicuro 27
EraslIlo de Rorerdam 213,236,237,241,254
Espinosa 117
Euhemerus 45
Eutico 100
F
Filon de Alexandria 32, 33, 35, 53
Fbeius, Manhias 273
Fax, Gt:orgc 59
Francisco de A~sis 156, 180, 186, 187
hancke, August Hermann 281
G
Gcrhard, Johann 275
Giotto 157, 187
Gregário de Nazianzo 92
Gregório de Nyssa 92
Gregário Magno 145
Gregório VII 160, IGI
Guilherme de Ockham 149, 162, 188, 192, 193,202,
203, 204, 209, 241, 255, 25G, 2G5
290
H
Harnack, Adolf von 22, 43, 53, 230, 282, 287
Hegel, Georg Friedrich Wilhelm 18,105,117, 167,168,172,253,287
Heráclito 27, 30, 48, 107
Hcrrnas, pastor de 38, 40
Herrmann, Wilhelm 287
Hipólito 57
HoHinann, Daniel 274
Hofmann, Hcinrich 111
Hooft, Vissen 210
Hugo de São Vitor 181
I
Inácio de Antioquia 38,40,41, 42, 44, 63, 135
!rinell 56, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 135
J
Jansen, Cornelius 222, 223
Joachim de Fiori 281
João de Damasco 94
João Escoro Eriúgina 105
Juliano, o apóstata 68, 69, 1Dó
Jllstiniano 102
Jusrino 102
Justino Mánir 47,48,49, 51
K
Kih.ler, Marrin 287
Kam, lmmanuel 30, 172, 177, 198, 256, 283, 284, 287
Kierkcgaard, Sctrcn 239
L
Leão I 100, 102
Leôncio de Bizâncio 102
Liguori, Afonso Maria de 224
Lubac, Hcnri de 225
Lutero, Maninho 21,34, 166, 177, 197, 200, 206, 207, 209, 210, 213,
217,218,219,227,229,230,231,232, 233, 234, 235, 236, 237,
238,239,240,241,242,243,244,245, 246, 247, 248, 249, 250,
251,252,253,254,255,256,257,258, 259, 260, 261, 263, 264,
265, 266, 268, 269, 270, 274, 275, 277, 279
291
M
Mani 119
Marcelo 88, 89, 90
Marcião 53, 60, 63
Marirain, Jacqucs 230
Marx, Karl 183
Melanchron, Filipe 227, 240, 247, 273, 274
Molina 222
Montanus 58
Miinrzer, Thomas 238
N
Napoleão 220
Nesrório 99, 100
Nicolau de Cusa 108
Niebuhr, Reinhold 138, 225
Nierzschc, Friedrich 19,286
Nygren, Andcrs 128
o
Octinger, Fricdricll Chrisroph 258
Origenes 68,72,74,75,76,77,78,79,80,81,84,86,89,90,91, 92,
94,95, 96, 129, 132, 142, 174
Orro, Rudo1E 259
p
Parmênidcs lO?, 119
Pascal, Biaise 222
Paulo, apósrolo 24, 34, 35, 37, 38, 39, 46, 53, 54, 56, 57, 58, 66, 70, 80,
105, 116, 135, 180, 181, 230, 235, 255, 263, 264
Paulo de Samosata 82
Pedro Lornbardo 148, 186
Pelágio 135, 136, 137, 141, 207
Piarão 20,27,28,29,41,69,72,84,87,94,105, 117, 118, 119, 121,
124, 127, 151, 153, 172, 199,200,201, 202, 255, 267
Plorino 27, 69, 70, 71, 72, 78, 84, 123, 124, 147
Porfírio 74
Praxeas 82
Q
Qucsnel, Pasquicr 223
292
R
Rirschl, Albrechr 147, 273, 282, 287
s
Sabélio 82, 83, 93, 95
Schlcicrmacher, Friedrich 18, 273, 286, 287
Sdl\witzer, Alben 286
Seeberg, Reinhold 22
Soei nus, Faustlls 282, 283
Sócrates 26, 44, 48, 200, 255
Spener, Filipe Jacob 279,281
Strauss, David Friedrich 286
T
Teodoro de Mopsul'stia 96, 97, 98, 103
Teodoro 81,82
Tertuliano 56, 57, 58, 61, 62, 64, 65, 66, 67, 82, 111, 112, 113, 175
Tomás de Aguino 93,117,135,149,151, 152, 172, 174, 178, 185,
1H6, 188, 190, 191, 192, 193, 195, 196, 197, 19H, 199,200,201,
207, 220, 225, 275
Troeltsch, Ernst 163, 219, 267, 287
w
Weber, Max 267
Wciss, Johannes 286
Wcsley, John 280
WyC!if, João 162,206,207,208,209,210,211,227,256
z
Zinzendorf, Nikolaus Ludwig Graf von 280
Zoroasrro 119
Zwínglio, Huldreich 236, 240, 249, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 268,
269
293