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História do Pensamento Cristão

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-Estas aulas sobre a história do pensamento aparecem num momento
em que a compreensão da ,~istória tomou-se tarefa central e problema
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urgente da atual reflexão teológica. Evidenciam a maneira como o próprio .-I-[/J
Tillich utilizava a história. Para ele o passado carregava em si o presente, U
e seu estudo era como uma afameda aberla para o futuro. Só se pode
viver no presente plenamente, aberlo para o futuro, em diálogo com
o passado, interpretando seus monumentos e compreendendo seus movimentos.
.8C História
do Pensamento
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Este livro demonstra o poder da histÓlia para um teólogo que jamais
mergulhou no passado para escapar do presente. A história toma-se viva E
para o estudante que se deixa introduzir por Tiflich na sua força.' ~
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Cristão
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Carl E. Braaten
Editor .-CO
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PAUL TILLICH

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História
do Pensamento

Cristão

PAUL TILLICH
A publicaçoo deste livro foi possível
graças às contribuições da
Evangclischcs Missionswerk in Deutschland
(Hamburgo, Alemanha) e das
Igrejas Protestantes Unidas na Holanda-
Ministérios Globais (Utrecht),
às quais a Associaç5.o de Selninários
Teológicos EV~lngélicos agradece.

Associação de Seminários Teológicos Evangélicos


Prcúdente: Pro!Jo," Glrlo"kSol/Zfl (Sáo Bernmdo do Campo)
Vice-Presidente: PIO!Dr Nelson Kilpp (Sáo Leopoldo)
Secretdrio: Pro! MI/i1uel Bernmdino de Santana Filho (Rio deJaneiro)
1esoureim: Pro! Gerson Correia de Lacerda (Sáo Pauh)

Vogais:
Prof Dr PaI/h D. Siepiers/ú (Recife)
Pro! Gi'IJOII /111)- Lindm (Sáo LeopoMo)
Pro! Dr \\7erner Wiese (Sáo Bento do Sul)

Secretário Geral
PIO! Ferlll/i1do Borlolleto Filho
Nota biográfica

1886 Pau] Tillich nasce no dia 2() de agosto em Star/:cddc! (atual Staroslcdle,
hoje 11<1 Po]Ôllla).

1904-1908 ES[Lldos de teolugia prutestante em Berlim, Tübingen, 1 Iallc c, de


110"0, em Berlim.
1909 Primeiro c.'\:'l1l1c teulógico..\Sp11'<111lc a pastor Cl11 J ,ichtenradc.

1910 ])nutor em filosofia pcl;l L" nivcrsidade de Brcslau.

1911-1912 \/ icariaclo em N ancn.

1912 Liccl1ciado ('In teologia [1cLi L~ 111\'lTsidade de Ilallc.

1912 OrdCll;\\~;\() 11:1 Igreja de S,\O i\!alcus, em BerlinJ.

1912-1913 Pregador assislcll te na Igreja do Rcdcn tor em Bcrlim-Moabi L

1913 5ystematische Theolosie (inédito).


1914 CaS,H;e COln Crcti \\"cver.

1914-1918 CapcLio mililar \'OIUllL;irio llU frollte oeste.

1916 r J abiliLls~iiu em tC010gl:1 pela C nivcrsidade de Baile.

1919 Tratlsler(~llc.ia da ltabilllaçúo para a U niVctslebdc d~ üel'lim. Überdie


idee ciner Thcofogie der Ku!Lur.
1919-1924 L.ivre-docente da L: lli'i'crsidade de Berlim.

1921

1923 DtlJ SYJtem der WÚ.leJlSrhe~/ie}f llarh Gegemtiinden und Methoden

1924 Casa-se com 1181111ab \\'crner. Rec!lt/ertigun,gundZweifi!.


1924-1925 ProCcssor convidado de lcoiogia sistcm:Ílica na L' nivcrsidadc de
~\larl)urgo.

1925 RefJ~~jomjJhi!oJophielJogmtlLik (publicaçào póstuma).

1925-1929 Professo\" c;Hedr:ít:ico de ciência da re!igi~l() ch 1 :scoia Técnica Superior


Sa"{ôl1ica, ctn })resdcn.

1926 Die re!ígíü.~e Lilge der Gegemuart. Deu DdmoniJche. Kfúros und Logos.
1927-1929 Professor c:ltedr,úico !wllocírio de filosofia da religiilo e de filosofia
da cul tura da L: llt'i'ersidadc ele Leipzig.
1928 Das reLigúiJe ,)]lJltbo!.
1929-1933 Professor calcdní tin) em 111 ()SO fia c soei o]ogia, LI n i vcrsldadc de Iira 11 k-
furt-l\lain.

1930 Refigiose Yérwirklichung.


1933 Proibidu de exercer suas i"unçócs. Ernigraçito aos Estados C nidos. Die
sozialistische l:nuc!lciciung.
1933-1934 recfurer 11 a LJ 11 ivcrsidade (: olúm bia de N nva '{m'L.

1933-1937 La(lI/w no U nion 'l'hcological Seminary de N uva York.

1936 The interpretation ofhútory.


1937-1940 Associate Projt'ssordc teologia filosóftca no Union Theological Scminary
de N uva York .

1940 Tillich torna-se cicbd,lo norlc-a1l1cricanu.

1940-1955 Professor de teulogia illosóflca nu U 111011 Theological Seminal:) ele


Nmra York.

1942-1944 Discursos tl1l rneine dcutschen Freunde ((lOS m.eus amigos alem,lcs).

1948 Primeira viagem 0 ,\lcmilnba depois da IJ Cuerra I\Iundial. The


shaking of lhe foundations. Fhe protestanl era.

1951 Sptemtltic Theology I.

1952 The COltrtlge to be.


1954 Lave, power, anel justicc.

1955 Biblieal religioll and the search fir ultimaie realiil The New Beillg

1955-1962 Professor 1l~ II niyu:-:idadt: Ilarvard.

1957 SySlematie Tj,cology lI. Dynanlles ofjàith.

1962 Prêmio da paz dos editores c livrcims alemães.

1962-1965 Profcs::;or ela Co1 tedra.l uh 11 Nu veell da 1iacuidade Tcol6gic;l. I"'l~dcrada


de Chicago.

1963 Systematic Theo!ogJ! llI. Chrútianúy tmd the encounter ofwor!d


religions. The eterna! nOl{). Mora!ity and beyond.

1965 Paul Tillich rllurrc tlU dia 22 de outu bro e111 Chica6'1).

fonte: U? Schú:;';!el; Paul Tillich, Munique, CH. Bec/..:, 1997, p. /25-126.


o bras de Paul Tillich em
português (Brasil)

A coragem de ser
(1"'11(' couragc to bc), Rio de .Janeiro, Paz c
.
TCJ:rJ., 1972.

A ertl protestante
(rile protestal1t era), Sào Paulo, Ciências d:l Religião, 1992.

Dinâmica dtl .Fé


(Dl' n:lmics of f<llth), São Leopoldo, Sinoela], 1074.

Históritl do pensamento cristão


(1\ history of chtistian rhought), Sào Paulo, ASTE, 2000.

PenpectiVrlJ da teo!ogút protestante


1105 séculOJ XIX e XX
(PcrspccI Ívcs 01119 I" anel 20 1!: centur)' proLestaIlt thcology),
São Paulo, A STl ':, ] 999.

li:ologia SiStemática
(Systematic thcology), S:lo Paulo-Silo Leopoldo, Paulinas-
Sínocbl, 19H4.

Amor, Poder e Justiça


(1.ave, power ::ll1d justicc), São Paulo, N ovo Século, 2004.
Sociedade Paul Tillich do Brasil
A/C PIOf. Dt. ÉticnncA.I-liguet
Li nivcrslelaclc l'vlctodista de São Paulo -- Ciências da Reli
glao
Rua do SaCralTICnto :230 -Rudgc Ratnos
00735--460 Sào Bernardo do Campo, SP~ Brasil
posrcligiao@ullcSp.col11._br
Revista J ]crtônica C orrclatio
"\v \V,v. rnetodi::;ta. br / cien ti ficas/ correlatio
con tatos: corrclatio((]!hotrn ail. com
História
do Pensamento

Cristão

PAUL TILLICH

terceira edição

tradução de
Jaci Maraschin

ASTE
São Paulo
2004
Título origilLll: 11IJi.r/OI)! r{C),ri([illIl T!I()II<~/It. l'ubliGH!o prilllcir,llllclHC cm NOV~l York por HarJlCl
~llld Row em 19G8. © I Luuuh Tillieh ]9GS. Primcir'l cdi'iJO em língua portllglles,l ,b Assocúç:lo
de Selllin:írios Teolrígieos Evang~licos © I:JKS, Scgumb ediç:io em língua portuguCSJ da Associa'i:lo
de Scmin:írios To:ológícus EV'lllglqicos © lO(}O. Tnccira b.lí'i:io cm língua portllgues:l dei Assocúç:io
de SClllill,íríos Teológicos FV:1llgélicos © ;".()()·1. ']()t1II'i os diro:iros n:scrVJdos.

Di/"cção cditorial
FCJ"I/llIIdo Bar/alia0 FilIJo

Rcvisiio
Femrll/{lo BO/"lollao FiIIJo c Otfrúr Per/roso Matel/S

Diagrrlll/flç!io
KtltIJil/"i/Jrl Volllllcr Malcus

Capa:
i\1t1rCOS (,'iallclli

FdilO/"tfçiio
/-;'miJInllt! Idéias ViJlflfiJ'
Clii/)/'·iildirl{·;,f.(~i{/I!! ,-Oll!

Dado> inltl'll:l(LOllai, de Cala1oba~ão na Publicaç'io (CIP)


(Clmolr" f\r",iieira do Livro, SI', nra.\ilj

li!1iLII, 1"1111, 1Si-\(,-i ')(i'i

llis[ó[ia d" 1't'11\:llIll'l)l" Criq;-Iu /I';nll Tillich:


Ir;"illç:HJ de j",; '\1:ILI-Il!l," - 2, cel. - S:-", l'c"du: ASTl, 2000

I 'j""i"!,;,, dUS'll:Íliu 2 'li.'O!.'gL;L ,iO,",IILili,a- I-IL\[<"II;.I I. '1"1"1,,

(JO .:H21 c[)[)-no.~

11ldice,I I'Ma catálogo ~i,ltmáliw;


'ieoioSi,1 rI"~')ll:trila cri,l;l' liis[órLCl 2,lO.9

A\SllCi,l~:iO de SO:lllin,\ritls 'ltológicos Evangélico'i


RU:l ]Zq;n h-cíLIS, 53(J El3
()122(J-010 S:in I'aulo SP
Br:lsil
Te! (l J) 257.5462 - F:1X (11) 256.98%
astc0\loi,com.l1l
\\'IVW.:1slc ,org.b I
Sumário

Prefácio àsegunda ediçáo brasileira 15

PREFÁCIO 16

INTRODUÇÃO
OCONCEITO DEDOGMA 18

CAPÍTIJLOI
APREPARAÇÃO PARA OCRISTIANISMO 24
A. Kairos 24
B. Universalismo do império romano 25
C. Filosofiahelênica 25
1. Ceticismo 26
2. A uadição platônica 28
3. Estoicismo 29
4. Ecletismo 31
D. Período intertestamentário 32
E. Religiães de mistério 35
EMetodologia do Novo Testamento 36

CAPÍTULO 11
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NAIGREJAANTIGA 38
A. Pais apostólicos 38
B. Movimento apologético 44
1. Filosofia cristã 47
2. Deus c Lagos 49

11
C. Gnosticismo 52
D. Os pais antignósticos 56
l. Sistema de autoridades 57
2. A reação monranista 58
3. Deus criador 60
4. História da salvação 62
5. Trindade e crisrologia 64
6. O sacramento do batismo 66
E. Neoplatonismo 68
EClemente eOrígenes de Alexandria 72
1. Cristianismo c fllosol1a 72
2. Método alegórico 74
3. Doutrina de Deus 76
4. Cristologia 78
5. Escatologia 80
G. Monarquismo dinâmico emodalisra 81
1. Paulo de Samosata 82
2. Sabélio 83
H. Controvérsia trÍnitária 84
1. Arianismo 85
2. Concílio de Nicéia 87
3. Atanásio e Matcelo 89
4. Teólogos capadócios 92
l. Cristologia 95
1. Teologia anrioquena 95
2. Teologia alexandrina 99
3. Concílio de Calcedônia 100
4. Leôncio de Bizâncio 102
j. Pseudo-Dionísio Areopagita 104
K Tertuliano e Cipriano 112
L. Vida epensamento de Agostinho 117
1. O itinerário de Agostinho 117
2. A epistemologia de Agostinho 124
3. Idéia de Deus 128
4. Doutrina do homem 131
5. Filosofia da história 133
6. Controvérsia pelagiana 134
7. Doutrina da Igreja 142

12
CAPÍTULO III
OMUNDO MEDIEVAL 145
A. Elcolasticismo, misticismo ebiblicismo 146
B. Método escolástico 148
C. Feiçães do escolasticismo 150
I. Dialética e tradição 150
2. Agostinismo e aristotelismo 151
3. Tomismo e escotismo 151
4. :-Jominalismo c realismo 152
5. Panteísmo e doutrina da ig['ej~l 154
D. Forças religiosas 154
E. AIgteja medieval 158
ESacramentos 163
G. Anselmo de Cantuária 166
H. Abelardo de Paris 174
I. Bernardo de Claraval 179
J. Joaquim de Fiori 182
K. OSéculo treze 186
L. Doutrinas de Tomás de Aquino 1%
M. Guilherme de Ockham 202
N. Misticismo germânico 205
O. Os pré-reformadores 206

CAPÍTIJLO IV
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTOAO SÉCULO VINTE 212
A. OSignificado da Contra-Reforma 212
B. Doutrina das autoridades 213
C. Doutrinado pecado 214
D. Doutrina da justificação 215
E. Sacramentos 216
EInfalibilidade papal 219
G. Jansenismo 222
H. Probabilismo 224
I. Catolicismo atual 225

13
CAPÍTULO V
ATEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES 227
A. Martinho Lutero 227
1. A ruptura 227
2. A crírica de Lutero à igreja m
3. Conf1iro com Erasmo 236
4. O conflito de Lurcro com os evangélicos r~l(licais 237
5. Doutrinas de Lutero 241
a. Princípio bíblico 241
b. Pecado e fé 243
c. Idéia de Deus 245
d. Doutrina de Cristo 247
e. Igreja e Escado 249
B. Huldreid, Zwínglio 254
C. João Calvino 259
\. A majestade de Deus 259
2. Providência c predesrimç:io 261
3. Vida cristã 266
4. Igreja e Escado 268
5. Autoridade das Escriwras 270

CAPÍTULO VI
ODESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE 272
A. Ortodoxia 272
1. Razão e revelação 274
2. Princípio formal c princípio materi;"!l 275
B. Pietismo 279
C. Iluminismo 282

Índice de nomes 289

14
Prefácio àsegunda edição brasileira

Ao publicar esta segunda edição brasileira das aulas de Paul Tillich que recebe-
ram o nome de jJistóritl do PeWt17nento Crútão, a Associação de Seminários Teológi-
cos Evangélicos - A5TE completa o conjuIllo que este livro forma com outro, Pers-
pectivils da 'j"t'o!ogia ProtCSlfllllC NOS Sécu!os XIX e XX, publicado também elll segunda
cdiçáo, no segundo semestre do ano passado. 550 obras que se completam e permi-
[em o acesso ao pensamento de um dos maiores rcólogos do nosso século.

Assim como ocorreu com PenpectivflJ, csra obra teve seu texto revisado e tIve-
mos condições de torná-la disponível com lima apresentação gráfica de excelente
qualidade. Além disso, es(;} segunda ediç5.o brasileira inclui Ulll índice de nomes,
importante recurso neste tipo de obra.

Reconhecemos, com respeito e considcraçáo, a valiosa colaboraçáo do Prof Or.


Odair Pedroso Jvlateus e de sua esposa, Sra. Kathariru Vollmer Mateus, para este
empreendimento.

Para a A5TE é um privilégio publicar mais uma vez esta obra e, assim, ajudar a
aumentar o j;i imenso número de "alunos" dos cursos de Paul Tillich.

Agosto de 2000

Ferllalldo Bortolleto Filho

editor da ASTT.

15

PREFÁCIO

Esta edição das aulas de Paul Tillich sobre a história do pensamento cristão
revisa ü texto da segunda edição de 1956. A primeira edição reunia essas mesmas
aulas proferidas por ele em 1953, no Seminário Teológico Unido de Nova Yorlc As
palavras de Tillich foram esrenograbdas e transcritas por Peter H. John e por cle
distribuídas numa pequena edi\~jo. No prefácio da "segunda ediçáo" desse traba-
lho, Percr Johl1 observava que "tentara corrigir erros de tipografia, de ortografia c
outros de transcrição", E reconhecia ;1 necessidade de uma revisão mais profunda do
texto "no que conccrne ao estilo c ao conteúdo", que talvez viesse a ser feita no
futuro. Em termos ideais, (aI revisão teria que ser realizada com a assistência do
próprio Tillich. Sem a sua ajuda esta revisão n:1o seria tão completa como seria de
esperar. Embora eu tenha sido liberal 110 tratamento do estilo, modiflcando-o quando
necessário, tratei do conteúdo de (orma conservadora.

Esta Hútória rio PCllSfllilClllO Cristão de Tillich pode ser recebida como comple-
mento ao seu livro PenpectiuilS tia Tt'ologia ProlC.lftllltc dOJ SéculoJ XIX c )0\" formando
com este '0 conjullto da vis:1o do autor da tradiç:1o clássica cristã. Esse livro começa
onde o outro termina. Há certa coincidência no tratamento da ortodoxia c do
iluminismo em relação com o pwtesrantismo. Os estudantes da história intelectual
do cristianismo e da teologia colltemporJnea terão necessidade de ler as duas obras
para apreciar plenamente a maneira como Tillich apreende essa tradição. Essas obras
revelam a profundidade histórica ela percepção de Tillich mais diretamente do que
seus OlltroS ensaios incluindo mesmo a 'It'ologia Sistemática.

Estas aulas sobre a história do pensamento aparecem num momento em que a


comprecns:1o da história tornou-se tarefa central e problenla urgente da atual refle-
xão teológica. Evidenciam a maneira como o próprio Tillich utilizava a história.
J2ra ele o passado carregava em si o prcsel!5e, e seu estudo "er~~?mo Y.1Pi1 al0-mcda
.c,_,}Qt;a:s~uJ,~E:.J). futuro. SÓ,se p~{le viver ,~~~_F~·~:..nre plenamente, aberto para o futuro,
_~.~_I:~~~~}~) com o passado, inrerpret~~.~.?....':eus monumerlt<?s e compreendendo seus
movimentos. Este livro demonstra o poder da história para um teólogo que jamais

16
mergulhou no passado para ~scapar do presente. A história (Orna-se viva para o
estudante que se deixa introdu/.ir por Tillich na sua força.

Os que foram alunos de Tillich conhecem estas aulas muito bem. Espera-se,
conrudo, que esta ediç~ão sirva às necessidades de uma nova geração de estudantes
de teologia que não tiveram a sorre de ter Tillich corno professor ou de conviver com
ele. Sinto-me honrado por editar esta obn bem como as Perspectivas. Desejo expres-
sar minha profunda gratidão J. senhora Hannah Tillich e a Robert C. Kimball,
encarregado do testamento de Tillich, pela permissão que deram a este trabalho.
Também agradeço ao meu colega, Roben I-I. Fischer, pelas sugestões que me deu
para melhorar o texto.

C/ir! E. Braaten
Oxford, Inglaterra
setembro de 1967

17
INTRODUÇÃO
OCONCEITO DE DOGMA

Toda experiência humana envolve pensamenr.o, simpr~.~,n:enteE?I~q:l_~~"1 vida


intelectual e espiritual d~o.~::_~~.~.:anos ITl~nifest;l-sepeb.~~~:~::[.e}n._A lingua-
gem é pensamento expresso em palavras faladas e ouvidas. Não há existência huma-
na sem pensamento. O emocionalismo, tantas vezes dominante nas religiões, não é
mais importante do que o pensamento. l~ menos, isso sim. E reduz a religião ao
nível da experiência subumana da realidade.

Schlcicrmacher ressaltava a função do "sentimento" na religião c Hegel a do


"pensamento", fazendo surgir a tensão entre ambos. Hegel diz}~~~q.~le: até mesmo os
cães possuem sentimentos, m~s__ ~E.~~,~;:~~ ?<}_l.?.2~_~~L pensal~. Essa tensão surgiu
de um mal-entendido não intencional do que Schleiermacher queria dizer com
"sentimento", coisa que ainda se repete hoje em dia. Mas o mal-entendido expressa
a verdade que o homem não pode viver sem pensamento. O ser humano tem que
pensar mesmo se for o mais piedoso dos cristãos sem qualquer educação teológica.
Até na religião damos nomes a objetos especiais; Elzemos distinçio entre os diversos
atos da divindade; relacionamos os símbolos entre si e explicamos os seus significa-
dos. Todas as religiões se utilizam da linguagem, e onde há linguagem hJ também
termos UnIversais ou conceitos que preCIsamos usar Inesmo nos mais primitIvos
níveis de pensamento. Convém observar que esse conflito entre Hegel e
Schlciermacher j;;í fora antecipado, no século terceiro de nossa era, por Clemente de
Alexandria quando disse ql"le se os anirnais tivessem religião, ela seria muda, sem
palavras.

A realidade precede o pensamento, mas é também verdade que o pensamento


molda a realidade. 5io interdependentes; 11m não pode ser abstraído pelo outro.
Não podernos nos esquecer disso quando tratarmos da trindade e da crisrologia.
Baseados em muito pensamento, os padres da igreja chegaram a conclusões que
influenciam a vida de todos os cristãos, desde os tempos primitivos até hoje.

Temos também desenvolvimento de pensamento metodológico segundo as re-

18
o CONCEITO DE DOCMA

gras da lógica que se miliza de certos métodos para tratar com experiências. Quan-
do esse pensamento metodológico se expressa, por meio da fala ou de escritos e é
comunicado a outras pessoas, produz doutrinas teológicas. Trata-se de um passo
além do liSO lluis primitivo do pensamento. Idealmente, tal procedimento conduz
a sistemas teológicos. Ora, os sistemas não são feitos para permanecermos neles. Os
que se prendem dentro de determinados sistemas começam a sentir, depois de
algum tempo, que os sistemas se transformam em prjs5o.S~yo_cês c6<lrell1 sistemas
teológicos, como cu criei a minha teologia sistemática, scrál'reciso ir além do sisrc-
~~ • _ _~ ~ ..... - O" ._"._ " __ 0 ' _

. ma para não sc aprisionar nele. Não obstaIlte, o sistema é nccessário por causa de
sua consistência._Na minha experiência, os estudantes que mais se rebelam contra o
.~~~E~!.~e:Tsistemático de minl:~~~.~c:.l?gj~'~'~~"_~:T'~1~!:_~~~~:~:.~E:O:-'~h!12_~_~sLl.l~'p~l~ien~e~..cLl:~.~~
c.Lt:s~obre_l!1 (lue dois enunciados de minh;l autoria se contradizem entre si. Sentcm-
se frustrados quando encontram pontos vulneráveis na estrutura do sistema. E en-
tão, quando consigo superar essa contradição, acham que estou tentando aprisioná-
los rnaldosamenre no meu sistema. Trata-se de curiosa reação. Mas é uma reação
compreensívcl. Quando se considera o sistema resposta definitiva e final, c1e se
torna pior do que qualquer prisão. Mas se entendermos o sistema como esforço de
reunir conceitos teológicos em formas consistentes de expressão, sem contradições,
ele se [Orna inevitável. Mesmo se pensarmos fragmentariamente, como certos filó-
sofos e teólogos (alguns até mesmo extraordinários), cada Fragmento conterá o siste-
ma implicitamente. Quando lemos os fragmentos de Nietzsche - em minha opi-
nião o melhor filósoFo que escreveu nesse estilo - encontramos todo um sistema de
vida implícito em cada um deles. Não se pode, pois, evitar o sistema, a não ser que
se escolha dizer asneiras ou escrever dc modo contraditório. Naturalmente, às vezes
ISSO acontecc.

o sistema corrc o perigo não só de se transformar em prisão, mas também de se


movimentar dentro de si mesmo. Fode se scpar:lI· da realidade c se transformar em
algo, por assim dizer, acima da realidade que pretcnde descrcver. Portanto, meu
intcresse não sc lirnita aos sistemas cnquanto sistemas':' ~as nop~-d~{:q~ue têm para
-;;p·~·~~;;'-~;-r:~;fi~lad~-d a igreja e da sua vida. . -- -

As doutrinas da igreja têm sido chamadas de dognus. Em outros tempos este


tipo de curso .sc chamava "história do dogma". Agora o conhecemos pelo nome de
"história do pcnsamento cristão". Trata-se apenas de mudança de designação. Na
verdade, ninguém ousaria discorrer sobre a história completa do pensamento de
todos os teólogos que já existiram c ainda existem na igreja cristã. Estaríamos num

19
INTRODUC,:ÃCJ

oceano de idéias contraditórias. O propÓSIto deste curso é OLHI"O. ~/alllos c?':~~!~0_~~ar


os pensamentos que se tornaram expl:~ssõ.e~"~~_~ciras da vida da ig~Tja:. É oquc a
palavra _"~~~?.~~'~_ queria dizer O~~~~~l:~~:~~~:

O conceito de dogma situa-se na frollteira entre a igreja c o mundo secular.


Muitas pessoas que vivem nesse mundo secular têm medo dos dogmas da igreja.
h1as não apenas elas. Há também pessoas, membros de igrejas, que também têm
medo dos dogmas. Os "dogmas" 55.0 como essas capas vermelhas que os toureiros
usam para provocar os touros na arena; provocam raiva ou agressividade e, às vezes,
até mesmo luta. Acho que essa luta se d:í mais entre gente fora da igreja com a
igreja. Para entender essas coisas precisamos examinar a história do conceito de
dogma, que é bascante curiosa.

o primeiro passo é compreender a palavra "dogma". Vem..do_.':'oGlbulo greg.o_


~{q~~~e signifi_c~l._"J2.~~.~,:2,~~inar 011 tC:~~:,!:!~.~!li5(t. Nas escolas filosóficas
gregas, anteriores ao cristianismo, r/ognlilta eram as doutrinas específIcas que dife-
renciavam uma escola de outra, os acadêmicos (Platão), os peripatéticos (Aristóteles),
os estóicos, os céticos e os piugóricos. Cada escola tinha suas próprias idéias funda-
mentais. Se alguém desejasse se tornar membro de uma delas, tinha que aceitar,
pelo menos, os pressupostos b~lsicos que a distinguianl das outras. Assim, neIn
mesmo as escolas fIlosóficas deixavam de ter suas r/ogmattl.

De modo semelhante, as dOlltrinJ.s cristãs foram entendidas como dogmatrl,


distinguindo a escola cristã ebs escolas fIlosóficas. Aceitava-se tal situação como
natural; não se parecia com a capa vermelha do toureiro nem produzia sentimentos
antagônicos. O dogma cristão, no período primitivo da história da igreja, express;l-
va as crenças dos crisr~{)s quando ingressavJ.m nas congregaçócs locais, correndo
muitos riscos e transformando rremendamenre as Sllas vidas. Assim, os dogmas não
eram declaraçóes teóricJ.s individuais; expressavam uma realidade específica, a rea-
lidade da igreja.

Em segundo lug;lr, todos os dogm;ls foram formulados negativamente, para


combater interpretações errôneas ;lparccidas delllro da própria igreja. É o caso, por
exemplo, do Credo Apostólico. -tomemos o primeiro artigo desse credo, "Creio em
Deus Pai Todo Poderoso, Criador do céu e da terra". Não se tLHa apenas de uma
declaração voltada para si mesma. Representa, ao mesmo tempo, a rejeição do
dualismo, formulada depois de uma luta de vida e morte por mais de cen1 anos. O
mesmo se pode dizer dos demais dogmas. Quanto mais tardios forem mais clara-

211
o C:OJ\:CEITO m: DOCMA

mente mostrarão esse cadtcr negativo. Podemos chamá-los de doutrinas protetoras,


pois pretendiam proteger a SUbSc1t1cia da mensagem bíblica. Até certo ponto essa
substância ef;l fluida, lllLlIto embora houvesse LIma base fIxa que era a confissão de
Jesus como o Cristo. Além disso ttldo mais era mutável. Quando surgiam novas
doutrinas que pareciam ameaçar a confissão fundamental, as doutrinas protetoras
eram-lhe acrescentadas. Foi Jssim que o dogma foi se desenvolvendo. Lmcro tam-
bém reconhecia esse fato: os dogmas não resultaram de interesses teóricos, mas da
necessidade de se proteger a subsdncia da mensagem cristã.

Uma vez que essas novas formulações protetoras estavam sujeitas à interprera-
_S?CS errôneJs, sempre havia a necessidade de formulações teóricas mais precisas. _
Não se podia realizar essa tarefa sem a ajuda ~ie termos filosóficos. Foi assim que
lnuitos conceitos tllosótlco~ entraram nos dogmas cristãos: Não é que as pessoas se
interessassem por eles enquanto conceitos filosóficos. Lutcro era muito franco a
respeito. Dizia abertamente que não gostava de termos como "trindade", "/'ornoollsius",
e outros do mesmo tipo, embora admitisse a necessidade de seu uso, certamente
impróprio, porque não tínl1Jmos termos melhores. Novas formulações teóricas pre-
cisam ser feitas sempre que J. subst,lncia da fé comece a ser ameaçada por doutrinas
ou teologias inadequad;ls.

Deu-se mais UIll passo na história desse conceito. Os dogmas começaram a ser
aceims como lei canôniCl da igrejJ. A lei, segundo o cânon, é a regra do pensamento
ou do comportamellto.:....~ lei canônica é a lei ~clesi,í.stica à qU;l1 todos os q~lep<?J:~~"':::'
cem à igreja devem se submeter.. Assim, o dogma recebe sanção legal. Na Igreja
Romana o dogma faz panc da lei canônica. Sua autoridadc cmana do domínio da
lei. roi assim que se desenvolvcu a Igreja Romana. A própria palavra "romana"
cano ta esse desenvolvimento legalista.

Entretanto, a enorme reação contra o dogma nos últimos quatro séculos não
teria havido se talvez não tivesse surgido um novo fato: a aceitação da lei eclesiástica
pela sociedade medieval como lei civil. Com isso, a pessoa que quebra a lei canônica
das doutrinas náo é só herege, discordando das doutrinas fundamentais da igreja,
mas criminoso contra o Estado. roi precisamente o que produziu a reação radical
na época moderna contra o dogma. Posto que o herege não apenas subverte a igrej;l,
mas também o Estado, não lhe basta a excomunhão; dcve ser entregue às autorida-
des civis para ser punido como criminoso. roi cOl1tra essa situação que o iluminismo
se rebelou. A Reforma, na verdade, não ll1u(brJ. esse procedimento. Não há dúvida,
porém, de que desde o iluminismo rodo o pensamento liberal se caracterizou pela

21
INTRO[)UÇÃO

recusa do dogma. Essa atitude teve o apoio do desenvolvimento da ciência. Para que
a ciência e a filosofia pudessem crescer criativamente era preciso que tivessem com-
pleta liberdade.

Na sua famosa / fistriria do dogma, Adolf V011 Harnack já perguntava se o dogma


não estava no fim em vista da desintegração sofrida desde o início do iluminismo.
Tinha consciência da existência de dogmas ainda no protestantismo ortodoxo, mas
acreditava que o último momento da história do dogma havia chegado nessa desin-
tegração do dogma provocada pelo iluminismo. Desde então não teria havido mais
dogma no protestantismo. I~ claro que Harnack tinha em mente um conceiro bas-
tante limitado de dogma, no sentido das doutrinas rrinid.rias e ~.!·i2"~?)ógicas da
igreja a~"ltiga.-6o conuário de Harnack, Rcinhold Seeberg afirmou que o desenvol-
vimento do dogma não terminou com o iluminismo c que ainda se processa.

Estamos diante de uma questão sistemática muito importante. X::!~t~.~::~~lin~


dogmas no protestantismo cOll[el~R0r5neo? Os que se d,,~.~~,in.am ao mini~tério ch
igreja têm de passar por deten~!_~~~1.9,~_:_~iP.~~J~_E!.~~_I:r:~.
__I_~.~? tanto de.,<::?~~)~.~_<?i!..~~~~t~,
_ !D.as de J~.~~As igrejas querem saber se concordam ou não com suas afirmações
dogm~í.ticas fundamcntais. Em ger:ll, csses exames são conduzidos :l partir de uma
visão muito limitada da teologia, sem verdadeira compreensão do desenvolvimento
do pensamento cristão, desde os tempos da ortodoxia protestante. Muitos desses
estudantes se revolrJJll interiormente cOllua esses exames da fé, muito embora não
devessem se esquecer de que estão entrando num grupo particular, diferente de
outros grupos. Em primeiro lugar, trata-se de um grupo cristão e não pagão; de unI
grupo protestante ali católico; dentro do protestantismo o grupo scd. episcopal ou
batista, ou qualquer outro. Com essc exame a igreja demonstra justificado interesse
em receber os que aceitam os seus fundarnenros, uma vez que serão seus represen-
tantes. Qualquer clube de futebol exige que seus jogadores aceitem as regras e pa-
drões do esporte. Por que deveri.1 a igreja deixar a questão completamente aherta
aos sentimentos arbirdrios dos indivíduos? Tal siruação não scria possível.

Uma das tarefas da teologia sistenúrica consistc em auxiliar as igrejas a resolver


esse problema a fim de que não dependam tão unilateralmente dos teólogos dos
séculos dezesseis e dezessete. Qucm entra para a igreja deve acciur cerras idéias
fundamentais. Não se trata, porém, de exigir dos ministros a aceitação de certo
conjunto de dogmas. C2tllO poderL1tl1 eles ::tErmar que não têm chívidas sobre tais
~?,gl_nas~ Se não tive~~e.[~l. S~.~lviSL1~ .~ti.t1.~i)nl~nte seri~~... ~. ~~~~~,_~l.·istãos, p()rque a vida
_intelectual_~_tão ambígua como a vida moraL E guem ousaria se chamar de moral-

22
o CONCEITO DE DOCIvIA

mente perfeito? Como, então, chamar-se de intelectualmente perfeito? 9,., elemento


.dcº!-!yida"_(~clem~!g2_4a,p.~~QR.Ü~iS.Compete à igreja aceitar os que consideram
a fé questão de sua preocupação suprema, a qual querem servir com roda a sua força.
_l\i.~~",,~e a igE~j_::l_ fica querendo saber o 9.~~~e __ ~_~.9,~""~~~,, ~~..!!.i~~~_.~ respeito _~~,~_ta ou
daquela doutrina, acabaLí provocando a desonestidade. Se alguém afirmar que con-
corda completamente com determinada doutrina, por exemplo, a do nascimento
virginal, será desonesto ou deixou de pensar. Como ninguém pode deixar de pensar,
tem necessariamente que duvidar. Eis aí o problema. Acredito que a única solução
possível no mundo protestante consiste em entender esse conjunto de doutrinas
como representação de nossa preocupação suprema, a qual queremos servir num
determinado grupo, que também se fundamenta na mesma preocupação suprema.
Mas ninguém jamais poderá prometer que não vai duvidar diante de qualquer uma
dessas doutrinas.

_<º_s_.~~?$.mas_~:,~~.. ,~,~,:_e!".i,<:~::_ ~.::" .~??L!~?:'~:..int.erpretados_.i~~al maneira que


não venham a ser poderes repressivos destinados a 1Hoduzir desonestidade e fuga.
Ao contrário, sã~--~~I;~:~~sõe~5-1)rofli·lld~s~"-i~1Jra\~ITrl~)s'JS--da 'verdadeira vida eb ig;~era.
Nesse sentido, procurarei demonstrar que n~l discussão desses dogmas, mesmo quando
expressos nas fórmulas mais abstratas por meio de difíceis conceitos gregos, estamos
tratando de coisas nas quais a igreja acreditava expressarem adequadamente sua
vida e devoção na luta de vida ou morte contra o mundo pagão c judaico, lá fora, e
contra todas as tendências desintegradoras aparecidas em seu interior._Co~~,~Lu..2-~fi~:
mando a necessidade de termos o dogl~la em alta estima; há certa gra'~E.~~,~43:9~•.-E.2....
.,_~?g~ ..10as~~ão d~~.a ser compreendido como conjunto de doutrinas específicas
às,...S~~..;Jamos que subscrever. Tal atitude contraria o espírito do dogma e o
espírito do cristianismo.

23
CAPÍTULO I
APREPARAÇÃO PARA OCRISTIANISMO

A. Kairos
Segundo o apóstolo Paulo nem sempre existe a possibilidade de acontecer o
que, por exemplo, aconteceu no aparecimento de Jesus, o Cristo. ~ vinda de Jesus
~~~1I num momento especilL~a história em que tudo esrJ.':.9- preparado. Vamos
discmir, agora, essa "preparação". Paulo fàb de l.:airos, para descrever o sentimento
de que ü tempo estava pronto, lll:1duro, ou preparado. Esta palavra grega cxcmplifica
a rique:t,a da língua grega em comparação com a pobreza das línguas modernas. Só
temos um vocábulo parJ. "tempo". Os gregos têm dois, chronos e k,ziros. CIlrollos é o
tempo do relógio, que se pode medir, como aparece em palavras como "cronologia"
c "cronômetro". KaÍros não tem nada a ver com esse tempo quantitativo do relógio,
mas se refere ao tcmpo qualiutivo da ocasião, o tempo ccno. Algumas histórias do
Evangelho falam dcssc tempo. Detcrminados t~tos acontccem quando o tempo
certo, o luziros, não chega. C~ualldo se Ella cm kairos se qucr indicar que alguma coisa
aconteccu tornando possíveis ou impossíveis cerras ações. Todos nós experimenta-
IllOS momentos em nossas vidas quando sentimos que agor:l é o tempo certo para
agirmos, que já estamos suficientemente maduros, que podemos tomar decisões.
Trata-se do latiros. Foi nesse sclltido que Paulo e a igreja primitiva falaram de kftiroS,
o tempo ccrro para a vinda do Cristo. A igreja primitiva e Paulo até cerro ponto
telHaram mostrar por que esse tempo era o tempo cerro, c de que maneira o scu
aparecimento tinha sido possibilitado por uma constelação providencial de btores.

Vamos examinar a seguir a preparaçao para a teologia cristi na situação do


mundo no qual Jesus veio. Vamos partir de um ponto de vista teológico - há outros
- buscando comprecnder as possibilidades da teologia cristã. Não é como se a revc-
lação de Cristo caísse do céu como UIlU pedra, como alguns teólogos parecem acrc-
ditar. "Aqui está: accitcm-na ou rejcitcm-na". r, o contrário de Paulo. Há '-k..t!to

24
A PRFI'ARN,:AO PARA O Cl\IST1AN1SMO

LI m podcr_.!.S.ycbdo r_~!2 i vcrsal,p.~!J?~l.~~a,I!-(I,~~a.J 1.L~.~.~,~~" to ci.::t. e P ~~F~1_~2I..~_~~~J2~


que o cristianismo considera a revelação final.

B. Universalismo do império romano

o evento do Novo Tcscamcllto surgiu na época cio lllliversªli§II1.~_(lo l~péflO


romano. H<l elemenws positivos c negativos nesse EHo, ao mesmo tempo. Negati-
vamente, significa o desmoronamento d;}s religiões c das culturas nacionais. Positi-
vamente, fortalecia a idéia de que a humJniebde podia ser concebida como um
todo. O império romano produziu ~~lara cOI~sciên.5:ia de história mundial, em con-
traste com histórias nacionais acidelltais. A história mundial não era apenas um
propósito a ser alcançado l1a história, 110 sentido dos prOrClas; tornara-se, em vez
disso, numa realidade empírica. É esse o sentido positivo de Roma. Essa cidade
representava a monarquia universal na qual se unia todo o mundo conhecido. Essa
idéia foi absorvida pela Igreja Romana e ~1plic1eb ao Papa. Ainda permanece nessa
igreja. Com isso, Roma ainda reivindica o poder mon;Írquico sobre o mundo intei-
ro, seguindo o ideal do império ronul1o. Talvez seja importantc observar quc jamais
deveríamos esquecer que a Igreja Romana é rolI/({1lfl, e que o desenvolvimento dessa
igreja não foi influenciado apen;lS pelo cristianismo, mas também pelo império
romano, por sua grandiosiebde e por sua idéia de lei. A Igreja RomanJ. tornou-se a
herdeira do império romano. NUJ1cl elevemos esquecer esse fato. Quando formos
tentados a avaliar a Igreja Romana ;1Cima do que deveríamos, sed hora de pergun-
tarmos a nós mesmos: quantos elementos ror/UUlOS ainda persistem neb, e até que
ponto são v;ílidos hoje em nossa cultura? O mesmo processo se aplica aos conceitos
filosóficos gregos que criaram o dogma cristão. Até que ponto são válidos hoje em
dia~ Naturalmente, n50 é preciso rcjeiLll" cenos elementos simplesmente porque
55.0 romanos ou gregos, ou ;lCcid-los, por outro lado, porque se originaram em
Roma ou lU Grécia, mesmo qU:llldo sancionados por decisões dogm;íticas.

C. Filosofia helênica
No contexto desse 111undo únICO, dess;l hisrória lllundial e dessa monarquia
criada por Roma, encontramos o t-lcnSa!11Cnto grego. É o que se conhece como
período helênico da fllosotla grega.. Fazemos distinçG.o entre o período clássico do
_pCl!~?m.ento__gr~g~l_: _q~I_~ ~~_I~_1~~~_~~_I.12.? 111?rr~_.~I~_:'\:J~tótelcs, e o helênico, em que se

25
CAPíTULO I

situam os estóicos, o~__SE:i~_~I_~:~.~~:\0_:?_s 1~_:.~~EiE.agóricos, os cé(Jcos t::_~_~_~Elcoplatônicos.


Acha-sc__aL~l_._G?~l-.!~ i mediau de h~);lpane.~?,J)Cnsalllento cristáC?" O cnstIalllsmo
prrmll1VO llão foi influenciado ClIlto pela filosofia clJ~sica?mas pelo pensamento
helênico.

Vou novamente distinguir entre elementos positivos c negativos no pensamen-


to grego do período do !;;airos, quando o mundo antigo terminou. O lado negativo
encontra-se no que chamamos de ceticismo. O ceticismo, não só na escola dos
céticos, mas também em Olltras escolas de filosofIa grega, é o fim da tremenda e
admid.vel tentativa lh cOllStruç:J.o dI.:' um m lindo de selltido baseado na interpreta-
ção da rc;didJde em termos objClivos c racion::J.is. A filosofia grega havia minado as
antigas tradições mitológicas e rituais. Na época de Sócrates e dos sofistas era óbvio
que essas tradições não eram mais v;ílicbs. A sofística era a revolução da menralidade
subjetiva contra as antigas tradiçóes. I'vhs a vida precisava continuar. Era, todavia,
preCISO investigar o seI1tido da vida em LOdas as sllas dimensões, na política, no
direito, n;l arte, nas rela~:ões sociais, no conhecimento, na religião etc. Os fIlósofos
gregos procuraram realizar essa LneLl. 1":10 tlcuam senrados em sllas escriv;tninhas
escrevendo livros de f1!OSOfl~l. Se tivesse]]] ;lpenas tl!osobdo sobre filosofla já tería-
mos hâ tempo esquecido seus nomes. Em vez disso, tomar;un sobre si a rareb de
criar um Illundo espiri(Ua! observ;l11do objetivamellte a re:1!idade conforme lhes era
dada, interpretando-a em termos de r:1zão ;lnalitica e sintética.

1. Ceticismo

Esse V;lSto projeto dos filósofos gregos de criar UIll lllundo de signiflcados co-
meçou ;1 desmoron;H [10 ;lpag:n cLts luzes do mundo antigo e produziu o que chamo
de epílogo cético do desenvo!viIl1l,nto antigo. Originalmente, o termo s/;:epús queria
dizer "observar as COiS:1S". tVL1s :lSSUllliu um sentido negativo de examinar os dogmas,
;ué mesmo ;lS d()L~Tllflltt chs CSCOL1S greg:1S de fIlosofIa, paL1 rejeid-!os . .9.5. céticos,
assim, _(Jl!:~idaralll de rodas ~lS f'orJl1ubcoes das escolas de filosofia. Não que essas
escolas n8.o contivessem em seu ensino boa parte desses elementos céticos, como,
por exemplo, a aGldemia platôllicl. O cl'ticis~~2_~_llão<-:.~~~_~L~~Zl~'~I.~Ç,~L_~1~é,~._~
probabilismo e~_~~}_gc)~_que a.s O_ll.l:L~lS escob.s_.tS:l.r}}ar:V!.~ _ ::0t;._pra,g!I!;~~_ic.~~. Assim, essa
atmosfera cética invadiu todas as escobs e pcrmeou a vida toda no mundo antigo de
então. Trauva-se de assullto ViL11 e muito sério. Não se tratava novamente de se
sentar em lllesas de estudo Vlr;\ ckscoLnir que se podia duvidar de todas as coisas.
Essa rarcb seria comparativamente L-ici!. Na verdadc, csse movimcnto signiflcava o
desabamento de todas as convlcç~oes. A conseqüência dessa atitude - bastante carac-

26
A PREPARAÇÃO PARA O CRIS'['IANISlvIO

terística da ,mentalidade grega - foi uma espéCIe de .E~·:'l:.alisia da ação. Se não somos
mais capazes de pronunciar juízos teóricos, não podemos agir na pr;itica. Portanto,
introduziram a doutrina da cjJoché, "suspens:ío de juízo, reserva, não julgar nem
agir, não decidir nem teórica nem praticamente". A doutrina da cpoché significava a
resignação do juízo em todos os aspectos. Por isso os céticos retiraram-se para os
desertos vestidos de tlllla simples túnica ou manto. Os monges cristãos, mais tarde,
seguiram-nos nessa atitude, porque eles também se desesperaram sobre a possibili-
dade de se viver neste mundo. Alguns céticos da igreja primitiva eram sérios e
agiam de acordo, ao conrLÍrio ele certos céticos esnobes de nossos dias que não se
animam a arcar com as conseqüências de seu ceticismo, que levam vidas alegres e
conr'ordveis enquanto duvidam de todas as coiS:1s. Os céticos gregos retiraram-se da
vid:1 e assim mostraram-se consistentes.

O ceticismo foi, pois, llm ..~.~~~[2!ponantes elementos p~a a preparação do


cristianismo. As escolas,gregas, como os ep'icuristas, ()sestóicos, os acadêmic().~"os
p_;:~)~ltéticos-e os ;~~O'f;'i~;~g(;';';cos: não cra'lll esc;;'{:~~ ~1l0- ~~';l~ido em q~l~ temos l~oj~-'
escolas filosóficas, COI110 a escola de De\vc\' ou a de Whitehead. As escolas Filosóficas
-,- •••. _~--,,-,,_._._,.. - _.,,-_._"-,-~-_.• ,_.,-,.~• • ~"~.• ,-,--.".-~,, - <>-- -'-~"'-- _ ••

gregas eram também comunidades cúlticas; eram meio ri[Uais e meio filosóficas.
Seus memT;~~~~'~I~I'~~~-i-;~-Il~'''\~;7e7'de acor~lo com as dourrinas de seus mestr~s.- Quando
sl~'rgiu o ;llovim'ento cético, procllr;~v:lI11 ;~il~~a (t~ tudo a certeza; queriaI;;--;~~~'-para
P9.4~E._y.i.:~!:. Acreditavam que os grandes mestres, Platão ou Aristóteles, o estóico
Zen30 ou Epicuro, e mais urde Plotillo, não eram apenas pensadores ou professo-
res, mas homens inspirados. Jv1uiw :lllles do cristianismo existir, a idéia de inspira-
çJO j<l se desenvolvia nessas escolas gregas: seus fundadores eram inspirados. Quan-
do membros dess:ls escolas entrar;lm lll:li,,; urde em discuss50 com crist:íos, diziam,
por exemplo, que não eLl Moisés o inspirado, ]lUS lled.clito. Ess~!:...doutrina da
~Ilspiração também ajudou o cristi:ltlislllO ,1 elHLU no mUl~~I~~:~~!.:2-.~ pur~~_náo era
_capaz de construir a realidade na qual se pudesse viver.

O que se cliziJ. sobre os Fundadores dessJ.s escolas filosóficas erJ. semelhante ao


que os cristãos diziam a respeito elo Fundador de SllJ. igreja. É curioso notar que um
homem como Epicuro - de tal maneira :nacado pelos crist:í.os que só restam dcle
poucos fragmentos - era chal~1~1do suta pelos disc~plll(?~~:, Essa palavra era usada no
Novo Testamento para signifIcar "salvador". Assim, o filósofo Epicuro era conheci-
do como salvador. Por que Em geral, Epicuro é considerado um homem que sem-
pre viveu bem nos seus agracL-iveis j,udins e que ensinou uma filosofia hedonista
rejeitada pelos cristãos. l'v1as o mundo amigo nã.o tinha essa idéia sobre Epicuro.

27
CAl'íHJLO [

~ra Ch~lIllado de Juta porque flzera a coisa m:lis imr.0rtantc ,que alguém poderia
h;.~~:--}~~l~s seus seguidores: li~~e:.EE~,:'_a-os ,cL~__ i!_~lJi0~~ia. --E'p'i~~l-r~:"~~>Z;~u sistema
materialista de átomos, libcruv:l ;IS pessoas dos demônios prescnt:cs !la roralidade
da vida do Illundo antigo. Vê-se bem que :I fllosofia era assullto muiw sério nessa
época.

Outra conseqüência desse espírito cétlco era o que os estóicos chamaram de


fljJlltheia (;·~'p:l._~i_:~\_(lllC Sigll}fl~~;l~lllSêllCi;l de sentimelltos em relação às fon:':ds e im-
~J)ldsos da vida, como desejos, a!cgri:ls, dore_?J_.i!~t~--=-:i..'? além de tudo issg._.0:?_~~[~l.~Io da
sabedoria. Sabiam que somente algum:ls PCSSO;lS conseguiram alcançJ.r esse CSGldo.
Os céticos que se retiraranl p;ua os desertos demonstravam até certo ponto essa
capacidade. Por trás de tudo isso, llaturalmente, situava-se a crítica anterior aos
deuses mitológicos e ;lOS ritos tradicionais. A crítica da mitologia deu-se na Grécia
cerca d.a mesma época em que o Segundo Isaías Laia o lllesmo na Judéia. Essa
;uividade crítica minava a crença ]]OS deuses do politeísmo.

2. A tradição platônica

COllsideLllllOS alltcriormenrc o bdo negativo do pCllSamento grego na época


do luúro.l. !vIas lu.via tZlIl1bém elemcntos posilivos. Vamos examinar primeiramente
a tradição platônica. A idéia de tLlnscelldéncia, de que existe algo capaz de se sobre-
por ~ realidade empírica, foi desenvolvida pela tradição platônica e serviu de prepa-
ração ao advento da teologia crist:i. PLuão hlava a respeito de realidade essencial, de
"idéias" (Ol!SÍfl) COI110 vercbdeins essências das coisas. Ao mesmo tempo enconrra-
mos elll Platão, l' até lllesmo mais incisivamente no platonismo postcflor c no
. lleC1?"I.~~~Oll_i~I.~_l.?~ Corrc tcndência p;n;l a desvalorizac;5y da existência. O mundo ma.::
terial não possuía valor_._]"~;~Lem C;(ll~lJ?;ll~aç:io com o mundo essencial. Também para
Platão o objetivo intcrior (h cxist-l'nci;] humana era descrito - principalmente no
Filebo, m;lS praticamente em todos os demais escritos - como se tornar semelhante
a Deus tanto quanto possível. Deus é a esfera da realidade espiritual. O tclos intcrior
da existência humana realiza-se lU participação nessa esfera espiritual e divina, na
medida do possível. Essa mesma idéia da tradi~~Jo platônica reaparece especialmen-
te nos cscriros dos padres capadócios da igreja para descrever o alvo supremo da
existência IlllnLllu.

Surge uma terceira dOlltrill:l, além da idéia de trallsC(:lldênci~1 e do tclo.~ da


existência humana. 'Frata-se da queda da alma da eterna participaç50 no mundo
esscllci:ll ou espiritual, sua degraebç50 terrena num corpo físico, que procura se
A PI\EI'A1Zi\çAO PARA O CR1STIA'lISMO

.livrar da ~scravidão desse corpo, P:lI"d flllallllen.t.:.. se elevar acima do mundo materi-
al. _Q12.r-ºq::~_~9Y:t:i_:l,._~:~tgaxos~ C__P.O r etapas. Essa~j~~j~,,~~lp~lE~_~~~~~~_~~_~~,~I::,na ,igreja,
._. __ ~~o apeI~:::~.~.l:_~_?_:'_~l~_~sti~os crlsrJ.üs, I~a.':i também no ensino oficial dos pais da
Igreja.

A i_~I~~~~.~~~?_~:i~Jél1c~~l vem também da tradi~ã?,J)Jalôni~a-:.,~~E3::.I~??,~","::~_?_~~~~_l::.~~~


dos a pensar que essa idéia é crist5, ~las, n~~,.veni::~~~Ú~do><L~23l~l~5!~~
_~Pl?~~_::,os seus úl(il~:"~.~_,~~.~,~!:i~o:5_~ Tiniu o ambicioso propósito de acabar com a
angústia do destino c da mone prcscnre na épOCl. O sentimento de angústia em
bce do acidenw! e do necesdrio, OLl destino) (!UC é a mesma coisa, representados
pelas divindades gregas Tj1ché e llilinutJ7Jlcl/C, era muito forte no mundo antigo. Em
Romanos 8, onde encontramos o maior hino de triunfo do Novo Tescamenro, le-
mos que Cristo rem a funç5.o de subjugar as forças demônicas do destino. Ao ante-
cipar essa sitllaç5.o, por meio de sua doutrina d;l. providência, Pbtão fez enorme
contribuição à teologia. A providência, emanada do lnais alto dos deuses, (Li:_~~~
coragem para escapar das vic~i..s.~i~c,~!~~.i~tino.

-*.' O quinto elemento oriundo da tradiç5.o platô!,Ú~~"_:~~i{?_4_~_-6.~_i.?tQ~~.l':'_s..:......9-s!ivil~?


é forma sem matéria, perfeitQ"~~~'!lli...!L~~-:_É a idéia mais profunda de Aristóteles.
Deus, a forma mais J?~Treita, _movimenta o mundo, n5.o Gl.~tl_Zllm_~.!2S~_ en~p~lrr;ln<:lq_-
._..o de fO~:__ .~!_15:~ __ ~:,~raindo todas ~lS co isas fini tz:t.~_J?~l~~~_si _I~_~~S1.~~'?}_J2?~_1"~~_iº__<;'-?.,_~~1_~~~·._
Apesar de sua atitude aparentemente científica sobre a realidade, Aristóteles desen-
volveu um dos mais importantes sistcmas de amor. Entendia que Deus, a forma
suprema, ou ato puro (actlH j)/frus) , como o Ch~ll11:lVa, move toJ::ts as coisas ao ser
amado por rodas as coisas. A realiebdc roda deseja se unir à forma suprema, para se
livrar das formas inferiores em que vive, na escravidao da matéria. Mais tarde, o
Deus aristotélico, fOrllu suprema, e11[r0\1 na teologia crist:l e exerceu tremenda
inf-1uência sobre ela.

3. Estoicismo
"
Os estóicos foram n1alS llllporrantcs do que Pbt:í:o e Aristóteles juntos para a
vida c o destino do mud9'/;ultigo. As vidas das pessoas educadas nessa época eram
moldadas principalmentc pela rradis<io cstóic~l. Em meu livro A Coragem de Ser,
tratei da idéia estóica de coragem Clpaz de levar as pessoas a aceitar o destino c a
morte. Demon.':;trei que o cristianismo e o estoicismo slo os grandes competidores
no mundo ocidenral. l\/bs quero demonstrar, Jgora, algo diferente. O cristianismo
tomou de seu rival muitas idéias fundamenuis. A prirTleira é a doutrina do Lagos,
doutrina que pode desesperar muita gente quando começa a estudar a história do
29
CAPÍTUlO I

pensamento trlllltúno e cristológico. MJ.s o desenvolvimento dognLítico do cristia-


nismo não pode ser entendido sem ela.

Lagos significa "palavra". i\1as também se refere ao sentido da palavra, à estru-


tura racional indicada por eLt. POndntll, Lagos também pode significar a lei univer-
sal da realidade. HerjcIiw pensava assim. E foi ele o primeiro a empregar esse
[ermo filosoficamente. Para ele, Logos era a lei determinante dos movimelltos da
realidade.

Para os estóicos Lagos CLl o poder divino presente na realidade toda. Observe-
mos, a seguir, três aspecws desse pensamento, muim importantes nos desenvolvi-
mentos doutrin:írios pos[criore.s.--º-EriIllcir9._~_~)eida rL1tl.!..!:.~~~,~J;:g_gos é o prir~.çiP.io
__ ~1~~.~~:Il~~~~~1te do movimentO s-lt::_~g~Jº=:s__~l:~ __c:ojS3:.12..:....É a semente divina, o poder divino
criador, que faz COIll que as cois:ls sejam o que SJo. E é o poder çXi~,ÜY_~_S.tQ movimen-
to de todas as coisas. Em ~~~,I_~_~~!g:_ll:,!~g~.s.S)g!l.inCl, lei moral. Podemos chamá-
la, com Kant, de "razão pdtict, a lei illatZi em [Dcios os seres humanos que se
aceltZim como personalidade, com a dignidade e a grandeza do ser humano. Ao
lermos a expressão "lei narur:l!" em obras cLíssicas, não devemos confundi-la COIIl

lei físicas, mas entendê-h como lei morai. Por exemplo, quando se fala de "direitos
humanos" na constiruição americana, estj se blando de lei natural. EI~~ terceiJ:.2.,
.tugar, Logos também sigJ.2it~':~l.~~",c~p~~,i,ªade humana de reconhecer a realidade. É o
que se pode chamar de ,"1":11.50 teórica". Trata-se da capacidade hununa da razão.
Tendo o Lagos em si, o homem pode descobri-lo também na natureza c na história.
Para o estoicismo, decorre daí :1 idéia de qlLe os seres humanos quando determina-
dos pela lei natural, pelo Lagos, [OrJl:llll-se logil:os, dbios. }..1as os estóicos não eram
otimistas. Não acreditZivam que todas as peSSO:1S fossem d.bias. Achavam, até mes-
_ mo, que poucas pess0i.~~~~,?:l:S~~Y·~:ll1t~lL~~~elência. A maioriZi não passava de néscios
que, às ve~~~.,JLC:_~l~r~l!}l,[,l;l posiSª()Jl!tcrmec!dria entre esses e os sábios. () estoicismo
professava um pessimismo fundamental a respeito da maioria dos seres humanos.

Originalmente, os estóicos eLIIIl gregos. ;\'1ais tarde foram também romanos.


Entre os mais famosos estóicos COnL1I1l-Se importantes imperadores ro m:lIl os, como,
por exemplo, Marco Aurélio. Aplic;Lv;llTl o conceiro de Lagos à situação política sob
sua responsabilidade. A lei natllLd significava que todos os seres humanos partici-
pam na razão em virrllde desse simples raro de serem humanos. A partir desse
princípio criaram leis gLlI1c!ementc superiores às muitas que encontramos na Idade
.c\-1édi:l cristã. Concederam cidac!:lIlia universal a qualquer pessoa que o quisesse
porque eram participantes em potência 11:1 rZizão. Naturalmente, não acreditavam

50
A PREPARAÇÃO PARA. O CRlSTLANIS,\'1C)

que todo o mundo usasse adequadamente a raz5.o, nus entendiam que por meio da
educação rodos poderiam ud-la um dia. A concessão de cidadania romana a todos
os cidadãos das nações conquistadas representou trcmendo avanço nivelador. As
mulheres, os escravos e as crians:as, considerados interiores sob a antiga lei romana,
tonuvam-se iguais perallte as leis dos imperadores romanos. Não foram os cristãos
que inventaram essas coisas, mas os estóicos, por ;1creditarem na idéia de que todos
participam do Logos univcrsal. (Naturalmcnte, o cristianismo mantém a mesma
idéia em base diferente: todos os seres humanos são filhos de Deus Pai). Dessa
maneira, os estóicos concebcram a idéia de um cstado todo abrangedor, envolvendo
o mundo intciro, baseado na racionalidade comulll de todas as pessoas. O cristia-
_."----
n iSIll.<2 pod:Ei2.~,cr ._~"~!?E:9..?_~~sa idé ia desen vo Ive n ~.?_~.0_.~!L~.erenç~.~._(1 ue ?~._es~ói.~_
não tinham o conccito de pecado. ralavam em inscnsatez, mas não em pecado.
Assi::!.~"?_...:~~r~'l~~,?s.i-~~I~~~~~~,~v_:\_'por,meio
da- sabedoria..~~·~~~~~ti'~!SIllO·, a salvação-
!lOS é concedida pela ,graça divina. SJ.o duas atiru~1es conflitantes até hoje.

4. Ecletismo
.-- A igreja cristã absorvcu também o ecletismo. ,0 termo vem do grego e quer
\1~ dizer escolher alguma:. possibilidades entrc muitas. Os americanos não deveriam
estranhar essa atitude porque se assemclll:11l1 aos Jlltlgos romanos não só nessa pos-
tura como em muitas outras. Os ecléticos nio er;l.ll1 filósofos criativos como os
antigos filósofos gregos. Esses pensadores rOllunos combinavam, em geral, a políti-
Cl com preocupações sobre o Estado. Enquanto ecléticos não criaram novos siste-
mas. Em vez disso, escolheram (Cícero, por exemplo) os conceitos mais importan-
tes dos sistcmas cb.ssicos gregos que lhes pareciam pr:lgmaricarnente úteis para os
cidadãos romanos. Dessc ponto de vista, escolheram o que poderia produzir o me-
lhor modo de vida possível para os ciebd5.os romanos, enquanto cidadãos do mun-
do. Estas são as principais idéias selccionadas por eles, retomadas pelo iluminismo
do século dezoito: providência, porque dava segurança J vida do povo; Deus, por
scr inata em todos, induzindo ao temor dc Deus c à disciplina; liberdade moral e
responsabilidade, possibilitando a educaçao do povo e tornando o povo resistente
diante das falhas morais; c, finalmcnte, imortalidade, capaz de ameaçar com a pu-
nição num outro mundo os que CSClp;lVJlll do castigo aqui na terra. Essas idéias
rodas também preparam de cert;l forma o mundo antigo par;} o cristianismo.

51
CilPÍTULO I

D. Período intertestamentário

Chegamos ao período helênico ela religião juebica. Diversas idéias c atitudes


surgiram no judaísmo do período inrcrtestamendrio que influenciarZl111 profunda-
mente a era apostólica, isto é, Jesus, os apóstolos c os escritores do Novo Test~lmcn­
to.

Nessa época, ;1 idéia de Deus desandou para a transcendência radical. Deus se


(Qrn;~~ada :~;, lluis transc~~~de·;{t;~r-~~p;~·~i:~omesmo, mais universal. J'v'Ías qualquer
deus que se torne absolut:lmcnrc transcendental e absolutamente universJ.l tem de
perder inLJmcros traços concretos que os deuses das nações possuem. Por essa razão,
começaram a ser usados nomes capazes de preservar certa medida cle concrcritude
(LI divindade, como "céu" Por exemplo, encontramos freqüentemente no Novo
Testamento termos como "reino dos céus" em lugar de "reino de Deus" Ao mesmo
tempo, essa tendência abstrata .sofri:1 dua.s influências: proibiç:ío ao uso do nome de
Deus e a luta contra o.~"atltropomorfi.slllos, iS[Q é, a visão de Deus na irna~.!..~!
_J!!!..q.!1!!,e) do homem (flntJ,rojJos). Em cOllseqÜênci;l, desaparecem ;l$ paixões do Deus
do Antigo Tesr:unenro e a llniebdc abstLU:l é ressalrJeb.. Os filósofos gregos, que
lLlviam desenvolvido a mesma abstraç50 radical a respeito de Deus, e os universalistas
juduls uniam-se nessa idéia de Deus. Essa tarefa unificadora foi realizada parricu-
brmente por rilon de Alexandria.

Quando Deus fica abstrato, contudo, n8.o basta a hipostatização de algumas de


suas qualidades, como céu, :1ItUL1, glôri;l etc. ComeS:;lm a aparecer seres mediadores
entre Deus e os homens. No período interrcstamendrio, csses seres mcdiadores
tornaram-se cada vez mais iJllportamcs P;lLl a piedade pessoal. Em primciro lug;u,
vier,-lm os ;lIljos, deuses c deusas dClCrioL1dos do p;lg:lnismo de emJo. Na é:poca em
que os profetas lutavam COI1[l":l o pulitl"Ísmo, os ;llljos não eram nccess:írios. (~uando
o perigo do politeísmo não mais existia, como no judaísmo posterior, os anjos podi-
am reap;ncccr sem qualquer ;lI11caç:l. Mesmo assim, no entamo, o Novo Testalllcmo
(cm consciência do problema e ;lcherre contra o culto aos anJos.

A scgunda figura impOrLllltl' CLl o JVlessias. O i\1essias tornara-se Ulll ser


transcende nu\, o rei do paraíso. t'-.'o livro de Daniel, dependentc da religiáo persa,
o :v1cssias é também chamado de 'Tilho do Homem" destinado a julgar o mundo.
Nessc livro, o [ermo retere-se ;1 ISLlel, nus mais urde veio a representar a fIgun do
"homem vindo de cima", segundo Cl 1,15.
A 1'1(El'ARAC,:ÃO I'A\(A O CRI:iTIANIS,vIO

Os nomes de Deus aumentam e se tornam quase pessoas vivas. A mais impor-


tante dessas personificações é a Sabedoria de Deus, já presente no Antigo Testa-
mento. fj. Sabedoria criara o mundo, aparecera nele, e retornara ao céu por não ter
t;!l~Q..!}t_~~do onde habitar entre os homens. O prólogo do quarto Evangelho desen-
volve idéia semelhante.

o J/lelcir}{{/J representava outrO desses poderes elltre Deus c os seres humanos,


significando a habitação de Deus na tcrra~ Lembremo-nos de memm, a Palavra de
Deus, que se (Ornou decisiva !lO qUZlrro Evangelho. Havia ainda o "Espírito de
Deus", significando Deus em ação no Antigo Testamento. Esse "Espírito de Deus"
veio a ser uma figura parcialmente independente entre Deus altíssimo e os seres
humanos. A importància do Lagos aumentava por reunir a mernra judaica com o
lagos fllosótlco dos gregos. Em Filon, esse Lagos é o protogenês flUías theoll, o filho de
Deus unigêniro. Esses seres mediadores entre o Deus altíssimo e os seres humanos
subsriruíam até certo ponto o cJLírer imcc1iaw das relações com Deus. Como no
cristianismo, principalmente no catolicismo romano, a idéia de um Deus absoluta-
mente transcendente tornava-se aceiLÍvc1 ;\ mentalidade popular graças à introdu-
ção dos santos llJ piedJde popular pr:iticJ. A doutrina oficial sempre se manteve
lllonoteístJ; JOS santos se daria apenas veneração, jamais adoração.

Entre Deus e os seres humanos surge um outro mundo de seres poderosos, os


demônios. Havia anjos bons e maus. Os anjos maus não eram apenas agentes de
tentação e castigo sob a direção de Deus, mas Gllllbém um domínio de poder em
oposição a Deus. /\ conversa de Jesus com os farisells sobre o poder divino e o poder
demônico em relação ao exorcismo de demônios deixa entrever claramente essa
idéia. A crença nos demônios perlllcava a vida cotidiana daquele tempo c era objeto
da mais alca especulação. Embora se possa perceber certo dualismo nessas idéias,
jamais chegou à condição de dualismo ontológico. Não se caiu nesse dualismo
ontológico, mesmo com a introduç3.o de idéias procedentes da Pérsia, por meio do
judaísmo, incluindo-se a demonologia da religião persa, ,na qual os demônios têm o
mesmo status dos deuses. Todos os poderes diabólicos derivam seu poder de Deus,
não se lnanrêm por si mesmos. É o que se vê na mitologia dos anjos caídos. Os anjos
Illaus foram criados bons, IllJS depois da queda tornaram-se maLLS e por isso são
respondvels e sUjeitos ao casngo. Não foram criados por algum ser alltidivino.
Estamos, pois, diante do primeiro dogma antlpagão.

33
CAPÍTULO I

Outra influência deste período na tcologia do Novo Testamento é a elevação do


futuro à condição de tteoll vindouro. No período apocalíptico posterior da história
judaica, a história mundial se dividia em duas épocas: esta na qual estamos vivendo
(l1io1'1 houtos) e a esperada era vindoura (aion mellon). A presente época Cfa conside-
rada muiw pessimisticamcnte, enqu31ltü se esperava a era vindoura com êxtase. A
era vindoura não se identificava apenas com cenas idéias políticas; ultrapassava as
esperanças políticas dos macabeus na época em que defendiam o povo judeu contra
a tirania. Nem se limitava a repetir a mensagem profética. A mensagem profética
era muito mais histórica e intramulldana. As idéias apocalípticas eram cosmológicas;
o cosmos todo participava nesses dois ({fOl/S. A época atual era controlada por forças
demônicas; o mundo e até mesmo a natureza envelheciam e passavam. Em pane,
porque os seres humanos haviam se submetido às forças demônicas e desobedece-
ram a lei. A queda de Adão produzira o destino universal da mone. Essa idéia havia
se desenvolvido da pequena história da qucda em Gênesis e se transformara num
sistema como em Paulo. A queda era confirmada por todos os indivíduos por meio
de seu pecado pessoal. O nosso tempo estava marcado por destino trágico, não
obstante a responsabilidade dos indivíduos por ele.

Nesse período intenesramendrio a piedade da lei torna-se muito mais impor-


talHe do que a piedade do culto, substituindo-a em parte. Naturalmente, o remplo
ainda continua a existir, mas a sinagoga se descnvolve ao seu lado numa espécie de
escola religiosa. Ela passa a ser a forma determinante do desenvolvimento da vida
rc1igiosa. Não se considerava a lei negativamente como estamos acosturnaclos a fazer
hoje em dia; para os judeus ela era uma cLí.diva e uma alegria. A lei era eterna,
presente constantemente em Deus e pré-existente da mesma forma como, na teolo-
gia cristã, Jesus seria pré-existente. Os conteúdos da lei tinham a ver com a organi-
zação teltal da vida, relacionando-se até mesmo com minlicias. Todos os lllornerHos
da vida submetiam-se a Deus. Era essa a idéia profunda do legalismo dos fariseus
que Jesus atacou com tanto vigor. É que esse legalismo acabava se transformando
em insuportável fardo. Há sempre duas possibilidades na vida religiosa quando ela
impinge sobre o pensamenro c a aç:1o fardos into1cráveis. A primeira é um
"ajei(amenro", seguido pela maioria. Procura reduzir o peso do fardo de modo a
ficar mais leve. A segunda é o caminho do desespero, seguido por gente como
Paulo, Agostinho e Lutero.

Lemos no quarto livro de Estiras: "Nós que recebemos a lei nos perderemos por
causa de nossos pecados, mas a lei jamais se perderá". Esse versículo expressa a

34
A PREPARAÇÃO PARA O Cm5TLANI5MO

mesma atitude presente nos escritos de Paulo e dominante no judaísmo do período


entre os Testamentos. Muitas dessas idéias marcaram o Novo Testamento.

E. Religiões de mistério
As religiões de mistério também influenciaram a teologia cristã primitiva. Tais
religiões não devem ser equacionadas com o misticismo. EnC?_lltra-se misticismo
._em Filan, por exemplo, em Slla dourrina do êxtase, ou ek-stasis, significando "ficar
for<~~~ si". Trata-se da mais alta forma de piedade além da fé. O misticismo reúne
o êxtase profético com o "entusiasmo", palavra que vem de en-theosmania, signifi-
cando possuir o divino. Surgem daí os sistemas místicos mais sofisticados dos
neoplatônicos como, por exemplo, Dionísio Arcopagica. Nesses sistemas místicos o
êxcase do indivíduo leva-o à união com o único c absoluto Deus.

Além do desenvolvimento do misticismo temos o surgimento ainda mais im-


portante d.os deuses concretos relacionados com as religiões de mistério. São
monoteístas, até cerro ponto. Cada pessoa iniciada num dado mistério recebe um
deus especial que é, ao mesmo tempo, o único deus. Coisa que não lhe impedia de
ser iniciada em mais de um mistério. As figuras desses deuses eram, portanto,
muráveis. Não havia nada semelhante ao Javé do Antigo Testamento.

5?_.~.deuse~s_~~.s .~~}it;~~~_~_ de mistério influenciaram bas~~l11te o culto e a teologia


cristã. Ao ser iniciada num determinado mistério, como mais tarde eram os cristãos
----
i_I~.i~j_~.':!.~~__ ~1~s cong~~.,g~5,~es por est;ígios, a pessoa passava a participar no deus mis-
tério e em suas experiências. Em Romanos G, Paulo descreve essas experiências em
relação a Jesus em termos de participação na sua morte e ressurreição. A experiência
do êxtase místico se produz nas atividades do mistério . ..9~partic_~pa~~_~~_~}_~,,:~do~
ao estado de profunda tristeza pela morte do deus, e d~pois de um certo tempo
-passam pela ~;pcri_~ncia e~!A~!c;d~~ deus ressurreto: Os mistérios descrevem o sofri~-"·
menta de Deus. Desde Apolo délf-lco tcmos a idéia da participação de Deus nos
sofrimentos humanos. Apolo, eIll Delfos, tinha quc pagar pela culpa de ter destruído
os poderes do submundo, que tinham seus próprios direitos. Empregavam-se mé-
todos de intoxicação por meios psicológicos: mudança de luz para escuro, jejum
ngoroso, incenso, sons, mÚSIca etc.

Os mistérios eram também esotéricos. Só eram iniciados os que se submetiam

35
CAPÍTULO I

a rigoroso processo de seleção em preparo. Protegia-se, assim, o mistério das ceri-


mônias contra qualquer profanação. As congregações cristãs fizeram mais rarde o
mesmo para se proteger contra a inflhração de perseguidores pagãos.

f F. Metodologia do Novo Testamento

Estamos discutindo elementos que tiveram importâllciJ~o preparo do


surgimento do cristianisl1lü~, .IV1aS
-
o- cvelHO E!~.para[ório decisivo foi o\quc pcrmane-
."~-_ . . ,.,- .- \

__~ __~I<2~.umentado no Novo TCSl<lmCf1[(), Não podemos oferecer aqui \ü'i'r tcologia do
Novo Tesramenw, mas podemos mostrar, por meio de alguns exemplos, como o
Novo Testamento recebeu das religiões ao redor certas categorias de inrcrpreração e
as transformou à luz da realidade de Jesus, o Crismo Temos, então, dois momentos:
recepção e transformação. A~ categoria~ desenvolvidas nas várias religiõcs, no Anti-
go '!cstamento, e no pcríodo illtencstamendrio, foram utilizadas para interpretar o
evento da vinda de Jesus, mas os signifIcados dessas categorias foram transformados
quando aplicados a ele.

No que concernc à crisrologia, por exemplo, Messias erd antigo símbolo profé-
tico. Esse símbolo foi aplicado a Jesus pelos primeiros discípulos, provavelmente
desde os primeiros encontros com ele. Tratava-se de enonne paradoxo. Por um lado,
era adequado porque Jesus traziJ o novo ser, mas por outro lado, não era, porque
muitas das conotações do termo "i\J1cssias" iam além do surgimento histórico de
Jesus. Segundo os rclaros que temos, o próprio Jesus sentia a duplicidade dessa
interpretação. Portanto, proibiu os discípulos de usarem o termo. Pode ser que essa
proibição tenha aparecido apenas nos documentos posteriores, mas, seja como for,
reflete a ambigüidade existente.

o mesmo acontece com o COllCeI(O "!'"ilho do l--lomem". Por um lado, talvez o


próprio Jesus o tenha usado, porque indica o poder divino presente nele para fazer
vir a nova era. Por outro lado, o conceito 1150 era adequado, porque o Filho do
Homem dcveria vir em poder e grande glória.

Usava-se cambém o tcrmo "hlho de Davi". Enquanto realizador das antigas


profecias, adequava-se a Jesus. lVLtS Davi era rei e o conceito de "Filho de Davi"
podia indicar um rei ali líder político. Jesus resistiu a esse mal-entendido quando
disse que o próprio Davi considera o Messias seu senhor.

36
li PREPARAÇAO PARA O CRISTIANISMO

"Filho de Deus", enquanto expressa0 do relacionamenw de Jesus com Deus,


era um termo adequado. j\1as não completamente, pois era também um conceito
pagão muito conhecido. Os deuses pagãos procriavam muitos filhos na terra. Por
_ causa disso, dizia-se que Je.s.~ls era o "unigênito Filho de Deus", acrescentando-se a
expressão "eterno".~Os judeus não gostavam desse termo por causa das cOllmações
pagãs que carregava. PocliJlll entender Israel como "Filho de Deus", mas não podi-
am aplid.-io a um indivíduo.

o título "kyrios" significa senhor. Enquanto usado segundo o Antigo Testa-


mento, para significar poder divino, n:J.o havia problema.M3S era duvidoso por ser

muito utilizado pelos cultos de mistério. Aí rodos os deuses são Iqrioi, senhores.
Além disso, Jesus sempre Foi descrito como um ser finito e concre(Q. Por outro lado,
os deuses das religiões de mistério cram objetos dc união mística, como Jesus. Para
Pendo espeClalmentc, (lll<llquel peSSO,-l pode estai em Cristo (en Chrútó), isto é, no
_ poder,_ll? santidade e no temor de sel,l__ .~ex~

Finalmente, o cot1ceiro':I~9gos" era adequado enquanto expressão da auto-ma-


nifestação de Deus em todas as formas da realidad~,,!~·~~1_1~.?,_,~~<l_fl.I?~5?f!_~$~~Fa como
no simb~Jis.~o judaico é o princípio cósmico da criaç~?: Mas ao ser entendido
como princípio universal n:1O podia scr aplicado a Jesus que era uma realidade
concreta (e particular). Jesus é uma vida pessoal concreta descrita por esse termo.
Essa ambigüidade J.parece no maior paradoxo do cristianismo: o Lagos se fez carne.
Temos aí um exemplo perFcito de como o sentido de um termo, com todas as
conotações trazidas do passado, pode ser transFormado para expressar a mensagem
cristã. A idéia de que o Lagos sc fez carne jamais poderia ter vindo do pensamento
grego. Portanto, os pais da igreja insistiram sempre que, enquanto os filósofos gre-
gos possuíam a iJéi::l do Lagos universal, o que veio a ser peculiarmente cristão foi
que o Lagos se fez carne numa vida pessoaL

A grandeza do Novo Tesramenro consiste cm tcr sido capaz de usar palavras,


conceitos e símbolos surgidos na história das religiões, preservando ao mesmo tem-
po a pessoa de Jesus interpretada por essas categorias. O poder espiritual do Novo
Testamento era tamanho que pôde muito bem incorporar esses conceitos no cristi-
anismo, com todas as conotações judaicas e pagãs trazidas em seu bojo, sem perder
a realidade básica, isro é, o evento Jesus, o Cristo, que esses conceitos agora inter-
pretavam.

37
CAPÍTULO II
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA

A. Pais apost61icos

Vamos examinar agora os _P_~.~__apos(ólicos, primeiros escritores pós-bíblicos


conhecidos, alguns dos quais escreveram até mesmo antes dos últimos livros do
Novo Testamento. Inácio de Antioquia, Clemente de Rome, "O pastor" de Hermas,
e outros, mostraram-se muito mais na linha de certo conformismo cristão desenvol-
• __ .,." '_0._ '. '_
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vida aos poucos do que da posição de vanguarda manifestada por Paulo em suas
cart~§-:. A influência de Paulo, nessa época, era sentida mais indiretamente por meio
de João e de Inácio. A razão disto, pelo menos em pane, é que a controvérsia com os
judeus já era coisa do passado; o conflito do apóstolo com os cristãos judeus não
tinha mais sentido. Em lugar disso, os elementos positivos da fé capazes de oferecer
conteúdos compreensíveis aos pagãos precisavam ser discutidos. Poder-se-ia dizer,
em geraL que no período dos pais apostólicos já haviam desaparecido as grandes
visões do primeiro movimento extático, ficando em seu lugar um conjunto de idéi-
as produtoras de certo conformismo eclesiástico, possibilitando o trabalho missio-
nário. Muita gente reclama disso. Deploram que tão cedo, já nessa segunda geração
de cristãos, o poder do Espírito Santo se fora. É o que inevitavelmente acontece nos
períodos mais criativos. Vejam o que aconteceu na época da Reforma: logo depois
de sua explosão e da segunda geração que a recebeu, começou uma fase de fixação
ou de concentração em algumas idéias particulares. São necessidades educacionais
que entram em cena para preservar o que foi dado antes.

Contudo, essa época da história do pensamento cristão é extremamente impor-


tante, mesmo tendo perdido consideravelmente o poder espiritual tão vivo nos dias
dos apóstolos. É importante porque preservou o que era necessário para a vida das
congregações. A primeira pergunta formulada era esta: onde se encontra a expressão
do espírito comum da congregação~ Originalmente, os verdadeiros mediadores da
mensagem eram oS-l29xraclores do Esp.ír.it9' os "pneumático(, os que possuíam o

38
DESENVOLVIMENTO TEOU)GICO NA IGREJA ANTIGA

pneuma. Sabemos, porém, segundo a primeira carta de Paulo ao Coríntios, capítulo


12 em especial, que ele já encontrara dificuldades com os portadores do Espírito
porque produziam desordem. Assim, acentuou a necessidade da ordem ao lado do
Espírito. Nas cartas pastorais, atribuídas a Paulo, a ênfase na ordem eclesiástica
torna-se cada vez mais imponante. Na época dos pais apostólicos, as experiências
espirituais de êxtase tinham quase desaparecido. Eram consideradas perigosas. E
por que, perguntavam, precisamos delas? Todas as coisas que o Espírito desejara
dizer já haviam sido classicamente exprimidas por meio das Escrituras e da tradi-
ção. Portanto, em vez dos profetas que viajavam de lugar para lugar, com os apósto-
los, nós agora temos normas e autoridades bem definidas, surgidas das congrega-
ções. Quais eram essas normas e autoridades?

A primeira e básica autoridade era o Antigo Testamento. Vinha em seguida a


mais antiga coleção de escriws que mais tarde se incorporou no Novo Testamento.
Os limites do Novo Testanlento ainda não tinham sido estabelecidos._Ajgreja levou
__ JPa~s de duzentos anos para decidi~_:~.~brc osJivr().s_gl.le entrariam no cânon do Novo
Testamento.

Ao lado desses escritos já havia um complexo de doutrinas éticas e dogmáticas


consideradas tradicionais. Na primeira carta de Clemente elas se chamam "o cânon
de nossa tradição". Essa tradição tinha divetsos nomes, como verdade, evangelho,
doutrina e mandamento. Não era possível esperar que os novos membros da igreja
entendessem de tudo isso. Era preciso simplificar essa tradição para os que iam
sendo batizados. Criou-se, então, um credo para ser confessado pelos novos mem-
bros da igreja. Assemelhava-se bastante com o que hoje conhecemos pelo nome de
"Credo Apostólico", porque girava em torno da crisrologia. A crisrologia passava a
ser central porque discinguia as comunidades cristãs tanto do judaísmo como do
pagalllsmo.

__º-ºªtLs_IIW era o sacramento da iniciação na igreja. Os batizados, que na época,


naturalmente, tinham sido adultos pagãos, confessavam a decisão de aceitar as im-
plicações desse batismo. Eram, então, batizados em nome de Cristo. Mais tarde
foram acrescentados os nomes de Deus Pai e do Espírito Santo. Como não havia
ainda explicações paralelas, estava-se no domínio da fé e da liturgia e não da teolo-
gia.

Tudo isso estava acontecendo na igreja. _Eraa ekkfesia, a assembléia de Deus ou


de Cristo. _0 sentido original do termo ekklesitl era "chamado de". As pessoas eram
5han~~4~~_~C!~__0.~8:.~_ casas e naç.?_es para formar a igreja universal; do meio dos bárba-

39
CAPíTULO 11

ros, dentre os gregos e judeus, para ser o povo de Deus. É verdade que os judeus
anteciparam a igreja e se constituíram eles mesmos numa espécie de ekldes1rt, l\1as
não constituíam o verdadeiro povo de Deus porque o verdadeiro povo de Deus
tinha que ser universalmente chamado de rodas as nações. Sendo esse o caso, era
necessário distinguir os chamados qllC se conformavam com o credo eclesiástico,
dos de fora c dos hereges de de!Hro. De que mancira~ De que modo se poderiam
determinar as verdadeiras doucrinas da igreja em contraste com ensinamentos oriun-
dos dos bárbaros, dos gregos ou dos judeus? A resposta é que esse julgamento só
poderia ser fcito pelo bispo que Cfa o "supervisor" da congregaçáo. O bispo repre-
sentava o Espíri(O supostamente prcsentc no intcrior da vida da congregação. O
bispo foi se tornando cada vez mais importante nas lutas dos cristãos contra os
pagãos, os judcus, os bárbaros e os hereges. Inácio escreveu na carta aos esrnirnianos:
"Onde est;í o bispo aí deveria estar a congregação".~,~._profetas que aparecessem
~deri_~1!2._~~_~a_r.~~!.:.t_C?:(~ll errados, mas o bispo senlpre estaria certo. Ele representava
a doutrina verdadeira. Originalmente, os bispos não se distinguiam dos presbíteros
ou anciãos. Gradualmentc, contudo, ele se tornou uma espécie de monarca entrc os
anciãos, fazendo nascer o episcopado monárquico. Tratava-se de um desenvolvi-
mento natural. Pois se a autoridade que garante a verdade pode se concretizar em
seres humanos, é quase inevitável a tendência para reduzi-la a um único indivíduo
capaz de fazer decisões em ú\tinlJ. insdncia. Já encontramos em Clemente de Roma
o'aços da idéia de sucessão apostólica, isro é, que os bispos representam os apósto-
los. Vê-se claramente quão cedo o problema da autoridade se tornou decisivo na
igreja, dando início à tendência que acabou plenamente desenvolvida na Igreja
Romana.

Vamos examinar, a seguir, algumas das principais doutrinas discutidas nessa


época. Em face do mundo pagão, no qual viviam os cristãos, importava ressaltar
acima de tudo a idéia monoteísta de Deus. Lê-se no Pastor de Hermas: "Em pri-
meiro lugar, crê que Deus é uno, e que fez todas as coisas, a partir do nada". Ternos
aí expressa a doutrina da criação ex nihilo. Embora não se encontre essa doutrina
explicitamente no Antigo lestamcnto, pode-se dizer que está implícita, e que, por
certo, já fora expressa antes do cristianismo pelos teólogos judaicos no período
intertestamentário. Essa doutrina teve importância decisiva na separação da igreja
primitiva do paganismo.

Estava nessa mesma linha a ênfase no Deus todo poderoso, o dejpoté.~, como era
chamado, o Senhor poderoso que tudo governa. Clemente exclama: "6 grande
demiurgo!", falando dele como o grande construtor do universo e Senhor de todas

40
DFSFNVOLVIMENTO TI:OL(lC;ICO NA IGRFJA ANTIC;A

as coisas. Esses conceitos que nos parecem tão naturais hoje em dia eram importan-
tes porque serviam de proteção coIHra o paganismo. A_º-º.!!_~.Li!1'::1_c:la~Fi~çáu a partir
. do r~~.9"~~.,._~_i;;,~i"~~~~~~"~E~~_ º~~1~_,,I1.~? encontrara a m~t~_l:ia_j_á pré-exi_~t_~~~~~.quando
começou a criar. Não podia haver matéria que resistisse à forma, como no
neoplatonismo pagão, que deva, porranto, ser transcendida. Em lugar disso, o mundo
material é objeto da criação de Deus: é um mundo bom e não deve ser menospre-
zado para enaltecer a salvação. _A palavra "demiurgo" era usada por Platão e pelos
gnÓ~I~~~,_p...:1}",a d~_s!_g_I~_ar um ser inf~~'i_C?L,~_"~ºeus altíssimo. O Deus altíssimo paira
acima de coisas tão humildes como a criação do mundo, deixando essa tarefa para o
demiurgo. Queria-se dizer que a realidade divina não estava presente no a(Q da
criação. Conrr;:uiando essa noção, Clemente afirmava que o grande demiurgo era o
próprio Deus. Não poderia haver dicotomia entre Deus altíssimo c o criador do
mundo. A criação tinha que ser um ato absoluto a partir do nada. Proclamava-se,
assim, o poder insupedvel de Deus. Mas a afirmação de que Deus era rodo-podero-
so não queria dizer que ele se sentava num trono e podia fazer qualquer coisa que
lhe viesse na cabeça como qualquer tirano arbitrário. Mas que Deus era a única base
das coisas criadas, e que n50 existe matéria alguma capaz de lhe oferecer resistência.
É o que quer dizer o primeiro artigo do Credo Apostólico: "Creio em Deus Pai Todo
Poderoso, criador do céu c da terra". Deveríamos pronunciar essas palavras com
grande reverência, porque, por meio dessa confissão, o cristianismo se separou da
interpretação dualista da realidade presente no paganismo. Não há dois princípios
eternos, o princípio mau da matéria tão eterno corno o bom princípio da forma. O
primeiro artigo do Credo é a grande muralha que o cristianismo ergueu contra o
paganismo. Sem essa separação a crisrologia teria inevitavelmente se dereriorado
num ripo de gnosticismo no qual o Cristo não seria mais do que um dos poderes
cósmicos entre outros, embora, ralvez, o maior dcles. Somente à luz do primeiro
anigo do Credo é que o segundo tem sentido. Ele não reduz Deus à segunda pessoa
da Trindade.

Governando todas as coisas, Deus tem um plano de salvação. Inácio em parti-


cular desenvolve essa idéia. Em SU:l carta aos efésios fala da "economia para o novo
homem". Trara-se de um sumário maravilhoso da mensagem crisrã. Economia sig-
nifica, neste contexto, "construção de uma casa". A palavra é usada para a estrutura
das relações entre Deus e o mundo. Há uma economia do pensamento trinitário:
Pai, filho e Espírito Santo. Somente os três juntos são Deus. Há uma economia da
salvação, que é a edificação dos diferentes períodos que fll1almente levam ao novo
homem. A idéia do homem novo, da nova criatura ou do novo ser, corno alvo da

41
CAPÍTULO II

história da salvação, é importante contribuição desse~ tc?I__?3..?~ Essa economia da


salvação já estava presente na época elo Antigo Testamento. Assim, diz Inácio: "O
judaísmo creu na direç~ão do cristi;lIlismo". O Cristo, o novo homem, é a realização
perfeita no qual a corrupção do homem velho é superada c a morte se dissolve. Vai-
se daí para a cristologia.

---.f~.4~-se dizer, em geral, que Jesus, o Cristo, era considerado um ser espiritual
pré-existente que transformara o Jesus histórico num agente de sua atividade
__salvadora. O Espírito era uma hypostflSis em Deus, um poder independente em
completa união com Deus. O filho desceu aos domínios da carne. "Carne" sempre
quer dizer realidade histórica. Ele aceitou a carne; pode-se igualmente dizer que a
carne cooperou com o Espírito nele. () Espírito Santo habitou na carne que esco-
lheu. E ele se tornou o Filho de Deus por meio de sua ação.

Ao lado desta, havia outra idéia. Poder-se-i:::t dizer também que o primeiro
Espírito, o praton pnfltma, se fizera carne. Inácio dizia, por exemplo: "Cristo é
Deus e perFeito homem ao mesmo tempo. Procede do Espírito e da semente de
Davi". Queria dizer que ele não era apenas um poder espiritual que aceitara a carne,
mas que enquamo poder espiritu:d se fizera carne.

filtros, médico, era um ouno termo empregado. A salvação era aqui ainda en-
tendida como cura. Esse médico curava tanto carna!meIHc como espiritualmente.
Idéias bastante misturadas eram usadas para sublinhar o evento de certa forma
paradoxal do Cristo. Esse poder espiritual divino aparecera, afinal, nas condições da
humanidade e da existência. Assim, ele é descrito como tendo origem genética e, ao
mesmo tempo, sem origem genética. Vem na carne. Enfrenta a morre. Mas é Deus
que vem na carne e vence a morte. E tem vida eterna. Nasce de Maria e de Deus. É
capaz de sofrer e de não sofrer, por causa de sua elevação a Deus.

Inácio podia dizer: "Pois h~l um único Deus que se manifestou por meio de
Jesus Cristo seu filho, que é seu logos, procedeme de seu silêncio". E na segunda
carta de Clemente lemos: "Sendo o primeiro Espírito, o cabeça dos anjos, tornou-
se carne. Sendo o que aparece em forma humana, Cristo é o verbo procedentc do
silêncio". Ele procede do silêncio, apo sigés. Ele quebra o silêncio cterno do funda-
mento divino. Como tal, é Deus e completamentc homem. A mesma realidade
histórica é um c outro, ambos numa só pessoa. Poder-se-ia falar de uma mensagem
dupla (uma diplon ker)lgrna), que esse mesmo ser era ao mesmo tempo Deus e
homem.

12
DESENVOlVIMENTO TEOI()GICO NA IGREJAANTICA

Estamos em face do principal interesse religioso deste período, de falar, como


dizia Clemente, t~gl<?gicamente de Cristo como de Deus. "Irmãos, assim devemos
pensar a respeito de Jesus Cristo corno de Deus, pois se pensarmos insignificante-
mente dele, só poderemos esperar receber igualmente coisas insignificantes", O
caráter absoluto da salvação exige um salvador divino também absoluto. Estamos
diante de dois possíveis modos de pensar: teria o Cristo vindo na carne, aceitando-
a~ Ou viera como o Logos, tcndo sido depois transformado em carne~ Já se conhe-
ciam esses dois tipos de cristologia: ~tomar a carne ou ser transformado em carne.

É bastante profunda a idéia de que o Logos divino quebra o silêncio de Deus.


Queria dizer que o abismo da divindade não tem palavras, nem forma, nem objeto,
nem voz. É o silêncio infinito do eterno. Mas saindo desse silêncio, o Logos irrompe
e desoculta o que se escondia nesse silêncio. Revela o fundamento divino.

Essa cristologia não se confunde com problemas teóricos, pelo contrário, o


problema cristológico faz parte do problema soteriológico. Busca-se a certeza da
salvação. Deseja-se a coragem capaz de superar a ansiedade de perdição. A questão
da salvação é a base da questão crisrológica._Que é salvação? A obra de Cristo é
..,:!upla: gnósis J':9,nh~~~:~nt~)".~_I::p.l:0n_~~~?_,IY~!~3."~~!_,i.~i~,a)~,_~~._~:>~~_ida. Foi' assi~"
qY,~~a~"ig~ej~,primitiv~!;rega concebia a salv~ção. Çristo traz c:.onhecimento,e vj4a.
vezes, esses dois elementos se combinavam numa só frase, athanatos gnósis, conheci-
mento imortal, conhecimento do que é imortal c que faz com que a vida se torne
imortal.

Cristo nos chamou das trevas para a luz; levou-nos a servir o Pai da verdade. A
nós que não tínhamos ser, ele nos chamou para que tivéssemos ser, a partir de seu
novo ser. O conhecimento, portanto, trazia o ser. Ser e conhecimento andavam
juntos da mesma maneira corno a mentira e o não-ser. Verdade é ser; nova verdade
é novo ser. Os que possuem esse conhecimento do ser possuíam igualmente o co-
nhecimento salvador. Devemos proclamar essa verdade com muita ênfase, pois essa
idéia foi denegrida por ter sido mal entendida. Harnack e seus seguidores achavam
que o cnStlaIllsmO antigo havia sido infetado pelo intelectualismo grego. Mas há
duas coisas erradas nessa crítica. Em primeiro lugar, "intelectualismo grego" é ter-
mo inadequado porque os gregos sempre estiveram profundamente interessados na
verdade. Com poucas exceções, a verdade que buscavam era a verdade existencial,
concernente à sua existência, capaz de salvJ-los da existência deformada e elevá-los
ao Uno permanente. As congregações cristãs da igreja primitiva entendiam a verda-
de do mesmo jeito. A verdade não era mero conhecimento teórico sobre os objetos,

43
CAPÍTULO II

mas participação cognitiva !la nova realidade aparecida no Cristo. Sem essa partici-
pação, 3 verdade não era possível e o conhecimento seria apenas abstrato e sem
sentido. Era o que queriam dizer quando combinavam conhecimento e ser. A parti-
cipação no novo ser era participação na verdade, no verdadeiro conhecimento.

A identidade de verdade e ser mediava a vida. Cristo dava conhecimellto imor-


uI, conhccimcllw doador de imortalidade. Ele Cfa o salvador e o líder da imortali-
dade. Em seu próprio ser, era a nossa vida imperecível. Ele dava ao mesmo tempo o
conhecimento da imortalidade e o remédio para não se morrer, que era o sacramen-
to. In,ício chamava a Ceia do Senhor de remédio contra a morre, o rtnLidoton fú me
rtpothilnein. Essa idéia é bastante profunda. Em primeiro lugar, mostra que os pais
apos[óli~_~~_ não acreditavam na imortalidade da alma. Não existe irnonalidade na-
~rural. Se existisse eles não f:liariam da vida imortal que Crisco oferece. Acreditavam
que os seres humanos são natUralmelHe mortais, como no Antigo Tcstamenco, onde
no paraíso as duas criaturas puderam comer do alimento dos deuses, da "árvore da
vida",e_,~.?~:.t.0_:'l~~~'i::_~:~__::'?__ J)_~lrticipar nesse,yoder divino. Semelhantemente, os pais
apostólicos ensinaram que com o advento de Cristo restabelecia-se a situação
paradisíac:l. Podemos novamente panicipar no alimento da eternidade, que é o
corpo e o sangue de Cristo. Procedendo dessa manei ra, edificamos em nós mesmos
O equilíbrio em face da necessidade da morre. A mone é saLírio do pecado apenas
na medida em que for separaçáo de Deus. Por causa desse pecado, anula-se o poder
de Deus contra a nossa morte. Mas com a vinda de Cristo esse poder é restaurado.
E passa a agir de modo sacr3.mencal e realista por meio dos elementos materiais do
sacramento da Ceia do Senhor. A luz dessa doutrina podemos concluir que noss3.
conversa tradicional a respeito da imortalidade da alma não é doutrina cristã cLíssi-
ca, m3.S deformaçáo dessa dourrina, num sentido pseudo-pbtônico, nada genuíno.

:'i B. Movimento apologético

o movimento apologético pode ser corretamente considerado o nascedouro de


urna teologia cristã n13.is elaborada. O cristianislno precisava de apologética por
diferentes razóes. Apologia significa resposta ou pergunta ao juiz de um tribunal, da
pane do acusado. A apo!o,-~ia de Sócrates, por exemplo, respondia aos que o acusa-
vam. Da mesma maneira, o cristianismo teve que se expressar em forma de resposta
a certas aCllsaçóes particulares. Os apologistas foram os que se entregaram a essa
tarefa sistematicamente.

44
DESENVOlVIMENTO TEO\()CICO NA ICREJA ANTIGA

Essas respostas eram necessárias por causa de duas acusaçóes__ ~_~ntr~_,?~ ~:_~.s_tãos:
JI).?5.ristianismo ameaçava o império romano, tratava-se ~e uIl1a_~_cllsa~~?J??}í~_ca.:_
pensava-seque o crist.ianismo _subvertia a estfuClIra do ,império; (2) o cristianismo
era, _~o.._P9_I~to de vista filosófico, pura [01 ice, não mais do que supers~ição misn.l_r~5!~
com fragmentos filosóficos. Esses ataques se apoiavam mutuamente. As autoridades
políticas se utilizavam dos arguIl1cnrosfilosóficos contrários ao cristianismo em
slIas aCllsaçóes. Dessa forma, os ataques filosóficos se tornavam perigosos por causa
de Sllas conseqüências políticas. C:clsus, médico e filósofo, foi o mais imponame
representante desses ataques. Convém conhecer o seu pensamento para se avaliar
como um filósofo e cientisra grego, muiw bem educado, considerava o cristianismo
na época. Celsus entendia o cristianismo como misrura de superstição fanática e
pedaços de filosofia. Para ele os rclatos bíblicos eram contraditórios e, desp'~'?vidos
de qualquer e:vi(.I~~~"i.:::....Enc~~~~~~amos_.~!_' _ 2~h.J-~-,"jmeira vez, _a crírica históri:::~_. çl.9
_,._~.r:~igo e dO_,No_"2?_I~srament<2.:..~~~?~.-'l~ seria i~~~_~_c:.~~~Y~?'~_.~~I'.~tj_do ~ longo da
história. l'das em CelSllS essa crírica era motivada pelo ódio. Mais tarde, no século
dezoito, tesremunhamos uma outra crítica movida pelo amor, em face da realidade
presente, por detd.s desses rclaros.

Examinando os ataques de Cclsus contra o cristianismo vemos que ele se revol-


ta principalmente contra a ressurreição de Jesus. Observava cle que o evento, supos-
tamente tão importante, havia sido testernunhado apenas por aderentes da fé e, no
início, (lpenas por algun:~'2!tIl,!leres._~_~l.~~~!vidasem experiências.9_~_...êxtas~ A
deificação de Jesus n50 difere de outros processos de deificação conhecidos na histó-
ria. Por exemplo, Euhemerus, o cínico, j'í. dera suficiente número de casos em que
seres humanos, reis ou heróis, haviam sido deificados. O que parecia especialmente
deSCOllcenante para CclSllS é que em face de histórias imensamente inacredidveis,
como em geral se vê no Antigo Testamento, as explicações acabam sendo alegóricas.
Na verdade, fazia-se assim. pode-se perce~~l~5::rto sentil!:1en(C) ~rl!0_~~~}E':.~]~. crítica_
_~e ~elsus ~\~ ...b.~tóri~~.~!.?_~~~s.0 T~~an~_:~t?_. sobre mil~res. En~e2~,~.e~~... _~_~~.: }tude
dcle porgue criticava tanto os judeus como os _~.~~i.s,tãos.

Cclsus denunciava a contradição interna visívc1 nos escritores cristãos quando


se referiam à descida de Deus e ao mesnlD tempo acentuavam a sua imutabilidade.
Além disso, se o ser divino tivesse descido na terra, por que haveria de ter escolhido
um desprezado canto do mundo, e por que o teria feito só uma vez? Particularmen-
te desagradável aos pagãos educados - e temos aqui novamente manifestações de

45
CAPÍTULO II

sentimento antijudeu - era a luta entre judeus e CrIstãos a respeito da vinda do


Messias. Os argumentos utilizados pelos cristãos, apoiados na profecia, pareciam-
lhe completamente destituídos de sentido. Celsus tinha suficiente educação histó-
rica para entender que os profetas não haviam antecipado a vinda de Cristo nos
termos em que ocorrera. Essa tem sido uma questão sensívc1 nos estudos de história
cclcsiásrica. É que a idéia sadia de uma revelação preparatória universal acabara
deformada no conceito mecânico da "anrevisâo" de eventos posteriormente aconte-
cidos.

A crítica mais profunda de Celsus cOIltra o cflsoanismo não era científica a


respciro da história nem fllosóflca a respeito da idéia de encarnação; vinha de seu
sentimento religioso._Afirmav.a que os poderes demônicos que, segundo Paulo} ha-
viam sido conquisrad~~,J?~Cl~~~.r~;. _~r_~.~tan]J?~!~~i.Y~ ..K<?y~rnan~,~~ __ ~'!.,~~do. O
__ .I1~1.~1_(1t~ enl__ !~.~~A::~.p:_l.!...ci~l~~,,~I.e.~de o advento de.Cristo c do começo do cristianismo.
Çel.sll~__ acres_S:~D_~~~~~_<::._:~em se devia tentar .derrota~~._csses E?9cres,_.P0.sSCl qllt:.'__ S_~~
eles os verdad~_~~-os dOl~?s d? mundo. Porranto, era bem melhor obedecer aos impe-
radores romanos na terra; eles, pelo menos, haviam reduzido o poder desses demô-
nios até certo ponto - coisa que Paulo também sabia. Os imperadores haviam esta-
belecido certa ordem no mundo, limitando as forças demônicas. Não importando
quão questionáveis pudessem ser os imperadores romanos enquanto pessoas, deve-
riam ser obedecidos e venerados, pois H.oma se tornara grande por meio da obedi-
ência às ordens deste mundo, às necessidades da lei e da natureza. 9s._c:~)_~t~Q~_~.!.:am,
pois, culpados d~~.s_~~~erte.r a grJ.llde~_~~ a~EG::.A.~_}~:?J!la,,,atr~lJlalhando o Único
~c!~~. capaz de impedir a queda do mundo no caos e a vitória completa dos demô-
1110S.

Seu ataque era séno e tem sido repetido muitas vezes ao longo da história do
cristianismo. Cristãos educados como Celsus, na mesma tradição filosófica, procu-
raram responder-lhe em nome e]a igreja. Os apologistas não responderam tJ.nro no
nível da crítica histórica, mas 110 pbno filosófico. Em suas respostas :lparecem três
características de qualquer trabalho apologético .. Em primeiro lugar, para se [dar
significativamentc com alguém devc have,,:uma ,bas~ comllm ..~~e idéia~~!1..L~llamente
co mp reens~.~~~. As~~~~(;:~. ~lJ?olo~~~~·ta"~ J?~··e_c.\~.~~_~;~~:~el:'l?l,~:i!~_~_~ existência de verd a-
"de,"<::?~l.~um t:ll1to aos crist~02".':.Clmo aos pagãos. Se não houvesse nada em comum o
diálogo não teria sido possível. Todo o trabalho missionário cristão posterior procu-
rou seguir esta rcgrJ.: que o outrO deve entender o que estamos querendo dizer. Mas
não há compreensão sem pelo menos algum tipo de participação parcial. Se o mis-

46
DESENVOLVIMENTO TEOLOC;ICO NA IGREJA ANTIGA

slOnáno falar linguagens absolmamenre diferentes não haverá compreensão possí-


vel. Assim, os apologistas tinham que procurar esse denominador comum.

Em segundo lugar, os ~lpologistas acharam necessário mostrar a vulnerabilidade


do paganismo. Havia defeitos em suas idéias. E podiam ser contrariadas. Era possí-
vel demonstrar que, por séculos, filósofos pagãos haviam criticado tais idéias. Esse
era o segundo passo da apologé[ica~~~~ol~~~~E_~~~g~:~~Tl93_d~.~_?_<:~tro,; ..KInS~rcei­
ro 111~ar, tinham g.'l~çk.JI1_()_Q!i.t.I~r~~. ~.P2s)~~._~_s.!~ .[.l,ão devia ser aceita de fo~'ª)
mas gue o cristianismo ~_~'l_.C?_.~llmprilllentodas expectativas e desejt2s ~?- P~K~I:j_SI~~.~._
Essa mesma forma apologética aparece em minha própria teologia sistemática no
método da correlação elHre pergunta e resposta.

A apologética corre, naturalmente, o risco de acabar com as diferenças, dando


demasiada ênfase à base comum. Aceita-se o outro como ele é sem lhe oferecer algo
diferente. Deve-se buscar, pois, um caminho intermediário entre os extremos de se
enmlhar o adversário de material indigesto e incompreensível vindo de fora, ou de
lhe dizer o que já sabe. No primeiro caso, situam-se o fundamentalismo e a ortodo-
XIa, enquanto que no segundo, comumente, a teologia liberal.

1. Filosofia cristã

Justino Mártir foi talvez o mais importante dos apologistas. Ao falar do cristi-
anismo, dizia: "Esta é a Única filosofia cerra c adequada que encontrei". Que queria
dizer? Alguns inimigos da apologética entcndiam que lustino dissolvia o cristianis-
mo em fIlosofia. E mais, que toda a teologia apologética acaba assim. Mas quando
Justino dizia que o cristianismo era uma filosofia, precisamos entendet o que enten-
dia por filosofia._Ne§sa~pocao tcrmo "filosofia"__s.e referia a movimentos de caráter
e~piritual ~postos à lnagia e à superstição. Era, pois, natural que ]ustino se referisse
ao cristianismo como a Única filosofia certa e adequada, porque não era mágico nem
supersticioso. Já vimos que a filosofia grega no pcríodo pós-socrático não era disci-
plina meramentc teórica, mas principalmente prática. Devorava-se à interpretação
existencial da vida, constituindo-se em assunto de vida ou morte para a existência
das pessoas na época. O filósofo pertencia quase sempre a uma escola filosófica que
era um tipo de comunidade ritual reunida ao rcdor de seu fundador que, segundo
se cria, rccebera cerra percepção revelada da verdade. Para se ingressar nessas escolas
não era preciso ostentar-se o grau de dourar em filosofia, mas se submeter a certos
ritos de iniciação à atmosfera da escola.

47
CAPÍTULO 11

Jusrino ensinava que essa filosofia cristã era universal; continha a verdade total
sobre o significado da existência. Em conseqüência, onde quer que a verdade apare-
cesse ela pertenceria ao cristianismo. /\ verdade da existência sed sempre verdade
cristã, não importando o lugar onde venha a surgir. "Tudo o que já foi dito sobre a
verdade pertence a nós, cristãos". E não se tratava de pura arrogância. Ele não
queria dizer que os cristãos agora são os donos da verdade roda, ou que sozinhos
chegaram a ela. Queria dizer, nos termos da doutrina do Lagos, que não poderia
haver manifestações da verdade que não incluíssemos, em princípio, a verdade cris-
tã. Era a mesma coisa afIrmada pelo quarto evangelho: o Logos apareceu cheio de
verdade e graça. E vice-versa. Justino dizia: "Os que vivem segundo o Lagos sáo
cristãos". Incluía aí gente como Sócrates, Heráclito e Elias. Mas acrescentava que o
logos total aparecera no Crisro feito carne, mente e alma. Portanro, os filósofos llJO

cristãos vivem em parte no erro e em parte sujeitos às inspirações demônicas oriun-


das dos deuses pagãos. Os deuses dos pagãos não são entidades vazias; são forças
demônicas reais cheias de poder destrutivo.

Que quer dizer tudo isso? Removia a impressão de que os cristãos fossem ape-
nas lnembros de uma OLL[ra religião e!ltre muitas existentes. Na verdade, neg::wa-se
:lO cristi:lnismo o conceiro de religi50 mesmo se a melhor ou a mais verdadeira de
todas:. Os apologistas jamais dinam que sua religião era verdadeira e as outras erra-
das ou falsas, mas que o Logos aparecera nos fundamentos do cristianismo. Tratava-
se do Lagos pleno do próprio Deus, aparecendo com todo o seu ser. Era mais do
que religião. Era o aparecimento da verdade no tempo e no espaço. Assim, a pala.vra
"cristianismo"
.
não po.dia
--
ser entelldida_c:.~_!:"10_"_!·eligiã92
---
'--- -
__mas como a negação de todas
as r~!~iªes. Por causa de sua universalidade o cristianismo pôde abrangê-las todas.
]ustino afirmou o que me parece a1Jsoluumente necessário afirmar. Se hou~_s_~e no
I:_~~l~~_~~_lln_la verdade existencial~. .s:~".-!!_~.?_pud~~,=-_~..:.-!~~~:-?J_~~ pelo cristian~~_mo
como parte de seu próprio pensamento, Jesus não poderia ter sido o Cristo. Teria
sido apenas ltl~l--~st;·e entre outros mes~res:-Ú-;lli~::;dos e parciallnente enganados.
Jv'Ias não foi isso o ci-~~~ disseram os primeiros cristãos. Eles afirmaram - como deve-
ríamos rambém afirmar - que se chamamos Jesus, o Cr-isto, ou o Logos, como que-
riam os apologistas, estamos também dizendo por definição que não poder haver
nenhuma verdade que em princípio não possa ser assumida pelo cristianismo. Se
não for assim não se poderá aplicar a Jesus, o Cristo, o termo "Lagos". Não estamos
dizendo que Jesus, em quem o Logos apareceu, sabia roda a verdade; essa afirmação
não tem senrido e destruiria a sua humanidade. Estamos afirmando, isso sim, que

48
DESENVOLVIMENTO TEOll"lGICO NA IGREJA ANTIGA

a verdade fundamental nele visível é essencialmente universal e, portanto, capaz de


abranger qualquer outra manifestação da verdade. Por essa razão os teólogos primi-
tivos não tiveram escrúpulos em utilizar todas as verdades filosóficas gregas à dispo-
sição c tudo o que foi possível do misticismo oriental.

Com o aparecimento do ~(~gos em Cristo até as pessoas menos educadas podi-


am receber a verdade existencial plena. Em contraste, os filósofos sujeitavam-se a
perdê-la no meio de suas disclIssões.:çjn _o~_lt}"as palavras, os apologistas estavam
dizendo que o cristianismo era imensamente superior a coeias as filosofias. Posto que
a filosofia pres.'iupõe eclucaçío, somente alguns podiam ter acesso à verdade. Os
outros eram excluídos dcla em sua forma filosófica. Entretanto, ninguém era exclu-
ído da verdade que se manifestava por meio do Lagos numa pessoa viva. A mensa-
gem dc Jesus, o Cristo, é universal ao abranger a humanidade toda, todas as classes,
grupos e estratificações sociais da humanidade.

Argumentava-se, t8rnbém, em defesa do cristianismo, aludindo-se ao poder


moral e ao comportamenro dos membros da igreja. Portanto, as congregações cris-
tãs não podcriam ser perigosas ao império romano. Até mesmo preveniam a queda
do Illundo no caos. As instituições eclesiásticas mantinham a ordcm do mundo até
mesmo com mais eficiência do que o próprio iInpério. Jusrino dizia: "O mundo
vive das orações dos cristãos c da obediência dos cristãos à lei do Estado. Os cristãos
presr:r~ram _~"~1~1.~~~~~_c,-por O~~~~~?:l~?r cau~<:_~"?_s_~rist~?s Deus também preserva
o mundo".

2. Deus e Logos

A idéia filosófIca de Deus é inata em todos os seres humanos. Todas as cafJ.cre-


rísricas atribuídas ao Ser são agora atribuídas a Dcus - cterno, sem começo, nada
necessitando, além das paixões, inde.'irrutívcl, imutável e invisível. Mas há, no en-
tanto, uma diferença fundamemal entre a idéia de Ser na filosofia grega clássica e a
doutrina de Deus de Justino. Vem do Antigo Testamento e muda as coisas. Trata-se
da afirmação de que Deus é o criador todo poderoso. Quando se faz uma afirmação
dessas, as descrições abstratas e míticas da identidade de Deus passam a incluir um
elemento pessoal Deus criador age e n '{<")Ctn-poderoso é o poder presente em todas
as coisas que ele movimenta.

Observemos que nesta declaração a respeito de Deus, o monoteísmo cri.'itão


oscila entre a concepção Je um Ser transpessoal e a do Deus criador que, natural-

49
CA PÍTUI.O 11

mente, é também salvador. A oscilação é necessária tão logo a idéia de Deus se (Orna
objeto de pensamento. Não se podem evitar certos elementos como o eterno, o
incondicional, o imutável etc. Por outro lado, porém, a piedade prática c a experi-
ência da criatura pressupõem o relacionamento de pessoa para pessoa. O cristianis-
mo oscila entre esses dois elemcJ1(os porque ambos estão presentes no próprio Deus.

Entre Deus e os seres humanos há anjos e poderes, bons e maus. Mas seu poder
mediador é insuficiente. O Logos é o verdadeiro mediador. É difícil q::plicJT.o.~
~ significa a palavra "Lagos", especialmcmc aos nominalistas de berço. É difícil por-
. 9.~.~c._~_..~~.::_~eito não d_c_~5:.~:~~~_,'-:_~1LE:~,_.i~1divid lial, m~E_~,_~[pl()~universa!_.~, Esse con-
ceito não pode ser entendido pelos que nJo estão acostumados a pensar em termos
universais enquanto poderes de ser. O conceito de Logos pode ser explicado mais
inteligivelmente em relação com o platonismo ou com o realismo medieval.

O Logos é o princípio da auto-Inanifestação de Deus. É Deus manifesto em si


mesmo, a si mesmo. Porranto, onde quer qlle Deus apareça, a si mesmo ou a outros,
é sempre o Logos que aparece. Este Logos está em Jesus, o Cristo, de maneira
especial. É o que, segundo os apologistas, faz a grandeza do cristianismo e a base de
sua reivindicação salvadora. Pois se o Lagos divino não tivesse aparecido em sua
plenitude em Jesus, o Cristo, nenhuma salvação seria possível. Trata-se de argu-
mentação existencial, não especulativa. Os teólogos clássicos partiram, pois, da ex-
periência da salvação para em seguida Ellar de Jesus, o Cristo, em termos do Logos.

o Lagos é a primeira "obra" ou geração de Deus Pai. O Pai, inteligência eterna,


possui o Logos em si; ele é "eternamente lógico", como dizia Aten~í.goras, um dos
apologistas. O termo "lógico" neste contexto não significa argüir bem; ele deixa isso
para nós. Ao ser "logikos" demonstra adequar-se aos princípios do sentido e da
razão. Deus não é vontade irracional; quando o chamamos de naus (mente) eterna
queremos dizer que ele possui em si mesmo o poder da automanifestação. A analo-
gia vem de nossa experiência. Os processos mentais desenvolvem-se por meio de
palavras silenciosas. Da mesma maneira, a vida espirimal de Deus inclui essas pala-
vras silenciosas.

Há um processo de relacionamento espiritual que vai do Pai para o mundo no


qual ele se manifesta a si mesmo e ao mundo. Sem qualquer separação. Entretanto,
o Logos não é a mesma coisa que o faz ser o Lagos. Por outro lado, não poder ser
concebido independentemente de sua origem. O Logos divino não é igual a Deus;
é a aLHo-manifestação de Deus. Mas, se o separarmos de Deus, esvazia-se e não

50
DESENVOLVIMENTO TEOL(JGICO l'A IGJ(EJA ANTIGA

poderá tcr conteúdo. Esta tcmariva de descrever o significado do termo "Lagos" é


análoga ao processo mental humano. O processo de geração do Lagos em Deus -
eternamente, por certo - não diminui o ser divino. Deus não se torna menor ao
gerar o seu Logos. É por isso que Justino afirma: "O Lagos é diferente de Deus
segundo o número, mas não segundo o conceito". Ele é Deus; mas não o Deus,
muito embora permaneça na essência de Deus. Justino também se valeu das doutri-
nas estóicas da imanência e da transcendência do Lagos. O Lagos divino é endiathetos,
"que habita" em Deus. Esse mesmo Lagos eterno, pelo qual Deus se expressa a si
mesmo, torna-se na criação o logos prophorikos, "procedente" de Deus, na direção
do mundo. Assim, transforma-se na palavra proferida para fora, para a criawra, por
meio dos profetas e dos sábios. Lagos significa ao mesmo tempo palavra e razão. Em
termos de Antigo Testamento, traduz-se "Logos" por "palavrà'; em termos gregos,
como o fizerarn os apologistas em geral, prefere-se "razão". Essa "razão" não quer
dizer "raciocínio", mas esrrutura inreligível da realidade.

Enquanto auto-expressão do divino, o Logos (palavra, forma ou razão) é menor


do que o abismo divino, posto que esse abismo há Je ser sempre o começo, de cuja
profundidade emana a sua manifestação para o mundo. O Logos é o princípio das
gerações de Deus; possui, por assim dizer, certa transcendência ou divindade dimi-
nuídas. Mas, emão, como pode revelar plenamente o ser divino? Esse problema foi
discutido posteriormente. Tão logo os apologistas empregaram o termo "Logos"
esse problema não pode mais ser evitado. Se o Logos é a auto-expressão de Deus em
movimento, será menor do que Deus ou Deus na plenitude? Cristo~OI,1tin~_<lria a
ser considerado divino, mas, como explicar aos pagãos que certo indivíduo histó:ico
que vivera e morrera podia ser chamado "Deus"? A dificuldade não estava primeira-
_~_rneIlte na enc~:naçã~.:_,.~_r:~_?!ogi.~_~~~_~,~e todas as de:nais rTli.~_?lo~~~s sempre con-.
t~E~:::~i;.tórias ~~'~n:~~~_?". Os deuses descem à terra; tomam formas huma-
nas, de animais ou de plantas; realizam certas obras e depois retornam à divindade.
---E;;~-d~riç'Õ;~,-noentanto, Ilã?".~~ran: a~eJt~~_~i.s._.~()u~!i,~,ti_~~~~.mo.A dificuldade era
que este Filho de Deus, homem histórico e não figura mítica, teria sido a única e
absoluta encarnação de Deus.

A encarnação é evento irrepetíve1; o que se encarna é Deus e não elementos


particulares ou características específicas da divindade. Trata-se da encarnação do
próprio cerne da divindade. Emprega-se o termo "Logos" para expressar essa idéia.
Procurava-se combinar o monoteísmo, tão fortemente pregado contra o politeísmo,
com a idéia da divindade de Cristo. A humanidade de Cristo não podia se separar

51
CAPÍTULO 11

de sua universalidade. Foi o que fizeram os apologistas. E nisso tiveram êxito.

~eg~:~~~~i~_os apologistas, a enc:1mação não é a ulli~() do Espírito divino com ()


homer!1Jesus; é O L~o_~__q~~_,r.~~~ll~~~~:.~~_~~jj'z homem. Esta crisrologia voltada para
a transFormação do Lagos em homem vai-se tornando progressivamente importante
por meio da doutrina do Lagos. Por meio da vontade de Deus, o Logos pté-exisrcn-
te se t~lz homem. Faz-se carne. Esta crismlogia impôs-se contra o adopcionismo. Se
o Logos (ou Espíriw) tivesse adotado o homem Jesus, tcríamos tido uma cristologia
completamente diferente.

Os dons salvíficos do Logos s:1.o gnósú (conhecimento) divina, da lei c da ressur-


reição. Enquanro Logos, o Cristo é, em primeiro lugar, mestre; não no sentido de
nos ensinai" as coisas que ele saberi:l melhor do que n6s, mas no sentido socrático de
nos dar poder existencial de ser. O Lagos nos concede a verdade de Deus e as leis
rnorais que deveremos seguir livrernente. Surgem, assim, na doutrina de Cristo,
elementos intelectuais e educativos. Essa possível conseqüência da doutrina do Logos
levantou, por outro lado, certos descontentamentos.

1 C. Gnosticismo

Os apologistas defenderam o cristi~lnismo contra filósofos e imperadores. En-


tretanto, as ameaças contra () nistianismo nao vinham apenas de fora. Um perigo
bem lluior surgiu no seu próprio interior: o perigo do gnosticismo. O termo
"gnosticismo" vem da palavra grega "gnósis·' que quer dizer "conhecimento". Não no
sentido científico. Gnósis poderia ser: conhecimento em termos gerais; comunhão
mística e relação sexual. Todos os três sentidos podem ser achados no Novo Testa-
mento. Trata-se de conhecimento participatório. Tão íntimo como a relação entre
marido e mulher. Bem distante do conhecimento alcançado por meio de pesquisa
analítica e sintética. Esse conhecilllcnro busca ;l união e ;l salvaçáo. F. essencial em
contraste com o conhecimento científiCO. Os gnósticos erJ.111 os intelectuais gregos,
não ob.~tante terem compreendido a função cognitiva em termos de participação no
divino.

Não eram uma seita; talvez se pudesse dizer que eram muitas seitas. Na verda-
de, porém, o gnosticismo representava vasto movimento religioso espalhado pela
época. Em geral, o gnosticismo é considCl"ado um sincretismo. Misturava todas as
tradições religiosas de então. Ao se Lspalhar pelo mundo, penetrou tanto a filosofia

52
DESEKVOLVIMENTOTEouíCICO NA IC;REJA ANTIC;i\

grega como a religião judaica. t:ilo de Alexandria foi um típico precursor do movi-
mento. O gnosticismo conseguiu até mesmo se imiscuir na lei romana e na teologia
enstJ..

Os elemetlros básico dessa Inistura religiosa são os se.,guiptes: ------


_._"".
1. Destruição
-- das
religiões nacionais por meio das conquistas de Alexandre e de Roma. Os grandes
impérios mundiais acabavam com as religiões nacionais. 2. InterpEe!~s_~o ftl.?~cSfica
da mi_~.?J_?.J;;_0: Ao se ler os sistemas gnósticos tem-se a impressão de que racionali-
zam a mitologia. Essa impressão é correta,. 3. Renovação das antigas ([adições de
mi_~_réri2.:.....1. Rcavivamenro de elementos psíquicos e mágicos, presentes na propa-
gar~~!:~l~gi<?:~_~o 0L~en~~,." Enquanto o movimento político ia do Ocidente para o
Orientc, o religioso tomava direção CO!Hrclria. 9 gnosticismo procurava, então, co~­
binar todas as tradições religiosas descnraizadas, reunindo-as num sistema meio
filosófico e meio rcli_gJ~~~:~

Havia muitas semelhanças e diferenças entre os grupos gnósticos e o cristianis-


mo original. Contra a tradição püblica das igrejas cristãs, os gnósticos diziam pos-
suir tradições secretas apenas conhecidas dos iniciados. Rejeitavam o Antigo Testa-
mento porque não se harmonizava com algumas de suas doutrinas fundamentais,
especiJlmente com suas tendências dualistas e ascéticas. Aceitavam uma versão
expurgada do Novo Testamento. Marcião tentou modificar o Novo Testamento,
aceitando, no entanto, as dez principais cartas de Paulo e o evangelho de Lucas,
que, certamente, Inais claramente denota a influência paulina. Presumivelmente,
essas porções do Novo Testamento não contradiziam as idéias básicas do gnosticismo
como as demais epístolas e cvangelhos.

Marcião não era um filósofo especulativo, mas reformador religioso. Fundou


congregações de seguidores que duraram muito tempo. ~~~I livro se chaIl?~.?_!Íntithe!t'j~.
Distinguia o Deus do Antigo Testamento do Deus do Novo ~estamento, o Del's.__~
lei do Deus do evangelho_.. Rejeitava o primeiro para aceitar o outro. Não se tratava
apenas da idéia fantclstica de dois deuses. A questão deve ser vista nos termos desen-
volvidos por Harnack no final de sua vida. Não seriam os dois Testamentos de tal
maneira diferentes a ponto de não ser possível qualquer combinação dos dois~ O
Marcionismo é uma forma de paulinismo radical sempre presente ao longo da his-
tória da igreja. Encontramo-lo 110 período moderno na escola barthiana, quando o
Deus da revelação se coloca contra O Deus da lei natural. Naturalmente) esta escola
não menciona um segundo Deus; hoje em dia essa mitologia fandstica não seria

53
CAPÍTULO 11

possível. Mas, fala da tensão radica! entre o nltIndo natural da razão e da moralidade,
e o domínio religioso da revelação. Era o mesmo problema de Marcião, resolvido
por ele com a separaçáo radical do dois Inundos no dualismo gnóstico.

Jara os gnósticos, o mundo criado é mau; foi criado por um deus mau reconhc-
.
__ ~_i~o por eles no.. PCll~ _.9.~~~:_~~go Testamento. Ponanto, salvação é libertação deste
ll1ull_do, a s_~~_~lcan_~~.~l mediante cx~_~~í~ios ascéticos. Não há lugar para a escatologia
nessa visão dualista do mundo, pois o fim do mundo não a ultrapassa. Não pode
haver realização dualista: ela pressupõe a divisão do próprio Deus.

o s~J.Y3.do~~stá en_~!:~_?~J~52c~eres celestiais, chamados de "aeuns" üu de "eterni-


dades". ~ss~_'p~!~vra, "e:.t:~:_nida(ie",_~~.~(?__ ~~!l~_,:q~~i a conotação de tempo sem fim,
mas de poder_ cósm)~,?~_~~~~lai~_ alto "aeon" > salvador, desce à terra e (Orna a forma
humana. É evidente, contudo, que tal poder divino não pode sofrer. É por isso que
adquire um corpo estranho, semelhante ao corpo humano, mas não se torna carne.
(Os cristãos primitivos rejeitaram os gnósticos neste ponto). O salvador desce aos
diferentes domínios submetidos a diferelltes poderes astrológicos. Esta idéia refcre-
se aos planetas, considerados poderes astrológicos até mesmo depois da Renascen-
ça, no protestantismo. O salvador revela as armas ocultas desses poderes demânicos,
ao atravessar os seus domínios, vencendo-os nessa descida à tcrra. Traz consigo os
selos de seu poder, seus nomes e características. Quem tiver o nomc de Uln podcr
demônico já lhe é superior; quem o chamar pelo nome já o derrota. Diz um dos
textos gnósticos: "De posse dos selos, cu descerei, atravessando todos os aeolls.
Reconhecerei todos os mistérios. Revelarei a forma dos dcuses. E proclamarei as
coisas ocultas do caminho santo, chamado gnósis". Aí está a reivindicação do bom
Deus, pleno do poder do mistério, em sua vinda à terTa.

Os poderes demôllicos representam o destino. A alma humana caída em suas


mãos é libertada pelo salvador e pelo conhecimento que ele traz. Diríamos: no
gnosticismo o salvador emprega a magia branca contra a magia negra dos poderes
planetários, poderes menciollJdos por Paulo, em Romanos 8, submetidos, segundo
ele, por Cristo. Portanto, reconhece-se o poder mágico dos sacramentos. Neles, o
mais Jlro dos poderes desce à terra.

Além dessas feições especulativas c sacramentais, o gnosticismo tinha valores


éticos relacionados co1l1 a comunidade e com J ascese. Exigia a elevação da aln1;]" a
exemplo do salvador que subira. O salvador liberta dos poderes demônicos para

54
DESENVOLVIMENTO TEOLClCICO NA ICREJA ANTIGA

promover a união da alma com a plenitude, com o p!eroma, o mundo espiritual.


Em sua peregrinação ascendente, a alma humana encontra-se com esses poderes e
lhes revela o que aprendeu a seu respeito. Sabe seus nomes, e conhece, portanto,
seu poder misterioso, a estrutura do mal que representam. Ao pronunciar seus
nomes, eles tremem e caem tornando-se incapazes de impedir a alma em sua jorna-
da. Essas imagens poéticas demonstram que o gnosticismo era uma religião de
salvação dos poderes demônicos. Esse era o problema principal do período, tanto

criador. Tinh~..qll~__ .~er salv~ _


110 cristianismo como fora dele.. pç,çe~·.ç~J113I}e.ira, o 11.'?lllcm .cr?- I~~lJ.~~_r __ 9.l.-l:e__ ?~_ll
A?__
~_Poª.~E~~ __ ª~ demiurg9.~~~C:;~~!.!~!.~ .. ~~I21~~_~-2-:)0.~~
nem tod?~ os homcns podiam sc sa!va~·~Havia três classes de homen_s.: os Fr!.:_~~,!~,!-~~~!·,
isto é, os espirituais; os ps)'chikoi, segui~~E~s da alma; e os sarkikoi, dominados pela
carne. Os silrkikoi estavam perdidos;.os pneumaúkoi,_ salvos. Os do_!~_ei?, OSjJslchi.*c!'!'~
~-ª.~~~I~.~_y.?mar um ou outro rumo. Para ser elevado às alturas, o homem precisava
participar nos mistérios. Eram principalmente mistérios de purificação relaciona-
dos, em geral, com o batismo. No batismo, o Espírito entra na água sacramental e
nela habita. Ele desce por meio de uma fórmula especial de iniciação.

Essas idéias representavam fone tcntação para o cristianismo. Cristo permane-


cia no centro da história como o autor da salvação mas encaixava-se na moldura da
visão dualista do mundo helênico. A atmosfera religiosa deste período expressa-se
com muita beleza num dos escritos apócrifos conhecido pelo nome de Atos de André:
"Bem-aventurada é nossa geração. Não fomos abatidos porque fornos reconhecidos
pela luz. Não pertencemos ao tempo que nos dissolve. Não resultamos do movi-
mento, que também nos teria destruído. Pertenccmos -à grandeza à qual nos dirigi-
mos. Pertencemos J.quele que tem misericórdia de nós, cuja luz expeliu as trevas, de
quem nos desgarramos, o múltiplo, o supra-celeste, que nos levou a entender as
coisas terrenas. Se o louvamos é porque somos reconhecidos por ele". Trata-se de
verdadeira piedade religiosa, não de mera especulação, como diriam os críticos do
gnosticismo.

Há muitas pessoas hoje em dia que gostariam de recuperar a religião gnóstlca


para praticá-Ia como expressão de sua experiência interior, não por causa da especu-
lação fantástica, mas por causa da verdadeira piedade que ela expressa. O gnosticismo
representava, pois, enorme perigo ao cristianismo. Se a teologia cristã tivesse su-
cumbido diante dessa tenração, o caráter particular do cristianismo teria se perdi-
do. Sua fundamentação na pessoa de Jesus teria perdido o sentido. O Antigo Testa-

55
CApíTULO II

menta teria desaparecido, e com ele a imagem histórica do Cristo. Essas ameaças
foram superadas graças ao trabalho de homens que são ainda hoje conhecidos como
"pais antignósricos" Eles lutaram contra o gnosricisl110 c conseguiram expeli-lo da
Igrep.

D. Os pais antignósticos

Os primeiros grandes teólogos CriStãos desenvolveram seus sistemas em oposi-


ção às idéias do gnosticismo e, às vezes, em concordância parcial com elas. Panirq..D1
da doutrina do Logos para se defender de ;:tragues de fo.~_a. Mas um pouco do espí-
rito desse mundo conquistado pelo cristianismo acabava entrando para o próprio
cristianismo. Lutava-se, então, conrra cerro tipo de paganisrno cristianizado. Tal
lm<l, certamente, nunca é apenas negativa, pois sempre aceita elementos combati-
dos c os assimila. O resultado dessa rejeição parcial e dessa aceitação parcial da
atmosfeLl religiosa da época é o que chamamos de "catolicismo primitivo". Os teÓ-
logos que vamos examinar agora são imponantes porque representam esse catolicis-
mo antigo. Expressam idéias oriundas da rejeição c da aceitação dos movimentos
pagãos da época. Começaran1 pela idéia do Logos desenvolvida pelos apologistas.
Mas a desenvolveram de modo construtivo - não só apologético - em relação com a
Bíblia e com a tradição. Com isso, livraram a doutrina de implicações perigosas,
como o politeísmo, o triteísmo e o diteísmo. A grandeza de teólogos como Irineu e
Tertuliano consiste em ter percebido esse perigo, utilizando a doutrina do Logos
para construir idéias teológicas relacionJ.das com os movimentos religiosos da épo-
ca.

tJrineu foi o mais importante dos pais anti gnósticos, rellglos<~l_:~_nte falando.
Entendeu o espírito de Paulo e se mostrou sensível ao que essa teologia representav8
para a igreja cristã, Entretanto, a doutrina paulina relevante para Irineu não foi a da
justitlcaç5.o pela gl-aça por meio ch f~, utilizada por Paulo contra o judaísmo, mas o
ensino mais central do apÓstolo, a doutrina do Espírito Santo. De certo modo, a
teologia de Irineu acha-se mais prÓxima do protestantismo do que a maior parte
das teologias do catolicismo primitivo; contudo, ele é o pai desse catolicismo - e, na
verdade, nada protestante - na medida em que a doutrina paulina da justificação
por meio da fé, que cu gosto de chamar de "lado corretivo" da teologia de Paulo,
não ocupava o centro do pensamento de lrineu.

56
DESENVOLVIMENTO TEOLClc;ICO NA IGREJA ANTIGA

Tertuliano era também ~n~_~g~~.?St1Co. Foi mestre de retórIca latina. Criou a


terminologia eclesiástica em latim. Não sendo jurista, possuía mentalidade jurídi-
ca. Possuía temperamento muito agressivo c caráter forte. Entendia o primado da fé
e o paradoxo do cristianismo. Mas não era artificialmente primitivo, pois aceitava a
filosofia estóica e com ela a idéia de que a alma era naturalmente cristã - anima
natura/iter christitlJU1. Aceitava também a doutrina do Lagos dos apologistas, por-
que não apenas aceitava o paradoxo do cristianismo, mas, com Slla inteligência
aguda, acreditava que a filosofia grega não conseguia ultrapassar o cristianismo em
precisão racional e em clareza.

o terceiro (e~log? .antiKr~~0.~.~.::?-...:ra_t!ipól~t?~~~~1~Js<::.~~_i_t~_~? que ~.~:~e


Tertuliano: Manteve int'Jllleras polêmicas contra o movimento gnóstico por mclO
dc suas obras exegéticas e de seus escritos sobre a história da igreja.

Esses rrês te61ogos perceberam claramente a situação da igreja prlll1ltlVa. É


importante que os protestantes se dêem conta de quão cedo os principais funda-
mentos do sistcma romano postcrior j~í se manifestavam no terceiro século.

1. Sistema de autoridades
o problema colocado pelos gnóscicos perante a igreja situava-sc no domínio da
autoridade. Que era mais importantc: as Escrituras Sagradas ou os ensinamentos
secretos dos gnósticos? Os mestres .gnósticos ensinaval'!.1,quc .J._es~~~~.~s pa:sar~..0.=-­
formações secretas nos quarenta dias d.epois da ressu.~:~e.ição,_.q_uan.do_y~.:.[~!"::..~::~:!~_
lado dos discíp~los. Esse corpo de doutrina havia sido preservado pela filosofia e
pela teologia dos gnósticos. Contra tal pretensão, os pais anti gnósticos precisavam
estabelecer a doutrina das Escrituras.

~As Santas Escrituras haviam sido dadas pelo Lagos por meio do Espírito divi-
no. Portanto, era preciso fixar-se o cânon. Os próprios fundamentos da igreja eram
ameaçados pela intromissão de tradições sccretas quc afirmavam coisas bcm dife-
rentes das que se liam na Bíblia. _F()i_,_~~I~[5.9, a partir dessa luta de vida ou morte
contra o gnosticismo que se tomou a decisão de se fIxar o cânon. Com isso, a igreja
sempre teve que retornar ao período clássico de sua existência que foi o período
apostólico. O que se cscreveu na ocasião passou a ser válido para todas as ocasiões;
qualquer novidade aparecida posteriormente jamais seria canônica. É por isso que
tantos livros na Brblia foram editados com o nome de autores da era apostólica,
mesmo quando escritos depois.

57
CAPíTULO II

o que for considerado canôniCo, pensava-se, deve ser canônico em sentido


absoluto, incluindo-se até mesmo as letras do tex(Q. Neste pOIlW o cristianismo
apenas seguiu a interpretação legalista da lei judaica na qual cada letra hebraica, do
texto vétero-tesramcndrio, possui sentido oculto e é absolutamente inspirada. Nada
disso, no entanto, era suficiente, posto que a Bíblia, afinal, sempre precisou de
interpretação. Mesmo quando transformada em norma absoluta. Os gnósticos a
interpretavam diferentemente da igreja oficial. Em conseqüência, teve que surgir o
princípio da tradição. A tradição passou a significar a regula fidei, a regra a fé.
Quando isso aconteceu, o fato decisivo náo era mais a Bíblia, mas a regra de fé, da
mesma maneira como os doculllentos confessionais escritos depois da Reforma vie-
ram a ser o cânon decisivo para a instrução teológica e não mais a Bíblia.

A regra da fé também foi chamada de cânon da verdade; só é verdadeiro o que


vem dos apóstolos. r~ rrad.is~:lo apostólica (trarlitio tlposto!ica) que vai ser mediada
pelos presbíteros e pelos bispos. i'vlUJto embora essas coisas não estivessem ainda
bem defInidas, havia demasiados elemelltos na tradição, éricos e dogmáticos. Fazia-
se necessário um sumário concentrado da Bíblia e da regra da fé para ser confessado
por ocasião do batismo, o principal sacramento da época. Pressupunha-se, cnda,
que os bispos, respondveis pela regra da fé e pelo credo batismal, possuíam o dom
da verdade. E, de fno, possuíam a verdade porque eram os sucessores dos apóstolos.
E, assim, já se expressa com clareza a doutrina episcopal da sucessão apostólica.
Essa doutrina [ornou-se mais visível na Igreja de Roma, fundada por Pedro e Paulo,
segundo os pais antignósticos. A respeito dessa igreja dizia Irineu: "A esta igreja
todas as nações deverão vir, por causa de seu principado maior, igreja essa na qual a
tradição 'lpostólica sempre foi preservada".

'lemos, cnda, um impressionante sistCll1:l de autoridades (a Bíblia, a tradição


apostólica, a regra da fé, () credo batismal e os bispos) criado na luta contra os
gnósticos. É ImpreSSIOnante quão cedo tudo isso aconteceu.

2. A reação montanista
Contra a ordem ern desenvolvimento surge a reação do Espírito, comandada
por I'vlonranus. Foi de tal forma séria que um teólogo como Tertuliano ingressou
mais tarde no movimento. A reaçJo ll10nranista contra a fixação cclesi<ística do cris-
tianismo vai se estender pela história da igreja de um ou outro modo.

5K
DESENVOLVIMENTO TEOLl)CICO NA IGREJAANTICA

~M Os montJnisras tinham duas idéias fUI!damentais: o Espírito e o "fi_!!1_~" Acredi-


tavam que o Espírito havia sido suprimido pela igreja organizada. Os movimentos
espirituais eram remidos porque os gnósticos já haviam reivindicado a posse do
Espírito. Negava-se que os profetas possuíssem necessariamente caráter extático.
Circulava nessa época um folheto escrito por um leigo argumentando que não era
nccesdrio que os profetas falassem em êxtase. A igreja não mais conseguia entender
o espírito profético. Entende-se bem porque temia o Espírito: em nome dele entra-
vam na igreja os mais variados elementos perturbadores da ordem.

A outra idéia era a do "fim", Logo depois do desapontamento a respeito da'


vinda iminente do fim anunciado por Jesus e pelos apóstolos, os pais apostólicos
começaram a se estabelecer no mundo. Esse desapontamento causou enormes difi-
culdades e forçou a criação de uma igreja mundana, capaz de viver no mundo. O
momanismo reagiu contra essa igreja mundana. Mas eles, também, experimenta-
vam a frustra~~o do fi::n. .. q~le não viera. Assim, também eles tinham que se estabele-
cer no Inundo; também eles se tornaram igreja. 1\1as se transformaram numa igreja
estritamente disciplinada, antecipando, até certo ponto, o tipo secd.rio de igreja
aparecido mais tarde na época da Reforma e depois. Os montanistas acreditavam
representar o período do Pad.clito, em seguimento aos períodos do Pai e do Filho.
Os movimentos sectários revolucionários na história da igreja, em geral, dizem a
mesma coisa: pensam represemar a época do Espírito.

Acontece, porém, que ao se procurar fixar o conteúdo do ensinamento do Espí-


rito, o resultado é exatamente pobre. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os
quacres Jogo após o seu surgimento. Quando se fixa o conteúdo, não se vê nada de
novo ou, pior ainda, o novo não passa de forma mais Oll menos racional de moralismo.
Foi o que aconteceu com George Fox e seus seguidores, e com todas as seitas do
mesmo tipo. Na segunda geração, tornam-se racionalistas, moralistas e legalistas; o
elemento de êxtase desaparece; não sobra quase nada criativo em comparação com o
período clássico do cristianismo apostólico. Os monranisrJs fixaram seus
ensinamentos em novos livros; adotaram a idéia de certa sucessão profética. Natu-
ralmente, de maneira auto-contraditória, posto que sucessão é pflncíplO
organizacional e profecia não. A tentativa de combiná-los não deu certo e nunca
dará.

59
CAPÍTULO 11

A igreja cristã excluiu o rnontanisl1lo de seu seio. Contudo, a vitória sobre o


m01Hanismü resultou em perda. Podemos vê-la da seguinte maneira: 1. O cânun
venceu sobre a possibilidade de novas revelações. A solução do quarto evangelho de
que sempre haveria novas percepr;ões da verdade, sob a crítica do Cristo, foi, pelo
menos, reduzida em poder e semido. 2. A hierarquia tradicional triunfou contra ()
espírito profético. Com isto excluía-se, mais ou menos, o espírito profético da igreja
organizada levando-o a se abrigar em movimentos sectários. 3. A escatologia perdeu
grande parte da importância visível na c1'3. apostólica. A organização eclesd.srica
passou a ocupar o primeiro lugar. 1\ expectativa do fim reduziu-se ao apelo aos
indivíduos para que se preparassem p:1ra o seu fim pessoal que poderia vir a qual-
quer momento. Depois desse período a idéia do fim da história deixou de ter im-
portância. 4. A rígida disciplina dos montanistas foi abandonada, substituída pelo
afrouxamento crescente dos costumes. O que se passou nesta época tem-se repetido
freqüentelllCIlre na história da igreja. Surgem pequenos grupos com rigorosa disci-
plina; tornam-se suspeitos dentro d.a igreja; sel,aram-se e formam grandes igrejas;
em seguida perdem o poder disciplinar original.

3. Deus criador

Vamos considerar agora o ensinamento dos pais antignósricos dentro dos limi-
tes das proteções que erigir:lm contra o gnosticismo. Os gnósticos haviam cOl~~ras­
tado De~ls}~~l~._~o.m P~.~_I_S ~ç~G:~~~_~r. A teoria gnóstica era tida como b!mphemia creatoris,
blasfêmia do criador. Os teólogos neo-orrodoxos de hoje precisam se dar conta
disso. Eles, na verdade, conserVztl1l em sua teologia elementos gnósticos, como
i\1arcião. l\l1antêm essa mesma bbsfêmia dualista em relação ao Deus criador. Esta-
belecem a oposição entre o salvador e o criador de tal maneira que, embora sem cair
em heresia, blasfemam implicitamente contra a criação divina ao identificá-la com
o estado pecaminoso da realidade. Contra essa tendência, IrinÇ.u.~_firmavaa unicidade
de Deus; não há qualquer d~~lisl~~.<:_~:e~: ~ranro .a lei como o evangelho, a criação
como a salv~_~~~2 __ ~-Le~~~~!Tl ..~i? lnesmo qeus.:. ._

o Deus uno nos é conhecido IIlo especulativamente, nus existencialmente. A


sua frase: "Sem Deus não se pode conhecer a Deus". Deus jamais é objeto. Em todo
conhecimenro é ele que conhece em nós e por nosso meio. Somente ele se conhece
a si mesmo. Nós apenas podemos participar nesse conhecimento de Deus. Mas ele
náo é um objeto que possamos conhecer a partir do exterior. Não se pode conhecer
Deus em Sua grandeza, em seu cadrer absoluto e incondicional. Ele só é conhecido

GO
DESENVOlVIMENTO TEOuíGICO KA IGREJA ANTIGA

no amor com que vem a nós. Portamo, para se conhecer Deus é preciso estar dentro
de Deus; participar nele. Não se pode vê-lo como se fora mero objeto lá fora (ou
fora da gente). Esse Deus criou o mundo a partir do nada. Essa expressão, "a panir
do nada", não é descritiva, mas conceito protetivo com significado apenas negativo.
. Q~er dizer que não havia antes da criação divina ql1aIq~ler mat~l:i~._<"l.p~~~_~~-9...t:.~L.
. Pe:.~"~e:~:~_~
criado o mundo, como se pensava no paganismo. Ao criar o rnunclo,
Deus não dependia dessa lnaréria destinada a resistir à forma que o demiurgo, o
construtor do mundo, desejava lhe impor. A idéia cristá é que tudo foi criado dire-
umente por Deus sem qualquer matéria anteriormente existente. Deus é a causa de
.tod_~~ coisas.:. Seu propósito, o telos imanente de tudo, é a salvação da humanida-
de. Proclama-se, como resultado, a bondade da criação: o Deus criador é o mesmo
Deus salvador. A blasfêmia do Cri3.dor, nova ou antiga, baseia-se sempre na confu-
são da bondade do mundo criado com a sua distor<;ão.

Este Deus é triils,~_~~~~A~j_e. A paG~\~~:a_!!~~it:!~ _ ap~re~~ -pela.p~·imeira vez no:


~s~_rL(Q~ de Tertuliano. Embora Deus seja um só, ele nunca está só. Diz Irineu:
"Estão sempre com ele a palavra e a sabedoria, o Filho _e o Espírito, por meio dos
_
_q~~ais tudo t~~ livre e espontaneamente"-.. _.o_~~~~ ~é sempre Deus vivo. Não está só.
Não é uma identidade morta. Mantém em si para sempre a palavrJ e a sabedoria.
Palavra e sabedoria sao símbolos de sua vida espiritual, da sua auto-manifestação e
da sua auto-realização. O motivo da doutrina da trindade é esse falar de Deus em
termos de Deus vivo, para tornar compreensível a presença do divino como funda-
rnento vivo e criativo do mundo. Segundo Irineu, esses três são um só Deus porque
possuem uma só rlyrulmis, um só poder de ser, uma só essência, a mesma
potencialidade. "Potencialidade" e "dinâmica" são termos latinos e gregos para Sig-
nificar o que expressamos em nossa língua pelo termo "poder de ser".

Tertuliano falava da substância divina una desenvolvida na economia triádica.


"Economia" significa "construção". A divindade se constrói eternamente em unida-
de. IZejeira-se definitivamente qualquer interpretal):ão politeísta da trindade. Por
outro lado, Deus se estJbelecc como ser vivo, em contraposição à identidade morta.
Assim,_ Tertuliano empregou a fórmula UlUl substtlntitl, Ires persontle, para falar de
Deus.

Ao contrário do que ensina o _p!~o~ti~ismo, o __!1o_mem_X()_i__~_~~~~~~?m. C~iu ~em


virtude. de sua própria liberdags.: O homem, mortal por natureza, (cria se tornado
imortal medialHe a obediência a Deus, permanecendo no paraíso e participando no

61
CAPÍTULO 11

alimento dos deuses, proveniente da árvore da vida. Mas perdeu esse poder ao
desobedecer a Deus. Por isso deve ser reconquiscado. A imortalidade, como já dis-
semos, não é qualidade natural, mas algo a ser recebido como dádiva dos páramos
cternos. Não há outro modo de ganhá-Ia. O pecado é tanto espirimai como carnal.
Adão perdeu a possível Jirnilitudo (semelhança) de Deus, que era a imortalidade,
embora não tenha perdido a imagem natural, uma vez que é essa imagem natural
que o Fez humano. Temos aqui a conhecida distinção feita por lrineu entre similitur/o
e imago. Essas duas palavras foram empregadas na Vulgata, em Gêllcsis 1,26, para
dizer que Deus criou o homem à sua imagem, segundo sua semelhança. J..r.in~u inter-
preta essas dll~S palavras te.?~o,gicamente. Todos os homens possuem a im~gem na-
tural de ~eus; ?__ ~C?_~:1e~~l? como tal, Finito e racionai, é capaz de se relacionar com
Deus, A sirni!itud~ si.!?I~~f1ca que o homem P.9de se tornar semelhante a Deus. A
marca dessa sem~l~a_!~s_a_(a vida ctefll.~. Ao alcançar a vida eterna, o homem supera
a mortalidade natural e participa na vida eterna de Deus. Trata-se de dom divino.

4. História da salvação

A história da salvação foi descrita em três ou quatro alianças. A primeira vem da


criação. É a lei natural que é, em última análise, a lei inata do amor, A segunda se dJ
quando o homem perde sua participação inocente e imediata nessa lei e tem nova
chancc de ser reabilitado. A tcrceira é a lei restabeleci da por Cristo depois que o
judaísmo deformou a lei do 5inai. Mas é sempre a mesma lei do amor inata no
homem por natureza. Deus não promulga mandamentos arbitrários, mas reafirma
mandamentos idênticos à natureza cssencial do homem e que são, portanto, válidos
em qualquer circunstância. Em 'T'erruliano, porém, enCOIHramos a quana aliança,
porque ele era montanista. É a aliança com o Paraclero, o espírito divino, que (-Li
nova lei no fim dos tempos, Queria dizer que a história da salvação era entendida
como a educação da humanidade em termos de lei. Assim ficava mais Hcil se enten-
der porque o Anrigo Testamento E1zia parte das Escrituras cristãs e porque a filosofia
também pertencia ao cristianismo. São diferentes estágios numa mesma história da
salvação. A revelação de Cristo não os nega. Na verdade, os confirma. Os problemas
relacionados com o dualismo resolviam-se em termos de história da salvação vista
por meio dessas diferentes alianças. Não há só uma revelação. A idéia bíblica de
kairos significa que a revelaçáo se adapta a cada nova aliança: paraíso, naçáo eleita,
Cristo é, às vezes, Espírito divino. Em cada caso temos um kfúros apropriado, uma
plenitude específica. Este tipo de pensamento libera o cristianismo da estreiteza de

62
DESENVOIVIMENTOTEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA

pensar que a sua revelação é a única, incapacirando-o de perceber que ela se situa no
contexto mais amplo da história da revelação. Essa estreiteza acaba, como em Mareiao
e, pelo menos em parte, na escola barthiana, em isoiamemQ da revelação como se
nada tivesse a ver com a história inteira da humanidade.

}Sobrc a crisrologia, Irineu dizia: "O invisível do Filho é o Pai; o visível do Pai é
o Filho", Eternamente. Sempre id. alguma coisa potencialmente visível em Deus,
ao mesmo tempo em que também sempre !ú algo misterioso que poderíamos cha-
mar de abismo em Deus. Esses dois lados podem ser simbolicamente distinguidos
com os nomes de Pai e Filho. O Filho que eternamente é o visível do Pai manifesta-
~_?_.~~E~recir_nel_l~_c:'J?~~soalde Jesus, o Cristo. Os pais antignósticos sublinharam o
aspecto monoteísta do cristianismo muito mais do que os apologistas, porque esta-
vam enfrentando tendências politeístas no próprio cristianismo. Os apologistas,
com sua doutrina do Lagos, aproximavam-se perigosamente desse pensamento
politeísta ou triteísta, quando interpretavam o Espírito nos mesmos termos do Lagos.
Na linha de pensamento que vai de João a Inácio e a Irineu, o Lagos não é mera
hypMtasú menor, forma ou poder inferior do ser em Deus, mas o próprio Deus
enquanto revelado r, e'nquanro auto-manifestação divina.

Irin_cu __ ~~!_a.:mava a salvação de {lnf!keph~!tlioú~· (rc:~,~L~~~~~Em latim se lia


rcCtlpitu!tuio. Referia-se ~_:~J~~~~_)_, lOque dizia que todas as coisas no céu e na terra
se reuniam em Cristo. Irineu construiu a sua idéia de história da salvação a partir
daí. Queria dizer que o desenvolvimento partido em Adão resumia-se em Cristo e
nele se realizava plenamente. A nova humanidade começava em Cristo. Em Cristo,
finalmente, se alcançava o que a hUlnanidacle tinha que ser e que não chegara a ser
por causa de Adão. Entretanto, essa plenitude não se referia apenas à humanidade,
mas também ao cosmos. Para realizar tudo isso Cristo teve que participar na natu-
reza de Adão. Dessa forma, Cristo é o começo dos vivos enquanto Adão é o início
dos mortos. Mas Adão se cumpre em Cristo; querendo dizer que Cristo é o homem
essencial e Adão o homem que deveria ter sido esse ser pleno e não foi. Adão nunca
chegou a essa plenitude, pois viveu em estado de inocência infantil. Trata-se de
doutrina profunda que eu chamo de "humanismo transcendente", que afirma ser
Cristo a realização do homem essencial, de natureza adâmica, necessária por causa
da interrupção ocorrida no desenvolvimento humano, por meio de Adão. A inocên-
cia infantil de Adão perdeu-se, mas o segundo Adão tornou-se o que o homem
deveria tcr sido: plenamente humano. E nós também podemos alcançar essa plena
humanidade participando nessa humanidade que apareceu em Cristo. Aí se inclui

63
CAPÍTULO 11

a vida eterna, semelhança com Deus no que conccrnc à participação no infinito.

Quando começo a eS[LLdar essas coisas, surpreendo-me sempre ao observar como


essa teologia da igreja amiga era melhor do que a tcologia popular surgida no século
dezenove. Foi uma teologia muito mais profunda e muito mais adequada ao para-
doxo do crisrianislTlO sem se (Orn:1]" irracional, idior(l ou abSltrda.

Havia, naruralmente, elementos absurdos, aí pelas margens, pelas fronteiras,


sobre milagres e OUtras doutrinas. Mas a posição central era a mais profunda possí-
vel, cmcndendo o Cristo não como cvcl1m acidental ou transmutação do mais alto
dos seres, mas como humanidade essencial realizada, sempre relacionada com Adão,
ao ser essencial do homem c ao seu estado de queda.

5. Trindade e cristologia
Tenuliano criou uma fórmula fundamental para expressar a trindade c a
crisrologia. A linguagem jurídica que empregou com grande habilidade tornou-se
decisiva para o futuro. A fórmula de Tenuliano acabou entrando para os credos
latinos da Igreja Católica Romana: "Preservemos o mistério da economia divina que
dispôs a unidade em trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, três não em essência, mas
em grau, não em substância, mas em forma". Temos aqui pela primeira vez a palavra
trinit/H, introduzida por Tertuliano na linguagem eclesiástica. falou também da
unidade na trindade, negando qualquer Forma de tendência triteísta. Em vez disso,
introduziu a palavra "economia" na linguagem teológica. Essa palavra tornou-se
muito importante na igreja antiga. Ellar de economia divina é falar de Deus "cons-
truindo" suas manifestações nos períodos da história. A trindade é edificada de
modo vivo e JinClInico por meio de mani[esrações históricas. Mas nessa trindade só
há uma essência divina. Se traduzinllos "essência" por "poder de ser" chegamos ao
que o termo queria dizer. Só há um poder divino de ser, e cada uma das três malll-
festações econômicas do poder de ser participa no pleno poder se ser.

Deus possui eternamente a ratio (razão) ou fogos em si mesmo. f., sua palavra
interior, que caracteriza, nJtlIra\mt'nte, a existência espiritllal. Quando afirmamos
que Deus é Espírito, precisamos também acrescentar que ele é trinid.rio; ele possui
a palavra dentro de si e a unic1Jele com sua alHo-objetivação. A palavra procede de
Deus como os raios de luz procedem do sol. No momento da criação, o Filho se
torna a segunda pessoa, e o Espírito, a terceira. A subsráncia ou essência divina,
significando podcr de ser, pertence ~lS três pessoas. O (crmo "persona" de Tertuliano

64
DESENVOLVIMENTO TEOI(lCICO NA rGREjAANTIGA

não quer dizer a mesma coisa que a nossa palavra "pessoa". Vocês e eu somos pessoas
porque somos capazes de raciocinar, de decidir, de agir com responsabilidade etc.
Esse conceito de pessoa não foi aplicado a Deus nem mesmo às três hypostasis de
Deus. Mas, então, que queria dizer "persona"? Persona, como o vocábulo grego,
prosopali, era a m;íscara usada pelos atores para representar certos personagens. As-
sim, remos na trindade três [lCes, três semblantes, três expressões características da
divindade, no processo da auro-explicação divina. fazem parte da fórmula clássica
do monoteísmo rnnltáno.

Tertuliano também elaborou fórmulas b,-lsicas para expressar a cristologia. Di-


zia: "Percebemos uma essência dupla, sem confusão, unida numa só pessoa, em
Deus e no homem Jesus". Acha-se aí a fórmula da doutrina das duas naturezas ou
poderes de ser, na pessoa de Cristo. Pcr:;oJla significa, neste contexto, uma t'Inica
face individual ou um único ser de caráter pessoal, Jesus. Na pessoa de Jesus unem-
se dois diferentes poderes de ser, o divino e o humano. Cada um desses poderes é
independente; um não se confunde com o outro; e, no entanto, relÍnem-se numa só
pessoa. Se perguIHarmos como isso é possível, já estaremos antecipando as discus-
sões posteriores.

Mas que teria sido a encarnação: metalllorfose na qual Deus se transjôrma em


homem, ou a aceitação da essência humana pelo ser de Deus? Tertuliano opta por
esta última idéia. Como a maioria dos teólogos, Tertuliano acredita que Deus é
imutável, c que os dois poderes de ser precisam ser preservados em suas respectivas
identidades. Jesus, enquanto homem, n50 é um Deus transformado; é homem real,
verdadeiro. E quando se diz que ele é também Deus verdadeiro, não se afirma que
houve mistura de ambos. Se o Logos se transfigurasse ou se transformasse em uma
outra coisa, teria mudado sua natureza; mas o Logos continua sendo o mesmo
Logos no homem Jesus. Assim,. Tertulia~s:J?~ns~ mais em t:rmos do Logos que
adota uma natureza humana e não s~E:~I~_i~_~~éi~_ mitol?~Lca da trJnsn:~tação._

Segundo Irineu, o poder salvador é o Espírito divino que habita na igreja e


renova seus membros trazendo-os das coisas velhas para a novidade em Cristo. Cris-
to lhes dá vida (zoe) e luz (phÓI); dá-lhes nova realidade. Aceitamos pela fé que é
assim que Deus age no homem. Portanto, não precisamos de lei alguma amando a
Deus e ao próximo. Esse elemento paulino não é, porém, sUhcieIHemente forte
para superar elementos anripaulinos. Em última análise, o novo ser é místico e
ético. Neste sentido, o conceito de Irineu é a mais alta forma de catolicismo primi-

65
CAPÍTULO 11

(IVO, mas não é proresran te. No protestantismo a renovação se d~í. por meio da
justificação pela fé.

Irincu concebe o processo da salvação em termos de regeneração mística para a


imortalidade. Em contraste com essa idéia, Tertuliano entende que o conteúdo da
vida cristá se resume numa disciplina de cipo (Otalizanrc. Admite o processo educa-
cional orientado pela lei, reduzindo a vida eterna à realidade da obediência. Aí está
Tertuliano, com sua mente de jurista romano, amante da lei, e ao mesmo tempo, o
asceta pietista, que viria a se tornar montanisra. Em Irineu, temos a idéia da parti-
cipação mística; em Tertuliano, a sujeição à lei. São os dois lados do catolicismo
primitivo. O segundo aspecto, que é a sujeição à lei, tornou-se decisivo pouco antes
da ruptura protestante. Mas o movimcnto protcstantc também rcncgou a fórmula
dc Irineu, e se voltou para o outro lado de Paulo, teptesentado pela justificação pela
fé.

Encontramos, em Tertuliano, a forma Católica Romana do legalislllO judaico.


As relaçõcs cntre os seres humanos e Deus são regidas pela lei. O cristianismo não
passa de nova lei, Muito cmbor,-l o cristianis.mo retorne à religião da lei, não se torna
num outro sistema judaico de lcis e regras graças à salvação sacramental. Portanto,
podia dii',er: "o evange!iutn, o Evangelho, é a nossa lei especial", Ao se transgredir a
lei produz-se a culpa e se requer punição. "Mas se fizermos a sua vontadc, elc sc
tornará nosso devedor. E assim poderemos ganhar méritos". H~l duas classes de
cxigências: preceitos e conselhos. Desse modo, cada cristão pode adquirir o seu
tcsouro de santidade por meio do qual devolve a Cristo o que Cristo lhe deu. As
virtudes dos cristãos são coroadas. O sacrifício da ascese e do martírio leva Deus a
fazer o bem para nós. "Na medida em que vocês não se poupam, nessa mesma
medida, creiam-me, Deus poupará a vocês", Encontramos, ncste final do segundo
século, muitas idéias que se vão tornar importantes no cawlicismo romano posteri-
or. Já se encontra aí a idéia de que embora os preceitos sejam para todos, h,-l conse-
lhos especiais para os monges, bem como a idéia de que Cristo é a nova lei. O
catolicismo romano surgiu rapidamente no cristianismo. A razão é quc o catolicis-
mo romano foi a forma na qual o cristianismo pôde ser facilmente rcccbido, inclu-
indo em si todas as Formas de pensar e de viver dos romanos e dos gregos.

+~6. O sacramento do batismo

Nesta época o batismo ainda era o sacramento mais importante. Removia os


pecados passados. Tinha dois sentidos: a lavagcm dos pecados e a recepção do Espí-

GG
DESENVOlVIMENTO TEOLÓGICO NA J(;REJA ANTIGA

rito divino. Pressupunha-se, para (anro, a confissão batismal do credo, a consciên-


cia dos próprios pecados e a certeza do Salvador.

A prática do batismo obedecia a três características: 1. Os candidatos ao batis-


mo recebem a imposição das mãos e o óleo sagrado, tornando possível a recepção do
Espírito. 2. A pessoa que vai se batizar rejeita o diabo com toda a sua pompa e seus
anjos. Abandona o domínio do demônico; rejeita para sempre qualquer participa-
ção no paganismo. Não se tratava de mera fórmula moralista; era algo bem mais
profundo. Esse ato representava o abandono dos demônios que governavam o mun-
do e a rejeição do paganismo politeísta. 3. O terceiro elemento no batismo era a
unidade de perdão e regeneração. A existência pagã terminava, e começava, em seu
lugar, a existência cristã. Terminava 110 batismo o estágio preparatório para a inici-
ação nJ. vida da igreja. Os novos batizados passavam a ser chamados de tcleioi, per-
feiros. Pois haviam alcançado o telas, o alvo interior d~l própria existência humana.

A teoria do batismo entre os pais anrignásticos afirmava que o Espírito se unia


à água, como nos mistérios gnósticos. Tertuliano, com sua formação estóica, não
tinha dificuldade de emender o Espírito como força material imersa na água. Os
pecados eram apagados, de certa forma, fisicamente, e o Espírito era também con-
cedido fisicamente. F" o que se chama de "materialismo" de Tenuliano. Essa doutri-
na é importante porque tornou possível o batismo das crianças. Se a água é o poder
salvador, a criança pode ser salva da mesma forma que o adulto. Mas não foi sem
certa dúvida que Tertuliano aceitou essa doutrina. Mas o cristianismo teve que
aceitá-la assim que deixou de batizar indivíduos, um a um, convertidos do paganis-
Ino, para batizar "todas as nações". Assim, as crianças não podiam ser excluídas.
Tendo emão que incluir as crianças no batismo, foi preciso desenvolver uma teoria
completameme objetiva desse sacramento, posw que as crianças não tomam deci-
sões pessoais.

A Ceia do Senhor era para Irineu a mediação física da imortalidade. Nela o


cristão se unia com elementos celestiais e divinos.

Essas idéias estavam nas bases da criação da Igreja Romana; c acabaram exer-
cendo enorme influência nos séculos seguintes. A Igreja Católica já estava pronta
por volta do ano 300 de nossa era. Não se pode dizer, pois, que o protestantismo
tenha sido uma volta aos primeiros tempos. As feições católicas já eram poderosas
nessa época. Essa é uma das razões porque a "via media" do anglicanismo, que seria
em si a solução ideal para o cisma das igrejas, não funciona. A assim chamada

67
CAPíTULO II

concordância dos primeiros cinco séculos não representa de modo algum qualquer
concordância com os princípios da Reforma. Portanw, se alguém disser que nos
uniríamos voltando ao que se pensou de Irineu a Dionísio Arcopagita, eu diria que
é melhor ficar católico, porque o protestantismo não pode fazer isso. Há muitos
elementos nesses primeiros séculos que o protestantismo não pode aceitar como,
por exemplo, na doutrina da igreja, o sistema da autoridade e a teoria dos sacra-
mentos, não tanto em rclaçáo com a trindade e com a cristologia, embora as impli-
cações dessa doutrina da igreja aí também se façam presentes.

E. Neoplatonisrno

o fim da filosofia grega se dá quando a filosofia se transforma em religião, c a


religião, por Slla vez, também se transformara cm fllosofia mística. Quando, então,
certos filósofos se tornam cris[;Íos, estão acostumados a utilizar uma filosofla que já
era meio religiosa. A filosofia ensinaciJ. nessa época não tinha nada a ver com a
filosofia empirista, nem com o positivismo lógico, ncm com os naruralistJ.s. Na
época do Novo Testamcnto, a filosofia estava cheia de atitudes religiosas. É por isso
que o cristianismo ptecisava tratar de fliosofia, pois era uma religião rival. O nome
dcssa filosofia religiosa era neoplatonismo. Idéias platônicas, estóicas e aristotélicas
uniJ.m-se ~LI:um sistcma fllosófico e religioso ao mesmo te~~~po. O neoplatonismo
expressava as aspirações do mundo antigo por nova religião. Expressava também a
dissolução de todas as religiões particulares e, ao mesmo tempo, o colapso da razão
autônoma, impossibilitada de criar por si mesma novos conteúdos de vida. Portan-
to, esses filósofos tornaram-se místicos c, como tais, procuraram criJ.r uma nova
religião sob a proteção imperial dc ]uliano, o apóstata. E, assim, se opuseram ao
cristianismo. Os grandes teólogos alexandrinos, Clemente e Orígenes, enfrentaram
o desafio do neoplatonismo e utilizaram seus conceitos para expressar o cristianis-
mo.

O neoplatonismo é importante não s_~y_?r causa dc sua influência sobrc o


pensamento dc Orígenes, respondvel pel? primeiro sistemJ. teológico, mas porque
-- ;~fhlenciou, po-r--;1~-~i~ --de Dionísio Areol;agit~~~-~~~"{~s as fo~mas -de misticismo cris-
tão e a maior parte das formas da teologia cristã clássica, ~spccialmcnte a respeito
-J~-;~;ri-~;~;'-'dc"D~~I~~~~mUI~_do__ ~ __ ~_;~ __ ~1-lm-;.-·N50 sc pode cntender o desenvolvi-
mento posterior da tcologia cristá sem conhecer-se algo a respeito do neoplatonismo,
a última grande tentativa do paganismo para se expressar em termos de teologia

68
DESENVOLVIMENTO TEOI()CICO NA IGREJA ANTICA

filosófica, significando ao mesmo tempo ciência c vida para a mentalidade antiga.

Platina foi o mais import~_~:-~ fi}ó~.s:fo des~e sistema. Não entram aí elementos
apenas científicos e religiosos, mas também políticos. O imperador ]uliano, o
apóstata, tenWl1 jmfoduzir o sistema neo-platônico contra o cristianismo, demons-
trando que o considerava não só ciência, mas um sistema todo abrangente de eleva-
ção religiosa da alma.

Para Platino, Deus (.9J:!.~~transc.endental;transcende rodos os números, mes-


mo o número "um" na medida em que inclui o 2, o 3, o 4, o 5 etc. Está além do
número e por isso é chamado de "um", AssiI~1"--SC:lllP~.,::_q~1~2_~y!rmos -ª_Rª1~YTª_~~~I~~"
_Ol~ "uno" na 1illg_~l~g~m mística, não se quer falar de um número entre outros, mas
daquele que trans~ende tod~_--.?~~~~I~~~~:.?_s. O Uno indica em particular o que está
além das divisões b~í.sicas da realidade, tais COIllO a separação entre sujeito e objeto,
e entre eu e mundo. Portanto, o divino é o abismo de todas as coisas específicas,
onde desaparecem toebs as coisas definidas. Embora não seja algo meramente nega-
tivo, pelo contrário, é plenamente positivo ao conter em si tudo o que é. Quando
lemos na literatura mística a respeito do "nada transcendental", não devemos inter-
pretar a expressão como se escivesse dizendo "luda". Ela se refere à "não-coisa", isto
é, ao nada definido, ao nada finito, base de todas as coisas definidas e finitas. Uma
vez que o Uno não abriga em si a diferença, é imut<Ível, imóvel e eterno. A partir
desse fundamento eterno de todas as coisas, onde também tudo desaparece, todas
as coisas se originam ao mesmo ternpo. Esse sistema pretende descrever a maneira
como o mundo e todas as formas se originaram na base mais profunda do ser. A
primeira coisa originada, como a luz irradiada pelo sol, é o que em grego se chama
de f/OUS ("mente", "espírito"). Trata-se do segundo princípio a partir do primeiro,
que é a base do ser de onde emana. Este segundo princípio, o naus, é aquele no qual
o primeiro princípio, o fundamento eterno, se contempla a si mesmo. É o princípio
da auro-intuição do eterno. Deus se manifesta a si mesmo no princípio do nau.'>.
Esta auto-intuição do divino no nous é a fonte de todas as formas e estruturas, de
rodas as possibilidades e do que Platão chamou de "idéias". Essas "idéias" são as
potencialidades essenciais do ser. O naus contém todas as coisas belas e verdadeiras.
Tudo isso reside na mente divina e Juto-intuição do fundamento. A mente de Deus
não contém apenas as essências universais - humanidade, vermelhidão etc. - mas
também as essências dos indivíduos. A forma de cada pessoa está em Deus, inde.:.-
pendcllte das mudanças ocorridas nos difercntes momenros de nossas vidas, como
se um grande pintor a visse e expressasse ao nos fazer o retrato.

69
CAPíTULO"

( Há um terceiro princípio denominado por Platina de "alma", A alma é o prin-


cípio da vida em todo o pensamento grego. Não é, primeiramente, substância imortal,
mas princípio do movimento. É o princípio que movimenta as estrelas, de tal ma-
neira que se pode dizer que as estrelas têm "alma". É o princípio que movimenta os
anitnais c as plantas, de tal l11odo que eles também têm alma. l~ o princípio que
movimenta nossos corpos. Então, temos alma. Esse princípio movimenta igual-
mente o universo. Há, porralHo, a alma do universo. Esse princípio está entre o
nous e a realidade do corpo. É o poder produtivo do mundo existente. forma c
controla a matéria assim como o princípio de nossa vida forma e controla mdas as
células de nosso corpo. A alma do mundo se realiza em muitas almas individuais.
Todas as coisas têm sua alma individual. Essas almas individuais conferem movi-
mento e vida a tudo o que existe, tendo todas o mesmo princípio comum na alma
do UI1lverso.

o princípio da alma, universal c individualmente, é o princípio da ambigüida-


de. Plotino sabia que a vida era ambígua, e que a ambigüidade era uma caracterís-
tica definida da vida. A alma volta-se tanw para o espíriw (nO/H) como para a
maréria. Dir-se-ia que olha para dois lados; busca sempre conteúdos significativos.
Nós chamamos a isso, em nossa linguagem, de vida espiritual dos seres humanos,
expressa em conhecimento, ética, estética etc. Ao mesmo tempo se volra para a
nossa existência física c para o lll11ndo das coisas materiais.

Todas as coisas exisrcntes tênl seu lugar neste sistema de hierarquias que vão
desde o fundamento do ser à mentc, à alma e à matéria. Platina conseguiu, assim,
incluir em seu sistcma todo o mundo mitológico depois de o purificar com a filoso-
fla. Os deuses pagãos transformaram-se em poderes de ser bastante limitados, ocu-
pando lugares específicos na totalidade do real. O mundo é harmonioso; dirige-se
pelo princípio da providência. A junção de providência e harmonia - principal
princípio do Iluminismo e da crença moderna no pl"Dgresso - fundamenta a visão
otimisra do mundo. Esse otimismo é imediatamente sentido em ourra afirmação de
Plotino de que as forças planed.rias, consideradas forças demônicas, não passam de
ilusão. Não possuem poder independente; submetem-se à providência, bem como
Paulo as descreve em Romanos 8. A diferença é que Platina deriva seu ensino dessa
filosofia da harmonia cósmica, enquanco Paulo, do triunfo vitorioso de Cristo sobre
os demônios.

H,Í muitas almas diferentes no cosmos; almas mortais, como as das plantas, dos
animais e dos seres humanos; e imorrais, como a dos seres divinos e meio divinos da

70
DESENVOLVIMENTO TEOLCíCICO NA IGREJA ANTIGA

mitologia antiga. Os deuses mitológicos, como j~l vimos, são restaurados neste sis-
tema como poderes de ser. Não se contradizem entre si porque ocupam lugares
próprios no sistema hierárquico.

o princípio ordenado r do mundo, em termos de providência, é o Lagos. O


Lagos é o lado racional do nous, ou mente. Não é lima outra hierarquia, mas apenas
o lado dinâmico do naus; é o princípio da razão que organiza todas as coisas provi-
dencialmente, dando-lhes lugar próprio. Em termos modernos, diríamos que se
trata da lei natural à qual tudo se submete, ramo na física como nos corpos vivos. O
naus não é o Lagos; é a fonte de todos os conteúdos, mas o Lagos é que os ordena. O
Lagos é o princípio dinâmico, o poder que opera providencialmente e dirige as leis
naturais e l11oralS.

Por causa dessa ambigüidade, a alma é capaz dc abandonar o nous, e com ele a
fonte eterna do Uno abissal. Pode se separar da origem eterna e cair em regiões
inferiores. A natureza é o domínio do inconsciente; situa-se entre a matéria e a alma
conscielHe. Mas a natureza está cheia de almas inconscientes; é só no homem que a
alma tcm consciência plena. A fonte do mal é o abandono do nous pela alma na
direção da matéria, do reino corpóreo. O mal não é poder positivo. É a negação do
espiritual. É panicipação na matéria, não-ser, participação no que não tem poder
de ser em si mesmo. O mal ap;:nece quando a alma se volta para o não-ser. Nem os
gregos nem os cristãos admitiram que o mal pudesse ter realidade ontológica. .6...
_i9{ii:1 da ~::,istência de um fundamento divino d~__~aL de um ser divino encarregado
~rod_l!_~ir o mal, é heresia maniqueísta. O_~l~'~L_(...!lâo-ser. Quando se faz esta
afirmação, venha ela de Pio tino, de Agostinho, ou de mim mesmo, argumenta-se
que nesse caso o pecado deixaria de ser levado a sério e que, afinal, não é coisa
alguma. O som da palavra "não-ser" cLí a impressão a algumas pessoas de que o
pecado seja imaginário, não real. Entretanto, a distorção de algo que tem ser é tão
real como o estado de perfeição desse mesmo ser. Apenas diríamos que não é
ontologicamente real. Se o pec;:Ido fosse ontologicamente real, haveria então um
princípio criador do mal, como no maniqueísmo; mas é isso, precisamente, que a
doutrina cristã da criação nega. Agos_~inho__ dizia_.::.~s-=~q~a esse bonu"!L_~s!::~ o ser
enquanto ser é bom. O mal é a deformação da boa criação.
- - - ' - - - --------------- ----------------- -_ .. -- . ---.-----
Plotino descreve esse não-ser (me on) como a matéria que se pode transformar
em ser. Este não-ser do qual ele fala é o que ainda não tem ser e que resiste ter ser.
É o que não tem medida, limite e forma. Está sempre em falta, não se define e tem

71
CAPÍTULO II

fome; é a pobreza absoluta. Em outras palavras, o mal é a presença deste não-ser em


nossa existência física. É a ausência do poder de ser, do poder do bem.

A alma voIra-se para este não-ser porque acredita poder se manter por si mesma
cOln o seu auxílio. Dessa forma, separa-se do fundamento c do nous com quem vivia
originalmente. Mas logo se volta na procura do fundamento de onde saíra. Amoro-
sa, a alma ascende ao que é digno de ser amado: o fundamento e origem do próprio
ser. Quando a alma alcmça esse alvo supremo de sua aspiração, torna-se como
Deus. Ao possuir a intuição suprema do divino, une-se a Deus. Mas não é fácil.
Esse caminho passa primeiramente pelas virtudes e depois pela purificação ascética.
A união flnal com Deus l1áo é alcançada pela moral ou pela ascese nesta vida. Só
pode ser alcançada por meio dJ. graça, Oll seja, quando o poder divino do Uno
transcendental apreende a mente em êxtase. Isw só acontece raramente, mediante
grandes experiências jamais Forçadas.

No mais alto êxtase acontece o que Platina chama de vôo do um para o Uno,
isto é, dos indivíduos para o supremo Uno, além de todo número. Qual é o telos, o
alvo interior, o propósito, do ser humano? Platáo já dera a resposta: hOJJloiosis tou
theou ktltt.l do d)'natol! (tornar-se semelhante a Deus tanto quanto POSSLvel). Era esse
o alvo das religiões de mistério, nas quais se pensava que a alma participaria no Uno
eterno. É esse o esquema do pensamento alexandrino. Trata-se de um círculo que
começa no Uno abissal, e vai descendo por meio de emanações pelas hierarquias até
chegar às situações ambíguas em que se encontra a alma, quando ela cai no poder
do mundo material, determinado pelo não-ser. O círculo continua, então, com a
elevaçáo da alma, de volta por todos esses caminhos até o grau mais alto, alcançando
o seu alvo por meio de êxtase. Guardemos este sistema em nossa memória, pois náo
poderemos entender a relação do cristianismo com o misticismo e com a filosofia
grega sem ele.

F. Clemente e Orígenes de Alexandria

1. Cristianismo e filosofia
o sistema n~o_pb(ônico desenvolv.eu-se em Alexandria. Ammônius Saccas ensi-
nou (anto Platina como Orígcncs. Orígen~~._"~,?_i o principal teólogo e filósofo da
__ ~~_~_?.!a de ~l~;-.lI1dria. Era uma escola catequética, uma espécie de seminário teológi-

72
DESENVOlVIMENTO TEOICÍCICO KA IC;REJA ANTIGA

co. O primeiro grande mestre dessa escola foi Clemente de Alexandria. Utilizava a
doutrina do Lagos de modo radical. Nesse aspect~ depe~di~-;nuito mais do estoicismo
do que da escola platônica. Deus é o Uno além dos números. Mas o Lagos é o
mediador de todas as coisas nas quais o divino se manifesta. O Lagos é o órgão
divino destinado a amar os seres humanos e, portanto, o educador da humanidade
no passado e no presente. O Lagos, Juto-manifestação do divino, age constante-
mente llas mentes humanas. Preparou os judeus por meio da lei, e os gregos pela
filosofia. Tem sempre preparado as nações. Jamais se ausenta de seu povo.

Quando _çlemer"ill~..fala de filosofia não (em em meme alguma filosofia especí-


fica, mas o que seria verdadeiro em todas as filosofias. Em seu pensamento, inúme-
ros elementos da filosofia grega se misturam com materiais bíblicos. Cita ampla-
mente fontes estóicas.l.tl~.~<2.,4.~zill o cristia.nismo não apenas ao pensamento filosó-
.,)k,Q, mas também à maneira filosóflc.~_Q~_. ~j\'~D Pholosophein significava para ele o
esforço pela vida perfeita. Viver Fdosoficamenre, segundo os pensadores gregos de
então, significava procurar viver o mais perto de Deus possível. Clemente achava
que se devia viver segundo o Lagos, llma vida logikon; talvez pudéssemos traduzir
essa expressão por "vida significativa", vida em termos de sentido objetivo. Os cris-
tãos começam com a. fé, pistis. Embora pistis, do grego, e fé não sejam a mesma coisa.
Pistis significa o estado de estar em fé. Neste sentido entenderíamos a fé corno o
estado de participação na realidade do novo ser. Inclui conversão, tendências ascéticas,
paixões e esperança. É o pressuposto de rudo mais no cristianismo. Neste ponco,
Clemente se desvia dos filósofos gregos. Viver segundo o Lagos significa participar
nos domínios da fc e do amor, isto é, nos domínios da igreja. Os t~§I_<:?_~s alexa!ldri~~
_~~ __ er~!~~X[~?sofos independentes, mas membros da igreja cristã. Portanto, partici-
pavam nesse estado da fé pressuposto por todo conhecimento. No entanto, o estado
de fé era insuficiente, uma vez que era entendido apenas como assentimento e
obediência. Qualquer verdadeira participação exige algo mais, certo impulso na
direção do conhecimento ou gnóús. Os cristãos são os "gnósticos" perfeitos. Gnósis é
fé cognosciva, cujos conteüdos passam pelo conhecimento. Trata-se da explanação
científica das tradições da fé. O termo "científico" é empregado aqui em sentido
metodológico e não segundo o uso das ciências naturais. Todas as pessoas cami-
nham nessa direção, mas são poucas as que chegam ao alvo. Segundo Clemente, os
perfeitos são os "gnósticos segundo o cânon eclesiástico". Assim, os filósofos subme-
tem-se à tradição eclesiástica que aceitam ao entrar para a igreja. O bem supremo
para esses gnósticos perfeitos é o conhecimento de Deus. Não se trata de conheci-
mento teórico, em termos de argumentos e análises, mas de participação em Deus.

73
CAPÍTULO 11

Não ~ episteme, conhecimento científico; é gnóJis, conhecimento místico alcançado


mediante participação no conhecido. Não se trara, pois, de qualquer cipo de gnóús
devotadas ~l especulação livre, mas de participação na congregação e em Deus. A
tradição é o cinoll, isto é, o critério, e a igreja é ;] mãe, sem a qual essa gnrisis jamais
seria alcançada.

_ Opensamcny?~_e_ Çl~!l~cr~(c sillte~~~~a._?p'~_~~s~.I~~_~t? cristão e a filosofi~_.grega.


O cristianismo não podia ignorar o Ileo-plaronismo com seu sistema universal e
extremamente impressionante. Reunia tlll si todos os valores do passado. O cristi-
anismo tinha que usá-lo c, ao mesmo tempo, conquistá-lo. Foi o que fez a escola ~e
_. _~lexandria. O c~is~~nisll1o foi elevado ao mais alto estado de educação.

PorFlrio foi um dos mais importantes pensadores neoplatônicos. Reconhecia o


alto padrão educacional da escola de Alexandria, principalmente de Orígcnes. Ape-
nas lamentava que Orígenes vivesse nessa tradição cristã, b~írbara e irracional. Não
podia entender, como neop1atônico, que alguém inteligente pudesse participar na
congregação cristã. PorFírio reconhecia :1 criatividade filosófica de Orígenes; achava
que Orígenes fazia uma interpretação "helenizada" dos estranhos mitos da Bíblia
com o auxílio do pensamento grego. Na verdade, Clemente e Orígenes eram filóso-
fos gregos, mas, ao mesmo tempo, fiéis e obedientes membros da igreja cristã. Não
tinham (h/lvida de que essas duas tradições podiam ser combinadas.

Orígenes começa o seu sistema com a questão das fontes. Leva-as mais a sério
do quc Clemente. São os escritos bíblicos e seu resumo no ensino e na pregação da
igreja. A antiga "regra de fé" dav;1-lhe a estrutura sistemática para seu pensamento,
Illas as Escrituras fundamentavam os conteúdos. _O primeiro passo do verdaci,:j"r<!
teólogo é a aceitação da n~~~~agem bíblica. Ninguém pode ser ~~~}~!2?_~~Ll:_J~~:.ten­
cer à igreja. Os filósofos livre-atiradores não são tcólogos cristãos. Requer-se muito
mais do que isso do tcólogo. Ele precisa procurar entender a mensagem em termos
filosóficos. Para Orígenes significava entender a mensagem em tcrmos de filosofia
ncoplatô nica.

2. Método ale gótico


Para Orígencs, as Escrituras represcntavam a autoridade básica. Distinguia três
diferentes sentidos na Bíblia. 1. '-.)entitio mrndtito, literal ou filológico. Todas as pesso-
as são capazes de entender o sentido somático (de soma, "corpo"); é a mesma coisa
que o sentido histórico litcral. 2. Sentido psíquico ou mora!. Significa a aplicação do
texto bíblico à nossa situação, de car~üer existencial. 3. Sentido pneumático ou espiri-

74
DE.IENVOLVIMENTO TEOL()GICO NA IC;REJA ANTIGA

tua!. Alcançado apenas pelos perfeicos, não no sentido moral, mas místico. •...Há Casos ~_ .. ~--

_em que . o._ texto ~g?}}_~_~__ ~? _ t5:_~~~,"~s..se ~~_~Iltido místi~.?_;_n5;s~e caso, coincide com o
senricioHrcral. En[re~a~~o~_~_mg~LaIL?_.~~~!~.t}9:l?,._~~~s_ticose distingue do literal. Ele é
.e.!1contrac!?-E~:__~l~io do método alegórico; com es~c méto.~o sep?~:_--Eerc~
signiEc;}do oculto n~0 te_)(~~~ _

A doutrina deste método alegórico, com a idéia do significado místico dos


textos, foi foftcmcme rejeitada pelos reformadores do século dezesseis, c é estranha
ao nosso realismo filológico moderno. Mas qual seria a razão existente por detr~ls do
método alegórico~ É fácil de se entender. Surgiu para tornar aplicável à situação do
intérprete o texto absolutamente autorizado. Era preciso um outro sentido além do
literal. É o que os pregadores fazem com os textos bíblicos. É o que fazem, hoje em
dia, os intérpretes do Antigo Testamento quando encontram aí os prorllll1ciamen-
tos cristo lógicos do Novo Testamento. Quase impossível não se utilizar tal método;
diante de qualquer tex(Q considerado absolutamente autorizado, cujo sentido !ite-
r'al nada tenha a nos dizer, conscientc ou inconscicntemente, passamos a usar um
método que transfere o sentido original para o sentido existencial. Naturalmente,
pode-se subverter cOlnpletamente a auwridade do texto. Por isso, a reforma iuterana
restabeleceu o texto frlológico, genuíno e literal como a verdadeira autoridade. Mas
quando examinamos as declarações dogmáticas com suas provas derivadas da Bíblia
em autores ortodoxos e fundamentalistas, vemos imediatamente que empregam
exatamente o mesmo método de Orígenes; utilizam um método que interpreta a
Bíblia além dela mesma. Somente quando formos completamente honestos pode-
mos tomar o texto literal e dizer: "Este texto não tem nada para nos dizer" ou
"Devemos dizer algo mais; vamos além do texto, sem tentar expressar qualquer
signifreado que aí esteja oculto". Eu acho que é a única atitude consistente. Mas,
tomemos um outro exemplo - a constituição americana e suas emendas. São docu-
mentos que têm validade legal absoluta. Mas para torná-los aplicáveis recorre-se à
Suprema Corre que os intcrprcta. A interpretação é sempre a aplicação do texto à
situação presente. Os juízes da Suprema Corte não usam o método alegórico; fa-
lam, em vez disso, no "espírito" da lei, e o espírito da lei pode muitas vezes contra-
dizer a letra da lei .

. l-!á.~~la~_ classe.s_d_e_~ristãos: 1. Os simples, qu:. aceitam a autorida~e_da_rI1-"ns~::.


_gem bíblica e os ensinamentos da igreja sem os entender comple(amen(~.:. Recebem
os mitos literalmente. Como dizia Orígenes, preferem os milagres de cura à história
de Jesus com os três apóstolos no monte da transfiguração, que é uma expressão

75
CAPÍTULO 11

alegórica ou metafórica dos que vão além do sentido literal à interpretação transfor-
mada desse sentido. Orígcnes referia-se à aritude dos cristãos primitivos como "mera
fé", Representava um grau inferior da perfeição cristã. Todos os cristãos começam
aÍ. 2. Há outros que recebem o carisma da gnósú, a graça do conhecimellto. Dessa
maneira, os gregos educados que se convertem tornam-se cristãos perfeitos, natu-
ralmente, na base da fé. Este concciro de fé difere do sentido de fé no protestantis-
mo. Aqui a fé quer dizer aceitação de dOllrrinas, enquanto no protestantismo, é a
aceitação da graça conciliadora de Deus.

Par;! _QF!~nes, _!::~~g_~<:2I~lerl com a accirJ,ção da autoridade; em seguida vem a


co.mprec,nsão racional autônoma da tl1ens~~g~m bíblica. O segundo passo não elimi-
na o primeiro. Na verdade, só é possível depois dele.

3. Doutrina de Deus

_9 sisten~~.de 9rígen.s:~~ç--º_n]5;ça _Ç2_IJl_~1_. d5~utriQ9-<::I~..I)~us. Deus é o próprio ser


e, portanto, além de todas as coisas existentes. Situa-se além do conhecimenw por-
que o conhecimento pressupóe divisão entre sujeito e objeto. Ultrapassa a mudança
e a paixão. É a fOllte de rudo. Possui seu Lagos, palavra interior, automanifcsração.
O Lagos manifesta Deus para si mesmo e (~~2'<2. ~s-par<l:_C?-'!1~.:! . nd~:-É o poder de ser
sempre criativo. Nele reúnelll-se rodos os poderes de ser. Ele unifica o mundo
espiritual. É o princípio universal de rodas as coisas particulares, de tuelo o que
possui ser. Este Logos divino irradia-se eternamente das profundezas do fundamen-
to do ser, do abismo divino, assim como o esplendor se irradia da fonte da luz.
Portanto, não se deve dizer: "O ~ilho ncm sempre existiu". Negar-se-ia assim a
eternidade do Lagos. Nun~~l~~~lv~L~I2.~t'_I~:p'~~_I~?:_queo Filho, o Logos eterno, não
eXistIU.

o Lagos ctcrno é gerado eternameme da substância divina. Não é criado "elo


nada". Não é fInito. É da mesma substância do Pai. A fórmula homoousios lo patri
(da mesma substância do Pai) aparcce aqui pela primeira vez. Em que pese a cterni-
dadc do Lagos, ele é menor do que o Pai. Somcnte o Pai não tem origem; ncm
mesmo foi gerado. É auto theos (Deus de Deus), enquanto que ü Filho é Dcus
procedcme do Pai. O filho é a imagem da bondade ou da essência ou da natureza
de Dcus, mas não o próprio Deus.

Temos, assim, dois princípios no pensamento de Orígenes: o Filho é co-eterno


com o Pai, mas seu poder de ser é pouco inferior ao do Pai. É a mais alta das

76
DESENVOLVIMENTOTEOLCicICO NA ICREJA ANTICA

realidades geradas, mas menor do que o Pal. O mesmo se diz do Espírito que age
nas almas dos santos. Embora a tradição religiosa das congregações exija a tria_s
Ju~~t~~rn~~!ic!_? __de ~14_()!~ção, o Espfrito é consid~E~~l~_menor d?ClU~ o [.ilha e o
FUho, me~:.~r __ ~~o "que o Pai. Às vezes, até mesmo os seres espirituais mais elevados são
também chamados de deuses. Há, pois, dois princípios conflitantes no pensamen-
to de Orígenes. Um deles é a divindade do Salvador; se não for divino não poderá
salvar. O olltro é o esquema das emanações. Há graus de emanação a partir do
absoluto, que é o Pai, até os níveis mais baixos. A linha divisória entre os três mais
altos (Pai, hlho e Espírito Santo) e o resto dos seres espirimais é, de certo modo,
arbi trária.

As luturezas racionais, ali espíritos, que são eternas, eram originalmente iguais
e livres, mas romperam a unidade llue tinham conl Deus, em diferentes graus de
distância. Como resultado dessa revolta celeste contra Deus, caíram e receberam
corpos materiais. Foi a Slla punição e, ao mesmo tempo, a forma para se purifica-
rem. A alma humana é mediadora entre esses espíritos caídos e o corpo humano. A
alma humana é o espírito congebdo, isto é, o fogo intenso, símbolo do Espírito
divino, reduziu-se a um processo vital. A queda é transcendente. Precede nossa
existência no telnpo e no espaço. E é livre: decidida em liberdade. A liberdade não
foi perdida na queda, permanecendo presente e real em todas as situações concre-
tas. Em nossas diferentes maneiras de agir, a queda transcendental se torna realida-
de histórica. Poderíamos dizer que os atos individuais representam a natureza eter-
na da queda. Em outras palavras, nossa existência individual no tempo e no espaço
j~l teve um prelúdio nos céus. O Luar decisivo a nosso respeito já aconteceu antes de
aparecermos na terra. Coisa que tem a ver com a noç..í.o de pecado. O pecado baseia-
se na queda transcendental. Essa doutrina da queda transcendental é difícil de ser
entendida pelos que estão habituados com o pensamento nominalista. Só se torna
compreensível quando percebemos que os poderes transcendentais são realidades e
não coisas individuais.

Esta doutrina contém profundo significado que a torna necessárIa como sím-
bolo cristão. Quer dizer que a existência humana e a existência da realidade, como
um rodo, não podem scr consideradas apenas como criação divina, mas também
como culpa e julgamento. Quando cOlltemplamos o mundo, vêmo-lo universal-
mente caído. Essa queda permeia rodas as coisas, no ser humano e fora dele. Se
perguntarmos: De onde procede a queda~ Por que é universal~ Por que não h~í.
exceçõe.s~ A resposta devc ser: Porque aqueda precede a criação da mesma maneira

77
CAPÍTULO li

como vem depois dela. Orígencs conra dois mitos da queda. O primeiro é de cad-
(ef transcendental. Mitologicamente filando, a queda não se deu no espaço. Trara-
se da transição eterna da união com Deus para a separação de Deus. O outro é
imanente. A queda se dá dentro da história. A queda transcendental se realiza por
meio de aros especiais no plano histórico. O pecado é espiritual, mas a existência
física e social o fortalece. É de car:lrcr transcendental. É um destino que, como todo
destino, une-se à liberdade.

Como em Platina, o pecado para Orígenes é abandono de Deus. Não é jamais


positivo. Ser mau significa esrar sem bondade. O pecado, portanto, relaciona-se
com a criação, duplamente. Em relação à criação dos espíritos livres c iguais, a
criação precede a queda; em relação ao mundo físico, a criação vem depois da queda
e depois da liberdade dos espíritos. Levando-se em consideração a liberdadc dos
espíritos, é possível quc a queda venha a acontccer novamente mesmo na eternida-
de. O i1m do processo do mundo não é necessariamente o fim da história. A queda
poded ser repetida e, assim, todo o processo poderá começar de novo. Vemos nessas
idéias a presença do pensamenro cíclico da filosofia grega a respeito da história.
Orígenes não conseguiu superar esse modo de pensar. Agostinho é que vai fazê-lo
mais adiante.

-i( 4. Cristologia
A pane mais difícil do pensamento de Orígenes é a sua crisrologia. O Lagos se
une à alma de Jesus, que é um espírito eterno como os demais. É pré-existente
como todas as almas. Mas o Logos se une precisamente com esta alma. A alma do
homem Jesus recebe o Lagos completamente. A alma de Jesus imergc no poder c na
luz do Logos. Trata-se de união mística que pode ser processada em rodos os santos.
A alma medeia entre o Lagos de Deus e o corpo humano. Há, deste modo, duas
naturezas claramente separadas que se unem em Jesus. A declaração do quarto evan-
gelho de que o Lagos se fez c(Jrne é um modo literal de falar. A verdade é que o Logos,
ao se fazer carne, se faz carne de tal lllJneira que se poderia dizer que se transforma
em carne. Coisa muito parecida com o pensamento adopcionista. O sentimento
popular no Oriente, por outro lado, desejava um Deus na terra caminhando conosco,
não um poder divino traIlscendental que apenas se faz carne e, depois, retorna ao
lugar de onde viera. Orígenes não podia aceitar essa idéia, porque o Logos nunca
deixara de ser o que er;l. mesmo fora de Jesus. O Lagos era a forma de rodas as coisas
que tinham forma. Depois da encarnação, o Logos deixa de ser homem, coisa co-
mum entre os seres espirltuals que, por essa razao, são chamados de deuses. Mas, se

78
DESENVOIVIMENTOTEOLÓGICll0JA IC;REJi\i\NTIGA

não deuses, que diferença há entre eles e a terceira pessoa da trindade? O problema
não foi resolvido nem poderia ser resolvido l1a base da doutrina da emanação. Na
doutrina da emanaçao há contínua descida e subida. O cristianismo, no entanw,
pertencia à esfera do monoteísmo. De que maneira seria possível manter o monoteísmo
num sistema de emanações menores do que Deus e ao mesmo tempo igualmente
divinas~

Quando os seres humanos seguem o exemplo do Logos, tornam-se logikoi, isto


é, determinados por sentido, razão e poder criativo, são conduzidos à deificação.
Entretanto, Jesus precisava realizar algo mais a fim de tornar a deificação possível
aos seres humanos. Ti_nha que oferecer o se,lI co_rp?_~~~1_,sa~.!:.ifLcj~:,.h.~~~!lL A S~~~~~,~
em resgate. Satanás exigia esse pagam~nto para deixar as criaturas livres; e .~~tan~
foi traído. Não conseguiu manter Jesus na prisão da morte, porque Jesus era puro e
não se submetia ao domínio do poder de Satanás.

A idéia do engano de Satan;ís não era apenas noção teológica de Orígenes, mas
fazia parte da piedade popular. A Idade Média é fértil em histórias ele camponeses
e, especialmente, de suas esposas, que conseguem enganar o diabo para dcle se
livrarem. Para nós tudo isso parece grotesca mitologia. E não deixa de ser quando
tomada literalmente. Mas contém profunda intuição religiosa: afirma que o ele-
menm negativo não haved. de prevalecer em últilna análise. E não prevalecerá pre-
cisamente porque depende do positivo para existir. (~uando Satards toma Jesus em
seu poder, não pode maIHê-lo prisioneiro porque, afinai, depende dele. E assim se
demonstra a completa futilidade do pecado. O pecado não pode manter em seu
controle, indefinidamente, () poder positivo do ser, porque esse poder de ser depen-
de do bem. O bem e o poder de ser são a mesma coisa. A doutrina de Orígenes,
então, ensina que é impossível que Satanás prevaleça, porque ele só vive a partir
daquilo contra o qual quer prevalecer.

A interpretação de Orígenes do Cântico dos Cânticos, em termos do amor mís-


tico da alma com Cristo, introduziu na piedade prática uma idéia que teve tremen-
do efeito na história posrerior da igreja. A alma humana é a noiva do Lagos; eis aí o
sentido desse cântico de amor. A alma recebe o noivo cm si e é visitada algumas
vezes por ele. lsm é, o Espírito divino é, às vezes, experimentado por nós, embora
OlUras vezcs a alma fique sozinha e ninguém a visitc dos páramos eternos. Esta é a
primeira interpretação mística do Cântico dos Cânticos, diretamente relacionada
com o indivíduo. No judaísmo) o Cântico cra interpretado em termos de relação
entre Deus e a sinagoga. Temos aí bom exemplo da necessidade de interpretação

79
CAPÍTULO 11

alegórica. _o Cântico do~' Câr~!ie?!. ~ª-º_t llad~._Ql~0__d_~.,que um poema judaico de


amor, talvez um poema para ser rccit_::~_~?~m~E~.sra~~~~~~~mento ou de outro tipo.
COlltudo, está no cânon e [em autoridade. Que se pode fazer com ele? Os judeus
procurarJ.m interpretá-lo como a relação entre Deus e a nação.

Na minha velha BíbliJ. lutcrana, que eu amo bastante porque me foi dada no
meu batismo, lê-se logo no início do CtÍJltico rios Cântico!" alguma coisa sobre a
relação de Deus com a igreja. Mas Orígenes intcrprerou-a em termos do casamento
místico entre Cristo e a :llma. Temos aí, naturalmente, um exemplo de misticismo,
que j~í é uma transformação do misticismo não-cristão. Trata-se de um misricisrno
concreto. A alma, ao ser apreendida pelo Espírito de Deus, não sai de si mesma na
dires~ão do abismo da divindade, mas é o Lagos, lado concreto de Deus, que vem
visitar a alma. Vejo aqui o primeiro passo para o "batismo" do misticismo. O misti-
cismo só pode enrrat na igreja tornando-se concreto. Quando Orígenes e, mais
tarde, Bernardo de Cbraval falam de casamento místico cntre a alma e o Logos, a
personalidade humana não é destruída. l~ preservada, como no matrimônio a união
das pessoas não destrói as pessoas.

5. Escatologia
O ü!timo ponto da teologia de Orígenes é a doutrina do fim da história e do
mundo. Esse fim é interpretado espiritualmente. O imaginário primitivo é inter-
pretado em termos espirituais. A segunda vinda de Cristo é o aparecimenro espiri-
tual de Cristo nas almas das pessoas piedosas. Ele retoma muitas vezes à terra, não
em termos dramáticos e físicos, mas :ts almas humanas. As pessoas piedosas reali-
zam-se nessa experiência espiritual. O "corpo espiritual" de que fala Paulo é a essên-
cia ou idéia do corpo material. É o que os retratistas pintam quando fazem seus
retratos. É o que significa a participação do corpo no eterno.

A punição do pecado é o inferno. É o fogo que queima em nossa consciência; é


um fogo de desespero causado pela nossa separação de Deus. Entretanto, é um
estado tempor;{l:;-~ destinado:t purgaçáo das' almas. No fim dos tempos todas as
pessoas e todas as coisas \<10 se espiritualizar; a existência corpórea desaparecerá.
F:~~;--f.~-;~~?_sa dOl~~:i.I~~_~e-"-(5;·'ígenes J--CT;;71~lad~.;(re-~j;·okatastasistOll panton, resti tu i-
ção de todas as coisas. Porque a liberdade não termina, todo o processo pode reco-
meç~~_l':: Orígenes acreditava profundarnenre na liberdade, coisa que o distingue cla-
ramente de Agostinho.

Esta espiritualização da escatologia foi pelo menos uma das razões pelas quais

HII
DESENVOLVIMENTO TEOI,(JCICO NA ICREJA ANTIGA

Orígent:s}?~._C_~_ E~.:~~_r~:.~_~~~_~~a.L!:?~eL~ .cris~~, muito embora tenha sido na época


<::l_seu maior teólogo. Os mais simples se revoltaram contra esse grande sistema de
.1 teologia científica. Os monges e OU(fJS pessoas não queriam abandonar seu literalismo
a respeito da vida futura, de cadstrofe final, do juízo etefno etc. Os motivos dessa
gente simples não eram bem claros. A rcação à doutrina de Orígenes deveu-se, em
parte, ao tipo judaico de realismo da existência física, contra o dualismo grego. Por
outro lado, os pobres queriam conservar a idéia de vingança contra os ricos. Assim,
lutavam por uma idéia baSrJlHC realista e literalista de julgamento, da catástrofe
fInal c do céu. A igreja ficou do lado dos pobres e simples, e condenou o lado
herético de Orígenes.

G. Monarquismo dinâmico e modalista

o povo simples também se revoltou contra a cristologia, baseada no Logos, que


Orígenes recebera dos apologistas. Os leigos não estavam interessados em especula-
ções cosmológicas, presentes no conceito do Logos. Queriam apenas ter a ptesença
do próprio Deus na terra. Suas idéias se expressaram por meio dos monarquistas, de
rno!ltlrchúl, "governo de um só". Queriam ter apenas um governante, um só Deus e
não três, corno suspeitavam acontecer com a cristologia baseada no Logos. Contra o
Logos, que lhes parecia um deus secundário, exaltavam a "monarquia" do Pai. O
movimento representava a reação monoteísta contra o perigo triteÍsta visível na
doutrina do Logos. A doutrina do Logos hispostatava o hlho ao lado de Deus, e o
Espírito ao lado de ambos.

Um c~no Teodoro, anes~o _d~ ~oma~ ensinava__ q':l:~J_~~l!s __ ~ra um hom~n!-~~~l---.9...l!~_


_0 Espírito descera no batismo, dando-lhe o poder de sua vocação messiânica. Sem
_ti~?...:L~..L_l}_º__~]. G:~ltoL.diyin,~ As pessoas dcsse tipo de pensamcnto mostravam-se
mais interessadas nas passagens dos evangelhos que tratam de Jesus como homem.
T:tlvez haja certa relação entre Teodoro e um grupo de pensadores da Ásia Menor
chamados de A!ogoi, porque negaVJm J doutrina do Lagos. E posto que J idéiJ do
Lagos aparecia no quarro evangelho, sentiam-se obrigados a rejeitar também esse
evangelho. Procuraram, cntão, estabelecer o que lhes parecia ser o texto verdadeiro
dando ênfase na interpretação litcral contra a alegórica. Prenunciavam, de certa
forma, muitos outros movimentos ao longo da história da igreja que ressaltaram a
humanidade de Jesus, dcsde a escola de Antioquia, passando pelo adopcionismo
medieval até a moderna teologia liberal, contra o Lagos enquanto Deus feiro ho-

HI
CAPíTULO []

mem. Essa cristolo~~~.~__chama de adopcio~~~~,ou dinâmica. O home_I~)eslls é


_.~4o~ado~ receb_e~Log?~."?~~,_~"SJ:í.I_·~_~~>m.~~~não é Dell~ Eis aí unu das formas de
reação monárquica e monoteísta contra 3. crisrologia baseada no Lagos.

1. Paulo de Samosata

Nessa linha de pensamcllco estava o bispo de Antioquia, Paulo de Samosata.


Afirmava que o Lagos c o Espírito eram qualidades divinas e não pessoas. Eram
poderes ou potencialidades de Deus, mas não pessoas no sentido de seres indepen-
dentes. Jesus era um homem inspirado pelos poderes de cima. O poder do Lagos
habitara Jesus como num vaso, como nós habitamos nossas casas. A unidade que
Jesus tinha com Deus era da vontade e do amor; não de natureza, porque esse
concei(O não tem sentido quando aplicado a Deus. Quanto mais Jesus se desenvol-
vesse tan(O mais haveria de receber o Espírito. Finalmente, tcria alcançado a união
eterna com Deus, (Ornando-se juiz e recebendo o status de Deus. Jesus se tornou
Deus, mas teve, de cena forma, de merecer o acontecido. Com essa idéia se nega,
namralmente, a natureza divina do Salvador. Por causa dessa negação, ele Foi consi-
derado herege, embora muita gente na sua época, e até mesmo na nossa, prefira
segUIr seu pensamento.

o movimento monarquista logo se dividiu. Um dos lados seguiu a cristologia


adopcionista. Ensinava que Deus, ou o Logos, ou o Espírito, adotara um indivíduo
plenamente humano e o rransfêH"mara no Cristo, e lhe dera a possibilidade de se
tornar plenamellte divino na sua ressurreição. O representante ocidental deste tipo
de pensamento é Teodoto de Roma e, no oriente, Paulo de Samosata. Essa cristologia
começava com a existência humana dando ên[lse aos textos bíblicos sobre a huma-
nidade de Cristo, para finalmente mostrar que Jesus, levado pelo Espírito ainda na
terra, fora elevado à esfera divina. O outro lado do monarquismo se chama modalismo;
estava mais de acordo com o sentimento básico das massas dos cristãos. O
"modalismo" significa que Deus aparece em modos diferentes, de di_vers~~~~~nei-
_ raso E~?:?ém -~--;~~Ei~.2av~ dcpatripassionismo, significando que o próprio Pai sofrera
naJ)_~i~? de _Çrist~Esse movimento é também conhecido como sabelianismo, por
causa de Sabélio, um de seus representantes. Este movirllento espalhou-se no Ori-
ente e no Ocidente, e representou verdadeiro ~erigo à cris(Ologia do Lagos.

Havia no Ocidente um tal de Praxeas com quem Tertuliano polemizava. Acre-


ditava que o próprio Deus Pai nascera da Virgem Maria e que o mesmo Pai, Ú11lCO
Deus, também sofrera e morrera. Ser Deus significava ser o Pai universal de todas as

82
DESENVOlVIMENTO TEOL()GICO NA IGREJA ANTIGA

" coisas. Se afirmamos que Deus escava em Jesus, diz-se igualmente que o Pai estaVa
nele. Portanto, Praxeas e seus seguidores atacaram os assim chamados ditheoi, que
acreditavam em dois deuses, e os tritheoi, que acreditavam em três deuses. Lutavam
pela monarquia de Deus e pela plena divindade de Crisw em quem o Pai aparecera.
Essas duas noções receberam forte apoio popular, porque a mente popular queria
(cr o próprio Deus na terra, Deus conosco, participando de nosso destino, visível c
audível no homem Jesus.

2. Sabélio

~ª~)é!iºJ~i o líder ~()_ rr~.?~~'!r.~E0_SE12? ~:2?~~.~U~~~~!2~i~~'O ..:r~mo é o Pai, o


_ r].!Ç.,~I_~!ºé o Filho, ?-!2.1~SIY1.?~_.~sE~o2.~~(C? ,_S~?_~rês nomes, mas nomes para a
mcsrna realidade. Temos um ou três deu~es?" Pai, Filho e Espírim Santo são nomes,
são prosopa (semblantes, faces), e não se~~_..i..::i~.f~ndente~. Sã.9__ ~eais em energias
consec_u!.i_:'Js; um vem depois do outro, aparecendo o mesmo Deus em faces dife-
_!~~_t~_~ Trata-se do mesmo Deus agindo na história por meio de três semblantes. O
prosopon do Pai aparece na sua obra criadora, como doador da lei. O prosopon do
Filho aparece do nascimento à ascensão de Jesus. A partir da ascensão de Jesus surge
o semblante do Espírito, doador da vida. Mas é o Pai-Deus monárquico que está
presente em todos esses aparecimentos. Portanto, não devemos falar a respeico de
uma Iria)' no céu. Não existe trindade transcendental, celeste. Em vez de ser
transcendental, a trindade é histórica ou construída "economicamente", no sentido
de oi/.:onomia, construção de uma casa. A trindade é edificada na história.

"fi Quando Sabélio afirma que o mesmo Deus está essencialmete no Pai, no Filho
e no Espírito Santo, e que as diferenças são apenas de faces, de aparências, ou de
manifestações, está afirmando que todos são homoowios. Em outras palavras, todos
têm a mesma essência, o mesmo poder de ser. Não são três seres, mas possuem o
mesmo poder de ser em três diFerentes manifestações. Embora essa tendência tenha
sido condenada, nunca desapareceu. Reapareceu nas ênfases monoteístas de Agosti-
nho e por seu intermédio na teologia ocidental em geral. O pensamento modalista
se opunha à cristologia do Lagos. Ao compreendermos essas duas tendências bási-
cas, compreendemos igualmente as discussões aparentemente incompreensíveis a
respeito desse iota em homoouúos e homoiousios. Não se discutia meramente a respei-
to de conceitos abstratos, mas em favor da tendência monoteísta contra a tentativa
do estabelecimento da hierarquia divina entre Deus e os seres humanos. O Oriente,
em geral, d.ependente de Platão, Platina c Orígenes, estava mais interessado nas

83
CAPíTULO 11

essênCias hierárquicas entre Deus c os homens. Coisa que, naturalmente, transfor-


mava Cristo num semi-deus, como veremos. O Ocidente, apoiado por alguns gru-
pos orientais, desejava a monarquia divina, de um lado, e a humanidade de Jesus,
do outra. Para nós, ocidentais, o problema das hierarquias é abstrato, longe dos
problemas da vida.

H. Controvérsia trinitária

Em primeiro lugar, vamos examinar como o problema trinitário se desenvolveu


depois de Orígcnes. Orígenes era tão poderosamente influente com o seu pensa-
mento construtivo que chegou até mesmo a conquistar os seus rivais, incluindo os
teólogos monarquistas e os sabelianos. E a sua cristologia estava tão impregnada de
misticismo que seus escritos facilmente se transformavam em fórmulas credais. Não
devemos esquecer que quando os pensadores gregos produziam confissões de fé ou
credos, consideravam essc trabalho o resultado de intuição mística de essências, de
poderes de ser, coisa que se assemelha para nós à mera filosofia abstrata. Por exem-
plo, usava-se em Cesaréia um credo batismal acrescido de formulações místicas
provenientes dos escritos de Orígcnes: "Cremos em Jesus Cristo, Logos de Deus,
Deus de Deus, luz de luz, vida da vida, primogênito de rodas as criaturas, gerado
do Pai antes de rodas as gerações". Temos aí filosofia e misticismo. Mas não filosofia
grega clássica. Essa filo50fia era helenista. A filosofia helenista havia se unido às
tradições místicas do Oriente. Conceitos tidos como abstratos podiam, pois, trans-
formar-se em confissões místicas.

Essa combinação de filosolla mística com determinadas confissões Cristãs co-


mcçou a ser rencgada quando o sistema de emanações de Orígenes foi questionado
do ponto de vista do conformismo cristão. Por exemplo, doutrinas como estas pas-
saram a ser combatidas: a etemidade e pré-existência de todos os espíritos, a queeb
transcendcntal, a ressurreição meramente espiritual (sem corpos), e a escatologia
espiritualizada. Também se questionava o lugar do Lagos. O conformismo determi-
nado pelo senso comum, apoiado pela reação monárquica, exigia nada menos do
que a presença de Deus na terra. A teoria da emanaçáo por meio de graus, expressa
em hierarquias de poder, não oferecia ao povo a suprema transcendência, o Uno que
está além de todas as coisas dadas.

Esse conflito acabou dividindo a escola de Orígenes. Os direitistas diziam:

84
DESENVOLVIMENTon:or()GICO NA IGREJA ANTIGA

nada foi criado ou permanece subordinado na trias; nada novo apareceu na trindade
que já não estivesse nela desde o começo. O Pilho não é inferior ao Pai, nem o
Espírito ao Filho. Os representantes dessa corrente desejavam o que se chama, hoje
ern dia, de "alta cfisrologia", O Filho, em Jesus, não é menor do que o próprio Pai.

Os esquerdistas se opunham ao tradicionalismo da direita; consideravam-se


"científicos" e modernistas. Diziam que o Filho era essencialmente diferente do Pai;
fora criado, não tinha ser algum antes de ser gerado. Com isso a cristologia, baseada
no Lagos, se desenvolvia em termos hierárquicos. Em priJl?ciro lugar estava Deus
j>~i, no ápi~_~--ª-~~~ir~mide, uno,~_~,~~I:?_~_~~!,é.I~~.,~_~_todasa~_coisas; em seguida, vinha
.0 filho, o Logos, a segunda hierarquia, inferior àpÜ~~~X..<!.L-0. Espírito estava CJ.!1_
terceiro lugar, abaixo do Lo.~ No quarto plano viviam os espíritos imortais, um
pouco abaixo dos três primeiros níveis. Essas duas correntes teológicas envolvcram-
se numa das mais importames cOlltrovérsias da história da igreja, que a afetou pro-
fundamente e quase acabou com ela.

Além das divergências teológicas existentes também entraram em cena ques-


tões de ordem política. Buscava-se uma solução prática que não precisasse descer
profundezas teóricas. Coisa que o ecletismo romano sabia fazer muito bem, seme-
lhante que era ao que hoje se conhece como pragmatismo americano. Com essa
orientação, podia-se evitar, pois, a seriedade do pensamento grego. Dionísio, papa
romano, declarava: "Duas coisas devem ser preservadas, a trias divina e a mensagem
santa da monarquia". Estavam aí os termos fundamentais das duas alas, a afirmação
da mensagem santa da monarquiJ, em oposição à cristologia do Lagos, e a trias
divina, apoiada na cristologia do Logos. O Papa tomou, então, as duas fórmulas
opostas e disse que precisavam ser preservadas. Mas não explicou de que maneira
essa união seria possível. Na verdade, ele só estava interessado numa solução prática
relacionada com política eclesiástica. E foi o que prevaleceu. Mas só prevaleceu
depois de tremendos conflitos que duraram cerca de oito anos. Esse conflito se
chama "controvérsia ariana". Teve enorme efeito sobre a igreja, e as decisões final-
mente alcançadas tornaram-se v~í.lidas para wdas as épocas da história da igreja.

,'. I. Arianismo
A controvérsia ariana representou uma luta clássica e singular causada por inú-
meros motivos. Até mesmo a política dos imperadores se envolveu no caso. Queri-
am manter a unidade da igreja uma vez que o cristianismo se tornara a religião

85
favorita do lmpeno romano. Temia-se que a divisão da igreja viesse a afetar a união
do império. Havia por detrás da polêmica oficial inúmeras brigas entre bispos e
teólogos, bem como o conflito entre o tradicionalismo estreito e a especulação sem
fronteiras. A forre ênfase nas soluções teóricas a problemas teológicos colidia com o
fanatismo monástico popular. Mas a história não termina aí. A questão realmente
decisiva, de significado básico e permanente, era esta: de que maneira seria possível
a salvação num mundo de trevas c mortd Esta tem sido a questão teológica central
desde a época dos pais apostólicos, presente também nas grandes controvérsias
cristológicas e trinitárias.

Atanásio, o grande inimigo de Ária, respondia que a salvação só era possível


desde que o Filho de Deus se tivesse feito homem em Jesus a fim de que pudésse-
mos nos tornar Deus. Para isso era preciso que o Lagos fosse eterno e que o próprio
Deus tivesse aparecido para nós em Jesus. Deus é Pai apenas porque é o Pai do
Filho. Assim, o Filho não teria tido começo e o Pai estaria com o Filho eternamente.
Portanto, o Filho seria o Filho eterno do Pai, e o Pai, o Pai eterno do Filho. Somente
assim, sendo igualmente eternos, poderia Jesus, em quem o Logos se fizera presen-
te, dar-nos eternidade. E assim, nos faria semelhantes a Deus, com o dom da eter-
nidade. E alcançaríamos, concomitantemente, o conhecimento eterno que é o co-
nhecimento da vida eterna. Pois, nem mesmo o mais alto dos espíritos seria capaz
de nos conceder a verdadeira salvação. "Quªtq.~l.er espírito criª~.to, mesmo o mais alto
de todos~eria que ser inferior a Deus. E nós, que estamos separados de Deus, e
dcle somos dependentes, teríamos de retornar a ele. Dessa maneira, somente Deus
seria capaz de nos salvar.

__ -.?~gund~~~~~2.,l?~~!?ít~?~_~~.~~?'E:!.1dria, soment:."De_~~~ s_~.E~.~ ~!~rno e não


gerado. O Logos, o Cristo pré-existente, seria mera criatura. Criado a partir do
nada, nem sempre existira. Orígencs afirmara, porém, que o Cristo sempre existira.
Mas a cristologia da esquerda, ainda relacionada com Orígenes, não aceitava essa
posição. O Cristo existira num tempo anterior à nossa existência temporal, mas não
era eterno. Nem o Logos. O poder de Deus visível em Jesus não teria sido o poder
eterno do próprio Deus, mas de uma hierarquia inferior e limitada. Tal Lagos seria
diferente da natureza divina, bem como da essência do Pai. O Logos não poderia
ver nem conhecer o Pai completamente. Tornara-se Deus apenas no sentido em que
qualquer santo se deifica. Naturalmente, por causa da liberdade de Jesus como,
afinal, poderia acontecer com qualquer outra pessoa. O Logos teria sido livre para se
afastar de Deus, mas não o fizera. Esse Logos, poder metade divino, teria sido a
alma de Jesus. E assim se acabava dizendo que Jesus não teria sido completamente

86
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA

homem dono de alma humana natural. Maria concebera um meio-Deus, nem ple-
namente Deus nem plenamente homem. Esta foi a solução dada por Ária. Estava
na mesma linha do culto aos heróis do mundo antigo. Esse mundo antigo era
povoado por meio-deuses, derivados do único Deus e incapazes de plenitude divi-
na, mesmo quando no Olimpo. Jesus teria sido um desses deuses, quase Deus, mas
não o próprio Deus.

2. Concilio de Nicéia
A crisrologia de Ária foi rejeitada pelo Concílio de Nicéia. realizado em 325 de
_.nossa era. O Credo Niceno começa: "Cremos em um só Deus, Pai Onipotente,
Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis". São palavras importantes. O termo
"invisível" referia-se às "idéias" platônicas. Deus era o criador não apenas das coisas
terrenas, mas das "essências", segundo as conclusões da filosofia de Platão. O Credo
continua: "E em um só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus; gerado do Pai, unigênito
da essência do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro
Deus, gerado não feito, consubstanciai (hornoousios) com o Pai, por quem todas as
coisas foram feitas no céu e na terra; o qual, pot nós homens e pela nossa salvação
desceu do céu e encarnou e foi fcito homem. Padeceu e ao terceiro dia ressuscitou;
subiu ao céu. E rerornará para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo". Para
depois dizer: "Todos os que dizem que houve um tempo em que ele não existiu, ou
que não existiu antes de ser feito, e que foi feito do nada ou de alguma outra subs-
tância ou coisa, ou que o Filho de Deus é criado ou mutável, ou alterável, são
condenados pela Igreja Católica". Essa é a confissão cristã fundamental. A frase
central é "consubstanciaI com o Pai". Não se diz a mesma coisa acerca do Espírito
Santo. Daí o surgimento de novas controvérsias e decisões. Convém observar que a
condenação mais abrangedora se dirige contra Ário: "Todos os que dizem que houve
um tempo em que ele não existiu ... são condenados peia Igreja Católica".

Vamos examinar, a seguir, a importância da decisão de Nicéia para a história


geral e para a história da igreja:

1. Superava-se a mais séria das heresias cflstãs. Cristo não é qualquer semi-
Deus; não é nenhum herói._EIe é o prÓprio Deus que aparece numa pessoa h..u.ma..ua.
com a sua essêrJç.ta_gj.Y,ina. O paganismo havia tentado reafirmar-se novamente por
meio de Ária depois de já ter sido vencido pelos pais antignósticos---.Ayitóriª--ÂQ
arianisl1}QJeri~ tr.'~U])LQE!~lado o cristianis~o em apenas mais uIll:ª_~ntr~.a~. !:~Ji.glQ~:L
_já existentes:

87
CAPíTULO 11

2. A confissão de Nicéia COlltentara mais a Roma e ao Ocidente do que ao


Oriente. O Oriente não gosrou do homoousioJ; preferia em seu lugar os graus das
hierarquias. Mas Roma c seus aliados ocidentais insistiram no homootlsios. Por isso a
decisão de Nicéia foi prontamente atacada. A nova batalha que durou sessenta anos,
precisamente até 381, acabou com uma nova declaração um pouco mais satisfatória
ao Oriente.

3. A declaração decisiva era: ~_~qm.subsrancial com gpa(. Abandonado o esque-


ma das emanações, concentrava-se no esquema monárquico. Conseqüentemente foi
acusada de sabelianismo; também os sells principais defensores, Aranásio e Marce-
lo.

4. O caráter negativo da decisão rransparece, especialmente, nas condenações.


Nega-se que Cristo tenha sido uma criatura. Ele não possui nenhuma outra ollJia
além da ollsia do Pai; embora não se explique o que queria dizer o termo hOlIlOowia.
'Eunbém não ficava claro se as três pro.ropa seriam diferenças reais em Deus, e nesse
caso se seriam eternas ou históricas. Tampouco se elaborou qualquer doutrina do
Espírito Santo. Na verdade, só uma coisa foi bem ~~ft.!1Jd~:_ J~s~s Cristo_J~~~__é .!-1!!1-
~i-d.eus encarnado; não é uma criatura _~~c:.0!~~_ das outras; é peus._ E Deus ..~çria­
dor e incondicionado. Esta dec~são negativa .f:prescntou_ a,grandeza e a ver~:tadc do
Concílio de Nicéia.

5. Houve ainda outras implicações. As declarações foram feitas em termos filo-


sóficos, não-bíblicos. Certos conceitos gregos entraram na elaboração dos dogmas
não tanto enquanto filosofia clássica, mas enquanto filosofia religiosa mística.

6. Daí para a frente a unidade da igreja passou a ser a decisão da maioria dos
bispos. Desenvolveu-se um cOllciliarismo em termos hierárquicos; a maioria dos
bispos fica acima de qualquer outra autoridade. Foi somente mais tarde que as
reivindicações do bispo de Roma a Ulll status especial entre os bispos foram aceitas,
substituindo a autoridade da maioria dos bispos.

7. A igreja rransformara-se numa igreja estatal. Era o preço pago para a manu-
tenção da unidade. O imperador não determinava o conteúdo dos dogmas, mas
exercia suas pressões. Em face de revoltas contra o dogma, os imperadores depois de
Constantino tiveram que exercer pressões cada vez mais fortes. Com isso se iniciava
uma nova etapa na história da igreja c, na verdade, na história universal.

88
DESENVOlVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA

J3. Atanásio e Marcelo


_Q.principal defensor das decisões de Nicéia foi Atanásio. Era, principalmente,
notável personalidade religiosa. Sua convicção religiosa fundamental era inabalável.
Para fortalecer sua causa empregou inúmeros meios científicos e políticos. Seu esti-
lo era claro; SUa mente, consistente e cautelosa, embora às vezes a terminologia fosse
comprometedora. Foi inúmeras vezes deposto de sua sé em Alexandria. Sofreu per-
seguições, mas, no fim, venceu sobre hereges c imperadores. Atanásio salvou a deci-
são de Nicéia. Mas para consegui-lo teve de fazer concessões a interpretações favo-
ráveis à rcologia de Orígenes.

Segundo Atanásio, o pecado é vcnc:.ido pelo perdão, e a morte, maldição do


pecado, pela nova vida. São dádivas de Cristo. A vida nova inclui comunhão com
Deus, renovação moral e a posse j,í agora da vida eterna. Em linguagem positiva,
vida eterna é deificação, tornar-se semelhante a Deus tanto quanw possível. Para
isso, duas coisas são necessárias: vitória sobre a finidade e vitória sobre o pecado.
Precisamos participar do infinito de Q~us e na sua santidade. _De que modo? Por
. ~}neiQ_g_~ _Cristo que, el~9.l}il_I?S~ ~r~_'.·4ad~jl~<-2..I:omem, sofre a maldição do pecado e,
enquanto verdadeiro Deus, supera a morte. Nenhum semi-deus, herói ou poder de
ser limitado e relativo seria capaz disso. Somente, enquanto ser histórico, Deus
poderia mudar a história e, somente enquanw divino, poderia conceder a eternida-
de. Não há nenhuma possibilidade de meio perdão ou de meia eternidade. Se
nossos pecados forem perdoados, são perdoados plenamente; se formos eternos,
seremos totalmente eternos. Nenhum semi-deus seria capaz de nos salvar. E salva-
ção é o problema da cristologia.

O Crisi2-~:carreHl.gg._4a o.~!a c\? ~.?:lvação n8..? pode ser e.ntendido JJ_~la. ~'!1~~~~!.~.
human.,!_.a não_ ~er medial~te o poder do Espíri_t9.S.-ª'l:iQ. Somente pelo Espírito
alcançamos união com Cristo. O Espírito de Cristo precisa, pois, ser tão divino
como o próprio Cristo. Surgiran1, depois de Nicéia, alguns grupos negando a divin-
dade do Espírito. Atanásio opôs-se também a estes: "Estão errados querendo trans-
formar o Espírito em criatura. Se o Espírito for criatura, Cristo também deverá ser
criatura". O Espírito de Cristo não é espírito humano do homem Jesus; nem é
função psicológica. O Espírito de Cristo é o próprio Deus em Jesus por meio dele
em nós. Assim a fórmula rrinirária, não concluída em Nicéia, veio a ser completada.
Para nos unir com Cristo, o Espírito deve ser tão divino como o Cristo, não semi-
divino, mas Deus na plenitude.

89
CAPÍTULO 11

Um dos prinCipais apoiaciores de Atanásio chamava-se Marcelo, responsável


pela introdução do pensamento monárquico no debate. Embora fosse amigo Ínti-
mo de Atanásio, Marcelo foi condenado pelos teólogos mais fiéis a Orígenes, que
não gostavam de suas tendências monárquicas. Marcelo queria garantir o
monoteísmo. Antes da Criação, Deus era monas, unidade sem qualquer diferença.
O Logos estava nele, embora apenas enquanto poder potencial da criação. Não
ainda enquanto poder real. Somente na criação o Logos procede de Deus e se torna
a energia criadora de Deus em todas as coisas, por meio da qual todas as coisas
foram feitas. No momento da criação a monas divina transforma-se em dyas, a uni-
dade passa a ser a dualidade. A segunda "economia" realiza-se na encarnação, quan-
do o Logos se faz carne. Entre o Pai e o filho dá-se uma separação de faro, apesar de
permanecer entre eles a unidade potencial, de tal modo que "aos olhos da fé" o Pai
esd. no filho. Alarga-se a monas c, com ela, a dyas, quando depois da ressurreição de
Cristo o Espírito rorrl;l-se um poder relativamente independente na igreja cristã.
São separações apenas preliminares; a independência do Espírito e do Filho não são
finais. O Filho e o Espírito rerornarão finalmente ao Pai e a carne de Jesus desapa-
recerá. O Lagos potencial e eterno não devia ser chamado de Filho; ele se torna o
Filho somente por meio da encarnação e da ressurreição. O novo homem e a nova
humanidade aparecem em Jesus, unidos com o Lagos pelo amor.

o que acabamos de descrever é o sistema monarquista dinâmico. A trindade é


dinamizada, posta em movimento, perro da história, perdendo o caráter eSGítico
presente na teologia de Orígenes. I\1<1S esse sistema foi rejeitado. foi acusado de
sabelianismo, de representar o tipo de monarquismo em que Deus, o Pai, aparece
na terra. O sistema de Orígenes, concebido em forma de graus e hierarquias, triun-
fou contra o pensamento de Marcelo.

Mas a luta continuou. O protesto dos seguidores de Orígenes contra o homoousios


não desencadeou conflitos apenas contra teólogos corno Atan,Ísio e Marcelo, mas
também contra os demais vencedores do Concílio de Nicéia. Estas coisas se passa-
ram, naturalmente, no Oriente. Os seguidores de Orígenes, derrotados pelas pres-
sões do imperador, reuniram suaS forças novamente e insistiram contra Nicéia nas
três substâncias da trindade. Tratava-se, por assim dizer, de uma interpretação
pluralista da trindade, dentro do esquema das emanações, das hierarquias e dos
poderes de ser. A trindade era vista em termos de graus, mas somente o Pai era
incondicionado e sem limites. Somente ele era a fonte de todas as coisas eternas e
temporais. Esse sentimento tolllava conta não só dos teólogos orientais, mas tam-

90
DESENVOLVIMENTO n:oLCíc;rco NA IGREJA ANTIGA

bém da piedade popular, e aumentava consideravelmente tendo, às vezes, apoio até


mesmo do imperador, que se contrapunha à decisão de seu antecessor, Constantino,
procurando inverter as decisões já tomadas em Nicéia.

~Havia, no entanto, uma falha na teologia oriental: unira-se apenas nas decisões
negativas, não nas positivas. Não foi difícil, pois, reduzir o seu poder de resistência
à Nicéia. Houve, no Oriente, teólogos que praticamente retornaram ao pensamen-
to de Ária; chamavam-se anomoioi (anomoieus), significando: "O filho é diferente
do Pai em rodas as coisas". É plena criatura. Havia outros que ficavam entre Nicéia
e o sentimento oriental. Eram os homoiousittnoi, assim chamados porque preferiam
o tcrmo homoiollSio~- em lugar de hornoollsios. Homoiousios deriva-se de homoios que
quer dizer "scmelhantc". Diziam, então, que o rilho era semelhante em essência ao
Pai. Assim, cncontramos aí a polêmica cntre homoousios e homoiollSios. Na verdade,
lutava-se muiro mais do que por um iota. A diferença entre os dois termos cra a
diferença entre dois tipos completamente opostos de piedade. Para os homoiou.lianoi
o Pai e o Filho são iguais em rodas as coisas, muito embora não tenham substâncias
idênticas. Interpretavam, então, o tcrmo hornoousios da fórmula de Nicéia, que não
mais podiam modificar, corno se fossc hornoiousios. Depois de muita discussão, Ata-
ILÍsio e o Ocidentc concordaram flnalmentc que não havia nenhum problcma nessa
interprctação desde quc a fórmula dc Nicéia fosse mantida. O Ocidcnte, por sua
vez, aceitava a idéia da ctcrna gcração do Filho, oriunda da tcologia dc Orígcnes,
com a qual não simpatizava, e acabavJ aceitando a teologia da trindade eterna,
intradivina, que é uma noção não-histórica (não-econômica) da trindade. O Orien-
te, por sua vez, aceitava o termo homoousios ao saber que podia interpretá-lo como
se fosse homoioltsios. E sob essas mesmas condições accitou também a aplicação do
termo ao Espírito.

Descobria-se, assim, uma fórmula tcológica capaz de resolver os problemas


cxistentes. Entretanto, os termos teológicos não são capazes de superar as diferenças
religiosas. Vamos examinar mais adiante esse fato ao estudarmos os desenvolvimcn-
tos posteriores no Oriente e no Ocidente, as discussões e lutas que terminaram,
afinal, por separar as duas igrcjas. Mas, por enquanto,.o Sín.ºs:'~Q.ge Constantinopla,
realizado no ano 381 de nossa cra, conseguiu alcançar decisõcs apoiadas pelos dois
lados, nas quais o homoousios e o homoiousios se harmonizaram. Antes dessas conclu-
sões, porém, novos desenvolvimentos teológicos tiveram que surgir. Essas linhas de
pensamento são representadas pelos três. grandes teólogos capadócios.

91
CAPÍTULO li

4. Teólogos capadócios

Os três teólogos capadócios fOLlIll Basílio Magno, Gr~.~o de Nyssa, seu ir-
mão, e Gregório de Nazianzo. Basílio Magno era bispo de Cesaréia; foi muitas
coisas: eclesiano, bispo, grande reformador do monasticismo, pregador c moralista.
Lutou tremendamente contra os amigos arianos, os neo-arianos, os semi-arianos, e
contra qualquer tendência de transformar o Cristo num semideus ou num serni-
homem. Basílio morreu, entrccanw, antes da decisão favorável de Constantinopla.

oirmão mais moço de Ba~gi9'_ Grc:gório de Ny~~~,_cra cham~-ª-Q__ de "[cq)~cr


Mantinha-se na tradição teológica de Orígenes e seguia ~cus métodos "cicndFic2§'"
Depois da vitória do cristianismo sob Constantino c da fixação do dogma de Nicéia,
era ainda possível tentar reunir na carefa teológica a filosofia grega com o dogma
cristão. Mas essa teologia não mais tinha a originalidade das primeiras grandes
tentativas fcitas pelos apologistas e pelo próprio Orígenes. Deixava-se determinar
demasiadamente pela situação eclesi,lstica e pelo Credo de Nicéia; assim, tratava-se
muito mais da elaboração de fórmubs do que de criatividade. Gregório d~ Nazianzo
criou a fórmula deflnitiva da doutrina da trindade. Tornara-se íntimo amigo de
Basílio quando ambos estudavam em Atenas. Uniram-se não só nas convicções teo-
lógicas comuns, mas também num mesmo ascetismo. Gregório de Nazianzo tor-
nou-se bispo e foi o presidente do sínodo de Constantinopla por cena tempo.

Os pais capadócios, especialmente Gregório de Nazianzo, faziam claras distin-


ções entre os conceitos empregados para definir o dogma rrinitário. Havia duas
séries de conceitos: a primeira dizi:l "uma divindade", "uma essência" (ousia) , e
"uma natureza" (phyús); a segunda, "tres substâncias" (hypostaseis), "três proprieda-
des" (idiotetes), e "rrês pessoas" (proSOPI1, personl1e)t.A divindade era enrendida como
uma essência ou natureza em três formas, rrês realidades independentes. Todas as
três tinham a mesma vontade, a mesma natureza e a mesma essência. Não obstante,
o número três era real; cada uma das três tinha características e propriedades espe-
cíficas. O Pai tinha a propriedade de não ser gerado; era de eternidade em eternida-
de. O Filho tinha a característica de ser gerado. O Espírito, de proceder do Pai e do
Filho. Mas essas características não eram diferenças na essência divina; só eram
diferentes nas relações entre as pessoas. Essa forma filosófica, complexa e abstrata,
conseguiu tornar possível a reunião da igreja. O Concílio de Constantinopla remo-
vcu as condenações que luviJ.m sido J.crescentadas ao Crcdo de Nicéia, por não se
aplicarem rnais ~ nova terminologia. Disse também alguma coisa a respeito do
Espírito Santo que não havia sido declarada em 321 : "E no Espírito Santo, Senhor

92
DESENVOLVIMENTO TFOLc)CICO!':A ICRFJA ANTICA

e doador da vida, que procede do Pai, c com o Pai e o Filho é adorado e glorificado".
São frases plenas de poder místico destinadas a uso litúrgico.

Essa decisão pôs um ponto final na polêmica rrinitária. Ária e Sabélio, com
todos os seus seguidores, foram excluídos. O lado negativo desta decisão é claro,
ma,'; as implicações positivas para o desenvolvimento da doutrina da trindade de-
monstram enormes dificuldades. Vamos examinar, a seguir, quatro dessas dificulda-
des.

*.1. De um lado, o Pai é o fundamento da divindade; de outro, é uma persona


especial, uma hypostasis panicular. Ora, se tomamos esses dois pontos de vista reu-
nidos numa mesma declaração, poderemos falar em quadriedade em lugar de trin-
dade. Teríamos a substância divina, enquanto fundamento divino, e as três pessoas,
Pai, filho e Espírito Santo, enquanto manifestações desse fundamento. E, assim,
acabamos numa quadriedade em vez de trindade. Sempre houve certa tendência
nesta direção e Tomás de Aquino ainda teve que trabalhar contra ela. Como regra
geral, a teologia afirmava: o Pai é ao mesmo tempo a fonte de toda a divindade e de
cada uma de suas manifestações .

.2. As distinções no interior da trindade eterna são vazias. A doutrina da trinda-


de foi criada para se entender o Jesus histórico. À medida que se levava Jesus em
consideração, a djferença entre Deus e Jesus era óbvia. Ma?, d~_ que maneira se
poderia manter tal diferença nos domínios da trindade transcendental? As distin-
ções são estabelecidas por palavras como não-gerado, gerado c procedente. Mas que
significam essas palavras~ São palavras sem conteúdo, porque náo há percepção al-
guma que possa lhes confirmar o sentido. Para antecipar um pouco as coisas, Agos-
tinho dizia que essas diferenças náo são expressas porque digam algumas coisa, mas
apenas para não se permanecer em silêncio. Isso significa que se os motivos da
formulação da doutrina da trindade são esquecidos, a fórmula se esvazia.

3. O Espírito Santo, mesmo até h<2je, conti!1ua sendo_ll~?-_ abst~aç㺷_9_Espí­


rito só se torna concreto se for definido. como o Espírito de Cristo, de: J~':_~IS, 0_
Cristo; mas se for entendido no interior da trindade transcendental, será muito
mais uma ~~bst.r<~ção d_c!_ql~~ uma pes.~g~l. Por causa disso o Espírito nunca foi muito
importante para a piedade cristã. Quando se deificou o Espírito no mesmo sentido
em que Cristo se deificava, foi logo substituído pela Virgem Santa na piedade do
povo. A virgem mãe de Deus adquiria até certo pomo a mesma divindade, pelo
menos para a piedade popular.

93
CAPÍTULO II

4. A idéia das três h)'P0staseis ou das três diferentes personae poderia levar ao
rrireísmo. Esse perigo se torna mais próximo quando a fIlosofia de Aristóteles subs-
titui a de Platão. A filosofia de Platão sempre esteve na base do realismo místico
medieval. Nessa filosofia, os universais são muito mais reais do que os indivíduos
particulares. Em Aristóteles, as coisas são bem diferentes. Aristóteles dizia que a
coisa individual era o telos, o objetivo interior, de qualquer desenvolvimento natu-
ral. Dessa rnaneira, os três poderes de ser em Deus se tornam três realidades inde-
pendentes ou, mais exatamente, as três manifescaçõcs de Deus se transformam em
poderes de ser independentes, pessoas independentes. Os nominalistas por educa-
ção sentem grande dificulda~~_yara~:~~l1dc~:
__~ __~~~~lla trinitário. Pois, para o
nominalism0:Ll~:~5E!:~r~?!~.~ .que existe deve s~r lII2.~~ ~oisa definida, limitada e sepa-
rada de todas ~s olltra~_~oisa~. _No realismo místico, encontrado em Platão, Orígenes
e na Idade Média, o poder de ser um universal pode ser algo superior e diferente do
poder de ser presente nos indivíduos. Portanto, quase não existia perigo de inter-
pretar o dogma da trindade em termos de triteísmo, enquanto o ponto de partida
para a interpretação permanecesse a filosofia platônica. O triteísmo tornou-se peri-
goso quando as categorias aristotélicas começaram a predominar, e com elas a dou-
trina nominalista com sua enorme ênfase nas realidades individuais. Nesse caso, o
Filho e o Espírito poderiam se tornar, por assim dizer, seres individuais especiais; e
aí j;í estaríamos nos domínios do triteísmo.

o grande teólogo do Oriente, João de Damasco, protestou contra essa conse-


qüência. Estava interessado em resguardar a unidade de ação e de ser nas três mani-
festações de Deus. Entretanto, uma outra coisa aconteceu. O dogma trinidrio tor-
nou-se, na piedade popular, exatamente o oposto do que pretendia ser original-
mente. Queria ser uma interpretação de Jesus, o Cristo; pretendia mediar essa idéia
para os gregos com a ajuda da doutrina do Lagos.

Mas as conseqüências da doutrina do Lagos haviam se tornado tão perigosas


em Ária, em particular, que a teologia tradicional teve de reagir contra ela. Mesmo
quando ainda em uso, já o sentido filosófico mudara. Foi assim que o dogma trinitário
passou a ser visto como mistério sagrado. O mistério sagrado passou para os altares,
por assim dizer, para ser adorado. Foi introduzido nos ícones, que são quadros
imensamente importantes para o culto na igreja oriental; entrou para as fórmulas
litúrgicas e hinos. Foi aí que o mistério se abrigou e passou desde então a viver.
Entretanto, perdeu o poder de interpretar o significado do Deus verdadeiro.

94
DESENVOlVIMENTO TEOIC1GICO!':A IGREJA ANTIGA

r. Cristologia
A controvérsia trinitária criou historicamente o que conhecemos como proble-
ma cristológico. Em princípio, no entanto, foi o contrário que se deu. A trindade
surgiu como resposta ao problema rrinitário. Trata-se de uma resposta que, na for-
mula final akançada, parece renegar a base de onde surgiu~ A questão era esta: se o
Filho é da Illesma substância do Pai, de que maneira se pode entender a pessoa
histórica de Jesus~ O dogma rrinitário queria responder a essa pergunta. Mas, se-
gundo a formulação nicena do dogma rrinirário, era ainda possível entender a pes-
soa de Jesus? De que maneira essa pessoa totalmente divina, sem qualquer restrição,
poderia ao mesmo tempo ser ainda humana~ A controvérsia crisrológica que durou
alguns séculos e quase arrastou a igreja novamente à beira da destruição, procurava
dar respostàs a essa questão.

Sempre houve ~dois tipos de pensamento crisrológico: ou Deus Pai (ou Logos,
_._c.?~~_É:spíriro) usara o homem Jesus de Nazar~rando-o,. inspirando-o ou adotan-
do~o como Filho, ou o ser divino (Lagos ou Filho eterno) se teria tornado homem
- ._- ---------""._.-.-.-.. _-"_
..,----_. --_'''.-."''---'---'
.I}_~ ?-to.cl~ tr~nsforma.ção. O credo de Nicéia, com o conceito de homoousios e suas
tendências mon~lrquicas, favorecia a primeira solução. Assim também a teologia
romana. A ênLlse na divindade do Filho eterno facilita a ênfase na humanidade
histórica do Pilho. ,Um semi.~_ª.~,~!~,_p.oge..r"0l!i!t?_bem se _tran§fot.".fI1,~T, S~I~~ b()}!~.~m.z.~l1as
o verdadeiro Deus só pode adotar um homem. Essa primeira solução não estava na
linha de Orígencs. Segundo Orígencs, o Logos eterno é inferior ao Pai e tem, por
meio da união com a alma de Jesus, os traços do Jesus histórico, mesmo na eterni-
dade. Pode, ponanto, transformar-se em Jesus sem muito problema, com o auxílio
do corpo, resultando daí uma cristologia de transformação. Não se fez claras distin-
ções entre as duas possibilidades. O conceito de homoousios podia ser intcrpretado
no espírito de Sabélio ou de Ária. Dessa forma, as interpretações cristológicas, de-
pois de Nicéia, podiam ser de tipo adopcionista ou transformadora. Essa dubicda-
dc foi logo notada por alguns teólogos. A controvérsia apareceu quando alguém
resolveu fazer o que Ária fizcra cm relação à trindade, tirando as conseqüências do
pensamento de Orígines, desta vez em relação à cristologia. Esse teólogo foi Apolinário
de Laodicéia,

L Teologia antioquena

o Ocidente nunca se interessou pela linha de Alexandria, da qual Apolinário

95
CAPíTULO 11

foi a expressão mais radical. O pensamento religioso de Alexandria centralizava-se


no problema da salvação. De que maneira seria possível a salvação a não ser que a
humanidade de Jesus tivesse sido mais ou menos absorvida pela divindade, para
que o adodsscmos como um todo, identificando-se sua mente com o Lagos divino~
A resposta era: impossível! Por isso as tendências gerais caminharam na direção do
que mais tarde se chamou d_e ~_~1)í?f1sis_r:!:y_:-_~~~~n_4í? essa corrente só há uma_Il':.(u-
reza em Iesus; a natureza divina absorve cornple(amcn~~ a naturcza~_L~mana.

O Oriente c a escola de Antioquia protestaram contra esta tendência da teolo-


gia alexandrina. UnI dos primeiros teólogos desta escola chamava-se Teodoro de
Mopsuestia. A escola antioquena possuía características bem definidas que a distin-
guiam da escola de Alexandria, e que fizeram dela a predecessora da ênfase teológica
moderna no Jesus histórico;

1 ~ A-~ e~c<?)a _ge)~I.ltioql.lia estava muit.o. i}~s~re;ssada em filologia e procurava


alcançar uma exata interpretação d~~essoa histórica de Cristo. Essa era a sua ênFase
principal. Antecip;;~a:-<~~;-i-;n, ;; ~rít;~a -his'tó~i-~~ 'q-t~~ E~~'~l~i;'-de se desenvolver nos
tempos modernos.

2. A escola demonstrava cena tendência racionalista - semelhante à da teologia


liberal - no sentido da filosofia alexandrina.

3. Os teólogos antioquenos estavalll interessados numa ética acentuadamente


personalista, sem maiores preocupações ontológico-místicas, corno acontecia em
Roma e entre os estóicos.

Roma e o Ocidente nem sempre estiverarn do lado da teologia antioqltena, mas


em geral Antioquia representava as principais tendências do Ocidente. Aliando-se
com Antioquia, no Oriente, Roma, com sua ênFase na história e na personalidade,
conseguiu triunfar sobre os interesses ontológicos e místicos do Oriente. Mas a
religiosidade popular, por sua vez, favorecia mais a teologia alexandrina do que a
antioquena. Antioquia não podia prevalecer por diversas razões. Tinha contra si a
estrutura do dogma oriunda de Orígenes e bem mais alinhada com o pensamento
alexandrino. Não conseguira obter as simpatias da política. Faltava-lhe ;:linda certa
resistência moral contra as superstições amplamente em voga no cristianismo da
época. Seus representantes não demonstravam suficiente força para resistir às exi-
gências do povo em favor de um Deus m;igico, caminhando na terra, tendo como
lutureza humana apenas uma espécie de veste sobre a verdadeira natureza divina.
Não obstante, Antioquia aliada a Roma, preservou a figura humana de Cristo no

96
DESENVOLVIMENTO TEOL6GICO NA IGREJA ANTIGA

seu significado religioso~_SeITl~~~~1~xl~~~~-ocJ~:~9~fad: A~tioqpi?- é bem provável


que a figura humana de ~:is~9._~_e__tivess_e eerdido, iml2eclinclo, assim, o desenvolvi-
mento da consciência histórica do Ocidente.

Antioquia defendeu a igreja contra os monofisitas para quem o caráter humano


de Cristo desaparecera no divino originando inúmeras idéias mágicas e supersticio-
sas. Dessa maneira, Antioquia preparou o caminho para a ênfase escatológica do
Ocidente. Talvez os ocidentais jamais venham a entender completamente o pensa-
mento religioso do Oriente. Talvez isto seja até mesmo mais difícil para os america-
nos do que para os europeus, porque a Europa está bem mais próxima do Oriente.
Não apenas geograficamente, mas historicamente. Os elementos místico-ontológicos
permeiam toda a cultura ocidental na Europa. O mesmo não se dá nos Estados
Unidos. A herança americana precisa agradecer à escola antioquena e a Roma que,
com ela, preservaram o tipo de atitude mais natural aos americanos.

Teodoro de Mopsuestia declarou contra Apolinário que em Cristo a natureza


humana perfeita está unida com a natureza perfeita de Deus. Disse: "Cristo é ho-
mem pleno em sua natureza, consistindo de alma racional e carne humana; a pessoa
humana é completa; completa é também nele a pessoa divina. Está errado dizer que
qualquer das pessoas seja impessoal". Era comum, no Oriente, segundo a tradição
monofisita, afirmar-se que apenas urna natureza era pessoal, a natureza divina e não
a humana. Teodoro, portanto, dizia: "Não se deve dizer que o Logos se fez carne".
Ele entendia que essa era urna fórmula vaga e metafórica, incapaz de qualquer pre-
cisão. Em lugar disso, se deveria dizer: "Ele assumiu a humanidade". O Logos não
se transformara em carne. Essa idéia de transformação, ou de transmutação parecia-
..
lhe pagã. Por isso a rejeitava~ O e~Jrit? ..ra.~~_o. ?"~ s.~p~.r.~_~i5ã~) de~_sj~~-,,~~_ ~er_ ,!m Deus
transformado andand_<:, p~r. ~í. Teodoro, porém, teve de enfrentar uma outra dificul-
dade. Se os lados divino e humano de Cristo são pessoas propriamente ditas, não
tcria de ser considerado, então, um ser com dois centros pessoais~ Não seria a com-
binação de dois filhos, um monstro de duas cabeças, como diziam os inimigos de
Teodoro~ Teodoro procurava demonstrar a unidade das duas pessoas. Rejeitava a
unidade na essência ou na natureza. São absolutamente diferentes em essência por-
que a natureza divina não pode se confinar num homem individual. O Logos se
mostra universalmente presente. Mesmo durante a vida de Jesus as flores continu-
avam a se abrir, os animais viviam, as pessoas caminhavam, e a cultura se manifesta-
va. O Lagos agia por meio de tudo isso. Parecia-lhe impossível que o Lagos tivesse
se limitado ao homem Jesus. A unidade, portanto, tinha de ser promoção do Espí-

97
CAPÍTULO 11

rito Santo, totalmente fcita de graça e de vontade. Estabeleceu, entáo, UDla analo-
gia de Jesus com os profetas, que também haviam sido dirigidos pelo Espírito. A
diferença era que em Jesus o evento havia sido singular, sem limites, enquanto que
nos profetas o Espírito se mostrara limitado.

A união das duas naturezas começara no Ventre de _M<!:.!"i~: O Lagos se reunia aí


com um homem perfeito de modo misterioso. Esse Lagos orientara o desenvolvi-
mento de Jesus, bem como seu crescimento interior, sem qualquer coerção. Como
qualquer outro homem, Jesus recebera a graça sem limites·_:6,.&:~~~~c.divina iami:i:
_
08.~~~: por meio de coerc~: ~l1:: seIl1pre no interior ~~~_'p~.~"~oas. Foi pela graça de
Deus que Jesus cresceu em perfeição. Assim, dizia ele, só há uma pessoa em Jesus,
sem que as duas naturezas se misturem. Negava ter falado de dois filhos; em lugar
disso afirmara as duas naturezas. A natureza divina não modifica a natureza huma-
na em sua essência. Jesus possuía a natureza humana que, pela graça, seguia a natu-
reza divina. Por isso, se podia falar de Maria como mãe de Deus. Era a fórmula
decisiva. Contrariava a tradição antioquena, mas não era possível rejeitar a frase
theotokos (mãe de Deus). A aceitação desse conceito era justificada pela afirmação de
que Maria também dera à luz um homem. Tratava-se de fórmula adequada e direta;
a outra, que afirmava o nascimento de Deus, era apenas indiretamente adequada,
posto que o corpo de Jesus se unira com o Logos de Deus.

-l Seguindo essa lógica, Teodoro afirmava que a natureza humana devia ser adora-
da e, por outro lado, que Deus sofrera. Essas coisas podiam ser ditas apenas em
relação à unidade da pessoa. Naturalmente, porque o que se diz da unidade pode
também ser dito do ser inteiro. Mas rejeitava a idéia da transformação do Lagos em
ser humano. Os teólogos ocidentais afirmavam que a unidade de natureza só é
alcançada quando Cristo é elevado ao trono de Deus na ressurreição. Nessa hora, o
corpo c a alma humana de Jesus teriam sido glorificados e transformados. O evento
da absorção do lado humano de Jesus é evento transcendente que acontece apenas
no céu e não na terra. Assim,_Teodoro ensinava_ q~~-:~~~~"~lte.~_~':..:!:~_.i::?_~,.~l..E.essoa
.~:stó.!ic.<l.,.,?o.frer:~~!!2.orrera. A natureza divina em Cristo não passara por essas coi-
sas. Considerava blasfêmia dizer-se que a divindade e a carne pertenciam à mesma
natureza. Ambrósio também achava que Cristo, embora tendo duas naturezas, so-
frera apenas em sua natureza humana. A mesma graça que aceitara a natureza hu-
mana em Cristo e o transformara cm Filho de Deus, também nos justificava perantc
Deus e nos transformava em seus filhos.

98
DESFNVOLVIMEI'TO TEOL(JGICO NA IGREJA ANTIGA

Vemos aí dois aliados: Roma, com seus interesses emplflcos, personalistas e


históricos; e Antioquia, com os mesmos imcrcsses, voltados, porém, para conside-
rações filosóflcas e estudos filológicos. Esta aliança de Roma com Antioquia poderia
ter derrotado os alexandrinos. Mas não foi o que aconteceu. Os interesses de Roma
eram mais políticos do que teológicos. Roma era o grande centro da igreja e, como
tal, não desejava qualquer triunfo cristão em bases teológicas.

Nesrório foi um dos principais líderes da escola antioquena. Em 429 pregou


contra a doutrina da theotokos, não aceitando que Maria fora a mãe de Deus. Em vez
disso, ensinava que o Filho de Maria era um homem que se transformara em órgão
da divindade. Essa divindade não sofrera na cruz; apenas a humanidade. Poderia se
dizer, então, que Maria era Christotokos. Mais tarde, Nestório admitiu que se pu-
desse chamar Maria de theotokos no sentido em que Deus, o Logos, descera à terra e
se unira ao homem que nascera de Maria. Entretanto, deveria ficar claro que esse
Jesus não era um ser divino descido do céu para se transformar num homem em
tcrmos dos mitos de transmutação.

As duas naturezas de Cristo mantêm suas qualidades próprias na união pessoal.


lnter-relacionam-se sem mistura na humanidade de Jesus. O termo "homem" des-
creve uma das naturezas, c o termo "Deus" ou "Logos", a outra. Essas idéias levaram
Nestório a ser acusado de herege. A tradição antioquena sempre pensara dessa ma-
neira, mas foi em Nestório que essa teologia se tornou suspeita e, afinal, repudiada.
Ao dizermos que Nestório se tornou hcrege, diríamos que, no entanto, foi o mais
inocente dos hereges. Na verdade, tornara-se vítima da polêmica entre Bizâncio e
Alexandria.

2. Teologia alexandrina

Houve outros acontecimentos em favor da causa alexandrina.

1. Durante muito tempo, a lenda de Maria, sem muita base na Bíblia, crescera
a partir da imaginação piedosa. A figura de Maria fascinava as mentes românticas.

2. O predomínio de Alexandria sobre Antioquia provinha também da alta va-


lorização concedida à virgindade e o fortalecimento conseqüente das tendências
ascéticas.

3. Verificava-se, além disso, certo vácuo espiritual na vida religiosa da época.


Esse espaço vazio a ser preenchido era o desejo de ser tcr algum elemento fcminino
no própflo cerne da religião. O Egito sempre teve esse elemento no mito de Ísis e

99
CAPÍTULO II

Osíris, a deusa e seu filho, mas o cristianismo não tinha nada do gênero. Nisso,
seguia o judaísmo que descartava qualquer elemento feminino. O Espírito não era
capaz de substituir o elemento feminino. _Em primeir~_L~~~!! __ .'?_.§spírito ap~rcce,
nas histórias do nascimento de Jesus, co~)~tor masculino. Em segundo lugar, é
_con~_t:_i~.l? <l1>~_~.~<l.to. Assim, na mentalidade popular o Espírito jamais poderia vir a
ser esse elemento. A religião cristã herdava, do Antigo Testamento, formas centradas
em imagens masculinas.

4. A cristologia de Alexandria, com suas noções de transformaçáo, exercia fone


apelo popular. Imaginemos as pessoas simples que desejam a proximidade de Deus.
Quando lhes dizemos: "Deus está ali, no altar; podem ir Li c se encontrar com ele",
essas pessoas não têm dúvidas, vão imediaramente ao altar. Como explicar tão extra-
ordinária possibilidade? Por meio da encarnação, porque na encarnação Deus se fez
algo que podemos ter, ver, e com quem é possível andar etc. Esse sentimento popu-
lar era muito vivo e representou irnportante papel contra os teólogos de Antioquia.

No começo, esperava-se que não houvesse separação entre os alexandrinos e os


antioquenos. Mas os alexandrinos reagiram com tanta força e tão triunfalisticamente
que Roma tomou o lado de Antioquia. Com uma única condição: os alltioquenos
deveriam deixar Nestório de lado porque levantava demasiadas suspeitas na antiga
capital. Depois do acordo alcançado no Concílio de Éfeso (431) e em inúmeros
outros sínodos, incluindo o famoso Ltllrociníum de Éfeso (sínodo dos ladrões), che-
gou-se à fórmula final do Concílio de Calcedônia (45 LL A aliança enrre Roma c
Antioquia mostrou-se poderosa. Os dois centros teológicos foram fortalecidos por-
que Eutico, monge de Constantinopla, expôs a posição monofisita com tanta
radicalidade que foi condenado. Essa condenação representava, ao mesmo tempo, a
condenação de Alexandria e a vitória de Antioquia.

3. Concílio de Calcedônia

O Papa Leão I havia escrito importante carta que se tornara decisiva para a
realização do Concílio de Calcedônia. Dizia que as propriedades de cada natureza c
substância eram inteiramente preservadas e reunidas para formar uma só pessoa. A
humildade fora assumida pela majesrade, a fraqueza pela força, c a morralidade pela
eternidade. O uno e verdadeiro Deus habitava a natureza inteira e perfeita do ver-
dadeiro homem. O Filho do Homem, portanto, descera de seu trono, dos céus, sem
abandonar a glória do Pai, e ingressara neste nosso mundo, mantendo em cada
natureza a unidade da pessoa. Entendia-se, então, que o Pilho do Homem viera do

100
DESENVOLVIMENTOTEOU)GICO NA IGREJA ANTIGA

céu, e, por outro lado, que o Filho de Deus fora crucificado e sepultado. Temos aqui
o mesmo fenômeno presente na teologia dos antioquenos. Combina-se a formula-
ção radical com demasiada Facilidade com idéias tradicionais. E foi nessa base que
se chegou à decisão de Calcedônia. Sua importância, bem maior que a de Nicéia,
vai além de todas as outras decisões sinodais..Não é possível se estudar teologia,
hoje em dia, sem o conhecimento desta decisão de Calcedônia. A substância dela se
.,~){pressa numa fórmula paradoxaL_

1. Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se
devc__ C_ollt~s_<!-r um sº-,~__~Il.~.§Qlº_ Filb.-9...LD9J~9._Sel!h~ÇlL.l~~ys Cristo, peli~itº_.cI.u<l!lto à
divindade, e perfei[O quanto à humanidade.

2. Verdadeiramente Deus e v_erdadei.r.~f!l_~!:'E~_J1?_~nem, c0f.lstan~_4e alma ra~_L:.


or~_ª"Le de corpo.

3. Consubstanciai com o Pai, segundo a divindade, ~~~on~!:1J?gª.!}<:!~:lconosco)


seEun~.o ~J~.l~r~lanid~.~e; em._to4;;ts as coisas sem~!!:t~~~~_~.nós".~.xceto no. pecado.

4. Gerado segundo a divindade, antes dos séculos, pelo Pai e, segundo a huma-
nidade, nestes últimos dias, por nós e pela nossa salvação, gerado da Virgem Maria,
mãe de Deus (theotokos).

5. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar em


duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis e sem divisão.

6. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela umao, mas, pelo


contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intatas, concorrendo para
formar uma só pessoa e substância.,. Ele não é dividido ou separado eIT,l duas pessoas.
Mas um só ~ __ .~~s~n.~_F~lho U~i,~"l.~t(),J~.~_~~_Y~rbo, Jesus Cristo Senhor..

Neste texto, como em outroS do mesmo teor, apreciamos quão prontamente os


termos filosóficos passam para a linguagem litúrgica e poética. Vê-se claramente °
lado negativo dessa declaração. O lado positivo é mais duvidoso. É certo que a
posição de Roma vencera, muito embora fossem possíveis diversas interpretações.
O Oriente ficou desapontado com a decisão; os delegados de Alexandria não assina-
ram a declaração final. Se assinassem algo tão contrário ao que o povo esperava,
seriam surrados pelos monges fanáticos quando retornassem do Concílio. A reação
oriental contra Calcedônia, nos seus aspectos radicais, era suficientemente forte
para dividir o Oriente de Roma, a tal ponto que veio a se tornar presa fácil da reação
puritana do Islão. Em especial, as igrejas monofisitas do Egito e dos países limítrofes.

101
CAPÍTULO II

Essas Igrejas foram engolidas pela reação islâmica, que eu chamo de reação purita-
na, manifesta na rejeição das superstições sacramentais nas quais o CrISUJnlsmo
cada vez mais se afundava. Eu tenho uma tese - e não sei se o padre Florovsky
concordaria comigo - de que os ataques do Is15.0 não teriam tido êxito contra o
cristianismo oriental se esse cristianismo tivesse conservado os elementos teológicos
da personalidade c da história. Mas em lugar disso, o cristianismo dessa parte do
mundo se deixou levar, cada vez mais, pela superstição popular, tornando-se, dessa
maneira, vulnerável ao tipo islâmico de reação.

A fórmula de Calccdônia foi negada em parte, e em parte deixada de lado. De


482 a 519, ocorreu o primeiro cisma entre o Oriente e o Ocidente. As decisóes de
Calcedônia foram mantidas pelo Ocidente; o Oriente rejeitou-as ou seguiu na dire-
ção de uma interpreração monofisita de Calcedônia. Depois da reunião sob o impe-
rador ]ustino (519), o monofisismo tornOU-se vitorioso em Alexandria. Deu-se um
retorno radical a Cirilo com sua ênfase na unidade das naturezas. Depois da união
na encarnação somente uma natureza se fazia presente. Cristo é um, segundo sua
natureza composta, segundo sua pessoa, e segundo sua vontade. Depois dessa união,
não há mais dualidade de naturezas nem de energias. Os monofisitas mais radicais
achavam que o Concílio de Ca1cedôllia e o Papa Leão, que afirmavam duas nature-
zas e duas energias, deveriam ser condenados. Esses monofisiras ensinavarn que,
com a concepção de Maria, a carne de Cristo tornara-se progressivamente deificada.
E com isso Maria se transformava, na realidade, numa deusa. Os radicais diziam
que seus inimigos adoravam um ser mortal. Queriam nada menos do que Deus
com eles, sem qualquer relatividade humana.

4. Leôncio de Bizâncio
O imperador Justiniano queria reunir os ca1cedonianos com os monoflsitas.
Conseguiu, para esse fim, a ajuda de um teólogo monacal, Leôncio de Bizâncio.
Leôncio combinou Cirilo e Leão numa nova idéia escolástica alcançando para o
problema cristológico uma solução que perdurou por muito tempo no Oriente.
Ensinou que a natureza humana de Cristo não tinha hypoJtasis própria; devia ser
considerada anhypostasú' (sem !JypostrtJis). Neste contexto a palavra queria dizer "ser
independente". Em vez disso, a natureza humana era enhypoJtasis, significando que
a natureza humana escava na hypostaj'ú' do Logos divino. Chega-se, dessa maneira,
ao escolasricismo. Não sahemos realmente que quer dizer essa fórmula, enhyposttlSú.

102
DESENVOLVIMEl'TOTEOLOC;ICO NA IGREjA ANTIGA

Mas se entende bem a razão que levou Leôncio a inventá-la. Perguntava-se: podem
existir duas naturezas sem um centro independente, sem uma hypostrlSis? A resposta
era negativa. Portanto, Crisw tinha que ter uma só hypostasis representando as duas
naturezas.

o ser da natureza humana estava no Lagos. Sendo assim, a teologia de Antioquia


precisava ser condenada, incluindo a de Teodoro. O significado religioso dessa teo-
logia bizantina tornoU-se visível nos debates acerca do sofrimento de Deus expres-
sos na liturgia c nas fórmulas teológicas. O treishagion (trisságio: três vezes santo) foi
ampliado: "Santo Deus 0'0 Poderoso ... Imortal, que foi por nós crucificado, tem
misericórdia de nós". Um dos componentes dessa trias sofrera na carne. Essa idéia
transformou-se em dogma, em 553, por ocasião do quinto Concílio Ecumênico de
Constantinopla, apesar dos protestos de Roma. O Concílio expressou-se por meio
de catorze anátemas. As duas naturezas passaram a ser distinguidas apenas em teo-
ria, não mais na pdtica. A pessoa do Logos veio a ser o centro pessoal de Jesus. A
natureza humana não possuía características pessoais próprias. Estava aí a questão
decisiva, porque, se fosse assim, de que maneira ele nos poderia ajudar? O Crucifi-
cado é o verdadeiro Deus c o Senhor da glória, um dos membros da trindade. Jesus
Cristo passa a ser identificado completamente com o Logos. A personalidade hu-
mana do Cristo desaparece como nos ícones em que ele se mostra cercado de ouro.

O Ocidente, porém, não se deixava conquistar assim tão fàcilmente. E não


demorou a reagir. Perguntava-se agora se a pessoa de Jesus possuía uma ou duas
vontades. A discussão travava-se desta vez entre os monotelitas e os dyothefitas. E
quem saiu ganhando foi o Ocidente. Cristo, com suas duas naturezas, tinha tam-
bém duas vontades. A natureza humana não era absorvida pela divina. Só se conse-
gue entender essas preocupações se percebermos que o problema fundamental era o
relacionamento da salvação com o indivíduo, com a história e com a vida pessoal. O
Ocidente não tinha dúvidas a respeito. No Oriente, as coisas não eram bem claras.

A tílrima controvérsia oriental tinha a ver com os ícones. Eikon quer dizer "ima-
gem". Os ícones eram imagens dos pais e santos da igreja. Mereciam veneração,
mas não adoração. Entretanto, quando se busca a diferença é difícil de situá-la, pois
no sentimento popular a veneração sempre acaba em adoração.

Estivemos estudando o surgimenro e as conseqüências da doutrina cristológica,


segundo a fórmula de Calcedônia. É provável que durante estas aulas vocês estive-

103
CAPÍTULO []

ram protestando em silêncio contra tamanha ênfase na igreja Oriental. Por certo,
essa igreja não é tão importante para vocês como, por exemplo, a Reforma Protes-
tante ou a teologia moderna. Entretanto, o [·1tO é que se vocês conhecerem os fun-
damentos da teologia nascente, tudo o que vem depois se torna comparativamente
fácil. Se, por outro lado, nos contentarmos em conhecer apenas a situação con-
temporânea, sem roda essa história que a antecipou, tudo fica no ar. Sed. como a
casa construída a partir do telhado e não dos alicerces. Acredito que as controvérsias
teológicas do passado são verdadeiros fundamentos e, como tais, devem ser conside-
radas imediatamente depois das bases bíblicas.

A doutrina de Calcedônia, não importando o que pensemos a respeito do uso


de termos gregos na teologia cristã, conseguiu preservar o lado humano da figura de
Jesus para a nossa teologia ocidental, e até mesmo para o Oriente. Esse lado huma-
no esteve seriamente ameaçado de ser engolido pelo lado divino. Se isso tivesse
acontecido, boa parte da teologia ocidental, incluindo a Reforma, não teria sido
possível. Essa é a importância do Concílio de Calcedônia com as decisões que vi-
mos. O Oriente nunca chegou a aceitá-las de fato, transformando-as e permitindo
que submergissem na sua maneira sacramental de pensar e de agir.

Para entendermos os diferentes passos na doutrina cristológica, precisamos nos


lembrar sempre destas duas imagens: 1. Um ser de duas cabeças, Deus e homem,
sem qualquer unidade; 2. Um ser no qual uma das cabeças desaparece e com ela a
humanidade. A cabeça que sobra é a do Lagos, que é o próprio Deus, de tal maneira
que quando Jesus faz alguma coisa não o faz como um ser humano e divino ao
mesmo tempo, mas como o Logos. Dessa maneira, as lutas, as incertezas, o desespe-
ro e a solidão, descritas nos evangelhos, não teriam sido realmente experimentadas
por Jesus. Não teriam passado de mera aparência. Teriam sido inconseqüentes. Era
esse o perigo da posição oriental. Esse perigo só foi superado por causa das decisões
de Calcedônia. Na verdade, devemos ser gratos à igreja oriental que conseguiu acei-
tar essas decisões conO'a os selIS próprios sentimentos. O poder do Antigo Testa-
mento e o poder da plena humanidade de Jesus impediram que o Oriente se desvi-
asse dessa orientação.

J. Pseudo-Dionísio Areopagita
Dionísio Areopagita é o..-c::l~~~i_<:.?)l1ístico CflStãO que se tornou uma das mJ1S

104
DESENVOlVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA

fascinantes figuras da igreja oriental-: Exerceu grande influência também no Oci-


dente. jôm Atos 17,34, lemos a respeito de um tal Dionísio que seguira Paulo
depois de sua pregação no Areópago. ]s?c nome foi utilizado por um escrito~_e_
existiu por volta do anq ~.oO de nossa era. Segundo a tradição, esse homem teria
sido o mesmo Dionísio que conversara com Paulo. Escreveu muitos livros com esse
nome. O que nos parece hoje uma falsificação era costume no mundo antigo. Assi-
nar o próprio livro com o nome de pessoas famosas não significava falsificação em
sentido técnico nem moral. Foi apenas durante o século quinze que se descobriu
que esses livros não haviam sido escritos pelo companheiro do apóstolo. Ficou,
então, estabelecido que se tratava de um escritor que escrevera por volta do ano SOO
e que usara esse nome para emprestar autoridade a seus livros. Foi traduzido para o
latim por João Escoto Eriúgina, grande teólogo ocidental, por volta de 840. Essa
tradução latina foi muito usada na Idade Média e ganhou comentários de inúmeros
autores escolásticos. Dionísio representa as principais características dos últimos
desdobramentos bizantinos entre os gregos. Trabalhou na mediação do
neoplatonismo para o cristianismo, e é considerado o pai de boa parte do misticis-
mo cristão. Seus conceitos aparecem na maior parte dos escritos místicos tanto do
Oriente como do Ocidente. Alguns de seus termos, como hierarquia, por exemplo,
entraram para a linguagem comum e ajudaram a formar o sistema hierárquico de
Roma.

Deixou-nos
-_.-- ----_ _------ --_ ..Sobre
duas obras fundamentais:
.. ~_ ... ,
os nomes divinos e Sobre as hierar-
-
quiaJ. Este último faz distinção entre as hierarquias celestiais e as da igreja. É pro-
vável que a palavra "hierarquia" tenha sido criada por ele; pelo menos não temos
notícia de seu uso por qualquer outro escritor antes dele. O termo vem de hieros,
que quer dizer "santo", "sagrado", e de arché, "princípio", "poder", "começo". O
termo é, então, definido por Dionísio como "sistema sagrado de graus a respeito do
conhecimento e da cficácià'. É o que caracteriza o sistema católico, até certo ponto.
Não se circunscreve ao ontológico; abrange também o epistemológico. Há graus
não apenas no ser, mas também no saber. O sistema de graus sagrados vem do
neoplatonismo, onde apareceu pela primeira vez depois de Aristóteles e Platão
(Symposium). O principal pensador desse ripa de filosofia chamava-se Produs,
neopiatânico, comparado às vezes com Hegel. Desenvolveu o mesmo tipo de pen-
samento triádico - tese, antítese e síntese - trazendo a realidade toda sob esse siste-
ma de graus sagrados.

A coisa surpreendente em Dionísio é que seu sistema, nesse final do mundo

105
CAPÍTULO li

grego, resumindo tudo o que a sabedoria grega tinha a dizer sobre a vida, foi intro-
duzido no cristianismo que p<1SSüU a utilizá-lo. Um pouco antes, o mesmo sistema
havia sido utilizado por Juliano, o apóstata, para combater ü cristianismo. Ora,
]uliano e os teólogos cristãos que tanro lutaram entre si, uniam-se, afinal, num
cristão grego, místico e teólogo, o Pseudo-Dionísio.

;1.;..0 outro livro que vamos examinar é Sobre os nomes divinos. O termo "nomes
divinos" é também neoplatônico, utilizado por eles para designar todos os deuses
pagãos quando os reuniram em sell sistema. Como fizeram isso? Nada mais fizeram
do que seguir a crítica filosóficl, segundo a qual, nenhum grego educado da época
acreditava, literalmente, nos deuses pagãos. Havia, certamcntc, a tradição, a religi-
osidade popular, e algo dcvia ser feito a respeito dos nomcs divinos. Procuraram
demonstrar que as qualidadcs do divino expressavam-se nesscs nomes. Também
expressavam diferentes graus e poderes do fundamento divino c da sua emanação.
Indicam princípios de poder, de amor, de energia e de outras virtudes, embora não
possam ser tomados como nomes de seres especiais. Tudo isso significa que desco-
briam, em nossa terminologia moderna, o cadtcr simbólico de toda a nossa fala a
respeito de Deus. Ao longo da Idade Média, se encontram muitos escritos sobre
esse mesmo assunto. Os teólogcos escreviam sobre o significado simbólico de todas
as coisas que dizemos a respeito de Deus. Mas não empregavam a palavra "sírnbolo"
nessa época. Em vez disso falavam de "nome" para expressar características ou qua-
lidades. Seguindo as descobcna~; da teologia clássica a esse respeito, não diríamos,
como às vezes se flZ, que a nossa Llla a respeito de Deus seja apenlls simbólica. Esse
llpenas está muito errado! Não podemos cair em literalismo, pois foi contra esse
literalismo que tanto lutaram m reformadores, especialmente Calvino.

A interpretação simbólica de (lido o que dizemos a respeito de Deus corresponde


à idéia de Deus presente nos escritos de Dionísio. Como sabemos a respeito de
Del1s~ Dionísio respondia: há duas maneiras de se conhecer a Deus. Em primeiro
lugar, o caminho da_Ieologia positivagu afirmativa. Todos os nomes, à medida que
são positivos, devem ser atribuídos a Deus, posto que ele é o fundamento de todas
as coisas. Assim, Deus pode ser designado por todas as coisas; todas as coisas o
indicam. Deus deve ser nomeado com todos os nomes. Em segundo lugar, contu-
do, temos a via da teologia negaiva na qual ele não pode ser designado por nome
algum, seja qual for o nome.

Deus paira acima dos mais :lItOS nomes que a teologia lhe tem conferido. Deus
é, segundo Dionísio, super-essencial. Esd além das idéias platônicas, que são as

)OG
DESENVOLVIMENTO TEOLCíC;ICO NA IGRI'JA AN'I'IGA

essências. Está além dos superlativos. Ele não é o mais alto dos seres, mas se situa
além de qualquer ser mesmo que seja o mais alto e sublime que possa ser concebido.
É supradivino, além de Deus, se Deus for para nós um ser divino. Portanto, Deus
é "escuridão indizível". Por meio desta combinação de palavras, Dionísio nega que
Deus, em virtude de sua natureza, possa ser falado Oll visto. Assim, todos os nomes
atribuídos a Deus devem desaparecer tão logo se faça essa atribuição, até mesmo o
santo nome de "Deus". Talvez essa tenha sido a fonte - inconscientemente - do que
eu disse no final de meu livro A Coragem de Ser, sobre "Deus acima de Deus", isto
é, Deus acima de Deus que é o fundamento verdadeiro de tudo o que existe, e que
se situa acima de qualquer nome especial que lhe possamos dar, mesmo que seja o
nome do mais aIco ser.

t. importante que os lados positivo e negativo terminam no mesmo fim. Em


ambos os casos, negam-se as formas das palavras. Se dizemos alguma coisa a respeito
de Deus, podemos da mesma forma afirmar que nada dissemos a respeito dele; pelo
menos, nada especial. Esta é a primeira coisa que se deve dizer, natlll·almente, a
respeito de Deus, porque é exatamente isso que o torna Deus, isto é, a transcendência
de tudo o que é fmito. Neste sentido, até mesmo o problema da unidade e da
trindade desaparece no abismo da divindade. Uma vez que o superessencial, além
das idéias platônicas, coloca-se também além de todos os números, até mesmo
além do nLimero "um" - de tal maneira que não há diferença entre três ou um ou
muitos neste sentido. Sempre que se afirmar que Deus é uno, traduzamos a expres-
são por "além de todos os números, indusive o número um". Apenas nessa base
poderemos falar ainda de trindade e da auto-expressão do infinito em nosso mun-
do,
A luz emana do uno abissal, fonte e substância de todo o ser, e a luz é o bem em
rodas as coisas. A luz é símbolo não apenas do conhecimento, mas também do ser.
É como dizia o filósofo grego Parmênides: onde está o ser aí também está o fogos do
ser. Esta luz, poder do ser e do conhecimento, é idêntica a si mesma. É inabalável e
eterna. Há um modo descendente e outro ascendente. Já encontramos essa idéia
em Heráclito que via em todas as coisas uma corrente da terra para a água, da água
para o fogo e do fogo para o ar, bem como o seu retorno do ar para a terra. Reconhe-
cia-se, dessa maneira, a tensão fundamental presente em todos os seres vivos, mani-
festa na descida do poder criativo de ser, e na ascensão do poder de ser salvador. Os
três estágios da ascensão são estes: purgação, iluminação e união. O primeiro se
passa nos domínios da ética e da ascese; a iluminação tem a ver com a compreensão

107
CAPíTULO 11

mística; a união é o estado da perfeição, o retorno à união com Deus. Nesse último
estágio, Dionísio percebia o que chamou de ignorância mística. É a mesma coisa
que Nicolau de Cusa passou para o mundo moderno com o nome de ignorância
doura (docta ignorantia). Para esses dois pensadores reside apenas aí o conhecimen-
to supremo verdadeiro. A palavra "ignorância" significa que não sabemos nada es-
pecial quando conseguimos penetrar nos fundamentos do que existe. E, posto que
todas as coisas especiais estão sempre mudando, das não podem ser a verdade c a
realidade última. Mas se penetrarmos, a partir do mundo mutável, na esfera do
supremo, alcançaremos a rocha da eternidade; aí está a verdade que só repousa
nessa rocha.

Essa realidade fundamental é representada por melO de graus chamados de


hierarquias. A linha descendentc se chama "emanação". A linha ascendente, "salva-
ção". As hierarquias representam os dois movimentos. São o caminho por meio do
qual o ser divino emana c, ao mesmo tempo, as revelações do abismo da divindade,
à medida que podem se revelar, no caminho ascendente da união salvadora com
Deus. Do ponto de vista da via ascendente, as hierarquias procuram criar a maior
semelhança possível de todos os seres com Deus, bem como a sua união com ele. A
ançjg.~.Jórmula_.flLatôni_c:ª, "seja !K'?-_~L~.D_ells tanto quanto possível", também foi
usad.~~~ Areopagit~_.::_~.~~imar-~_ ca~~ vez mai~ de Deus e finalme~1te se unir
com ele.

Cada hierarquia recebe sua luz do que está mais acima e a transmite ao que lhe
é imediatamente inferior. Cada hierarquia, pois, é, ao mesmo tempo, ativa e passi-
va. Recebe o poder divino de ser e passa-o de modo restritivo aos que lhe são infe-
riores. Entretanto, esse sistema de graus acaba sendo dualista. Há duas hierarquias
fundamentalmente diferentes, a celestial e a terrena. As hierarquias celestes são as
essências ou idéias platônicas, transcendidas apenas por Deus. São essas as primei-
ras emanações de Deus, interpretadas por Dionísio como hierarquias angélicas.
Essas idéias já haviam aparecido no judaísmo posterior (no período
intertestamentário). O conceito de anjos - que já é um conceito simbólico personalista
- se une ao conceito de essências ou poderes hipostatizados de ser. Tornam-se um
mesmo ser representando as hierarquias celestes. Se vocês quiserem interpretar o
conceito de anjos, nos dias de hoje, de maneira significativa, falem dos anjos como
essências platônicas, como poderes de ser e não como seres especiais. Se vocês inter-
pretarem os anjos como seres especiais, vocês caem numa crua micologia. Por outro
lado, se vocês interpretarem os anjos como emanações do poder divino de ser em
essênCias, em poderes de ser, o conceito de anjos se torna significativo e talvez até

108
DESENVOLVIMENTO TEOLClcICO NA IC REJA ANTICA

mesmo importante. A figura sentimental dos anjos como bebês alados não tem
nada a ver com o grande conceito das emanações divinas em termos de poderes de
ser.

A hierarquia eclesiástica na terra é imagem da hierarquia celestial. Os anjos são


espelhos espirituais do abismo divino. Estão sempre a contemplá-lo c são os recipi-
entes imediatos de seu poder de ser. Querem ser iguais a ele e retornar a ele. Em
relação a nós, são os primeiros reveladores. Ao entendermos essa doutrina dessa
forma, entendemos o que quer dizer essências desünadas a expressar, em primeiro
lugar, o fundamento divino. Há três vezes três ordens de anjos - naturalmente num
estilo escolástico dramático - possibilitando certa analogia em relação às hierarquias
terrenas. As hierarquias terrenas são poderes de seres espirituais. Aprendemos com
elas um pouco do realismo medieval. As hierarquias terrenas são estas:

1. Os três sacramentos: batismo, ceia do Senhor e confirmação;

2. Os três graus do clero: diáconos, presbíteros e bispos;

3. Os três graus dos não-clérigos: os imperfeitos, que ainda não são membros
da congregação, os leigos, c os monges, com suas funções especiais.

Essas nove hierarquias terrenas medeiam o retorno da alma a Deus. São igual-
mente necessárias e, da mesma forma, poderes de ser. Na qualidade de filhos do
nominalismo, vocês já devem estar perguntando: como se pode dizer que os sacra-
mentos sejam igual a povo (clero, leigos) enquanto hierarquias? É preciso se enten-
der que as pessoas funcionam aqui na qualidade de portadoras de poder sacramen-
tal, do poder de ser. O mesmo se aplica aos sacramentos. É por isso que Dionísio
chama as nove de hierarquias. São igualmente poderes de ser, algumas visíveis em
pessoas, outras em sacramencos, e ainda outras em pessoas cuja única função consis-
te em ser membros da congregação.

Submete-se, assim, o mundo terreno ao sistema hierárquico, porque as coisas


terrenas como sons, cores, formas, pedras etc., são empregadas, especialmente nos
sacramentos, para expressar a hierarquia eclesiástica. A realidade toda pertence à
realidade eclesiástica, porque a realidade eclesiástica é a realidade hierárquica ex-
pressa em diferentes graus de ser e do conhecimento de Deus. No mistério da igreja
todas as coisas são interpretadas em termos de seu poder simbólico para expressar o
abismo da divindade. Expressam-no e guiam todas as coisas a ele. O mistério ecle-
siástico penetra no interior da divindade, que é o fundamento divino de todas as
coisas. Estabelece-se, então, um sistema de símbolos em que todas as COisas são

109
CAPÍTULO 11

potencialmente incluídas. Este é o prIncípIO da cultura bizantina. Essa cultura


pretendeu transformar a realidade em algo indicativo do eterno. Nunca desejou
IIludar a realidade, como no mundo ocidental.

Por isso, o pensamento hierd.rquico no Oriente é muiw mais vcnicalista, Inter-


pretando a realidade ao penetrar nas suas profundezas, enquanto que o conceito de
reino de Deus, como no protestantismo, por exemplo, vai se expressar numa linha
mais horizonralisra. Olhando para a situação em termos de Oriente e Ocidente,
entende-se porque o Oriente, sem essa habilidade para agir na transformação da
realidade a pareir de Llma tcologia histórica, se tenha tornado vítima tanto dos
ataques islâmicos como dos marxistas. Por outro lado, examinando nossa própria
cultura percebemos, em geral, a perda da dimensão verrical. Estamos sempre que-
rendo ir para a frente; nUllca temos tempo de parar um pouco para olhar para cima
e para baixo.

Para se entender o que eu quero dizer quando falo a respeito da possibilidade


de fazer com que as coisas flquem transparentes ao fundamento divino, seria bom
olharmos por um momento para a arte. A mais translúcida arte religiosa encontra-
se nos mosaicos bizantinos. Esses mosaicos não têm a menor intenção de descrever
as coisas que acontecenl no plano horizontal. Querem, isso sim, expressar a presen-
ça do divino por meio de todas as coisas que aparecem no plano horizontal da
realidade, no tempo e no espaço, transformando essas coisas todas cm símbolos
indicadores do que se situa nas suas próprias profundezas. Aí está a grandiosidade
dos mosaicos. Alguns exemplos desses mosaicos podem ser vistos no Museu Metro-
politano de Arte da cidade de New Vorlc Vocês podem contcmplar aí expressões da
transcendência divina mesmo quando os conteúdos referenciais sejam temas com-
pletamcntc terrenos como árvores, animais, políticos e mulheres da corte. Cada
uma dessas expressões possui significado simbólico profundo. A última grande con-
trovérsia na igreja bizantina relacionou-se com ícones, ou pinturas, porquc a cultLl-
ra bizantina acrcditava no poder dessas imagens para expressar o fundamento divi-
no das coisas. Corria-se, no entanto, sério perigo: a picdade popular facilmente
confundia a transparência das imagens com o poder da própria divindade, que se
tornava visível nelas, mas jamais prctcndera ser idêntica a elas. O conflito desenro-
lou-se em relação com o sentido do poder transparente das imagens. Era tcma
essencial aos orientais; em conseqüência, a maior parte da grande arte veio de lá, e
conquistou o Ocidente. O mesmo perigo veio a se tornar tão ameaçador, no Oci-
denre, quc depois da capitulação de Roma, as imagens foram dc tal maneira ataca-

110
DESENVOLVIMENTO TEOuíGICCJ NA IGREJA ANTIGA

das pelo protestantismo, que boa parte delas foram retiradas das igrejas. Assim, no
calvinismo, os objetos naturais perderam a transparência. Esse é o sentido de todos
os movimentos iconoclastas (destruição de imagens). Trata-se de reação bastante
compreensível ao modo supersticioso com que muitos católicos oram às suas ima-
gens etc. Mas quando nos damos conta de que pelo mesmo aro rodos os objetos
naturais perderam a transparência natural, já não se pode tcr tanta certeza sobre a
validade da medida. As coisas passaram a ser meros objetos da atividade técnica, a
natureza desdivinizoll-sC, perdendo a função que sempre possuíra de representar o
sagrado. Diríamos que a cultura bizantina conseguira cspiritualizar a realidade roda.
Esse faro não deve ser confundido com idealizaçáo, que é coisa bem diferente. A
imagem de Jesus pintada por Hofmann é uma idealização. As imagens bizantinas
de Jesus têm transparência e jamais poderiam ser confundidas com imagens ideali-
zadas. Vê-se, por meio delas, a majestade divina. Não se limitam a retratar um
mero ser humano bem proporcionado e agrad~i.vel que nos servisse de modelo ideal.
É por isso que eu digo que a igreja oriental representa aspectos religiosos que perde-
mos. E me alegro ao saber que as igrejas ortodoxas orientais foram, afinal, recebidas
no Conselho Mundial de Igrejas, tornando possível, novamente, o nosso encontro
com elas. Não devemos pensar que elas não têm nada para nos ensinar. Pode até
mesmo acontecer que depois de alguns séculos de contatos mais íntimos com essas
Igreps, o pensamenm ocidental venha a recuperar a tão valiosa dimensão da pro-
fundidade.
o sistema de Dionísio foi recebido pelo Ocidente. Duas coisas contribuíram
para isso, cristianizando-o ou batizando-o. Em primeiro lugar, a emanação foi com-
preendida num quadro pessoal, não natural. Deus dera existência aos seres por
causa de sua benevolência. Os pagãos jamais teriam pensado dessa forma. Remove-
se o dualismo neoplatônico com esse elemento personalista. Em segundo lugar, o
sistema hiedrquico gira em torno da igreja e de Crismo É daí que as pessoas e as
coisas derivam o poder iluminador. Cristo não é uma hierarquia entre outras. Nicéia
não permitiria tal doutrina. Cristo era o próprio Deus manifesto, presente em todas
as hierarquias e agindo por meio delas. Assim, superava-se o sistema das divindades
e dos mistérios pagãos, ainda persistentes no neoplaronismo, e a igreja ocidental
podia aceitar as hierarquias e os mistérios. Como resultado disso, o misticismo
medieval não se opôs à hierarquia eclesiástica. Foi só mais tarde que os conflitos
apareceram.

111
CAPÍTULO li

K. Tertuliano e Cipriano

Os primeiros dois pensadores do Ocidente que vamos estudar são 'Tertuliano e


Cipriano. Já examinamos o pensamento de Tertuliano em relação ao movimento
montanista caracterizado por atitudes radicais a respeito do espiritualismo e da
escatologia. Foi o maior representante teológico do movimento. Também nos refe-
rimos a ele por causa da grande habilidade demonstrada na criação de fórmulas
trinitárias e cristológicas que, sob a pressão de Roma, sobrepujaram todas as outras
sugestões oferecidas pelo Oriente. Vimos ainda que ele era um filósofo estóico e
que, por isso, utilizou a razão para elaborar um sistema racional bastante radical. O
mesmo Tertuliano, contudo, sabia que o cristianismo possuía também o paradoxo
como elemento constituinte. Tendo afirmado que a alma humana era naturalmente
cristã (anima naturaliter c!Jristiflna), poderia igualmente ter dito - embora, a frase
não seja sua - "creio porque é absurdo" (credo quia ahsurdum est). Na verdade, disse
o seguinte: "O Filho dc Deus morreu: devemos crê-lo porque é absurdo. Foi sepul-
tado e ressuscitou; o fato é incontestável porque é impossível". Esse paradoxo resul-
tava de dois fatores: em primeiro lugar, expressava a realidade surpreendente c ines-
perada do aparecimento de Deus nas condições da existência; em segundo lugar,
era expressão retórica dessa idéia do modo como os oradores romanos utilizavam a
língua latina. Não era para ser recebida litcralmente. O paradoxo, porém, servia
para indicar a realidade incrível do aparecimento de Cristo. Era natural que se
acrescentasse a essa fórmula a expressão, credo quia absurdum est, muito embora
Tertuliano nunca a tivesse escrito. Não se podia esperar que a escrevesse com tanta
clareza, dada a sua maneira de fazer teologia, uma vez que como estóico, acreditava
no poder determinante do Lagos.

Vem com ele a ênfase no pecado que se tornaria tão importante mais tarde no
Ocidcnte. Falava do vicium originis, vício original, identificado com a sexualidade.
Foi com ele que se iniciou propriamente essa tendência presente no cristianismo
romano de depreciar o sexo ao lado da idéia da universalidade do pecado.

Tertuliano achava que o Espírito era uma espécie de substância tênue, como
era também considerado na filosofia estóica. Essa substância superior, que era o
Espírito, era também a graça e o amor. Na verdade, sempre quiseram dizer a mesma
coisa na teologia católica. Assim, a teologia católica romana podia falar de gratia
infusa, graça infusa, como qualqucr líquido, muito fino, a se derramar nas almas
humanas para transformá-las. Esse é o elemento não-personalista no pensamento
sacramental católico romano. Essa graça pode ser vertida sacramentalmente dentro

112
DESENVOLVIMENTO TEOLCíC;ICCl NA IGREJA ANTIGA

do óleo da extrema-unção, na água do batismo, no pão da ceia do Senhor e, igual-


mente, na alma. O pensamento de Tertuliano é uma das fontes desse tipo de "ma-
terialismo espiritual", por assim dizer, que representou importante papel na Igreja
Romana.

Finalmente, Tertuliano acreditava que o caminho para a recepção dessa graça


substancial de Deus passava pela ascese, que era a auto-negação da própria realida-
de vital. Empregava o termo jurídico "compensação" pelo pecado; o ascetismo re-
presentava essa compensação em face do caráter negativo do pecado. Também pas-
sou a empregar o termo "satisfação". Por meio de boas obras podemos "satisfazer" a
Deus. E falava também de "autopunição". Enquanto punirmos a nós mesmos, Deus
não nos haved de punir. Trata-se, pois, de pensamento legalista, embora Tertuliano
não fosse jurista. Entretanto, todos os oradores e filósofos romanos empregavam
categorias legais. Era uma das características fundamentais do Ocidente que se tor-
nou decisiva para os futuros desenvolvimentos da Igreja Romana.

Cipriano, bispo da África do Narre, exerceu notável inf1 uência na doutrina da


igreja. Para ele, tratava-se de um problema existencial. A igreja experimentava per-
seguições e por causa disso apareciam os chamados lapsi que renegavam a fé, entre-
gavam livros religiosos aos investidores das autoridades pagãs ou denunciavam os
próprios companheiros cristãos diante dos tribunais. A igreja se preocupava tre-
mendamente com a situação. Muitos desses delatores queriam, depois, retornar à
igreja e superar a fraqueza que lhes fizera falhar. Quais deles poderiam ser readmitidos
à igreja~ Por certo, estavam fora de discussão os que haviam caído por mera malda-
de. Mas quem decidiria a respeito? O ensino corrente deixava claro que somente os
"espirituais" poderiam discernir o que fazer. Pertenciam a essa categoria, os que
haviam sofrido pela fé ou de alguma outra maneira haviam provado que eram cris-
táos plenamente responsáveis. Esse método, contudo, tinha traços do passado quando
o "espírito" ainda dominava sobre o "ofício". Mas agora o ofício desejava assumir
plenamente esse papel. O bispo, que é a igreja, deve decidir a respeito dos lapsi. E
deveria decidir de modo bastante liberal; deveria aceitar até mesmo os que haviam
caído mais de urna vez, da mesma maneira como sáo também recebidos outros
pecadores mortais.

Por outrO lado, ainda se ensinava com suficiente ênfase que o Espírito é quem
decide sobre quem pertence e quem não pertence à igreja. Então, Cipriano dizia
que os bispos é que são os "espirituais", os que possuem o Espírito, isto é, o Espírito
da sucessão dos primeiros apóstolos, em outras palavras, a sucessão apostólica. Des-

I 13
CAPÍTUlO 11

se modo, o Espírito tornOU-se a qualificação do ofício. E foi esse o mais espetacular


triunfo do ofício, conseguindo limitar o Espírito ao ofício, ao mesmo tempo em
que o chamava de Espírito da sucessão. Passava-se, assim, à idéia de que o clero é
imbuído de graças em virtude da ordenação, e que o clérigo supremo, que é o Papa,
materializa a graça de Deus na rcrra.

Perguntava-se ainda que atitude se deveria tornar com as pessoas barizadas por
hereges e cismáticos. Tratava-se de mais um problema existencial. Espero que seja
clara a diFerença entre herege c cism;íticos, Hercgcs sãoos que acreditam de modo
di Ferente..9~!1~~!.....~~iE~ 2~~_~sv i~!.'-1.:!.~i~.rdcm do li ui ~!~L.93._~.Sta,c_~i,stã._,Ç i.S}l~_~E~
". sã{)__ g_s_CL~_~,,_~~~~m _~~~rmi_~~9._~.J.i~~ha de desenvolvime~0j_~_~c:.?~~~~~í_~_ticoe se
~~r_~~_A~_Jg~.eja! _motivad<?s talvez _P.o~_<:_?.!~-ª_~~~~._~,!1!~_~._~i~p.?S O~l p,or.!_~_~_apacidade
_ de ac,:i.~~r..~_bispo d.~?_~~ __g,'por isso que a separação entrc as igrejas do Orientc c
do Ocidcnte se chama de cisma. A igrcja oriental é considerada cism;:ítica e não
herética, pela igreja de Roma. Já o protestantismo é considerado por Roma um
movimento herético, porque não recusa apenas a autoridade do bispo de Roma,
mas põe em dúvida postulados de fé, aceitos por Roma como fundamentais.

Perguntava-se, então, de que mancira se poderia aceitar na congregação gente


batizada por grupos duvidosos. A resposta veio em termos do caráter objetivo do
batismo. A validade do batismo não depende da pessoa que o realiza. Veremos,
mais adiante, como Agostinho enfrcntou a questão. A idéia de Cipriano a respeito
da igreja está por detrás de todos esses pro blemas.

1. "Quem não tcm a igrg''!.-_s:º..r!~g.-B.la "mã.~.!láo poª~ __~~r Deus como seu Pai".
"Não há salvação fora da igreja" (cxtrrt ccc!esiarn nuffa sa/us). A igreja é a instituição
onde se obtém a salvação. Essas idéias diferem dos ensinamentos do período primi-
tivo, quando a igreja era considcrada a comunidade dos santos e não a instituição
da salvação. Naturalmente, naqueles tempos tJmbém se acreditava que a salvação
acontecia na igreja; os que sc salvavam do paganismo e dos demônios reuniam-sc na
igreja. Mas a igreja, em si, não era considerada a instituição da salvação, lTlas a
comunidade dos santos. A ênfase de Cipriano é bastante consistente com o pensa-
mento legalista do Ocidente.

2. A igreja está edificada sobre o episcopado. Essa convicção vem da lei divina
e é, por isso, objeto de fé. "Portanto, vocês devem saber que o bispo esrá na igreja e
a igreja está no bispo, e que se alguém não estiver com o bispo, não estará na igreja".
Essa é a mais pura forma de episcopalismo, muito embora a palavra tenha sentido

114
DESENVOLVIMENTO TEOU)CICO NA IGREJA ANTIGA

diferente, hoje em dia.

3. A unidade da igreja depende, pois, da unidade do episcopado. A unidade é


representada por todos os bispos. No entanto, apesar da igualdade de rodos eles, há
UIll representante dessa unidade; é Pedro e sua sé. A sé de Pedro é a igreja "de onde
surgiu a unidade sacerdotal, o ventre e a raiz da igreja católica". Estas coisas foram
ditas antes de Agostinho. Em conseqüência dessa doutrina, embora Cipriano não
tivesse chegado a tanto, tornou-se inevitável o surgimento do principado de Roma
de modo bem mais radical do que se imaginara.

4. O bispo é stlcerdm- - palavra latina para "sacerdote". A função principal do


sacerdote é sacriFicia1. Ele sacrifica os elementos na Ceia do Senhor repetindo, as-
sim, o sacrifício do Gólgota. "Imita o que Cristo fcz; oferece um sacrifício perfeito e
verdadeiro a Deus Pai dentro da igreja". Não temos ainda, nesse momento, a missa
católica, mas os seus prenúncios, principalmente nas nações primitivas com seu
pensamento realista e a tendência de confundir o simbólico com o real. A maior
parte dos fundamentos da Igreja Romana já existiam por volta de 250, quando
Cipriano vivia. Sempre que nos rebelamos contra qualquer elemento na Igreja Ro-
mana devemos ter em mente que essa igreja já estava em formação nesses primórdios
da história eclesiástica. E quando falamos, hoje, da concordância dos cinco primei-
ros séculos não devemos aceid.-Ia sem crítica. Essa "concordância" é bastante enga-
nosa. É certo, por outro lado, que os protestantes, os católicos e os ortodoxos con-
cordam com as principais decisões sinodais. Essa concordância, no entanto, é ape-
nas aparente, posto que o significado vivo dessas decisões difere absolutamentc do
que os reformadores construíram como doutrina protestante. Examinem, por exem-
plo, as idéias de Cipriano. Os protestantes não aceitam nenhuma dessas idéias.

Vamos resumir, a seguir, os principais traços da tradição acidentai.

1. Vamos mencionar, em primeiro lugar, a tendência ativista, e, em geral, prá-


tica, do Ocidente, pronta a estabelecer relações de tipo legalista entre Deus e os
homens, produrora de fortes impulsos éticos entre os cristãos ordinários, muito
mais voltados para o mundo do que propriamente para o indivíduo. Não se deve
esquecer, aqui, o interesse escatológico livre de ênfases místicas e mistagógicas. Di-
ríamos, em resumo, que desde o começo o Ocidente foi caracterizado muito mais
pela lei do que pela participação.

2. A idéia de pecado, e até mesmo de pecado original, é quase que exclusiva-

115
CAPíTULO Ii

_glcnte ocidental. As principais preocupações do Oriente giravam mais em torno da


morte c da imorraliebde, do erro e da verdade. O Ocidente concentrou-se no peo.-
do c na salvação. Santo Ambrósio, por exemplo, estimava sobremaneira o ensino de
Paulo sobre o pecado e a salvação. Paulo foi o principal mestre no assunto. Ambrósio
foi considerado o doeror gentiunl, o mestre das nações. Paulo teria as c!l;lVes do
conhecimento; Pedro, as do poder. Ao longo (LI história da Idade rvrédia, desenvol-
ve-se a luta entre Pedro e Paulo, por ;lssim dizer, entre ;15 cluvcs do conhecimento
que prevalecem, afinal, na Reforma, e as do poder, que sempre rrillllhuJm elll ROIl1;l.
Portan[O, segundo Sanro Ambrósio, a graça será em primeiro IUg;1[" o perdão dos
pecados e não a deificaçáo, segundo a atitude pbtônica do Oriente.

3. Em último lugar, o Ocidente subli nluva a humanidade histórica de Cristo,


sua humildade e não sua glúri:l. Por exemplo, na porta da igreja de Sanr:l S:lhin;l,
em Roma, que me deslumhrou, vê-se recortada em m:ldeira :l primeira figur:l ou
escultura da crucifixão. Essa porta é mundialmente famosa, originária do quarto
século. Nela se percebe, claramente, a diferença que lü entre o Ocidente que se
desvia do Crisro da glória, e o Oriente, com esse Cristo glorioso em todos os seus
mosaicos; essa arte é mais silltolllâticl das diferenças entre o Oriente e o Ocidente
do que muitas fórmulas teológicls. N:lturalmentc, a mesma atitude (;lmbérn se
expressa por meio de fórmubs teológicas. i'vIas tudo o que dissemos a respeito elc
Calcedônia pode ser Jgon ilustrado ao contrastarmos os mosaicos, digamos, de
Ravena, sob influência bizantina na época dc sua criação, e essa port:l da igreja de
Sant:l Sabina. Estão aí as dU:ls cristo!ogias expressas em imagens. Numa debs ternos
o Senhor do universo, tremencbmenre poderoso, juiz do mundo em toda a glóri;l,
ou o Ressurreto, em sua majestade, cercado por anjos, homens, animais, e matéria
inorgânica, tudo isso participando de Slla glória. Na outr:l, ternos essa aprescnraç50
maravilhosa do sofrimenro de Cristo, pobrc, a partir de outra pcrspectiva. No pri-
meiro caso, ternos a teologia :dexandrina, retratando um Crisro em forma divill;l,
cuja existência corporal des3parece diante de tamanho esplendor. No outro C1SO,
temos a crisrologia anrioquena c rom;lIl:l, ressaltando a hum;lllidadc de Cristo ;Ki-
ma de qUJlquer outra cais;], com todo o seu sofrimenro. Essas imagens exemplificam
diferenças de sentimenro. Assim, temos ~lP._Q.t::i(kJ~telpresente em toda a hist~ó,r0_
da pintura, as representações !"!:1_~_~~_ cruéis, mais destrutivas c, ao mesmo _sen.J.Q2'
mais maravilhosas da crucifixáo. Os pri'Tleiros crucifixos góticos, ainda existentes
hoje, talvez não obtivessem permiss:lo d;1S juntas paroquiais de nossas igrejas para
ficarem nos altares: s:lo tremendamente medonhos. Como se a crucifixão pudesse

116
DESENVOLVIMENTO n:OL(lCICO NA ICREJAANTIC;A

ser uma cOisa bonita! Foi terrivelmente feia - e é isso que o Ocidente accicou c
C11 rendeu.

4. A idéia de igreja desenvolve-se muito mais no Ocidente do que no Oriente.


De cerra forma, ela é construídJ segundo o modelo da estrutura jurídica do Estado
romano, submetida ao princípio LI;} autoridade, com a lei dupla: C:LI1ônica e civil. O
poder hier,í.rquico ce!Hralizüu-se no Papa; e todos participam pessoalmente, até
mesmo os monges, no sacramento da penitência.

L. Vida e pensamento de Agostinho

V~\~l~-º-S__ ~_~!_l~(tar agor~._._q~_lem __ I!~~i~, do ~ll_~ ~~_[at9.-l.!-~r-º.llgqIJ~P-r:Ç-?GIl roL! o ,.Oci-.


d en tej .cJ~ __Q.~~_,_ Q§,. (~!.!2-,t a!!.l c 11 to s d e t: ~~ li_Sl _,0"_ 51~1_t;_~,~i~1 ~!l~_~_i_~~JlJ .EJ r~. __0g_~·. Vi veu
entre 354 e 430. Sua influência estende-se nJO apenas pelos próximos mil anos,
mas sobre todos os períodos desde então. Sua influência foi tão grande na Idade
I\1édia que até mesmo os que se opunham a seus pensamentos, terminologia teoló-
gica e método - que eram os dominicanos com a ajuda de Aristóteles - cicavam-no
com freqüência. Tomás de Aquino, grande oponente do agostinianismo na Idade
Média, citou-o afirmativamente int'imeras vezes.

Os reformadores refe!:}~21-se~~~:~tan~~lel:5,~_~
..1&~~1110 na luta contra a Igrc-
j.<1-RQ.man;b. EX~~S:~.~EXgf~~~l~_a influência na fllosofia mo(ietna, começando.p?~D~
ca~ss} e sua escola, e pass~~Ao._P?.r_.Y~pin~~.0.: Também influenciou a teologia mo-
derna. Devo confessar, sem ambigÜidade, 5L~e tO~~n~~i,~~~?-_.teolo_g_ia_XI5.~1~~~~':2~
linha da tradição agostiniana do qu~. tomist3. Podemos traçar essa linha de pensa-
mento que pane de Agostinho, até os franciscanos da Idade Média, e vê-la passando
pelos reformadores, pelos filósofos dos séculos de:t,essete e dezoito, chegando aos
filósofos alemães cLíssicos, incluindo Hegel, e terminando na atual filosofia da reli-
gião. O agostinianismo expressa-se llltma filosofia da re1igiJo baseada na imediatez
da verdade em cada ser humano, e não I1tlm~l filosofia empírica da religião, que
seria, certamente, uma contradição em termos.

1. O itinerário de Agostinho

Para entender Agostinho, prccisalTlos percorrer sete diferentes etapas e, depois,


urna oitava, de cadter negativo em relação a contelÍdos.

117
CAl'ÍTU LO II

a) Situa-se em primeiro lugar, a influência que a piedade de sua mãe exerceu


sobre o maior de rodos os pais da igreja. Isso significa, ao mesmo tempo, sua depen-
dência da tradição crisrã. O que nos relembra Platão. Quando Piarão escreveu,
também veio de certa tradição que era a tradição aristocrática da classe educada
ateniense a que pertencia. Entretanto, essa tradição chegava ao fim com a
3utodestruidora guerra do Peloponeso; as massas triunfaram c, como sempre, aca-
baram submissas aos tiranos. A aristocracia foi morta não apenas enquanto seres
humanos, mas enquanto o próprio princípio que a determinava. Assim, a visão de
Platão não passava de forma idealizada de existência filosófica e política; tratava-se
de uma visão sem qualquer relação com a realidade de então. Portanto, devo adver-
tir vocês todos a respeito de um engano: o nome de Platão deixa na sombra todo o
resto do pensamento grego, incluindo até mesmo Aristóteles. Entretanto, não ima-
ginem que Platão tenha sido o homem mais influente desse mundo antigo. Na
verdade, exerceu certa influência, e seu livro Timaeus foi quase uma espécie de "bíblia"
da época. Mas não podia exercer verdadeira influência, porque (lido o que disse
situava-se no domínio das puras essências sem quaisquer fundamentos históricos.
Estou, naturalmente, pensando agora em termos do mais puro materialismo eco-
nômico. Quando não há mais condições econômicas e sociais e a civilização já al-
cançou certo estado de desenvolvimento, ela não pode ser influenciada e muito
menos transformada por formas ideais oriundas do passado. Experimentamos algo
parecido, hoje em dia, com essa saudade da Idade Média; o poder crescente da
Igreja Romana tem algo a ver com essa situação. Mas não terá êxito. Não é possível
retornarmos à Idade Média, embora seja a esperança de todos os católicos. Assim,
quando Platão escreveu sua República e mais tarde as Leis, expressando aí todos os
elementos de sua posição filosófica - incluindo ao mesmo tempo seu pensamento
social, psicológico e religioso - agia, de certo modo, corno um reacion~irio. Ao
classificá-lo de reacionário, quero dizer que se dirigia a coisas do passado incapazes
de recuperação no período do império romano. Veio daí ° vazio em que os cínicos,
os céticos e os estóicos se tornaram muito mais importantes do que Platão, ao se
adequarem à situação. Foi o estoicismo que governou o mundo antigo posterior, e
não o platonismo. É verdade que Platão retornaria na Idade Média.

Agostinho achava-se em situação cOlnpletamente oposta. Enquanto em Platão


a grande tradição aristocrática chegava ao Fim, uma nova tradição começava com
Agostinho. O pai era pagão; a mãe, cristã. O pai pagão fê-lo participar na melhor
parte do paganismo da época, e a mãe cristã possibilitou-lhe a entrada em outra

118
DESENVOLVIMENTO TEOI/1CICO NA IGREJA ANTIGA

tradição, num novo arcaísmo (de arehé, princípio).

b) Agostinho descobriu o problema da verdade. Esta segunda etapa relaciona-


se com o fato de ter lido o livro Hortensius, de Cícero. O autor trata aí da questão da
verdade. Cícero falava da possibilidade de se escolher entre diferentes caminhos de
verdade, entre diferentes filosofias. Cícero, grande estadista romano, respondia em
termos de um tipo de filosofia eclética, como o faria qualquer estadista americano se
tivesse que escrever sobre a verdade. Escolheria elementos filosóficos mais relevantes
à situação política vivida. Da mesma forma, Cícero estava interessado na verdade a
panir de um ponto de vista prático. Não se tratava de nenhum filósofo original.
Depois da cat,ístrofe da filosofia grega, a originalidade não era possível. Por isso, a
partir de um ponto de vista pragmá.tico, afirmava que tem valor filosófico o que
ajuda a desenvolver a boa cidadania no império romano. As idéias promotoras da
boa cidadania eram providência, Deus, liberdade, imortalidade, recompensas etc.
Agostinho estava na mesma situação, com a diferença de estar interessado na cidade
de Deus e não na civitas terrena. Desenvolveu, então, uma filosofia pragmática, com
elementos platônicos e outros, b.::~:,:~~a_~as necessidades da vi~a cristã e não da
__ . cidadania rO.Q:.anE..:.A forma básica era eclética e pragmática, como em Cícero. Agos-
tinho, tampouco, foi um filósofo original no sentido de Platão ou dos estóicos. Mas
conseguiu alcançar notável síntese entre a idéia vétcro-testamentária e Javé e a do
ser de Parmênides. Mais do que gualquer out~9 .pe_n~~~.?!....!:"~..história da IgreJa,
Agostinho conseguiu a comunhão de Jerusalém com Atenas.

c) Vem, então, o maniqueísmo. A religião persa era dualista. Originou no perí-


odo helênico um movimento chamado maniqueísmo (de Mani, seu líder). Tratava-
se de um parsismo helenizado, de caráter dualista. Podemos considerá-lo a mistura
da profecia de Zoroastro, profeta da religião persa, com o platonismo já na forma
do pensamento gnóstico dos fins do mundo antigo.

Os maniqueus compctiram grandemente com o cristianismo. Diziam possuir


a verdadeira teologia científica da época. Agostinho foi atraído por essa reivindica-
ção, e também por causa do dualismo maniqueu capaz de explicar racionalmente o
pecado. Por essa razão, eles sempre exerceram ccrta influência na história do cristi-
anismo. Houve, durante a Idadc Média, seitas influenciadas por idéias maniqueístas
e, ainda hoje, existe muito maniqueísmo por aí sem se identificar como tal. Quan-
do tcntamos explicar o pecado em termos de dois princípios igualmente finais,
estamos dentro do maniqueísmo: o princípio do mal é tão eterno como o do bem.

119
CAPÍTULO li

Agostinho foi atraído pelo maniqueísmo durante dez anos. Havia razões para isto.
Em primeiro lugar, a verdade não era para o grupo mera questão teórica, esgotada
na análise lógica, mas assunto religioso relacionado com preocupações existenciais e
práticas. Em segundo lugar, a verdade era salvadora. O maniqueísmo era um siste-
ma de salvação. Os elementos do bem, cativos pelo princípio do mal, encontram no
sistema maniqueu a salvação. Em terceiro lugar, a verdade refulge na luta entre o
bem e o mal e assim se pode interpretar a história.

A~ostinho nunca se livrou da influência dessa seita. Abandonou-a e lutou con-


tca ela, mas, não obstante, seus pensamentos e, mais ainda, seus sentimentos sem-
pre demonstraram essa influência no seu profundo pessimismo em face da realida-
de. Sua doutrina do pecado talvez não possa ser entendida sem esse período
maniqueísta. Agostinho abandonou o maniqueísmo sob a influência da astrono-
mia. A astronomia lhe mostrou o movimento perfeito das estrelas, isto é, os elemen-
tos fundamentais da estrutura do universo. Em face disso, não era possível a exis-
tência do princípio dualisra. Se o universo expressa a estrutura das formas matemá-
ticas regulares, harmoniosas e possíveis de cálculo, onde achar os efeitos do demô-
nio na criação do mundo? As estruturas básicas presentes na criação do mundo são
boas; foi o que aprendeu com a astronomia. Usava, dessa maneira, a idéia grega
pitagórica do cosmos. E os princípios da forma e da harmonia expressos na mate-
mática.

Esse prlIlcíplO europeu grego superou para Agostinho o dualismo e a


negatividade do Oriente. Assim, a separação de Agostinho da filosofia maniqueista
foi apenas llm evento simbólico. Significava a liberação da ciência natural moderna,
da matemática e da tecnologia, do pessimismo dualista e da negação da realidade
na Ásia. Esse fato foi muito importante para o futuro da Europa. Os filósofos e
teólogos agostinianos, do último período da Idade Média, deram sempre ênfase à
matemática e à astronomia. A ciência natural moderna nasceu, corno o platonismo
e o agostinianismo, na base da crença no cosmos harmonioso, determinado por
regras matemáticas. Era também a visão de mundo da Renascença.

Examinando com mais profundidade os movimentos do pensamento, pode-


mos entender que o itinerário de Agostinho do maniqueísmo para a astronomia,
depois de se ter filiado ao maniqueísmo pOt causa de sua explicação do pecado e do
mal, torna-se um símbolo mundano e histórico da relação entre o oriente asiático e

120
DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA ICREJAANTIGA

o ocidente europeu.

d) Depois que Agostinho abandonou o grupo manL<UI_t.YL ~a1U no cetlClsmo...l


c()J!1oue~,, __ geral ac_ontece quando nos desiludimos de algum sistem~_.de ve~da,~~~.
Passamos a duvidar de rodas as possibilidades da verdade. Além disso, nessa oca-
sião, o ceticismo estava na moda. Até mesmo na escola platônica, conhecida pelo
nome de Academia, o ceticismo sobre o conhecimento expressava-se com o nome
de probabilismo. Somente as declarações prováveis eram possíveis; a certeza não era
possível. Toclos os primeiros escritos filosóficos ~~~os.~~r-I~o est~~d:::~ __ "?_.p~?,bler:n-~
da ccr~eza. Trata-se de importante elemento em seu pensame~to porque pressupõe
~5m negativo da filos.?_º-~_~:.g5l-. A heróica tentativa grega de construir um mundo
baseado na razão filosófica se acabava catastroficamente no ceticismo. A tentativa de
criar um mundo novo, em termos da doutrina das essências, fracassou. É a partir
daí que se deve entendcr a nova ênfase na revelação. O ceticismo, fim da filosofia
grega, foi o pressuposto negativo da maneira corno o cristianismo veio a receber a
idéia de revelação. O ceticismo é, em geral, a base da dourrina da revelação. As
pessoas que dão ênfase na revelação, em termos mais absurdos e supernaturalistas,
são precisamente as que se comprazem em ser céticas sobre todas as coisas. O ceti-
cismo e o dogmatismo, a respeito da revelação, se correlacionam. A maneira como o
cristianismo valorizou a revelação até o Renascimento, relaciona-se com o tremendo
choque com que a razão ocidental experimentou o fracasso de todas as rentativas
filosóficas gregas de alcançar a certeza.

O ceticismo fez surgir nova doutrina do conhecimento, ou, se quiserem, nova


epistemologia, criada por Agostinho. Começa com o homem interior em vez da
experiência do mundo fora do homem. O ceticismo que representou o fim de todas
as tentativas de se construir um mundo objetivo, no espaço das coisas e dos objetos,
conseguiu jogar Agostinho sobre si mesmo para encontrar no seu interior o lugar da
verdade. Temos, assim, duas conseqüências dessa participação no ceticismo: de um
lado, a aceitação da revelação; de outro, a certeza da verdade no interior do ser
humano, na subjetividade. Agostinho situava-se entre o ceticismo e a nova autori-
dade, presente na igreja, assim como Platão se colocava entre a antiga autoridade e
o começo do ceticismo. Vemos novamente o fim do período arcaico em Platão e o
começo de novo período arcaico em Agostinho.

e) A libertação do ceticismo, no campo filosófico, só velO com o período


neoplatônico. Se o ccticismo se achava numa extremidade do pensamento grego, o

121
CAPÍTULO II

neoplatonismo estava na outra. O ceticismo era o pólo negativo. O ncoplaronismo,


o caminho místico no qual a filosofia grega, afinal, terminou. Agostinho tornou-se
um filósofo ncoplatônico, transformando o ncoplatonismo em base de nova certeza,
a certeza imediata de Deus. O neoplatonismo sempre defendeu a idéia da imediatcz
da verdade na alma interior. Foi daí que Agostinho tirou a sua nova certeza do
divino.

o neoplatonismo deu também a Agostinho os fundamentos de sua interpreta-


çáo da relação de Deus com o mundo; Deus é o fundamento do mundo em termos
de amor. Do ponto de vista psicológico, podia, pois, entrar em si mesmo, embora
tal doutrina precisasse do apoio de sua experiência cristã. Agostinho, no entanto,
acabou fazendo o que mais tarde todos os filósofos renascentistas fizeram: transfor-
mou o sentido do neoplawnismo no seu oposto. O neoplatonismo era uma filosofia
negaciva, uma filosofia de escape deste mundo. Queria a elevação da alma acima do
mundo material às alturas mais sublimes. Agostinho trocou essa ênfase por outra;
abandonou a idéia de graus e, em lugar disso, utilizou o neoplaronismo para des-
crever a experiência imediata do divino em todas as coisas, especialmente em sua
alma.

f) A superação do ceticismo não foi alcançada por ele apenas com o auxílio
fIlosófico do neoplatonismo, Illas também COIll a ajuda da autoridade da igreja.
Muito .lb.~jn8J.!.ÇQ\:XOl!,_~~ra tap!.9LSJIJ.i?J).Q. _d~.. Mj~.Q-, _~.,!rHq. Ambrósio, represe~1tan-
..__J;.~_qes~~L~g9.1~.i.40-de-=-- A consciência do novo arcaísmo, ou do novü período arcaico
iniciado com a tradição eclesiástica, torna-se consciente no princípio da autoridade.
A catástrofe do ceticismo levou Agostinho cada vez mais para a aceitação da autori-
dade, para a autoridade da revelação, concretamente concedida a ele por meio da
autoridade eb igreja.

Todo o desenvolvimento do pensamento medieval fora marcado por certa ansi-


edade cética, pela anglistia deixada pela faIra de sentido, como diríamos hoje, em
oposição à aceitação da revelação e da auroridade. A autoridade, para Agostinho,
concentrava-se no poder da igreja com seus grandes representantes, impressionan-
te, impositivo, e tremendo. Mas não se trarJVJ para ele de problema heterônomo,
como é hoje para nós. Não significava a submissão ao que alguérn nos ordenaria a
fazer ou crer. Era, antes, a resposta à questão implícita no antigo ceticismo. Portan-
to, não experimentou a autoridade como heteronomia) mas como tconomia, natu-
ralmente, com certa razão em sua época.

122
DESENVOlVIMENTO TEOLOCICO NA IGREJA ANTIGA

~!I:,~,"~_!emen~~_ 'l~1.~ __ iE1E~ession?1.!.~1~O~(i~~,().,PL?f~.~damente foi _3 .~_S~~~~_


~~!,~~~ representada por monges e santos". Experimentava a tensão entre seu ideal
místico e a própria natureza sensual. Em sua época, a esfera da sexualidade havia
sido terrivelmente profanada. Nem a razão estóica nem o neoplatonismo tinham
conseguido superar essa profanação em larga escala. As formas naturais de amor,
santificadas pela tradição e pela fé nos períodos arcaicos da Grécia e de outros
países, fora destruída. Sobrara apenas certo nawralismo, sem restrições, acerca do
sexo. A pregação dos estóicos, dos cínicos Ou dos céticos não conseguira mudar a
situação porque se baseava na lei, c a lei é impotente em face da libido
naturalisticamente deformada. Agostinho descobriu um novo princípio de
santificação eficaz para si e para os outros. Carregava em si o mesmo tipo de tcnsão
vcrificado no cristianismo neoplatônico dc Dionísio, afirmando e negando o mun-
do ao mesmo tempo. O cristiani8mo afirmava a criação e santificava a existência por
meio do aparecimento histórico do divino no Cristo. O neop1aronismo negava a
criação; de Fato, nem rem qualquer doutrina da criação. E negava também o apare-
cimento histórico de Deus. Quando muito, apenas o considerava um evento uni-
versal constantemente aparecendo. Ag05tinho mostrava-se dividido. À medida que
era cristão, com firmes raízes no Antigo Testamento, valorizava a família e o sexo de
tal maneira que o sexo deveria se manter dentro do casamento. Mas ao Ser influen-
ciado pelo neoplatonismo e pela antiga negatividade para com O mundo, negava o
sexo e praticava o ascetismo. Esse conflito atravessa a história da igreja até hoje.
Encontramo-lo mesmo entre os reFormadores, embora a Reforma tendesse mais ao
lado positivo de Agostinho, afirmando o corpo segundo o profetismo do Antigo
'restamento. Por outro lado, a suspeita da libido estava tão profundamente enraizada
na tradição cristã que, não obstante seu radicalismo, os reformadores não consegui-
ram erradicar da igreja o que sobrava do ascetismo neoplatônico, e se mostraram
suspeitos diante de tudo que fosse sexual. Essa suspeita ainda se verifica hoje entre
os protestantes que vivem em países sob influência calvinista.

h) É importante não apenas entender esses sete momentos presentes no pensa-


mento de Agostinho, mas ainda observar o que falta entre essas grandes influências.
Falta Aristóteles. Não, naturalmente, inteiramente, porque Plotino tomara muito
de Aristóteles em seu sistema. Contudo, Aristóteles não foi diretamentc importante
para Agostinho. Agostinho, por exemplo, não incluiu em sua teologia qualquer
preocupação pela ciência grega. E não só a respeito da ciência natural. Não encon-
tramos em seu pensamento a presença da ciência política. Coisa que foi ter enorme
influência no desenvolvimento teológico da Idade Média.

123
CAl'fTULO 11

1. Aristóteles havia construído um sistema de mediação e não de dualismo


como Platão e Platina. Esse sistema de mediação não podia ser utilizado por Agos-
tinho, porque para ele a visão dualista do mundo era a mais adequada à expressão
do criStianismo.

2. A ênfase de Aristóteles na Importância do indivíduo Fundamentava certas


tendências inexistentes em Agostinho que preferia a comunidade da igreja.

3. Aristóteles falava a respeito da vitl nledia entre os extremos. Negava qualquer


afirmação semelhante às êxtases eróticas e ascéticas de Agostinho. Sua atitude era
quase burguesa. As conseqüências disso vão se tornar muito explícitas no protestan-
tismo.

4. Aristóteles representa as ciências especiais que tratam das coisas em suas


relações racionais e horizontais. Agostinho negava a importância disso. Importava,
antes, o conhecimento de Deus e da alma, e não das coisas natutais.

5. Aristóteles era lógico. Agostinho não tinha interesse especial em lógica. O


cadter intuitivo e voluntarista de seu pensamento levava-o a se desinteressar pelas
abstrações da lógica pura.

6. Aristóteles era um pensador indutivo e emplrtsta. Pania da realidade dada


no tempo e no espaço e subia daí às mais altas abstrações. Agostinho, seguindo
Platão, era um pensador intuitivo; pania de cima e descia às realidades empíricas.

Ora, essas duas atitudes diferentes estavam fadadas a entrar em choque logo
que Aristóteles fosse redescoberto no século treze. Por essa razão esse século tornou-
se o mais importante século da teologia cristã; foi completamente dominado pela
tensão entre Aristóteles e Agostinho. Essa tensão foi de tal maneira importante que
continuou a se expressar pelos séculos seguintes. Se VQ.cês. quiserem aplicar uma
etiqueta em meu pensamento, po~~~em me chamar de "agostiniano" e, nesse sentido,
de "antiarisrotélico" e "antitomista". Concordo plenamente com Agostinho no gue
diz respeito à filosofia da religião, mas não necessariamente com tudo o que ensi-
nou. Por exemplo, enquanto teólogo e filósofo na linha gestáItica, aproximo-me
bastante de Aristóteles e não tanto de Platão ou Agostinho, porque a idéia de estru-
tura viva ou de organismo é aristotélica, enquanto que a ciência atomista, mecál11ca
e matemática, permanece agostiniana e platônica.

",2. A epistemologia de Agostinho

124
DESENVOlVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA

o propÓSito e o método do conhecimento, segundo Agostinho, expressam-se


da seguinte maneira: "D_~~_~iQ __ç-ºx~heç~LJ2_~_~I? eª_~t!Dª". Nada mais? Nada mais."
Deus e a alma! Naturalmente, porque a alma é o lugar do aparecimento de Deus ao
homem. A~os(inho quer conheccE a aln~ª_ pOfqll~é __ªRt::f1as aí que se pode encontrar
Deus e não em outro lugar. Assim, Deus não pode ser concebido como um objeto
entre outros objetos. Ele é visto na alma. Está no centro do homem antes da sepa-
ração entre subjetividade c objetividade. Deus não é um ser estranho, cuja existên-
cia ou náo-existência se pudesse discutir. Antes, ele é o nosso próprio a priori; pre-
cede-nos em dignidade, realidade e em validez lógica. Nele superam-se a separação
entre sujeito e objeto, e o desejo do sujeito de conhecer o objeto. _Não há tal distân-
cia. Deus é dado ao _?_~J~!t? de tal maneira que se torna mais próximod~__?'yjeito dt?
que o sujeit?_ a si mesmo.

Na tradição agostinista, a fonte de toda a filosofia da religião é a presença


imediata da presença de Deus na alma ou, como prefiro dizer, a experiência do
incondicional, do supremo, em termos da preocupação suprema ou incondicionada.
Trata-se do prius de todas as coisas. Não se discute se alguém existe ou não. Agosti-
nho liga essa questão ao problema da certeza. Ele afirma que temos a evidência
imediata de duas coisas. Em primeiro lugar, da forma lógica - porque até mesmo a
questão da evidência pressupõe a forma lógica - e em segundo lugar, da experiência
sensorial imediata, que deveria realmente ser chamada de "impressão" sensorial,
porque a palavra "experiência" é dema8iadamente ambígua. Ele quer dizer o seguin-
te: agora eu sei que estou vendo azul. Objetivamente, a cor talvez seja verde c nã-o
azul - às vezes faço confusão entre essas cores, especialmente em relação aOS vestidos
femininos, para o horror de minha esposa. De qualquer forma, a impressão sensori-
al que tivc era de azul. Essa impressão será absolutamente cerra mesmo se a cor não
for azul. É isso que Agostinho quer dizer com imediatez. Posso ter visto um homem
de longe que, à medida que me aproximo dele, descubro que não é homem, mas
árvore. Coisa que pode aconteccr quando a gente anda caminhando no nevoeiro.
Não se pode ter certeza sobre o elemento objetivo nessa experiência; mas se tcm
absoluta certeza a respeito da impressão experimentada. As coisas reais, por outro
lado, submetem-se sempre ao ceticismo. As formas lógicas, por sua vez, não são
reais; são estruturas possibiliradoras das qucstões. São, portanto, imediatas e neces-
sátias. As experiências sensoriais tampouco são reais, a não ser à medida que as
tenho. Mas não sei nada mais além disso. É por isso que essas duas evidências - da
lógica e da percepção - não conseguem superar o cetiCismo.

]25
CAPÍTULO 11

De que maneira, então, será possível superar-se a dúvida a respeito da realida-


de? Em primeiro lugar, devemos começar com a dúvida geral; devemos duvidar de
todas as coisas. _ Não foi Descartes que primeiramente dllvi~~u._~~sse ieito. J~i se
duvidou dessa forma até mesmo antes de Agostinho. Mas Agostinho também pro-
cedeu dessa forma. Haverj alguma certeza em algum lugar~ Ele disse: "Você sabe
que está pensando. Não v~í. para fora do seu pensamenw. Vá para dentro," Em
outras palavras: fique aí onde você está pensando. "A verdade~eside no interior d<?_
homem, pois a mente não conhece o gue está fora dela. N~~"~_~stá mais prcscme à
mente do que a própr~aJ~lente". Em outras palavras, o ponto inabalável é a imedi-
ata <lutoconsciência da pergunta do cético. A verdade perdida no mundo exterior,
onde todas as coisas caíram no ceticismo, é reencontrada agora no mundo interior.
A alma é esse mundo interior, em contraste com a filosofia grega que a considerava
o poder da vida. A descoberta da alma, neste sentido, é uma das mais importantes
conseqüências do cristianismo. Inclui o mundo como a soma de todas as aparênci-
as. Em contraste com os gregos, para quem a alma fazia parte de todas as coisas, o
mundo agora se transforma em objeto. () mundo é uma aparência para a alma, que
é a ünica coisa real.

Ora, essas idéias se assemelham muito ao que Descartes queria dizer com o seu
cogito ergo sum (penso, logo sou). A diferença é que para Descartes a autoeerteza do
ego é o princípio da evidência matemática - deriva daí seu sistema racional da
natureza - quando para Agostinho a evidência interior era a imediatez da presença
de Deus. Assim, Agostinho aflrma: depois de se ir à alma, precisamos nos transcen-
der. O que significa que na alma há alguma coisa que a transcende, algo imuGÍvel,
que é, em outras palavras, o fundamento divino. Refere-se aqui à percepção imedi-
ata do incondicional. Não se trata certamente de mais um argumento em favor da
existência de Deus, mas de um modo de demonstrar que Deus esd pressuposto na
própria situação de dúvida a respeito dcle. "À m~~ma 1~~ªXS{;:t, que não pqdemosver
o que cremos, podemos ver a crença gue temos". Isto é, somos capazes de perceber
a situaçáo na qual somos tomados por algo incondiconal.

Havia pessoas ao redor de Agostinho que perguntavam: por que a verdade,


afinal? A verdade como tal não é necessária. Por que não nos contentarmos com
probabilidades? Por que não nos restringirmos a respostas pragmáticas que funcio-
nam? Agostinho achava que nada disso era suficiente por nos conduzir a uma vida
vazia. Os significados preliminares perdem o sentido se não houver algo incondici-
onal ou supremo. Não se pode contradizer essa afirmação ao se dizer que a situação
humana náo é de ter a verdade, mas de busd-la. Agostinho entendia que a busca da

126
DESENVOLVIMENTOTEOL(lCICO NA IGREIAANTIGA

verdade não responde à questão da verdade. Se estivermos buscando a verdade pre-


cisamos ter, pelo menos, certa intuição da verdade, c saber que estamos nos aproxi-
mando da verdade quando nos aproximamos dela. Para se saber que a verdade está
peno precisamos, antes, de algum critério para nos informar que essa verdade que
está perto é a verdade que escamas procurando. Esse critério tem que ser a própria
verdade. Em última análise, Agostinho está dizendo que em todos os relativismos,
mesmo nos mais radicais, pressupõe-se sempre uma norma absoluta, mesmo quan-
do não for expressa em palavras._Desd~_9~2_~çrl{<ld~_ só _~~ __d,c:b_3:_!lO interi.9[ch!.ª!.!1!ª
humana, a física não nos ajuda nessa busca. Tampouco contribui para o conheci-
mento de Deus. Afirma que en~nto os anjos conhecem as coisas divinas, os de-
mônios inferiores r_e.,::orÜ~~c.:em o mUI,l_(~<?..sl~_~..corpoh O conhecimento do Inundo
corpóreo envolve participação nesse mundo. Conhecimento é união e união impli-
ca em amor, e quem se relaciona cognoscivamente com os corpos ama-os e participa
neles. Dessa maneira abandona o conhecimento divino que é o mais alto tipo de
conhecimento e não permanece na verdade. As ciências naturais só têm sentido à
medida que mostram as causas divinas na natureza e demonstram os traços da
trindade nas flores e nos animais. Essas coisas não têm sentido nelas mesmas. Em
conseqüência dessa atitude, as ciências naturais, para a maior parte da Idade !\1é-
dia, perderam muito de seu sentido e não foram incentivadas._Agosti~l:!.9_nã~_!Ú~!1J.
(J ualquer in teresse técn ~C~) .. ~Lf.lJ_~!~ç~C? __ ~_C?m._ a na~ureza", nem se PT~gcu pavac<=!.!!1_.-9
caráter analítico do c.:Q.[~hecimento controlador... Entende-se, a partir daí, a atitude
da Idade Média para com as ciências naturais. Amava-se a natureza porque nela
transparecia a trindade. Esse sentimento deu-lhes, naturalmente, a possibilidade
de enorme produçáo artística, de qualidade muitíssimo mais alta do que a arte que
se faz hoje sob o poder do conhecimento controlador. Façam uma visita aos C!oiJters
(museu de arte medieval em New York) e admirem as tapeçarias em exposição; não
representam a natureza em termos de ciência natural. Náo há flores ou animais
naturalisticamenre exatos; foram pintados ou tecidos para mostrar a presença dos
traços da trindade na natureza, ou, em outras palavras, para mostrar o movimento
da vida que se separa e se reúne nos objetos naturais. Procuram iluminar o funda-
mento divino da natureza. É isso que lhes dá beleza. Para entendermos essas crIa-
ções precisamos perceber sua intentio, aquilo que realmente querem dizer.

Agostinho achava que os ne92I~'!r9 _ L1i~Qs_~.Q...Q!".ç)1?Ú9J~I~tão e~tavam m'-:li_tQJJró~


ximos d o cristianismo,:_._.rÇTs:~9 iª_~leQ1_el1 tos. t.r.iI~Ü~rio~_~ __ s~_~~.P.c;D_~3~_!~Dl.QI---2.!.i-nci­
.,,_J~ªJnJ.ç.r:u:s~!lª dOl!giD.~5J9_Logºs. ,Mas reconhecia que a filosofia jamais poderia afir-

127
CAPÍTULO II

mar que o Lagos se fizera carne. E assim mostrava a diferença fundamental entre
filosofia e teologia. A fIlosofia poderia levar os teólogos a falar do Lagos, mas no
momento em que a teologia afirma que o Lagos se fizera carne, baseava-se em men-
sagem religiosa capaz de distinguir o cristianismo de qualquer filosofia clássica. A
afirmação da encarnação do Lagos é de natureza teológica: vem da revelação, não da
filosofia. O Logos, princípio universal do cosmos, aparece em forma histórica. Esse
é o evento histórico único, incomparável.

3. Idéia de Deus
o amor, segundo Agostinho, é o poder unificador dos elementos místicos e
éticos em sua idéia de Deus. Vamos considerar primeiramente sua idéia de amor,
antes de examinarmos slIa idéia de Deus. Anders Nygrcn, teólogo sueco que escre-
veu Agape e Eros, criticou Agostinho e a teologia cristã, em geral, porque combina-
ram eros e agape numa síntese. Nygren está certo ao afirmar que esses dois elemen-
tos aparecem em Agostinho. A (ape é o elemento de amor no sen~L~~_~_~?tcstamc:nrário
do caráter pessoal e compass~::.9_A;:..P_~~s. Eros representa c!_.~.~seio da~_cTiaruras por
Deus engual~_~º bem sUE~emo, buscando unir-se a ele, para se rcalizare~._~terna-
__ mente. Agape ressalta quando falamos de Deus descendo ao homem em caritt{J -
prefiro a palavra latina à táo degenerada "caridade" -, humilhando-se em Cristo, em
graça e misericórdia, e parricipando nos humildes para elevá-los. Eros, por outro
lado, vai de baixo para cima; rrata-,~e de um desejo, de uma busca, provocada pelo
mais alto, ramada por sua plenitude e abundância. O Lagos que se faz carne é
agape. Mas roda a carne (toda a realidade natural e histórica) deseja Deus; isso é
eros. Em rninh~ TÇJ}jr}gitz Sist~;~ldLiC/l d~!D9!!§Ut;Lgue IlãQ se pode falar de amor para
_ comJ2_~.~_ se eliminarmos erM~Tr.at.a-s~.9?__a.mor ~"'!!;:Lc:-ºQ) __9__ ~_ais alto poderde ser
------S.!:!-~xist~, no qual nos realizamos.

Deus é SltFnrt!tl essentia, ser supremo, além de todas as categorias, de todas as


coisas rem parais e espaciais. Nem mesmo se pode atribuir a ele a categoria da subs-
tância. Náo se pode falar de essência e existência, de ser e qualidade, funções e atos
como se fossem coisas distintas no ser divino. A teologia negativa encontrada em
Dionísio também se vê aqui; ambos dependem do neoplatonismo. Por outro lado,
temos o lado positivo. Deus é a unidade de todas as formas; é.9_l?!i.ncípio ge toda
beleza. A unidade é a forma da beleza e Deus é a unidade de todas as formas. Todas
as idéias, todas as essências ou poderes ou princípios das coisas, estão na mente de
Deus. As coisas individuais existenl e voltam para Deus por meio das idéias.

128
DESENVOLVIMENTO TEOLcJGICO NA IGREJA ANTIGA

Temos, assim, dois elementos nesse conceito de Deus. À medida que Deus se
situa além de qualquer diferença, situa-se também além do sujeito e do objeto. O
amor não poderá ser, pois, um sentimento subjetivo que se dirige para determinado
objeto. Em última análise, não amamos objews, mas por meio de nosso amor a eles
dirigidos, é o próprio amor que é amado. Amor amatur, o amor é amado; só possível
porque o fundamento divino do ser é amor. O amor supera a separação de sujeito e
objeto. É a essência pura, a bem-aventurança, o fundamento divino de rodas as
coisas. Quando amamos as coisas corretamente, incluindo a nós mesmos, amamos
a substância divina presente nelas e em nós. Quando amamos as coisas em si, sepa-
radas do fundamento divino delas, amamos erradamente; e nos separamos de Deus.
Há, no pensamento de Agostinho, certo tipo de amor correto por nós mesmos. É o
amor com que nos amamos, enquanto amados por Deus. Em outras palavras, ama-
mos a Deus, fundamento divino do ser, por meio de nós mesmos.

Agostinho permanece na tradição personalista do Antigo e do Novo Testamen-


to e da igreja primitiva. Essa tradição é-lhe mais importante do que para os teólogos
orientais, como Orígenes. E se coloca ao lado da tradição ocidental no que concerne
à discussão trinitária. Interessou-se muito mais pela unidade de Deus do que pelas
diferentes hypostaseis, pelas três personae, em Deus. Ele é um desses responsáveis
pela inclinação contemporânea para aplicar o termo persona a Deus, em vez de
aplicá-lo individualmente ao Pai, ao Filho e ao Espírito. Naturalmente, Agostinho
nunca se tornou heterodoxo a esse respeito, embora se tenha inclinado, como o
Ocidente em geral, ao ponto de vista monárquico. Essa inclinação é evidente na
analogia que faz entre a trindade e a vida pessoal humana. "Pai, Filho e Espírito são
análogos a IImans (quem ama), quod I1ml1tur (o amado), e amor (o poder de amar)".
Ou "A rrindade é aI~áloga à memória, inteligência e vontade". Emprega o conceito
da trindade para descrever Deus analogicamente como pessoa. Sendo pessoa, por-
tanto, unidade, todos os atos de Deus para fora (ad extrl1) são sempre atos da trin-
dade toda, até mesmo a encarnação. Nenhuma das três personae ou hypostaseis age
por si mesma. E desde que a substância de todas as coisas é o amor em sua tríplice
aparição (aml1ns, quod amatur, e amor), todas as coisas criadas pelo fundamento
divino portam as marcas da trindade. Assim, o mundo imediato recebe caráter
teônomo. As formas da vida não são negadas nem quebradas, mas teonomicamente
preenchidas com essa substância divina.

Agostinho expressou com muita clareza a doutrina da criaçãoJx nibilo ao tratar


da relação de Deus com o mundo. Não existe matéria alguma antes da criação;

129
CAPfTULO 11

Deus cria sem qualquer substância prévia. Por isso a finidade será ameaça constan-
te. Acredito que quando nossos pensadores existencialistas modernos, incluindo eu
mesmo, dizem que a finidadc é a mistura de ser e não-ser, ou que o não-ser se
presentifica nas coisas finitas, estão na linha do pensamento de Agoscinho, quando
afirmou que todas as coisas correm o perigo de cair no tremendo abismo do nada.
O mundo é criado a cada instante pela vontade divina, que é a vontade do amor.
Portanto, conclui Agos~inho,_,~egui4(?_,d<;Eº_i~_J?5~JQ_~_~~fQIrp.aº_.op~~s,
__ ~_çriª_0o e a pre-.
_~.s.<=rvação_s_~?,_~ .~~?esma coisa; em nenhum momento o mundo se torna independente
deJ2_~l!s. As formas, leis e estruturas da realidade não são capazes de transformá-lo
numa realidade independente. Deus é o poder sustenta_4_0_~d()_pydc:rde ~<:r~ cuj.~
__ ~~At_t::r é__? amo._r~_~ssirn, não é possível a fixação deísta destas duas realidades, Deus
e mundo. Deus é o fundamento contínuo e amoroso do mundo.

Essas idéias se relacionam com a conhecida doutrina agostiniana do tempo.


Filosoficamente falando, trata-se de sua maior conquista, porque começa aí uma
nova era de pensamento a respeito do tempo. (Cf. sua oração, Livro II, das Confis-
sões). O tempo não é uma realidade objetiva no sentido e_m,qu.eas._c:üisas são objeiJ-
.......~~a~.•...J~~Et':1:~ltO, não pode ser apli~A~~.a~t~9.!I_~4~~~1_~e~Q~~_.,. Não tem S~!:!i?() per-
guntar-se pelo tempo antes ª~~!iação. O tempo foL~~iaeJojll!:.~::up~.l]tec9m o mun-
do; é a forma do mundo. É a forma da finidade das coisas, da mesma forma como o
espaço. Tanto o mundo como o espaço/tempo têm eternidade apenas enquanto
sujeitos à vontade eterna da criação. Pode-se dizer que estão potencialmente presen-
tes na vida divina, mas não são eternos enquanto reais; enquanto realidade são
finitos: Começam e terminam. Segundo Agostinho só há um Ünico processo mun-
dial. Com isso rejeita a idéia de um mundo cíclico, presente no pensamento de
Aristóteles e dos estóicos, com seus ciclos de nascimento e renascimento a se repetir
indefinidamente. Para Agostinho havia um começo definidoe d~ved haver um Fim
igualmente definido. Somente a eternidade transcende esse começo e esse Em. Para
os gregos o espaço era finito e o tempo infinito. Para Agostinho tanto o tempo corno
o espaço eram igualmente finitos. Concordava, naturalmente, com os gregos a res-
peito da finidade do espaço. Os gregos não poderiam ter concebido o espaço infini-
to porque todos eles eram escultores em potência; sua visão de mundo era plástica;
queriam contemplar os corpos no espaço. A infinidade do espaço teria prejudicado
a forma plástica da realidade, expressa em forma matemática pelos pitagáricos. Mas
para Agostinho o tempo também era finito. Essa finidade do tempo era-lhe neces-
sária para atribuir ao tempo significado final. Esse significado náo existia no pensa-

130
DESENVOlVIMENTO TEOL()GICO NA IGREJA ANTIGA

menta grego; o tempo era a forma da degeneração e da repetição. O tempo não


tinha sentido em si mesmo em termos criativos. Os tempos da natureza indefinida-
mente repetidos não tinham sentido algum. O tempo significativo era apenas o
tempo histórico, qualitativo e não quantitativo. O sentido do tempo está presente
para Agostinho nos seis mil anos de história mundial. E se por acaso, em lugar
disso, tivesse havido cem mil anos ou mesmo alguns bilhões de anos, o sentido do
tempo ainda permaneceria. Significado é tcrmo quantitativo, não qualitativo. A
medida do tempo não é o relógio. O relógio só mede o tempo físico. E se repete.
Mas o significado do tempo é o kairos, o momento histórico, que é a característica
qualitativa do tempo.

Existe um mundo centrado na terra, e uma história centrada no Cristo. Esse


único processo vem eternamente da intenção de Deus, embora a eternidade não
signifique tempo antes do tempo, nem ausência de tempo. Trata-se de algo muito
além dessas categorias. Embora o mundo tenha sido intencionado eternamente,
não é eterno nem infinito. É finito e significativo. O significado infinito realiza-se
no momento finito. Esse sentimento de finidade torna a Idade Média compreensí-
vel para nós. As pessoas sentiam-se dentro de um processo que começara
definidamente nos dias da criação, há alguns milhares de anos antes de nosso tem-
po, e que terá um fim também definido nos dias do juízo final no futuro próximo
ou distante. Vivemos dentro desse período e o que fàzemos aqui já é extremamente
importante - relaciona-se com o sentido do processo todo. Estamos no centro de
tudo o que acontece e Cristo está no centro de tudo o que somos. Essa era a visão
medieval do mundo. Podemos imaginar quão distantes estamos hoje dessa visão,
quando entendemos o que ela significa em termos não só de palavras, mas do senti-
mento perante a realidade, e em relação com a nossa própria existência pessoal.

4. Doutrina do homem '*'


.Ago~t!nhQ. ef!I~.flªj~, __9.!-!!:_,?;l~.!.E!Ég_ mai~im~.rta~9 homem era a vontade.
Mostra-se na memória e no intelecto, e possui a qualidade do amor, isto é, o desejo
de reunião. Esse predomínio da vontade foi outra das grandes idéias com que o
Ocidente superou o Oriente, responsável pela grande disputa medieval entre o
voluntarismo e o intelectualismo. As duas atividades básicas da alma - conhecimen-
to e amor, ou vontade, que é a mesma coisa - têm caráter ambíguo. Dirigem-se, em
parte, para si mesmas e, em pane, para fora de si. Voltam-se para o interior humano
em forma de autoconhecimenro e amor de si mesmo. "Nos somos, sabemos que

131
CAPÍTULO li

somos, e amamos nosso ser e nosso conhecimento". O que significa que nos auto-
afirmamos e nos Jutorelacionamos. Afirmamo-nos por meio do conhecimenw e da
vontade.

Por outro lado, o amor e o conhecimento transcendem nosso ser particular e se


dirigem aos outros,se~es. O amor participa no eterno; essa é sua própria eternidade.
A alma tem dimensões transtemporais. Essa participação não é o que em geral se
chama de imortalidade, mas participação na vida divina, no fundamento divino e
amoroso do ser. Entretanto, essa idéia entra em tensão com outra idéia de Agosti-
nho. Diríamos que esse elemenro místico mantém-se em tensão com o elemento
educacional. As almas não sáo apenas eternas em sua essência, mas também imor-
tais no sentido técnico de continuação no tempo. Como resultado disso, os excluí-
dos da eternidade, porque se separaram de Deus, são ainda imortais; essa imortali-
dade significa sua pena e condenação. Estão excluídos de Deus. Estão excluídos do
amor - o amor é o fundamento do ser - e não merecem nenhuma piedade. Não há
laços de amor entre eles e os OUtros. Mas se for assim, pode-se ainda perguntar de
que maneira seria possível a unidade do ser, se o ser é amor, Estamos diante de um
desses conflitos entre o pensamento místico-ontológico e o ético-educacional. Apre-
ciamos o mesmo tipo de conflito em.Qrfgipes, quando falou a r~ei!~~~ . :p-~k~~,!J!.asis
ton panton, o__ ~~.~.orno de todas as coisas a Deus, a salvação final de todas .<1S ~C?)sas
---..E9ssuidor~~ de ser; esse ensinamento a igreja logo rejeitou. Em conflitos desse tipo,
a teologia esotérica, a filosofia ou o 111isticismo sempre escolhem o lado do eterno e
da união com Deus na eternidade. O pensamento eclesiástico, educacional ou ético
vai para o oUtro lado, que fala da possibilidade da condenação eterna e da pena
eterna. Logicamente, é um contra-senso, porque o conceito de eterno exclui a con-
tinuidade temporal, e o conceito U1Hológico de amor, tão eminente em Agostinho,
exclui qualquer forma de ser que não esteja em união com o amor. O ponto de vista
educativo exerce constante ameaça a todos nós. A igreja, por sua vez, sempre o
manteve, aceitando a contradição lógica para manter a ameaça da condenação eter-
na (isto é, sem fim). O misticismo ontológico e o moralismo educativo contradi-
zem-se nessa questão.

Estou me lembrando de OUtrO problema, talvez bem mais concreto em nossos


dias. Qualquer pessoa que pense seriamente, ou que desenvolva seu pensamento
dentro da tradição cristã ou existencialista, entende, sem dúvida alguma, que a
idéia de que o Reino de Deus, ou a sociedade sem classes, vai se estabelecer na terra,
é utopia. _A pa~~~_.'~~~.<?P.i~~_~~2~~~.~~teralmente a i~existênc~a de lug<:trJde_J).~_­
tOp05'f1~J~Ka!t!~~!~.? __no tempo como no e.s2~S~. Mas se admitirmos que se trata

132
DESENVOlVIMENTO TEOL()GICO NA IGREJA ANTIGA

de utopia a vontade fanática, em prol da revolução e da transformação da sociedade,


acaba sendo diminuída. Alguns revolucionários admitirão, certamente, o caráter
utópico de sua !ma. Mas não falam dessa maneira para o povo, temendo que aban-
done a luta pela transformação da sociedade. Só lutariam se acreditassem que o
estágio final estivesse perto, se o Reino de Deus estivesse por chegar. Somente com
essas convicções poderiam agir. Que responderemos? Enfrentamos o mesmo pro-
blema. O ponto de vista ético, no caso o sócio-educativo, contradiz a compreensão
que temos a respeito das relações do tempo com a eternidade. Mui~os_~~.rã.9_:__s_~be:::
mos que se trata dt::__ ~~oEi,~,-.~~:él-s devemos fazer essa aD.rmação para que o povo não
esmor_e_çhQuuºs.~irão,_~
. ~_1.f"pert~llç.o .<.t._.este.grupo, que o desapontamento prove-
nie_l~t~ ..90~..u~opianismo não nos permite,. ~.ecessariamente, falar dessa forIna para o
povo. O dC?apontamentQ_~_f?i_2_.r 4()_~tI.~._.~;l1g,lIc:~~_nJi~'l.1.!~~iII1~.~!.t_º çlq fanatismo.
Essa é a minha decisão. Eu sei que é bastante questionável.

Segundo Agostinho, nem mesmo as crianças não batizadas são condenadas ao


inferno. Elas vão para o lirnbus injimtiurn, onde são excluídas da bem-aventurança
eterna c do amor divino. Essa idéia teve tremendo valor educativo e eclesiástico em
certos períodos da história, mas não, certamente, em nossa época. Em geral, ela
produz - especialmente em relação ao temor pessoal da condenação - estados neuró-
ticos c, por isso, não podemos dizer que se trata de uma doutrina superior.

5. Filosofia da hist6ria
A filosofia da história de Agostinho baseia-se. como em geral qualquer filosofia
da história, num dualismo ontológico, não obstante tal dualismo ser impossível.
De um lado está a cidade de Deus, do outro, a da terra ou do diabo. A cidade de
Deus realiza o amor de Deus. Está presente na igreja, mas a igreja é um corpus
mixtum, um corpo misturado, com pessoas que pertencem essencial e espiritual-
mente a ela e outras que não lhe pertencem. Entre essas duas características da
igreja (representação do reino de Deus e corpo misturado) a mediação se dá por
meio da hierarquia. A hierarquia é representada pelos que têm o poder de consagrar.
Na hierarquia, Cristo governa a igreja e se faz presente por meio dela._As~im, 2..
~~Ç~tólica~..l~Xl.tf..9J.!_A~._~~~s_~inho de ~ua~ maneira~. I9~!~~iBf.9Y-.. º- ~~Ú!º ge
Deus com a igrelª--ª-2-2!l~~__ 4<:""'~P..?9'-~1~iz~-la. Isso realmente aconteceu. Por outro
lado, as diferenças entre a igreja e o reino de Deus poderiam ser claramente revela-
das. Foi o que fizeram os movimentos sectários e a reforma protestante. Agostinho
percebia cerra relação dialética entre o reino de Deus e a igreja. Mostrava-se de tal

133
CAPÍTULO II

maneira ambígua que podia ser uti,lizada por diferentes teólogos. Mas uma COIsa

lhe era clara: não havia o período de mil anos na história mundial, nenhuma tercei-
ra época. Negava o chiliasmismo ou o milenarismo. Cristo governa a igreja já, ago-
ra; estes são os mil anos. Não há outros estágios na história além do tempo em que
vivemos. O reino de Deus governa por meio da hierarquia, e os chiliastas estavam
enganados. Não devemos pensar que o reino de Deus vai se fazer presente na histó-
ria em outros períodos além do nosso.

o reino da terra conserva a mesma anlbigüidade. De um lado, é o estado de


poder, de compulsão, de arbittariedade e de ti tania. Agostinho chamava esse estado
de coisas de "estado de gang)'ter". Possui rodas as características que vemos nos Esta-
dos. Por outro lado, vemos no mundo a mesma unidade que pode superar as ruptu-
ras da realidade e, por isso, pode ser uma obra de amor. Se o imperador consegue
entender isto, ele pode vir a ser um governante cristão. Aí está presente sua postura
ambígua: o Estacfo i4en_ti~~~a-~_l?~~~ial~e_!1,Ee_~(?_IE_.~J~}_!:.?,4~ diabo, mas difere
d~le.,_.I:~!Ei~}}pente, porque restringe os poderes demônicos.

A história tem três períodos: antes da lei, sob a lei e depois da lei. Temos aí uma
completa interpretação da história. EstaIl1?s_.~~~~l~A~~~_.~!?.A!!~~'? p~ríodo; cairíamos
_.em h~res~ª~cre9itáss~,~l..21._~_yiriaainda mais outro período. As seitas meclie-
vais, por certo, expressaram essa heresia. Assim, torna-se evidente a luta entre o
conservadorismo da filosofia da história de Agostinho e as tentativas revolucionárias
dos movimentos sectários.

6. Controvérsia pelagiana

Quando examinamos o caráter voluntarista do pensamento de Agostinho, to-


camos em sua doutrina do homem. Achava que o centro do ser humano era a
von~~~. ~~.!1_~Q-.Q_!.l)~_<:!ecto. T~~iciou-se com ele essa tradição que se desenvolveu por
todo o mundo ocidental, representada por filósofos e teólogos, na qual a vontade
estava no centro do homem. Quando examinarmos os filósofos e teólogos medie-
vais, até os tempos modernos, veremos como essa influência se manteve em cons-
tante tensão criativa, em face das tendências aristotélicas.

A tensão entre Agosünho e Aristóteles é o poder decisivo que move a história


medieval do pensamento; quase todas as coisas podem ser vistas em relação com
essa tensão.

134
DESENVOLVIMENTO TEOlflCICO NA ICREJA ANTIGA

Até agora apenas examinamos o homem na sua relação essencial. Ao vê-lo nessa
relação essencial com Deus, consigo mesmo e com os outros, Agostinho considera o
homem fundamentalmente vontade, cuja substância é amor. Esse amor é o funda-
mento criativo de tudo o que existe. Nessa idéia de amor, agape e eras afinal se
reúnem. Entretanto, a natureza essencial do homem não é igual à sua natureza
existencial; a natureza essencial não aparece no tempo e no espaço. Pelo contrário,
essa natureza essencial é deformada pelo que Agostinho chama de pecado, especial-
mente de pecado original, na tradição do Novo Testamento e da igreja. Sua doutri-
na do pecado, centro de sua doutrina do homem, desenvolveu-se na controvérsia
que manteve contra Pelágio.

O_c~.nJli_t() de Agostinho contra Pelágio.J<}.L~lm dos m~~res da história da igre-


_ J~< __C(?T~:.P~~§~c;.l ...~~<::_ontrovérsias _uinitál.·.~~s_ e cr.istológicas. Trata-se de um desses de-
bates que vai se repetindo ao longo da história da igreja. Já no Novo Testamento, se
vê a tensão entre Paulo e os escritores das epístolas "católicas"; temo-lo entre Agos-
tinho e Pelágio, mais ou menos, como entre Tomás de Aquino e os franciscanos e,
finalmente, entre Karl Barth e os liberais de hoje. Uma idéia aí é decisiva. Pensa-se,
em geral, que é a liberdade que está em jogo, mas não é. A liberdade tem inúmeras
conotações que não nos interessam nesta questão. Decisiva é a relação entre ética e
religião. O que está em jogo é se o imperativo moral depende da graça divina para
se realizar, ou sc a graça divina depende da realização do imperativo moral.

Pelágio não era um herécico isolado. Representava a doutrina comum de gente


educada no pensamento grego, especialmente nas tradições estóicas, para quem a
liberdade faz parte da natureza essencial humana. O homem é ser racional e os seres
racionais têm liberdade para deliberar e decidir. Se Pelágio tivesse parado por aí não
teria sido considerado herege, porque a igreja oriental, em geral, tinha exatamente
essa mesma idéia a respeito da liberdade. Mas Pelágio foi adiante e desenvolveu sua
doutrina em conflito com Agostinho. Quando o conflito terminou, Agostinho po-
dia ser considerado parcialmente vitorioso e Pelágio o maior dos hereges, cujo nomc
ainda é usado para denominar uma das grandes heresias clássicas.

Para PelágLqL3;__ll2..?!~~_E~_i_.evento. natl~E?l, __'_12~§~~~~}iado_4~ __~~.eda. Se Adão


não tivesse pecado não teríamos a morte, pois ela pertence à finidade. A mesma
idéia já encontramos antes em Inácio e Irineu. Eles diziam que o homem é natural-
mente finito e destinado a morrer como rodas as coisas naturais. Entretanto, segun-

135
CAPÍTULO II

do a hist6ria do paraíso, o homem pode superar a finidade essencial ao participar


no alimento divino. Pelágio deixa de lado essa segunda possibilidade, para afirmar
apenas a primeira como verdadeira, segundo a doutrina cristã.

o pecado de Adão é apena~~~~dão; não pertence à ra5~J:~~ma~~ com~_ ~~l.


Nesse §cntido. não há pecado original. O pecado original transformaria o homem
em categoria natural quando, na verdade, ele é um ser morai. Portanto, a contradi-
ção da exigência moral deve ser um evento de liberdade e não evento natural. b~
pessoa~_d.~Y~,rrLPJi.m~Ú2111~}.l_!.~-l?t.ǪI_PªIª-_<kpoisse.f..Qamarem de pecadoras. A sim-
ples dependência de Adão não nos faz pecadores. Pelágio afirma, assim, uma verda-
de universalmente cristã, que não pode haver pecado sem participação pessoal no
pecado. Por outro lado, ele não percebe a ênfase cristã na universalidade trágica do
pecado, cOl1siderando-o o destino da raça humana.. Q .~~lacionamento com Adão,
Q~~s~osto como primei~~?J~~'-~~.~,natu.~_~I]1ente, mit~Jógic:Q.' Mas neste mito a
igreja cristã - tomando-o literalmente ou não - preservou o elemento trágico tam-
bém encontrado na visão grega do mundo. Pelágio está certo, em parte, mas não
percebeu a profundidade da descrição cristã da situação humana.

Qual~4()~criar~~l~.<::?~:~~n, est.í.o!~g---.l"Q.~~"!1-º.~~sta90de Adão, antes da_Sl!-"~eda;


são inocentes, Naturalmente, Pelágio não podia ignorar que o mau ambiente c os
costumes pecaminosos deformam essa inocência. O que eS(Qu dizendo assemelha-
se à teoria psicanalítica moderna a respeito das relações da criança com os pais ou
com seus representantes, dererminantes de complexos e de outras negatividades no
mais profundo da alma. Hoje em dia, existe até mesmo outra teoria, conhecida
como reoria biol6gica, segundo a qual a deformação é herdada e não pode ser evita-
da mesmo se conseguíssemos criar a criança no melhor dos ambientes. A deforma-
ção já se manifestaria desde os primeiros anos da vida da criança. Pelágio queria, no
entanto, evitar a idéia da hereditariedade do pecado,_O.~~do não seria uma ne-
cessidade univ_ers_~I!Uente trágica, mas guestão de liberdade. Os Estados Unidos da
América favorecem a idéia pelagiana de que todos os indivíduos sempre podem
recomeçar; c que podem decidir com sua liberdade individual a favor ou contra o
divino. O elemento trágico, por outro lado, é bastante conhecido na Europa e não
é muito familiar ao coração dos americanos. Na Europa, o lado negativo do
agostinismo - vamos chamá-lo de existencialismo - assinalou o elemento trágico e
reduziu o zelo ético e o impacto do pelagianismo.
DESENVOLVIMENTO TEOLOCICO NA IGREJA ANTIGA

~ Nestas circunstâncias, a função de Cristo é dupla: conceder o perdão dos peca-


dos no batismo aos que crêem e dar exemplo de uma vida sem pecado, não só
evitando os pecados, mas também as ocasiões de pecado, por meio de ascese. Jesus
foi exemplo de ascetismo, urna espécie de primeiro monge; o próprio Pelágio era
monge. A graça se confunde com a remissão geral dos pecados no batismo. A graça
nada significa, depois disto, porque daí para a frente o homem é capaz de fazer tudo
sozinho. Apenas na situação do batismo, o homem recebe a graça do perdão.

Podemos afirmar que o pe1agianisrno possui forte ênfase ética com muitos ele-
mentos ascéticos, mas perdeu inteiramente o aspecto trágico da vida. Não devemos
menosprezá-lo; devemos levá-lo a sério. Não digo que tenhamos todos nascido,
pelagianos - como digo do nominalismo - mas diria que o pelagianismo está muito
próximo de nós todos, especialmente desses países mais dependentes de movimen-
tos sectários como os Estados Unidos. Transparece em nós sempre que nos dispo-
mos a forçar a vontade de Deus em nosso favor. É o que, em geral, chamamos de
"moralismo", termo demasiadamente abusado. Pelágio dizia que o bem e o mal
dependem de nós: somos nós que os praticamos. Não são dados a nós, de fora. Se
isso fosse verdade, a religião correria o perigo de se transformar em moralismo.

A doutrina do pecado de Agostinho renega essas idéias de Pelágio. Agostinho


concordava com Pelágio que a liberdade era a qualidade essencial do homem, de
modo que quando Adão caiu era livre. Originalmente, a liberdade humana dirigia-
se para o bem, e o bem é o amor com que Deus se ama. Nesse sentido, todas as
pessoas são livres. Mas essa liberdade é perigosa. É de tal modo perigosa, que o
homem pode mudar sua orientação na direção de Deus e se voltar para coisas par-
ticulares no tempo e no espaço, no lugar de Deus. Agostinho acreditava que o
perigo da liberdade era tão grande que criou a conhecida doutrina da adjutorium
gratiae, do poder ajudador da graça, dada a Adão antes da queda. Assim, Adão não
dependia puramente da natureza (in puris natumlibus). O poder ajudador da graça
possibilitou-o a continuar indefinidamente a orientar a vontade na direção de Deus.
Foi o que lhe possibilitou essa orientação. Mas os reformadores não concordaram
com isso. Essa adjutorium gratiae, esse poder ajudado r da graça, queria dizer, indi-
retamente, que a natureza não era boa em si; deveria ser ajudada pela sobrenatureza.
Queria dizer que O homem in puris naturalibus, no seu estado puro, corria tamanho
perigo que só tinha mesmo que cair, a não ser que fosse ajudado pela sobrenatureza.
Os reformadores davam tal ênfase à natureza humana - semelhantemente à renas-
cença neste ponto - que não podiam aceitar a idéia de um donum superadditum, um

137
CAPÍTULO 11

dom da graça acrescentado à natureza humana. Trata-se de distinção muito profun-


da. Por trás dessa terminologia que rclcmbra a escolástica, oculta-se a questão da
valorização da criação. Na doutrina do donum superadditum encontra-se algo da
idéia grega de matéria enquanto poder resistente. Parte desse sentimento trágico do
pensamento grego aparece aqui em contraste com a afirmação judaica e protestante
da natureza considerada boa em si mesma.

',AgostiI1.h?_~~~~ª).~ava gue o_,p_~·~~e~E9.,,~?!T1.~~.2.._Adª~~E.b_~ a.__D.~~~43~e de não


cai!", de não morrer, de não dar as costas para o bem. Nesse estado estava em paz
consigo mesmo - profunda afirmação em vista de nossa moderna psicologia profun-
da; estava em paz com todas as coisas e com todos os homens. Não havia cupidez,
nem desejo, nem mesmo na vida sexual. Não havia dor nesse estado, ncm mesmo
para o nascimento das crianças. Era fácil não cair; não havia nenhuma razão para a
queda. Contudo, surpreendentemente, Adão caiu. E posto que não havia razão
externa para sua queda, ela começou na sua vida interior. O pecado, segundo Agos-
tinho, é, desde o comcço, pecado espiritual. O homem queria estar em si mesmo;
tinha rodas as boas possibilidades; não havia nada que lhe desagradasse e do qual
tivesse que se afastar; tinha rudo o que precisava. Mas queria ser o dono de tudo
isso; queria se levantar sobre os próprios pés. Voltou-se, então, contra Deus e caiu.
F, o que Reinhold Niebuhr chama de "orgulho" e que eu prefiro chamar de hybris,
auto-elevação. Dessa forma, o homem perdcu a assistência da graça e foi deixado
sozinho.

O homem queria scr autônomo e dirigir a própria vida. Com isso, amou-se a si
mesmo erradamente e se desligou do amor devido a Deus. Segundo .Agostinho "O
___começo do ..peçad.o _é o orgulho; o começo dq 5:Hgulho é _0 abandono de. D~us". Se
dissermos hybris em lugar de orgulho, estaremos empregando um conceito mais
profundo, porque, em geral, orgulho cano ta uma atitude psicológica especial. E
não é disso que se trata. Até mesmo as pessoas mais humildes podem demonstrar
enorme orgulho psicológico.

Agostinho demonstrava com isso que o pecado se passava nos domínios do


espírito - era cortar-se do fundamento do ser ao qual pertencemos. Não se tratava
de uma doutrina naturalista do pecado. Mais importante do que isso, ele assinalava
o caráter religioso do pecado. Não se tratava de mera falha moral; nem mesmo de
dcsobediência. Desobediência era conseclüência, não causa do pecado. A causa era
esse desligamento de Deus, nosso bem supremo, amor com que Deus se ama a si

138
DESENVOLVIMENTO n:OL<)GICO NA IGREJA ANTIGA

mesmo por nosso intermédio. Sendo essa a natureza do pecado) não deveria ser
confundido com "pecados", referentes a atos morais. Pt;~gdQ é. c;.rn primeiro lugar c
basica~lls~J~_9_~.~I=~~t~J.ti~i.!:ill!H5?:;~J2~li~ .I?or !§§.9 n~~_I-§---!~.!l:!édJo moral possível.
Só existe um único rc_~édio: retornar_l~~~peus. Mas essa volta só é possível,
naturalmente, se promovida pelo poder de Deus, uma vez gue o homem perdeu
esse poder sob as condições da existência.

A imediata conseqüência da rejeição humana desse bem supremo é a sua perda.


Essa perda é a punição essencial do homem. As penas educativas Oll jurídicas são
secundárias:_rara .Agostill_ho a puniÊ2JYndaIJl~ntal_s.r~ on!Q!.Qgi~~_Se Deus é, na
verdade, tudo o que se pode chamar de positivo, o bem supremo, ou o poder de
superar o náo-ser, a única pena real possível tem de ser intrínseca, isto é, a perda
desse poder de ser, com a incapacidade de se participar no bem supremo. Agosti-
nho ensinava: "A alma morreu ao ser deixada só, sem Deus, da mesma forma como
--- "~.'--"-"--------
morrem os corpos já sem alma". A alma morta, religiosamente falando, perde o
controle do corpo. Quando isso acontecc, realiza-se o outro lado do pecado. O
/ começo é orgulho, hJ!bris, separação de Deus e volta para si mesmo. A conseqüência
é concupiscência, desejo infinito, intetminável. A palavra concupiscentia, desejo ou
libido (segundo a psicologia atual) tem dois sentidos para Agostinho: o sentido
__}!rliversal de apego ao~~.~§__r!19yc.~.' ~.lÜ~ܺ§ J .rT11Jg~pl.ç_ª.e. ao_d.~~ap_areçjmeuto~_~Q
~_~~ntido restrito de desejo ~sexu~L.!2.~tural, acompanhado de ver~onha. Essa ambigüi-
dade do termo também se acha no conceito freudiano de libido. Os dois termos
(concupiscência e libido) significam universalmentc o desejo da realização do pró-
prio ser com a abundância da realidade, conservando também o significado de
desejo sexual. São inúmeras as conseqüências decorrentes dessa ambigüidade. Por
exemplo, em freud seguiu-se o puritanismo, a depreciação do sexo, sua supressão
burguesa, e, por outro lado, a revelação dessa situação. Mas Freud nunca encontrou
solução para o problema, seja reprimindo o desejo ou livrando-se completamente
dele. Uma vez que não se pode acabar com o desejo, temos, segundo Freud, o desejo
da morre, o instinto da morre, como ele chama, como resposta necessária ao desejo
que nunca termina. No protestantismo, como também no catolicismo posterior, a
ambigüidade do termo "concupiscência" tevc todo tipo de conseqüências ascéticas,
incluindo as formas mais extremas e repugnantes. Os reformadores procuraram
restabelecer a dignidade do sexo, mas só o conseguiram em parte. Não conseguiram
superar a Igreja Romana seguindo seus próprios princípios. Portanto, qualquer pes-
soa que conheça um pouco da história do comporramento moral e da teoria ética

139
CAPÍTULO II

do protestantismo verá que o cristlJ11lSmO se mostrou demasiadamente hesitante a


respeito c não deu resposta satisfatória a esse problema implícito na existência hu-
mana.

o pecado de Adão é original por duas razões. Todos nós existíamos potencial-
mente em Adão, no seu poder procriador, e dessa forma todos participamos na sua
.livre decisão tI assim, somos culpados. Trata-se, naturalmente, de um mito bastan-
te questionável. Em segundo lugar, Adão introduziu a libido! 09-~_sejo) no~rocesso
_ da ger~'Lão sexual, c esse elemento passoup"ra_ "l'_Qsterid"de comoherafl.Ça. Todos
somos nascidos do mal do desejo sexual. Basicamente, o pecado original é espiritual
(a11(Q em Adão como em qualquer outra pessoa. Mas também é físico. Agostinho
teve muita dificuldade para rcunir o caráter espiritual do pecado humano com o
caráter hereditário derivado de Adão.

Por causa desse pecado original, hereditário, todos nós pertencemos à "massa
da perdição", à unidade da negatividade. A mais desconcertante conseqüência dessa
doutrina é que até mesmo as crianças que morrem se perdem. Posto .sue todos
pcnencem à massa da perdição, ninguém se salva a não _?~~.E9~._ .'!!1:. __~.E-<? especial de
Dcus. Essa é a mais poderosa ênfasc na solidariedade da r~ç~J~u"man~IJ_~_tragédia
_~.?'p.:~ado. Assim, ele ncga radicalmente - quase num sentido maniqueu - a liber-
dade da personalidade individual. A unidade abrangente da humanidade faz com
que sejamos o que somos. Ora, à luz da moderna pesquisa, levada a efeito pela
psicologia profunda c pela sociologia, podemos provavelmente entender melhor do
que nossos pais o que Agostinho queria dizer, ou seja, a panicipação inevitável de
cada pessoa na existência humana, na estrutura social, bem como na estrutura psi-
cológica individual, neurótica ou não. A pergunta que fica é esta: mas por que os
indivíduos participam também na culpa? Não há resposta para esta pergunta nos
cscritos de Agostinho .

./ ... 0 homem perdeu a possibilidade de se voltar para o bems~premo por causa


de sua pecaminosidade universal. Estamos sob a lei da escravidão vista no aprisio-
namento da vontade. Portanto, a graça é, antes de tudo, gratia data, graça dada sem
qualquer mérito. Dada por Deus a um certo número de pessoas que não pode ser
aumentado nem diminuído; essas pessoas pertencem a Deus eternamente. O resto
da humanidade é abandonado à condenação que merece. Não há qualquer razão no
homem para a predestinação de alguns ou para a rejeição de outros. A razão está
apenas em Deus; é um mistério. Assim, não se pode falar de pré-ciência ou de

14ü
DESENVOlVIMENTO TEOLOGICO NA IGREJA ANTIGA

previsão do que o homem haverá de fazer, como em geral se pensa na doutrina da


liberdade. É impossível porque a vontade e o conhecimento de Deus são a mesma
coisa. Deus não pode olhar para algo como se não estivesse sendo conduzido por
seu poder de ser, isto é, pela sua vontade. Deus sempre quer o que conhece. "Ele
nos elegeu não porque pudéssemos ser santos, mas para nos fazer santos". Não há
razão alguma no homem para a predestinação. Deus realiza tanto o querer como a
plenitude desse querer.

Mas não se pode chamá-lo de determinista no sentido psicológico técnico. A


predestinação não exclui a vontade do homem. A vontade psicológica do homem é
preservada e distinguida das forças externas, ou dos elementos compulsórios huma-
nos. Mas a orientação da vontade para Deus depende da predestinação divina, e
essa predestinação não pode ser entendida. A graça é dada a todos os que se tornam
cristãos. O perdão dos pecados, que vem primeiro, vem no batismo e é recebido
pela fé. Aqui, Agostinho continua dentro da tradição geral. Mas além disto, o per-
dão é participação verdadeira no bem supremo. Esse bem supremo apareceu em
Jesus, o Cristo, sem o qual não seriam possíveis o bom pensamento, a boa ação e o
amor. Este lado da graça é descrito como a inspiração da boa vontade, ou do amor
para com Deus, em primeiro lugar. "O Espírito ajuda", diz ele, "ao inspirar em
lugar da má concupiscência, a boa concupiscência, isto é, a carittts (agape) que se
difunde em nossos coraçóes". A justificação, portanto, é inspiração de amor. A fé é
o meio para recebê-la. Mas a fé, já naquele tempo, tinha um sentido deteriorado -
que quase impossibilita a pregação a respeito da fé ainda hoje - de aceitação de
doutrinas inacreditáveis. Assim, Agostinho fazia distinção entre dois tipos de fé.
Em primeiro lugar, falava de aedere dea aut christa, crença dirigida para Deus ou
Crisro, que significa a aceitação de suas palavras e mandamentos; e de aedere in
_de.W1J.JIJ!!-Eb.riEum, cr:E..:!~_De:~~_e~:~_S:_~~s:.? No primeiro caso temos o reconheci-
mento intelectl!al,"_~~!.!1_ esperança c sem amor. No segungg, a comunhão criada
pela graça, pelo Espírito Santo, ou pelo amor. Essa é ~A!.:~.ca fé ~~_~ justifica, porque
precisamente torna iusto o justifica_do'?'

Os predestinados não podem tecair. Recehem o dom da persevetança que lhes


impede de perder a graça uma vez recebida. Nada disso depende de mérito, nem
mesmo do mérito de não resistir à graça, uma vez que a graça para Agostinho será
sempre irresistível desde que seja dada.

.. Com essas idéias, Agostinho atacou Pelágio. Em rodos os aspectos se opunham


aos ensinamentos de Pelágio. A doutrina de Agostinho, no entanto, nunca foi ple-

141
CAPÍTULO II

narnente recebida pela igreja, muito embora tenha sempre sido considerado o mai-
or dos mestres da igreja. O pelagianismo foi rejeitado. O semi-pelagianismo, flores-
cido mais tarde, foi também condenado cem anos depois. Contudo, tais rejeições
não impediram que idéias desse tipo volta e meia retornassem à igreja. Os histori-
adores se referem a esse tipo de pensamento como criptosemi-pelagianismo. Não se
pode negar que, especialmente na escola agostinista, dos franciscanos dos séculos
seguintes, o semi-pelagianismo não se mostrasse ainda com certo vigor. Natural-
mente, não se [ratava, em hipótese alguma, de reviver Pelágio na igreja oficial. Mas
o semi-pelagianismo, que negava a irresistibilidade da graça e acentuava a necessi-
dade das obras para a manutenção da graça, voltava à igreja e tornava possível a
doutrina educativa de Agostinho. Já falamos a respeito disso. Não se pode advogar
uma doutrina como a de Agostinho numa instituição educacional, e a igreja cristã
era a LÍnica instituição educacional existente, por ainda mil anos. Nessa situação era
preciso se apelar à vontade livre dos educandos. Nenhuma doutrina extrema pode
ser apresentada ~l maioria do povo de modo direto. Assim, o elemento trágico mais
importante não se perdia inteiramente, mas se restringia até certo ponto por causa
das necessidades educativas. Quando os reformadores entraram em cena essa era a
situação. Nessa ocasião, o elemento tdgico havia sido reduzido a quase nada pelas
ênfases educacionais, éticas e ascéticas, dominantes na igreja. As igrejas, com pou-
cas exceções, suspeitam de qualquer doutrina de predestinação - pelo menos o cato-
licismo - porque faz com que a relação suprema com Deus se torne independente
da igreja, ou pelo menos tend:l :l se tornar independcnte. Encontramos também
aqui uma daquclas tensões de que já falamos em relação a Orígines e a outroS teólo-
°
gos, entre ponto de vista teológico ültimo c o educativo penúltimo. Esses elemen-
tos sempre se acham em tensão na instrução religiosa, no aconselhamento e na
pregação. A grande disputa entre Agostinho e Pelágio talvez tenha sido o principal
exemplo clássico desse problema na Igreja CrIstã.

7. Doutrina da Igreja
A doutrina da igreja de Agosrinho tcm exercido enorme influência em todas as
igrejas cristãs e não apenas na Igreja Romana. Vamos, pois, considerá-la. J~í. vimos
que Cipriano definia a igrcja como instituição da salvação, substituindo, cm boa
parte, o antigo conceito de comunhão dos santos (communio sanctorum). Com isso,
modificava-se também a idéia cLt santidade da igreja. Agostinho entrava em conflito
com o movimento donatista. Originalmente, a ênfase recaía na santificação dos
membros individuais e do grupo como um rodo. Foi daí que veio a idéia da realida-

142
DESENVOlVIMENTO TEOLOCICO NA IGREJA ANTIGA

de sacramental da igreja. A santidade da igreja identificava-se com os dons sacra-


mentais, especialmente com o poder sacramental do clero. A idéia de sanctus (san-
to) não mais se referia a pessoas individualmente santificadas, mas aos deteIltores
do poder sacramental. Mudava-se, fundamentalmente, o sentido do elemento sub-
jetivo para o objetivo, da santidade pessoal para a santidade institucional.

Havia gente na África do Norte, onde Agostinho era bispo, que não acompa-
nhava tais doutrinas e que estava interessada na santificação da igreja e dos seus
membros, especialmente do clero. Discutia-se a respeito do seguinte:

1. da disciplina no aro da penitência;

2. se o batismo realizado por hereges era válido; e

3. se valia a ordenação feita por trarlitores, traidores, que haviam entregue livros
sagrados durante as perseguições ou negado que eram cristãos.

-; Seriam as graças objetivas válidas se mediadas por pessoas que não eram subje-
tivamente santas~ Os donatistas excluíam essas pessoas da igreja e não permitiam
ÇJue fossem ministros, porque a santidade da igreja é a santidade pessoal de seus
representantes. Em conseqÜência disso, os cristãos passavam a depender do status
moral e religioso do clero. Ora, Agostinho foi claro sobre a impossibilidade de
julgamentos desse tipo sob pena de se cair em terríveis conseqüências - adotar o
papel de Deus que é o único capaz de olhar os corações humanos. Queria preservar
a objetividade da igreja em face dessas exigências de santidade subjetiva de seus
representantes. Seguia o pensamento de Cipriano. Para esse fim, introduziu no
debate a distinção entre fé (incluindo esperança) e amor. A fé e a esperança podem
exisrir fora da igreja porque são determinadas pelo conteúdo. Pode-se viver entre os
hereges e até mesmo ser um deles, mas desde que se satisfaça a fórmula do batismo
corretamente, o conteúdo será decisivo e não o status pessoalmente herético ou
moralmente indigno da pessoa. As fórmulas são as da Igreja Católica. Se as igrejas
heréticas empregam as mesmas fórmulas da Igreja Católica, seus sacramentos são
válidos por causa dos conteúdos objetivos.

O amor, por outro lado, não pode existir sem a fé correta. É o pflncíplO
unificador da igreja. Não se trata de mera bondade moral, capaz de ser encontrada
em qualquer parte, mas da relação fundamentada em agape entre os indivíduos.
Esse espírito de amor, encarnado na igreja, enquanto unidade de paz, enquanto
restabelecimento da unidade divina original, rompida no estado da existência, é

143
CAPÍTULO II

algo que só pode ser encontrado na igreja. Por essa razão só há salvação dentro da
igreja. A salvação é impossível sem esse derramamento do agape; da graça dada
como um fluido nos corações dos homens. Embora possam haver sacramentos váli-
dos fora da igreja, a salvação só se dá no seu interior.

A distinção entre fé e amor é de extrema importância. Faz com que a igreja seja
o único lugar da salvação para os católicos. Vem daí a distinção entre a validade e a
eficácia dos sacramentos. Os sacramentos dos hereges são válidos quando realizados
nos termos da tradição ortodoxa. Assim, ninguém deve ser rebatizado. Por outro
lado, os sacramentos não têm eficácia dentro dos grupos heréticos, mas apenas na
igreja. Por exemplo, o batismo sempre deixa um character indelebilis, como reza o
termo técnico; é uma qualidade <'lue vem de Deus e que permanece durante toda a
vida do batizado, não importando o que faça. Essa doutrina era muito importante,
porque permitia à igreja medieval tratar os pagãos e os judeus diferentemente dos
cristãos batizados. Os cristãos batizados submetiam-se à lei da heresia, enquanto os
judeus e os pagãos, não. Mesmo se os cristãos batizados quisessem se tornar judeus
ou pagãos ou muçulmanos, não podiam, porque o ato do batismo lhes conferia um
caráter indelével, não importando quem tivesse realizado o sacramento, se ortodoxo
ou herege.

Da mesma forma, a ordenação era sempre válida. Sacerdotes excomungados


eram proibidos de administrar os sacramentos, mas se o fizessem, os sacramentos
seriam válidos. Se numa prisão, algum sacerdote excomungado, durante a Idade
Média, fizesse o casamento de um homem e uma mulher, o casamento seria, assim
mesmo, válido não obstante o sacerdote estar proibido de fazê-lo. Não haveria re-
ordenação se o sacerdote fosse absolvido e voltasse ao seio do clero, porque a ordena-
ção sempre permanecera v,ílida.

Esses ensinamentos fizeram com que o povo da Igreja ficasse completamente


independente da qualidade do sacerdote. Ninguém poderia tomar conhecimento
dessa qualidade, de qualquer forma. Naturalmente, os sacerdotes praticantes de
pecados mortais, visíveis na comunidade, eram excomungados e proibidos de cele-
brar os sacramentos. Mas era coisa diferente. O que fizessem seria válido, não obstante.
Temos aqui a instituição hierárquica da salvação, independente do caráter dos que
funcionam em seu nome. Dentro dessa instituição vivia a comunidade espiritual
dos fiéis. Segundo a doutrina católica, o primeiro conceito é a condição do segun-
do; segundo as crenças sectárias, o segundo, por certo, era a condição do primeiro.
Esses dois conceitos de igreja têm estado eIl1 conflim ao longo da história da igreja.

144
CAPÍTULO III
>:
OMUNDO MEDIEVAL

Examinaremos) em primeiro lugar, as princlpals idéias e acontecimentos da


Idade Média, do começo ao fim, e só depois nos deteremos nas suas principais
figuras.

o problema básico desse período, também encontrado nos outros, é o da rea-


lidade transcendental, manifesta e materializada numa instituição particular, numa
sociedade sagrada específica, dirigindo a cultura e interpretando a natureza. Só se
entende a Idade Média a partir daí. Sem essa perspectiva não se entende o período.
A Idade Média não pode ser medida pelos padrões de hoje. Ela mesma não o per-
mite. Quando consideramos as imagens deformadas da Idade Média, é comum
encontrar os que a julgam a "idade das trevas"; querem dizer, assim, que vivemos
hoje na época das luzes, c que só podemos olhar para esse período de terríveis
superstições com certo desprezo. Mas nao é verdade. Foi precisamente na Idade
Média que se resolveu, à luz do eterno, um dos principais problemas da existência
humana. As pessoas que viveram nesses mil anos não viveram pior do que nós, e em
muitos aspectos, viveram até melhor do que nós. Não há razão para se olhar para a
Idade Média com desprezo. Por outro lado, não sou romântico; não vou medir a
nossa própria situação pelos padrões da Idade Média, como faz o romantismo.

A Idade Média não era tão uniforme como nossa ignorância nos leva a crer.
Havia muitas diferenças. Podemos distinguir os seguintes períodos:

(1) Transição, de 600 a 1.000. O ano 600 é marcado pelo papado de Gregório
Magno, em quem ainda vivia a tradição antiga e com quem a Idade Média realmen-
te começa. Nesse período temos um tempo de preservação - quando se procurou
preservar tudo o que foi possível e que não era grande coisa - e outro de recepção; as
tribos germânico-romanas que governaram a Europa haviam sido assimiladas. Nes-
sa época, o mundo antigo passava para o medieval. É o período, em geral, chamado
de "idade das trevas", especialmente os séculos nono e décimo. Mas não foram
assim tão obscuros como se pensa. Aconteceram grandes coisas que prepararam o
advento do novo mundo, a partir das quais nós existimos, mesmo se já nos esquece-
mos delas.

145
CAPÍTULO lU

(2) Primeira Idade Média, de 1.000 a 1.200. Nesta época formas novas e
originais se desenvolveram decisivamente diferentes do que se conhecia no mundo
antigo. Este período criativo e profundo é representado pela arte romanesca.

(3) Alta Idade Média, de 1.200 a 1.300. São aqui elaborados todos os motivos
básicos que vão formar os grandes sistemas dos escolásticos, da arte gótica, e da vida
feudal.

(4) Idade Média posterior, de 1.300 a 1.450. A partir de 1.300 começa a


desintegração. Mas não queremos depreciar a tremenda eclosão de novos motivos
desenvolvidos no período que tornaram possíveis a Renascença e a Reforma.

A. Escolasticismo, misticismo e biblicismo

A primeira série de problemas a discutir são as principais atitudes cognitivas,


ou teológicas. Estas três sempre estiveram presentes e sempre foram influentes:
escolasticismo, misticismo e biblicismo.

A aritude teológica, determinante de roda a Idade Média, foi o escolasticismo.


Trata-se da explicação metodológica da doutrina cristã. O termo vem de "escola" e
significa "filosofia da escola" - filosofia segundo a maneira como era estudada na
escola. Hoje em dia, o termo "escola" conota separação da vida e "escolasticismo",
muito mais. Quando ouvimos essa palavra pensamos em sistemas sem vida - "pesa-
dos como cavalo", como dizia um escolástico. Ninguém quer lê-los porque não têm
nada a ver com a realidade. O escoiasticismo foi deformado na última fase da Idade
Média; mas a intenção verdadeira do escolasticismo era a interpretação teológica de
rodos os problemas da vida. Temos uma literatura escolástica extremamente flca
que exerceu tremenda influência na vida espiritual da Idade Média.

._.t!.':..~~_~.':~~~_~!-~!~_!l-Iite: a educaçªo esc?lást~ca era dada apenas à p_e~u~na


classe alta. Todos 9§Ji~EoS escolásticos eram escrito~_~!?_ Latim, acessível ap~!?-~~~~_
e~uca4_Qs. Naturalmente, as massas não sabiam ler nem escrever. Como levar ao
povo a mensagem discutida nesses sistemas escolásticos? De duas maneiras: pela
participação nos ofícios religiosos, nas liturgias, nas pinturas, por meio da música e
pelo recebimento de outras impressões sensoriais que não requerem grande ativida-
de intelectual, mas comunicam o sentimento do numinoso e certa orientação mo-
ral. Não significa, porém, que essas coisas objetivas fossem realmente experiências

146
o MUNDO MEDIEVAL

pessoais. O misticismo é que fez isso na Idade Média: introduziu a experiênC1J


pessoal na vida religiosa.

A teologia protestante não tem entendido o significado do mistIcismo desde


Rirschl até a teologia barthiana. Não é correto identificar este misticismo com o
asiático, de tipo vedanta, nem com o neo-platônico (Platina). Vamos esquecer esses
misticismos ao nos aproximarmos da Idade Média. Iodos 05 escolásticos eram mís-
ticos; experimentavam. em suas vidas pessoais as coisas de que falavam. Era o que
significava misticismo,.,.?~izi!~~_~~~~te, na escolástica. _Não havia discrepância entre
misticismo e escolasticismo. Misticismo era a experiência da mensagem e~olástica.
A base do dogma era a união com o divino nas devoções, nas orações, na contempla-
ção e nas práticas ascéticas. Entendendo estas coisas, esperamos não cair no engano
de eliminar o misticismo do cristianismo reduzindo-o à mera fé intelectualizada e a
simples amor moralista. É o que tem acontecido depois que a escola de Ritschl
começou a influenciar o protestantismo. Não vamos cair no erro de identificar este
misticismo com experiências de tipo abstrato ou absoluto em que o indivíduo desa-
parece no abismo da divindade. O misticismo - chamado pelos protestantes orto-
doxos de unio mystica - é a união imediata com Deus em sua presença. Mesmo para
a ortodoxia, tratava-se da mais alta forma de relacionamento com Deus. Na Idade
Média, o misticismo náo se separa do escolasticismo.

A terceira atitude além do escolasticismo e do misticismo é o biblicismo. É um


forte movimento, nos últimos tempos da Idade Média, que muito ajudou no
surgimento da Reforma. Mas não se trata de movimento exclusivamente protestan-
te, pois sempre houve reações biblicistas ao longo da Idade Média. Essas reações
algumas vezes se mostraram extremamente críticas dos sistemas escolásticos e do
misticismo. Mas, em geral, aliavam-se ao misticismo e até mesmo ao escolasticismo.
O hiblicisIIl9 tent;tyª.usar_-ªJ.Hhtitl-ªKªJlI:.!l4amentar,0 cris.Úanismo prátifºL~ec~
almente entre os leigos. Foi assim que, na Idade Média posterior, muitos leigos
conseguiram ler a Bíblia bem antes da Reforma.

Essas três atitudes, escolasticismo, misticismo e biblicismo juntavam-se, às vezes,


numa única pessoa. Mas também se mostravam em tensão. Por exemplo, o
escolasticismo e o misticismo representavam posições antagônicas entre Bernardo
de Claraval e Abelardo. Mas nenhuma das duas atitudes prevaleceu. Ambas deram
à igreja medieval o que rinham para dar. A crítica do biblicismo foi apropriada na
forma de fundamentação bíblica do sistema escolástico e das experiências místicas.

147
CAPÍTULO IH

o escolasticismo era a teologia da época; o misticismo representava a piedade pes-


soal experimentada; o biblicismo manifestava-se em constante crítica, a partir da
tradição bíblica, perante as duas outras atitudes para, afinal, sobrepujá-las na Re-
forma.

B. Método escolástico

A autoridade e a razão consEituÍam o problema básico do escolasricismo. Qual


era a auroridade medieval' Era a rradição subsranriva sobre a qual se edificava roda
a vida medieval. A autoridade residia, primeiramente. na tradiçãg,..~a igreja, expres~
S--ª-J1º1"~çonh~çim~JlÇ9_dos__ 1'_a,i~ _q_~._ i~_~L~g§_ ç~~~Lº,s_,,~, co.!!~í.U9s, e na, _1:3i~li~~_ Quan-
do ouvimos hoje o termo "autoridade" pensamos logo num tirano, seja um pai, um
rei, um ditador, ou mesmo um professor. Mas nos documentos medievais, a palavra
altctoritas (autoridade) tinha outro sentido. Não era nem mesmo o Papa, pois o seu
autoritarismo só veio a aparecer mais tarde, pelo fim desse período. No início e ~~<?_
período áur~º- da Idade Média, a autoridade era a tradicão viva. Perguntava-se: qual
é a relação da razão com a tradição viva da igreja na qual se vivia? Não havia ourra
tradição. Essa tradição viva era-lhes tão natural como o ar que respiramos. Esta
analogia pode nos ajudar a entender o sentido de tradição viva na Idade Média.

A tradição, no entanto, se compunha de diversos elementos, nem todos dizen-


do a mesma coisa. Examinando-os, era necessário fazer escolhas. A Idade Média
enfrentou essa situação, primeiramente, no domínio das decisões práticas, repre-
sentado na lei canônica. Essa lei era a base da vida medieval; o dogma era uma das
leis canônicas e vinha daí a sua autoridade legal dentro da igreja. Necessidades
práticas, então, criaram uma classe de pessoas devotadas a harmonizar o significado
das leis canônicas existentes. O método empregado era dialético, conhecido como o
método "do sim e do não". A razão era o instrumento desse trabalho. Ela combinava
e harmonizava as sentenças dos pais e dos concílios, primeiramente na prática c
logo em seguida no que se refere às declarações teológicas. A razão coletava, harrno-
nizava e comentava as sentenças dos pais. Era a sua função principal. Quem desem-
penhou essa tarefa com reconhecido êxito foi Pedro Lombardo, cuja obra, Quatro
livros de sentenças tornou-se o manual do escolasticismo medieval. Essas Sentenças
eram, por sua vez, comentadas por outros teólogos quando escreviam seus sistemas.

A razão também devia interpretar o sentido da tradição dada, expressa nas

148
o MUNDO MEDIEVAL

sentenças. Muito embora a fé sempre fosse pressuposta, seus conteúdos tinham que
ser interpretados. Veio daí o moto: credo ut inte!!igam, creio para entender. Queria
se dizer que a substância da fé era dada; podia-se participar nela. Não havia na
Idade Média a "vontade de crer". O credo era dado como era dada a natureza. Da
mesma forma, a razão apenas interprecava a tradição dada; não criava a tradição.
Essa analogia pode nos ajudar a entender melhor a Idade Média.

o próximo passo foi dado, menos especulativarnete e com mais cautela, por
pensadores que levavam a sério Aristóteles, na sua elaboração teológica, como de-
monstra, especialmente, Tomás de Aquino. Achavam que a razão era adequada para
interpretar a autoridade.J'\L~.Yf:rEiªde, a r~zã9.. iamajs se opõe à autoridade; a tradição
_~jy~~-l20dg. ser i_!l_t_~_rpreç;).da_~!n_.. ~.~!:.1Jl2~~,._qÇ~9~Q.jlj~A y<!z.ãq _nã9"._preci~i1__ .$eJ.. destruíd<l _
!Iara interpretar o significado da tradição viva. Esta ainda é até hoje a posição tomista.

O último passo foi a separação entre razão e autoridade. Duns Escoro e Gui-
lherme de Ockham, o nominalista, entendiam que a razão não se prestava para
interpretar a autoridade nem a tradição viva, nem mesmo para expressá-las. O
nominalismo posterior diria isto, claramente. Entretanto, se a razão não pode in-
terpretar a tradição, a tradição se transforma em autoridade de modo bem diferen-
te; passa a ser a autoridade mandatória a exigir submissão, mesmo se não for enten-
dida. É o que chamamos de "positivismo". A tradição é dada positivamente: está aí
e a vemos; aceitamo-la e nos submetemos a ela do modo como nos é dada pela
igreja. A razão não tem capacidade de mostrar o sentido da tradição; só pode mos-
trar as diferentes possibilidades derivadas das decisões da igreja e da tradição viva. A
razão pode chegar a probabilidades e a improbabilidades, mas nunca a realidades.
Não pode dizer como as coisas deveriam ser. Isso depende da vontade de Deus. A
vontade de Deus é irracional e dada. É dada na natureza. Precisamos, pois, de certo
empirismo para descobrir como são as leis naturais. Não estamos no centro da
natureza. Relacionamo-nos com as ordens da igreja, com a lei canônica, de modo
que é a essas decisões que nos submetemos positivamente; devemos aceitá-las como
leis positivas, pois não as podemos entender em termos racionais.

A autoridade da igreja e, até certo ponto, a razão terminaram com o advento do


protestantismo. A razão voltou a ser completamente elaborada e se tornou criativa
na Renascença. Na Reforma, a tradição se transformou em fé pessoal. Mas a Con-
tra-Reforma tentou manter a razão prisioneira da tradição. Só que essa tradição já
não era a tradição viva, mas formulada e identifIcada com a autoridade cio Papa. São
fatos extremamente importantes para nós ainda hoje. Enfrentamos o problema da

149
CAPÍTULO III

tradição viva e de sua confusão com a autoridade. Trata-se de um erro. A autoridade


pode ser natural e factual, sem nos partir internamente, destruindo a nossa autono-
mia e sem nos sujeitar à lei externa da hereronomia. No primeiro momento da
Idade Média, a autoridade era natural, por assim dizer, como é natural a nossa
relação com a narureza. Já no final da Idade Média, a siruação mudara. Surgiu,
então, certo conceito de autoridade contra o qual devemos lutar, porque exige a
sujeição das diversas tradições a uma única tradição. Hoje em dia, os ditadores
chegam ao extremo de excluir todas as outras tradições. As assim chamadas "corti-
nas de ferro", que muitas vezes construímos ao não admitir livros do Oriente etc,
são tentativas de manter as pessoas dentro de uma só tradição impedindo-as de
entrar em contato com outras tradições. Todos os sistemas autoritários sabem que
nada é mais perigoso para uma dada tradição do que o contato com outras tradi-
ções. Os indivíduos, assim, ficariam livres para decidir em face dessas outras tradi-
ções. O método da "cortina de ferro" não era necessário na Idade Média porque não
havia outra tradição; vivia-se na tradição medieval como se vive naturalmente na
natureza.

.,c. Feições do escolasticismo


I. Dialética e tradição
A dialética foi a primeira forma. na qual se expressou o pensamento autônomo
na Idade Média. É difícil, hoje em dia, a utilização do rermo '~dialérica" por causa
de seus muitos significados; o sentido original se perdeu. O sentido original, em
grego, é "conyersacão", a fala ~ res.2.-ei~5?_9-e det~~!~~do _J2!_~~J_~~~~~ meio do
- _ . ' - _.... __ o • _. • • • • _._ •••••••• _

"sim" e do "não", alguém representando o "sim" em o'pc:>siç~o a um outro represen-


_ . __ ._ •... , •• - .. - .. _ . __ • • ._. _..... H. _
"
_
"
_
'
_
"
-
'
'
'
.
~
'
'
_
.
~
-
>
_
~
tando_.. _?__ ~.não". Já mencionamos a maneira como os juristas, representando a lei
canônica, tinham que harmonizar, por razões práticas, as diferentes autoridades:
concílios e teólogos. Foi daí que surgiu o método dialético do "sim" e do "não". Esse
mérodo foi aplicado aos problemas reológicos. Conrudo, esse mérodo não agradava
aos guatdiães da tradição, porque desde que se permitisse um "não", não se poderia
dizer onde a coisa ia parar. O mesmo acontece hoje. Pensem em nossos tradiciona-
listas e fundamentalistas, como no início da Idade Média.

Nos primeiros tempos da Idade 1v1édia, não se podia aceitar a existência de

150
o MUNDO MEDIEVAL

muitos "não", por causa dos povos primitiVOS a quem se dirigia a pregação, por
causa da tradição da igreja que era a única então existente, e por causa do processo
de transformação e consolidação permeando todas as coisas. Por isso, os teólogos
tradicionalistas rebelaram-se contra os teólogos dialéticos.

Estou pensando, por exemplo, em Bernardo de Claraval, para representar os


tradicionalistas piedosos, e Abelardo, entre os dialéticos. Pergunta-se. agora, até
que ponto a dialética seria capaz de produzir coisas novas em teologia, ou se não era
utilizada apenas para explicar o dado, isto é, a rradição e as autoridades'

2. Agostinismo e aristotelismo

Ao tratarmos cle._bgost~_J].~_()_1_,~~~~s que. _c~~ __ I]?~_~tiE~-?~pensam_~~,~? ~


Aristóteles. No período áureo da Idade Média, os agostinianos entraram em confli-
to ou, pelo menos, em contraste com os recém surgidos aristotélicos. Os agostinianos
eram representados pela ordem franciscana; os aristotélicos, pelos dominicanos.
Tínhamos, então, agostinianos contra aristotélicos, ou franciscanos contra
dominicanos. Boaventura, cardeal da igreja, importante membro da ordem
franciscana, opunha-se a Tomás de Aquino, grande teólogo dominicano. Um dos
problemas fundamentais da filosofia da religião veio à tona quando Agostinho e
Aristóteles, ou melhor, Platão e Aristóteles - uma vez que Agostinho era neo-platô-
nico - se encontraram e continuaram sua conversa eterna. Essa conversa não termi-
nará jamais na história do pensamento humano, porque representa pontos de vista
sempre válidos e sempre conflitantes entre si. Platão, Agostinho, Boaventura e os
franciscanos expressam pontos de vista mais místicos, enquanto a linha que vai de
Aristóteles até Tomás de Aquino demonstrou um pensamento mais racional e mais
empírico. Do ponto de vista dos fundamentos da religião e da teologia, talvez tenha
sido esta a disputa mais importante da Idade Média. Quase todos os problemas
que hoje discutimos em nossa filosofia da religião foram examinados nesse conflito,
especialmente vigoroso no século treze.

3. Tomismo e escotismo

Entre tomismo e escotismo, delineou-se o terceiro contraste ou conflito. De


certo modo, continuava o debate anterior uma vez que Duns Escoto era franciscano
e Tomás, dominicano. Mas se tratava de um problema novo, decisivo também para
O mundo moderno, envolvendo o confljto entre o jnte\ecrq e a vontade, considera-

151
CAPÍTULO JII

dos princípios supremos. O intelecto era consi~Lq~Eo2elos dominicanos, tomistas


que eram com toda a racic!'!~E9~9_~H~E!_~_~~_élica iJ:_~.rgq~~~i.~a na.igrej~_p(}~_I(}}!lA':;2..5~...
poder predominante. O homem é hOI:nem qUll inteleQ9...: Para os agostinianos até
Duns Escoro, a vontade é o poder predominante e capaz de fazer com que o homem
seja homem e Deus, Deus._ Deus é, primeiramente, Yontade! __ ~__ ~_?~~_~l_~~_.r~~~::­
__
_~!~do plano, intelecto. O mundo foi originalmente criado E~lª ":'<:JJ]E~.cis-scnd~~
por isso, irracional. Deve ser recebido empiricamcnte. Num nível secundário, o
mundo é intelectualmente ordenado, mas essa ordem não é jamais final c não pode
ser recebida por nós em termos dedutivos. Esse conflito ainda existe no mundo
moderno, por exemplo, quando pensadorcs como Henri Bergson e Brand Blanshard
de Vale oferecem sistemas contrastantes em termos de vontade c intelecto.

4. Nominalismo e realismo

o quarto tcma conflitante foi o nominalismo cm oposição ao, assim chamado,


rcalismo. Para se entender a questão, precisamos saber o que era realismo. Para se
entender o que significava realismo, na Idade Média, basta traduzir o termo por
"idealismo". O realismo medieval é o que chamamos de idealismo se não o enten-
dermos em sentido moral ou num sentido epistemológico especial, mas em tcrmos
de idéias ou essências das coisas possuidoras de realidade e de poder de ser. O
realismo medieval é quase o oposto do que chamamos hoje de realismo, e o que
entendemos hoje por realismo é quase idêntico ao que os medievais chamavam de
nominalismo. Os universais, as essências, a natureza do homem, a natureza das
coisas, a natureza da verdade etc, são, para os medievais, poderes que determinam o
que os seres individuais, tais como árvores e pessoas, vão se tornar quando, afinal, se
desenvolverem. Poderíamos chamar esse tipo de pensamento de realismo místico
ou de idealismo. Universtdia realúl - os universais são realidades. Naturalmente, os
universais não são coisas no tempo e no espaço. Trata-se de grossciro mal-entendido
que leva algumas pessoas a dizer com demasiada facilidade: "Nunca vi humanida-
de; o que vejo é Paulo e Pedro". Os medievais enrendiam essas coisas muito bem.
Entretanto, sabiam que todos os Pedras e Paulos tinham igualmente narizes, olhos,
pés e fala. Esse fenômeno só pode ser entendido em termos de universais, de poder
de ser, que chamamos de humanidade, fazendo com que cada ser hum:mo seja
humano com todas essas potencialidades. Essas potencialidades podem, natural-
mente, não se desenvolver ou serem destruídas, mas estão em todos os indivíduos.

o nominalismo pensava exatamente o contrário: só existem este Pedro e este

152
o MUNDO MEDIEVAL

Paulo, somente aquela árvore particular ali na esquina da rua 116 com a Riverside
Drive e não a "arvoridade", o poder de ser que faz com que essa árvore particular
seja, afinal, árvore. Trata-se de uma diferença na maneira de sentir a realidade. Os
nominalistas olham para essa árvore e sentem: "Ela é uma coisa real; se eu me jogar
contra ela vou me machucar". Mas é também possível olharmos para essa mesma
árvore e fLearmos deslumbrados ao nos darmos conta de que, entre tantas sementes
plantadas, surgiu esta estrutura particular que cresceu e se desenvolveu. Então,
podemos ver, nesta árvore grande, a presença da "arvoridade" e não apenas essa
forma particular. Da mesma forma, podemos ver em Pedro e Paulo não apenas dois
indivíduos particulares, mas também a própria natureza humana, a "humanidade",
que é o poder capaz de fazer com que todos os seres humanos sejam dessa forma.
Essa importante discussão era levada em termos lógicos e ainda persiste, hoje em
dia.

É difícil o dia em que eu não tenha que lutar contra o nominalismo a partir do
meu pensamento realista de tipo comparativamente medieval, que concebe o ser
enquanto poder de ser. Eu sei que se trata de um pecado contra o "espírito santo"
do nominalismo, bem corno contra o "espírito nada santo" do positivismo lógico e
contra ainda outros "espíritos". Acredito que, muito embora o realismo extremo
esteja errado, contra o qual Aristóteles se rebelou, essa luta é digna. Há estruturas
universais que se atualizam constantemente. Para isso não é preciso entender, corno
Platão, que os universais sejam coisas especiais em algum lugar do céu. Para mim, o
poder de ser está sempre resistindo em face do não ser. Por isso, não podemos ser
nominalistas apenas, muito embora devemos conservar sua atitude de humildade
perante a realidade que recusa se aproximar dela, pela via da dedução.

A importância imediata do nominalismo consistiu em ter abalado os universais


não apenas em termos de conceiws abstraws, mas também de grupos abrangentes,
como família, estado, amigos, organizações de trabalho, enfim, todos os grupos que
precedem o indivíduo. Por outro lado, o perigo do realismo medieval consistia em
impedir o desenvolvimento de suas potencialidades. Essa reação nominalista Foi,
pois, muito importante. Eu até diria que, sem o nominalismo, não se teria desen-
volvido no mundo moderno o conceito de personalidade, base da democracia.
Embora, em geral, eu critique o nosso nominalismo, louvo sua ênfase no pleno
desenvolvimento do indivíduo e de suas potencialidades, protegendo-nos de qual-
quer perigo de ficarmos asiáticos. Diante desse perigo, precisamos entender o
nominalismo medieval tão positivamente como o realismo medieval. O realismo

153
CAPíTULO lI!

medieval mantém os poderes de ser que rranscendem O indivíduo; o nominalismo


medieval preserva ou ressalva o valor do indivíduo. A rejeição do realismo radical,
no início da Idade Média, salvou a Europa de asiatização, isto é, de colerivização.
No final da Idade Média, rodos os universais se perderam, resultando na imposição
do poder da igreja sobre os indivíduos, e na transformação de Deus num tirano
individual, legislando sobre os indivíduos. Esse foi o lado negativo do nominalismo;
sua contribuição positiva foi a aflrmação do indivíduo. Assim, quando vocês lerem
sobre o nominalismo e sobre o realismo em manuais de lógica, não se iludam pen-
sando que se trata apenas de um problema basicamente lógico. Naturalmente, deve
também ser discutido em termos da ciência da lógica, mas, na verdade, tem a ver
com a atitude em face da realidade como um todo que também se expressa nos
domínios da lógica.

5. Panteísmo e dourrina da igreja


o panteísmo, com sua tendência à extinção do indivíduo, esteve, em parte,
relacionado com o realismo medieval, de diversas maneiras. Em primeiro lugar,
expressou-se por meio do averroísrno. Avenoes, o mais importante dos filósofos
árabes, afirmava que a mente universal que produz a cultura é uma realidade na
qual a mente individual participa. A mente individual, porém, não é independen-
te. Essa idéia alinhava-se com o pensamento asiático e Avenoes foi, portanto, rejei-
tado. Em segundo lugar, o panteísmo aparece no misticismo germânico como em
Meisrer Eckharr. Esse misticismo conseguiu dissolver todos os aspectos concretos
da piedade medieval, preparando o caminho para a filosofia da Renascença. A igreja
o rejeitou em nome do Deus autoritário-individual.

D. Forças religiosas

Vamos considerar, a seguir, as forças religiosas da Idade Média. A maior e mais


importante dessas forças era a hierarquia. Representava a realidade s:1crametH:11 da
qual dependiam a existência da igreja e do estado, e a cultura COIllO um todo.
Administrava a missa que era o evento sacramental básico. Em seguida, mantinha a
obra educacional das tribos germano-românicas, recém chegadas à igreja, bárbaras
que eram. Dessa maneira, a hierarquia não só tentava influenciar os indivíduos por
meio do sacramento da confissão, mas também a sociedade. O sacramento da con-
fissão ou penitência correlacionava-se com a missa; esta era objetiva, a confissão,

154
o MUNDO MEDIEVAL

su bjcriva. A J~i~~~~Lq_~i~_~~Jesiástica.~ll~:~.a_~_~_I1tr()1~_~_9 ._mundo. Assim, as hierarquias


seculares com seus poderes civis, tendo o imperador no ápice, tiveram que entrar
em conflito com o poder da igreja. O imperador queria a mesma coisa que a igreja,
porém, do ponto de vista secular. Queria estabelecer uma só expressão de vida cristã
secular, que fosse ao mesmo tempo secular e religiosa, em vez de tcr dois poderes
separados, como acontece agora.

Ao assumir fllnç~~,~__ ~~clllar~~.: __ ~~_}_~_~~F~!quia ~orria o risco d_~_ ~~_~~s:ul~Ô~~_!::.. Havia


forças religiosas que resistiam a essa tendência, entre elas o monasticismo. O
ll1onasticismo representava a negação do mundo sem quaisquer concessões, embora
não fosse um movimento quietista. Essa negação vinha acoplada com certos aros
destinados a transFormar o mundo - no trabalho, na ciência, em outras formas de
cultura, na arquitetura eclesiástica, na poesia e na música. Tratava-se de um Fenô-
meno muito positivo, sem relação alguma com o monasticismo deteriorado, que os
humanistas e os reformadores rejeitaram. De um lado, os monges se retiravam radi-
calmente do mundo, deixando o controle da sociedade nas mãos do clero secular,
mas, de outro lado, não caíram numa forma meramente mística de ascese, ou em
simples forma ritualista tão atraente à igreja oriental; dedicou-se à transformação
da realidade.

Os monges produziram a mais reflnada forma da cultura estética medieval e,


até hoje, algumas ordens monásticas representam ainda as mais altas formas cultu-
rais na Igreja Católica. Os beneditinos, em particular, têm preservado essa tradição
até nossos dias. Os monges eram também os rnantenedores da ciência teológica e,
talvez, da ciência em gerai. Os maiores teólogos foram franciscanos e especialmente
dominicanos. Havia monges que se dedicavam ao trabalho agrícola, à irrigação das
terras, ao aproveitamento das regióes pantanosas e a inúmeras outras atividades
necessárias às novas terras na Europa central e do norte, onde houve muitas conver-
sóes. Esses grupos mOlústicos representavam a vanguarda ativa e ascética da igreja,
como diríamos hoje. Tinham liberdade para realizar atividades culturais, ao mesmo
tempo em que se submetiam aos ensinameIltos da igreja. Mais tarde procurou-se
introduzir esse espírito monástico em outros grupos. Mencionamos, nessa linha, os
cavaleiros e os cruzados. Os cavaleiros lutaram contra os pagãos e conquistaram a
Alemanha Oriental. Se vocês quiserem uma interpretação histórica arrasadora, con-
siderem que essas ordens de cavaleiros que lutaram pela cristianização, e também
pela germanização da Europa oriental, há mil anos, foram agora conquistadas no
século vinte, com a ajuda das nações cristãs do Ocidente. Em outras palavras, que-

155
CA I'ÍTULO IJI

remos dizer que os grupos eslavos retomavam para si o que as ordens monásticas
militares lhes haviam tirado na Idade Média, e suprimiram o cristianismo substitu-
indo-o por uma forma comunista e não-cristã de secularismo. A Conferência de
Berlim, de 1945, foi, em especial, um grande evento histórico mundial, semelhan-
te às grandes batalhas dos cavaleiros da Idade Média, quando a Europa orienraI se
rendeu c a população germânica que aí vivera por cerca de mil anos, teve de ser
dividida. Quando olharmos para esta situação em perspectiva, talvez entendamos a
importância dessas ordens medievais.

Os cruzados, e o espírito das cruzadas, podem ser vistos como a introdução do


espírito monástico na aristocracia inferior. Conquistaram a Palestina e ° império
bizantino, no Oriente. Mas acabaram sendo repelidos.

Outra força religiosa foi o sectarismo; nio devemos entendê-lo tanto a partir
do ponto de vista dogmático, como se faz, em geral. É verdade que as seitas tinham,
às vezes, doutrinas estranhas e, por isso, abandonavam a igreja. Mas a razao verda-
deira era mais psicológica e sociológica do que teológica. O sectarisnJ,.o e_~a a crf~i_c:~_
-.ft:Ü?- à igreja por causa da distância entre ° que dizia e o que fazia. Expressava °
desejo de grupos especiais por ideais de consagração, de santificação e de santidade.
Procuravam desenvolver o radicalismo monacal em termos contrários à hierarquia.
Até cerro ponto, OS_'D.9_yi!'!1~~}?:~~~_~~~s1rio~~"3mleigos. Como a própria palavra ser/tlre
significa, "cortavam-se" do corpo da igreja. Entretanto, a introdução não-sectária
dos ideais monásticos, na vida secular, fazia-se, pelo menos em parte, por meio das
ordens terciárias, tertitlrii. Havia a primeira ordem de São Francisco, para monges; a
segunda, para freiras, c mais tarde, a terceira para leigos. Estes não ingressavam no
mosteiro nem faziam vOto de celibato. Submetiam-se a certos aspectos da disciplina
monástica, responsáveis pelo surgimento de uma piedade leiga que se tornou muito
influente ao final da Idade Média e acabou preparando o caminho para a Reforma.

Devemos mencionar, agora, as grandes personalidades da história eclesdstica


que representararn e desenvolveram essa piedade medieval. Não podem ser chama-
dos "grandes" no sentido da Renascença. roram grandes enquanto representantes
de algo objetivo que vamos ch;l1lur de "lenda sagrada", iniciada na Bíblia e continu-
ada ao longo dos séculos. "Lenda" não quer dizer, simplesmente, "não histórico"; é
a mistura de história e interpretação, envolvendo histórias relacionadas, em geral,
com grandes indivíduos que, na verdade, não viveram tais eventos. Assim, a história
lendária é a história dos representantes do espírito da igreja. E significa a consciên-
cia do cristianismo católico medieval de continuidade histórica, desde os antigos

156
o MUNDO MEDIEVAL

tempos de Noé e mesmo de Adão no período yét~r_o~t~§_t.ª"l:1}~!:!!.~rio. Essa continui-


dade histórica era representada por indivíduos notáveis não, entretanto, enquanto
indivíduos, mas enquanto representantes da tradição e do espírito vividos pelo povo.
Para mim, isso é mais importante do que o costume supersticioso, por exemplo, de
se orar aos que se tornaram santos. A lenda sagrada era uma realidade na qual se
vivia, como a natureza. Nela, a tradição viva se expressava simbolicamente. Os que
estudam arte religiosa verão que, até Gioeto, as grandes figuras da pintura medieval
não são tanto indivíduos, mas representantes da presença divina em eventos, formas
ou caracrerísncas espeCiais.

Entre .?-§_fC?~ç~~ religiosas, situam-se as supersnçoes _popula~:~s_ ,4c!-_.4~_~~_~:.dia. As


formas da vida diária podem ser chamadas de "superstições" se entendermos por
essa palavra a identificação da realidade finita com o divino. Havia superstições que
permeavam toda a vida medieval como, por exemplo, as relíquias dos santq§__ .Q!!.. 4ª-.
vida de Cristo. Outras superstições manifestavam-se nas inúmeras repetições de
milagres, ou nas atitudes para com objetos sagrados, considerados não apenas como
indicadores do divino, mas como poderes que continham em si o próprio divino. O
lado positivo de tudo isso era a consagração do cotidiano. Vou lhes dar uma ilustra-
ção. Tomemos uma cidade medieval qualquer; Chartres, por exemplo. Não é só a
catedral que é importante. Vocês precisam conhecê-la para entender a Idade Mé-
dia. Como eu dizia, não é só a catedral que é importante, mas a maneira como ela
se situa no alto da colina, bem no meio da pequena cidade. Trata-se de uma tre-
menda catedral, dominando tudo ao seu redor. Encontramos nela símbolos da vida
diária - da nobreza, dos artesãos, das associações e de todos os que mantêm a igreja.
A vida diária inteira acha-se dentro das paredes da catedral em forma consagrada.
Quando o povo entrava na catedral, sua vida diária se achava representada na esfera
do sagrado; quando saía da catedral, o povo levava consigo a consagração aí recebida
de volta para a vida diária. Esse é o lado positivo da superstição. O lado negativo
transparece nas formas como essas coisas eram utilizadas: imagens, esculturas, relí-
quias e toda a sorte de objetos sagrados como elementos de religiosidade superstici-
osa.

A experL~~Ei~_9E_.de!!:.~~~_S9.,era ta.~_~_~ém ~lÚ~9_i~Qº-r.~ªQ!~_,~.ªy~9.~_.ºj;tr:!3_.medi":


eyal Trataya-se de uma experiência real. A mesma linha vertical que subia ao divi-
no, descia também até o demônico. Esse demônico estava presente na catedral
como algo já conquistado. Praticava-se lá dentro o exorcismo. fu pessoas aspergiam
água benta sobre a fronte ao entrar na grande igreja. A água servia para purificar as

157
CAPÍTULO [IJ

pessoas livrando-as das forças demânicas, provenientes da vida diária..0 ~,ª~~~!"!1~


era, prim_~~@}I!.~D-~t_~,_ o ~~lJrcismo das forç~s deITlÔfJi.c:as..__~9_~~s_9a recepção dO,l:erdão
dos pecados. O peso das igrejas esmagava as figuras diabólicas. Era um dos símbo-
los mais significativos - o poder divino conquistava o poder do demônico na vida
diária. Aí pelo fim da Idade Média, quando a Renascença recuperou o simbolismo
e a realidade do demânico, no mundo antigo, o demônico prevaleceu sobre o divi-
no em tcrmos de ansiedadc._ A igreia, dessa época, vivia e:m.. ~_?!l~~~~r":E~~~~stia ..~
face da presença do demânico, em si mesma e nos outros. Vem daí os julgamentos
dos bruxos e, em parte, a perseguição aos hereges. Vem daí a perseguição demônica
do dcmônico; não se pode descrever melhor esses julgamentos de feiticeiros. Trata-
se do sentimento do "submundo", capaz de irromper a qualquer momento nos
indivíduos em termos de ansiedade neurótica. No início, as igrejas conseguiam
contratá-lo, mas não mais ao final da Idade Média. Deu-se início, então, à grande
perseguição aos feiticeiros, bem mais cruel e sanguinária do que a perseguição :105

hereges. Como em todas as perseguições, por detrás da hostilidade imperava o medo


e essa tremenda ansiedade em face do não-ser em termos de símbolos demônicos .

." E. A Igreja medieval

É curioso que nos sistemas teológicos medievais não havia lugar especial para a
doutrina da igreja. Indicava, entre outras coisas, que a igreja era auto-evidente; era
a base da vida inteira e não questão doutrinária especial. É claro que nas discussões
a respeito da hierarquia, dos sacramentos, e das relações com o poder civil, desen-
volvia-se implicitamente certa doutrina da igreja.

Nossa primeira observação é a seguinte: qual era a relação entre a igreja e o


reino no pensamento medievaP A resposta a esta pergunta é a base das respostas a
perguntas sobre a relação da igreja com o poder secular e com a cultura, entre
outras. No fundo, essas questões remontam ao que Agostinho ensinou a respeito eb
interpretação da história. Vamos revisar essa questão para entendermos o que se
passava na Idade Média.

No pensamento de Agostinho, a igreja se identifica, em parte, com o reino de


Deus e, em parte, não se identifICa com ele. A identificação não é completa, porque
Agostinho sabia muito bem que a igreja era um corpo ambíguo. Toda essa gente
que se diz membro da igreja formalmente, na verdade não participa plenamente de

158
o MUNDO MEDIEVAL

sua vida. Mas precisava identificá-la com o reino de Deus a partir da graça sacra-
mental, presente na hierarquia. O ponto de partida podia ser qualquer um desses:
a identificação ou não identificação da igreja com o reino de Deus. Esse foi sempre
o problema da Idade Média. A igreja, naturalmente, procurava se identificar com o
reino de Deus em termos das graças hierárquicas. Entretanto, não é correto pensar
que os representantes medievais, teólogos, papas ou bispos, estivessem sempre iden-
tificando sua bondade ou santidade particular com o reino de Deus. O que se
identificava com o reino de Deus era a santidade sacramental com o seu poder
sacramental objetivo. Essa objetividade da realidade sacramental é que se [Ornou
decisiva para a compreensão do pensamento medieval. De outro lado, a igreja em
si, era um corpo ambíguo e as representações das graças sacramentais nem sempre
claras. Assim, a partir daí, podia-se atacar a igreja. Os debates medievais sobre a
igreja oscilavam, pois, entre esses dois pólos.

Paralelamente a essa idéia, Agostinho identificava, em parte, o estado com o


reino da terra, também designado com o reino de Satã. Em sua interpretação da
história, os estados resultam de poder compulsório. Chamava-os de "estados la-
drões", produzidos por grupos de gangJten, considerados criminosos não apenas
por causa do poder com que deles se apossavam. Essa consideração, parecida com
uma das análises marxistas do estado, era contrastada, no entanto, pela idéia da lei
natural de que o estado é necessário para reprimir poderes pecaminosos capazes de
levar a vida pública ao caos se deixados à vontade.

A ênfàse recaía na identidade do estado com o reino de Satã, ou, pelo menos,
do mundo pecaminoso, ou na negação dessa identidade, concedendo-lhe a função
divina controladora do caos. Só se entende esse tipo de pensamento quando se leva
em consideração o período vivido por Agostinho, em que o império romano e, mais
tarde, os reinos germano-românicos não eram poderes cristãos. Mesmo depois da
cristianização de Constantino, continuava o jogo do poder. A substância da cultura
antiga se mantinha, não sendo ainda substituída pela substância religiosa da igreja.
Mas a situação mudou. Com a expansão do cristianismo, no Ocidente, a igreja se
tornou a substância cultural da vida, o poder determinante das relações individu-
ais, de todas as expressões da arte, do conhecimento, da ética, das relações sociais,
das relações com a natureza e de rodas as demais formas da vida humana. Agostinho
aceitou, em parte, a antiga substância, e em parte a rejeitou. O que permaneceu foi
submetido ao princípio teônomo da igreja.

159
CAPÍTULO 111

Numa situação dessas não se podia mais dizer que o estado era o remo do
diabo, porque a substância do estado passara a ser a própria igreja. Essa nova situ-
ação trouxe conseqüências não apenas para as relações entre a igreja e o estado, mas
para o próprio estado. De que maneira o estado germânico relacionava-se com a
igreja? Antes da conversão das tribos germânicas ao cristianismo, seus príncipes,
que eram seus líderes, representavam não apenas o poder terreno, mas também o
poder sagrado. Representavam, automaticamente, os dois domínios. A mesma situ-
ação persistiu, nos estados germânicos, na medida em que o clero pertencia à ordem
feudal das tribos. O grande bispo de Rheims, na França, Hinchmar, representava o
protesto feudal do poder político sagrado - político e sagrado ao mesmo tempo -
contra o universalismo da igreja. Os reis germânicos, obrigados a conceder poder
político aos mais altos senhores feudais, tinham também que conferir o mesmo
poder aos bispos que eram, igualmente, altos senhores feudais. A igreja chamava de
simonia essa prática, a partir da história de Simão que desejou comprar o poder
divino. Esses senhores feudais tinham que dar alguma coisa em troca pelo que
recebiam. Tudo isso ligado ao sistema territorial das tribos germano-românicas que
se opunha à universalidade da igreja.

A oposição aos bispos feudais e aos reis ou príncipes veIO de três segmentos
sociais: I. do baixo clero; 2. dos papas, especialmente de Gregório VII; 3. das
massas proletárias que eram antifeudais, especialmente no norte da Itália. O Papa
se utilizava dos bispos mais pobres, mais próximos do baixo clero do que ele, para
resistirem, em seu nome, ao clero feudal dentro de seus próprios territórios. Essa
era a situação que, afinal, desencadeou a grande luta entre Gregório VII c Henrique
IV. Em geral, se pensa, erroneamente, que se tratava de uma luta entre igreja e o
estado. Mas, "estado" no sentido moderno, é um conceito do século dezoito. Assim,
quando falamos de "estado" em referência à Grécia, a Roma ou à Idade Média,
devemos sempre escrever essa palavra entre aspas. O que existia, realmente, era a
autoridade legal apoiada por poder militar e político.

Os conflitos não surgiam da intromissão do estado nos direitos da igreja, como


se deu mais tarde. Tratava-se de algo mais sério. Não havia separação de domínios,
posto que a igreja representava a substância espiritual da vida cotidiana com todas
as suas funções (comércio, artesanato e outras profissões). A separação só veio de-
pois da Reforma. Havia uma só l"ealidade COI11 diferentes lados. Quem deveria diri-
gir essa realidade? Deveria haver uma só cabeça uma vez que era perigoso ter duas
cabeças. Mas os dois lados, os príncipes ou os senhores feudais, e o clero, pretendi-

160
o MUNDO MEDIEVAL

am ser essa única cabeça. O "estado", representado pela ordem feudal, achava que
também representava o corpo cristão como um todo, mas a igreja, por sua vez,
representada pelo Papa, achava que lhe cabia esse mesmo papel. Os dois lados aspi-
ravam ao mesmo poder, representando ao mesmo tempo o secular e o religioso. O
rei queria representar e proteger a cristandade. Principalmente, quando o rei se
tornou o imperador germânico continuando a tradição do santo império romano.
Por outro lado, o Papa Gregório VII reclamava para si a mesma posição a partir do
lado hierárquico. Reivindicava direitos que ultrapassavam tudo o que se conhecera
até então. Idenrificava-se com todos os bispos na qualidade de bispo universal.
Toda graça episcopal vinha do Papa; Pedro estava presente nele, e em Pedro, o
próprio Cristo. Não se podia conceber a existência de bispos independentes do
Papa para o exercício do poder sacramental. O Papa era o monarca universal na
igreja. E foi além: a igreja era a alma do corpo, e o corpo, a sociedade secular. Os
representantes da vida secular relacionam-se com ele que representa a vida espiritu-
al, como o corpo humano se relaciona com o seu interior, que é a alma. Como a
alma governa as panes do corpo, assim o Papa governa os reinos com suas ordens
feudais.

Essa atitude se expressava por meio da doutrina das "duas espadas": a terrena e
a espiritual. Assim, como a existência corporal se submete à espiritual, assim tam-
bém a espada do rei e dos senhores feudais se submete à espada do Papa. Portanto,
todos os seres na terra têm que se submeter ao Papa de Roma. Essa era a doutrina
do Papa Bonifácio VIII, que expressava radicalmente as aspirações papais. Os impe-
radores se rebelaram contra isso, e surgiram muitos acordos. Mas, em geral, os
papas venceram, pelo menos enquanto existiu uma só cristandade dentro da qual as
lutas prosseguiam.

Mas surgiram novas forças na Idade Média. Entre elas, os estados naCIOnaiS
ocuparam lugar de enorme importância. Queriam ser independentes tanto do im-
perador como do Papa. Apoiavam-se em forte sentimento nacionalista. O naciona-
lismo francês apareceu, pela primeira vez, em conflito direto com o Papa na figura
de Joana D'Arc. Daí a sua importância. No final da Idade Média, os estados naci-
onais conseguiram retomar boa pane do poder papal. A França esteve de novo na
liderança: Felipe, o belo, levou o papado para Avinhão, na França, provocando o
conhecido cisma entre os dois papas, para minar radicalmente a autoridade deles.
Os príncipes e reis, que iam gradualmente se tornando independentes e criando
novos estados, eram também senhores religiosos. E assim surgiu na Inglaterra a

161
CAPÍTULO lI!

teoria de que o rei representava Cristo para a Igreja Inglesa da mesma forma em que
o Papa é o vigário de Cristo.

Surgiu uma outra teoria, desta vez contra o Papa. Os bispos dos diferentes
estados nacionais não queriam ser meros súditos do Papa; desejavam recuperar o
prestígio que os bispos possuíam, digamos, na época do concílio de Nicéia. Desen-
volveram a idéia de conciiiarismo; o concílio dos bispos deveria ser a autoridade
eclesiástica suprema. Contrariavam, assim, o curia!ismo (de curia, corre papal); era
aí que residia o poder monárquico sobre a igreja e o estado. Dessa maneira, o
conciliarismo, aliado à reação nacionalista contra o império e o papado, se transfor-
mou num movimento radical que ameaçava a sobrevivência do papado. Com o
passar do tempo, no entanto, o Papa conseguiu acabar com os concílios reformadores
de Constança e Basiléia, onde o conciliarismo triunfara por certo tempo. As separa-
ções nacionais e outras divisões, mais o desejo, dos últimos tempos da Idade Média,
de unidade apesar de tudo, fizeram com que o ec1esiasticismo e o monarquismo
afinal prevalecessem na Igreja Romana.

Os movimentos sectários e leigos dessa época foram também importantes com


suas críticas contra a igreja. O principal crítico da igreja, no campo teórico, foi
Guilherme Ockham, que lutou em favor do estado nacional germânico contra a
monarquia universal do Papa. Mas o crítico mais efetivo chamava-se Wyclif, da
Inglaterra. Criticava a igreja de modo radical, a partir da lex evangelica, a lei evangé-
lica, que supunha estar na Bíblia. Traduziu a Bíblia e lutou contra a hierarquia com
o apoio do rei nacional. Já nessa época, o relacionamento do rei da Inglaterra com o
Papa era bastante precário. O Papa não conseguiu que o rei perseguisse Wyclif e
seus seguidores.

Por fim, a hierarquia (enquanto realidade universal) terminou no movimento


revolucionário de Reforma. As igrejas protestantes adotaram a forma de igrejas
territoriais, já preparadas anteriormente pelos príncipes. Com o esvaziamento do
poder do Papa e da hierarquia, a igreja perdia a sua coluna dorsal. Enquanto isso, o
príncipe recebia o título de "bispo supremo". Substituía o bispo sacramental e
hierárquico e se transformava no mais alto administrador dentro da igreja, mesmo
na qualidade de leigo; c nessa condição mantinha a igreja em ordem. Foi assim que
as igrejas protcstantes sc submeteram aos poderes terrenos, c assim permanecem
até hoje. No luteranismo, surgiu o problema. da relação da igreja com os príncipes,
seus conselhos e governos autoritários. Nos países calvinistas, bem como nos Esta-
dos Unidos, as classes socialmente dominantes foram decisivas para a igreja e se

162
o MUNDO MEDIEVAL

tornaram a base administrativa de seu sustento.

F. Sacramentos

Do ponto de vista da vida religiosa, os sacramentos eram, talvez, o elemento


mais importante da história da igreja medieval. Para discutir esse assunto, os pro-
testantes devem esquecer tudo o que sabem a seu respeito, segundo sua experiência
imediata. Na Idade Média, os sacramentos não eram apenas atos realizados em
certas épocas do ano com maior ou menor solenidade. A pregação não precisava
acompanhá-los. É por isso que Troeltsch chamava a Igreja Católica de maior instI-
tuição sacramental de toda a história universal.

Dissemos, antes, que a Idade Média foi dominada por um problema principal.
Buscava-se urna s9s~,4~~,e,_çp.j?_~,? ~,~_~t;L,g_Ú~~~~.~calidadepresente, de caráter
divino transcendente. Diferia dos tempos do Novo Testamento, quando o proble-
ma central era a salvação da alma dos indivíduos. Diferia também do período
bizantino (cerca dc 450 - 950), quando os mistérios interpretavam a realidade toda
em tcrmos do seu fundamento divino, mas quase nada era mudado. Era, também,
diferente do período pós-renascentista que tcrminou no século dezenove, quando o
mundo era dirigido pela razáo humana e o homem ficava no centro de todas as
coisas. Não tinha nada a vcr com o período grego, quando a mente procurava o
imurável eterno. Todas essas épocas tiveram seus problemas particulares. O proble-
ma da Idade 10~~L~ er~ __?P!"?bl~:na do mundo (sociedade e natureza), ond~._()_.cl~:rir~?_
se fazia P~E~,I1t~,'p0r mei5?_ c.l~_.formas sac..~~I::.~J1[~,~~. À luz desse fato, perguntamos:
que queria dizer "sacramental"? Significava uma porção de coisas na história da
igreja. Eram os feitos de Cristo e seus sofrimentos (as estações da Cruz); eram os
evangelhos, também chamados de sacramenros; cram os símbolos da Bíblia; o cará-
ter simbólico dos edifícios eclesiásticos, com as atividades desenroladas aí dentro,
em rcsu~'?2__ ~.oA~s as coisas-P~.~t:..~0_c!E~~_ do divino. Es~_~ cr.a. a qtl~st~{)_.m_~E.liev?-l: ter ª-_
._pres_cn~<:t.d9 sagrad<;-l.

Os sacramentos representavam a objetividade da graça de Cristo, presente no


poder objetivo da hierarquia. Todas as graças - "graças" eram os poderes substanciais
do Novo Ser - se faziam presentes na hierarquia e por seu intermédio. Os sacramen-
tos eram a continuação da realidade sacramental básica da manifestaçáo de Deus
em Cristo. Em cada sacramento, presentifIca-se uma substância de cadter trans-

163
cAPí'ruLo lU

ccndente. Água, pão, vi~~.h~!_<?)t:.:0,._l?alavra,__i~~~.E!?sição das mãos, tudo isso se torna


sacramental ao conter a s.~~,~!~_ncia ~_t~~_~~~e.2~dente. É com~~,_L!~"-B_~~.4?_~~~~_q~~ Os
sacramentos podiam ser definidos da seguinte maneira: "Deus estabeleceu os sacra-
mentos para serem remédios contra as feridas produzidas pelo pecado original e
pelos pecados de cada um", Esse simbolismo medicinal expressa claramente o que
se queria dizer: o poder para curar é derramado sobre certas substâncias.

o protestantismo queria saber quantos sacramentos havia. Até o. século treze


eram inúmeras as atividades sacramentais. Mas sempre tinha sido mais ou menos
claro quais deles eram os mais imponantes. Eram o. batismo e a ceia do Senhor. Foi
preciso mais de mil anos de história eclesiástica para se dizer que são sete os mais
importantes. Foi uma decisão infeliz para a compreensão do conceito de sacramen-
to. Não esqueçamos o conceito universal de sacramento: a presença do sagrado.
Portanto, as sacrarnentalia eram celebradas constantemente nas igrejas; nessas ativi-
dades o povo experimentava a presença divina de modos diferentes. São muitas as
razões para a fixação do número de sete sacramentos - tradicional, prática, político-
eclesiástica, psicológica, entre outras. A Igreja Católica Romana determinou esse
número sete; mas por muito tempo eram apenas cinco. Nas igrejas protestantes,
foram reduzidos para dois; em alguns grupos, pelo menos, da Igreja Anglicana, na
tcoria e na prática são três (·l. Mas o número não importa. A questão é esta: que
quer dizer "sacramento"? É o que os protestantes precisam aprender novamente,
pois se esqueceram disso.

Na Igreja Romana os principais sacramentos são o batismo c a eucaristia; mas


a penitência sempre esteve no centro da piedade popular. Há a ordenação que pos-
sibilita a administração dos outros sacramentos. No matrimônio, controla-se a vida
natural. A confirmação e a extrema-unção são sacramentos de apoio à vida do indi-
víduo. Vemos, assim, que a raison d'étre de alguns sacramentos é "biográfica", en-
quanto outras decorrem do próprio estabelecimento da igreja.

Mas, qu~ é s~çramento? É um sin3] visível, sensível, in~.sit0~9.s:.J.~~~_ºel.lspara


~L_~~l.,,}:,e!.J:l.~,dio no <'El"~l SO~J~~l~S}l!,~!s~.Lais o PQ.sl.E.E_A~ __º_~~lsag~de maneira
___ º.fJ~Jt;l;._As idéias básicas são estas: instituição divina, sinal visível, remédio (o sím-
bolo medicinal é muito importantc) e o poder oculto de Deus sob a forma sensível.
É válido quando tcm substância material, forma (as palavras de sua instituição) e a
intenção do ministro de fazer o que a igreja determinou. Esses três elementos são
necessários. O sinal (diríamos, símbolo) está na matéria. Portanto, o sacramento

164
o MUNDO :VIl'OIEVAL

produz efeitos; age no interior da alma; faz com que aconteça algo divino. Mas não
em termos absolutos. O sacramento depende de Deus como sua causa final. É um
meio de graça. A palavra "graça" deve ser traduzida por poder divino de ser, ou
poder do novo ser, que justifica ou santifica. /ustificação e santificação são a mesma
coisa no catolicismo. Mas são bem diferentes no protestantismo. Essa graça, ou
poder divino do novo ser, é derramada pelos sacramentos na essência da alma, no
seu mais profundo interior. Não há outro meio para a recepção da graça justificadora
e santificadora fora dos sacramentos. A substância derramada no interior da alma
produz efeitos nas diferentes funções da alma, ou mente, como diríamos hoje. O
intelecto inclina-se à fé por meio da graça sacramental; a vontade dirige-se para a
esperança; e o ser inteiro se volta para o amor.

O importante é que o sacramento age em nós ex opere operato, por sua própria
realização e não por qualquer outra virtude. Só há um pressuposto subjetivo, isto é,
que se creia que os sacramentos scjam sacramentos. Não se pede a fé enquanto
relação especial com Deus. É uma teoria do "mínimum"; mesmo os que resistem à
graça divina podem recebê-la não importando a própria indignidade. Basta que
não neguem que o sacramento é meio da graça divina. A teoria do ex opere operato
faz do sacramento um evento objetivo, quase mágico. Os reformadores foram muito
radicais a respeito dessa idéia.

~_ A vida int~i.ra s~ __ p~ssava sob os efei~~?~._4.<?s._?~c:~~mentos. O batismo removia o


--.Eecado__?rig~'1.<:iI; a eucaristia, os veniais; a confis~s_~?~~5)~_~?rtais; a extrema-ur~S~_()L~.
que restava ainda de pecaminoso antes da morte; a confirmação levava as pessoas'a
lutar pela igreia; a ordenação _
fazia
_ '"' o clero; e o matrimônio
~ ' levava
""_"'_'__"",," ü homem
_.' e a
._o'_~

mulher ao desenvolviIT~:~.~.~5!.~_"~~ vocação~~~_~~raL Entretanto, a missa situava-se


acima de todos. Tratava-se do sacrifício de Cristo repetido diariamente em todas as
igrejas da cristandade, para efcmar a transubstanciação do pão e do vinho no corpo
e sangue de Cristo. A presença do divino e o poder sacramental e hiedrquico da
igreja se baseavam nesse sacrifício. Era, por assim dizer, o sacramento dos sacramen-
tos. Oficialmente, fazia parte da ceia do Senhor, mas, objetivamente, era a base de
todos os sacramerHos, pois por seu intermédio os sacerdotes exerciam o poder de
"produzir Deus", facere deum; o poder principal da igreja na Idade Média estava em
tomar o pão e o vinho e transformá-los em Deus.

A penitência se realizava num certo tipo de tensão com os outros sacramentos.


Muito se discutia a respeito. Quais deveriam ser as condições do perdão no sacra-

IG5
CAPÍTULO lI!

menta da penitência? Alguns queriam que fossem muito fáceis, outros, ao contrá-
rio, bastante difíceis. Todos acreditavam na necessidade do arrependimento - em
maior ou menor grau - conservando, ao mesmo tempo, a necessidade do sacramen-
to. Entretanto, nenhum escolástico tenWu explicar a relação entre o elemento sa-
cramental e o pessoal. Foi neste ponto, precisamente, que a igreja medieval explo-
diu, com a intensificação do lado subjetivo da confissão. Foi essa a experiência de
Lutero, e foi por isso que se tornou o grande reformador da igreja.

G. Anselmo de Cantuária

Vamos estudar, a seguir, doi,LiB:!l?2.n~n(es persona~ens do século.doze, Anselmo. __


_de Canruária e Abelardo de Paris. A base do trabalho teológico de Anselmo era a
mesma de todos os escolásticos, a afirmação de que roda a verdade estava, direta ou
indiretamente, presente nas Santas Escrituras e na sua interpretação pelos pais. Sua
frase credo ut inte!!igam (creio para entender, e não, entendo para crer), deve ser lida
à luz de sua maneira de compreender a fé e a tradição. Fé não é graça no sentido de
J(Q especial do indivíduo, mas participação numa tradição viva. Essa tradição viva,
que é a substância espiritual em que se vive, é o fundamento, e teologia é interpre-
tação a partir desse fundamento.

o conteüdo da verdade eterna, dos princípios da verdade. é apreendido pela


submissão de nossa vontade à mensJgem cristã e pela subseqüente experiênciJ que
vem daÍ, Essa experiência é concedida pela graça; não é produzida pelas atividades
humanas. Esse termo, "exper.i~Q_çi_~(fi.coUmlJitoimpQXIª,tE~~.NªQdevemos entendê-
lo como ho~_ em--SJ.Ü~. Ele tem sido LJ_~-ª.º.Q pJrJ quas~ tudO--l_J9XIlªDdo.:-.s~.çnrestionável
e quase vazio. D~_q!o1<l.tgucr fO!.!!1_~:.. [JS)~_qL?:?~,4~.jlI~_sSL!J1().!l~()qlle~ia.dizer "exr~riên­
cia" rcligiosaL~l11 _~~_ rr~5:?~_g~!.a~s; não s.~ falava em tal coisa. Ao contrário, experiência
significavap<.tL~)s:ip<lção na verdade obje.ri..~d,jmp1í.<=i.ta na Bíblia e explicada
auroritativam~nt~_p_eIc~_s.p.ais.d a igreja. Os teólogos tinham que participar nessa
experiência. É possível transformá-h em conhecimento, mas não necessariamente.
.
A fé não depende de conh~c_i_I-rt.~~.l~O embora o conhecimen_~? .~~R:.'.~?~<~ (~:::,f~.:_ Pode-
mos L1sar novamente a analogia que já empregamos. A ciência natural pressupõe
participação na natureZ;:l embora essa participação na natureza não leve ninguém
necessariamente à ciência natural. Ness;:l base, a razão pode agir com absoluta liber-
dade para transformar a experiência em conhecimento. Anselmo foi um grande
pensador especulativo, numa época em que a palavra "especulação" não tinha ainda

lGG
o MUNDO MEDIEVAL

adquirido o semido de olhar para as nuvens; em vez disso, referia-se à análise das
estruturas básicas da realidade.

Qualquer conhecimento baseado na experiência conduz a sistemas. Era tam-


bém outra feição medieval. Os pensadores sabiam que para desenvolver o pensa-
mento consistentemente era preciso pensar sistematicamente. O (ermo "teologia
sistemática" que usamos no ensino remonta a essa compreensão do caráter siste-
mático do conhecimento como necessária à consistência. Por outro lado, muita
gente é atacada, hoje em dia, por usar a palavra "sistema", porque desejam pensar
sistematicamente e não de forma esporádica ou fragmentária. Mas a igreja não pode
se dar ao luxo - como certos indivíduos - de tcr um pcnsamento aqui e outro mais
lá adiante, sem qualquer relação entre ambos, ou mesmo em contradição entre eles.
O pensamento sistemático seria nocivo se procurasse chegar a conclusões sem fun-
damentos na experiência. Mas não é esse o sentido de "sistema". Significa a organi-
zação da experiência cognitivamente de tal forma que os seus conteúdos não se
contradigam e, afinal, se chegue à verdade completa. Como Hegel afirmou com
tanta razão, "a verdade é o todo".

Assim, a razão é capaz de elaborar todas as experiênCias cm seus próprios tcr-


mos. Mesmo a doutrina da trindade pode ser examinada pela razão fundamentada
na experiência. Em outras palavras, a doutrina da igreja é idêntica à razão autôno-
ma. Comparemos este pensamento com nossa relação com a natureza quando afir-
mamos que a estrutura matemática e a realidade natural andam juntas. A razão
matemática é capaz de apreender a natureza, de ordenar e de entender os movimen-
tos e as estruturas naturais. Do mesmo modo, a razão teológica pode entender e
relacionar cntre si as diferentes experiências religiosas. Foi dessa maneira corajosa
que Anselmo atacou os problemas teológicos. Ao afirmar que a trindade podia ser
entendida em termos racionais, seguia a herança agostiniana. Chamemos esse pen-
samento de monoteísmo dialético no qual o movimento pertence ao próprio Deus.
Deus é Deus vivo; portanto, é em si mesmo "sim" e "não". Não há em Deus uma
identidade mort"~mas separação viva e reunião viva de sua vida consigo mesma.
Em outras palavras, o mistério da trindade podia ser entendido pelo pensamcnto
, dialético. Esse mistério se inclui na razão; não contraria a razão. Ma~ como? Segun-
do a teologia clássica, a própria razão de Deus não é ° seu Filho, o Lagos? A razão,
portanto, só é válida à medida que Deus c ° mundo são essencialmente considera-
dos. A autonomia não é destruída pelo mistério. Por outro lado, ela não é vazia e
puramente formal. Não esgota os mistérios da vida divina; indica-os em termos

lG7
CAPÍTULO JII

dialéticos. O conteltdo, a substância e a profundeza da razão são mistérIOs apenas


manifestos na revelação.

Vemos, pois, que Anselmo não era autônomo num sentido vazio e formal, nem
hctcrônomo procurando submeter sua razão a urna tradição ininreligível, seme-
lhante ao mistério mágico. Eu chamo de autônoma a atitude de Anselmo. EsCüu
sempre usando esse conceito em minhas discussões e escritos. Quando alguém per-
gunta, "que quer dizer economia?", podemos responder: "o método filosófico de
Anselmo, de Agostinho e .... com certa hesitação. de Hegel". Apesar de todas as
minhas críticas, menciono Hegel. Esse método ecônomo significa o reconhecimen-
to do mistério do ser, sem no entanto recebê-lo como elemento transcendente c
autoritário, imposto sobre nós, ou contra nós, destruindo nossa razão. Isso equiva-
leria a dizer que Deus estaria destruindo o seu próprio Logos, que é a profundeza da
razão. A razão e o mistério andam juntos, como a substância e a forma.

Num certo momento, me desvio de Hegel e fico com Anselmo. Trata-se de


uma total reviravolta; trata-se do Lagos que se fez carne! Não estamos aqui conside-
rando apenas a razão dialética. Não é apenas dialética, nem só mistério. Estamos
diante do paradoxo. Estamos na esfera da existência e a existência se baseia na
liberdade de Deus e do homem, no pecado e na graca. A razão. neste momento,
apenas reconhece, não entende. A esfera existencial, incluindo a r?~~_~"éEovÇ-!!~<!-(!<l_
pela vontade e pela decisão, não pela necessidade racional. Portanto, pode se trans-
formar em anti-razão, antiestrutura, antidivina e anti-humana. Queremos dizer,
pois, que não são o mistério nem a revelação os responsáveis pelos limites da neces-
sidade racional. O mistério do ser é preservado na boa dialética e destruído numa
dialética pervertida. Mas além do mistério e da dialética persiste alguma coisa para-
doxal. Isso quer dizer que não obstante as constantes autocontradições humanas,
existe a possibilidade de superação dessa situação porgue uma nova realidade apare-
ceu nas próprias condições da existência e superou tudo isso. Esse é o paradoxo
cristão! Devemos nos preocupar seriamente em não estabelecer distâncias
intransponíveis entre o mistério divino e o Logos divino. A igreja tem const:lIHc-
mente afirmado a sua união. Ao se negar a adequação da estrutura dJ razão :10

mistérIO divino cai-se em dualismo, e Deus acaba sendo dividido em seu próprio
III terio r.

Os conhecidos argumentos em E1Vor da existência de Deus ou) COlHO eu gosto


de dizer, os assim chamados argulllentos em favor da assim chamada existência de

168
o MUNDO MEDIEVAL

Deus (pois não são argumentos nem provam a "existência" de Deus) expressam o
pensamento ecônomo de Anselmo. Conseguem, no entanto, resultado bem me-
lhor. São dois os argumentos, o cosmológico e o ontológico. O argumento
cosmológico aparece no Monologium e o ontológico, no Pros!ogium. Vou demonstrar
como esses argumentos em favor da existência de uma duvidosa e desconhecida
peça da realidade, mesmo se chamada de "Deus", não são argumentos. São coisas
bem diferentes.

o argumento cosmológico afirma: temos idéias do bom, do grande, do belo e


" do verdadeiro. Essas idéias se realizam em coisas. Encontramos beleza, bondade e
verdade em muitos lugares, embora em medidas e graus diferentes. Quando dize-
mos que algo participa em maior ou menor grau na idéia do bem ou da verdade, a
própria idéia tem que ser pressuposta. Sendo ele o critério pelo qual se mede, não se
submete, naturalmente, a qualquer medida. O bem em si ou o bem incondicionado
- ser ou beleza - é a idéia sempre pressuposta. Isso quer dizer que em todas as coisas
finitas ou relativas está implícita a relação com algo não condicionado, com um
absoluto. O condicionamento e a relatividade pressupõem o absoluto e o
incondicionado. Dessa maneira, o sentido do condicionado e o do incondicionado
são inseparáveis. Ao analisarmos a realidade, especialmente a nossa, descobriremos
nela elemento finito que, na verdade, se relaciona com algo infinito. Trata-se de
uma conclusão obtida do condicional para o incondicionaL De assunto de análise
capaz de nos mostrar que os dois elementos se correspondem mutuamente. A reali-
dade, por sua própria natureza, é finita, voltada para o infinito ao qual o fmiro
pertence e do qual se acha separado.

Essa é a primeira parte do argumento cosmológico. Até este ponto é uma aná-
lise existencial da finidade, boa, verdadeira e necessária para qualquer filosofia da
religião. Na verdade, é a filosofia da religião. Entretanto, essa idéia se mistura com
o realismo metafísico que identifica os universais com os graus do ser. Corno já
vimos, o realismo medieval atribui poder de ser aos universais. Desse modo, cons-
trói-se urna hierarquia de conceitos na qual o incondicionalmente bom e grande, e
o ser, não são apenas qualidades ontológicas, mas realidades ônticas, seres entre
outros seres. O mais alto ser é o mais universal de todos. Precisa ser só um, caso
contrário um outro ocuparia o seu lugar. Deve tudo abranger. Em outras palavras,
o significado ou a qualidade do infinito de repente se transforma no mais alto ser
infinito, no mais alto, maior e melhor ser incondicionado. O argumento é correto
na medida em que descreve o encontro humano com a realidade, enquanto ser

169
CAPÍTULO 111

finito acarretando com isso a exclusão de si mesmo do infinito. Mas é duvidoso ao


permitir essa conclusão em favor da existência de um ser superior.

No Proslogium, o próprio Anselmo critica o seu argumento por ter começado


com o condicional e transformado-o em fundamento do incondicional. A crítica
procede em relação à segunda parte do argumento, mas não com respeito à primei-
ra, pois nessa primeira parte ele não baseia o infinito no finito, mas analisa o infini-
to nos limites do finito. Mas Anselmo queria mais do que isso. Queria um argu-
mento que não precisasse do mundo para chegar a Deus. Queria encontrar Deus no
próprio pensamento. Achava que antes do pensamento sair para o mundo deveria
estar certo de Deus. É o que eu chamo de pensamento teônomo.

o argumento é o seguinte: é difícil entendê-lo porque se desenvolve segundo


os modelos escolásticos, longe da nossa maneira de pensar. "Até mesmo o tolo está
convencido de que há no intelecto alguma coisa em relação à qual não se pode
pensar outra maior, porque no momento em que ele, o tolo, ouve isto, ele entende
o que ouviu. E qualquer coisa entendida está no entendimento. Certamente essa
coisa em relação à qual não se pode pensar outra maior não pode estar apenas no
intelecto. Se, pois, estivesse só no intelecto, poderia ser pensada presente na reali-
dade também, o que seria maior. Se, portanto, aquilo em relação ao qual nada
maior pode ser pensado, estiver só no intelecto, então, na verdade, algo maior do
que isso pode ser pensado. O que, por certo, seria impossível. Ponanto, além de
qualquer dúvida, essa coisa em relação à qual não se pode pensar outra maior existc
tanto no intelecto como na realidade. E isso és tu, nosso Senhor". Esta última
sentença é notável, porque jamais encontrei uma sentença como essa em qualquer
tratado de lógica dos últimos séculos. Depois de passar pela mais sofisticada argu-
mentação lógica, termina com essa frase: "E isso és tu, nosso Senhor!". É o que cu
chamo de teonomia. Não se trata de um pensamento autônomo cm si mesmo, mas
de um pensamento que entra em relação com o fundamento divino, tconomicamente.

,~Vou tentar analisar agora csse argumento, ponto por ponto.

1. Até o tolo - do Salmo 53, que diz no seu coração, "Não há Deus" - entcnde
o significado do termo "Deus". Ele entende que o mais alto, o incondicional, se
concebe no termo "Deus".

2. Se ele entende o signifLcado de Deus como algo incondicional, essa idéia,


então, existe na mente humana.

170
() MUNDO MEDIEVAL

3. Mas existe uma forma superior de ser, não apenas na mente humana, mas no
mundo real fora da mente humana.

4. Uma vez que estar na mente e fora dela é superior a estar apenas no intelecto,
esse ser é o incondicional.

Cada passo do argumento está construído de tal maneira que pode ser facil-
mente refutado como, de fato, aconteceu muitas vezes já no tempo de Anselmo. Por
exemplo, se dizia que o argumenro poderia ser igualmente válido para provar qual-
quer coisa suprema, como, por exemplo, uma ilha perfeita. Seria mais perfeito se a
ilha existisse também na realidade e não apenas na mente. Além disso a expressão
"na mente" era ambígua. Na verdade, queria dizer "ser pensado", "intencionado",
"ser objeto da intencional idade humana". "Na" é expressão metafórica que não deve
ser tomada literalmente.

Anselmo respondeu à primeira objeção dizendo que uma ilha perfeita não era
um pensamenro necessário, e que só era necessário o pensamento do mais alto dos
seres, do incondicionado. À segunda crítica respondeu dizendo que o incondicionado
deve superar a separação entre a subjetividade e a objetividade. Não pode estar
apenas na mente. O poder do significado do incondicional supera a separação entre
sujeito e objeto, abrangendo a ambos. Se Anselmo tivesse dito isso, a forma falaciosa
do argumento teria sido abandonada. O argumento deixa, assim, de ser em favor
do mais alto dos seres, mas simples análise do pensamento humano. Nesse caso, o
argumento afirma: deve haver um momento em que a necessidade incondicional de
pensar e ser se tornam iguais sem o que não pode haver certeza alguma, nem mesmo
aquele grau de certeza pressuposto pelos céticos. Estamos diante do argumento
agostiniano de que Deus é a verdade, e a verdade pressupõe, até mesmo, o que o
cético reconhece. Deus é idêntico, então, à experiência do incondicional enquanto
verdadeiro, belo e bom. O que o argumento ontológico realmente faz é analisar no
pensamento humano algo incondicional que transcende a subjetividade e a objeti-
vidade. É uma necessidade. Se não for assim, a verdade é impossível. A verdade
pressupõe que o sujeiro conhecedor da verdade e o objero conhecido esrejam, de
certa forma, no mesmo e único lugar.

Entretanto, não se pode concluir dessa análise a existência de um ser separado.


Toca-se aí na segunda parte do argumento. E aí não mais podemos seguir o realis-
mo medieval. O assim chamado argumento ontológico é uma descrição
fenomenológica da mente humana, na medida em que a mente humana necessari-

171
CAPÍTULO III

amente vai na direção de algo além da subjetividade e da objetividade que é a


experiência da verdade. Se Forrnos além disto, expomo-nos à crítica devastadora
como tão bem nos mostra a história do argumento ontológico. A história deste
argumento depende da atitude em relação à forma ou conteúdo. O argumento é
aceitável se ressaltarmos o seu COfltetldo, como o fizeram os grandes agostinianos c
franciscanos até Hegel. Mas não se mantém, se a forma é sublinhada, como fizeram
pensadores igualmente importantes desde Tomás de Aquino até Kanr. É curioso
que este argumento persista desde Platão até nossos dias. Anselmo foi quem nos
deu a sua mais clássica formulação. Como é possível que pensadores de tão alto
nível se dividam a respeim dcste argumento~ Dificilmente alguém diria que Tomás
era mais arguto que Agostinho, ou que Kant fosse mais inteligente que Hegel, c
vice-versa. Foram mentes altamente privilegiadas e, no entanto, em contradição
entre si. Como se explica esse fenômeno? A razão é que cada lado estava buscando
coisas diferentes. Os que aceitam o argumento entendem que há na mentc huma-
na, apesar de sua finidade, algo incondicional. A descrição deste elemento incondi-
cional não é um argumento. Estou entre os que afirmam o argumento ontológico
nessa forma descritiva. Por outro lado, gentc como Tomás, Duns Escoto e Kant
rejeitam o argumento só porque a conclusão não é válida. É claro que eles têm
razão. Mas estou tentando sair desse conflito histórico - mundial - cujas conseqüên-
cias são bem maiores do que as indicadas em sua forma escolástica - mostrando que
esses pensadores estavam buscando coisas diferentes. Os defensores do argumento
perceberam que a mente humana, mesmo antes de se voltar para o mundo fora
dela, tem em si a experiência do incondicional. Os opositores estão certos quando
dizem que a segunda parte do argumento é inválida, porque não consegue afirmar
a existência de um ser superior. O argumento de Kant de que a existência não se
deriva do conceito é absolutamente válido. Assim, diríamos: a intenção de Anselmo
jamais foi vencida, isto é, tornar a certeza de Deus independente de qualquer en-
contro com o mundo, ligando-a apenas à nossa auroconsciência.

Eu diria que neste ponto os dois caminhos da filosofia da religião se separam.


Um deles compreende autonomamente a cultura, a natureza e a história, baseado
na percepção do incondicional. Para mim é a única filosofia da religião possível. O
outro compreende tudo isso - cultura, natureza e história - em termos de coisas
dadas de fora, a partir das quais, por meio de análise progressiva, se pode finalmente
alcançar a existência desse ser superior chamado Deus. Essa é a forma que cu não
aceito. Acho que não há esperança nesse procedimento e que, por fim, é nocivo à
religião. Falando do ponto de vista da religião, eu diria que onde Deus não for o

172
o MUNDO MEDIEVAL

prius de qualquer coisa, jamais ele será alcançado. Se não se começa com Deus, não
se chega a Deus. Foi o que sentiu Anselmo quando percebeu a patcialidade do
argumento cosmológico.

Anselmo é também conhecido em teologia pela aplicação de seus princípios à


doutrina da expiação. Em sua obra, Cur Deus Homo? (Por que Deus-Homem?),
procura entender a adequação racional do sofrimento vicário (substitutivo) de Cris-
to na obra da salvação. Essa doutrina foi expressa por ele da seguinte maneira:

1. A honra de Deus foi violada pelo pecado humano. É necessário, por causa
disso, que Deus reaja negativamente.

2. Há duas possibilidades de reação divina: pumçao, acarretando separação


eterna de Deus, ou satisfação, com a reparação do pecado e o conseqüente perdão
de Deus.

3. O homem é incapaz de oFerecer essa satisfação, porque só pode fazer o que


está a seu alcance e não mais. Além disso, sua culpa é infinita, tornando impossível
a solução do problema, por causa da natureza da culpa.

4. Por ourro lado, porque o homem pecou, é ele, e não Deus, que deve dar
satisfação. Portanto, somente quem for Deus e homem é que deve fazê-lo, pois
enquanto Deus pode e enquanto homem deve. Somente o Deus-homem é capaz
disso.

5. No entanto, o Deus-homem não podia oferecer essa satisfação por meio de


seus atos, posto que de qualquer maneira já os tinha que fazer em obediência a
Deus. A satisfação só seria possível por meio de seus sofrimentos, pois não precisava
necessariamente sofrer. Ele era inocente. Assim, por meio desse sofrimento voluntá-
rio é que Cristo oferece satisfação a Deus.

6. Embora o nosso pecado tenha sido infinito, esse sacrifício - feito pelo pró-
prio Deus - foi também infinito. Então Deus pôde dar a Cristo o que merecia em
virtude de seu sacrifício, isto é, a posse dos homens. Mas Cristo não precisava de
nada. Mas necessitava e desejava para si a humanidade. Foi o que Deus lhe deu.

Por detrás deste pensamenro, legalista e quantitativo, percebe-se uma idéia


bastante profunda: o pecado produziu uma tensão no próprio ser de Deus. Ele
sentiu essa tensão. A teoria de Anselmo tornou-se popular porque as pessoas senti-
am que o perdão dos pecados por Deus não era coisa fácil, da mesma forma como
não é também fácil aceitar-nos a nós mesmos. Essas coisas só se tornam possíveis

173
CAPÍTULO III

por meio de sofrimento e autonegaçâo. Aí está o poder dessa doutrina da expiação


de Cristo. A igreja nunca dogmatizou o ensino de Anselmo. E fez bem, porque não
existe nenhuma doutrina final da expiação. Abelardo, como veremos, Orígenes e
outros expuseram diferentes teorias da expiação. A igreja nunca tomou decisões a
respeito, mas é óbvio que goStou mais da teoria de Anselmo, por causa de suas
profundas raízes psicológicas. Essa teoria revela o sentimento de que sempre se deve
pagar pelas culpas e que quando não podemos fazê-lo é Deus quem paga.

Mas surgiu outra questão: de que maneira o homem participa nessa história? A
mente jurídica de Anselmo não sabia responder. Nesse momento, intervém Tomás
de Aquino: o homem pode participar em todos os a!.9_~_de Iei!:!§~R9.!: __ I~.leio .da união
mística entre a cabeça e os membros, entre C~isto e a igreja.

H. Abelardo de Paris

Discutimos o pensamento de Anselmo de Cantuária qualificando-o de tipica-


mente teônomo, no sentido em que não violenta a razão com a autoridade
heterônoma, e também no sentido em que não a deixa vazia e improdutiva, mas a
preenche com a substância divina dada por meio da revelação, da tradição e da
autoridade. Anselmo representa o pólo mais objetivo do pensamento medieval, no
sentido em que a tradição é o fundamento dado, sem excluir, no entanto, certo tipo
de busca e reflexão intensamente pessoais. Por outro lado, Abelardo de Paris repre-
senta o lado subjetivo que leva em consideração a vida pessoal, enquanto realidade
subjetiva e não mero desejo vago. É pena que os termos "objetivo" e "subjetivo" se
tenham tornado indefinidos e prejudicados em todos os aspectos. Não deveríamos
dizer que as coisas objetivas são reais e verdadeiras em oposição às subjetivas, apenas
fantasiosas. O termo "obietivo~__ .~ig,.~ific~ __!?:.~~_E2n.~~_::<-~.o medieval a substânc::.~.. ?~~a
da Bíblia? da tradição. e da.~~~?-~i4~~~.:-9 termo .:~~~bjetivo" se refere ao q_~~..:.._~_~
_ ~ece_~~~~,!~~:.~_~?!! __~.9~e, como tal, é exp~rime,:(ado e discutido.

Abelardo era um filósofo e teólogo do século doze, que viveu à sombra da


catedral de Notre Dame, em Paris. A subjetividade, característica de sua atitude
espiritual e personalidade, transparece nos seguintes pontos:

1. Abelardo mostrava-se entusiasmado com o .~_~~ª!TIe!l~2._4j~létic()_, desco-


brindo afirmações e negações em todas as coisas. Não gostav~__ E~.9.~~_aceitavam os
~istériQ.S da (ésem entende, o significado das palayr.,; utilizadas para expressá-los.

174
Não queria deduzir esses mistérios da razão, mas compreendê-los com a razão.
Naturalmente, sempre haverá o perigo de se esvaziar o mistério, mas esse perigo
também ameaça o próprio pensamento. O pensamento, uma vez começado, inevi-
tavelmente acaba com a imediatez da vida. A questão é se é possível chegar-se a um
tipo mais alto de imediatez. Esse raciocínio também se aplica às aulas que vocês
ouvem aqui. Ouvi-las significa expor-se a diversos perigos. É por isso que muitos
dos fundamentalistas não gostariam de ver seus futuros teólogos educados num
lugar como o Seminário Unido de Nova York que, como Abelardo, gosta do pensa-
mento dialético. Mas se não se passa esse risco, a fé jamais virá a ser verdadeiro
poder.

2. Abelardo representa o pensamento jurídico introduzido no cristianismo oci-


dental por Tertuliano. Representava, digamos, o advogado que defende o direito da
tradição ao demonstrar que as condições visíveis em suas origens - inegáveis - po-
dem ser resolvidas. E assim ajudava a igreja; mas, naturalmente, a mesma dialética
capaz de defender pode também atacar. Alguns teólogos tradicionalistas percebe-
ram esse perigo antes dele se tornar real. É por isso que certos teólogos, mais ou
menos orto4.~~, n~og<?_s~Cl:!l.1_de <l:P'C?log~ti<:~.;,.9.~,_'!1_~~mo~mei()~_!l:§3.iº~_t;!1!.JavºE_A2
cristianism~J~()dem igualmente servir para _atacá-lo.

3. Abelardo era uma pessoa devotada à intensa reflexão. Tratava-se de um even-


to bastante novo numa época tão objetiva no sentido de se relacionar com os con-
teúdos e não com o eu. Abelardo não estava apenas interessado no compromisso
com a verdade e com a bondade, mas no compromisso em si. Todos nós sabemos do
que se trata; temos, por exemplo, o sentimento de arrependimento. e refletimos
sobre esse sentimento. Experimentamos a fé e pensamos a respeito dessa fé experi-
mentada. Trata-se de uma atitude caracteristicamente moderna que apareceu pela
primeira vez com Abelardo. É dessa perspectiva que se pode entender sua famosa
autobiografia, História Calarnitaturn (História das minhas desventuras). O título
está na mesma linha das Confissões, de Agostinho. mas Abelardo não se analisa na
presença de Deus, como Agostinho. Escreve em relação consigo mesmo e com as
experiências havidas. O título revela o perigo com que vivemos, enquanto homens
modernos. Quando Agostinho fala de confissões, relaciona-se com Deus ao se exa-
minar. Mas quando Abelardo fala de "desventuras" ou "calamidades", já demonstra
certo sentimento de ressentimento, sinal de subjetividade. Essa atitude de Abelardo
apoiava-se em sua tremenda ambição, sua falta de consideração para com os outros,
especialmente seus professores, e seus constantes ataques às autoridades.

175
CAPÍTULO III

4. Essa subjetividade aparece também no domínio do sentimento. Abelardo


foi um dos seus descobridores. Exemplo disso foi seu romance com Heloísa, com
toda a tragédia e grandeza da forma romântica do amor, embora muito tempo antes
de seu desenvolvimento no romantismo. Representou a descoberta do eros contra
dois fatores até então predominantes, a autoridade paternalista e a mera sexualida-
de, sem qualquer re1acionamenro com as relações pessoais, permitida e limitada
pela igreja, e assim utilizada na família paternalista. Em vez disso, as dimensões
sexuais e espirituais se unem no romance de Abelardo e Heloísa. Tratava-se de algo
novo e ameaçador, nessa época em que as tribos bárbaras mal começavam a se edu-
car e a receber o Evangelho. Abelardo estava, por assim dizer, além de seu tempo.

Sua obra, 5ic et Non (Sim c Não), empregou um método dialético bem mais
antigo do que Abelardo. Vinha da literatura canônica (da lei sagrada) na jurispru-
dência eclesiástica. Os advogados papais procuravam harmonizar os decretos dos
diferentes papas e sínodos. Os papas e seus conselheiros precisavam tomar decisões
que não entrassem em conflito com a tradição da lei. Assim, a lei precisava ser
harmonizada. Entretanto, as decisões dogmáticas de papas e sínodos faziam parte
dessa lei canônica, e também tinham que se submeter a esse "sim e não". Ao escrever
seu livro, Abelardo queria apenas harmonizar as doutrinas, e não revelar diferenças
dogmáticas para despertar dúvida e ceticismo. Ao contrário, queria mostrar que a
unidade se mantinha na tradição e quc isso podia ser provado com os métodos da
harmonização. As autoridades eclesiásticas aceitaram essa argumentação porque
prccisavam dela; na verdade, todos os escolásticos aceitaram o método do "sim" e do
"não" de Abelardo. Faziam perguntas, colocavam as respostas em questão, discuti-
am os pontos de vista opostos, e finalmente chegavam à conclusão.

o primeiro momento desse método consistia em tratar, historicamentc, os


textos dos pais, dos sínodos, dos decretos e da Bíblia. Questionava-se, naturalmen-
te, a autenticidade dos textos. Em seguida, era preciso demonstrar em que situações
históricas e sob que condições psicológicas esses textos haviam sido escritos. Todas
as modificações existentes tinham que ser examinadas. Era preciso investigar e des-
crever a esfera e a configuração em que tais modificações teriam ocorrido na obra de
um mesmo autor. Corno resultado, o que parecia contradição poderia nada mais ser
do que diferentes formas da expressão da mesma idéia. Muitas vezes, na história do
pensamento, os conceitos só são contraditórios quando tomados em si, fora da Gesta/t,
da estrutura à qual pertencem. Debaixo dessa aparência contraditória, na verdade
estão dizendo a mesma coisa.

17G
o MUNDO MEDIEVAL

o segundo momento era a elaboração do significado literal das palavras - tarefa


filológica. Com isso se podia alcançar diferentes sentidos no uso da mesma palavra,
mesmo na obra de um mesmo autof..:...Ienh9 deS.f.QQe;rto, constantemente, ..emmi~
nhas aulas que C? . ..E..ro~.!,~Il!.~ s,~~~~,ântico é .E.E~~.?~~~.~,:_~,~:,_Q.':!.~~_99._~_IE-.E~9 palavras
como "fé" ou. "filho ~~_º~_~s", <:.l.~~ têm tantos significados gU<!I).i9~ são os alunos na
sala, cada um com ~~ll próprioll~,~_~i_~:_;: se cu pergunto: há qualquer perigo neste
método de análise semântica, ou mais amplamente, até que ponto o cálculo lógico,
e a purificação c a redução semânticas podem ser aplicadas ao conteúdo da mensa-
gem cristã? Então, teria que dizer que não, que não há nenhuma possibilidade de
aplicá-lo, porque, ao tratar com elementos existenciais, as palavras têm algo que as
faz o que são, dando-lhes cor e poder; se reriramos essas particularidades das pala-
vras, Hcamos apenas com uma espécie de osso conceitual, sem carne e sem pele. É
por isso que as críticas dos positivistas lógicos não me convencem, não obstante o
meu interesse por semântica. Acredito que se levassem às últimas conseqüências o
que dizem, todas as palavras usadas na teologia, na metafísica, na ontologia, na
teoria da arte, e na história, perderiam o pleno sentido e se reduziriam a SInaiS
matemáticos destituídos do poder e do significado que possuem.

Vem, em seguida, a aplicação da autoridade da Bíblia como supremo critério.


Essa aritude parece protestante, como boa parte do biblicismo da Idade Média,
mas não é. Abelardo não falava a partir de uma nova experiência da Bíblia, como
Lutero. Tratava-se, antes, da aplicação da Bíblia em forma de lei, como se fosse o
supremo juiz; coisa bem diferente da interpretação prorestante da Bíblia, como
lugar do encontro da mensagem da justificação. Em Abelardo, a relação legalista
com a tradição é diferente do tradicionalismo criativo de Anselmo. Embora fosse
menos dialético do que Abelardo, Anselmo foi mais criativo e até mesmo mais
corajoso e, ao mesmo tempo, mais sensível à substância da tradição.

Abelardo demonstra subjetivismo em todas as suas doutrinas éticas e teológi-


cas. Sua doutrina da autonomia ética relaciona-se com a razão subjetiva. Foi um
verdadeiro predecessor de Kant, apesar da enorme diferença de tempo e situaçáo.
Os atos não eram bons nem maus em si. A intenção é que os qualificava. Kanr dizia
a mesma coisa - nada é bom a não ser a boa vontade. Assim, Abelardo considerava
o ato, em si, indiferente; apenas a intenção era decisiva. "O mérito está na inten-
ção". Portanto, ~~_~..,!1g_,~.J~.~_p_~<:_~4gres não é a nature~~~. _ ~_~m ':::~~f!2:~.~._4~sejo, mas
~J.in~1JçãQ. a ~QJ)t.~d~~ Os conteúdos de qualquer sistema moral não são importan-
tes; o que importa é se a consciência está ou não de acordo com eles. Esses conteú-

177
CAPÍTULO III

dos sao, pois, sempre questionáveis quando aplicados a situações concretas. Jamais
poderão ser absolutizados. A consciência haverá de ser o guia. O bem perfeito,
naturalmente, será a exata correspondência entre a norma objetiva e a intenção
subjetiva, desde que a consciência esteja de acordo com o que é certo. Mas, em
geral, esse não é o caso. Quando não for o caso, é melhor seguir a consciência
mesmo quando estiver objetivamente errada. Para Abelardo, "não há pecado a não
ser contra a nossa consciência". De certa forma, até Tomás de Aquino aceitava essa
noção. Dizia: "se algum superior de minha ordem, a quem jurei obediência, me
pedir para fazer alguma coisa contra a minha consciência, eu não o farei, embora
esteja obrigado a obedecê-lo". A consciência era considerada o juiz supremo mesmo
quando objetivamente errada. Essas formulações anteciparam os protestantes e Kant,
muito embora na época de Abelardo não funcionassem, porque ele se descuidara do
elemento educacional. Se as massas sem educação fossem ensinadas a seguir a cons-
ciência, sem quaisquer normas estritas suficientemente objetivas, certamente se
perderiam. Sobre esse e outros temas, Abelardo antecipou idéias que mais tarde
vieram a se impor, como, por exemplo, na França do século dezoito.

Abelardo negava que todos pecaram em Adão. O pecado não era sensualidade;
era aro da vontade. Não há pecado sem a concordância da vontade e, posto que não
concordamos com a nossa vontade quando Adão pecou, o seu pecado não é pecado
para nós. Vemos aí a maneira como a subjetividade, precisamente como no século
dezoito, dissolveu a doutrina do pecado original, porque essa doutrina revela o lado
trágico do pecado, que é objetivo e não pessoal e subjetivo.

Na cristologia, Abelardo dava importância à atividade humana de Cristo, ne-


gando de modo radical que Cristo fosse um deus transformado, o Lagos, ou o mais
sublime ser divino.~2.l]-.?i~L~::~ decisiv~.._a~iyidadepessoal de Cristo e nã_?_~
~rigem_.?~lt?}?g~.ca ..em Deus.

Ele é melhor conhecido entre os protescantes que o citam bastante por causa de
sua idéia de salvação. Como vimos, Anselmo, na sua doutrina da expiação, faz um
trato entre Deus c Cristo, a partir da situação produzida pelo pecado humano.
Descreve a expiação em termos quantitativos de satisfação. Abebrdo, no entanto,
acredita que na cruz de Cristo é o amor de Deus que se torna visível, produzindo,
por sua vez, o nosso amor. Não tem nada a ver com mecanismos objetivos entre
poderes transcendentes para a concessão do perdão divino, como em Anselmo. O
ato subjetivo do amor divino evoca em nós o responso do amor. A salvação é a

178
o MUNDO MEDIEVAL

resposta etlca e pessoal ao perdão procedente do amor divino. Esta é apenas uma
das doutrinas da expiação. Situa-se no centro da pessoa. Não se admite qualquer
tipo de sofrimento substitutivo. A doutrina de Anselmo situa-se no ambiente mi-
tológico em que Deus e Cristo estabelecem acordos; Cristo se sacrifica, mas recebe
certas vantagens de Deus, em troca. Neste sentido, Abelardo é pré-protestante e
pré-autônomo. Trata-se da subjetividade da razão e da personalidade interior. Mui-
tas das idéias de Abelardo foram rejeitadas. Ele viera cedo demais em relação à
situação educacional da igreja. Por exemplo, se dissermos a nossos catecúmenos que
o ato da confissão (isto é, do arrependimento) só é válido se tiver nascido de nosso
amor por Deus, e não por causa do temor, acabamos com os efeitos educativos da
pregação da lei. Abelardo, enquanro teólogo, não pensava sobre o que era bom para
o povo, mas sobre o que era verdadeiro, em última análise, e bom para os autôno-
mos. Embora muitas de suas doutrinas tenham sido rejeitadas, tornou-se um dos
mais influentes pensadores no desenvolvimento do escolasticismo, graças à grande-
za de seu método dialético.

I. Bernardo de Claraval

Bernardo de Claraval, que viveu no mesmo século de Abelardo, rebelou-se con-


tra ele por não aceitar a aplicação da dialética às doutrinas cristãs. Foi o mais emi-
nente representante do misticismo cristão. Na qualidade de inimigo de Abelardo,
conseguiu que ele fosse rejeitado por um dos concílios da igreja. Contudo, só foi
adversário de Abelardo num certo sentido, pois aceitava seu lado subjetivo em ter-
mos de experiência mística. Queria que as doutrinas cristãs objetivas e as decisões
dos pais e dos concílios da igreja fossem elementos apropriados pessoalmente pelos
fiéis. A diferença entre ambos é que enquanto Abelardo pretendia essa apropriação
em termos racionais, Bernardo a queria em termos da experiência mística. Essa
experiência baseava-se na fé, como pensavam em geral os teólogos medievais, e a fé
era entendida como antecipação da vontade. Bernardo expressava, certamente, o
voluntarismo de Agostinho. A fé é ousada e livre, antecipando algo que poderia se
tornar pessoalmente real apenas numa experiência completa. Não se recebia a certe-
za no ato de fé; tratava-se de ousada participação de um estado capaz de ser alcan-
çado. Era criada pelo Espírito divino, e conflfmada pela experiência subseqüente.

179
CAPÍTUI.ü III

Entretanto, o mlStlCISmO de Bernardo foi mUlto mais importante e influente


do que as idéias que se sobrepuseram à escola franciscana e boa parte do pensamen-
to medieval a respeito da fé. Num seminário sobre misticismo cristão, tratamos
dessa pergunta: "Pode o misticismo ser batizado?" Poderá ser cristão? O misticismo
é muito mais antigo do que o cristianismo e muito mais universal. Que relação
pode haver, então, entre misticismo e cristianismo? Em nosso seminário, chegamos
à conclusão de que o misticismo pode ser batizado se puder se transformar num
misticismo concreto ao redor de Cristo, semelhante ao que encontramos em Paulo
- participação no Cristo enquanto Espírito. Foi precisamente o que fez Bernardo de
ClaravaL A importância de Bernardo está em ter sido o pai que batizou o misticis-
mo e o desenvolveu enquanto misticismo cristão. Muito embora muita gente ale-
gue, como os barthianos, que cristianismo e misticismo são duas coisas diferentes,
que não se pode ser cristão e místico, e que os esforços para batizar o misticismo ao
longo de tantos anos estão errados, a verdade é que Bernardo demonstrou a existên-
cia de um misticismo cristão baseado no amor. Somente nesse misticismo do amor
é que pode haver misticismo cristão.

o misticismo de Bernardo tem dois tipos de conteúdo. O divino se faz trans-


parente, em primeiro lugar, por meio da pessoa de Jesus, segundo o relato bíblico.
A ênfase recai em sua humildade e não em exigências éticas, embora essas possam
vir depois. Nós participamos, por meio dele, na realidade de Deus. A nossa cami-
nhada com Jesus é, portanto, de natureza mística. A maneira como Francisco de
Assis e Thomas a Kempis seguiram Jesus em nada se assemelha à maneira como os
judeus seguem a Moisés; não se trata de uma outra lei, mas de participação no que
Jesus signifIca. Destarte, os místicos medievais superaram a interpretação legalista
da obediência a Cristo. Não podemos seguir a Cristo sem essa participação mística,
que é dinâmica e não estática. Este misticismo de amor, concreto e ativo, é o pressupos-
to do segundo tipo de conteúdo no misticisn10 de Bernardo. Trata-se de um misti-
cismo abstrato, porque faz abstração das coisas concretas. É o misticismo do abismo
da divindade. O misticismo cristão tem em comum com as demais formas de mis-
ticismo este lado da experiência mística. Há três passos, segundo Bernardo:

1. Consideração (olhamos as coisas de fora; elas permanecem objetos de nossa


su bjctividade).

2. Contemplação (participação no "templo", no santo dos santos).

3. Excessus (sair de si, numa atitude que excede a existência normal, em que o

180
o MUNDO MEDIEVAL

homem é levado para fora de 51 sem se perder a si mesmo; chama-se também de


raptus, ser tomado).

No terceiro estágio o homem vai na direção da divindade, como a gota de


vinho que cai no copo já com vinho. A substância permanece, mas a forma da gota
individual se dissolve na forma divina abrangente. Não se perde a identidade, mui-
to embora ela se torne parte da realidade divina.

Essas duas formas de misticismo devem ser sempre distinguidas: misticismo


concreto, de amor e de participação no Deus salvador; c misticismo abstrato, trans-
cendente, que vai das coisas finitas ao fundamento último do ser. Examinando essas
duas formas, podemos dizer que, pelo menos nesta vida, o misticismo de Bernardo
permanece dentro da tradição cristã. Já no segundo tipo, o amor de que fala seria
impossível na eternidade. Embora devêssemos acrescentar que Paulo disse algo se-
melhante ao afirmar que Deus será tudo em todos. Queria dizer que na esfera do
supremo, não se pode pensar apenas em termos de indivíduos separados, embora se
pense ainda em termos de amor. Coisa nada fácil. De qualquer forma, o fato decisi-
vo é que Bernardo difere do Pseudo-Dionísio ao afirmar o misticismo do amor
concreto, em Cristo. Trata-se, por certo, de misticismo, porque nllStlCISmo é partl-
cipação, e participação envolve identificação parciai.

Ao chegarmos ao final desta discussão sobre este período da Idade Média, pre-
cisamos ainda mencionar Hugo de São Vitor, que foi o teólogo mais influente do
século doze. Realizou o pensamento sistemático bem mais que Anselmo, Abelardo
e Bernardo. Em seu livro, Os sacramentos da fé cristã, empregou a palavra "sacramen-
to" em sentido muito amplo. Referia-se a todas as obras de Deus e a todas as coisas
transparentes ao divino. As obras de Deus se dividem em dois grupos: opera
conditionis, obras de condição, e opera reparcztionis, obras de reparação. Essa divisão
nos ajuda a perceber com mais profundidade a vida medieval. Todas as coisas são
formas visíveis de seu fundamento invisível. Não se trata de panteísmo porque não
obstante todas essas obras serem sacramentos, elas se concentram em apenas sete. A
idéia de sacramento torna-se muito dinâmica porque os sacramentos não são apenas
realidades físicas, mas também atos divinos. Temos, assim, uma interpretação do
mundo na forma sacramental dinâmica, ao redor dos sete sacramentos da igreja, da
missa, e da penitência, em particular.

181
CAPÍTULO 1II

J. Joaquim de Fiori

A interpretação da história de Joaquim de Fiori exerceu enorme influência na


Idade Moderna e, ainda, persiste no pensamento moderno. Joaquim foi abade de
um mosteiro na Calábria, no sul da Itália. Em seus inúmeros livros, desenvolveu
uma filosofia da história alternativa à de Agostinho, que veio a servir de base para a
maior parte dos movimentos revolucionários na Idade Média e nos tempos moder-
nos. A interpretação de Agostinho fundamentava os movimentos mais conservado-
res da época. Quero confrontar a interpretação de Joaquim com a de Agostinho.

A filosofia de Agostinho vê o reino de Cristo, o período de mil anos, no tempo


presente, identificando-o com o controle desse período pela hierarquia e pelas gra-
ças divinas. O poder sacramental da hierarquia faz com que seja meio imediato de
Cristo de tal maneira que o milênio, a monarquia de Cristo, acaba sendo a monar-
quia da igreja. Sendo esse o último período, segundo Daniel, não haverá outro
futuro; os mil anos estão aqui e é neles que vivemos. A igreja só pode ser criticada
enquanto corpo misto. Os seus fundamentos, que são finais, não podem ser critica-
dos. Foi assim que Agostinho anulou a ameaça do milenarismo - a doutrina dos mil
anos - que colocava o milênio no futuro, à luz do qual a igreja e a hierarquia podiam
ser criticadas.

Joaquim renovou a idéia dos mil anos de Cristo ainda no futuro. Falava de três
dispensações, que se desenrolam na história, caracterizadas por figuras históricas. O
primeiro período teria ido de Adão a João Batista, ou a Jesus Cristo; seria a era do
Pai. Mas Cristo a superara. O segundo período teria decorrido do rei Uzias (Is. 6)
até o ano 1260 de nossa era. Segundo as genealogias do Antigo Testamento, esse
período abrangeria quarenta e duas gerações. A terceira dispensação, iria de Benedi-
to (ou Bento) no século VI depois de Cristo, com o surgimento do monasticismo
ocidental, de novo até o ano 1260. Chamava-se era do Espírito e seu cômputo se
baseava na existência de vinte e uma gerações depois de Cristo.

A construção dessas dispensações parece demasiadamente artificial. H<Í C01l1C1-

dências entre elas. A segunda coincide com a primeira a partir da época de Uzias até
o nascimento de João Batista ou de Jesus. A segunda coincide com a terceira a partir
de Benedito até o ano 1260. Que querem dizer essas coincidências~ Na verdade,
uma profunda compreensão do desenvolvimento histórico. Os períodos históricos
nunca são perfeitamente delimitados, demonstrando certas coincidências. Não se
pode falar, a rigor, do "fim do período gótico" e do "começo da Renascença", nem

182
o MUNDO MEDIEVAL

do "fim da Renascença" e do "começo do Barroco", ou do "fim do Barroco" e do


"começo do Rococó" etc. Cada novo período é concebido e nascido no ventre do
período anterior. Ninguém teve mais consciência disso do que Karl Marx, quando
elaborou sua interpretação da história, descrevendo a maneira como cada período
era gerado no ventre do anterior - por exemplo, o socialista no ventre do burguês, e
este no ventre do último período feudal. Como no nascimento, há um certo tempo
em que a mãe e o filho convivem no mesmo corpo. Segundo essa idéia de coincidên-
cia, os germes da nova era são anteriores ao que ele chama de fructificatio (frutificação),
realização matura. Nenhum período já é maturo desde o começo. Nesse esquema
trinitário aplicado à história, o período subseqüente sempre está presentc no ante-
rior por certo tcmpo. Assim, Cristo se faz presente ao mesmo tempo nos três perí-
odos da história, embora a história prossiga depois dele. É o mesmo problema
encontrado no quarto Evangelho, se o Espírito vai além de Cristo. O quarto Evan-
gelho decide duplamenre: por um lado, decide parcialmente pelo Espíriro além de
Cristo, quando afirma que muitas coisas ainda não podiam ser ditas, e que o Espí-
rito haveria de vir para nos ajudar; por outro lado, o Espírito não age por si mesmo,
mas procede de Cristo, presente no segundo período, que é o período do Filho.

Essas idéias sobre o significado do desenvolvimento histórico devem ser levadas


a sério. Não devem ser rejeitadas por causa desses nomes do Antigo Testamento que
são, certamente, arbitrários. Qualquer historiador sabe que as periodizações da his-
tória sempre são arbitrárias. Os historiadores nos dirão quc o período chamado de
"Renascença" só foi conhecido por algumas pessoas - arristas, estudiosos e políticos
na Itália, depois na Inglaterra, na Holanda e na Alemanha. As massas populares
continuavam a viver sob as condições predominantes no século anterior.

Como se caracterizavam essas etapas? Joaquim, observador profundo que era,


sabia que o primeiro estágio deveria ser determinado sociolo~ame~1te.~esseperí-
odo o matrimônio era a forma social mais importante; o trabalho c a servidão (es-
cravatura, feudalismo ctc.), a econômica. O período, religiosamente, era o período
da lei. No segundo p~ríodqLil impgç.~nciare_<:~i.§_?QE~_Q.S~~roe a igreja orKagjza4~.
A realidade sacramental torna a lei desnecessária; por causa da graça, é a época da fé
e não das boas obras. Não é uma época de autonomia, mas de um clero que repre-
senta para todos a presença do divino. O terceiro período é monástico. O ideal
monástico toma conta da humanidade e cessam as novas gerações. Será, necessaria-
mente, o último período. As graças concedidas, neste período, pelo Espírito Santo
ultrapassam as graças sacramentais do segundo período e são ainda superiores à lei

183
CAPÍTULO 111

do primeiro período. Se o segundo período já se preparara no judaísmo, com algu-


mas graças sacramentais, o terceiro foi preparado na história da igreja, com a funda-
ção do monasricismo. A liberdade, ou autonomia, está no centro deste período.
Não há mais submissão ao estado nem às autoridades eclesiásticas. A contemplação
passa a ser considerada a atitude carreca em vez das obras, e o amor, em lugar da lei.

Ternos, assim, lima compreensão sociológica dos diferentes períodos da histó-


na, embora a sociologia não seja a "causa" de rodas as coisas, como no marxismo,
mas sua condição necessária. Ao mesmo tempo, é uma interpretação da religiao que
deixa clara a diferença entre as obras (sob a lei), graça aceita pela fé, e a liberdade
autônoma vivida em contemplação e amor. O esquema é rrinitário; o elemento
dinâmico, implícito na teologia trinitária se horizontaliza e se transfere para o mo-
vimento da história. Nessa horizontalização da idéia trinitária, o Pai, o Filho e o
Espírito assumem diferentes funções na história. Naturalmente, os três estão sem-
pre presentes - Deus não pode ser dividido - mas cada um com ênfase diferente.
Isso quer dizer que algo ainda está por ser feito. A sociedade do Antigo Testamento
e a do Novo, que é a igreja, são criticadas a partir dessa medida.

Outra idéia é que a verdade não é absoluta, mas válida na sua época - bonum et
necessarium in suo tempore - boa e necessária no seu tempo. Nesse conceito dinâmi-
co, a verdade se modiflca de acordo com a situação. A igreja primitiva sempre apli-
cava esse princípio ao Antigo Testamento. A verdade do Antigo Testamento diferia
da do Novo embora fosse também a palavra de Deus, divinamente inspirada. Le-
vando esse argumento em consideração, os teólogos falavam de dispensações ou
alianças. Usava-se a idéia de !aúros para a afirmação de que assim como os tempos
eram diferentes também havia diferentes verdades. Essa idéia contrariava o absolu-
tismo da Igreja Católica, identificada com o último período da história, idêntico à
verdade final. Para Joaquim, havia uma verdade superior à da igreja que era a do
Espírito. Por isso a igreja era relativa. Era inter utrumque, entre o período do Pai e do
Espírito. Suas falhas não vêm apenas de deturpações, mas de sua relativa validade.
Nesse esquema, a igreja é relativizada. Somente o terceiro período é absoluto; deixa
de ser autoritário para ser autônomo. Todos os indivíduos têm o Espírito dentro de
si. Assim, o ideal do cristianismo situa-se no futuro e não no passado. Chamava-o
de intelfectus spiritualis e não literaiÍJ, isto é, de intelecto espiritualmente formado e
não dependente de leis literalistas.

Dessa forma, a hierarquia e 05 sacramentos deixarão de existir no futuro. Não

184
o MUNDO MEDIEVAL

serão necessários porque todas as coisas se relacionarão diretamente com Deus por
meio do Espírito, sem o apoio de intervenções autoritárias. Joaquim falava de um
papa angélico que seria mais um princípio do que um ser humano. Uma espécie de
papa que representaria a presença do Espírito sem autoridade. A hierarquia se trans-
formará em monasticis1110 bem como o laicam. Quando isso acontecer, estaremos
no terceiro período. E haverá perfeição, contemplação, liberdade e Espírito. Tudo
isso se dará na história. Para Agostinho, o fim será transcendido; nada novo aconte-
cerá na história. Para Joaquim, o novo se dará na história.

Joaquim também mencionou o "evangelho eterno", que não era um livro. O


evangelho era a presença do Espírito divino nos indivíduos, segundo o profeta Joel,
bastante usado neste contexto. Ti"ata-se de simplex intuitus veritatis, mera intuição
da verdade capaz de ser alcançada por qualquer pessoa sem a mediação da autorida-
de. Liberdade significa a autoridade do Espírito divino em cada indivíduo. Essa
teonomia, preenchida com a presença do divino Espírito, não é racionalista. A his-
tória produz liberdade enquanto progride. A idéia é progressivista; o alvo está adi-
ante.

Essas idéias revolucionárias foram combatidas por Tomás de Aquino, em nome


da igreja. Entende-se. O período clássico da igreja situava-se no passado, não no
futuro. Esse período clássico era a época apostólica. A igreja baseia-se na história:
foi ela que engendrou a igreja, embora a igreja não se limite à história. Transcende
a história porque se acha no seu fim. As idéias de Joaquim são importantes por
causa de seu poder dinâmico, revolucionário e explosivo. Os franciscanos mais radi-
cais utilizaram suas profecias e as aplicaram à própria ordem e, nessa base, se revol-
taram contra a igreja. Diversos movimentos sectários, incluindo as seitas da Refor-
ma de que tanto depende a vida americana, alinhavam-se direta ou indiretamente
ao pensamento de Joaquim de FiorL Os filósofos do iluminismo também depende-
ram de suas idéias ao acreditarem num terceiro período da história em que todos
haveriam de ser ensinados diretamente pela luz interior, a luz da razão. O movi-
mento socialista baseia-se nas mesmas idéias quando na sociedade sern classes todos
serão diretamente responsáveis perante os princípios fundamentais. Não estou que-
rendo dizer que todos esses pensadores tivessem conhecido Joaquim e suas idéias
diretamente, mas que havia uma tradição de pensamento revolucionário, na Euro-
pa ocidental, devedora em muitos aspectos ao pensamento de Joaquim. Boa parte
do lltopianismo americano deve ser entendido à luz desse movimento ocidental.

185
CAPÍTULO [][

Até onde vai o meu conhecimento, esse pensamento revolucionário não aparece nas
religiões orientais, porque, por definição, não são religiões históricas. Em Joaquim,
surge nova compreensão da dialética da história. Sua influência foi mediada pelos
monges franciscanos radicais.

~K. O Século treze

o
século treze é o mais importante da Idade Média. O destino inteiro do
mundo ocidental foi definitivamente decidido nessa época. Todos os escolásticos
dependeram de Pedro Lombardo, que ainda não estudamos, embora tenha vivido
no século doze. Não se mostrou tão original como os outras, mas representa o tipo
sistemático e didático da Idade Média. Organizou as sentenças dos pais numa obra
denominada, Os quatro livros de sentenças, transformada em livro texto da época, se
é que podemos falar assim. Todos os grandes escolásticos começaram a carreira es-
crevendo comentários sobre as Sentenças de Lombardo.

o século treze pode ser descrito teologicamente em três etapas, representadas


por três nomes: Boaventura, Tomás de Aquino e Duns Escoto. Há outros entre eles
que mencionaremos ocasionalmente. Duns Escoto foi o maior dos três, enquanto
pesquisador e cientista. Muita coisa na época moderna depende dele. Tomás de
Aquino é o pensador clássico da Igreja Romana, constantemente reverenciado ainda
hoje pelo Papa. Boaventura representa o espírito de Agostinho e de São Francisco,
na sua pessoa, no seu misticismo e na sua teologia.

Que pressupostos, no século treze, fizeram desse século o mais importante da


Idade Média? Em primeiro lugar, as cruz~ldas, não por causa de seu signifIcado
político e militar, mas porque proporcionaram o encontro do cristianismo com
duas culturas altamente desenvolvidas, a judaica original e a islâmica. Talvez até se
pudesse incluir aí uma terceira cultura, a saber, a cultura cLíssica da Grécia antiga,
mediada pelos teólogos árabes. Esses encontros, quando sérios, induzem a certa
forma de auto-reflexão. Só quando nos encontramos com outras pessoas é que conse-
guimos refletir sobre nós mesmos. Se não procedermos assim, tampouco olhamos
para nós mesmos. Refletimos ao encontrar resistência. Era o que o cristianismo
tinha que fazer. Começou a refletir sobre si mesmo de maneira mais radical. O
segundo pressuposto foi o surgimento dos escritos genuínos e completos de
Aristóteles, trazendo um sistema filosófico científico, metodologicamente superior
ao da tradição agostinista. Em terceiro lugar, apareceram ordens religiosas novas, a

lR6
o MUNDO MEDIEVAL

dos pregadores e a dos mendicantes, que popularizavam e intensificavam a substân-


cia religiosa. Criaram organizações mundiais em todos os países e discutiam entre si
teologicamente. Não se limitando às fronteiras nacionais, competiam entre si em
escala mundial e elaboravam sistemas teológicos da mais alta qualidade em conflito
um com o outro. Desde o século treze, essas duas ordens se encarregaram do pro-
cesso teológico. Utilizaram Aristóteles, cada qual à sua maneira. Da mesma forma,
se valeram do novo conhecimento do judaísmo e do Islão.

Vamos descrever, agora, essas duas ordens, a franciscana e as dominicanas, as-


sim chamadas por causa de duas notáveis personalidades: Francisco de Assis e Do-
mingos. Francisco continuava a tradição monástica de AgostinhQut: 13.e,rn;:lrd9....:.. Como
eles, acentuava a experiência pessoal, embora introduzisse a idéia da vida ativa em
contraste com a contemplativa. Esse tipo de pensamento, desde o princípio, apro-
ximava-se mais da mentalidade ocidental do que da oriental. Francisco inaugurou
também novo relacionamento com a natureza; não somente as ordens humanas
hierárquicas pertenciam ao poder da vida divina, mas também o sol, as estrelas, os
animais e as plantas. A melhor coisa para entendê-lo é contemplar as pinturas de
Giotto, que retratou quase que só a hisrória de São Francisco, já transformada na
nova lenda sagrada. Francisco acabou sendo o pai da Renascença; abriu a natureza
à religião com o sentimento de fraternidade para com todos os seres. Tornou a
natureza transparenre ao fundamento do ser, fundamento esse igual ao do ser hu-
mano.

Ele cambém ensinava que os leigos devem ser trazidos ao círculo do sagrado. O
clero e os monges eram os vcrdadeiros representantes do sistema sacramental en-
quanto os leigos se mantinham passivos. Para trazer os leigos a esse círculo, fundou
a assim chamada "ordem terceira", os tertiaries. A primeira ordem é masculina, dos
mongcs; a segunda, feminina, das freiras; e a terceira, de leigos que podem se casar
ao mesmo tempo em que aceiram certos princípios. Todas essas coisas foram sub-
metidas por Francisco à auroridadc do Papa. O famoso quadro de Giotto em que
Inocêncio In, o maior dos Papas, e Francisco, o maior dos santos da Igreja Romana,
se encontram, grava um momento clássico da história universal. Contudo, tais ati-
vidades representavam ameaça ao sistema hierárquico. O perigo tornou-se real na
revolução dos franciscanos radicais que procuravam unir Francisco com Joaquim,
protótipos de inümeros outroS movimentos antiec1esiásricos e anti-religiosos. O
princípio leigo era também perigoso para as pretensões absolutistas da autoridade
hierárquica. Além disso, era rambém perigoso o novo relacionamento com a natu-

187
CAPÍTULO lI!

reza e a vIsão do fundamento divino no mundo criado, porque, a longo prazo,


poderiam minar o sobrenaruralismo católico. Geralmente falando, Francisco per-
tencia à tradição cristã da união mística com elementos da cultura c da natureza, a
que pertenceram Agostinho, Anselmo e Bernardo. Contrastando com Prancisco,
Domingos não efa uma personalidade muito original. Tomou sobre si a tarefa de
pregar ao povo e de defender a fé. Tratava-se de algo novo. Domingos queria realizar
essa tarefa por mediação, conversão ou perseguição, isto é, em termos de apologética,
missão ou poder eclesiástico. Dessa maneira, a ordem dos dominicanos tornou-se a
ordem da Inquisição e da Contra-Reforma até ser substituída, mais tarde, pelos
jesuítas. A ordem dos dominicanos produziu o sistema clássico da mediação, da
teologia apologética, que era o sistema de Tomás de Aquino, bem como grandes
pregadores, dentre os quais se destacava Meisrer Eckhart. Mais do que qualquer
outra escola, divulgou Aristóteles no Ocidente. Trabalhou mais com o intelecto,
mesmo quando mística, enquanto a tradição agostinista-franciscana dava mais ênfa-
se à vontade. Entretanto, o voluntarismo dos franciscanos subjugou o intelectualismo
dos dominicanos, abrindo o caminho para Duns Escoto, Ockham e os nominalistas.

Foi nesse ambiente que se desenrolou o século treze. A teologia da época não
pode ser entendida sem constante referência a esses movimentos. Devemos pensar
em Tomás de Aquino como teólogo da mediação. Entendeu melhor do que nin-
guém a função mediadora da teologia. O termo Vcrmittlungstheologie, da teologia
alemã, foi usado no século dezenove de forma depreciativa. Saí em deFesa desse
termo afirmando que a teologia é sempre mediadora; mediadora da mensagem do
Evangelho com as categorias existcnres da compreensão num dado período históri-
co.

__.8- 9.in~nlic:1, da_Id~.de .Mé~ia fói. ~Ieterminadap_~lo conflito entre Agostinl~"o,C-'e_ _


_-..1E~~tó~':"!.~_?n.2u en~re os francisc~nos (lue eram agosrinistas e os dominicanosg.ue_
e:ram aristo.t~li~º~ Esse contraste, no entanto, não deve ser entendido muito restri-
tamente. Pois todos os teólogos medievais eram, substancialmente agostinistas. E, a
partir do século treze, eram carnbém aristotélicos no uso que faziam das categonas
filosóficas. Contudo, essas escolas rllostravam diferentes ênfases que se reRetiam,
desde então, na filosofia da religião.

Examinemos agora o significado de Aristóteles para a Idade Média ao ser des-


coberto, no começo do século treze, com a ajuda dos filósofos árabes.

1. A lógica aristotélica sempre fora conhecida, mas era utilizada como lIlstrU-

188
o MUNDO MEDIEVAL

menta, sem exercer qualquer influência direta sobre a teologia. Quando a obra de
Aristóteles foi descoberta, percebeu-se que era um sistema completo voltado para
todos os domínios da vida - natureza, política e ética. Representava uma visão de
mundo independente e secularizada, com seu sistema de valores e significados.
Perguntava-se: de que maneira um mundo, educado na tradição eclesiástica
agostiniana, poderia enfrentar o sistema secularizado de idéias e significados então
vigentd Assemelhava-se à pergunta levantada pela teologia, em séculos recentes: de
que maneira a revolução científica, iniciada no século dezessete, pode ser mediada
pela tradição cristã?

2. Aristóteles contribuía com categorias filosóficas básicas, como forma e maté-


ria, ato e potência. Vinha com a nova doutrina da matéria, da relação de Deus com
o mundo, tudo baseado numa análise ontológica da realidade.

3. Talvez mais importante ainda tenha sido a sua teoria do conhecimento. A


alma recebia impressões do mundo externo. Aristóteles começava sempre com a
experiência, enquanto para a tradição agostiniana o ponto de partida era a intuição
imediata._.Q~,_~ggst~ian()~..!:~~~~~~.~~.<::J~~~~sim dizer, nO~~!!!E2._~~AL':~I]~~~-':.__
para julgar o mU~~.4o,,_a parti~_daí. Os aristotélic<?~_.t:~.I]_~,e~pl~y-am..2_!l1l!~qºe. con-
.-.9..~li~E~ daí o centro da divindade.

A questão do conhecimento determinou as relações entre esses dois movimen-


tos. Nosso conhecimento vem da participação no conhecimento divino do mundo
c de si mesmo ou, pelo contrário, reconhecemos Deus a partir do mundo fora de
nós? Deus vem primeiro ou no fim do processo do conhecimento? Os agostinianos
entendiam que 9 _ So..Qh~5;:i.~~Ilt~ de peus precedia todos os oU~~()~~5::.oJljl~~i.!!!,=.!.1tOS;
~~inb.a_~~.r.i_meiro lugar e era dele que se partia. Os princípios da verdade já estão
dentro de nós. Deus pressupõe a própria pergunta a respeito de Deus bem como a
questão da verdade. Segundo 13oa"entur<i,. ::De.~~_s~ fa~_~ais verdadeiramente pre-
sente na alma e é imediatamente
----_._._-.-
conhecido".
-
A luz eterna ou divina dentro de nós
é o princípio da verdade. Começa-se aí; começamos pelo conhecimento de Deus e
dele passamos para o conhecimento do mundo, com a ajuda dessa luz eterna ou
divina dentro de nós. Essa luz divina ou princípio divino é universal e faz parte da
transcendentalia, elementos que transcendem rodas as coisas concretas e dadas, como
o ser, a verdade, o bem e o uso. São conceitos supremos dados imediatamente ao
conhecimento por meio da luz divina presente na alma. A verdade do mundo
empírico só se alcança a partir do conhecimento imediato desses mais altos princí-
pios da realidade. Eles estão presentes em todos os atos do conhecimento. fu idéias

189
CAPÍTULO JJ!

da verdade, do bem e do próprio ser ]a estão presentes sempre que dissermos que
alguma coisa é, ou que emitirmos qualquer juízo lógico. Segundo Boaventura, "a
primeira coisa que aparece no intelecto é o ser", que é, por sua vez, a declaração
básica a respeito de Deus. Qualquer ato cognitivo dependia, então, do poder dessa
luz divina. Os franciscanos diziam que essa luz divina e esses princípios eram inatos
e que, portanto, participávamos neles. De certa forma, estavam dizendo que não
existe conhecimento secularizado. Todo o conhecimento acabava dependendo, de
certa forma, do conhecimento do divino dentro de nós. Há, na alma, um ponto de
identidade que precede qualquer ato especial de conhecimento. Diríamos, em ou-
tras palavras, que qualquer ato de conhecimento -- sobre animais, plantas, corpos,
astronomia e matemática - é sempre religioso. As proposições matemáticas e as
descobertas médicas são implicitamente religiosas, porque são possíveis apenas pelo
poder desses princípios absolutos da luz divina inata na alma humana. Essa é a
famosa doutrina da luz interior que também foi utilizada pelos movimentos sectá-
rios e por todos os místicos medievais e da época da Reforma, e que, em última
análise, está por detrás, até mesmo, do racionalismo do iluminismo. Todos os
racionalistas foram filósofos da luz interior mesmo quando mais tarde essa luz foi
cortada de seu fundamento divino.

Eu chamo essa atitude de teônoma. Os franciscanos tentaram manter essa po-


sição teônoma apesar do uso que faziam de conceitos aristotélicos como forma e
matéria, potência e ato. Temos, assim, de Agostinho a Boaventura, uma filosofia
implicitamente religiosa, ou teônoma, em que Deus não é mera conclusão de ou-
tras premissas, mas anterior a elas e até mesmo à sua possibilidade. Em meu artigo,
"Dois tipos de Filosofia da Religião" (em Teologia da cultura), eu chamo esse tipo de
ontológico; poderia também ser chamado de místico ou imediato. Às vezes, o cha-
mo de teônomo para acentuar a precedência do divino sobre o secular.

O tipo oposto é a filosofia da religião de Tomás de Aquino. Ele abandona a


presença imediata de Deus no ato do conhecimento. Naturalmente, reconhece que
Deus é o primeiro em si, mas não em nós.J:~~.2§§-.2~~h~~i!!1_e_ntonãopod.~_~~~·~.E__
com Deus, embora todas ~~~_coisas comece~__~o.~_~I_~lI?_~s o conhecimento .~~.~mano
só chega..E..~~~~~~s efeitos - o mundo finit?:. Começando com os efeitos .4~
----

Deus podemos che~ar à causa, Em outras palavras, o homem está separado do ser,
da verdade c do bem. Tomás de Aquino, por certo, não negava que esses princípios
fazem parte da estrutura do intelecto humano, mas os considerava luz criada e não
inata. Não representavam a presença divina em nós; são, ao contrário, obra de Deus

190
o MUNDO MEDIEVAL

em nós; são finitos. Assim, no ato do conhecimento, não temos Deus, mas por
meio desses princípios podemos chegar a ele. Não começamos com os princípios
divinos em nós c daí descobrimos o mundo finito, como os franciscanos; começa-
mos com o mundo finito e depois, talvez. chegamos ao conhecimento de Deus em
nossos atos cognltIVos.

Em oposição a essa teoria tomista, os franciscanos diziam que este método que
depende da experiência sensorial - bastante aristotélico - era bom para a scientia
(para a "ciência" em sentido amplo), mas destruía a sapientia, sabedoria. Sapientia
era o conhecimento dos princípios fundamentais, o conhecimento de Deus. Houve
até, entre os seguidores de Boaventura, quem vaticinasse a perda desses princípios
se o método aristotélico-tomista viesse a prevalecer com seu ponto de partida no
mundo exterior. Ganhar-se-ia o mundo exterior - pois se sabia que o conhecimento
externo não vinha de outro modo - mas se perderia a sabedoria capaz de apreender
intuitivamente os princípios fundamentais dentro de cada pessoa. Tomás respondia
que o conhecimento de Deus, como qualquer outro conhecimento, devia igual-
mente começar com a experiência sensorial e chegar a Deus na forma de conclusões
raClOnalS.

A divergência entre essas duas posições a respeito do conhecimento de Deus


constitui-se no grande problema da filosofia da religião e, como pretendo mostrar,
é a causa fundamental da secularização do mundo ocidental - estou usando a pala-
vra "causa" no domínio do conhecimento. posto que pode ser empregada noutros
contextos. O método aristotélico foi posto contra o agostiniano e, pouco a pouco,
acabou prevalecendo. Tomás sabia que as conclusões alcançadas dessa maneira não
produziam verdadeira convicção a respeito de Deus muito embora logicamente
corretas. Precisavam, portanto, da complementação da autoridade. Em outras pala-
vras, a igreja tinha que garantir a verdade incapaz de ser alcançada meramente pela
via empírica. A situação era clara: tínhamos em Boaventura o conhecimento teônomo
abrangendo todos os domínios da vida; nenhum conhecimento, no entanto, se
dava sem começar em Deus. Em Tomás, encontramos o conhecimento autônomo,
alcançado pelo método científICO, diríamos. Mas ela sabia que não podia, assim, ir
muito longe, e por isso completava-o com a autoridade. A luta fero? entre os
agostinianos e os aristotélicos, no século treze, só se explica nessa perspectiva. Havia
LIma falha na posição tomista, mas não era ainda visíveL Tomás conseguia superar
essa falha, graças ao seu gênio, ao seu poder de abranger quase tudo, ao seu poder
mediador, e à sua piedade pessoal quase mística, mas a falha continuava e nem o

191
CAPÍTULO IH

próprio Tomás conseguia perceber suas conseqüências. Somente Duns Escoro con-
seguiu, depois, perceber essa falha.

Duns Escoro não era um mediador, mas um pensador radical. Dividiu o que
parecia unido. Lutou contra as mediações de Tomás de Aquino. Tampouco seguiu
os seus antecessores franciscanos. De certa forma, seguia Tomás ao aceitar o
aristotelismo, muito embora se dando conta das conseqüências que Tomás não con-
seguia perceber. Duns Escoro percebia a enorme distância que existia entre o finito
e o inflnito. Portanro, o flnito não podia alcançar Deus cognitivamente, nem em
termos de imediatez, como queriam os antigos franciscanos, nem em termos de
demonstrações, como queriam Tomás de Aquino e os dominicanos. Os nominalistas
apreciam ainda hoje as críticas que Duns Escoto fazia aos princípios fundamentais,
à transcendenfalia. Ele dizia que o ser em si (esse ipsum) é ap'cnas uma palavra; indica
certa analogia entre o infinito c o finito, e nada mais. A palavra "ser" não se aplica a
Deus e ao mundo, ao mesmo tempo. A distância é tão grande que não pode ser
superada com uma só palavra nem mesmo acrescida de verum, bonum e unum (ver-
dadeiro, bom e uno), em termos do próprio ser. Há, portanto, um só caminho para
se chegar a Deus, que é ° da autoridade, ou seja, o caminho da revelação recebido
pela autoridade da igreja.

Como resultado, temos dois posirivismos em Duns Escoto: o religioso ou ecle-


siástico, significando que devemos simplesll1ente aceitar o que a igreja nos transmi-
te, posto que não nos é dado conhecer a Deus cognitivamente; e o positivismo do
método empírico, significando a descoberta do que nos é dado na natureza por
meio dos métodos da indução e da abstração. Nesse momento, a falha de que falá-
vamos se tornou visível. Em Tomás, não havia saída; Duns Escoto descobriu-a e
asslln ela permanece até hoje. Continua sendo o nosso problema, como no século
treze.

, A distância aberta por Duns Escoto veio a alargar-se em um século depois com
Ockham, o verdadeiro pai do nominalismo. Acreditava que Deus não cabia no
conhecimento autônomo; na verdade, estava fora do nosso alcance. Todas as coisas
podiam ser o oposto do que eram. Portanto, Deus só pode ser alcançado sujeitando-
nos às autoridades bíblica e eclesiástica. E isso é possível por meio do hflbitus, do
hábito da graça. Someme pela açáo da graça é que podemos receber a autoridade da
igreja. O conhecimento cultural (ciendfico) é totalmente livre e autônomo; o reli-
gioso, heterônomo. A teonomia original da tradiçao agostiniana-franciscana divi-
diu-se em completa autonomia científica, de um lado, e completa heteronomia

192
o MUNDO MEDIEVAL

eclesiástica, de outro. Essa era a situação dominante, no final da Idade Média.


Tendo se baseado, a Idade Média, num sistema de mediações, chegou ao fim quan-
do esse sistema desmoronou.

Quando comparamos essas pOSlçoes a respeito da questão tradicional sobre a


razão e a revelação. podemos dizer: a razão, segundo Boaventura, só é reve1arária à
medida que os princípios da verdade residem em sua própria profundeza. Natural-
mente, referindo-se ao conhecimento humano de Deus, e não à revelação histórica
de Cristo. Segundo Tomás, a razão era capaz de expressar a revelação. Segundo
Duns Escoro, não. Para Ockham, a revelação coloca-se ao lado da razão c, até mes-
mo, em oposição a ela. No final da Idade Média, o religioso e o secular se separam,
mas não como hoje, pois ainda se queria manter a unidade tradicional. A igreja
chegou, assim, à heteronomia radical, reivindicando poder sobre a totalidade da
vida, e controlando todas as coisas externamente. Em conseqüência, a luta entre o
secularismo autônomo e a heteronomia religiosa chegava às raias do desespero. Esse
período posterior da Idade Média não pode ser confundido com os seus primeiros
tempos. À medida que a tradição conseguiu manter a força, a Idade Média não era
heterônoma, mas teônoma. Mas, no final dessa época, já se estabelecia um
secularismo independente. Indagava-se até que ponto a igreja seria capaz de controlá-
lo. A Renascença e a Reforma é que conseguiram, afinal, interferir no poder da
Igreja.

A teoria do poder duplo apareceu nessa época. Havia gente que pensava seria-
mente - não apenas para ser diplomático, ou para se ocultar - que, de fato, qualquer
declaração sobre um mesmo assunto poderia, ao mesmo tempo, ser teologicamente
verdadeira e filosoficamente falsa, e vice-versa. Dessa forma, era possível aceitar
inteiramente o sistema heterônomo da igreja, ao mesmo tempo em que continua-
vam a desenvolver o próprio pensamento autônomo. Quando proposições filosófi-
cas conflitavam com a tradição tcológica, refugiava-se nessa teoria da "dupla verda-
de". Para outras pessoas, essc procedimento não passava de fuga. Entretanto, se
acreditava que esses dois domínios eram tão separados que se podia muito bem
afirmar num deles o que se negava no outro.

Até aqui estivemos examinando questões epistemológicas. Atrás delas, porém,


residia o problema de Deus. A idéia medieval de Deus tem três níveis.

1. O primeiro e fundamental nível é a idéia de Deus como primum esse, primei-


ro ser, ou prima causa, causa primeira. A palavra "causa", neste contexto, não tem o
mesmo sentido de "causa e efeito" na experiência finita. E a palavra prima não quer

193
CAPÍTULO III

dizer "primeira" em sentido temporal, mas no sentido de "fundamento" de todas as


causas. O termo "causa", então, é utilizado mais simbólica do que literalmente.
Deus é o fundamento criador de rodas as coisas, creatrix universttlium substantia,
substância criadora de rudo o que é. É a primeira afirmação a respeito de Deus.
Deus é o fundamento do ser, como eu gosto de dizer, o própno ser, Oll a causa
primeira; todos esses termos querem dizer a mesma coisa.

2. Essa substância não pode ser entendida em termos de matéfla inorgânIca -


como fogo, água segundo os antigos físicos - nem dentro do campo biológico como
o processo da vida. Deve ser entendida como intelecto. A primeira qualidade de
Deus, enquanto fundamento do ser, é inre1cc(Q. Intelec(Q não é inteligência. Signi-
fica o momen(Q em que Deus é para si mesmo sujeito e obje(Q, ao mesmo tempo.
Significa o conhecimento que Deus tem de si mesmo e do mundo como realidade
fora de si. O fundamento do ser ou, em outras palavras, a substância criadora, é
portador de sentido. Em conseqüência, o mundo é significativo; pode ser entendi-
do por meio de palavras que têm sentido. O Iogas, a palavra, pode apreendê-lo. Para
entendermos a realidade, precisamos pressupor que ela é compreensível. Ela é com-
preensível porque o seu fundamento divino tetn características do intelecto. O co-
nhecimento é possível apenas porque o intelecto divino é o fundamento de todas as
cOIsas.

3. Em terceiro lugar, Deus é vontade. Essa idéia vem _~E-_~~~~~is.ã.o cristã


agostiniana, enguanto a ênfase no intelecto vem da grega_aristot~li.~~:...-Quandose
aplica a Deus e ao mundo o conceito de vontade, ele se refere ao fundamento
dinâmico da realidade, e não à função psicológica observada em nós. A vontade é o
poder produtor do fundamento do ser. Essa vontade tem a natureza do amor - na
boa tradição agostianiana. A substância criadora do mundo tern significado e amor;
é intelecto e vontade, simbolicamente falando. Assim como dizíamos que Deus se
conhece a si mesmo, dizemos agora que Deus quer a si mesmo e se ama como bem
absoluto e, na verdade, como o fim de todas as coisas. E ama as criaturas ao lhes dar
gradualmente o bem que ele mesmo fundamenta. Portanto, todas as criaturas espe-
ram por ele; ele é o objcto de seu amor em que todos os seres vislumbram o bem
supremo.

Essa era a idéia medieval de Deus. Esse Deus não era uma pessoa. A palavra
"pessoa" jamais foi aplicada a Deus na Idade Média. É que os três membros da
trindade eram chamados de personr!e ("faces" ou "semblantcs"): o Pai é persona, o
Filho é persona e o Espírito é persona. Essa palavra, perJOna, queria dizer nesse con-

194
o MUNDO MEDIEVAL

texto certa característica especial do fundamento divino, expressa por meio de uma
hypostasis independente. Podemos, então, dizer que foi o século dezenove que trans-
formou Deus numa pessoa, destruindo com essa linguagem a grandeza da idéia
clássica de Deus. Naturalmente, essa estrutura pessoal que envolve ser, intelecto e
vontade, é análoga à experiência de nosso próprio ser, de tal maneira que se nos
chamamos de "pessoas" podemos igualmente chamar Deus de "pessoa". Mas é bem
diferente de considerá-lo uma pessoa. Em primeiro lugar, ele é o próprio ser, é o
fundamento do ser de todas as coisas. O aspecto pessoal expressa-se por meio do
intelecto e da vontade, e da união desses dois elementos. Para os medievais, seria
heresia dizer que Deus era uma pessoa. Tratar-se-ia da heresia unitária, conflitando
com a declaração de que Deus era três personae, três expressões de seu ser.

A mesma controvérsia, sobre o problema epistemológico, também se deu a


respeito do relacionamento do intelecto com a vontade. Para a tradição tomista, o
intelecto caracteriza Deus e homem. Tomás argumentava que o intelecto era o~ úni-
co elemen_~que difer~!_~,~?:""~_?_}:?~11_~.r~ d?_~_rl,~_~:nal. Os animais seriam humanos se
pudessem estabelecer propósitos perante a vontade. Mas sua vontade não tem pro-
pósitos, no sentido humano do termo. Assim,_p_ªr~ Jorpá~L__? intelecto (que fazia
com q~l_e_ o homem fosse humano sendo, igualmente, a característica princip<ll de
• o _

Deus._.É o poder da percepção da verdade universal e do bem universal. Duns


Escoro se opunha a essa doutrina. Para ele, Deus e homem são vontade. A vontade
é universalmente criadora. Não há outra razão para a vonrade divina a não ser essa
mesma vontade.. Nada determina a vontade. O bt;m é bom simplesmerue _p,()l:ql!~..
Deus ql!fL Não há nenhuma necessidade intelectual para que o mundo seja o que
é nem para que a salvação aconteça do jeito como acontece. Tudo é possível para
Deus com a única exceção de que ele não pode deixar de ser Deus. Duns Escoto
falava da potentia absoluta de Deus. Deus usa esse poder absoluto para criar o mun-
do com suas ordens definidas. Referia-se, então, às potestas ordinata de Deus, do
poder ordenado de Deus. Distinguia entre essas duas coisas. O mundo conhecido
bem como o plano da salvação, que conhecemos pela revelação, não precisam ser
necessariamente dessa forma; são assim apenas em virtude do poder ordenado de
Deus. Algo ameaçador fica implícito nesta distinção. O mundo não tem sido sem-
pre o mesmo desde a eternidade; nem é necessário que seja sempre o mesmo. O
poder absoluto de Deus permanece, ameaçadoramente, por detrás do poder orde-
nado, podendo mudar todas as coisas. Escoto não acreditava que isso fosse aconte-
cer, mas podia acontecer.

195
CAPÍTULO III

Que queria dizer com essa idéia? Queria dizer que temos de aceitar o dado da
realidade, que esse dado não pode ser deduzido e que, portanto, temos de ter hu-
mildade em face do que existe. Não podemos deduzir o mundo nem o processo da
salvação em termos de necessidade. Comparemos essas idéias com a doutrina da
expiação, de Anselmo, em que procurou ded uzir o processo da salvação envolvendo
Deus, Cristo c homem, em tefInOS de necessidade. Duns Escoro diria que não
havia tal necessidade, mas apenas a ordem positiva de Deus. A idéia de poder abso-
luto de Deus [1.vorece o positivismo tanto na ciência como na política, na religião
como na psicologia. Seu Deus é vontade - isto é, determinado pela vontade e não
pelo intelecto - o mundo se torna incalculável. incerto e inseguro. E somos compe-
lidos a nos submeter ao que nos é dado positivamente. Todos os perigos do positivismo
emanam desse conceito de Duns Escoto. É por isso que o considero decisivo na
história do pensamento ocidental.

L. Doutrinas de Tomás de Aquino

Vamos discutir algumas das mais importantes doutrinas de Tomás de Aquino.


Em primeiro lugar, a doutrina da natureza e da graça. A graça não substitui a
natureza, mas a completa! Segundo Tomás, a graça não nega a natureza. Essa afir-
mação não podia ser aceita pelos agostinianos radicais ou, mais precisamente, pelo
maniqueísmo que deformava Agostinho. Diziam que a graça substituía a natureza.
Segundo Tomás de Aquino, com quem concordo plenamente nesta doutrina, a
natureza e a graça não se contradiziam. A graça apenas contradiz a natureza defor-
rnada, mas não a natureza em si. Tomás afirma que a natureza se realiza na
sobrenarureza, que é a graça. Essa estrutura da realidade existia desde a criação.
Deus dera a Adão no paraíso não apenas capacidades naturais, mas o donum
superadditum, o acréscimo de UIll outro dom aos dons naturais. Trata-se do dom da
graça em virtude do qual Adão podia permanecer unido a Deus.

Nesse ponto o protestantismo se desviou completamente de Tomás de Aquino.


Para o protestantismo, a natureza perfeita não precisava de nenhuma graça adicio-
nai; se fomos realmente criados com perfeição não é necessária nenhuma graça su-
perior. Portanto, o protestantismo eliminou a idéia do donum superadditum. Esse
debate soa um tanto mitológico, especialmente quando queremos saber se Adão
recebeu ou não eSSa graça especial. E não é o que nos interessa. Essas histórias
mitológicas expressam profunda visão a respeito da realidade. No tomismo, a estru-

196
o MUNDO MEDIEVAL

tufa da realidade contém dois níveis. Para o protestantismo, a cnação é completa


em si mesma; as formas criadas da realidade são suficientes. Deus não precisa lhes
acrescentar nada. É o mesmo sentimento básico da Renascença de que a criação é
boa com o homem e suas potencialidades no centro, sem necessidade de qualquer
dom sobrenatural a mais. Tomás acredita na existência de dois graus: o natural e o
sobrenatural. O protestantismo ensinava que apenas por causa da distorção da na-
tureza pela queda do homem e pela separação de Deus tornara-se necessário um
OUtro poder, que foi o poder da graça centralizado no perdão. Perdão é a restitutio ad
integrum, a restituição da natureza às suas plenas potencialidades. Essa idéia é, em
última análise, monÍstica. O mundo criado é perfeito em si mesmo; Deus não
precisa conferir gtaças adicionais à sua criação já realizada. Contudo, Deus precisa
intetferir na existência para superar os conflitos aí surgidos, e é isso que faz a graça.
Assim, no protestantismo, graça é aceitação do inaceitável. No catolicismo, é uma
substância, análoga às substâncias naturais.

o princípio tomista é também válido para a relação da revelação com a razão. A


revelação não destrói a razão, mas a realiza. Também, neste ponto, concordo com
Tomás de Aquino. Acredito que a revelação é a razão em êxtase, que na revelação o
mais profundo da razão vem à tona ainda em forma racional, levando a razão para
além de si mesma sem destrui-la. Mas não aceito a formulação tomista dessa dou-
trina pela qual a razão existe num determinado domínio, e a revelação num outro
onde complementa a razão. Temos, então, duas formas. A católica, que é dualista:
natureza e sobrenaturcza. O catolicismo defende esse supranaruralismo com toda.a
força. E a protestante, de outro lado, unida à tendência monÍstica da Renascença -
monística no sentido de perceber um só mundo divino e a salvação e a regeneração
(que são a mesma coisa) como resposta de Deus às deformações deste mundo. Mas
tal resposta não nega a estrutura criada do mundo.

De certa forma, o dualismo protestaI;te é mais profundo, embora não envolva


substâncias. Nele se opõem reino de Deus e poderes demônicos. Mas o mundo
criado não se identifica com o mundo caído. O mundo caído é a deformação do
mundo criado. Portanto, o novo ser não é outra criação, mas o restabelecimento da
unidade original. Urnas das conseqüências desta doutrina é que, no protestantis-
mo, o mundo secular é imediato a Deus. No catolicisrno, precisa da mediação da
substância sobrenatural, presente na hierarquia e nas atividades sacrameIltais. E
aqui, novamcnte, a diferença é fundamental. O protestantismo é decididamente a
favor da secularidade.. Lutcro expressou essa at.i(ude_~º J<ll.ar a respeito do valor do

197
CAPÍTULO lI!

trabalho da dona de casa em contraste com o dos mon~~Qu_ando realizad_o~


._. temor de Deus. o trabalho da dona de..01.sa é nl,!js valioso... 4o que a ascese do mo~
_._~_esmo quando este último ainda for fcito no temor de Deus. A ênfase recai no ato
secular, revelado r de Deus quando realizado corretamente. Ninguém precisa ser
monge, mas se o desejar e se achar num estágio superior. sobrenatural, estará con-
tradizendo o paradoxo da justificação, pois qualquer um, incluindo o monge, é
sempre justificado enquanto pecador.

Partindo de sua epistemologia, Tomás deveria rejeitar o argumento ontológico


em favor da existência de Deus. Esse argumento afirma que existe no interior da
mente humana a imediata percepção de algo incondicional. A presença"~J)!ior.i 4C?_
divino na mente humana se expressa na percepção iIT1:~.9j~_ª__90c:.aráter incon4.jcio-
nal da verdade, do bem e do própEi,~..~~O conhecimento de Deus precede qual-
quer outro conhecimento. É o único absoluto, certo, e seguro. Refere-se ao elemen-
to incondicional nas profundezas da alma e não a um ser particular. Esse é o nervo
do argumento ontológico. Contudo, como eu disse a respeito de Anselmo, o argu-
mento ontológico foi também elaborado como um argumento racional para con-
cluir dessa base a existência de um ser superior. Na medida em que não passou
desse esforço, tornou-se inv,ílido, como todos os seus críticos o demonstraram (To-
mas, Escoto e Kant). Mas enquanto análise da tensão humana entre o finito e o
infinito, é válido. Trata-se de certeza imediata.

Tomás de Aquino entendeu l1ue esse argumento não é válido enquanto prova.
Duns Escoro pensou da mesma maneira. Mas para preencher o espaço vazio criado
pelo fracasso do argumento ontológico e da percepção imediata do divino, no ho-
mem, Tomás precisava encontrar uma outra via que fosse do mundo para Deus. O
mundo, embora não sendo primeiro em si, é primeiro enquanto dado a nós. Os
agostinianos-franciscanos diziam o contrário: o primeiro em nós é o princípio da
verdade e apenas a partir daí é que podemos duvidar. Dessa forma, Tomás precisava
demonstrar outra via que veio a se chamar de argumento cosmológico. Segundo
esse argumento, Deus é conhecido a partir do exterior. Olhamos para o mundo e
descobrimos a necessidade lógica da existência de um ser superior. Tomás elaborou
cinco argumentos nessa linha, que volta e meia aparecem na história da filosofia.

1. Argumento a partir do movimento. O movimento exige causa. Essa causa é


também movida. É preciso, pois, remontar a um motor imóvel que chamamos de
"Deus". Trata-se de um argumento que parte do movimento, em termos de causa-

19X
o MUNDO MEDIEVAL

lidade:__~~r~ _s_~._~_~~g~r à causa .40 movi~~!1~_~._rt_~ _ ~~~~_~?,_~ __ ~.ecessário


---_..,- e,:~?_~~,~~!~
.. -

que não sej.::_~.?vido..

2. Cada efeico tem sempre sua causa, mas cada causa é efeito de llma causa
anterior. Assim, vai-se de causa em causa, mas para evitar a regressão infinita, preci-
samos falar de uma causa primeira. Essa causa não é primeira em sentido temporal,
segundo Tomás, mas em dignidade; é a causa de todas as outras.

3. Tudo no mundo é contingente. Não é necessário que as coisas sejam como


são. Poderiam ser diferentes. Mas se tudo é contingente e pode desaparecer no
abismo do nada, porque sua existência não é necessária, deve haver alguma COIsa

absolutamente necessária de onde se derivam todas as coisas contingentes.

4. Há propósitos na natureza e no homem. Mas se agirmos em termos de


propósitos, qual é o propósito? Quando o alcançamos perguntamos novamente
para que serviu. Então precisamos de um propósito final, um fim último além de
todas as mediações. Os propósitos preliminares se transformam em meios ao serem
atingidos. Somos levados, assim, à idéia de um propósito final, de um significado
absoluto, como, talvez, diríamos hoje.

5. O quinto argumento depende de Platão. Menciona graus de perfeição no


mundo. Algumas coisas são melhores ou mais belas ou mais verdadeiras do que
outras. Mas se há graus de perfeição, deve haver alguma coisa absolutamente perfei-
ta a partir da qual distinguimos os graus inferiores da perfeição. Sempre que emiti-
mos juízos de valor, pressupomos o valor absoluto. Ao falar em graus, pressupomos
algo além dos graus.

Em todos esses argumentos, aparece a categoria da causalidade. Partem das


características deste mundo para chegar ao que torna este mundo possível. Acredito
que valem enquanto análise (são verdadeiros não enquanto argumentos, mas en-
quanto análise). Na doutrina dos arg~~n~_~!:~~~~_._~.~J~yor_~+existência 4~_º~_l~~?_
~S:º-l}_~·_<l.rnos provavelmente a melhor análise da fin!_~~9._~_A~,!~~!.~.~?;.ª,~~E.I:~cida
__._. no~_~.s.critos do passado. Dão-nos a análise existe,ncial da ~~i4~~e huma.na e são, por
isso, verdadeiros. Mas ao pretenderem comprovar a existên~i_~.d.,:~~n,l ser .~~l.l~:::'I~,':~._
___i!!fIniro, não conseguem justificar suas conclusões.

Em Tomás de Aquino, o conceito de predestinação combina diversos motivos.


Essa idéia agostiniana foi utilizada por Tomás a partir do princípio intelectual que
tira das necessidades conseqüências a respeito do que lhes precede. Por sua vez,

199
CAPÍTULO III

Duns Escoro acentuava de tal maneIra a vontade que tanto a vontade humana
como a divina tornavam-se absolutas, ontologicamente absolutas, não determina-
das por nenhum outro elemento a não ser por si mesmas. Duns Escoro e os
franciscanos deram-se conta da importância da liberdade (elemento pclagiano) e
introduziram na teologia medieval certo cripto-pelagianismo, enquanto Tomás de
Aquino, b~~<!-_~tq__nq_ inelectualismo pensava em termos deterministas. Tomás se
j

4,~ mostrava, pois, religiosamente muito mais forte do que a crítica protestante da
teologia escolástica, em geral, admice. Parece que Lutero não conhecia Tomás de
ACJuino. Conhecia bem os teólogos nominalistas que vieram depois, dos quais se
pode corrcml11ente dizer que deformaram o escolasticismo. Lutero atacava-os. Mas
poderia muito bem ter encontrado o seu pensamento e o de Calvino, sobre a
predestinação, nos escritos de 'Jomás de Aquino.

o
ensino ético de Tomás de Aquino corresponde a seu sistema de graus, como,
aliás, todas as áreas de seu pensamento. Sua ética apoia-se numa infra-estrutura
racional iluminada pela superestrutura teológica, Relacionam-se entre si da mesma
maneira como a graça e a natureza. A inFra-estrutura contém as quatro principais
virtudes pagãs, tomadas de Platáo: coragem, temperança, sabedoria e a justiça toda
abrangedora. Essas virtudes nos trazem felicidade natural. Pelicidade não quer di-
zer divertir-se, mas a realizaçáo da natureza essencial de cada um. A palavra grega
para felicidade é eudaimonia, e há uma escola filosófica chamada eudaimonismo. O
cristianismo tem muitas vezes aucado essa tendência, porque o propósito da exis-
tência humana seria a glória de Deus e não a felicidade humana. Eu acho que se
trata de uma interprcraçáo completamente errada de eurlahnonia. Essa palavra quer
dizer exatamente o que a teologia cristã chama de bem-aventurança, baseada nas
virtudes naturais; Tomás sabia-o muito bem. Portanto, ele não combateu essa esco-
la. EudtÚmonia vem de duas palavras gregas, eu e daimon significando "bem" e "de-
mônio" - em outras palavras, poder divino que nos conduz bem (Cf. o daimon de
Sócrates). O resultado dessa orientação é eudaimonia, ser conduzido pelo caminho
certo para a auro-realização.

Segundo Tom,ís de Aquino, as quatro virtudes nalllrais da filosofia podem nos


levar à bem-aventurança, à CUdtlim01Útl no sentido grego. Virtude não signifIcava,
pejorativamente, o que significa hoje, isto é, abstinência de relacionamento sexual.
Significava o que está COlHido no termo latino: vir, homem, masculinidade, poder
de ser. Nessas quatro virtudes diferentes expressa-se o poder de ser unido à justiça.
TOlnás apenas combinava a ética cristã com a antiga ética da auto-realização, na
qual apareciam essas virtudes naturais: coragem de ser, temperança expressiva dos

21111
o MUNDO MEDIEVAL

limites da finidade, sabedoria expressiva do conhecimento desses limites e, final-


mente, a justiça toda abrangedora, capaz de conferir a cada virtude o necessário
equilíbrio em relação às outras.

As virtudes cristãs da fé, da esperança e do amor, eram consideradas a partir


dessa base naturaL Não são dadas pela natureza, mas pela graça; são sobrenaturais.
O sistema ético de Tomás tem esses dois lados, o natural e o espiritual. Era algo
mais que mera especulação teórica; expressava a situação sociológica. A aceitação
das virtudes de Platão e de Aristóteles significava o desenvolvimento da cultura
urbana. As virtudes cristãs e as pagãs combinaram-se na época do apogeu do
cavaleirismo e exerceram grande influência, na Idade Média. Reuniram a coragem
pagã e o amor cristão, a sabedoria pagã e a esperança cristã c, afinal, a moderação
pagã e a fé cristã. Os ideais humanísticos e cLíssicos entravam para a cultura univer-
salmente cristã e se desenvolviam.

O propósito ético humano expressava-se na realização do que lhe era essencial.


Segundo Tomás, o essencial era o intelecto, isto é, a capacidade de se viver no
âmbito do significado e das estruturas da razão. _Não é a vontade que nos torna
humanos, mas o intelecto. O homem tem
_ ... - - o~.-
a vontade em comum com os alllmalS;
..,_._._..._
,.---.=......_~

mas só o i~:.~.ele.,~t,?:_? estru~~cional da mente, !_he é.'pecu~~ar.

Tomás de Aquino combinava ética com estética. Foi o primeiro pensador medi-
eval a criar uma teologia estética. ''A beleza é a espécie de bem onde a alma repousa
sem posse". Podemos fruir a beleza de um quadro sem possui-lo. Podemos nos
satisfazer na beleza dos bosques, dos oceanos, das casas ou dos seres humanos, apre-
ciando suas formas, sem precisar possui-los. Nas artes plásticas e na música, a fruição
é desinteressada. A beleza ,D9§__eJ.ª-J?Iª"ZÇ,r em si. Essa maneira de ver a beleza desen-
volveu-se na direção do humanismo, mas de um humanismo que não era autôno-
mo, posro que voltado para cerra realidade capaz de transcender todas as possibili-
dades humanas.

Trarou de modo semelhante o problema de igreja e estado. O estado representa


certos valores humanos e a igreja os sobrenaturais, mais alros. A igreja tem autorida-
de sobre os estados representados pelos diferentes governos nacionais, porque re-
presenta valores superiores. Quando necessário, a igreja pode pedir ao povo que seja
desobediente. A ética tomista, que estivemos examinando, exerceu enorme influên-
cia no mundo ocidental ao lado da dogmática. Essa ética se encontra na segunda
parte da segunda seção da Summa Theofogica.

201
CAPÍTULO II[

" M. Guilherme de Ockham


Guilherme de Ockham é o pai do nominalismo. O conflito entre nominalismo
c realismo não apenas determinou a Idade Média, mas ainda persiste até hoje. Só
que mudou de nome. Dá-se entre idealismo e realismo: realismo, hoje, é o que
naquele tempo se chamava de nominalismo, e idealismo é o que se chamava de
realismo. Ockham criticava o realismo místico medieval, porque nesse realismo os
universais é que eram as coisas reais, com existência independente. Se os universais
existem separadamente das coisas, então reduplicam as coisas. Se só existem na
mente, não são coisas reais. Portanto, o realismo não tcm sentido. Não tem sentido
porque não pode dizer de que maneira os universais são rcais. Qual seria a realidade
de "arvoridade"? Para Ockham, é um conceito da mente, sem nenhuma realidade;
quer dizer alguma coisa, mas não tem realidade. Os realistas daquela época diziam
que o conceito universal, "arvoridade", que orienta todas as árvores, de modo espe-
cial, é um poder de ser. Não é uma coisa - nenhum realista jamais faria essa afirma-
ção - mas um poder de scr. Para os nominalistas, só havia coisas individuais e nada
mais. Não queriam aumentar o nümero dos princípios. Se quisermos explicar coisas
como os universais de modo simples, dizendo que são significados pela mente,
então seria preciso o mundo das idéias de Platão.

Essa crítica partia do desenvolvimento do individualismo que se tornava, cada


vez mais, influente na üIrima parte da Idade Média. A atmosfera intelectual grega
e medieval começava a mudar. Os gregos achavam que o mundo começava com a
negação das coisas individuais; os medievais subordinavam os indivíduos ao coleti-
vo. Não se tratava, pois, de mero jogo vencido por um certo tempo pelos nominalistas.
Ao contrário, representava certa mudança de atitude perante a realidade na socieda-
de. Vocês vão encontrar discussões a respeito do nominalismo e do realismo em
histórias da lógica, com razão, mas não vão encontrar nesses textos rodo o impacto
do significado dessa controvérsia. Debatia-se entre duas atitudcs para com a vida.
Hoje em dia, essas atitudes se expressam eIn termos de coletivismo e individualis-
mo. Contudo, o coletivismo medieval era só parcialmentc totalitário; era basica-
mente místico. Esse coletivismo místico - fundamentalmente, a igreja era o corpo
de Cristo - diferia do nosso. Mas assim mesmo era coletivismo. Os realistas defen-
diam-no, enquanto os nominalistas queriam destrui-lo. Assim que os nominalistas
tiveram êxito, a Idade Média se dissolveu.

202
o MUNDO MEDIEVAL

Ora, se apenas as coisas individuais existem, que são os universais para Ockham?
Identificam-se com o ato de conhecer. Surgem na mente, e devemos usá-los para
poder falar. São naturais. Chamava-os de universafia natura/ia. Além deles situam-
se as palavras simbolizando-os. São universais convencionais. As palavras podem
mudar; existem mediante convenções. As palavras são universais porque podem ser
ditas a respeito de coisas diferentes. Os que pensavam assim foram também chama-
dos de "rerministas", porque diziam que os universais não passavam de meros "ter-
mos". Também eram chamados de "conceirualisrJs" porque os universais eram sim-
ples "conceitos", sem qualquer poder de ser. O conceito universal apenas indica
semelhança entre coisas diferentcs, e nada mais. No final, acaba-se dizendo que
apenas as coisas individuais são reais. Não o homem enquanto homem, mas Paulo e
Pedro e João é que são realmente indivíduos. Não a "arvoridade", mas esta árvore
particular ali na esquina é que é real, como todas as demais árvores particulares.
Nós as chamamos de árvorcs porque descobrimos certa semelhança entre elas.

O nominalismo foi também aplicado a Deus. Ockham chamava-o de em


singularissimum, o ser mais singular. Até Deus passava a ser considerado um indivÍ-
duo, separado dos ourros indivíduos. Esses outros indivíduos olham para ele, e ele,
Deus, também os contempla. Deus não mais ocupa o centro de todas as coisas,
como pensava Agostinho. O nominalismo o removeu desse centro para um lugar
especial, distante das coisas. As coisas individuais, então, se tornaram independen-
tes. Não se podia mais falar em presença substancial de Deus nas coisas. Tal presen-
ça pressupunha certo tipo de realismo místico. Dessa forma, Deus só conhecia as
coisas empiricamente, de fora, por assim dizer. Assim como o homem conhece o
mundo empiricamente, porque não mais está no seu centro, assim também Deus
conhece as coisas empiricamenre, de fora, e não mais imediatamente como quando
fora o centro unificador da realidade. Nessa filosofia pluralística, há muitos indiví-
duos e Deus é um deles, embora o mais importante. Conseqüentemente, acabava-
se a união de todas as coisas em Deus. E assim, individualmente separadas, não
mais podiam participar umas nas outras, imediatamente, em virtude de uma parti-
cipação comum em determinado universal. O conceito de comunidade, agostiniano,
é substituído pelo de relações sociais ou sociedade. Como resultado desse
nominalismo relacionamo-nos hoje, na sociedade, em termos de cooperação e de
competição, sem qualquer sentido de participação. A participação só se dá na co-
munidade; a sociedade envolve interesses comuns. As pessoas se separam umas das
outras, e trabalham juntas, ou antagonicamente.

203
CAPÍTULO III

Só conhecemos as outras pessoas por meio de sinais e palavras que nos capaci-
tam a nos comunicar e a ter atividades comuns. Antecipava-se a vida, na sociedade
tecnológica primeiramente desenvolvida nos países dominados pelo nominalismo,
como Inglaterra e Estados Unidos. Nos Estados Unidos e em países sob a influência
de sua filosofia, como, por exemplo, na Inglaterra e em alguns outros países do
ocidente europeu, o nominalismo determinou atitudes sobre o relacionamento en-
tre as pessoas e entre estas c as coisas. Desaparece aí a antiga unidade substancial
preservada até então pelo pensamento realista. Nosso conhecimento dos Outros não
se dá mais por participação, mas por meio de experiências sensoriais - Ver, ouvir,
tocar. Estão agora cm jogo nossas cxperiências sensoriais e os seus reflexos na mente.
Vem daí, naturalmente, o positivismo; precisamos prestar atenção ao que nos é
dado positivamente.

As conseqüências são muitas. Acaba-se a metafísica racional. Por exemplo, pas-


sa a ser impossível qualquer tipo de psicologia racional capaz de falar na imortalida-
de da alma, na sua pré ou pós existência, na sua onipresença no corpo inteiro ctc.
Essas coisas só podem ser afirmadas pela fé e não pela análise filosófica. Da mesma
forma, todos os aspectos da teologia racional se tornam impossíveis. Deus não se dá
à percepção sensorial. Não podemos nos aproximar de Deus porque não existe ne-
nhuma relação possível com ele, direta ou imediata, corno se podia ter segundo o
pensamento agostiniano. Não se pode ter conhecimento direto de Deus. Restam-
nos reflexões indiretas incapazes de certeza. Permanecem as probabilidades de me-
nor ou maior grau. Estas não se transformam em certezas. São bastante duvidosas.
É bem provável que o mundo não tenha tido uma só causa, mas diversas. O ser
mais perfeito - que era a definição de Deus - não é necessariamente infinito. Dou-
trinas como a da trindade baseadas em realismo místico - as três personae partici-
pam na divindade una - são obviamente improváveis. São objetos de crença irracio-
nal. A ciência segue seu caminho e a fé se encarrega de garantir tudo o que for
cicntificamente irracional e absurdo.

Mas nesse caso é fácil compreender porque a autoridade acaba se tornando tão
importante. Fé é submissão à autoridade. Ockham achava que a autoridade era
mais a da Bíblia do que a da igreja. Elc havia dissolvido a unidade realista não
apenas no pensamento, mas também na prática. E ficou ao lado do rei germânico
contra o Papa. Fez surgir tanto a economia autônoma como a política nacional
autônoma. Optava pelo estabelecimento de esferas independentes em todos os do-
mínios da vida. Assim, contribuiu radicalmente para a decadência da Idade Média.

204
o MUNDO MEDIEVAL

N. Misticismo germânico

Mcister Eclduct foi o representante mais importante do misticismo germânico.


Que procuraram realizar esses místicos? Queriam interpretar o sistema tomista por
razões práticas. Não eram monges contemplativos, fora do mundo, mas queriam
que o povo experimentasse o que fora expresso nos sistemas escolásticos. Dessa
maneira, o misticismo de Meisrcr Eckharr reunia os conceitos escolásticos mais
abstratos - especialmente o de ser - com a alma ardente, com o calor do sentimento
religioso e com o poder amoroso da atividade religiosa. Dizia: "Nada é tão íntimo e
tão próximo dos seres como o próprio ser. Deus é o próprio ser". Afirmava a identi-
dade de Deus e ser. "B;se esl deus" - o ser é Deus. Não se trata se um conceito estático
a respeito de ser._Q!!ando eu utilizei o conceito de ser, fui acusado de ter pensado
sobre Deus de modo estático. Nem mesmo o misticismo de Meister Eckharr che-
gou a esse ponto. O ser é um fluxo c um retorno constante. Chama-o de rlUSS und
Wiederfluss, fluxo e contrafluxo. S~.L-ª-c:.~i.~_yolta_p.~~~si~_"º,~~Lév~<ja com seu caráter
dinâmico.

Para tornar claro o pensamento, faz distinção entre a divindade e Deus. A


divindade é o fundamento do ser em que todas as coisas se movem indo e vindo.
Deus é essentia, o princípio do bem e da verdade. Até pode derivar daí a idéia da
trindade. O primeiro princípio é o ser não nascido e que não faz nascer; o segundo
é o processo de auto-objetivação, o Lagos, o Filho; o terceiro, a autogeração, o
Espírito, criador de todas as coisas indivjduais. Emprega os termos da teologia
negativa para falar sobre a divindade. Chama-a de fundamento simples ou de deset-
to quieto. É da sua natureza não possuir natureza alguma. Situa-se além de qual-
quer natureza especial. A trindade se baseia no fato de Deus sair de si mesmo e
retornar a si. Ele se reconhece e se vê novamente. É o que constitui o Logos. O
mundo está em Deus, em sentido arquetípico. A palavra "arquétipo" foi revivida
por ]ung, hoje em dia. É a tradução latina de "idéia" platônica. As essências, os
arquétipos de todas as coisas, residem nas profundezas da divindade. São o verbum
divino, a palavra de Deus. Portanto, a geração do filho e a criação eterna do mundo
são, em Deus, a mesma coisa. Ser criado é ser que recebe. A criatura nao confere ser
a si mesma; esse ser vem de Deus. O ser da criatura procede de Deus. Trata-se de
certa forma divina de ser. A criatura, incluindo o ser humano, só tem realidade à
medida que se une à realidade eterna. Tudo o que a criatura tem vem de Deus. É
pela alma que a criatura retoma a Deus. É pela alma que as coisas, separadas de
Deus, retornam a ele. As profundezas da alma, em que isso acontece, Eckhart cha-

205
CAPÍTULO III

ma de "centelha", ou o centro mais profundo da alma, o coração da alma, ou, ainda,


o castelo da alma. Esse ponto transcende a diferença das funções da alma; é a luz
incriada presente no homem. É assim que o Filho nasce em cada alma. Desta ma-
neira, o evento universal é mais importante do que o nascimento particular de
Jesus.

Contudo, todas essas coisas pertencem ao domínio da possibilidade. Precisam


ser trazidas à realidade. Deus precisa nascer na alma. Para tanto, a alma deve se
separar de sua finidade. Algo deve acontecer, que ele chama de entwerden, o contrá-
rio de vir a ser, de sair de si ou de se perder. O processo de salvação se dá quando o
homem se livra de si mesmo e de todas as coisas.

o pecado c o mal demonstram a presença de Deus como, afinal, todas as


coisas. Levam-nos à percepção do que realmente somos. Lutero tomou essa idéia de
_~.cJ~h~g~.RS,~!s,._~_,_(),_!.?,~m~ aeternltm, o etern.9_3R()t~,_ ,que_ vem ao indivíduo na su_a.._
situação concreta. _g._Y~~Tl sem exi_gir do in~iy'íduo_q~~lquer bondade condic.i.~nal.
Deus vem ao indivíduo perdido. Para recebê-lo precisamos de serenidade ou paci-
ência, e de imobilidade. Não se recebe Deus por meio de obras; só se recebe indo a
ele. Eckharr se rebelou contra a idéia de fazer a relação religiosa depender de algum
propósito. Temos aí a mistura estranha de quietismo - de ficar quieto na alma - e de
([emendo ativismo. _º_.~~ntimento interior deve se transformar em obra, e :::.!C~~ _
__~~.,~~,~ Ac~ba-se, também, a diferença entre o sagrado e o secular. Ambos express0:I~
o fundamento do ser em nós.

A igreja, por muito tempo, influenciada por esse misticismo e, até hoje, muita
gente ainda o experimenta. O misticismo dominicano contrabalança o isolamento
nominalista entre os indivíduos. Pode-se dizer que no terreno religioso prevalece-
ram os impulsos do misticismo germânico, mas no terreno secular foi a atitude
nominalista que persistiu. Tanto o nominalismo como o misticismo germânico pre-
param, até certo ponto, o caminho para o advento da Reforma.

::'- O. Os pré-reformadores

o período anrerior à Reforma foi bem diferente da alra Idade Média. Nessa
época, os princípios leigos começaram a adquirir importância e o biblicismo a pre-
valecer em face da tradição da igreja. O inglês João Wyclif foi, talvez, a mais impor-
tante expressão dessa situação. Foi ele quem, certamente, preparou o caminho para
a reforma inglesa, e suas idéias foram amplamente usadas pelos reformadores. O

206
o MUNDO MEDIEVAL

que faltava a todos os pré-reformadores era o princípio fundamental da Reforma - a


ruptura de Lutero, afirmando a aceitação do inaceitável que, em termos paulinos se
chama de justificação pela graça mediante a fé. Esse princípio não aparece antes de
Lutero. Quase rodas as outras idéias da Reforma podem ser encontradas nos assim
chamados pré-reformadores. Assim, ao falarmos a respeito deles estamos nos re-
montando, principalmente, às idéias críticas que aplicavam contra a Igreja Roma-
na, mais tarde também utilizadas pela Reforma. Há quem não goste de chamá-los
de pré-reformadores porque lhes faltava o princípio fundamental da Reforma, ca-
paz de gerar a ruptura e estabelecer novo relacionamento com Deus.

Wyclif dependia de Agostinho, mas também de Tomás Bradwardine, que re-


presentava na Inglaterra a reação agostiniana contra as idéias de Pelágio relacionadas
com o nominalismo. Bradwardine representou importante mediação entre Agosti-
nho e a reforma inglesa. O título de seu livro é característico, De Causa Dei contra
Pe!agiurn, a causa de Deus contra Pelágio, não contra o Pelágio inimigo de Agosti-
nho, mas contra o pelagianismo encontrado na teologia nominalista e na prática da
igreja. Seguia, ao conuário, as doutrinas de Agostinho e Tomás de Aquino sobre a
predestinação. Dizia: "Tudo o que acontece, acontece necessariamente. Deus preci-
sa de qualquer ato realizado. Os atos e as criaturas moralmente más são más apenas
acidentalmente". Queria dizer gue Deus é essencialmente a causa de todas as coi-
~..'<o.e. qu~ .
q mal_flª.9 Y~Jl!_º_~__º~1.!~: Em conseqüência dessa doutrina, a igreja é a
congregação dos predestinados, como também pensava Agostinho. A igreja verda-
deira não é a instituição hierárquica da salvação. Essa igreja verdadeira opõe-se à
igreja impura, que é a igreja hierárquica, deformada. A lei básica da igreja não é a lei
do Papa, mas da Bíblia; é a lei de Deus, ou de Cristo. Essas idéias não pretendiam
ser anti católicas. Nem Bradwardine nem Wyclif pensavam em abandonar a Igreja
Romana. Havia uma só igreja. Até mesmo Lutero levou certo tempo para se separar
de Roma.

Os princípios agostlIllanos eram perigosos para a Igreja Romana. Mas logo


após Agostinho, esses perigos foram atenuados por movimentos semipelagianos.
Agora, esses perigos retornavam em nome de Agostinho, representados por Tomás
Bradwardine e João Wyclif. A idéia de predestinação significava que muitas pessoas
não eram predestinadas, entre elas hierarcas, por exemplo. Assim, se podia procurar
na hierarquia sinais comprovadores dessa não predestinação. Os sintomas eram des-
cobertos mediante a aplicação da lei de Cristo, como o Sermão da Montanha, ou o
envio dos discípulos - sempre idéias ou leis perigosas em qualquer igreja hierárquica
organizada.

207
CAi'fTULü III

A partir dessa crítica da hierarquia, Wyc1if revisou as doutrinas da igreja e de


seu relacionamento com o Estado. E o fez dentro de longa tradição. Desde o século
doze se fizera conhecido na Inglarcrra um movimento, cujo líder, conhecido pelo
pseudônimo de Anônimo de York, escrevia em favor do rei, elevando-o à posição do
Cristo na nação britânica. A tendência anti-romana era bastante acentuada para
favorecer a criação de uma igreja territorial britânica, semelhante à situação bizantina.
O rei seria o Cristo para a nação, glorificado em hinos e pinturas como tal, como
Constantino fora o Cristo em Bizâncio, para toda a igreja oriental. Essas analogias
preparavam o caminho para a revolta da coroa contra o Papa.

Wyclif fazia diferença entre duas formas de dominação humana, ou governo, o


natural ou evangélico, baseado na lei do amor; e o civil, produto do pecado, que
emprega a força para obtenção de bens físicos e espirituais. Por outro lado, temos a
lei natural, que, na tradição cLí.ssica, sempre foi a lei do amor com tudo o que o
amor envolve. Essa é a lei que deveria governar. Por outro lado, infelizmente, faz-se
necessário o governo civil por causa do pecado. A força e a compulsão precisam ser
empregadas para a manutenção dos bens nacionais, físicos e espirituais. Mas para o
governo da igreja, a lei do amor deveria ser suficiente. Sendo a igl'eja o corpo dos
predestinados, não precisa de força. Rege-se pelas leis de Jesus, a lei do serviço. A lei
de Cristo é a lei do amor que se expressa em servir. Em conseqüência, a igreja tem
que ser pobre; não pode controlar a economia nem a política. Ela tem que ser pobre
como os franciscanos radicais, no passado, e originalmente, Joaquim de Fiori.

Entretanto, a igreja não é completamente santa. Considerava abusivo o enri-


quecimento do clero. Se fosse necessário o rei deveria interferir em tais casos. O rei
não precisava temer a excomunhão da igreja, pois ninguém é excomungado a não
ser por si mesmo. O cristão só se excomunga, de fato, quando se afasta de Cristo.
Dessa maneira a hierarquia perdia seu principal poder; não podia mais decidir a
respeito da salvação individual. A hierarquia podia ser criticada sempre que agisse
contra a lei de Cristo que é a lei da pobreza, a lei da regra espiritual. Segue-se que
não existe necessidade dogmática para a função do Papa. Joaquim de Fiori já havia
dito que só é necessário um papa angélico, um papa angelica, que é apenas um
princípio espiritual. Wyclif achava que se fôssemos governados por um princípio
espiritual, poderíamos até ter um papa, mas esse papa nio poderia ser considerado
necessário. Essas idéias estavam de acordo com o protesto sectário contra a igreja
rica e poderosa, mas permaneciam ainda no contexto da doutrina oficial. Ainda não
eram o protesto da Reforma, pois se baseavam no princípio da lei - não da igreja,

208
o MUNDO MEDIEVAL

mas de Cristo - e não no princípio do Evangelho.

Sendo a base do ataque de Wyclif, a lei de Ctisto dada na Bíblia, enSInOU a


autoridade das Escrituras contra a tradição e contra a interpretação simbólica dos
textos. Chegou mesmo a considerar, em bases bíblicas, que a predicatio verbi, a
pregação da palavra, é mais importante do que todos os sacramentos eclesiásticos. A
transição verificada, na Idade Média, do realismo para o nominalismo fora acompa-
nhada pela transição do predomínio do olho sobre o ouvido. Nos primeiros tempos
da história da igreja cristã, a função visual predominava sobre as outras na arte
religiosa e nos sacramentos, Desde Duns Escoto, mais ainda desde Ockham, a
audição da palavra tornou-se mais imponanre do que a visão da materialização
sacramental da realidade. A ênfase na palavra antecede, pois, a Reforma. Veio à tona
no nominalismo. Por quê? Porque o realismo percebia as essências. O vocábulo
"idéia" vem de iriein, "ver". Eirios, "idéia". significa imagem, a essência do que se
pode ver em cada indivíduo. Traca-se, na verdade, de visão espiritual intuitiva, mas
mesmo assim visão, como se tem nas grandes obras de arte. As grandes obras de arte
mostram a essência das coisas, visíveis ao olho. No nominalismo temos indivíduos.
De que maneira eles se comunicam? Por meio de palavras. Portanto, se Deus é o
mais individual dos seres, o ens Jingularissirnum na linguagem de Ockham, não o
recebemos por meio da intuição de sua essência divina, expressa na criação, mas por
meio da palavra dirigida a nós. Assim, a palavra se torna decisiva em contraste com
a função visual. A importância da palavra, em detrimento dos sacramentos, já se
nota em Wyclif. Mas não estamos ainda na teologia da Reforma, porque essa pala-
vra é ainda a da lei; não é a palavra do perdão. Reside aí a diferença entre a Reforma
e a pré-Reforma.

Se, afinai, precisarmos de um papa, ele deverá ser o líder espiritual da igreja
verdadeira dos predestinados. Se não for assim, ele não poderá ser o vigário de
Cristo, o poder espiritual do qual se derivam todos os outros poderes espirituais.
Mas o papa é um homem que erra. Não pode conceder indulgências; só Deus pode
concedê-las. Pela primeira vez, antes das Noventa e Cinco Teses de Lutero, critica-
se o sistema de indulgências. Se o papa não vier humildemente, em caridade e
pobreza, não será o papa verdadeiro. Quando o papa aceita o domínio do mundo,
como o faz, passa a ser um herege permanente. O papa passou a proceder assim
baseado no documento "Dádiva de Constantino", que lhe serviu corno fonte de
podet, fazendo-se príncipe de Roma e sobetano da metade do impétio ocidental,
apesar desse documento não passar de falsiflcação histórica. É heresia o papa tor-

209
CAPÍTULO III

nar-se príncipe quando o seu poder é apenas espiritual. É assim que cle se transfor-
llJ:1 no Anticrisro. Esse termo vel~~-~G." Bíblia c foi ucilizado na iZ~f~~·~;~a. Tem" s~do
empregado na história da igrej~l, especialmente pelos sectários, em suas críticas à
igreja. Quando o papa se f:lz representante de Cristo c, ao mesmo tempo, governa
este mundo que se opõe a Crisro, rransforma-sc no Amicristo.

Certa vez conversei com Visscr'r Hoofr, secretário geral do Conselho Mundial
de Igrejas, sobre o período de Hitler, na Holanda. Ele disse: Nós, holandeses c
I11uiws outros cristãos pensávamos no começo que Hitler talvez pudesse ser o
Allticristo, por causa das coisas Jlltidivillas que fez. Mas logo vimos que ele não era
suficientemente bom para ser o Amicrisro. O Amicrisro deve manter, pelo menos,
algo da glória religiosa do verdadeiro Cristo, para que possa ser confundido com ele
e adorado. Mas Hitler não tinha nada disso. E assim sabemos, dizia ele, que o fim
dos tempos ainda n5.o chegou e que Hitler n5.o fora o AntÍcrisro.

N:J:o se tratava de dogma a respeito do Anricrisro. Com essas idéias, Visser't


Hooft se colocav:1 nd verdadeir:1 tr:1dição dos movimentos sectirios. Hoje em dia
qUdndo chamamos alguém de Amicristo todos sdbem que a palavra não passa de
merd ofensd. J\1as quando ~utcro chamavd o Papa .g~_,,_An[icristC2J falava
dogmaticamente e não apenas Pdl"d expreSSdr o seu desagrado. Queria dizeE_que n~
exato lugar onde o Cris[~: esEaria Sl~p'Ost.~~I"~~~.~~_!:epres~I~_~_0:~.?~,_ ..~~tc:?_._~2.~n~r.~!_tava
contra o Cristo.

o envolvimento da igreja em gr;:1I1cles ;l(ivi(bdes comerciais era outra evidência


do Glr,ltcr do Anricrisro. O Vaticano se tonH1"d o bdnco central do Inundo no tem-
po de Lutero, e até mesmo antes. Os bispos enm banqueiros em menor grau.
Wyc1if queria acabara com essa siruaç::io. Até os monges perdiam o antigo ideal de
pobreza e se acomodavam ao desejo geral ,b igreja pelas nquezas.

Essas críticas levaram \X!yclif a conclusões bem mais radicais. Atacou a


transubstanciação dizendo que o corpo de Cristo, espacialmente, encontrava-se no
céu. Sua presença, no pão, é virflfft/iter (por seu poder) e não espacial. E assim
contradizia completamellte a idéi,l de tLlI1substanciação. Quando a igreja o rejei-
tou, ele sabia que tinha razão e que se fundamentava na Bíblia. Atlrmavd' então,
que a igreja ofIcial podia erLlr em questões de fé. A rejeiç50, da. igreja, da crítica a
seus erros foi t~unbém a grande experiência de Lutero. A partir da Bíblia, considera-
da lei de Cristo, ele criticava todas as decisões da igreja que contrariavam a Bíblia e
que, portanto, não podiam ser aceitas como artigos de fé. Criticava o número dos

210
o MUNDO MEDIEVAL

sacramentos e os sacramentos particulares, como o matrimônio. Criticava a idéia


católica de que os sacramentos tinham caráter indelével, segundo a qual os batizados,
confirmados ou ordenados, recebiam um caráter especial que jamais se perderia.
Criticava até o celibato dos padres, os tesouros dos SJl1(QS e os elementos superstici-
osos da religiosidade popular. O monasricismo deveria ser abolido porque dividia a
igreja una. Não deveria haver nenhuma divisão entre os cristãos. A religião deveria
ser a communis re!igio, a religião comum à qual todos pertencem igualmente. Os
conselhos monásticos da Igreja Católica, como o amor pelos inimigos, deveriam ser
exigidos de todos os cristãos. Diríamos, negativamente, que Wyclif antecipou quase
todas as posições da Reforma. Teve o apoio do rei, porque a coroa britânica se
opunha, desde algum tempo, à interferência de Roma nos afazeres da nação, religi-
osa e politicamente. Wyclif foi atacado muitas vezes, mas sempre protegido. Depois
de sua morte, o movimento foi aos poucos arrefecendo, mas as sementes se torna-
ram férteis quando a verdadeira Reforma cclodiu.

A Igreja Romana não podia ser reformada por um mero movimento sectáno,
embora radical, como o de Wyclif. Somente um novo princípio, ao lado de uma
nova relação com Deus, teria suficiente poder. Foi o que aconteceu com a Reforma
do século dezesseis.

(t) N. dtl "I' N:l vcnbtk,:l lIadiç:lo litúr gica.\ nglic:lna r cc(lnhecc, em gcml, ~ctc ~acramenrn~,cml10ra faça
di"titl<,~;"j( I l:ll t re ()~ doi~ '\1<) L'vallgdho" 0xlti"lllo l: l.:\lclristia) c dcnomine os outros CillCO de "ritos
~;JCl-:lllll"Tlt:l i,," (con fi rllla~<io, tlrdclll. m :ltlim t)ll i t I, pCll i1tnci:l c \111 ~~il( I dos cll termos),

211
CAPÍTULO IV
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE

Antes de estudar a Reforma, vamos discutir a Contra-Reforma desde o Concí-


lio de Trento até a época atual. Durante o período da Reforma, houve muito concí-
lios que tentaram superar a divisão na igreja. Procurava-se a realização de llm con-
cílio geral. Quando, afinal, o Concílio de Trenro foi convocado, em vez de ser um
concílio geral, veio a ser, apenas, o concílio da Contra-Reforma. Na cidade de Trento,
as sessões conciliares estenderam-se por inúmeras décadas, e com muitas interrup-
ções.

""A. O Significado da Contra-Reforma

A Contra-Reforma não foi apenas uma rcação, mas verdadeira reforma. A Igreja
Romana, depois dela, já não era a mesma. Estava determinada a se afirmar corHra o
grande ataque da Reforma. Quando alguma coisa é atacada e se defende, iá não é
mais a mesma coisa. Um dos resultados característicos desse fato foi o esrrcitamento
da igreja. A igreja medieval não deve ser vista à luz desse catolicismo pós-tridentino.
A igreja medieval sempre csteve ~lbena a todas as influências, assimilando tremen-
dos contrastes, como por exemplo, franciscanos e dominicanos (agostinistas e
aristotélicos), realistas e nominalistas, e biblistJS e místicos. Esse espírito desapare-
ceu na Contra-Reforma. A Igreja Romana tendeu a se tornar "contra" - o "contrário"
da Reforma - assim como a igreja protestante, com o seu princípio profético, tor-
nou-se o princípio do protesto contra Roma.

Tratou-se de uma divisão infeliz do cristianismo. A Reforma, em vez de se


transformar na reforma da igreja inteira, tornou-se o dogma dos protestantes que
eram o grupo protestador. Os outroS também se reformaram, mas em termos de
"contra", de oposição a algo bem definido, sem criatividade imediata. É assim que
se dá a situação histórica: quando determinado grupo precisa resistir, ele se torna
estreito e fechado. Tomem o exemplo do ataque do comunismo ao mundo ociden-

212
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉ,CULO VINTE

tal e observem como as liberdades pelas quais os Estados Unidos se mantêm fe-
cham-se tremendamente em nome dessas mesmas liberdades. A Reforma, em si, foi
muito aberta, mas quando começou a sofrer todos os tipos de ataques, fechou-se
nllma estreitíssima ortodoxia protestante - chamada neste país de "fundamentalismo"
- que representa o fechamento da Reforma para resistir aos ataques sofridos.

B, Doutrina das autoridades

Com isso, chegamos à apresentação da doutrina das autoridades definidas pelo


Concílio de Trento.

L As Santas Escrituras e a Apócrifa do Antigo Testamento são igualmente Es-


crituras c têm a mesma autoridade. Lutero tinha eliminado a Apócrifa do Anrigo
Testamento c lhe retirado a validade canônica. Teria desejado remover muitos ou-
tros livros do cânon bíblico, como o livro de Ester, entre outros. Por que lhe interes-
sava tanro eliminar a Apócrifa? Porque se caracterizava por legalismo, em termos de
provérbios, até certo ponto. Esse espíriro legalista existia na Igreja Romana há tem-
pos, e agora era preservado em termos de autoridade dos livros apócrifos. Assim,
temos duas bíblias, a romana e a protestante, que não são iguais.

2. A Escritura e a Tradição estão no mesmo pé de igualdade. Dizia-se: "aceitas


com a mesma piedade e reverência". Foi assim que o Concílio de Trento negou o
princípio das Escrituras. Mas não definiu o que era a tradição. Na verdade, a tradi-
ção se tornou no dia-a-dia idêntica às decisões do Vaticano. Mas a tradição não foi
definida. Ficando assim aberta, permitiu que o Papa a utilizasse do jeito que quises-
se. Naturalmente, com certo critério, pois havia a tradição depositada nos concílios
e em outras decisões. Entretanto, a decisão que se faz no presente é sempre impor-
tante. E essa decisão, sobre o que é a tradição, fica sempre nas mãos do Papa.

3. Declarou-se a Vulgata de São Jerônimo, a única tradução autorizada da


Bíblia. Essa decisão rejeitava o texto do Novo Testamento de Erasmo, que levava em
consideração a alta crítica. Esse texto foi utilizado pelos reformadores. O Papa rejei-
tava a alta crítica para propósitos dogmáticos e, assim, fazia da Vulgat3 a única
tradução sagrada.

4. Quando prevalece o pnncíplO bíblico, pergunta-se: quem interpreta a Bí-


blia? A resposta, sem ambigüidades, de Trento era esta: a Santa Mãe Igreja interpre-

213
CAl'ÍTU LO IV

ta a Bíblia. No protestantismo essa tarefa cra deixada pata as faculdades de teologia.


A diferença é que o Papa é um só e sua decisão é final; havia muitas dificuldades de
teologia no protestantismo; cada qual com sua interpretação nem sempre concor-
dando entre si. Sua autoridade, a longo prazo, não se manteve.

Essa doutrina das autoridades, na igreja, reeditava o que os reformadores ataca-


vam. O Papa jamais poderia ser deposto; não podia ser atacado nem criticado.
S,.i~u_a~ª:§e além de qualquer possibilidade de censura por gualgue!_~l~.~.'?~~_~.~_~ecom-
petente, mesmo que fosse a Bíblia. Só ele possuía o poder da decisão final.J:t:J in- _
terpretação do texto sagrado.

C. Doutrina do pecado

A inrcrprccação do homem, oferecida pelo Concílio de Trenro, difere do


ensinamento dos reformadores. Entendia que o pecado transformava o homem em
algo pior do que era, indeterius commutatum, deteriorado. Dirigia-se contra () pensa-
mento dos reformadores de que o homem, na queda, perdera a liberdade inteira-
mente. Mas essa liberdade completamente perdida nao era a liberdade psicológica,
jamais negada nessas discussões. Tratava-se da liberdade para contribuir de alguma
forma no relacionamento com Deus. Segundo a teologia de Trento, a liberdade
humana não se perdera nem se extinguira; apenas se enfraquecera. _No batismo,
todos os pecados até então cometi:l?~~~ão~rdoados. A concupiscência, no entanto,
permanece depois do batismo. Mas segundo a Igreja Romana, essa concupiscência
não deveria ser chamada de pecado. A confissão de Augsburg afirma que o pecado é
falta de fé; a Igreja Romana ensina que embora a concupiscência venha do pecado,
e incline o homem ao pecado, não é pecado em si. Dessa forma, o homem não seria
completamente corrompido; nem mesmo seus impulsos naturais seriam pecamino-
sos. Essa teologia teve uma importante conseqüência, menos nos Estados Unidos,
onde, desde o começo, o catolicismo se deixou influenciar pelo clima dominante.
O catolicismo não se tornou puritano. O catolicismo pode ser radicalmente ascético,
mas nunca puritano na vida comum. Quando nós, protestantes das regiões nórdi-
cas e orientais da Alemanha, fomos para a Bavária, tínhamos a impressão de ter
entrado num outro mundo cheio de alegria em comparação com o clima moral c
religioso das áreas protestantes. Essa d.iferença vinha da doutrina. Para os
reformadores, a concupiscência j~í é pecado; para a Igreja Romana, não. Por isso, a

214
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE

Igreja Romana pode admitir muito mais liberdade na vida diária, mais alegria, e
maior nt'Imcro de expressões das forças vi tais humanas, do que o protestantismo.

Por outro lado, a doutrina reformada do pecado baseava-se na descrição do pecado


corno descrença ou falta de te. A Igreja Católica Romana dizia que não, que o pecado
não era nem descrença nem separação de Deus. Eram aros contra a lei de Deus. Dessa
maneira, o Concílio de Trento não levou em consideração o conceito religioso de pecado.
A diferença é fundamental. Daí para a frente, a Igreja Romana passou a considerar o
pecado como atos que podem ser perdoados. Quando os católicos confessam seus peca-
dos a um sacerdote, recebem absolvição e são libertados. E assim os elementos vitais da
existência humana são mais plenamentes afirmados nos países predominantemente ca-
tólicos. Para os protestantes, ao contrário, pecado é separação de Deus; os "pecados" são
apenas secundários. Por isso é preciso que ocorra algo bem mais fundamentaL conversão
completa, com transformação do ser e reunião com Deus. Essa exigência faz com que os
protestantes carreguem um fardo bem mais pesado do que os católicos. Por outro lado,
a posição católica é legalista em princípio e divide o pecado em "pecados". Quando os
protestantes fazem a mesma coisa, como acontece muitas vezes, seguem o pensamento
católico e não o protestante.

D. Doutrina da justificação

A linha divisória central, entre os reformadores e a Igreja Católica Romana, era


a doutrina da justificação apenas pela fé (soD:tfide), fórmula usada peIos reformadores
para propósitos polêmicos. No Concílio de Trenro, a Igreja Romana repetiu a tradi-
ção tomista acerca da doutrina da justificação, mas com certa tendência diplomáti-
ca. A Igreja Católica sabia que esse era, como diziam os reformadores, o articulus
SÜlntú aut cadentis ecc!eúae, o artigo pelo qual a igreja permanece ou cai. Sendo o
ponto principal da oposição reformada, a Igreja Romana procurou ser o mais con-
ciliadora possível. Evitou certas deformações da doutrina no nominalismo que a
Reforma já atacava. Contudo, lê-se, claramente, na principal declaração que a remissio
pecatorum, o perdão dos pecados, não vem apenas pela graça (sola gratia). Aparecem
outros elementos. Fala de uma preparação para o ato divino da justificação, pela
qual a graça preveniente (tz;rtltia prfleveniens) se efetua no homem, podendo set acei-
ta ou não, segundo a decisão humana. Assim, o homem deve cooperar com Deus
nessa graça prevenienre. Depois da recepção humana da graça divina, ela conrinu-

215
CAPITULO IV

ará a ser dada à medida que ele coopere com Deus. Quanto maior for a cooperação
humana com Deus, nessa graça preveniente, maior será a graça da justificação.

A justificação, enquanto dádiva, contém dois elementos: fé, de um lado, e


esperança e amor, do outro. A fé apenas não é suficiente. Segundo a decisão conci-
liar, é até possível perder-se a justificação por meio de algum pecado mortal, muito
embora a fé ainda possa permanecer. Os reformadores diriam: quem permanece na
fé jamais perde a justificação. Mas a Igreja Romana entendia a fé nos tcrmos de Slla

antiga tradição que a definia como ato intelectual e moral. Naturalmente, se a fé


apenas fosse ato intelectual e moral, poderia se perder sem afetar a justificação. Mas
para os reformadores fé significava o ato da aceitação da justificação, cOisa que não
pode ser perdida se de fato houver justificação.

Nada tem sido mais mal-entendido, na teologia protestante, do que o termo


sola fide, somentc pela fé. Não só os romanos, mas também muitos protestantes
entendem que se trata de llm ato intelectual humano. Esse ato de "fé" forçaria Deus
a nos dar o seu perdão. Mas so!tL fide significa que no momento do perdão de nossos
pecados não podemos fazer outra coisa a não ser receber o perdão. Qualquer outra
coisa destruiria a atividade de Deus com sua graça exclusiva. Essa posição central
dos reformadorcs de que a graça só podia ser recebida pela fé apenas, não foi enten-
dida, primeiramente, e acabou sendo rejeitada. Nessa hora, a divisão da igreja tor-
nou-se inevitável. Não havia mais qualquer possibilidade de reconciliação entre
essas duas formas de religião: a cloutrina reformada, segundo a qual o ato de se
voltar pata Deus e de receber sua graça é sem qualquer ambigüidade, um aro recep-
tivo, em que Deus nos dá alguma coisa e nós não fazemos coisa alguma; e a doutrina
católica, segundo a qual devemos fazer alguma coisa para nos preparar para a graça,
cooperando com Deus, pois a fé é reconhecimento intelectual que pode existir ou
não. Todos os anátemas do Concílio de Trenro, sobre esse tema, baseiam-se nesse
mal-entendido a respeito da sola fide.

E. Sacramentos

Enquanto os pais de Trenro procuravam se apwximar, até certo ponto, da posi-


ção protestante a respeito da justificação, nada fizeram a respeito dos sacramentos.
Nenhuma prudência pareceu-lhes necessária porque se tratava da essência da Igreja
Romana. Assim declara o Concílio de Trento: "Pelos sacramentos começa toda a

216
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE

verdadeira justiça, c se já começou, é aumentada, e se foi perdida é restituída", Essa


é a função dos sacramen(Qs; é a própria função religiosa.

Não se disse muita coisa sobre o modo da eficácia dos sacramentos nem sobre
o lado pessoal da recepção dos sacramentos. Ficou decidido que os sacramentos são
eficazes ex opere 0perato non ponentibus obicem, isto é, por sua própria operação
naqueles que não opõem resistência à sua eficácia. Se vocês não levantarem nenhum
impedimento Cobicem) dentro de vocês para a sua eficácia, não importará o estado
subjetivo de vocês. Os sacramentos são eficazes ao se realizarem (ex opere operato).

Tratava-se de um POI1[O decisivo para os protestantes. Achavam que não podia


haver relacionamento com Deus a não ser no encontro pessoal, no âmbito da fé.
Tratava-se de algo mais do que mera não-resistência; tratava-se de um ato de retor-
no a Deus. Sem esse relacionamento pessoal, os sacramentos não são eficazes para os
protestantes corno são para os católicos.

Com respeito ao número dos sacramentos, reduzidos a dois por Lutero e Calvino,
os católicos declararam a existência de sete, todos instituídos por Cristo. Essa ques-
tão é de lide, isto é, aceita pela fé pelos católicos. Não se permite nenhuma dúvida
histórica se foram ou não realmente instituídos por Cristo. Sempre que vocês en-
contrarem esta expressão de fide relacionada com formulações dogmáticas, em al-
gum livro católico, significa que é um dogma da Igreja Romana que não pode ser
negado e do qual não se pode duvidar, a não ser correndo o risco de ser expelido
dessa igreja.

Não há salvação sem os sacrameI~~_~~. Eles são poderes salvadores e não só


fonalecedores como no protestantismo. Possuem força oculta própria que passa
para os que não oferecem resistência à graça. Tanto o batismo, como a confirmação
e a ordenação são portadores de cad.ter indelével - outra posição cOIHdria à da
Reforma. As pessoas se batizam de uma vez para sempre; em conseqüência disso, na
Idade Média, todos os batizados estavam debaixo da lei da heresia. Os adeptos de
outras religiões, como os judeus c muçulmanos, respondiam a outras leis adequadas
à Slla condição, e não eram perseguidos por causa da heresia, como os cristãos. O
caráter indelével do sacramento era questão de vida e de morte na prática da Igreja
Romana. O mesmo se aplicava ao caráter da ordenação. Por isso, qualquer sacerdote
excomungado podia celebrar matrimônios válidos na prisão. O poder sacramental
de que estava imbuído superava o estado individual do excomungado. Essa doutri-
na contrariava a idéia protestante do sacerdócio universal. Segundo a doutrina cató-

217
CAPÍTULO IV

lica, nem todos os cristãos recebiam poder para pregar e administrar os sacramen-
tos; essas funções eram privilégio dos ordenados. Ser ordenado queria dizer ter
recebido poder sacramental. O poder sacramental materializa-se até mesmo na for-
ma ritual dos sacramentos. A forma ritual não pode ser mudada nem alterada por
sacerdotes ou bispos sem incorrerem em pecado. O poder sacramental procede de
sua origem e se realiza na igreja por meio de formas autorizadas; nenhuma arbitra-
riedade é possível.

o batismo de crianças é__ :-:~_!i.~{o; aág~I.~ __ º9_" ~ar.i?.I_n()a~~J.ª_~_.,Ç:pp~ª,.Q}~nação 9°._"


"__J~,xado originaL Não era suficiente pata o perdão dos pecados, ter fé no poder do
batismo, ao longo da vida, CülllO ação divina iniciadora da vida cristã, comü queria
Lutero. Religiosamente falando, significa que o batismo perdia seu poder posteri-
ormentc. Não podia ser um momento ao qual se pudesse retornar religiosamente;
seu sentido se limitava ao chrJrrJcter indelebilis.

Preservava-se a doutrina de transubstanciação. Sempre que isso acontece o povo


acaba adorando a hóstia. Para os protestar:~~ o pã~"~~,.~.,~.corpo de Cristo a não
ser no ~~~<::_~~.~:-~!i~.~ç!C?_~0sacrarnenro.,~?E~__?~!.~~.<:..~~~?pão e o vinho são o corpo
. ~_,?,, __~~~g~_e de Cristo depois da consagração. É por isso que quando vocês entram
numa igreja católica vazia - como acontece ao viajarem por países europeus, uma
vez que são lugares de grande interesse - logo percebem que se trata de um lugar
especial com sua atmosfera sagrada. Vocês não estão entrando numa casa para ser
usada apenas aos domingos, e às vezes durante a semana, mas num lugar habitado
por Deus nas vinte e quatro horas do dia, rodos os dias, no santo dos santos, no
altar, no sacrário. É o que determina essa atmosfera. Deus está sempre lá de modo
bem definido, no altar. Nas igrejas protestantes, nada disso acontece. É por isso que
as tentativas de algumas igrejas protestantes de permanecerem abertas para oração
e meditação, durante o dia, não têm o mesmo efeito. Mas nas Igrejas Romanas algo
aconteceu e seus efeitos estão ainda lá - a presença do próprio Deus, do corpo de
Cristo, sobre o altar.

Nessa base, a Igreja Romana também preservou a missa contra a crítica dos
reformadores. Não apenas a missa pelos vivos, mas também a missa - sacrifício do
corpo de Cristo - pelos mortos no purgatório. O Concílio de Trenro não fez nenhu-
ma reforma nessa prática nem elaborou fundamentação tcológica convincente. Apenas
confirmou e consagrou a tradição.

A atitude, para com o sacramento da penitência, foi um pouco diferente. O

218 1,
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE

protestantismo também atacava a prática vigente. O sacramento da penitência era,


geralmente falando, mantido como sacramento até mesmo com o seu aspecto mais
fraco, conhecido como doutrina da atrição, que Lutero ironicamente chamava de
arrependimento evocado pelo patíbulo, induzido pelo temor. A atrição era conside-
rada elemento preparatório necessário. A contrição, que o Novo Testamento chama
de rnetanoia, não era suficieme. Só se realizava em conexão com o sacramento e a
palavra da absolvição. Essa palavra não apenas declarava que Deus perdoara, mas
era ela mesma o perdão. Não era que o sacerdote dava o perdão, mas era através
dele, e só dele, que Deus concedia o perdão. Não obstante, os cristãos precisavam
ainda de algo mais. Precisavam de satisfações, porque a punição não cessava com a
remoção da culpa. Portanto, o povo precisava cumprir certas penas mesmo depois
de ter freqüentado o sacramento. Essas satisfações variavam entre repetir o "Pai
Nosso" cem vezes, dar dinheiro e fazer peregrinações. Foi nesse ponto que os
reformadores mais discordaram de Roma.

o casamento é ainda considerado sacramento, embora em contradição, a vir-


gindade seja tida em mais alta estima. Essa era a situação na Igreja Romana, mais
ou menos em andamento, enquanto a Reforma não se fixava. Mas com a concretização
da Reforma, tudo isso se oficializou contra a Reforma. E assim, a Igreja Romana
perdeu a criatividade dinâmica da Idade Média. Vocês podem verificar o que estou
dizendo lendo teologias sistemáticas escritas por teólogos católicos; tratam de pro-
blemas bastante secundários, porque todos os problemas fundamentais já foram
resolvidos.

A doutrina fundamental, no entanto, é a da ordenação. Nela todas as outras se


reúnem. O sacerdote faz o que, de fato, constitui a Igreja Romana, exerce o poder
sacramental. A pregação é secundária e, muitas vezes, omitida. O sacrifício e o
sacerdócio são ordens divinas. O sacrifício é a oferenda do corpo de Cristo na missa.
Qualquer lei eclesiástica as pressupõe. Esta igreja do sacrifício sacramental é a igreja
hierárquica, e vice-versa. É o catolicismo na sua versão romana.

Y
,
F. Infalibilidade papal

Tais decisões confirmavam a divisão do cristianismo. Roma apenas aceitava


paliativos contra os abusos. Muitos problemas permaneciam. O primeiro era o da
relação do papa com os concílios. Essa questão nos leva ao que se passou em Trento

219
CAPÍTULO IV

e Vaticano I em 1870. Em Trellto, havia duas opiniões antagoIllcas. A primeIra,


afirmava que o papa era vigário de Cristo c bispo universal. Qualquer poder episco-
pal procedia do papa; os bispos participavam nele e ele nos bispos, nessa qualidade
vicária. A outra opinião é que o papa era apenas o primeiro entre iguais, represen-
tando a ordem e a unidade da igreja. Esse ponto de vista chama-se conciliarismo;
aos concílios pertence o poder das decisões finais. O outro se chama curialismo; a
cúria, a corte do papa, é o poder decisório centraL Essa questão não foi decidida em
Trento. Foram necessários mais alguns séculos.

Era preciso acabar com as tendências históricas que favoreciam o surgimento


de igrejas nacionais, extremamente perigosas para o papa e a Igreja Romana. Essa
foi uma das razões que levou a igreja ao Concílio Vaticano r. Havia, por exemplo, na
igreja francesa, um movimento separatista conhecido pelo nome de galicanismo.
Movimentos similares na Alemanha, Áustria e outros lugares, sob a liderança de
bispos locais, resistiam a diversas aspirações papais. Os governadores civis E!zialll
alianças com esses bispos contra o papa. Mas o desenvolvimento histórico não favo-
receu essa tendência. Entre as razões existentes, havia interesses políticos. Muitos
governantes, como por exemplo, os líderes da revolução francesa (Napoleão) e os
príncipes alemães, usavam o papa contra os poderes eclesiásticos locais. A diploma-
cia é sempre imprevisível. O resultado desse jogo de poderes fortaleceu o poder
central do papa. Em 1870, o Concílio Vaticano 1 proclamou a infalibilidade do
papa. Essa decisão se baseou elll inúmeros pressupostos. Era preciso, em primeiro
lugar, definir o significado do termo "tradição". Distinguia-se, agora, entre tradição
eclesiástica e apostólica. A tradição apostólica compunha-se de antigas tradições
recebidas pela igreja por outros lneios não contados na Bíblia. A tradição eclesi~:isti­
ca é a tradição decidida pelo papa ao longo da histótia da igreja. A tradição eclcsi.
áSflca, única tradição viva, coincidia com as decisões papais. Esse é o seu lado posi-
tivo.

Examinemos, agora, o lado negativo: os jesuítas empenhavam-se em subverter


todas as autoridades. Em contraste corn Tomás de Aquino, fizeram-se os líderes da
consciência dos príncipes, ao lado de muitas outras pessoas. As personalidades po-
líticas mais importantes, em geral, cercavam-se de jesuítas para lhes aconselhar,
deixando que dirigissem suas consciências. Ora, quando se dirige a consciência de
um príncipe, dirige-se também suas decisões políticas, posto que sempre há ele-
mentos morais nessas decisões. Era o que os jesuítas faziam. Levavam as consciênci-
as dos príncipes católicos a favorecer todas as crueldades da Contra-Reforma. Dessa

220
CAfOUCISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE

forma, a consciência perdia a autoridade e não mais prestava serviço ao povo.

Os jesuítas reduziram a autoridade dos bispos, principalmente por meio da


il1terp!_e~çi!9__ 9..-11~. f?:zia~n_.4º--~!Ú§copa4Lno...LǺncíliQ~. Diziam que os concílios e
suas decisões precisavam ser confirmadas pelo papa. O papa triunfava, assim, sobre
os concílios. No final, o papa foi aceiro pela maioria dos bispos reunidos em Trento,
como a autoridade necessária para confirmar esse mesmo concílio. Conseqüente-
mente, só são válidos os concílios confirmados pelo papa. O papa se coloca além de
qualquer crítica. Até mesmo os pais da igreja foram rejeitados pelos jesuítas. Eles
eram, panicularmcme, antiagostinianos. Restava agora apenas um pai da igreja, o
papa reinante. Todos os antigos pais da igreja escreveram inúmeras heresias entre
erros e mesmo falsifiGlçães. Como vocês vêem, os jesuítas eram gente bem moder-
na. Conheciam muito bem os problemas históricos e se utilizavam deles para sub-
verter a autoridade dos pais da igreja. A historiografia protestante, afinal, fizera a
mesma coisa para possibilitar a autoridade profética dos reformadores. Ambos os
lados se aproveitavam da crítica: os jesuítas para dar poder absoluto ao papa, e os
protestantes para liberar a autoridade da Bíblia.

A constituição de 1870, Pastor AeternU5, declarou que o papa tinha poder uni-
versal de jurisdição sobre qualquer outro poder na igreja. Não há nenhum corpo
legal que se submeta ao papa. Em segundo Jugar, ele passou a ser o bispo universal.
Com isso o papa, por meio do bispo local, podia interferir na vida de qualquer
católico, e se não conseguisse o apoio do bispo podia levar o povo a se revoltar
contra ele. Em terceiro lugar, o papa é infalível quando faz pronunciamentos ex
cathedra. Essa foi a mais desconcertante decisão do Concílio Vaticano I que ocasio-
nou a separação de um grupo de católicos conhecidos como "velho-católico". Esse
grupo não conseguiu influenciar a Igreja Romana e permanece até hoje, principal-
mente na Alemanha Ocidental.

A primeira decisão ex cathedrtl, desde 1870, foi feita em nossa época, em 1950,
sobre a assunção corporal da Virgem Maria. A decisão só foi tomada depois de
ampla consulta aos bispos. A maioria manifestou-se favorável contra reduzida opo-
sição. Na verdade, a tradição a esse respeito é bem antiga, remontando a mais de
mil anos. São inúmeras as pinturas e desenhos, em diferentes períodos da história
da igreja, que representam Maria elevada aos céus e coroada por Cristo, ou recebida
por Deus. Tratava-se de mera opinião piedosa a ser tolerada pela igreja, ou era
matéria de iir/e? À medida que não passasse de mera opinião piedosa, qualquer cató-
lico poderia discordar dela sem perder a salvação da alma. No momento em que o

221
CAPÍTULO IV

papa declarou a assunção de Maria de fide, em 1950, todos os católicos se tornaram


obrigados a aceitá-la sem qualquer apelação. Muitos católicos se chocaram com a
nova doutrina, mas tiveram que se submeter ao decreto papal.

A infalibilidade do papa não significa que todas as suas palavras sejam infalí-
veis. Num período de oitenta anos, de 1870 a 1950, nenhum papa pronunciou
qualquer sentença infalível, nesse sentido. Mas, em 1950, a infalibilidade foi apli-
cada. E assim ficamos sabendo que o dogma da infalibilidade do papa é levado a
sério e sem restrições. Os protestantes e os humanistas não podem, de maneira
alguma, aceitar essa doutrina nem suas conseqüências.

o quarro ponto de Pastor Aeternus confirma plenamente o que estamos expon-


do. O papa é irreformável: a igreja não pode mover nenhuma ação contra o papa.
Comparemos esta atitude com os processos de impedimento possíveis, constitucio-
nalmente, contra o presidente dos Esudos Unidos. Têm sido raros, mas já existiram
e podem se repetir. A mesma coisa jeí aconteceu contra papas na Idade Média;
alguns foram depostos e outros ocuparam seus lugares. Mas tudo isso terminou,
em 1870, porque desde então nenhum poder será capaz de depor um papa. O papa
é absoluto e irremovível. Nenhum impedimento é possível. Qualquer dogma que o
papa formular será implicitamente válido. Por isso, por exemplo, a doutrina da
Imaculada Concepção da Virgem Maria no nascimento de Cristo, formulada antes
de 1870, tornou-se de fide. Os dominicanos, contrários aos franciscanos nesse as-
sunto, diziam, então, que o dogma não era válido. Mas se tornou válido quando o
papa aceitou ex cathedra.

G. Jansenismo
Surgiu na Igreja Rom_~n....~:E5:~movirnento de retorno ao agostllllamsmo ~~!5.i-
~!BL1:~l~_I!10vimentos~s:b!~~J.~.~~s.~rÜsmo, por causa de CorD~li.t;;I.úª.!li.~D-=..O jesu-
íta Molina escrevera contra os dominicanos tomistas a respeito da doutrina da
predestinação. Os jesuítas se opunham a essa doutrina e lutaram em favor da liber-
dade humana. Os jansenistas, começando pelo próprio Jansen e envolvendo gente
como Blaisc Pascal, atacaram os jesuítas. Os jesuítas venceram a disputa e os papas
ficaram de seu lado. Representavam a modernidade da Igreja Romana. Eram disci-
plinados, levando um estilo de vida semelhante às modernas formas totalitárias de

222
CATOLICISMO ROMANO DE TRENTO AO SF,CULO VINTE

arregimentação e submissão. Devotavam-se completamente ao poder da igreja sem


deixar de lado as idéias modernas, a atividade intelectual e o esforço educacional.
Acentuavam, em tudo isso, a importância da liberdade e da razão.

o movimento jansenista queria trazer de volta a genuína tradição agostiniana,


mas não conseguiu por causa da persistente oposição dos jesuítas. Contudo, nesse
processo, os jesuítas perderam muito prestígio perante o público e, no século de-
zoiro, foram expulsos de alguns países católicos. Nesses debates, levanta-se curiosa
questão. Se as sentenças de Carne/ius Jansen sao condenadas, a condenação se refere
apenas ao conteúdo formal Oll se pergunta também se de fato ele teria dito o que a
acusação entendia que ele dissera~ A questão não parece importante à primeira
vista. Mas é. Quando o papa examina qualquer texto e o condena, entende que está
exercendo um juízo correto não apenas rejeitando as idéias contidas no texto, mas
também afirmando que tais idéias estavam realmente no texto. Dessa forma, esta-
belecia-se que o papa era o intérprete dos textos. Quando o papa afirma que é esse
o significado do texto, não é mais possível defesa filosófica alguma. Observamos
aqui a extensão natural do princípio totalitário-autoritário em relação com fatos
históricos. O papa decide o que é e o que não é fato histórico, e não apenas se tal
fato pO~~,_ser ver.d~~_~~I:.~._.~"~!:...~:EI~?S teológico.s.:_
O jansenismo produziu outros escritos. Um outro escritor, Quesnel, procurou
também reavivar os princípios agostinianos contra os jesuítas. Mas o papa nova-
mente apoiou os jesuítas e Agostinho foi afastado, em boa parte, do catolicismo da
Contra-Reforma. Na bula Unigenitus, o papa rejeitou a melhor parte da tradição
romana. Rejeitou a doutrina agostiniana da graça, da fé e do amor. Por exemplo,
estará anatematizado quem disser com Agostinho: "Em vão, Senhor, tu condenas se
não nos dás o que ordenas". Para Agostinho, os mandamentos de Deus só se cum-
prem se Deus concede aquilo que exige. Ora, depois do jansenismo, quem fizer essa
afIrmação na Igreja Romana, passa a ser condenado; nesse caso, Agostinho é, tam-
bém, implicitamente, condenado.

Quando encontramos católicos mais progressistas - há mais católicos desse tipo


na Europa do que nos Estados Unidos, onde o catolicismo, com poucas exceções,
tem perdido o poder espiritual - logo percebemos sua reverência por Agostinho.
Esses católicos, no entanto, vivem sob a ameaça de exclusão, de excomunhão ou de
condenação ao silêncio. Em recentes viagens à Alemanha, pude debater questões

223
CAPÍTULO IV

teológicas com inúmeros grupos católicos e fiquei surpreso ao constatar como estamos
próximos uns dos outros. Mas percebi também que eles sabem que correm perigo!
E quanto! Tudo isso indica que a condenação do agosrinianismo, na controvérsia
jansemsta, oscila como uma espada sobre todas as formas espiritualizadas do cato-
licismo.

H. Probabilismo

o último problema que vamos examinar é o probabilismo. As opiniões ofereci-


das pelas autoridades da Igreja Romana em questões de ética são prováveis. Os
jesuítas diziam: se alguma opinião for provável, podem segui-la mesmo se a opinião
contrária parecer mais provável ainda. Não se podia, pois, ter autonomia em ques-
tões de ética. Os católicos deveriam sempre seguir a orientação do sacerdote, espe-
cialmente do confessor. Mas o confessor também tinha diante de si diversas possibi-
lidades. Tinha que aconselhar as pessoas, não a partir do que lhe parecesse correto,
mas segundo as autoridades; ora, essas autoridades sempre se contradiziam, ou pelo
menos, tinham opiniões diferentes; restava-lhe seguir o caminho do que lhe pare-
cesse provavelmente certo, muito embora soubesse que outras atitudes éticas tam-
bém pudessem ser provavelmente cerras. Era melhor quando o confessor podia
seguir a orientação de alguma autoridade reconhecida pela igreja, mesmo se não
concordasse inteiramente com ela ou se achasse pessoalmente que outras possibili-
dades fossem mais corretas. Como resultado desse tipo de procedimento, a igreja
caiu num tremendo relativismo ético, com a conseqüente frouxidão dos costumes
e, finalmente, o caos. Até que, no século dezoito, essas coisas não pareceram tão
nocivas, posto que a igreja queria seguir a nova moralidade da emergente sociedade
burguesa. Mas os abusos foram tantos que a Igreja Romana, afinal, reagiu.

Afonso Maria de Liguori tentou modificar a situação, sem êxito, pois também
acreditava que, em última análise, é o confessor que decide. De que maneira decide
o confessor? Por meio do princípio do provável. Além disso, todos os pecados torna-
vam-se veniais. O jesuitismo e a burguesia - os maiores inimigos - aliavam-se para
acabar com a seriedade do pecado mantida pelos jansenistas c pelos primeiros pro-
testantes.

224
CAroUCISMO ROMANO DE TRENTO AO SÉCULO VINTE

I. Catolicismo atual

Muito mais se pode dizer sobre o catolicismo atual. Mencionei algumas deci-
sões mais recentes do papa. Há uma decisão, no entanto, não tão conhecida corno o
dogma da assunção da Santa Virgem. Encontra-se na encíclica papal Hurrulnigelleris.
Nela o papa faz afirmações que vao além do que foi dito no Vaticanum sobre a
infalibilidade do papa. No Vaticanum, a infalibilidade se referia apenas às declara-
ções ex ctlthedra, quando o papa se pronuncia oficialmente sobre questões de dogma
ou ética. Mas na Humani generis, de 1950, ele tratou de filosofias e dirigiu COI1WIl-

dente ataque contra o existencialismo. Com isso, nenhum católico fiel pode traba-
lhar na linha do existencialismo. Trata-se de uma declaração jamais pronunciada
por nenhum papa antes deste. )?~!!§s de Aguino l?~ssa ~2"~r..E_on~iderado o filó~<2.f2...
..9.l.!glif..Q-':MAlguns dos existencialistas franceses - como Lubac e outros - tiveram que
deixar de ensinar porque eram existencialistas, filosoficamente, muito embora res-
pondessem às q uestóes existencialistas em termos religiosos.

Lembro-me de ter perguntado a Reinhold Niebuhr, em março de 1950: "Que


você acha~ Será que o papa promulgad o dogma da assunção da Santa Virgem ex
cathedra~" Ele respondeu: "Acho que não; o papa é bastante esperto para não fazer
isso; seria um tapa na cara do mundo moderno, e perigoso para a Igreja Romana
agora". Poucos meses depois, o dogma era decretado! Vemos que nem mesmo um
observador inteligente, corno Reinhold Niebuhr, podia imaginar tal ousadia do
papa em nossos dias. E foi o que o papa fez! A proclamação desse dogma significa
que qualquer sistema autoritário tende a se tornar cada vez mais estreito para con-
seguir se impor. Precisa fazer o que fazem todos os sistemas totalitários. Excluem,
passo a passo, codos os perigos que lhes parecem ameaçar. Impedem que seus segui-
dores se encontrem com outras tradiçóes. A Igreja Romana conseguia esses intentos
por meio de seu "Index" de livros proibidos. Proibia a leitura de certos livros para o
povo comum, cmbora os estudiosos pudessem tcr acesso a eles. O povo não podia
lê-los. Os estudantes tinham que obter permissão especial.

A proclamação desse dogma tinha também outra conotação. O mundo liberal


se tornara tão fraco que o papa não precisava temê-lo. Esse foi o nosso engano - de
Niebuhr e meu. Pensávamos que o papa respeitaria os protestantes c os humanistas
- talvez até mesmo os comunistas - e não se deixaria levar pela atitude supersticiosa
da Igreja Romana. Não lhe importava a crítica de fora. O papa não teve medo, c
provavelmente com razáo. A resistência protestante contra esse dogma e coisas se-

225
CAPiTULO IV

melhanres tem sido muito fraca. Não consegue mais ferir a Igreja Romana. Por
outro lado, a oposição humanista é quase inexistente porque se acha em processo de
auro-desintegração. A grandeza dos existencialistas está em descrever essa desinte-
gração, muito embora estejam no meio dela.

Precisamos distinguir entre totalitarismo e autoritarismo. Roma não é totalirá-


ria; somente um estado político pode ser totalitário. Mas Roma é autoritária c
exerce inümeras funções próprias dos estados totalitários. A questão colocada dian-
te de nós pela existência do catolicismo é se, com o fim da era liberal, o liberalismo
também se acabará. Essa questão me lembra outra, bem peno do meu coração: se
com o fim da era protestante, o princípio protestante também se acabará. Essa
questão nos leva de volta ao problema da Reforma.

Não vamos nos demorar muito no eS[lldo da Reforma, pois de acordo com o
professor Handy, vocês precisam mais tempo para o estudo da igreja antiga e medi-
eval, uma ve?, que procedem de tradições protestantes e já conhecem as idéias pro-
testantes. Mas não estou muito convencido disso! O tipo de protestantismo desen-
volvido na América não expressa tanto a Reforma, mas os assim chamados evangéli-
cos radicais. Há grupos luteranos e calvinistas bastante forres, mas se adaptaram,
surpreendentemente, ao clima do protestantismo americano. Esse clima não foi
estabelecido por eles, mas pelos movimentos sectários. Quando cheguei nos Esta-
dos Unidos, há vinte anos, a teologia da Reforma era quase desconhecida no Semi-
nário Teológico Unido de New York, por causa das diferentes tradições e da redução
da tradição protestante à tradições já basrante distanciadas da Refotma.

226
CAPÍTULOV
>-/. ATEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

A. Maninho Lutero

o ponto decisivo da Reforma. e da história daJ.gr.'i,,_~m__geral, foiae_J(p:.ri~.":<:i."


de um monge agostiniano em sua ,:eJ~:::?_.!2~~~i+c:.a - Martin~_~., Lute,f?.:_.Não apenas
ensinou doutrinas diferentes; outros já o haviam fcito, como Wyclif. Mas nenhum
dos que protestaram contra o sistema romano havia conseguido romper com ele. O
único homem que realmente conseguiu essa ruptura, e com ela transformou a face
da rerra, foi Lutero. Essa é a sua grandeza. Sua grandeza não deve ser medida em
comparação com o luteranismo; o luteranismo já é outra coisa. O luteranismo tem
estado associado, historicamente, à ortodoxia protestante c a movimentos políticos.
Até mesmo ao conservadorismo prussiano, e a quanta coisa mais! Mas Lutero é
diferente. Trata-se de um dos poucos profetas da igreja cristã. Sua grandeza é tre-
menda, mesmo se limitada por alguns traços de sua personalidade e de desenvolvi-
mentos posteriores de seu pensamento. Um cristianismo purificado, oriundo da
Reforma, conseguiu se esrabelecer nos mesmos termos da tradição romana, graças a
ele. Devemos estudá-lo a partir deste ponto de vista.. pºna~1>ç92quancl.o falo d,e.
Lutero n.~o ::.~~?_~_~~_::_.re~erin~~..~~_5ólo~?,,:L~~~ prodllzi~o()~,!.~E~!.~nismo - mui_~()~_
outros cOIl.tribuíram para esse fi~: . _~,~~_~_~.ton mais do que Lutero - r-r:as ao ho-
mem_s-ue p_~oduziu .a _ruptura.do sIstema romano.

1. A ruptura

o rompimento deu-se em face de três desvirtuamentos do tipo de cristianismo


presente na religião católica romana. E com isso criou-se uma outra religião. Que
significa essa palavra "religião" neste contexto? Quer dizer nada mais do que um
outro tipo de relacionamento pessoal entre o homem e Deus - entre o homem e
Deus e entre Deus e o homem. É por isso que a reunião das igrejas não tem sido
possível apesar dos tremendos esforços para tanto, desde o século dezesseis até hoje.

227
CAPÍTULO V

Pode-se fazer acordos a respeito de doutrinas; mas diferentes religiões não entram
em acordo! Ou adotamos a relação protestante para com Deus ou a católica. Não se
pode ter as duas. Não se pode entrar em acordos a esse respeito.

o sistema católico baseia-se num relacionamento objetivo, quantitativo e rela-


tivo entre Deus e homem com a finalidade de trazer ao homem a felicidade eterna.
A cstrlltura básica é essa: objetiva, não pessoal; quantitativa, não qualitativa; relati-
va e condicionada, não absoluta. O que nos leva a outra proposição: o sistema
romano envolve certo gerenciamento divino-humano, representado e corruclo real
pelo gerenciamento eclesiástico.

Examinemos, em primeiro lugar, o propósito. Pretende dar ao homem a bem-


aventurança eterna salvando-o da punição eterna. As alternativas são o eterno sofri-
mento no inferno ou o eterno prazer no céu. Alcança-se tal propósito por meio dos
sacramentos, nos quais a graça mágica e divina fica de um lado, e a liberdade moral
produtora de méritos, do outro - a graça mágica é completada pela lei ativa, e a lei
ativa é completada pela graça ndgica. O caráter quantitativo transparece também
em termos de mandamentos éticos. São de dois tipos: mandamentos e conselhos -
mandamentos para todos os cristãos, e conselhos, com o pleno jugo de Cristo,
apenas para os monges c, parcialmente, para os sacerdotes. Por exemplo, o amor aC?s
inimigos é conselho de perfeição, e não mandamento para todos. A ascese é conse-
lho de perfeição, só para alguns. As punições divinas são rambém quanritativas. A
punição eterna é para os pecados mortais, a do purgatório para os pecados leves, e a
recompensa do céu, para as pessoas que já estão no purgatório e, às vezes, para os
santos ainda na terra.

Sob tais condições jamais alguém poderia saber se seria salvo, pois jamais se
pode fazer o suficiente; ninguém podia receber doses suficientes do tipo mágico da
graça, nem realizar número suficiente de méritos e de obras de acese. Como resul-
tado desse estado de coisas havia muita ansiedade no final da Idade Média. Em
meu livro, A Coragem de Ser, descrevo a ansiedade da culpa como um dos três
grandes tipos de ansiedade, e relaciono essa ansiedade provocada pela culpa com o
fim da Idade Média, tanto histórica como socialmente. É claro que essa ansiedade
sempre está presente, mas tornou-se avassaladora e foi quase como uma doença
contagiosa. As pessoas não conseguiam encontrar a misericórdia de Deus e se livrar
da má consciência. A arte do período expressa intensamente essa ansiedade. Mas
também é vista nas eXigênCIaS de peregrinações cada vez mais freqüentes, no

228
A TEOLOGIA DOS RHORMADORES PROTESTANTES

colecionamento e adoração de relíquias, nas repetições dos "padre-nossos", na dádi-


va de dinheiro, na compra de indulgências, na accsc autorofturante, e em qualquer
outra coisa que pudesse livrar as pessoas da culpa. Vale a pena olhar com interesse
para essa época, muiw embora seja difícil entendê-la. Lutero vivia nU!l~ m?srciro
com essa mesIl1'::, ansiedade, em face da culpa e da ameaça da condenação. Foi por
causa dela que se internou no mosteiro e foi também por sua causa que descobriu
que nenhuma quantidade de pdricas ascéticas conseguia dar às pessoas a certeza da
salvação Ilum sistema de relatividades, quantidades e coisas. Estava sempre com
medo do Deus ameaçador, do Deus punitivo e destruidor. E perguntava: Onde
posso enc?I~tra;-~~'D~~'~~1~~;';~~-~:a[~~~T~=~forn:,~__~?~:!eço_~.,.<lJ?_~~~~._~::í e da ans~,-_
edadc§ubjaccntc.

'* Que tinha Lutero a dizer contra o ponto de vista quantitativo, objetivo e rela-
tivo de Roma? Dizia que a relação do homem para com Deus era pessoai. Era uma
relação de tipo Eu-Tu, sem qualquer mediação de pessoas ou coisas, estabelecida
pela aceitação da mensagem da aceitação, que era o conteúdo da Bíblia.J'.J:ªQ_,_~
_~~~1~age determinado estado o~)je~iv~ noqt~_~l se está;, trata-se,de 1!I'"0,~!.~laçã~~~~?--=­
.~9~e L~~~ro chamava de "fé", não fé sujeita à crença em,..alg~ma coisa ou doutrina,
~a.s aceitação do fato de sermos aceitos. Qualitativa, não quantitativa. Ou a pessoa
se separa de Deus ou não. Não há graus quantitativos de separação ou de não-
separação. No relacionamento entre pessoas pode-se dizer que há conflitos e ten-
sões, mas à medida que a relação é de conflança e amor, é qualitativa. Não é quan-
titativa. Da mesma forma, é incondicionada e não condicionada, como no sistema
romano. Não s~~~_<:,~.~~i.~_perto de Deus trabalhaI:do-se mais p~,l_~_.!!?{ej~, ou
mortifica~:.do-se o próprio corpo, mas apenas e unicamente_ ao sel:l''l,iT,S9!!!._~k.. E se
alguém não se une a Deus permanece separado dele. Um dos casos é incondicional-
mente positivo; o outro, incondicionalmente negativo. A Reforma redescobriu as
categorias incondicionais da Bíblia.

Em decorrência disso, desaparecem da piedade os elementos mágicos e legalistJs.


O perdão dos pecados, ou aceitação, n50 se restringe apenas ao batismo realizado
no passado, mas constantemente necessário. O arrependimento manifesta-se em
todas as relações com Deus e em todos os momentos. Os elementos mágicos e
legalistas desaparecem porque graça é comunhão pessoal de Deus com o pecador.
Não há qualquer possibilidade de mérito; apenas a necessidade de aceitação. Não
há nenhum poder mágico oculto em nossas almas capaz de nos tornar aceitáveis,

229
CAPÍTULO V

mas somos aceitos apenas no momento em que aceitamos a aceltação de Deus.


Portanto, rejeitam-se as atividades sacramentais como tais. Os sacramentos persis-
tem, mas significando coisa completamente diferente. E as práticas ascéticas são
rejeitadas para sempre porque são incapazes de nos dar qualquer certeza. Neste
ponto permanece certo mal-entendido. Pergunta-se: não é isso egocentrismo? Acho
que foi Jacques Maritain que me fez essa pergunta. Como é que os protestantes
podem tàlar assim com tanta certeza? Mas Lutero não teve em mente certezas abs-
tratas; referia-se à reunião com Deus implicando, naturalmente, certeza. Todas as
coisas centralizam-se nessa aceitação. A certeza é esta: se tem~~.Deus2 nós o temos.,
Se nos observássemos a nós mesmos, considerando nossas experiências, pesando
nossos atos de acese, e mcdindo nossa moral, só chegaríamos à certeza se fôssemos
extremamente autocomplaccntes ou ccgos. Estou falando de categorias absolutas.
A exigência divina é absoluta. Não se trata de exigência relativa a nos propor bem-
aventuranças pela metade. A exigência absoluta é esta: aceita com alegria a vontade
de Deus! Só existe uma única punição e não graus diferentes de satisfação eclesiás-
tica ou de pagamentos no purgatório, ou finalmente o inferno.:-...AJtnica e_aJ?§oluta
punição é o desespero da separação de Deus. Conseqüentemente, a Ünica graB_.~2­
união com Deus. Só isso! Lutero reduziu a religião cristã a essa extrema simplicida-
de. Adolph von Harnack, grande historiador do dogma, chamou Lutero de gênio
da redução.

Lutero acreditava que r~'p!od. ~~~}~_?~.ensinamenro do Novo Testamen_t~_,..~_speci­


atmente de Paulo. Embora sua mensagem contenha a verdade de Paulo, não repro-
duz tudo o que Paulo ensinou. A situação enfrentada por Lutero_~etermin~~__ ?__9.1!e
utilizou de Paulo, isto__ ~2-~" ~?..~.l~~.i~1a da)~~_~!.0.~ax~o pela fé que era a defesa do
_.~pó~~_lo contra o le~_~~?!~.? ..J:1as Lutero não desenvolveu a doutrina paulina do
Espírito. Naturalmente, não a negou; até mesmo a mencionou, muito embora sem
lhe dar a mesma ênfase. E por isso a doutrina do Espírito de "estar em Cristo", a
doutrina do "novo ser", veio a ser um dos pomos mais fracos da doutrina de Lutero
da justificação pela fé. Em Paulo a situação é diferente. Paulo estabelece três centros
em seu pensamento, elaborando U111 triângulo e não um círculo. Em primeiro lu-
gar, temos sua consciência escatológica, com a certeza de que em Cristo a escatologia
se realiza e começa a nova realidade. Em segundo lugar, a dO~E~L~~~~ ES'pí!i~9.,. __
significando que o reino de º,,~~:'_~l?~_~~::~~«:_ql1eo novo ser ~~.~~}~to já nos é ~~do
aqui e agora. Em rerceiro lugar, Paulo se defende criticamente do legalismo por
meio da justificação pela fé. Lutero aceitava essas três posições. naturalmente. Mas
a doutri!:!.~_~~.s.s.<l.~?,lógica nunca foi real;~;·~'t-~--en~~;;dTd;">,E~·~--~I~. _

230
A TEOLOc;IA DOS RFFOIUvlADORES PROTES1ANTES

A ruptura de Lutero foi provocada externamente pelo sacramento da penitên-


ela. Há dois principais sacramentos na Igreja Romana: a missa, gl1e é parte da Ceia
do Senhor, e o sacramento da penitência, de caráter subjetivo, relacionado com o
indivíduo, com Função predominantemente educativa. Este sacramento poderia ser
chamado de sacramento da subjetividade em contraste com a missa, preeminente-
mente, da objetividade. A vida religiosa da Idade Média movimentava-se entre
esses dois pólos. Embora Lutero atacasse a missa, não centralizava nela a sua crítica;
sua principal comenda tinha a ver com os abusos relacionados com o sacramento da
penitência. Esses abusos vinham das diferentes partes do sacramento: contrição,
confissão, absolvição c satisfação. Os primeiro e último elementos eram os mais
pengosos.

A contrição - arrependimento em si, mudança de mente - era substituída pela


atrição, que era o medo da punição eterna; arrependimento, segundo Lutero, inspi-
rado pela ameaça iminente do patíbulo. Assim, sem qualquer valor religioso. A
satisfação era também perigosa, não só porque os pecados seriam perdoados por
merecimento, por meio de obras de sacisfação, mas principalmente porque os peni-
tentes tinham que realizar tais obras porque o pecado ainda permanecia neles de-
pois do perdão. O fato decisivo era, então, a humilde submissão às satisfações exigidas
pelo sacerdotc. O saccrdote impunha ao communicandus qualquer tipo de repara-
ção, às vezes tão difíceis que as pessoas tinham medo de ter de cumpri-las. A igreja,
por sua vez, cedia a esse temor cm termos de indulgências, quc eram também
sacrifício. Era PL~~~~,~~E~iB.~?~_~g:~~~J::~.r:~~1::t~
__ ge 4~.I~~~iro para a compra das indul-
~cias. Adquirindo-as, os_P~~.!_~entes não mai.~__ I?:ecis~~~_ cu~:pr~_as penas deter-
minada..u?.:Io confessor. Segundo o pensamento popular, essas satisfações apagavam
a consciência de culpa. Pode-se diz~.:'!"p'roccdia a ccrto tipo de comércio da
vida eterna. Q.~~::~~g~~_r,.uI!~_.p?~ia cOI~.PE~L,<!~~~!g~~~~,~G:.s_e livrar-se dessa forma de
todas as eena~tant?_~_~ui na !:..:~ com~no-p.~rgatório. Tais abusos levaram Lutero
a repensar o sacramento da penitência. E chegou a conclusões completamcnte con-
trárias às da Igreja Romana. Suas críticas levaram-no não apenas aos abusos, mas à
sua origem no âmbito da doutrina. E, por isso, Lutero afixou suas famosas Noventa
e Cinco Teses na porta da igreja de Wittenberg. A primeira delas tornou-se fórmula
clássica do cristianismo reformado: ~~~_~~~2J_~bo~_t:_1y1estrsJ~~.us_Crist~!_.3..'2,_"s!L7:t::T~
_ "arrep~ndei-vos"," de~ejou que a vida iIHeira dos fiéis fosse penitência". Queria dizer
que o ato sacramental era apenas a forma em que se expressava uma atitude muito
mais universal. O importante era a relação com Deus. O gue os ~refo~~ad9_~_e~ _~~_9,11- __
xs;ram não foi ~~.~~__4~~trina, mas nova forma de relacionamento com Deus. Essa

2ji
CAPÍTULO V

relação não se expressava num comércIO entre Deus c homem, mas era pessoal c
penitente, em primeiro lugar. E, em seguida, relação de fé.

É provável que sua expressão mai.~ notável c paradoxal tenha sido dada por
Lutero nas seguintes palavras: "A penitência oscila entre a justiça c a injustiça.
Portanto, arrependemo-nos porque somos pecadores, mas por essa mesma razão
somos igualmente justos, e no processo da justificação, é assim que somos, parcial-
mente pecadores e parcialmente jusws - na verdade, o que importa é o arrependi-
mento". O arrependimento está sempre ~se!!~_~~_t:!!.51~laIguer~l<:l:ç.ioCl0-n.1~}1toh u-
mano com Deus. Lutero não atacav.~,_!~~~sião,~-ª-~ne'!toda penitência em si.
Até mesmo acreditava que as illdulgê!1Ci~J~?-deri~~_~·."E?!~~adas. Mas não se~~.~l­
formava com o centro de onde ~01ham to~?~_.~~:_~,~.~?~~-.-:.~~~aera ~_quest~~ fund!-
mental da Reforma.

Depois dos ataques de Lutero as conseqüências seguiram-se naturalmente. O


dinheiro das indulgências só poderia tcr valor cm relação às obras impostas pelo
papa, isto é, às pena'> canônicas. Os mortos no purgatório não poderiam scr liberta-
dos pelo papa, esse poderia apenas orar por eles; não tinha poder sobre a morte. O
perdão dos pecados era ato divino e tanto o papa como qualquer outro sacerdote
apenas podia declarar o que Deus jd. fizera. Não há nenhum outro tesouro além da
obra de Cristo de onde as indulgências poderiam sair. Nenhum santo poderia rea-
lizar obras supérfluas porque é dever humano fazer tudo o que for possível. O poder
das chaves que é o poder dos pecados é concedido por Deus aos discípulos que
permanecem com ele. As únicas obras de satisfação são obras de amor; todas as
outras não passam de invenção arbitrjria da igreja. Não há tempo nem espaço para
elas, porque na vida real precisamos tcr consciência dcssas obras de amor quc nos
são exigidas a cada momento. A confissão, feita diante do sacerdote no sacramento
da penitência, dirige-se para Deus. Não é preciso ir-se ao sacerdote para esse fim.
Scmpre que repetimos o "Pai Nosso" estamos confessando os pecados; é isso que
importa, não a conflssão sacramental. A respeito da satisfação, Lutero dizia que é
conceito perigoso, posto que jam:1is poderemos satisfazer a Deus. A única satisfação
possível é :1 que fez Cristo, não a nossa. O purgatório não passa de ficcão da imagi-
nação humana sem qualquer fundamentação bíblica. Sobre a absolvição, que era o
outro elemento do sacramento da penitência, Lutero se mostrara psicologicamente
sensível a seus efeitos igualmente psicológicos, mas negava a sua necessidade. A
lncnsagem do Evangelho, que é mensagem de perdão, é absolvição em todos os
ins[antes. É o que recebemos quando oramos a Deus pedindo perdão. Não é preci-

2.J2
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

50 ir à igreja para esse fim.

Dissolvia-se, assim, o sacramento da penitência, completamente. Transforma-


va-se em relação pessoal com Deus e com o próximo, contra o sistema mediador
estabelecido pata a obtenção da salvação das penas do inferno, do purgatótio e
mesmo da terra. Todos esses conceitos, se não completamente abolidos, foram cri-
ticados por Lure:o. Tudo foi levado para a relação inrerpessoal eone Deus e ho-
mem. Essa relação seria possível até mesmo no inferno. E o inferno passava a ser
concebido como estado e não lugar. A compreensão reformada do relacionamento
__do horne~ __ <:=_~.~_ Deu~ ,,<l~_,?lia .(?"E~l2.~?_~_~'-yj~ta "medieval.
O Papa não aceimu essas categorias absolutas de Lutero. E surgiu o conflito de
Lutero com a igreja. Mas deixemos claro que a cisao não começou aí. Lutero espe-
rava reformar a igreja, os papas c os sacerdotes. Mas o Papa e os sacerdotes não
queriam ser teformados. A última bula definindo o podet do papa dizia: "Pottanto,
declaramos, pronunciamos e definimos que é universalmente necessário para a sal-
vaçao de todas as criaturas humanas a sujeiçao ao sumo sacerdote romano". Essa
bula definia com ptecisão o poder absoluto e ilimitado do papa.

,>1;-2. A crítica de Lutero à igreja

~~~.. ~_~_~_~~~_cad~"2or Lutero por não acei~~_~gs reparos que fa:?:~a ao sacra-
mento da---l2.f!litência. O critério fundamental para a compreensão do cristianismo
era a mensagem do Evangelho. Por essa razão não era possível a aceitaçao da infali-
bilidade do papa. O papa podetia errar e até mesmo os grandes concílios da igreja.
Não se podia aceitar nem a teoria curialista, na qual o papa é monarca absoluto,
nem a conciliarista que transferia a infalibilidade para os grandes concílios da igre-
ja. Tanto o papa como os concílios são humanos e podem errar. O papa poderia ser
tolerado como chefe e administrador da igreja, baseado na lei humana, a lei da
conveniência. No entanto, o papa reivindica um governo de direito divino e faz de
si mesmo um personagem absoluto na igreja. Lutero não podia tolerar essa doutri-
na porque nenhum ser humano poderia se arvorar em vigário do poder divino. O
diteito divino do papa é teivindicação demônica, na vetdade, procedente do
Anticrisro. Quando afirmou essas coisas, a ruptura com Roma se tornava clara. Só
havia uma cabeça da igreja, o próprio Cristo, e o papa, como era então, fora criado
pela ira divina para punir o cristianismo por causa de seus pecados. Lutero não
queria apenas ofender o papa: falava teologicamente, Falava com seriedade teológica
ao acusar o papa de Anricristo. Não se rebelava contra uma pessoa particular por

233
CAPÍTULO V

causa de suas falhas. Havia muita gente que fazia isso, que critICava o comporta-
mento do papa na época. Lutero criticava a posição do papa e sua reivindicação de
ser o representJpte de Crist~9L~~~eito divino. Nesse sen!}d~"~-R.a~_~~~~i~_a.:.
almas. Q~eha~.!:1.I1].,P_~~~! .. ~~ J~.::~·~~!1E~apen'lL~J2~l!~
Lutero, enquanto monge, experimentaria a importância do monasticismo para
a Igreja Romana. Dessa atitude monástica surgiu o padtão duplo de moralidade: os
conselhos, para os que viviam mais perto de Deus, e as regras, para os outros. Os
conselhos superiores para os monges, como o jejum, a disciplina, a humildade, o
celibato etc., tornavam-nos ontologicamente superiores aos mortais comuns. Esse
duplo padrão surgiu da situação histórica em que a igreja cresceu depressa demais.
Pensava-se que as massas não poderiam assumir, como se dizia, o jugo de Cristo,
demasiadamente pesado para elas. Então, um grupo especial tomou sobre si esses
conselhos voltados para formas superiores de moral e piedade. Eram os religiosi, os
que faziam da religião a vocação.

Lutero atacou essa moralidade dupla. A exigência divina é absoluta e incondi-


cional. É para todos. A exigência divina absoluta destrói o sistema religioso. Não
existe estado de perfeição como os católicos pensavam existir entre os monges. To-
das as pessoas precisam ser perfeitas, mas nenhuma é capaz de chegar à perfeição. O
homem não tem poder para produzir a graça que lhe levaria a agir corretamente, e
nem os exercícios especiais dos monges são capazes disso. O que importa é a inten-
ção, a boa vontade, não o hábito (habitus) mágico de que falava a Igteja Católica.
Essa intenção, essa boa vontade, é certa mesmo quando o conteúdo estiver errado.
A valorização da personalidade depende da boa intenção. Lutero levou isso a sério.
Para ele não bastava querer fazer o bem ou a vontade de Deus; precisamos querer o
que Deus quer, alegremente, com nossa participação voluntária. De nada vale o
mero cumprimento da lei se não for acompanhado de alegria. A obediência do
servo não se expressa no cumprimento da ética cristã. A lei só é realmente cumprida
quando amamos a Deus e aos homens. É o que se espera de todos.

Lutero fazia, dessa maneira, uma reviravolta na religião e na ética. Não se cum-
pte a vontade de Deus longe de Deus. Precisamos do petdão dos pecados. Até
mesmo as melhores pessoas sentem desespero, agressividade, indiferença e
autocontradição. O jugo de Cristo só pode ser imposto às pessoas por meio do
perdão divino. Trata-se de interpretação completamente diferente do moralismo. A
ação moral é conseqüência - que pode ou não acontecer, embora se espera que

234
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES

aconteça - de um prius que é a gtaça divina, o perdão de Deus e o poder de ser,


concedido por Deus. Essa é a novidade. É extremamente lamentável que o protes-
tantismo tenha sido tentado tantas vezes a inverter o processo e fazer com que a
dimensão religiosa dependa da moral. Sempre que isso acontece ficamos fora dos
domínios do verdadeiro protestantismo. Se alguém disser "Oh, Deus deve me amar
porque eu o amo e faço todas as coisas que ele exige de mim" - a saber, o que em
geral se exige! - então se inverte o relacionamento religioso e o ético. O centro da
Reforma expresso no significado da famosa frase, soia fide, expressa-se melhor da
seguinte maneira: "Eu sei que não faço nada bom, que todas as coisas aparentemen-
te boas são ambíguas, e que a única coisa boa dentro de mim é a declaração de Deus
de que eu sou bom, de tal maneira que, ao aceitar essa declaração divina, a realidade
se transforma e podem se seguir ações de natureza ética". O lado religioso precede
o ético.

A frase sola fide é a mais mal-entendida e prejudicada expressão da Reforma. As


pessoas entendem, em geral, que se fizermos a boa obra da crença, especialmente
crendo em algo não acreditável, nos tornaremos bons perante Deus. A frase não
deveria ser, "apenas pela fé", mas "apenas pela graça, recebida unicamente por meio
da fé". Fé significa nada mais do que a acei!J~ão da graça. Essa era a preocupação de
Lutero, porque havia experimentado a perdição que vinha da posição contrária,
causadora de muita ansiedade se levada a sério, uma vez que, ao nos conhecermos,
logo percebemos que náo somos bons. Sabemos isso tão bem como Paulo: o com-
portamento ético é conseqüência e não causa da bondade.

Que tinha Lutero a dizer sobre o elemento sacramental na Igreja Romana, que
tanto poder lhe dera~ A Igreja Romana é essencialmente uma igreja sacramental.
Nessa estrutura, essencialmente, Deus se pl'esentifica sempre. Não se coloca à dis-
tância nem apenas faz exigências. A visão sacramental do mundo percebe o divino
presente nas coisas, nos atos, visíveis e reais. Portanto, qualquer igreja sacramental
será sempre uma igreja que experimenta a presença de Deus. Por outro lado, a
hierarquia, e apenas ela, administrava os sacramentos na Igreja Romana de modo
mágico. de tal maneira que 05 não participantes se perdiam e os participantes,
mesmo indignos, sempre os recebiam. Lutero respondia dizendo que nenhum sa-
cramento é eficaz por si mesmo sem a plena participação de quem o recebe, isto é,
sem ouvir a Palavra relacionada com o sacramento e sem a fé que o aceita. Os sacra-
mentos enquanto tal nada valem. E assim Lutero destrói o lado mágico do pensa-
mento sacramental.

235
CAPÍTULO V

Dessa maneira, destruía-se igualmente a transubstanciação, porque essa dou-


trina transformava o pão e o vinho em pedaços da realidade divina dentro do sacrário
ou sobre o altar. Negava essa transformação. A presença de Deus não podia ser
considerada uma presença objetiva, visível num determinado local, dentro de uma
forma específica; é presença apenas para os que têm fé. São dois os critérios: dirige-
se aos fiéis e só se dá num ato. Assim, quando entramos em qualquer igreja não
precisamos fazer nada diante do sacramento exposto, porque se trata de mero pão.
Somente na ação litúrgica é que esse pão se transforma em algo mais, isto é, quando
dado aos fiéis. Segundo a teoria da transubstanciação, o corpo de Cristo estaria
presente no altar o tempo todo. Quando entram numa igreja romana as pessoas
devem se curvar diante do sacrário porque o próprio Deus está lá dentro, mesmo se
estiverem sozinhas na igreja. Lutero rejeitou esse conceito de presença. Denunciou
o character indelebilis como ficção humana. Não existe "caráter" algum que não
possa ser destruído. Os que são chamados ao ministério da igreja, ministram exata-
mente como qualquer outra profissão. Se depois de algum tempo o pastor abando-
na o seu ministério e sc torna comerciante, ou professor, ou sapateiro, ele deixa de
ser ministro e não retém em si nenhum poder sacramental. Qualquer cristão piedo-
so, por outro lado, podc ter esse poder sacerdotal em relação a outras pessoas sem
necessidade de qualquer tipo de ordenação.

Suprimia-se, assim, o fundamento sacramental do sistema hierárquico. Mas o


ataque de Lutero contra a missa era mais sério. Era considerada um sacrifício ofere-
cido por nós a Deus, quando, na verdade, nada temos para oferecer a Deus. Nesse
caso a missa não passava de blasfêmia e sacrilégio. Era blasfêmia porque pretendia
ser a oferta humana a Dcus em lugar de recepção do dom de Dcus em Cristo. Essa
era a úmca cOisa necessária.

3. Conflito com Erasmo

Erasmo de Roterdam representava o humanismo da época. Lutero e Erasmo


foram amigos, no início. Mas logo se separaram. Ao se atacarem mutuamente cria-
ram uma brecha entre o protestantismo e humanismo que até hoje não fechou,
apesar dos esforços de Zwínglio, nas primeiras décadas do século dezesseis. Erasmo
era humanista e cristão, nunca se mostrou anti-religioso. Considerava-se melhor
cristão do que qualqucr papa. Mas, enquanto humanista, distinguia-se dos profe-
tas. Lutero não conseguia aceitar o distanciamento não existencial de Erasmo, nem
sua falta de paixão pelos conteúdos religiosos, nem mesmo sua atitude erudita em

236
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

face dos conteúdos da fé cristã. Sentia em Erasmo a ausência de compromisso com


o que lhe parecia ser a preocupação suprema.

Em segundo lugar, Erasmo se mostrava cético em sua pesquisa, como em geral


os cientistas precisam ser perante as tradições e palavras que interpretam. Lutero
não aceitava o ceticismo. Precisava de fOfIllulaçães de caráter absoluto em relação às
coisas fundamentais. Em terceiro lugar, Lutero era um radical tanto em questões
políticas como em outras. Erasmo se adaptava com mais facilidade às situações
políticas - não em seu próprio favor, mas para alcançar a paz na terra. Em quarto
lugar, Erasmo demonstrava atitude fortemente educativa. O desenvolvimento do
indivíduo em termos educacionais era o que lhe interessava. Desde então, todos os
humanistas têm-se dedicado com paixão à causa educacional. Em quinto lugar, a
crítica de Erasmo era sempre racional sem qualquer agressividade revolucionária.

A discussão entre Lutero e Erasmo acabou se concentrando na questão da dou-


trina da liberdade da vontade. Erasmo acreditava na liberdade humana; Lutero
náo. Vamos explicar. Nenhum deles duvidava da liberdade psicológica humana.
Não achavam que o ser humano fosse igual à pedra ou ao animal. Sabiam que o ser
humano era essencialmente livre e que era humano apenas à medida que era livre.
Mas a partir daí chegaram a conclusões opostas. Erasmo achava que essa liberdade
era válida até mesmo na relação com Deus. Os seres humanos poderiam ajudar
Deus e colaborar com ele para a salvação. Lutero achava que essa colaboração não
era possível. Apagava a honra de Deus e de Cristo e fazia do homem o que ele não
era. Assim, Lutero começou a falar da "vontade escravizada". Dizia que o livre arbí-
trio estava "escravizado". Seria ridículo afirmar que a pedra não tem livre arbítrio.
Somente os que possuem livre arbítrio é que podem ter a vontade escravizada, isto
é, escravizada pelas forças demônicas da realidade. Lutero acreditava que só se podia
tcr certeza na justificação pela fé e que nenhuma contribuição humana à salvação
poderia nos dar consolo. Para Lutero, Erasmo negava o significado de Cristo e,
finalmente, a honra de Deus.

Vemos aí as diferenças fundamentais entre as duas atitudes. Os humanistas


empenhavam-se em análises descomprometidas e suas sínteses só podiam ser de
tipo moralista e não de tipo profetico que rudo vê unicamente à luz de Deus.

4. O conflito de Lutero com os evangélicos radicais

o conflito de Lutero com os evangélicos radicais é especialmente importante

237
CAPÍTULO V

para o protestantismo ameflcano porque o tipo prevalescenre de cristianismo, nos


Estados Unidos, não foi produzido pela Reforma diretamente, mas indiretamente
por meio do movimento radical evangélico.

Estes dependiam inteiramente de Lutero. Tendências desse tipo existiam mui-


to antes da Idade Média, mas Lutero as libertou da repressão a que eram sujeitas.
Quase todas as ênfases de Lutero foram bem recebidas pelos evangélicos radicais,
mas eles foram além. Sentiam que Lutero ficara no meio do caminho. Em primeiro
lugar, atacaram a doutrina de Lutero a respeito da Escritura. Deus não falara apenas
no passado, tornando-se mudo no presente. Sempre falou; fala nos corações ou nas
profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua pró-
pria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração, não o nosso, naturalmen-
te, mas o de Deus. Thomas Müntzer, o mais criativo do evangélicos radicais, acre-
ditava que o Espírito podia sempre falar por meio de indivíduos. No entanto, para
se receber o Espírito era preciso participação na cruz. "Lutero, dizia ele, prega um
Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o
Cristo que nos chama a carregar a sua cruz." A cruz, diríamos, representava a situ-
ação limite. Era externa e interna. Surpreendentemente, Münrzer expressa esta idéia
em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana,
desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O
homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a
coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado.
Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter visões
pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de
vida diária.

Baseados nessas idéias, esses radicais sentiram que cumpriam a i ntenção da


Reforma e que Lutero permanecera meio católico. Sentiam-se os eleitos. Enquanto
a Igreja Romana não oferecia certeza alguma aos indivíduos a respeito da justifica-
ção pela fé, e, Lutero, tendo a certeza da justificação não tinha a da eleição, e
Calvino, estando certo tanto de uma como de outra, M üntzer e seus seguidores
tinham a certeza da eleição dentro do grupo dos eleitos; formavam um grupo real-
mente sectário.

Da perspectiva do Espírito lIlterior, todos os sacramentos perdem o valor. O


ofício do ministro se torna desnecessário nos grupos sectários por causa da imediatez
da processão do Espírito. Em lugar disso, tinham outro ímpeto, expresso de dois

238
A TEOLOGlA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

modos. A sociedade seria transformada pelo sofrimento, e se não o fosse, absteriam-


se de armamentos, de juramentos, de serviços públicos e de qualquer outra coisa
que lhes envolvesse em quesróes de ordem política. Um outro movimento sectário
mostrava-se disposto a superar a sociedade má por meio de medidas políticas e até
mesmo pela espada.

Os evangélicos radicais são também conhecidos pelo nome de entusiastas. A


ênfase de seu movimento recaía na presença do Espírito divino e não nos escritos
bíblicos como tais. O Espítito pode se ptesentificar em qualquer pessoa a qualquer
momento e lhe aconselhar sobre o que deve fazer nos afazeres cotidianos. Lutero
sentia de modo diferente. Seu sentimento básico era da ira de Deus, do Deus que
julga. Fora a sua experiência centraL Portanto, quando menciona a presença do
Espírito, relaciona-a com o arrependimento e com a luta pessoal, que não permi-
tem ter o Espírito como posse. Essa me parece ser a diferença entre os reformadores
e todas as atitudes perfeccionistas e pietistas. Lutero e os demais reformadores pro-
curaram mostrar que o homem está longe de Deus. Que há uma distância entre
Deus e homem. É por isso que a teologia contemporânea neo-reformada de pensa-
dores, corno Banh, acentua constantemente que Deus está no céu e o homem na
terra. Esse sentimento de distância - ou de arrependimento, como dizia Kierkegaard
- refere-se à relação normal do homem com Deus.

A segunda maneira como a teologia da Reforma difere da teologia dos mOVI-


mentos evangélicos radicais tem a ver com o significado da cruz. Para os reformadores,
a cruz é o evento objetivo da salvação e não mera experiência pessoal da criatura
humana. Portanto, a participação na cruz em termos de fraqueza humana ou de
esforço moral para a superação dessa fraqueza não era o verdadeiro problema trata-
do pela Reforma. Naturalmente, pressupunha-se tudo isso. Os mesmos matizes
ainda podem ser observados hoje em dia, na linha da teologia da Reforma, subli-
nhando alguns a objetividade da salvação por meio da cruz de Cristo, e outros a
tomada da cruz sobre suas vidas. Não são aspectos contraditórios, mas, como na
maioria dos problemas da existência, é mais questão de ênfase do que de exclusivi-
dade. Os mais influenciados pela tradição da Reforma dão mais ênfase à objetivida-
de da cruz de Cristo, como o auto-sacrifício de Deus no homem, enquanto os que
vêm da tradição evangélica, tão forte nos Estados Unidos, dão mais ênfase à tomada
da cruz sobre si mesmos, a cruz da miséria.

239
CApITULO V

Em terceiro lugar, em Lutero a revelas:~o depende seml':,,_~_obj-"tividade da


revelação histórica registrada nas Escrit_~~ra~!.. _:_.,não n~_.~ais ,profundo da alm~_}:.~~_,_
mana.,Lutero sentia que a crença dos sectários na possibilidade da revelação imedi-
ata na situação humana real, fora da revelação histórica escrita na Bíblia, era mero
orgulho.

Em quarto lugar, Lutero e toda a Reforma, incluindo Zwínglio, acentuaram o


batismo infantil como símbolo da graça proveniente de Deus, significando que ela
não depende de nossa reação subjetiva. _Lutero e Calvino acreditavam que o batismo
era um mi1~~_~e divino. O imponanre é que Deus inicia a ação, coisa que pode
muito bem acontecer antes de qualquer responso humano. O tempo que vai do
evento do batismo até o momento indefinido da maturidade não tem a menor
importância diante dc Deus. O batismo é a oferta divina do perdão a que a pessoa
sempre deve retornar. O batismo .9~~~~Jtos, por.o.u~L<.>,.1a.4º-?>_~centuaaparçicipaç~?
subjetiva cO~.2...~~pacidade do homem madu.~~.p~r~_,a decisão.

Lutero e os outros reformadores preocupavam-se com a maneira como as seitas


se isolavam reivindicando ser a verdadeira igreja e seus membros os eleitos. Os
reformadores não podiam admitir essa atitude e eu acho que estavam certos. Sabe-
se muito bem que as seitas da Reforma careciam psicologicamentc de amor para
com os quc não pertenciam a seus grupos. É provável que muitos leitores tenham
tido experiências semelhantes em contato com grupos sectários, ou quase sectários.
O que lhes falta não é percepção teológica nem mesmo reconhecimento de suas
negatividades, mas amor, do tipo que nos identifica com a situação negativa em que
todos nós estamos.

A última diferença refere-se à escatologia. A escatologia da Reforma levava os


reformadores a negar a crítica revolucionária dirigida ao estado que encontramos
nos movimentos sectários. A escatologia da Reforma, a respeito do iminente reino
de Deus, era verticalisra sem qualquer interesse na linha horizontal que, por assim
dizer, era deixada ao diabo. Lutero mencionou diversas vezes o dia final dos bem-
aventurados que tanto esperava para ser libertado, não apenas do "ódio dos teólo-
gos" como dizia Melanchton, mas do jogo do poder que não seria melhor do que
agora. Essa diferença de atitude se vê quando comparamos a Europa com os Esta-
dos Unidos. Sob a influência dos movimentos evangélicos radicais, tende-se mais
na América à transformação da realidade. Na Europa, especialmente depois das
duas guerras mundiais, surge um sentimento escatológico - carregada do desejo de
ver o fim realisticamente - acompanhado da resignação cristã diante do jogo do

240
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES

poder.

15. Doutrinas de Lutero

fl. Prinripio biblico


Os monumentos a Lutero mostram-no sempre com a Bíblia na mão. A ima-
gem não é muito boa porque a Igreja Católica está certa ao afirmar que já havia
biblicismo na Idade Média. Já afirmamos também a existência desse biblicismo no
final dessa época. Vimos que a crítica radical de Ockham, o nominalista, à igreja,
baseava-se na Bíblia. Entretanto, o princípio bíblico significava outra coisa para
Lutero. Na teologia nominalista, a Bíblia era a lei da igreja que podia ser utilizada
contra a própria igreja, mas não deixava de ser lei. Na Renascença, a Bíblia é a fonte
da religião verdadeira, editada pelos melhores filósofos, como Erasmo. Essas eram
as duas atitudes dominantes: a legalista, do nominalismo, e a doutrinária, do
humanismo. Nenhuma delas conseguiu arrasar com os fundamentos do sistema
católico. Para isso era necessário um novo princípio.

Lutero conservava certos elementos nominalistas e humanistas em seu ensmo.


Valorizava altamente a edição do Novo Testamento feita por Erasmo e muitas vezes
caiu no legalismo nominalista em sua doutrina da inspiração, ao afirmar que cada
palavra da Bíblia havia sido inspirada pelo ditado de Deus. É o que se vê na sua
doutrina da Ceia do Senhor, apoiada numa interpretação literalista de certa passa-
gem bíblica. Mas, além disso, Lurero interpretava as Escrituras em harmonia com
a sua nova compreensão da relação do homem com Deus. Essa posição aparece em
seu conceito da "Palavra de Deus". Esse é o termo mais empregado na tradição
luterana e na teologia neo-reformada de Barth e outros. Mas não nos ajuda muito.
O próprio Lutero dava a esse termo seis sentidos diferentes.

Lutero afirmava que a Bíblia era a palavra de Deus - mas sabia muito bem o
que dizia. Mas quando queria realmente expressar o que pensava, dizia que na
Bíblia se encontrava a palavra de Deus, a mensagem de Cristo, a expiação, o perdão
dos pecados e a dádiva da salvação. Deixava bem claro que a Bíblia continha a
palavra de Deus no sentido em que transmitia a mensagem do Evangelho. Mas
entendia que essa mensagem existia antes da Bíblia, na pregação dos apóstolos.
Como Calvino diria mais tarde, Lutero entendia que os livros da Bíblia eram uma
situação de emergência, posto que necessários. Por isso, o que importava era o con-
teúdo religioso; a mensagem era objeto de experiência. "Se eu sei o que creio, co-

241
CAPÍTULO V

nheço o conteúdo das Escrituras, pois elas não contêm outra COIsa a não ser o
Cristo", As Escrituras são o critério da verdade apostólica; e sabemos se são verda-
deiras se tratam de Cristo e sua obra - ob sie Christum treiben, se tratam de Cristo, se
nele se concentram e se nos levam a de. Somente os livros da Bíblia que tratam de
Cristo e sua obra contêm poderosa e espiritualmente a palavra de Deus.

A partir dessa idéia, Lutero fazia distinções entre os livros da Bíblia. Os livros
que tratavam de Cristo mais diretamente eram o quarto Evangelho, as epístolas de
Paulo e I Pedro. E fazia afirmações ousadas. Dizia, por exemplo, que se Judas e
Pilaras tivessem transmitido a mensagem de Cristo, teriam sido apostólicos, e Pau-
lo e João, se não tivessem proclamado essa mensagem, não poderiam ser considera-
dos apostólicos. Afirmava até que q~laL9!!5:.~_~ss~~"~<::"~ojeem dia tivesse o ESpf!~~~
tão poderosamente como os profetas e os apóstolos, poderia criar decálogos e outros
testamentos. Bebemos na fonte das Escrituras só porque não temos a plenitude do
Espírito. Tal ensino é profundamente contrário ao nominalismo c ao humanismo.
Salienta °
caráter espiritual da Bíblia. Ela é a criação do Espírito divino que a
escreveu, embora não tenha sido um ditado. A partir dessa base, Lutero fazia uma
crítica metade religiosa e metade histórica dos livros da Bíblia. Não lhe importava
se Moisés escreveu ou não os cinco livros de Moisés. P~rcebia a grande des_ordem
=-- )
em que se encontravam os textos dos profetas. E até mesmo sabia gue aS_.p'~<?fec:i~~
concretas dos profetas mostravam-se muitas vezes erradas. O livro ~~ J;,3~~E.~"_~
Apocalipse de João, de f~~9.:....não p~_:_t,~~.:i:!22.....~__~~_~ituras .._Qmq~~~rtO Evang_~lh? __
excedia em valor e poder ,,~2.~L~~ó.~~:_?~s:_ .e_~__ ~yíst<:?!::_.~~ _!j.~12.() não tinha caráter evan-
. , .. !2élico.

Embora a ortodoxia luterana fosse incapaz de preservar esse grande aspecto


profético de Lutero, a sua liberdade conseguiu alcançar pelo menos uma coisa:
°
levou o protestantismo a realizar que nenhuma outra religião conseguira, isto é,
aceitar o tratamento histórico da literatura bíblica. Esse procedimento é erronea-
mente chamado de alta crítica ou de crítica bíblica. Trata-se, na verdade, da aplica-
ção do método histórico aos livros sagrados de qualquer religião. Esse tipo de estu-
do é impossível no catolicismo, ou possível apenas de modo muito limitado. Não é
possível no islamismo. O professor Jeffery nos disse certa vez que se os estudiosos
islamitas fizessem com o Corão o que ele fazia com o texto da Bíblia, correriam
enorme perigo. Qualquer pesquisa relacionada com o texto original do Carão im-
plicaria em crítica histórica do texto atual, e isso é impossível numa religião legalista.
Dessa forma, se formos legalistas a respeito da Bíblia, retrocederemos ao estágio

242
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

religioso em que se encontra o islamismo e deixaremos de participar nessa liberdade


protestante presente em Lutero.

Lutero conseguia interpretar o texto ordinário da Bíblia em seus sermões e


escritos sem apelar à interpretações especiais de tipo pneumático, espiritual ou
alegórico além da interpretação filosófica. Os seminários teológicos procuram in-
terpretar a Bíblia combinando o método filológico exato, que inclui a alta crítica,
com a aplicação existencial dos textos bíblicos a questões que levantamos e que, se
presume, seriam respondidas pela teologia sistemática. A divisão do corpo docente
entre "especialistas" é, de certa forma, desintegradora. O responsável pela cadeira
de Novo Testamento me diz que cu não posso discutir certos problemas porque não
sou especialista nessa área, ou eu mesmo me privo de considerar certas questões
alegando não ser especialista em Antigo ou Novo Testamento. À medida que agi-
mos dessa maneira, pecamos contra o sentido original do esforço de Lutero de
substituir o método alegórico de interpretação pelo filológico, que era ao mesmo
tempo espiritual. Esses problemas são bem reais hoje em dia, e os estudantes po-
dem ajudar a vencê-los exigindo que seus professores não sejam apenas "especialis-
tas", mas também teólogos. Devem exigir dos estudiosos da Bíblia o sentido exis-
tencial do resultado de suas pesquisas, e dos teólogos sistemáticos, a fundamenta-
ção bíblica de suas declaraçães, nos rextos bíblicos enquanto filologicamente enten-
didos.

b. Pecado efé
Vamos examinar as doutrinas de Lutero sobre o pecado e a fé porque são bas-
tante superiores ~~~q~~~.~!~~.?Sh?j_~_~o c_~i~~L~I:i~:!.:~.~P5~P~J~~:..Para Lutero,
pecado é falta de fé. "Falta de fé é o verdadeiro pecado". "Nada justifica a não ser a
fé; nada é pecaminoso a não ser a falta de fé". "A falta de fé é todo o pecado". "A
principal justiça é a fé; o mal principal é a falta de fé". "Portanto, a palavra pecado
inclui tudo o que fazemos se vivemos fora dessa fé". Essas declarações pressupõem
um conceito de fé que nada tem a ver com a aceitação de doutrinas. A respeito do
conceito de pecado, significam que diferenças de quantidade (pecados leves e gra-
ves) e de relativídade (pecados possíveis de perdão desta ou daquela maneira) não
têm a menor importância. Tudo o que nos separa de Deus tem o mesmo peso; não
há "mais" nem "menos".

Lutero considerava a vida corrompida em sua totalidade, incluindo sua nature-


za e substância. Vamos considerar agora a expressão "depravação total" que tanto

243
CApITULO V

ouvimos. Não significa que não haja nada bom no ser humano; nenhum reformador
nem neo-reformaclor jamais fez essa afirmação. Quer dizer, isso sim, que não há
pane alguma do ser humano isenta dessa deFormação existencial. Esse conceiro,
traduzido em termos de psicologia moderna, significa que o homem "depravado"
está em conflito consigo mesmo bem no centro de sua vida pessoal. Tudo se inclui
nessa deformação, e era essa a idéia de Lutero. Se a "depravação total" fosse entendi-
da de modo absoluto, seria então impossível a sua afirmação. O ser humano total-
mente depravado seria incapaz de dizer que era totalmente depravado. Mesmo a
afirmação de que somos pecadores pressupõe em nós algo além do pecado. O que
podemos dizer é que não há no ser humano o que não seja tocado por autocontradição,
tanto o intelecto como tudo mais. O mal é mal porque não cumpre ° mandamento
de amar a Deus. A base do pecado é essa falta de amor a Deus. Poderíamos dizer,
em outras palavras, que é a falta de fé. Lutero afirmava as duas coisas.

Só que a fé sempre precede o amor porque é nela que recebemos Deus, e o amor
é o ato no qual nos unimos a Deus. Todas as pessoas se encontram nesta situação de
pecado, e ninguém conhecia melhor do que Lutero o poder estrutural do mal nos
indivíduos e nos grupos. Não o chamava de compulsão, como se diz hoje em dia na
psicologia. Mas ele sabia que o pecado era isso, que era um poder demônico de
Satã, acima das decisões individuais. Essas estruturas demônicas eram reais; Lutero
sabia que o pecado não podia ser entendido apenas em termos de atos particulares
de liberdade. O pecado tinha que ser entendido em termos de estrutura demônica,
com seu poder compulsório sobre as pessoas, capaz de ser vencido apenas pela
estrutura da graça. Estamos todos envolvidos no conflito entre essas duas estrutu-
ras. Algumas vezes somos tomados, como dizia Lutero, pela compulsão divina, e
outras vezes pela demônica. Entretanto, a estrutura divina da graça não é posse
nem compulsão, porque é libertadora; ela nos deixa ser o que somos em essência.

A acentuada ênfase de Lutero sobre os poderes demânicos aparece em sua dou-


trina do diabo, concebido como órgão da ira divina ou a própria ira de Deus. Em
certas ocasiões não se sabe se ele falava a respeito da ira de Deus ou a respeito do
diabo. Na verdade, são a mesma coisa. Deus é para nós como nós o vemos. Se o
vemos através da máscara demânica, então ele é demônico para nós, e nos destrói.
Se o vemos no menino Jesus, mostrando-nos o seu amor em humildade, ele é esse
amor para nós. Lurero era profundo psicólogo sem saber das pesquisas psicológicas
de hoje. E o sabia com profundidade não-moralista, perdida não apenas no cristia-
nismo calvinista, mas, em grande parte, também no luteranismo.

244
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES mOTES'IANTES

~, para L.litera, era receber Deus quando Deus se dá a nós. Distinguia este
tipo de fé de fé histórica (jides historica), que reconhece os fatos históricos. Fé é a
aceitação do dom de Deus, da presença da graça de Deus que nos envolve. A ênfase
recai no caráter receptivo da fé - nihif ficere sed tantum recipere, nada fazer a não ser
receber. Todas essas idéias se concentram na aceitação de ser aceito, no perdão dos
pecados, que aquieta a consciência e desenvolve vigorosamente a espiritualidade. "A
fé é viva e ativa. Não é jamais preguiçosa". Na fé, o conhecimento é elemento exis-
tencial, do qual tudo decorre. "A fé produz a pessoa; a pessoa produz as obras e não
as obras a pessoa". A psicologia profunda contemporânea confirma tudo isso. O que
faz a pessoa é o sentido último da vida. As boas obras podem ser feitas por pessoas
divididas. Há muita gente devotada a boas obras que não percebe esse sentido
supremo em sua vida. É isso que Lutero chama de fé. E é o que faz a pessoa ser
humana. Não se trata da aceitação de doutrinas, nem mesmo de doutrinas cristãs,
mas da aceitação do poder do qual procedemos e para o qual vamos, não importan-
do as doutrinas por meio das quais o aceitamos. Em meu livro, A Coragem de Ser,
chamei-a de "fé absoluta": essa fé pode perder o conteúdo concreto e ainda existir
enquanto afirmação absoluta da vida como vida e do ser como ser. Assim, a única
coisa negativa é o que Lutero chama de "falta-de-fé", consubstanciada no estado de
não se unir ao poder do próprio ser, à realidade divina em oposição às forças da
separação e da compulsão.

c. Idéia de Deus

A idéia de Deus nos escritos de Lutero é uma das mais importantes na história
do pensamento humano e cristão. Não se trata de um Deus ao lado de outros; só o
encontramos por meio de contrastes. O que se oculta de Deus se vê no mundo, e o
que se oculta do mundo se v~~'peus.

"Quais são as virtudes (isto é, poderes de ser) de Deus? Enfermidade, palxao,


cruz e perseguição: são as armas de Deus". "O poder humano esvazia-se na cruz,
mas na fraqueza da cruz o poder divino se faz presente". Sobre o estado dos seres
humanos Lutero dizia: "Ser humano significa não-ser; vir a ser e ser. Significa estar
em falta, em possibilidade, em ação. Significa vivê r sempre em pecado, em justifi-
cação e em justiça. Significa sempre ser pecador, penitente e justo". Com esse modo
paradoxal de falar, Lutero expressava a sua idéia de Deus. Deus só podia ser visto
por meio de contrastes.

245
CAPÍTULO V

Negava tudo o que pudesse dar a idéia de finidade em Deus ou de que Deus
fosse um ser entre outros. "Entre as coisas menores, Deus é ainda menor. Entre as
maiores, maior. É indizível, acima e fora de tudo o que podemos nomear e pensar.
Quem sabe o que é Deus? Situa-se além do corpo e do espírito e de tudo o que
podemos dizer, ouvir e pensar". Afirmava que Deus está mais próximo de nós do
que nós mesmos. "Deus descobriu o modo de estar presente completamente em
todas as criaturas, e em cada LIma especialmente, com mais profundidade, mais
internamente do que a própria criatura se acha presente a si mesma. Mas não está
localizado em lugar nenhum e não pode ser compreendido por ninguém, de tal
maneira que tudo abrange e está no âmago de todas as coisas. Deus está ao mesmo
tempo totalmente em cada grão de areia e, não obstante, em todos eles, acima deles
e fora de todas as criaturas". Nessas fórmulas resolve-se o antigo conflito entre as
tendências teístas e panteístas a respeito de Deus; demonstram a grandeza de Deus,
sua presença constante e, ao mesmo tempo, sua absoluta transcendência. Eu direi
de maneira bastante dogmática que qualquer doutrina de Deus que deixe de lado
um desses elementos, não fala realmente de Deus, mas de algo bem menor do que
ele.

A mesma coisa aparece na doutrina de Lutero sobre a onipotência. "Chamo de


onipotência de Deus não o poder pelo qual ele não faz as coisas que poderia fazer,
mas o poder pelo qual, na verdade, ele potcncialmente faz tudo em todas as coisas".
Queria dizer que Deus não fica à margem do mundo, contemplando-o de fora, mas
está sempre agindo em todas as coisas. A onipotência é isso. Lutero descarta a idéia
absurda de um Deus que precisa decidir primeiramente se deve fazer o que poderia
fazer. Deus é poder criador.

Lutero se refere às criaturas como "máscaras" de Deus; Deus se esconde por


detrás das criatllras. "Todas as criaturas são máscaras e véus de Deus para que pos-
sam agir ajudando-o a criar muitas coisas". Assim, todas as ordens e instituições
naturais se plenificam com a presença de Deus, e assim, também, o processo histó-
rico. Desse modo ele trata de todos os nossos problemas acerca da interpretação da
história, os Anibals, os Alexandres e os Napoleões - e acrescentaria hoje os Hitlers,
ou os gados, os vândalos e os turcos - acrescentando os nazistas e os comunistas -
são conduzidos por Deus para atacar e dcstruir, de tal maneira que Deus nos fala
por meio deles. Eles são a palavra de Deus para nós e até mesmo para a igreja. As
pessoas heróicas em particular saem fora das leis ordinárias da vida. São armadas
por Deus. Deus as chama e as força, concedendo-lhes a sua hora, e eu diria, o seu

246
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES

kairos. Fora desse kairos nada podem fazer; aliás, ninguém pode fazer nada fora
desse momento certo. Nessa hora certa não há quem resista aos que agem. Entre-
tanto, apesar de Deus agir em tudo o que acontece na história, ela é a luta entre
Deus e Satanás e entre seus domínios diferentes. Lutero fazia essas afirmações por-
~,Qe~s <l:gi.~Eriativan.~~_at~.~esmonas (?~s:~~_AeJ!l_~.~,~~.

Essas forças não teriam ser se não dependessem de Deus como fundamento de
seu ser e como poder criador do ser presente nelas em todos os momentos. Deus
possibilita que Satanás seja o sedutor, mas também, ao mesmo tempo, torna possí-
vel a derrota de Satanás.

d. Doutrina de Cristo

o que é interessante na cristologia de Lutero é, antes de tudo, seu método,


bem diferente do método da igreja antiga....fOu o chamaria de verdadeiro método de
-..S..2L!.~!~s_~<?.:_~.oE~~1~~9_nao,q~~.Cti~~?~__ ~_E~_a.~~~.2-9.Ye dizemos sobre ele. Parte
dos efeitos de Cristo em nós. Melanchton expressou a mesma idéia em seus Loci.
Afirmava que o objeto da cristologia são os benefícios de Cristo e não sua pessoa e
natureza em si. Lutero descrevia esse método da seguinte maneira: "Assim como
nós somo~._~~~J!-.ós l!!:~sm,?s, assim é Deus em si, enquanto objeto. Se somos justos, _
~peus é j.l}~~~_._S~ somos puros, Deus é puro. _para .!'l?~:__~~,_so~os maus, q.~'-:l.~ é IP-.3_t!._
para nós. portanto, Deus aparecerá aos condenados como o mal na eternidade, mas
aos justos como justo, segundo o que é em si mesmo". Essa forma de se referir a
Deus é o que chamo de correlação. Segundo Lutero, chamar Cristo de Deus signi-
fica ter experimentado os efeitos divinos dele advindos, especialmente o perdão dos
pecados._fa.J.<lI_q~,.P~lls._ ~~,m. _m_e.~lc_iol1ª, r. ,set.1S, .ef<;Ü~§__~q~l,~,,:"~I,~._~_s_c orief!~ar.p_qE._~~-'.ll-_
método obi~tL'La.rr!.emeerrado. Fala-se dele a partir de seus efeitos. Quem produz
efeitos divinos deve ser divino - eis o critério.

--º-.w~.':1J!!.f!l:.~mos a respe.ito de Qe ll ?_ tCI!! ~~..r-r:E!..~mcaráter 4e.p~rti9paçãº-=­


sofrer c0tE_~I_t;? s~r..glorificado com e!e, estar crucific~~~~~?..rn ele e tamb~~tE _cq~:L~.t~ __ ~
~~ÇÜ~5!.2' "A pregação do crucificado significa a pregação da nossa culpa e a
crucificação de nossos pecados". Assim vamos com ele: em primeiro lugar, servos; e
agora reis; no começo sofrendo, mas agora na glória; antes julgados, mas depois
juízes ... assim agimos: começamos com humilhação e chegamos na exaltação". "Ao
mesmo tempo, condenados e abençoados, vivos e mortos, em dor e alegria". Essas
coisas são ditas a respeito de Cristo e de nós. A lei da contradição, a lei de Deus,
sempre paradoxal, cumpre-se em Cristo. Ele é a chave da ação de Deus que contra-

247
CApfTULOV

diz o sistema humano de valores. Este paradoxo aplica-se também à igreja. Na sua
forma visível, a igreja é miserável e humilde, mas é nessa humildade, como na
humildade de Cristo, que reside sua glória. É por isso que a glóri~~~.:.i,.~_.,~:_~?E~_~_
especialmente visível nas épocas de perseguição, sofrimen!.2._c-º.!!I,"!!.U.9adc..:.-

:Y~-Cristo é Deus para nós, nosso Deus, Deus relacionado conosco. Lutero tam-
bém o considerava Palavra de Deus. A partir daí o protestantismo deveria repensar
sua cristologia em termos existenciais, mantendo imediata correlação entre a fé
humana e o que se diz sobre Crism, Todas as fórmulas sobre as duas naturezas
(humana e divina), ou que falam de Filho de Deus e Filho do Homem, só fazem
sentido quando entendidas existencialmente.

Lutero assinalava a importância da presença de Deus em Cristo. A palavra


divina, ou lagos, se fizera carne na encarnação. A doutrina de Lutero a respeito da
Palavra passa por diferentes etapas. Temos em primeiro lugar a Palavra interna,
também chamada de coração de Deus, ou de Filho eterno. Somente essa Palavra
interna é perfeita: é a auromanifesração interior de Deus. Assim como o coração
humano está oculto, também permanece oculto o coração de Deus. A Palavra de
Deus interna, sua automanifestação, não é percebida pelo homem. Mas Lutero
acrescenta: "Esperamos no futuro poder contemplar essa Palavra, quando Deus abrir
o seu coração ... introduzindo-nos em seu coração". Em segundo lugar, Cristo é a
Palavra visível. Em Cristo, o coração de Deus sc fez carnc, isto é, tealidade histórica.
Desse modo, podemos ter a Palavra oculta do conhecimento divino de si mesmo,
embora apenas pela fé, e não como objeto entre outros. Em terceiro lugar, a Palavra
de Deus é a palavra falada pelos profetas, por Jesus e pelos apóstolos. Dessa forma,
torna-se a Palavra bíblica na qual se pronuncia a Palavra interna. Entrctanto, o scr
revelado r da Palavra eterna em Cristo é mais do que todas as palavras faladas da
Bíblia. Dão testemunho de Cristo, mas são Palavras de Deus apenas de modo indi-
reto. Lutero nunca foi bibliólatra como tantos cristãos, hoje em dia. "Palavra" para
Lutero significava a automanifestação dc Deus, jamais limitada pelas palavras da
Bíblia. A Palavra de Deus transparece nas palavras da Bíblia, está com elas e sob
elas, mas não é idêntica a elas. O quarto significado da Palavra de Deus é a palavra
da pregação, mas apenas em quarto lugar. Quando alguém fala da "igreja da Pala-
vra", pensando no predomínio da pregação na liturgia, certamente nao está seguin-
do o pensamento de Lutero a esse respeito.

24R
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

o caráter especial da doutrina de Lutero sobre a encarnação é a contínua ênfase


da pequenez de Deus nesse ato. O homem não pode se colocar na frente do Deus
absoluto, como Deus é. Se conseguisse tratar diretamente com o Absoluto, entraria
em desespero. Por causa disso Deus se deu em Cristo, em quem se fez pequeno.
"Nas outras obras, Deus é reconhecido segundo a grandeza de seu poder, sabedoria
e justiça, mostrando-se demasiadamente terrível nessas obras. Mas aqui (em Cris-
to) aparece em sua doçura, misericórdia e caridade". Sem o conhecimento de Cristo
",,---não podemos permanecer perante a majestade de Deus e somos levados à loucura e
ao ódio. Por essa razão Lutero sempre se interessou pelo Natal; chegou mesmo a
escrever alguns dos poemas e hinos mais bonitos de Natal. Gostava do Natal por-
que dava importância ao pequenino Deus em Cristo, sendo Cristo ainda menor no
berço. Esse paradoxo era para Lutero, o verdadeiro significado do Natal: quem
repousa no berço é ao mesmo tempo o Deus Todo poderoso. O menor e mais
desamparado dos seres carrega em si o centro da divindade. Essa é a maneira como
Lutero pensava a natureza paradoxal da revelação de Deus. Porque Deus age para-
doxalmente: o mais fraco é o mais forte.

e. Igreja e Estado

Os que conhecem a Reforma devem indagar se é possível que alguma igreja viva
segundo seus princípios. Não precisam as igrejas viver em forma de comunidade
organizada c autoritária, com regras fixas c tradições? Não deverá a igreja ser neces-
sariamente católica? O princípio protestante não contradiz a possibilidade da exis-
tência da igreja, ou seja, o princípio de que apenas Deus é que importa e que a
aceitação de Deus pelo homem é secundária~

Não há dúvida d~~_~.<?~1_~!·i,:~~9~_Lutero.~obre a igreja é o seu ponto mais


fraco. i\ Reforma deixou esse problema sem solução para as gerações futuras. Mais
do que os outros. Isso porque o sistema católico não fora substituído nem poderia
ser substituído pelo sistema protestante de igual poder por causa da forma
alltiauroritária e anti-hierárquica do pensamento protestante. Lutero, juntamente
com Zwínglio e Calvino, escolhera seu tipo eclesiástico de igreja em contraste com
o tipo sectário dos evangélicos radicais. Essa distinção foi feita por Ernst Troelrsch,
aliás, muito boa. Nós descendemos desse tipo eclesiástico de igreja. Está conosco
desde o berço. Não o escolhemos. Quando começamos a amadurecer, talvez reafir-
memos que pertencemos a esse tipo de igreja, na confirmação, mas mesmo assim já

249
CAPÍTULO V

pertencíamos a ele antes, objetivamente. É bem diferente entre os radicais entusias-


tas. Aí, o indivíduo que decide se tornar membro da igreja é, ele mesmo, o poder
criativo da igreja. A igreja resulta da aliança dos indivíduos que decidem formá-la,
reunindo-a como assembléia de Deus. Tudo depende do indivíduo independente
que não nasce da igreja-mãe, mas que cria comunidades eclesiais ativas. Essa dife-
rença aparece principalmente quando contrastamos o tipo eclesiástico de igreja no
continente europeu com o tipo sectário nos Estados Unidos. Esse tipo sectário
expressa-se nos Estados Unidos até mesmo dentro das principais denominações.

A distinção que Lutero faz entre a igreja visível e a)n\.:Ü;iy~L~ ~!:!}.~_.4?:,s _,mais _
_ difíceis de entender. Para se comp_~~ender o pensamento A"~ !:':l_tero a eS~,~_re~.~ito _~_
devemos ter em men.t~.51~~__ ~ão sã~,._4~?:~,".~~~~2~,,_A--,_!gF~ja invisível é a qualidade
espiritual da igreja visível. A igreja visível é a materialização empírica e sempre
deformada da igreja espiritual. Talvez tenha sido esse o ensinamento mais impor-
tante dos reformadores contra as seitas. Estas queriam descrever a igreja segundo
seus lados visível e invisível. A igreja visível deve ser purificada e purgada - como se
diz hoje em dia em todos os grupos totalitários - dos que não forem membros da
igreja espiritualmente. Esse tipo de procedimento pressupõe que se pode saber
quem é espiritualmente membro da igreja, e que se o pode julgar olhando-se o seu
coração. Mas só Deus pode fazer uma coisa dessas. Os reformadores não podiam
aceitar essa prática porque sabiam que todas as pessoas penencem à "enfermaria"
que é a igreja. Essa "enfermaria" é a igreja visível destinada a todos; ninguém conse-
gue se manter fora dela definitivamente. Portanm, todos pertencem essencialmente
à igreja, mesmo se estiverem espiritualmente longe dela.

Que é a igreja? Em sua verdadeira essência é objeto de fé. Lutero a considerava


"oculta em espírito". Quando vocês vêem a igreja em funcionamento, com seus
ministros, edifícios. congregações, administração. devoções etc., devem saber que
nessa igreja visível, com todas as suas falhas, oculta-se a igreja invisível. É objeto de
fé; é preciso muita fé para crermos que a igreja espiritual se faz presente na vida das
congregações comuns de nossos dias, que de maneira alguma se destacam por altos
padrões de espiritualidade. Nós cremos porque acreditamos que não são as pessoas
que fazem a igreja, mas seu fundamento, - não o povo. mas a realidade sacramental
- a Palavra. que é o Cristo. De outra maneira perderíamos a esperança a respeito da
igreja. Para Lutero e os demais reformadores. a igreja, na sua verdadeira natureza, é
espiritual. Os termos "espiritual" e "invisível" querem dizer, em geral, a mesma

250
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

coisa para Lutero. A fé na igreja baseia-se exclusivamente no fundamento da igreja,


que é Cristo, o sacramento da Palavra.

Todos os cristãos são sacerdotes tendo, potencialmente, a tarefa da pregação da


Palavra e da administração dos sacramentos. Todos pertencem ao elemento espiri-
tual. Mas por causa da ordem, algumas pessoas especialmente preparadas são cha-
madas pela congregação para se encarregar dessas tarefas. O ministério é questão de
ordem. Trata-se de uma vocação entre outras; não envolve qualquer estado de per-
feição, nem de graças superiores, ou coisas semelhantes. O leigo é tão sacerdote
como qualquer sacerdote. O sacerdote oficial apenas fala pelos outros porque os
outros não sabem se expressar como ele. Assim, apenas se exige do ministro que seja
chamado pela congregação. A ordenação não tem nenhum significado sacramental.
Dizia, "ordenar não é consagrar". "Concedemos o poder da Palavra, que nós temos:
a autoridade de pregar a Palavra e de distribuir os sacramentos; isso é a ordenação".
Ela não produz diferença alguma de grau nas relações do homem com Deus.

Nos países luteranos o governo da igreja logo se identificou com o governo do


Estado, e nos países calvinistas com o governo civil (curadores). É que Lutero aca-
bara com a hierarquia. Não havia mais papa, nem bispos, nem sacerdotes, em sen-
tido técnico. Quem, então, haveria de governar a igreja? Em primeiro lugar, os
ministros. Mas como governá-la sem poder? O poder pertence aos príncipes, ou a
associações livres dentro da sociedade, como tantas vezes se viu no calvinismo. Os
príncipes foram chamados por Lutero de bispos supremos em seus domínios. Não
tinham que interferir nos afazeres religiosos internos da igreja, mas cuidar de sua
administração - o ius área saerum, a lei sobre o sagrado. Os ministros e todos os
demais cristãos encarregavam-se dos assuntos sagrados.

Essa solução resultou de situação de emergência. Não havia mais bispos nem
autoridades eclesiásticas e a igreja precisava de administração e governo. Criaram-se
bispos de emergência: ninguém melhor do que os eleitores e príncipes para isso. Foi
dessa situação de emergência que surgiu a igreja estatal da Alemanha. A igreja se
transformou mais ou menos - para mim, "mais" do que "menos" - num departa-
mento da administração estatal e os príncipes em árbitros da igreja. Não fora essa a
intenção, mas o que aconteceu demonstra que a igreja sempre necessita de certo
apoio político. O catolicismo tinha o papa e a hierarquia; o protestantismo teve que

251
CAPÍTULO V

buscar o apoio dos membros mais desracados da comunidade, os príncipes ou, nos
países mais democráticos, certos grupos sociais.

A doutrina de Lutero sobre o Estado também não é fácil de ser compreendida


porque muita gente pensa que vem daí a verdadeira causa do nazismo. Ora, em
primeiro lugar, precisamos admitir que algumas centenas de anos fazem diferença
na história, e que Lutero é um pouco mais antigo do que o nazismo! Esse, porém,
não é o ponto decisivo. A questão fundamental é que a doutrina do Esrado era
positivista; a providência se entendia de maneira positiva. Positivismo significa to-
mar-se a realidade como ela é. A lei positiva é decisiva e ela se liga à doutrina da
providência, segundo Lutero. A providência faz exisrir o poder (e os poderes). Não
é possível, pois, qualquer revolta contra o poder. Não havia nenhum critério racio-
nal para o julgamento dos príncipes. Naturalmente, podia-se julgá-los para ver se
eram ou não bons cristãos; haviam sido dados por Deus e, portanto, deviam ser
obedecidos. O destino histórico nos deu inúmeros tiranos como os Neros e os
Hitlers. Mas nos submetemos a eles porque se trata de um destino histórico.

Dessa maneira, desaparecia a doutrina estóica da lei natural, capaz de criticar a


lei positiva. Permanece apenas a lei positiva. A lei natural, na verdade, não existia
para Lutero. Lutero nunca utilizou a doutrina estóica da igualdade e da liberdade
dos cidadãos nos Estados. Lutero não era revolucionário nem na teoria nem na
prática. Entendia que, na prática, os cristãos tinham que se conformar com os maus
governos porque vinham providencialmente de Deus. Não considerava o Estado
uma realidade em si. É sempre impreciso falar-se da teoria reformada do Estado. A
palavra "Estado" só é utilizada depois dos séculos dezessete ou dezoito. Em lugar
dela usava-se Obrigkeit, autoridade, superiores. Governo é autoridade. Não é essa
estrutura que chamamos de "Estado". É por isso que não há, na doutrina de Lutero
a respeito do Estado, implicações democráticas. A situação exige que o Estado seja
aceito ral qual é.

Como Lutero podia aceitar uma coisa dessas? Como era capaz de aceitar o
poder despótico dos estados de sua época, quando, mais do que ninguém, valoriza-
va o amor como princípio supremo da moral? Sua resposta era muito curiosa. Dizia
que Deus realizava dois tipos de obras. Unu era propriamente a sua obra: de amor
e misericórdia, de doação de sua graça. A outra era a sua obra estranha; era igual-
mente de amor, mas de um amor estranho. Realizava-se por meio de punições, de
ameaças, do poder compulsório do Esrado, por meio de rodos os tipos de cruelda-
des, como exige a lei. Os que acham que o amor não se expressa dessa maneira

252
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

perguntam: de que maneira podem andar juntos o amor e o poder compulsório? E


deriva daí certo anarquismo tantas vezes presente nas idéias dos cristãos pacifistas e
de outros. A situação formulada por Lutero me parece ser a verdadeira. Acredito
que ele percebeu melhor do que todos os que conheço a possibilidade de unir os
elementos do amor e do poder nos termos desta doutrina das obras "estranhas", O
poder do Estado, que nos permite estar aqui e possibilita as obras de caridade,
procede do amor de Deus. O Estado precisa suprimir a agressão dos maus, dos que
se mostram contrários ao amor; a obra estranha do amor destina-se a destruir tudo
o que contraria o amor. Está certo chamarmos de estranha essa obra, embora reco-
nhecendo-a como obra de amor. O amor deixa de ser um poder na terra se não
destruir tudo o que é contra o amor. Esta é a mais profunda compreensão que eu
conheço do relacionamento do amor com o poder. Essa doutrina totalmente
positivista do Estado impossibilita o luteranismo, do ponto de vista teológico, de
aceitar a revolução. A revolução resulta em caos; mesmo quando tenta produzir a
ordem, em primeiro lugar, produz caos e desordem. Assim, Lutero era completa-
mente conuário à revolução. Aceitava o dom do destino positivamente concedido.

o nazismo se tornou possível na Alemanha por causa deste autoritarismo


positivista; por causa da afirmação de Lutero de que o príncipe estabelecido no
poder não podia ser derrubado. Criava-se enorme inibição contra qualquer revolu-
ção alemã. Mas não acredito que essas coisas tenham sido possíveis nos sistemas
totalitários modernos. Mas a negação de qualquer revolução serviu como causa es-
piritual adicional. Quando hoje dizemos que Lutero é responsável pelos nazistas,
estamos profe:in~~~L~,~~,~~<_~~ bo~~~~~. A ideologia dos na~istas é quase o
oposto da de Lutero:..._~~~~_~~?_,_t.i_nLl_~_I~,:.nhumai deologia nacionalista, nem tribal,
nem racial. ELogi,,~ya oS turcos por caus,a de sell,_~?_~",g,o~~:.n~. Deste ponto de vista
não e~)~te _t:l~zismo em Lutero. A única ligação que há situa-se no ~?~"~~:.~.adorismo
do p~~samento político de Lutero. O que é apenas conseg~~.?~0_"~~:l:~_princípios
básicos. A única verdade n_~_re~ria que liga Lutero ao_~azismo é ele ter acabado
completamente com a vontade re~olucionária do povo ~le_mão. O povo alemão não
tem vontade revolucioná~i;-;'é7ó-issoque pode~~-s diz~~." ..-----.-- ---~
-'''''' ..-

Não tem sentido dizer-se que o nazismo foi produzido primeiramente por
Lutero e, depois, por Hegel. Não tem sentido, porque mesmo se Hegel afirmasse
que o Estado era Deus na terra, não se referia ao poder estatal. Tinha em mente a
unidade cultural entre religião c vida social organizada em Estilo. Hegel poderia,
assim, afirmar a união entre a igreja e o Estado. Mas para ele o Estado era a socieda-

253
CAPiTULO V

de organizada para repnmlf o pecado.

B. Huldreich Zwínglio

Zwínglio _~ão _t~~~_a_.~~sll1a originalidad~ de Lutero. Dependié"l'__e:'!1 parte, do


grande reforn:.ad?L.alemão. Não é fácil descrever o caráter de seu cristianismo. Foi
também . ~~s~~~"~~ __ ~~_fl~:,~_c_i~~o _pelos !l~manistas, mantendo-se amigo de Eras~llo
até o fim de sua vida. _~em ele nem Melanchrhon se separaram de Erasmo, como
Lutero. Eram ao mesmo tempo humanistas e cristãos. Eram cristãos humanistas.
Especialmente Zwínglio. A autoridade das Escrituras em Zwínglio se baseava no
apelo da Renascença: volta às fontes' A Bíblia é a revelação de Deus. "Deus quer ser
ele mesmo o mestre". Lutero jamais teria dito uma coisa dessas. Para Lutero Deus
era muito mais poderoso do que mestre. A diferença fundamental é que Zwínglio
tinha uma doutrina do Espírito bastante desenvolvida em contraste com Lutero e
os outros reformadores. "Deus pode conceder a verdade, por meio do Espíriro,
também aos que não são cristãos". A verdade sempre é dada pelo Espírito a qucm
quer que seja, e o Espíriro se faz presente mesmo sem a palavra da Bíblia. Essa
doutrina representava, de certa forma, a libertação do fardo bíblico com que Lutero
sobrecarregava o povo.

Lutero ensinava uma forma dinâmica de vida cristã. Zwínglio, e também Calvino,
ensinavam, ao contrário, uma forma estática. Fé era saúde psicológica. As pessoas
psicologicamente equilibradas podem ter fé e vice-versa. Na verdade, essas duas
coisas eram idênticas. Para Lutero, a fé era dinâmica, com altos c baixos. Para
Zwínglio, era muito mais humanisticamente equilibrada. Assemelhava-se à idéia
burguesa de saÍlde. "A fé cristã é sentida na alma do crente, como a saúde no cor-
po". Segundo Lutero, a comunidade morre e ressurge constantemente, em relação
com o Deus pessoal de ira e amor. Jamais essa união com Deus seria assim dinâmica
em Zwínglio. Zwínglio acreditava em progresso; Lutero era paradoxal. É difícil
encontrar o paradoxo no pensamento de Zwínglio. Ou se acaba com o paradoxo ou
se o aceit~~.jLQ!Ji~t:I}ça funqamentaL<;,l1t[ç Lu~er,o ~.Zwínglio: o paradoxo da
vida cristã de Lutero se opÔ~, __~jdéi~_ de progressismo de Zwínglio.

A reforma suíça sintctiza a Reforma e o humanismo. Calvino, que estudaremos


mais adiante, dependia tanto de Lutero como de Zwínglio, mas não obstante ter
preferido Lutero, até certo ponto, nunca deixou de demonstrar em seus escritos a

254
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

erudição clássica, no estilo e no conteúdo, oriunda de sua educação humanista.


Entretanto, onde quer que a teologia liberal tenha aparecido desde o século dezessete
até o dezenove, esteve sempre mais na linha de Zwínglio do que de Calvino. Já disse
que Zwír:glio acr~ditava na aç,ão _~~_:":E~~n~rit~~~~m~ humana, non.nalmen~
por meio da Palavra da Bíblia e que, não obstante, Deus podia agir extraordinaria-
_ _o mente por rn,~!o d~'p~:~.?as q~.:,I1,~n.~~.~~iver.~,~ qualquer.':~r:Eato__ ~m a m~.!1sagem
_<:_~}?tã, P?~' meio de adeptos de outra~ r~l~g,ióes <:R~:...,~:i~_~~~~anistas._Q?_~xem­
_pIos de Zwínglio eram tirados, quase ~,~.r::PE~: ~9~__~.I_?~_?[?_S ,~regos, com? ~ócrates.

Ainda ontem tomei conhecimento de um hino cantado em congregações dos


negros do sul, e de camponeses do centro dos Estados Unidos, no qual Sócrates
comparecia ao lado de Lutero e de Cristo. Eu acho que não se deve cantar hinos
com esse tipo de teologia. Quando Zwínglio e Calvino falam da revelação e da
salvação em gente como Sêneca e Sócrates, cometem sério engano. Seu erro consiste
em selecionar apenas alguns representantes da piedade pagã. Na verdade, essa pie-
dade em nada difere da cristã. O povo simples procura tanto num caso como no
outro se relacionar intensamente com Deus para melhor conhecê-lo. Esse povo
comum deveria também ser mencionado nesses hinos. Mas como os autores desses
cânticos e os reformadores como Zwínglio eram todos bons humanistas, limitaram-
se a mencionar gente de sua própria classe social, gente que não era apenas impor-
tante, mas também pertencente à camada intelectual. Se vocês forem pastores, será
melhor não cantar hinos desse tipo. Embora eu tenha falado a vocês sobre Sócrates
e Platão, jamais cantei hinos para eles.

Para Zwínglio, Deus é o poder de ser universal e dinâmico, presente em todas


as coisas. Nesse aspecto, vocês podem reconhecer um pouco do meu próprio pensa-
mento em Zwínglio e Calvino, bem corno em Lutero. Entretanto, a concepção de
Deus, em Zwínglio, por causa de seu humanismo, é bem mais racionalista e
determinista. Deus opera mediante a lei natural. Dessa forma, a doutrina de Zwínglio
da predestinação subentende certo determinismo racional. O mesmo se vê na dou-
trina de Calvino, enquanto Lutero conserva mais a influência de Ockham e de
Escoto, com seu colorido irracional, mostrando um Deus que não se submete a
qualquer lei.

A lei desempenha papéis diferentes na reforma luterana e na zwingliana. Se-


gundo Zwínglio, não é a lei que nos torna pecadores. Ela apenas nos mostra que
somos pecadores. Lutero, por sua vez, percebera o que a moderna psicologia
redescobriu, que a lei produz resistência e, assim, como dizia Paulo, torna o pecado

255
CAPÍTULO V

mais pecaminoso. Nem Zwínglio nem Calvino chegaram a esse tipo de pensamen-
to. O conceito de lei tinha, para eles, conotação bastante positiva. E a lei era, em
geral, a lei natural. A lei natural significava na literatura antiga, antes de mais nada,
a lei da razão, a lei lógica, ética.e justa. A lei da jurisprudência. Em segundo lugar,
era a lei física. Não devemos, pois, pensar imediatamente em lei física quando le-
mos em obras antigas a respeito da lei natural. Geralmente, quer dizer a lei ética
dentro de nós, pertencente ao nosso ser segundo as premissas do Decálogo e do
Sermão da Montanha. Existe em virtude da natureza, da natureza criada, sendo,
portanto, o que somos em essência. Esse tipo de lei é o que está na mente de
Zwínglio e de Calvino mais do que na de Lutero. Lutero detestava a idéia de que
Deus estabelecera qualquer lei entre ele e o mundo ou entre ele a as ações, coisas e
decisões. Entendia todas as coisas de modo não racional e não legal na medida do
possível, não apenas 110 processo da salvação, mas também na interpretação da his-
tória e da natureza. Zwínglio e Calvino aceitavam a natureza em termos de lei. A
definição da natureza de Kant, na qual o domínio da lei física adquire validade, está
mais na linha calvinista e zwingliana do que luterana. Segundo Lutero, a natureza
é a máscara de Deus por meio da qual age com a humanidade de maneira irracional
- bastante semelhante ao livro de ló, A atitude zwingliana e calvinista em face da
natureza acha-se mais em harmonia com as exigêndas da sociedade industrializada
burguesa, decidida a analisar e transformar a natureza de acordo com propósitos
humanos; a relação de Lutero para com a natureza fundamenta-se no senso da
presença do divino, em todas as coisas, mística e irracionalmente.

Segundo Zwínglio, a lei do evangelho é igualmente lei. Não apenas lei, natu-
ralmente, posto que também aceitou a doutrina luterana do perdão dos pecados,
como todos os reformadores. Mas falou a respeito de uma nova lei evangélica, à
maneira dos humanistas e nominalistas. Essa lei deveria ser a base da lei do Estado.
Wyclif e Ockham tiveram a mesma idéia, demonstrando que neste ponto entrou no
pensamento reformado a idéia católica de que o evangelho pode ser interpretado
como nova lei. O termo "nova lei" é muito antigo, remontando aos primeiros tem-
pos da história da igreja. Lutero achava o termo abominável. Para Lutero, o evange-
lho é graça e nada mais; jamais poderia ser "nova lei". Mas para Zwínglio, esta nova
lei não era válida apenas para a situação moral, mas também para o Estado, na
esfera política. Politicamente, a lei do evangelho determinava as leis da cidade. As
cidades que não se submeterem a essa lei poderão ser atacadas por outras cidades
que a aceitam. Essa lei, pensava Zwínglio, mostra-se contra o catolicismo: por isso
ele desencadeou a guerra contra os cantões suíços católicos e morreu numa batalha.

256
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

Mas o princípio permaneceu de que a lei do evangelho era a base da lei do Estado.
Essa idéia exerceu tremenda influência na história universal e salvou o protestantis-
mo de ser sufocado politicamente pela 19teja Romana da contra-tefotma.

Lutero e Zwínglio divergem também na doutrina dos sacramentos. O debate


entre Zwínglio e Lutero, em Marburgo em 1529, deixava claro o contraste entre
dois tipos de experiência religiosa, a mística e a intelectual. Zwínglio achava que o
sacramento é "sinal seguro Oll selo" que, como qualquer símbolo, serve para nos
despertar a memória; ao participar no sacramento expressamos nossa vontade de
pertencer à igreja. O Espírito divino age ao lado dos sacramentos e não por meio
deles. Trata-se de um sinal obsequioso, como um distintivo. É um símbolo inspirador,
mas nada tem a ver com a fé e a salvação subjetivas, dependentes apenas da
predestinação.

Na cOIHrovérsia eucanstlca, o ponto em questão parecia, na superfície, não


passar de mera questão de tradução, mas na verdade o que estava em jogo era um
espírito diferente. A discussão girava em torno da palavra "é", na frase: "Este é meu
corpo". Os humanistas costumavam interpretar esse "é" como "significa" ou "quer
dizer". Lutero entendia que tinha que ser interpretado literalmente: o corpo de
Cristo escava literalmente presente. Segundo Zwínglio o corpo de Cristo se fazia
presente à contemplação da fé, mas não per essentiam et realiter (por essência e em
verdade). "O corpo de Cristo é comido quando cremos que foi morto por nós".
Tudo passa para o lado subjetivo. Representa um evento do passado. Não é um
evento presente. O evento presente é meramente subjetivo, na mente do fiel. Cristo
se faz, certamente, presente na mente, com seu Espírito, mas não na natureza. A
mente só pode ser alimentada pela mente, ou o espírito pelo espírito, mas não pela
natureza física.

Zwínglio mantinha contra Lutero que o corpo de Cristo estava no céu


circumscripte (circunscrito), isto é, num lugar definido. Dessa forma, o corpo de
Cristo era uma coisa individual; não participava na infinidade divina. Assim corno
qualquer homem com seu corpo, Cristo era finito, mantendo-se separadas as duas
naturezas.~A._Çeiad9_-?"~':!!:t..2E~!~}]1emóriae confis"~~_<??~ mas não comunhão pessoal
çom alguém realmente presente. Lutero dava ênfase na realidade da presença, e
para ressaltar essa idéia, inventou a doutrina da onipresença do corpo elevado de
Cristo. A presença de Cristo se repetia, pois, em todas as celebraçóes da Ceia do
Senhor. Identificavam-se a pessoa histórica e a pessoa sacramental. Para explicar,
Lutero dizia: "Onde se põe Deus, aí também se põe a humanidade; não se pode

257
CAP[TULO V

~ ~
separar nem um sem cortar do outro; Deus e homem são uma só pessoa". E do
demônio afirmar-se que o caráter divino do Cristo corpóreo nao passa de símbolo
ou metáfora. Lutero rejeitava completamente a idéia de que a divindade de Cristo
se separara de sua humanidade no céu. Até mesmo no céu estão juntas. Expressou
essa idéia na doutrina profunda e fantástica da ubiqüidade do corpo de Cristo, ou
da onipresença do corpo de Cristo subido ao céu. Cristo se faz presente em qual-
quer coisa, na pedra, no fogo, nas árvores, mas para nós se faz presente quando nos
fala. Mas pode nos falar por meio do que quiser. Queria dizer que Deus rende ao
corpóreo e que a onipresença do corpo de Cristo no mundo é a forma por meio da
qual o eterno poder de Deus se presentifica no mundo. Se desenvolvermos esta
idéia em termos escolásticos, e tomá-la literal ou supersticiosamente, teremos como
resultado uma doutrina absurda, porque pertencerá a um corpo destinado a ser
circunscrito. Mas quando tomada, simbolicamente, transforma-se em doutrina pro-
funda, afirmando que Deus está presente na terra em qualquer coisa. Faz-se presen-
te, além disso, por meio da manifescação concreta e histórica em Cristo. Lutero
queria dizer isso, muito embora o tenha feito de maneira bastante primitiva. Mas
queria dizer que em qualquer objero natural podemos ter a presença de Cristo. Por
causa deste símbolo da participação do Corpo de Cristo no mundo, veremos, por
ocasião da primavera, nas igrejas lureranas, grande quantidade de flores e de outros
elementos da natureza.

,').' Ao final desse debate sobre a Ceia do Senhor, os reformadores chegaram a certo
acordo. Negaram a doutrina da transubstanciação; muito embora não conseguis-
sern concordar a respeito da ubiqiiidade da presença de Cristo. Lutero admiüu a
existência de diferença fundamental entre ele e Zwínglio ao escrever: "Eles (os
zwinglianos) não têm o mesmo espírito que temos". Que queria dizer~ Em primei-
ro lugar, referia-se à relação entre a existência espiritual e a física. A partir do
neoplaronismo, Zwínglio compartilhava com os humanistas, intelecrualistas, pro-
funda separação entre o espírito e o corpo. É por isso que no calvinismo não se
percebe interesse no problema da expressão. Segundo Lutero, no entanto, o espíri-
to se faz presente apenas em suas expressões. Daí seu interesse no corpóreo. Octinger,
o místico, dizia: "A materialidade é o fim dos caminhos de Deus". Veio daí o grande
interesse na realidade corpórea de Cristo, na história e no sacramento. A segunda
diferença espiritual tinha a ver com o sentido religioso de natureza. Segundo o
pensamento de Zwínglio, a natureza é controlada e sujeita a cálculo por causa da
regularidade de suas leis. O naturalismo dinâmico de Lutero, ao contrário, desven-
da até mesmo os abismos demônicos da natureza e não se interessa por nenhuma lei

258
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES

da natureza.

Duas frases latinas expressavam essas diferenças. A fórmula lurerana rezava:


finitum capax infiniti - o finito é capaz do infinito. A fórmula reformada dizia:
finiturn non capax infiniti - o finiro não é capaz do conter o infinito. Essa diferença
fundamental apareceu primeiramente na crisrologia c depois se estendeu à vida
sacramental inteira e às relações com a natureza.

Talvez devamos admitir que, na reforma suíça, o ambiente sociológico determi-


nou a forma particular em que essas discussões aconteceram. Na Alemanha, ainda
tínhamos a aristocracia sobrevivente. Na Suíça, grandes cidades como Zurique e
Genebra transformavam-se em centros de comércio e indústria. Sociologicamente,
a reforma suíça desenvolveu-se na direção da sociedade indusrria1. Na reforma
lutcrana, especialmente ao norre da Alemanha, permanecia ainda a siruação pré-
burguesa. Quando lemos o CateciJmo Menor de Lutero, encontramos aí evidências
da cultura paternalista dos pequenos fazendeiros c alguns artesãos residentes em
vilas e pequenas cidades. Contrastando com isso, alguns dos escritos de Zwínglio e
de Calvino demonstram que cram de homens possuidores de amplos horizontes,
por causa do comércio que se desenvolvia então nos centros onde viviam.

<c. João Calvino

1. A majestade de Deus

o centro de onde emanam todas as demais doutrinas de Calvino é a doutrina


de Deus. Alguns acham que sua doutrina fundamental é a da predestinação. Essa
opinião é facilmente refutável uma vez que na ptimeira edição das Institutas, a dou-
trina da predestinação não havia nem mesmo sido desenvolvida. Foi só nas edições
posteriores que passou a ocupar espaço proeminente. Pode também ser refutada a
partir de ângulos até mesmo mais importanre.~~_A doutrina de Deus é semp~c?
.elemento fundamenralen1 qu.aJ9.!:!_~_r_.!~.2logia. Para Calvino, a doutrina central do
cristianismo é a da majestade de Deus. Ele ensinou mais claramente do que qual-
quer outro reformador que Deus é conhecido numa atitude existencial. Ensinou a
correlação entre miséria humana e majestade divina. Somente a partir da miséria
humana podemos entender a majestade divina e, vice-versa, apenas à luz da majes-
tade divina é que entendemos a miséria humana. Calvino aplicava a Deus uma
palavra que foi depois redescoberra por Rudolf Ouo, numen, numinoso. Deus é

259
CArfTULOV

numinoso para ele. É inatingível, terrível c, ao mesmo tempo, fascinante. Fala de


Deus em termos "dessa natureza numinosa". Distingue-se de todos os ídolos e dos
deuses do politeísmo. Não se pode falar diretamente a respeito de Deus por causa
de sua transcendência radical. Calvino desenvolveu curiosa teoria do simbolismo
cristão. Os símbolos são significações da essência incompreensível de Deus. Acredi-
tava que os símbolos deviam ser momentâneos, prontos a desaparecer e a se negar.
Não são a coisa em si. Penso que essa característica de auto negação é fundamental
nos símbolos relacionados com Deus. Quando tomados literalmente, produzem
ídolos. Essa idéia é de Calvino e não da teologia de nenhum pseudo-Dionísio.
Assim, quando falamos de simbolismo em referência a Deus, podemos citar alguém
que não pode de maneira alguma ser suspeito de não ter sido ortodoxo.

A verdade do símbolo nos leva para além do símbolo. "A melhor contemplação
do ser divino se dá quando a mente se transporta para além de si com admiração".
A doutrina de Deus não pode ser jamais assunto de contemplação teórica. Precisa
ser questão de participação existencial. A famosa declaração de Karl Barrh, derivada
do texto bíblico (Eclesiastes 5,2), de que "Deus está no céu e você, na tcrra", foi
muitas vezes empregada por Calvino e por ele explicada. O céu "acima" não é um
lugar onde Deus se confina, mas expressão de sua transcendência religiosa. Chega-
mos, assim, à atitude central calvinista de temor à idolatria. Calvino lutou contra os
ídolos sempre que acreditava vê-los. Por isso não se interessava pela história da
teligião, que condenava porque lhe parecia idólatra. Na verdade, a religião não
consegue evitar certos elementos idólatra~.~~A!~~Pgiª_º~_~,~rnPE~J'?Li~bricade íd?_los.
Portanto, o cristão e o teólogo precisam estar alerras contra essas tendências idóla-
tras prontas a interferir no seu relacionamento com Deus.

Calvino se opôs ao uso dc quadros nas igrejas e a qualquer coisa que pudesse
desviar a mente do Deus transcendente. É por essa razão que as igrejas calvinistas se
caracterizam por espaços sagrados vazios. Persiste scmpre o temor da idolatria nas
profundezas dos homens que já vcnceram a idolatria. O que se deu com os profetas,
e depois com os maomctanos, dá-se agora com os reformadores. O calvinismo pode
ser considerado um movimento iconoclasta, destruindo ídolos e todas as represen-
tações pictóricas, sob a alegação de que nos desviam de Deus. A idéia de que a
mente humana é "fabricadora de ídolos" é uma das mais profundas afirmações feitas
sobre o nosso pensamento a respeito de Deus. Até mesmo a teologia mais ortodoxa
não passa, muitas vezes, de mera idolatria.

260
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTFSIANTES

Por outro lado, a situação humana é descrita por Calvino em termos muito
mais negativos que por Lutero. "Por causa de nossa tendência natural à hipocrisia,
qualquer aparência vã de retidão contenta-nos muito mais do que a própria realida-
de". E a realidade é o nosso pecado. O homem não suporta sua realidade. Não se vê
como é. Como dizemos hoje em dia, o homem é ideológico a respeito de si mesmo.
Produz imagens irreais sobre o seu próprio ser. Trata-se de ataque radical à situação
humana, embora corresponda a Deus enquanto o Deus da glória. Quando Calvino
se refere ao Deus de amor, sempre o faz no contexto dos eleitos. É para eles que
Deus revela seu amor. Os que não foram eleitos estão desde o começo excluídos
desse amor. Se Calvino estiver certo, não teríamos que dizer também que Deus cria
o mal? Esta pergunta tem que ser respondida em relação com a doutrina da provi-
dência e da predestinação.

2. Providência e predestinação

Calvino estava consciente de que sua maneira de pensar poderia facilmente


acabar num conceito meio deísta, com Deus ao lado do mundo. Algumas centenas
de anos antes do surgimento do deísmo, na Inglaterra, Calvino advertia contra essa
idéia. Em lugar dessa idéia, acreditava num Deus que governa e dirigia o mundo de
tal maneira que todo o movimento dependia dele. O deísmo não passava de desejo
catnal destinado a afastar Deus de nosso meio. Se Deus permanece sentado em seu
trono, sem se preocupar com o mundo, o mundo fica somente nosso. Era o que
queriam o iluminismo e a sociedade industrial. Não toleravam um Deus constante-
mente envolvido com o mundo. Precisavam de um Deus que tivesse iniciado o
mundo, mas que ficasse de fora sem perturbar os comerciantes em suas transações e
os criadores da indústria. Calvino repudiava essa idéia: ''A fé tem que penetrar mais
além". Deus é o preservador perpétuo do mundo "não por meio de certa atividade
universal que põe em movimento a máquina do mundo, bem como todas as suas
partes, mas por meio de seu sustento particular e providencial que nutre e mantém
tudo o que fez", Tudo isso pressupõe um processo divino dinâmico dentro das
próprias leis dadas por Deus. Sabia que a doutrina da lei narural corria o perigo de
alijar Deus do centro da realidade. Afirmava, então, que todas as coisas possuíam
caráter instrumental: são instrumentos que Deus sempre utiliza. Quem chama essa
doutrina de panteísmo não sabe o que o termo significa. Mas se a chamarmos de
pan-en-teísmo estaremos certos, pois significa que todas as coisas estão em Deus.
As coisas são instrumentos da atividade de Deus, segundo sua vontade. E assim

261
CAP[TULO V

Calvino chega perto da idéia de Lutero. O conceito calvinista da onipotência de


Deus renega a idéia absurda de se imaginar um Deus sentado em algum lugar do
universo a deliberar consigo mesmo o que fazer, sabendo que pode fazer qualquer
coisa que deseje. Mais Oll menos como a dona de casa que decide fazer isto ou
aquilo. Trata-se de lima imagem indigna de Deus, inaceitável aos reformadores.
"Deus não age o •• em vão, despreocupado e quase dormindo, mas com vigilância,
eficácia, força, envolvido em constante atividade; não é um mero princípio geral de
movimento confuso, como se ordenasse que o rio corresse pelos canais já existentes
para ele, mas um poder constantemente exercido sobre todos os movimentos exis-
tentes. Nós o chamamos de onipotente não porque seja capaz de agir e não o faça,
permanecendo distante e inoperante". Onipotência é omniatividade. Providência é
ação divina constante.

Vem daí o problema que Calvino ainda discutia em seu próprio leito de morte:
se as coisas são assim, não será Deus, então, a causa do mal? Não temia afirmar que
o mal natural era conseqüência natural da deformação da natureza. Mas também
afirmava que era um modo de trazer os eleitos a Deus. E disse mais. É também um
meio de demonstração da santidade de Deus, por meio da punição dos que foram
escolhidos para a condenação, e para a salvação dos eleitos. Entendia que Deus
havia produzido os maus com a finalidade de lhes punir, e os outros, que eram
maus apenas por causa de sua na[Ureza má, ele os salvara. Esta idéia exclusivamente
teocêntrica, enraizada na glória de Deus, foi compreensivelmente atacada, e Calvino
acabou muito preocupado com a acusação de ter atribuído a Deus a causa do mal.

Os sofrimentos do mundo não constituem problema para Calvino. Desde que


o primeiro princípio seja a glória de Deus, procurou demonstrar que o sofrimento
humano é (I) conseqüência natural do mundo pecaminoso e deformado; (2) modo
de trazer os eleitos a Deus, e (3) modo de Deus demonstrar sua santidade ao punir
o mundo deformado. O mal físico é, assim, entendido em parte como conseqüência
natural, em parte como método educativo e, em parte, como punição pelo pecado.
O que não resolve o problema do mal moral. Calvino tenta mostrar que os atos
maus de Satã e dos homens maus são determinados pela vontade de Deus. Até
mesmo Pilaras e Nabucodonozor foram servos de Deus. Deus cega as mentes e
endurece o coração humano: coloca nos corações humanos O espírito do mal. E cita
Agostinho: "Deus realiza sua vontade justa por meio da vontade má dos homens
maus". Calvino acrescenta: "Agostinho declara que Deus cria a luz e as trevas, faz o
bem e o mal, de tal maneira que nenhum mal acontecido não seja obra sua". Essas

262
A TEOLOGIA DOS REfORMADORES PROTESTANTES

afirmações que parecem fazer de Deus a causa do mal só podem ser entendidas à luz
da idéia de Calvino de que o mundo é "o teatro da glótia de Deus". Deus mostra a
sua glória nesse cenário que chamamos mundo. Para mostrar essa glória ele causa o
mal, até mesmo o mal moral. Calvino refutava a idéia de que Deus permite o mal
por causa da liberdade. Essa idéia lhe parecia Frívola, porque Deus age em tudo o
que acontece. Os maus seguem a vontade de Deus, embora não sigam seus manda-
mentos. Ao seguir a vontade de Deus, os lnaus desafiam os mandamentos de Deus
e, assim, tornam-se culpados.

Dessa forma, a idéia da providência, em Calvino, é estritamente causada por


Deus. Não estou dizendo "determinada", mas "causada". E se houver pessoas -
como Calvino bem desconfiava - que acham impossível afirmar tais coisas a respeito
de Deus, e que esse tipo de providência é uma coisa horrorosa, ele respondia: "A
ignorância da providência é a maior das misérias; o conhecimento dela se alcança
juntamente com a mais alta felicidade". A crença na providência nos liberta da
ansiedade, do medo e da preocupação. Esse período, por volta do final da Idade
Média, fora ameaçado por inúmeras catástrofes e mudanças externas, produzindo
muita angústia pessoal. A doutrina de Calvino da providência não era abstrata;
destinava-se a curar as angústias e a dar coragem moral. Para esse fim ressaltava a
providência divina.

Relacionada com essa doutrina da providência vinha a da predestinação.


Predestinação é providência relacionada com o fim último do homem. É a provi-
dência que conduz o homem pelos caminhos da vida até seu destino final. Assim, a
predestinação nada mais é do que a implicação lógica da realização última da pro-
vidência. Que quer dizer essa doutrina da predestinação? Corno surgiu o problema?
Por que será que a maior parte dos grandes nomes em religião, desde Isaías, Jesus,
Paulo, Agostinho, ~Hé Lutero, defendem a idéia de predestinação, enquanto que os
outros, que não a aceitam, colocam-se mais perto de urna interpretação moralista
do cristianismo e não tão religiosa como aqueles? Ao negarmos a predestinação
estaríamos também negando essas elevadas personalidades religiosas com suas teo-
logias?

A questão por detrás desta doutrina é esta: por que nem todas as pessoas rece-
bem a mesma possibilidade de aceitar ou de rejeitar a verdade do evangelho? Nem
todos têm a mesma possibilidade histórica, pois nunca ouviram falar de Jesus. Nem
todos têm a mesma possibilidade psicológica; vivem numa tal condição que não
conseguem nem mesmo entender o significado da pregação. A resposta a essas per-

263
CAPíTULO V

guntas é a providência divina, mas, como já vimos, a providência a respeito de


nosso destino eterno chama-se predestinação. No momento em que o cristianismo
dá ênfase na singularidade de Cristo, deve perguntar por que muitas pessoas nllnca
ouviram a respeito dele ao mesmo tempo em que outras, que ouviram falar dele, se
tornaram tão precondicionadas que essa pregação não lhes comunica sentido al-
gum. Em aunas palavras, os que ensinam a predestinação partem da observação
empírica, a saber, que há na vida um princípio seletivo e não igualitário. A vida não
pode ser compreendida em termos de um princípio igualitário, mas de um princí-
pio seletivo.

Todas as pessoas fazem perguntas desse tipo. Calvino dizia que não devemos
deixar de fazer essas perguntas, movidos por falsa modéstia. Elas devem ser feitas.
"Nunca estaremos c1aramentc convencidos '" que nossa salvação flui da fonte da
misericórdia livre de Deus a não ser que reconheçamos sua eleição eterna, que ilus-
tra a graça de Deus da seguinte maneira: ele não adota a todos promiscuamente,
dando-lhes a esperança da salvação, mas dá a alguns o que recusa a outros". Mas há,
também, um outro lado nesta doutrina. Os que fazem essas perguntas recebem a
certeza da salvação porque a predestinação torna a salvação completamente inde-
pendente das oscilações de nosso ser humano. O desejo de certeza de salvação é a
segunda razão para a doutrina da predestinação em Paulo, Agostinho, Lutero c
Calvino. Não podiam encontrar certeza ao se sondarem a si mesmos, porque a fé era
sempre fraca e mutável. Só encontravam essa certeza fora deles, na açáo de Deus.

O caráter concreto da graça divina torna-se visível numa eleição que me inclua
especificamente ao mesmo tempo em que exclua outros. Chegamos, assim, ao con-
ceito da predestinação dupla. "Chamamos de predestinação o eterno decreto de
Deus que determina o que vai acontccer com cada ser humano individual, pois
nem todos são criados para o mesmo destino; a vida eterna é predeterminada para
alguns e a perdição eterna para outros. Os homens todos, portanto, são criados para
um ou outro desses fll1s, isto é, predestinados para a vida ou para a morte". Essa é
a definição de Calvino. Qual é a causa dessa eleição? Apenas a vontade de Deus e
nada mais. "Se, por um lado, não podemos encontrar razão alguma pela qual Deus
concede misericórdia ao seu povo a não ser o scu prazer, tampouco encontraremos
outra causa para a explicar a não ser a sua vontade para reprovar os outros". A
vontade irracional de Deus é a causa da predestinação. E assim somos introduzidos
ao mistério absoluto. Não podemos pedir que Deus nos preste contas. Temos que
aceitar a vontade de Deus pura c simplesmente e abandonar os nossos critérios de

264
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

bem e de verdade. Quando alguns dizem que se erara de injustiça, Calvino assevera
que não podemos ir além da vontade divina procurando alguma outra natureza
capaz de determinar Deus, porque a vontade de Deus não pode ser determinada
por coisa alguma, nem mesmo por ele. Reafirma-se, assim, com todo o vigor, o
pensamento de Ockham e de Escoro de que a vontade de Deus é a única causa do
que Deus faz, e nada mais.

o próprio Calvino sentia o aspecto terrível dessa doutrina. "Fico me pergun-


tando muitas vezes como é que a queda de Adão, independente de qualquer remé-
dio, envolveu tantas nações arrastando até crianças à morte eterna, apenas por causa
da vontade de Deus trata-se de um decreto horrível, confesso!" Contudo, ao ser
0,0

atacado, especialmente nos últimos anos de sua vida - em face da morte - sua res-
posta era um pouco diferente: "Sua perdição depende da predestinação divina, de
tal maneira, que a causa e a matéria dessa perdição se acham neles próprios". A
causa imediata, portanto, passa a ser a livre vontade do ser humano. Como Lutero,
Calvino estava pensando em dois níveis. A causa divina não é realmente uma causa,
mas um decreto, algo misterioso, para o qual a categoria da causalidade emprega-se
apenas simbolicamente e não em sentido literal. Além disso Calvino sabia, como os
outros reformadores e todos os adeptos da doutrina da predestinação, que quando
Deus decreta a predestinação, o faz por meio da liberdade finita do homem.

Se quisermos criticar essa doutrina, não devemos dizer que se trata de simples
contradição entre a causalidade de Deus e a liberdade humana. Seria demasiada-
mente fácil, uma vez que os níveis sao diferentes, e não existe possibilidade de
contradição entre níveis diferentes. As contradições ocorrem sempre no mesmo ní-
vel. Temos, de um lado, o nível da ação divina, misterioso porque não cabe em
nossas categorias, e, de outro, o nível da ação humana, misturando liberdade e
destino. Não vamos pensar nos reformadores ou em qualquer outro grande teólogo,
em termos de um Linico nível de pensamento. Caso contrário, teremos de enfrentar
todos os tipos de declarações impossíveis que não só se contradizem entre si, mas
também destroem nossas mentes quando, num aro heróico, decidimos aceitar as
contradiçóes desse tipo. Em vez disso, devemos pensar em termos de dois níveis.
Por exemplo, podemos dizer: "Não posso fugir da caregoria da causalidade quando
falo da ação de Deus, e quando assim falo, derivo tudo de Deus, incluindo o meu
próprio destino eterno". Essa afirmação soa como determinismo mecânico. Mas
não é isso que a predestinação quer dizer. No nível divino, a causalidade é emprega-
da, simbolicamente, para expressar que todas as coisas que nos conduzem a Deus

265
CAPfTULO V

são derivadas do próprio Deus.

ocalvinista fica sempre indagando se ele está ou nao entre os eleitos. De que
maneira pode ter certeza dessa eleição? E assim começa a procura de critérios, de
marcas da eleição. Calvino conhecia alguns desses critérios. O primeiro e principal
é a relação interior do homem com Deus no ato de fé. Segue-se imediatamente a
bênção de Deus e uma vida de aIra padrão moral. São sinramas. Psicologicamente,
o indivíduo alcançava certa certeza ao reproduzir em sua existência as marcas da
eleição: vida moral e bênçãos econômicas. Em outras palavras, o calvinista procura
se transformar num bom cidadão burguês, segundo as normas da sociedade indus-
trializada. Acreditava que só dessa maneira podia ostentar as marcas da predestinação.
Naturalmente, sabia-se pela teologia, que a predestinação não dependia de tais
marcas. Mas quando essas marcas apareciam, os indivíduos passavam a ter certeza
da eleiçáo. Escondia-se aí o perigo dessa teologia envolvida com essas marcas de
predestinação.

É impressionante o pouco que Calvino tem a dizer a respeito do amor de Deus.


A glória divina substitui o amor divino. Só fala nesse amor em relação aos eleitos.
Nega a universalidade do amor de Deus e faz com que a negação demônica e a
ruptura do mundo adquiram certa forma de eternidade. É o que se vê em sua
doutrina da predestinação dupla. Essa doutrina, portanto, contradiz o amor divino
que tudo sustenta. Dante expressou-a na sua Divina Comédia quando escreveu na
entrada do inferno: "Eu também fui criado pelo amor divino". Entretanto, se algo
é criado pelo amor divino, não pode ser condenado eternamente.

3. Vida cristã

Vou fazer poucos comentários a respeito da doutrina de Calvino sobre a vida


cristã. Ele afirmou: "Quando explicam a alegria que a mente experimenta depois de
apaziguada, em face de perturbações e temores, não posso concordar com eles (Lutero
e seus seguidores), pois essa experiência deveria significar, antes, o ardente desejo e
a decisão de se levar uma vida santa e pia, posto que o homem só começa a viver em
Deus quando morre para si mesmo". Para Lutero, a vida nova é alegre reunião com
Deus; para Calvino, o cumprimento da lei de Deus. O sumário da vida cristã é
auto-negação que, ensinado que não se pertence a si mesmo, submete-se à sobera-
nia e governo da razão, para submetê-la a Deus. O que descreve a vida cristã para
°
Calvino não sáo os altos e baixos de Lutero, êxtase e o desespero. Para Calvino, a

2GG
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

vida cristá é uma linha ascendente, que sobe mediante estágios metódicos.

Há, ainda, dois outros elementos na doutrina da vida cristã de Calvino. O


mundo é lugar de nosso exílio. O corpo não passa de prisão da alma sem qualquer
valor. São palavras bem mais na tradição de Platão do que do Antigo ou do Novo
Testamento. Contudo, Calvino negava que tivesse qualquer ódio à vida. Sua ascese
não era do tipo romano que tendia a vida ou o corpo por meio de exercícios físicos.
Era o que Max Weber e Ernsr Troelrsch chamavam de ascetismo intramundano.
Possuía duas características: limpeza e lucro por meio do trabalho. A limpeza era
entendida como sobriedade, castidade e temperança. Essa ascese teve tremendas
conseqüências na vida das pessoas nos países calvinistas. Expressava-se em extrema
limpeza externa e identificava o elemento erótico com a sujeira. Essa deturpação do
erótico contrariava os princípios da Reforma, mas era conseqüência natural da ética
de Calvino. A segunda característica desse ascetismo inrramundano era a atividade
no mundo para produzir instrumentos e ferramentas, com os quais se alcançava
lucro. É o que Max Weber chamou de "o espírito do capitalismo" (A ética protestante
e o espírito do ctlpitalismo). Essa doutrina tem sido tão mal entendida que preciso
fazer algumas considerações a respeito. Para muita gente, grandes pensadores como
Max Weber e Ernst Troeltsch teriam afirmado que o calvinismo produziu o capita-
lismo. Então, essas pessoas querem ensinar a Weber o que ele certamente já sabia -
Weber que foi, provavelmente, o maior pensador do século dezenove nos campos da
sociologia e dos estudos humanísticos. Pensam que lhe ensinam novidades afirman-
do que o capitalismo já existia antes de Calvino, especialmente na planície da
Lombardia, ao norte da Itália, nas cidades alemãs do norte e do sul, em Londres
etc. O que Weber realmente afirmou é que havia qualquer coisa no espírito da ética
calvinista, e de certas éticas sectárias relacionadas com o calvinismo, voltada aos
propósitos do investimento, importante elemento da economia capitalista. Nas
economias pré-capitalistas, os ricos ostentavam suaS riquezas em estilos luxuosos de
vida, construindo castelos, mansões e belas residências aristocráticas. O calvinismo,
porém, mostrou que a riqueza poderia ser usada de outra forma. Havia, por um
lado, as dotações, e por outro, os novos investimentos. A;:, economias capitalistas
alimentam-se da transformação do lucro em investimentos, gerando aumento da
produção, em vez do desperdício desse lucro em estilos luxuosos de vida.

Era isso o que Max Weber queria dizer. Se vocês não acreditam no acerto das
análises de Weber, posso lhes dizer que na Alemanha Oriental, antes das catástrofes
do século vinte, as cidades protestantes eram ricas, e as católicas, pobres. É provável

267
CAP[TULOV

que os pobres fossem mais felizes do que os ricos. Mas as cidades e capitais, influen-
ciadas pelo calvinismo, produziram o capitalismo na Alemanha. As cidades influ-
enciadas pelos católicos e pelos luteranos não acompanharam as tendências
calvinistas.

4. Igreja e Estado

A doutrina da igreja de Calvino assemelha-se à de Lutero; a igreja é o lugar


onde se prega e onde os sacramentos são corretamente administrados. Entretanto,
Calvino estabelece radical distinção entre a igreja empírica e a invisível.

Entretanto, para Lutero a igreja invisível é apenas a qualidade espiritual da


igreja visível, para Calvino a igreja invisível é o corpo dos predestinados em todos os
períodos da história, nem sempre dependente da pregação da Palavra. Essa idéia
prende-se à doutrina do Espírito Santo, em Zwínglio e Calvino; o Espírito opera
também fora da mensagem cristã e é, portanto, universalmente ativo.

A partir desse ponto de vista, a igreja visível é uma situação de emergênCia,


uma adaptação de Deus à fraqueza humana. Assim, não se trata de Cfer na igreja,
mas de crer que existe uma igreja. A função principal da igreja é educativa. A igreja
tem a missão de levar as pessoas à igreja invisível, corpo dos predestinados, por
meio da pregação e dos sacramentos. Por outro lado, a ênfase na tarefa educacional
da igreja é muito mais forte do que no luteranismo. Embora a igreja, em última
análise, seja uma criação de emergência de Deus, é, para muita gente, a única
maneira de encontro com Deus. A diferença entre a doutrina de Calvino c a de
Lutero é que em vez de duas marcas, doutrina e sacramentos, como ensina Lutero,
a igreja tinha três, para Calvino: doutrina, sacramentos e disciplina. O elemento
mais importante era a disciplina. "Os que detestam a disciplina, evitando a própria
palavra, devem atentar para o seguinte ... "assim como a doutrina salvadora de Cris-
to é a alma da igreja, assim a disciplina tece os segmentos que reúnem os membros
da igreja, ao mesmo tempo em que os conserva "cada qual em seu lugar". A discipli-
na começa com a admoestação privada; passa depois para o desafio público (coisa
ruinosa socialmente) e, finalmente, à excomunhão. Mas nem mesmo a excomunhão
consegue afastar as pessoas do poder salvador de Deus. Enquanto os excomunga-
dos, segundo a Igreja Romana, não podem se salvar nesse estado, no protestantis-
mo qualquer pessoa será salva, apesar da excomunhão, se estiver entre os predesti-
nados.

268
A TEOLOGLA DOS REfORMADORES PROTESTANTES

Além dessas três marcas da igreja, há outros elementos determinados pela lei
divina. Há quatro ofícios: pastores ou ministros, doutores ou mestres, presbíteros e
diáconos. Os pastores e os presbíteros são os ofícios mais importantes. Todos proce-
dem da ordem divina; são, portanto, necessários; derivam-se da Bíblia.

Nesse status misturado, a igreja sempre conserva, em seu interior, uma comuni-
dade de santificação ativa. Essa comunidade é criada pela igreja e se manifesta na
Ceia do Senhor. É por isso que a recepção da Ceia vem sempre precedida de disci-
plina. Não vou entrar na discussão pormenorizada da doutrina calvinista dos sacra-
mentos. A coisa mais importante, no entanto, é a preocupação de Calvino de medi-
ar entre Lutero e Zwínglio. Não queria que a Ceia do Senhor fosse apenas uma
refeição comemorativa; queria a presença de Deus, mas não uma presença derivada
da superstição e magia, como achava encontrar na doutrina de Lutero, na qual até
mesmo os descrentes comiam o corpo de Cristo.

Isso lhe parecia magia e Calvino a rejeitou, parece-me, corretamente. Em vez


disso, acentuava a presença espirimai de Cristo, coisa que pressupunha, natural-
mente, a cuidadosa leitura da Bíblia.

Calvino, por ser humanista, concedeu ao Estado muito mais funções do que
Lutero. Lutero lhe dava apenas uma função; suprimir o mal e preservar a sociedade
do caos. Calvino desenvolveu as idéias humanistas de bom governo, de ajuda ao
povo etc. Mas Calvino jamais chegou ao extremo de afirmar, como certos movimen-
tos sectários, que o Estado poderia ser o próprio reino de Deus. Considerava tal
afirmação mera loucura judaica. Mas acreditava, juntamente com Zwínglio, que se
poderia chegar ao estabelecimento de uma teocracia, visível na aplicação das leis
evangélicas na situação política, com a conseqiiente soberania de Deus. Calvino
muito se esforçou para que isso viesse a acontecer. Exigiu dos magistrados de Gene-
bra não apenas o cumprimento das leis ou a solução de problemas de ordem geral,
mas também preocupação pelo mais importante fator da vida diária, a saber, a
igreja. Não que lhes competisse ensinar na igreja ou decidir sobre o conteúdo do
ensino, mas lhes cabia supervisionar a vida da igreja e punir os blasfemadores e
hereges. Calvino pretendia, assim, com o auxílio dos magistrados de Genebra, criar
uma comunidade governada pela lei de Deus. Os sacerdotes e os ministros não
precisavam se envolver necessariamente com esse governo. Os governadores
teocráticos não precisavam ser normalmente os sacerdotes. Se fosse assim, a teocracia
correria o perigo de se transformar em hierocracia. Os governadores eram, pois,
leigos. Segundo Calvino, o Estado devia punir os ímpios. São criminosos porque se

269
CAPÍTULO V

opõem à lei do Estado, baseada na lei de Deus.

Calvino salvou o protestantismo de ser devastado pela Contra-Reforma. O


calvinismo transformou-se, logo, num tremendo poder internacional fortalecido
por alianças entre os protestantes do mundo todo. Outro elemento importante no
calvinismo é a possibilidade da revolução. Calvino também achava, como Lutero,
que as revoluções contrariam a lei de Deus. Mas admitiu uma exceção que veio a ser
decisiva para a história da Europa Ocidental. Entendia que embora os cidadãos
individuais não deveriam ter permissão para iniciar a revolução, os magistrados
menos graduados poderiam fazê-lo sempre que a lei natural, a que todos se subme-
tem, começasse a ser violada. Todos nós, numa democracia como a nossa, em que
somos magistrados menos graduados, temos essa mesma possibilidade. Estabelece-
mos o governo por meio de nosso voto. Sob essas circunstâncias, a revolução passa a
ser universalmente permissível. Na Europa Ocidental, os reis e as rainhas estavam
mais ao lado do catolicismo, e o protestantismo só podia ser salvo pelo povo que
acreditava em sua capacidade de luta contra os governantes, em nome de Deus.
Esses governantes haviam suprimido o verdadeiro e puro evangelho da Reforma.

5. Autoridade das Escritutas

A doutrina da autoridade das Escrituras, em Calvino, é importante porque


incentivou o surgimento do biblicismo em todos os grupos protestantes. A Bíblia,
para Calvino, era a lei da verdade. "Finalmente, para que a verdade pudesse perma-
necer no mundo instruindo constantemente pelos tempos afora, ele determinou
que os mesmos oráculos confiados aos profetas aparecessem também em registros
públicos. Assim, foi promulgada a lei, à qual se anexaram, depois, os profetas na
qualidade de seus primeiros intérpretes". A Bíblia deve, pois, ser obedecida acima
de qualquer outra coisa. Ela contém a "doutrina celestial".

Embora adaptada, essa adaptação se tornou necessária por causa da mutabilidade


da mente humana. Tratava-se de um modo necessário para a preservação das dou-
trinas do cristianismo. Ao se escrever a Bíblia, as instruções de Deus se fizeram
efetivas. Calvino também se referiu à Bíblia como "a escola específica dos filhos de
Deus".

Todas essas idéias podem ser lIlócuas - ou bem o seu oposto. Muita discussão
ainda se faz a respeito da maneira de se interpretar a doutrina das Escrituras de
Calvino. Seja como for, a resposta terá sempre de aceitar a autoridade absoluta da

270
A TEOLOGIA DOS REFORMADORES PROTESTANTES

Bíblia. Essa autoridade, no entanto, destina-se apenas aos que, agraciados pelo
divino Espírito, dele recebem o testemunho de que a Bíblia contém a verdade
absoluta. Quando essa atividade do Espírito se dá, passamos a testemunhar a auto-
ridade da Bíblia inteira. Essa autoridade venl do fato de a Bíblia ter sido composta
sob o ditado do Espírito Santo. Esse termo "ditado do Espírito Santo", desembo-
cou na doutrina da inspiração verbal, transcendendo tudo o que Calvino ensinou,
ao mesmo tempo em que contradizia o próprio princípio protestante. Os discípu-
los teriam sido "penas" ("canetas") de Cristo.

Tudo o que procedia deles, enquanto seres humanos, era sobrepujado pelo
Espírito Santo, que testificava a presença dos oráculos de Deus nesse livro. "Entre
os apósmlos e seus sucessores, contudo, existe ... esta diferença: que os apóstolos
eram os secretários do Espírito Santo, e que, portanto, seus escritos devem ser rece-
bidos como oráculos de Deus". A Bíblia inteira teria sido escrita "a partir da boca de
Deus". Desaparece qualquer distinção entre o Antigo e o Novo Testamento. Essas
idéias ainda persistem em todos os países calvinistas.

271
CAPÍTULOVI
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE

Examinaremos agora o ritmo do desenvolvimento da teologia protestante nos


últimos séculos. Ele é importante não apenas do ponto de vista histórico, mas
também porque os elementos criados nesse período estão profundamente envolvi-
dos com as nossas mentes, almas e corpos. Embora não nos seja possível oferecer
uma história da teologia protestante, podemos mostrar as várias correntes presentes
em seu desenvolvimento.

A. Ortodoxia

A corrente, surgida imediatamente depois da Reforma, é conhecida pelo nome


de ortodoxia. Trata-se de movimento maior e mais sério do que o assim chamado
fundamenralismo nos Estados Unidos. O fundamenralismo resultou de uma reaçáo
no século dezenove, não passando de forma primitivizada da ortodoxia clássica. A
ortodoxia clássica relacionou-se com uma grande teologia. Poderíamos chamá-la de
escolástica protestante, com todos os refinamentos e métodos que a palavra
"escolástica" inclui. Assim, quando eu falo de ortodoxia, refiro-me à maneira como
a Reforma estabeleceu-se, enquanto forma eclesiástica de vida e pensamento, de-
pois que o movimento dinâmico da Reforma terminou. É a sistematização e a con-
solidação das idéias da Reforma, desenvolvidas em contraste com a Contra-Refor-
ma.

A teologia ottodoxa foi, e ainda é, a base sólida de onde emanatam todos os


desenvolvimentos posteriores, tenham sido eles - como foram em geral - dirigidos
conrra a ortodoxia, ou meras tentativas de restaurá-la. A teologia liberal, até hoje,
tem sido dependente da ortodoxia, contra a qual constantemente se rebela. O
pietismo também dependeu da ortodoxia, querendo transformá-la em subjetivismo.
Movimentos de restauração, no passado e no presente, tentam recuperar o que teve
vida no período da ortodoxia. Por isso, vamos tratar desse período com muito mais

272
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE

seriedade do que, em geral, se faz nos Estados Unidos. Na Alemanha e, em geral,


nas faculdades européias de teologia - França, Suíça, Suécia etc. - espera-se que os
estudantes de teologia aprendam de cor as doutrinas de, pelo menos, um teólogo
clássico do período pós-reformado da ortodoxia, seja ele luterano ou calvinista, e,
naturalmente, em latim. Mesmo se abandonássemos o latim hoje em dia, devería-
mos tomar conhecimento dessas doutrinas, porque formam o sistema clássico do
pensamento protestante. Trata-se de lamentável estado de coisas saber que as igrejas
protestantes, de hoje, nem mesmo conhecem as expressões clássicas de seus própri-
os fundamentos, oriundas da dogmática da ortodoxia. Quero dizer que não se pode
entender pensadores como Schleiermacher ou Ritschl, o liberalismo americano ou
a teologia do evangelho social, sem se conhecer a ortodoxia. Sem essa base, não
saberemos contra o que essas teologias se dirigem ou de que dependem. Toda a
teologia atual depende, de um ou de outro modo, dos sistemas clássicos da ortodo-
Xla.

A teologia ortodoxa teve também importância política, uma vez que era neces-
sário definir o status da religião, na atmosfera política do período imediatamente
depois da Reforma. Foi nesse período que se prepararam as Guerras dos Trinta
Anos. Sob o imperador alemão, cada território tinha que definir precisamente o que
acreditava, coisa básica para ser reconhecido, legalmente, dentro da unidade do
Santo Império Romano. A teologia, além disso, era uma reologia dos príncipes
territoriais. Queriam saber de suas faculdades de teologia que, exatamente, se espe-
rava da pregação e ensino dos ministros. Queriam saber essas coisas porque eram os
senhores oficiais da igreja, os bispos supremos, 5ummi episcopi. Assim, todos os
problemas teológicos da época relacionavam-se com problemas legais. Quando,
hoje em dia, lemos a respeito da Confissão de Augsburgo sobre Variata e lnvariata
ralvez pensemos: "Que bobagem!" Quando em lugar da Invariata (Confissão de
Augsburgo inalterada), introduziu-se a Variata (Confissão de Augsburgo alrerada),
sem a permissão dos príncipes, a unidade do protestantismo foi ameaçada e muita
gente foi morta. Mais do que bobagem! Tratava-se da diferença entre o gnesio-
luteranismo e o filipismo. A primeira designação aplica-se ao luteranismo original,
ou genuíno, representado por Flacius, o maior historiador eclesiástico do protes-
tantismo. Suas idéias assemelhavam-se às da escola barthiana de nossos dias, dando
ênfase na depravação total do ser humano. Empregando terminologia escolástica,
Flacius dizia que a substância da natureza humana era o pecado original. A ortodo-
xia não aceitou essa idéia.

273
CAPiTULO VI

Filipismo, por outro lado, representava a tendência de Filipe Melanchton. De


tal maneira se assemelhava às idéias da Reforma que, até hoje, é difícil descobrir até
que ponto o filipismo é tefotmado e até que ponto é "melanchtonismo". Os segui-
dores dessas idéias estavam perto do que chamamos hoje de teologia liberal mode-
rada, em contraposição aos gnesio-Iuteranos. A Fórmula de Concórdia, de 1580,
resultou dessas controvérsias. Boa parte das igrejas territoriais acreditava interpre-
tar, com pureza, a Confissão de Augsburgo em sua forma inalterada. Como resulta-
do, o elemento doutrinário tornou-se muito mais importante para a ortodoxia do
que para a Reforma, na qual o elemento espiritual sempre teve mais valor do que as
doutrinas fixas. Lutero não fixou doutrinas, muito embora pudesse ser firme em
suas convicções.

~. Razão e revelação

Vamos considerar, agora, os princípios do pensamento ortodoxo. Entre os prin-


cipais, encontra-se a relação com a filosofia, assunto bastante debatido no protes-
tantismo. Lutero, dizem, não estava muito inclinado a aceitar qualquer coisa que
viesse da razão. Na realidade, não era assim. É verdade que se referiu, muitas vezes,
contra os filósofos, até mesmo com desprezo e fúria, mas tinha em mente os
escolásticos, em geral, e seu mestre, Aristóteles. Mas nas famosas palavras pronun-
ciadas na Dieta de Worms, afirmou que não voltaria atrás a não ser que fosse refuta-
do pelas Santas Escrituras ou pela razão. Lutero não era irracionalista.. Rebelava-se
contra quaisquer tentativas de transformação da substância da fé pelas categorias da
razão. A razão não poderia salvar ninguém; ela precisava ser salva.

Tornou-se, imediatame lHe claro, que a teologia não pode ser ensinada sem o
auxílio da filosofia, e que as catss:orias filosóficas de:,_em ~E_,~~ilizadas, consciente:_
" .m.~JJ_~~.~,Q}.LDª_.o, n(L~'!sino.~_._9.._L!.~~ler que seja. 'por essa razão, Lutero não impediu
Melanchton de se relacionar com Aristóteles e de utilizar diversos elementos
humanistas. Entretanto, sempre havia quem atacasse a filosofia, o humanismo e
Aristóteles. Daniel Hoffmann dizia, por exemplo:~'.9.s_f:lló§Q.fºs~~9__ ()~_Rª!rjª_.~~.ª,s_~_
heresia". É o que muitos teólogos também afirmam hoje. Mas quando desenvolvem
suas teologias, pode-se demonstrar facilmente de que "patriarcas da heresia", isto é,
de que filósofos, tomam suas categorias. Afirmavam: a verdade filosófica é erro teo-
lógico; os filósofos não são regenerados enquanto filósofos. Trata-se de declaração
interessante por afirmar que existe um domínio da vida que náo pode ser regenera-
do. E assim se conttadiz a ênfase protestanre no seculatismo. Os filósofos, segundo
Hoffmann, "procutam set como Deus potque desenvolvem filosofias que não fotam

274
o DESENVOlVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE

dadas teologicamente". Hoffmann não conseguiu desenvolver essa idéia, mas pro-
duziu constante suspeita contra os filósofos nas igrejas e na teologia, muito maior
do que a existente na Igreja Romana. Esta mesma suspeita persiste, ainda, na situ-
ação teológica contemporânea.

A vitória final da filosofia, dentro da teologia, vê-se na base de todos os sistemas


teológicos da ortodoxia. Johann Gerhard acha-se entre os que desenvolveram siste-
mas clássicos na teologia luterana. Era grande filósofo e teólogo, comparável, até
certo ponto, a Tomás de Aquino. Foi, na verdade, o último rebento do escolasticismo
protestante. Distinguia entre artigos puros e mistos. Puros são os inteiramente
revelados; os mistos são, ao mesmo tempo, racionalmente possíveis e revelados.
Acreditava, como São Tomás de Aquino, que a existência de Deus podia ser provada
racionalmente. Mas tinha consciência de que a prova racional não nos dava certeza.
"Embora a prova seja correta, cremos nela por causa da revelação". Assim, acabamos
tendo duas estruturas: a da razão e a superestrutura da revelação. As doutrinas
bíblicas formam a superestrutura. O que de fato veio a acontecer mais tarde - e já
estamos antecipando um pouco os séculos seguintes - é que os artigos mistos torna-
ram-se racionalmente puros, e a subestrutura da teologia racional desbancou a su-
perestrutura da revelação, assumindo-a e apagando o seu sentido. Quando ISSO

aconteceu, já estávamos nos domínios do racionalismo e do iluminismo.

k2. Principio formal e principio marerial

A ortodoxia protestante desenvolveu dois pnnclplOs teológicos, o formal e o


material. Até onde sei, contudo, esses termos pertencem ao século dezenove. O
princípio formal é a Bíblia; o material, a doutrina da justificação. Segundo Lutero,
são interdependentes. As passagens que tratam de Cristo, na Bíblia, são as que
apresentam a mensagem da justificação, e é isso que é autêntico. Por outro lado,
essa doutrina é tomada da Bíblia e, portanto, dela depende. Lutero preservava essa
interdependência entre Bíblia e justificação, de modo livre, criativo e vivo. A atitu-
de da ortodoxia já era diferente. Os dois princípios não se misturavam. E assim, a
Bíblia se tornava o verdadeiro princípio no domínio da autoridade.

Que pensava a ortodoxia sobre a Bíblia? A autoridade da Bíblia mantinha-se de


três modos: (1) por meio de critérios externos, como época, milagres, profecia,
mártires etc.; (2) por meio de critérios internos, como estilo, idéias sublimes, san-
tidade moral; (3) e pelo testemunho do Espírito Santo. Esre restemunho, entretan-
to, adquiria novo sentido. Não mais tinha a ver com o pensamento paulino de que

275
CAPíTULO VI

somos filhos de Deus ("O Espírito de Deus se une ao nosso esplrlto para afirmar
que somos filhos de Deus", Rm 8,16). Em lugar disso, ele testemunha que as
doutrinas das Santas Escrituras são verdadeiras e inspiradas por ele. Em lugar da
imediatez do Espírito nas relações entre Deus e seres humanos, o Espírito dá teste-
munho da autenticidade da Bíblia enquanto documento do Espírito divino. A di-
ferença, entre as duas atitudes, é que se o Espírito nos diz que somos filhos de
Deus, temos uma experiência imediata, e não há lei nessa experiência. Mas se o
Espírito dá testemunho de que a Bíblia contém doutrinas verdadeiras, a coisa toda
deixa de fazer parte dessa relação entre pessoas e se transforma num relacionamento
objetivo e legalista. Foi exatamente o que fez a ortodoxia.

A partir desse ponto de vista, surgiram debates bastante vivos sobre a theologitl
irregenitorum, que era a teologia dos não convertidos, dos não regenerados. Se a
Bíblia é a lei do protestantismo, todos os que podem lê-la e interpretá-la, objetiva-
mente, poderiam também escrever teologias sistemáticas mesmo sem participar na
fé cristã. Teriam apenas que entender o sentido das palavras e das frases da Bíblia.
Essa postura foi negada inteiramente pelos pietistas, para os quais só poderia haver
theologia regenitorum, teologia dos regenerados. Tentando interpretar essa discussão
antiga em termos atuais, poderíamos <!izer que a ortodoxia acre_dit~v.~!~,a p?ssi~!~
dade de teologias sistemáticas não existenciais, enquanto que os pietistas entendi-
am que qualquer teologia tin_~~__g~~~~_~xiste.~,:~~_l~ ..,"_
As duas posições oferecem certas dificuldades. Os não regenerados são capazes
de saber que a mensagem da igreja ou da Bíblia é essencial para a salvação, mas não
são capazes de aplicar essa mensagem à situação presente. A função do teólogo
ortodoxo independe de sua qualidade religiosa. Não importa se ele estiver comple-
tamente fora dessa situação. Por outro lado, o teólogo pietista pode dizer de si
mesmo, e mesmo os outros podem afirmar, que ele é convertido, regenerado e ver-
dadeiro cristão. Mas tudo isso precisa ser dito com certeza. Será que há pessoas
capazes de tomar essa atitude e dizer: "eu sou um verdadeiro cristão"? No momento
em que faz afirmações desse tipo, deixa de ser cristão, pois busca em si mesmo a
certeza nas relações que tem com Deus.. Trata-se, certamente, de total impossibili-
dade. Esse mesmo problema ainda existe#hoje em todas a9 igrejap proteswantes_.
_Ja minha#Teologib Sistemática, resolvi o problema da seguinte maneira: somente
guem experimenta a mensagem cristã, enguanto sua preocupação suprema, é capaz
de ser teólogo. Nada mais além disso pode ser exigido do teólogo. Pode bem acon-
tecer que o teólogo em dúvida, sobre cada doutrina específica, seja melhor teólogo

276
o DESENVOLVIMENTO DATEOLO(;IA I'ROTES1ANTE

do que outros, à medida que sua dúvida a respeito das doutrinas envolve também a
sua preocupação suprema. Assim, ninguém precisa ser ('convertido" para ser teólo-
go - qualquer que seja o sentido desse termo. Nenhum teólogo precisa passar por
testes que comprovem se é ou não "bom cristão", de modo que poderia dizer: "Posto
que sou bom cristão, posso ser teólogo". Os pietistas diriam: "Antes de ser teólogo
é pr~~i,s_9_:::"E~!:~:.:~!!iclo: A rcsposra a essas atitudes é a seguinte: "A única coisa que
vem, em primeiro lugar, é a preocupação suprema vinda de Deus que toma conta
de mim, de tal maneira que dscou ~n_~olv"ido com ele d com SUS" ~c;Q~~g~'n:. Não
sosso dixer nada mais além disso. Às vezes, nem mesmo consigo me expressar nesses
.~. .-- ,-
......

termos, porque até a palavra 'Deus' desaparece. De qualquer forma, não posso uti-
lizar esse termo para fundamentar qualquer pretensão de ser bom cristão e, portan-
to, teólogo".

A doutrina ortodoxa da Insplf~2_.~'p"~~lOu-se de certas idéias de Calvino


tornando-as mais radicais e E.:.imi5X~::.~~.:_~~ra os ortodoxos, os autores das Escrituras
foram as ~.~?s de S=rist~?s2~~~~,~~?0 Espírito Santo, as "penas" com as quais_2.-
Espírito teria escrito a .~_!!?ll~ Tudo seria inspirado, desde as palavras até mesmo os
sinais no texto hebraico. Acreditando nisso, o teólogo ortodoxo, Bllxtebof contes-
tava o fato de que as consoantes do texto hebraico haviam recebido os sinais vocálicos,
entre os séculos sétimo e nono de nossa era; dizia que haviam se originado no
próprio Antigo Tesumenco. Ensinava que os profetas teriam inventado esse siste-
ma, quando na verdade foi inventado quinze séculos mais tarde. Eis uma das conse-
qüências da doutrina rígida da inspiração; mas se não fosse assim, que poderia fazer
o Espírito divino com o texto hebraico, pois sem as vogais, as palavras hebraicas
seriam ambíguas em muitos casos. Temos, também, problema com a tradução de
Lutero, com a tradução do rei Tiago e com inúmeras outras novas traduções. Essa
doutrina da inspiração leva-nos a verdadeiros absurdos. Para mantê-la é preciso
criar harmonizações artificiais, posto que existem muitas contradições na Bíblia,
tanto em nível histórico como em outros. Tais contradições passam a ser considera-
das meramente aparentes, e fazem-se malabarismos para inventar jeitos de harmonizá-
las.

Um outro princípIO profundo era a analogia scripturae sanctae, a analogia da


Escritura Sagrada, significando que uma parte devia ser interpretada em termos de
outra. Por esse meio, podia-se estabelecer credos com base nas Santas Escrituras.
Entendia-se que qualquer pessoa seria capaz de encontrar essa fórmula na Bíblia.
Era outra conseqüência inevitável da doutrina da inspiração.

277
CApITULO VI

Tratava-se de mais uma ajuda ao povo que era obrigado a engolir a doutrina da
inspiração verbal. A questão era esta: como aceitar as muitas doutrinas encontradas
na Bíblia? São todas necessárias para a salvação? A Igreja Católica tinha uma respos-
ta muito boa. Vocês não precisam conhecê-las; basta acreditar no que a igreja acre-
dita. Somente os ministros e as pessoas educadas precisam conhecer as doutrinas
específicas. O leigo católico acredita no que a igreja acredita, sem saber muito bem
do que se trata. O protestantismo não podia fazer isso. Sendo a fé pessoal a coisa
mais importante no protestantismo, era impossível distinguir-se entre fides implicita
e explicita (fé implícita e explícita).

Com isso, surgiu uma tarefa impossível: como podem as pessoas simples, os
camponeses, os sapateiros e os proletários nas cidades e no campo entender essas
inúmeras doutrinas encontradas na Bíblia, que até mesmo os mais educados têm
dificuldade de conhecer, por ocasião dos exames teológicos? A resposta veio na dis-
tinção entre artigos fundamentais e não fundamentais. Essa distinção ainda é po-
pular hoje em dia. Mas, em princípio, tal distinção não poderia ser feita, porque se
o Espírito divino revela alguma coisa, até que ponto se poderia dizer que não é
fundamental? De qualquer forma, essas doutrinas não fundamentais acabaram sen-
do, mais tarde, muito fundamentais, quando certas conseqüências apareceram de
desvios não fundamentais.

Embora a coisa fosse perigosa, tinha que ser feita por razões educacionais. As
pessoas, na maioria, não são capazes de entender todas as implicações das doutrinas
da igreja. Havia dois interesses conflitantes. De um lado, o teólogo sistemático
+ queria aumentar os fundamentais tanto quanto possível; todas as coisas são impor-
tantes, não só porque ele escreve sobre elas, mas porque estão na Bíblia. Por outro
lado, os educadores contradizem es.~.~" interesse do teól~.é2<:...~~~.~te~_~tico..:~ed~-=ador
____:i_esej~w?_~~nor número po~.~.í:~e}~4..~ d<:ll_t:_i.I~~s, par::-q~~<~~~,.~.~:~i~os~i~, c:omp~ee~_~
._-"v",el,,-, Gostaria de abandonar as doutrinas de importância secundária. Na verdade, o
educador sempre acaba vencendo. O que encontramos no racionalismo do
iluminismo é, em geral, a redução dos fundamentais ao nível da aceitação popular.
A educação foi parcialmente responsável pelo advento do iluminismo: todos os
grandes filósofos do período tinham essa preocupação. Até hoje, os departamentos
de educação inclinam-se mais a tipos de teologia, baseados no iluminismo, do que
os demais departamentos teológicos. A razão é que as necessidades educacionais
forçam a redução do conteúdo, enquanto que as necessidades teológicas procuram
alargá-lo.

278
o DESENVOLVIMENTO DATEOLOCIA PROTES"lANTE

f~. Pietismo

Uma das doutrinas da ortodoxia serviu de translçao para o próximo grande


movimento - o pictismo. Trata-se da doutrina da ordo sa!utis, a ordem da salvação,
cujo último estágio era a unio mystica, a união mística com Deus. Segundo Lutero,
começava aí a fé na justificação. No momento em que a ortodoxia aceitou da tradi-
ção eclesiástica a unia rnystica corno estado definido a ser alcançado, o conceito de fé
intelectualizou-se. Lutero afirmava as duas coisas. Na ortodoxia, separaram-se. A fé
se tornou a aceitação intelectual da doutrina verdadeira, e a comunhão com Deus,
questão de experiência mística. Divide-se o pensamento de Lutero - principalmen-
te do jovem Lutero - em duas partes: o aspecto místico e o aspecto intelectual
passam a ser vistos como duas coisas diferentes.

Que é pietismo? O termo é menos respeitado na América do que na Europa.


Na Europa, as palavras "piedoso" e "pietista" podem ser usadas normalmente pelo
povo. Mas não na América. Aqui, essas palavras conotam hipocrisia e moralismo.
Muito embora, pietismo não tenha necessariamente essas conotações. Pietismo é a
reação do lado subjetivo da religião contra o lado objetivo. Não há dúvida de que
esse lado subjetivo se fazia presente na ortodoxia, mas não significava grande coisa.
Na verdade, a ortodoxia vivia na objetividade da organização teológica e eclesiásti-
ca. Embora não se deva dar demasiada importância ao faro. Os hinos de Paul
Gerhardt, que viveu no período de pleno desenvolvimento desta tendência, de-
monstram a existência de relação pessoal com Deus. Mas para as massas populares
significava a licença para a licenciosidade; a situação moral era miseravelmente bai-
xa, especialmente nos países luteranos, onde o elemento doutrinário era decisivo e
não havia disciplina.

.{ Os pietistas, especialmente o maior deles, Filipe Iacob Spener, _~screveram refe-


rindo-se sempre a Lutero. Spener demonstrou que todos os elementos do pietismo
já estavam presentes no pensamento do jovem Lutero, e que a ortodoxia se afastara
desses elementos em favor do conteúdo objetivo da doutrina. Tentou mostrar que a
ortodoxia assimilara apenas uma faceta do pensamento de Lutero. Nesse sentido, o
pietismo era justificável. Teve, ainda, enorme influência na cultura como um todo.
Spener foi o primeiro a agir em termos de ética sociaL Os pietistas de Halle funda-
_~a~~..2L~~~~iro orfanato e d~rarn início ~s~~~~ir.~s__e~:.~J..'~~s.as mis~i.?nária~. __ ~ orto-
doxia entendia que as nações não cristãs estavam perdidas, porque já haviam recebi-
do a pregação apostólica imediatamente depois da fundação da igreja e a rejeitaram"

279
CAPÍTULO VI

São Tomé, por exemplo, teria ido à Ásia. Não lhes parecia, portanto, necessáno
renovar a tarefa missionária. Os pietistas sentiam de maneira diferente. As almas
humanas, onde quer que estejam, podem ser salvas por meio da conversão. Come-
çaram, pois, o trabalho missionário em tcrras estrangeiras, coisa que lhes deu pers-
pectivas históricas mundiais. Homens como Zinzenclorf e Wesley olharam para a
América enquanto a ortodoxia se confinava às próprias igrejas territoriais.

A liturgia foi também alterada. Uma das mais importantes modificações foi a
reintrodução da confirmação, enquanto confirmação do sacramento do batismo~
pietismo é importante para a teologia em três aspectos. Tentou reformar a teologia,
a igreja e a moral. Segundo o pietislllo, a teologia é disciplina prática. Para se co-
nhecer é preciso, antes, acreditar - antiga exigência da teologia ~ristã. Essa exigência
traz consigo o reconhecimento da importância central da exegese. A importância
fundamental recai na teologia do Antigo e do Novo Testamento, não mais na teolo-
gia sistemática. Sempre que a teologia bíblica se sobrepõe à sistemática, é quase
sempre por causa da influência do pietismo. Antes que o teólogo possa edificar os
outros, deve ter sido capaz de se educar a si mesmo.

A igreja não é apenas grupo de pessoas com a finalidade de ouvir a Palavra. Ela
se compõe não só de ministros, mas também de leigos. Os leigos devem participar
ativamente nas funções sacerdotais em diferentes lugares - às vezes na igreja, mas
principalmente em suas casas, em conventículos especiais dedicados à piedade,
collegia pietatis, onde se reünern para cultivar a piedade. Gastam horas inteiras na
interpretação da Bíblia, e sublinham a importância da conversão. Dão ênfase espe-
cial à idéia de urna ecc!esio/fl in ecc!esia, de uma pequena igreja dentro da igreja
maior.

o pletlsmo também influenciou a moral no mundo protestante. No fim do


século dezessete, a situação moral na Europa era desastrosa. A Guerra dos Trinta
Anos semeara por toda a parte dissolução e caos. A forma da vida tornara-se extre-
mamente brutal e grosseira. Os teólogos ortodoxos não fizeram muita coisa para
modificar a situação. Os pietistas, no entanto, procuraram reunir os cristãos indivi-
dualmente dispostos a aceitar o fardo e a libertação da vida cristã. A santificação era
a idéia dominante, ênfase comum nos movimentos sectários cristãos. A santificação
individual envolvia, em primeiro lugar, a negação do amor pelo mundo. A questão
da adiaphora ética adquiriu importância nas discussões com a teologia ortodoxa.
(Adiaphoron significa o que não faz diferença, sem qualquer relevância ética). Dis-

280
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGLA PROTESTANTE

curia-se a possibilidade da existência de ações humanas destituídas de importância


ética, que poderiam igualmente ser feitas ou náo. A ortodoxia dizia que era grande
o domínio de tal adiaphora. O pietismo não aceitava essa idéia, chamando-a de
amor pelo mundo. Como acontece quase sempre em questões desse tipo, Spener
mostrava-se benevolente em suas condenações, mas Francke e os pietistas de Halle
tornaram-se extremamente radicais. Lutavam cootra os bailes, o teatro, os jogos, os
vestidos bonitos, os banquetes, as conversações superficiais da vida cotidiana,
relembrando em geral a atitude dos puritanos. Em relação a esses fatos, entretanto,
eu gostaria de assinalar que não foram tanto os puritanos os responsáveis, foram os
movimentos pietistas evangélicos na metade do século dezenove, condenando o
fumo, as bebidas e o cinema entre outras coisas.

Os reólogos onodoxos reagiram firmemente ao ataque dos pietistas. Um deles


até mesmo escreveu um livro com °
título Ma/um Pietisticum, Mal Pietista.
Degladiaram-se em muitos pomos, mas no fmal das contas o movimento pietista
mostrou-se superior porque se aliava às tendências da época, distante do estrito
objetivismo e do autoritarismo dos séculos dezesseis e dezessete, favorecendo o prin-
cípio da autonomia surgido nos séculos dezoito e dezenove.

Seria completamente errado colocar o racionalismo do iluminismo em contra-


dição com o misticismo pietista. Afirmar que a razão e o misticismo são pólos opos-
tos não passa de grosseira ignorância popular. Historicamente, o pierismo e o
iluminismo lutaram contra a ortodoxia. O subjetivismo do pietismo, ou a doutrina
da "luz interior" dos quacres e de outros movimentos de êxtase, têm caráter de
imediatez ou de autonomia em oposição à autoridade da igreja. Falando mais clara-
mente, a autonomia racional moderna é fdha da autonomia mística da doutrina da
luz interior. Essa doutrina é muito antiga; encontramo-la na teologia franciscana da
Idade Média, em algumas das seitas radicais (especialmente entre os franciscanos
posteriores), em inlÍmeras seitas do período da Reforma, na transição do
espiritualismo para o racionalismo, da crença no Espírito como guia autônomo de
cada indivíduo à orientação racional que todas as pessoas possuem em virtude de
sua razão autônoma. De uma outra perspectiva histórica, o terceiro estágio de
Joachim de Fiori, o estágio do Espírito Santo, está por detrás da idéia presente na
burguesia do iluminismo de que já teriam alcançado o terceiro estágio, o estágio da
razão, em que os indivíduos são ensinados diretamente. Remontam à profecia de
Joel, em que os servos ou empregados são ensinados diretamente pelo Espírito San-
to, e ninguém depende de quem quer que seja para receber o Espírito,

281
CAPfTULO VI

Assim, podemos dizer que o racionalismo não se opõe ao mlstJelsmo, se, por
misticismo, entendemos a presença do Espírito nas profundezas da alma humana.
O racionalismo nasceu do misticismo, e ambos se opõem ao autoritarismo da orto-
doxia.

C. Iluminismo
o socinianismo é uma das fontes do iluminismo. Trata-se de um mOVImento
iniciado por Faustus Socinus, que fugira da Itália para a Polônia onde se refugiou
tanto contra as perseguições da Contra-Reforma como de algumas igrejas reforma-
das. Ele e seus seguidores escreveram um livro chamado Catecismo Racoviano, que
descreve uma teologia protestante predominantemente racionalista. Harnack afir-
ma, em sua História do Dogma, que o socinianismo representava o fim da história do
dogma cristão. O protestantismo preservava alguns dogmas. pelo menos os dogmas
da igreja primitiva. O socinianismo, por sua vez, dissolvera todos os dogmas cris-
tãos com o auxílio do racionalismo e do humanismo da Renascença. Esse movimen-
to é muito mais importante do que sua reedição no deísmo inglês, no qual se
radicalizou, ou na teologia liberal moderna, incluindo o próprio Harnack, na qual
continuou a existir.

1. Os socinianos aceitavam a autoridade da Bíblia, mas admitiam que poderia


errar em matérias não essenciais. Além disso, consideravam necessária a crítica his-
tórica. Partiam do seguinte critério: nada pode ser considerado revelação de Deus
na Bíblia se contrariar a razão e o senso comum. Mais ainda: nada moralmente
inócuo poderá ser tido como revelação de Deus na Bíblia. Saci nus baseava-se na
religio rationalis, religião racional, dada na Bíblia para ser critério da autoridade da
Bíblia.

2. Na doutrina de Deus, Saci nus criticava principalmente o dogma da trinda-


de. Foram os socinianos os predecessores dos movimentos unitários posteriores.
Socinus afirmava - historicamente correto - que os argumentos em favor do dogma
trinitário não se encontravam na Bíblia da forma como eram apresentados pela
ortodoxia. A Bíblia não conrém o dogma da trindade, muito embora ofereça algu-
mas formulações rrinitárias. Os conceitos gregos, dizia, antecipando as crÍticas de
Rirschl desse dogma, dos quais ainda dependemos hoje em dia, são inadequados
para a compreensão do significado do evangelho e, além disso, contraditórios em si
mesmos.

282
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE

3. Deus criara o mundo a partir do caos já existente (tohu wabohu na história da


criação em Gênesis), como pressupõem as religiões pagãs e também a própria filo-
sofia grega. O ho Il1 eJ11 é a imagem de Deus por causa de sua razão que o torna
superior ~~~__ ~_~_i!!1~i_~. Adão não era perfeito. Era um homem primitivo e morral por
natureza. Não possuía imortalidade original nem perfeição original. Acredito que
essa idéia aproxima-se muito mais do tex[Q bíblico, em ambos os aspectos, do que
as glorificações posteriores de Adão. que impossibilitaram completamente a com-
preensão de sua queda. Os socinianos ligavam a queda de Adão às suas impressões
sensuais e à base de sua liberdade. Essa liberdade ainda está no homem.

4. Partindo desse ponto de vista, chega-se à conclusão de que o pecado original


ou hereditário não passa de conceito contraditório. Saci nus ensinava que não havia
pecado sem culpa. Se fôssemos culpados ao nascer, então já deveríamos ter pecado
no ventre da mãe, ou, pelo menos, no início da vida. Mas tais afirmações, natural-
mente, não têm sentido. O que realmente acontece é .que. sO~~~.,.9-.~pra~~dos histo-
ricamente e nossa liberdade é fraca. É por essa razão que Deus nos dá a nova revela-
"5~0 -;~.~m·-da -.:eve.lação natural. Cristo é verdadeiramente humano (possui natureza
humana). Ele não tem natureza divina. Por outro lado, não se trata de um homem
meramente comum. Trata-se de um tipo h umano superior, uma espécie de "super-
homem", por assim dizer, no sentido nietzscheano e não no sentido das estórias em
quadrinhos. Por isso pode ser objeto de adoração.

5. Nega-se o ofício sacerdotal de Cristo. É profeta e rei. Entendiam que as


idéias de sacrifício substitutivo, de punição ou de satisfação pelo pecado não têm
sentido e são autocontraditórias, uma vez que a culpa é sempre pessoal e deve ser
atribuída a indivíduos. Por outro lado, acreditavam que Cristo era rei e estava sen-
tado à direita de Deus governando e julgando realmente rodas as coisas.

6. A doutrina da justificação é dissolvida numa terminologia moralista. Sete-


mos justificados se guardarmos os mandamentos. Em relação ao Estado, Socinus
favorecia a resistência passiva contra as formas de poder do Estado.

7. A escatologia é também dissolvida: trata-se de um mito fantástico. Por outro


lado, permanece com extraordinária importância a doutrina da imortalidade. Esta
deve ser mantida a qualquer custo.

Muitas dessas idéias anteciparam a teologia do iluminismo e do liberalismo


moderno. O que realmente sobrevive do socinianismo são as três idéias fundamen-
tais do iluminismo: Deus, liberdade e imortalidade. Observemos esta citação de

283
CAPITULO VI

Que é iluminismo?, de Kant: "O iluminismo é a libertação do homem de suas tute-


las. Essas provêm de sua incapacidade de usar o próprio entendimento sem a orien-
tação dos outros. Essa tutela consentida resulta não da falta de razão, mas da falta
de resolução e coragem para usar a razão sem a aj uda dos outros. Sapere aude! 'Tenha
coragem de usar a própria razão!' - esse é o lema do iluminismo". Kant demonstra,
em seguida, quão mais confortável é ter guardiães e autoridades para nos dirigir a
vida, mas, segundo ele, esse conforto deve ser abandonado. O ser humano deve
cuidar de si mesmo; a autonomia faz parte de sua natureza.

o racionalismo e o iluminismo dão ênfase nessa autonomia humana. O termo


"autonomia" não é empregado no sentido de arbitrariedade, em que nos fazemos a
nós mesmos e decidimos diante das escolhas em termos de desejos individuais ou
de aspirações egoístas. _º-_~~rmo vem de autos e nomos (lei de si mesmo), em grego.
Não quer dizer que "sou a lei para mim mesmo", mas que a lei universal da razão,
que é a própria estrutura da realidade, está em mim, dentro de mim. Esse conceito
de autonomia tem sido muitas vezes falsificado por teólogos que o equacionam com
a miséria humana, colocando a busca da autonomia em contraposição à dependên-
cia de Deus. Trata-se de teologia muito pobre e de filosofia mais pobre ainda. A
autonomia é a lei natural dada por Deus presente na mente humana e na estrutura
do mundo. A lei natural significa, em geral, tanto na filosofia clássica como na
teologia, a lei da razão, que é, ao mesmo tempo, a lei divina. A autonomia decorre
dessa lei e a encontramos em nós mesmos. Sempre se relaciona com decidida obedi-
ência à lei da razão, muito mais forte do que qualquer idéia religiosa tendente à
arbitrariedade. Os defensores da autonomia, no iluminismo, opunham-se a qual-
quer coisa que fosse tão arbitrária como a graça divina. Preferiam dar ênfase na
obediência humana à lei da natureza humana e da natureza do mundo.

O oposto de autonomia é heteronomia. Heteronomia significa precisamente


arbitrariedade. A arbitrariedade aparece tão logo o medo ou o desejo determinem
nossas ações, sejam esses sentimentos produzidos por Deus, pela sociedade ou por
nossa própria fraqueza. Para Kant, a atitude autoritária das igrejas ou mesmo de
Deus, vista sob essa luz heterônoma, seria arbitrária. A arbitrariedade é submissão
à autoridade, quando essa autoridade não se confirma pela razão. Nesse caso, as
pessoas se submeterem à autoridade levadas pelo medo, pela angústia ou pelo dese-
jo. O iluminismo procurava estabelecer um mundo baseado na razão autônoma.

Assim como a autonomia não se confunde com desejo obstinado, a razão não é
cálculo. A razão é a consciência dos princípios da verdade e da justiça. Em nome

284
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE

dessa razão, o iluminismo lurou contra as autoridades demônicas do ancien regzme


no século dezoito na França e na Europa, em geral. Trata-se da consciência dos
princípios da verdade e da bondade, em lugar da razão calculadora e controladora
dos negócios. O século dezoito teve certos elementos heróicos; a razão estava sem-
pre lutando contra as deformações da humanidade sob o regime dos reis franceses,
dos papas romanos e de rodos os que colaboravam com eles na opressão da humani-
dade. Não deveríamos hostilizar o racionalismo do século dezoito sabendo o que fez
por nós. É por causa do iluminismo que não mais perseguimos as bruxas. Supersti-
ções como essa tornaram-se impossíveis depois da aplicação da filosofia cartesiana a
problemas concreros. A educação geral que remos hoje, no Ocidente, foi criada
pelo século dezoito. E as nossas ideologias democráticas também se originaram
nessa mesma época.

A harmonia é o terceiro princípio do iluminismo. decorrente dos princípios da


autonomia e da razão. Se podemos encontrar os princípios da verdade e da justiça
no interior de nossos seres, e se cada indivíduo tem interesses diferentes, de que
maneira seriam possíveis o conhecimento comum e os símbolos comuns da demo-
cracia e da economia? Se a razão autônoma é o último árbitro em cada indivíduo,
não terminaria aí a sociedade coerente? O princípio da harmonia é a resposta a essas
questões. Não quer dizer que exista perfeita harmonia entre todos. O século dezoito
sabia muito bem como era realmente terrível a vida. A harmonia significa, antes,
que se as pessoas seguirem suas tendências racionais, ou até mesmo irracionais,
haverá sempre, por trás, uma lei que faz com que tudo aconteça adequadamente. f
o que queria dizer a escola de economia de Manchester, e o que significava a busca
da felicidade na Constituição Americana e a crença na democracia. Apesar do faro
de cada pessoa decidir por si mesma sobre o governo, do conjunto das pessoas
haverá de resultar, de certa forma, uma vontade comum, uma volonté générale. A
ética e a educação também acreditam nisso. Quando cada um se educa e adquire
personalidade, resulta um espírito de comunidade. Esse é também o princípio do
protestantismo. Se cada indivíduo encontra a seu modo a mensagem bíblica, decor-
re daí um certo conformismo de caráter protestante.

O milagre é que tudo isso realmente aconteceu, que de fato a profecia, sob o
princípio da harmonia, acabou sendo realmente verificada em todos esses domíni-
os. Houve, na verdade, enorme desenvolvimento econômico. Surgiu um conformis-
mo protestante não obstante as inúmeras denominações. E a democracia funcionou
e ainda funciona, apesar das tendências negativas tão visíveis hoje na América. A

285
CAPÍTULO VI

crença moderna no progresso fundamenta-se nesse princípio de harmonia, ainda


que falte de certa forma a autoridade.

Ao estudarmos o iluminismo, não podemos deixar de mencionar o conceito da


tolerância. Uma das principais razões da tolerância é que se a intolerância tivesse
continuado a existir, roda a Europa teria sido destruída pelas guerras de religião. Só
foi salva pela existência de um estado de tolerância indiferente em face dos vários
grupos confessionais em luta. Entretanto, quando John Locke escreveu suas cartas
sobre a tolerância, sabia muito bem que ela jamais poderia ser um princípio absolu-
to. Assim, a limitou de maneira bastante engraçada. Embora fosse um dos líderes
em favor do iluminismo, afirmou a existência de dois grupos que não podiam ser
tolerados. São os católicos e os ateus. Os católicos não podem ser tolerados porque
são, por natureza, intolerantes; procuram subjugar todas as nações que podem por
meio da força à autoridade da Igreja Romana. Os ateus não são intolerantes, mas
ameaçam os próprios fundamentos da sociedade Ocidental, baseada na idéia de
Deus. O maior testemunho das idéias de John Locke é Friedrich Nietzsche, ao
afirmar que por causa da "morte de Deus" a transformação da sociedade está próxi-
ma. Era precisamente o que John Locke não queria que acontecesse em nome da
razão.

O deísmo inglês é um outro movimento de grande importância para a teologia


moderna. Os deístas usaram a filosofia de modo prático para resolver problemas
teológicos. O deísmo era um movimento da inte!ligentsia não chegando a ser verda-
deira filosofia. Seus representantes escreveram inúmeras obras atacando a ortodoxia
tradicional. Criticavam, como os socinianos, os problemas da religião bíblica. En-
contramos nesses escritos todos os elementos de crítica que, hoje em dia, associa-
mos à teologia liberal. Desde então, estes rêm sido os problemas reatados pela reo-
logia européia: história bíblica, autoridade de Jesus, problema dos milagres, a ques-
tão da revelação especial, história da religião, que demonstram que o cristianismo
não é assim tão diferente, categorias do mito, inventadas pelos deístas duzentos e
cinqüenta anos antes do ensaio de Bultmann sobre a desmitização. O grande movi-
mento da crítica histórica começou por volta de 1750. Lessing, a maior personali-
dade do iluminismo, poeta e filósofo, liderou a luta contra uma ortodoxia obtusa e
fechada em termos tradicionais. A grande linha crítica do desenvolvimento teológi-
co, traçada desde D. F. Strauss c Schleiermacher, entre outros, até Johannes Weiss,
Albert Schweitzer e Bultmann, começou bem aí na metade do século dezoito, que
por sua vez repercutia as idéias dos socinianos e de outros.

286
o DESENVOLVIMENTO DA TEOLOGIA PROTESTANTE

Talvez, se tenha a impressão de que só houve um único movimento teológico


rodo abrangedor, uma espécie de oceano inundando os continentes. Não foi bem
assim. Houve reações dos metodistas e dos pietistas; houve a reação do romantismo,
no final do século dezoito; surgiram movimentos reavivalisras, na metade do século
dezenove, e finalmente a reação da oeo-ortodoxia, no começo do século vinte. Em
todos esses movimentos persistia sempre esta questão: será a mentalidade moderna
compatível com a mensagem cris(ã~ Houve sempre certa busca de síntese de tipo
hegeliano ou de tipo platônico, buscando a unidade criativa entre os diferentes
elementos da realidade. Nesse sentido, os dois pensadores que mais influenciaram
o pensamento teológico foram Hegel e Schleiermacher. Juntos, produziram o que
eu chamo de grande síntese. Assimilaram todos os impulsos da mentalidade mo-
derna, todos os resultados do desenvolvimento autônomo. E procuraram demons-
trar que a verdadeira mensagem cristã só pode ser mantida nessa base, e não nos
termos de pura ortodoxia ou de puro iluminismo. Rejeitaram as duas tendências e
procuraram um caminho além delas. Schleiermacher a partir da tradição mística de
sua educação pietista (ele era moraviano), e Hegel nos termos filosóficos da tradição
neoplatônica. Por volta de 1840, essas formas de síntese eram consideradas ultra-
passadas, cedendo lugar a formas extremas de naturalismo e de materialismo. Apa-
rece nova escola de teologia tentando salvar o que lhe parecia possível. Tratava-se da
escola ritschliana, cujos líderes, além do próprio Ritschl, eram Wilhelm Herrmann
e Adolf von Harnack, que foi o mestre de todos nós em muitos aspectos. Essa nova
síntese movia-se num nível bem mais modesto, o nível da divisão de Kant entre
mundo do conhecimento e mundo dos valores.

A síntese ritschliana desmoronou no final do século dezenove, em parte por


causa do impacto de desenvolvimentos teológicos surgidos em seu interior. Devo
mencionar agora Ernst Troeltsch, meu grande professor, e Martin Kahler, meu ou-
tro grande professor, vindos da tradição pietista e reavivalista de Halle. A síntese de
que falava também sofreu o impacto dos eventos da história mundial, das guerras
mundiais, que pareciam prever o fim dos tempos da vida européia. Novamente a
diástase contra a síntese do cristianismo, contra a mente moderna reapareceu na
obra de Karl Barth. Mas, na minha opinião, a síntese não pode jamais ser evitada,
porque o ser humano sempre será ser humano, submetido a Deus. Mas não pode
estar sob Deus de tal maneira que deixe de ser humano. Para descobrir um novo
caminho além dos antigos caminhos da síntese, estou empregando o método da
correlação. Procuro demonstrar que a mensagem cristã é a resposta a todos os pro-
blemas envolvidos no humanismo autocrítico; é o que chamamos hoje d.e

287
CArfTULOVI

existencialismo. Nada mais é do que um humanismo que se auto-analisa. Não se


trata, pois, de síntese nem de diástase, não é identificação nem separação; trata-se
de corrc;Iªç~Q.Acredito que a história toda do pensamento cristão indica essa dire-
çáo.

288
Índice de nomes

A
Abelardo 147, 151, 166, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 181
Agosrioho 34,71,78,80,83,93, 114, 115, 117, 118, 119, 120, 121,
122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134,
135, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 151, 158, 159, 168, 172,
175, 179, 182, 184, 185, 186, 187, 188, 190, 196, 203, 207, 223,
262, 263, 264
Ambrósio 98, 116, 122
Ammônius Saccas 72
Anselmo de Canruária 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174,
177, 178, 181, 188,196, 198
Apolinário 95, 97
Ário 86, 87, 91, 93, 94, 95
Arisróreles 20,26,27,29,94,105,117,118,123,124,130,134,149,
151, 153, 186, 188, 189,201,274
Ataoásio 86, 88, 89, 90, 91
Averroes 154

B
Barrh, Karl 135, 239, 241, 260, 287
Basílio Magno 92
Bergson, Henri 152
Bernardo de Claraval 80,147,151,179,180, 181, 187, 188
Blanshard, Brand 152
Boaventura 151, 186, 189, 190, 191, 193
Booifácio Vlll 161
Bradwardine, Tomás 207
Bultmann, Rudolf 286

289
c
Calvino, João 10G, 200, 217, 238, 240, 241, 249, 254, 255, 259, 2GO,
261, 2G2, 263, 264, 265, 266, 268, 2G9, 270, 277
Celsus 45,46
Cícero 31,119
Cipriano 111,112,113,114,115,142,143
Cirilo de Alexandria 102
Clemente de Alexandria 18, 68, 72, 73, 74
Clemente de Roma 38,39,40,41,42,43
Constantino 88, 91, 92, 159, 208, 209

D
Descartes, Renê 117, 126
Dionísio Arcopagira 35,68, 104, 105, 106, 108, ]09
Dionísio de Roma 85
Domingos 187, 188
Duns Escoro 149,151,172, 18G, 188, 192, 193, 195,196,198,199,
209

E
Eckhart, Meiste, 154, 188, 205, 20G
Epicuro 27
EraslIlo de Rorerdam 213,236,237,241,254
Espinosa 117
Euhemerus 45
Eutico 100

F
Filon de Alexandria 32, 33, 35, 53
Fbeius, Manhias 273
Fax, Gt:orgc 59
Francisco de A~sis 156, 180, 186, 187
hancke, August Hermann 281

G
Gcrhard, Johann 275
Giotto 157, 187
Gregário de Nazianzo 92
Gregório de Nyssa 92
Gregário Magno 145
Gregório VII 160, IGI
Guilherme de Ockham 149, 162, 188, 192, 193,202,
203, 204, 209, 241, 255, 25G, 2G5

290
H
Harnack, Adolf von 22, 43, 53, 230, 282, 287
Hegel, Georg Friedrich Wilhelm 18,105,117, 167,168,172,253,287
Heráclito 27, 30, 48, 107
Hcrrnas, pastor de 38, 40
Herrmann, Wilhelm 287
Hipólito 57
HoHinann, Daniel 274
Hofmann, Hcinrich 111
Hooft, Vissen 210
Hugo de São Vitor 181

I
Inácio de Antioquia 38,40,41, 42, 44, 63, 135
!rinell 56, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 68, 135

J
Jansen, Cornelius 222, 223
Joachim de Fiori 281
João de Damasco 94
João Escoro Eriúgina 105
Juliano, o apóstata 68, 69, 1Dó
Jllstiniano 102
Jusrino 102
Justino Mánir 47,48,49, 51

K
Kih.ler, Marrin 287
Kam, lmmanuel 30, 172, 177, 198, 256, 283, 284, 287
Kierkcgaard, Sctrcn 239

L
Leão I 100, 102
Leôncio de Bizâncio 102
Liguori, Afonso Maria de 224
Lubac, Hcnri de 225
Lutero, Maninho 21,34, 166, 177, 197, 200, 206, 207, 209, 210, 213,
217,218,219,227,229,230,231,232, 233, 234, 235, 236, 237,
238,239,240,241,242,243,244,245, 246, 247, 248, 249, 250,
251,252,253,254,255,256,257,258, 259, 260, 261, 263, 264,
265, 266, 268, 269, 270, 274, 275, 277, 279

291
M
Mani 119
Marcelo 88, 89, 90
Marcião 53, 60, 63
Marirain, Jacqucs 230
Marx, Karl 183
Melanchron, Filipe 227, 240, 247, 273, 274
Molina 222
Montanus 58
Miinrzer, Thomas 238

N
Napoleão 220
Nesrório 99, 100
Nicolau de Cusa 108
Niebuhr, Reinhold 138, 225
Nierzschc, Friedrich 19,286
Nygren, Andcrs 128

o
Octinger, Fricdricll Chrisroph 258
Origenes 68,72,74,75,76,77,78,79,80,81,84,86,89,90,91, 92,
94,95, 96, 129, 132, 142, 174
Orro, Rudo1E 259

p
Parmênidcs lO?, 119
Pascal, Biaise 222
Paulo, apósrolo 24, 34, 35, 37, 38, 39, 46, 53, 54, 56, 57, 58, 66, 70, 80,
105, 116, 135, 180, 181, 230, 235, 255, 263, 264
Paulo de Samosata 82
Pedro Lornbardo 148, 186
Pelágio 135, 136, 137, 141, 207
Piarão 20,27,28,29,41,69,72,84,87,94,105, 117, 118, 119, 121,
124, 127, 151, 153, 172, 199,200,201, 202, 255, 267
Plorino 27, 69, 70, 71, 72, 78, 84, 123, 124, 147
Porfírio 74
Praxeas 82

Q
Qucsnel, Pasquicr 223

292
R
Rirschl, Albrechr 147, 273, 282, 287

s
Sabélio 82, 83, 93, 95
Schlcicrmacher, Friedrich 18, 273, 286, 287
Sdl\witzer, Alben 286
Seeberg, Reinhold 22
Soei nus, Faustlls 282, 283
Sócrates 26, 44, 48, 200, 255
Spener, Filipe Jacob 279,281
Strauss, David Friedrich 286

T
Teodoro de Mopsul'stia 96, 97, 98, 103
Teodoro 81,82
Tertuliano 56, 57, 58, 61, 62, 64, 65, 66, 67, 82, 111, 112, 113, 175
Tomás de Aguino 93,117,135,149,151, 152, 172, 174, 178, 185,
1H6, 188, 190, 191, 192, 193, 195, 196, 197, 19H, 199,200,201,
207, 220, 225, 275
Troeltsch, Ernst 163, 219, 267, 287

w
Weber, Max 267
Wciss, Johannes 286
Wcsley, John 280
WyC!if, João 162,206,207,208,209,210,211,227,256

z
Zinzendorf, Nikolaus Ludwig Graf von 280
Zoroasrro 119
Zwínglio, Huldreich 236, 240, 249, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 268,
269

293

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