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•:-JÓ


INTRODUÇÃO
o tema do livro sofrem, ou o sofrimento é sempre me-
Percebemos na leitura desse livro magní- recido? Esta é uma questão que o livro
fico que seu tema é o problema do sofri- apresenta e também responde de maneira
mento. Mas qual é exatamente o problema convincente. Ao insistir em que o Jó que
do sofrimento? Para muitas pessoas é a sofre é um homem justo, o livro se opõe
pergunta: Por que acontece o sofrimento? abertamente à ideia de que o sofrimento é
Quais são sua origem e causa? Ou de modo sempre uma punição pelo pecado. Além do
mais pessoal: Por que eu tenho de passar narrador (1.1) e do próprio Jó (e.g., 6.30;
por este tipo de sofrimento? Talvez, no en- 9.15), Deus também afirma (42.7,8) que Jó
tanto, no mundo de hoje, essas perguntas é inocente. Não obstante, a tendência hu-
reflitam principalmente nossa obsessão em mana muito natural diante do sofrimento
descobrir a origem das coisas - como se é perguntar: "O que eu fiz para merecer
somente por esse meio pudéssemos obter o isso?". O livro de Jó admite que, às ve-
verdadeiro conhecimento. zes, o sofrimento é totalmente merecido,
Quanto à origem do sofrimento, em- contudo sua resposta mais importante à
bora a pergunta seja séria, o livro de Jó questão é afirmar que talvez não haja ne-
não apresenta uma resposta satisfatória. cessidade de nos acusarmos a nós mesmos;
Certamente a questão é levantada e res- o sofrimento nem sempre é o que deveria
postas parciais são dadas pelos amigos de nos acontecer. Entretanto, essa pergunta e
Jó. O sofrimento, dizem eles, geralmente sua resposta não são a mensagem principal
é uma punição ao pecado e, vez ou outra, do livro a respeito do sofrimento.
um alerta contra o pecado no futuro. O li- A terceira e essencial questão tratada
vro como um todo esclarece que, às vezes, pelo livro de Jó em relação ao sofrimento é
como no caso do próprio Jó, o sofrimento de caráter mais pessoal: Como agir no so-
não vem por razão terrena alguma, mas frimento? O que devo fazer quando estou
simplesmente para justificar a alegação di- sofrendo? Com que espírito eu encaro o
vina de que os seres humanos podem ser- sofrimento? Comparada a essa questão de
vi-lo sem visar a recompensas. Apesar, no como reagimos, de fato, ao sofrimento, a
entanto, de o livro oferecer essas diferentes primeira questão (a origem do sofrimento)
razões para a origem do sofrimento, os lei- parece meramente acadêmica, e a segunda
tores não ficam sabendo qual é a causa dos (se existe sofrimento inocente) pode ser
seus próprios sofrimentos e, assim, ficam facilmente respondida. A terceira questão
na mesma situação do próprio Jó, que con- é a mais difícil; sua resposta exige todo o
tinua sem saber o porquê de suas agruras. livro de JÓ.
Para ele, o mistério permaneceu até o fim. O livro oferece duas respostas diferen-
Podemos concluir que o livro não conside- tes, mas complementares, à questão, uma
ra a questão das origens como a mais im- vez que expõe a reação de Jó ao sofrimento.
portante a respeito do sofrimento. A primeira resposta é dada na introdução
Há uma segunda questão relacionada do livro, feita nos dois primeiros capítu-
ao sofrimento: Pessoas inocentes também los. A reação de Jó aos infortúnios que lhe
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advêm é de calma aceitação da vontade de respeito (42.7,8). Isso pode significar tão
Deus; ele bendiz ao Senhor tanto pelo que somente que, no sofrimento, Jó conversou
lhe foi dado como pelo que lhe foi tirado com Deus e exigiu uma explicação.
(1.21). Os sofredores que tiverem a mes- Se o livro fosse ouvido como uma pala-
ma atitude de aceitação que Jó teve são vra aos que estão nas mesmas condições de
verdadeiramente afortunados. Se, como Jó (pessoas que estão sofrendo por razões
ele, não se refugiarem no passado numa desconhecidas), ele diria o seguinte: Dei-
tentativa de ignorar a realidade do sofri- xem que Jó, o sofredor paciente, sirva de
mento, e se não ficarem tão oprimidos exemplo para vocês até onde for possível.
pela tristeza atual a ponto de esquecerem Porém, quando não puderem mais supor-
as bênçãos do passado, terão se beneficia- tar, direcionem sua tristeza, indignação e
do com a história de JÓ. Entretanto, mui- impaciência a Deus, pois ele é, em última
tos não aceitam o sofrimento com tanta instância, a origem do sofrimento, e é so-
facilidade; são antes uma combinação do mente por meio do encontro com ele que a
Jó paciente e do Jó impaciente. angústia pode ser aliviada.
A segunda resposta à pergunta: "O Naturalmente, Já é a personagem cen-
que devo fazer quando estou sofrendo?" tral no livro, mas não é a única. O que os
emerge da aflição e do tumulto da mente amigos de Jó têm a lhe oferecer durante o
de Jó como se revelam nos seus discursos sofrimento? Que tipo de ajuda outros so-
poéticos (entre cp. 3 e cp. 31). Quando ele fredores encontram ao ler o que eles disse-
simplesmente não pode mais aceitar o que ram? Elifaz afirma que, se você é inocente,
lhe está acontecendo, e fica amargurado e o seu sofrimento será apenas temporário,
irritado quando a sensação de isolamen- e pergunta: "Acaso, já pereceu algum ino-
to de Deus o oprime, e chega a se sentir cente? E onde foram os retos destruídos?"
perseguido pelo Senhor, Jó faz o que tem (4.7). Se Jó é basicamente um homem te-
de fazer. Ele não tenta reprimir sua hosti- mente a Deus, ele pode ter certeza de que
lidade para com Deus em vista do que lhe não sofrerá por muito tempo. Bildade, um
acontece; ele diz que falará "na angústia do seguidor convicto da doutrina da retribui-
meu espírito" e se queixará "na amargura ção, vê sua teologia confirmada na morte
da minha alma" (7.11). Ele não reclama dos filhos de Jó, que deviam ter sido gran-
nem brada no ar para expressar sua indig- des pecadores (8.4). Como Jó ainda vive,
nação e frustração; sua amargura é dirigida o pecado que lhe causou o sofrimento não
a Deus. deve ter sido tão sério, e ele pode se conso-
Embora às vezes Jó seja rude e injus- lar com o fato de sua vida ter sido poupa-
to em seu modo de falar sobre Deus, seus da. Zofar acredita que todo o sofrimento é
protestos são direcionados corretamente; resultado de pecado, mas também crê que
ele reconhece que é com o próprio Deus Deus é misericordioso, ele só pode acre-
que tem de lidar. É justamente porque Jó ditar que Jó está sofrendo menos do que
continua se dirigindo a Deus que, no fim, realmente merece da parte de um Deus jus-
Deus se revela a ele (cp. 39--41). O so- to (11.5,6). Eliú quer avaliar o sofrimento
frimento de Jó não cessa porque Deus lhe como um canal da comunicação divina,
responde. Ele descobre que julgou Deus uma advertência contra o pecado futuro.
de forma equivocada, mas sua angústia, Ninguém no livro de Jó afirma que os
de certo modo, foi acalmada pelo encontro amigos estão totalmente errados. Mesmo
com Deus. E apesar das palavras rancoro- quando Deus os reprova (42.7), é por-
sas de Jó contra Deus ao longo de todo o que eles não disseram "de mim o que era
livro, no fim, por incrível que pareça, Deus reto"- no caso de Já, ou seja, pois Jó não
o elogia por dizer o "que era reto" a seu havia pecado, e seu sofrimento não era, de
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modo algum, uma punição de Deus. O que veitoso compará-los teologicamente. Pro-
os amigos dizem acerca do sofrimento em vérbios é um resoluto defensor da doutrina
geral pode ser verdadeiro em outras cir- da retribuição. Seu princípio básico é que
cunstâncias. Mas falham com Jó porque se a sabedoria conduz à vida e a tolice conduz
baseiam em suas doutrinas, e não no que à morte, e assegura por todo o livro que a
seus olhos e ouvidos observam. Eles sa- justiça é recompensada e o pecado é puni-
bem que Jó é um bom homem, e o tratam do. Eclesiastes não duvida da importância
injustamente por acharem que o seu sofri- de se buscar sabedoria, mas parece inscre-
mento testemunha contra a sua bondade. ver um desafiador ponto de interrogação à
O livro de Jó não é contra os amigos, mas margem de Provérbios. Pois ele questiona:
quer deixar claro que o sofrimento aconte- O que acontece com a sabedoria na morte?
ce a pessoas boas, que não merecem sofrer, A morte cancela todos os valores, incluin-
e também a pessoas que merecem tudo o do a sabedoria, e o significado da vida não
que lhes acontece. pode estar fundamentado em algo que vai
se perder. É melhor, diz Eclesiastes, consi-
A origem do livro derar a vida como uma oportunidade para
Não há como estabelecer a data precisa em se alegrar (Ec 2.4); pois a alegria não é
que o livro foi escrito, a não ser que tenha uma possessão cumulativa que, em última
sido entre o século VII e o século II a.C. É instância, pode ser destruída; ela é utilizada
provável que a história de um sofredor jus- e gasta no processo da vida. O livro de Jó
to tenha se tomado popular bem antes de o também confronta a ideologia de Provér-
poema em questão ter sido escrito. O so- bios, mas de modo diferente. No pensa-
frimento do inocente também é comentado mento de Provérbios, um homem como Jó
em textos de Jeremias e Isaías, procedentes é uma impossibilidade. Se ele fosse verda-
do século VI. Assim, é possível que o sofri- deiramente justo, encontraria vida, riqueza
mento de Jó simbolizasse o sofrimento dos e saúde. O livro de Jó, porém, retrata al-
judeus no período do exílio. guém que é tanto justo como sofredor. E ao
O autor do livro foi, sem dúvida, um is- mesmo tempo mostra que uma atitude reli-
raelita. A terra natal de Jó é retratada como o giosa verdadeira não é a resignação passiva
norte da Arábia; sua história é retratada em ao infortúnio e à calamidade, mas inclui a
uma era patriarcal distante; e o próprio Jó coragem para entrar em disputa com Deus.
não conhece Deus pelo seu nome israelita
distinto - Javé. O autor, entretanto, insinua Leitura adicional
o caráter universal das perguntas de Jó, em- ATKINSON, D. The message of Job. BST.
bora seja óbvio que seus pensamentos e es- Inter-Varsity Press, 1991.
tilo literário sejam totalmente hebraicos. ANDERSEN, F. I. Jó: introdução e comentá-
Entre os estudiosos contemporâneos rio. SCB. Vida Nova, 1984.
da Bíblia, o livro de Jó é considerado par- HABEL, N.C. The book ofJob. OTL. SCM,
te do grupo conhecido como "Literatura 1985.
Sapiencial", Duvida-se que tenha havido HARTLEY, 1. E. The book of Job. NICOT.
um contexto social comum dos "sábios" a Eerdmans,1988.
partir do qual esses livros (Provérbios, Jó CLINES, D. 1. A. Job }-20. WBC. Word,
e Eclesiastes) se originaram, mas é pro- 1989.
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ESBOÇO
1.1-2.13 Prólogo
1.1-5 Cena 1: Já e sua integridade
1.6-12 Cena 2: A reunião celestial
1.13-22 Cena 3: O primeiro julgamento
2.1-6 Cena 4: A nova reunião celestial
2.7-13 Cena 5: O segundo julgamento

3:1-31:40 O diálogo
3.1-26 O primeiro discurso de Já, no qual ele expressa a sua
tristeza
4.1-5:27 O primeiro discurso de Elifaz: "Seja paciente, tudo acaba-
rá bem"
6.1-7.21 O segundo discurso de Já: "Deus, me deixe em paz"
8.1-22 O primeiro discurso de Bildade: "Se você é inocente não
morrerá"
9.1-10.22 O terceiro discurso de Já, no qual reconhece que não
pode obrigar Deus a ser justo
11.1-20 O primeiro discurso de Zofar: "Arrependa-se!"
12.1-14.22 O quarto discurso de Já: A "sabedoria" dos amigos e a
justiça de Deus
15.1-35 O segundo discurso de Elifaz: "Cuidado com o destino
dos ímpios"
16.1-17.16 O quinto discurso de Já: "Morrerei eu sem vindicação?"
18.1-21 O segundo discurso de Bildade: Mais sobre o destino ter-
rível dos ímpios
19.1-29 O sexto discurso de Já, no qual ele age com raiva.
20.1-29 O segundo discurso de Zofar: "Você deve se arrepender
ou será destruído"
21.1-34 O sétimo discurso de Já: "O perverso prospera e o justo
sofre"
22.1-30 O terceiro discurso de Elifaz: A grande perversidade de

23.1-24.25 O oitavo discurso de Já : "Deus deveria estar sempre
disponível"
25.1-6 O terceiro discurso de Bildade: "Como pode um homem
ser justo perante Deus?"
26.1-14 O nono discurso de Já: "O conselho de vocês é inútil"
27.1-28.28 O décimo discurso de Já: A sabedoria de Deus
29.1-31.40 O décimo primeiro discurso de Já, no qual ele reflete so-
bre suas calamidades

32.1-37.24 Os discursos de Eliú


32.1-33.33 O primeiro discurso de Eliú: "O sofrimento é advertência
de Deus"
34.1-37 O segundo discurso de Eliú: "Já está errado em acusar
Deus de injustiça"
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35.1-16 O terceiro discurso de Eliú: "Já não deveria ter reclama-


do, e sim apelado a Deus"
36.1-37.24 O quarto discurso de Eliú: Em louvor ao poder e à sabe-
doria de Deus

38.1-42.6 Os discursos do Senhor


38.1-40.2 O primeiro discurso do Senhor: "Considere o mistério da
criação"
40.3-5 A primeira réplica de Já: Ele não tem nada a dizer
40.6-41.34 O segundo discurso do Senhor: "Considere o poder da
criação"
42.1-6 A segunda réplica de Já: Suas demandas se transformam
em adoração

42.7-17 Epílogo
42.7-9 A vindicação perante os amigos
42.10-17 A vindicação pública

COMENTÁRIO mulas, valiosas pelo seu leite, e os seus po-


tros eram mais preciosos do que os burros.
1.1-2.13 Prólogo Já com os seus filhos e as suas filhas a his-
Nesse prólogo em forma de prosa, há cinco tória era diferente! Cada um dos filhos de
cenas artisticamente arranjadas: a primeira, Jó morava em sua própria casa: pois com
a terceira e a quinta (1.1-5,13-22; 2.7-13) um pai rico como Jó eles podiam viver
acontecem na terra; a segunda e a quarta como príncipes. Quando os filhos se reu-
(1.6-12; 2.1-6) acontecem no céu. Jó e as niam para a celebração dos seus aniversá-
outras personagens na terra ignoram o que rios, Jó cuidava para que nada inadequado
acontece no plano celestial; somente nós, acontecesse durante as festividades. Sendo
os leitores, temos acesso ao segredo da ra- a cabeça da família, Já atuava como sacer-
zão do sofrimento de JÓ. dote e oferecia sacrifícios, no caso de seus
filhos terem acidentalmente dito ou feito
1.1-5 Cena 1: Já e sua integridade algo profano. Toda a cena é de harmonia
Jó não é um israelita, ele é um integrante e tranquilidade doméstica, mas o retrato
dos "povos do leste", ou seja, que ficam a da riqueza, do conforto e do escrúpulo
leste do Jordão (Uz é Edom, a sudeste de extremos já apresenta um forte indício de
Israel). Ele é, entretanto, um adorador do alguma violência que em breve perturbará
verdadeiro Deus, embora o chame Elohim essa perfeição.
(Deus), não "Javé", o nome pessoal de
Deus. Jó é um homem íntegro; isso signifi- 1.6-12 Cena 2: A reunião celestial
ca que ele está além da repreensão, não que Em contraste com essas inocentes reuniões
fosse impecavelmente perfeito. Uma con- familiares, uma reunião muito mais impor-
sequência da sua bondade é que ele tinha tante acontece no céu, a reunião dos filhos
uma família ideal: os números sete e três, de Deus. Eles são assistentes do Senhor,
somando dez, simbolicamente sugerem os anjos (cf também Is 6.1; Jr 23.18,22),
completude (os mesmos números simbóli- e entre eles está "o Satanás" (não apenas
cos são encontrados também na contagem "Satanás"). Ele não é o diabo em pes-
das suas posses). No mundo patriarcal, as soa, mas um dos servos de Deus (o nome
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...
J62 . , .

significa "acusador", v. NVI mrg.). Satanás vida continua irrepreensível como sem-
é, sem dúvida, o adversário de Jó, mas nes- pre. Satanás agora concorda que Jó sofrerá
sa cena ele não é um inimigo de Deus, pois qualquer dificuldade externa de maneira
tudo que faz é aprovado por Deus, e ele piedosa desde que não seja afligido fisica-
não pode agir sem a autorização de Deus. mente e garante que a história será dife-
Sua tarefa normal é ser os olhos e ouvidos rente, caso Jó venha a sofrer pessoalmente.
de Deus sobre a terra. Pele por pele pode significar que Jó pou-
Jó é urna pessoa de quem Deus pode pou a si mesmo ao aceitar piedosamente a
se orgulhar; poucos no Antigo Testamento morte dos filhos, mas que se Deus agora
são chamados pelo título dignificante de o atacar fisicamente, irá descobrir, com
meu servo (e.g., 2Sm 7.5; Is 42.1). Sata- toda a probabilidade, que Jó irá responder
nás não duvida da bondade de Jó; o que ele com maldições.
questiona é se Jó é justo por amor à justiça
ou por almejar a recompensa advinda da 2.7-13 Cena 5: O segundo
conduta justa. julgamento
A narrativa apressa-se para o clímax, quan-
1.13-22 Cena 3: O primeiro do a quarta cena se dissolve na quinta. A
julgamento saída do Satanás da presença do Senhor
Nessa cena central, quatro mensageiros encerra a quarta cena, e o sofrimento de Jó
chegam-se a Jó anunciando quatro tragé- inicia a quinta cena; não há intervalo entre
dias. As tragédias (duas naturais e duas in- o sofrimento autorizado por Deus e a afli-
fligidas por seres humanos) vêm de todas as ção de Jó proveniente do Satanás.
direções: os sabeus (15) vêm do sul (Seba), Jó se sentou sobre cinzas, fora da cida-
os caldeus (17) vêm do norte; o relâmpago de, para realizar os rituais de lamentação.
(jogo de Deus, 16) vem das tempestades Para expressar o sentimento de desolação e
que assolam o Mediterrâneo no oeste; e o isolamento, ele mesmo se retirou da socie-
grande vento (19) vem do deserto no leste. dade e identificou-se com o lixo. Enquanto
Vemos Jó sobremaneira oprimido pelas ca- está assentado ali, tumores malignos ata-
lamidades anunciadas, sequer tendo tempo cam seu corpo (7), e ele utiliza cacos de
de se recuperar de um choque antes da che- barro, retirados de um montão de lixo, para
gada do próximo mensageiro. se coçar e aliviar a irritação. Essas feridas
A reação de Jó não é acusar os even- são obviamente doenças de pele (cf 7.5;
tos naturais ou os inimigos humanos (o 30.30); identificações mais específicas
Senhor o tomou), nem esquecer as bênçãos como elefantíase ou lepra não podem ser
de Deus (o Senhor o deu) e nem fechar comprovadas. Jó teve muitos outros sin-
seus olhos para a realidade (tomou), mas tomas também, tais como perda de peso
louvar o Senhor tanto pelo bem como pelo (19.20), febre (30.30), pesadelos (7.14)
mal (21). A confiança de Javé em Jó tinha e insônia (7.4), mas estes podem bem ter
razão de ser. sido efeitos psicossomáticos de sua de-
O ventre [da] mãe de Jó, ao qual ele pressão em vez de efeitos colaterais da
irá retomar na morte, deve ser entendido doença de pele. Outras referências a estes
como mãe-terra, de onde os seres humanos sofrimentos são, provavelmente, metafóri-
foram criados. cas, como quando ele reclama de que os
seus ossos estão apodrecendo (30.17) ou
2. 1-6 Cena 4: A nova queimando (30.30).
reunião celestial A esposa de Jó deve ter se sentido terri-
O relato de Javé sobre Jó é que ele ainda velmente enganada pelo marido, uma vez
mantém a sua integridade, ou seja, a sua que toda a piedade dele resultou na perda
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dos seus dez filhos, do status social e da grau, o sofrimento que lhe sobreveio. Eles
subsistência. E espera-se que ela mantenha aceitam passivamente a teologia ortodoxa
sua lealdade ao marido, apesar da culpa que atribui todo o sofrimento à pecamino-
que, por associação, ela tem de carregar. sidade humana.
Seja em função do ódio que tem de Deus
por causa do que ele fez a Jó, seja pela
3.1-31.40 O diálogo
vontade de que o sofrimento do marido
termine de uma vez, ela manda Jó amaldi- 3.1-26 O primeiro discurso de Já,
çoar a Deus (9) e, assim, causar a própria no qual ele expressa a sua tristeza
morte. Jó não a repreende por lhe sugerir Com esse monólogo de Jó, repentinamente
que blasfeme, mas por falar como qual- somos arrancados da grandiosidade épica e
quer doida. Talvez ele esteja se referindo da intencionalidade do prólogo (cp. 1-2)
a mulheres de baixa classe, ímpias, incapa- para o tumulto dramático do poema (3.1-
zes de entender a verdade que está por trás 42.6); da descrição exterior do sofrimento
dos eventos. Jó tem algo de aristocrata e, para a experiência interior de Jó. No dis-
embora nesse momento esteja desprovido curso há um movimento do passado (3-10)
de riqueza, não entende muito bem a con- para o futuro (20-26), e da experiência do
dição de quem é permanentemente pobre homem Jó (3-19) direcionada para a expe-
(cf 30.2-8). Jó responde à esposa que Deus riência da humanidade em geral (20-22).
é livre tanto para mandar o bem e os pro- Nesse discurso não há referência ao
blemas quanto para dar e tomar (cf 1.21). significado do sofrimento, nem se ques-
Isso não é resignação fatalista à vontade de tiona se o sofrimento é merecido ou não,
um Deus incognoscível, mas um tipo de e também não há indagação acerca de sua
confiança em que Deus sabe o que está fa- origem. Jó não se culpa a si mesmo pelo
zendo. Ao dizer que não pecou Já com os que está passando, nem culpa a Deus. Isso
seus lábios (lO), o narrador não está dizen- virá posteriormente, mas aqui temos sim-
do que ele pecou em pensamentos, e sim plesmente o homem Jó na violência de
que Jó desmentiu a afirmação do Satanás sua aflição.
de que ele pecaria com os lábios, ao amal- 3.3-10 Ele amaldiçoa os dias de sua
diçoar Deus, se fosse atingido fisicamente. concepção e nascimento. Uma maldição
Jó, sendo um líder de grande impor- é usualmente direcionada ao futuro, mas o
tância (1.3), tinha amigos em vários paí- desespero de Jó é tamanho que ele amal-
ses, embora não possamos identificar diçoa o passado. Trata-se de uma maldi-
com segurança os seus países de origem. ção completamente fútil, é claro, pois o
As intenções deles em relação a Jó são de passado não pode ser alterado. Ele deseja
bondade, não há como duvidar, porém, é que o dia de seu nascimento e concepção
bastante estranho que, ao verem como ele (considerado poeticamente como um único
está sofrendo, não ofereçam nenhum con- evento) tivesse sido transformado em es-
solo. Eles não lhe dirigem uma palavra curidão (4-6a) para que não fosse incluído
sequer, mas passam a tratá-lo como se já no calendário do ano (6b,c); ele deseja que
estivesse morto. Eles creem que estão lhe os feiticeiros, que amaldiçoam os dias, ti-
mostrando simpatia (e o nosso silêncio vessem transformado a data num dos dias
ao ouvir alguém em dificuldade pode ser agourentos, em que teria sido impossível a
muito benéfico), mas a lamentação silen- seus pais o terem concebido ou à sua mãe
ciosa deles por sete dias e sete noites (13) o ter dado à luz (8a,lOa). 8 Alguns mági-
é inevitavelmente alienante. Como suas cos do passado obviamente acreditavam
palavras irão mostrar depois, os amigos que tinham poder para despertar Leviatã,
não creem que Jó não mereça, em certo o monstro marinho (cf SI 104.26; Is 27.1)
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e dragão do abismo, que, talvez, tragasse o deles trouxe uma mensagem tão conforta-
sol, causando assim a escuridão do eclipse. dora quanto este. Mas há também uma iro-
3.11-19 Ele deseja que tivesse nasci- nia aqui, como nos discursos de todos os
do morto. Jó, em seu discurso, vai do de- amigos de Jó; o autor não compartilha a vi-
sespero ao questionamento. Uma vez que, são dogmática deles de que o sofrimento é
claramente, a maldição sobre o dia de seu sempre merecido, e pretende retratar como
nascimento nunca fora proferida, ele ques- crueldade o suposto conforto deles.
tiona por que, já que teve de nascer, não A essência do primeiro discurso de
morreu no parto (Lla) ou, pelo menos, não Elifaz a Jó é esta: Você é um homem
houve um aborto oculto (16). A morte para piedoso, como bem sabemos. Não há,
ele tomou-se agora mais doce do que a portanto, necessidade alguma para se de-
vida, e ele contrasta a tranquilidade e a cal- sesperar; no final das contas, o inocente
ma do submundo (sheol) com sua presente nunca sofrerá. Você está sofrendo agora
sorte perturbadora e angustiante (13-19). porque não é perfeito e precisa de algu-
14 Os reis do Oriente Próximo frequen- ma "correção" e "disciplina" (5.17); mas
temente se gabavam de ter reedificado as tudo isso acabará logo, porque você é
ruínas das cidades antigas. praticamente um homem bom (4.6). Em
3.20-26 O enigma da existência do resumo, a mensagem a Jó é: "Seja apenas
sofrimento. Jó passa a uma questão mais paciente; tudo acabará bem".
complexa. Agora ele não apenas quer saber 4.2-6 "Você é um homem piedoso".
por que tem de prosseguir vivendo - uma A preocupação genuína de Elifaz por Jó
vez que já nasceu - mas por que as pesso- é ouvida nas suas palavras iniciais; ela é
as em geral não podem simplesmente mor- respeitosa e quase apologética (2a). Ele
rer quando estão prontas para isso (20-23). não é desdenhoso quando lembra a Jó o
Nos últimos versículos (24-26), ele fala quanto este confortou as pessoas que ha-
diretamente a seu respeito, de novo. O viam passado pela mesma situação (3,4);
poema termina com a nota que ecoou por sua admoestação é suave quando ele diz:
ele todo: ao contrário do repouso do sub- tu te enfadas; sendo tu atingido, te pertur-
mundo, que é o que Jó deseja, sua vida não bas (5). O encorajamento de Jó aos outros,
tem descanso, sossego nem repouso, mas como um ato de verdadeiro temor de Deus
somente perturbação (26). (6), é uma boa razão para ele acreditar que
23 Previamente, o cerco de proteção di- Deus irá restaurá-lo brevemente.
vina em sua vida (cf 1.10) assegurara o seu 4.7-11 "Os inocentes nunca pere-
bem-estar, porém, agora que ele quer mor- cem". Ao descrever o perverso, Elifaz não
rer, só consegue pensar que Deus preserva pretende dizer que Jó seja um deles. Pelo
a vida como uma prolongação artificial de contrário, está falando a Jó que ele não tem
sua infelicidade; o cerco de Deus tornou-se nenhuma razão para ansiedade, uma vez
uma muralha de prisão, e não de defesa. 25 que não é um dos perversos, que semeiam
O medo anterior de Jó acerca de um desas- e colhem preocupações (8; cf Os 10.13;
tre futuro explica seu cuidado extremo em GI6.7).
assegurar que nenhum pecado fosse ligado 4.12-21 "Todavia, nem mesmo o pie-
à sua família (1.5; cf 15.20-26). doso é perfeito". Para sustentar o seu argu-
mento de que mesmo o justo não é perfeito,
4.1-5.27 O primeiro discurso Elifaz relata suas visões noturnas (12-16)
de Elifaz: "Seja paciente; e tira conclusões a partir delas (17-21). O
tudo acabará bem" próprio Elifaz se acha muito audacioso
Elifaz, como todos os amigos de Jó, preten- em ter essa visão profética. O autor talvez
dia apoiá-lo em seu sofrimento, e nenhum queira nos divertir com a alegação de Elifaz
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sobre uma revelação divina que a maio- Elifaz não está dizendo que Jó é um tolo,
ria das pessoas comuns - sem nenhuma mas nos horrorizamos ao notar a insensi-
educação teológica - aceita como fato bilidade de Elifaz com o infortúnio de Jó
consumado: Seria, porventura, o mor- quando ele fala da casa do louco sendo
tal justo diante de Deus? (17). Embora amaldiçoada (3; cf o v. 25)! Tudo o que
a frase devesse ser traduzida por: "Pode ele está dizendo é que nem mesmo o jus-
um mortal ser justo [quer dizer, absoluta- to Jó pode achar que escapará ileso de tal
mente sem pecado] à vista de Deus?", a sofrimento - a aflição não se produz a si
ideia continua óbvia e banal. E mais ainda, mesma (6); é produzida pelas pessoas (7).
é bastante inadequada a Jó. Ele não está 5.8-16 "Tudo que você deve fazer
padecendo de uma aflição qualquer por- é entregar o seu caso aDeus". Elifaz
que escorregou da perfeição moral abso- volta a afirmar que Jó é essencialmente
luta; ele foi completamente devastado. E um homem piedoso e, assim, não deve
embora não tenha sido morto (consumido se desesperar (4.2-6), e agora recomenda
como os perversos do v. 9), ele está, de paciência a Jó: Se eu fosse você, eu colo-
certa maneira, em situação pior que o ím- caria minha causa nas mãos de Deus (8),
pio, pois deseja morrer, mas Deus insiste pois ele é o grande inversor das venturas
em mantê-lo vivo (3.20-23). (11-16). Nesta vívida descrição dos feitos
14 O sonho, ou visão, de Elifaz o apa- de Deus, Elifaz se entusiasma um pouco
vorou porque ele estava ciente da presen- com a própria retórica. Muito do que ele
ça do sobrenatural. 18 Se nem mesmo os diz não se aplica em nada a Jó; o único
servos celestiais de Deus, seus anjos, são ponto de conexão é que Jó, como o aba-
infalivelmente confiáveis (não existe aqui tido ou o necessitado (11,15), pode ter
cogitação de anjos "maus"), muito menos esperança de que Deus mudará drastica-
os mortais que, diferentemente dos anjos, mente seus atuais infortúnios.
podem morrer num único dia (20a). Além 8 Pelo menos, Elifaz diz uma coisa sen-
disso, os mortais podem ser tão insignifi- sata: Quanto a mim, eu buscaria a Deus,
cantes (em comparação aos anjos) que mor- ou, em outras palavras: "Se fosse eu, ape-
rem sem que ninguém perceba (20b) e sem laria a Deus". Este é um conselho de amigo
obter a sabedoria compassiva que norteia a que Jó segue, embora ele dificilmente ne-
vida de Elifaz e dos outros amigos (21). cessite que Elifaz o encoraje a tal. Sua cau-
5.1-7 "O sofrimento deve ser espe- sa é tanto o seu presente infortúnio quanto
rado". Elifaz não acredita que Jó queira sua "causa" no sentido mais jurídico, e que
mesmo morrer (como ele disse no cp. 3), ouviremos, muitas vezes, Jó apresentar a
e ele agora supõe que Já deva estar bus- Deus em discursos posteriores (cf 7.20,21;
cando algum meio de se libertar do sofri- 10.18-22; 13.20-23). 11-16 Aqui os atos
mento. Elifaz diz que se é isso que Já está destruidores de Deus (12-14) estão incluí-
buscando, é melhor esquecer, pois não há dos no conjunto de seus atos salvadores
poder, nem ainda entre os seres celestiais, (10-11,15), assim o principal efeito desse
que possam libertar Jó da sua punição. O retrato do trabalho de Deus é levar espe-
sofrimento é natural para os seres huma- rança ao pobre (16; cf Lc 1.51-53).
nos, que sempre trazem perturbações a si 5.17-27 "Se você fizer assim, Deus o
mesmos (o v. 7 provavelmente deveria ser restaurará". Elifaz adverte Jó que se ele
traduzido por: "É o homem que gera o pró- simplesmente esperar com paciência a ação
prio sofrimento"). de Deus, descobrirá que o seu sofrimento é
Este ciclo de causa e efeito é especial- disciplinar (17) e que ele faz aferida e ele
mente óbvio no caso do tolo (2), cujo res- mesmo a ata (18). Elifaz está determinado
sentimento [ira] e inveja o levam à ruína. a findar seu discurso de um modo positivo.
705

Ele acha (e isso também é irônico) que está Jó não pede nada a Deus, a não ser que o
fazendo um grande favor a Jó ao lhe dizer deixe sossegado, para que ele viva o res-
que sua situação é boa demais! Bem-aven- tante dos seus dias livre de sofrimento. É
turado é o homem a quem Deus disciplina, claro que há muito mais aqui do que pode-
ele diz (17) como se tivesse algum direito mos entender; no próprio ato de suplicar a
de dizer a Jó como ele é abençoado em so- Deus para deixá-lo em paz, Jó está, de fato,
frer a perda de sua família e bens. se aproximando do Senhor.
O quadro não é um mar de rosas total: 6.1-13 "Que Deus me mate!". No
Jó deve satisfazer algumas condições. Ele início desse discurso, Jó não está, de fato,
não deve desprezar a disciplina do Todo- se dirigindo a Deus, mas expressando um
Poderoso (17) e deve ouvir o conselho de desejo aflito de que Deus ponha fim a esse
Elifaz e aplicá-lo à sua vida (27). Na su- sofrimento. O texto-chave nesta seção são
perfície, não parece difícil cumprir essas os v. 8,9: Quem dera que se cumprisse o
condições, mas, claro, elas são impossíveis meu pedido, e que Deus me concedesse o
de ser aceitas por JÓ. Como aceitar a "dis- que anelo! Que fosse do agrado de Deus
ciplina" de Deus, se ele não considera o esmagar-me, que soltasse a sua mão e
seu sofrimento uma disciplina, e sim uma acabasse comigo! Jó acha que se morresse
injustiça cruel? E como aplicar em sua agora, antes que o sofrimento o levasse a
vida o conselho de Elifaz quando ele sabe blasfemar, poderia ao menos ter a conso-
que o conselho é resultante de reflexão teo- lação de não ter negado as palavras, os
lógica e não corresponde minimamente à mandamentos, do Santo.
verdadeira experiência de vida? Elifaz pede que Jó seja paciente, mas
a paciência necessita de um vigor de que
6.1-7.210 segundo discurso de Jó não dispõe (11-13). Elifaz não havia
Jó: "Deus, me deixe em paz" reconhecido o peso que estava sobre Jó.
As palavras de Elifaz não atingiram em Se a sua infelicidade pudesse ser pesada,
nada o problema de Jó. Assim ele ignora o ela pesaria mais que a areia dos mares
discurso quase por inteiro. Isso é uma mar- (3); não é de admirar que suas palavras
ca característica do livro: vários oradores tenham sido precipitadas (ou melhor,
falam sem se dirigir a ninguém em parti- "desesperadas"). Jó não está se descul-
cular. Essa característica é obviamente um pando de nada, nem confessando coisa
meio usado pelo livro para abordar as di- alguma. Exatamente como no prólogo
ficuldades de se estabelecer uma conexão (1.21; 2.10), ele reconhece que, em última
entre teologia e vida real. instância, o seu sofrimento vem de Deus;
Nesse discurso veemente, há três seg- aqui no poema, os seus sofrimentos resul-
mentos. No primeiro (6.1-13), que é um tam dasflechas envenenadas do Todo-Po-
monólogo endereçado a ninguém em par- deroso (Shaddai), enquanto os terrores de
ticular, Jó vai bem além da sua posição no Deus, seu inimigo, são arregimentados na
cp. 3. Ali ele desejou nunca ter nascido, e batalha contra ele (4). Não é o sofrimento
perguntou por que, uma vez que nasceu, é físico ou o tormento mental que esmaga a
obrigado a prosseguir vivendo. Mas agora Jó; é a consciência de que se tomou ini-
anseia pela morte imediata (6.8,9). No se- migo de Deus.
gundo segmento (6.14-30), Jó se dirige aos 5,6 Os clamores de Jó têm suas razões,
amigos e lamenta-se por terem roubado assim como o jumento ou o boi somente re-
dele a única coisa que esperava: compai- clamam quando suas necessidades não são
xão compreensiva. No terceiro segmento satisfeitas. As necessidades de Jó não têm
do discurso (7.1-21), ele, surpreendente- sido satisfeitas ~ pelo menos não por
mente, dirige-se a Deus. Por um instante, Elifaz, cujas palavras são insípidas e cujo
J66 706

conselho não pode ser engolido mais facil- com um apelo para que Deus o deixe sozi-
mente do que a clara do ovo (6). nho num canto para morrer em paz.
11-13 O sentimento que retoma a Jó 1-10 Aqui, Jó lança seu desespero so-
não é tanto de fraqueza fisica quanto psi- bre a existência humana em geral: o des-
cológica. Não lhe restam recursos interio- tino comum da humanidade é penoso (1).
res; sua auto estima foi minada porque não Sua depressão agora não o conduz tanto à
vê em si mesmo razão nenhuma para Deus raiva como ao queixume sobre o labutar
tratá-lo com tanta falta de misericórdia. infrutífero da vida. Seus dias que são mais
6.14-30 "Vocês não são amigos de velozes do que a lançadeira do tecelão (6)
confiança". Jó acabou de reclamar que também são os dias da humanidade como
não tem mais forças (13), mas agora di- um todo; a vida que nada mais é do que
rige um ataque amargurado e sarcástico um sopro (7) é o destino da humanidade;
contra os amigos. A depressão se trans- e o fato de que aquele que desce à sepul-
formou em raiva. Ele começa indireta- turajamais tornará a subir (9) é comum a
mente, com a imagem de uma torrente ou todos os homens. E ainda, paradoxalmen-
ribeiro sazonal (uádi), que seca no calor te, a vida que é tão breve pode parecer tão
e não tem água quando alguém precisa. monótona: o único evento que Jó deseja
Jó acusa seus amigos de não retribuírem a - a morte - parece infinitamente adia-
devoção ou "lealdade" que lhes dedicou, do, de modo que ele é como o escravo que
a amizade leal e a aceitação incondicional suspira pela sombra (2). As únicas altera-
em quaisquer situações. Para os amigos, ções que ele observa acontecem em suas
"lealdade" tem outro significado. Eles feridas: um dia elas incrustam e no outro,
oferecem solidariedade e apoio, mas ape- supuram (5).
nas dentro da coerência. Não conseguem 11-16 Jó teve duas razões para o seu
dizer: "Amigo, certo ou errado, estamos pedido espantoso de que Deus o deixasse
com você" quando acham que os sofri- sozinho num canto (16). A primeira foi
mentos de Jó mostram claramente que o estado lastimável da sua vida cheia de
ele está errado e Deus o está punindo por sofrimento (1-5); a segunda, a certeza da
um pecado ou outro. Deveriam eles fazer aproximação da morte (6-10). Ele não tem
pouco caso das evidências e do conheci- nada mais a perder. Entretanto, sua recla-
mento confirmados pelos próprios olhos, mação é que Deus, longe de deixá-lo em
e apoiar Jó no que acreditam ser uma pos- paz, trata-o como um monstro lendário
tura de falsa retidão? das profundezas, Yam (o mar) ou Tannin
21 Os amigos, diz Jó, estão receosos (o monstro das profundidadess que teve
de que, caso se identifiquem demais com de ser amordaçado por Deus (cf 38.8-11;
ele, também cairão sob o julgamento de Is 51.9). É absurdo Deus imaginar que Jó
Deus. Eles não o tratam como amigo, mas seja uma ameaça para seu universo, e mes-
como alguém que pede um empréstimo: mo assim ele recebe o mesmo tratamento
oferecem muitos conselhos, mas nenhum dado a essas forças do abismo (12).
tostão (22,23)! 24 Jó pergunta aos amigos 17,18 Nesta paródia amarga do salmo
que crime ele cometeu para estar sofrendo 8, Jó retoma ao tema da desproporção (12).
assim. A resposta a essa pergunta é tudo o No livro de Salmos, "O que é o homem"
que ele precisa para se calar. expressa gratidão maravilhada porque os
7.1-21 "Por que, ó Deus, o Senhor me seres humanos, aparentemente tão insigni-
mantém vivo?". A vontade de Jó de mor- ficantes na escala do universo, são os ob-
rer impõe-se novamente, mas dessa vez, jetos do cuidado do Deus Todo-Poderoso.
está ligada à sua experiência com a futili- Em Jó, "O que é o homem" inicia uma re-
dade e tristeza da vida humana em geral e provação a Deus porque sua atenção (para
707 JÓ8( l1li

que tanto o estimes) aos seres humanos não perverteria [00'] ajustiça (3). Se Deus
não visa ao beneficio deles, mas tem sido, enviou o sofrimento é porque deve haver
antes, um escrutínio impiedoso, um teste um pecado que o faça merecer. O caso dos
perpétuo, uma crueldade inexplicável, um filhos de Jó prova a afirmação de Bildade:
tormento sádico. Se teus filhos pecaram contra ele, também
19-21 Jó não é nada, a não ser um des- ele os lançou no poder da sua transgressão
ses seres humanos insignificantes. E se ele (4). Em contraste, o próprio Jó não morreu,
tiver mesmo pecado? Terá seu pecado cau- assim ele deve ser inocente de qualquer
sado tantos problemas a Deus que mereça coisa que mereça a morte. Jó tem apenas
punição tão severa? De qualquer modo, que [buscar] a Deus em oração (5) e se ele
Jó em breve morrerá. Que aborrecimentos é puro e reto, sua oração será ouvida. Para
Deus terá de enfrentar, caso retarde a puni- Bildade tudo é muito simples: o destino
ção por um tempinho? Não que o pecado dos seres humanos está diretamente ligado
humano seja trivial, mas o suposto pecado aos méritos humanos.
que está lhe causando tanto sofrimento não 8.8-19 "Não há efeito sem causa,
deve merecer tanta atenção de Deus. Por como o exemplo dos perversos demons-
que ele "não faz vista grossa" (em vez de tra". Bildade apela para a tradição (como
perdoas) a qualquer ofensa que Jó supos- o faz Elifaz em 5.27) porque a sua própria
tamente tenha cometido? Observemos que experiência não consegue lidar com o pro-
Jó não está confessando nada. blema teológico do sofrimento de Jó. Em
dois cenários diferentes (11-13,14-19),
8. 1-22 O primeiro discurso cada um terminando com seu próprio resu-
de Bildade: "Se você é mo, Bildade descreve o destino do ímpio
inocente não morrerá" com uma imagem da natureza, pretenden-
Bildade, como os outros amigos, acredi- do dizer que onde há punição com certeza
ta que o sofrimento é a punição, e que a também há a culpa. No primeiro cenário, o
morte dos filhos de Jó é a prova do pecado papiro que seca por falta de água ilustra a
deles. Elifaz admitiu que Jó era essencial- questão e é, ao mesmo tempo, uma metá-
mente um homem justo, embora estives- fora para o destino do ímpio. No segundo
se sendo temporariamente castigado por cenário, a teia de aranha é um símbolo da
Deus por algum erro que os mortais não instabilidade e questionabilidade da con-
conseguem evitar. Porém, Bildade tem fiança do ímpio (14,15), e o desenraiza-
menos confiança na integridade de Jó. mento de uma planta é uma metáfora para
Todo o seu encorajamento a Jó depende da a destruição da pessoa perversa.
condição se fores puro e reto (6). Bildade 8.20-22 "Ainda há esperança para
não é hostil a Jó, mas insiste em que ele você". Bildade conclui com uma palavra
examine sua consciência, pois é somente de esperança: Deus não rejeita ao íntegro
por meio da inocência que Jó será liberto (20). E ele obviamente crê que Jó ainda
das suas tribulações. provará a sua integridade. Mas a sabedo-
A maior parte dos discursos de Bildade ria de Bildade é superficial demais para a
(8-19) aborda o tema de que não há efei- situação de Jó. E há uma ironia cruel aqui
to sem causa; a morte do perverso ilustra também. Pois se Jó fizer o que Bildade re-
o tema. O discurso é concluído com uma comenda e pedir misericórdia ao Todo-Po-
nota comparativamente alegre (20-23), e deroso (5), e utilizar sua integridade para
sua mensagem a Jó é: "Se você é inocente, se livrar do sofrimento, não irá comprovar
não morrerá". inconscientemente que Satanás estava cer-
8.2-7 "Sua morte e a de seus filhos". to ao dizer que Jó não teme a Deus sem
A opinião básica de Bildade é que Deus pensar em recompensa?

•• JÓ9 708
••
9.1-10.22 Terceiro discurso de seu lugar na sociedade, cura da sua enfer-
Já, no qual ele reconhece que não midade e devolução das suas posses.
pode obrigar Deus a ser justo 9.2-13 "Não posso obrigar Deus a me
Nesses capítulos, alcançamos um nível de vindicar". Ao perguntar: Como pode o ho-
intensidade mais profundo. Neles ouvi- mem ser justo para com Deus?, Jó não está
mos a declaração mais intensa que Jó fez falando como Paulo, de como um pecador
até agora do seu sentimento de impotên- é "justificado" ou declarado justo perante
cia (e.g., 9.3,4,14-20,30,31) e sensação de Deus, mas de como uma pessoa justa pode
ter caído numa armadilha (9.15,20,27-31). ser "justificada" ou publicamente vindica-
Acima de tudo, observamos sua crença de da por Deus. Isso acontece porque Deus é
que todo o aparente cuidado que recebeu Deus, e não um ser humano; seu poder e
de Deus a vida inteira não foi, na verda- sabedoria são infinitos (4), como demons-
de, em seu beneficio, mas para tê-lo preso trado pelo seu controle sobre o universo. Jó
à culpa: Estas coisas, as ocultaste no teu se concentra mais nos aspectos negativos
coração [...] Se eu pecar, tu me observas do poder de Deus - ele move montanhas,
(10.13,14). Não é de surpreender que Jó move a terra, sela as estrelas (5-7) - não
conclua seu discurso reiterando a vontade de modo a retratá-lo como um Deus do
de nunca ter nascido (10.18,19; cf 3.3-13) caos, mas para destacar sua liberdade de
e pedindo a Deus que o deixe em paz nos agir, seja para o bem, seja para o mal. A
poucos dias que lhe restam antes da morte liberdade de Deus o toma incompreensível
(10.20-22; cf 17.16). (faz maravilhas tais que se não podem con-
No entanto, esse discurso não é mera tar; 10), livre de dar explicações (Quem lhe
repetição, pois nele Jó também levanta a dirá: Quefazes?; 12) e incontrolável (ele
questão de como será vindicado, i.e., pu- não revogará a sua própria ira, se esta for
blicamente declarado inocente. Ele admite sua decisão; 13). 3 O retrato aqui é de um
que fazer com que Deus o declare inocente tribunal, onde o querelante faz as queixas
é uma tarefa sem muita esperança (9.2), e o acusado responde. Se Jó levasse Deus
e a desesperança da situação, no final do ao tribunal, metaforicamente falando, ele
discurso, envolve-o numa aflição profun- teme que não seria capaz de resistir aos ar-
da (10.15,16). Mas a vindicação tomou- gumentos e contra-argumentos de Deus.
se uma ambição que ele não rejeitará, e a 9 Os quatro grupos de estrelas aqui não
atração que tem por ela fica mais intensa à podem ser identificados com certeza, mas
medida que o livro avança (cf 13.13-23; é óbvio que fazem parte das estrelas mais
16.18-21; 19.23-27; 23.2-14). grandiosas. 13 Os auxiliares do Egito: Al-
Jó não está afirmando que Deus é injusto, gumas versões trazem: "Raabe" (e.g., Nvr).
embora algumas linhas possam ser interpre- É um nome (como Leviatã) para o lendário
tadas dessa maneira (9.16,20,22,24,30,31; monstro marinho do abismo contra quem
10.15). Ao contrário, está dizendo que é (de acordo com alguma tradição folclórica
inútil tentar obrigar Deus a fazer algo - hebraica não encontrada na Bíblia) Deus
mesmo dar-lhe a vindicação merecida. O batalhou na criação (v. também 26.12; SI
seu sofrimento atual é uma prova silencio- 89.10; Is 51.9).
sa para os vizinhos de que ele é um peca- 9.14-24 "Nem mesmo no tribunal
dor terrível; pois eles, como seus amigos, Deus me vindicaria". Jó imagina levar
creem na doutrina da retribuição, de que o Deus ao tribunal para forçá-lo a pronun-
sofrimento é resultado de culpa. Assim, de- ciar-lhe o veredicto público de "inocente".
pois de tudo, a vindicação que Jó necessita, Mas isso é realmente impossível; como
e deseja, não é uma declaração verbal de um reles mortal escolheria palavras ou
inocência, mas uma restauração pública do "simples" argumentos contra Deus? E se
alguém conseguisse argumentar com Deus,
709

motivos de Deus para o tratamento que


J611
.
rJI•

como teria certeza de que ele estaria mes- Jó recebe dele (3-7); a contradição entre
mo ouvindo, uma vez que, nesse instante, os propósitos reais e aparentes de Deus ao
está massacrando Jó com uma tempestade criar Jó e mantê-lo vivo (8-17) e um apelo
(16,17)? Embora seja inocente, Jó não du- para a libertação da presença opressiva de
vida que fale inadequadamente: a minha Deus (18-22).
boca me condenará (20). 1,2 Jó tenciona fazer disto uma con-
9.25-35 "É mesmo necessário haver trovérsia jurídica com Deus. Como aquele
julgamento formal?". Agora o monólogo que se defende em um tribunal, ele pede
se toma um discurso a Deus. Começando contas das acusações contra ele (2).
com uma reflexão sobre o infortúnio dos 3-7 Nos três questionamentos, Jó espe-
seus dias (25,26), Jó reconhece que os cula acerca dos motivos por trás do compor-
seus sofrimentos são lembretes constantes tamento de Deus em relação a ele. Deus tem,
de que Deus o considera culpado (27,28) de algum modo, se beneficiado disso (3)?
e prosseguirá dessa forma, não importa Certamente ele não tem nada a ganhar mal-
o que Jó fizer para provar sua inocência tratando a JÓ. É a visão de Deus apenas a
(29-31). Então, o que ele pode fazer? Ten- de um mortal, que ele passa a agir como
tar acabar com o sofrimento mental (27) ou se fosse míope ao tratar com Jó (4)? Tem
tentar se livrar da suposta culpa, jurando Deus tão pouco tempo de vida para agir
inocência (28-31). Mas nenhuma dessas com tal urgência contra Jó (5,6)?
atitudes oferece muita esperança de suces- 8-17 Aqui nós temos uma bela descri-
so e ele retoma à ideia da disputa judicial ção de como Jó foi criado e preservado por
com Deus (32-35). Deus (8-12): ele foiformado como em bar-
32-35 O problema do confronto legal ro, envasilhado como leite, sendo coalhado
com Deus é que as duas partes não podem como queijo, entretecido como a obra de um
estar no mesmo nível (32). O que Jó pre- tecelão que lhe concedeu vida. Mas o tempo
cisa é de um árbitro que intermedeie en- todo, ao que parece, Deus tinha um propósi-
tre os dois, que ponha a mão sobre ambas to bem diferente e totalmente sinistro (13):
as partes como um gesto de reconciliação intensificar a culpa sobre Jó, o qual, por sua
(ou, talvez, como um símbolo do seu po- vez, não está admitindo que é culpado; está
der sobre ambos). Mas é claro que não há dizendo que, quer seja perverso ou inocente
tal árbitro. "Pois bem" diz Jó, "eu mesmo (15), o "cuidado" de Deus por ele tem sido
deverei pleitear o meu caso. Mas não tenho o de tomá-lo alvo de seu ataque (cf 7.20).
coragem de iniciar uma disputa com Deus, 18-22 Foi para isto que Jó nasceu? Ele
a não ser que ele prometa não me aterro- está duplamente desesperado agora; ele
rizar com sua força superior" (34,35). No não sabe como se aproximar de Deus para
cp. 10, Jó diz as palavras que ele usaria (ou conseguir a vindicação (9.11), e ele sente
antes, as palavras que ele mesmo usa) na que está nas garras de um Deus zangado
disputa aqui imaginária. que o fará sofrer, seja ele inocente ou não
10.1-22 "Eu falarei na amargura do (10.7). Não é de surpreender, então, que
meu lamento". Como muitos dos discursos Jó caia no desespero que vimos no cp. 3,
de Jó, este termina com um apelo ardente misturado com o apelo a que Deus se afas-
diretamente a Deus. Jó não se contenta tasse, que vimos em 7.16,19.
em falar de Deus na terceira pessoa, mas
sabe que, uma vez que está se relacionan- 11.1-20 O primeiro discurso
do com o próprio Deus, é a ele que tem de Zofar: "Arrependa-se!"
de se dirigir. Há quatro partes no discurso: Zofar é o menos solidário dos três amigos.
sua intenção (1,2); a reconsideração dos Sua mensagem para Jó é simples: você está
J611 710

sofrendo porque Deus sabe que você é um na primeira, Jó se dirige aos seus ami-
pecador secreto (6); portanto, arrependa-se gos (12.2-13.18), e na segunda, a Deus
(13,14)! (13.19-14.22). O fluxo de pensamento,
11.1-6 "Deus sabe que você é peca- ainda na primeira seção, está sempre dis-
dor em secreto". Zofar é um homem de tanciado dos amigos e dirigido a Deus. A
princípios, que concorda com Jó em que a essência do discurso como um todo é: Eu
verdadeira questão é o pecado. Não é ób- não quero nem saber de vocês, médicos
vio que Jó seja um pecador; então ele deve que não valem nada (13.4); mas falarei ao
ser um pecador em secreto, e foi descober- Todo-Poderoso (13.3).
to por Deus. Jó afirma que sua doutrina 12.2-13.19 A sabedoria dos amigos
é pura e que ele é limpo diante de Deus comparada à sabedoria de Deus. Jó aqui
(4), mas Deus sabe que não é bem assim se dirige a todos os amigos, não apenas a
- e de certa forma Zofar também ficou Zofar, que discursou por último. Jó nega
sabendo - que Jó é um malfeitor. Prova- que seus amigos sejam mais sábios do que
velmente seu pecado é tão sério que, ain- ele (2-12), e contrasta a sabedoria deles
da com toda esta punição, Deus tenha se com a sabedoria de Deus (13-25). Pela
esquecido ou subestimado parte da [tua] primeira vez, Jó mostra desprezo por eles.
iniquidade (6). Talvez Jó nem esteja rece- "Na verdade", ele inicia sarcasticamente,
bendo tudo o que merece! vós sois o povo, e convosco morrerá a sa-
11.13-20 "Portanto você deve se ar- bedoria, mas eu não vos sou inferior (2,3).
repender!". Zofar agora tenta persuadir Na verdade, isso significa que Jó realmente
Jó acerca das bênçãos do arrependimento. se acha superior, pois a experiência o tor-
Onde Elifaz foi hesitante, Zofar é cate- nou mais sábio do que os amigos. Ele co-
górico. Ele deixa claro que a restauração nhece algo que eles desconhecem: é pos-
depende inteiramente do arrependimento sível a um homem justo ser afligido e, do
profundo de Jó: para ter alguma esperan- mesmo modo, os atos do perverso ficarem
ça, Jó precisa apenas seguir o conselho impunes (4-6).
do amigo. Jó deve devotar o seu coração 7-12 Aqui, Jó não se dirige aos amigos,
a Deus, direcionar sua mente a Deus com todavia imagina ironicamente o que eles
força total e não se contentar com sinais lhe diriam. Jó afirma que eles têm uma
exteriores de arrependimento, e deve orar opinião muito simplista da maneira como
(13) e abandonar o comportamento iníquo Deus trabalha; eles acham que tudo acerca
que está vivendo. do pecado e punição é tão claro e eviden-
O resultado será uma consciência tran- te que até mesmo os animais entendem do
quila (levantarás o rosto sem mácula) e assunto. As palavras brandas e óbvias dos
o sentimento de segurança (estarás segu- v. 10,11 são ditas pelos amigos, e são eles
ro; 15). Mas o leitor percebe a ironia da que afirmam que a sabedoria [está] com os
situação, pois tudo o que Zofar recomen- idosos (12).
da a Jó, este tem praticado durante toda 13-25 Esse hino ao poder destrutivo do
a sua vida (1.1). Todo-Poderoso apresenta a nova sabedoria
de Jó (3). O Deus que ele agora conhece
12.1-14.22 O quarto discurso não é um regente calmo de um universo
de Jó: A "sabedoria" dos amigos bem ordenado, mas uma divindade ex-
e a justiça de Deus cêntrica; ele não pode ser compreendido
Esse discurso importante de Jó aparece e não pode ser manipulado. O que é mais
no final do primeiro ciclo de discursos, característico deste Deus é a sua inversão
depois que cada um dos amigos lhe diri- da ordem estável. Em outros hinos (como
giu a palavra. Há duas seções principais: o de Elifaz em 5.9-16), o propósito de tais
711 JÓ 14

inversões é oferecer salvação e corrigir a para uma discussão (22). É perigoso (14),
injustiça. Mas não há nenhum propósito suicida, de fato (15); mas Jó tem certeza de
moral ou benéfico nesses transtornos rea- que está com a razão (18).
lizados por Deus. 13.20-14.22 O que Deus tem contra
13 1-3 O que Jó deseja, acima de tudo, Jó? Há duas ideias centrais no questiona-
é argumentar com Deus; ele usa a lingua- mento que Jó faz a Deus. A primeira (13.19-
gem jurídica. Mas seu objetivo não é tanto 27) é uma exigência para que Deus revele o
vencer uma disputa contra Deus quanto que ele tem contra Jó; a segunda (13.28-
esclarecer um desacordo. Ele não propõe 14.22) é, bem paradoxalmente, que ele dei-
uma ação judicial na qual acusará Deus xe Jó sossegado para morrer em paz. Jó já
de injustiça por lhe reter a absolvição; em fizera esses apelos anteriormente.
vez disso, ele chama Deus a acusá-lo, de 19-27 Jó convoca Deus a uma discussão
modo que saiba o que Senhor tem contra judicial com o propósito de que o Senhor
ele (13.13). pronuncie o veredicto de "inocente" a seu
4-12 Mas Jó ainda tem algo a dizer a respeito (19). Jó apresenta duas condições
seus amigos. O modo como eles têm se para a imparcialidade (20): primeira, Deus
comportado, ele diz, ainda usando a lin- deve aliviar a sua mão de sobre ele; segun-
guagem jurídica, é um falso testemunho da, ele deve parar de espantá-lo com o seu
em nome de Deus. Embora J tenha muitas
ó terror (21). Só então é que Deus poderá
dúvidas acerca da justiça de Deus, ele não iniciar os procedimentos, ou, se ele pre-
duvida de que Deus punirá os amigos pela ferir, Jó o fará (22). Em linguagem jurídi-
parcialidade que eles mostram em relação ca, Jó pede a lista de acusações contra ele
a ele (13.10) e pela falta de objetividade. (23). Jó, é claro, não está admitindo crime
Seria melhor que eles o ouvissem (6), algum, mas se referindo ao que o "senhor
não tanto pelo que lhes dirá pessoalmente afirma serem meus pecados". Jó tem a im-
(7-12), mas pelo que dirá em sua discus- pressão de que Deus está fazendo tempes-
são com Deus (13.13-14.22). Mas an- tade em copo d'água (25), punindo-o por
tes de iniciar seriamente a discussão, Jó erros da infância (26) e, conforme ouvimos
quer informar que Deus não ficaria feliz anteriormente (e.g., 3.23), limitando e con-
ao descobrir que (9) os amigos recorre- finando-o (27).
ram a mentiras sobre pecado e castigo ao 14.1-22 Aqui, o foco muda de Jó (como
tentarem justificar a maneira de o Senhor em 13.20-28) para a humanidade em geral.
lidar com Jó. Qualquer teologia que não Jó, é claro, continua falando de si mesmo;
tenha espaço para a experiência de Jó no entanto, como anteriormente, projeta
- a respeito do sofrimento de um justo seus sentimentos e experiências sobre toda
- é mentirosa, e é inconcebível que se a humanidade (cf 3.20; 7.1-10). O tema
digam mentiras a respeito de Deus. Em desse capítulo é que os seres humanos são
uma série de perguntas retóricas (7-9,11), muito insignificantes para merecerem o
Jó expressa o seu espanto com a ideia de tipo de escrutínio divino que Jó está expe-
que alguém possa se valer de mentiras a rimentando. Uma vez que os humanos têm
serviço da verdade. vida curta, Deus bem que poderia ignorar
13-19 Finalmente, Jó pretende explicar os seus pecados; dificilmente eles conse-
aos amigos o significado de seu novo dis- guiriam alterar a ordem do universo (4).
curso aDeus(13.2o-l4.22). No capitulo 7, 7-12 O contraste entre a esperança de
assim como nos cp. 9 e 10, ele pede a Deus uma árvore e a esperança da humanidade
que deixe de prestar atenção nele. Mas por uma vida além da morte destaca a ideia
aqui ele envereda por um caminho mais do v. 5. A vida humana tem um fim determi-
arriscado e deliberadamente chama Deus nado e não pode ser estendida. Uma árvore
11III
JÓ 15 712

pode esperar uma nova vida (7); para os bondade de Deus e pouca fé na justiça de
seres humanos, não há esperança enquanto Deus, mas crê tão profundamente em sua
existirem os céus (12), ou seja, nunca, até inocência que está convencido de que mais
onde Jó saiba. Jó estremece ao pensar na cedo ou mais tarde será absolvido.
esperança da ressurreição: se tão-somente Toda essa linguagem de ações judiciais
o sheol não fosse um lugar de repouso final é, naturalmente, uma metáfora. Contudo,
de onde não há saída, e sim um lugar onde isso não significa que se trata apenas de
pudesse se esconder do escrutínio e da ira uma linguagem decorativa. É a linguagem
de Deus (13), um lugar de servidão que um do sentimento; do sentimento de estar em
dia tivesse fim (14)! Quem dera fosse um desarmonia com Deus. Após viver de ma-
lugar de onde Deus alegremente retirasse neira justa desde sempre, Jó observa sua
as pessoas, depois de parar de procurar vida ser esmagada, e ele tem de aprender
pecados que acaso tivessem cometido e uma linguagem nova e mais amarga para
de ter selado num saco a sua transgressão dar voz à discórdia em seu universo. A lin-
(16,17). Mas a esperança é em vão, diz Jó. guagem agora precisa ser de compulsão e
Ele pergunta: Morrendo o homem, porven- divisão, de disputa e frustração.
tura tornará a viver? (14). Não! Como o
monte que se esboroa e se desfaz, e a rocha 15. 1-35 O segundo discurso
que se remove do seu lugar, como as águas de Elifaz: "Cuidado com o
gastam as pedras, e as cheias arrebatam o destino dos ímpios"
pó da terra, assim destróis a esperança do Na primeira parte desse discurso (2-16),
homem (18,19). Os seres humanos não têm Elifaz se dirige diretamente a Jó; na segun-
esperança alguma, exceto serem, finalmen- da (17-35), ele fala mais indiretamente do
te, "subjugados" por Deus (20) e conduzi- destino dos ímpios. Nesta segunda seção,
dos, em solidão total, ao sheol, sem nem a intenção de Elifaz é inferir que Já não é
mesmo saberem o que está acontecendo na tal homem e, assim, não tem razão para te-
superfície, sem saberem se os seus filhos mer. Todo o discurso, portanto, é feito com
recebem honra (21). No seu isolamento, a intenção de incentivar Jó, e a posição de
sentem apenas as dores do seu próprio Elifaz é a mesma do seu primeiro discurso
corpo (22). A esperança do cristão pela (cp. 4-5).
ressurreição responde, a seu próprio modo, Do ponto de vista de Elifaz, Já tem
ao desejo aflitivo de JÓ. Embora Jó estives- duas culpas: uma intelectual e outra moral.
se disposto a aguardar uma eternidade pela O erro intelectual é não ver que mesmo o
vindicação, na sua história o que acontece ser humano mais perfeito está maculado
nesta vida é o que realmente importa. aos olhos de Deus (14-16). Jó se engana ao
Algo dramático acontece nesse dis- achar que é melhor que os outros (9) e ao
curso. Depois de tanto exigir ser liberto o solapar a teologia tradicional a favor de sua
mais breve possível de seus infortúnios, própria experiência (4). A culpa moral está
e de todas as suas afirmações de que não em não suportar o sofrimento com bravura
adianta discutir com Deus, Jó se pega fa- e paciência. Para começar, qualquer que
zendo uma coisa perigosa e impossível. Já tenha sido a falta que lhe causou o sofri-
agora formalmente obriga Deus a lhe dar mento, ela não é nada em comparação ao
um relatório dos crimes pelos quais está erro que ele está cometendo agora com seu
sendo punido. E essa demanda, uma vez comportamento. É um pecado contra si pró-
feita, não pode ser cancelada. Já não se di- prio (6) e contra Deus (13) falar de modo
rigiu ao fórum com a intenção de implorar tão unilateral e áspero acerca de Deus.
por sua vida nem por misericórdia, mas A intensa veemência do discurso de Jó é
para limpar o seu nome. Ele não tem fé na prova de que ele está errado (12,13); uma
713

J616 - : .

pessoa verdadeiramente sábia é calma em no temor da morte, e a segunda seção (27-


seu discurso. Elifaz não despreza a Jó como 35) tem que ver com o seu destino final,
pessoa, não consegue ver que Jó não é um que ele morrerá antes do tempo (31-33).
homem com quem se possa argumentar. Jó Desde o início, Elifaz tem afirmado que
é uma pessoa ferida e enraivecida; incenti- Jó não é um dos verdadeiramente ímpios
vá-lo à paciência é exigir que ele seja de- e, assim, essa descrição é exatamente
sonesto. Se Jó sofresse em silêncio, estaria o que não se aplica a ele. Jó não sofreu
aceitando o julgamento de Deus contra ele, tormento todos os dias (20), ele não está,
e ele só poderia fazer isso se abrisse mão como eles, concebendo malícia, iniqui-
de sua integridade. dade e enganos (35). Jó deve reconhecer
15.2-16 O discurso tolo e impio de então que não pertence à companhia dos
Jó. Jó não está se comportando como sábio ímpios (34) e cuidar para que, em sua hos-
com sua infinidade de ciência de vento (2; tilidade para com Deus, não se associe a
"ideias vãs", xvt). E, além disso, ao exigir eles (25). Nessa cena há, evidentemente,
vindicação da parte de Deus e ao falar do po- uma boa dose de fantasia em relação aos
der destrutivo de Deus como tem feito (tal- dois temas principais.
vez Elifaz esteja pensando em 12.13-25),
Jó está sendo irreligioso (diminuis a devo- 16.1-17.6 O quinto discurso de Jó:
ção; 4). É este erro (tua iniquidade, 5), e "Morrerei eu sem vindicação?"
não a verdadeira teologia, que determina o Até agora, este é o mais incoerente dos dis-
que Jó está dizendo. cursos de JÓ. Seus discursos prévios atin-
7-16 Elifaz diz novamente que Jó não giram o ápice nos cp. 12-14, e, a partir
está se comportando sabiamente, mas dei- de então, ele não tem realmente nada de
xando sua língua conduzi-lo ao pecado. novo a dizer. Neste discurso, são repetidos
Apesar de toda sua reivindicação de sa- vários temas com os quais já deparamos:
bedoria (e.g., 12.3; 13.1), ele não é sábio Jó critica os discursos dos amigos (16.2-6);
como o primeiro homem, Adão (v. refe- faz um monólogo de lamento por causa dos
rências ao primeiro homem sábio no santo ataques vindos de Deus (16.7-17); imagina
monte de Deus em Ez 28.12-14) nem tem sua possível vindicação (16.18-22); faz um
sido um ouvinte do conselho celestial de lamento acerca dos amigos (17.1-10); e la-
Deus (8) como os profetas que conheciam menta que, provavelmente, morrerá sem
os planos secretos do Senhor (Jr 23.18,22) ser vindicado (17.11-16). Ao contrário dos
e nem tem a sabedoria que os seus amigos cp. 12-14, o tema aqui é sempre o próprio
têm por serem mais velhos do que ele (10). Jó, não a humanidade em geral.
Não é vergonhoso ser um pouco imperfei- 16.2-6 O tema principal aqui é "pala-
to; nem mesmo os anjos (que são santos) vras" e sua ineficácia. Houve uma abertura
são perfeitos (15); mas por não ser abso- semelhante no cp. 12, mas a disposição de
lutamente perfeito, Jó deve esperar certa ânimo é agora menos agressiva, e o que
porção de sofrimento. 16 Elifaz não está vem à tona é principalmente o sentimento
insultando Jó pessoalmente quando fala do de desilusão com as palavras dos amigos.
homem, que é abominável e corrupto; ele 7-17 A disposição de ânimo se transfor-
está simplesmente generalizando, ainda ma de um mero sentimento de mágoa para
que extremamente, acerca da raça humana o de opressão, quando Jó reconta os atos
comparada à pureza de Deus. adversos do Senhor contra ele. Jó pensa
15.17-35 A vida miserável e o destino nas investidas de Deus como se fossem os
terrível dos ímpios. Nesse retrato da histó- ataques de vários tipos de oponentes: um
ria da vida do ímpio, a primeira seção (20- animal selvagem (9,10), um traidor (11),
26) diz respeito a sua ansiedade por viver um lutador (12), um arqueiro (12c,13a)
JÓ 17 714

e um guerreiro empunhando uma espada zombaria ao redor que ele está em depres-
(13b,14). É como uma rápida sucessão de são. A zombaria é, mais precisamente, a
fotos num filme, uma cena fundindo-se acusação de que ele merece o que está so-
com a seguinte. frendo. 3 Uma vez que ninguém garantirá
18-22 É claro que Deus não respondeu sua inocência, Jó tem de pedir a Deus que
à exigência de Já de apresentar as acusa- aceite sua própria pessoa como garantia
ções contra ele (13.23). Jó ainda continua (penhor, fiador). 5 Essa frase obscura pa-
esperando, mas, entrementes, procura uma rece retratar Deus como um fanfarrão que
segunda linha de argumento. Ele foi injus- convida seus amigos para um banquete
tamente atacado por Deus e, provavelmen- enquanto seus filhos (Já neste caso) estão
te, morrerá devido ao ataque. Assim, apela morrendo de fome.
à terra para que vingue seu sangue quando 8-10 O ponto de vista aqui é dos ami-
ele morrer-e contra Deus! (18). O brado: gos. Homens íntegros que são, eles estão
Ó terra, não cubras o meu sangue é igual chocados com a presente condição de Já, e
ao de Abel, que foi assassinado injustamen- passam a denunciar o ímpio (Já).
te (Gn 4.10). Claro que a terra só poderá 11-16 Já entra em desespero de novo,
responder depois que Jó estiver morto; po- mas não um desespero que lhe rouba a
rém, mesmo agora, enquanto está vivo, Já fé na própria inocência; é um desespero
tem uma testemunha, um advogado e um de quem não consegue nunca provar sua
intercessor nos céus (19,20). Dificilmente inocência. O que ele deve esperar daqui
isso se refere a Deus, pois Já crê que Deus para frente? Ele perdeu sua família, e tudo
nada mais é do que um inimigo (7-14). O o que pode aguardar é unir-se à família
que permanece nos céus a favor de Já é o de vermes embaixo da terra (14). Se essa
seu protesto de inocência, junto à demanda é a sua expectativa, dificilmente pode
para que Deus lhe explique as razões de ter ser chamada de "esperança", não é mes-
investido contra ele (13.18,19,22,23). Ain- mo? Ele não está deprimido porque sofre
da que não espere obter respostas em vida, de uma enfermidade fatal, mas porque
a verdade sobre sua inocência foi registra- não existe nenhum sinal da vindicação
da no tribunal celeste. O assassínio realiza- que ele demanda.
do por Deus, depois que tiver acontecido,
será a evidência final de que ele foi vítima 18.1-21 O segundo discurso
de uma falha da justiça. de Bildade: Mais sobre o
17.1-16 Já tem certeza de que está cor- destino terrível dos ímpios
reto, mas não acha que viverá o suficiente Depois da abertura dirigida a Já, este dis-
para ver sua inocência vindicada. Como curso só apresenta uma descrição do destino
em seus discursos anteriores, ele passa, dos ímpios. Isso poderia ser entendido como
finalmente, a considerar a morte, pois é a uma predição de Bildade sobre o futuro de
única certeza em seu futuro, e ele sente que Já, contudo é mais provável que devamos
ela está cada vez mais próxima, Esse capí- entender o segundo discurso de Bildade à
tulo todo gira em tomo do contraste entre luz do seu primeiro, e vê-lo descrevendo
"esperança" e "morte". Entretanto, mes- o tipo de pessoa que Já não é. Ele conti-
cladas a estas expressões de desesperança, nua a insistir no ensino já conhecido, mas
há algumas críticas incisivas em relação sua descrição é tão excessiva, tão preto e
aos seus amigos. branco, que só podemos achar o ensino e a
1 Já não está literalmente à porta da doutrina pouco convincentes. Bildade quer
morte (cf 16.22), mas psicologicamente que o mundo seja previsível e sistemático.
ele já está em suas garras; parece que sua Ele pode ver em Já, que está batalhando en-
sepultura já foi cavada. 2 É por causa da tre doutrina e experiência, apenas alguém
111
715 JÓ 19 fIfI
fIfI

que está se destruindo. Bildade acha a de- pecado, não teria sido contra eles; portanto,
manda de Jó por uma nova teologia pro- é injusto da parte deles atacá-lo (4). Se eles
fundamente inquietante: remover-se-ão as pretendem tratá-lo como a um inimigo,
rochas de seu lugar? (4). argumentando que seu opróbrio ("humi-
Elifaz, em sua descrição do destino lhação", NVI) devido ao sofrimento é prova
dos ímpios (15.20-35), enfatizara como de seu pecado (5), devem saber que não
o ímpio experimenta terror e insegurança é ele quem está errado, mas Deus que o
durante toda a sua vida. Aqui Bildade se tem oprimido (6).
concentra nos dias finais do ímpio, descre- 19.7-20 "O erro que Deus tem come-
vendo como ele cai na armadilha da morte tido contra mim". 7-12 Jó descreve o erro
(8-10), é arrancado de sua habitação e tra- de Deus contra ele usando uma variedade
zido perante o senhor do submundo (14). de imagens de assalto: o habitante da ci-
13,14 Na mitologia antiga, a morte era dade que foi roubado, mas não encontra
representada como um rei que governava ninguém para socorrê-lo, ainda que grite
o submundo. O primogênito da morte será muito (7); o viajante que encontra o seu
um de sua prole, como uma doença, e os caminho bloqueado e é engolfado pela
terrores são seus agentes, que arrastam as noite (8); o príncipe que é humilhado por
pessoas para o seu reino. um governador estrangeiro (9); a planta
Em toda a descrição de Bildade sobre que é retirada ou arrancada da terra (10); a
o perverso há vários paralelos com a expe- pessoa que descobre que o amigo tornou-
riência de Jó (e.g., 13,15,19,20). Embora se inimigo (11) e o rei ou cidade sitiados
esses paralelos sejam de mau gosto, o seu pelos inimigos (12).
propósito não é frisar que Jó é pecador, mas 13-20 Nos v. 7-12, não havia nada que
antes adverti-lo acerca do que acontecerá não fosse imagem da violência física; aqui
se ele não mudar o seu comportamento ninguém levanta a mão ou a voz. Esta é
(como Bildade lhe aconselhou em 8.5-7). a verdade literal do que Jó está experi-
Jó pode decidir se esta descrição sobre o mentando; os v. 7-12 expressam qual é a
destino dos ímpios será ou não verdadeira sensação dessa verdade literal. A visão de
em relação a si mesmo. Jó vai dos parentes e conhecidos (13,14),
passa pelos servos de sua casa (15,16),
19. 1-29 O sexto discurso de Já, por sua esposa e irmãos (17), e faz a volta
no qual ele reage com raiva novamente para as crianças da vizinhança
Este discurso se dirige aos amigos no iní- (18) e todos aqueles que o conhecem (19).
cio, no meio e no fim (2-6,21,22,28,29). Não importa para onde olha, Jó se encon-
Entre estas falas há uma queixa (7-20) e tra isolado e alienado. E é Deus quem tem
uma expressão de anelo, conhecimento e causado isso, não diretamente, mas por
desejo (23-27). fazê-lo sofrer. Pois o sofrimento significa
19.1-6 "O que vocês precisam saber, que, não obstante o que todos os conheci-
meus amigos, meu inimigos". Jó fala aqui dos pensem e achem a seu respeito, Jó tem
menos com tristeza do que com raiva. Ele sido um pecador terrível. É perigoso asso-
não diz que, na verdade, se sente "afligido" ciar-se com uma pessoa tão ímpia. O re-
pelos amigos (2), mas que está começando sultado de todas as investidas contra ele é
a vê-los como inimigos, que tentam "que- que os meus ossos se apegam à minha pele
brantá-lo" com seus argumentos. Eles têm e à minha carne (em vez de "não passo de
procurado humilhá-lo (em vez de "vocês pele e ossos", como na NVI, 20). Normal-
já me repreenderam", como traduz a NVI), mente os ossos são a estrutura do corpo
mas sem sucesso (3). Ele não confessa ne- humano, e a carne e a pele "se penduram"
nhum pecado, mas protesta que, se tivesse neles; mas a debilitação emocional de Jó é
716

tamanha que ele está a ponto de entrar em ele se levantará no fim para falar comigo,
colapso, como se os ossos não tivessem mesmo depois de minha pele ter sido extir-
mais força nenhuma. pada de mim. Porém, contemplar a Deus
19.21,22 "Tenham piedade de mim, enquanto estiver em minha carne - esse é
meus amigos". Parece estranho que Jó, o meu desejo, vê-lo eu mesmo, com meus
depois de ter ofendido os amigos, clame próprios olhos, não como um estranho".
a eles por piedade (e.g., 6.15-17; 12.2,3; O "defensor" de Jó dificilmente é Deus, o
13.2). Faz mais sentido se nós percebermos qual tem sido apenas seu inimigo; deve ser
que ele não está pedindo solidariedade em sua própria declaração de inocência que
geral, mas simplesmente que eles parem de testifica por ele nos céus (16.17). Como em
persegui-lo com seus discursos. um tribunal terreno, onde a última pessoa
19.23-27 O anelo, o conhecimento e a falar é o vencedor na disputa, ele crê que
o desejo de Jó. A ênfase principal nessas o seu próprio juramento terá a palavra final
importantes palavras de Jó está em seu e decisiva. Mas isso, é claro, só pode acon-
desejo de que, enquanto estiver vivo (em tecer depois de ser revestido este meu cor-
minha carne, 26), consiga ver Deus face po da minha pele (26), ou seja, após a sua
a face, como seu oponente jurídico em al- morte. Isso é o que J espera. Entretanto,
ó

gum tribunal, de modo que seu pedido de o que ele deseja é ver o seu nome limpo
vindicação do seu bom nome seja ouvido. ainda em vida.
Jó não crê que Deus aceitará o seu ape- 19.28,29 "Por que vocês estão teme-
lo de ir ao tribunal; então seu desejo é que rosos, meus amigos?". Há um tom de ir-
a sua reivindicação de inocência seja regis- ritação aqui, semelhante à sua impaciência
trada de forma duradoura, que permaneça nos v. 25-27. Jó não se aconchegou num
após sua morte, de modo a ser provada al- porto tranquilo de confiança em Deus; ao
gum dia. No entanto, é um desejo impossí- contrário, tem proclamado vigorosamen-
vel que suas palavras e suas reivindicações te, mais uma vez, a sua fé na retidão de
legais sejam esculpidas na rocha com pena sua causa. Não é surpreendente que fale de
de ferro (24), pois o único relato perma- modo tão severo contra aqueles que duvi-
nente de suas reivindicações é o juramento dam dele. Os amigos continuam a perse-
de inocência que ele tem proferido aos ou- gui-lo, o que deve significar acusá-lo de
vidos dos céus (cf 16.19,20). delito, afirmando que a causa deste mal
O que Jó sabe é que Deus é seu ini- se acha nele, isto é, ele é o autor de seus
migo (cf 6.4; 10.8-14; 13.24; 16.7-14; próprios infortúnios. Isso tudo é mentira,
19.7-12), que jamais verá o bem de novo assim os amigos devem temer a espada. Jó
(7.7), que em breve estará morto, (7.21; não cometera nada digno de punição, mas
10.20; 16.22), que será assassinado por os seus amigos cometeram! Eles o têm
Deus (12.15; 16.18) e assim por diante. acusado injustamente, e isso é crime; eles
Mas o que ele deseja é entrar em discussão correm o risco de descobrir por si mesmos
com Deus (13.3,22) na esperança de obter que há umjuízo.
vindicação antes de sua morte. É por isso
que o seu coração desfalece dentro dele 20.1-29 O segundo discurso de
(27). Ele jamais creu que seria vindicado Zofar: "Você deve se arrepender
no final; porém, agora ele diz eu sei (25), ou será destruído"
embora a vindicação venha somente após De forma semelhante ao segundo discurso
a morte. de Bildade, o segundo discurso de Zofar
25-27 Provavelmente, esses versícu- destaca principalmente o tema da conde-
los-chave deveriam ser traduzidos assim: nação dos ímpios (4-28). Mas diferente-
"Mas eu sei que o meu defensor vive e que mente de Elifaz (para quem o destino dos
717 JÓ21(
ímpios é um exemplo do que Jó não é) ou o estomago e é vomitado (12-15). Outro
de Bildade (para quem esse destino é um exemplo é o do alimento que se transforma
exemplo do que Jó pode vir a ser), para em veneno mortal (16-19). Num terceira
Zofar, o destino do ímpio é um retrato do exemplo, o malfeitor é tão ganancioso que
que Jó não poderá evitar, a não ser que se consome todo alimento disponível e depois
transforme radicalmente. morre de fome (20-22).
20.1-3 Uma resposta às declarações 20.24-29 "A condenação final dos ím-
de Jó. Zofar afirma estar perturbado por pios é inescapável". Aqui várias imagens
causa de Jó; e ainda que sua linguagem estão interconectadas, como em um pesa-
seja apenas convencional, sua alegação pa- delo, para ilustrar como é impossível ao
rece verdadeira. Pois se Jó está certo, tudo ímpio escapar da condenação final. Há um
o que Zofar defende está errado. retrato militar (se escapar de uma arma, en-
20.4-11 "A destruição que o perverso frentará outra ainda mais fatal; 24,25b), e
enfrenta é total e completa!". Jó argu- um jurídico (ele é sentenciado à morte pelo
mentou que os amigos estavam tentando testemunho combinado dos céus e da ter-
humilhá-lo (19.3), e agora Zofar declara- ra; 27). Ele é consumido pela ira de Deus
se humilhado ou "envergonhado" (3) pelo (26); e uma inundação o arrasta, junto com
que chama de a repreensão de Jó. Ele res- sua família (28).
ponde com um apelo ao entendimento, mas Zofar ainda tem Jó em mente no final
de fato seu argumento é somente um apelo de seu discurso ou se deixou levar pela
à tradição, como mostram suas palavras, própria retórica? Ele certamente tem uma
logo a seguir (4). queda para o dramático. Mas será que ele
A imagem fundamental aqui é de "au- acha que está aterrorizando Jó com todas
sência" ou "desaparecimento" (especial- estas imagens? Jó tem vivido um pesadelo
mente nos v. 7-9). O homem perverso dei- tão horripilante quanto as cenas descritas
xa de existir, como o combustível para o por Zofar, e não precisa ser relembrado
fogo (7a), como um sonho que nunca pode que este é o destino convencional que os
ser realizado (8), ou como alguém que de- justos devem esperar das mãos dos ímpios.
saparece da vista da família e dos amigos Também não precisa ser avisado - embo-
(7b,9). Não importa o quão proeminente ra Zofar precise - que o retrato pintado
ou visível o perverso tenha sido, ainda que não é muito condizente com a vida real.
tenha sido tão alto como os céus (6). Os
perversos nesse capítulo são os que pra- 21.1-34 O sétimo discurso
ticam o mal aos outros da comunidade, e de Jó: "O perverso prospera
não especialmente irreligiosos ou imorais e o justo sofre"
em si mesmos. Todos os três discursos dos amigos no se-
20.12-23 "A má ação não tem bene- gundo ciclo foram concentrados no tema
fícios eternos". A imagem fundamental do destino dos ímpios, e Zofar, em seu
aqui é a de "comer". Boca, língua, palato, último discurso, até mesmo alegou que o
estômago, vísceras e ventre são citados; ímpio usufrui do seu pecado por bem pou-
fala-se de saborear, beber, vomitar, sugar co tempo. "Não", diz Jó, "os perversos
e comer, e também de alimento, doçura, passam os seus dias em prosperidade, e
óleo, mel e creme. Mas nenhum dos obje- em paz descem eles à sepultura" (13). A
tos que o malfeitor toma para si mesmo lhe posição de Jó é igualmente extrema, mas
traz beneficio permanente. O alimento que parece mais próxima da vida real.
ele come não lhe propicia nutrição, mas 21.2-6 "Ouçam-me, meus amigos".
sim a morte. Um exemplo é o do alimento Jó se deve fazer ouvir nesse assunto, pois
que é agradável ao paladar, mas que azeda todos os amigos se juntaram contra ele.
li
: - JÓ 21 718
II1II

Ser ouvido pelo menos uma vez traz mais amargura [da alma] do justo (25). Ao con-
consolação a Jó do que uma porção de trário, Jó parece estar dizendo que, assim
discursos (2). Sem dúvida, eles zombarão como na morte as diferenças morais entre
(3), pois sua queixa não é contra o homem, os seres humanos não explicam o destino
mas contra Deus, e ele não espera nenhu- comum a eles, tais diferenças também não
ma solidariedade do justo, quando esse for são importantes na vida.
o caso. Se eles realmente ouvirem o que 21.27-34 A experiência humana pro-
ele tem a dizer (olhai para mim; 5), fica- va que Jó está correto. Jó sabe o que seus
rão tão chocados com o que Jó lhes dirá amigos estavam pensando (27) enquanto
sobre a maneira de o universo ser dirigido descreviam o destino dos ímpios: os per-
que porão a mão sobre a boca num gesto versos sofrem - Jó está sofrendo - en-
de silêncio atônito. É horrível demais para tão, Jó faz parte dos perversos. Mas a cren-
Jó aceitar a verdade de que no mundo de ça dos amigos prova-se falsa por meio da
Deus o perverso tem possibilidade de pros- experiência humana comum. Jó disse que
perar (6). se você perguntar a qualquer viajante, ou-
21.7-16 "Por que os ímpios prospe- virá que os perversos são poupados no dia
ram?". Jó contradiz tudo que os amigos da calamidade (30). Ninguém lhe lançará
disseram. Os perversos envelhecem (7), em rosto (31), ninguém lhe retribuirá os
veem os seus filhos estabelecidos (8), seus feitos. Na morte, assim como na vida, ele é
animais não sofrem acidente nenhum (10), honrado por milhares, e sua tumba ainda é
e eles até blasfemam contra Deus (14,15) guardada contra os ladrões de sepultura.
e sobrevivem. Já cruelmente arremeda o
retrato que Elifaz pinta da prosperidade 22:1-30 O terceiro discurso de
do justo (5.17-27). Em três versículos Jó Elifaz: A grande perversidade de Já
contradiz Zofar (7; cf 20.11), Bildade (8; No primeiro ciclo de discursos, os amigos
cf 18.19) e Elifaz (9; cf 5.24). Jó não quer tinham os seus pontos de vista individuais;
o tipo de prosperidade dos perversos (16), no segundo ciclo, todos se concentraram
e em cada frase que fala sobre o assunto, no destino dos ímpios; agora no terceiro
ele pergunta: "Por que se permite que isso ciclo (22.1-31.40), é mais difícil ver al-
aconteça?" (7). guma lógica nos discursos. Elifaz contra-
21.17-21 "Com que frequência o diz evidentemente sua posição original,
ímpio sofre?". Raramente os perversos Bildade apresenta apenas o prefácio a um
sofrem', diz Jó (7), contradizendo Zofar discurso (25.1-6) e Zofar não faz discurso
(20.5). Ele imagina os amigos responden- nenhum. Talvez algo do texto original te-
do: "Ora, se os perversos não sofrem, os nha se perdido, mas do jeito que está, pa-
filhos deles sofrem". Jó, porém, responde: rece que os amigos não têm nada de muito
"Se o princípio da retribuição deve vigo- novo a acrescentar.
rar, que seja aplicado a quem merece!". 22.2-11 "É grande a sua perversida-
21.22-26 "Não faz nenhuma diferen- de, não é?". Em relação a um aspecto, esta
ça ser bom ou mau". Talvez o v. 22 seja mensagem de Elifaz é igual à do seu pri-
(como o v. 19) outra citação não pronun- meiro discurso (cp. 4-5): ele crê que Jó
ciada por seus amigos, que estão inferindo será libertado graças à pureza de [suas]
que Jó está criticando a sabedoria e a justi- mãos (30). Seu conselho é para que ele se
ça de Deus. Jó replica que, de fato, parece reconcilie com Deus (21). Mas em relação
não haver diferença entre uma pessoa boa e a outro assunto, Elifaz parece discordar in-
outra má; o mesmo destino sobrevém a to- tensamente de sua última posição: eviden-
dos. Ele não parece estar contrastando aqui temente acusa Jó de maldade oculta (5),
a prosperidade dos ímpios (23,24) com a principalmente de injustiça social (8,9).
719 JÓ24

Essas são as palavras mais específicas, fazia no passado (4.3,4). Diferentemente


mais ásperas e mais injustas faladas contra dos discursos recentes dos amigos, este
Jó em todo o livro, e é estranho que, dentre discurso termina com uma nota positiva
todos os amigos, tenham saído dos lábios - à qual Jó responde com desespero ainda
de Elifaz. Elifaz não pode ter falado os cp. mais profundo.
4---5, se ele acreditava que Jó tinha mesmo
sem causa [tomado] penhores e [despoja- 23.1-24.25 O oitavo discurso
do] aos seminus [...] das suas roupas (6), de Jó: "Deus deveria estar
retido água e alimento do cansado e famin- sempre disponível"
to (7), rejeitado os apelos das viúvas e dos Há dois temas principais nesse discurso. O
órfãos (9). O que Elifaz está pretendendo primeiro é o apelo constante de Já a Deus
dizer é que, uma vez que Jó está sofrendo por vindicação, junto com o seu sentimen-
por alguma causa, e uma vez que a causa to renovado de quão inútil é tentar obter
não pode ser encontrada em algum erro co- acesso a Deus (cp. 23). O segundo tema é
metido por Jó, seu pecado deve-se ao fato a condição do pobre inocente comparada à
de ele ter deixado de fazer algo. Não que prosperidade do rico; uma situação sobre a
Jó tenha despojado o pobre de suas vestes, qual Deus parece não fazer nada (cp. 24).
mas talvez ele tenha deixado de oferecer Ponderando-se tudo, embora Já acredite
vestimentas a um necessitado, e assim por que se obtivesse acesso a Deus poderia ser
diante. Não é pela retidão de Jó (da qual vindicado, ele perde a esperança de receber
Elifaz não duvida) que Deus o repreende tal vindicação, já que Deus claramente não
(4), mas porque ele deixou de fazer o que agenda horas de julgamento regulares em
deveria ser feito. que o mal é corrigido e a justiça é feita.
22.12-20 "Deus pode ver o seu pecado 23.2-17 "Ah, se eu soubesse onde
oculto". Foi Zofar quem primeiro acusou encontrá-lo". Já acredita que se tão-so-
Jó de pecado oculto (11.5,6), porém agora mente tivesse acesso a Deus, o problema
encontramos Elifaz advertindo Já de que de sua vindicação estaria resolvido. Deus
Deus deve ter conhecimento dos pecados não seria violento para com ele, mas ou-
de omissão que Elifaz acabou de mencio- viria os seus protestos de inocência (6) e
nar. Já não pode esperar fugir ao escrutínio o vindicaria (7). Mas Deus é inacessível:
penetrante de Deus (13). Os homens mal- ele não está nem à frente e nem atrás, nem
dosos não conseguiram escapar do juízo de à esquerda nem à direita (8,9). E mesmo
Deus, embora, temporariamente, suas ca- assim, se Já não pode encontrar a Deus, ele
sas estivessem cheias de bens (18), eles fo- sabe que Deus pode encontrá-lo (ele sabe o
ram arrebatados antes do tempo (16), para meu caminho; 10) e que se Deus escolheu
o prazer do justo (19,20). Seus pecados prová-lo, ele sairá como o ouro, declarado
foram descobertos por Deus, assim como inocente (10,11). Mas Deus não está agin-
também os de Já. do de forma justa nem legal; ele faz o que
22.21-30 "Como você pode ser li- ele deseja (13), e é somente para o sofri-
bertado". Elifaz fala outra vez como nos mento de Já. Ele está lutando no escuro
cp. 4-5. Ele está praticamente do lado contra um oponente invencível e inacessí-
de Já e esperançoso que Já se reconcilie vel, mas continuará lutando (17).
com Deus. Apropriando-se de um tema do 24.1-25 "Por que Deus não marca
discurso de Bildade (cf 8.5,6), Elifaz con- tempos de julgamento?". Já percebe
clama Já a se converter ao Todo-Poderoso que ele não é a única pessoa atormentada
(23), orar e pagar seus votos (27). Então, no mundo. Ao olhar além de si mesmo
tudo o que Já fizer prosperará (28), e ele e ver as pessoas em geral, tanto inocen-
ainda propiciará bênção aos outros, como tes como culpadas, ele pergunta por que
JÓ25 720

Deus não estabelece sessões regulares de sem a abertura costumeira e tem apenas
inquérito (tempos de julgamento; 1), em cinco versículos. Não há nenhum discurso
que as injustiças que dominam a terra se- de Zofar, e há três discursos seguidos de Jó
riam resolvidas. (cp. 26; 27-28; 29) sem palavra alguma
Primeiro, por que se permite que a dos amigos. Aqui, algumas passagens dos
injustiça do sofrimento do pobre inocen- discursos de Já não parecem dele de jeito
te seja tão prolongada? Os pobres têm as algum. Talvez, originariamente, o discur-
divisas de suas terras removidas (2, cf so de Bildade fosse constituído de 25.2-6
Dt 19.14) e seus rebanhos roubados (2b,3); e 26.5-14. Do jeito que está, o discurso de
têm de se esconder (4); só podem colher Bildade assemelha-se a alguns conceitos
os restos da lavoura (6); passam frio por de Elifaz, especialmente a ideia de que,
falta de cobertores (7,8) e trabalham por em comparação a Deus, não há nada no
um salário de fome (11). É um quadro cho- mundo que seja completamente puro (4-6;
cante, mas parece que Deus não se deixa cf 4.17-19). O abismo que separa os seres
comover, uma vez que ignora os brados do humanos de Deus é enfatizado pelas pala-
pobre (12c). vras iniciais de Bildade acerca do poder
Segundo, por que se permite que a in- de Deus, cujos exércitos são inumeráveis
justiça do malfeitor bem-sucedido continue (2,3). O mesmo tema do governo onipoten-
(13-17)? Assassinos e adúlteros que amam te de Deus continua em 26.5-14, se é que
as trevas e não a luz continuam vivendo, estes versículos são de fato de Bildade.
embora seus amigos sejam os terrores da
noite (17) e deveriam, por justiça, estar com 26.1-14 O nono discurso de Jó:
eles no mundo das trevas. Nesses questio- "0 conselho de vocês é inútil"
namentos, Jó não está pensando apenas em Parece que no cp. 26 temos apenas o frag-
si mesmo, mas em como o mundo, de ma- mento de abertura de um discurso de Já,
neira geral, é governado por Deus. um sarcasmo dirigido a Bildade afirman-
18-25 Alguns aspectos dessa seção, por do que ele não está auxiliando em nada.
serem tão diferentes do argumento de Já, A resposta de Já é muito mais apropriada
levam-nos a crer que foram ditas por seus se o discurso anterior de Bildade incluir
amigos. São os amigos que afirmam que 26.5-14, ressaltando o poder de Deus. Já
os culpados são levados rapidamente na pretenderia então dizer que é muito bom
superficie das águas (18), que a sepultura falar sobre a majestade de Deus, "mas
em breve os desfará (19), que logo serão qual é a vantagem disso para alguém que,
esquecidos (20), que por mais importantes como eu, está sem força [2]?". "E como
que pareçam, serão cortados brevemente o louvor de vocês à sabedoria de Deus
como pontas de espigas (24). Talvez esses [7,12] socorreria, de algum modo, alguém
versículos sejam o final perdido do discur- como eu que, supostamente, não tem sa-
so de Bildade (cp. 25), ou talvez Já esteja bedoria nenhuma [3]?". Talvez o discurso
aqui citando seus amigos (cf a RSV, que de Jó continue no cp. 27.
acrescenta: "Vocês dizem" no início do v. 5-14 Esses versículos, na verdade, tal-
18 e considera os v. 18-25 como as pala- vez façam parte do terceiro discurso de
vras dos amigos). Bildade. Eles meditam na sabedoria e no
poder de Deus. Foi Deus quem criou o uni-
25.1-6 O terceiro discurso de verso e fez com que a terra ficasse suspen-
Bildade: "Como pode um homem sa no nada (7). Vários aspectos da criação
ser justo perante Deus?" são mencionados, muitos deles não se en-
A essa altura, parece que algo está errado contram em Gênesis, tal como as colunas
com o texto. O discurso de Bildade inicia do céu (11) e o desenho da superficie das
721 JÓ28

águas em um círculo (10). Há também re- pessoa o que ele aprendeu com a expe-
ferências a outras histórias da criação, nas riência. Contudo, os próprios amigos já
quais é descrita como uma vitória de Deus deveriam ter aprendido quando ouviram
sobre os monstros do abismo (adversário, tudo o que tinha para ensiná-los (12). Con-
[12], em heb.: "Raabe", 12; o dragão ve- siderando o que eles ouviram até agora,
loz [13], seria uma referência a Leviatã). causa surpresa o fato de seus discursos te-
O poder criativo de Deus se estende até rem sido vãos (12).
hoje, é claro. Ele prende as águas em den- 27.13-23 O destino do homem per-
sas nuvens (8), os reservatórios de água do verso. Após a autodefesa veemente de Jó,
céu, e "cobre a face da lua cheia" (9, NVI; esta parte talvez seja um tanto enfadonha.
Encobre aface do seu trono, ARA). O ponto Ela contém apenas as ideias tradicionais
principal, contudo, é que essas provas da que vimos antes sobre o destino dos ím-
grandiosidade de Deus que são visíveis e pios. Este fato sugere que o discurso não
conhecidas dos homens não passam de as é de Jó, mas possivelmente de Zofar. O
orlas dos seus caminhos, e representam destino do homem perverso é aqui des-
apenas um leve sussurro do trovão do seu crito como o que acontece à sua família,
poder (14). Os seres humanos não têm es- sua riqueza e sua própria pessoa. Seus fi-
perança de compreender o Deus verdadei- lhos estão destinados à morte pela espada
ro, mas conseguem um vislumbre dele. ou praga (14,15), sua riqueza é deixada a
pessoas mais justas (16-19), enquanto ele
27.1-28.28 O décimo discurso é carregado como por uma inundação,
de Jó: A sabedoria de Deus uma tempestade ou pelo devastador ven-
Novamente estamos diante do problema de to oriental (20-23). Naturalmente, grande
quem está realmente falando nesses capí- parte do destino dos ímpios já aconteceu
tulos. Não há dúvida de que em 27.2-12 é o a Jó. Isso se encaixa na atitude de Zofar
próprio Jó quem fala, mas talvez o restante em todo o livro: "Sabe, portanto, que Deus
dos cp. 27 e 28 não sejam provenientes de permite seja esquecida parte da tua iniqui-
seus lábios. Certamente ele não está repe- dade" (11.6).
tindo as mesmas ideias antigas sobre o des- 28.1-28 "Onde a sabedoria pode ser
tino dos ímpios que os seus amigos já pro- encontrada?". O tema deste poema ma-
feriram (27.13-23). Talvez 27.13-28.29 jestoso é que a "sabedoria" é inacessível
fosse originariamente o terceiro discurso aos seres humanos. Não se trata do tipo de
de Zofar, pois os temas aqui encontrados sabedoria prática ensinada em Provérbios,
- o destino dos impios (27.13-23), a sabe- mas do pleno entendimento do mundo e da
doria impenetrável de Deus (28.1-27) e a ordem que ele segue. Este uso da "sabedo-
obrigação dos homens de praticar a justiça ria" fazia sentido para o autor de Eclesias-
e evitar o mal (28.28) - foram previamen- tes, que enfatiza que os homens "não po-
te abordados por Zofar em 11.7-20. dem descobrir as obras que Deus fez desde
27.2-12 "Eu nunca abandonarei a o princípio até ao fim" (Ec 3.11; cf 8.17).
minha integridade". Deus negou justiça a Vindo de Jó, o poema parece estranho, por-
Jó (2), e embora seus amigos continuassem que é somente após Deus lhe ter falado du-
a acusá-lo de estar no erro (5), ele continua rante um longo tempo (cp. 38---41) que ele
afirmando que é justo (6). Qualquer um passa a aceitar suas ideias (cf 42.3). Esta
que atacar a inocência de Jó ficará debai- é mais uma razão para concluirmos que tal
xo de sua maldição e sofrerá o destino dos poema era, originariamente, parte do dis-
ímpios (7-10). Jó agora sabe tanto acerca curso de Zofar.
dos "caminhos ocultos do Todo-Podero- Há um abismo entre a sabedoria divina
so" (11, NVI) que pode ensinar a qualquer e a humana, mas não precisamos menos-
JÓ 29 722

prezar a sabedoria humana para exaltar- seres humanos, entretanto, é outro tipo de
mos a sabedoria de Deus. O poema come- sabedoria, que é mais manejável e prática.
ça com um hino de louvor à engenhosidade É uma sabedoria que consiste em ação: é
do ser humano (1-11) e só então afirma que o temor do SENHOR, ou seja, a verdadeira
mesmo assim a verdadeira sabedoria está religião, e apartar-se do mal (28) é o que
fora do seu alcance e é conhecida somente constitui sabedoria para os seres humanos.
por Deus (12-27). Os seres humanos não Admitindo que este capítulo é a palavra fi-
recebem "sabedoria", mas o conhecimento nal de Zofar a Jó, seu objetivo é negar a
da lei de Deus: para os seres humanos, sa- alegação que Jó fez de entender "os cami-
bedoria é viver no temor do Senhor (28). nhos do Todo-poderoso" (27.11, NCI) e re-
1-11 Apenas um exemplo da sabedo- comendar-lhe a não buscar sabedoria, mas
ria humana é destacado: a habilidade dos buscar retidão.
homens para extrair metais abaixo da su-
perficie da terra. Quatro metais são citados 29.1-31.40 O décimo primeiro
(1,2). Lâmpadas são usadas no subsolo (3). discurso de Jó, no qual ele reflete
O trabalho do mineiro é perigoso e isolado: sobre suas calamidades
dependurados, oscilam de um lado para O veemente discurso final de Jó tem três
outro (4) enquanto descem para escavar. divisões. Na primeira, ele avalia, de modo
Há um paradoxo na mineração: na superfi- nostálgico, a vida feliz que possuía antes
cie, a agricultura segue pacífica, enquanto de a mão de Deus ter pesado sobre ele (29).
embaixo pode haver um enorme derrubada Na segunda, Jó descreve, de modo paté-
de obstáculos para se conseguir o metal tico, seu atual isolamento e degradação
(5,9). Através de sua sabedoria, os homens (cp. 30). Na terceira, ele profere, de modo
criaram no subsolo caminhos desconheci- desafiador, uma série de maldições contra
dos das aves e feras (7,8), transformando- si mesmo, que atinge o ápice com um cla-
se em mestres da terra (11). mor para ser ouvido e vindicado (cp. 31).
12-28 Obviamente a "sabedoria" que A presença dos amigos é ignorada comple-
não pode ser encontrada mediante a bus- tamente, e nenhuma palavra é dirigida ao
ca é muito diferente da sabedoria humana Senhor Deus. Jó fala apenas de si mesmo,
tecnológica. O poeta não nos conta ime- e é sua concentração nesse tema que toma
diatamente o que ele está pretendendo esta parte uma das mais impressionantes e
dizer, entretanto, desenvolve um clima comoventes do livro.
de suspense que, aos poucos, mostra a 29.2-25 "Quem me dera ser como fui
impossibilidade de se obter essa sabedo- nos meses passados!". Esse olhar nostál-
ria. O seu lugar é desconhecido (12), e gico ao passado oferece alguns detalhes
assim também o caminho para se chegar sobre a vida de Jó que não podemos ver no
a ela (13); ela não pode ser avaliada em prólogo. Revela também o clima da vida
ouro, prata ou pedras preciosas (15-19). que deixou de existir; uma vida de relacio-
O próprio mundo não sabe onde ela pode namentos calorosos e dignos. Dias em que
ser encontrada (14). Até mesmo as forças Deus cuidava de Jó (2), quando ele estava
sobrenaturais do abismo (o submundo) e em seu vigor (4), quando seus rebanhos
da morte conhecem apenas suafama (22). eram tão abundantes que os seus pés eram
Mas Deus sabe tudo acerca dela (23), pois lavados em leite e, suas oliveiras eram tão
é a sua própria sabedoria, que ele usou ao frutíferas que as rochas faziam correr ri-
planejar a criação (24-27). Esse conheci- beiros de azeite (6). Naqueles dias, ele
mento sobrenatural do universo e seu pro- era respeitado como um líder, ou xeique,
pósito e das leis que o governam é inaces- de sua aldeia, cuja opinião era importan-
sível à humanidade. O que foi dado aos tíssima nas reuniões dos anciãos na praça

pública (literalmente a porta da cidade;
723 JÓ31.·

9-15 Jó é agora objeto de escárnio da-


-.
7-10). Naqueles dias, ele podia socorrer os queles a quem ele uma vez socorreu, e eles
desprivilegiados, os pobres e o órfão (12), o atacam (12,14). Não é uma investida fí-
o que estava a perecer (13), a viúva (13b), sica, mas é o tratamento recebido que o faz
o cego e o coxo (15), o estrangeiro que pre- sentir-se como uma cidade sitiada (14).
cisasse de um protetor legal (16b). Os mes- 16-23 Associado à desgraça que ele
mos dois temas sobre a sua segurança e seu agora suporta está o puro sofrimento físico
papel proeminente e positivo na sociedade que o atormenta desde o princípio. Dia e
são repetidos nos v. 18-25. Notamos que noite, o sofrimento o ataca como um ani-
para Jó as bênçãos de sua vida passada não mal selvagem (16,17). Tudo isso é obra de
incluíam apenas a prosperidade material e Deus (19), no entanto, todo apelo que é
a honra social mas, igualmente importante, feito a Deus caiu em ouvidos surdos (20),
a possibilidade de fazer o bem àqueles que pois o Senhor também, assim como as pes-
o necessitavam (contraste-se isso com a soas, tomou-se cruel em relação a Jó e, in-
fala de Elifaz em 22.6-9). Sem dúvida, não falivelmente, o levará à morte (23).
há ninguém que possa ser chamado justo, 24-31 Embora esteja convencido de
se comparado a Deus (Rm 3.10), mas é que nenhum bem resultará disso, Jó deve
errado imaginar que as pessoas são as pio- gritar por socorro (24). Ele merece socor-
res possíveis ou que nunca podem ser des- ro, pois o ofereceu de tão boa vontade (25),
critas como inocentes e justas. mas quando ele aguardava [...] o bem, eis
30.1-31 "Mas agora se riem de mim". que [lhe] veio o mal (26). Essa parte do seu
Quando Jó compara a sua sorte presente discurso termina com uma repetição de sua
com sua vida passada, o contraste dificil- desgraça aos olhos humanos, o tema do
mente poderia ser mais extremo. Sua vida início. Ele é rejeitado pela assembleia de
anterior consistia em uma rede de relacio- sua cidade (28) e é largado na companhia
namentos harmoniosos (com Deus, com de animais selvagens (29). Sua pele escu-
seus companheiros e com os desprivile- receu por causa da enfermidade (28,30), e
giados), mas todos aqueles relacionamen- a música de sua vida anterior transformou-
tos foram destruídos. Agora as pessoas o se em pranto (31).
tratam com desprezo (1-15,24-31) e Deus 31.1-40 "Ah, quem me dera saber
o rejeitou (16-23). De certo modo, entre- do que sou acusado!". Essa parte final do
tanto, essas experiências são exatamente discurso de Jó está na forma de "confissão
as mesmas, pois é devido à mão de Deus negativa", em que ele nega qualquer crime
que ele sofre o desprezo das pessoas. que lhe seja atribuído. Ele proferirá essas
1-8 Duas vezes lemos Mas agora e maldições contra si mesmo só se estiver
uma vez Agora (1,9,16), pois o contraste plenamente convencido de sua inocência;
na vida de Jó é extremo. A atitude de Jó e não é de surpreender que o capítulo atinja
para com quem o desprezou parece, de o seu auge (35-37) com o apelo categórico
início, condescendente: eles são filhos de para que Deus o ouça e puna por qualquer
doidos, raça infame (8), o pobre da terra coisa que ele merecer. Jó pede a Deus para,
que vive de folhas e raízes. Não são esses, ao menos, informá-lo das queixas que tem
de fato, a quem Jó socorria em seus dias contra ele, pois ele carregaria orgulho-
passados? Sim, e é exatamente por isso samente, por todos os lados, uma lista de
que ele desdenha tanto do desprezo deles acusações para as quais teria explicações
agora. Até aqueles a quem havia tratado convincentes. Em todos os casos, exceto
com generosidade se voltaram contra Jó e um (o de idolatria; 26-28), os crimes que Jó
o consideram como um inferior. É a ingra- imagina são pecados contra o próximo, mas
tidão dessa gente que o deixa indignado. esses também são pecados contra Deus.
JÓ 31 724

1-4 Embora o pecado de adultério seja riquezas (24,25), a adoração ao sol e à lua
mencionado mais adiante (9-12), aqui Jó (26,27), o prazer na queda dos inimigos
afirma que jamais cometeu o pecado de de- (29,30), qualquer omissão deliberada quan-
sejar uma virgem, um hábito muito comum to às necessidades dos outros (31,32) ou
entre os proprietários de muitos servos, tal qualquer outro tipo de hipocrisia (33,34).
como Jó. Ele diz: Fiz uma aliança com Ele pede uma maldição contra si mesmo,
meus olhos; o pecado repousa nas inten- caso tenha falhado em algum desses pon-
ções no interior do coração, não apenas no tos. Embora tenha sido excessivamente
ato exterior. rico, ele alega que sua riqueza jamais se
5-8 Outra vez, o pecado é algo que pri- tomou um ídolo no lugar de Deus.
meiramente ocorre no coração (7). A refe- 26,27 A idolatria é o único pecado re-
rência às balanças (6) e ao fracasso de suas ligioso no catálogo dos crimes de Jó. Era
colheitas como punição à desonestidade normal no mundo antigo cultuar os corpos
(8), sugerem que Jó esteja pensando pri- celestes, mas para Jó, esse culto teria sido
meiramente na falsidade e no engano (5) em adoração à criatura e não ao criador.
nas transações comerciais. 29,30 Não era antiético no tempo de
9-12 Nas sociedades patriarcais, o Jó se alegrar da desgraça do que me tem
adultério era julgado um crime sério (cri- ódio. Os salmistas, às vezes, se mostram
me hediondo, delito à punição de juízes), felizes com a punição dos perversos (v.
haja vista que ele desconsiderava os direi- SI 54.7; 118.7; 137.8,9),masJÓ sempre se-
tos de propriedade de um homem e criava guiu o espírito da lei que recomendava aju-
problemas de herança. O texto mostra sua dar os inimigos (Êx 23.4,5; cf Pv 20.22;
antiguidade ao tratar o adultério masculino 24.17,18; 25.21,22).
como resultado de ser seduzido por causa 31,32 Jó parece estar pensando aqui so-
de mulher (e assim, de certo modo, a culpa bre ocasiões em que talvez tenha simulado
é da mulher), tomando, de alguma manei- desconhecer situações de necessidade. Ele
ra, a degradação da esposa uma punição do foi generoso para com o necessitado não
adúltero. Nós enfatizaríamos muito mais somente quando era óbvio (16-21), mas
os valores da lealdade e exigiríamos que também em casos quando ninguém mais,
somente o ofensor fosse punido. somente ele, era conhecedor da situação.
13-15 Jó alega ter ido além dos costu- 33,34 Jó não está confessando nenhum
mes de sua época e ter tratado os seus ser- pecado de hipocrisia. Ele está dizendo: "Se
vos como se tivessem os mesmos direitos alguma vez eu pequei e tentei ocultar o pe-
dos semelhantes, quando a sociedade lhe cado" (como Adão o fez, v. a NVI mrg.).
permitia tratá-los como patrimônio. 35-37 Jó termina o seujuramento formal
1-23 Jó já expôs sua solidariedade ao de inocência dizendo: Eis aqui a minha de-
pobre, à viúva, ao órfão e ao estrangeiro, fesa assinada, como se fosse um documen-
ou seja, aos tipicamente desprivilegiados to escrito. Ele anseia ter a lista das queixas
da sociedade antiga (29.12-16). Aqui ele de Deus contra ele, pois deseja conciliá-Ia
diz que sempre acolheu os órfãos em sua com sua própria declaração de inocência.
própria casa (18) e pede que a retribuição Ele não seria humilhado pela acusação de
caia sobre a mão levantada na injustiça e seu oponente; ele está tão seguro de que a
que seu braço seja arrancado da articula- lista provaria sua inocência que a levaria
ção (22), se alguma vez levantou a mão sobre [seu] ombro (36). Ele se aproxima-
contra os órfãos, achando que poderia se ria de Deus não como um criminoso, mas
livrar da injustiça cometida. como um homem inocente que lhe prestaria
24-28 Jó se volta agora para os pecados contas de qualquer coisa que pudesse ser
mais íntimos (cf v. 1-4): o amor oculto às acrescentada à sua culpa (37).
725 JÓ32(

38-40 A auto imprecação final de Jó frimento é disciplina. Isso significa que o
vem, de maneira um tanto estranha, de- sofrimento não é, necessariamente, castigo
pois do sumário e clímax do seu discurso pelo pecado cometido, mas pode ser uma
nos v. 35-37. Nela, Jó invoca sua punição, advertência, dada para impedir que a pes-
caso tenha adquirido suas terras por meio soa peque.
da opressão contra os legítimos proprie- 32.1-5 Eliú se apresenta. O jovem
tários (39). Eliú está obviamente muito irado (a pa-
lavra é repetida quatro vezes nos v. 2,3,5;
32.1-37.24 Os discursos uma das ocorrências no v. 2 é omitida pela
NVI, que usa o termo "indignou-se"). Ele
de Eliú
está irado com Jó porque este pretendia
32.1-33.3 O primeiro discurso ser mais justo do que Deus (v. 2). Esta
de Eliú: "O sofrimento é é uma crítica mais severa que a da NVI,
advertência de Deus" que diz que ele se "justificava a si mesmo
Muitos estudiosos consideram os discur- diante de Deus". Eliú está querendo dizer
sos de Eliú um acréscimo posterior ao livro que a lógica da reivindicação de Jó, de que
de JÓ. É estranho que Eliú não seja men- ele tem razão em seu debate com Deus, é
cionado no prólogo, mas é possível que a que Deus deve estar errado. Jó não disse-
intenção do autor fosse apresentá-lo pos- ra exatamente isso, mas é uma conclusão
teriormente, de modo inesperado. Porém, razoável. Eliú também fica irado contra os
mais estranho ainda é o fato de ele também três amigos porque não [acharam] eles o
não ser mencionado no epílogo (42.7-17), que responder (3), isto é, eles foram inca-
embora os outros amigos o sejam. Além pazes de convencer Jó de que Deus não
disso, os discursos de Eliú também retar- estava errado.
dam a resposta de Deus a Jó, que, segundo 32.6-22 O direito de fala de Eliú. Essa
nossa expectativa, poderia ter acontecido seção nada mais é que uma introdução
imediatamente após o cp. 31, onde lemos: prolixa de Eliú a respeito de si mesmo, em
"Fim das palavras de Jó" (31.40). Quando que ele também explica por que se juntou à
Deus responde (cp. 38-41), ele fala como conversa. Eliú admite que é jovem e expri-
se nada tivesse intervindo. Assim, difun- me seu respeito pela sabedoria dos idosos
diu-se a ideia de que Eliú é criação pos- (6,7), mas, fundamentado em sua convic-
terior de um autor devoto que se sentia ção de que todos são criados com igual
insatisfeito com os amigos de Jó por terem capacidade para a sabedoria, enche-se de
deixado de responder aos seus argumentos, coragem (8). Portanto, não são apenas os
e insatisfeito também com o fato de os dis- idosos que são sábios (9). Assim, não teme
cursos divinos não terem levado a nenhu- declarar a sua opinião (10). Ele também foi
ma conclusão definitiva. encorajado a entrar na conversa pela fragi-
Talvez os discursos de Eliú possam ser lidade dos discursos dos amigos (11,12). A
compreendidos como um meio-termo en- impressão de Eliú é que eles foram com-
tre a posição de Jó e a de seus amigos. Os pletamente vencidos pelos argumentos de
amigos argumentam que Deus é justo e que Jó e estão começando a pensar que somen-
o sofrimento de Jó prova que ele pecou e te Deus pode refutá-lo (13). Ele se dirige
que Deus o está punindo. Jó refuta os argu- a Jó (15) e diz que está pronto para falar
mentos, insistindo em que o seu sofrimen- (16,17) porque tem muito que falar (18)
to não é resultado de pecado, e que Deus, e sua mente está a ponto de estourar com
portanto, é injusto. Eliú afirma discordar a sobrecarga de pensamentos (19) e pre-
tanto de Jó quanto dos amigos (32.10-12; cisa desafogar-se da frustração (20). Por
33.1-12; cf 32.2,3), e argumenta que o so- fim, Eliú promete que não dará a ninguém
JÓ 33 726

~ e é Jó quem mais sofre com sua língua sofredor (23,24) e a pessoa é curada e agra-
~ tratamento especial (21); como ele não dece publicamente a restauração da saúde
sabe lisonjear, é melhor Jó se preparar para (cf SI 22.22-25). Essa pessoa então faz
uma conversa franca (22). uma confissão de pecado (27), mesmo que
33.1-33 "Por que Deus causa o sofri- tenha sido somente um pecado planejado,
mento?". 1-7 A introdução prolixa de Eliú e não cometido de fato.
a seu próprio respeito continua. Ele não 29-33 Eliú convida Jó a responder (32)
alega nenhuma sabedoria especial além da ou, então, a continuar ouvindo (31.33). Seu
que qualquer ser humano possa adquirir, propósito, ele repete, não é acusar Jó de ser
qualquer que tenha o sopro do Todo-Po- pecador, mas justificá-lo (32b), explicando
deroso (4; cf 32.8). Ele convida Já a lhe seu sofrimento como disciplina de Deus.
responder (5). Não será muito difícil, uma
vez que ele, Eliú, não usará nenhuma das 34.1-37 O segundo discurso
táticas agressivas de Deus; ele também é de Eliú: "Jó está errado em
um mero ser humano, formado do barro acusar Deus de injustiça 11

(6). Ele não está desdenhando Jó ao dizer Eliú já não fala a Já diretamente; ele agora
não te inspiro terror (7), mas contrastando apela aos sábios (2), que poderiam ser os
sua própria fraqueza com o poder de Deus, amigos (neste caso, Eliú está sendo irôni-
causador do sofrimento de JÓ. co) ou a um grupo maior de espectadores.
8-13 Jó repetiu que Deus lhe tem ne- Seu argumento principal neste discurso é
gado justiça, se recusado a aceitar a sua que uma vez que Deus é justo (10), qual-
inocência e se comportado como inimigo quer crítica de Já ao que Deus faz ou deixa
(10,11), em vez de ser um juiz imparcial. de fazer é injusta. Nesse momento, Eliú
Eliú pretende demonstrar que Jó está er- ignora a situação particular de Jó e tece
rado (12), não por meio da argumentação considerações gerais.
~ como os amigos têm feito ~ de que Jó 1-9 Eliú discute a alegação de Já ~ Sou
é pecador, mas demonstrando que Deus justo (5a; cf 27.6) e Deus tirou o meu di-
tem outros propósitos ao enviar os sofri- reito. Eliú pergunta à sua plateia se eles já
mentos, particularmente para advertir os encontraram um homem como Já que bebe
seres humanos contra pecados futuros. a zombaria dos seus amigos como água (7)
Desse modo, Eliú acha que pode preservar e que, por afirmar que Deus está lhe ne-
tanto a justiça de Deus quanto a inocência gando justiça, coloca-se na companhia de
de Já (cf v. 12,32). malfeitores que também acusam Deus de
14-18 Eliú ilustra sua interpretação do injustiça. Segundo Já, Eliú afirma muito
sofrimento valendo-se de exemplos de pe- injustamente: De nada aproveita ao ho-
sadelos. Eles são um modo de Deus falar mem o comprazer-se em Deus (9). Já havia
com as pessoas, ainda que elas nem sempre dito que os perversos podem livrar-se do
reconheçam isso (14). Deus usa os sonhos julgamento (21.7-34) e que os problemas
para amedrontar as pessoas e adverti-las caem do mesmo modo sobre os bons e
contra "suas más ações" (NVI) e a soberba os maus (9.22-24), porém ele mantém-se
no futuro (17); os pesadelos são uma forma agarrado à virtude ainda que isso não lhe
de sofrimento que Deus usa para evitar so- traga proveito nenhum.
frimentos maiores e a morte (18). 10-15 Aqui Eliú está dizendo que
19-28 O sofrimento físico (21,22) Deus não será injusto (10-12) e, portan-
também é usado por Deus com o mesmo to, Já está errado ao acusá-lo de qualquer
propósito: "castigar" ou advertir alguém forma de injustiça. A justiça de Deus é,
do pecado (19). Basta uma palavra de um para Eliú, uma consequência inevitável de
dos muitos anjos intercessores a favor do ele ser o Criador Todo-Poderoso (13,14).
727 JÓ 36

Essa posição, no entanto, é perigosa, pois justo (7). Uma vez que Deus é tão grande,
equivale a dizer que "o mais forte sempre o que acontece na terra tem pouca impor-
tem razão". tância para ele (5), ainda que seja a perver-
16-30 Eliú continua argumentando que sidade (6,8).
o regente do universo não pode ser injusto. 9-16 Como a reclamação de Jó é que
Deus é justo e poderoso (17). Ele tem Deus lhe tirou os direitos (27.2), Eliú quer
poder para julgar reis e nobres (18), para saber por que Jó não ficou livre de sua afli-
estilhaçá-los sem necessidade de inves- ção. Ele argumenta fazendo referência ao
tigação (24) uma vez que ele já conhece caso das pessoas oprimidas que clamam
os seus passos (21). Ele pode transtomá- por causa de suas muitas opressões (9).
los à noite (25). Suas obras de poder es- Elas nem sempre são resgatadas. Por que
tão em íntima conexão com a sua justiça. não? Porque alguma coisa está faltando
Deus não demonstra favoritismo algum a em seu clamor. Tem sido um clamor invo-
príncipes ou ricos (19), ele recompensa as luntário, e as pessoas não o tem dirigido
pessoas segundo as suas obras (25) e fere a Deus, que me fez, aquele que reverte a
os malfeitores por causa de suas iniqui- sorte ao lhes dar canções de louvor duran-
dades (26), porque eles têm desobedecido te a noite (10) e dá mais sabedoria aos se-
às suas leis (27) e oprimido o pobre (28). res humanos do que aos animais e às aves
Então, se um dia Deus não agir e não ofe- (11). Essas pessoas não obtiveram resposta
recer vindicação quando solicitada, quem porque negligenciaram seu clamor a Deus
poderia condená-lo e dizer que o que ele (12); tais clamores são vazios, e descon-
faz é injusto? (29). siderados por Deus (13). O mesmo é ver-
31-37 A constante solicitação de Jó por dadeiro a respeito de Jó, diz Eliú. Ele só
vindicação acrescenta rebelião ao pecado tem feito queixar-se do sofrimento e não
(37), pois implica que Deus está errado. tem falado com Deus (14-16). Eliú comete
Eliú agora imagina alguém que tenha sido mais um erro, pois Jó tem constantemente
punido por seu pecado e, depois, tenha se se dirigido a Deus!
arrependido (31,32). Segundo Eliú, a teo-
logia de Jó não admite que Deus perdoe 36.1-37.24 O quarto discurso
tal pecador arrependido, pois Jó espera que de Eliú: Em louvor ao poder
alguém que tenha sofrido na mão de Deus e à sabedoria de Deus
exija vindicação e rejeite o perdão (33). Há duas seções aqui. Na primeira, Eliú re-
Mas isso é injusto para com Jó, pois ele não pete que o sofrimento é disciplina; na se-
alega que todo sofrimento seja imerecido. gunda, ele louva o poder e a sabedoria de
Deus na criação, o que lhe confere o direi-
35.1-16 O terceiro discurso de Eliú: to de ser o regente moral do universo.
"Jô não deveria ter reclamado, 36.2-25 Eliú ainda quer falar em favor
e sim apelado a Deus" de Deus (2) e atribuir justiça ao Criador
1-8 Eliú parece discutir novamente a afir- (3), ou seja, ele quer provar que não ocor-
mação que ele pusera na boca de Jó em reu nenhum erro judicial no caso de Jó.
34.9: "De nada aproveita ao homem o Uma vez que Deus se encontra tão aci-
comprazer-se em Deus". Esta não é a opi- ma da humanidade, Eliú tem de ir buscar
nião de Jó, e nem é ele quem pergunta: De conhecimento muito longe (3). De algum
que me serviria ela? Que proveito tiraria modo, isso parece lhe dar o direito de afir-
dela mais do que do meu pecado? (3). Eliú mar que é senhor do assunto, isto é, abso-
simplesmente imagina que esta seja uma lutamente correto, não onisciente!
pergunta de JÓ. Mas ele lhe responde que 5-16 Para começar, Eliú expõe a dou-
é errado alguém esperar benefícios por ser trina comum da retribuição (6). Sua pró-
JÓ 36 728

pria contribuição surge quando ele consi- humanos quanto os animais; também de-
dera os justos que caem em sofrimento um monstram sua sabedoria em usar as forças
tema bem associado à situação do próprio da natureza para vários propósitos, seja
Jó. Em tais casos, os justos (8) estão sendo para corrigir ou abençoar (13).
censurados por sua transgressão e aconse- 14-24 O poder e a sabedoria de Deus
lhados a que se convertam de sua iniquida- são também manifestos nos fenômenos do
de (10). Assim, o sofrimento é disciplina verão: no relâmpago das tempestades de
divina (conforme ele disse em 33.15-30). verão (15), nas nuvens tão delicadamen-
Se os justos aceitarem tais advertências, te equilibradas (16), no vento sul quente
tudo bem (11); caso contrário, sofrerão o (17), no céu ardente tão sólido como espe-
destino dos malfeitores e morrerão sem lho fundido (18) e na luz ofuscante do sol
conhecimento, ou seja, sem ter aprendido de verão (21). A sabedoria de Deus é tão
nada sobre a correção divina. Os ímpios, maior que a de Jó que ele não tem capa-
quando afligidos, simplesmente ficam ira- cidade nem para entender como esses fe-
dos e não clamam a Deus por socorro (13); nômenos operam (15,16,18), muito menos
morrem jovens e em vergonha (14). Os para controlá-los. A espantosa majestade
justos, por outro lado, cujos ouvidos estão de Deus é tão grandiosa (22), que ele é
abertos para o que Deus está lhes ensinan- efetivamente inacessível. Com ironia, Eliú
do na adversidade, são socorridos (15,16). pede que Jó nos ensine o que dizer a Deus
17-25 Eliú espera que Jó esteja entre os (19); todavia, ao mesmo tempo, afirma que
justos, mas teme antes que ele esteja entre isto é impossível, "porque envoltos em tre-
os que não aprendem com o sofrimento e, vas, nada lhe podemos expor" (NEB). Esta
assim, está cheio dojuízo do perverso (17). é uma situação que Jó tem negado desde
Uma expressão de lamúrias (em vez de o início ao demandar repetidamente que
"riqueza", como a NVI apresenta no v. 19) Deus respondesse pessoalmente às suas
não propiciará libertação a Jó (cf 35.9,12); reivindicações. E isso é efetivamente refu-
ela precisa ser dirigida a Deus, e Jó deve tado quando Deus se mostra pessoalmente
se lembrar de magnificar a obra de Deus já no capítulo seguinte.
enquanto estiver orando por libertação.
36.26-37.24 Este belo hino ao poder 38.1-42.6 Os discursos
criativo e à sabedoria de Deus só faz senti- do Senhor
do aqui porque Eliú acredita que é o poder Estes discursos divinos são importantes,
criativo de Deus que lhe dá o direito de ser não apenas por seu conteúdo, mas simples-
juiz moral do mundo (cf 34.10-15). mente por terem acontecido. O essencial é
27-33 As maravilhas da chuva e do re- que Jó, que invocou a Deus com perseve-
lâmpago se devem ao fato de eles serem rança (embora estivesse irado e frustrado),
um dos meios que Deus usa para julgar acaba finalmente tendo uma conversa com
entre os povos (31a), pois a mesma chuva Deus que leva à resolução de sua tensão.
pode tanto beneficiar (31b) quanto des- Mas os discursos também são notáveis
truir (33b). tanto pelo que omitem quanto pelo que
37.1-5 O trovão também não é apenas incluem. Primeiro, é surpreendente, mas
um fenômeno natural, mas a voz de Deus, também significativo, que Deus não faça
misteriosa, imprevisível e aterradora. nenhuma referência a qualquer uma das
6-13 As tempestades de inverno, que falhas de Jó. Fica claro, então, que Deus
impedem as pessoas de trabalhar e mantêm não tem nada contra Jó; nem mesmo suas
os animais em suas tocas (7,8), não reve- palavras "precipitadas" (6.3) são motivos
lam apenas o poder de Deus em controlar de repreensão. Mas, em segundo lugar, es-
(12) essas forças que domam tanto os seres tes discursos divinos são também impres-
729 JO 38

sionantes pelo que eles contêm. Longe de aterrador, para Jó ele significa que Deus
justificar os caminhos de Deus perante os não pretende mais ignorar suas reivindica-
seres humanos, eles se ocupam totalmente ções. Deus não subestima a inteligência de
com a ordem natural, o mundo da criação. Jó, dizendo que ele não tem nenhum enten-
Ao falar da ordem cósmica e da criação dimento do plano divino (meus desígnios,
animal, o propósito de Deus não é dar a Jó 2) para governar o universo. Deus também
lições sobre a natureza, e certamente tam- não desdenha de Jó, mas o encoraja a se
bém não é deslumbrá-lo com sinais de seu fortalecer como homem (supondo-se que
poder e inteligência (dos quais Jó não duvi- os homens sejam mais fortes do que as
dara nem por um minuto). Pelo contrário, o mulheres!) e a usar toda a sua força mental
propósito é reconsiderar o mistério e com- para compreender as intenções de Deus,
plexidade do mundo que Deus criou. Jó é que serão expressas nesse discurso apenas
levado a entender que a ordem natural é indiretamente.
paralela à ordem moral do universo. Muito 38.4-38 Fenômenos da terra e dos
disso está além do entendimento humano, céus. 4-7 Aqui o mundo é retratado como
um pouco disso parece horrível, fútil ou te- um edificio com fundamentos e pedra an-
mível, mas tudo é obra de um Deus sábio gular, feito sob medida, com um cordel, ao
que fez o mundo do jeito que ele é e para a acompanhamento da música das estrelas
realização de seus propósitos. da alva - os anjos.
8-11 O mar é retratado como nascido
38.1-40.2 O primeiro discurso da madre de sua mãe (8) e vestido por
do Senhor: "Considere o Deus nas nuvens (9). Mas ele é também
mistério da criação" uma força ameaçadora que deve ser res-
As muitas perguntas que Deus faz a Jó não tringido em seu lugar, trancado com portas
têm a finalidade de humilhá-lo, mas de de- eferrolhos (10).
safiá-lo a reconsiderar o que já sabe acerca 12-15 Até mesmo a chegada da alva
do mundo que criou e de ponderar o seu está além do entendimento de Jó (12). Pro-
mistério novamente. Deus mostra a Jó dez vavelmente a NEB está certa ao remover
características da ordem natural (38.4-38) desses versículos as referências inadequa-
como exemplos desse mistério, e nove das aos perversos (13,15) e ao encontrar
espécies de animais (38.39-39.30) para alusões a vários corpos celestes como as
ilustrar o mistério da vida criada. A obser- "estrelas da Linha do Navegador" que
vação final (40.2) nos lembra que o diálo- "saem uma por uma" (15) quando irrompe
go entre Jó e Deus acontece no formato de a alva.
uma causa jurídica (cf também 38.3), pois 16-18 Abaixo da terra existe todo um
era exatamente isso o que Jó havia exigido reino de criação desconhecido dos seres
(31.35). O propósito do diálogo, todavia, humanos: os mananciais do mar, as fontes
não é estabelecer culpa ou inocência, mas do grande abismo (Gn 7.11) que nutrem as
examinar a verdade sobre a vida como águas do mar, e a terra da morte, retratada
criação de Deus. como uma cidade com portas e "porteiros"
38.1-3 Introdução. Jó finalmente ob- (17; NEB), os "zeladores da terra da Som-
teve a resposta que tanto desejava (cf bra" (BJ), o submundo (em vez de terra)
31.35). Claro que Jó havia imaginado o com suas vastas extensões (18).
ambiente comparativamente tranquilo de 19-21 Luz e trevas são vistas aqui como
um tribunal de justiça, mas é de dentro do seres que têm suas próprias moradas, às
redemoinho que Deus fala. O redemoinho é quais retomam no devido tempo. Jó não
um antigo símbolo da revelação divina (cf sabe "conduzir" cada uma delas nas vere-
SI 18.7-15; Na 1.3; Zc 9.14), e embora seja das para a sua casa (20).
J638 730

22,23 Também além do conhecimento que existe totalmente independente dos


de Jó estão os depósitos da neve e do gra- seres humanos.
nizo (22), reservados para o dia da batalha 39.1-4 Cabras e corças não são toca-
(23; cf. Êx 9.22-26; Js 10.11; Is 30.30). das pela interferência humana. Elas dão
24-27 Os regos para o aguaceiro do suas crias e crescem sem assistência ou
depósito celeste (25) nos trazem à memória conhecimento humanos.
as "janelas" dos céus que foram abertas no 5-8 O jumento selvagem, isentado por
tempo do dilúvio (Gn 7.11). Um novo tó- Deus do serviço humano (5), leva uma
pico que será desenvolvido posteriormente vida livre, embora árdua, e é totalmente
no cp. 39 é introduzido nos v. 26,27: muito inútil para o homem. Ele não é como seu
do que acontece na criação do mundo não primo domesticado, o jumento manso,
é em benefício dos seres humanos, mas por que é conduzido pelas ruas barulhentas da
causa de outras partes da criação de Deus, cidade (7).
ou simplesmente porque ele assim ordena. 9-12 Um abismo ainda maior separa
Neste caso, é a chuva que cai sobre a terra o boi domesticado do boi selvagem (ou
desabitada (26). "bisão europeu"), o mais poderoso dos
28-30 Chuva, orvalho e gelo têm uma animais com casco (extinto desde o século
origem, mas Jó a desconhece. XVII d.C.). É ridículo pensar nele como útil
31-33 Como as sete estrelas do Sete- aos seres humanos.
estrelo se juntaram? Por que as estrelas de 13-18 Alguns animais são selvagens,
Órion, um caçador com cinto (laços) e es- livres e indomáveis; outros, como o aves-
pada, permanecem atadas? (31). Qualquer truz, são simplesmente ridículos. É a visão
que seja o poder das estrelas, Jó não tem popular do avestruz como um pai cruel e
poder sobre elas, nem a mínima compreen- negligente que é usada aqui. De fato, é só
são das ordenanças da natureza que deter- durante o dia que os seus ovos são aban-
minam os seus movimentos (33). donados; à noite, tanto o galo quanto a
34-38 Jó não pode influenciar a vinda galinha se revezam em manter aquecido o
do raio ou da chuva, quando Deus despeja ninho. Deus criou ainda animais cujo com-
os odres dos céus (37). portamento não faz sentido - ao menos
38.39-39.30 A criação animal. A ên- não pelos padrões humanos.
fase aqui não está sobre os animais bem 19-25 O cavalo de guerra não é com-
conhecidos e úteis aos seres humanos (tais pletamente inútil aos seres humanos, mas
como ovelha, asno e camelo), mas sobre ele tem força e coragem que o cobrem de
aqueles que são, pelo contrario, inúteis, mistério. Mesmo uma criatura tão próxima
misteriosos e hostis. Estes também são par- dos seres humanos pode lhes ser pratica-
te da criação de Deus. O mesmo acontece mente incompreensível. Quem pode expli-
com o sofrimento: às vezes, de fato, pode car o que dá ao cavalo a sua força (19),
haver um propósito reconhecível; outras como ele pode rir do temor (22) e ser ávido
vezes, no entanto, pode ser tão enigmático para entrar em batalha (25)?
e doloroso aos seres humanos quanto os 26-30 O falcão e a águia são criaturas
animais selvagens. Não obstante, ele é par- que, ocasionalmente, se lançam na pre-
te da ordem de Deus para o mundo, e Deus sença do ser humano (30), mas que vivem
sabe o que está fazendo ao criá-lo. principalmente em lugares inatingíveis
39-41 A questão não é a incapacidade pelo homem (27,28). Eles são inúteis, pre-
de Jó de satisfazer o apetite dos leõezi- datórios e impuros, mas mesmo assim, são
nhos (39), ou ainda que é Deus quem pro- criaturas de Deus, e seus instintos naturais
videncia a presa para os corvos (41), mas (inteligência; 26) lhes são implantados
que há todo um reino da criação de Deus por ele. Se Jó pode aceitar isso, ele pode
também aceitar o fato de que pelo menos
731 JÓ41J"

do leviatã (41.1; ARC), o mais temível das


.
alguns casos de sofrimento humano são criaturas marinhas. Previamente, a ênfase
simplesmente o resultado da sabedoria estava mais no mistério da criação animal;
inescrutável de Deus. agora o tema é o terror, e ainda assim o
40.1,2 Conclusão. O Senhor nunca esplendor, das duas criaturas de Deus. O
menospreza a Jó, nem procura argumentar beemote ("o grande animal") foi identifi-
para forçá-lo a se submeter (cf 38.3). Deus cado com o búfalo selvagem, o hipopóta-
conclui seu primeiro discurso simplesmente mo, ou uma criatura mítica. A descrição do
convidando Jó, como seu adversário na beemote e do leviatã carrega no exagero
disputa judicial, a lhe responder. poético, mas parece que a referência é a
criaturas verdadeiras. Elas também simbo-
40.3-5 A primeira réplica de Jó: lizam o caos, e o fato de Deus as ter criado
ele não tem nada a dizer mostra que ele controla quaisquer poderes
Jó não expressa submissão, humilhação caóticos que ameacem o seu universo.
ou derrota. Ele concorda que é indigno, O beemote é a obra prima dos feitos
pois reconhece as limitações de seu en- de Deus (19), uma referência a Gênesis
tendimento enfatizadas pelo discurso do 1.21, em que "as grandes criaturas mari-
Senhor. Mas como ainda não tem nada a nhas" são os primeiros animais menciona-
responder, sua causa ainda está em pé. O dos. Sua dieta principal é a erva (15); seu
Senhor o chamou a responder, e Jó, na ver- habitat, os canaviais e a lama do rio (21).
dade, convida o Senhor a prosseguir com É um pouco estranho que as montanhas
o seu discurso. Jó cobre a boca com a mão propiciem alimentos para ele (20), embora
(4), pois ainda não tem nada a acrescentar. os hipopótamos sejam conhecidos também
por andarem por encostas íngremes em
40.6 - 41.34 O segundo discurso busca de alimentos. Sua força é lendária
do Senhor: "Considere o (16-18), e ele não pode ser subjugado pelo
poder da criação" homem (quem o fez o proveu de espada;
40.6-14 Introdução. O Senhor não pode 19) ou ser capturado por um laço preso ao
estar intimidando Jó com a superioridade seu nariz (24). Um rio transbordante não o
de seu poder, pois Jó sempre concordou aterroriza e se um rio transborda, ele não
em que o Senhor é mais forte do que ele se apressa (23). Mesmo sua cauda, embora
(e.g., 9.15-19), e a questão aqui é a justiça curta e fina, tem a força de um cedro (17).
de Deus, não o seu poder. O Senhor está 41.1-34 O leviatã (ARC; crocodilo, aqui
dizendo que Jó não pode por si mesmo e na ARA). Pensava-se que o leviatã fosse
vencer a causa. Somente alguém com po- um golfinho, um atum ou uma baleia, mas
der (braço; 9) como Deus e que esteja no o consenso afirma que é um crocodilo. Fi-
controle físico do universo tem autorida- gurado na mitologia cananeia como Lotan,
de para fazer julgamentos na esfera moral um monstro de sete cabeças do abismo,
também. A vindicação de um ser humano há alusões a esses seres mitológicos no AT
é uma tarefa divina, e Jó tentou cumprir a (e.g., SI 74.13-14; Is 27.1). Aqui, então, o
tarefa de Deus ao demandar vindicação. leviatã (crocodilo), como o beemote (hipo-
40.15-24 O beemote (ARC; também pótamo), é um símbolo do caos.
no heb.). Tradicionalmente, hipopótamo 1-11 O leviatã não tem nenhuma uti-
(ARA). O tema é uma continuação do cp. lidade prática para os seres humanos. Ele
39, mas em vez de breves relatos da criação não pode ser capturado (1) ou domado (2)
animal, são apresentadas aqui duas descri- ou amansado (3); ele não pode ser usado no
ções afetuosas do "beemote" (também na serviço doméstico (4) ou como um animal
NVI) o mais feroz dos animais terrestres, e de estimação para entreter as crianças (5).
J642 732

Ele não serve de alimento (6), pois não O sofrimento de Jó faz sentido para Deus,
pode ser capturado (7). Qualquer impru- embora Deus não o tenha, de nenhum
dente que tocasse nele não teria nova opor- modo, explicado ou justificado para ele.
tunidade de fazê-lo (8)! Sua mera aparên- O erro de Jó foi exigir uma resposta para
cia é suficiente para afastar os aspirantes a o problema do sofrimento, o que significa
caçador (9). Os v. 10,11 parecem sugerir adentrar uma área além da compreensão
que se alguém corajoso fica apavorado humana: na verdade, falei do que não en-
diante de um crocodilo, somente um tolo tendia; coisas maravilhosas demais para
seria descuidado o suficiente para se apro- mim (3).
ximar do próprio Deus. Mas provavelmen- Jó obtém sua vindicação de Deus nos
te é melhor interpretar essas frases como versículos 10-17, todavia, o mais importan-
referências ao leviatã: "Quem lhe resistirá te para Jó é o fato de que por meio dos seus
de frente? Quem ousou desafiá-lo e ficou clamores por um confronto com Deus, ele
ileso? Ninguém, debaixo céu" (41.3,4; BJ). na realidade se encontrou com Deus face a
12-34 A linguagem aqui é altamente face. O fato de que Deus realmente irrom-
poética e fantasiosa e não devemos bus- peu do silêncio e se dirigiu a Jó é melhor
car uma descrição exata. As vestes do seu do que qualquer vindicação. A experiência
dorso são as suas escamas duras (13); seus pessoal com Deus (agora meus olhos te
membros inferiores, especialmente a cau- veem 5) transcende o sofrimento, o iso-
da, são como escamas pontiagudas (30), e lamento e o sentimento de injustiça tanto
seu movimento na água chega a tomar o quanto transcende a mera teoria acerca de
mar como caldeira de unguento (31). Mas Deus (eu te conhecia só de ouvir; 5).
talvez os seus espirros de fogo (18-21) de- Jó se abomina a si próprio (6)? O me
vam ser interpretados menos literalmente. não faz parte do texto hebraico, e é mais
O ponto principal nesse poema em honra ao provável que Jó abomine as palavras abu-
rei de todos os animais orgulhosos (34) é sivas que ele disparou contra Deus. E do
a temerosidade e grandiosidade dessa cria- que ele então se arrepende (6)? Não pode
tura que é tão repulsiva e hostil aos seres ser de algum pecado, porque nós sabemos
humanos. Esse é o ápice dos discursos do desde o início que Jó não é pecador; ele
Senhor a Jó, e Jó não se esquece do ponto pode se arrepender somente da linguagem
essencial: o sofrimento é um crocodilo, um pesada que usou ou de sua ignorância. Mas
hipopótamo, apavorante e misterioso, em- talvez seja melhor ainda interpretar a pala-
bora seja parte da criação de Deus e tenha vra traduzida por abominar como "dissol-
seu próprio esplendor. ver", i.e., "dissolvo-me para o nada", o sen-
timento de uma criatura ante seu Criador,
42. 1-6 A segunda réplica de Jó: sua e interpretar a palavra arrepender-se como
queixa se transforma em adoração "confortar-se", i.e.: "Eu me conforto, em-
Contrário à sua primeira resposta (40.2-5), bora esteja sentado sobre o pó e a cinza"
que foi, na verdade, uma recusa, este dis- (cf 2.8). Jó ainda está sofrendo, continua
curso resolve o debate de Jó com Deus. sobre o monte de cinzas, mas sua amargura
Pois Jó reconhece que Deus tem o direito é aliviada e sua tensão é resolvida por meio
de fazer o que faz, até mesmo a ponto de de seu encontro com Deus.
trazer sofrimento sobre uma pessoa ino-
cente, embora Jó não diga isso. Assim a 42.7-17 Epílogo
novidade sobre os conhecimentos de Jó Por que a história de Jó ainda não acabou?
de que sei que tudo podes (2) não é que Porque Jó insistiu em pedir vindicação,
Deus seja todo-poderoso, mas que tem um i.e., uma demonstração pública da parte de
propósito inescapável em tudo o que faz. Deus de que ele (Jó) é justo e não merece
733 JÓ42

punição divina. Alguns leitores acham que Jó insistia em se dirigir a Deus pessoal-
o final feliz estraga o livro de Jó, pois pare- mente. Durante o sofrimento, é loucura
ce dar base à antiga doutrina da culpa e so- falar meramente acerca de Deus.
frimento. A teologia dos amigos, de que os
justos prosperam, não é provada por este 42.10-17 A vindicação pública
epílogo do livro? Não, pois os amigos in- Jó está vindicado aos olhos dos amigos,
sistem em que os justos sempre prosperam mas aos olhos dos seus parentes e conci-
e os perversos sempre perecem. O caso de dadãos, o sinal da sua vindicação por Deus
Jó mostra aqui que "sempre" não existe. deve ser a restituição de suas riquezas.
O que o epílogo demonstra é a alegria de Elas são restituídas em dobro (12); talvez
Deus em mandar chuvas de bênçãos sobre isso implique a compensação pela perda
os que o servem fielmente. Isso vem como imerecida que Jó sofrera (cf Êx 22.4). O
bônus e como ato da graça de Deus, e não consolo que Jó recebeu por causa de seu
algo que seja compelido a fazer. encontro com Deus (cf o v. 6 acima) é
enriquecido pelo consolo que ele recebe
42.7-9 A vindicação dos seus parentes (11). Os presentes em
perante os amigos dinheiro e o anel de ouro (11) são sinais
Nessa cena elegantemente iromca, Javé de estima e não de presentes para restau-
enfatiza aos amigos que é Jó, e não eles, ração da riqueza, pois ele já é próspero
quem tem sido verdadeiramente meu ser- novamente (10). Ele se tornou tão rico
vo (repetido quatro vezes!) e que é Jó, e que há herança suficiente até para suas fi-
não eles, quem tem dito de mim o que é lhas compartilharem (as filhas geralmente
reto (7). Uma inversão de papéis que bei- só herdavam quando não havia herdeiros
ra o cômico acontece quando a punição da masculinos; Nm 27). O epílogo é feito
insensatez dos amigos só é evitada graças com uma observação típica das narrati-
à oração do justo e ainda sofredor. (8,9). vas patriarcais de Gênesis: a morte numa
Aqueles que haviam se sentido tão supe- idade avançada,farto de dias, é a bênção
riores a Jó são os mesmos que precisam final de Deus. Com essa cena, retornamos
do perdão; e Jó não está apenas absolvido à condição pastoril idílica que deu início
perante eles, mas se torna o defensor de- ao livro. Naquele mundo estilizado, tão
les. Como pode o discurso respeitoso dos distante do nosso próprio mundo, ocorreu
amigos em relação a Deus ser chamado de debaixo da superfície um drama humano
loucura? Talvez a única razão seja porque que pertence a todas as épocas.
os amigos falaram de Deus inteiramente na
terceira pessoa, como um objeto, enquanto David 1. A. Cline
OS SALMOS

INTRODUÇÃO
Uma janela aberta para (l) É quase certo que dentro do Saltério,
o Antigo Testamento como o conhecemos, foram preservadas
Como era ser um membro da igreja do AT? coleções menores, anteriormente distin-
Em que eles acreditavam? Qual era sua tas (e.g., 93-100 [Louvor a Jerusalém];
experiência com Deus, individual e cole- 113-118 [Uma cantata de salvação];
tivamente? Sua religião os fazia felizes ou 120-136 [Louvor do peregrino]; e 146-
era um fardo? Eram eles estranhos de uma 150 [A infindável aleluia]).
outra época, ou eram nossos irmãos dos (2) Também há evidências da existência
tempos antigos? Quando olhamos através de uma antologia mais antiga incorporada
da janela dos salmos, descobrimos que ali ao Saltério de forma mais difusa. Muitos
está de fato o mesmo Deus, agora revelado salmos contêm a inscrição "Ao mestre de
a nós em Cristo, e ali estão pessoas iguais a canto" (e.g., 31; 47; 51-{í2). Teria existi-
nós, enfrentando os mesmos problemas na do um "Mestre de Música do Templo" que,
vida, e descobrindo que seu Deus aumenta em algum momento, compilou seu próprio
suas alegrias e carrega seus fardos. hinário? Se tal indivíduo existiu, ele teve
Aquelas pessoas nos dão um exemplo o cuidado de fazer um registro da autoria,
tão extraordinário de compromisso, de- já que, excetuando os salmos 66 e 67, seu
dicação na oração, zelo, conhecimento e registro é sempre acompanhado de uma
alegria, que nos deixam envergonhados de identificação pessoal: "De Davi" / "De
nossa indecisão, de nossa falta de vonta- Asafe" etc. Por exemplo, ao acrescentar o
de de orar e da frieza de nossas reações. salmo 88 à sua antologia, ele indicou que
Mas eles são nossos irmãos e irmãs. Suas "este salmo fazia parte da Coleção Coraíta
canções nos mostram que, assim como no e foi composto por Hemã, o ezraíta".
NT, a graça de Deus motiva a obediência à (3) Corá e Asafe eram dirigentes de
sua lei, assim também no AT a obediência coro (lCr 6.31-33,39ss.; 15.16ss.; 16.4-7).
se apoia em sua obra de graça. Mas como A coleção "Coraíta", com seu prazer no
aquele povo gostava de cantar! Grandes Monte Sião, está representada em Salmos
líderes, como Moisés (Êx 15), Débora e 42-49; 84; 87, enquanto a coleção de
Baraque (Jz 5), Davi (2Sm I) e Ezequias Asafe, que ressalta tanto o juízo divino
(Is 38), pessoas comuns, como Ana (lSm quanto o cuidado pastoral, está representa-
2) e profetas, como Habacuque (Hc 3) eter- da em Salmos 50; 73-83.
nizaram seus momentos importantes em (4) Outros indivíduos aparecem de for-
canções. Os próprios salmos revelam uma ma mais espalhada e rara: Jedutum (39; 62;
religião transbordante de canção. Não é de 77), Etã (89), Hemã (88), cf IReis 4.31, e
admirar que de tal povo e religião tenha Moisés (90). Mas a maioria dos salmos é
surgido esta grande antologia de salmos! atribuída a Davi (3-32; 34- 41; 51-65;
68-70; 101; 103; 108-110; 122; 131;
Os Salmos como livro 133; 138; 139; 140-145).
Talvez seja mais apropriado pensar nos (5) Os especialistas geralmente ma-
salmos como uma coleção de livros. nifestam certo ceticismo a respeito do
735 OS SALMOS

valor dos títulos dos salmos. Na época em a palavra "Elohim" (Deus) ocorre com
que estava na moda datar o maior número frequência muito maior que "Yahweh"
possível de salmos dentro do período dos (Javé, O SENHOR), e parece que o nome
Macabeus (século I a.Ci), os títulos foram de Deus foi deliberadamente substituído
rejeitados por serem considerados uma por Elohim (cf SI 14; 53; 40.13-17; 70).
invenção editorial. Ultimamente, tem ha- Presumivelmente, isso foi feito antes que
vido maior disposição de admitir uma da- a coleção como um todo fosse organizada.
tação pré-exílica, embora as opiniões va- Porém, para nós, esse é mais um dos pas-
riem a respeito de quantos e quais salmos sos inexplicáveis pelos quais a salmódia
possam pertencer ao período dos reis. Há acumulada ao longo dos séculos foi gra-
consenso de que a atribuição "de Davi" dualmente se transformando no Saltério
implica autoria, mas poucos seguem da Bíblia.
M. G. Goulder (The Prayers of David: (7) O Saltério é às vezes chamado de
Psalms 51-72, Studies in the Psalter u, "Hinário do Segundo Templo", numa re-
[JSOTS 102, Sheffield, 1990]) em levar ferência à Casa construída pela comunida-
a autoria davídica a sério. Contudo, não de que retomou em 520 a.C. (cf Ed 5.1,2;
há nenhuma razão séria para não o fazer. 6.15; Ag 1.14,15). Sem dúvida, um evento
Certamente, os títulos são um acréscimo como esse poderia ter motivado a criação
editorial aos salmos (como indica o uso de um novo hinário e, concordando com Y.
da forma em terceira pessoa), mas já na Kaufmann (The Religion ofIsrael [George
época da LXX (século li ou III a.c.) muitos Allen and Unwin, 1961], p. 311), quando
dos termos usados já não eram conheci- este diz que "não há nenhum salmo cujo
dos, e ninguém sabe ao certo quão antigo sentido evidente [...] exija uma datação
é esse trabalho editorial. Eles chegaram posterior à do exílico salmo 137", todos os
até nós como parte do Texto Hebraico nossos salmos atuais teriam estado dispo-
Massorético (onde aparecem como versí- níveis para seleção. Então, provavelmen-
culo 1 do salmo em questão); além disso, te, a coleção recebeu sua atual divisão em
no NT, o Senhor Jesus, Pedro e Paulo argu- cinco "livros" por meio do acréscimo de
mentam com base em sua veracidade. Um doxologias em 41.13; 72.18-20; 89.52 e
dos motivos apresentados para não levar 106.48. Porém, encontramo-nos, mais uma
os títulos a sério é que as notas históricas vez, diante de um enigma indecifrado: será
que ligam alguns salmos à vida de Davi que a divisão em cinco partes foi adotada
(3; 7; 18 etc.) são suposições editoriais, para combinar os cinco livros da Lei com
visto que há pouca ou nenhuma evidência cinco livros de canções? Não se tem cer-
ligando o salmo e a ocasião. Deixando de teza disso.
lado o fato de que é improvável que um
editor da antiguidade tenha cometido er- Os Salmos na adoração
ros crassos, essa objeção despreza a pró- O pai do moderno estudo especializa-
pria natureza dos salmos, que consistem do dos salmos é Hermann Gunkel, Die
em meditações, não em descrições. Em Psalmen (Vandenhoek & Ruprecht, 1926),
cada um dos casos, pode-se argumentar que procurou correlacionar cada salmo
com segurança que, seja no incidente com a circunstância em que foi produzido.
mencionado, seja na reflexão subsequente, Hermann distinguiu algumas categorias
Davi podia muito bem ter expressado es- principais: (a) Hinos, poemas como 8; 19;
ses sentimentos. 29, que tratam da grandeza e dos atributos
(6) Outra evidência da mão de um de Deus. Os subgrupos desta categoria in-
editor em Salmos é o que chamamos de cluem os salmos de entronização, que cele-
"saltério eloístico". Em Salmos 42-83, bram o Senhor como Rei (e.g., 47; 96; 98),
OS SALMOS 736

e os salmos de Sião (e.g., 46; 87); (b) la- maneira como um salmo devia ser usado na
mentos coletivos, como 74; 79; 80; (c) adoração pública. A palavra "salmo" (4; 55
salmos reais, centrados no rei (e.g., 2; 45; etc.) indica acompanhamento musical, em-
110); (d) lamentos individuais, de longe bora não esteja claro qual a diferença entre
a maior categoria de todas (e.g., 3-7; esta palavra e "canção". Alguma diferença
140-143); um subgrupo desta categoria deveria existir, como indica o uso das duas
são os salmos de segurança, que expres- palavras juntas (e.g., 30). "Oração" (e.g.,
sam a certeza do livramento divino (11; 17), "Louvor" (145) e "Para ensinar" (60)
16; 23); (e) salmos individuais de ações sugerem a função que um salmo podia ter,
de graças (e.g., 30; 32; 116), após um li- de forma bem semelhante às divisões por
vramento. Além desses grupos principais, assunto nos hinários modernos.
foram percebidas categorias menores: Há orientações musicais relativas a
ações de graças coletivas (e.g., 124), sa- cordas (4), flautas (5), "seminite" ou "oi-
bedoria (49), peregrinação (120-134) e tava" (um instrumento de oito cordas ou
liturgias (15; 24). um arranjo em oito partes, 6); observações
O trabalho de Gunkel deixava a desejar sobre melodias a serem usadas: "A morte
pelo fato de não fornecer uma base coe- de um filho" (9), "A corça da manhã" (22);
rente para que se pudesse distinguir uma "Os lírios" (45); "A pomba nos terebintos
categoria da outra. Às vezes, ele ressalta- distantes" (56) etc. "Os lagares" (8; 81; 84)
va a forma ou a estrutura; outras vezes, o significa "Prensa do vinho", e pode ter sido
conteúdo. Mas pelo menos ele resgatou o uma melodia alegre bem conhecida.
estudo dos salmos das áridas discussões Também há palavras que hoje não
sobre datação e introduziu uma estimulan- compreendemos, mas que, com graus
te apreciação a respeito do que os salmos de certeza variáveis, podemos dizer que
estavam tentando ser e fazer. O que ele ini- têm relação com uso dos salmos no culto:
ciou, outros continuaram, edificando sobre "sigaiom" (7, cf Hc 3.1); "mictam" (16;
as bases que ele lançou e desenvolvendo 56-60); "masquil" (32 etc.); e "selá"
sua abordagem de categorias, mas, em par- (3.2,4,8 etc.). "Mictam" pode estar rela-
ticular, concordando com sua opinião de cionado com o verbo "cobrir" e, como
que o principal cenário para a compreen- esse termo ocorre em salmos em que ini-
são dos salmos é o culto, a prática da ado- migos são mencionados, talvez ele servis-
ração de Israel no templo. se para recomendar o uso desses salmos
quando houvesse necessidade de prote-
o ambiente e os ção. "Masquil" pode significar "didático",
termos do culto mas o motivo pelo qual esses salmos em
Os próprios Salmos se deliciam na casa do particular merecem essa observação não
Senhor (84); eles veem o "santo monte", está claro. "Selá" ocorre internamente
o "tabernáculo" e o "altar" (43) como ele- nos salmos, e poderia indicar alguma di-
mentos que permitem o acesso à presença visão do material, um interlúdio meditati-
de Deus; eles estão cheios da piedade inte- vo/musical, quando o salmo era cantado
rior que acompanhava e dava sentido aos em adoração. Mas tanto o seu significa-
atos exteriores (116.13-19), insistindo que do como palavra quanto sua importância
o ritual do sacrifício só se toma um "sa- como diretiva são hoje desconhecidos.
crifício de justiça" (4.5) quando realizado Desde o trabalho de S. Mowinckel (cf
com a motivação certa. The Psalms in Israel s Worship [Blackwell,
Grande parte do material dos cabeça- 1962]), muitos têm acreditado que a Festa
lhos, embora de significado ainda mis- dos Tabernáculos incluía uma celebração
terioso para nós, está relacionada com a anual do reinado do Senhor. A expressão:
737 OS SALMOS

"O Senhor reina" (93.1; 97.1; 99.1 etc.) intervenção divina para restaurar a digni-
deveria ser, portanto: "O Senhor tornou- dade do rei. Para justificar a ideia de uma
se Rei", uma exclamação cultual que pro- dramatização ritual cultual, recorre-se a
clamava a reafirmação ritual da soberania versículos como 46.8 ("Vinde, contem-
divina sobre toda a terra, garantindo o plai ...") e 48.9 (traduzido por: "retrata-
bem-estar de seu povo durante o ano se- mos/representamos tua misericórdia no
guinte. Certamente, numa data posterior meio do teu templo").
(Zc l4.l6ss.), a Festa dos Tabernáculos Da mesma forma, a teoria de A. Weiser
teve relação com reinado e prosperidade, de uma cerimônia anual de Renovação da
mas, nos dias pré-exílicos, a evidência dis- Aliança, The Psalms (SCM, 1962), não
so não é tão clara. obteve grande apoio. Para ele, o tema do-
Quando Jeroboão precisou dissociar minante na Festa dos Tabernáculos não
seu recém-separado reino da Casa do era a entronização do Senhor, mas sim a
Senhor e do rei davídico, lemos que ele renovação nacional da Aliança. Embora
instituiu uma festa no décimo quinto dia Weiser tenha encontrado salmo após salmo
do oitavo mês, "igual à festa que se fa- que reforçam esse argumento, o consenso
zia em Judá". Não se conhece nenhuma geral é que ele deixou que o entusiasmo
festa celebrada no oitavo mês, mas a dos substituísse o realismo e que, embora sal-
Tabernáculos ocorria no décimo quinto mos como 50 e 81 necessitem de um con-
dia do sétimo mês. Seria essa a festa que texto ritual com foco nos mandamentos e
serviu de modelo para Jeroboão? Se foi nos eventos do Sinai, isso está longe de
este o caso, então Tabernáculos também confirmar a existência de um grande festi-
era um festival que celebrava a sobera- val anual. A leitura da lei de Deuteronômio
nia. É preciso reconhecer que os "salmos 31.9ss., realizada a cada sete anos, já for-
de entronização" (47; 93; 96-99) são nece um pano de fundo suficiente.
uma amálgama de temas equivalentes,
nada menos que Reinado e Criação e a Os Salmos como Escritura
Soberania do Senhor sobre as forças es- Quando refletimos sobre a permanente vi-
pirituais do caos, e faz sentido pensar na talidade dos salmos na igreja de hoje, não
existência de uma celebração anual cujo podemos deixar de tocar em alguns tópicos
tema e foco seriam combinados num "dia importantes.
da ascensão". (1) O Senhor. Uma das características
Por outro lado, o esforço de A. R. notáveis do livro de Salmos é que, embora
Johnson, Sacral Kingship in Ancient haja abundante testemunho pessoal, o que
Israel (University of Wales Press, 1967), mais chama a atenção não são as pessoas,
e J. H. Eaton, Kingship and the Psalms mas Deus. Nesse aspecto, os Salmos são
(SCM, 1876), no sentido de extrair de o AT em miniatura: o Senhor é o Criador
alguns salmos (e.g., 2; 18; 89; 101; 110; (8; 104). Mas esse não é um conceito abs-
118) um ritual da renovação anual de so- trato de como o mundo começou; é o fun-
berania terrena/davídica não foi bem acei- damento de seu domínio soberano como
to por todos. Na melhor das hipóteses, Rei sobre todas as coisas (29; 96-99).
essa teoria atribui muitos, se não todos, A justiça do seu governo é predominante
os salmos de lamento individual ao rei, (11; 75), mas, na grande rapsódia do Reino
aviltado por seus inimigos (de toda parte) divino (145), a justiça é só um dos fios do
e cujo livramento está nas mãos de Deus. cordão de três dobras, juntamente com a
Mais especificamente, salmos como o 22 grandeza e a graça. A bondade de Deus
são encaixados dentro desse ritual de hu- (34) é inseparável de sua santidade (103),
milhação e seu desfecho numa dramática e tem seu contraponto em sua ira (38).
OS SALMOS 738

Ele é universal em seu domínio (67) e é lembrado para sempre (45.17); possui
particular na escolha de Israel (87), dois um nome eterno (72.17), e é objeto de
aspectos da verdade que se unem no Davi agradecimentos infindáveis (72.15). Com
messiânico, rei de Israel e do mundo (2; relação ao Senhor, ele recebe bênção para
72; 110). Tanto para o seu povo como um sempre (45.2). Ele é o herdeiro da aliança
todo (80) quanto para o indivíduo (23), de Davi (89.28-37; 132.11s.), e do sacer-
o Senhor é Pastor, o que constitui a base dócio de Melquisedeque (110.4). Ele per-
da confiança para se buscar nele o livra- tence ao Senhor (89.18) e é devotado a
mento (16; 25; 31), reconhecendo que ele ele (21.7; 63.1-8,11). Ele é seu filho (2.7;
cuida das necessidades de seu povo (e.g., 89.27), sentado à sua direita (110.1) e, ele
3; 27). Ao mesmo tempo, há o problema mesmo, é divino (45.6).
da providência divina, as frequentes ad- O comentário deve ser consultado em
versidades do povo de Deus, tanto indivi- relação às referências listadas acima, mas
duais (e.g., 10; 12) quanto coletivamente as dimensões exageradas desse retrato são
(44; 74). É essa admissão franca de que claras. Embora grande parte desse retrato
o sofrimento faz parte da experiência do possa ser atribuída, em princípio, ao orá-
povo do Senhor que fornece a perspecti- culo fundamental de Natã, em 2Samuel 7,
va adequada para entender a ligação entre as etapas que levaram essas esperanças a
justiça e prosperidade (e.g., 1). Isso não é se transformarem na expectativa do surgi-
a narrativa de uma experiência, mas uma mento de um rei perfeito, justo, humano,
declaração de fé (como quando afirmamos divino, eterno e universal não podem ser
crer em "Deus Pai, Todo-Poderoso" num determinadas. A velha teoria de que essas
mundo que contesta tanto a sua paterni- esperanças só se desenvolveram após o
dade quanto seu poder absoluto). Como exílio babilônico, quando a monarquia
Deus é bom e não há outro Deus, o resul- cessou e não mostrava sinais de recupe-
tado final para o seu povo está garantido. ração, é desnecessária. O fracasso da mo-
(2) O Rei. O que se vê no retrato do narquia já vinha desde o tempo do próprio
Rei traçado em Salmos é a mais evidente e Davi! As vivas esperanças subentendidas
fantasiosa bajulação de sucessivos reis da em Juízes 17.6; 18.1; 19.1; 21.25 não ha-
linhagem de Davi, ou então é a expressão viam se cumprido; o historiador do livro
de um grande ideal, um espelho da verda- de Reis pode colocar o foco na monarquia
de colocado diante de cada rei, aguardan- pactuai, constitucional e dinástica de Judá
do Aquele em quem tudo se cumprirá. O ou na monarquia carismática "faça-você-
Rei enfrenta a oposição do mundo (2.1-3; mesmo" de Israel, mas o rei tão desejado
110.1), mas, como Vitorioso (45.3-5; não aparece. Esse fracasso foi a terra fér-
89.22s.) e pela ação do Senhor (2.6,8; til para o surgimento de uma das maiores
18.46-50; 21.1-13; 110.1s.), estabelece expectativas do AT.
um governo mundial (2.8-12; 18.43-45; (3) Imprecações. A veemência com
45.17; 72.8-11; 89.25; 110.5ss.) com sede que os inimigos são denunciados em
em Sião (2.6) e marcado pela moralida- Salmos sempre foi motivo de dificulda-
de (45.4,6; 72.2-4,7; 101). O seu gover- de. O desejo da repentina destruição dos
no é eterno (21.4; 45.6; 72.5); próspero inimigos (35.8), de sua morte (55.15), de
(72.7,16) e constante em sua reverência que seus dentes sejam quebrados (58.6), da
pelo Senhor (72.18,19). Superior em destituição (109.10) e massacre de seus fi-
dons, graças e dignidade (45.2-7), ele é lhos (137.9), têm alguma coisa em comum
também amigo dos pobres e inimigo da com a mente de Cristo? Passagens como
opressão (72.2,4,12-14); debaixo de sua essas são encontradas em cerca de 25 sal-
autoridade, a justiça floresce (72.7). Ele mos, e os comentaristas têm se apressado
11
739 OS SALMOS _:11

em rejeitá-las, considerando-as como "mo- reprovemos suas orações, o modo como


ralidade veterotestamentária", condenada eles enfrentavam a situação era melhor
e tomada obsoleta pela revelação de Deus que o nosso. Mas esse tipo de julgamen-
em Cristo. Há três razões pelas quais isso to não é necessário: as orações deles nos
é insatisfatório: (a) Sentimentos seme- chocam por causa de seu realismo. Nós
lhantes são expressos no NT (Gl 1.8,9; Ap nos sentimos à vontade com 143.11, mas
6.10; 18.20; 19.1-3) e pelo Senhor Jesus hesitamos com seu corolário realista (12),
(Mt 11.20-23; 23.13-36), portanto, se há da mesma forma que oramos com ale-
um problema aí, ele é bíblico, não exclusi- gria pela segunda vinda do Senhor Jesus
vo do Antigo Testamento. (b) O AT, assim (2Ts 1.7), mas hesitaríamos em compor
como o NT, realça o amor (Lv 19.17,18), o nossa oração em termos das realidades
fato de que Deus odeia a violência (SI 5.6), escriturísticas desse evento, pedindo que
o dever de se pagar o mal com o bem (SI o fogo ardente consumisse os que não se-
7.3-5; 35.12-14) e a rejeição da vingança guem o evangelho (2Ts 1.8). Se fôssemos
(Dt 32.35; Pv 20.22). (c) Em quase todos mais santos - e, certamente, se estivés-
os casos, a imprecação que achamos ques- semos menos satisfeitos e soubéssemos
tionável aparece lado a lado com uma espi- mais sobre o poder do perseguidor - es-
ritualidade invejável, e.g., Salmos 139. Um taríamos mais prontos a nos identificar
comentarista que classifique as impreca- com eles do que a condená-los.
ções em geral como "contrárias ao espírito O comentário a seguir procurou se con-
do Evangelho" encontra em 139.19-22 "o centrar na estrutura de cada salmo, consi-
dever de manter vivo no coração humano derando-a a chave para seu significado.
[...] indignação ardente contra [...] o mal" Sugere-se enfaticamente a todo estudante
(Kirkpatrick, The Psalms [Cambridge, dos salmos (de fato, a todo estudante da
1910]) - simplesmente porque é impos- Bíblia) que "o meio é a mensagem" e que
sível imputar uma espiritualidade fraca ao o primeiro objetivo num estudo deve ser
autor dos v. 1-18. descobrir e esclarecer a estrutura. Ver o
Mais positivamente, observamos que artigo Poesia na Bíblia.
todos são orações (exceto 137.9, v. comen-
tário). Não há nenhum indício de que os Leitura adicional
salmistas planejassem atos de vingança, DAY, 1. Psalms. Sheffield Academic Press,
ou de que acalentassem ideias vingativas. 1990.
Sua reação diante da ofensa foi entregar SEYBOLD, K. Introducing the Psalms. T.
o assunto nas mãos de Deus. Como ob- and T. Clark, 1990.
serva 1. R. W. Stott (The Canticles and KIDNER, F. D. Salmos 1-72: introdução e
Selected Psalms [Hodder & Stoughton, comentário. SCR Vida Nova, 1980.
1966], pp. llss.): "Não acho dificil ima- _ _ _ _o Salmos 73-150: introdução e
ginar situações em que santos homens comentário. SCR Vida Nova, 1981.
de Deus clamam, e devem mesmo cla- K1RKPATRICK, A. F. The book of Psalms.
mar, a Deus por vingança [...] e isso sem CBSC. Cambridge, 1910.
qualquer sentimento de animosidade VAN GEMEREN, W. A. Psalms. EBC.
pessoal". Vivendo como vivemos, numa Zondervan, 1991.
época brutal, em que a vingança pessoal CRAIGIE, P. C. Psalms l-50. WBC. Word,
é um direito pressuposto, e os problemas 1983.
da coletividade, reais ou fabricados, "jus- TATE, M. Psalms 51-100. WBC. Word,
tificam" a violência, o terror, os atentados 1991.
a bomba e a tortura, devemos pelo menos ALLEN, L. C. Psalms 101-150. WBC.
estar dispostos a reconhecer que, embora Word,1983.
SALMO 1 740

LIVRO 1 3 A árvore frutífera e perene. Plan-


tada (lit., "transplantada", i.e., uma nova
Salmo 1. O contraste decisivo posição em que a pessoa foi colocada
O salmo 1 introduz todo o livro de Salmos. (80.8; cf CI1.l3).
Em primeiro lugar, ele é um salmo de fé 4 A palha transitória.
(3d). Essa promessa de prosperidade não é S Não subsistirão no juízo do Senhor.
um promessa de boa sorte como recompen- Juízo ... congregação. Na avaliação divina
sa por bom comportamento - os salmos final, os que têm um relacionamento cor-
conhecem a vida bem demais para fazer reto com Deus (justos) contrastam com os
isso! (cf 42; 73). Ao contrário, da mesma que seguiram seu próprio conselho e, con-
forma que continuamos a dizer: "Creio em sequentemente, não viveram dentro dos
Deus Pai Todo-Poderoso", mas descobri- parâmetros da revelação divina.
mos que a vida muitas vezes parece negar 6 O caminho da ruína: o destino
tanto sua paternidade quanto seu poder final. Conhece, tem um relacionamento
ilimitado, o v. 3 professa um credo: este íntimo e cuida com carinho. Perecerá, a
mundo pertence a Deus, e os que tomam última palavra, faz um contraste com a ini-
o seu lado certamente serão abençoados cial, bem-aventurado (1) - realmente um
no final (6). Em segundo lugar, esse é um contraste decisivo!
salmo de compromisso: com um modo de
vida distinto (1) e com a palavra de Deus Salmo 2. O rei do mundo
(2). De fato, a "diferenciação" é o tema em O tema é desenvolvido em quatro seções
tomo do qual o poema se estrutura. que se equilibram mutuamente: os reis
que se opõem ao SENHOR e ao seu Ungido
AI (v. 1) O caminho da bênção (1-3) são convidados a se refugiarem, ser-
B I (v. 2) Persistência na lei do Senhor vindo ao SENHOR e prestando homenagem
C 1 (v. 3) A árvore sempre frutífera ao Filho (10-12). No meio, duas vozes
C2 (v. 4) A palha transitória são ouvidas: o Senhor fala da nomeação
B2 (v. 5) Não subsistirão no juízo do de seu Filho para reinar (4-6) e o Filho
Senhor fala da divina promessa do governo mun-
A 2(v. 6) O caminho da ruína dial (7-9). Esse salmo está embasado em
2Samuel 7, a promessa feita a Davi de um
10 caminho da bênção: vida presente. nome supremo, um relacionamento de fi-
Dependendo do contexto, Bem-aventura- liação com o Senhor e uma linhagem eter-
do pode significar: debaixo da bênção de na. Provavelmente, o salmo era usado para
Deus, feliz ou realizado, ou intrinsecamen- saudar cada um dos reis da linhagem daví-
te correto. Todos os três significados se dica em sua ascensão ao trono, como um
encaixam aqui. Mas a bênção e a alegria lembrete do ideal, mas seu cumprimento
derivam do compromisso com a vida cor- ocorreu no Filho Maior do grande Davi
reta. Anda... se detém ... se assenta. Nossa (Lc 1.31-33), da mesma forma que a recu-
diferença precisa estar patente na maneira sa constante do mundo em permitir "que
como vivemos. este reine sobre nós" (Lc 19.14) atingiu o
2 Persistência na lei do Senhor. clímax no Calvário (At 4.25,26; 1Co 2.8).
Lei, "ensino", como o que um pai cuida- A época em que vivemos, embora às ve-
doso oferece a um filho amado (Pv 3.1). zes pareça amável e complacente, essen-
Prazer... medita. Por trás da obediência cialmente odeia, resiste e se rebela contra
ativa do v. 1 está a santidade interior de Deus em Cristo. Historicamente, o rei da-
emoções e mente exercitadas de dia e de vídico encontrava-se sempre sob ameaça
noite na palavra de Deus. do mundo ao redor; essencialmente, isso

741 SALMO 3 . ·
...
reflete a rebelião do mundo contra Deus; o Filho continuam conscientes do temor
profeticamente, o salmo fala da rejeição que lhe é devido por direito e da ira que é
de Jesus. inseparável de sua santidade. Bem-aventu-
1-3 Imaginam coisas vãs (lit.) "murmu- rados (cf 1.1). Se refugiam. "Não há refú-
ram".Aimagem aqui talvez não seja tanto a gio dele [para onde se possa fugir dele]; só
de rebelião, mas sim de inquietação. O que há refúgio nele" (Kidner).
faz com que o mundo não tenha paz? O v. 2
responde: não pode haver paz enquanto o Salmo 3. Oração e confiança:
Senhor e o seu ungido forem rejeitados. A um salmo para um novo dia
inimizade contra Deus está no cerne da na- Aqui temos um salmo com um claro foco
tureza decaída (Cl1.21). Ungido (cf 1Sm central, i.e., que a oração nos traz confian-
16.13; 24.6; Is 11.1-9). Laços ... algemas. ça para enfrentar a vida (4-6). O movimen-
Uma das manobras mentirosas de Satanás to neste salmo é primeiramente em direção
(Gn 3.1-5) é apresentar as condições que a esses versículos centrais, e depois para
Deus impõe para a bênção como restrições fora deles.
cruéis que impedem o homem de desfrutar
da completa liberdade. 4-6 O Senhor não AI (v. 1,2) Necessidade: não há salvação
negocia com rebeldes nem faz concessões B' (v. 3) Afirmação: proteção divina
para atender às suas exigências, mas sim- C (v. 4-6) A oração traz confiança
plesmente reafirma seu plano soberano: B2 (v. 7) Apelo pelo socorro divino
seu rei é constituído (6), e ponto final - N (v. 8) Solução
assim como, em Gênesis 3, a grande rebe-
lião não alterou um til da soberania divina! Este salmo está fundamentado em
Ira ...furor, respectivamente o ato de bufar 2Samuel 15.13-17.24. Na primeira vez
de raiva (o sentimento de ira) e a força ar- que Davi fugiu de Absalão, a fuga durou
dente do furor (a expressão da ira). Sião, li- duas noites, e é natural que na primeira ele
teralmente, a sede da monarquia davídica; estivesse desanimado (1,2). Mas o antídoto
profeticamente, o centro da nova criação para o desânimo é, em primeiro lugar, pro-
de Deus em Cristo (Hb 12.22-24).7-9 Um clamar a verdade divina (3) e, em segundo,
relacionamento de filiação, uma promessa buscar o auxílio divino (4). A consequên-
de herança e uma dotação de poder. Meu cia é a bênção de uma noite de sono (5) e a
Filho. Deus adotou figuradamente os reis confiança renovada para enfrentar o novo
da linhagem de Davi. Hoje, o dia da posse, dia (6). Da mesma forma que o dia anterior
o começo do relacionamento. Quando usa- terminou com uma oração (4), o novo dia
do em relação a Jesus em sua ressurreição começa com um chamado para que Deus
(At 13.32-37), o significado é que Deus venha salvar (7), pois ele sempre foi ini-
deixou publicamente claro algo que sem- migo dos inimigos de Davi. Assim, a ora-
pre fora verdade. Pede-me. Ao contrário ção confiante evoca as graças recebidas no
do rei rebelde, o Filho vive uma relação de passado e gera confiança no futuro (8).
dependência submissa em relação ao Pai. 1,2 Necessidade: não há salvação.
Neste ponto, ele foi tentado (Mt 4.8-10), Não há em Deus salvação. Este é o golpe
mas prevaleceu (Mt 26.39). Vara deferro ... mortal: uma atitude (adversários) transfor-
como um vaso de oleiro, o contraste entre o mou-se em ação (se levantam) e reflete a
poder absoluto e a impotência total. 10-12 opinião pública - nem Deus pode ajudar
Servi... beijai. Não pode haver serviço ao Davi agora!
Senhor sem submissão ao Filho! Temor... 3 Afirmação: proteção divina. Porém
alegrai-vos... tremor. Há uma diferença tu é uma expressão enfática. A solução
entre confiança e presunção. Os que beijam para a tristeza dos v. 1,2 é recordar o que
SALMü4 742

Deus é. Minha glória: Davi foi destituído o medo, mas o modo correto de agir é usar
de todo esplendor terreno, mas não pode as horas da noite para a oração silenciosa
ser privado de Deus. Minha cabeça (cf (4c, não consultai, mas "falai com"; "refli-
2Sm 15.30). tam nisso", NVI), aproximando-se de Deus
7 Apelo por salvação divina. Levanta- (5a) no espírito dos sacrificios de con-
te, SENHOR! (cf Nm 10.35). Usando o sagração (holocausto), confissão (oferta
grande clamor de Moisés, Davi exprime pelo pecado), comunhão (oferta pacífica),
sua confiança em que, mesmo na aparen- e com confiança (5b). 6 Combata o aba-
te derrota, ele e seu séquito em fuga es- timento com oração adequada. 7,8 O tes-
tão, na verdade, sob a orientação divina. temunho de Davi: a oração produz uma
Queixos ... quebras os dentes. Bater na face alegria maior do que a que o mundo pode
é um ato de repreensão (1Rs 22.24); que- dar, por meio da paz e da segurança que
brar os dentes é tomar inofensivo. só o SENHOR pode proporcionar.
8 Solução. Do SENHOR é a salvação.
Salmo 5. O contexto moral
Salmo 4. Orando, sabendo, da oração eficaz
confiando, descansando Possivelmente, este salmo medita sobre a
Este é um salmo da noite (8), provavel- segunda manhã da fuga de Davi, quando
mente da época em que Davi fugia de era perseguido por Absalão (v. SI 3). Não
Absalão (v. SI 3), pois ele enfrenta uma há nenhum título histórico para nos guiar,
segunda noite dormindo sem conforto e mas o salmo diz respeito à oração de ma-
sob ameaça. Assim como o salmo 3, este nhã (3), e a alternância de parágrafos que
é um salmo de oração, e podemos notar falam daqueles que buscam a Deus em
que entrar no lugar de oração (1) é encon- justiça e dos maus, a quem ele rejeita,
trar-se no lugar de paz (8) - ainda que pode muito bem simbolizar a situação de
as pressões continuem as mesmas (os que intenso contraste moral em que Absalão
desonram, 2; os que desanimam, 6). Mas colocou Davi.
o cerne deste salmo não é orar, mas saber
(3) e confiar (4,5). O primeiro é o tema do AI (v. 1-3) Confiança no Senhor
discurso imaginário de Davi perante seus B' (v. 4-6) O Senhor rejeita os perver-
detratores, na corte de Absalão; o segundo, sos
é a sua mensagem aos desanimados de seu C (v. 7,8) Compromisso com o ca-
próprio acampamento, que se preparam minho reto do Senhor
para dormir. B2 (v. 9,10) O Senhor lança fora os re-
1 A verdadeira oração é urgente (1a), beldes
se baseia na justiça de Deus (1b), é espe- N (v. 11,12) Alegria no Senhor
cífica (1c) e dependente da misericórdia
divina (1d). 2 Um apelo imaginário aos O salmo se concentra na adoração e na
que se juntaram a Absalão para que parem oração santas e reverentes como elemen-
de denegrir sua glória de rei, abandonem tos necessários para uma vida justa (7,8).
suas ilusões de poder e suas "mentiras" Desse modo, Davi adota uma posição
(não falsos deuses). 3 Piedoso, uma pa- contrastante com a dos que praticam a ini-
lavra complexa, que significa aquele a quidade (4,5) e falam sem sinceridade (9),
quem Deus ama com amor imutável e mostrando o compromisso de alguém que
que retribui o seu amor (cf 2Tm 2.19a). espera resposta para a sua oração (1-3) e
4,5 Uma palavra para os desanimados do conta com a proteção divina (11 ,12).
acampamento de Davi. Irai-vos, ou me- 1-3 Confiança de que o Senhor ouve
lhor, "Tremei", Não há motivo para negar a oração. Oração: (a) é a expressão de
743 SALMü6

um problema (gemido) em palavras (1); Salmo 6. Grande necessidade,


(b) traz consigo a garantia de ser ouvida. grande confiança renovada
Observe a sequência: (2) Escuta... pois ... A referência a inimigos humanos (7,8,10)
imploro; (c) é a primeira coisa do dia: de sugere que o pano de fundo deste salmo
manhã (3ab). A ideia central aqui não é poderia ser o mesmo do salmo 3: conside-
tanto a de regularidade (cf Is 50.4), mas a rando as dificuldades da jornada, a amea-
de prioridade no dia; (d) tem a expectati- ça de um ataque e a responsabilidade pelo
va de uma resposta (3c). grupo heterogêneo (2Sm 15.16,18,22) que
4-6 e 9,10 O Senhor rejeita os perver- fugiu com ele, não é de admirar que Davi
sos e lança fora os rebeldes. Cada uma se sentisse esgotado em alguns momentos
dessas seções começa com "pois" (omiti- (2Sm 16.14; 17.29). Por outro lado, o v. 2
do na NVI); isto é, Davi (1-3) pode espe- indica mais claramente um efetivo período
rar que sua oração seja atendida "porque" de enfermidade. Enfrentando uma vazante
ele não é como os perversos (4-6) e ora de suas energias físicas, mentais e emocio-
por um caminho reto (8), "porque" deseja nais, Davi sonda as profundezas aqui re-
ser diferente dos rebeldes que o Senhor gistradas. Os inimigos humanos romperam
lançará fora (rejeita-os, 9,10). Este é o suas defesas (6,7), mas, num nível mais
compromisso moral da pessoa que ora, profundo, existe a ira do SENHOR trazen-
abrangendo o caráter (4,5a), a conduta do fraqueza (debilitado, 2), terror (ossos...
(5b), o discurso (6a), os relacionamen- abalados, 2) e perturbação de alma (3). Em
tos (6b), a sinceridade (9a), a integridade sua depressão, talvez Davi se lembrasse
(9b) e, mais uma vez, o discurso (9cd). de que, se não tivesse pecado com Bate-
10 Será que um pedido como esse é cor- Seba (2Sm 11; 12), não teria ficado omisso
reto? Como a maioria das imprecações quando seu filho mais velho violentou a
(v. Introdução), esta oração pede a Deus irmã de Absalão (2Sm 13). Se ele não ti-
que faça algo que ele já declarou que vai vesse tratado o caso de Absalão de maneira
fazer de qualquer maneira - expor e pu- errada, deixando que seu espírito violento
nir o pecado e os pecadores (10a,c); fazer se inflamasse (2Sm 14; 15), a rebelião tal-
com os acusadores mentirosos o mes- vez nunca tivesse ocorrido. Davi pode ter
mo que eles teriam feito com o alvo de pensado que, em sua ira, o Senhor se afas-
sua maldade (10b; cf Dt 19.16-19); ela tou dele (4)! Mas o maior perigo de todos
deixa a ação a cargo de Deus, não pro- leva ao mais simples de todos os remédios:
pondo a execução de nenhuma vingança o clamor tem compaixão de mim (2) faz re-
pessoal (Pv 20.22; Rm 12.19); e é moti- nascer a confiança: o SENHOR ouviu a minha
vada pela ofensa cometida contra Deus súplica (9). Se a maior carência é resolvida
(IOd), não por animosidade pessoal. 7 por meio da oração, não se deve esperar
Como pode Davi falar de uma casa, se que o mesmo aconteça com necessidades
o templo ainda não tinha sido construí- menores (lO)? Por meio da oração, o ter-
do? Porque (1Sm 1.9,24) essa era a de- ror de Davi (1-3) transforma-se no terror
signação comum do lugar onde o Senhor dos seus inimigos (10), perturbados, lit.,
habitava, mesmo que fosse apenas uma "aterrorizados", como nos v. 2,3; a volta
tenda (1Sm 2.22; 2Sm 7.2). Observe que do Senhor em resposta à oração (4,5) é o
a riqueza da tua misericórdia infunde em sinal para que os inimigos se afastem (8,9);
nós o temor quando entramos no lugar quando estava fraco (6,7), Davi descobriu
de santidade. que era forte.
11,12 Alegria no Senhor protetor. Notas. 4 Volta-te, "retoma". O v. 5 é
Justo, todo aquele que está justificado frequentemente citado como uma indica-
com Deus. ção de que não havia esperança de vida
SALMO 7 744

após a morte no AT (cf 49; 73), mas aqui uma coisa viva. Mas se o pecado parece
Davi fala da morte do ponto de vista de voltar para a pessoa que o pratica é por-
alguém que se sente afastado de Deus, ob- que há um Deus justo (6-8a) e irado (10-
jeto da ira divina. Sobre esta questão, o NT 13) diante do qual todos nós teremos de
vai muito além de qualquer coisa que o AT nos apresentar um dia, mas que é o mes-
era capaz de revelar (Mt 10.28). mo todos os dias, com recursos sempre
disponíveis para castigo dos que não se
Salmo 7. A bênção de arrependem. À luz dessa visão do peca-
uma boa consciência do, e diante desse Deus, Davi afirma sua
Não sabemos quem foi Cuxe, mas sabemos inocência: esta é a natureza e a bênção de
que Saul, o rei benjamita (1Sm 9.1), cer- uma consciência limpa.
cou-se de benjamitas (I Sm 22.7). Sabemos 1,2 Refúgio presente e oração. Refu-
também que ele foi instigado contra Davi gio. O livramento ainda está no futuro
por línguas ferinas (1Sm 24.9; 26.19). Uma (17), mas a proteção é uma realidade pre-
situação como a de lSamuel 18.10-24 te- sente. Todos (1) se transforma em singular
ria dado ensejo mais do que suficiente para (2; "para que ele não arrebate", ARe), lit.,
que os "Cuxes" deste mundo inflamassem "ou ele irá..."; i.e., Davi tem muitos adver-
o medo paranoico de Saul em relação a sários, mas um em particular, como indica
Davi. Mas ele sabia que nenhuma acusa- o título.
ção de deslealdade para com Saul era ver- 3-5 O pecado e sua recompensa: o
dadeira; mesmo diante do tribunal de Deus testemunho de Davi. Estava em paz (4),
(6,7,10-13), sua consciência estava limpa ligado por um tratado de amizade. Sem ra-
(8b,9), e esses versículos são o cerne do zão (4) pode ser: "...libertei aquele que é
salmo e uma intimação para se conservar meu adversário sem motivo". Em vez de
em todas as coisas "uma consciência pura devolver o mal, Davi tem um histórico de
diante de Deus e dos homens" (At 24.16; pagar o mal com o bem (cf Mt 5.43-48; Rm
cf Hb 13.18; 1Pe 3.16). 12.17-21). Muito tempo depois de Saul ter
tentado matá-lo, Davi ainda ministrou ao
AI (v. 1,2) Refúgio presente e oração rei demente com sua música e lhe prestou
B 1 (v. 3-5) O pecado e sua recompensa outros devotados serviços (1Sm 18.10-13;
C' (v. 6-8a) O Deus de Justiça 19.9; lSm 20.1; 24.10s.,17; 26.18,23s.).
D (v. 8b,9) Uma consciência Arraste no pó a minha glória, arruíne mi-
limpa nha reputação publicamente.
C2 (v. 10-13) O Deus de Justiça 6-8a O Deus de Justiça: o juízo final.
B2 (v. 14-16) O pecado e sua recom- Reúnam-se... os povos indica que Davi está
pensa se referindo ao último julgamento. Por mi-
A2 (v. 17) Agradecimentos e louvores fu- sericórdia, o Senhor pode deixar passar pe-
turos cados agora, mas não naquele dia. Porém,
Davi está tão confiante de sua inocência
O movimento geral do salmo é o tema que pede pelo juízo final agora!
bem conhecido de que a oração resolve 8b-9 Uma consciência limpa diante
crises e resulta em louvores por sua so- de Deus. Retidão (8), não perfeição sem
lução. Os v. 3-5 e 14-16 reconhecem que pecado, mas equivalente a uma alegação
todo pecado tem uma consequência; e, de "inocente" em relação a uma acusação
na situação narrada, Davi está disposto a específica. Integridade (8), isto é, sua re-
enfrentar todo o rigor da justiça. Este é o tidão não é um mero conformismo, mas
modo como o pecado "funciona" (14-16): um estado do homem como um todo; cf
ele parece um bumerangue, como se fosse a mente e o coração (9) - que se refere
8
745 SALM09"
8.
a pensamentos, imaginação, sentimentos circunstância extraordinária em que a fra-
e reações. queza sobrepujou o poder. Quando, à noi-
10-13 O Deus de Justiça: Salvador e te (3), ele meditava sobre isso, percebeu
Juiz. Deus é o meu escudo, lit., "Meu escu- que era um traço típico do modo de agir
do está com Deus" - ele é o meu escudei- do Senhor. A humanidade, insignificante
ro/defensor. Converter (12), "arrepender". quando comparada com a imensidão do
Mesmo diante de um Deus assim (9,11) a universo, é tomada pelo Senhor, receben-
penitência evita o juízo. do dele glória o domínio sobre o universo
14-16 O pecado e sua recompensa: - um princípio perfeitamente concretiza-
algo inevitável. O v. 14 se inicia com Eis do no Senhor Jesus Cristo e que ainda está
- "Vejam, é assim!", a conexão entre o para ser realizado na humanidade redimida
pecado e sua paga. (Hb 2.5-9). Esse princípio é claramente
17 Agradecimentos e louvores futu- expresso na maravilha da chamada divina
ros. Uma consciência limpa faz com que (1Co 1.26-28) e está à disposição de todo
Davi tenha confiança num futuro diferente. crente (2Co 12.9,10).
Nota. Título, sigaiom (ARe), v. Intro- Notas. la Senhor nosso, (lit.) "nos-
dução. so Soberano"; também no v. 9. lc,ld,2
Suscitaste força, fundaste a tua força sobre
Salmo 8. O Deus dos um alicerce firme. Vingador pode signi-
insignificantes ficar alguém que executa uma retaliação
Se os v. lc,2 fossem retirados do salmo, por uma ofensa sofrida (Jr 5.9), mas tam-
restaria um poema equilibrado, com um bém pode significar, simplesmente, como
tema coerente. As aclamações do magní- aqui, alguém agindo em proveito próprio
fico nome, que ocorrem no início e no fim, (v. 44.16).
emolduram duas estrofes de mesmo com-
primento que tratam do reconhecimento e Salmos 9 e 10. Fé combativa
honra que o Senhor condescende em outor- Os salmos 9 e 10 formam um acróstico alfa-
gar à humanidade (3-5) e da posição de do- bético incompleto (v. Poesia na Bíblia).
mínio que ele nos deu sobre toda a criação Quatro letras estão faltando, duas foram
(6-8). Neste ponto, o NT vê o Senhor Jesus transpostas e uma aparece na segunda
Cristo em seu reino presente (Ef 1.22; Hb palavra de sua estrofe. Foram feitas ten-
2.5-9) e no triunfo futuro (ICo 15.27) que tativas de restaurar um acróstico perfeito,
será compartilhado com o povo comprado mas o acróstico incompleto se divide em
por ele (Ap 5.9,10). três seções de seis letras cada: 9.1-12;
Mas o que desencadeou esta linha de 9.13-10.6; 10.7-18. O tema é a oposição
pensamento sobre a condescendência de dos perversos (9.6,17,18; 10.2,3,4,13,15).
Deus e o domínio do homem no mundo? A seção 1 (9.1-12), que começa e termina
A resposta é encontrada quando se recolo- com adoração (1,2,11), é uma declaração
ca a primeira estrofe em sua posição ori- tranquila: os perversos estão ao derredor,
ginal. O Deus transcendente (1c,d), com mas Deus está no trono. Porém, na seção
o poder soberano em suas mãos, decide 2 (9.13-10.6), a realidade da vida é tur-
usar a boca de pequeninos e crianças de bulenta, gerando um clamor pela compai-
peito (2). Devemos interpretar isso literal- xão (9.13) divina e por uma ação de revide
mente - um inimigo silenciado por uma (9.19). O Senhor está distante (10.1), os
criança? Ou estaria Davi usando "criança" perversos prosperam (10.2-6). O fim é cer-
figurativamente para falar de algo peque- to (9.15,16), mas isso não traz necessaria-
no, fraco e impotente? Não há como saber, mente o conforto necessário aqui e agora.
mas está bem claro que ele passou por uma Contudo, na seção 3 (10.7-18), a oração é
SALMü9 746

o recurso suficiente. Os perversos (7-10) boram a vindicação dos que pertencem ao


acham que Deus não se importa, enquanto Senhor (4) numa esplêndida afirmação de
a pessoa que ora busca a ação divina, pois sua própria segurança. Em outras palavras,
Deus não é como eles dizem, mas há de o que será totalmente verdadeiro no dia do
destruir e julgar de forma final e universal julgamento (porque Deus está no trono) já
(11-16). A oração será ouvida; os desam- é verdadeiro agora, até certo ponto (por-
parados receberão o que é seu de direito; e que ele está sempre no trono). 9,10 O que
os opressores deixarão de existir (17,18). o Senhor é e o que nós podemos fazer. Ele
é refúgio e alto refúgio, a mesma palavra,
9. 1-12 Fé confiante ressaltando a altura (inacessível), a "se-
gurança máxima". "Nunca desamparaste"
AI (v. 1,2) Louvor (10, ARe): uso do pretérito perfeito para
B' (v. 3,4) O rei justo expressar a imutabilidade do caráter divi-
C (v. 5,6) O juízo final no, i.e., "nunca o fez e jamais fará".
B2 (v. 7-10) O rei justo 11,12 Louvor. O Senhor "reina em
N (v. 11,12) Louvor Sião" (NVI; habita, ARA). O juízo final dei-
xará absolutamente claro que o Senhor rei-
A derrota final dos perversos e o fim da na (4,7), mas ele já é rei agora, reinando
oposição deles não é o nosso único conso- entre o seu povo. É preciso proclamar isso
lo, mas é o nosso ponto de partida (5,6). aos povos. Feitos, suas obras de criação,
"Deus ainda está no trono". Em primeiro redenção e preservação.
lugar, Davi toma posição, imaginariamente,
no dia do julgamento (3,4) e, usando o 9.13-10.6 A fé golpeada
tempo passado, descreve a derrota de seus O clamor por misericórdia (9.13) e a per-
inimigos e sua própria vingança, enquanto gunta Por quê? (10.1) anunciam o tema da
nos versículos correspondentes (7-10) ele segunda seção do salmo. A fé não deixou
estende o olhar para adiante, antevendo a de ser confiante. Ela não se baseia em ins-
obra do mesmo Senhor reinante. táveis acasos terrenos, mas no Deus que,
1,2 Louvar, "dar graças"; maravi- apesar de tudo, está no trono. Porém, os
lhas, atos cuja causa só pode estar fora da golpes terrenos também são reais, e mui-
humanidade. Em ti. A alegria passa do feito tas vezes o mundo em que vivemos parece
(maravilhas) para o realizador. Nome, tudo pertencer aos ímpios e maus.
que o Senhor revelou sobre sua natureza.
Ainda que a vida seja difícil e o ajuste final AI (v. 13,14) A necessidade imediata: o so-
de todas as coisas ainda não tenha aconte- frimento está presente
cido, há motivos suficientes para louvor no B (v. 15-20) Certezas quanto ao futuro
que o Senhor é e faz. N (10.1-6) Necessidade imediata: Deus
3,4 O rei justo, derrotando e vingan- parece distante
do. Tua presença. A presença do Senhor é
suficiente (Ap 6.16). 13,14 Necessidade imediata: o sofri-
5,6 O juízo final. O julgamento do mento está presente. Tu que me levantas,
Senhor abrange o caráter (o nome), as rea- uma descrição tanto de caráter quanto de
lizações (suas cidades) e o lugar na histó- ação. O seguro contarei (1) é modificado
ria (memória). para que eu proclame, "conte" (14). A ad-
7-10 O rei justo, julgando e prote- versidade atual amortece a voz de louvor.
gendo. Repetindo os temas trono, justiça Permanece a certeza de que Deus irá agir
e julgar, encontrados nos versículos cor- - mas um pouco de ação agora ajudaria!
respondentes (3,4), esses versículos ela- Como este salmo é realista!
111
747 SALMO 11 - :
111

15,16 O pecado receberá sua paga. se feito isso. Igualmente surpreendente é


"Precipitaram-se... ficou preso" (ARe) (15). que nada é feito, exceto por meio da ora-
O uso do pretérito perfeito indica certeza: ção. Por mais mortífera que seja a ameaça
"com certeza acontecerá". Pela providência (9.13; 10.8), por mais poderoso que seja o
divina, o pecado é como um bumerangue. inimigo (10.9), basta orar, porque o Senhor
Está (16), tempo presente: os perversos já é rei (9.4,7), ele conhece as nossas neces-
estão apanhados (sem saber!). sidades (10.14), e se comprometeu a pro-
17 Os perversos são eliminados. Serão porcionar refúgio (9.9,10), levantar (9.13)
lançados, tempo futuro. Inferno, heb. sheol, e ajudar (10.14).
o lugar onde habitam os mortos.
18-20 Deus não esquece. A certeza de Salmo 11. Fé e verdade
condenação (15-17) e livramento (18) fu- Um pano de fundo como o de 1Samuel
turos não resolve as adversidades atuais; 18.8-19.7 ilumina este salmo. A vida de
daí a necessidade de oração (13). Davi estava em perigo diariamente. O sal-
10.1-6 Deus parece distante. A per- mo se divide em três partes.
gunta (1) não expressa uma realidade teoló- 1-3 A proteção do Senhor. O conselho
gica (v. 9.10), mas um sentimento pessoal. para fugir tem fundamento: por causa do
Muitas vezes podemos nos sentir privados perigo real (2); e porque a total instabili-
da presença de Deus, mas a maneira certa dade da sociedade toma impossível manter
de reagir a esse sentimento não é alimen- um curso seguro. Davi, entretanto, afirma
tar a tristeza, e sim levar o problema ao que o caminho da confiança é contrário ao
Senhor. 2-6 Aqui está o cerne da tensão argumento da fuga. Fundamentos (3), as
entre a fé e a experiência pessoal. A fé diz "regras básicas" que organizam a socie-
que os maus certamente serão apanhados dade. Numa situação como a demência de
em sua própria armadilha (9.15). Mas, na Saul, as regras são mudadas a todo instante,
vida (2), muitas vezes são os fracos que são e Davi não conseguiria saber como evitar
apanhados, enquanto os maus continuam transgredi-las. Mas o argumento em defesa
a praticar, impunes, valores errados (3), da confiança também é sólido: as palavras
ateísmo (4), prosperidade sem moralidade no SENHOR (1) são enfáticas. Como ele é
(5ab) e serena autoconfiança (5c,6). digno de confiança, a atitude mais lógica
diante da vida é confiar.
10.7-18 A fé que ora 4-6 A providência do Senhor: de seu
7-11 O Problema: o perverso é hostil na fala trono, ele observa e examina (4). Confiança
(7), assassino no intento (8,9), impiedoso não garante uma vida de tranquilidade e
na força (10), um ateu na prática (11). bem-estar. Ao contrário, ela traz prova-
12-16 O Recurso: orar pela interven- ções para o justo, o que está correto diante
ção divina para defender o fraco e a ver- de Deus (5a), mas o que ama a violência
dade (12,13); baseado em conhecimento encontra oposição (5b,6).
divino, intenção e compromisso com o 7 O favor do Senhor. Lhe contempla-
necessitado (14); e pedindo o fim do po- rão a face significa ver o Senhor "levantar
der do perverso, sua condenação (15) e o a face", i.e., aceitar alguém com favor em
juízo final (16). sua presença. Assim, a fé tem três facetas:
17,18 A Convicção: a oração é ouvida a fé que foge em busca de segurança (1);
(17), o livramento é total (18). a fé que aceita as provações da vida como
Essa veemência na oração é surpreen- propósito do Senhor (5a); e a fé que espera
dente. Levanta-te (9.19; 10.12), como que um resultado abençoado. Para os justos, as
acusando o Senhor de "dormir no ponto"; provas de Deus são o caminho que os con-
não te esqueças (12) - como se ele tives- duz até sua presença imediata (7).
.-
11
11I_ SALMO 12 748

Salmo 12. A guerra de palavras mas aqui ele tem apenas um inimigo em
Este salmo coloca duas "palavras" na ba- mente (2,3). O fato de Davi não orar pela
lança: à sua volta, Davi não ouvia senão fal- destruição do inimigo se encaixa na situa-
sidade, lisonja e dissimulação (2); mas, por ção envolvendo Saul (1Sm 26.9ss.) ou
outro lado, há uma palavra que é absoluta Absalão (2Sm 18.5). As três estrofes desse
em pureza (puras, 6a), valor (prata, 6b) e poema têm, respectivamente, 5, 4 e 3 li-
ausência de qualquer imperfeição (depura- nhas: as dimensões da situação diflcil (1,2)
da sete vezes, 6c). Essa é a escolha com que se fundem na oração urgente (3,4) e depois
o crente sempre se defronta: ser distraído e descansam tranquilamente na experiência
desorientado pela palavra do homem ou se transformada (5,6). A inquietação é leva-
basear na palavra de Deus. Pois a socieda- da para o interior do lugar de intercessão e
de, a qualquer momento, pode parecer com emerge exultante.
a descrição dos v. 1,2: sem espiritualidade, 1,2 A angústia tem três dimensões:
confiabilidade e veracidade, e nós precisa- espiritual (Será que o Senhor se esque-
mos da segurança de uma base firme (6). ceu?), pessoal (conflito e tristeza interio-
A solução para o colapso dos valores res) e circunstancial (inimigo dominante).
sociais (2) é a oração (1 ,3) pelo livramento 3,4 Dimensões de oração idênticas: espi-
pessoal (1, socorro, "salva") e pelo juízo ritual (Atenta, favor divino restaurado, a
divino sobre a falsidade desenfreada (3,4). face não está mais escondida) (1), pessoal
É correto orar por justamente tal ação divi- (ilumina, renovação), circunstancial (ini-
na para depurar a sociedade (3); de fato, o migo ... adversários). A verdadeira oração
Senhor sanciona esse tipo de oração com o leva todos os aspectos do problema ao
seu compromisso de agir (5). Senhor. 5,6 Dimensões da transformação:
A reação à palavra do Senhor é confiar. espiritual, a face oculta (1) é substituída
Como sua palavra é perfeitamente pura, pela graça; pessoal, a tristeza do coração
ele a cumprirá, comprometendo-se a agir se transformou em regozijo; circunstan-
em resposta às necessidades e contra o erro cial, o inimigo violento é substituído pela
(5). Em retribuição, nós reafirmamos nossa suficiência divina: me tem feito muito
confiança (7), mesmo que o problema ain- bem, "tem me dado tudo", melhor enten-
da seja tão terrível quanto antes (8). dido por "perfeito em segurança", "... de-
Notas. 1 Piedosos, cf 4.3. 2 Pecados da terminou fazer".
língua (cf Is 6.5; SI 34.12,13; Rm 3.13,14; Portanto, a oração traz uma solução
Tg 3.2-6). Coração fingido, "com coração completa para o problema que foi total-
e coração", nós diríamos "de duas caras". mente compartilhado com o Senhor.
5-8 Como o que o Senhor promete (5) é
parte de sua palavra perfeita (6), confie Salmo 14. Vozes: ateísmo
nele (7) mesmo quando o problema con- e experiência
tinua (8).5 Pobres ... necessitados, respec- O enfático Ali (5, ARe, lit., "Ali, estavam
tivamente, as vítimas da injustiça social e realmente com medo") recorda a ocasião
os explorados. 6 Puras, especificamente a que deu origem a este salmo - alguma si-
pureza que Deus pode aceitar. 7 Para sem- tuação em que o ateísmo encontrou-se face
pre, ou: -ó, tu que és para sempre". a face com a realidade da presença de Deus
entre o seu povo. Que ocasião foi essa não
Salmo 13. Novas dimensões temos meios de saber. Estaria o salmista
para o antigo: transformação meditando em Êxodo 14.1O-28? O ateísmo
pela oração em questão é mais prático que teórico, não
Temos aqui o mesmo cenário de Salmos tanto negar a existência de Deus, mas sim
9-12: Davi está cercado de adversários, sua relevância.
11II
749 SALMO16':
11II

1 Insensato, uma pessoa sem nenhum justiça, o que é reto diante de Deus. 5
senso de valores morais ou obrigações so- "Contentamento" expressa o fato de que
ciais (Is 32.6; cf lSm 25, esp. v. 25), de essa pessoa não é movida pelo dinheiro:
caráter corrupto, espiritualmente abomi- emprestar sem pensar em lucro (Lc 6.35),
nável ("detestável [para Deus]"); quanto recusar dinheiro sujo. 6 Abalado, i.e., fora
à conduta, não faz o bem. 2 Como essas de seu lugar no tabernáculo do Senhor.
pessoas não [buscam] a Deus, a consequên-
cia é que, 3, deliberadamente todos se ex- Salmo 16. Segurança eterna
traviaram e juntamente se corromperam, O motivo que levou Davi a clamar por
tratam o povo de Deus como caça e não sua preservação (1) não está claro, mas
sentem necessidade de Deus (não invo- o foco na morte (9-11) sugere que algum
cam, 4). Está igualmente claro que não embate com a morte, por causa de doença
adianta argumentar com essas pessoas; a ou perigo, o tenha levado a esquadrinhar
única coisa que elas entendem é a inegável a questão da segurança pessoal, sua natu-
realidade da presença de Deus entre o seu reza e extensão. De qualquer modo, esse é
povo (5b) e o fato de ele ser o seu refúgio o tema do salmo, cuja estrutura proclama
em todas as necessidades (6b). A resposta sua mensagem:
para a falta de espiritualidade é a verdadei-
ra espiritualidade. A' (v. 1) Segurança em Deus: um apelo
O salmo registra três vozes, cada uma B (v. 2-4,5,8) As evidências da segu-
delas seguida de um comentário: O insen- rança
sato (1a,b), comentário no v. 1c.d; o Senhor a' (v. 2) O Senhor, meu bem total
(2-4), comentário no v. 5; Israel (7a,b), a2 (v. 5) O Senhor, minha porção
comentário no v. 7c. A oração final pede b' (v. 3) Prazer no povo
que o que aconteceu uma vez (5,6) possa b2 (v. 6) Prazer na herança
tomar-se uma realidade permanente (sal- c' (v. 4) Compromisso: negativo
vação, 7), mas o comentário que a acom- c2 (v. 7,8) Compromisso: posi-
panha é puro realismo: o dever do povo de tivo
Deus é regozijar-se nele aqui e agora. N (v. 9-11) Segurança eterna em Deus:
uma propriedade
Salmo 15. O hóspede do
Senhor: Posso entrar e ficar? 1 Segurança em Deus: um apelo. A
Esta é frequentemente chamada de uma segurança começa quando pedimos por
"liturgia de entrada", com um candidato ela e a buscamos em Deus (1). 2-8 Há
a adorador perguntando quais são as con- três evidências da posse dessa segurança:
dições de entrada e um sacerdote respon- Primeiramente, prazer no Senhor: (2) senão
dendo. O foco (1, habitará... morar): como a ti somente, "meu bem/bem-estar não está
alguém pode morar, não no seu santuário, além de ti/não está fora de ti", "tu és todo
mas em seu tabernáculo, desfrutando de o bem de que necessito" - "Tu, ó Cristo,
sua hospitalidade como convidado em és tudo que eu quero"; (5) lit., "O Senhor é
sua casa. Aqui está a santidade sem a qual a minha parte da porção"; cálice, traduzi-
ninguém vê a Deus (Hb 12.14), abrangen- do por porção (cf 11.6 na ARC), sorte pes-
do conduta, conversa e relacionamentos soal, boa ou má, na vida. Dizer O SENHOR
(2,3), valores, integridade e contentamento é... o meu cálice é afirmar que, na alegria
financeiro (4,5). ou na tristeza, ele é a realidade dominante
Notas. 1 Habitar, "permanecer como (73.25,26). Em segundo lugar, prazer no
hóspede". 2 "Anda" (ARC), estilo de vida; povo e no reino de Deus: (3) santos, "con-
integridade, "perfeição"/em uma só peça; sagrados", aqueles que o Senhor "separou"
SALMO 17 750

para si; (6) [lugares] amenos, sinônimo de divina. O primeiro e o terceiro são segui-
prazer (3) aqui o objeto é a herança que o dos por afirmações pessoais (6,15), cada
Senhor designou. Em terceiro lugar, prazer uma começando com um enfático prono-
na verdade do Senhor. Recusando a de- me de primeira pessoa (Eu; Eu, porém),
voção a outros deuses (4c) ou ao que eles respectivamente confiantes de uma audiên-
afirmam ser (4d, nome), Davi tem prazer cia presente e de uma futura visão de Deus
no ensinamento do Senhor (7, aconselha ... (cf 16.1,9-11).
ensina) e, em sua luz, faz do Senhor o alvo 1-5 Apelo baseado na justiça. É cla-
contínuo de sua vida (8, tenho-o) e desfru- ro que Davi não está alegando não ter pe-
ta de sua presença (8b,c). cado algum em geral, mas sim que, nesta
9-11 Segurança eterna em Deus, situação particular, ele manteve a justiça,
uma propriedade. A segurança tem uma como a narrativa de seu relacionamento
dimensão eterna: a pessoa inteira, tanto com Saul revela. Ele chega diante de Deus
interna (coração) quanto externamente com a consciência limpa (cf Ne 6.8,9; At
(corpo) ("carne", ARC), repousará segu- 24.16), a causa justa (1), "Ouve... a justi-
ro, mesmo em face da morte ("inferno", ça" (ARC), (cf Dt 1.16, lit., "e julga a jus-
ARc/sheol, onde moram os mortos); além tiça", leva em conta todo o peso da justiça
do sheol existem caminhos da vida que ao julgar). Portanto, aqui, "ouve à luz da
conduzem a (lit.) "fartura de alegrias" na (tua) justiça". De noite (3), numa hora em
tua presença. que os pensamentos vagueiam facilmente
Mesmo quando Davi escreveu esse e caminhos errados são cogitados (v. 16.7;
salmo, estava indo além de sua experiên- cf 36.4). Minha boca, ênfase bíblica na
cia pessoal; por exemplo, ele nem sem- importância do que se diz (4). Em relação
pre teve o Senhor diante dele, nem esteve a Saul, a palavra divina que proclamou o
sempre inabalado. Tanto ele quanto seus rei como ungido do Senhor acabou sendo
contemporâneos reconheceriam no salmo a salvaguarda de Davi, quando outros o
um ideal não concretizado. Portanto, o NT aconselharam a tomar um rumo diferente
identifica corretamente aqui uma prefigu- (1Sm 24.3-7; 26.8ss.). A consciência lim-
ração do Senhor Jesus Cristo, em quem pa de Davi resultava de andar no caminho
esses ideais e esperanças se cumpriram revelado de Deus, em suas veredas, sem
(At 2.24-32) e por meio de quem a mesma desviar os passos (meus pés não resvala-
esperança nos aguarda (Rm 8.11). ram,5).
6 O motivo de lidar com uma crise por
Salmo 17. Apelo à meio da oração é o fato de que Deus (sem-
suprema corte pre) responde. Deus, et, a mais transcen-
O trecho de lSamuel 23.25ss. fornece um dente das palavras usadas para designá-lo.
contexto adequado para este salmo. A nar- A oração leva as nossas necessidades dire-
rativa se encaixa com o salmo quando o tamente à própria "Divindade". Devemos
salmista se vê cercado de inimigos entre os nos lembrar de que existem outras bases
quais um é particularmente hostil (o v. 12 é para a oração além de uma consciência
singular). Há elos com o salmo 16, e talvez pura. Apelamos com a mesma garantia
o perigo refletido aqui seja o embate com a com base no fato de sermos necessitados
morte em que aquele salmo se baseia. (86.1), no perdão divino (86.4,5) e no
O salmo consiste em três apelos: Ouve nome de Jesus (Jo 16.23).
(1), inclina (6), Levanta-te (13). O pri- 6b-12 Davi apresenta suas necessi-
meiro (1-5) defende a justiça do salmista; dades a Deus. Embora nosso Pai conhe-
o segundo (6b-12) é contra inimigos im- ça as nossas necessidades, ainda assim
placáveis; e o terceiro (13,14) pede a ação precisamos orar (Mt 6.6-13). Jesus, que
751 SALMO 18

sabia o que cada um precisava, perguntou: Salmo 18. Deus nas sombras:
"Que queres que eu te faça?" (Me 10.51). Deus no controle
7 (Lit.) "Toma o teu amor maravilhoso": Quando lemos o título e o salmo, dizemos:
o adjetivo refere-se ao poder sobrenatural mas não foi assim de jeito nenhum! Quando
de Deus, o nome do amor imutável que ele foi que, na história de Davi, o Senhor pre-
nos garante. 8 Menina dos olhos, "pupila". cipitou-se do céu em seu socorro, caval-
Da mesma forma que nós temos o reflexo gando um querubim (10)? Tempestades
instintivo de proteger os olhos, Davi espe- (12) foram enviadas para salvar (Js 10.11),
ra que Deus tenha uma reação instintiva mas não na história de Davi; o vento do
imediata de protegê-lo. Asas (61.4; cf Rt Senhor (15) cavou um caminho pelo mar
2.12).9 Assediam de morte, "ameaçam a Vermelho (Êx 14.21; 15.10), mas nenhum
vida". 11 "meus ... mim" (NvI)!nos... nos acontecimento desses está registrado na
(ARA). Kidner: "Os companheiros de Davi época de Davi. Os livramentos que ele ob-
nunca estão longe de seus pensamentos". teve foram por meios diferentes: um ataque
12 (Lit.) singular, ou: "Cada um é como" dos filisteus (lSm 23.26s.), a consciência
ou: "Ele é como". (Y. introdução acima). impressionável de Saul (1Sm 24; 26), e até
13,14. O terceiro apelo: pela ação mesmo uma fuga (lSm 27.1).
divina. Davi olha somente para a espada Mas essa aparente discrepância entre
(poder punitivo) e a mão do Senhor (ação os termos do salmo e os da história é, na
pessoal). 14 Mundanos ["do mundo", verdade, propositada. Quando fez um re-
ARe]. .. desta vida, i.e., pessoas influencia- trospecto do ponto de vista do livramento
das apenas por valores mundanos etc.; por- (Título), Davi reconheceu que aquilo só
tanto, de quem não se pode esperar nenhu- poderia ter sido feito pelo Senhor do Sinai
ma ternura. 14c,d pode ser como na NVI, (7,8; cf. Êx 19.18), dos castigos do Egito
mas a mudança dos inimigos do Senhor (9-12; cf Êx 9.13ss.; 10.21ss.) e do mar
(14a,b) para seus protegidos destrói o con- Vermelho (15), respectivamente, o Senhor
traste com o v. 15. Provavelmente: "E o agindo em santidade, juízo e libertação.
que tu tens reservado, enche com ele o seu Este é o significado das imagens vívidas
ventre! Que os seus filhos tenham mais do que ele utiliza: por trás de todas as cir-
que o suficiente!". O que o Senhor tem "re- cunstâncias está a operação sobrenatural
servado" é o castigo que eles merecem e de Deus. Davi se refugiou na caverna de
que, segundo o princípio bíblico da família Adulão (1Sm 22.1) e nas rochas das cabras
(Êx 20.5), passa para os seus descendentes. selvagens (1Sm 24.2), mas depois perce-
Davi não ora de forma vingativa: ele de- beu que o Senhor é que tinha sido sempre
saprova os pecados da língua (1). Em vez sua rocha e refúgio (2,46), ocultando sua
disso, ele se identifica, retamente, com a glória, com certeza, por detrás do escuro
ira santa do Senhor em todos os seus as- véu das circunstâncias, mas reinando de
pectos revelados. seu trono, em beneficio de seu servo.
15. A abertura enfática, Eu, porém, Porém, a história não acaba aí. Havia
"quanto a mim", contrasta com o prece- uma ligação entre sua necessidade deses-
dente. O futuro dos inimigos de Davi está perada e o poder libertador do Senhor:
nas mãos de Deus. Eles "serão saciados! 3 Invoco... serei salvo; 6 (lit.) "Continuei
satisfeitos" (14, se fartam) com o castigo chamando... continuei gritando... meu
que está guardado; ele "se satisfará" com clamor por socorro continuou chegando
a presença visível (semelhança) de Deus diante dele" 16 Do alto me estendeu ele a
(cf 11.7). Acordar é usado aqui para se re- mão...: a oração fez toda a diferença. Será
ferir à ressurreição (cf Is 26.19; Dn 12.2; que Davi alguma vez parou para pensar
v. também 49.15; 73.23,24; 139.18). que esse Senhor todo-poderoso poderia,
SALMO 18 752

com a mesma facilidade, tê-lo mantido a (cf 1 Rs 3.26: "o amor... se aguçou"), usado
salvo se ele tivesse permanecido no olho frequentemente com relação ao repentino
da tormenta, no palácio de Saul (1Sm amor de Deus por seu povo (e.g., 103.13,
19.9,10), e evitado todos aqueles amargos "compadece") e só aqui para o amor huma-
anos no deserto? no em relação a Deus. 2 Rocha, "rochedo
O objetivo dos v. 1-19 é permitir que íngreme, penhasco", rochedo... baluarte,
tenhamos a visão do poder soberano es- "alto refúgio" (9.9), todas essas palavras
perando para ser acionado por meio da sugerem "estar colocado no alto, fora do
oração. Nos v. 20-45, Davi expõe siste- alcance dos inimigos". Escudo, símbolo
maticamente as lições aprendidas com as de força conquistadora, contrastando com
experiências que teve, pois a Bíblia nos a força defensiva. Kidner: "Nessa torrente
ensina com o passado a sermos previ- de metáforas, Davi revive suas fugas e vi-
dentes com o futuro. Esses versículos se tórias [...] e assim sonda o seu significado".
dividem em quatro seções marcadas por Me refugio. Não há sentido em termos uma
diferenças no linguajar: "O Senhor e eu" fortaleza se não corremos para lá em busca
(20-24,30-34) e "Tu e eu" (25-29,35-45). de segurança.
De modo geral, a primeira forma diz como 3-19 (BI) Os caminhos secretos de
o Senhor age, e a segunda mostra sua ação Deus. Em cada situação (v. Introdução
aplicada a Davi. O princípio de que o acima), o poder de Deus agia em favor
Senhor recompensa a justiça é enunciado de Davi, ainda que a sua glória estivesse
aqui (20-24), e Davi descobriu que, numa escondida. Mesmo quando a vida parece
situação em que ele tinha razão de afirmar extremamente monótona, a presença so-
sua justiça, o Senhor transformou suas tre- brenatural de Deus está lá. 3-6 A eficácia
vas em luz (25-29). Portanto, não devemos infalível da oração: Invoco ... serei salvo
simplesmente pressupor que o Senhor irá (3) ("Invocando... sou salvo", TB. O uso do
nos abençoar, mas sim nos empenhar ati- tempo presente expressa um princípio imu-
vamente em andar no caminho da justiça tável). 4,5 A crise mortal. 6 A eficácia parti-
para herdar a sua bênção (At 5.32). Nos cular da oração ao enfrentar a crise, porque
v. 30-34, aprendemos que o Senhor, cujo ela é feita ao Deus da Aliança (SENHOR),
caminho... é perfeito (30), pretende aper- intimamente conhecido (meu Deus), que
feiçoar o meu caminho (32). Davi narra se faz acessível (templo) e ouve pessoal-
como isso ocorreu com ele, dando-lhe ca- mente (ouvidos). 7-15 A oração convoca
pacitação e vitória num período de gran- o Deus temível para ficar ao nosso lado, o
de luta (35-45). Mas em todas as coisas qual responde em ira (7,8), em pessoa (9-
o Senhor está trabalhando para nos tomar 12), e em poder (13-15). Veja a introdução
semelhantes a ele (cf Rm 8.28; Hb 12.7- acima para o uso de temas como a praga
11). O salmo termina (46-50) da mesma do Egito, o Sinai e o mar Vermelho. 16-19
forma que começou (1-3), com louvores à Tudo isso porque um indivíduo era precio-
divina Rocha e Salvador. so e importante para ele - observe (TB)
Este salmo é praticamente igual a como me/meu, minha ocorre duas vezes
2Samuel 22. No Título, ele inclui a signi- em cada versículo.
ficativa expressão servo do Senhor. Isso 20-45 (B2) Os caminhos revelados de
sugere que o salmo é posterior à forma Deus. 20-29 As palavras-chave (20-24)
apresentada em 2Samuel e que essas pala- segundo a minha justiça... segundo a mi-
vras foram acrescentadas editorialmente em nha justiça são os "parênteses" que deli-
homenagem a Davi (ou à sua memória). mitam a primeira seção. Depois, ocorre
1,2 (A I) Sumário: Devoção pessoal uma generalização (Para com o benigno,
ao Deus salvador. 1 Amo, amor ardente benigno ... com o integro ... integro, 25) e
753 SALMO 19 <
uma particularização (minha lâmpada... desde o princípio de seu reinado, após seu
minhas trevas, 28) na segunda estrofe. Em livramento das mãos de Saul.
outras palavras, somos ensinados a reco- 46-50 (A 2) Sumário: Devoção pessoal
nhecer a retidão moral do nosso Deus e a ao Deus salvador. A certeza de Davi
nos colocar deliberadamente no caminho de que teria um reinado vitorioso não se
da bênção, fazendo o que agrada a ele. Isso cumpriu nem nele nem em sua linhagem,
não é salvação por obras, pois Davi já é nem se cumprirá completamente até que o
do Senhor, mas bênção por meio da obe- "Grande Filho de Davi" retome em triunfo
diência, que ainda é a posição dos remi- universal (Fp 2.9-11).
dos. 20 Retribuiu-me, "recompensou-me
totalmente/supriu completamente a minha Salmo 19. Três vozes
necessidade". 21-23 A recompensa não em contraponto
veio sem um compromisso coerente e de- 1-6 A voz da criação: paradoxo. Por todo
terminado com a santidade, positivamente o espaço (1), tempo (2) e terra (4), a ordem
(tenho guardado... me estão presentes... criada "relata" (1,proc!ama) quão glorioso
íntegro) e negativamente (não me apar- é o Deus que a fez com suas mãos (1b).
tei... não afastei ... me guardei). 23 Íntegro, 4 Voz (linha, TE, NVI rnrg.) significa "domí-
"perfeito". Iniquidade ("minha iniquida- nio designado"/"influência". Esse domínio
de", ARe), "pecado", algum pecado a que é exercido (Gn 1.16) pelo sol (5,6), nas-
Davi se sentia especialmente tentado. 27 cendo de novo a cada dia, cruzando o céu
Humilde. Muitas vezes, como aqui, o povo com grande força, penetrando em toda par-
do Senhor afligido por arrogância opres- te. Porém, paradoxalmente, cada um deles
siva. 28,29 O Senhor garantindo conti- discursa (2), mas não há linguagem (3).
nuidade pessoal (lâmpada), mudança nas Ao mesmo tempo, a ordem criada conta
circunstâncias (luz... trevas), poder sobre mas não diz: ela declara à nossa intuição
pessoas (exércitos) e coisas (muralhas). que existe um Deus glorioso que criou es-
Os v. 30-45 discorrem sobre outra verdade sas maravilhas, mas sua mensagem é limi-
acerca dos caminhos revelados de Deus. tada - ela não pode falar sobre ele - e
Aquele que agiu com justiça (20-29) tam- isso é desconcertante, pois a beleza dos
bém age com propósito: Perfeito em seu montes conta uma verdade, e a tempestade
caminho (30). Ele quer tomar o meu cami- e o vulcão contam outra.
nho perfeito (32). 7-10 A voz da palavra: perfeição.
O salmo agora alterna o que o Senhor O Senhor não nos abandonou à incerteza
faz (30,31,35,39,43) e o que Davi faz ca- da religião natural; ele falou sua palavra,
pacitado pelo Senhor (32-34,36-38,40-42). que aqui recebe seis títulos: lei (7), "ins-
Em outras palavras, para alcançar a per- trução"; testemunho, o que o Senhor re-
feição que o Senhor propõe, é necessário conhece como verdadeiro; preceitos (8),
corresponder ao que ele faz por nós (cf Fp aplicáveis aos pequenos detalhes da vida;
2.12,13). Isso explica a referência à pura mandamento, para serem obedecidos; te-
palavra de Deus, que inicia a seção (30). mor (9), digno de reverência; juízos, deci-
Assim como o Senhor revela sua vontade, sões tomadas com autoridade.
nós somos chamados a lhe obedecer. Os Ela tem cinco qualidades atribuídas
v. 37-45 vão além do episódio de Saul, conforme esses seis títulos: perfeita em
pois, naquela ocasião, Davi não perseguiu, todos os aspectos e fiel, confiável, em sua
revidou etc. Muito provavelmente, os tem- integridade (7); reto (8), correto, dotado de
pos pretéritos dos verbos que aparecem retidão moral; puro, "luminoso", sem con-
aqui são "pretéritos perfeitos de certeza", taminação; límpido (9) (cf 12.6), de pure-
já antecipando sua trajetória e vitória final za aceitável a Deus; "durável", permanece
SALM02ü 754

para sempre; verdadeiros... justos, "verí- como um descuido (faltas, "erros"), uma
dicos... corretos", correspondentes às nor- falha até então desconhecida, um insulto
mas objetivas da verdade; desejáveis (10), deliberado (soberba) à palavra de Deus.
"preciosos", cheios de valor intrínseco; Transgressão, rebeldia intencional contra
mais doces, cheios de alegria verdadeira. um superior. 14 Lábios... coração, exte-
Ela tem quatro resultados: restaura (7) riormente ... interiormente.
(35.17; cf Rt 4.15; Lm 1.16), reconstrói a
vida verdadeira ameaçada por um perigo Salmo 20. Antes da batalha:
ou degradada pela tristeza; o termo sím- A vitória da oração e da fé
plices tem o significado negativo de "in- Este salmo combina com um culto de ora-
gênuo/crédulo" (Pv 7.7; 14.15; 22.3), sem ção e sacrificio na véspera de uma batalha
princípios morais, e o significado positivo (cf lSm 7.7-9; 13.8,9). Diferentes vozes
de "ensinável" (SI 116.6; 119.30; Pv IA); são ouvidas: uma ora ao SENHOR em favor
alegram o coração (8), educam as emo- de alguém identificado como "tu" (masc.
ções (coração); os olhos são os órgãos do sing. 1-4,5c) ou o rei (9a); a outra voz con-
desejo, o que se deseja na vida. A palavra firma, falando em "eu" e nós (5a,b,6-8). É
de Deus infunde objetivos verdadeiros, va- possível ouvir ainda uma terceira voz em
lores corretos. que sacerdote e povo se alternam numa
11-14A voz do pecador: orando. Aqui oração responsiva (1-4,9). Enquanto o
está alguém que foi tocado pela divina pa- rei ora silenciosamente, sacerdote e povo
lavra de Deus. Ele sente que a palavra o pedem que sua oração seja ouvida (1,2).
admoesta, "esclarece" e enriquece (grande Enquanto o sacrificio é oferecido, eles
recompensa) através da obediência (11); oram por sua aceitação (3), e depois pedem
ele está convencido do pecado e pronto que os planos do rei tenham sucesso (4).
para buscar o perdão (12), recebeu novas A confiança do rei em si e no seu exército
aspirações e deseja ardentemente tomar-se (5a,b) é respondida pelo sacerdote e o povo
irrepreensível (13), "perfeito", em todos os (5c), pedindo que sua oração seja atendida.
aspectos e íntegro - exatamente como a A isso o rei responde com outra afirmação
própria palavra (7) e, em particular, acei- de confiança de que oração (6) e fé (7,8)
tável a Deus em suas palavras (14). Se ele são o caminho da vitória. Sacerdote e povo
é conhecido pelas palavras que diz (7-10), encerram o culto orando, respectivamente,
não deveria ocorrer o mesmo conosco? A (9) pelo bem-estar do rei e pela resposta
criação é silenciosa, mas nós não devemos de Deus.
ser. Como se pode manter uma vida de obe- Notas. 1 A primeira linha, (lit.) "o dia
diência como essa? Somente recorrendo da angústia", faz par com a última linha,
ao próprio SENHOR, forte e confiável como (lit.) "o dia em que clamarmos". O modo
uma Rocha, e cheio de bondade como o de alcançar segurança e vitória é combater
Redentor, o resgatador que supre todas as a angústia com oração. 2 A segurança está
nossas necessidades como se fossem suas no nome do SENHOR (1,5,7), tudo que ele
(Rt 3.13). revelou sobre si mesmo. Desde Sião (2)
Notas. 3 A ideia é que a ordem criada transforma-se em do... céu (6): o Senhor
não pode vocalizar (linguagem), verbali- que habita no meio do seu povo faz isso
zar (palavras) ou comunicar (não se ouve com toda a sua glória, poder e recursos
nenhum som). A noção da existência de celestiais. 3 A oração precisa ser feita no
um Criador é transmitida, mas não exis- contexto dos sacrificios que Deus autori-
te a revelação verbal de que precisamos. zou; no nosso caso, a oração baseada no
11 Além disso introduz uma aplicação a um Calvário. 7 A vitória não vem por meio de
caso específico. 12,13 O pecado é retratado recursos terrenos, mas por meio de tudo
755 SALMO 22 {

que o Senhor revelou ser - seu nome. te para seus adversários. A presença do
Gloriaremos, "traremos o Senhor à lem- Senhor é, ao mesmo tempo, vitalidade e
brança, invocando o seu nome". vitória. 7 Misericórdia, amor prometido.
[Jamais] vacilará, "será abalado", i.e., de
Salmo 21. Depois da batalha: sua posição real. 8-12 Alguns interpretam
A vitória do Senhor. passada que a voz que fala a respeito do rei nos
e futura v. 2-7 agora se dirige a ele e fala sobre as
O salmo 20 afirmava: Celebraremos com futuras vitórias que terá, guiado por Deus.
júbilo a tua vitória; agora há alegria (l) e Isso dificilmente altera o significado, mas
glória (5) com a tua salvação ("pelas vitó- é mais simples ouvir aqui a voz do rei fa-
rias que lhe dás", NVI). Portanto, a oração e lando sobre os futuros triunfos do Senhor,
a fé anteriores foram atendidas, e este sal- assim como ele atribui seus triunfos passa-
mo medita no que aconteceu. Sua afirma- dos (2-7) à mesma fonte divina. Mas a ini-
ção inicial, de que Na tua força, SENHOR, o mizade do mundo é tanto contra o Senhor
rei se alegra (l) harmoniza com a oração quanto contra o seu Ungido (cf SI 2).
final: Exalta-te, SENHOR, na tua força (13). Esses sentimentos são naturais na boca de
Essas referências ao passado e ao futuro Davi, que recebeu a promessa de um rei-
aparecem, respectivamente, nos v. 2-7, no universal (cf 2.7-9), e, para nós, estão
recordando a vitória, e v. 8-12, anteven- em perfeita concordância com as expec-
do a vitória. É mais fácil ouvir o próprio tativas do NT (2Ts 1.7-10; Ap 19.11-21).
rei falando do início ao fim (usando uma Mas a verdade da vitória divina abrange
forma em terceira pessoa nos v. 1-7). No igualmente todo o nosso futuro, não ape-
trecho de 2-7, a oração foi respondida com nas os eventos do fim dos tempos. A mão
bênção pessoal (3,4) e nacional (5), e a fé divina (ação pessoal, 8), sua manifestação
foi recompensada (7). Os v. 8-12 falam de (presença pessoal, 9, cf v. 6) e indignação
uma futura vitória divina que será total, so- (ira sentida pessoalmente, 9) estão, a cada
brenatural e irresistível. instante, a nosso favor. 13 Uma alegria
1 Tua salvação ..., "tuas vitórias", aqui, verdadeira (l) se manifesta na oração para
livramento físico qualquer que seja o pe- que o SENHOR seja exaltado, mas quando
rigo (SI 20 reflete isso). 2 Súplicas, "dese- ele é exaltado, a consequência natural é
jos", cf desejo (linha anterior). A oração cantar, louvar, "fazer música".
do rei foi sincera. Lábios, o desejo não fi-
cou obscuro, mas foi levado à intercessão. Salmo 22. Um desamparado.
3 Supres. O verbo, "ir adiante de/chegar muitos exultantes
primeiro" é usado aqui para dizer que o "Nenhum cristão consegue ler este salmo
Senhor "percebe antecipadamente" nos- sem ser vividamente confrontado com a
sas necessidades, aguardando-nos com crucificação" (Kidner) - e com razão,
bênçãos preparadas onde esperávamos pois esta não é a descrição de uma doença,
encontrar dificuldades. Coroa (cf 28m mas de uma execução. Atos 2.30 atribui o
12.30). 4 Pediu vida, o perigo era mortal. salmo 16 à estatura profética de Davi, e
Para todo o sempre, no sentido metafórico esta também é a melhor explicação para
usual de "viva o rei para todo o sempre", o salmo 22. Se alguma situação pessoal
mas, como ocorre frequentemente nos sal- de sofrimento inspirou a composição do
mos reais, uma previsão inconsciente do salmo, o que pode ter acontecido, Davi a
verdadeiro reino eterno do Senhor Jesus. multiplica por infinito para sondar um pou-
6 Presença. Compare a mesma palavra co do sofrimento que aguardava seu Filho
("face", presença pessoal) no v. 9 (mani- Maior. Entretanto, ao mesmo tempo, o que
festares): o que é vida para o rei é mor- brotou do sofrimento e, profeticamente,
>
SALMO 22 756

explorou um sofrimento ímpar, pode ago- 8 Corifiou (Mt 27.43). 9,10 Que acon-
ra nos ajudar em nossas duras provações. tecimento foi responsável por isso? Por
Nós também podemos aprender a clamar alguma razão, desde a tenra idade ele se
a Deus (1-8,11-18), a encontrar consolo e reconhecia entregue a Deus. Será que isso
segurança no que é verdadeiro a nosso res- reflete a consciência precoce do Senhor
peito (9) e no que aprendemos da verdade Jesus (Lc 2.49) de que a casa do Pai era o
(10), e a encarar o futuro com confiança seu verdadeiro lar?
(22-31), porque Deus se mostrará fiel.Toda 11-21Apelo pela proximidade divina.
a gama de situações pelas quais passamos Essa seção consiste em dois apelos pela
está aqui: desolação, hostilidade, dor, mor- proximidade e ajuda de Deus (11a, 19-21a).
te - pois ele foi provado de todas as for- O primeiro é seguido por uma descrição
mas, como nós somos (Hb 4.15). dos apertos pelos quais passou o sofredor:
1-10 Perplexidade no sofrimento. a tribulação está próxima, não há socorro
Divide-se em duas partes: (11), os inimigos atacam com violência
(a) Oração não respondida (1-5). A ora- (12,13), o sofrimento é intenso (14,15), o
ção urgente é atendida com silêncio (1,2). mal predomina (16-18). O segundo apelo
Isso é contrário tanto à natureza de Deus reconhece a força do Senhor (19), mas a
(3) quanto à experiência das gerações pas- morte se aproxima (espada, 20), trazendo
sadas (4,5). perda pessoal (a minha vida, 20) e um fim
1 O Senhor Jesus entendeu que esse cruel (cão... leão... búfalos, 20,21). Então,
clamor dizia respeito a ele (Mt 27.46; Me dramaticamente, tudo muda (21b), numa
15.34), e nós devemos fazer o mesmo. Ele súbita percepção da resposta divina: a
nos dá o exemplo, pois, em meio ao mais oração foi atendida! Quando Deus parece
profundo sofrimento, a fé foi mantida e o ausente - ou mesmo quando, como neste
Senhor ainda é meu Deus. Mas a experiên- caso, ele de fato, por decisão própria, re-
cia em si foi singular para ele. Com razão, tirou sua presença (1) - a oração ainda é
disse o salmista (37.25), que nunca tinha útil. A resposta a: por que me desamparas-
visto o justo desamparado, mas esse total- te? (1) é: Não te distancies de mim (11).
mente justo foi desamparado, tomando-se 12-18 (i) O sofrimento retratado (12,13):
maldição por nós (GI3.13). 3 Tu és santo, o uso das imagens de "feras" fala de um ata-
entronizado entre os louvores de Israel. O que sem quaisquer restrições de humanida-
raciocínio encontra-se comprimido: em si de - apenas a força irresistível do touro
mesmo, ele é santo (então, por que ele não e a ferocidade cruel do leão. (ii) O sofri-
vem socorrer seu sofredor?); sua dignida- mento vivido (14,15): força em declínio,
de entronizada é reconhecida enquanto seu um corpo literalmente torturado (14), toda
povo o louva por seus feitos poderosos do força vital (coração) desapareceu e o ter-
passado (então, onde estão seus atos pode- ror paralisante tomou seu lugar (cf Js 2.11;
rosos agora?). Ez 21.7), desidratação severa e hostilidade
(b) Confiança não recompensada (6- divina ("tu", 15), levando ao fim (pó) na
9). A referência aos pais confiando e oran- morte. (iii) O sofrimento causado: malda-
do (4,5) leva o sofredor a comentar que de desenfreada, corpo mutilado (16), satis-
ele também confiou, mas sem resultado. fação com a desgraça alheia (17), partilha
Ao contrário, a confiança o transformou dos despojos (18). 16c Tanto no aspecto
em objeto de zombaria (6-8), mas ele a geral quanto no particular, é impossível
manteve por toda a vida, pois fora criada não enxergar as aflições de Cristo nes-
pelo próprio Deus (9, "deste-me seguran- sa passagem. João 19.23,24,28 não deixa
ça", NVI), e recebeu resposta imediata (10, dúvidas sobre o assunto. A tradução tras-
meu Deus). passaram-me não é inconteste, mas evita
757 SALMü23 (

grandes alterações no texto hebraico, tem Salmo 23. Pastor, companheiro


apoio na LXX, e se adapta tanto ao contexto e anfitrião
quanto ao cumprimento. O triplo testemunho, nada me faltará (1),
21 A súbita conscientização de uma não temerei mal nenhum (4) e habitarei
resposta divina (lit., "Tu me respondeste!") (6), resume o salmo, dividindo-o em três
é dramática. O sofredor está formulando a partes: a ovelha e o Pastor (1-3), o viajan-
oração "Salva-me da boca do leão e livra- te e o Companheiro (4), o convidado e o
me dos chifres do búfalo", mas, enquanto Anfitrião (5,6), respectivamente ensinando
ele está orando, ocorre uma transformação: a providência de Deus, indicando situa-
" ... e dos chifres dos búfalos; sim, tu me ções que ocorrem na vida, sua proteção ao
respondeste!" A petição foi ouvida; tudo longo do transcurso da vida e sua provisão
está bem. agora e sempre.
22-31 O festival universal de louvor. 1-3 Esses versículos tratam principal-
De repente, é tempo de festa para Israel mente de experiências de abundância
(22-26) e para o mundo (27-31): a ora- (pastos verdejantes), paz (águas, lit., "de
ção foi respondida (24), os sofredores todo tipo de descanso") e renovação (re-
são convidados para o banquete (26), frigera-me a alma, cf. 19.7). O princípio
todos são convidados (29) e a palavra por trás de nossas experiências é que ele
será transmitida de geração em geração escolhe veredas da justiça para nós, ca-
(30,31). Hebreus 2.12 cita o v. 22 como minhos que são "retos diante dele", que
messiânico e, de fato, o que mais, senão fazem sentido para ele. Ao fazer isso, ele
a morte de Jesus, poderia ter consequên- age por amor do seu nome, de acordo com
cias como essas? - Israel e o mundo seu caráter revelado.
convocados para o banquete messiânico 4 Em contraste com as experiências
(Is 25.6-lOa; Ap 19.9), o domínio mun- alegres da ovelha (1-3), o caminho do
dial (Mt 28.18; Fp 2.9-11) e uma mensa- peregrino atravessa terreno muito mais
gem de justiça divina (31; Rm 1.16,17). pedregoso. Sombra da morte é de fato
25-28 De ti. O Senhor é a fonte e o assun- "as trevas mais escuras", que inclui, é
to do louvor. Votos... sofredores. O cum- claro, a escuridão da morte. Mas nessas
primento de um voto era acompanhado experiências, o ele dos v. 1-3 torna-se tu,
de uma oferta pacífica e de seu banque- expressando um relacionamento pessoal
te correspondente, para o qual os pobres mais íntimo, e o guia (2) anda ao lado
eram convidados (Lv 7.11,16; Dt 16.10- (comigo). Quanto mais escuras as trevas,
12).29 O significado geral, resumido pelo mais perto está o Senhor! E ele traz toda
contraste entre os opulentos e os sofre- a força, bordão e cajado. A duplicação
dores (29), é que todos são bem-vindos. denota completude. Bordão (Lv 27.32)
Permanece a dúvida se pó é uma metáfora possivelmente significa proteção; cajado,
para pobreza (113.7; cf lSm 2.8) ou para possivelmente, apoio (Êx 21.19).
morte (30.9; cf Jó 7.21). A sequência do 5,6 Uma mesa na presença dos meus
pensamento no versículo sugere o primei- adversários, cf 2Samuel 17.27-29, quan-
ro; a referência ao pó da morte (15) suge- do Davi poderia ter discernido a mão de
re o segundo. 30,31 Do Senhor... foi ele Deus no cuidado de Barzilai contrarian-
quem o fez. No final do v. 21, o Senhor do Absalão. Ao mencionar circunstâncias
confirmou tudo que o sofredor tinha feito. (4) e pessoas hostis (5), o salmo afirma o
Desse modo, o Senhor era o tema do seu cuidado divino em todas as emergências.
louvor (25). Portanto, a mensagem que A cabeça ungida fala das boas-vindas do
fica para a posteridade é: "as maravilho- Senhor; o cálice transbordante, de sua
sas obras de Deus" (At 2.11). provisão abundante. Mas sua bondade e
SALMü24 758

misericórdia estarão presentes enquanto é "Salvador" (NVI; Deus da sua salva-


durar a vida (lit., "pelo comprimento dos ção, ARA), i.e., a raiz da questão não está
dias") e, depois disso, existe a Casa do em nós, mas em sua vontade de salvar.
SENHOR para todo o sempre. Habitarei é 6 Geração, um grupo unido por caracterís-
uma adaptação tradicional do texto he- ticas comuns.
braico e pode estar correta; porém, lit., 7-10 Imagine a procissão de 2Samuel
"voltarei para a casa", i.e., quando as ve- 6.12-15. A solicitação de permissão para
redas (2,3), vales e ameaças (5) terrenas entrar é recebida pela exigência da apre-
tiveram acabado, acontecerá a verdadeira sentação de credenciais, suscitando a res-
volta para casa. posta de que é o SENHOR, que redime o seu
povo e derrota seus inimigos (Êx 3.5-15 ;
Salmo 24. Direito de entrada 6.6,7; 20.2), o Rei em toda a sua glória, o
Para o contexto, cf 1Samuel5; 6; 2Samuel Deus de total poder efetivo (8,forte... po-
6, quando Davi leva a arca de volta para deroso ... batalhas) e total poder intrínseco
Sião. O mais importante aqui é a unidade (lO, o SENHOR dos exércitos, tendo em si
do tema: com que direito entramos na pre- toda potencialidade e poder).
sença do Senhor (3-5) e com que direito
ele entra em nosso meio (7-1O)? Nós só Salmo 25. Um ABC para o dia
podemos entrar por direito de santidade da tribulação
(4); ele entra por direito de soberania, gló- No que diz respeito à forma, este salmo é
ria, poder e redenção (7-9). um acróstico incompleto. Duas letras es-
Os v. 1,2 montam o cenário ao afirmar o tão faltando; uma delas é restabelecida al-
domínio do Senhor sobre este mundo. Por terando-se a pontuação do texto hebraico
ele ser o que é, ninguém se atreve a entrar conforme o recebemos; e o v. 22, que se
sem ser convidado ou propondo suas pró- refere a Israel, fica totalmente fora do es-
prias condições. O SENHOR é enfático: "É quema. Essa irregularidade reflete o modo
ao SENHOR que a terra pertence!". A terra como as tribulações quebram o padrão da
fisica e o mundo habitado (l) são seus por própria vida. Contudo, continua existindo
criação (fundou) e manutenção (2, "con- um padrão.
tinua a manter"), pois quem, senão ele,
poderia extrair uma terra estável de mares A' (v. 1-5) Confiando, esperando, orando
turbulentos ou mantê-Ia em face das forças B' (v. 6,7) Oração por perdão
das marés (correntes)? (Gn 1.9,10). C' (v. 8-10) Orientação para os pe-
3-6 Subirá: ascender até onde o Senhor cadores
está (Êx 19.3); permanecer: "levantar-se" B2 (v. 11) Oração e perdão
para adorar (Êx 33.10), pleitear uma causa C2(v. 12-14) Orientação para os te-
(1.5), manter sua posição (Js 7.12) diante mentes a Deus
de um Deus como esse. As qualificações N(v. 15-21) Confiando, esperando, orando
são abrangentes: pessoais, espirituais e
sociais (4, lit., "jurar com intenção de en- 1-5 Confiando, esperando, orando.
ganar", i.e., fazer promessas sabidamente Estando cercado de pessoas hostis e ines-
falsas); elas cobrem ação (mãos) e caráter crupulosas (2c,3d, cf 19a), a reação de Davi
(coração), lealdade somente ao Senhor é expressar confiança por meio da oração
(não entrega ...), e relacionamento com os (l,2a), fazer uma oração específica (2bc),
outros sem intenções ocultas de obter van- apoiando-se na verdade a respeito de Deus
tagens pessoais. Essas pessoas recebem (3). Mas ele ora como alguém comprome-
bênção (5), absolvição diante do Juiz. Mas tido com os caminhos do Senhor (4), dese-
o Deus diante do qual nos apresentamos jando uma mente informada (4,faze-me...
759 SALMO 26

conhecer, "mostra-me"; ensina-me) e uma 12-14 O divino mestre. As bênçãos


vida conformada (5, guia-me). são abundantes para qualquer um (12, o
1 Elevo (24.4): somente o Senhor é homem) que teme ao Senhor: instrução no
visto como solução para todas as necessi- caminho do Senhor; realização pessoal; se-
dades. 2 Envergonhado, cf v. 3, ser desa- gurança familiar; comunhão com o Senhor
pontado na esperança. 4,5 Conduta correta e instrução no significado do relaciona-
requer verdade divina (Faze-me... conhe- mento segundo a aliança.
cer), disposição para aprender (ensina-me) 15-21 Confiando, esperando, oran-
e para obedecer (veredas... Guia-me). do. Os v. 15,16 estão ligados pela ideia
6,7 Pecado e perdão: o passado. Não do SENHOR como a única solução: só ele
pode haver compromisso com a verdade fica em foco; não há outro com Davi. Os
divina e a vida (4,5) sem arrependimento v. 17-19 detalham a necessidade em que
e reconciliação. Quando o Senhor se ele se encontra: interiormente, com o alto
lembra do que ele é (6), está preparado e exteriormente. Os v. 20,21 declaram, res-
para não lembrar (7) do que temos sido. 6 pectivamente, confiança e compromisso.
Misericórdias, "compaixão", amor no co- Assim, "ninguém exceto o Senhor" ( 15,16)
ração de Deus (18.1), enquanto bondades é colocado ao lado de "todas as minhas
é amor na vontade de Deus, o que ele se necessidades" (17-19), e uma atitude de
obriga a fazer. Aqui, este é um substan- oração, confiança, determinação moral e
tivo plural, significando amor prometido expectativa é adotada.
em toda a sua plenitude. 7 Pecados, fa- 22 A perspectiva mais ampla. Este
lhas específicas; transgressões, a obsti- versículo fica totalmente fora do esquema
nação deliberada de pecar. Por causa da alfabético. Como rei, Davi não pode se es-
tua bondade, o valor moral essencial da quecer jamais de suas responsabilidades
natureza divina encontra satisfação em mais amplas, não importa quão grandes se-
cancelar o passado. jam suas próprias dificuldades. Mas, assim
S-10 O divino mestre. Uma recorda- como acontece com suas preocupações
ção posterior das qualidades de Deus traz a pessoais, o cuidado com seu povo é levado
certeza de que a oração (4) será respondida ao lugar de oração. É a primeira coisa que
e de que o caminho revelado de Deus será as pessoas devem esperar de seus líderes.
cheio do seu amor. A condição divina para A oração é a solução abrangente: todas
tudo isso é a natureza de Deus; a condição as... tribulações. O Senhor pode achar a
humana é que os pecadores se tomem hu- solução: redime traduz o verbo "resgatar",
mildes (9, os que se humilham diante dele) i.e., encontrar o pagamento que salda com-
e guardem a aliança. pletamente a dívida, liberta o cativo, faz
11Pecado e perdão: o presente. Como cessar a ameaça.
Deus guia os que se humilham diante dele,
Davi ocupa o lugar mais baixo. O pecado Salmo 26. O apelo de
não é apenas passado (6,7), mas presente. uma consciência pura
Nos v. 6,7, ele apelou à compaixão, ao Uma boa consciência constitui uma vanta-
amor e à bondade de Deus; no v. 8, apelou gem quando apelamos a Deus, não que a
à sua retidão moral; agora, em resumo, ao bondade nos dê qualquer direito de receber
seu nome, tudo que ele revelou acerca de bênçãos, mas porque o Senhor graciosa-
si mesmo. Seu coração e vontade (6), sua mente se agrada de nós quando andamos
integridade moral (7) e retidão (8) atuam em pureza. Afrontado (9) por pecadores,
todos juntos no perdão da iniquidade (a homens decididos a acabar com sua vida
natureza corrupta, decaída), embora esta (sanguinários), tramando conspirações
seja grande. e inescrupulosos em seus métodos (10),
11
: - SALMü27 760
11

Davi se encontra inocente diante das acu- de viver em "retidão", uma declaração do
sações deles e, de fato, não vê motivo tipo "Daqui não saio". Congregações, pro-
algum para tal situação. É razoável su- vável significado de uma palavra que não
por que o auto-exame evidente no salmo aparece em nenhum outro lugar, imaginan-
reflete acusações levantadas contra ele: do o dia em que a assembleia dos adorado-
sobre seu modo de vida (andado, 3b), res se reunirá e a espiritualidade particular
suas companhias (4) e a sinceridade de do v. 1c,d se expressará num testemunho
sua religião (6-8). Mas sua consciência público de louvores ("louvarei", ARC).
está limpa pessoalmente (3), socialmente
(4,5) e espiritualmente (6-8). O salmo co- Salmo 27. O ingrediente
meça e termina na nota da inculpabilida- essencial: fé agindo através
de (1,11,12), convida ao exame divino (2) da oração
e à ação divina (9,10), e se concentra em Malfeitores, opressores, inimigos (2), ad-
confissões de inocência, avaliando nega- versidade (5), inimigos (6), pessoas que
tivamente sua vida entre as pessoas (4,5) espreitam (11), adversários (12), assim
e positivamente sua vida com Deus (6-8). como um prazer contínuo na Casa do
O que Davi podia alegar sinceramente em SENHOR (4; cf 26.8) sugerem que este sal-
meio a várias dificuldades específicas de- mo diz respeito à mesma situação crítica
veria ser nossa constante ambição. que o anterior. A confiança que transpa-
1 Tenho andado na minha integridade rece de ponta a ponta podia ser o resulta-
- uma perfeição que abrange todos os as- do do autoexame que o Salmo 26 reflete,
pectos e caracteriza o todo. Uma alegação mas é confiança no Senhor, e não numa
praticamente idêntica conclui o salmo (11), justiça própria.
exceto pelo fato de que o texto hebraico ali
tem um tempo verbal diferente: provavel- AI (v. 1-3) Confiança no Senhor afirmada
mente o v. I olha para trás e o v. li olha B' (v. 4-6) Primeira oração por segu-
para a frente ("andarei...", TB). Uma ca- rança em Deus
racterística de uma boa consciência é sua B2 (v. 7-12) Segunda oração por segu-
aspiração pelo futuro. 2 Examina... pro- rança em Deus
va... sonda. Se é possível fazer qualquer N (v. 13,14) Confiança em Deus incen-
distinção, o primeiro termo seria realizar tivada
um teste de pureza (ensaio), o segundo se-
ria provar nas circunstâncias da vida e por 1-3 Confiança no Senhor afirmada. 1
meio delas e o terceiro seria procurar as Luz, metaforicamente, em contraste com a
impurezas (refinar). 6 Lavo. Lavar as mãos "escuridão" da tribulação que há em volta
era uma declaração pública de inocência (ls 50.11; Jo 8.12). Salvação, livramento
(Dt 21.6). Inocência, não o meio, mas o es- na e da dificuldade. Fortaleza, o lugar onde
pírito em que a lavagem das mãos é feita. minha vida habita em segurança. 2 Davi
Altar. Os sacerdotes se lavavam antes de enfrenta pessoas inclinadas para o mal
entrar no santuário (Êx 30.17-21). Davi (malfeitores), cheias de violência (para me
aceita para si mesmo os padrões do sacer- destruir; "para comerem as minhas carnes",
dócio.ll Ando (cf v. 1). Livra (cf 25.22). ARC; como feras predadoras) e hostilidade
Compaixão, favor divino gracioso, ime- (inimigos, adversários). É nessa situação
recido, gratuito. 12 O meu pé está firme. que ele encontra fé (1) e oração (4,5,7-9)
Esta pode ser uma confiante afirmação de suficientes. Eles é que tropeçam, enfático,
segurança futura ("Meus pés certamente "São eles (não eul) que tropeçam". O v.
permanecerão firmes"), depois que a tur- 3 amplia o escopo da dupla fé-segurança.
bulência atual passar, ou um compromisso Terei confiança, "permanecerei confiante".
761 SALMü28 (

A fé é suficiente até mesmo quando os ini- pessoal é a base para o fortalecimento da


migos se transformam em exércitos e a ini- fé nos outros.
mizade em guerra declarada.
4-6 Buscando a Deus por causa do Salmo 28. Um apelo
que ele é. Não é a fé que nos mantém por justiça imparcial
seguros, mas o Senhor em quem essa fé Vínculos entre este salmo e os salmos 26 e
é depositada. A oração (peço) e o obje- 27 sugerem que Davi ainda estava na mes-
tivo (buscarei) de Davi são estar onde o ma situação de ameaça à sua vida, e.g., v.
Senhor está (morar na Casa) e vê-lo como 3-5; cf 26.9,10; 27.2,12. A casa do Senhor
ele é (contemplar). Meditar (4), uma pa- está em destaque nos três salmos: 26.6-8,
lavra de significado controverso; o mais o foco da religião de Davi e 27.4,5, de sua
provável é "vir toda manhã", frequentar comunhão com o Senhor; 28.2, a fonte de
a sua presença, dando-lhe o começo de socorro. Cada um termina (26.12; 27.14;
cada dia. A Casa dele é o seu tabernáculo 28.9) com alguma referência ao conjun-
(5, "tenda", cf lSm 1.7,9), o lugar onde to mais amplo do povo de Deus ou com
ele vive no meio do seu povo (Êx 29.42- uma preocupação a ele associada. Para
45). Embora pareça frágil, é uma rocha Davi, tempo de tribulação era tempo de
elevada, um lugar de segurança inexpug- se concentrar no Senhor e cuidar de outras
nável e triunfo pessoal (será exaltada a pessoas. Mas o salmo 28 lança sua própria
minha cabeça). luz sobre a situação de Davi: sua situação
7-12 Buscando a Deus por causa de difícil acabará em morte se o Senhor não
suas bênçãos. A oração pedindo para estar agir (1), e suas circunstâncias são tais que
com o Senhor (4) se expande agora numa sua morte nessa hora o identificaria com os
oração pelas bênçãos que só o Senhor pode ímpios (3). O que ele teme não é a morte
dar. A oração se apoia num convite divino. em si, mas "a morte com desgraça imere-
(8; v. NVI mrg. Lit., "Meu coração disse a ti: cida" (Kidner).
'Busca a minha face'; buscarei, SENHOR, a O começo e o fim do salmo estão co-
tua face"), i.e., Davi começa lembrando ao nectados por as vozes súplices (2,6). Nos
Senhor que ele mesmo fez o convite para v. 1,2, o pedido para ser ouvido (1) é se-
que o povo o buscasse. Meu coração, não guido pelas vozes súplices (2); nos v. 6-9,
apenas a minha boca, porque Davi dá va- as vozes ouvidas incentivam o louvor (6,7)
lor a esse convite divino. A oração começa e conduzem à oração pelo povo (8,9) do
assumindo a posição certa diante de Deus: Senhor. Nos versículos intermediários,
buscando seu favor (9, face) e aceitação Davi ora pedindo destino diferente dos
(não rejeites). A oração procura descobrir ímpios (3), que eles possam receber o que
qual é a vontade de Deus - para fazer o merecem (4), afirmando (5) que isso ex-
que ele deseja - nas atuais circunstâncias pressa a justiça equitativa divina.
(11, Ensina-me ... caminho... os que me es- 1 Cova, morte debaixo da ira de Deus
preitam) antes de pedir proteção (12; cf (30.4; 88.4), com a face de Deus escondi-
Atos 4.29). A oração é cheia de confiança: da (143.7) (cf Is 14.15,19; Ez 32.18,23).
meu auxílio... minha salvação (9). Se meu O mesmo ocorre aqui, cf v. 3. 2 Santuário,
pai. Mesmo que o maior amor humano palavra que se tomou comum, no templo de
chegue ao seu limite, o amor do Senhor Salomão, para designar o Santo dos Santos
permanecerá. (1Rs 6.16 etc.). Davi apela dentro da pró-
13,14 Confiança em Deus incentiva- pria presença do Senhor, algo que é o pri-
da. Eu creio (lit.) uma exclamação: "Ah! vilégio e o poder da oração. 3-5 Da mesma
Se eu não tivesse crido!", i.e., pense no que forma que Davi se afastou da companhia
teria acontecido sem a fé! 14 A segurança dos ímpios (26.4) e procurou escapar
SALMO 29 762

de suas garras (27.12), ele deseja distân- (5-7). A tempestade varre a terra em di-
cia de sua desgraça. A justiça do Senhor é reção ao sul (Cades) (8,9ab); os que co-
equitativa, e uma consciência limpa como nhecem o Senhor exclamam glória (9c).
a de Davi (SI 26) naturalmente se identifi- 6 Siriom, monte Hermom, na cordilheira
ca com a santidade de Deus e, sem culpa, do Antilíbano, a 2.774 metros de altitude,
ora pedindo que a justiça seja feita. Se essa é o mais alto da Palestina. Até mesmo a
oração nos choca, não é pela nossa sensibi- sólida estrutura do mundo parece tremer
lidade refinada, mas por nossa consciência sob o impacto da tempestade. 8 Cades, no
imatura. Orar pela destruição dos ímpios extremo sul de Judá (Dt 1.19,46). Portanto,
é tão correto quanto orar pela bênção da a terra toda, de uma extremidade (5) à
igreja (9), mas é preciso uma santidade outra (8), está dominada, não apenas pela
maior para realizar a primeira sem pecar. tormenta, mas pelo que ela simboliza, a voz
do SENHOR. 9c Para muitos, uma tempes-
Salmo 29. O Deus tade é apenas uma tempestade, mas para
de sagrada glória aqueles a quem o Senhor se revelou, ela é
É melhor simplesmente deixar a glória e uma demonstração de um aspecto de sua
grandeza deste salmo nos envolverem num glória. O sentimental diz: "Num jardim,
redemoinho até que, arrebatados pela ma- estamos mais perto do coração de Deus";
jestade do Senhor, também exclamemos mais realista, a Bíblia afirma que também
glória (9). Mas, como ocorre com toda po- estamos mais próximos do coração dele
esia de verdade, para alcançar esse efeito num furacão.
desejado, o salmo vem até nós com forma 10,11 O Senhor na terra: o rei eterno
e coerência. em santo juízo. Os dilúvios é "o Dilúvio",
pois essa palavra só é usada em Gênesis
N (v. 1,2) O Senhor no céu 6-9. Da mesma forma que o Senhor é
B (v. 3-9) A natureza maravilhosa de supremo no céu em santidade (1,2), ele
Deus na tempestade é soberano na terra (10) em santo juízo
b' (v. 3,4) A tempestade no mar sobre o pecado. Mas a história não para aí
b2 (v. 5-7) A tempestade no norte (assim como a tormenta não revela toda
b' (v. 8,9b) A tempestade no sul a verdade sobre Deus; o jardim também
b" (v. 9c) O brado de Glória tem algo a dizer!). Ele tem seu povo (11),
N (v. 10,11) O Senhor na terra que, num mundo sob merecida condena-
ção, vive pela força de Deus e sob sua
1,2 O Senhor no céu: o objeto da bênção de paz, i.e., paz com Deus, dentro
adoração celestial. Até seres sublimes e de uma comunidade de paz, e em paz ou
poderosos ao ponto de serem chamados bem-estar pessoal.
(lit.)filhos de Deus (cf Jó 38.7) ou "filhos
de supremo poder" têm de reconhecer a Salmo 30. Graça do
glória do SENHOR, por causa de tudo que princípio ao fim
ele revelou a seu respeito (nome), e têm A palavra casa, no título, pode ser uma re-
de se curvar em adoração diante da sua ferência à casa de Davi (2Sm 5.11), à casa
santidade. Desse modo, eles reconhecem do Senhor (2Sm 7.5; 1Rs 6.1) ou ao uso
a posição dele como Deus, sua natureza do salmo na renovação da dedicação do
revelada e seu caráter santo. templo após sua profanação por Antíoco
3-9 A natureza maravilhosa de Deus Epifânio, em 165 a.C. Na época em que
manifestada na tempestade. A tempesta- Davi tinha sua própria casa, seu senso
de no mar, poder e majestade (3,4); a tem- de segurança (6) teria sido enorme: Sião
pestade chega à praia no norte (Líbano) foi capturada e fortificada (2Sm 5.6,7), o
763 SALMü31 fi."
poder estava crescendo (2Sm 5.10), seu graça derramada em louvor e transforma-
exército era forte, sua família aumentava ção (11), alegria interior e um verdadeiro
(2Sm 5.13ss.), possivelmente os filisteus senso de posição permanente com Deus
também estavam derrotados (2Sm 5.17- (Deus meu... para sempre) (12).
25), enquanto a casa ainda estava em cons-
trução. Se durante esse período tão propí- Salmo 31. O dia da angústia,
cio a gerar orgulho em Davi, o Senhor, por o lugar da oração
sua graça, humilhou-o com uma doença Por duas vezes (1-8,9-17b), Davi recorda
que tirou o cálice de sua mão antes que ele como, em meio a uma terrível provação,
tivesse tempo de bebê-lo, os termos do sal- recorreu à oração e ao compromisso con-
mo são mais do que adequados. Com isso, fiante, e de como o Senhor ouviu e agiu a
Davi aprendeu que, assim como a graça seu favor (21,22), dando-lhe motivo para
o havia conduzido em segurança até tão incentivar outros a terem esperança seme-
longe, só ela poderia levá-lo para casa. Foi lhante (23,24). O salmo, portanto, não só
quando se sentiu seguro (6) que ele preci- nos ensina a enfrentar as crises com oração
sou clamar por misericórdia (8). (1-18), como nos garante a eficácia desse
1-5 Perigo mortal: louvor responsivo procedimento (19-24).
pela oração atendida. Provavelmente, 1-8 A fortaleza versus a armadilha.
havia muitos partidários de Saul ressen- Os inimigos armaram um laço (4), mas
tidos com Davi por considerarem que ele o Senhor é uma fortaleza, onde Davi en-
havia usurpado o trono. Seria de esperar trou com confiança, oração e total leal-
que eles se regozijassem de vê-lo fracas- dade. Aqui, em princípio, está o antídoto
sar! Mas ele clamou e foi sarado e pre- para uma crise: buscar a Deus com oração,
servado. 4,5 Davi convoca os santos (os confiança e devoção. 2,3 Castelo... cida-
amados do Senhor que também o amam) dela fortíssima... rocha, "rocha... casa de
para "salmodiar" (cantar louvores, NVI), fortaleza... penhasco", um lugar forte onde
não pelo que ele passou, mas pelo que permanecer, um lugar seguro para entrar e
fora revelado sobre o Senhor: entre os vá- um lugar inacessível para ocupar. Nome. A
rios atributos da santa natureza de Deus oração se baseia em tudo o que o Senhor
(santo... ira), há algo que age rapidamente revelou a respeito de si mesmo, que, como
para conceder favor duradouro. Deus da verdade (5), ele não pode negar.
6,7 Arrogância mortal e compla- 5 Remiste, providenciaste tudo o que meu
cência. A prosperidade (6) (caminho fá- resgate exige (25.22; 26.11). 6 Confio. Fé
cil) tem seus próprios perigos, pois pode verdadeira e lealdade única ao Senhor são
transformar confiança em autoconfiança, inseparáveis. 7 Da combinação de fé e ora-
segurança em presunção (7). O favor divi- ção nasce a confiança: tudo terminará bem,
no tinha trazido prosperidade a Davi, mas pois desde o início o Senhor tem visto
bastou a sombra de uma nuvem cobrir a e conhecido (Êx 2.25; 3.7). 8 Não me
face do Senhor e Davi ficou conturbado, entregaste, "determinaste não me entre-
"aterrorizado". gar", tempo pretérito perfeito expressando
8-12 Perigo mortal: oração atendida certeza quanto ao futuro.
e louvor responsivo. Clamei... implorei 9-18 "As tuas mãos" versus "as mãos
são tempos verbais contínuos, "fiquei cla- deles". Davi agora entra em detalhes a res-
mando ... implorando". Como Davi sentia peito de seu drama: a crise o deixou esgota-
que estava morrendo sem o favor de Deus do (9,10), desprezado por seus adversários
(9, cf v. 5,7), ele não via nenhuma esperan- e abandonado pelos amigos (11); ele se tor-
ça eterna (cf 73.24). Mas a única maneira nou um homem ultrapassado (12), envolvi-
de fugir de Deus é fugir para ele e orar por do por uma conspiração assustadora (13).
>
SALMü32

Mas sua resposta, mais uma vez, é con-


764

virar. 24 "Esperar" na Bíblia é confiar no


fiar (14,15) e orar (16,17). Pois a certeza que vai acontecer sem saber quando vai
de que nas tuas mãos, estão os meus dias acontecer.
o capacita a orar (15, lit.) livra-me das
mãos dos meus inimigos. A mão de Deus Salmo 32. Gemendo ou orando?
não é um lugar onde estamos imunes aos Se a oração é suficiente para lidar com
problemas da vida; é o lugar onde eles nos o mais grave de todos os problemas - o
acontecem (lo 10.28,29); nossa proteção pecado que poderia ser contado contra
não é dos problemas, mas nos problemas. nós diante de Deus (1-5) - não seria su-
10 Iniquidade, NVI marg.: "culpa". Este ficiente também para resolver todos os
não era um caso em que Davi podia ale- problemas da vida (6)? Esse é o tema des-
gar inocência. De alguma forma que ele te salmo, desenvolvido por meio de uma
não explica, o pecado era um fator que alternância entre declaração (1,2,6,10) e
contribuía para a situação, mas ele ainda testemunho (3-5,7-9) ou apelo (11). Ele
podia recorrer ao Senhor com fé, oração e talvez pertença à época do adultério de
compromisso. Podemos clamar ao Senhor Davi com Bate-Seba. Se for realmente
não só pelo que ele é (3) e sabe (7), mas isso, os v. 3,4 revelam Davi oprimido por
também pelo que nós somos (10-13); po- uma consciência culpada, e o v. 5 corres-
demos esperar que a oração seja atendida ponde à notável passagem de 2Samuel
simplesmente porque ela foi pronunciada 12.13: "Então, disse Davi a Natã: Pequei
(17). Além disso, quando o justo, aquele contra o SENHOR". Natã, respondeu:
que está "em ordem com Deus", que faz "Também o SENHOR te perdoou o teu pe-
parte do povo que pertence a Deus, está cado". No mínimo, o incidente ilustra o
ameaçado, nesta ocasião é certo orar pela que o salmo afirma: uma oração de con-
derrota de seus adversários (17,18). Os fissão traz perdão instantâneo.
salmos rejeitam a ação vingativa, mas re- 1,2 A felicidade de ter o pecado per-
forçam a oração por vingança, a destruição doado. Iniquidade... pecado... iniquidade
de perseguidores ímpios pela justa ação ("transgressão... pecado ... maldade", ARe),
de Deus. Nessas situações, nossa ação é respectivamente, "rebelião" (zombar de-
governada por Levítico 19.18; 1Samuel liberadamente da vontade conhecida de
26.10,11; Provérbios 20.22; 25.21,22; Deus), "pecado" (ações erradas específicas
Romanos 12.18-2l. em pensamento, palavra ou ação), "iniqui-
19-24 Temor versus esperança. Davi dade" (a distorção moral interior da natu-
agora olha em retrospecto para a crise e reza pecaminosa). O SENHOR ... e em cujo
tira conclusões. O Senhor abriga os que espírito: o Senhor não tem acusações resi-
confiam (19,20), responde aos que invo- duais; o pecador não escondeu nada.
cam (21,22) e está acessível a todos os 3-5 O gemido dá lugar à confissão e
seus santos (seus amados que retribuem o ao perdão. Observe as mesmas três pa-
seu amor), preservando e dando garantia lavras usadas nos v. 1,2: reconhecimento
de esperança (23,24). do pecado, o mal que fiz; confissão da
Notas. 21 Numa cidade sitiada. Uma intencionalidade da minha rebelião - e
situação como a de 1Samuel 23.7-29. o Senhor penetrou exatamente na fonte
Entretanto, não é àquele período que o da corrupção e perdoou a iniquidade do
texto se refere, pois naquele tempo Davi meu pecado.
não tinha necessidade de aludir a nenhuma 6-9 Orar é a solução para todas as
iniquidade pessoal (10). A "cidade sitiada" pessoas. A pronta resposta do Senhor não
é metafórica (cf v. 13), de estar cercado alcança somente uma pessoa e nem apenas
por todos os lados, sem saber para onde se o problema do pecado: todo homem pode
765 SALMü33 (

orar em qualquer emergência. 6 Sendo povo, precisamos estar em unidade com o


assim, i.e., podemos lidar até mesmo com Espírito que dá vida a ambos.
o pecado por meio da oração. Piedoso 1-3 A voz de louvor. Canção e louvor,
(santos, 31.23), "o que ele ama e que retri- ações de graças (louvar, "dar graças"),
bui o seu amor". 8,9 O contexto em que o música instrumental e aclamação ruidosa
v. 7 se toma realidade: quando a palavra de (com júbilo, "com gritos de alegria") -
Deus é obedecida conscientemente. E, sob tudo isso faz parte da atitude que fica bem
as minhas vistas, "e meu olho estará sobre aos que são corretos de coração (justos)
ti" - não uma ameaça, mas uma promessa diante do Senhor e aprumados na vida (re-
de cuidado vigilante. O ensino do Senhor tos) diante dele. Novo cântico, não tanto
não é um ditado de ordens impessoais, mas inédito, mas fresco, não mofado, gerado
a palavra amorosa de um Deus afetuoso. por uma consciência renovada de quem e
Da mesma forma, nossa resposta não deve do que Deus é. O verdadeiro louvor re-
consistir na aquiescência forçada do ani- quer tanto essa compreensão renovada de
mal irracional, mas na obediência igual- Deus quanto o fervor da alegria e o dom
mente baseada no amor. da musicalidade.
10,11 Um amor infalível cerca o 4-11 Deus na criação. Porque expli-
crente. A alegria de ser protegido tem três ca a convocação ao louvor feita anterior-
aspectos: o ato permanente de confiar, o mente: (i) o caráter da palavra do Senhor,
relacionamento básico de estar "em ordem do Senhor e da terra (4,5); (ii) a obra do
com Deus" (justos, 11) e a realidade moral Senhor na criação (6,7); (iii) a reverência
de um caráter reto. Quem se encontra nes- devida ao Criador (8,9); (iv) a soberania do
sa condição não está imune ao sofrimento Senhor, anulando (10) e ordenando (11).
(cf as águas transbordantes do v. 6), mas, As duas estrofes dessa seção (4-7,8-11)
quando a adversidade bater à sua porta, ele se unem no tema da suprema facilidade
será cercado pelo amor que nunca falha. com que o Criador domina tanto a criação
física quanto a pessoal. Ele é Senhor das
Salmo 33. O amor infalível de águas (7) e dos povos (10): as águas fa-
Deus na criação e na eleição zem a sua vontade; os povos estão ao seu
Este elegante poema começa e termina dispor. 4,5 Antes de podermos compreen-
com estrofes de seis linhas (1-3,20-22) der o mundo que nos cerca, precisamos
que encerram quatro estrofes de oito li- encontrar seu Criador. Sua palavra (o ins-
nhas (4-7,8-11,12-15,16-19). Na estrofe trumento da criação, 6) é reta e fiel, i.e.,
inicial e na final, respectivamente, o sal- direta em expressão e intento, perfeita em
mista desafia à alegria no Senhor e a re- valor moral e irrepreensível em verdade.
força. As estrofes de oito linhas estão em Fiel. Muitos aspectos da ordem criada
parelhas de versos: a primeira parelha se continuam sendo um enigma para nós:
concentra na obra de Deus na criação, na por que há terremotos? Por que a "natu-
sua bondade (5) como fator que permeia reza vermelha em dente e garra'"? Em
tudo, e seu governo soberano sobre as na- qualquer circunstância, podemos confiar
ções (10) como seu corolário; a segunda que o Criador é fiel ao seu próprio caráter
parelha focaliza a eleição (12) e o lugar e ao bem-estar de sua criação. Bondade
especial que ocupam dentro da providên- que se manifesta na ordem, na beleza, na
cia divina os que esperam na sua miseri- riqueza exuberante, nos tesouros escondi-
córdia (18). Coerentemente, é com uma dos, no ciclo das estações etc. 6 Palavra...
oração por essa misericórdia que o salmo boca. Os céus são a expressão exata de
termina (22), pois, para vivermos de for-
ma plena no mundo de Deus e como seu I Alfred Lord Tennyson, In Memoriam, LVI, v. 15.
.-
11
li. SALMO 34 766

sua mente (palavra) e o produto direto a si mesmo (21); (c) dependência da oração
(boca) de sua vontade. Sopro, "espírito" (22). A bondade é inerente a tudo o que ele
ou "Espírito", o que o Senhor diz é cheio faz (5) e é a porção específica do seu povo
da energia do Senhor para fazer com que eleito (18). Orar para que essa misericórdia
se cumpra (cf 9; 104.7,30; Gn 1.3,6). seja sobre nós engloba todas as nossas ne-
7 As águas, como o componente turbulen- cessidades numa única petição.
to da criação, são escolhidas para exem-
plificar a facilidade com que o Criador Salmo 34. Um ABe para
exerce sua soberania (93.3,4). 8,10,11 No um período de crise
pensamento do AT, o Criador é mais que O título situa o salmo em 1Samuel 21.10-
o iniciador; ele continua soberano sobre 14. Ao fugir de Saul, Davi buscou refúgio
sua criação, digno da reverência de todo com o rei filisteu de Gate, chamado por
o seu povo e na direção de todos os seus seu nome pessoal, Aquis, mas neste sal-
negócios, restritivo e dominante, resoluto mo pela designação real dos reis filisteus,
e irresistível. Abimeleque (Gn 20.2; 21.22; 26.8). Mas,
12-19 Deus na eleição. Dentre a sua em pouco tempo, a proteção se transfor-
criação, o Criador escolheu um povo para mou em detenção (1Sm 21.13, "em cujas
ser a sua herança, "possessão" (12) e, ao mãos"), pois eles reconheceram Davi e
examinar todos os que vivem sobre a ter- perceberam que tinham um valioso re-
ra (13-15), ele observa a inutilidade dos fém nas mãos. Fingindo-se de louco,
meios que o mundo oferece para propor- Davi garantiu sua libertação e escapou.
cionar segurança (16,17): nem posição Portanto, se tivéssemos apenas a narra-
(rei) nem poder (exército), nem bravura tiva de Samue1, diríamos que a crise foi
(valente), força ou equipamento (cavalo) superada com astúcia. Mas, em retrospec-
podem livrar. Mas, comparada com toda to, Davi percebeu que não foi nada disso
essa pompa de estado, força armada e ma- que aconteceu: o segredo de sua fuga foi
terial bélico, como é simples a proteção Busquei o SENHOR (4) ... Clamou este aflito
que ele dá aos seus! Seus olhos e sua mi- (6). Não foi a esperteza que abriu a por-
sericórdia (18) são suficientes para enfren- ta, mas ele... livrou-me (4), o SENHOR... o
tar e vencer tanto a ameaça eterna (morte) livrou (6).
quanto a terrena (fome) (19), e atuam a O salmo é um acróstico alfabético in-
nosso favor por intermédio do temor (que completo (v. Introdução): uma letra não é
o temem) reverencial em relação a ele e da usada e outra é usada duas vezes. As di-
esperança (sobre os que esperam, expecta- ficuldades da vida não podem ser catalo-
tiva confiante) de que sua misericórdia nos gadas, nós não conseguimos vislumbrar o
guardará (18). quadro total. Mas, até onde a história toda
20-22 O coração confiante. O teste- pode ser contada, aqui está um ABC para
munho do povo do Senhor tem como ca- um momento de crise.
racterísticas: (a) constância na esperança O salmo se divide em duas partes:
(expectativa confiante), não apenas quan- v. 1-10, as lições da experiência, principal-
to ao resultado final - esperança futura e mente o testemunho do próprio Davi com
eterna - mas a esperança que nos assegu- algumas conclusões; v. 11-22, o ensino da
ra que, seja qual for a circunstância, ele é verdade, como administrar a vida e enfren-
nosso auxílio e escudo (20); (b) alegria na tar as crises.
confiança. O coração alegre é produto da 1,2 Compromisso de louvar sem ces-
confiança baseada no que o Senhor reve- sar. Em todo o tempo - até mesmo nas
lou a respeito de si (nome) e de seu caráter garras de Abimeleque - a resposta certa é
(santo), pelo que ele não pode jamais negar (não a astúcia, mas) bendizer o Senhor, i.e.,
767 SALMO 35

reconhecer as glórias que fazem dele quem para obter a liberdade, mas uma vida de
ele é, louvar, gloriar-se... no / "dedicar-se reverente temor do SENHOR respeita a ver-
ao louvor do" Senhor. Esta é a mensagem dade divina e honra seus valores.
para os humildes, os que se encontramjun- 15-18 A chave para enfrentar a adver-
to à base do monturo da vida. sidade. O ataque da adversidade deve ser
3-6 Testemunho dado para a glória neutralizado com oração, e a oração dosjus-
de Deus. A oração foi atendida com livra- tos faz com que o Senhor do livramento ve-
mento total (4) - e isso não se restringe a nha em nosso socorro (17). Como os justos
Davi, pois os que o contemplam são ilu- estão aqui contrastados com os que prati-
minados interiormente (5); eles jamais co- cam o mal, a descrição abrange o relacio-
lhem vexame, i.e., nunca são desapontados namento reto com Deus e o compromisso
como resultado de olharem para o Senhor. de viver uma vida de retidão, portanto, (a)
Da mesma forma, Davi clamou e foi ouvi- no contexto da justiça, a oração é eficaz:
do (6) não porque tivesse algo de especial, (15, clamor) especificamente "clamar por
pois ele era um aflito, alguém "na base do socorro"; clamam (17), em sinal de perigo,
monturo da vida". urgência; mas (b) o Senhor se identifica
7-10 Lições extraídas. O testemunho automaticamente com os oprimidos pelas
de uma pessoa só é útil para os outros se aflições da vida (18). Perto, um relacio-
estiver alicerçado numa verdade imutável namento de "parentesco próximo", não
a respeito de Deus. Então, por que Davi simplesmente estar fisicamente perto, mas
conseguiu ter essas experiências? Porque o tomando para si as nossas dores (Lv 21.23;
anjo do SENHOR é o agente protetor sempre Rt 2.20; 3.12).
presente (7). Aparecendo a Agar, o anjo do 19-22 O segredo do livramento. Estes
Senhor falou sobre o Senhor (Gn 16.11) versículos podem ser considerados um
e, contudo, era o próprio Senhor (Gn comentário sobre o relacionamento de
16.13; cf Êx 3.2,4; 14.19,24; 23.20,21; Jz "parentesco próximo". Realisticamente, o
6.21,22; 13.21,22). O Anjo está particu- salmista reconhece que ser justo (reto com
larmente associado com ocasiões em que Deus e comprometido com a retidão, 19)
o Senhor deseja mostrar-se a pessoas es- não é garantia de uma vida sem problemas
colhidas, e é uma das indicações que o Ar (Muitas são as aflições) - mas, em sua
fornece a respeito da diversidade dentro da proximidade conosco, o Senhor livra (19),
unidade de Deus. Portanto, o testemunho preserva (20), fica do nosso lado contra
de Davi pode ser o testemunho de qualquer os nossos adversários (21), paga o que for
um, porque o Anjo acampa-se (vive numa necessário para suprir nossa necessidade
habitação móvel para poder mover-se jun- (resgata, 22a; 31.5) e se oferece a si mes-
to com o povo de Deus em sua peregrina- mo como refúgio (22b).
ção terrena) com todos os que o temem.
Assim, todos são convidados a provar e Salmo 35. Reações ao
ver, se refugiar (8) e encontrar suficiência sofrimento imerecido
nele (9,10). Este salmo, que é mais um extravasamento
11-14 O segredo da vida plena. Ensi- de sentimentos do que uma exposição
narei dá o tom do restante do salmo. Aqui coerente e organizada, diz respeito a uma
estão as lições que Davi quer compartilhar. situação em que inimizade e sofrimento
Primeiramente, a inesperada chave para pareciam não ter fim. O longo período em
uma vida bem-sucedida: refrear a língua que Saul esteve tomado de um ódio para-
(13), estabelecer e seguir objetivos mo- noico parece se encaixar aqui, com a triste
rais determinados (14). Na corte de Aquis, figura do rei atraindo para si muitos que
Davi recorreu a artimanhas e concessões se solidarizavam com ele por bajulação e
SALMO 35 768

agravavam sem motivo os sofrimentos de Deus por seu poder salvador (9,10). Arefe-
Davi. Como no salmo 34, a oração é vista rência a guerra e armas (1,2) indica a força
como a única solução, mas, naquela crise, a do Senhor, que é muito superior à força do
resposta veio com a oração: "Clamou este inimigo. 1 Contende. A palavra se aplica
aflito, e o SENHOR o ouviu" (34.6). Agora, a processos judiciais. O primeiro apelo de
apesar da perseverança na oração, a agonia Davi é de que seja feito o que é certo. Não
é prolongada e a resposta demora a vir. A se pode pedir ao Senhor que faça algo in-
oração submete as nossas necessidades aos justo. Peleja. Embora em risco de morte,
recursos do Senhor, mas também submete Davi não se propõe a pegar em armas. Isso
o nosso cronograma ao dele. é tarefa do Senhor. 2,3 Escudo ... broquei e
As três seções do salmo são demar- sinônimos, i.e., todo o equipamento defen-
cadas por promessas de louvor respon- sivo necessário. Lança. O Senhor é chama-
sivo quando as nuvens se dissiparem do a defender e atacar. E também a suprir a
(9,10,18,27,28). Dentro de cada seção, necessidade que a alma tem de se sentir se-
o pensamento vagueia sobre os mesmos gura. 4 Confundidos... vexame: ser enver-
tópicos: (a) clamor pela intervenção divi- gonhado, ser publicamente desapontado
na (1-3,17,22-24a); (b) oração pedindo o em suas expectativas. 5 Palha, uma ima-
castigo dos adversários (4-6,8,24b-26) e gem de impotência diante do juízo divino.
(c) razões que justificam essa retribuição O anjo (ou melhor, "Anjo"), cf 34.7. O
(7,11-16,19-21). A tônica de cada seção "Anjo do SENHOR" aparece em Salmos ape-
encontra-se nos últimos versículos: o so- nas nestes dois lugares, para salvar (34.7)
frimento é sem causa (7), é uma forma e para espalhar (35.5,6). 7,8 Orações retri-
estranha de retribuir o comportamento de butivas sempre seguem a vontade revelada
Davi (13,14), e está cheio de animosidade de Deus. Ele declarou (Dt 19.18,19) que
pessoal (19-21). Como sempre acontece quando alguém acusasse falsamente outra
em salmos como este, ficamos surpresos pessoa, deveria receber o mesmo castigo
com a veemência com que Davi ora e com que tentou infligir. Numa circunstância
o elemento de contra-ataque aos seus ini- como essa, nós oramos de forma branda:
migos. Precisamos nos lembrar de que há "Seja feita a tua vontade"; os salmistas,
uma ira santa, evidenciada no Senhor Jesus com mais realismo, explicitavam essa
Cristo (Me 3.5), nos santos de Apocalipse vontade! 10 Quem contigo se assemelha?
6.9,10 e mencionada em Efésios 4.26. O Cf Êxodo 15.11; Miqueias 7.18.
salmo inteiro (como todos os salmos simi- 11-18 Oração numa situação de peri-
lares) é uma oração sem nenhum indício de go imerecido. A longa seção introdutória
que, quer em palavra, quer em ação, Davi (12-16), em que Davi lamenta estar rece-
manifestasse alguma animosidade em re- bendo o mal em troca do bem que praticou,
lação àqueles que o perseguiam de forma é seguida de um apelo pela intervenção
pecaminosa e condenável. Assim como no divina (17) e da promessa de louvor pelo
salmo 34, a crise, embora prolongada nes- livramento (18). Este é o cerne tristonho
te caso, é enfrentada com oração, deixando do salmo: descobrir que pessoas que eram
tudo nas mãos do Senhor. consideradas amigas dão testemunhos fal-
1-10 Oração numa situação de peri- sos, se deliciam com a desgraça e fervem
go indesejado. Um apelo pela intervenção de ódio. Nessa seção, o Senhor é tratado
divina (1-3) é seguido por uma oração pe- como "o Soberano" (17), com o acrésci-
dindo represália (4-6) e a explicação de mo da pergunta: Até quando? Certamente,
que tal comportamento é sem causa (7). O ele é mais forte que qualquer inimigo,
tema da retribuição é repetido no v. 8, se- mas o santo que está orando precisa estar
guido por uma promessa de exultação em preparado para se submeter ao tempo do
769 SALMO 36

Senhor Soberano. 13 Em oração me re- Salmo 36. Um Deus,


clinava sobre o peito: "E a minha oração duas atitudes
ficava voltando para o meu peito" (seme- A estrutura deste salmo mostra sua
lhante na ARe), o que pode indicar oração mensagem:
não respondida, mas é uma forma bastante
incomum de expressar a ideia. Se "peito" AI (v. 1) O ímpio: sua filosofia
é uma metáfora para "coração" (Ec 7.9), B 1 (v. 2-4) As características do ímpio
então "mas minha oração ficava voltando à C (v. 5-8) As características do
mente", i.e., apesar do modo como o trata- Senhor
vam, ele continuava a se pegar orando por B2 (v. 9-11) Os que conhecem o Senhor
eles (Mt 5.44). 16 Vis, profanos em pen- N (v. 12) Os ímpios: seu destino
samento e conduta, abomináveis a Deus,
religiosamente apóstatas: aqui, pessoas Neste salmo, há uma escolha a ser feita,
agindo como se não existissem sanções que determina o tipo de vida que teremos
divinas com relação à conduta. Bufões em agora e o destino que nos aguarda depois:
festins. Provavelmente (NVI), "como ím- a escolha é como reagir à revelação de
pios caçoando do meu refúgio". 17 Senhor: Deus. Rejeitá-Ia é estar condenado a ouvir
"Soberano". 18 O Senhor se alegra em o nosso próprio coração e a viver sem va-
receber agradecimentos (Lc 17.15,16). A lores; recebê-Ia é ter vida, luz, abundância
promessa de louvor e graças unifica esse e proteção.
salmo (9,28). 1 A filosofia do ímpio. Lit., "A palavra
19-28 Oração numa situação de pe- da rebelião para o ímpio no meu coração".
rigo maligno. Os inimigos de Davi estão "Oráculo" (xvr), palavra de autoridade, é
cheios de prazer maligno e maldade (19- geralmente usada com relação ao que o
21). Continuará o Senhor em silêncio (22- Senhor fala. Aqui quem fala é a rebelião
24)? Se ele ouvir o apelo por intervenção (transgressão). "No meu íntimo" (NVI), ou
(24-26), chegará o dia em que os verdadei- "sei intuitivamente" ou "sei pessoalmente".
ros amigos de Davi glorificarão ao Senhor A primeira opção ressalta convicção da
junto com ele (27,28). O novo destaque verdade; a segunda, que é mais atraente,
dessa seção é a justiça do Senhor (24). testifica que ele mesmo não está imune a
Como ele é um Deus justo, tem de agir a essa voz interior. 1c,d A questão não é se
favor de alguém que está passando por uma Deus existe, mas se ele é importante; não
provação tão severa quanto essa. 19 Sem é sua existência, mas sua relevância. Essa é
causa (cf Jo 15.25). Pisquem. Insinuação a posição de muitas pessoas o tempo todo;
maliciosa. 22 Tu, SENHOR. os viste. Observe é a posição de alguns crentes de vez em
a conexão com o v. 21, vimo-lo. Seja qual quando - não como convicção declarada,
for a alegação deles, o Senhor conhece a mas na prática.
verdade dos fatos. Senhor, "Soberano". 2-4 As características do ímpio.
No v. 17, o título apontava para o controle Interiormente, escuta os próprios conse-
que o Senhor tem sobre o tempo em que lhos e é moralmente complacente (2); exte-
os acontecimentos ocorrem; aqui, o foco riormente, é mau em palavras e ações (3),
está em seu domínio sobre os adversários. em planos, objetivos e valores (4). 3,4 Sem
27 Davi tinha inimigos aos montes, mas temor de Deus não há padrões objetivos
não esqueceu de que também tinha amigos para a vida. Malícia, uma palavra que vai
- um grande antídoto para a solidão cria- de travessura a apostasia. Discernimento,
da pelas acusações mentirosas. E, um dia, conduta sábia que leva ao verdadeiro
eles serão os primeiros a glorificar a Deus sucesso. Despega, "despreza", rejeição
pela restauração de Davi. tanto mental quanto prática.
SALMO 37 770

5-8 As características do Senhor. entre a sorte terrena dos "justos" - os que


5 Benignidade, o amor que brota de um vivem plenamente seu relacionamento de
compromisso voluntário, "amor imutá- quem está "em ordem com Deus" - e os
vel". Chega até o, "está no", não a ideia "ímpios", os ateus na prática, para quem
de algo remoto, mas sim muito alto, algo Deus pode até existir, mas é irrelevante.
muito maior e mais alto que qualquer coisa O salmo se divide em quatro seções de
que exista na terra. Fidelidade, coerência tamanho semelhante, sendo que a segun-
do caráter revelado, confiabilidade em suas da, a terceira e a quarta são marcadas por
promessas. 6 Justiça ... juízos a expressão começos paralelos. Trama o ímpio (12), O
da santidade de Deus, respectivamente em ímpio pede emprestado (21), O perverso
princípios morais e práticas justas. 7,8 A espreita (32).
benevolência universal de Deus em amor 1-11 A prosperidade do ímpio: rea-
(cf 5), proteção (7), fartura e satisfação ções. O cenário é construído observando-
(8, como os rios do Éden, Gn 2.10). se que existem três maneiras de encarar a
9-11 As características dos que co- vida (1 contrastado com 3) e que, aparen-
nhecem o Senhor. A descrição (5-8) se temente, os maus são bem-sucedidos (7),
transforma em testemunho: vida, em con- enquanto os que fazem o bem são frequen-
traste com a vida decadente dos v. 2-4, temente frustrados pela vida e tentados a
vida verdadeira dada por Deus; luz, tudo invejar (1), a ficar perturbados e (8) a se
o que toma a vida plena e despreocupada. perguntar se é realmente verdade que os
Vemos, experimentamos e desfrutamos. mansos herdarão a terra (9,11). A reação
10 Conhecem, desfrutam de íntima comu- recomendada é sossego e contentamento
nhão. Benignidade... justiça, os atributos (1,7,8), confiança e compromisso moral
do próprio Deus. Os que o conhecem oram (3,5), paciência (7) e confiança no resul-
para que ele compartilhe sua própria na- tado final (10,11). Essa recomendação se
tureza com eles (2Pe 1.3,4). 11 Pé... mão baseia na transitoriedade dos que praticam
simbolizam, respectivamente, conquista e a iniquidade (2), na garantia da bênção de
poder pessoal. Vivemos num mundo que Deus (4-6) e na reparação final de todas as
deseja subjugar e dominar. Repila, tome coisas (9-11). 3 Alimenta-te da verdade,
sem lar, ponha a vida em desordem. ou "cuida da fidelidade", cultiva a fideli-
12 O destino dos ímpios. "Ali" (ARe; dade (a Deus e aos seus caminhos) como
"Lá", NVI; a ARA omitiu o termo equivalente). um pastor cuida de seu rebanho. 4 Desejos,
Será que existe alguma circunstância real "pedidos", desejos transformados em ora-
de queda dos obreiros da iniquidade por ções. 5 O mais ele fará, i.e., ele agirá.
trás do salmo? Ou, como é mais provável, 6 Tuajustiça, o fato de que você está certo;
Davi está apontando dramaticamente para o teu direito, o veredicto da corte divina a
o dia do juízo divino? seu favor. 7 Descansa no SENHOR e espera
nele. O "descanso" (em palavra e ação) de
Salmo 37. Um ABC para o uma confiança firme, acompanhada de cer-
conflito espiritual pessoal ta (lit.) "convulsão", uma ansiedade causa-
O salmo 37, um acróstico alfabético quase da pela expectativa. 9 Esperam, a espera
completo (v. Introdução), pode funcionar confiante da esperança. 11 Mansos. Os que
como um comentário sobre os versículos se encontram junto à base do monturo da
finais do salmo 36 - a oração contra os vida, mas enfrentam sua situação calma-
"pés e mãos" hostis e a afirmação de que, mente porque sabem que estão debaixo da
não importa onde eles ataquem, sua derro- soberana mão de Deus.
ta é certa. Ele explicita a geralmente ago- 12-20 A hostilidade do ímpio: ver-
nizante tensão na fé gerada pelo contraste dades escondidas. A observação feita nos
771 SALMO 37

v. 1-11, de que a vida é injusta, recebe ago- a vida nos prova com suas desigualdades,
ra outro cenário: os ateus práticos em seu e não as queixas, invejas e ira a respeito
sucesso passam a antagonizar e agredir o das quais somos advertidos nos v. 1-11.
justo (12,14). Porém, mesmo nessa situ- 22 Restaure-se o "porque" inicial. Os jus-
ação de grande perigo, as coisas não são tos são libertos para exercer a generosidade
bem o que parecem: o Senhor não é um porque sua esperança garantida tira deles
espectador passivo; ele tomou o partido do qualquer ansiedade em relação ao futuro.
justo e já determinou a desgraça dos ímpios 23,24 Embora seus passos tenham sido
(13), garantindo que suas agressões voltem firmados, ele não está livre de tropeçar. O
para eles (15), pois eles também são inimi- caminho ainda tem armadilhas e perigos
gos de Deus e estão condenados à destrui- escondidos, mas a mão que nos segura
ção (20). Por outro lado, mesmo aqui na não nos solta nunca. 25 Talvez essa tenha
terra, o justo é mais rico que o ímpio (16), sido uma experiência pessoal do salmista;
cujo poder será quebrado, mas o Senhor é porém, o mais provável é que seu sentido
a força dos justos; eles estão em comunhão seja como o do v. 24, i.e., acrescentando-se
íntima com ele e sob sua proteção (18); as palavras "no final das contas". 26 Sobre
nenhuma calamidade terrena pode destrui- a inclusão da descendência no fluxo da
los, pois eles têm suas próprias fontes de bênção, ver Êxodo 20.6; Provérbios 20.7;
satisfação (19). A orientação desta seção é Atos 2.39; lCoríntios 7.14. 28 Santos, ter-
que devemos aprender a viver à luz dessas mo relacionado com amor (36.5), aqueles
noções em vez de aceitar as aparências da a quem ele ama e que reagem a esse amor
vida. 14 Pobre e necessitado, o coitado amando-o também. 31 Lei, "ensino".
e o explorável. 17 Braços, "poder", força e 32-40 A transitoriedade do ímpio:
habilidades pessoais. 18 Íntegros, aqueles segurança. O princípio de que o Senhor
cuja vida é uma só, interna e externamente garante um resultado abençoado para os
e em todas as suas partes. Conhece (cf 1.6), justos (os que estão "em ordem com ele") é
sob sua supervisão e proteção pessoal. formulado aqui; a ameaça nunca é tão mor-
21-31 O empobrecimento do ímpio: tal assim, pois, no final, os ímpios é que
compromisso. Uma das verdades desco- perecerão (32-34). Consequentemente, a
bertas na seção anterior foi a de que os confiança absoluta no resultado final
justos são mais ricos. Agora, esse fato é (espera), juntamente com a obediência que
um pouco mais explorado. A generosida- segue o seu caminho, é a única maneira de
de distingue os justos dos ímpios (21,26). se garantir a posse da terra (34). Um caso
Eles podem dar-se ao luxo de agir com li- particular (35,36) é visto como um exemplo
beralidade porque (o v. 22 começa com típico do que acontecerá no final (37,38).
"porque", ARe) seu futuro está garantido, Enquanto isso não ocorre, o Senhor dá sal-
seu caminho é firme (23) e em Deus todas vação (livramento), proteção, ajuda e so-
as suas necessidades atuais são supridas corro aos que nele buscam refúgio (39,40).
(25, cf 28,29). Por trás dessa despreocu- 34 Possuíres a terra (cf 9,11,22,29,34). O
pação com as necessidades e perigos da mesmo verbo é usado em todo o texto, e
vida está o fator oculto da bênção, da ale- a tradução "possuir" é melhor que "her-
gria, do amor protetor e da fidelidade de dar". O Senhor deu ao seu povo uma terra
Deus, que eles experimentam no contex- prometida, mas a posse dessa terra esteve
to de seu compromisso com ele no modo frequentemente ameaçada, tanto nacional-
como vivem (27), no caráter que cultivam mente, por inimigos estrangeiros, quanto
(28) e na qualidade de suas palavras e de individualmente, por exploradores ávidos
seu coração (30,31). Esse compromisso é e opressores. Ter segurança garantida e
que deveria ser nossa prioridade quando usufruir da posse da terra era algo que o
SALMO 38 772

povo desejava muito. Este é o significado Cravam-se/"caem". 3 Indignação, a sensa-


principal do salmo, mas seu sentido mais ção de ultraje. Parte sã, "inteireza". Saúde,
amplo aponta para o advento messiânico "paz/bem-estar". Pecado, itens específicos
e a nova criação. 37 Íntegro, uma pessoa de mau procedimento. 4 Iniquidade, "cul-
com verdadeira integridade (cf v. 18). pa", a deformação e corrupção interior da
38 Transgressores, "os que se rebelam", natureza. Se elevam acima de minha cabe-
zombando deliberadamente da vontade de ça, como no afogamento.
Deus revelada. 5-8 Essa descrição do corpo atormen-
tado é um desdobramento do v. 3. Nem
Salmo 38. Ira divina, toda doença vem como castigo pelo pe-
divina salvação cado, mas algumas sim. Toda situação
O primeiro e o último versículos resumem de doença é um período de autoexame.
o tema e a maravilha deste salmo. Quando Neste caso, a conexão estava evidente-
o SENHOR é ofendido, e sua ira (cólera ex- mente clara. A descrição alterna sintomas
plosiva) e furor (cólera flamejante) aflo- físicos e mentais. 5 Infectas e purulentas,
ram (I) e suas setas começam a voar (2), "cheiram mal, infeccionadas". Loucura,
é a esse mesmo Senhor que nós suplica- "tolice". O substantivo concreto corres-
mos por sua presença, proximidade (21), pondente significa "completamente tolo".
socorro e salvação (22). Somente o favor 6 Encurvado, "cheio de dores". 8 Aflito,
do Senhor pode nos livrar de seu desfavor. "entorpecido". Dou gemidos, "urro"
Se existe um salmo que foi escrito com o (como um leão raivoso). Desassossego,
propósito de nos alertar contra o pecado "agitação, inquietação".
expondo suas consequências, com certeza 9-12 Os v. 1-4 focalizavam a doença
é este. O pecado agride o Senhor e opri- como evidência da hostilidade divina; o
me o pecador, troca bem-estar por feridas, assunto agora é o abandono das pessoas e a
induz à depressão, produz dores no corpo as ameaças que a doença desencadeou. Ao
e inquietação no coração (1-8). Ele entris- mesmo tempo, embora a oração seja indis-
tece e enfraquece, nos isola dos amigos e tinta, ele se volta para o Senhor. 9 Senhor,
desperta inimizade (9-12); ele nos deixa "Soberano", como nos v. 15,22. O Senhor
sem desculpa (13,14). Porém, ele não fe- "declara seu poder absoluto principalmen-
cha a porta da oração nem nos expulsa do te ao demonstrar misericórdia e piedade"
lugar de arrependimento (15-18). (Livro de Oração Comum). 10 Outros
1-12 O caminho para baixo. Davi sintomas de doença: palpitação, perda de
afunda cada vez mais sob o peso do peca- vitalidade e de visão clara. 11 Um detalhe
do. O Senhor é seu inimigo (1,2); Davi está vívido. Geralmente, situações em que a ne-
sem forças (5-10) e sem amigos (11). Seus cessidade de solidariedade é grande fazem
inimigos tramam contra ele (12). 1-4 Os com que as pessoas se afastem. Nós não
sintomas de doença (3, cf 5-8,10,17) po- sabemos o que fazer ou dizer, e o egoísmo
dem ser a maneira de Davi descrever seus supera a preocupação com o necessitado.
perturbadores sentimentos de culpa, mas Mas a pessoa que está em dificuldades não
os detalhes são tão vívidos e o senso de dor precisa de longos discursos - só do toque
física tão agudo que é melhor entender que, de uma mão amiga, da companhia de um
neste caso, ele foi acometido de uma doen- coração compreensivo. Amigos, "meus
ça real como castigo pelo pecado. 1 Ira... amados", um relacionamento mais íntimo
furor, ver acima. 2 Mensageiros divinos da que o dos companheiros, "pares". Parentes
ira do Senhor (setas) - doença, dor, aban- (cf 34.18), aqueles que, pela lei, deveriam
dono (11), oposição (12) - e oposição tomar para si o problema de seu parente.
pessoal divina (mão) "caem" sobre Davi. 12 Infelizmente, existem pessoas que ficam
773 SALMO 39

esperando uma oportunidade para prejudi- 21,22 O nome do Senhor da aliança


car os outros, desejam que o pior aconteça (21, cf v. 1,15), do Deus pessoal (21, cf v.
e armam ciladas e conspirações. 15) e do Senhor Soberano (22, cf v. 9,15)
13-22 O caminho para cima. O mesmo se agrupam nesse apelo final. O Senhor
esquema dos v. 1-12 repete-se aqui, mas o que foi ao Egito porque sabia da dor/so-
salmo dirige-se progressivamente para um frimento de seu povo (Êx 3.7, mesma pa-
novo cenário. O apelo contra a ira divina lavra usada no v. 17) não mudou; o Deus
(1,2) transformou-se no apelo inarticulado que se deixou conhecer pessoalmente e ser
do v. 9. Mas agora, embora a situação não chamado de seu por quem o ama nunca
tenha mudado, um tom positivo começa a será infiel a esse relacionamento; o Senhor
tomar conta: a espera confiante por uma Soberano salvará.
resposta (15), uma verdadeira confissão do
pecado (não apenas um lamento) (18) e um Salmo 39. A pergunta urgente
pedido de socorro salvador (22). A situação combina com a do salmo 38:
13-16 Ele não responde às injúrias (12- silêncio na presença dos espectadores
14), mas fala só com Deus (15,16). Ele fala (38.12,13; 39.2), ação divina contra o pe-
somente ao SENHOR (15, "Javé", o Deus de cado (38.1-3; 39.9-11), esperança somente
amor fiel à aliança, com poder para sal- no Senhor (38.15,21,22; 39.7). Mas o foco
var e julgar) sobre seus silêncios (13,14) é diferente. No salmo 38, a doença expôs o
e sobre sua esperança confiante (15); ele pecado, gerando a necessidade de perdão;
sabe que o Senhor ("Soberano") que é no salmo 39, a doença expôs a brevidade
Deus meu, responderá (cf Lm 3.19-33). da vida, gerando o desejo de um período de
14 Não é que ele "não possa" replicar, mas alívio (13) antes que a transitoriedade da
ele simplesmente não o faz. A escolha de vida siga seu curso.
permanecer em silêncio foi voluntária. A brevidade da vida e a tristeza da mor-
15 Pois, "porque". Ele preferiu ficar em te permeiam toda a Bíblia, e a revelação
silêncio "porque" escolheu o caminho da completa do mundo imortal não as elimi-
confiança e da oração (15,16). Espero, i.e., na. Esta vida é preciosa. Suas alegrias e
com esperança confiante. amores podem ser transcendidos, mas não
17-20 A oração registrada no v. 16 foi podem ser substituídos. Ser privado dos
feita com urgência pois estou prestes a tro- entes queridos é "tristeza sobre tristeza"
peçar (17). Em primeiro lugar, ele tem ur- (Fp 2.27); nossa própria partida desta vida
gência porque sua resistência está perto do não pode ser contemplada com absoluta
fim; em segundo lugar, sua dor/sofrimento tranquilidade, ainda que o céu esteja ga-
(17, a palavra combina os dois significa- rantido. Davi lamentou a morte de seu filho
dos) está sempre presente. Isso, por sua pequeno mesmo sabendo que eles iriam se
vez (o v. 18 começa com "porque", v. ARe), encontrar novamente (2Sm 12.22,23), e
ocorre permanentemente, pois ele "conti- aqui ele lamenta o possível encurtamento
nua confessando e suportando tristeza" por de sua existência na terra.
causa de sua iniquidade (cf v. 4) e peca- 1-3 Um silêncio forçado. Medo de di-
do (cf v. 3). O próprio ato de levar todo zer a coisa errada num momento de tensão.
esse assunto diante de Deus mantém viva Embora a pressão possa aumentar (2,3), a
a sensação de opressão. Além disso, exis- questão do testemunho diante do ímpio é
te vigorosa oposição, ódio injustificado e importante (cf 73.15).
difamação (19). Mas, ao mesmo tempo, já 4-6A pergunta urgente. Poeticamente,
não há a preocupação pesada dos v. 5-8; o o v. 4 pergunta: "Eu vou morrer?". Essa
ar está mais claro - certamente porque ele era a pergunta que ele sentia dever reprimir
chegou ao lugar de confissão. diante dos que não compartilhavam de sua
SALMO 40 774

fé, pois, tendo a perspectiva do céu diante Agora, a espera acabou (1-3); a confiança
de si (49.15; 73.24), por que deveria ele te- foi recompensada (4,5), o compromisso
mer ou se angustiar com a morte? Mas a pessoal de fazer a vontade de Deus é assu-
pergunta será feita, e Davi tem de reconhe- mido (6-8); o testemunho público é prome-
cer a brevidade da vida, sua fragilidade e o tido (9,10), mas a imperfeição pessoal e a
curso incerto da existência terrena (5,6). necessidade de socorro divino urgente per-
7-11 Deus é a minha esperança. manecem (11-13). Também é necessário
Espero e esperança são sinônimos. Davi que Deus faça alguma coisa publicamente
tem perguntado ansiosamente: "Eu vou para repreender (14,15) e dar alegria (16).
morrer?" (4), mas agora ele vê o futuro na Contemplando esse futuro à sua frente,
perspectiva certa. Talvez ele tenha uma do- Davi mais uma vez assume uma atitude
ença terminal (10, lit., "Estou acabado"), de espera: independentemente do que o
mas o seu período sobre a terra é exata- Senhor tenha feito no passado, existe a ne-
mente igual ao de qualquer outra pessoa, cessidade constante e urgente de sua aten-
isto é, o que Deus determinou. Esta é sua ção e ação salvadora (17).
expectativa confiante: curta ou longa, a 1-3 (AI) Espera frutífera. O simples
vida é o que o Senhor quer. 8 Livra-me... fato de esperar (com esperança e confian-
não me faças. Em sua crise, Davi contava ça, I) traz livramento pessoal, segurança,
somente com a oração. Se ela "não fosse renovação e impacto público eficaz (2,3).
atendida", seus críticos ficariam exultan- 1 Esperei confiantemente, ou "apenas es-
tes (38.15,16) e o insensato (pessoa sem perei". 2 [Poço de] perdição, significado
discernimento moral e espiritual) zomba- incerto; talvez "[poço] turbulento/desola-
ria dele. 9 Silêncio de aceitação debaixo do". 3 Novo, "viçoso", agradecendo por
da mão de Deus (cf v. 2). 10,11 Uma das "novas" misericórdias. Muitos. O modo
causas da diminuição da duração da vida como reagimos diante da vida constitui um
terrena é o castigo divino do pecado e (cf vigoroso testemunho, e nada é mais pode-
90.5-9), assim, a preocupação de Davi não roso do que manter uma atitude simples
é com a cura, mas com o perdão (8). de espera confiante. Essa atitude é notada
12,13 Oração por alívio. O fim da (verão), estimula a reverência pelo Deus
existência divina é inexorável; mas antes que responde à fé (temerão) e leva outros a
que isso aconteça, ele quer tomar alento, terem fé também (confiarão).
"recobrar o ânimo". 12 A oração apresen- 4,5 (B I) A ação divina no passado é
ta nossas necessidades a Deus; grito, nos- recordada. A bem-aventurança acompanha
so desamparo; lágrimas, nossa urgência. a confiança por causa da abundância dos
Forasteiro... peregrino: O Senhor fez de feitos e planos do Senhor. 4 Arrogantes...
seu povo "estrangeiros e peregrinos" em mentira. Duas atitudes inadmissíveis:
sua terra (Lv 25.23); forasteiro, alguém fingir uma competência que não existe
que pediu asilo; peregrino, "inquilino", al- e mentir para se livrar de um problema.
guém que não é o proprietário. O Senhor Maravilhas, coisas que têm a marca do
ama os seus "estrangeiros" (Dt 10.19) e sobrenatural, indicando um agente divino.
lhes dá proteção e direito de posse. São mais do que se pode contar. Ou seja,
"não há comparação contigo".
Salmo 40. Esperando antes... 6-13 (C) A disposição importantíssi-
esperando ainda ma. Três estrofes (6-8; 9,10; 11-13) estão
Nos salmos 38 e 39, Davi esperava em ora- ligadas por referências à disposição inte-
ção (38.15; 39.7), em meio a uma crise que rior: o coração obediente (8), o coração
envolvia o pecado (38.3; 39.8) e a maldade que testemunha (10), o coração que fraque-
das pessoas que o cercavam (38.16; 39.8). ja (12). As maravilhas de Deus (5) exigem
775 SALMü41

uma reação. Nenhum ritual é satisfatório 14 Envergonhados ... vexame... ignomínia,


(6), somente o compromisso sério com a sinônimos para desapontamento e descré-
vontade de Deus (7,8). Isso não pode ser dito público. É tão correto orar contra (14)
apenas uma questão de santidade interior; quanto orar por (16). Davi nos fornece um
precisa ser um testemunho público (9,10). modelo, mas esse tipo de oração requer pu-
Mas, ao empreender essa tarefa, vem o reza de espírito.
pensamento: "Será que sou capaz disso?", 17 (A 2)Ainda aguardando. Consciente
pois a vida continua cheia de problemas, de sua falta de força (pobre, esmagado sob
o pecado ainda é uma ameaça e a força de o peso da vida) e de determinação (neces-
vontade está diminuindo (12). Mas o v. 12 sitado, que facilmente sai do curso), Davi
está cercado pelos v. 11,13: o lugar de ora- sabe que, por maiores que tenham sido as
ção continua aberto. misericórdias do passado, enquanto nossa
6 Cf 51.16,17. Não quiseste... não vida terrena continuar estaremos sempre
requeres. Davi foi capacitado a ver que precisando de novas misericórdias no céu
um livramento como esse (1-3) só pode (cf Hb 7.25) e na terra.
receber uma resposta pessoal completa.
Abriste os meus ouvidos, cf Isaías 5004 Salmo 41. Bem-aventurança,
(verbo diferente), a criação de uma capa- na teoria e na prática
cidade de receber uma revelação divina. Os tópicos de doença, pecado, hostilida-
7 Rolo. Algum decreto de coroação (2.7; cf de e afastamento ligam este salmo com
Dt 17.14-20) ou juramento (cf 101) legali- Salmos 38---40, e ele provavelmente re-
zando o reinado de Davi. Numa reafirma- lembra um aspecto - maldade e traição
ção solene, Davi declara seu compromisso - da mesma longa provação. Mas, em
com esse ideal. No fim das contas, só o particular, ele submete um princípio (1-3)
Messias pode cumprir esse compromisso, e ao teste da experiência (11,12): será que
Hebreus 10.5-10 considera acertadamente cuidar dos fracos faz com que Deus cuide
que tanto a extinção dos sacrifícios rituais de nós também?
como a aceitação de todo o compromisso 1-3 (AI) O favor divino, na teoria. A
da lei se cumpriram no Senhor Jesus. Os v. preocupação com os necessitados é incul-
9,10 expressam determinação, seguindo as cada no AT (Êx 22.21; 23.9; Lv 19.10,33;
afirmações dos v. 6-8. Daí, proclamei... ja- Dt 10.18). Provérbios 14.21; 19.17 pro-
mais cerrei... não ocultei... etc. As bênçãos mete bênção em retribuição (cf Mt 5.7;
que vêm por meio da confiança (1-5) espe- 18.33). Aqui, a promessa abrange socorro
ram por uma vida santa (6-8) e lábios aber- na tribulação (1), proteção e restauração,
tos (9,10). Mas para isso é necessário orar bênção temporal, refúgio, força e conso-
reconhecendo nossa dependência de Deus lo na doença (2,3). 1 Necessitado. Termo
(11,13), porque nossa fraqueza pessoal ligado principalmente à falta de recur-
(12) pode facilmente nos levar a descum- sos materiais, mas abarca também outros
prir nossos compromissos e promessas. aspectos de desvantagem. Em 1Samuel
14-16 (B 2) A busca da ação divina 30.13ss., temos como exemplo a atitude de
no futuro. O Senhor agiu em benefício Davi nessa situação, mas obviamente ele
de Davi pessoalmente (4,5); agora, ele se sente numa posição de esperar receber
deseja a ação divina para pôr ordem na a bênção prometida aos que se importam
comunidade. A oposição humana (14,15) com os outros. 3 Afofas, "refazes a cama
poderia frustrar todas as suas boas inten- na sua doença", uma bela imagem do cui-
ções, e os justos, que até certo ponto ha- dado divino.
viam sofrido com Davi, também precisa- 4 (B 1) O pedido por graça por causa
vam desfrutar de misericórdias renovadas. de um pecado. Tendo afirmado que quem
SALMO 42 776

se preocupa com o necessitado tem a bên- LIVRO 2


ção divina, Davi primeiro pede a bênção da
cura em relação ao pecado. Compadece-te, Salmos 42 e 43. De fé em fé
"dá-me a tua graça/favor". Sara a minha Esses dois salmos são certamente um só,
alma, "toda a minha personalidade". O pe- e não podemos dizer por que foram sepa-
cado é como uma doença do pecador, mas rados. Um refrão de continuidade une três
é também ofensivo a Deus: contra ti. estrofes de comprimento similar (42.6,12;
5-9 (C) Ódio, falsidade, mexerico, 43.5); há conexões por meio de conjuntos
traição. Em duas estrofes (5,6; 7-9), o de palavras, e.g., nas duas primeiras estro-
problema central de que o salmo trata é es- fes, enquanto me dizem continuamente etc.
clarecido: a oposição humana e, acima de (3,10); na segunda e na terceira, lamen-
tudo, a traição de um amigo de confiança. tando (42.9; 43.2); e há uma unidade no
"Teus amigos te desprezam, te abando- desenvolvimento do tema. (a) Em 42.1-5
nam? Leva o problema ao Senhor em ora- ("a fé ansiando"), lembranças antigas
ção?". 8 Peste maligna, (lit.) "uma coisa acentuam o sofrimento presente. A metá-
de Belial". A palavra "belial" é usada para fora da sede (1,2) expressa um profundo
desvio moral, má conduta social e aposta- anseio por Deus. (b) Em 42.6-11 ("a fé re-
sia espiritual. Deve ser sempre interpretada vivendo"), a metáfora da tempestade (7)
de acordo com o contexto. O sentido que expressa as aflições presentes, mas a fé vê
mais se adapta aqui é o de alguma ofensa a as vagas como vagas do Senhor, seu amor
Deus que provocou a ira divina. permanece (8), ele ainda é minha rocha
10 (B2) Pedindo graça por causa dos (9). (c) Em 43.1-5 ("a fé respondendo"),
adversários. A misericórdia divina que a metáfora de um destacamento de busca
restaura a vida abre uma oportunidade (3) expressa a segurança em relação ao
para vingança. Mas os salmos insistem no futuro. O Deus que mesmo nessas cir-
fato de que a vingança cabe ao Senhor e, cunstâncias é uma fortaleza (o levará de
em outros salmos, Davi tem o cuidado de volta para casa, 3,4).
evitá-la. Portanto, embora ele pudesse cair Muitas situações podem ser imagina-
no pecado da vingança (1Rs 2.5,6) é difícil das para este salmo. O autor recorda os
crer que num salmo composto solenemen- cultos no templo como coisas do passado
te ele pudesse pedir graça para fazer uma (42.4); ele está agora no extremo norte da
coisa proibida. Entretanto, como rei, ele Palestina (42.6); somente um ato de Deus
podia pedir a Deus que lhe prolongasse a pode levá-lo de volta (43.3); ele está cerca-
vida para que pudesse cumprir o dever real do de inimigos escamecedores e triunfalis-
de purificar a terra (101.8). tas (42.3,9,10). Qualquer ocasião em que
11,12 (N) O favor divino, na práti- um inimigo tomou e deportou cativos (e.g.,
ca. Davi recebeu a bênção prometida (cf 2Rs 14.14; 24.14) seria apropriada.
1-3). Deus não permitiu que seu inimigo
tivesse a última palavra; ao contrário, por 42. 1-5 O passado perdido
causa de sua integridade, ele desfruta do Com um anseio tão intenso que nos deixa
favor divino. envergonhados de nosso amor débil (1,2),
Notas. 11 Triunfar, "dar o brado de o salmista derrama suas aflições diante
triunfo". 12 Integridade, não a perfeição de Deus, junto com recordações de dias
sem pecado, mas integridade em relação melhores (2-4). 2 Inquirir não é errado:
ao assunto em questão, o cuidado com o Quando?... Por quê? (9; 43.2) ... Onde?
necessitado (1). 13 Uma conclusão edito- (3,10), expressando, respectivamente, de-
rial para o primeiro livro de Salmos (cf sejo de que a provação termine, perplexi-
72.18s.; 89.52; 106.48 e Introdução). dade por estar passando por aquela situação
777 SALMO 44

e a incapacidade de ver Deus naquilo tudo. verdade são metáforas para um destaca-
Mas a pergunta "Quem", em Isaías 42.24, mento de busca e resgate. A realidade é
nos coloca numa direção mais tranquiliza- que viver na luz de Deus e amar a sua ver-
dora e cheia de fé. 5 (com 11; 43.5). Ele lida dade é o único caminho que nos faz atra-
com o sofrimento falando consigo mesmo vessar as dificuldades da vida e chegar a
a respeito do Deus que garante o futuro um resultado abençoado. Observe como a
- pois, como sempre acontece na Bíblia, proximidade vai aumentando: monte ... ta-
espera exprime certeza do resultado. bernáculos ... altar... Deus - uma comple-
A NVI segue várias outras versões ao fazer ta volta ao lar, passo a passo.
pequenos ajustes em 42.5 de modo que o
refrão (5,11; 43.5) seja o mesmo em cada Salmo 44. Quando a vida é
caso. Aqui, lit., cc••• eu o louvarei pela sal- injusta e Deus está dormindo
vação da sua face" (o v. 6 começa com: -ó Como nos salmos 42 e 43, a fé enfrenta as
meu Deus", v. ARC), i.e., Deus só precisa calamidades da vida sem sentir que exista
olhar com favor para que toda a angústia alguma razão interna que justifique o so-
se transforme em livramento. frimento (I 7-19). Mas enquanto os salmos
42 e 43 são individuais, o 44 é nacional,
6-11 O presente atribulado possivelmente composto para um dia na-
As circunstâncias são ameaçadoras (7), cional de oração.
mas a fé está renascendo: Deus ainda é
meu Deus (6), a tempestade é tuas cata- AI (v. 1-3) O Deus do passado
dupas... tuas ondas (7); seu amor ainda B 1 (v. 4-8) Testemunho: verdadeira fé
é real; louvor e oração continuam (8); as C (v. 9-16) Lamento: o presente de-
perguntas que parecem queixas, que expri- solador
mem nossa angústia e que não têm respos- B2(v. 17-22) Testemunho: conduta cor-
ta tomam-se ocasiões, não de autopiedade, reta
mas de oração (9,10).6 Recoloque as pala- N (v. 23-26) O Deus do futuro
vras iniciais, -ó meu Deus" - fé pessoal
mantida em meio à depressão por meio da Os caminhos de Deus são sempre um
focalização da memória em Deus. 7 Os mistério. As aflições da vida muitas vezes
sofrimentos não são o toque de uma mão são inexplicáveis aos olhos do ser humano e
estranha. Eles são tuas vagas. 9 A fé diz contrárias ao que Deus já provou ser. O úni-
"minha rocha", a experiência diz "esqueci- co recurso é fugir para Deus, em oração.
do". Tudo depende da escolha que fazemos O salmo pode ser organizado como
sobre qual voz ouvir. 11 Lit., " ... o louva- uma antífona, com vozes respondendo
rei. Ele é a salvação da minha face e o meu uma à outra ou falando juntas. Como a voz
Deus" (ARC), levantando a face do abatido singular (e.g., 6,15) fala de minha espada,
(também 43.5). pode ser o rei conduzindo seu povo reuni-
do em oração.
43. 1-5 O futuro esperado 1-3 O Deus do passado: lembrança
Continua a oração por resgate e restaura- de bênçãos. Toda a assembleia fala do pas-
ção; o realismo continua, equilibrando os sado a uma só voz: memórias ancestrais de
problemas do presente com a perspectiva Deus em ação, de nações aniquiladas, não
do futuro. 1 Faze-me justiça, pronuncia pela força humana, mas pela mão divina.
veredicto a meu favor. 2 A menção dafor- 2 Mãos. Símbolo de ação pessoal. No iní-
taleza e o sentimento de ser "rejeitado": cio da investida, a terra diante deles era "a
seguro a respeito de Deus, esgotado pela terra que o SENHOR... vos dá" (Dt 4.1); e,
vida, cf v. 9 acima. 3,4 A tua luz e a tua no final, "deu o SENHOR a Israel toda a terra
5ALMü44 778

que jurara dar a seus pais" (ls 21.43; cf e a vontade "permissiva" de Deus, mas o
80.8-11; Am 2.9,10). 3 Com certeza eles AT não incentiva isso. Como Deus controla
lutaram pela terra, pois o que o Senhor todas as coisas, nosso caminho na vida é
promete é desfrutado por meio da obe- confiar nele quando não entendemos e bus-
diência ao que ele ordena. Contudo, eles car socorro nele quando somos oprimidos.
sabiam que não foi por sua espada, mas 12 Não só parece não haver nenhuma jus-
a tua destra (ação pessoal), braço (força tificativa humana para a hostilidade divina
pessoal) e o fulgor do teu rosto, o brilho que eles enfrentaram, como também pare-
do favor divino em relação ao seu povo. Te ce que Deus não ganha nada com isso. Por
agradaste deles, "aceitaste com favor". um nada, "sem lucro".
4-8 A verdadeira fé tem sido mantida. 17-21 A conduta correta foi man-
Rei (4,6) e povo (5,7) se alternam e se tida. A confissão da fé pessoal (4-8) é
juntam (8) num testemunho de que não se agora contrabalançada por um testemu-
desviaram de um entendimento verdadeiro nho de lealdade de coração e de conduta
a respeito do que o Senhor é (4) e de sua (18) ~ contudo, o resultado é só desastre
dependência em relação a ele (5); da com- (19); a religião sincera de mãos e cora-
preensão acerca da inutilidade do poder ção foi recompensada com uma sentença
terreno (6) e da eficácia da salvação divina de morte (20-22). O rei fala em 17,20; o
(7). Consequentemente, ele tem sido o povo, em 18,21; e todos juntos em 19,22.
seu motivo de orgulho (8). 4 Eles não se Temos razão de ficar perturbados com a
estribam na fé que seus pais tiveram, mas injustiça da vida. Mérito e recompensa não
na sua própria: lealdade pessoal (rei), de- mantêm o passo de forma alguma (73.2-
voção pessoal (Deus). Ordena, um apelo 14). Infelizmente, na maioria das vezes, a
direto ao Rei divino. Vitória, "salvações" reação do ser humano é negar a existência
(ARe), plural significando "toda sorte de de um Deus bom e amoroso; a reação do
livramentos". 6,7 Ambos começam com rei e de seu povo foi ir a Deus, aqui em
"Pois" (heb.). A dependência do Rei divi- testemunho, manifestando suas inquieta-
no, expressa em 4,5, vem da negação da ções, e depois intercedendo (23-26). Nós
capacidade pessoal (6) e reconhecimento devemos aprender a fazer com que a tribu-
da eficácia divina (7). Tu nos salvaste, "nos lação e a perplexidade nos aproximem do
deste vitória". nosso Deus, em vez de nos afastar dele. 17
9-16 O presente desolador. A antífo- Aliança, neste caso, as obrigações de obe-
na continua: a voz do rei em 9,11,13,15 diência que o relacionamento de aliança
e a do povo em 10,12,14. Todos se unem nos impõe. 19 Chacais habitavam as ruí-
num lamento final (17). A rejeição divi- nas e vagavam entre os mortos nos campos
na levou à derrota humana; a atitude e os de batalha, em busca de alimento. 22 Por
atos de Deus (11,12) combinam-se com os amor de ti, i.e., como resultado da nossa
dos povos hostis (13,14). A humilhação é lealdade a ti.
completa (15,16). Tudo parece sem pro- 23-26 O Deus do futuro: um clamor
pósito (9-12), a boa reputação acabou-se por socorro. Todos se unem num urgen-
totalmente (13,14), só ficou a vergonha te clamor por socorro. Eles oram contra
(15,16). Os segundos verbos de cada ver- a aparente indolência e esquecimento da
sículo, 9-14, ressaltam o fato de que a vida parte de Deus (23,24); eles declaram a
vem diretamente da mão de Deus. É deste extrema gravidade de sua necessidade e
modo que devemos entender as situações pedem uma ação de Deus, pois sabem que
por que passamos, sejam elas boas ou más. seu amor permanece inalterado (25,26).
Algumas pessoas acham útil fazer uma dis- 23 A ousadia da oração. 25 Somos tão pre-
tinção entre a vontade "diretiva" de Deus ciosos para o Senhor, individualmente, que
779 SALMü45

podemos apresentar-lhe nossas necessida- (1018.37). Justiça, em hebraico "humilda-


des. 26 Resgata-nos, "paga o preço", i.e., de-justiça", substantivos justapostos, "jus-
tira dos teus próprios recursos o que for tiça em sua humildade essencial" (Zc 9.9;
necessário para suprir nossa necessidade. Mt 11.29; 2Co 10.1; Fp 2.7,8).
Benignidade, amor centrado na vontade, o 6-9 O rei em toda a sua glória. As
amor que o Senhor prometeu. sete glórias do rei: (i) Sua natureza divina
(6). Muitas correções foram sugeridas para
Salmo 45. O rei-noivo esse texto, não porque haja alguma dúvida
e sua noiva real textual, mas para evitar a atribuição de di-
Verdadeiramente, boas palavras (1) - um vindade ao rei. Mas o texto está perfeito,
rei que é rei de fato, e no dia do seu casa- e o enigma do AT sobre o Messias que é
mento! O salmo tem sete seções: Deus e, contudo, adora a Deus (7), aguarda
sua solução em Jesus (Ef 1.17; Hb 1.8); (ii)
AI (v. 1) O entusiasmo do poeta pelo rei Seu governo justo (6,7): oficialmente (ce-
B 1 (v. 2) A beleza do rei tro) e pessoalmente (amas... odeias), o rei
C 1 (v. 3-5) O progresso do rei é santo (Is 11.3-5); (iii) Sua superioridade
D (v. 6-9) O rei em toda a sua a todos os homens (7). Embora exterior-
glória mente um homem como os outros (o teu
B 2 (v. 10,11) A beleza da noiva Deus ... companheiros, 7), existe também
C 2 (v. 12-15) A procissão da noiva o segredo interior de sua unção divina (Lc
2
A (v. 16,17) Os votos do poeta para o rei 4.18); (iv) Seu perfume (8; 2Co 2.14); (v)
Sua situação de opulência (8), em que cada
Composto para um verdadeiro casa- detalhe exterior demonstra a riqueza do rei,
mento real, e motivado pela dedicação a e tudo o que há no interior é para o prazer
um rei terreno, este salmo, como todos os do rei; (vi) A nobreza de sua comitiva (9),
salmos reais, ultrapassa o que qualquer rei os reis da terra enviando alegremente pes-
terreno poderia ser e chega até o tão es- soas importantes para servirem ao rei; (vii)
perado Messias, em quem todas as glórias A sétima glória do rei é a sua noiva (9). A
são verdadeiras. Do mesmo modo, ele fala lista começou com o rei em seu trono (6) e
de forma impressionante à Noiva de Cristo termina com o trono compartilhado, a noi-
a respeito de sua verdadeira posição, be- va ao lado do rei (9).
leza e dedicação (2Co 11.2; Ef 5.27; Ap 10,11 A beleza da noiva, devoção ao
14.4; 19.7; 21.9). rei. Gênesis 2.24 exige que, do casamento
1,2 O entusiasmo do poeta pelo rei. em diante, o filho passe a ser, em primeiro
Ao rei, ou "um rei!", i.e., um rei que é ver- lugar, marido; grande ênfase é posta aqui
dadeiramente rei. 2 Formoso - caracterís- sobre a filha tomando-se esposa (Ouve,
tica evidenciada principalmente na bondade filha; vê, dá atenção). Embora seja filha
de suas palavras (Lc 4.22; Jo 7.46). Por de rei (13), agora toda a sua devoção deve
isso. Seu discurso demonstra que ele foi ser para o rei, correspondendo ao seu amor
abençoado por Deus. (cobiçará, "desejará para si"), sensível à
3-5 O progresso do rei: domínio mun- sua dignidade (inclina-te perante ele) e
dial. Reis conquistam pela guerra, daí os aceitando seu status (senhor).
termos militares usados aqui, assim como 12-15 A procissão da noiva até o palá-
o "príncipe da paz" em Isaías 9.4,5,7; mas, cio. Submissa a ele (11), mas que dignida-
em última análise (v. SI 149), a queda das de ela tem agora! Os súditos do rei (12, cf.
nações diante do verdadeiro Davi é pela v. 5) são súditos dela, ela desfruta de glória
espada de sua boca (Ap 1.16; 19.11-16) e e esplendor (13), mas, acima de tudo, ela
a arma do evangelho (Ef6.15-17). Verdade está intimamente ligada ao rei (14) e mora
SALMO 46 780

com ele no palácio (15). A homenagem de 3,4 Há é um acréscimo interpretativo ao


Tiro (12) é um tema messiânico (cf 87.4; texto hebraico. Em vez disso, é melhor en-
cf Is 23). Tiro passou a tipificar o mundo tender o v. 4 como um comentário sobre
por causa de sua independência orgulhosa o v. 3: o que são essas águas turbulentas e
e autossuficiência, e também por acumular destrutivas senão um rio. Até mesmo um
riqueza sem escrúpulos. Mas, um dia, os desastre cósmico é algo totalmente con-
reis da terra depositarão sua riqueza aos trolado e com objetivo específico (5,6).
pés do rei (Ap 21.24). O mesmo ocorre em relação aos adver-
16,17 Os votos do poeta para o rei. sários humanos, o "bramido" das nações.
Por glorioso que tenha sido o passado, o Uma palavra do Senhor é o suficiente,
rei olha para o futuro e para os filhos que tal a totalidade de seu domínio soberano.
efetuarão seu domínio sobre toda a terra. 5 Antemanhã, "quando amanhece", cf as
referências a "manhã" em Êxodo 14.24;
Salmo 46. Fé e fato 2Reis 19.35.7 Conosco... refúgio. O refrão
Muitos correlacionam este salmo (e os (cf 11) envolve o movimento da estrofe
salmos 47 e 48) com a sugestão de um precedente. Como ele é o nosso refúgio
drama encenado (anualmente) no templo (1), corremos para ele; como o Deus no
para celebrar a soberania do Senhor sobre meio (5), ele vem até nós. Assim, cantamos
toda a terra (como o Dia da Ascensão, cf que ele está conosco e é também o nosso
47.5). Esse festival estaria fundamentado refúgio (um lugar alto e inacessível, uma
na vitória do Senhor sobre o "mundo" no "segurança máxima") para onde corremos
êxodo e prenunciaria o final e culminante em busca de proteção.
Dia do Senhor. Outros apontam que Vinde, 8-10 O Senhor efetivamente eliminou
contemplai (8) soa mais como um convi- a ameaça: a guerra acabou e os recursos
te para observar uma vitória concreta do para iniciar outra guerra foram destruí-
que para assistir a uma encenação (cf dos. A voz que controla tudo (cf 6) agora
"percorrei... rodeai ... contai-lhe... notai", ordena a tranquilidade (10a) e restabelece
48.12,13). Neste caso, um evento como a confiança (10bc) (cf 48.12). O salmo
a vitória do Senhor sobre Senaqueribe 46 convida a observar um inimigo des-
(Is 36; 37) fornece um excelente pano de truído; o salmo 48, uma cidade intacta.
fundo: todas as nações do Império Assírio 9 Carros, as carroças de suprimentos que
se juntam contra Sião e encontram um transportam o material bélico ou o con-
adversário à altura. junto de carros de batalha (1Sm 17.20)
O salmo consiste em uma profissão que rodeiam o acampamento inimigo.
de fé (1-6) e nos fatos que recompensam 10 Aquietai-vos, "relaxai". Sou, é a exis-
a fé (8-10). tência presente de um Deus soberano que
1-6 (a) Fé no socorro divino (1,2): ain- permite que haja repouso.
da que o mundo fosse desmoronar, Deus
está presente para proteger (refúgio) e dar Salmo 47. Um Deus,
socorro. (b) Fé no objetivo divino (3,4): um rei, um povo
mesmo as catástrofes que abalam a terra A vitória do Senhor sobre a terra (46.8,9)
são um rio, contido por suas margens, cria- não deve gerar desânimo internacional,
do para alegrar a cidade em que o Senhor mas alegria. O salmo 47 convoca para
habita. (c) Fé na soberania divina (5,6): uma aclamação universal desse Deus (1).
com uma palavra do Senhor, o tumulto das A convocação se justifica (2 começa com
nações é pacificado. 1 O refúgio onde se Pois) pelo fato de o Senhor ter um status
esconder, a fortaleza para suportar a pro- de rei mundial. A evidência disso é o que
vação, o socorro sempre de prontidão. ele fez por Israel em poder (3) e amor (4).
781 SALMO 48

Consequentemente, a veracidade do Deus é impossível não sentir o ar de novidade


exaltado pode ser reiterada (5). A mesma de uma experiência recente na descrição
sequência é repetida agora: convite ao lou- da fuga dos reis (3-7), na afirmação assim
vor (6, cf I), esclarecimento, o Rei uni- o vimos (8) e no convite a vistoriar a cida-
versal (7,8, cf. 2), o povo favorecido (9, cf de intacta (12,13). Este salmo fala de uma
3,4) e o Deus exaltado (9, cf 5). situação em que o perigo passou e há total
Mas, pela segunda vez, a ênfase é di- livramento no presente, uma experiência
ferente: Israel é exaltado sobre as nações que nós que vivemos atualmente na verda-
pela providência (3) e eleição (4); no v. 9, deira Sião (Hb 12.22) não desconhecemos,
os povos, representados por seus príncipes, pois, repetidas vezes, vemos os perigos que
são incorporados como o povo do Deus nos ameaçam serem derrotados por nosso
de Abraão, a promessa abraâmica é cum- Deus sempre presente.
prida e todos os povos recebem bênção 1,2 O grande Deus e sua cidade exul-
(Gn 12.1-3). Se Subiu Deus, "foi para tante, Não: "Como somos felizes de viver
cima" - i.e., tendo "descido" para obter a numa cidade fortificada nesse lugar mon-
vitória - sugere um pano de fundo para o tanhoso!", mas; "Como é grande o Senhor
salmo, podemos pensar no êxodo (Êx 3.8) em sua cidade, em seu monte", um grande
ou talvez na vitória divina contra os inimi- Rei de fato! Seu santo monte, "monte da
gos de Davi (18.9) ou (melhor opção de to- sua santidade", onde ele habita em santi-
das) o incidente de Senaqueribe (Is 31.4). dade. Toda a terra, o que trará alegria a
Mas seja qual for o caso, neste salmo o AT toda a terra, cumprindo a promessa abraâ-
profetiza gloriosamente a maior "descida" mica (47.9). Zafom (NVi) era a habitação
de Deus, em Cristo, para reunir os filhos de Baal.
de Deus que estão dispersos (10 11.52: cf 3-7 A grandeza divina em ação. Uma
ls 19.23-25; 60.1-3; 66.20), e uma ascen- afirmação da habitação e proteção divinas,
são maior até o reino universal, efetivo seguida de uma prova (3) (4 começa com
(Ef 1.20-23) e supremo (Fp 2.9-11). eis): o fato da fuga desordenada dos reis
(4,5), ilustrada pelas dores de parto (6) e a
Salmo 48. Este é o nosso Deus tempestade (7). 3 Alto refúgio, "seguran-
O tema do júbilo após um grande livra- ça máxima" (46.7).4 Reis (2.2), figura da
mento continua, mas como uma diferença. incessante hostilidade do mundo contra o
Enquanto o salmo 46 se concentra no pe- povo de Deus, mas aqui tipificada no avanço
rigo que foi afastado e o salmo 47 enfoca do exército multinacional de Senaqueribe
o propósito do Senhor de conceder graça (Is 10.8). 5 Se espantaram, aqui, "desnor-
aos inimigos derrotados, o salmo 48 res- tearam-se" de modo que "fugiram aterrori-
salta que a cidade que corria perigo está sã zados". 6,7 Uma ilustração de sentimento
e salva (12,13). interior seguida de uma ilustração de força
exterior. Naus de Társis, capazes de desa-
Ai (v. 1,2) O grande Deus e sua cidade fiar o "mar aberto", as maiores realizações
exultante do homem no campo naval, mas não são
B 1 (v. 3-7) A grandeza divina em ação nada diante dos ventos de Deus.
B 2 (v. 8-10) A grandeza divina na ex- 8-10 A grandeza divina na prática.
periência Cf bastou-lhes vê-lo
(5) com vimos (8):
N (v. 11-14) A cidade exultante e seu mesma visão, reações diferentes! Eles
grande Deus viram o seu terror; nós vemos a nossa
segurança em Deus. 9 Pensamos. É pos-
É fácil ver que este salmo poderia ser sível traduzir por "representamos" (como
encenado numa festa do templo (v. 9), mas no sentido de uma encenação dramática),
SALMü49 782

mas o significado de "formar uma imagem mista se dispõe a resolver. Primeiramente


mental/meditar sobre" é bem exemplifica- (5-12), ele aborda o fato de que a morte
do (50.21; cf Is 10.7); 10 Destra simboliza vem para todos. O ponto de partida de seus
ação pessoal. Justiça, tudo o que é certo, pensamentos foi a opressão praticada por
conforme estabelecido por Deus. aqueles cuja riqueza lhes dá poder para
11-14 A cidade exultante e seu gran- ameaçarem outros (5,6), e ele começou
de Deus. Um final dramático: a cidade ale- a se consolar com a ideia de que a rique-
gre e intacta (11-13), mas depois nada mais za não pode comprar tudo (7-9): a morte
é dito sobre a cidade - um testemunho a marca o ponto em que o dinheiro de que o
respeito do Deus que é sempre o guia de ser humano dispõe para pagar seu resgate
seu povo (14). 11 Juízos, o que Deus "jul- perde o valor. Todos igualmente, sábios ou
gou correto fazer". 14 "Pois assim é Deus tolos, morrem (10), e sua riqueza terrena
- nosso Deus para todo o sempre! É ele não consegue comprar nada além de um
quem nos guiará até a morte". A referên- túmulo duradouro (11). Em segundo lugar,
cia a "morte" é uma expressão forte para (13-19) a morte não é o fim: existem des-
a constância divina: ele nunca nos deixará; tinos além-túmulo que devem ser levados
mas também afirma que aquele que nos em conta. A autoconfiança, embora muito
livrou do perigo de morrer nas mãos dos admirada na terra, leva à morte e à deca-
inimigos certamente também nos livrará dência, enquanto os que estão em ordem
da própria morte. (justos) com Deus podem contar com a
redenção e a presença de Deus (13-15).
Salmo 49. Redenção divina Consequentemente, não se perturbe com
e esperança eterna as desigualdades da vida (16); a morte ni-
A localização do salmo 49 neste ponto vela tudo e, contrariando a experiência que
pode muito bem se dever às últimas pa- essas pessoas têm na terra, não há luz para
lavras do salmo 48. Será mesmo verdade elas depois do túmulo (17-19).
que quando somos ameaçados pela mor- 2 Tanto plebeus como os de fina
te em pessoa podemos confiar no Senhor estirpe, melhor: "todos os seres humanos
para nos guiar? A resposta triunfante é igualmente". 3 Pensamentos judiciosos,
que Deus remirá a minha alma do po- "entendimento", a palavra que o salmo
der da morte (15). Versículos como 6.5; toma a usar no v. 20 (v. ARe, NVI) - o dis-
30.9; 88.4,5 são frequentemente citados cernimento de que existe uma outra vida
para mostrar que o AT não nutria nenhu- em que as noções terrenas de poder e in-
ma esperança de vida após a morte, mas fluência são inoperantes; uma vida negada
os versículos em questão são todos ditos ao que confia em si mesmo (13) e desfru-
por pessoas que julgavam (certa ou erra- tada somente por redenção divina (15).
damente) estar morrendo sob a ira, sepa- 4 Ouvidos ... decifrarei. Ouvir antes de fa-
radas de Deus. Numa morte como essa, lar. O conhecimento necessário para deci-
não há esperança; mas, na verdade, essas frar o enigma da vida e da morte só pode
pessoas não estavam falando da morte em ser obtido quando se ouve a palavra de
geral, mas apenas de seu caso particular. Deus. 6 Pela primeira vez (v. também 13),
O salmo 49 (cf 73) expõe as alternati- a ideia-chave de confiança é mencionada.
vas claramente: existe uma morte sem es- A autoconfiança é inimiga de um destino
perança (13,14) e existe uma morte cheia abençoado após a morte. 7-9 Remir... pa-
de esperança (15). O homem pode mor- gar por: a primeira palavra ressalta a de-
rer como os animais (12) ou pode morrer terminação do preço do resgate; a segun-
com entendimento (20). Essa é a solução da, a liquidação da dívida. Mas nenhum
para o enigma universal (1-4) que o sal- pagamento é suficiente para comprar a
783 SALMO 50

vida eterna. Ao irmão. O hebraico diz "até Eles são divididos em dois grupos e denun-
mesmo um irmão", i.e., mesmo no caso ciados: os que amam os rituais religiosos
em que o amor não exigiria nada em troca. (8), mas esquecem a gratidão, a obediência
Existe um caso em que o pagamento de um e a oração (14,15), e os que recitam a lei
resgate pode comutar pela pena de morte (16), mas não a cumprem (17-21 ). O salmo
(Êx 21.30) - mas da morte em si ninguém termina (22,23) advertindo esses dois gru-
consegue se livrar por meio de pagamento! pos a mudarem seu procedimento. A seção
10 Estulto, alguém que não leva a vida e central (7-21) tem "formato" idêntico ao
suas obrigações a sério, que é egocêntri- Culto de Aliança de Êxodo 24.3-8, no qual
co e só se preocupa em obter vantagens a o ritual do sacrifício e do sangue (v. 4-6) é
curto prazo. Inepto, insensível a realidades seguido pela recitação da lei (v. 7,8). O sal-
espirituais. 11 O seu pensamento íntimo. mo é, portanto, muito adequado para uma
Hebraico, "dentro deles", "sua suposição é festa de renovação da aliança, pois fornece
que". Seus horizontes se restringem a este uma estrutura para o autoexame.
mundo, de forma que - suprema ironia! 1-6 A corte convocada. Depois que o
- (lit.) chegam a dar seu próprio nome Juiz, os réus e o local da sessão foram anun-
às suas terras. 13 Cf v. 6. 14 Sepultura... ciados (1,2), três vozes falam alternada-
sepultura. Sheol, a habitação dos mortos. mente: que Deus está vindo para falar (em
A morte é o seu pastor: "a morte se ali- juízo, 3); que ele está vindo como o santo
mentará deles" (ARC). Eles descem direta- Deus do Sinai com fogo e tormenta (cf
mente para a cova: a ARC traz: "Os retos Êx 19.16-18), e que o julgamento vai come-
terão domínio sobre eles na manhã" (v. çar na casa de Deus (4; cf. 1Pe 4.17). Aberta
NVI). OS que podem morrer em ordem com a sessão, o Juiz chama seu povo (5,6). 1 O
Deus (Nm 23.10); cuja vida está de acordo Poderoso. o SENHOR Deus. O único outro
com a vontade de Deus (IRs 15.5); acei- trecho em que esta fórmula tríplice é usada
táveis para Deus (Jó 1.1); os que o Senhor é Josué 22.22, quando as tribos transjordâ-
salva (SI 7.10). "Domínio" (ARC), inversão nicas foram acusadas de apostasia e a usa-
celestial das relações terrenas do v. 5 (cf. ram num juramento. Assim sendo, ela se
Lc 16.22-25). "Manhã" (ARC) (17.15), ao encaixa neste salmo, no qual a franqueza
despertar depois da morte. 15 Remirá. da lealdade está em questão. 3 Não guarda
Deus descobrirá e pagará o preço impos- silêncio. O julgamento não será feito por
sível para o homem (7). Morte, "das mãos meio de um ato não explicado, que as pesso-
do sheol", o poder que o sheol tem de re- as poderiam ou não reconhecer como obra
ceber e reter os não remidos (14). Tomará, de Deus. Tudo será declarado abertamen-
como em Gênesis 5.24; 2Reis 2.1; Salmos te. 4 Céus... terra (cf Dt 4.26;ICr 16.31;
73.24. 20 Ao longo de todo o salmo, os SI 69.34s.; ls 1.2; Je 2.12). Aqui, a ordem
ricos foram o objeto da argumentação, criada serve de testemunha de acusação,
mas o princípio se aplica a todos: não é a tendo observado em silêncio tudo o que
riqueza que desqualifica para uma eterni- foi feito (cf 6). 5 Santos. A palavra com-
dade abençoada, mas a falta de verdadeiro bina "amados [por Deus]" e "devotados [a
discernimento (cf v. 3). Deus]". Aliança... sacrificios (Êx 24.3ss.).
6 Se os céus testemunharam as falhas hu-
Salmo 50. Advertidos manas (4), também testemunharam a jus-
e liberados! tiça divina e podem afirmar a competência
A cena é o Dia do Juízo, com toda a ter- do Senhor para julgar.
ra (I) convocada a comparecer diante de 7-21 A acusação. A intimação (7) é
Deus. Em particular, o povo da aliança seguida por duas denúncias (8-15; 16-21).
(4,5) é chamado diante do divino juiz (6). O v. 7 está repleto de temas do Êxodo: Povo
SALMO 51 784

meu recorda Êxodo 7.16, o povo escolhi- do tudo isso, construíram sua teologia com
do; Israel é o "primogênito" do Senhor, base no paciente silêncio de Deus (21),
o objeto da redenção (Êx 4.22); Deus, o sustentando que o Senhor é tão moralmente
teu Deus, reflete Êxodo 20.2, o título do indiferente quanto elas mesmas.
Deus redentor. 22,23 A advertência. A misericórdia
8-15 Formalismo ritual: Os que tinham divina é paciente. A sentença merecida ain-
prazer nos sacrifícios (8), mas interpreta- da é futura, e a porta da salvação ainda está
ram mal o seu propósito, achando que por aberta (21-23). 22 É endereçada àqueles
meio deles estavam de algum modo en- (16-21) cuja vida contradiz sua profissão
riquecendo a Deus (9-13) e deixando de de fé. O problema deles não é fazer pouco
retribuir a ele como deveriam, com ações caso da lei, mas ter se esquecido de Deus-
de graças, obediência e oração dependente como alguém presente no meio deles, cien-
(14,15). 8 O Senhor não pode repreender o te de sua conduta ofensiva, como o Santo,
que ele mesmo ordenou e, no que se refere ordenando a seu povo que seja como ele
à parte material do sacrifício, não há nada (Lv 19.2).23 É endereçada àqueles (8-15)
digno de repreensão. O ritualista é sempre cuja religião é um mero formalismo cheio
meticuloso. 9-13 Mas eles caíram em duas de detalhes: eles são lembrados de que a
armadilhas: achar que Deus precisava do verdadeira religião responde ao que Deus
que eles tinham (9-11) e dependia do que fez (cf 14) e é zelosa quanto ao seu modo
eles davam (12,13). Eles pensavam que a de vida (23, "aquele que é cuidadoso no
religião consistia no esforço do homem em [seu] modo [de viver]"). Finalmente, o sal-
alcançar a Deus, servindo-o e ministrando a mo que começou com o Senhor intimando
ele - o maior de todos os erros religiosos. para o julgamento (1-6) termina com ele
13 As religiões pagãs das nações ao redor oferecendo salvação (23).
de Israel pensavam que seus deuses eram
alimentados pelos sacrifícios oferecidos. O Salmo 51. A maravilha
mesmo erro é cometido sempre que a mera do arrependimento
rotina da vida religiosa se torna importante O título cai como uma luva no salmo. A
por si mesma. 14,15 A verdadeira religião, eficácia do arrependimento (1-4) é um
entretanto, consiste em corresponder, com comentário exato sobre 2Samuel 12.13.
gratidão (por sua graça, bondade etc.), com O problema do v. 16, que parece negar a
obediência (cumprindo o voto de guardar aceitabilidade de sacrifícios a Deus, é re-
sua palavra, feito na aliança, Êx 24.7), com solvido lembrando-se de que os pecados
oração (confiando que ele proverá tudo o de adultério (2Sm 11.4) e homicídio (2Sm
que for necessário em todas as situações 11.14-17) cometidos por Davi não foram
difíceis) e com adoração (dando-lhe a de- cobertos com providência sacrificia1. Para
vida honra). muitos, os v. 18,19 são acréscimos feitos
16-21 Formalismo de credo: pessoas posteriormente para adequar o salmo ao
que têm o cuidado de dizer todas as coi- uso congregacional e combater a rejeição
sas certas (16), mas cuja vida contradiz sua ao sacrifício nos v. 16,17. Porém (Afora
profissão de fé (17-21). Elas odeiam a pa- o fato de que o salmo não pode ser adap-
lavra de Deus (17) e desobedecem aos seus tado para se tornar autocontraditório!),
mandamentos (18a [oitavo mandamento], Davi, sendo rei, não podia pecar sim-
18b [sétimo], 19 [nono]); elas ofendem a plesmente como um indivíduo: seu peca-
Deus com seu formalismo vazio na igreja, do ameaçava a estrutura da vida pública.
desobediência deliberada na vida, conces- Consequentemente, ele deveria estar tão
sões nos relacionamentos, corrupção no ansioso pela fortificação de Jerusalém (18)
discurso e falta de amor no lar. E, coroan- quanto por sua própria restauração.
785 SALMO 51

1-6 Deus e o indivíduo: arrependi- (cf NVI) e à sabedoria de Deus ensinada


mento e perdão. Em Deus há misericór- pela voz universal da consciência.
dia, favor gratuito, imerecido (Gn 6.8); 7-15 As dimensões do verdadeiro
benignidade, amor imutável baseado em arrependimento. O v. 7 busca o modo di-
compromisso solene; compaixão, amor vino de lidar com o pecado; o v. 8, com
repentino e intenso (I). Pecado é trans- o pecador como que esmagado pela ira
gressão, "rebelião" deliberada contra a divina; o v. 9, com a ofensa feita a Deus
vontade conhecida de Deus (I); iniqui- pelo pecado. Apaga, "des-peca", Hissopo,
dade (2), a "trama" da natureza decaída; o instrumento de borrifar que fazia a propi-
pecado (2), um erro específico. O peca- ciação da ira divina (Êx 12.12,22,23), pon-
dor deseja que Deus apague seu pecado, do fim à exclusão e à alienação (Lv 14.6),
"limpe" a mancha que Deus pode ver; purificando após profanação (Nu 19.16-
lava, chegar até as fibras de sua natureza 19). Davi não conhece nenhum sacrifício
para eliminar a sujeira entranhada; puri- que seja suficiente (16), mas está confiante
fica, remover o pecado como barreira à em que o Senhor conhece. Júbilo... ale-
comunhão com Deus (2). gria, a restauração do pecador para ouvir
3-6 Arrependimento; seus efeitos e ne- as canções alegres do santuário (42.4);
cessidade. A oração por purificação (1,2) se ossos, restauração da integridade pessoal.
baseia no simples fato de reconhecer (co- Esconde, lida, dentro da tua própria natu-
nheço) e de ter consciência (diante de mim, reza, com tua santa aversão ao meu peca-
i.e., percebido subjetivamente, 38.17) do do. Apaga, tanto da tua memória quanto da
pecado (cf 32.3, 4). 4 Contra ti. Seja qual minha folha corrida (I).
for a ferida que o pecado provoque na pró- 10-12 O verdadeiro arrependido anseia
pria pessoa ou nos outros, o cerne de sua por se ver livre do pecado, através da
pecaminosidade é que ele ofende a Deus criação de uma nova natureza que lhe dê
(2Sm 12.13). De maneira que, "a fim de o poder da constância, o contínuo favor
que". Se o pecador dissesse: "Tu és sobera- de Deus e a presença do Espírito Santo
no. Por que não me impediste?", o Senhor (10,11), a alegria da libertação e o dom do
responderia: "A fim de fazer-te reconhecer espírito/Espírito pronto a fazer a vontade
a tua pecaminosidade e a minha retidão. É de Deus (12). Saul havia perdido os bene-
meu propósito que me conheças como sou, fícios imediatos (lSm 16.14), mas não a
o Deus reto e o justo Juiz. Só então virás realidade final (I Sm 28.19) da salvação e,
a mim para purificação". 5 Biblicamente, a sem dúvida, com esse exemplo em mente,
herança de uma natureza pecaminosa não Davi temia que o mesmo acontecesse com
desculpa o pecador, mas o coloca numa ele - assim como nós também podemos
posição de acumular culpa sobre culpa entristecer (Ef 4.30) e apagar (lTs 5.19)
(Mt 23.34-36). Nasci ... me concebeu. Isso o Espírito Santo, perdendo a alegria, mas
não é uma contestação da santidade da não a realidade de sua habitação em nós.
concepção e do nascimento, mas uma afir- 13-15 Ensinar a respeito de Deus promo-
mação de que desde o momento da concep- ve o arrependimento (13), mas quem ensi-
ção já existia uma pessoa humana moral, o na deve também levar a sério sua própria
bebê no nascimento, o feto na concepção. necessidade de arrependimento, dando o
Portanto, o arrependimento precisa levar exemplo daquilo que deseja ver nos outros.
em conta tanto os pecados cometidos (1-3) Só como arrependido ele pode cantar a res-
quanto essa influência inseparável da na- peito da justiça de Deus (14) - essa ad-
tureza humana. 6 Em todos os aspectos da mirável justiça pela qual ele é, ao mesmo
natureza humana, o pecado é indesculpá- tempo, justo e justificador (Is 45.21; Rm
vel porque é contrário ao desejo de Deus 3.26). Mas o testemunho também precisa
SALMO 52 786

se apoiar na oração para que o Senhor con- é combinado com o louvor do nome que é
ceda que a boca se abra. bom (9); a bondade que dura para sempre
16-19 Deus e a comunidade: o que (v. lb) recebe uma forma mais elaborada
agrada ao Senhor. A comunidade renova- como a misericórdia que dura para todo
da é composta de indivíduos arrependidos o sempre (8). A mensagem do salmo é,
(16,17), busca sua segurança no favor de portanto, que o amor de Deus é suficiente
Deus e o agrada com sua observância reli- até mesmo contra a crueldade triunfante,
giosa (18,19). Os versículos giram em tor- constante em todas as aflições e é o mesmo
no dos mesmos temas do deleite e prazer para sempre (8).
do Senhor, e dos sacrifícios e holocaustos.
A oferta pelo pecado não é mencionada, AI (v. 1) Seguranças alternativas
mas apenas sacrifícios relacionados ao B' (v. 2-4) A língua destrutiva
compromisso com Deus (o holocausto, C (v. 5) Ação divina
Gn 22.2,12) e à comunhão com Deus e seu B 2 (v. 6,7) A língua triunfante
povo (em que a palavra sacrifício é usada N (v. 8,9) Verdadeira segurança
em conjunto com holocausto, e significa
"oferta pacífica"). Davi aprendeu por ex- 1 (AI) Seguranças alternativas: força
periência própria que acertar-se com Deus humana ou amor divino. Te glorias, au-
era uma questão do coração (17). Essa é tossatisfação e autoconfiança.
a mensagem que ele desejava transmitir a 2 (B I) A língua destrutiva. Língua,
outras pessoas (16 começa com "Pois") e sempre um indicativo primário do caráter.
transformar numa realidade fundamental 3 O caráter por trás da língua: em rela-
na nova comunidade. Edifica os muros é ção a valores éticos e padrões de verdade.
uma metáfora, "tomar a comunidade se- 4 Fraudulenta (cf 2), com propósito de en-
gura". Então, isto é, quando pecadores ganar. Doegue falou a verdade só até o pon-
arrependidos (16,17) confiam em Deus to em que poderia causar mais prejuízo.
para sua segurança (18), a religião se toma S (C) Ação divina. Também, i.e., uma
agradável ao Senhor: sacrifícios de justiça, ação paralela de Deus, um castigo minu-
sacrifícios que são tudo o que Deus sempre cioso dirigido aos três aspectos da vida:
desejou que eles fossem. pessoal (te), doméstico (tenda) e terreno
(terra).
Salmo 52. A árvore arrancada 6,7 (B2)A língua triunfante. Se rirão,
pela raiz e a árvore verdejante não vingativa ou maliciosamente (Jó 31.29;
A NVI amplia e altera o texto hebraico do Pv 24.17), mas uma resposta jubilosa à in-
v. 1, que diz simplesmente: "Como te van- tervenção da justiça divina (6, temerão) e
glorias do mal, homem poderoso! A bon- à prova de que não existe outra fortaleza,
dade de Deus é a mesma todos os dias". exceto Deus.
Doegue, o homem que venceu na vida por 8,9 (A 2) A verdadeira segurança. A
esforço próprio (1Sm 21-22), agarrou sua árvore verdejante, em contraste com a
oportunidade e, sendo "econômico com a arrancada (5), está firme na presença de
verdade" e inescrupuloso nas ações, podia Deus, marcada pela confiança, segura
se gloriar em seu próprio sucesso. Mas, ao do amor leal de Deus (8); é caracteriza-
contrário do autossuficiente Doegue, Davi da pela língua que louva (9, contraste-se
afirma que nada fará Deus abandonar a sua com 1,2), está sempre esperançosa (espe-
companhia. A correção de restaurar o tex- rarei) de que Deus seja fiel ao seu nome
to hebraico no v. 1 é comprovada pelos v. e dá testemunho diante dos fiéis de Deus,
8,9 que recapitulam os mesmos tópicos em aqueles a quem ele ama e que, por sua
ordem inversa: te glorias na maldade (1) vez, o amam (9).
787 SALMO 55

Salmo 53. Não há motivo Deus (4); e, finalmente, a oração pela re-
para ter medo tribuição divina. Insolentes eram judaítas
Embora paralelo ao salmo 14, o salmo 53 en- como Davi, mas estavam agindo como es-
foca a mesma verdade num tema diferente. trangeiros violentos, porque, entre pessoas
A variação-chave ocorre no v. 5. Enquanto que não têm Deus diante de si, não se pode
14.5 comenta o terror que se apoderou dos esperar fidelidade ou humanidade. Senhor,
inimigos do povo do Senhor quando perce- "o Soberano". Retribuirá... dá cabo. O pri-
beram que o Senhor estava "com a linhagem meiro se refere ao efeito "bumerangue" do
do justo", 53.5 repreende o medo desneces- pecado, uma retribuição embutida na natu-
sário do povo de Deus ao se defrontar com reza das coisas; o segundo à providência
seus inimigos (4),já que Deus dispersa seus moral divina imediata. (iii) Firmando um
oponentes. Juntos, portanto, os dois salmos compromisso para o futuro (6,7). Isso não
mostram aspectos contrastantes da mesma deve ser interpretado como uma barganha
situação: quando o perigo ameaça o povo com Deus (Se fizeres isso para mim, prome-
de Deus, seus inimigos têm tudo a temer, to ...), mas sim como uma reação espiritual
enquanto eles não têm nada. Para um co- à bondade divina. Assim como ele cumpre
mentário detalhado, v. Salmo 14. o que promete, isto é, honra o seu nome (1),
5 Dispersa: A ARe usa o tempo passado nós também devemos louvar seu nome (6).
("[Deus] espalhou"), indicando que Davi Pois me livrou, o nome do Senhor em ação.
está extraindo uma lição de um incidente Meus olhos se enchem, não com satisfação
ocorrido, mas também pode expressar uma maligna, mas observando que sua vida foi
"característica permanente", i.e., "Deus es- preservada para que ele visse seus inimi-
palha". O medo é sempre infundado (não gos mortais serem derrotados.
há a quem temer), porque o Senhor sempre
frustra o ataque do inimigo. Salmo 55. Soluções, enganosas
e verdadeiras
Salmo 54. O nome salvador A sequência: Disse eu (6) ... invocarei (16) ...
Zife era uma localidade no extremo sul de confiarei (23) expressa o movimento des-
Judá e, com certeza, foi muito doloroso te salmo. Em apertos terríveis (1-5), Davi
para Davi ver seu próprio povo se voltar de bom grado fugiria da situação (6-8),
contra ele, por mais correta que fosse a leal- mas prefere enfrentar a incessante oposi-
dade deles a Saul. Como acontece comu- ção (10) com incessante oração (17) e, des-
mente nos salmos com títulos históricos, o te modo, descansa confiante (23).
tópico indicado pelo título é generalizado.
Davi não menciona os zifeus aqui, assim A I (v. 1-3) Oração por causa do inimigo
como não menciona Doegue no salmo B (v. 4-21) Soluções
52; mas, em ambos os salmos, aproveita a b' (v. 4-8) Fugir é solução?
oportunidade para registrar como essas si- b2 (v. 9-21) A solução na oração
tuações podem ser enfrentadas: (i) Orando N (v. 22,23) Confiança diante do inimigo
(1,2). Pelo teu nome, agindo de acordo com
tua natureza revelada. Salva-me... faze-me 1-3 Quando minhas forças acabam, há
justiça, respectivamente, o perigo imedia- um lugar chamado Oração. Perplexo (2)
to e a questão fundamental ~ de que as "não sei mais o que fazer";perturbado, des-
pessoas estavam julgando Davi equivo- moralizado. 3 Opressão, pressão; hostilizam,
cadamente e tratando-o como uma pessoa "guardam rancor": o que eles dizem (cla-
traiçoeira. (ii) Recordando a verdade (3-5). mor), a sua opressão, a "perturbação" (cala-
Primeiramente, o caráter de seus oponen- midade) que lançam ("fazem deslizar [como
tes (3); em segundo lugar, o caráter de seu uma avalanche]", cf 22), a animosidade
SALMO 56 788

que eles alimentam (furiosamente). Essa Deus (Dt 19.19) ao pedir para os inimigos
pode ser a experiência de um crente. A li- o mesmo dano com que eles o ameaçavam
ção que Davi aprendeu foi fazer com que a (4). Ela também reflete a ação do próprio
opressão das pessoas o pressionasse a orar. Deus quando, muito tempo antes, o líder
4-8 Fugindo de tudo. Os v. 4,5 esbo- indicado por ele foi ameaçado (Nm 16.28-
çam o problema; 6-8 oferecem uma solução 33). Contudo, observe que o motivo (15)
atraente. 4 Estremece-me... [o coração], dessa oração terrível não é a ameaça que
"está angustiado". 5 Horror, "arrepio". Não eles representam para Davi, mas o fato de
sabemos a que situação Davi se refere, mas que se abriram como uma hospedaria para
os cinco substantivos e quatro verbos usa- "toda sorte de mal". A oração é produto de
dos na ARA (4,5) não deixam dúvidas quan- convicção moral. 16-19 A oração de Davi é
to à sua natureza mortal e aterrorizante. Os uma diretriz que ele assumiu como compro-
v. 6-8 contêm toda a sedução de resolver misso: invocarei (16), enfático: "Mas, de
problemas fugindo - ter descanso, não ser minha parte..."; uma disciplina constante:
perturbado e se abrigar enquanto a tempes- À tarde, pela manhã e ao meio-dia (17);
tade ruge em outro lugar. e se baseia no que o Senhor faz - salva
9-210 golpe mais certeiro, a solução (16), ouve (17), livra (redime; TB: "encon-
mais garantida - oração. 9-11 Pressão tra a solução total e suficiente para a minha
constante: dia e noite. 12-14 A mais pro- necessidade", 18) - e no que o Senhor é
funda dor, comunhão quebrada. 15-19 - o que preside (19).
Constante oração: à tarde, de manhã, ao 22,23 Um conselho, uma confiança,
meio-dia. 20,21 A mais profunda tristeza, uma verdade e um exemplo. No v. 23,
aliança rompida. em lugar de porém, leia "pois". O conselho
A solução não é fugir da situação, mas de entregar tudo a Deus com a confiança
chamar Deus para ela; não a solução natural de que ele susterá baseia-se em verdades
do escapismo, mas a solução espiritual da a respeito de Deus e em sua oposição aos
oração. 9 Davi fez uma oração semelhante homens sanguinários. Assim, os versículos
em 2Samuel15.31, mas o salmo não se ori- identificam com precisão o que "tu" (ocul-
ginou daí, pois naquele ponto Davi estava to) deves fazer, o que o Senhor faz, pelo
em fuga - embora não para a paz. Aqui o justo (os que estão em ordem com ele, 22),
perigo está dentro da cidade, e Davi nos dá pelos perversos (23); e o que eu faço (23).
o exemplo ao enfrentá-lo com oração cla- 22 Confia, "lança", ação vigorosa. Cuidados,
ra e vigorosa. 10 Perversidade... malícia, "porção", o que foi designado para você.
"brutalidade... maldade". 12-14 Entre os Susterá, a promessa não é de remover a
que se opõem a ele (9,10,15,19), um infli- carga, mas de sustentar a pessoa. Abalado,
ge o golpe mais doloroso, um amigo (13) e do mesmo verbo que "fazer escorregar" (3).
ex-confidente espiritual (14). Davi anda na Embora a avalanche de problemas seja pe-
sombra projetada por uma grande traição sada, ojusto não escorregará.
que se aproxima (Mt 26.47,48; Mc 14.43-
45; Lc 22.47,48. Observe como todas as Salmo 56. Temor e fé
narrativas dizem "um dos doze"). Em me vindo o temor (3) ... nada temerei
15 Só estaremos em posição de criticar (4). Esse paradoxo expressa o cerne do sal-
a ousadia da oração de Davi no dia em que mo. A situação está registrada em 1Samuel
enfrentarmos um perigo semelhante - em 21.1 0-15 e é comentada no salmo 34 (uma
relação a nós mesmos (4,5) e a outros (9- meditação subsequente: de que não foi a es-
11), (cf 2Rs 2.24). O Senhor Jesus, que era perteza de 1Sm 21.12,13, mas a oração que
perfeito, pronunciou um "ai" sobre Judas efetuou o livramento), assim como aqui -
(Mt 26.24). A oração corresponde à lei de uma meditação contemporânea enquanto
789 SALMO 57

Davi estava em prisão domiciliar em Gate, uma confiança mais completa: cf 10,11
presumivelmente sendo mantido como um com 3,4. Homem (lI) é o homem confor-
refém valioso. O salmo consiste em seis se- me Deus o criou, portanto totalmente sob
ções que se equilibram mutuamente: Davi, seu controle soberano. 12,13 Os seus pen-
o alvo da hostilidade humana (1,2) é o o samentos são todos contra mim para o mal
objeto da proteção de Deus (9-11); a con- (5) é lit. "sobre mim, todos os seus pensa-
fiança que combate o medo (3,4) é uma mentos"; no v. 12, Os votos quefiz é: "sobre
confiança que nasce da oração (7,8); e Davi mim, os teus votos". Quanto mais o mundo
debaixo da opressão humana (5,6) se toma nos ameaça, maior o nosso compromisso
Davi com um voto feito a Deus (12,13). - não para fazer barganha com Deus, mas
1,2 Um breve clamor a Deus enquan- para mostrar determinação de progredir es-
to está concentrado no perigo circundante. piritualmente como resultado da situação
Compare 12,13, uma referência ao perigo pela qual estamos passando e do livramen-
enquanto está concentrado em Deus! Esse to garantido. De fato, o v. 13 (para que eu
é o efeito de confiar (3,4), operando atra- ande) mostra o propósito que Deus tinha
vés da oração (9-11). Quando os olhos se em mente ao proporcionar livramento.
voltam para Jesus, "as coisas da terra ficam
estranhamente embaçadas". 3,4 Em me, "o Salmo 57. "Na noite de aflição
dia", i.e., "no momento exato". Cuja pala- e dúvida", na caverna ou
vra. Confiança não é um "sentimento" de sob as asas?
que tudo vai acabar bem. É uma convicção Este salmo faz uma pergunta: "Onde es-
baseada no que Deus mesmo disse, uma tás?". O titulo diz que Davi estava na ca-
confiança nas promessas. No v. I, homem verna (mais provavelmente I Sm 21 do que
é uma palavra que ressalta a facilidade de ISm 24), mas Davi se coloca em ti... à som-
pecar da humanidade; aqui, um mortal, bra das tuas asas (I). Fugindo de Saul, e
"carne" implica um contraste com Deus preparando-se para passar a noite (4, Acha-
(Is 31.3; 2Cr 32.8), fraqueza contrastando se a minha alma entre, "estou entre") como
com força (cf 11). Portanto, quando a fé se um fugitivo solitário, a caverna surge aci-
volta para Deus conforme revelado em sua ma dele, mas ele a vê como as asas abertas
palavra, a perspectiva muda. 5,6 Como isso do seu Deus. Por causa disso, o clamor de
era verdadeiro na situação ambígua em que oração do início (1) se transforma num bra-
Davi se encontrava! A corte de Saul distor- do de louvor (9, I O) no final; sua confiança
cendo suas palavras e tramando contra ele; na oração (2,3, Clamarei... Ele dos céus me
os filisteus vigiando seus passos (Como envia) se transforma em firmeza no louvor
certamente fariam a hora que o homem que (7,8); e sua noção do poder de seus inimi-
matou Golias tivesse a ousadia de aparecer gos (4) se toma uma convicção de que eles
em Gate!). Os v. 7,8 equilibram os v. 1,2: estão condenados (6). Contudo, o impor-
um apelo pela proteção divina. O v. 7 pro- tante para Davi não é que ele seja salvo ou
vavelmente deva ser formulado: "por causa que seus inimigos sejam apanhados, mas
de sua iniquidade, pode haver saída para que Deus seja exaltado em glória (5,11).
eles?". Os povos; aqui seria melhor: "essas 1 Misericórdia, graça imerecida. 2,3
pessoas". 8 Toda tristeza que sentimos (lá- A confiança ("quando eu clamo, ele...
grimas), todo momento de pesar (livro) é me envia") surge da percepção de Deus:
registrado no céu para ação divina. 9-11 No supremamente exaltado, Deus Altíssimo;
dia em que (9), "O dia": no v. 3, era o dia da irresistível em seus propósitos (tudo exe-
confiança; aqui, o dia da oração, pois a ora- cuta, cf Fp 1.6); e de misericórdia e fide-
ção é a primeira maneira como a verdadeira lidade. 5 Como isso acontece na vida: o
confiança se expressa e, por sua vez, gera espírito animado de 2,3 é imediatamente
SALMO 58 790

posto à prova pelas ameaças da vida (4)! vel que em silêncio vocês falem justiça?",
E que grande lição de espiritualidade, pois, i.e., sirvam à causa da justiça ficando cala-
com igual rapidez, os perigos são enfren- dos. Uma ligeira mudança de vogal fornece
tados com um clamor ao Deus exaltado! "poderosos", sejam os poderosos da terra
6 Com a lembrança de Deus (5) vem a cer- ou os principados e potestades celestiais.
teza de que a maldade será sua própria ruí- 3-5 O caráter dos ímpios. Desvio com-
na. 7,8 Davi defrontou-se (4) e, em seguida, portamental (desviam... desencaminham) e
buscando a glória de Deus (5), enfrentou o falsidade (mentiras) são sua herança desde
inimigo. Ele agora chama a si mesmo para o o nascimento (cf 51.5); eles carregam ve-
louvor. Alma, (lit.) "glória" (ARe), provavel- neno dentro de si, e são incorrigíveis: (lit.)
mente uma metáfora para oferecer "o meu "como uma cobra surda que tapa os ouvi-
melhor" a Deus. Desperta. Tendo tentado dos", eles não têm nem capacidade nem
se acalmar para dormir em meio ao perigo vontade de ouvir qualquer apelo para serem
(4), Davi agora se sente pronto para enfren- diferentes (4; cf Rm 1.28-32; Tt 3.3).
tar o novo dia com louvor. 9-11 Davi consi- 6 O grande apelo. Como a acusação
dera seriamente que objetivos mais amplos destacou o discurso (1), o apelo é feito para
do que o seu triunfo pessoal serão alcança- que o juízo feche a boca dos que abusam
dos, inclusive no âmbito mundial, pois ele de sua posição e destrua o poder que essas
foi escolhido para ser rei de uma nação que pessoas têm de causar dano. Isso é realis-
tinha um chamado especial em relação a mo santo - como pedir a Deus que leve
todas as nações (Gn 12.3). E ele havia en- à falência os negociantes de armas ou que
frentado suas dificuldades de tal forma que faça as bombas dos terroristas explodirem
agora tinha um testemunho válido sobre a nas mãos dos que as fabricam ou armam.
misericórdia e a fidelidade de Deus. Se as pessoas estão irreversivelmente obs-
tinadas em seus caminhos e imunes aos
Salmo 58. O único socorro, apelos, não resta mais nada a fazer senão
o grande apelo entregá-las ao Deus santíssimo.
Embora haja dúvidas quanto à tradução de 7-9 A ruína dos ímpios. Quatro ima-
juízes (l), está claro que os que adminis- gens de "tomar-se nada": águas que cor-
tram a justiça (sejam juízes humanos ou rem pelo chão e desaparecem (7); uma
seres angelicais encarregados de manter flecha lançada que, "como se definhasse",
a ordem na terra) estão falhando em suas cai no solo como folha morta (7); uma
responsabilidades (2). Consequentemente, lesma "que vai embora derretendo", dei-
apela-se a Deus (6) para que intervenha, e xando apenas uma concha vazia (8); uma
o salmo termina com alegria pelo justo (lO) gravidez que resulta em morte, e não vida
e a conscientização pública de que Deus é (8). 9 Antes que vossas panelas ... é possi-
justo (11). As seções intermediárias (3-5; velmente um provérbio indicando rapidez
7-9) tratam, respectivamente, do caráter e ("num piscar de olhos"). Espinheiros se-
da ruína dos ímpios. Este salmo fala pro- cos ardem imediatamente, mas antes que
fundamente a respeito da injustiça na terra o calor consiga aquecer a panela! Tanto
e do fracasso e da conivência dos respon- os verdes como os que estão em brasa.
sáveis por sua administração. Não estamos As palavras (lit.) "vivo" e "calor" não são
sendo realistas se nos esquivamos do rigor esclarecidas neste significado metafórico.
do v. 6, pois são muitas as situações em Provavelmente, uma referência ao Senhor:
que clamamos a Deus com razão para que "Como o Vivo, como a própria Ira, ele os
cale a boca da injustiça nas altas cortes. soprará para longe".
1,2 A justiça violada. Juízes, (lit.) "si- 10,11 A justiça vingada. Banhará
lêncio", possivelmente: "Por acaso é possí- os pés, uma metáfora para obter vitória
791 SALMü6ü

(68.23). Então, se dirá. O rigor na aplica- tra ele: mesmo diante daquele tribunal, ele
ção da justiça exerce uma poderosa influên- não teria nada a temer. Mas sua confiança
cia sobre a sociedade (Dt 19.18-21). não é na inocência, mas na oração.
Ele continuou com fé (6-10). Os cães
Salmo 59. Segurança máxima que espreitam voltam ao anoitecer (6),
O salmo se divide em duas partes (1-10; mas, enquanto os observa através da tre-
11-17). A primeira começa com uma ora- liça, Davi não está atemorizado por eles,
ção por livramento (1,2), ampliando-se mas sim esperando por Deus (9), con-
para uma oração pelo juízo de todo o mun- fiante em que Deus virá (10) e que ele
do (5); a segunda, com uma oração por re- sobreviverá para "ver pela última vez"
tribuição (l1-13b), vista como uma forma (e não se alegrar com sua desgraça) os seus
de trazer revelação ao mundo (13cd). Cada caluniadores.
oração é seguida pelo tema dos "cães que Ele manteve o rigor moral e o compro-
rondam" (6,7,14,15), que, por sua vez, leva misso (11-13). No v. 11, Davi fala de meu
a Mas tu (8-10) e Eu, porém (16,17). povo porque, em princípio, embora ainda
A história de fundo, em I SamueI19.1O- não de fato, ele é o rei. Como tal, ele não
12, sugere uma emboscada na casa de Davi, está buscando apenas alívio pessoal, mas
numa determinada noite, mas essa histó- quer que Deus aja de modo que a nação
ria é contada apenas em seus elementos aprenda a lição e que o mundo tome nota
essenciais, e todo o período que se inicia da providência moral de Deus em ação na
em I Samuel 19.10 fornece tempo suficien- terra (13). Semelhantemente, o que ele de-
te para a ameaça constante de que fala o sejava não era "ter de volta o que era seu",
salmo (6,14). Em certo momento, quando mas que pecado... soberba... abomina-
fugia de Saul, Davi fugiu pelas janelas de ção... mentiras (12) fossem punidos.
vigia de sua casa, com a ajuda de Mical. No momento de maior perigo, Deus deu
Saul tinha de agir com discrição por causa uma canção a Davi. Os cães ainda estavam
da popularidade de Davi, mas sem dúvida rondando (14,15), Eu, porém, cantarei ...
esperava livrar-se dele simulando um aci- (16, I7) "eu faço música". Os vigias devem
dente. Quando a fuga de Davi tomou isso ter ficado atônitos ao ouvirem Davi e Mical
impossível, armou uma emboscada. entoando louvores de manhã e à noite!
O tema recorrente do salmo é a se-
gurança total em Deus: Põe-me acima Salmo 60. Desfraldando
do alcance (I), "põe-me no alto"; força o estandarte
(9,16,17), "alto refúgio" - uma altura ina- Davi tinha criado um problema para si
cessivel ao inimigo. Veja como Davi passa mesmo. De acordo com 2SamueI8.3-7, ele
da súplica: "Sê minha segurança máxima" pegou Hadadezer, de Zobá, de surpresa.
( I), para um clímax de confiança, "Tu és Hadadezer estava ocupado defendendo sua
minha segurança máxima" (17). fronteira no extremo norte e Davi apro-
Ele começou com oração (1-5). Ele veitou a oportunidade para invadir o sul.
realmente confiava na suficiência da ora- Mas antes que pudesse saborear sua vitó-
ção: mesmo sabendo das forças que se ria, chegaram notícias de que Edom tinha
opunham a ele (3), ainda assim bastava apanhado Davi de surpresa, invadindo seu
dizer: Livra-me... põe-me acima do alcan- território pelo vale do mar Morto. Com o
ce... salva-me... desperta. O apelo para que rei e o exército a quilômetros de distância,
Deus realizasse naquela hora o julgamento parecia que o recente reino de Davi teria
final do mundo (5) é uma medida da certe- uma morte prematura. A situação é descri-
za que Davi tinha de sua própria inocência ta brevemente no v. 1: o verdadeiro perigo
(3,4) em relação às acusações feitas con- não é Edom, mas a ira divina (expressa por
SALMO 61 792

meio de Edom). Portanto, a única solu- feitas. A dignidade (defesa de minha cabe-
ção é a oração (Restabelece-nos - no teu ça... cetro) pertence ao povo de Deus; a
favor). A terra abalada (2, cf Êx 19.18; condição servil (bacia de lavar... sandália)
lSm 14.15), o vinho que atordoa (3, cf e subordinação (sobre a Filístia) aos ou-
Is 51.17) representam a presença e a ira tros. 9-11 Tu não sais... com passa a ser Em
divinas, mas existe um estandarte que Deus, pela atitude de submissão da oração
pode ser desfraldado (4), o estandarte da de súplica. O estandarte desfraldado tem
oração (5). Pois, em essência, esta é a si- eficácia diante de Deus, assim como (4,5)
tuação: Deus fez promessas a respeito da contra o inimigo.
terra, do povo e de seus inimigos atuais
(6-8). Só Deus é a nossa esperança (9,10); Salmo 61. Coração que se
portanto, a oração é o único caminho (11). abate... oração que se eleva
A mensagem não se restringe àquela si- Como muitos salmos, o salmo 61 começa
tuação: em qualquer crise - até mesmo com oração e termina com louvor. Essa
uma que nós mesmos tenhamos criado - é uma sequência bíblica, pois a oração
a solução é repetir as promessas de Deus e gera a confiança em Deus que é exprimi-
desfraldar o estandarte da oração. Quando da em louvor e respondida por atos divi-
somos infiéis, ele é fiel: ele não pode ne- nos a que o louvor é a resposta adequada.
gar-se a si mesmo (2Tm 2.13). Inicialmente, ele pede que seja ouvido o
1 É característico do pensamento bí- seu pedido (1), expresso numa oração por
blico atribuir os reveses (3) diretamen- segurança, baseada em exemplos anterio-
te à mão de Deus. Não é impossível que res da força protetora de Deus (2,3), por
Hadadezer tivesse incentivado Edom a comunhão constante, baseada num rela-
abrir uma segunda frente de batalha, mas cionamento estabelecido (4,5, traduza: -ó,
o modo de lidar com as situações é ir dire- deixa-me morar..."), e no reinado eterno
tamente à fonte. Quaisquer que fossem as do rei indicado por Deus (6,7). Como esta-
justificativas de Davi para atacar os filis- va em questão a continuidade do reino de
teus (2Sm 8.1), ele não tinha nenhuma para Davi, sua fuga de Absalão é um contexto
conquistar Moabe e Amom (2Sm 8.2,12; aceitável para o salmo, mas ele nos fala
cf Dt 2.9,19). O ataque a Hadadezer pre- com grande beleza sobre uma segurança
tendeu apenas imitar a política oportunista que nos eleva acima do perigo, uma força
das potências mundanas. Não admira que atrás da qual estamos seguros, uma acolhi-
o Senhor estivesse zangado! 4,5 Cf Êxodo da calorosa e protetora, e um rei que reina
17.8-16. Moisés viu suas mãos levantadas para sempre.
como um estandarte contra o inimigo e Notas. 2 Desde os confins da terra,
também como uma forma de tocar o trono significando algo muito distante do céu.
de Deus em súplica. Sem dúvida, Davi ti- Alta demais para mim, de tal modo que
nha isso em mente: o ataque de Edom era eu não consigo alcançá-la sem ajuda.
como o de Amaleque (Dt 25.17,18). Para 4 Tabernáculo, a habitação de Deus
fugirem de diante do arco ou "pela causa (Êx 29.44-46). Asas (Rt 2.12; Lc 13.34).
da verdade" (ARe). 6-8 Na sua santidade: 5 A razão (Pois) para querer entrar na casa
ele empenhou sua santa palavra. Siquém ... de Deus: um voto humano (de compromis-
Sucote, as áreas centrais da Palestina e so pessoal, lealdade) e uma herança divina
Transjordânia; Gileade... Manassés, as (Ef 1.13,14). 6 Davi orou de acordo com
áreas setentrionais além do Jordão. Estas uma fórmula convencional: "Que o rei
tipificam a terra que o Senhor prometeu. viva para sempre", mas o Senhor respon-
Efraim... Judá, os dois principais compo- deu colocando sobre o trono de Davi um
nentes do povo a quem as promessas foram rei verdadeiramente eterno (Lc 1.31-33).
793 SALMO 63

A oração é sempre respondida de uma for- maxrrna (59.1,9,16,17). Não serei muito
ma mais perfeita do que pedimos (Ef3.20). abalado (a NVI omite o advérbio "muito").
8 Salmodiarei ... cumprir. O louvor sem um Isso é realismo: a vida tem situações que
compromisso moral sério e constante não nos abalam, mas o que o v. 6 diz também
tem consistência. é verdade, os abalos não podem nos arran-
car de nosso refúgio de segurança máxima.
Salmo 62. Poder agindo 3,4 Que grande verdade a respeito da na-
por amor tureza humana pecaminosa - derrubar os
Temos muito a temer e nada em que con- fracos (3), desonrar a dignidade recorren-
fiar quando dependemos ou nos fiamos do a mentiras e enganos! Quão diferente de
na humanidade. Consequentemente, onde Deus (Is 42.3) e de seus verdadeiros servos
está o nosso recurso quando estamos de- (2Co 4.2; 13.9)! 5 Em períodos de tensão,
baixo de grande aflição? Só e perfeita- pode ser necessário ordenar a nós mesmos
mente em Deus! Esta verdade é declarada que façamos o que sabemos que é certo.
(1,2), repetida como autoencorajamento 6 Abalado (cf v. 2). 7 Glória, a reputação
(5,6), recomendada a outros (7,8) e alicer- e posição que os inimigos poderiam des-
çada na palavra de Deus (11,12). Isso não truir. 8 Derramai. O descanso em Deus
é nenhuma doutrina de "torre de marfim", tem de ser forjado no lugar de oração
mas sim algo que foi provado na dura es- (Fp 4.6,7).9,10 A ordem de confiar exclu-
cola da experiência: que as pessoas podem sivamente no Senhor é apoiada por uma
ser muito ameaçadoras (3,4) e que o mun- visão desanimadora da humanidade (9),
do não oferece nenhuma solução, nem nas de seus meios e recursos (10). Plebeus...
pessoas (9) nem em suas práticas (10). fina estirpe, uma figura de linguagem para
O v. 1, juntamente com os v. 2,4,5,6,9, "todos igualmente". 11,12 Deus tem poder
começa com uma partícula que significa (ao contrário do ser humano, em sua fra-
"ainda assim" (traduzidas em geral por queza, 9) e amor imutáveis (ao contrário
"somente", "só" na ARA e ARe). As pres- da falsidade do ser humano, 9). E não é só
sões são muitas, "ainda assim" (1) espera isso: seu poder amoroso é uma força ati-
em Deus; muitas formas alternativas de re- va de providência moral (12) por meio da
sistência são propostas, "ainda assim" (2) qual ele "paga integralmente" (retribuis).
só ele é a minha rocha; muitas razões para Portanto, podemos confiar nele para obter-
que o inimigo não tenha sucesso, "ainda mos nosso bem-estar e nos proteger contra
assim" (4) só pensam em derribá-lo; e, to- as ações de nossos inimigos.
das as intenções deles são más, sua amea-
ça é real, "ainda assim" (5) ó minha alma, Salmo 63. Desejos matinais...
espera silenciosa. E, se alguém disser que pensamentos noturnos
você precisa de outras defesas também, Davi teve uma experiência com o deserto
responda "ainda assim" (6) só ele; ou, se de Judá (título) quando fugia de Absalão
eles ressaltam o quanto as pessoas pode- (2Sm 15.23,28; 16.2,14; 17.16,27-29).
riam ajudar, responda "ainda assim" (9) Naquele calor escaldante, a maior sede
somente vaidade são os homens. Assim, que ele sentia era a de Deus. Te busco an-
a grande verdade a respeito do total poder siosamente (1) é antes "cedo te busco":
que Deus tem de manter sossegados os que os pensamentos que ele tem ao despertar
lhe pertencem, em meio às turbulências da abrangem seu estado atual (1), uma sede
vida, foi forjada na experiência prática, em de Deus domina todo o seu ser (alma ...
face de acontecimentos adversos e conse- corpo); suas experiências anteriores (2,3)
lhos alternativos. Espera silenciosa, "en- com aforça, glória e graça de Deus o ca-
contra repouso". 2 Alto refúgio, segurança pacitam a enfrentar o novo dia com louvor;
SALMü64 794

e um louvor responsivo futuro (4,5):farta- Salmo 64. O Deus que retribui


se a minha alma... júbilo nos lábios. Mas Experiência pessoal e acontecimentos de
também no meu leito existem pensamentos conhecimento público frequentemente fa-
noturnos a respeito de: um passado (6,7) zem questionar a existência de um Deus
em que (lit.) "tu provaste seu o meu socor- justo e de uma providência moral ativa.
ro", motivando uma canção; um presente Se um Deus bom realmente governasse o
de compromisso mútuo (8, minha alma... mundo, será que haveria esse desequilíbrio
a ti; a tua destra... me) e consequente se- entre o que acontece com as pessoas niti-
gurança (9); e um futuro que trará castigo, damente boas e com as nitidamente más?
alegria e triunfo (lO, 11). Este salmo revela Será que os errados ficariam impunes com
"não um estranho que tateia tentando en- tanta frequência? Este salmo responde a
contrar seu caminho até Deus, mas a ânsia essa pergunta afirmando a retribuição di-
de um amigo, quase um amante, de estar vina. Os inimigos malvados (malfeitores)
junto de quem ama" (Kidner). Davi fala do e desordeiros (que praticam a iniquidade)
amor de Deus por ele (3), mas é o seu amor de Davi (3) afiam a língua como uma es-
por Deus que nos faz orar: -o, dá-me gra- pada e fazem pontaria com palavras que
ça para amar-te mais!". são como setas envenenadas, planejando
1 Deus é pessoalmente conhecido um ataque furtivo e súbito (4); confiantes
(meu Deus), recebe a prioridade no uso do em seus planos, eles agem sem temor (não
tempo ("de madrugada", ARC), e é busca- temem, 4) e perguntam Quem nos verá?
do com intenso desejo (terra árida... sem (5) - desdenhando a existência de um
água). 2 Lit., "assim te vi" (v. ARC), i.e., Deus santo que observa e reage. Mas as
como solução para um anseio tão intenso próprias armas que eles usam se voltarão
quanto o expresso no v. 1, Deus já satis- contra eles - a seta e a língua - e com
fez anteriormente a alma saudosa, e certa- a mesma rapidez (7,8)! Pois, por astu-
mente fará isso de novo. 4 Mais uma vez, ta que seja a mente do homem (6), Deus
"assim, eu te bendirei" (ARC). OS lugares sabe onde mirar, e a providência moral da
mudam. Davi não pode mais se aproximar qual eles zombaram será uma questão de
do santuário, mas Deus não muda. Ele ain- testemunho público (8,9). Porém, a justa
da revela sua força, glória e amor - mes- providência de Deus, que funciona num
mo no deserto - e recebe louvor por isso. sentido na retribuição, também funciona
9,10 A espiritualidade de 1-8 não é esca- no outro sentido, na proteção: a voz que
pista ou do outro mundo, mas a própria ora pedindo proteção na tribulação torna-
essência da vida prática. A circunstância se a voz que se regozija em louvor, dentro
era uma situação de conflito em que o rei do refúgio divino (10).
foi envolvido e que precisava ser resolvida
com a vitória de um lado e a derrota do ou- A I (v. 1,2) Orando por proteção
tro. Como os adversários estão decididos a B' (v. 3,4) O ataque
acabar com Davi, o que eles conseguirão CI (v. 5,6b) Negação da retribuição
é a sua própria destruição: abismar-se-ão B 2 (v. 6c-8b) O contra-ataque
nas profundezas da terra, "estão destina- C2 (v. 8c,9) Afirmação da retribui-
dos à destruição". Essa é a providência ção
moral ativa do amor e poder de Deus que N (v. 10) Júbilo na proteção
62.11,12 afirma. 11 Absalão ameaçou Davi
como rei (cf 2Sm 15.4,10). Ao falar de si 1,2 Orando por proteção. Perplexi-
mesmo aqui como rei, Davi está afirmando dades - não uma "queixa", mas um desa-
que "os dons e a vocação de Deus são irre- bafo diante da tribulação. 2 Conspiração,
vogáveis" (Rm 11.29). "camarilha".
795 SALMO 65

3,4 O ataque. Temem, medo de reta- (Is 37.30). Mas, considerando-se apenas as
liação. circunstâncias vividas por Davi, a situa-
5,6b Negação da retribuição divina. ção registrada em 2Samue121.1-14 sugere
Quem nos verá?, i.e., "olhar para", para um contexto igualmente adequado para o
tomar nota e fazer algo a respeito. salmo, já que os três anos de fome foram
6c-8b O contra-ataque. Abismo, "pro- encerrados, não pelos expedientes insensa-
fundo". Melhor traduzir por: "Embora o tos e pecaminosos de Davi (2-9), mas pela
pensamento seja profundo, Deus desfe- oração respondida (1,14). Em três seções,
re ...". É possível esconder um plano de o salmo desenvolve tudo.
outras pessoas, mas não de Deus. Embora 1-4 Oração, expiação, reconciliação.
o coração seja profundo, a seta de Deus As pessoas se aproximam de Deus em lou-
é certeira. 8ab É difícil de traduzir, mas vor e dedicação, dirigindo-se a ele como
a ideia central dos v. 7,8 é que os mal- aquele que atende a oração, desfrutando
feitores são punidos com suas próprias da abundância de ser levado até Deus por
armas (3,4). meio da expiação. 1 Louvor ("espera o
8c,9 Afirmação da retribuição divi- louvor", ARe; "o louvor te aguarda", NVI),
na. Cf Isaías 26.9. (lit.) "a ti silêncio/imobilidade é louvor".
10 Júbilo na proteção. A alegria vem "Imobilidade" pode significar "o que ain-
antes da solução. Os atos de Deus são sú- da está lá", i.e., "o louvor é sempre teu";
bitos (7), não necessariamente imediatos, ou a expressão pode estar registrando um
mas, enquanto esperam debaixo da prote- momento de silêncio admirado diante do
ção de Deus, os justos se alegram indepen- Deus que realizou um livramento tal que
dentemente de sua sorte no mundo. as palavras fugiram. Voto (cf 61.8): era
comum fazer votos a Deus nos momentos
Salmo 65. O ano coroado de crise. 2 A implicação é que a oração foi
Todo ano era "coroado" com o Dia da respondida de tal maneira a sugerir que
Expiação e a Festa dos Tabernáculos - a este Deus será reconhecido um dia por to-
remoção do pecado (Lv 16) e o agradeci- dos os povos em toda parte. Deuteronômio
mento pela colheita (Lv 23.39; Dt 16.13- 4.6-8 liga um povo que ora a um mundo
15). Mas este salmo fala de um ano espe- impressionado. 3 Prevalecem, "domi-
cial. Tinha havido uma notável resposta nam", pessoas sob o domínio do pecado.
de oração (2,5); o pecado tinha sido uma Perdoas, "cobres", "fazes redenção", não
realidade esmagadora (3); Deus fizera coi- escondendo da vista, mas pagando o preço
sas extraordinárias (5), como apaziguar que "cobre" o débito. 4 A redenção traz fe-
as nações (7) e estabelecer uma reputação licidade suprema, é distribuída segundo a
mundial (2,5,8); a colheita havia sido par- eleição de Deus, nos aproxima dele e nos
ticulannente abundante (9-13). toma aceitos no próprio lugar santo.
Há um ano registrado que fornece uma 5-8 Livramento, domínio, revelação.
ilustração: quando a Assíria ameaçou Sião A resposta à oração veio com tremendos
e foi derrotada pela ação de Deus (Is 36; feitos pelos quais Deus demonstrou ser
37). A rebelião contra a Assíria os colocara Salvador nosso, digno da confiança do
numa situação de impotência (Is 37.3), mas mundo inteiro. O poder do Criador foi
a oração foi atendida (Is 37.4,14-20,21), usado para acalmar as nações agitadas, e
o Senhor acalmara o tumulto das nações o resultado foi que, em toda parte, as pes-
(Is 37.36,37), e a provisão da colheita para soas passaram a temê-lo. É típico dos sal-
dois anos, sem intervenção humana, foi mos generalizar dessa forma, partindo de
oferecida como prova de que aquilo não algum ato específico de Deus para esboçar
acontecera por acaso, mas era obra de Deus um panorama mais amplo de sua soberania
SALMü66 796

e poder (cf SI 67). 7,8 Os tremendosfeitos à luz do que ele fez no passado (8-12).
de Deus têm autoridade suprema sobre as Qualquer prova (10) que eles tenham
gentes a tal ponto que a notícia dos seus enfrentado é sempre como uma reedi-
sinais chegou aos confins da terra e provo- ção do mar Vermelho: quando eles pas-
cou temor (cf Js 2.8-11). saram pela água, foi para emergir para a
9-13 Cuidado, abundância, provisão. liberdade (12).
Ao fim de um ano, quando a ocupação da Precisamos passar pelos nossos sofri-
terra pela Assíria tomara impossível a agri- mentos de tal maneira que eles se tomem
cultura, ainda assim houve abundância (cf oportunidades para o testemunho: os po-
Is 37.30). Isso ocorreu pelo cuidado (visi- vos são convocados para dar louvor a Deus
tas, 9) de Deus, sua generosa fertilização pela preservação, pelas provações, pelo
(10) por meio da qual a fartura coroou o profundo sofrimento e pela libertação final
ano (11-13).9 Ribeiros de Deus. Seus rios de seu povo (8-12).
celestiais, que armazenam água para a ter- Não existe igreja separada daqueles
ra. A figura é poética, mas a realidade é que que a compõem; cada indivíduo reage es-
o brotar da vida na terra é sempre produto piritualmente por meio de dedicação (13-
de forças celestes, não da inteligência hu- 15), testemunho (16-19) e louvor (20).
mana, mas da produtividade divina. 11 O Os atos providenciais de Deus em
ano da tua bondade. A generosa colheita benefício de seu povo são fruto de sua
do final do ano não foi senão a coroação de própria vontade e ação (10-12, seis ver-
toda a bondade que a precedeu. bos na segunda pessoa do singular), mas
a bênção resultante não vem sem oração
Salmo 66. Sua providência... (17) e santidade (18). De fato, o Senhor
minha oração realiza sinais extraordinários pré-determi-
O movimento deste salmo, da terra (1) nados por meio das orações de seu povo
para mim (20) via nós (10), não pode ser (Ml 3.1; Lc 1.13).
explicado com certeza. Teria um indivíduo 1-12 Louvor do mundo inteiro. A ex-
prefaciado sua oferta de gratidão (13-15) periência passada (1-7) e presente (8-12)
e testemunho (16-20) com um hino sobre do povo do Senhor leva a um convite para
o relacionamento do Senhor com o mundo que todos participem da adoração, reco-
(1-7) e com seu povo (8-l2)? Ou o povo nhecendo primeiramente o que ele reve-
veio agradecer o livramento (12), e um in- lou a respeito de si mesmo (2,4, nome),
divíduo (o rei?) expressa o que estava no e depois seus atos e poder vitorioso (3).
coração deles (13-20)? Só podemos fazer 5-7 Já fazia séculos que a experiência do
conjecturas a respeito do cenário, mas a mar Vermelho (6) ocorrera. Portanto, a
mensagem é clara. convocação vinde e vede é deliberadamen-
O que o Senhor fez, historicamente, te imaginativa. Entretanto, ao nos transpor-
por seu povo serve de base para um con- tarmos novamente àquele grande aconteci-
vite feito ao mundo inteiro (1-7). O mun- mento, podemos dizer (lit.) "Vamos nos
do é convocado, como que para assistir ao alegrar" (6c), como se estivéssemos em
Senhor no mar Vermelho e depois se juntar pé na praia oposta, com o poder vitorioso
ao seu povo em regozijo por esse Deus, em do Senhor e as terríveis consequências (7,
vez de se rebelar contra ele (5-7). A sal- cf Êx 14.30,31) da rebelião visivelmente
vação que ele operou para alguns (Israel) diante de nós. Mas Deus ainda está no tro-
é um convite a todos (cf 2Co 5.18,19) no (8-12) e seu povo tem uma experiência
("nós ... o mundo"). atualizada para compartilhar: Deus está
O modo como o Senhor lida com seu decidido a respeito do bem do seu povo
povo atualmente deve ser interpretado (9), lit., "ele nos designou para a vida"; ele
797 SALMO 68

impõe sofrimentos propositados (10), nos mundo inteiro possa estar sob o domínio
quais seu povo é provado para aperfeiçoar do Deus de Israel. O significado fica mais
a qualidade e acrisolado para aumentar a claro se lermos, no v. 4, "julgarás... guia-
pureza (10); ele determina tudo o que nos rás" e, no v. 6, "deu".
acontece, até mesmo as experiências mais 1 Cf Números 6.24-26. Israel foi o
terríveis (11,12). Quando a vida nos confi- povo abençoado de uma forma especial.
na (cair na armadilha), quando as pressões 2 Mas, para o povo de Deus, sua própria
aumentam (oprimiste as nossas costas), bênção nunca é um fim em si mesmo.
quando as pessoas são de uma crueldade Eles não desfrutam só da bênção de Arão
atroz (cavalgassem sobre a nossa cabeça), (I), mas também da bênção abraâmica
quando enfrentamos uma situação amea- (Gn 12.2,3) guardada em confiança para
çadora após outra (jogo... água) ~ tudo o mundo inteiro. Eles são abençoados "a
isso é fruto de um ato pessoal de Deus: nós fim de" serem uma bênção para o mundo.
nunca estamos em outro lugar, senão nas 3-5 Envolvido pela oração repetida, o v. 4
mãos de nosso Pai (lo 10.29; lCo 10.13), afirma que a bênção mundial só pode vir
o Deus da suprema abundância (12; quando Deus for rei e pastor de todas as
2Co 4.l6~5.1; Ap 7.9-17). nações. Julgas (não "emitir uma sentença
13-20 Louvor individual. A experiên- sobre", mas) "pôr tudo em ordem", como
cia individual na dedicação (13-15), ora- um verdadeiro rei faria. Guias (cf 77.20),
ção (17), santidade (18) e orações atendi- agir como pastor. 6,7 A época da colheita
das (19) serve de testemunho para a igreja chegou mais uma vez. A louvável bondade
(16). O período de aflição (14, cf 10-12) de Deus é vista não só nos livramentos es-
foi enfrentado por meio de um voto ao pantosos (SI 65; 66), mas também na pro-
Senhor, um voto agora simbolicamen- vidência das misericórdias comuns que se
te cumprido com holocaustos (13) ~ a repetem anualmente. Essa bênção é vista,
oferta que nada retém (Gn 22.2,12). Mas primeiramente, como uma garantia de bên-
esse tipo de voto não é uma barganha com çãos maiores no futuro (6b) e, em segundo
Deus, e o livramento não foi Deus cum- lugar (7), como a colheita é uma metáfora
prindo sua parte no trato, mas uma respos- da reunião mundial (ls 27.12,13), é tam-
ta à oração. A verdadeira oração exprime bém um penhor de uma colheita que alcan-
verbalmente a nossa necessidade (17, com çará os confins da terra (7; Ap 7.9,10).
a boca), está sempre pronta para irromper
em louvor (17, com a língua, "na ponta da Salmo 68. A cavalgada:
minha língua") e requer pureza de coração uma marcha de lembranças
(18) ~ determinação de não "dar guarida e expectativas
ao pecado no meu coração". A oração res- Com a repetição (1) de Números 10.35,
pondida, por sua vez, se derrama em lou- o salmo rememora a marcha de Israel, do
vor (20), pois ela é uma prova viva de que Sinai em direção a Canaã (1-3). Quem
Deus não afastou seu amor de mim. marcha são os cativos (6) que o Senhor ti-
rou do Egito e de quem ele agora é pai e
Salmo 67. A colheita juiz, em sua jornada pelo deserto (4-6). Ele
É emocionante ouvir este salmo como um os leva à copiosa chuva de Canaã (7-10),
ato de ação de graças pela colheita: nos v. onde ele dispersa os reis (14), anunciando
1-3,5-7, provavelmente o dirigente do lou- as novas de sua vitória para que multidões
vor falava (linha 1) e a congregação res- jubilosas a espalhem por toda parte (11-
pondia (linha 2). Isso isola corretamente 14). Dentro de Canaã, também (para tris-
o versículo central, v. 4 (declamado por teza das elevações), ele escolheu o monte
todos juntos?), com sua oração para que o Sião e ascendeu em triunfo (15-18), como
SALMü68 798

o Deus que salva seu povo e destrói seus mas o Deus do Sinai também usa sua
inimigos (19-23). Passando em direção criação para providenciar copiosa chuva
ao seu trono, diante de fileiras de jovens (Dt 11.10-12). Compare a terra estéril (6)
tocando pandeiros (25), ele é escoltado com a herança ... [que] restabeleceste (9),
por cantores, músicos e representantes do que são os destinos, respectivamente, dos
povo, na presença das congregações ofere- desobedientes e dos obedientes (At 3.19;
cendo louvor (24-27). Em oração, eles pe- 5.32). 11 O Senhor... a palavra... a falan-
dem a Deus que todo o mundo se submeta ge. Como um comandante em chefe (2Sm
ao Senhor (28-31) e, em visão, convocam 18.19ss.), o Senhor anuncia sua vitória e,
o mundo a participar do louvor (32-35). como em Êxodo 15.20,21; lSamuel 18.6,
Porém, temos aqui mais do que uma lit., "grande era a multidão de mulheres
marcha de lembranças. O salmo fornece contando as boas novas".
uma expressão visível, dramática, de um 12 Reis (Js 12.7-24). A dona de casa
cortejo (24) concreto, que podemos iden- ou "aquela que ficou em casa", (cf
tificar com a ocasião em que Davi levou Jz 5.28-30). 13 Repousais entre as cercas
a arca para o monte Sião (2Sm 6.12-16; dos apriscos, os da "guarda da casa", que
lCr 15.1-28). não estão de serviço; ou "entre os alfor-
1 Levanta-se (ou "Levantar-se-á", TB), jes", como um jumento oprimido pelo
a oração do passado se toma uma afirma- grande peso da carga - os oprimidos
ção para o futuro. 2 Fumaça ... cera. O que pelas dificuldades; ou "nos lares", as mu-
é, respectivamente, impalpável e débil. lheres que "mantêm as lareiras acesas". A
Assim são os inimigos do Senhor diante vitória do Senhor é tão grande que nem o
dele, ainda que para nós sejam invencí- repouso, nem a exaustão, nem a não-par-
veis. Iníquos. Em suas vitórias, o Senhor é ticipação dos seres humanos faz qualquer
sempre movido por considerações morais, diferença. Pomba. Ao acrescentar "mi-
agindo de acordo com sua santidade, não nha" pomba, a NVI cria uma referência ao
por favoritismo em relação ao seu povo (cf povo do Senhor, cujos adornos de prata
21; Gn 15.16). 4 Exaltai. Melhor, NVI mrg.: e ouro O Senhor garante com os despojos
"Preparem o caminho", (Is 40.3). Eles de- de sua vitória, sem que eles precisem fa-
vem conduzir sua marcha de tal maneira zer esforço algum. Sem "minha", o v. 13
que uma estrada seja criada para o Senhor se refere poeticamente ao próprio despojo
marchar entre eles. Sobre as nuvens retifi- valioso. 14 Neve ... Zalmom. Isso signi-
ca o texto hebraico à luz de 18.9,10 e pa- fica que os reis foram dispersos como a
ralelos pagãos, mas, (lit.) "pelos desertos" neve pelo vento? Ou o Senhor usou uma
se encaixa melhor nesta estrofe: o grande tempestade de neve para obter a vitória?
Cavaleiro do Deserto veio cuidar com (cf Js 10.11; Jz 5.21). Ou o entulho da
carinho de seu povo no deserto (Dt 2.8; guerra cobre a terra com uma camada es-
8.15).5 Cf 10.14; 146.9; Êxodo 22.22-24; pessa como a neve? Zalmom (v. Jz 9.48).
Deuteronômio 10.18. 6 Cativos, os que A expressão pode ser um provérbio cujo
ele tirou da "casa da servidão" (Êx 20.2). significado é hoje incerto. 15-17 O monte
Rebeldes, Números 14.9,22,23; 26.64,65; de Basã pode parecer superior, mas não se
Deuteronômio 2.14-16. O Senhor é o compara à grandeza de Sião, que consiste
Deus santo, que exige obediência e impõe na escolha, presença e poder do Senhor
sua disciplina, não só aos seus inimigos, (16,17). Sinai... santuário. O Sinai foi
mas também ao seu povo (2,21). 7,8 Cf cenário da mais grandiosa manifestação
Juízes 5.4,5. O Sinai foi marcado por ma- do Senhor (Êx 19). Portanto, quando ele
nifestações naturais que refletiam o poder vai para Sião, lit., "o Sinai está no lugar
impressionante do Senhor (Êx 19.16-18), santo" - todos os valores e realidades do
799 SALMO 69

Sinai estão agora em Sião. (Cf lCo 3.16; Jz 11.34; 1Sm 18.6,7). Benjamim etc. Duas
6.19; Ef2.19-22; 3.16-19). tribos do sul e duas do norte sugerem,
18 Subiste... homens... dádivas. Ao fim poeticamente, todas as tribos do povo do
da longa marcha pelo deserto e do esfor- Senhor. 28-31 À medida que a procissão
ço da conquista, o Senhor vitorioso chega marchava em direção a Sião e depois subia
triunfante a Sião. Ele lit. "levou cativo o o monte, ela ia recapitulando, tanto para
cativeiro" (cf. Jz 5.12), i.e., ele levou ca- os que participavam da procissão, quanto
tivos aqueles que tinham feito seu povo para os que assistiam toda a longa marcha
cativo. Homens ... até mesmo rebeldes ad- da história de Israel e da graça e poder do
mitem a vitória do Senhor levando dádivas Senhor. Agora, as congregações (26) oram
tributárias. Mas também poderíamos tra- para que o Senhor prove que ainda é o mes-
duzir por: cc... dádivas, isto é, pessoas ~ mo, através da manifestação do seu poder
rebeldes, além disso! ~ para que o Senhor (26-28) e graça (templo, 29a), para levar o
pudesse fazer morada", i.e., pessoas que mundo inteiro à submissão (29-31). Fera
outrora eram rebeldes foram ganhas pelo dos canaviais, o Egito, que se estende ao
Senhor, que o fez para poder habitar entre longo do Nilo. Touros... novilhos, figuras
elas (Êx 29.46; 2Co 6.16). 19,20 Ao usar o que representam, respectivamente, poder e
v.18 com referência à ascensão do Senhor liderança, subordinação e seguidores: reis
Jesus (Ef 4.8), Paulo incorporou o que os e pessoas comuns do povo. Se comprazem
v. 19,20 dizem sobre a bondade de Deus na guerra. O jovem reino de Davi estava
para com seu povo, adaptando a citação cercado de nações prontas a conquistá-lo,
para "concedeu dons". Leva (Is 46.1-3). especialmente os filisteus. Uma referência
Com ... o SENHOR... escaparmos da morte, a eles aqui reúne inimigos grandes (Egito)
possivelmente: "Ao soberano Senhor per- e pequenos (filísteus), passados e presen-
tencem as saídas que pertencem à morte". tes. Etiópia, região remota, situada além
A morte guarda zelosamente as portas que do Alto Egito, representando os confins
mantêm confinados os seus prisioneiros, da terra. 32-35 A oração se transforma em
mas até mesmo essas portas pertencem ao louvor, pois o Senhor certamente a aten-
Senhor! 21-23 Com realismo típico, os re- derá. Portanto, toda a terra pode ser con-
sultados da vitória são descritos, mas ob- vocada a exaltar sua soberania ilimitada,
serve que, quando o Senhor "esmaga" seus seu poder, seu domínio sobre Israel e sobre
adversários e dá ao seu povo os frutos da tudo (33,34), sua impressionante santidade
conquista, tudo é justificado em bases mo- e graciosa habitação (santuários), seu po-
rais (21,23). Nós, que sofremos de atrofia der disponível e seu louvor valioso (35).
moral, que temos limitada capacidade de
verdadeira indignação moral, e que esta- Salmo 69. O custo,
mos sempre prontos a fazer concessões a preocupação e o realismo
morais, não conseguimos conceber o que da verdadeira devoção
o pecado é na realidade, como ele é visto e Davi enfrentava um ódio prolongado e
como ofende a um Deus santo, e como até ameaçador (1-4). Esse ódio resultou em
mesmo a mais violenta retribuição é abso- que os que buscavam a Deus fossem di-
lutamente justa. Farei voltar, fá-los-ei tor- famados na terra (6), levou os próprios fa-
nar. A passagem se refere ou à inevitabili- miliares de Davi a se afastarem dele (8),
dade com que serão alcançados e punidos transformou sua prática religiosa em alvo
os inimigos do Senhor que tentam escapar, de zombaria (10-12), levou-o a ter receio
ou à constância com que ele traz seu povo de que o Senhor o tivesse abandonado (17),
de volta, mesmo que os seus inimigos os deixou-o desgostoso e sem amigos (20). O
expulsem da terra. 24-27 Adufes (Êx 15.20; motivo apresentado era a acusação de que
SALMO 69 800

ele havia se envolvido em malversação (de enquanto inumeráveis pessoas e inimigos


recursos?) (4), mas a razão secreta era sua sem motivo são suficientemente influentes
devoção ao Senhor (7) e à casa do Senhor para forçar uma restituição indevida (4).
- na verdade, o alvo do ataque era o pró- 5-12 Os que precisam de proteção.
prio Senhor (9). O salmo foi escrito quan- Culpas referem-se especificamente (Lv 5)
do a crise ainda não estava resolvida (29). a situações em que foi cometida uma ofen-
sa que exige que uma pessoa faça restitui-
AI (v. 1-4) Oração descrevendo a crise ção a outra. Assim, o v. 5 recorda o v. 4.
mortal Quando o Senhor sondar Davi, encontrará
B' (v. 5-12) Os que precisam de pro- estultice ("tolice"), por ter cedido à pres-
teção são e feito restituição, mas não encontrará
N (v. 13-18) Oração apelando ao caráter culpas. 6-12 Por ter agido como se fosse
de Deus culpado, Davi deu motivo para que todos
B2 (v. 19-29) Os que merecem castigo os que viviam pela fé e na presença de
N (v. 29-36) Oração transformando-se em Deus se tomassem um potencial alvo de
louvor crítica (6). Pois o povo de Deus é um só
corpo, e quando a lama é atirada ela atinge
Não há nenhum registro de algo assim mais do que seu alvo imediato. Quanto ao
na vida de Davi, mas é mais crível inse- próprio Davi, ele perdera o amor da famí-
rir essas circunstâncias em sua história do lia (8) - fácil de imaginar no cenário es-
que esboçar um cenário para outra pessoa boçado acima: como seu irmão agora era
em outra época. Davi esteve fortemente rico, será que eles acharam que ele deveria
envolvido nos planos (1Cr 28.11-21) e na ser mais generoso com os parentes? Mas
obtenção de recursos financeiros (29.2-5) também sua prática religiosa sincera e sua
para a construção do templo. Riqueza in- reputação eram alvos de desprezo explícito
cita inveja, e talvez houvesse pessoas em - na mente dos importantes membros da
Israel em cuja opinião as necessidades sociedade que à porta se assentam (10-12;
dos pobres e outros interesses nacionais Dt 21.19; Rt 4.1), e até nas cantorias dos
estavam sendo deixados de lado por algo bêbados. E nada disso tinha justificativa,
que consideravam mera obsessão real. pois sua motivação era a devoção (7a; cf
Acusações de apropriação indébita seriam 2Sm 6.14-21, em que a devoção de Davi
fáceis de fazer e nem sempre tão fáceis de também causou um mal-entendido) e seu
desmentir, trazendo com elas o tipo de lin- compromisso com a casa do Senhor (9a).
chamento moral que o salmo sugere. Este Mas Davi também sabia que as ofensas di-
é o salmo mais citado no NT, principal- rigidas contra ele eram uma forma de ata-
mente pelo Senhor Jesus: v. 4 (Jo 15.25), que contra Deus (9b).
v. 9 (Jo 2.17; Rm 15.3), v. 21 (Jo 19.28; cf 13-18 Oração apelando ao caráter
Mt 27.34,48), v. 22 (Rm 11.9ss.), v. 25 (At de Deus. Observe como as mesmas me-
1.20). Outros versículos também (12,20) táforas (água, areia movediça, inundação)
se adaptam perfeitamente à hostilidade usadas nos v. 1-4 reaparecem aqui, assim
brutal que o Senhor sofreu (Mt 27.27- como as pessoas que odeiam. Mas agora o
31,39-44; Mc 14.50). clamor isolado do v. 1 toma-se um apelo
1-4 Oração descrevendo a crise mor- contínuo, começando com o tempo favo-
tal. Metáforas de afogamento, areia mo- rável (aceitação divina), a graça (amor
vediça (cf 40.3) e enchente irresistível (2) comprometido, imutável) e a fidelidade
descrevem a terrível realidade da situação. em socorrer (13), e terminando com a
A oração está há tanto tempo sem respos- compassiva... graça (amor imutável) e a
ta que a voz e os olhos estão exaustos (3), riqueza das tuas misericórdias (o amor
a01 SALMO 70

apaixonado e repentino de lRs 3.26). 18 de Cristo, pois muita coisa neste salmo nos
Aproxima-te (cf "parente mais próximo", confronta com os sofrimentos dele, e sua
Lv 21.2,3; 25.25; Rt 2.20). Redime, "res- reação foi orar para que seus algozes fos-
gata", a ação do "parente mais próximo" sem perdoados. Certamente, esta é a única
(resgatador), assumindo a responsabilida- conduta possível agora. Mas há mais uma
de pelo suprimento de todas as necessida- coisa a ser dita: o próprio Senhor Jesus pro-
des do parente que está em situação difícil nunciou terríveis "ais" (Mt 23.13-36); ele
(Lv 25.25; Rt 3.12; ls 41.14; 43.14, cf. SI se imaginou dizendo "apartai-vos de mim,
19.14). Resgata, pagar o preço necessário malditos" (Mt 25.41); chegará um dia em
para resolver o problema (31.5; 55.18). que todos fugirão da ira do Cordeiro (Ap
19-28 Os que merecem castigo. Ver 6.15-17); ele estará presente quando os li-
introdução, imprecações. Nos v. 19-21, vros forem abertos (Ap 20.12) - e nes-
descobrimos o efeito das ações dos inimi- se dia não haverá oração por perdão, só a
gos; nos v. 23-28, o castigo que eles me- lógica da justiça divina eternamente apli-
recem. Como a maioria das imprecações, cada. Em resumo, existe uma ira santa, e
estas se fundamentam no princípio enun- aqui, em alguém que ansiava por justiça, o
ciado em Deuteronômio 19.19, de que os AT reflete esse aspecto do caráter de Cristo.
que fazem acusações falsas têm de ser ju- 28 Cf Êxodo 32.32; Daniel 12.1; Lucas
dicialmente punidos com o mesmo castigo 10.20; Filipenses 4.3; Apocalipse 3.5;
que o acusado sofreria. Nessa oração (pois 13.8; 21.27.
isso é uma oração: tudo está entregue nas 29-36 Oração transformando-se em
mãos de Deus, sem pensamento ou propó- louvor. Embora a amargura e a aflição
sito de praticar nenhum ato de vingança persistam, o louvor também é persistente,
pessoal), esses indivíduos são colocados agradando a Deus, fornecendo um teste-
diante de Deus para que sejam julgados. munho encorajador, baseado na garantia
Eles agiram com maldade venenosa, retra- de que a oração será atendida, e digno de
tada por meio de imagens alimentares (21): se tomar um cântico de toda a criação,
sua mesa será um laço (22); eles causaram pois, quando a aflição cessar, a estabilida-
exaustão fisica (3): também devem sofrê- de voltará à terra (35) para os que amam o
la (23); eles provocaram uma sensação de seu nome (36).
afastamento de Deus (17): devem sofrer a Notas: 31 Chifres e unhas. Os chifres
realidade desse afastamento (24); a família atestariam sua idade; os cascos (Lv 11.3,4),
de Davi se distanciou (8): suas casas se- sua "pureza", i.e., um coração agradecido
rão destruídas (25); eles fizeram acusações é mais agradável ao Senhor do que uma
falsas (4,5): serão considerados irremedia- oferta que preenche todos os requisitos.
velmente culpados (27); eles se colocaram 33 Seus prisioneiros, cf v. 26. Seja qual
contra Deus (9): Deus ficará eternamente for a circunstância, nós somos do Senhor,
contra eles (28). mesmo quando as pessoas acham que es-
Essa é a terrível lógica do juízo divi- tamos totalmente à sua mercê. Nossos
no. Antes de criticarmos uma oração como grilhões são as cadeias de Cristo (Ef 4.1;
esta, precisamos ter certeza de que já en- 6.20; Fp 1.13).
frentamos o mesmo sofrimento. Devemos
também perguntar se nosso senso moral Salmo 70. Socorro!
- particularmente nosso senso de ultraje O que o salmo 69 diz detalhadamente, o
moral - é suficientemente perspicaz para salmo 70 expressa com um grito agudo e
que possamos decidir se uma oração é cer- urgente. Em ambos existe a mesma sen-
ta ou errada. Também precisamos pergun- sação de perigo pessoal (69.1-4; 70.1,2,5)
tar se essa oração concorda com a mente e a mesma oração contra os agressores
SALMO?l 802

(69.22ss.; 70.2,3) e a favor do povo de (19-21), desejando ardentemente prolon-


Deus (69.6; 70.4), mas agora quem manda gar seu testemunho (17, 18) ~ um exem-
é a economia de palavras; as orações têm plo glorioso para o aposentado, um retrato
um caráter "telegráfico". O mesmo ocorre desafiador para todos nós. Este salmo cita
se compararmos o salmo 70 com o quase trechos de outros salmos (1-3 de 31.1-3;
idêntico 40.13-17. As palavras usadas no 4-6 de 22.9,10; 12 de 22.11; 13 de 35.26
salmo 40 para dar fluência ao texto não etc.), mas, quanto à temática e às circuns-
existem neste, como se a urgência impe- tâncias, pertence ao mesmo grupo que os
disse qualquer coisa além de um simples salmos 69 e 70, e se encaixa perfeitamente
grito de socorro! A hipótese geralmente com a imagem de Davi em seus últimos
feita é que o salmo 70 é uma adaptação do dias, sofrendo acusações injustas e temen-
salmo anterior para uso litúrgico público, do ataques, enquanto fazia os preparativos
mas é muito mais provável que ele seja para a amada casa que seria construída.
uma condensação para uso privado numa 1-3 Oração feita numa posição segu-
crise. É bom ter à mão nos momentos de ra. O refúgio fora estabelecido em Deus
pressão uma oração escrita como essa, (1), mas também era renovado constante-
quando não conseguimos pensar com cla- mente (3). A partir dessa posição, o salmis-
reza, e nossa capacidade de expressão fica ta pede defesa (1, envergonhado, exposto
limitada pelo sofrimento. como uma fraude, em desgraça pública)
Notas. 2,3 Envergonhados... vexame... e livramento (2,4). 2 Justiça. Salvação/li-
ignomínia. Esperanças malogradas, hu- vramento nunca podem ser obtidos por
milhação pública. 4 Não alegria por causa meio de uma solução que comprometa a
da humilhação do adversário; alegria no natureza divina (Is 45.21; Rm 3.21-26). 3
Senhor durante a crise. Habitável ("habitação forte", ARe) copia
31.2. O texto hebraico diz "habitação/mo-
Salmo 71. Correndo com rada" ~ "uma casa na rocha". Sempre, cf
todas as minhas forças. v. 6,14, respectivamente: sempre acolhen-
Em 1836, Charles Simeon se aposentou do, sempre louvando, sempre esperando.
depois de cinquenta e quatro anos de mi- 4-11 Cuidado divino por toda a vida.
nistério na igreja da Santíssima Trindade, A oração por livramento nutre-se de uma
em Cambridge. Ao descobrir que ele ain- experiência de Deus que remonta para
da acordava às 4 da manhã para acender a além do alcance da memória; uma expe-
lareira e passar algum tempo a sós com o riência conscientemente desfrutada duran-
Senhor, um amigo chamou sua atenção: te a mocidade (5,6), e agora, na velhice,
~ Sr. Simeon, o senhor não acha que, desejada com muito maior intensidade,
agora que se aposentou, poderia levar as à medida que diminui a força, mas não a
coisas menos a sério? oposição (9,10). 5 Esperança, aquele em
~ O quê? ~ replicou aquele homem quem esperei confiante. Confiança, o "lu-
já idoso. ~ Então eu deixaria de correr gar" em que minha segurança repousa.
com todas as minhas forças agora que já 6 Apoiado, "mantido em pé". 7 Portento.
consigo ver o marco de chegada? As acusações levantadas contra ele (v. SI
Nesse salmo, temos outro homem ido- 69; 70) fazem com que as pessoas o vejam
so (9,18) correndo com todas as forças: como um "exemplo de advertência". Mas,
maduro na experiência com Deus (5,6,17), da mesma forma que, diante de seus agres-
ainda desafiado e pressionado (4,13), sores, ele reage trazendo à memória seu
profundamente dependente da oração (1- relacionamento com Deus (4,5), quando
9,12,13), arrebatado no louvor (8,14,22- corre o risco de perder sua boa reputação
24), deixando o futuro nas mãos de Deus ele reage encontrando novamente em Deus
803 SALMO 72

o seu "refúgio" - e que fortaleza! Assim, ele deseja deixar como testemunho para as
o que poderia ter causado uma profunda gerações futuras: o caráter de Deus, seus
depressão, acaba resultando em louvor (8). atos no passado, seu ser incomparável (19;
10,11 Salmos 69.3 revela um longo período Êx 15.11; Mq 7.18-20); estranhas provi-
de provação no qual Deus permaneceu em dências, propósitos confiáveis (20) e re-
silêncio e até mesmo Davi pensou que ele compensas garantidas (21).
tivesse virado o rosto em rejeição (69.17). 22-24 Louvor responsivo. O salmo
Os inimigos de Davi se aproveitam disso foi iniciado com oração (1-3); em 12-16,
sem perda de tempo, mas a... a oração fundiu-se ao louvor. Agora, só o
12-16 Oração (12,13, pela proximidade louvor permanece - pela fidelidade, santi-
de Deus e o fim dos adversários), baseada dade, redenção,justiça (cf 2,15) e a oração
na esperança (l4a), é abundante no louvor atendida (22-24, cf. 13). Para esse exercí-
(14b,15) e gera confiança. Os períodos em cio de louvor, Davi usa seus dedos para
que mais precisamos buscar a Deus (10,11), tocar, seus lábios para cantar e sua língua
nem sempre são aqueles em que a nossa para contar. 22 Santo de Israel, raramente
vontade e energia tomam isso mais fácil. usado fora de Isaías (em que ocorre cerca
Buscar a Deus com compromisso e insis- de 40 vezes), esse título une duas caracte-
tência diante do perigo é um aspecto cen- rísticas: a santidade de Deus e sua identi-
tral deste salmo (v. 4,5; v. 7,8; v. 9-12).12 ficação com seu povo. Ele vem até nós na
Apressa-te (70.1,5). 13 Envergonhados ... plenitude de sua natureza divina, condes-
opróbrio ... vexame. Sinônimos para a per- cende em chamar-nos seus, e permite que
da da reputação diante de todos, frustração o chamemos de nosso Deus.
das esperanças, "colher a desonra". Essa
forma ousada de orar numa circunstância Salmo 72. "Ó, a alegria
de risco de vida e de ameaça à causa de de te ver reinando! 11

Deus (69.9) é algo que precisamos recupe- Além deste salmo, apenas o salmo 127
rar. 15,16 Embora estivesse sendo pessoal- leva um título com referência a Salomão.
mente atacado e caluniado, Davi não tinha Nos dois casos, poderia ser uma dedicató-
nada a declarar publicamente a respeito de ria, "Para Salomão" - aqui uma "oração
si mesmo - a título de desculpa, justifica- de Davi" (20) por seu filho. Mas a redação
tiva etc. Ele só fala de Deus - sua justi- tem a forma padrão da atribuição de au-
ça (perfeição de caráter, confiabilidade da toria, e o salmo 72 se encaixa bem com a
ação, imutabilidade de propósito), salva- época e o pensamento de Salomão. Mais
ção (poder e vontade de livrar), seus feitos do que qualquer outro na linha sucessória
(poder conquistador). de Davi, Salomão poderia ter orado por
17-21 O testemunho humano durante si mesmo como filho do rei; ele era acos-
a vida e o desejo de que ele seja prolon- tumado à homenagem de reis (10; lRs
gado. A bondade vitalícia de Deus, que 10.1-13) e à riqueza das nações que iam a
combinava com o tema da "mocidade... Jerusalém (15; IRs 10.22). Ele foi um rei
velhice" nos v. 4-11, agora é combinada sob quem paz e prosperidade eram a ordem
com o testemunho que perdura por toda a do dia, e poderia ser desculpado se visse
vida: primeiramente, testemunho do que tu seu império como os primeiros frutos do
me tens ensinado (17), a verdade revelada governo mundial do Messias. Sua oração
de Deus; depois, as maravilhas dele, seus em Gibeão (1Rs 3.6-9) combina com este
atos salvíficos no passado (17); em segui- salmo no que se refere aos ideais reais.
da, (18, lit.) "teu braço", o poder pessoal Mas, ao mesmo tempo, o salmo ultrapas-
de Deus intervindo na vida de seu povo. sa o que até mesmo uma hipérbole diria a
Os v. 19-21 apresentam um resumo do que respeito de um reino humano meramente
SALMO 73 804

terreno. Ele poderia recordar a Salomão a 11-14 O reino que atrai a todos. A
grandeza de sua vocação, mas somente o reverência universal (11) é explicada (12,
Messias poderia concretizar plenamente porque) pela natureza de seu governo. A li-
esse ideal. Estruturalmente, o salmo con- bertação, o cuidado com os desamparados,
siste em partes estreitamente ligadas entre a compaixão, a salvação e a preocupação
si, sendo distribuído em quatro estrofes: com a redenção explicam a analogia com
a chuva (6). 12 Necessitado... aflito, ver 4
AI (v. 1-5) O rei generoso e 2. Clamar, cf Êxodo 2.24. 14 Remirá,
B 1 (v. 6-8) O soberano mundial o resgatador que supre as necessidades do
N (v. 11-14) O rei generoso parente como se fossem suas (cf 69.18).
B2 (v. 15-17) A bênção mundial 15-17 Uma oração pelo rei. Esta ora-
ção por realização é o complemento natural
1-5 A bênção e suas consequências: das descrições precedentes do governo do
o mediador real. Em consequência da in- rei e seus benefícios. A oração se amplia à
vestidura divina, o governo do rei será justo medida que avança: primeiro o rei, depois
e generoso, e a própria criação derramará o seu povo, depois a criação próspera e,
suas bênçãos. Seu reino trará libertação ao por fim, o mundo. A tensão entre um rei
povo e, responsivamente (5, lit.), "Eles te verdadeiro e um rei esperado é evidente
reverenciarão... por todas as gerações". 1 aqui. O resultado natural da entronização
Juízos ... justiça, a aplicação exata de prin- de um rei no coração de seu povo é que
cípios justos de governo. 2 Aflitos, oprimi- eles oram por ele (15); os que aguardam
dos, humildes e humilhados. 3 Compare o futuro com expectativa oram: "Amém!
Gênesis 3.17-19 com Amós 9.13. Quando Vem, Senhor Jesus!" (Ap 22.20).
a maldição do pecado tiver sido tratada e Os v. 18-20 constituem uma conclusão
removida, a própria criação será renovada editorial para o segundo livro dos salmos,
e correrá para derramar seus benefícios. cf 41.13.
Paz, total bem-estar - paz com Deus, em
sociedade, e dentro da própria natureza hu-
mana. 4 Necessitados, explorados.
6-10 Expandindo a esfera de influ- LIVRO 3
ência: o rei e os reis. Seu reino bondoso,
em que a justiça e a recompensa se combi- Salmo 73. "No Senhor, o vosso
nam e há abundância de "paz" (6,7), atrai- trabalho não é vão"
rá o mundo (8-10, cf Is 2.2-4).6 Chuva... Nós "cremos em Deus Pai Todo-Poderoso",
campina ceifada, um análogo a fragrância mas a experiência, a nossa e a dos outros,
(2Co 2.14-16). 7 Floresça... o justo. A so- frequentemente põe em xeque seu poder
ciedade será tal que viver segundo a justiça absoluto (pois outras forças parecem estar
será fácil (compare Am 5.13); e a relação no controle), sua paternidade (pois a vida
entre justiça e recompensa será evidente neste mundo contraria a ideia de um Deus
(compare com 73.12,13). Os v. 9,10 falam amoroso) e, para muitas pessoas, sua pró-
dos que se opõem ferozmente ao governo pria existência: "Como é que Deus existe,
(deserto), os oponentes (inimigos) e os que se... ?". O livro de Salmos é notável por en-
estão distantes: todos igualmente se sub- frentar a vida, e não se esconder dela. O
meterão. Társis ... ilhas, envolvem longas Livro 1 abriu com uma afirmação da cren-
viagens marítimas; Sabá... Seba, prova- ça na prosperidade do justo (1.3); o Livro
velmente o remoto sul da Arábia, difíceis 2 iniciou dizendo (42.3,5,9,10) que a vida
jornadas por terra. O contraste entre mar e não mostra uma correlação direta entre vir-
terra pretende abarcar o mundo todo. tude e recompensa, e que a existência dos
805 SALMO 73

justos não é sempre confortável; o Livro 3, estar". Ele os viu morrer "sem sofrimento"
com uma pergunta direta: A santidade vale (4, NVI mrg.) ou doença terminal. A vida
a pena, ou é só perda de tempo (13)7 Já que deles é excepcionalmente livre de proble-
os outros têm todas as alegrias (4,5) e nós mas (5). O orgulho marca o seu caráter, e a
ficamos com as chicotadas (14), por que exploração agressiva (violência) de outras
não desistimos e nos juntamos à maioria pessoas é a tônica de sua conduta (6). Eles
feliz (10)7 Asafe nos deu um salmo notá- mostram todos os sinais de não terem limi-
vel pelo realismo com que retrata a vida te na satisfação de suas vontades e de não
e pela praticidade de suas recomendações se privarem de nada do que desejam (7, V.
sobre como enfrentar problemas difíceis, NVI, mrg.). Sua língua (na Bíblia, sempre
além de ser extremamente edificante ao a medida do caráter) revela a extensão de
apresentar uma visão altemativa. De fato, seu amor-próprio - seu direito presumi-
Asafe respondeu à sua própria declaração do de não seguir valores morais (Sa, ma-
desesperada: Com efeito, inutilmente ... liciosamente), de ser os "chefões" (Sb), de
(13), com a grande afirmação de Paulo: comandar tudo, no céu e na terra (9). Eles
"no Senhor, o vosso trabalho não é vão" atraem seguidores que voluntariamente pe-
(lCo 15.58). O salmo aborda este tema gam carona na sua abundância (10), mes-
com perfeição. mo que para isso tenham de concordar com
sua teologia de um Deus irrelevante (11).
N (v. 1) A verdade enunciada: Deus é Contudo, por arrasadora que seja essa crí-
bom tica dos ímpios, a observação mostra que
B' (v. 2-14) Coitado de mim! eles levam uma vida tranquila e aumentam
C (15-20) Novas perspectivas suas riquezas (12).
Bl (v. 21-26) Feliz de mim! 15-20 Novas perspectivas. Nessa per-
N (v. 27,28) A verdade confirmada: sim, plexidade com a iniquidade moral da vida,
é bom! surgem três princípios importantíssimos.
(i) Em qualquer situação, seja leal e proteja
1-14 Verdade em conflito. Versículos o bem-estar dos que amam a Deus (15). (ii)
começando com com efeito (1,13) envol- Adore. Como Asafe não podia desabafar
vem a primeira seção do salmo e resumem sobre esse problema sem entristecer des-
suas duas partes. A verdade (I) entra em necessariamente osfilhos (15) de Deus, ele
conflito com a experiência (2-14). A ver- teve de lutar sozinho, mas achou a tarefa
dade é a bondade de Deus para com seu muito pesada (16). Então, ao que parece,
povo; o conflito surge do evidente sofri- ele percebeu que não havia necessidade de
mento deste (14) e da prosperidade dos ím- ficar sozinho, e foi adorar (17a) - o san-
pios (3-5). A bondade de Deus em questão tuário, o lugar onde o Senhor prometeu ha-
não é sua benevolência geral (145.9), mas bitar e onde ele sempre é encontrado. (iii)
as bênçãos divinas prometidas aos que o Pense na eternidade. O fim deles é inseguro
temem, condicionadas a confiança e reve- (17,18); eles descobrirão que foram víti-
rência (34.8,9), oração (86.5,6; 107.6-9) e, mas de um "engano total" (destruição, 18),
aqui, pureza de coração (I). Porém, todo não só assolados como aterrorizados (19);
o esforço moral despendido para manter a e, desastre dos desastres, sem nenhum va-
pureza interior (13a) e exterior (l3b) só re- lor diante de Deus (20).
cebeu em troca aflição e castigo (14). Não 21-28 A verdade triunfante. As duas
sem razão, isso provocou inveja quando seções que concluem o salmo têm tama-
os arrogantes (3, pessoas que vivem sem nhos diferentes e estão delimitadas clara-
consideração ou preocupação) e os perver- mente por parênteses: um indivíduo que
sos desfrutaram de prosperidade, "bem- se reconhecia embrutecido, ignorante e
SALMO 74 806

um irracional à tua presença (21,22), des- tivesse seguido os destruidores, com o co-
cobre que bom é estar junto a Deus, com ração implorando silenciosamente "os pai-
o SENHOR Deus como seu refúgio (27,28). néis entalhados não, por favor, os painéis
Apesar de toda a sua tristeza, ele era um não!". A destruição parece ser para sempre
homem rico - ele tinha Deus: segurança (1, cf 10), j á que tudo isso aconteceu e não
no presente (23), futuro (24a) e eternidade houve nem sinal de que a ira divina tivesse
(24b); riqueza no céu e na terra (25); uma cessado (1), nenhuma palavra de Deus (9),
força e uma herança que ultrapassam a du- nenhuma indicação de que Deus fosse agir
ração da existência terrena (26); uma bon- a favor de seu povo, recordar as promessas
dade e um refúgio inalcançáveis aos que feitas ou defender o seu nome (19-21).
perecem sob a ira divina (27,28); ao con- O salmista captura muito bem "o mi-
trário do silêncio do v. 15, algo para contar nuto interminável em que tu estás mudo e
aos outros (28). 21,22 Paráfrase: "Quando o vento uiva'tl- Pois, de fato, "dias de tre-
meus pensamentos ficaram amargos e eu vas ainda vêm sobre nós", e o salmo nos
fiquei emocionalmente deprimido, bem, eu transmite a certeza de que isso não é nada
estava reagindo como se fosse espiritual- estranho, mas faz parte da experiência
mente ignorante e como se estivesse em do povo de Deus - e do próprio Senhor
trevas - como um simples animal irra- (Me 15.33,34); ele também nos oferece um
cional diante de ti!" (cf 49.12,20). 23,24 mourão onde amarrar nosso barco quando
Uma riqueza quádrupla: paz com Deus essa maré singular estiver ameaçando nos
(estou... contigo); o apoio de Deus (tu me engolir. (i) Toda a experiência das trevas
seguras pela minha mão direita); o plano é abarcada pela oração, para que Deus
de Deus para o futuro (Tu me guias); e de- se lembre de nós em nossa necessida-
pois ... glória. A linha de pensamento nos v. de prolongada (1,2) e também se lembre
23,24a requer que 24b chegue até o depois (Lembra-te ... Não te esqueças, 22,23) de
desta vida. Mas este depois também faz que sua própria reputação está ameaçada.
um contraste deliberado com o fim deles, (ii) O terrível motivo das trevas é recorda-
lit., "o seu depois" (17). Ele conduz aos do em detalhe (3-11): o conselho do salmo
v. 25,26, que ressaltam o céu e a herança não é: "Tente não pensar nisso", mas sim:
que ainda lhe pertencem, mesmo que exte- "Peça a Deus para acompanhar você" (3),
rior (carne) e interiormente (coração) esta enfrente as trevas com ele. (iii) Rogue pelo
vida, lit., "chegue ao fim". 26 Herança. O nome de Deus (18-21): para começo de
cumprimento de Josué 13.14,33; 18.7 para conversa, foi por amor ao seu nome que
Asafe, o levita (lCr 24.30-25.1). ele nos escolheu, e, embora possamos,
com certeza, pleitear a nossa própria ne-
Salmo 74. Uma voz nas trevas cessidade (Lembra-te da tua congregação,
Como num pesadelo, este salmo revive o 2), podemos ir ao cerne da questão com o
ano de 587 a.C. e os acontecimentos de apelo: Lembra-te disto... o teu nome (18).
2Reis 24--25. O salmista vê novamente o (iv) Ponha o foco na realidade central de
templo de Jerusalém em ruínas (3), ouve quem e o que Deus é (12-17). Este é o foco
novamente o rugido do inimigo a plenos do salmo.
pulmões no lugar onde antes ele ouvia a
palavra de Deus (4), e vê o movimento AI (v. 1,2) Oração: teu povo abandonado
oscilante das máquinas de destruição (5). B 1 (v. 3-11) Oração: o inimigo des-
Existe algo particularmente comovente no truindo
trecho (lit.) "e agora a todos esses lavores
de entalhe quebram também, com macha- 2N. da T.: Citação do poema The Age-Iong Minute, de Amy
dos e martelos" (6), como se o observador Carmichael.
807 SALMO 75

c (v. 12-17) Rei, Salvador, expenencia do salmista, pois o mmugo


Conquistador, Criador tenta vencer e o poder deste mundo é que
B2 (v. 18-21) Oração: o inimigo insul- impôs sua desordem sobre a terra! Apesar
tando disso, o que se deve fazer é combater a ex-
N (v. 22,23) Oração: tua causa abando- periência com a verdade, ficar firme nas
nada trevas e repetir o credo.
A mitologia pagã via o mar como o
As trevas são cercadas e preenchidas oponente do deus criador, e fez dele a ha-
com oração, e no coração das trevas é lan- bitação das potestades contrárias a deus, os
çada a luz da verdade de Deus. monstros e o crocodilo ("Ieviatã", ARe, TB).
1,2 Oração: teu povo abandonado. Marduque, o deus criador dos babilônios,
Esses versículos fazem um retrospecto de supostamente derrotara essas potestades
toda a história do povo de Deus e põem um das trevas para poder ter liberdade para
ponto de interrogação ao lado de cada acon- criar o mundo. Mas o que Marduque fez
tecimento importante: Rejeitas questiona a apenas na ficção o Senhor fez historica-
posição deles como os "eleitos" em Abraão mente, quando dividiu o mar Vermelho e
(Gn 18.19); adquiriste... remiste recorda a abriu fontes e ribeiros para fazer um cami-
redenção no êxodo (2Sm 7.23); ovelhas nho seco para seu povo, deixando os egíp-
aponta para sua experiência no deserto, cios mortos para os animais carniceiros
sob o cuidado de Deus (77 .20; cf Is 63.11); (14; Êx 14~15).
tribo... Sião assinala que eles são o povo da 18-23 Oração: não te esqueças. 20
terra prometida, no meio do qual o Senhor Cheios de moradas da violência etc. Os
Deus fez sua morada. Mas, nas trevas, tudo lugares tenebrosos podem ter sido os es-
isso parece não servir de nada! conderijos onde o povo se refugiava para
3-11 O inimigo destruindo a casa. escapar dos babilônios e onde eram mas-
8 Com a queda de Jerusalém, não havia ne- sacrados pelos inimigos quando encontra-
nhum outro lugar para se adorar a Deus no dos. Ou então podem ter sido as regiões
país. A referência aqui pode ser ao próprio para onde foram mandados os exilados de
templo, com um plural usado para expres- Jerusalém. 22,23 O salmista lembra a Deus
sar sua magnificência: cc••• todo o grande que o seu nome tem sido insultado e sua
lugar...". Mas a palavra traduzida por lu- pessoa escarnecida (18), e o exorta a de-
gar aponta mais para o fato da reunião com fender sua causa, que está esquecida.
Deus do que para o local onde isso aconte-
cia, i.e., ao incendiar o templo, "eles des- Salmo 75. Árbitro supremo
truíram pelo fogo toda reunião com Deus e juiz de toda a terra
[qualquer possibilidade de reunião festi- No v. 1, encontramos a comunidade cheia
va). ..". 9 (lit.) "Não vemos nossos sinais" de gratidão. Por meio de maravilhas,
~ coisas como a rotina dos cultos no tem- Deus mostrou ser o que seu nome decla-
plo, as festas do calendário, pessoas impor- ra e provou que está "perto" (34.18), que
tantes etc., que lhes falavam de Deus. é o "resgatador" que assume a responsa-
12-17 Rei, Salvador, Conquistador, bilidade pelas necessidades de seu povo.
Criador. O enfático pronome "tu" ocor- Depois, talvez por meio de um profeta (cf
re (cf TB) sete vezes (13,14,15,16,17). As 2Cr 20.13-17), a palavra do Senhor veio
quatro primeiras afirmam a superioridade até eles, explicando o significado da expe-
do poder do Senhor contra qualquer força riência que tiveram.
contrária; as três últimas afirmam que é ele Nos v. 2-5, a voz fala por Deus: quando
que impõe sua ordem ao mundo. Essas são tudo parece instável, ele continua sendo a
exatamente as verdades contestadas pela base que dá estabilidade (3), em particular,
SALMO 76 808

dirigindo sua repreensão aos ímpios, sua inspiração deve ter sido alguma vitória
quando eles fazem demonstrações de for- desse tipo. O tema do "Leão" é ocultado
ça (4,5). Nos v. 6-8, a voz fala de Deus: por "tenda" na NVI (2), quando a palavra,
a decisão que prevalece não é tomada na em todos os empregos específicos, se re-
terra, mas no céu, pelo Deus que determina fere ao covil de um leão (10.9; Jr 25.38).
o destino de cada um e faz os ímpios bebe- Esse tema é bem adequado ao drama do
rem sua porção designada. salmo e reflete seu cumprimento final no
9,10 Finalmente, outra voz fala. A se- Leão-Cordeiro de Apocalipse 5.
melhança com o voto real do salmo 101 1-3 A cova do Leão. Com uma ênfa-
sugere que é o rei, assumindo o compro- se repetida na localização (em Judá ... em
misso pessoal de louvar (9) e de criar uma Israel... em Salém... em Sião), o texto diz
sociedade moralmente sadia (10). que o Senhor é conhecido (1, lit. "autorre-
Qual era a situação? Seria a restaura- velado") na vitória, apesar das proezas mi-
ção de Davi após a rebelião de Absalão litares (3, relâmpagos do arco, o escudo,
(2Sm 15-19)? Seria Ezequias e seu a espada) do inimigo. O Senhor, que con-
povo maravilhado com a debandada de descende maravilhosamente em habitar no
Senaqueribe por obra divina (2Rs 18- meio do seu povo, tem um poder espantoso
19)? Não se sabe, mas nossa compreen- que supera toda a força do inimigo.
são de uma grande verdade não depende 4-10 A vitória do Leão. A referência
do incidente que a ilustra: acontecimentos a montes eternos (lit. "montes de presa")
que abalam a terra não abalam a mão todo- dá continuidade ao tema do leão. A tra-
poderosa que mantém a terra em seu lugar dução mais glorioso do que os montes
(3). "Deus continua no trono". Não impor- (ARA) é possível, mas a melhor tradução é:
ta quão dominantes os ímpios possam pa- "Ilustre és tu, majestoso, vindo do monte
recer, basta a voz de Deus falar contra eles de presa" (ARC). O leão saiu para caçar e
(4,5) e sua ruína é certa (8). Eles não são voltou com passo majestoso, coberto de
de Deus e serão aniquilados (At 5.38). As glória, totalmente dominante. Essa vitória
maravilhas de Deus devem ser recebidas tem dois lados: (i) "Vitória sobre" (5-7),
com gratidão (1) e com o compromisso de (cf 2Rs 19.35; Is 30.31; 31.4). A bravura
reproduzir na terra (10) os valores que ele humana, o treinamento e os recursos mi-
proclama (4,5). litares se rendem à simples voz de Deus
Notas. 2 Pois disseste, um acréscimo (5,6). Ele não precisa de nenhum poder
interpretativo. Julgar, no sentido funda- exterior a ele mesmo, pois ninguém supor-
mental de "corrigir as coisas" (também ta enfrentá-lo (7). (ii) "Vitória para" (8-
7). 4 Força, (heb.) "chifres", símbolo de 10). A terra estivera em alvoroço, ocupada
poder dominante. 5 Contra a Rocha, "no por forças inimigas, sacudida pelo som da
alto". "Cerviz dura" (ARC), com a face arro- guerra, mas, quando Deus falou, fez-se o
gantemente voltada para a frente. 6 (Lit.) silêncio (8). Essa intervenção irresistível
"Não do leste ... oeste ... deserto (i.e., sul) foi feita para salvar todos os humildes (os
vem o suporte" (Rm 13.1). 8 Cálice (cf oprimidos; (9). Desta forma (por sua sim-
60.3; cf Is 51.17; Jo 18.11). ples palavra), a ira humana se transforma
em louvor, e tudo o que resta fica sob seu
Salmo 76. O Leão venceu soberano domínio (10).
(Ap 5.5) 11,12 O justo tributo devido ao Leão.
O salmo 76 explora as maravilhas de 75.1. Então, o que daremos ao Senhor que reduz
Ambos têm grande afinidade com 2Reis a nada (3,5,6) todo o poder reunido con-
18 e 19. Embora não seja possível provar tra nós? Pois o salmo termina dirigindo-se
que eles surgiram do fiasco dos assírios, a todos os que o rodeiam - seu povo, os
809 SALMO 77

que desfrutam de sua presença, os bene- resumo do salmo apresentado acima, a


ficiários de seu triunfo. Nossa retribuição lição é clara: a primeira reação do crente
é fazer-lhe voto de lealdade e cumpri-lo, diante da situação adversa não é pedir a
levando-lhe presentes como tributo e pro- Deus que a mude, mas fazer uso da reve-
va da sinceridade de nosso voto, pois ele lação de Deus (10-20) para poder enfren-
é aquele que deve ser temido (11, lit. "O tá-la. A oração, embora verbalizada de
[verdadeiro] Temor") e (12) "o coração forma veemente (1, lit. "Com minha voz
dos reis está debaixo de seu domínio e go- bradei a Deus, com minha voz a Deus ...")
verno". Ele é a nossa única proteção num e incansável (2), não resolveu nada, por-
mundo ameaçador. que expressava, na verdade, uma recusa
mal-humorada em aceitar as circunstân-
Salmo 77. O tônico da memória cias determinadas por Deus. Na verdade,
Este salmo registra uma época de sofrimen- o próprio Deus retirou o bálsamo do sono,
to intenso, mas não especificado. A oração fazendo seu filho mergulhar ainda mais na
foi mantida até o ponto de exaustão, mas exaustão, até aprender a preciosa lição de
não trouxe consolo (1-3), até que, final- descansar na verdade revelada (4).
mente, a angústia suplantou a capacidade 5-9 A segunda falha de memória.
de orar (4). Noites insones (4a) trouxeram Nas horas insones, o pensamento se vol-
lembranças de tempos melhores (5,6), mas tou para o passado, e a memória recordou
só provocaram um incômodo questiona- dias em que havia uma canção alegre no
mento de Deus (7-9). Mas, então, uma coração (5,6, "chamei à lembrança o meu
nova proposta se insinuou (10): lembrar as cântico", ARe). Mas isso não trouxe conso-
obras que Deus realizou no passado, espe- lo, apenas um questionamento de Deus e
cialmente sua autorrevelação em santidade seus caminhos (7-9). É interessante que as
e grandeza (11-13), quando exerceu o seu perguntas parecem ser construídas instinti-
poder sobre os povos (14), identificou-se vamente de modo a recuperar a confiança,
com seu povo (15), dominou e usou as principalmente pela introdução das cinco
"forças" da natureza (16-18), e conduziu realidades imutáveis da aliança: propício .
seu povo adiante com sua presença invisí- graça ... promessa... benigno (graça) .
vel e por meio de agentes levantados por misericórdias (amor apaixonado). Mas o
ele (19,20). Com isso, o salmo termina ponto principal é que perguntas são coisas
abruptamente - de propósito. É como se que não confortam; elas nascem de uma
o salmista dissesse a si mesmo: "É isso! mente inquieta, e não aquietam coisa algu-
Esta é a chave para seguir em frente - não ma. Ansiar pelo passado (6) não é remédio
orando para que situações sejam mudadas para o presente nem receita para o futuro.
(1-4), não lembrando com tristeza de coi- 10-20 O tônico para uma memória
sas que já não são mais como eram (5-9), sadia. De repente, o pensamento muda
mas lembrando das obras de Deus e do novamente de direção: não se lembrando
Deus que as realizou". de Deus como uma solução para os pro-
1-4 A primeira falha de memória. blemas (3), nem recordando antigas expe-
O salmista não diz exatamente qual era o riências espirituais (6), mas se lembrando
motivo de sua oração, mas subentende-se dos maravilhosos atos de Deus no passa-
que é uma oração para que cesse a adver- do (11,12), a insuperável grandeza de seu
sidade, para que a situação mude para me- caráter santo (13) e o que ele realizou por
lhor. Nesse sentido, ele (3, lit.) "lembra-se seu povo em termos de redenção (14,15),
de Deus": pensando em Deus, por meio da poder (16-18) e cuidado providencial
oração, como aquele que podia intervir e (19,20). O v. 10 contém problemas de tra-
realizar a grande transformação. À luz do dução possivelmente insolúveis. É possível
SALMO 78 810

que exista aqui um contraste entre os dias conforme a vontade de Deus (5,6); (ii) o
de outrora (5) - as lembranças que in- conteúdo da tradição é duplo: os feitos (4)
comodavam - e os tempos da destra do e as palavras (5) do Senhor; (iii) o objetivo
Altíssimo (10) - lembranças do poder de é que as gerações vindouras ponham em
um Deus propício. 13-20 Santidade (13). Deus a sua confiança (7, a palavra sugere
Fundamentalmente, a palavra aponta para simplicidade de fé), guardem na memória
tudo o que toma Deus diferente, separado, seus feitos e mandamentos (7) e evitem os
único, e é esse o sentido proeminente aqui erros do passado - rebelião decorrente de
(e não a qualidade moral de sua santida- compromisso rompido e inconstância (S).
de). Ele age com independência poderosa, Mas (iv), para que tudo isso aconteça, tem
sem nenhuma restrição externa, fazendo o de haver entendimento do passado, um
que quer no céu e na terra. A comparação "ensino" (lei), expresso em discurso nor-
do v. 13 com ÊxodoI5.S-11 mostra que a mal (palavras, 1), que explique (2) o que
lembrança se concentra nas grandes obras aconteceu antes: parábolas são histórias
de Deus do período do êxodo em dian- ou ditados instrutivos - neste caso, o uso
te. O avanço do povo de Deus é traçado de incidentes do passado (9-72) para ilus-
desde sua redenção do cativeiro no Egito trar um princípio; enigmas: por si mesmo,
(14,15), passando pelo mar Vermelho (16) o registro do passado é um emaranhado de
e pelas impressionantes tempestades do eventos, um enigma ou charada que preci-
Sinai (17,IS; Êx 19) e seguindo em fren- sa de interpretação.
te sob a liderança invisível do Senhor e as Este é, portanto, o propósito do salmo:
mãos de seus pastores (20). Ele é podero- esclarecer o enigma do passado para que
so contra os povos (14), poderoso por seu ele se tome uma lição para o presente e o
povo (15), poderoso para lidar com qual- futuro. O salmista vê um único princípio
quer circunstância adversa (16), poderoso em toda a complexidade da história de
no uso de forças tremendas para atingir Israel, e o apresenta como uma poderosa
seus propósitos (17, IS), poderoso para orientação para a nossa vida. Ele faz duas
proteger e prover o necessário no deserto recapitulações da história (12-39; 43-72),
inóspito (19,20). cada uma delas introduzida por um prefá-
É com esse pensamento que o salmo cio (9-11; 40-42). Os prefácios são a essên-
termina abruptamente. Circunstância que cia do salmo. O primeiro afirma que o povo
eles jamais teriam escolhido - as águas do do Senhor (Efraim) foi derrotado porque
mar Vermelho, o "grande e terrível deserto" esqueceram-se (11); o segundo associa sua
(Dt S.15) - foram as que ele designou. De frequente rebelião ao fato de que eles não
fato, foi ele que, sem ser visto, os guiou até se lembraram (42). Se eles não tivessem
cada uma dessas experiências (19) e supriu esquecido, o inimigo não teria triunfado;
suas necessidades enquanto eles passavam se eles tivessem se lembrado, teriam sido
por elas (20). Aqui, de fato, está o consolo. obedientes. Esse é o poder da memória
O Deus santo é totalmente livre para fazer - e foi por isso que, quando nos deixou,
o que deseja, e em sua vontade está a nossa o Senhor Jesus instituiu um banquete me-
paz. Não importa para onde Deus nos leve, morial (1Co 11.23-25). As recapitulações
ele sempre nos proverá. históricas especificam as verdades de que
a memória deve se alimentar e, assim, aju-
Salmo 78. O poder da memória dar-nos a ter poder para uma vida vitoriosa
A introdução (1-S) monta o cenário deste e obediente.
longo e maravilhoso salmo. Ele fala de (i) Em qualquer situação, fosse a ameaça
um dever: cada geração deve transmitir sua externa de inimigos (9-11) ou a pressão
tradição sagrada à geração seguinte (3,4), interna de uma natureza volúvel (40-42),
811 SALMO 78

suponhamos que eles dissessem: "Deus tância contrária; os v. 43-53 se concentram


remiu e ele proverá"; suponhamos que nas pragas lançadas contra o Egito: o poder
eles tivessem vivido com um correto te- que o Senhor tem de destruir o poder do
mor da ira de Deus e a devida noção da inimigo. Zoã (12,43), uma antiga capital
extensão de seu amor! E o mesmo vale do Egito. Cada seção termina com a ideia
para nós. Este é o poder de uma memória de orientação e segurança (14,52-53). O
ativa e constantemente refrescada - vi- poder do Senhor é contra circunstâncias e
ver com a sensação sempre presente da forças contrárias, mas sempre em benefí-
redenção (12-14; 43-53. Ele nos tirou da cio de seu povo.
servidão para a liberdade), da provisão 15,16; 54,55 A provisão de Deus. Na
(15,16; 54,55. Em qualquer situação, ele primeira recapitulação da história, o cená-
pode nos prover, e proverá), juízo (17-33; rio da providência divina (provisão para a
56-64. Os que o conhecem como Pai de- peregrinação) passa do Egito para o deser-
vem viver em temor piedoso, IPe 1.17), to (15,16). A segunda deixa de lado o de-
e amor (34-39; 65-72. Ele nunca nos re- serto para recordar a providência da terra
jeitará se voltarmos para ele, pois conhe- prometida (provisão para a volta ao lar).
ce nossa fraqueza, 32-39, e está sempre Observe que os v. 54,55 começam com
agindo em nosso benefício, 65-72). sua terra santa e terminam com nas suas
9-11 Derrota porque se esqueceram. tendas. Esse é o modo de agir do Senhor,
40-42 Rebelião porque não se lembra- pegar do que é seu e dar para nós.
ram. Ver ISamuel 31. Saul, o benjamita 17-33; 56-64 O juízo de Deus. A
(1Sm 9.1,2), esteve particularmente asso- história do povo foi maculada por seu
ciado às "tribos do norte", denominadas pecado, sua rebelião e por eles terem
alternadamente como Efraim e Israel. Sua "tentado" a Deus (17,18; 56-58). A ênfase
casa ficava em Gibeá (1Sm 10.26), cuja nos v. 17,18 está no fato de terem testado
localização, segundo indica ISamuel 9.4, a fidelidade de Deus - em Êxodo 16,17
era nas colinas de Efraim. Após a mor- eles duvidaram da capacidade de Deus
te de Saul, foi em Efraim que a monar- para prover comida e água, suspendendo
quia restrita de Isbosete se estabeleceu a fé até que ele provasse a si mesmo; nos
(2Sm 2.8), e foi lá que o rebelde Absalão v. 56-58 eles testaram sua paciência, du-
encontrou facilidade para incitar as tri- vidando de sua santidade e julgamento.
bos de Israel a passar para o seu lado Nas duas ocasiões, a ira divina se acen-
(2Sm 15.2,6,10,13). Portanto, a recapi- deu (21,31; 59,62). As tragédias da vida
tulação da história começa com a queda (31,33; 61-64), tanto quanto suas agra-
da casa de Saul, e pergunta por que isso dáveis providências (15,16; 54,55), são
teria acontecido - pois (9) os filhos de atos de Deus. 29-31 (cf Êx 16; Nm 11;
Efraim eram (lit.) "os arqueiros mais bem Si 106.15). O que eles pediram não foi
preparados". Pois a vitória dos que ser- alimento para suprir suas necessidades,
vem a Deus não procede de seus recursos, buscando a Deus com espírito de fé, mas a
mas de lealdade e obediência (10) inspi- satisfação de sua gula, exigida num espíri-
rada pela memória (11). 41 Sobre tentar a to de incredulidade. Eles receberam o que
Deus, cf v. 56 adiante. queriam, mas para sua própria destruição,
12-14; 43-53 A redenção de Deus. pois Deus os atendeu com ira. Muitas ve-
Esses versículos tratam do mesmo tema zes, reclamamos quando nossos desejos
da saída do Egito (12,43,51), i.e., a grande não se realizam, não parando para pensar
obra divina da redenção (42). Os v. 12-14 que o Senhor está impedindo algo que vai
destacam a travessia do mar Vermelho: o nos fazer mal. O v. 32 refere-se à geração
poder do Senhor sobre qualquer circuns- do deserto (Nm 14.28-33). Sem dúvida,
SALMü79 812

cientes de que estavam desagradando a o segredo da vida está na confiança e obe-


Deus, eles percebiam aterrorizados que a diência estimuladas pela memória.
morte se aproximava. 60-64 (1Sm 4).
34-39; 65-72 O amor de Deus. O Salmo 79. Orando e mantendo a
Senhor conhece o coração do seu povo esperança num dia de ira
(34-39), enganoso, inconstante; mas seu Nem todas as adversidades da vida são si-
amor apaixonado (38, misericordioso) nais de ira divina, como Jó descobriu. Mas
redime, refreia a ira e lembra que somos as advertências feitas pelos profetas não
fracos (39); o Senhor conhece as neces- deixaram nenhuma dúvida de que, quando
sidades de seu povo (65-72) e investe Jerusalém caiu, os babilônios (2Rs 24-25)
espontaneamente contra seus inimigos eram agentes do castigo divino. Na época
(65,66), habita entre eles (68,69) e es- em que este salmo foi escrito, a ruína que
colhe um rei para governá-los (70-72). se seguiu à queda já durava algum tempo
35 Rocha, em si, é uma imagem de es- (5), mas a sensação de testemunho ocu-
tabilidade imutável, mas, à luz de Êxodo lar é forte e sugere que o salmista era um
17.5,6, é também uma imagem de ação judaíta devoto que permaneceu em Judá
salvadora, vivificante (cf 95.1). Redentor, (2Rs 25.12), lamentando a devastação,
o parente-resgatador que assume as ne- ansiando por dias melhores (13). O salmo
cessidades de seu povo como se fossem as alterna seções "eles" (1-3,5-7,10,11) e se-
suas. 38 Perdoa. O verbo tem um signifi- ções "nós" (4,8,9,12,13). O que aconteceu
cado básico de "cobrir", mas, em relação no passado com outros (1-3) teve consequ-
ao pecado, ele nunca significa simples- ências sobre os que ficaram (4); os pecados
mente tirar da vista, mas sempre "cobrir que despertaram a ira (5-7,8) são "nossos
um débito por meio do pagamento do pre- pecados" também (9, ARe). Deus não se es-
ço necessário". 65 "Como um guerreiro quecerá de seus difamadores (10) nem de
gritando animado pelo vinho", uma com- seus sofredores (11), e nós, teu povo dare-
paração singular que ressalta a intensida- mos louvor novamente (13).
de com que o Senhor se dedica a corrigir 1-5 Suportando o castigo. O ponto
as coisas para o bem do seu povo. principal aqui é a dor causada ao próprio
67-72 A recapitulação histórica come- Senhor. O seu santo templo foi profanado
çou (cf v. 9-11) com a queda da monarquia (1). Mas, à medida que a cidade era saquea-
de Saul; termina com a predominância de da, os que se dedicavam a ele (servos, 2),
Judá e a ascensão de Davi, por escolha di- e a quem ele era devotado (santos, "teus
vina (68,70). O fato de que o santuário amados", 2), cairam em tão grande núme-
fora construído (69) sugere que o salmo ro que não restou ninguém para realizar
pertence ao período final do reinado de as últimas tarefas de amor (3). A situação,
Salomão, quando a apostasia do rei em não tendo sido resolvida, faz com que o
relação ao Senhor (1Rs 11.1-13) tornou- povo seja continuamente desprezado (4).
se evidente. Isso talvez explique o fim De fato, horrível coisa é cair nas mãos do
abrupto. A monarquia de Saul não con- Deus vivo (Hb 10.31).
seguiu sobreviver, apesar de suas proezas 5-9 Sob condenação. Certamente, al-
militares (9); será que a de Davi conse- gum acontecimento notável deve ter provo-
guiria? Com grande talento artístico, o cado esse castigo! Não; apenas o pecado:
poema encerra com a ascensão de Davi, 8 iniquidades, as consequências de uma
deixando que a família real tirasse suas natureza pecaminosa e desobediente; 9
próprias conclusões - e deixando que pecados, "faltas", erros específicos. E não
também tiremos as nossas. Pois hoje em apenas "os pecados deles", como se a gera-
dia, da mesma forma que naquele tempo, ção que morreu no saque ou foi deportada
813 SALMO 80

para Babilônia fosse a única culpada: per- Salmo SO. O sorriso


doa-nos os pecados, também são "nossos e o olhar de censura
pecados" (9, ARe) - e se nós não perece- O apelo pela luz do favor divino se estende
mos também foi por causa da extraordiná- por todo este salmo (1,3,7,19). O contraste
ria misericórdia de um Deus que odeia o entre o sorriso de Deus (3,faze resplande-
pecado. Os v. 5-7 não devem ser interpre- cer o teu rosto) e seu olhar reprovador (16,
tados como um texto que reflete um espíri- repreensão do teu rosto) diz tudo. Embora
to perplexo ou ressentido, queixando-se de a situação seja desesperadora - o inimigo
uma injustiça. Em todas as adversidades da vitorioso (6), a ira de Deus (4) e a evidente
vida, sejam ocasionadas pela ira divina ou anulação da obra da graça (8,12) - o úni-
resultantes do modo inexplicável, mas so- co remédio necessário é o sorriso de Deus,
berano, como sua providência opera, nos- talo poder da sua graça e a calamidade de
sa primeira reação deve ser nos curvar e seu desgosto. A calamidade se abateu so-
aceitar a situação, como indica o v. s. Mas bre as tribos do norte, Efraim, Benjamim
não podemos também orar pela derrota e Manassés, o antigo "arraial de Efraim"
dos que nos usam cruelmente em benefício (Nm 2.18), tribos associadas com José.
próprio e dilapidam nossos bens mais pre- paralelos com o salmo 79 (o tema do "pas-
ciosos (7)? Parte do lado positivo de "dei- tor/rebanho" [I; 79.13], a prolongada ira
xar a vingança com o Senhor" (Pv 20.22; divina [4; 79.S]; a zombaria dos inimigos
Rm 12.19) é a oração que busca a destrui- [6; 79.4]) sugerem que o lamento daquele
ção de toda potestade que maltrata o povo judaíta sobrevivente da conquista babilô-
do Senhor. 8 Não recordes contra nós, nica do salmo 79 encontra aqui o seu par
"não te lembres" (Jr 31.34; Mq 7.18-20). numa peça escrita por um sobrevivente do
Pais. Na Bíblia, a herança pecaminosa antigo reino do norte.
deixada pelas gerações anteriores não é O salmo é marcado por um refrão re-
jamais desculpa, mas antes motivo de cul- corrente (3,7,19), no qual a urgência vai
pa ainda maior (Lc II.SO). Misericórdias, aumentando à medida que o grito inicial ó
"compaixão/amor apaixonado". Apressem- Deus (3) transforma-se, no v. 7 (lit.), em

se ao nosso encontro (Lc IS.20). 9 Perdoa, Deus, ó Onipotente/ó Onipotência", e, no


"acerta e paga o preço que cobre integral- v. 19, em "ó Javé, ó Deus, ó Onipotência".
mente nossa dívida de pecado". Em todo Mas, embora a urgência aumente, a reali-
o trecho dos v. 8,9, o apelo à nossa pró- dade permanece a mesma: uma mudança
pria necessidade é apenas secundário; seu na face de Deus tem poder transformador.
foco principal é um apelo à natureza divina Pois o problema não era o fato de eles te-
- observe a ênfase em teu nome (9), i.e., o rem caído nas mãos do homem - isso era
que ele revelou sobre si mesmo. só o terrível sintoma - mas terem caído
10-13 Alimentando a esperança. A es- da graça de Deus. Assim acontece com to-
perança que transparece no v. 13 se baseia das as nossas derrotas, e o nosso remédio
em dois fundamentos: primeiro, o Senhor é sermos recebidos de volta por um Deus
sempre defenderá sua própria reputação sorridente e reconciliado conosco. Talvez
(10,12) e, em segundo lugar, ele sempre o v. 14 deva ser interpretado como outro
virá em socorro de seu povo quando este refrão, dividindo o salmo em ainda mais
for ameaçado (10, 11), pois mesmo quando estrofes. Ele certamente aparece no lugar
somos afligidos pela manifestação de sua certo, mas, teologicamente, é de suprema
ira, ainda somos teu povo e ovelhas do teu importância. Não podemos ser restaura-
pasto (13). Esses dois alicerces se refletem dos diante de Deus (3,7,19) sem que pri-
no uso contrastante da palavra opróbrio meiro ele se volte (14), reconciliando-se
nos v. 4,12. conosco. A grande restauração tem de ser
SALMO 81 814

da parte dele. Com relação a isso, só po- para Deus, não há poder contra o inimigo.
demos rogar. 15-18 A mão direita. Quando Raquel
1,2 O pastor e rei. Um tema muito estava morrendo de parto (Gn 35.18), deu
antigo, ligado com José (Gn 48.15; 49.22- a seu filho o nome de Benoni, "filho do
24). Entronizado ... querubins. Os queru- meu sofrimento", mas seu pai trocou-lhe
bins que protegiam a Arca constituíam um o nome para Benjamim, "filho da minha
pedestal para o trono do Deus invisível, e mão direita". Deste modo, o salmo volta
bem como um local de encontro entre o ao ponto de partida: Benjamim (2) afundou
Senhor e seu povo (Êx 25.18-22). Mostra em sofrimento e prejuízos, mas a fé afirma
o teu esplendor ou "resplandece" (50.2). que o Senhor tem um povo ("varão", ARe)
Não é solicitada nenhuma grande mani- da tua destra... o filho do homem (17) que
festação de poder, apenas que a escuridão é buscado como solução; aquele, portanto,
da desaprovação de Deus seja dispersa por a quem Deus dará novamente um sorriso
sua luz. 3,7,19. Restaura-nos, "traze-nos de graça. Do modo mais claro possível, o
de volta" (para ti). Faze resplandecer o v. 15 permite que o tema da vinha se de-
teu rosto. O pedido é apenas para que haja senvolva, pois (Gn 49.22, outra referência
uma mudança em Deus; que o olhar de de- a José) sarmento (15) é um ramo de videi-
saprovação se transforme em sorriso. ra. Ultrapassando o que o salmista pode-
4-6 O estranho provedor. 4 (lit.) -ó ria saber, o Senhor de fato cuidou de seu
Javé, ó Deus, ó Onipotência", i.e., ele é o povo-vinha até que, na plenitude do tempo
Redentor (Êx 3.14-17; 6.6), ele é Deus, e (Gl 4.4), nasceu o esperado filho-sarmen-
em si mesmo encerra toda potencialida- to, o homem da tua destra (17), em quem
de e poder. Estarás indignado: "tua ira se recebemos nova vida (18; Jo 10.10) e um
acenderá", a fumaça como expressão da acesso a Deus sem precedentes (Ef 2.18)
santidade divina (Êx 19.18; 74.1), sepa- para invocar o seu nome.
ração dos pecadores (Is 6.4,5). 5 Dá-lhes
(Is 45.7; Am 3.6). O Senhor usa agentes Salmo 81. Intimados a
(6; 79.1-3; Is 10.5-15), mas nunca deixa de comparecer à festa
ser O Agente. 6 Constituis-nos em conten- Afesta do meio do mês (3) a que este sal-
das, possivelmente enquanto disputavam mo se refere pode ser a Páscoa (Êx 12.18)
os despojos da conquista. ou Tabernáculos (Lv 23.39), sendo ambas,
8-13 O vinhateiro. Assim como ocor- essencialmente, memoriais do êxodo (Êx
re com a ovelha entre os animais domés- 12.26,27; Lv 23.42,43). É mais provável
ticos, a vinha é a planta que necessita de que seja a Festa dos Tabernáculos, por cau-
cuidados mais persistentes. Com esse tema sa das referências à Lei e a ouvir o Senhor
da providência paciente, o salmo retra- (8-10,11,13; cf Dt 31.9-13), e à abundân-
ta a obra da redenção, a herança (8,9) e a cia da colheita (10,16; cf Dt 16.13-15). O
prosperidade (10). A extensão da esfera de salmo começa com a ordem expressa de
influência (11) desde o mar Mediterrâneo Deus que o povo deve cumprir (1-5), pas-
até o rio Eufrates foi alcançada durante os sa para os atos de Deus, em ações (6,7) e
reinados de Davi e Salomão. Mas, depois palavras (8-10), e termina com a exigência
disso, a história teve altos e baixos, e a so- feita por Deus de que o povo deve obede-
berania nacional foi sendo restringida, até cer a ele (11-16), estendendo-se nas conse-
que Samaria foi tomada pela Assíria, em quências terríveis da desobediência (11,12)
722 a.c., e Jerusalém pela Babilônia, em e na vitória e grande abundância (14-16)
586 a.C. Isaías 5.1-7 revela a causa des- que vêm como consequências da obediên-
se declínio até transformar-se num encla- cia (13). Assim, o salmo trata das grandes
ve desprotegido: onde não há frutificação questões centrais da Bíblia: a redenção e
815 SALMO 82

o modo como reagimos a ela. As pessoas SI 99.6,7), depois entrando no deserto (7;
que são tiradas do Egito (6; os remidos do Êx 17.1-7) e então para o Sinai (8-10). O
Senhor, Êx 6.6,7; 24.4,5) ficam imediata- Senhor liberta seu povo (6), atende suas
mente debaixo da autoridade da palavra orações e determina as situações pelas
de Deus (8-10; Êx 19.3-6; 20.2-19), que quais eles devem passar (7), e ainda reve-
são convocadas a ouvir e obedecer (8,13; la sua palavra (8-10). 7 Te experimentei.
Êx 24.6,7; Rm 1.5; Hb 3.7-19; IPe 1.1,2). Mas Êxodo 17.2 diz que eles tentaram ao
1-3 Uma onda crescente de aclamação: Senhor! As adversidades da vida (Êx 17.1)
congregação, cantores e instrumentistas, são testes divinos (Dt 8.2), mas, se as en-
trombeteiros (3) - todo um grupo de pes- frentamos duvidando do amor dele, de seu
soas ligadas ao louvor - saúda a Festa. cuidado e poder salvador, nós o "tenta-
4,5a Preceito, um estatuto permanen- mos", insinuando que ele precisa primeiro
te; prescrição, uma decisão impositiva do provar a si mesmo para que depois confie-
Senhor; lei, um testemunho (preferível aqui mos nele. 8-10 O dever fundamental (8):
a ARe, que traz, de fato, "testemunho") do obediência; o princípio fundamental (9):
que ele é (i. e., o poder redentor e a lei santa lealdade exclusiva; e o fundamento em si
do Deus do êxodo). (10): o Senhor, o Redentor.
5b A expressão contra a terra do Egito 11,12 (Is 5.5-7; Rm 1.24,26,28). Por
permite datar a festa desde a época da ação causa da desobediência, eles foram man-
divina contra o Egito para livrar Israel, dados para o deserto quando poderiam es-
mas as mesmas palavras (lit. "sair sobre") tar desfrutando de Canaã (Dt 1.32-2.1).
são usadas em Gênesis 41.45 quando José 13 Cf. 8 (a exigência principal do
assume sua posição como Senhor do Egito. Senhor), 11 (a principal falha do povo) e
O êxodo foi o exemplo supremo do Deus agora (13) o fator-chave que determina
Soberano em ação. perda ou ganho.
Os v. 5,10,16 são três declarações em
primeira pessoa (5c, Iit. "Uma 1inguagem/ Salmo 82. Julgamento
voz que não conhecia comecei a ouvir"), na suprema corte: uma
cada uma concluindo sua própria seção visão e uma oração
do salmo. As duas últimas representam a Os poetas nem sempre explicam o que
voz do Senhor, e a primeira, muitíssimo querem dizer, e nós, seus leitores, vamos a
mais difícil de interpretar, provavelmente reboque, tentando interpretar suas alusões
também é o Senhor falando. Se este for o da melhor maneira possível.
caso, a fala se refere a Êxodo 2.24,25 (em 1 A corte em sessão. Assiste é tradu-
que "atentou" é, lit., "...e Deus conheceu"). zido por "toma o seu lugar" num contexto
Assim, tudo começa para o povo do Senhor idêntico em Isaías 3.13. O próprio Grande
quando este olha para as necessidades de- Juiz entra para dar seu veredicto no meio
les e "conhece", estabelece com eles um dos deuses - mas quem são os deuses?
relacionamento de proteção (5). Os que 2 A acusação. Os "deuses" usaram sua
ele redime, e aos quais revela sua palavra posição para julgar injustamente, "perver-
(6-10), são convidados a desfrutar do total ter a justiça" e favorecer a impiedade.
suprimento de suas necessidades (10); os 3,4 A Lei. A promotoria abre a sessão
que obedecem têm a promessa de sustento lembrando ao Meritíssimo Senhor o que
abundante e milagroso (16) - mel, quando a lei determina: isto é o que os "deuses"
o melhor do passado era água (Êx 17.6). deveriam ter feito: defender os direitos dos
Os v. 6-10 seguem uma sucessão de indefesos, fraco ... órfão, os que não têm
eventos, desde a libertação do êxodo (6) recursos materiais, seja qual for sua ori-
até o mar Vermelho (7; Êx 14.10,19,24; gem ou posição social; aflito, o oprimido,
SALMO 83 816

o que se encontra junto à base do monturo Portanto, a balança pende a favor de


da vida; desamparado, empobrecido; ne- autoridades terrenas consideradas na alta
cessitado, pessoa que pode ser explorada dignidade de suas posições, na responsa-
por quem está investido de poder. Esses bilidade que têm diante de Deus e da qual
indivíduos não devem ser favorecidos pela terão de prestar contas a ele. (iii) Mesmo
lei, mas sim, protegidos pela correta apli- quando as autoridades terrenas falham (5),
cação de seus direitos legais e (4) devem desviando-se do caminho, deixando as
ser protegidos pela lei contra a ação (mãos) pessoas sem consolo, promovendo a desin-
dos malfeitores. tegração social, ainda existe um Deus ver-
5 As testemunhas. Tendo recitado dadeiro a quem elas têm de prestar contas
a lei (3,4), a promotoria agora chama as (1,6,7) e a quem podemos orar (8).
testemunhas. A primeira (5a) acusa os
"deuses" de falta de sabedoria: eles são Salmo 83. Inimigos ao redor,
ignorantes, e não inteligentes; falta-lhes mas Deus acima
entendimento/discernimento em suas de- É útil ler 2Crônicas 20 como uma ilustra-
cisões e ações. A segunda (5b) afirma que, ção deste salmo, mas a situação descrita
com um governo como esse, as pessoas aqui excede qualquer coalizão que Israel já
andam sem rumo, como se vivessem em tenha enfrentado. Em vez de tentar associá-
trevas, sem direção e objetivo. A terceira lo com algum fato histórico, é melhor vê-lo
testemunha (5c) atesta o colapso da estru- como uma ilustração do povo de Deus
tura e da estabilidade social. encontrando socorro na oração (1) diante
6,7 A sentença. "Deuses" ou não "deu- de um mundo hostil (2-8), moldando sua
ses", seja qual for o seu status (6), eles oração à luz do poder revelado de Deus
sofrerão a pena de morte como simples (9-15) e desejando o desfecho abençoado
mortais (7). quando o Altíssimo for universalmente
8 Oração. A visão de Deus julgando reconhecido (16-18). O salmo ensina que
(1) é transformada numa oração para que vivemos num mundo que nos odeia por-
ele faça isso - no mundo inteiro, pois é que não pertencemos a ele (Jo 15.18-25); o
sua prerrogativa (8). que devemos fazer: não há saída, só a ora-
Então, qual é o significado disso tudo? ção; em que devemos descansar: no já de-
(i) Os "deuses" podem ser os "principa- monstrado poder que Deus tem de vencer
dos e potestades", invisíveis mas reais, o mundo (9-12; Jo 16.33; Ap 1.17,18); o
que exercem sua influência maligna so- que devemos desejar: não simplesmente o
bre os acontecimentos terrenos (Is 24.2 I; alívio da oposição, não simplesmente que
Dn 10.12,13,20; Ef 6.12). O AT ocasio- a oposição termine, mas a conversão dos
nalmente usa "deuses" / "filhos de Deus" que se opõem (16,18).
para seres angelicais (8.5; Jó 1.6). (ii) 1-4 Teu povo. O salmo começa com a
Entretanto, os deveres especificados nos v. ameaça ao povo do Senhor expressa na de-
2-4 são os dos juízes de Israel (Êx 22.22- terminação do inimigo de destruí-los para
24; 23.6,7; Dt 1.16,17; 10.17,18; 16.18- que "deixem de ser uma nação" e de apa-
20); sua função é exercer "o juízo de Deus" gar seu nome da memória (4), deixando-os
(Dt 1.17). Levar uma causa "diante de sem lugar na terra ou na história. Essa é
Deus" e levá-la "diante dos sacerdotes/ju- a inimizade mortal do mundo, evidencia-
ízes" são expressões alternativas (Êx 21.6; da no modo como reagiu e tratou o Senhor
22.8,9; Dt 17.8-13; 19.17). Além disso, o Jesus (Jo 1.10; At 3.13-15). Ele não faz
Senhor Jesus entendia "deuses" como se- concessões e nós também não devemos fa-
res humanos "a quem foi dirigida a palavra zer (2Co 6.14-7.1; Tg 4.4).3 Protegidos,
de Deus" (10 10.35). "escondidos", ocultos num lugar secreto e
817 SALMO 84

forte, como esconderíamos coisas de valor. espalhar, destruir, desorientar e desapon-


4 Risquemo-lo, uma palavra forte: signifi- tar (ignomínia, frustração de todas as suas
ca "apagar/eliminar". esperanças) seus inimigos. Mas o modo
5-8 Tu. O alvo da coalizão inimiga não como ele age é sempre cheio de miseri-
é apenas o povo de Deus, mas, mais especi- córdia intencional, e, em nossas orações,
ficamente, o próprio Senhor (5). É verdade devemos ter essa mesma atitude. Às vezes,
que ele jamais nos abandonará (Is 41.10; as pessoas precisam ser reduzidas a nada
Hb 13.5); porém, é ainda mais certo que (13-15) para que busquem a Deus (16).
ele defenderá a glória do seu nome (Js 7.9; 17,18 Teu nome. A nota que ressoa no
ls 42.8; Ez 20.9,14,22,44; 36.22). 6 Uma fim da última seção toma-se um tema do-
coalizão de povos do leste. Hagarenos, minante. A oração que abre o salmo, não
"descendentes de Agar" (1Cr 5.10; 11.38; te cales (1), toma-se uma oração pela voz
27 .31). Supostamente associados com da revelação divina, e reconhecerão (18;
Abraão e Agar. 7 Gebal. Alguns supõem "Para que saibam", ARe), referindo-se aos
que seja um lugar não mencionado na que, deixados à sua própria vontade, tra-
Transjordânia. Gebal (um porto [fenício] maram a eliminação da igreja (4). Cujo
no norte da atual Palestina) é mencionado nome é (18) ou, melhor, "por causa do teu
em Josué 13.5; IReis 5.18; Ezequiel 27.9. nome": i.e., "por" dizer a eles quem e o
Se este é o lugar mencionado aqui, a lista que ele é, o Senhor os ganhará para si; ou
começa no extremo norte, vai para Amom, porque Deus é o que é, precisa revelar-se
no leste, volta para a Filístia, no oeste, e de a eles.
volta para Tiro, no norte: um cerco total do
povo do Senhor. 8 Assíria pode ser o poder Salmo 84. "Ser um peregrino"
oculto por trás das nações da coalizão que Na profundidade de seu desejo e fome do
estão na "linha de frente", assim como "o próprio Deus (2), sua noção da eficácia do
deus deste mundo" (2Co 4.3,4) está por trás sacrifício que Deus providenciou (3), sua
de toda hostilidade evidente contra a igre- firmeza na fé (5-7), seu sereno contenta-
ja. Mas, talvez "Assur" aqui seja uma tribo mento com Deus (10,11), este salmo re-
árabe do norte do Sinai (cf Gn 25.3,18; Nm preende nossa espiritualidade raquítica.
24.22,24). Lá (Gn 19.36-38; Dt 2.9,19). 1-4 Desejo ardente. A alma é o ego
9-12 Tua terra. Canaã é chamada de essencial, coração e carne são os aspectos
habitações de Deus (12) porque lá ele pas- interior e exterior da personalidade: assim,
toreia o seu rebanho. Toda a terra é dele, o ser inteiro está tomado de uma profunda
mas essa terra é o seu tesouro especial (Dt saudade da casa de Deus e de Deus em si. A
11.12), assim como o seu povo (Êx 19.5). ideia da segurança dos pássaros que fazem
9 Uma aliança semelhante (Jz 6.1,2) teria ninho na casa do Senhor e seus arredores
provocado essa lembrança de Midiã e a traz à mente a lembrança do que garante a
mente facilmente faria a associação com segurança de todos os que lá habitam (4),
Sísera (Jz 4-5). Midiã foi derrotada nas o altar onde os pecadores são reconciliados
mãos de uns míseros 300 homens, para com o Deus Santo. 3,4 A sequência é: "Os
que a excelência do poder fosse de Deus pássaros estão seguros em sua casa; essa
(Jz 7.1-7); Sísera caiu pelas mãos de uma casa é o lugar do altar de Deus; nós esta-
única mulher (Jz 4.17-22; 5.24-27,31). mos seguros na casa de Deus". Os altares
11 (Jz 7.25; 8.18-21). são a chave para a nossa segurança.
13-16 Tua tempestade. O Senhor tem 5-8 Peregrinando. A bênção não está
todas as forças da natureza ao seu dispor, restrita à casa. Existe também uma bênção
e muitas vezes, como ocorre aqui, elas se sobre a peregrinação, quando os peregrinos
tomam símbolos de seu próprio poder - (i) vivem pela força de Deus, (ii) mantêm
SALMO 85 818

o coração resoluto (5, Lc 9.51-53), (iii) sempre fazer um autoexame para ver se
enfrentam as adversidades com fé inaba- não existe algum pecado que precisa-
lável (6, v. adiante) e, deste modo, (iv) mos confessar ou um erro que devemos
conseguem uma força cada vez maior até corrigir. Essa era a situação desse salmo.
(v) ser aceitos na presença de Deus (7) e O favor de Deus era só uma lembrança
estabelecer um diálogo com ele (8). 6 Vale (1-3); o presente estava cheio da sua ira
árido ("vale de Baca", ARe), "árvores de (4-7). O autor desconhecido que nos dei-
bálsamo", possivelmente uma localidade xou esta meditação adotou a mesma ati-
(2Sm 5.22-25) que aqui exemplifica cada tude de Habacuque: como o profeta que,
aspecto árido e inóspito da peregrinação. perplexo com o que estava ocorrendo
Para fazer dele um manancial, é neces- (1.1-17), levantou-se e olhou "para ver o
sário receber sua aridez com a certeza de que Deus me dirá" (Hc 2.1), assim o sal-
que, apesar de tudo, haverá água (compare mista, após recapitular a situação (1-7),
Êx 17.1-3) - e, com certeza, de bênçãos o se dispôs a escutar o que Deus ... disser. O
cobre a primeira chuva de Deus. salmo é uma meditação profética sobre o
9-12 Descansando. A continuidade da tema do reavivamento/renovação (6).
casa dependia do rei e da estabilidade de 1-3 Lembrando: o fundamento do
seu reino. Portanto, era ele quem garantia favor de Deus. Quando, no passado, Deus
os prazeres espirituais. Consequentemente, favoreceu e restaurou (1) foi perdoando os
o peregrino ora pelo rei (9). Para nós, pecados deles (2) e desistindo de sua ira
Jesus, com seu reino sacerdotal eterno, é o (3). Aconteceu uma mudança neles - o
eterno fiador da nossa segurança, aceitação arrependimento que traz perdão; e uma
e bem-aventurança (cf Hb 4.14-16; 7.23- mudança em Deus - o abandono da ira
25; 1102.1,2).9 Escudo... ungido. Como que traz paz. Não pode haver renovação/
"ungido", ele é nomeado e capacitado por reavivamento enquanto o pecado não for
Deus; como "escudo", ele nos protege. 10 perdoado e a ira aplacada. 2 Perdoaste,
O versículo começa com Pois, explican- "levaste para longe" (Lv 16.21,22).
do a oração do v. 9. O peregrino ora pelo 4-7 Suplicando: o fim da ira e a dá-
rei "porque" ele quer que os benefícios da diva da salvação. Salvação significa li-
casa sejam assegurados. O v. 11 explica o vramento - neste caso, livramento da ira
v. 10: a vida com Deus é preferível a qual- (4, "indignação"), raiva (como sentimento
quer outra vida porque ele é sol, a fonte de pessoal, 5). Só deste modo pode haver rea-
luz (27.1) e vida (56.13), escudo, protetor vivamento/renovação, que tem como resul-
contra todas as ameaças; por sua graça, ele tado a alegria em Deus (6); e isso só pode
nos atrai e depois compartilha sua glória acontecer por meio do imutável amor de
conosco (2Pe 1.3,4). Mas não incondicio- Deus e de seu dom gratuito (7). Na ques-
nalmente: o bem que ele dá liberalmente tão do reavivamento/renovação, somos
(11) é para os que (tanto no modo como dependentes da vontade soberana de Deus.
vivem quanto em suas motivações) andam 4 Restabelece-nos, "Volta-te para nós" -
retamente (Mt 5.48). Ao mesmo tempo, o cerne da questão (3,5) é que Deus deve
eles não são abençoados em função da- se reconciliar conosco.
quilo que fazem, mas sim por causa de sua 8,9 Ouvindo: a promessa e suas con-
confiança em Deus (12). dições. Escutarei, "decidi ouvir" - uma
atitude firme. Os que desejam reavivamen-
Salmo 85. Desejando to/renovação devem aguardar confiantes
ardentemente o reavivamento na palavra de Deus. Mas isso impõe al-
As dificuldades da vida nem sempre indi- gumas exigências: (i) corresponder ao seu
cam desaprovação de Deus, mas devemos amor: santos (8, "os objetos de seu amor
819 SALMO 86

fiel e que se comprometem a retribuir o Nesse aspecto, o salmo é um espelho do


seu amor"); (ii) abandonar as loucuras do modo como as pessoas oram na Bíblia (Ne
passado (8); (iii) viver no temor de Deus 9.5-31,32-37; At 4.24-28,29,30) e é um
(9; lPe 1.17-19). A consequência é que a modelo para nós.
glória - Deus em toda a sua glória - virá 1-6 "A ti, ó Soberano": ele ouve a
sobre o povo do Senhor. oração. A seção começa e termina com um
10-13 Aguardando com expecta- apelo para ser ouvido (1,6). A palavra pois,
tiva: a harmonia entre céu e terra. Os em 1,2,3,4,5, e o que está subentendido no
atributos de Deus estão em harmonia: ele v. 2, apresentam cinco razões pelas quais
nos ama sem qualquer transigência de oramos: (i) por causa da nossa impotência
sua "verdade" (10); ele estende sua paz a (1): aflito e necessitado, oprimido e inútil
nós sem comprometer sua justiça (10; Is peão dos outros; (ii) por causa do amor re-
45.21-25; Rm 3.23-26). Céu e terra estão cíproco (2): piedoso, ou melhor, "querido e
em harmonia (11): a terra produz o fruto dedicado", amado e retribuindo esse amor;
da "verdade" (11; ls 45.8; Ef 5.8,9) sob (iii) por causa da confiança leal (2), um
o olhar imperturbável da própria justi- relacionamento pessoal (Deus meu) resul-
ça do céu (11). À medida que Deus dá, a tando em obediência (servo), fundamenta-
terra corresponde (12): o resultado final do na confiança; (iv) por causa da interces-
da salvação inclui a restauração do Éden são persistente e cheia de esperança (3,4).
nos Novos Céus e Nova Terra (Is 65.17- "Elevar a alma" (24.4) é apresentar todos
25; 2Pe 3.13). Precedido por seu arauto, a os nossos desejos somente a Deus e bus-
Justiça, o próprio Deus entra nesse quadro car somente nele a satisfação das nossas
(13; Ap 21.3). necessidades; (v) Porque ele é o que é (5),
13 (Lit.) "E, ó, que ele ponha seus bom, "bondoso", para conosco na nossa di-
pés no caminho" - o equivalente de ficuldade, compassivo para com os nossos
Apocalipse 22.20 em Salmos. pecados, abundante em benignidade, no
amor imutável que ele prometeu.
Salmo 86. A soberania 7-13 "Ninguém é como tu, ó Sobe-
como travesseiro rano": ele é o único Deus. Davi agora
Sete vezes (3,4,5,8,9,12,15) Davi fala do chega mais perto da situação: nesta se-
Senhor, usando a palavra que expressa a ção, os "parênteses" são o v. 7, confiança
soberania de Deus. Numa necessidade de que no dia da minha angústia Deus
pessoal (1), no dia da minha angústia (7), responderá, e o v. 13, confiança de que a
quando os soberbos e os violentos (14) es- misericórdia divina "livrará" (o verbo é
tavam investindo furiosamente, ele encon- futuro); ainda que seus inimigos o levem
trou um travesseiro onde reclinar a cabeça: para a sepultura e o sheol, ele contempla a
o Deus Soberano que ouviria suas orações vida após a morte. Sua conscientização da
(3,4), livrá-lo-ia (12,13) e humilharia seus grandeza de Deus começa na escala mais
inimigos (17). Neste salmo de prolongada ampla: (8-10), de que o único Deus é so-
intercessão, a necessidade (14) não é es- berano sobre qualquer potestade que possa
pecificada sem que primeiro Davi discorra haver no céu (8), e aguarda a submissão
sobre seu relacionamento com Deus (1-6) e de toda a terra (9); depois, move-se para o
renove seu compromisso (11,12). Num ní- plano pessoal: (11,12), de que o único Deus
vel mais profundo, podemos dizer que sua é digno de seu compromisso total, tanto
oração está mais ocupada em "falar com exteriormente, no modo de viver, quanto
Deus a respeito de Deus", meditando de- interiormente, no coração (11), e também
moradamente sobre a natureza divina, do verticalmente, no louvor (12). O v. 11 não
que em "falar com Deus a meu respeito". significa "ensina-me a sair dessa situação
SALMO 87 820

difícil", mas "ensina-me a viver como tu Ap 3.5). Isaías 4.3 é importante na ligação
queres, em meio a essa situação difícil". do tema do "livro" a Sião. Esses três te-
Dispõe-me o coração, "une/unifica o meu mas formam a essência do salmo 87. Ele
coração", livra-me de ser inconstante, de é um salmo de Sião (1-3), um salmo de
ter duas caras para com Deus; "dá-me âni- "nascimento" (4,5) e um salmo de "livro"
mo firme para manter o alvo fixo em ti e (6). Em essência, ele proclama a futura
no teu grande nome, sem me desviar por cidade-mundo de Deus, na qual o direito
causa de ameaças ou recompensas". hereditário será estendido para incluir na-
14-17 "Mas tu, Ó Soberano": ele é ções anteriormente hostis e pagãs (4), com
suficiente. Agora descobrimos qual foi base na sua inclusão no livro de registro do
a situação real que causou fraqueza (1) e Senhor, feita por ele mesmo (6).
aflição (7) a Davi. A referência recorren-
te ao amor, perdão e misericórdia de Deus AI (v. 1) Fundação dele (pelo Senhor)
(3,5,6,15,16) sugere que ele estava fugindo B 1 (v. 2) O amor do Senhor
de Absalão, uma situação na qual ele não C 1 (v. 3) A cidade de Deus
era, de modo algum, inocente. O texto de D (v. 4) A cidade mundial
2Samuel 16.5-7 revela o que algumas pes- C2 (v. 5) A cidade do Altíssimo
soas do país sentiam a respeito de Davi, e B 2 (v. 6) O registro do Senhor
2Samuel17.1-4 mostra que soberbos e vio- AI (v. 7) Minhas fontes
lentos (14) não é licença poética. Porém,
o Deus compassivo e cheio de graça (15; O contraste entre o v. 1 e o v. 7 revela
Êx 34.5,6) era suficiente, tanto para suprir a transição do salmo, passando do que o
a fraqueza de Davi (16) quanto para com- Senhor pensa a respeito de Sião (1-3) para
bater seus inimigos (17). 17 Sinal, como as pessoas que lá vivem e desfrutam de
em Juízes 6.36-40. Quando as pessoas es- seus benefícios (5-7) (cf Ne 7.4ss.). O v. 4
tão esgotadas ao ponto de precisar de um é, portanto, o pivô de todo o salmo: como
sinal, Deus é compassivo o bastante para a cidade acolhe pessoas do mundo inteiro
condescender com essa fraqueza. como se fossem seus filhos. A fundação
e o amor do Senhor pela cidade (1,2) se
Salmo 87. Os filhos de Sião expressam nas gloriosas coisas ditas sobre
Três temas do AT convergem neste salmo ela (3). Que coisas são essas? A resposta
e explicam seus versículos muitas ve- está no v. 4: seus cidadãos vêm do mundo
zes enigmáticos: (i) O tema da "cidade" todo, eles conhecem o Senhor e têm direi-
(ls 2.2-24; 26.1-4; 54-55; 60; Hb 12.22- to hereditário à cidade. Sião é, portanto, a
24). A primeira tentativa do homem de or- consumação dos propósitos de Deus. Mas
ganizar o mundo sem referência a Deus re- essa entrada de cidadãos do mundo inteiro,
sultou numa cidade (Gn 11.1-9), e a Bíblia longe de diminuir a excelência da cidade,
retrata a futura cidade-mundo como a é, na verdade (5), o modo como o próprio
consumação da obra de recriação de Deus Altíssimo a estabelecerá. Entretanto, como
(Ap 21.1,2,15-27). (ii) O tema do "nasci- uma população vinda de todas as partes do
mento". Quando Neemias quis povoar sua mundo pode ter direito de herança por nas-
nova Sião, os candidatos a cidadão tiveram cimento? Porque (6) o próprio Senhor as-
de provar que tinham direito hereditário de sinalou o nascimento deles no registro de
morar ali (Ne 7.4ss.,64; cf Ed 2.59,62). Sião. Consequentemente, não há distinção,
Isso corresponde ao "novo nascimento" e (7) cantores e músicos - toda a congre-
(10 1.12,13; 3.3-8). (iii) O tema do "li- gação jubilosa - desfrutam do que Isaías
vro": (Êx 32.32; SI 56.8; 69.28; Ez 13.9; (12.3) denominou "fontes da salvação"
Dn 12.1; Lc 10.20; Fp 4.3; Hb 12.23; (cf 113.18).
821 SALMO 88

Nota. 4 Raabe, um apelido do Egito e confiando no nome do Senhor, e apren-


(Is 30.7). Egito e Babilônia, os dois gran- dendo sobre o seu Deus (Is 50.10).
des opressores; Filístia e Tiro, as potências 1-9a Vida sem luz. Existem mortos que
militar e comercial do mundo; Etiópia, os são desamparados ... das mãos do Senhor?
pontos mais extremos da terra. Sim, de fato: eles ocupam a mais profunda
cova... lugares tenebrosos... abismos (6),
Salmo 88. As trevas da alma: pressionados pela divina ira (7). À medida
fé paciente, paciência fiel que o salmista sente que seu prolongado
As três seções deste salmo têm três ca- estado terminal (15) se aproxima de seu
racterísticas em comum: cada uma delas fim terreno (3), é isto que o aflige: irá ele
inicia com um testemunho de oração con- morrer debaixo da ira de Deus? É isso tam-
tínua (1,2,9,13); cada uma lamenta uma bém que o impele à oração (1,2; observe
experiência de trevas (6,12,18); e cada Pois, no v. 3).
uma se defronta com a morte (5,10,15). 9b-12 Morte sem esperança. Depois
Em poucas palavras, este é um "salmo da morte, o destino do homem está sela-
sem esperança". Alguém que conhece o do. Morrer sem que a questão da ira di-
Senhor como (lit.) "o Deus da minha sal- vina esteja resolvida é ir para onde não
vação" (1) não tem esperança em face da pode haver expectativa dos prodígios de
morte (9-12). Alguém que é fiel na ora- Deus, seus atos salvadores sobrenaturais,
ção não encontra respostas consoladoras nada pelo que louvá-lo (10), nenhuma
para o sofrimento. A ira de Deus (7), a experiência de seu amor para contar aos
alienação dos amigos e a inescapável (8) outros, nenhuma dependência de seu cui-
agonia debilitante (9) enchem a vida toda. dado fiel (11), ninguém que possa falar de
Ao olhar para cima, ele vê somente ira; suas maravilhas salvadoras (12), nenhum
ao olhar para dentro, terror (16); ao olhar traço da (lit.) "tua justiça", a intervenção
para fora, as ameaças atuais e os amigos divina para corrigir todas as coisas. Apenas
ausentes (17,18); e ao olhar para a frente, abismos (11, "Abadom", TB), trevas e es-
trevas inelutáveis (18). quecimento divino (12, cf. 5,já não te lem-
A maioria dos pastores já teve de mi- bras; acerca do significado de "lembrar",
nistrar numa situação como essa, segu- Êx 2.24), i.e., Deus deixando as pessoas
rando a mão de um crente querido que aos seus próprios desígnios sem realizar
esteja afundando num sofrimento apa- nenhuma intervenção amorosa, protetora
rentemente inconsolável e defrontando-se e providencial. Isso não é (como alguns
com a eternidade sem certeza da salvação. comentaristas erradamente afirmam) um
E a maioria dos crentes também já enfren- enunciado geral da crença do AT a respeito
tou - em maior ou menor grau - o vale da vida após a morte aguardando correção
escuro onde a luz do sol não penetra e pelo NT. O salmo apenas descreve a morte
onde Jesus e seu amor, o evangelho e suas que este salmista teme, morte debaixo da
garantias, o céu e suas compensações se ira divina. Quando o NT retoma este tema, é
aplicam a outra pessoa. O salmo nos diz para tomá-lo infinitamente mais horrendo.
que o sofrimento sem alívio pode ser a 13-18 Pergunta sem resposta. O grito
nossa porção. Ele nos lembra de que ain- de socorro (13) se transforma num clamor
da não estamos no céu, mas fazemos parte por uma explicação (14), e nenhuma res-
de uma criação que geme (Rm 8.18-23). posta é concedida - assim como, até o
Ele mostra diante de nós um exemplo cla- fim, Deus não deu nenhuma explicação a
ro da fé que persevera e de nossa resolu- Jó; nós, num desatino compreensível, fa-
ta permanência no lugar de oração. Aqui zemos a mesma pergunta e obtemos o mes-
está alguém andando nas trevas, sem luz, mo resultado. Se fosse dada uma resposta,
SALMO 89 822

certamente ela seria tão complicada quan- sempre dentro da inviolável aliança daví-
to a própria situação. Pois as situações que dica (34-37).
enfrentamos na vida são desígnio e obra 38-51 O fracasso das promessas: re-
de Deus. Nas tempestades da vida, encon- correndo à oração. Três estrofes de oito
tramos as ondas de Deus (7), e, nos nossos linhas (38-41; 42-45; 46-49) e uma oração
temores, seus terrores (16,17). Essa sobera- final de quatro linhas (51,52) reproduzem a
nia que não dá explicação de seu atos, que mesma forma da seção inicial, mas o tema
é plena de infinita sabedoria, amor, poder e é diferente: as 14 afirmações da sobera-
justiça, que está, portanto, muito além da nia divina (9-14) são equilibradas por 14
nossa compreensão e vista - essa sobe- verbos que traduzem ações destrutivas di-
rania é o nosso travesseiro (SI 86) quando vinas contra um indivíduo, contradizendo
tudo são trevas (18). as promessas (38-45). A aliança foi rene-
gada e as defesas nacionais, despedaçadas
Salmo 89. "Será que ele (38-41); os inimigos estão em ascensão, e
promete e não cumpre?" o trono está arrasado (42-45); então, onde
A estrutura deste salmo conta sua história. estão todas aquelas benignidades de outro-
Ele consiste em duas seções de mesma for- ra que foram prometidas (46-49)? Senhor,
ma (1-14; 38-51), envolvendo um "núcleo" lembra-te... dos teus servos e do teu ungi-
(15-37). O v. 52 é uma conclusão editorial do (50,51).
para o Livro 3 dos Salmos. O que fazer quando grandes promessas
1-14 As promessas de Deus garanti- se tomam grandes frustrações? As promes-
das pela natureza de Deus. Três estrofes sas feitas a Davi foram claras e precisas.
de oito versos (1-4; 5-8; 9-12), com um re- Uma aliança foi estabelecida (3), jurada
sumo final de quatro linhas (13,14). O sal- perpetuamente (28,34), e depois renegada
mista se dispõe a cantar o "amor" divino (39). Ainda mais singular aqui é o amor
(1, NVI; misericórdias, ARA), que é eterno de Deus, imutável por definição: nos v.
(2), e, em particular, recorda a promessa 1,2,14,24,28,33,49, a palavra usada ex-
feita por Deus a Davi (3), de uma linhagem pressa o amor decorrente de compromis-
eterna e um trono assegurado (4). Como o so, o amor que é fruto da vontade, e não
Senhor é supremo no céu (5-8) e sobera- apenas das emoções, um amor penhorado.
no na terra (9-12), essas promessas não Essa palavra, usada no plural, funciona
podem deixar de se cumprir. Em suma, o como dois parênteses que envolvem o cor-
Senhor tem poder e supremacia (13); sua po do salmo (1,49). Isso é muito incomum
dignidade real baseia-se em sua santidade, no AT e por isso chama a atenção, pois o
expressa na teoria (justiça) e na prática (di- plural só é usado dez vezes, enquanto
reito); e tudo que ele faz é anunciado ante- o singular ocorre muito mais de 200 ve-
cipadamente (14) por graça e verdade. zes. Neste salmo, o plural, "promessas de
15-37 Os focos da promessa. Seis es- amor imutável" (1,49), chama a atenção
trofes de oito linhas: (i) o povo favorecido para a dupla promessa feita amorosamen-
(15-18); (ii) o rei favorecido: Davi é ungi- te a Davi: um trono de alcance mundial
do (19-21), recebe a promessa de domínio (22-25), prometido por amor (24), e uma
universal (22-25), tem um relacionamen- dinastia eterna (26-29,30-33), prometida
to com o Senhor como o de filho e pai, é por amor (28,33).
o maior entre os reis da terra, desfruta de Contudo, foram exatamente essas pro-
uma eterna aliança de amor, e tem a pro- messas pactuais baseadas no amor que fa-
messa de uma linhagem eterna (26-29); lharam. É mais fácil imaginar um salmista
(iii) a dinastia favorecida: disciplinada, após a queda de Jerusalém (597, 586 a.C,)
mas nunca rejeitada (30-33), firmada para e o exílio dos últimos reis (2Rs 24.8-12;
823 SALMO 89

25.6,7) ponderando, na Babilônia, sobre o numa variedade de expressões, o tema da


significado desses eventos, analisando im- perpetuidade é sublinhado. Esse é o pro-
parcialmente a realidade de um trono con- blema com que o salmista se defrontou
quistado, e não dominante, e de uma dinas- e que nos faz enfrentar também: Deus
tia atolada na areia, e fazendo a pergunta de assumiu compromissos eternos, mas eles
Balaão: Porventura, tendo ele prometido, não foram cumpridos. Como enfrentar
não o fará? A reação dele é extraordinária. essa situação?
Quando as promessas de Deus parecem ter 5-8,9-12 O argumento desenvolvido
falhado, ele as reafirma numa alegre can- nestas duas estrofes é que, visto não exis-
ção (1,2) e, em oração, derrama diante de tir poder no céu ou na terra que resista ao
Deus toda a sua tristeza pelas promessas Senhor, o que poderia impedir o cumpri-
não cumpridas (46-49,50,51). Precisamos mento de suas promessas? 9,10 O mar é
nos lembrar de que o salmista se dispôs usado frequentemente para tipificarum uni-
a cantar as promessas (1,2) quando sabia verso rebelde em que adversários inquietos
que iria registrar o seu fracasso (38-45), e se colocam contra o Senhor. Na mitologia
que fez sua oração cheia de tristeza quando pagã, esse conflito era personalizado na
ainda não havia nem sinal de solução. Mas batalha entre o deus criador, Marduque, e o
ele estava muito certo em agir assim, pois, monstro do caos, Raabe. Essa batalha ocor-
na escala de tempo de Deus, uma raiz logo reu antes da criação, para que Marduque
brotaria da terra seca (ls 53.2), e um divino tivesse inteira liberdade para realizar sua
Filho de Davi (Is 9.6,7) reinaria em vitória obra. Na Bíblia, Raabe é um cognome do
(Is 9.4,5) e justiça (Is 11.1-5; 32.1) para Egito (Is 30.7), pois o que Marduque fez
sempre (Lc 1.31-33). quando não havia testemunha (e, portanto,
Em resumo, as promessas não haviam exige um ato de credulidade para ser acei-
falhado, mas o entendimento humano a to), o Senhor fez historicamente, despeda-
respeito da escala temporal de Deus e da çando o Egito e abrindo o mar Vermelho
complexidade de seu governo mundial não (Is 51.9-11), quando havia pessoas para
foi suficiente para acompanhar o que ele ver e testemunhar o poder conquistador do
estava fazendo. O mesmo ocorre conosco: Senhor (Dt 1.30). A história põe um alicer-
as promessas nunca falham, embora o apa- ce de pedra sob a teologia.
rente atraso em seu cumprimento faça al- 13,14 Forte... Justiça... graça. Se pu-
guns caírem na dúvida (2Pe 3.4) - e isso déssemos negar qualquer uma dessas três
não vale apenas para a grande promessa da palavras, todo o problema do sofrimento
sua vinda, "pois não importa quantas pro- seria explicável pela lógica. Poderíamos
messas Deus tenha feito, elas são 'Sim' em dizer: Deus é forte e justo em tudo que faz,
Cristo". As promessas não podem falhar, mas não é sempre amoroso; ou, ele é justo e
embora nossas expectativas possam, em amoroso, mas nem sempre forte o bastante
um dado momento, ser frustradas. Quando para fazer o que deseja; ou, ele é amoroso e
isso acontece, devemos fazer como o sal- forte, mas nem sempre justo. Porém, como
mista, transformando as promessas em ele tem sempre todos esses três atributos
canção e as frustrações em oração. juntos, e todo ato de Deus é cheio de sua
2 A NVI omite "pois" no início deste força todo-poderosa, santa justiça e amor
versículo. A palavra deveria ser restaura- imutável, enfrentamos a vida com fé, e não
da, pois a canção do v. I se origina da afir- com explicações; com confiança nele, em
mação do v. 2. Quando a fé declara que a vez de confiança na nossa própria lógica.
palavra de Deus não pode falhar, a boca 18 A bem-aventurança do povo de
se enche com a canção. Para sempre (cf Deus (15,16) é explicada (17) pelo fato
v. 2,4,16,28,29,36,37). Nesses versículos, de o Senhor ser a força deles; esta força,
SALMO 90 824

por sua vez, vem do fato (18) de o rei exílio - pesa no coração do salmista. Não
escolhido pelo Senhor reinar sobre eles. só isso, mas (51) teria ele visto o rei da-
Deste modo, a perda do rei significou o vídico desfilar pelas ruas como um cativo,
fim da bem-aventurança - uma bem- com os escarnecedores zombando de cada
aventurança que não voltaria enquanto o um de seus passos? Podemos nos identifi-
rei não retomasse. 19 A um herói concedi car facilmente com essas duas orações, na
o poder, ou "ajuda contra um guerreiro" medida em que o mundo despreza a igreja
- Davi recebendo ajuda divina contra de nosso Senhor Jesus Cristo e zomba do
Golias (lSm 17.37). 25 Mar... rios, i.e., seu Nome, enquanto nós ansiamos pela re-
universalmente, os dois tipos diferentes generação e pelo reconhecimento da honra
de águas usados para expressar totali- do Nome que está acima de todo nome.
dade. 26,27 Meu pai... meu primogênito
(v. SI 2.7). 30-33 (Cf 2Sm 7.1-16). O sal-
mo recorda as promessas fundamentais
feitas a Davi. 37 Espaço, "nuvem". Só LIVRO 4
muito raramente esta palavra aparece no
singular. Em outros trechos, é sempre plu- Salmo 90. Preservando uma
ral, "nuvens". A testemunha fiel pode ser espécie ameaçada
o arco-íris (Gn 9.12-17) ou, com base no O texto hebraico de Salmos diz claramen-
v. 6, o próprio Deus incomparável. te que esta é uma oração de Moisés, e os
38-45 Embora estes versículos não comentaristas que resistem a isso mostram
mencionem especificamente a queda de uma incapacidade notável de apontar ra-
Jerusalém, eles descrevem alguma coisa zões convincentes. Nenhuma situação
maior que uma simples derrota passagei- se encaixa tão bem no salmo quanto a
ra do reino davídico. Um mero revés não de Moisés durante os exaustivos anos da
poderia ser descrito como uma quebra de alienação divina (Nm 14.34). É um salmo
aliança ou como a derrocada de uma co- belo, comovente e realista, que contempla
roa e um trono. Nada se encaixa tão bem as nossas inseguranças e nos oferece um
nestes versículos como os eventos de 597 remédio e uma esperança.
a.c. e 586 a.C., com o subsequente cati- 1,2 Um endereço fixo no tempo e na
veiro e o fim da monarquia. No v. 46, a eternidade. Estes versículos começam
longa duração da aflição também corro- com o referencial temporal em que a vida
bora essa hipótese. humana está inserida, de geração em ge-
46-49,50,51 Estas duas orações pedem ração, "geração após geração", e termina
ao Senhor para "lembrar", não como se com o ciclo infinito da vida de Deus, de
ele tivesse se esquecido, mas (como em eternidade a eternidade. Dentro desse pa-
Êx 2.24,25) para que ele permita que seu norama de tempo e eternidade, nós temos
compromisso e cuidado para com seu povo um endereço fixo. Ele "provou ser a nossa
floresçam novamente. A primeira oração morada". Unidos com ele, desfrutamos de
pede ação urgente. O salmista naturalmen- permanência. Com que sentimento Moisés
te quer viver para ver o ressurgimento do o teria dito!
reino e o restabelecimento de Sião. A se- 3-11 A espécie ameaçada. Durante
gunda oração implora por causa da aflição 40 anos, Moisés viu com tristeza o tempo
do povo do Senhor. A zombaria das nações levar embora os seus filhos, como se fos-
que destruíram a cidade e a monarquia se um rio impetuoso (3-6; Nm 14.23,29;
- e, se ele está na Babilônia, a zombaria Dt 2.14-16), e reconheceu por trás do que
diária dirigida a alguém que professa a fé via a terrível realidade da ira de Deus con-
num Deus soberano, mas está cativo no tra o pecado (7-11). Mas a verdade que ele
825 SALMO 91

expressou vale para toda a humanidade: as quatro poderosas muralhas de nosso


ameaçada pela impermanência (3-6) e ar- eterno refúgio em Deus: ele é a nossa sa-
ruinada pela ira (7-11). É pela ação de Deus bedoria (12; lCo 1.30), nosso perdão (13;
que sofremos a insegurança da transitorie- Is 55.7), nossa estabilidade por todos os
dade. É por seu decreto (Gn 3.19) que volta- nossos dias (14; 73.26), nossa renovação
mos ao pó - um destino inevitável, pois (4) (15; Rm 6.4-8).
mesmo aqueles cuja vida durou quase um 16,17 Coparticipantes da natureza
milênio (Gn 5) acabaram morrendo como divina. O salmo termina do mesmo modo
todos os outros, e para todos igualmen- que começou, referindo-se ao Senhor, "o
te a grama fresca da manhã é a vegetação Soberano" (1,17) e às gerações que passam
seca da noite (5,6). Por que isso? Por que (1,16). Ele começou afirmando que pode-
uma espécie destinada a comer da Árvore mos buscar refúgio em Deus para garantir
da Vida e viver para sempre (Gn 2.16; nossa continuidade (1), e termina orando
3.22) vira pó e dorme na morte? A palavra para que ele venha sobre nossos filhos em
pois, no início do v. 7, dá a resposta - ira sua glória (16) e sobre nós em sua "ama-
divina..furor contra iniquidades ...pecados bilidade" (17, graça). Deus não só se abre
ocultos (8), ira (9)! Será que o fato de dizer para nós (1), ele compartilha sua natureza
que a vida termina como um breve pensa- conosco (16,17). Nós, que somos levados
mento ("murmúrio", NVI; "suspiro", TB) e no fluxo das gerações, apanhados na tran-
que os dias prolongados são apenas enfa- sitoriedade da vida, na influência oculta da
do prolongado (10) é apenas o desabafo de ira divina, somos feitos co-participantes da
um espírito incuravelmente melancólico? É natureza divina (2Pe 1.2-4), em toda a sua
claro que a vida tem outros aspectos, mas, glória e beleza.
quando procuramos analisar a questão ob-
jetivamente, vemos que o denominador co- Salmo 91. Asas divinas
mum da humanidade é uma triste história e anjos da guarda
de vidas arruinadas pelo pecado e que não Alguns perigos armam ciladas para nós
têm como fugir de sua responsabilidade (3), alguns rastejam furtivamente (3,6);
diante do Deus que odeia o pecado. alguns são os nossos próprios terrores,
12-15 Preservando a espécie ameaça- reais ou imaginários, outros refletem
da. O restante do salmo é uma série de seis hostilidade (5); alguns nós encontramos
orações. É pela oração que combatemos o no curso da vida (12,13). A vida é assim.
poder desagregador do pecado; pela ora- Mas a fé simples nos coloca num lugar
ção, fugimos em direção ao Deus a quem onde contamos com forte proteção (2),
ofendemos; pela oração ocupamos nosso calor pessoal do cuidado divino, defesa
refúgio (1) nele. Era isso que Moisés fazia prometida solenemente (4) e um exército
(e.g., Êx 15.25; 17.4; 32.31,32; Nm 13- de guardiões celestiais para nos proteger
19). Para preservar a espécie ameaçada, há a cada passo (11). A própria forma como
quatro aspectos da oração: reconhecer nos- tudo isso é exposto serve para afirmar a
so tempo limitado de modo a usá-lo com nossa condição de protegidos.
sabedoria (12); clamar pela compaixão de
um Deus reconciliado (13); combater o de- AI (v. I) Tema exposto: proteção certa
clínio da vida (a madrugada de 5,6) com 8 1 (v. 2) Testemunho pessoal
uma nova manhã cheia da benignidade de C] (v. 3-8) Afirmação
Deus que não muda por todos os nossos 8 2 (v. 9a) Testemunho pessoal
dias (14); olhar para ele para que a vida seja C2 (v. 9b-13) Afirmação
tão cheia de alegria quanto, de outro modo, N (v. 14-16) Tema confirmado: proteção
seria cheia de aflição (15). Aqui estão divina
SALMO 92 826

Este é um salmo de testemunho pesso- garante proteção também carrega em si


al (2,9), mas o assunto não se encerra aqui. obrigações morais.
Um testemunho pode ser um produto da 9a Proteção encontrada. (Lit.) De
imaginação ou de um desejo muito gran- fato, tu, Senhor, és meu refúgio! Você fez
de, e, seja qual for o caso, o que vale para do Altíssimo a sua habitação.
uma pessoa pode não ser necessariamente 9b-13 Proteção no curso da vida.
aplicável a outras. Porém, aqui, o testemu- Estes versículos ressaltam os perigos en-
nho humano é envolvido (1,14-16) por um contrados em todos os teus caminhos, no
testemunho divino e confirmado pela pa- dia a dia. Quando Satanás usou estes versí-
lavra de Deus (3-8,9-13). O conjunto todo culos contra o Senhor Jesus, a resposta que
é uma forma altamente artística de expres- ele recebeu foi que a genuína confiança
sar um fato fundamentalmente importan- não exige que o Senhor prove a si mesmo,
te: que nós estamos sempre totalmente mas simplesmente descansa no cuidado de
seguros. Como um salmo como este pôde Deus (Mt 4.5-7). 12,13 O leão e a áspide
ser escrito é uma questão de conjectura. representam perigos caracterizados por
Será que um indivíduo aflito procurou um força e dissimulação, respectivamente. A
profeta, e este aplicou a palavra de Deus repetição desses substantivos pelo uso de
diretamente à necessidade dele e então sinônimos implica em "qualquer que seja
teve o privilégio de ser o agente da voz o seu disfarce".
de Deus? Ou será que o salmo é apenas 14-16 Divinas promessas de prote-
o registro de uma meditação individual a ção. As oito promessas do Senhor: res-
respeito de uma grande verdade, à luz da gate (ação interventora), segurança (pó-
teoria e da prática? Este é um salmo para lo-ei a salvo, fora do alcance do perigo),
todos os crentes, todos os dias. oração respondida, companheirismo na
1 Proteção certa. Altíssimo (Gn 14.18- necessidade, livramento (de um perigo),
22). Com que rapidez Abraão reconheceu prova de inocência (glorificarei), realiza-
que o Deus de Melquisedeque só podia ção pessoal (saciá-lo-ei), e a alegria da
ser o seu Deus - pois provara sua so- salvação. Observe como as promessas
berana exaltação na vitória! Onipotente partem de uma ação de salvamento ini-
(Gn 17.1; 28.3; 35.11; 43.14; 48.3; 49.25). cial (livrarei) e vão até o pleno gozo da
O exame dessas referências mostra que a salvação, cobrindo todas as necessidades
forma hebraica Shaddai designa o Deus intermediárias. Estas são as condições a
cujo poder é suficiente para suprir qual- serem preenchidas: a mim se apegou com
quer fraqueza humana. amor (o amor que faz querer ficar junto do
3-8 Proteção contra as ameaças amado), conhece o meu nome (vive com o
da vida. A ênfase aqui está em coisas Senhor à luz do que ele revelou sobre si
que acontecem conosco sem motivo. mesmo) e ora (ele me invocará).
Deveríamos isolar este salmo do restante
das Escrituras, se achássemos que ele pro- Salmo 92. Um dia para mostrar
mete imunidade. Aqui, como em outros de que lado se está
trechos (e.g., Rm 8.28), a promessa não é Todo este salmo gira em tomo do v. 8,
de segurança contra, mas de segurança em. uma vigorosa declaração acerca da supre-
3 Passarinheiro, "pessoa que caça com ar- ma exaltação do Senhor, que poderia até
madilhas". Perniciosa, "fortuita". 4 Penas ser traduzida por: "Tu é a personificação
(61.4; Lc 13.34). Pavês ... escudo, dois ti- da exaltação!". A partir desse centro, em
pos diferentes de proteção, simbolizando círculos concêntricos, temos, primeira-
toda proteção possível. 8 Uma implicação mente, o seu controle moral sobre o mundo
clara de que a confiança elementar que (6,7,9). Há pessoas que não se dão conta
827 SALMO 93

disso - os tolos espirituais do v. 6; mas lesco", sem o toque de Deus que produz
há aqueles que veem (em 9, eis é "veja") vida espiritual, carente de verdade revela-
a destruição (7) e a aniquilação (9) que da (Pv 30.2,3). Estulto, pessoa que nunca
aguarda os ímpios. Em seguida, vem o enxerga além da aparência superficial da
povo exaltado do Senhor (4,5,10,11). Nov. vida. 7 Erva ...florescem, uma aparência de
10, exaltas é uma palavra diretamente rela- vigor que não corresponde à sua transito-
cionada com o Altíssimo do v. 8: o Senhor riedade e ao seu destino. Serão, mais enfa-
compartilha algo que é sua característica. ticamente "estão destinados a ser". 9 Com
Somos alegres (4,5) e triunfantes (10,\ I) uma verdadeira ênfase bíblica, os ímpios
por intermédio do que ele fez. O último (7) se transformam em teus inimigos. No
círculo é o louvor fiel devido a um Deus fim das contas, o adágio de que o Senhor
assim (1-3, louvor dia e noite; 12-15, lou- odeia o pecado mas ama o pecador precisa
vor por toda a vida). As duas seções desse de correção; os que se colocarem contra o
círculo exterior enfatizam o que o Senhor Senhor descobrirão que ele se coloca pes-
é (SENHOR, nome, Altissimo, misericórdia, soalmente contra eles. 12 Justo, o que está
fidelidade... SENHOR, rocha, reto, sem in- "em ordem com Deus". Palmeira... cedro,
justiça, sem "desvio"); semelhantemente, compare com erva (7). A imagem é de dig-
as duas seções afirmam o compromisso de nidade, força, durabilidade. 13 Plantados
"proclamar"; mas, enquanto 1-3 enfocam (lit.) "transplantados", trazidos para uma
o que o Senhor é, 12-15 descrevem tam- nova posição pela vontade e trabalho do
bém a vida que desfrutamos quando esta- Jardineiro. Casa... átrios, aceitos e com a
mos "em ordem" com ele. certeza de permanecer na presença dele. 15
O título diz que este é um cântico para Anunciar, ou, mais vividamente: "inclina-
o dia de sábado e seu paralelo com temas dos a proclamar": o aumento dos anos de-
centrais de Isaías 58 confirma isso: um dia veria aumentar a determinação espiritual.
de louvor (1-3,14,15) com foco no Senhor Injustiça, desvio da norma, o antônimo de
exaltado (8); um dia para reconhecer sua retidão, "prumo". Rocha, uma metáfora
santidade e reafirmar nossa consciência do extraída de Êxodo 17.1-7.
que distingue eternamente o certo e o erra-
do (6,7,9); um dia para recordar o que ele Salmos 93-100. "Louvor
fez (4,5) e, especialmente, o que fez por de Jerusalém": Os hinos
nós (10,11). do Grande Rei
1 Bom, intrinsecamente certo e pessoal- Este grupo de salmos destaca o tema do
mente agradável. Nome, tudo o que ele reinado do Senhor. Ele reina (93.1; 96.10;
revelou a respeito de sua natureza. 4,5 97.1; 99.1); ele é rei (95.3; 98.6). Nesse
Observe aqui e no paralelo 10,11 o que é a aspecto, os salmos 94 e 100 parecem, à
verdadeira religião pessoal. Este é um sal- primeira vista, fora de compasso, mas 94.2
mo da "minha" alegria no Senhor (embora (cf 96.10-13; 98.9) usa a palavra equiva-
não esquecendo 12-15, o grupo mais am- lente de rei, juiz, e o salmo 100 conserva
plo). Me alegraste... exultarei ("...cantar de seu lugar na série não só por suas ligações
alegria", NVI), a emoção e sua expressão, com o salmo 99, mas por ter o mesmo tema
coração e voz. Feitos... obras, abrangendo que o salmo 95 (cf 95.6,7; 100.1-3). É in-
criação, providência e salvação; e mais os teressante pensar que podemos ter aqui (cf
pensamentos, a mente de Deus por trás de- a respeito de Salmos 120-134) uma pe-
les. 6 Inepto poderia ser parafraseado como quena coleção de hinos para uso, digamos,
"não-espiritual", a pessoa simplesmente na Festa dos Tabernáculos. Como essa
natural (descrita também em 49.11; 73.22). festa marcava a última colheita ao final de
O verbo relacionado significa "ser anima- cada ano (Êx 23.16; Dt 16.13), e também
SALMO 93 828

celebrava a vitória do Senhor sobre o Egito no trono. O v. 1 enfatiza a vestimenta do


e seu cuidado para com seu povo num Senhor: Revestiu-se... se revestiu... se cin-
mundo hostil (Lv 23.39-43), era fácil fazer giu, "vestiu o cinto". Como tema, a "ves-
a transição para uma celebração de adora- timenta" indica caráter e intento (e.g.,
ção do Rei (Zc 14.16). É até mesmo pos- Js 5.13-15; Is 59.16-18). O Senhor veste
sível (v. Introdução) que tenha se tomado o traje da realeza porque é e pretende agir
especificamente uma celebração anual do como rei. Por que "o mundo está firma-
Grande Rei. Seja como for, esses oito sal- do" não é explicado, mas o fato de esta
mos formam um conjunto e, aos pares, verdade estar entre o reino do Senhor (1)
compartilham características do tema do e seu trono (2) diz muita coisa. Enquanto
reinado: 93 e 94, o Rei sobre toda a terra; ele reinar, a terra permanece estável. Os v.
95 e 96, o Rei sobre todos os deuses; 97 3,4 usam os mares revoltos para retratar
e 98, o Rei no coração do seu povo; 99 e todas as forças destrutivas e a hostilidade
100, o Rei na sua própria natureza. existentes na ordem criada - sejam as
violentas tempestades em si, ou o tumulto
Salmos 93 e 94. O lugar das nações (SI 2), ou até (como pensavam
de fé e o lugar de oração os pagãos) a incessante guerra das forças
A imagem do rei com sua soberania sem espirituais do caos contra o Criador. Não
esforço (93.4) sobre as ondas revoltas mes- importa qual seja a turbulência, o SENHOR
cla-se com o trabalho do juiz (94.2), admi- nas alturas é mais poderoso. O v. 5 faz par
nistrando o mundo onde os que praticam a com o v. 2 na estrutura do salmo. No v. 2,
iniquidade... esmagam (as ondas "batem"; Deus, que é eterno por natureza, ocupa seu
"batem" e "esmagam" são análogas) o trono eterno; no v. 5, o Deus que vive em
seu povo (94.4,5), onde o governo sobe- sua casa no meio do seu povo falou sua
rano é exercido segundo a forma comum palavra imutável e faz da santidade sua
como a providência divina organiza a vida exigência imutável.
(94.10,12) e ainda aguarda sua manifesta- 94.1-23 O rei provado. "Todos admi-
ção final (94.15,23). A realidade espiritual tem" - diz Calvino - "que Deus reina,
da divina majestade real (93.1) enfrenta a mas são poucos os que usam esse escudo
usurpação terrena dos soberbos (uma pa- contra as forças hostis do mundo". Com
lavra relacionada, 94.2) e de um trono es- essas palavras, cruzamos a ponte entre os
tranho. Em calma e reverente solenidade, salmos 93 e 94. Nossa fé repousa em sua
o povo do Senhor aclama o seu reinado inabalável soberania (SI 93), mas na vida
(SI 93) e no burburinho da vida, eles veem enfrentamos muitas dificuldades (4-7) e
como ele governa o mundo (SI 94). oposição, na forma de palavras (4), atos
93.1-5 O Rei aclamado. A afirmação (5,6) e filosofia de vida (7) que não ne-
dos v. 1,2 se transforma na imagem dos v. cessariamente nega a existência de Deus,
3,4, e sua solene consequência para o povo mas pensa nele como alguém inativo, não
do Senhor (5); os v. 1,2 mostram um mo- intervencionista e irrelevante. Podemos
vimento descendente, partindo do Senhor enfrentar oposição, mas não estamos sem
seguramente entronizado até a consequen- conforto: existe: (i) O Deus Criador que
te segurança do mundo que ele governa; está ciente de tudo (9), que não abdicou
os v. 3,4 se movem para cima, partindo da de seu trono de governo moral do mundo
turbulência das "forças" terrenas para o se- (10) e que conhece até os fatos mais ocul-
reno poder do trono exaltado de Deus. A tos da vida humana (11). Só os estúpidos
terra é um lugar seguro para se viver por- e insensatos (8, cf 92.6) poderiam não
que ele reina; e mesmo quando a turbulên- estar cientes dessas verdades; (ii) O Deus
cia atinge seu nível mais alto, ele continua da providência (12-15): as dificuldades
829 SALMO 95

da vida têm um propósito moral (12,13), do Senhor com os "deuses" (95.3; 96.4,5),
a vida repousa numa confiança essencial e esta é sua marca registrada. Entretanto,
na fidelidade divina (14), e nos conduz esses salmos não representam um afas-
a uma sociedade justa vindoura na qual tamento maior do monoteísmo do que a
haverá liberdade para se viver retamente afirmação de Paulo sobre muitos deuses e
(15); (iii) O Deus que cuida com carinho muitos senhores em ICoríntios 8.5. Muitas
(16-19): a vida pode, de fato, ser solitária, forças espirituais estão por aí neste mun-
precária e confusa, mas o Senhor está do do decaído - c existe até um "deus deste
nosso lado, seu amor é o nosso sustento século" (2Co 4.4) - e como elas também
e o seu consolo está no nosso coração; exercem sua influência enganadora sobre o
(iv) O Deus da vitória certa (20-23): pois povo do Senhor, o lembrete contido nestes
como juiz da terra (2), ele não faz acor- salmos de que Deus é o rei supremo (95.3)
do com os poderosos do mundo que são e que os "deuses" não são nada (96.4,5)
corruptos, moralmente pervertidos e mal- permanece relevante.
tratam os outros. Ao contrário, da mesma O único Deus e os deuses. Estes sal-
forma que ele hoje se mostra um refúgio, mos são exemplos do uso da criação como
no final executará pessoalmente seu juízo evidência da existência de um único Deus.
rigoroso e destrutivo. O salmo 94 conclui Comparados com o Criador, outros "deu-
(22) com a mesma nota de descanso na ses" são (não'lôhim, mas)'lilim (96.5),
proteção da soberania divina que se ouvia imitações não-genuínas. Essas duas pala-
no salmo 93: a certeza de que ele está no vras hebraicas têm semelhança fonética
controle, de que podemos buscar refúgio como numa rima toante. Eles são "não deu-
num Deus como esse; mas o que dá coe- ses", coisas que não existem. Já Deus tem
são ao salmo 94 é a oração para que Deus o controle soberano sobre a terra (95.4,5).
dê o pago (2) e a confiança de que ele faz No pensamento pagão, as profundezas
recair, "retribui" (23). A fé se apoia num eram governadas por Moloque, as alturas
Deus soberano (SI 93), mas é "pela oração dos montes por Baal, e o mar por Tiamat.
que combatemos" em face de um mundo Mas, na Bíblia, tudo está nas suas mãos e
hostil e agressivo. A oração é nossa pri- é dele por direito de criação.
meira resposta prática à soberania divina:
se ele é, de fato, o Senhor do salmo 93, Salmo 95. O único Deus e seu povo
nada tem maior prioridade do que buscar O Salmo 95 consiste em:
refúgio nele diante das turbulências da
vida (94.1-3). AI (v. 1,2) Um chamado à adoração com
alegria
Salmos 95 e 96. Alegres B 1 (v. 3-5) Explicação da grandeza de
novas de salvação Deus
No salmo 95, a igreja está cantando e N (v. 6) Um chamado à adoração com re-
adorando; no salmo 96, cantando e teste- verência
munhando. O salmo 95 se restringe intei- B2 (v. 7a-c) Explicação dos nossos pri-
ramente à comunidade onde o Senhor é vilégios
conhecido como Rochedo, Rei, Criador, N (v. 7d) Um chamado à obediência
Pastor e aquele a quem a obediência é B3 (v. 8-11) Explicação de suas sérias
devida. No salmo 96, a igreja ainda está implicações
cantando, mas sai imediatamente para tes-
temunhar sobre o único Deus, que é digno Para seu povo, o Senhor é: (i) Salvador
de todo louvor e virá como juiz universal. (1), segundo o modelo do "Rochedo sal-
Salmos 95 e 96 falam da relação do reino vador" de Êxodo 17.1-7, confiável e ativo,
SALMO 96 830

a viva fonte de vida, salvando da morte. Os que se alegram no Deus da salvação


(ii) Pastor (6,7). Que nos criou não apon- (95.1) precisam contar ao mundo as boas
ta aqui para a criação, mas para o modo novas dessa salvação, dizendo bendizei o
como o Senhor fez um povo para si. Eles seu nome (2), i.e., convidando o mundo
estão seguros do compromisso de Deus a corresponder ao que o Senhor revelou
para com eles: nosso Deus, não porque o acerca de si mesmo, a entrar na sua presen-
tenhamos escolhido, mas porque ele assu- ça (na beleza da sua santidade) através das
miu um compromisso conosco; são provi- oferendas que ele exige (7-9) - respon-
dos por ele, segundo seu plano: pasto (v. dendo ao seu nome (8, veja comentário do
Nm 10.33,34); cuidados pelo toque de sua v. 2), entrando nos seus átrios (8), seguros
mão. (iii) Legislador (7-11). É aos salvos em sua presença (9) e adorando-o com o
que o Senhor dirige seu chamado por obe- devido temor. Mas as boas novas também
diência (7), e ele leva sua lei a sério e apli- são de expectativa (11-13). Julgar significa
ca a disciplina se o povo desobedece, pois "pôr todas as coisas no lugar certo" - céu,
uma geração inteira (10) perdeu a bênção terra e mar, a natureza e a criação humana.
por causa da desobediência (Hb 3.12-19). Nenhum aspecto do que ele criou no início
Eles não deram ouvidos à palavra de Deus, é esquecido na salvação final.
não inclinaram o coração para fazer a sua
vontade, nem aprenderam sua lei; conse- Salmos 97 e 98. Justiça visível,
quentemente, foram privados da boa-von- alegre salvação
tade e do descanso de Deus. O incidente A ligação entre o reinado do Senhor e a
específico mencionado em (8) ocorreu em santidade ou justiça foi estabelecida discre-
Êxodo 17.1-7, e é usado como um exem- tamente nestes salmos (93.5; 94.15,21,23;
plo de falta de fé. O povo tinha evidências 95.7; 96.9,13), mas agora chega a um clí-
mais que suficientes de que podia confiar max num trono de justiça (97.2), numa
que o Senhor proveria em qualquer situa- proclamação de justiça (97.6), num cha-
ção (Êx 12-16), mas, ao deparar com um mado à justiça (97.10-12), numa revelação
vale evidentemente sem água, eles troca- de justiça passada (98.2) e vindoura (98.9).
ram a confiança pela dúvida, do mesmo Estes salmos não fazem segredo do caráter
modo que os fariseus do NT fecharam os aterrador da justiça do Senhor (97.2-5), do
olhos a tudo o que Jesus realizou e se re- rigor de suas exigências (97.10), do desti-
cusaram a crer enquanto não recebessem no dos idólatras (97.7); contudo, sua nota
outro sinal! predominante é a de alegria (97.1,8), can-
tando e gritando (98.1,4,7). Como alegria e
Salmo 96. O único Deus juízo, canções humanas e justiça divina po-
e o seu evangelho dem se misturar dessa maneira? A resposta
O salmo 96 consiste em: é que a salvação foi realizada (98.1-3): o
Deus do santo nome (97.12), que convoca
AI (v. 1,2a) Um chamado para que o mun- seu povo à santidade, é o Deus do braço
do adore santo (98.1), que lhes traz a salvação.
B 1 (v. 2b-3) Uma ordem para a igreja
C' (v. 4-6) Uma explicação do úni- Salmo 97. Alegria diante das
co Deus exigências de santidade
N (v. 7-9) Um chamado para que o mundo Toda a terra e Sião compartilham da mes-
adore ma alegria (Regozije-se ... alegrem-se... se
B2 (v. 10) Uma ordem para a igreja alegra ... se regozijam) - e isso apesar do
C2 (v. 11-13) Uma explicação do poder terrível e destruidor da justiça de
Deus que virá Deus (2-7) e das exigências que ele faz
831 SALMO 99

(9-12): pois o contraste é total entre os e terra, rio e montanha - toda a ordem
inimigos e os que amam a Deus, entre des- criada - juntam-se aos povos do mundo
truição e preservação, entre a glória que para aclamar o Deus que vem julgar a ter-
todos podem ver e a luz de que só os justos ra (9), consertar todas as coisas que há no
desfrutam, o triste destino dos idólatras e a mundo. 1 Maravilhas, coisas provenientes
alegria dos justos. 2 Nuvens etc. O Deus do do reino sobrenatural - como o nome
Sinai (Êx 19.16-19). Justiça ejuizo expres- "Maravilhoso" (Is 9.6; cf Gn 18.14 ["di-
sam santidade (ls 5.16): justiça é santidade fícil" = maravilhosa]; Jr 32.17). Destra...
personificada em princípios corretos; juízo braço, ação pessoal direta sustentada por
é santidade expressa em decisões e ações força pessoal suficiente. 2 Salvação...
corretas. 3 Fogo. Santidade divina em sua justiça. Da mesma forma que o Senhor é
agressividade destrutiva contra o pecado justo quando julga (97.2-5,6,7), ele é justo
(Êx 3.3-5; 19.16-18,20; cf Lv 9.24). Foi quando salva. Sua salvação realiza tudo
o fogo do Sinai que acendeu o primeiro aquilo que sua santa justiça exige. 3 A
holocausto arônico, e era esse fogo que sequência é importante: é no processo do
queimava perpetuamente no altar: santi- amor por Israel que o mundo é salvo. 7-9
dade satisfeita por uma oferta substitutiva. Observe o mesmo propósito ambiental que
4 Estremece, não tanto como criação dian- aparece em 96.11-13. A motivação básica
te do Criador, mas principalmente como do ambientalismo bíblico é que o Criador
terra pecaminosa diante do Santo (Jz 6.22; ama sua criação (Gn 1.31), não apenas o
13.22; Is 6.5). 7 Ídolos, os "não deuses" de aspecto humano, mas o conjunto da cria-
96.5. 10 Santos, termo relacionado com a ção. E, na consumação, quando o Senhor
palavra que expressa o imutável amor de Jesus retornar, os novos céus e terra serão
Deus, significa "os que são amados por a eterna prova desse amor (Ef 1.3-10).
ele e retribuem esse amor". 11 Difunde-se.
Heb.: "é semeada para", i.e., plantada em Salmos 99 e 100. O Senhor,
santidade para que eles ceifem como uma santo e bom
colheita. Em toda situação existe uma jus- O salmo 99 faz uma convocação ao lou-
tiça esperando para ser desfrutada. 12 Seu vor e à adoração; o salmo 100 responde a
santo nome, "a lembrança/o lembrete de ele, na medida em que todas as terras se
sua santidade" (cf Êx 3.15). apresentam, entram e louvam. Juntos, os
dois salmos enfocam o caráter do Senhor
Salmo 98. Alegria baseada na (v. a introdução aos salmos 93-100): san-
finalização da obra de salvação to (99.3,5,9), bom, misericordioso e fiel
O dilema do salmo 97 é explicado. Na (100.5). O privilégio do povo do êxodo
concretização da salvação de Israel, toda a (95.7) tornou-se agora o privilégio de pes-
terra vê a sua salvação (3). O salmo se di- soas do mundo inteiro (100.3).
vide em três seções, marcadas por cantai
(1), celebrai (4) e ruja (7), que abrangem, Salmo 99. Um chamado à adoração
respectivamente, a salvação realizada e o 1-3 A graça do Santo. O salmo 99 se di-
louvor do Salvador (1-3), a alegria mun- vide em três partes pelo refrão da "santida-
dial pelo Rei do mundo (4-6) e o louvor de" (3,5,9). Esta primeira seção está cheia
do Senhor vindouro que consumará to- da grandeza do Rei Santo, diante de quem
dos os seus propósitos justos (7-9). Sua os povos tremem e a terra se abala. Mas
salvação foi alcançada (1, alcançaram), embora seja grande e tremendo, "digno de
é conhecida e vista; toda a terra contri- ser temido", ele está em Sião, habitando
bui com vozes e instrumentos para exal- entre o seu povo, entronizado no lugar da
tar perante o SENHOR, que é rei (6). Mar graça, pois estando entronizado acima dos
SALMO 100 832

querubins, seus pés repousam na "sede da plina sem perdão partiria o nosso coração.
misericórdia" ~ onde ele fala ao seu povo Juntos, os dois garantem que, embora pos-
(Êx 29.42-46) e faz propiciação por seus samos considerar o perdão como certo, não
pecados (Êx 25.17-22; Lv 16.15ss.). Sua podemos jamais tratar o pecado como algo
grandeza é a do Deus da graça. sem importância.
4,5 A lei do santo. O Rei ama sua lei,
estabelece-a (entre o seu povo), e deu o Salmo 100. O povo de Deus
exemplo com seus próprios atos. Em rela- na presença de Deus
ção à sua própria natureza, o v. 4a diz li-
teramente: "A força do rei ama a justiça" AI (v. 1,2) Convite tríplice: celebrai, servi,
~ i. e., o poder onipotente do rei divino apresentai-vos
está totalmente absorvido no que é certo. B! (v. 3) Afirmação tríplice: Deus ... nos
Nós somos chamados, de forma pouco li- fez... dele
sonjeira, de Jacó, aquele que, embora ti- N (v. 4) Convite tríplice: Entrai... rendei-
vesse recebido um novo nome e uma nova lhe graças... bendizei
natureza (Israel), vivia ainda muitas vezes B2 (v. 5) Afirmação tríplice sobre a na-
como o velho Jacó. A lei não é adaptada tureza de Deus: Bom... misericór-
para se adequar às limitações da nossa ca- dia... fidelidade
pacidade, mas é como se segurasse diante
de nós o espelho da vontade perfeita de Três verbos de proximidade crescente
Deus. Entretanto, os que se defrontam as- (1,2) nos levam primeiro a aclamá-lo (ce-
sim com a obrigação da lei divina também lebrai), depois a entrar em seu santuário
vivem constantemente debaixo da graça, em adoração e, finalmente, a descansar
pois é "Jacó" que é convidado não só a (apresentai-vos diante dele) em sua pró-
louvar, mas a prostrar-se ante o escabelo pria presença. Nós fazemos isso com jú-
de seus pés, o trono de misericórdia. bilo, alegria e cântico porque sabemos
6-9 A comunhão do Santo. Moisés, que o divino Senhor nos fez para si, e que
Arão e Samuel não são mencionados como pertencemos a ele, como as ovelhas de um
privilegiados, mas como típicos daqueles pastor amoroso.
entre os quais eles serviam. O salmo os Mais uma vez, três palavras de inti-
usa para exemplificar a caminhada pessoal midade cada vez maior (4) nos levam até
com Deus: (i) orando e recebendo respos- ele: as portas, os átrios e a realidade de um
ta (6): a principal marca do povo de Deus Deus conhecido pelo nome. Nosso louvor
é o seu relacionamento com ele por meio agradecido é motivado pelo que ele é (5):
da oração (Dt 4.7; SI 65.2; 138.1-3). Os completo em si mesmo e absolutamente
verbos implicam que "eles invocavam bom, em sua atitude imutável para conos-
constantemente, e ele sempre respondia"; co, em sua misericórdia e em sua totalfide-
(ii) ouvindo e obedecendo (7): o povo do lidade, comprovada na nossa experiência
Senhor vive pela verdade sobrenatural, a de vida.
palavra de Deus; (iii) marcada pelo perdão
e castigo (8): perdoador, "que leva o pe- Salmo 101. O rei: um espelho
cado", remete a Levítico 16.22 e antecipa do verdadeiro
Isaías 53.12 e João 1.29. Mas há também A voz que fala aqui deve ser o próprio rei
o castigo (severo) dos maus atos, porque contemplando sua importante função, pois
perdão sem castigo nos faria complacen- quem mais poderia assumir o compromis-
tes, e castigo sem perdão nos levaria ao so de realizar a tarefa de eliminar os ímpios
desespero. Perdão sem disciplina nos da nação (8)? O salmo é estruturado em
transformaria em crianças mimadas; disci- estrofes. Nas três primeiras (I,2b; 2c,3b;
833 SALMO 102

3c,4), o rei enuncia os padrões pessoais pode confiar" e o que (como ele) "anda no
que ele se compromete a seguir; nas três caminho da integridade".
seguintes (5, 6, 7), ele estabelece os pa- 8 Vida pública. O cenário agora é
drões que exigirá das autoridades da corte; a terra e a cidade onde o rei, como Juiz
na última estrofe (8), ele se volta para os Presidente do Supremo, é responsável pe-
deveres públicos de seu cargo como chefe los padrões públicos, e não menos pelo
do judiciário. "castigo dos malfeitores". Ele, que per-
1-4 Compromissos pessoais. As três tence ao Senhor (l), jura solenemente
estrofes desta seção abrangem, respecti- agir fielmente em público, nos negócios
vamente, a vida do rei com o Senhor, sua do Senhor. Manhã após manhã. É sua pri-
vida no lar e a vida de santidade pessoal. meira prioridade, um verdadeiro Moisés
1 O Senhor é caracterizado por bondade, (Êx 18.13). Destruirei. Nem os ministros
fidelidade amorosa imutável e justiça, da coroa têm imunidade ou privilégios a
a verdadeira sabedoria que pode tomar esse respeito. A lei vale tanto para o públi-
sempre a decisão certa. O rei canta esses co quanto para a corte.
atributos divinos como alguém que se de- Não podemos ignorar as lições deste
Iicia com eles. 2 Caminho da perfeição, vigoroso salmo. Ele contesta a ideia tão
um "caminho"/estilo de vida que mostra difundida de que, desde que um ministro
total integridade. Quando virás ter comi- de estado faça seu trabalho direito, sua
go? Um apelo para que o Senhor venha vida pessoal é problema dele. Mas Davi
dar apoio companheiro ao rei. Em minha pensava diferente: seus deveres reais co-
casa refere-se aqui ao ambiente doméstico meçavam em sua própria pessoa, casa e
como o primeiro lugar em que ele mostra- padrões de vida. Se ele não fosse confiá-
rá (caminho) um coração íntegro (coração vel na vida privada, que garantia haveria
sincero). 3 Injusta, provavelmente uma de sua integridade pública? Mas embora
combinação de "indigno" e "nocivo", i.e., Davi pensasse assim, quão longe ele ficou
alvos indignos que, ao serem alcançados, de seus próprios padrões! Seu lar foi cená-
destroem. Olhos. O órgão do desejo, o que rio de sua queda mais trágica, e seus olhos
é desejado e se toma nosso alvo. O rei pro- foram a causa dessa ruína (2Sm 11.2). A
mete que, em casa, suas emoções e objeti- administração pública da justiça foi o pon-
vos serão irrepreensíveis. O proceder dos to onde o descontentamento público abriu a
que se desviam. Talvez mais literalmente: porta para a grande rebelião (2Sm 15.1-6).
"atividade envolvendo decadência". O rei Consequentemente, como todos os salmos
almeja os mais altos padrões de santidade. que falam do rei, existe aqui um ideal que
4 Esses padrões devem se aplicar também expõe a imperfeição de Davi e seus suces-
ao coração e à mente (não quero conhecer sores e clama pelo perfeito Davi vindouro.
é, Iit., "dar reconhecimento pessoal a").
5-7 Padrões na Corte. O cenário é de- Salmo 102. Pedido recusado,
terminado por habitem comigo, me servirá, oração respondida
permanecerá ante os meus olhos. A casa Não existe oração não respondida. Às ve-
(7, cf 2) é agora a corte real onde, tendo zes, a resposta é "não", pura e simples-
o rei como chefe executivo, outros reali- mente, quando, à luz da perfeita sabedoria,
zam seu serviço. (i) Negativamente (5,7): nosso pedido não passa de um absurdo.
o rei exclui o indivíduo egoisticamente Muitas vezes, a resposta é "ainda não",
ambicioso, pronto a destruir outros com quando nossa escala de tempo está defa-
insinuações, o arrogante, o trapaceiro e o sada em relação a do Senhor. Ah, se Elias
que falta com a verdade. (ii) Positivamente soubesse! Quando Elias pediu para morrer
(6), ele quer osfiéis, "aqueles em quem se (lRs 19.4), seu pedido foi recebido no céu
SALMO 102 834

com um sorriso e as palavras: "Não seja completa do favor de antes (elevaste) para
tolo. Você não vai morrer!". Este salmo se a humilhação atual (abateste).
encaixa nesses parâmetros. A resposta ao No poema central do salmo (12-22), ele
pedido do salmista, de que pudesse viver fala demoradamente a respeito da grandeza
na terra para ver o que desejava, foi "Não" do Senhor e da glória de seus propósitos.
(23,24); a resposta para sua certeza de que Este também é um poema com um pivô.
já havia chegado a hora de ver sua oração Ele começa com o SENHOR entronizado para
atendida foi "Ainda não"; a resposta para o sempre (12) e termina com o SENHOR ado-
que ele realmente pediu em relação a Sião rado por todos os povos (22); os v. 13,21
foi: "Não seja tolo! Espere e verá!". põem o foco em Sião, a cidade da graça de
Não se sabe quem foi o autor nem Deus e de seu louvor vindouro; os v. 14,20
quando viveu. Muitos comentaristas inter- compartilham o tema da compaixão. Seus
pretam pedras e pó (14) como a destruição servos têm uma preocupação egoísta em
de Jerusalém por Babilônia, e atribuem o relação à ruína de Sião, mas a compaixão
salmo ao período do exílio. Mas, até onde do Senhor abrange a terra carente; os v.
se sabe, os exilados na Babilônia não eram 15,19 compartilham o tema do SENHOR e da
prisioneiros nem estavam sob sentença de terra: a terra inteira ainda irá reverenciá-
morte (21) - de fato, as condições eram lo (15), mas isso acontecerá em função do
bastante toleráveis (Jr 29) e, no final, so- seu interesse em identificar e atender suas
mente uma minoria queria ir embora necessidades; os v. 16,18 afirmam que o
(Ed 1). Portanto, é difícil ver o autor como SENHOR edificará Sião, estará presente pes-
um dos exilados; mais fácil é situá-lo numa soalmente em glória e criará um povo para
das crises anteriores, quando a cidade foi o seu louvor; e o pivô (17) atribui toda essa
atacada e ele viu seus concidadãos serem glória à oração respondida.
levados para a incerteza da servidão. De O Senhor realiza seus excelentes e in-
qualquer modo, ao enfrentar uma suposta falíveis propósitos por meio das orações
morte prematura (23,24) e desejando ar- do seu povo. A passagem abrupta da ne-
dentemente ver Sião restaurada em toda a cessidade humana (3-11) para a glória
sua glória, como centro da terra (12-22), ele divina (12-22) é típica dos salmos (e.g.,
compôs esta poderosa oração. Na verdade, 74.1-11,12-17). Então, como agora, o
ele é o aflito (oprimido, triste, 6-8) do títu- modo de lidar com as cruéis pressões da
lo, abatido, sentindo faltarem suas forças, vida é "olhar para Jesus": lembrar-nos no-
mas ele conhece um Deus a quem pode er- vamente da visão de Deus (12,22), de suas
guer sua angústia (suas "aflições"). intenções (13-16,18-21) e do poder e lugar
Ao clamor de abertura, em que ele pede da oração (17).
para ser ouvido (1,2), segue-se um poema Mas o salmista também fala por nós de
delimitado por dois parênteses (meus dias, outra forma: ele sente que o tempo que lhe
3,11) que anunciam seu tema. Observe a resta está sendo encurtado; sua vida está
estrutura desse poema, construído em toruo sendo tirada prematuramente, lit.: "Ele
de um pivô: v. 3,11, a vida em rápido de- rebaixou minha força no caminho" (23).
clínio; v. 4,5,9,10 (ligados pela referência Eu ainda estava percorrendo o caminho
ao pão) descrevem seu desânimo diante da vida com vigor quando a ação divina
da vida (4,5) e atribuem a causa à ira di- me enfraqueceu. Nessa circunstância, ele
vina (9,10); o pivô (6-8) destaca a solidão, recorreu à oração (24), (lit.): "Não me le-
dia e noite, e o isolamento entre inimigos. ves para cima" (cf 2Rs 2.1,11). Como a
Ele não confessa nenhum pecado, mas dei- vida de Deus é diferente da nossa! Será
xa subentendido que foi apanhado numa que Deus, sendo eterno, pode realmente
inexplicável ira de Deus, uma mudança avaliar o quanto a brevidade da vida nos
835 SALMO 103

atinge quando sentimos, como Moisés minha vida; a conclusão correspondente


(Dt 3.23,24), que só começamos a remar (19-22) fecha um parêntese em tomo do
nas águas rasas do plano divino e deseja- salmo a respeito dessa nota pessoal, mas
mos ardentemente ver a sua consumação? seu propósito é nos elevar às alturas, de
É claro que ele estava confiante que onde podemos vislumbrar toda a realidade,
Deus seria fiel aos seus propósitos e que, espiritual e física, e adorar o único Senhor,
quando a consumação ocorresse (28), os que é o Rei eterno.
filhos dos teus servos estariam lá, desfru- 1-5 As bênção pessoais do Senhor. 1,2
tando dos beneficios e habitando na pre- Bendize tcf. 20-22) é derivada da peculiar
sença dele. O Deus eterno é eternamente o palavra "Bênção". Quando o Senhor nos
mesmo (27). "abençoa", ele examina nossas necessida-
Mas, e quanto a mim? Neste ponto, o des e isso faz com que ele reaja de forma
Eterno sorriu: "Não seja tolo! Ah, se você correspondente; quando nós "bendizemos"
soubesse!". Pois - mesmo sem saber o Senhor, examinamos suas qualidades ex-
- aquelas palavras que seu servo dirigiu a traordinárias e agimos também de forma
ele, já quase perdendo as forças, foram as correspondente. Santo nome. Nós "bendi-
mesmas que o próprio Senhor dirigiu a seu zemos" o Senhor antes de contar os seus
Filho (Hb 1.10-12) quando juntos planeja- benefícios. Tudo que ele faz vem de quem
ram uma consumação muito mais extraor- ele é (nome) e do que ele é (santo): ele nun-
dinária do que a desejada pelo salmista: de ca age fora do que revelou a respeito de si
que sua própria experiência de fraqueza, mesmo e do que ele é. Beneficios, melhor
sofrimento, inimizade - e até mesmo da "suficiências" - o verbo correspondente
ira de Deus - seria recapitulada quando o no v. 10 (retribui) significa "agir integral-
Filho assumiu a nossa carne e levou nossos mente". 3 Ele perdoa e sara, embora, como
pecados, fazendo vir o reino que não pode as Escrituras têm o cuidado de apontar,
ser abalado e a verdadeira Sião celestial não paralelamente: em 2Samuel 12.13-23,
(Hb 2.9-18; 4.15; 5.7,8; 9.11-14; 12.22-24, o perdão foi instantâneo, a cura protelada;
26,27). Será que, ao ver as situações pelas pecado e enfermidade foram igualmente
quais passou e as palavras que disse à luz levados por Jesus (Mt 8.16,17). Mas, do
do Filho de Deus, o salmista não se sentiu mesmo modo que nós, embora perdoados,
feliz pelo fato de o Senhor ter recusado seu ainda sofremos o incômodo do pecado
pedido, mas ouvido sua oração? nesta vida, a doença continua sendo nosso
quinhão, segundo a vontade soberana de
Salmo 103. "Teu Deus é Rei, Deus, até o dia em que toda incapacidade e
teu Pai reina" toda enfermidade moral cessarão, quando
A combinação do cuidado paternal imu- estivermos no céu. 4 Redime, age como o
tável com o governo soberano eterno é a resgatador que assume a responsabilidade
ênfase característica deste salmo. Os ver- por todas as nossas necessidades. Cova,
sículos centrais (6-18), delimitados pela não apenas uma metáfora dos perigos mor-
justiça divina, estão repletos dos atributos tais desta vida, mas também uma indicação
do Senhor, como graça, compaixão, paciên- de uma temível possibilidade na vida futura
cia, longanimidade, perdão e paternidade, (cf 49.7-9,13-15). Graça e misericórdia. A
mas, acima de tudo, "amor" (A2 J, v. 4; primeira ("bondade", NVI; "benignidade",
"bondade", NVI; "benignidade", ARC; gra- ARC, T8) é o amor centrado na vontade, o
ça, ARA) - o amor que fala de seu compro- amor de compromisso, imutável; a segun-
misso conosco, sua fidelidade imutável. O da é o amor do coração, inconstante e emo-
salmo abre (1-5) com uma nota pessoal: cional. 5 Velhice. Esta palavra é duvidosa,
como esses atributos de graça agiram em mas provavelmente deve ser interpretada
SALMO 104 836

como "tua duração"/"enquanto viveres". especificamente pai junto com o verbo "ter
Águia, uma imagem de uma força incansá- compaixão" (cf o uso do amor matemo,
vel e elevada (1s40.30). Is 49.15; e, por sua intensidade emocional,
6-18 A natureza amorosa do Senhor. lRs 3.26).
Este poema tem um pivô no v. 11, com sua 19-22 O trono eterno do Senhor. Qual
afirmação de ofuscante, dominante (gran- é a reação apropriada diante daquele que
de é traduzido por "predominaram" em domina sobre tudo? A resposta de toda a
Gênesis 7.24), "eterna" misericórdia. O esfera angelical, celestial e cósmica é:
salmo chega ao tema central por meio de "Nós fazemos o que ele quer" ~ suas or-
pares de degraus: (i) os v. 6 e 17,18 con- dens e sua vontade. Então, o que eu devo
firmam ajustiça do Senhor, i.e., seu rígido fazer? Se eu realmente reajo às qualidades
compromisso com sua própria natureza e extraordinárias do Senhor da maneira cer-
propósitos justos: ele nunca faz conces- ta, como indicam os v. 1-5, não devo tam-
sões em sua santidade ou relaxa seus pa- bém obedecer à sua palavra?
drões para exercer seu amor. A justiça é
o selo de todas as suas ações. Aos olhos Salmo 104. Rapsódia da Criação
humanos, muitos erros ficam sem corre- A pompa de "Bendize ao Senhor, Todo-
ção, e opressões não são eliminadas: o v. Poderoso, Rei da criação", comparável
6 diz que o Senhor cuida para que isso não com a exuberância de "Todas as criaturas
aconteça (Gn 18.25); e motivado por sua do nosso Deus e Rei", captura muito bem a
misericórdia, o Senhor cuida para que esse relação entre Gênesis 1 e o salmo 104.
direito prevaleça sobre os que vivem em Este salmo transforma em canção a ver-
obediência dentro de sua aliança (17,18); dade da criação e em maravilha e louvor
(ii) os v. 7,8 e 14-16 contrapõem o que o a teoria ambiental. A sequência do salmo
Senhor manifestou e o que ele conhece. confere com Gênesis 1, e podemos ima-
Podemos ter certeza de que o v. 6 é verda- ginar um poeta meditando naquela grande
deiro por causa da revelação que Deus fez manifestação do Criador e sua obra, e dan-
a Moisés a respeito de si mesmo, ou seja do asas à imaginação.
(cf Êx 34.6), de que ele se comove conos- Existe um amplo paralelo estrutural
co (misericordioso), nos ajuda e socorre entre os dois trechos. O salmo começa
apesar de não merecermos (compassivo), com um prólogo, uma convocação ao lou-
refreia sua ira santa (longânimo) e tem um vor individual e adoração (1), e termina
estoque abundante de "benignidade" (ARe; com um epílogo de adoração e louvor in-
assaz benigno, ARA) que não muda nunca. dividual (31-35). No meio, o corpo do sal-
Ele se revela assim porque conhece a nos- mo segue Gênesis I. Com 2, cf Gênesis
sa fraqueza e transitoriedade (14-16); (iii) 1.3-5; com 3,4, Gênesis 1.6-8; com 5-
os v. 9,10 e 12,13 são os lados positivo e 13, Gênesis 1.9,10; com 14-18, Gênesis
negativo do modo como o Senhor lida com 1.11-13; com 19-24, Gênesis 1.14-19;
o nosso pecado. 10 Pecados, faltas espe- com 25,26, Gênesis 1.20-28; com 27-30,
cíficas; iniquidades, a perversão da nossa Gênesis 1.29-31.
natureza interior. 12 Transgressões, rebe- Um aspecto interessante do modo como
lião intencional contra a vontade revelada este salmo apresenta seu tema é a inespera-
de Deus. O v. 9 indica que Deus, como o da alternância entre as formas com "tu" e as
Juiz (repreende é uma linguagem jurídi- formas com "ele": "tu", 1,6-9,13b,20,24-30;
ca), está exercendo uma função transitória "ele", 2-4,1O-13a,14-19 (lit. "ele fez a lua
em seu relacionamento conosco, enquanto para as épocas"), 31-35. Em sua maioria,
o v. 13 revela que sua paternidade é per- essas mudanças ocorrem em pontos em
manente. Este é o único versículo que usa que o salmo passa para outra seção, mas
837 SALMO 104

não têm nenhuma regularidade observável. Mas ele também é o Cavaleiro das nuvens
Não parece possível ver aqui evidência al- acima de nós, e nos rodeia por todos os
guma de canto antifonal. A questão central lados no vento (3). Além disso, as forças
é que o Criador é, ao mesmo tempo, "ele" invisíveis da ordem criada cumprem a sua
e "tu", um Deus observado em suas obras e vontade, assim como as forças visíveis,
também conhecido pessoalmente. seja o agradável calor de uma fogueira ou
Outro ponto interessante do salmo o terror destruidor de uma bola de fogo.
(embora não possa ser expresso facilmen- Os v. 5-9 aplicam as seguintes imagens do
te na tradução) é que os verbos utilizados Criador em relação à criação: ele projetou
estão ora no tempo "perfeito" hebraico (o sua segurança, determinou sua condição
que está fixo, estabelecido), ora no "im- (Gn 1.2) e, simplesmente usando a palavra,
perfeito" (o que é regular, repetitivo), ora organizou-a em sua forma predeterminada
no particípio (uma situação imutável). Os e duradoura.
verbos no perfeito expressam a perma- 10-23 Criador e criação: criação orga-
nente grandeza e majestade de Deus; a nizada para sustentar a vida. Os v. 10-13
finalidade da obra da criação e sua forma (contidos entre dois verbos,jàzes rebentar
fixa e seus limites e a sabedoria nela evi- fontes ... regas) ensinam que, por obra do
denciada. Os particípios expressam fatos Criador, a criação fornece água para as
imutáveis: a criação dá testemunho de seu criaturas de Deus. 13-18 O crescimento
Criador; o modo como ele provê e cuida sustenta a vida, e os seres que crescem,
de nós não muda. Os verbos no imperfeito assim como a própria forma do mundo,
expressam as obras que Deus realiza repe- fornecem proteção para a vida. Além dis-
tidas vezes para satisfazer as necessidades so, a alternância de dias e noites permite
da terra, suas recorrentes transformações, que as feras e os seres humanos coexistam
provisões, afastamentos, recomeços, além (19-23). A criação é um sistema minucio-
do modo como, de tempos em tempos, ele samente ajustado para permitir a alegria e
toca a terra, controlando suas forças. a manutenção da vida - e isso pela ação
1-9 Criador e criação: transcen- direta do Criador, que faz fontes, rega, faz
dente, habitante, dominante. 1 Bendize crescer a relva e as plantas.
(cf 103.1). Magnificente etc. O Criador 24-30 Criador e criação: o Criador
é transcendente em grandeza. Se glória e é Senhor da vida, morte e renovação. A
majestade são atributos distintos, aquele criação verdadeiramente ferve de ativida-
é sua "importância" intrínseca, enquan- de, desde a menor criatura marinha até o
to este é sua majestade observável. 2-4 indescritivelmente aterrorizante monstro
Vestimenta é sempre uma metáfora para marinho, o próprio Leviatã ("crocodilo",
caráter e compromisso. Se o seu traje é luz, Jó 41.1 ss.), e a constante agitação da hu-
é porque Deus é luz (IJo 1.5) e o Doador manidade. Mas (quer estejam cientes disso
da luz (Gn 1.3; 2Co 4.6). Mas também, ou não) todos dependem da providência do
com a imagem do Criador envolto em luz, Criador, existem somente por causa do que
o salmo passa de sua transcendência para ele dá, estão sujeitos à determinação sobe-
sua imanência. Ele não está distante de rana de Deus quanto à hora de sua morte, e
sua criação (deísmo); nem deve ser iden- a própria vida na terra só continua existin-
tificado com ela (panteísmo); ele habita no do porque ele quer renová-Ia.
mundo que criou. Os céus são as cortinas 31-35 Criador e criação: o santo
de sua tenda (2); o que Gênesis 1.7 chama Criador e seu prazer na criação. A gló-
de "águas sobre o firmamento" é, simples- ria aqui é a glória do Criador manifesta
mente, o alicerce sobre o qual sua morada no universo que ele criou. Se ele retirasse
(3) se eleva, muito além da nossa vista. essa glória, o universo desapareceria. Só
SALMO 105 838

ele dá ao universo as condições para sua Mas ele é mais do que isso, pois toda a ter-
existência e estabilidade. Embora pareça ra está sob o seu comando. O v. 8 antecipa
sólido, sua fragilidade é total, em rela- a extensão do período histórico que o sal-
ção aos olhos e ao toque do Senhor. Um mo cobre. Ele recorda (Iit. "ele lembrou")
Criador como esse é digno de incessante os séculos que se passaram e afirma, como
louvor, mas a arrogância não tem lugar, e fez Josué a respeito do mesmo período:
nós só podemos rogar para que nossa po- "Nenhuma promessa falhou de todas [...]
bre canção seja agradável a Deus, pois ele que o SENHOR falara [...]; todas vos so-
é o Santo e os pecadores não tem nenhuma brevieram" (Js 21.45; 23.14). Aliança,
segurança final em sua criação (35). Então, um compromisso assumido espontanea-
o que minha alma pode fazer depois de mente por Deus, não uma barganha ou
meditar nas maravilhas do Criador, senão um toma-lá-dá-cá, mas uma declaração
bendizê-lo e louvá-lo? clara e soberana de que ele é Deus para
Abraão e seus descendentes, e de que eles
Salmo 105. "Não só com os são seu povo. Consequentemente, a alian-
lábios, mas com a nossa vida" ça é definida mais adiante como a palavra
A Bíblia não contém "poesia narrativa", no que empenhou ... juramento que fez (8,9).
sentido usual do termo, que é contar uma É sua promessa, e ele fará com que seja
história de forma poética. Salmos como cumprida. 9 Fez, (lit.) "cortou", a palavra
78; 105; 106; 136 de fato não parecem técnica para a celebração oficial de uma
estar interessados numa narrativa em si, aliança (Gn 15.18). Com Abraão, portanto
sendo mais uma série de alusões a eventos conosco, os descendentes de Abraão (Rm
bem conhecidos com o objetivo de levar a 4.11,12,16,23-25; Gl 3.6-9; 4.28-31), cuja
uma determinada conclusão. O salmo 105 história é a nossa história, cujo chamado
repassa a história de como Deus tratou o é o nosso chamado e de cujas promessas
seu povo: primeiramente, o período pa- somos herdeiros. 10 Decreto, um compro-
triarcal (Gn 12-50), aludindo à celebra- misso imutável. 11 A aliança foi expressa
ção da aliança (v. 7-11), o período nômade em múltiplas promessas (Gn 17.1-7) e,
em Canaã (v. 12-15) e a história de José dentre essas, uma é escolhida - a promes-
no Egito (v. 16-22); em seguida, o período sa da terra - para atestar a fidelidade do
do êxodo (Êx 1-12): Israel entrando no Senhor. É com a nota triunfante do cumpri-
Egito (v. 23-25), Moisés e as pragas (v. 26- mento dessa promessa que a retrospectiva
36), Israel saindo do Egito (v. 37,38); em termina (44).
terceiro lugar, a peregrinação no deserto (v. 12-15 O Senhor protegendo. Estes
39-43; Êx 13-19) e a entrada em Canaã versículos cobrem o mesmo período que
(v. 44; Josué). A recapitulação abrange Hebreus 11.8-10,13. A terra era deles, mas
muitos anos, mas traça um perfil: um Deus eles viviam nela como forasteiros, "es-
fiel, que faz promessas e as cumpre, mis- trangeiros" (12). Sua existência nômade,
terioso em seus métodos, mas sempre cui- apátrida, fazia com que eles passassem
dadoso com seu povo, sempre planejando das mãos de um rei para as de outro (13),
com antecedência para o seu bem, sempre e a única terra que realmente possuíam era
suprindo suas necessidades. a cova (Gn 23). Quão misteriosas são as
7-11 O Senhor prometendo. Como de providências de Deus para com seu povo!
costume, o que o Senhor faz por seu povo é Prometer uma terra e deixá-los sem terra!
considerado contra o pano de fundo de seu Mas nunca desprotegidos - nem mesmo
domínio universal. Para cumprir a promes- quando suas próprias loucuras pareciam ter
sa feita a Abraão (Gn 15.18-21) ele preci- feito Deus perder a boa-vontade para com
sa ser também Senhor sobre os amorreus. eles (Gn 12.10-20; 20.1-18; 26.1-11), ou
839 SALMO 105

quando enfrentaram as potências mundiais Mas quão maravilhosos são os seus cami-
reunidas (Gn 14). 15 Ungidos, separados nhos (Rm 11.33-36)! Ele conduziu o povo
para Deus em status e função. Profetas (cf até perigos e ameaças (25), e então revelou
Gn 20.7, em que Abraão é o primeiro na o esplendor de seu poder redentor. Ele pre-
Bíblia a ser chamado de profeta). parou um homem (26), um poder suficien-
16-22 O Senhor antecipando. O te contra todo o poder do inimigo (27-36)
Senhor não só detém o poder sobre toda e uma gloriosa libertação (37,38).
a terra (7), como determina exclusivamen- Observe a estrutura dos v. 28-36. A
te os eventos terrenos (16). Mais uma vez narrativa começa com a nona praga e o
estamos diante de um mistério, pois não resultado final de toda a ação (28b é uma
podemos rastrear os caminhos e padrões afirmação de que, ao final da sequência de
da divina providência. Mas mesmo quan- pragas, os egipcios amedrontados não se
do não podemos entender por que ele fez rebelaram mais). Em seguida, a narrativa
vir esta ou aquela situação, ou por que ne- retrocede para contar os passos que leva-
cessidades básicas foram cortadas de nós ram àquele resultado (29-35): a primeira
(16), podemos ter certeza de que ele ainda (29; Êx 7.14ss.), segunda (30; Êx 8.lss.),
está no trono (fez vir. .. cortou) e que ele quarta e terceira (31; Êx 8.20ss., 16ss.), sé-
tomou providências para garantir nosso fu- tima (32,33; Êx 9.13ss.) e oitava (34,35;
turo (Adiante deles enviou um homem, 17). Êx 10.1ss.) pragas, chegando assim nova-
Entretanto, embora vejamos que José foi mente ao clímax, desta vez na terrível dé-
uma "providência antecipada", o elemento cima praga (36; Êx 11; 12).37 (Êx 11.2,3).
de mistério permanece ~ aliás, o misté- 38 (Êx 12.30-33).
rio público do v. 16 é reeditado no nível 39-42 O Senhor providenciando.
individual: se José era o homem de Deus Esta seção conclui tanto a revisão histó-
no lugar determinado por Deus para o tem- rica quanto o próprio salmo. A revelação
po de Deus (Gn 45.5-8; 50.20), por que do Senhor é completada quando o vemos
ele sofreu tanto (18)'1 "Não vos compete suprindo as necessidades diárias de seus
conhecer", disse o Senhor Jesus a respeito peregrinos. Ele cuida (39) de sua orienta-
de outro assunto (At 1.7), mas sua respos- ção (Êx 13.21,22) e segurança (Êx 14.19),
ta deve ser suficiente neste caso também. e atende orações (até mesmo suas mur-
Tudo o que nos é permitido saber é que o murações), fornecendo-lhes comida (40;
Senhor agia segundo sua eterna sabedoria Êx 16.12,13,14ss.) e água (41; Êx 17.1-7).
para cumprir sua palavra (19) e ter uma Mas ele fez tudo isso porque tinha dado
autoridade no Egito para receber e alimen- sua palavra a Abraão (42; cf. 8, estava lem-
tar seu povo necessitado. brado... da palavra; 9) ~ um Deus fiel
23-38 O Senhor redimindo. Veja que mantém a promessa feita!
como esta longa seção está localizada en- Qual deve ser nossa reação diante de
tre Israel entrando (23) e saindo (38) do um Deus assim e de tal demonstração de
Egito. Não foi por qualquer de seus peca- firmeza no cumprimento das promessas,
dos que eles entraram no Egito, mas por proteção e antecipação de necessidades,
ordem divina e debaixo da promessa divina livramento e providência? Devemos cor-
(Gn 46.3,4); também não foi por nenhum responder com ações de graças e canções
de seus pecados que eles passaram a ser (1,2), glorificando o que o Senhor revelou
hostilizados no Egito. Aliás (25), foi pela sobre si mesmo (nome), cultivando com
ação de Deus! Novamente nos defronta- empenho nossa relação com ele (3,4, bus-
mos com o mistério da providência divina. cai... buscai, não como quem procura por
Seus pensamentos não são os nossos, nem algo perdido, mas indo constantemente,
os nossos caminhos são os dele (Is 55.8). assiduamente, ao local onde sabemos que
SALMO 106 840

ele pode ser encontrado), mantendo seus era contrabalançado por imerecidas mise-
grandes feitos sempre vivos na memória ricórdias (40-43), compaixão para ouvir
(5) e divulgando as notícias de seus atos pedidos de socorro (44) e fidelidade no
por todo o mundo (1): um programa para cumprimento da aliança e no amor (45).
a língua, no louvor e testemunho, para o Esta é a lição da nossa história: a nossa in-
coração, na "busca" do Senhor, e para a fidelidade e a fidelidade dele.
mente, na lembrança cuidadosa. 1-5 Louvor e oração. O salmo começa
Porém, ainda há mais. Os v. 43,44 for- com a nota de louvor e oração, e termina
mam uma conclusão que combina com o com as notas de oração (47) e louvor (48).
louvor do início. Os que testemunharam Pois a história fala de um amor que nunca
em primeira mão o que o Senhor fizera acaba (1) e de um Deus igualmente imu-
por eles regozijaram-se e estavam felizes. tável (48), estimulando o louvor do seu
Deus tinha sido bom para eles, dando-lhes povo - embora eles saibam que nenhuma
a terra como presente em cumprimento da língua mortal está à altura dessa função.
promessa (44), exatamente como haviaju- O salmo nos garante que a oração vale a
rado a Abraão que faria, mais de 400 anos pena, pois o indivíduo não é esquecido
antes (Gn 15.7-16). Mas a simples alegria nos planos do Senhor para o seu povo, e
estava aquém da resposta que ele desejava: o povo não é esquecido, ainda que esteja
tudo o que ele fizera tinha o objetivo de espalhado por todo o mundo. É interessan-
criar para si um povo que pudesse obede- te que o início e o final do salmo também
cer à sua palavra (45). Sem isso, o louvor é abordam a questão da bênção (3,48, lit.,
mero barulho religioso (Am 5.23,24). "Bendito seja o Senhor"), embora usando
palavras hebraicas diferentes. O caminho
Salmo 106. "Uma canção da obediência é o caminho da bênção (3),
que é música para ti" mas se a história acabasse aí, onde estarí-
Em sua maior parte, o salmo 106 recapi- amos nós com toda a nossa ficha corrida
tula a história de Israel começando pelo de incessante decadência? Porém, há um
êxodo (6-12; Êx 14), entrando pelo deserto Deus que merece ser bendito (cf 103.1):
(13-18; Nm 11.4-34; 16), seguindo até o O Deus salvador, sempre fiel, compassivo,
Sinai (19-23; Êx 32.1-6,9-14), dali para amoroso, perdoador, libertador, que ouve
as fronteiras de Canaã (24-27; Nm 14), a oração. A isso, todo o povo diz: Amém!
passando pelos episódios de Baal-Peor e Aleluia! (48) - inclusive nós, cujo catálo-
Meribá (28-33; Nm 25.1-15; 20.2-13), até go de fracassos é listado nos v. 6-39.
finalmente chegar à entrada na terra pro- 6-12 A negligência do homem. A sal-
metida (34-38; Jz 1.21,27-36; 3.3,5 etc.). vação de Deus. Pecamos, como nossos
É uma triste história de pecado (6), ne- pais (6). Não se trata apenas de sermos
gligência, esquecimento (7,21), obediência iguais a eles no pecado, mas de estarmos
passageira (12,13), satisfação dos próprios junto com eles num contínuo de pecami-
desejos (14), insatisfação com as provisões nosidade. Eles e nós "agimos mal e per-
de Deus (16), idolatria (19), desobediência versamente" - uma falha na nossa nature-
(24,25), fracasso na hora de tomar posse za (perversão) e na nossa vida (agir mal):
da herança (26), deslealdade (28), provo- cegos às maravilhas que o Senhor realiza,
cação (32), concessões (34,35) e corrupção esquecidos de suas misericórdias (7, lit.,
religiosa (37-39). Mas (com maior ênfase), "da abundância de seus atos de amor imu-
é também uma história de salvação divina: tável") e cheios de rebeldia provocada por
em poder (8-11), disposição para se deixar incredulidade (Êx 14.10-12) - fracos de
persuadir a ter misericórdia (23,30), fre- entendimento, curtos de memória e in-
quentes episódios em que o castigo justo constantes na fé. Mas o Senhor continua
841 SALMO 106

(8-11) agindo, por amor do seu nome, i.e., AI (v. 1-5) Louvor e oração
porque isso é próprio de sua natureza, li- B 1 (v. 6-12) O esquecimento do ho-
dando com nossos adversários humanos mem: Salvação de Deus
e circunstâncias adversas, operando uma CI (v. 13-18) Insatisfação com as
salvação completa (Êx 14.13,14,30,31) provisões de Deus
e recebendo como retribuição um louvor DI (v. 19-23) Religião falsa:
tristemente efêmero (cf 13). Moisés
13-18 Insatisfação de um povo inte- E (v. 24-27) A palavra e a
resseiro e sem moderação. Eles não se voz
lembravam do Deus do passado tampou- D2 (v. 28-33) Religião falsa:
co consultavam o Deus do futuro (13), e, Fineias
consequentemente, foram vítimas de suas C2 (v. 34-38) Insatisfação com o
próprias emoções impuras: primeiro, se Senhor
cansando da provisão de Deus para seu B2 (v. 39-46) A rebelião do homem:
sustento (14; Nm 11.4-6, cf Jo 6.35ss.); lembrança de Deus
depois, ressentindo-se da autoridade que N (v. 47,48) Oração e louvor
ele escolhera para governar a comunida-
de (16; Nm 16.3). Nos dois casos, a graça A concisão da seção central toma tudo
de Deus foi perdida e o castigo se seguiu. ainda mais dramático, uma verdade que
Chega um ponto em que nossa oração pode não precisa de explicações complicadas: o
se transformar numa insistência teimosa pecado principal do povo de Deus é não
em que as coisas aconteçam do nosso jeito aceitar a sua palavra. 24 (lit.) "não acredi-
e, como justo castigo, Deus nos dá o que taram na sua palavra"; 25 (lit.) "não ouvi-
teimamos em conseguir (15). Da mesma ram a voz do Senhor". Este é o privilégio
forma, chega um ponto em que, ao contrá- de ter a palavra de Deus e a razão pela qual
rio do que poderíamos pensar, insistimos nosso pecado principal é ignorá-la: a pala-
em ter o que Deus deseja. Moisés e Arão vra de Deus é a voz viva de Deus.
eram a melhor escolha de Deus para seu 28-33 Religião falsa: Fineias como
povo, e disso ele não abria mão (16). O v. mediador. Como Moisés no v. 23, Fineias
12 retrata a maneira correta de viver com se interpôs e a ira foi desviada. Moisés, com
Deus, à luz de seus atos salvadores (cf sua oração autossacrificial (Êx 32.31,32)
8-12) e de enfrentar o futuro à luz de sua chegou mais perto do perfeito Mediador
palavra de orientação e aconselhamento. que, inconscientemente, ele prenunciava.
19-23 A religião falsa: Moisés como A graça permitiu que ele desviasse a ira,
mediador. 19,20 (Rm 1.21-25). Toda re- mas ele fez isso tomando-se maldição em
ligião criada pelo homem envolve pen- nosso favor (3.13), tomando-se pecado em
samentos baseados em modelos terrenos, nosso lugar (2Co 5.21). Mas, se Moisés
confiança numa salvação do tipo faça- prefigurou o Senhor Jesus em sua oração,
você-mesmo e substituição do Deus eterno Fineias fez isso na condição divina de jus-
por algo que precisa de ajuda para conti- tiça que lhe foi imputada como mediador,
nuar existindo; e, quando nos desviamos, antecipando aquele que Isaías chama de
o motivo básico é sempre o fato de termos "meu Servo, o Justo" (Is 53.11; Hb 7.26).
nos esquecido do poder salvador do único O segundo incidente (32,33) incluído
Deus verdadeiro. Mas mesmo quando isso nesta estrofe completa o primeiro: se jun-
acontece, o Senhor aceita a intercessão de taram a Baal-Peor. .. o provocaram à ira
um mediador (Hb 7.25). (28,29). Apesar de já terem estado nessa
24-27 A palavra e a voz. Este é o pivô mesma situação antes (Êx 17), a falta de
do salmo. água (Nm 20.3ss.) provocou uma revolta
SALMO 107 842

contra Moisés, um arrependimento amar- babilônico, mas sua inclusão nas come-
go por terem deixado a escravidão no morações quando Davi levou a Arca para
Egito, preferindo morrer a viver do jeito Jerusalém (1Cr 15; 16) contraria essa hi-
que Deus designara para eles. Não admira pótese. No salmo, as nações são um lugar
que isso tenha sido demais para Moisés! O de dispersão, um laço e uma força domi-
velho Moisés de Êxodo 2.11,12 espreitava nadora. Não houve nenhum período, des-
dentro do homem conhecido por sua man- de a primeira entrada em Canaã, em que
sidão (Nm 12.3), aguardando uma oportu- isso não estivesse acontecendo em maior
nidade para se manifestar! Moisés pagou ou menor grau. É melhor interpretar o sal-
caro por ter deixado que seu temperamen- mo como sendo simplesmente o cântico da
to colérico o levasse à desobediência (Nm igreja no mundo, sujeita a suas seduções,
20.12). Desobediência à palavra de Deus vencida por seus poderes, perdendo sua
é o pecado principal (cf v. 24-27). 27 (Cf identidade pelo comprometimento com o
Lv 26.33; Dt 28.64). mundo, mas ansiando e orando por melho-
34-38 Insatisfação com o Senhor. res dias, e louvando o Deus que, em meio
Mais uma vez, todas as coisas ruins foram à inconstância de seu povo, é o mesmo de
fruto do pecado básico de desobediência eternidade a eternidade.
(34). Com relação à ordem para extermi-
nar, primeiramente (como Gn 15.16 mos-
tra), a destruição ordenada era um justo
juízo de Deus após 400 anos de sursis. 5
Não foi uma ordem arbitrária ou apres-
sada, mas uma solene decisão judicial do Salmo 107. Todos podem orar
Deus santo. Em segundo lugar, naque- Uma das delícias deste salmo é a repetição
le estágio da história do povo de Deus, - repetidas descrições de situações amea-
essa era a única maneira de garantir uma çadoras (4,5,10,17,18,23-26), repetidos
separação adequada do mundo. Ao recu- recursos à oração (6,13,19,28), repetidas
sarem essa condição de povo separado, respostas divinas (6,7,13,14,19,20,28,29),
eles se tomaram um povo dividido na sua repetidas convocações à gratidão (8,15,21,
lealdade (35-39) - é sempre assim. 35 31). Quem são essas pessoas? É muito co-
(Jz 3.5,6). 36 (Jz 2.12ss.). 37 (2Rs 16.3). mum associar o salmo à volta do exílio na
38 Como a própria criação é uma coisa Babilônia, mas isso não combina com a
santa, ela pode ser contaminada - de fato, cosmovisão que o salmo pressupõe a res-
ela é uma força moral que opera contra os peito das pessoas congregadas (3). Outros
contaminadores (Gn 3.18; Lv 18.25). identificam um retrospecto mais amplo da
39-46 Rebelião humana, lembran- história de Israel: do deserto para Canaã
ça de Deus. Esses versículos refletem a (4-9), do Egito e Babilônia para a terra
tensão dentro da natureza de Deus que o prometida (10-16), da "morte" (17-22)
livro de Juízes registra em detalhes. Com e "tempestade" (23-32) do exílio para a
ira santa, ele reage à deserção de seu povo vida e paz. Mas, ainda assim, a posição do
fazendo com que seus inimigos os domi- salmo é deliberadamente mundial, e cabe
nassem. Contudo, não foi o retomo deles perguntar que reunião é essa do Ocidente?
à santidade que o comoveu, mas simples- A expressão e do mar, usada no original
mente sua miséria e a própria fidelidade hebraico do v. 3, possivelmente significa
divina à palavra dada. "e de além-mar".
47,48 Oração e louvor. Congrega- Outro ponto interessante de tradução
nos de entre as nações pode indicar que diz respeito aos v. 4,10,17,23, nos quais se
este salmo foi escrito durante o cativeiro pode interpretar que quatro grupos estão
843 SALMO 107

subentendidos. Mas, em vez disso, o he- lidar com todo tipo de circunstância, sob
braico sugere que as mesmas pessoas são quaisquer condições, e que é em resposta à
descritas sob quatro ângulos diferentes: os oração que o Senhor amoroso nos socorre
perigos dos quais a divina redenção (2) e o (6,13,19,28). O povo do Senhor na terra
amor de Deus (1,8,15,21,31,43) nos tira- está sempre sob seu cuidado redentor, é
ram - a todo o povo do Senhor. É assim constantemente esbofeteado pelas circuns-
que o salmo deve ser entendido. O salmis- tâncias, externa e internamente, e necessita
ta está meditando sobre uma das grandes constantemente do recurso da oração.
festas de "peregrinos" da igreja pré-exílica 4-9 Perdidos num mundo imenso: o
(Êx 23.14-19). Ele vê a reunião de pes- amor que nos traz de volta para casa.
soas vindas dos lugares mais distantes e Os remidos frequentemente "não sabem
lembra que as promessas feitas a Abraão para onde ir" (4) e anseiam pela seguran-
(Gn 12.1-3; 18.18; 22.18; 28.14; SI 47.9), ça de uma verdadeira cidade, assim como
agora focalizadas na casa de Davi (SI 72.8- Abraão, que, vivendo na insegurança da
11), prometiam uma reunião do mundo in- vida nômade, ansiava pela "cidade que tem
teiro. Embora para ele - assim como para fundamentos, da qual Deus é o arquiteto
nós (Ap 7.9-17) - a concretização ainda e edificador" (Hb 11.9,10). Nós também
estivesse no futuro, cada individuo e cada muitas vezes chegamos a um ponto em que
geração do povo de Deus pode desfrutar "não conseguimos mais suportar" (5). Mas
da realidade de pertencer ao povo reunido, podemos orar (6). Nesta vida, muitas vezes
adorando o amor que redimiu (1,2) e salva descobrimos que o que antes nos parecia
(8,15,21,31) e deve sempre ser o foco dos um caminho tortuoso acabou se revelando
nossos pensamentos (43). a estrada reta da direção divina (7); e certa-
1-3 Amor redentor. Ao longo de todo mente isso ocorrerá se, depois que entrar-
o salmo, a palavra misericórdia signifi- mos no céu, pudermos entender tudo o que
ca aquela determinação tema, imutável e nos aconteceu aqui. As situações que, na
leal do Senhor de nunca abandonar os que época em que ocorreram, nos deram a im-
escolheu para si. Essa misericórdia ma- pressão de estarmos num verdadeiro labi-
nifestou-se na redenção (2) - a obra do rinto, serão vistas como eram na realidade:
"resgatador" que tomou sob sua respon- um caminho reto e sem desvios, indo da
sabilidade todas as necessidades de seus conversão à glória. Esta é a obra "sobre-
parentes ameaçados, levando suas cargas e natural" de Deus (maravilhas, 8) que nos
salvando-os do perigo. farta (agora mesmo, mas ainda mais no fu-
4-32 As quatro imagens. A primeira turo, Ap 7.16,17).
imagem do livramento do perigo na terra 10-16 Encerrados num mundo res-
(4-9) é equilibrada pela quarta, o perigo no trito: o amor que nos liberta. No jardim
mar (23-32). O contraste indica livramento (Gn 3), o propósito da serpente era fazer
em e de cada problema que nos afeta na a palavra de Deus parecer artificialmen-
vida terrena. A segunda (10-16) e terceira te restritiva, uma injustificada negação
imagens (17-22) se concentram em proble- da liberdade humana. O homem e a mu-
mas espirituais - indivíduos rebeldes em lher descobriram tarde demais que só se
relação a Deus (11,17) trazendo sobre si comprometendo a obedecer à palavra de
escravidão (10) e autodestruição (17), i. e., Deus é que eles desfrutariam de liberdade
o fato de que o pecado nos toma inimigos (cf. SI 119.45). A rebelião contra a pala-
de Deus, nos priva da liberdade que ele vra trouxe escravidão. Isso explica nos-
promete e corrompe a nossa natureza. A sa condição (10,11). Cf Gênesis 3.16-19
união das quatro imagens oferece a garan- com v. 12. Nunca saberemos quantas ve-
tia de que o amor redentor e imutável pode zes a misericórdia divina nos protege de
SALMO 107 844

nossas escolhas erradas; mas, às vezes, dedicação. Nos v. 31,32, o sentimento de


com o mesmo amor, Deus permite que a gratidão leva à participação como mem-
barreira caia e que nós experimentemos a bro da comunidade de adoradores.
amarga servidão que nós mesmos provoca- 33-43 Amor providencial e atencioso.
mos. Entretanto, mesmo nesse caso, ainda Nestes versículos, duas imagens contras-
podemos orar (13) e descobrir que - ago- tantes (33,34 e 35,36) são interpretadas
ra parcialmente; no futuro, totalmente em ordem inversa como duas experiências
(Fp 3.20,21) - a graça responde à oração opostas da vida humana (37,38 e 39,40).
com livramento (14-16). O salmo termina comentando que existe
17-22 Prejudicados num mundo pe- uma verdade que os retos veem (42) e um
caminoso: o amor que nos torna íntegros. pensamento no qual o sábio se concentra
Para a nossa natureza intrínseca, o pecado (43). As imagens são, respectivamente,
é sempre "nosso alvo", (lit.) nos abaten- a do fértil se tomando infértil (33,34), e
do (17) e nos levando às portas da morte a do infértil se transformando para sus-
(18) - o duplo desastre da autodestruição tentar a vida e proporcionar segurança
agora e perda eterna no futuro. No v. 11, (35,36). Isto acontece com tanta frequên-
rebelado reflete a obstinação dos rebeldes; cia: em determinados períodos, tudo dá
no v. 17, caminho de transgressão indica certo e ocorre uma prosperidade invejá-
intencionalidade. Mas, ainda assim, pode- vel (37,38); mas também há épocas de
mos orar (19). Por meio da oração vem o recessão, quando depois da dificuldade
grande antídoto para o veneno do pecado, vem a calamidade (39) e os líderes não
a palavra de cura (20). Assim como a fonte apresentam nenhuma solução (40); mas,
de nossa condição espiritual deplorável é a depois, a prosperidade é recuperada e os
rejeição da palavra (11), a recuperação da necessitados recebem proteção (41). O
integridade espiritual (20) ocorre quando a que há nisso tudo que os retos (os que
palavra retoma à nossa vida. estão em ordem com Deus e honram o
23-32 Açoitados num mundo hostil: compromisso de viver uma vida justa)
o amor que nos traz paz. A navegação veem? Primeiramente, que toda circuns-
é uma imagem perfeita para a nossa ex- tância é dirigida pelo Senhor, que não é
periência nesta vida: vamos cuidando de um observador externo, mas sim um dire-
nossos afazeres legítimos (23) quando, tor executivo. É ele que realiza transfor-
"de um claro céu azul", vem a tormenta mações em ambas as direções. A maneira
que descontrola nossos cálculos, destrói mais prática de viver é andar em ordem
nossos bens tão queridos, nos deixa impo- com aquele que dirige tudo. Em segundo
tentes nas garras de forças absolutamen- lugar, as providências de Deus são mo-
te irresistíveis (25-27). Toda tempestade rais. Se a terra fértil se toma árida, isso
é uma intimação à confiança, pois não é é um castigo pelo pecado (34); portanto,
um acontecimento fortuito nem um plano os retos devem insistir na santidade. Em
satânico: é a tempestade de Deus (25) e, terceiro lugar, quando a prosperidade
no momento certo, a mesma mão que agi- vem, ela não é uma recompensa por bom
tou a tormenta a fará sossegar (29). Toda comportamento, mas um ato genuíno de
tempestade é um chamado à oração (28a), preocupação divina com os necessitados
que é eficaz até mesmo contra as mais po- (41). Por essa razão, a verdadeira sabedo-
derosas forças contrárias. A porta da ora- ria (43) sempre contempla as misericór-
ção é a entrada para a paz (29,30). Nos dias do Senhor - aquele amor imutável,
v. 21,22, o reconhecimento foi dirigido a inesgotável e tão cheio de facetas que
Deus, na oferta de um sacrifício que ex- nele (em resposta à oração) está a solução
pressa a nossa gratidão e confirma nossa para qualquer necessidade.
845 SALMO 109

Salmo 10S. Uma receita ele prove ser o que realmente é (1-5). (ii)
para a hora da aflição As promessas de Deus cobrem a crise (7-
Embora este salmo seja composto de par- 9). O Senhor já havia se comprometido de
tes de dois outros (1-5, SI 57.7-11; 6-13, antemão com a sujeição de Edom. A oração
SI 60.5-12), ele não é uma (simples) anto- baseada em promessas tem resposta garan-
logia. Mesmo que não soubéssemos nada tida (6). (iii) O poder de Deus é suficiente
sobre os salmos 57 e 60 (que podem ser para resolver a crise (10,13) e, em resposta
consultados a respeito dos detalhes deste à oração, ele voltará a favorecer seu povo e
salmo), o 108 ainda assim se destacaria prestar-lhe o socorro necessário (11,12).
por seus próprios méritos. A inimizade de
Edom era um cenário constante na vida Salmo 109. A consagração da ira
de Israel (cf Am 1.11) e podemos presumir O salmo 109, o mais explícito dos salmos
que a crise edomita do salmo 60 não foi imprecatórios (v. Introdução, Imprecações),
a última de que Davi ouviu falar naquela atraiu muita "publicidade ruim". Comenta-
região em permanente agitação. Em algum ristas fazem fila para declarar que ele é de-
desses momentos críticos, Davi se baseou ficiente em ideais cristãos, que contraria
em sua salmódia anterior e adaptou-a a no- o espírito do evangelho, e alguns tentam
vas necessidades. O poema se divide em contornar sua dureza tratando os v. 6-19
três estrofes unidas por uma ligação do tipo como uma citação do que os inimigos do
dominó: a primeira estrofe (1-5) termina salmista diziam contra ele. Embora os
com oração, e a segunda (6-9) abre com salmos não indiquem necessariamente
oração. A primeira se baseia na realidade onde começa a fala de um novo orador, é
da misericórdia do Senhor (4), e a segunda questionável que este seja o caso aqui: (i)
começa com os teus amados (uma palavra a mudança de vários inimigos (2-5) para
diferente, "os que te são queridos"). A se- um inimigo único (6-19) tem paralelo no
gunda estrofe termina com uma referência salmo 55; (ii) atribuir 6-19 aos inimigos do
a Edom (9), e a terceira (10-13) começa salmista não diminui o problema, pois, no
com o problema de Edom. v. 20, o salmista repete os sentimentos em
Cada estrofe contém oração: primeira- tom pessoal e, em princípio, não há nada
mente para que Deus seja glorificado (5); em 6-19 que não possua algum paralelo na
depois, para que seu povo seja liberto (6); Bíblia. (iii) Além disso, Atos 1.16-20 con-
e, finalmente, para que a crise seja resol- cede a este salmo a honra de total inspira-
vida (12). Esta é uma sequência correta ção e vê o v. 8 como algo dito contra Judas.
de oração bíblica, e é bastante razoável Como acontece em muitos outros salmos,
apontá-la como uma das principais lições a experiência de Davi prefigura a de Jesus,
do salmo. Mas a oração obtém sua confian- o supremo, verdadeiro e santo emissor das
ça de verdades a respeito de Deus, e cada palavras de maldição.
estrofe põe em destaque uma determinada Portanto, será que o salmo diverge re-
verdade: (i) A misericórdia de Deus (4) é almente do espírito e dos ideais do NT? (i)
"imutável para sempre" ~ sua fidelidade é O salmista não desmente o dever de amar:
comparável à coisa mais alta que podemos os v. 4,5 começam e terminam com a afir-
observar, além das nuvens, mas sua mise- mação do seu amor ("amizade", NVI, é uma
ricórdia é ainda mais alta, i.e., seu com- tradução muito fraca) por seus inimigos,
promisso de amor conosco é a coisa mais e os tempos presentes indicam que esse
elevada que existe. Por isso, podemos en- amor se manteve durante toda a situação
frentar uma crise com coração imperturbá- de inimizade. Talvez em lugar de identifi-
vel, glorificando a Deus de forma audível e car aqui uma discordância do princípio do
pública, e orando para que, nessa situação, amor (Mt 5.44), devêssemos perguntar se
SALMO 109 846

nossa compreensão a respeito do amor mas porque são elevados demais para que
está correta. Será que o Senhor Jesus dei- nós os imitemos sem correr perigo".
xará de amar os seus inimigos quando os 1-5 Oração por ação divina. 1 A es-
submeter à "ira do Cordeiro" (Ap 6.16)? piritualidade do salmista durante todo esse
(ii) O salmista não tem espírito nem atos período terrível é notável: ele mantém o
vingativos. Ele diz, no v. 4, (lit.) "mas louvor (I) e a oração (4), a penosa práti-
eu sou uma oração", significando: "todo ca de jejuar (24) e sua dedicação à adora-
o meu ser se identifica com a prática da ção pública (30). Essas são as coisas que
oração". Portanto, ele não revidará. Sua nossa qualidade espiritual inferior permite
resposta aos danos sofridos e à maldade que evaporem quando estamos sob pres-
dos outros é levar o problema a Deus e são. Além disso, diante da difamação, das
deixá-lo lá - uma expressão perfeita de mentiras, da animosidade e dos ataques (3,
Romanos 12.19. Mesmo que suas orações guerra), ele conserva o amor por seus ini-
fossem censuráveis em palavra ou espíri- migos (4,5), não permitindo que sua reação
to, seu modo de agir é preferível aos dos seja determinada pelo tratamento desigual
que jogam bombas, ateiam incêndios cri- que eles lhe dispensam.
minosos ou espoliam as pessoas em opera- 6-19 Oração por justiça divina. Esta
ções comerciais inescrupulosas. (iii) Mas seção divide-se em duas partes: (i) Os v.
as orações dele são censuráveis? O que 6-15 formam um poema equilibrado de
nos repele não é o fato de que ele orou, cinco estrofes. A primeira (6,7) solicita
mas o realismo com que ele expressou um veredicto de culpado numa corte hu-
suas orações. Quando certo nível de hos- mana, e a última (14,15), de culpado sem
tilidade perturba nossa vida confortável, perdão diante de Deus; a segunda (8,9) e a
levantamo-nos para dizer "Senhor, me quarta (12,13) se unem na perda do direi-
ajuda a amar meus inimigos como Jesus to de posse da vida, tanto para o indivíduo
ensinou e, por favor, lida com eles por quanto para seus descendentes; a estrofe
mim". O salmista foi mais realista: como do meio (10,11) é a mais terrível: nin-
Deus vai "lidar" com eles, senão do modo guém peca sozinho, e nossos filhos estão
que ele revelou em sua palavra? Os que embrulhados junto conosco no pacote da
fazem acusações falsas devem receber o vida, para o bem e para o mal (Pv 20.7).
mesmo que queriam que o outro sofresse Conforme observado acima, essas orações
(Dt 19.16-19, cf 2 com 6); os que desobe- dão expressão a inevitabilidades bíblicas:
decem não têm possessão na terra (Dt 4.1, é assim que é a vida sob o domínio de um
cf 8); os pecadores trazem calamidades Deus terrível e santo. 6 Ímpio, a mesma
sobre seus descendentes (Êx 34.7, cf. 9- palavra usada no v. 2 (lit. "a boca de um
12). Se nos refugiamos na fantasia, fazen- homem ímpio"). Assim, o mal volta para
do um pedido genérico quando o salmista aquele que o cometeu. 7 [Seja] tida como
ousou expressar realismo bíblico, devería- pecado, a sua oração (lit.) "que a sua ora-
mos pelo menos ter consciência do que ção se torne um pecado" - nem mesmo
estamos fazendo. o caminho da oração não é solução para
Mas nosso retraimento é compreen- ele. 14 Nas Escrituras (cf Mt 23.29-35),
sível e concorda com o alerta de Paulo nossa herança pecaminosa nunca serve
(Ef 4.26), de que a ira admissível é vizi- de justificativa para nós; ao contrário, ela
nha do pecado. J. L. McKenzie (American nos põe debaixo do pecado acumulado do
Ecclesiastical Review, Ill, 1944, p. 81-96) passado. Não estamos atados de um modo
questiona se "os salmos imprecatórios não fatalista (Ez 18), mas, se não nos arrepen-
são um modelo para nós, não por terem dermos e negarmos esse legado, somos
um grau de perfeição menor que os outros, seus herdeiros.
849 SALMO 113

que ele fez a respeito de suas maravilhas") relacionamentos e justo no caráter. (iii)
(cf Êx 3.15). Seu nome diz tudo que ele 5,6 Generosidade e segurança. Tão certo
quer que seu povo saiba sobre ele. Ele tem como a luz nascerá nas trevas, ditoso será
prazer em conceder graça imerecida e é - observe como a ênfase ainda recai so-
movido por afeição emocional (misericor- bre um caráter firme - o homem que se
dioso, cf IRs 3.26) por eles. Ele os remiu compadece (5a, a mesma palavra que ge-
(9) - redenção chama a atenção sobre o rou benigno em 4b; IIIAb), praticando a
pagamento do preço do resgate: ele assu- liberalidade (empresta), e vive com juizo,
miu todo o "custo" de sua libertação - e i.e., aplicando princípios de justiça por
levou-os a fazer uma aliança com ele. Por meio de decisões corretas. (iv) 7,8 Ameaça
lembrar sempre a sua aliança, ele os ali- e confiança. A vida do justo não é um mar
mentou (no deserto), levou-os para dentro de rosas. Más noticias vêm (agora não
da terra e lhes deu sua lei fiel para que são mais as trevas de 4a, mas hostilidade
vivessem por ela (5-7). Assim, a graça humana, 8b), mas ele não perde a paz. O
imerecida e o amor apaixonado que fluí- coração continua .firme porque ele confia
ram primeiramente na redenção conduzi- no Senhor. Além disso, isso não é uma dis-
ram o povo do Senhor para o abraço de posição passageira, mas uma atitude cons-
sua aliança, onde eles desfrutaram de seu tante até que a ameaça tenha cessado. Ver
cuidado providencial nas necessidades di- cumprido, nos seus adversários, o seu de-
árias, de sua superioridade em relação ao sejo, (lit.) "olhar para os seus adversários",
poder de seus inimigos, e de sua palavra, talvez uma expressão idiomática para "ver
pela qual vivem. pela última vez"; certamente, não há ne-
nhuma satisfação maligna insinuada aqui.
Salmo 112. O povo do Senhor (v) 9,10 Caráter, conduta e destino. Cada
em caráter e conduta versículo expressa sua própria sequência
O salmo avança consecutivamente ao lon- reveladora: a generosidade, no contexto de
go de tópicos bem nítidos, dedicando qua- uma vida reta com Deus e reta em condu-
tro linhas aos quatro primeiros e seis linhas ta, leva à honra (9; Rm 2.10); a impiedade
ao último: (i) 1,2 Indivíduo e família: cada com animosidade é autodestrutiva (10) e o
indivíduo é movido interiormente pelo te- seu final é nada (lit., perecerá).
mor reverencial que se manifesta exterior-
mente através da obediência prestada com Salmos 113-118. O Hallel
prazer (I). Uma bênção particular está vin- egípcio: Uma Cantata
culada a esse caráter e conduta - filhos de de Salvação
reconhecido valor (2a, cf. Pv 20.7) e uma Qualquer coisa que esteja relacionada
bênção que se estende às gerações futuras com o Senhor Jesus Cristo tem um valor
(2b). (ii) 3,4 Prosperidade e infortúnio. A e um apelo extraordinários para o cristão.
justiça tem duas facetas: eternamente em Consequenternente, a grande probabilida-
ordem com Deus, constantemente com- de de que este conjunto de salmos tenha
prometida com uma vida de retidão. Uma sido usado por ele nas celebrações da
pessoa assim recebe provisão abundante Páscoa aumenta o seu interesse e impor-
(3a, cf. 1.3; 73.23-26), mas não é imune tância. Na última Páscoa, a primeira Ceia,
às trevas da vida. Quando estas surgem, supõe-se que ele e seus discípulos tenham
são enfrentadas com a fé em que a luz cantado os salmos 113 e 114 antes da refei-
finalmente nascerá. Mas enquanto as tre- ção' e 115-118 seria o "hino" cantado no
vas não se dissipam, permanece também final (Mt 26.30). Sem dúvida, cada salmo
o dever de se manter justo em conduta, deste grupo tem sua própria história lite-
benigno, misericordioso (cf 11104) nos rária, mas em conjunto eles são chamados
SALMO 113 850

de "o Hallel Egípcio/Ato de Louvor", um 7-9 A exaltação compartilhada. Ele


comentário sobre Êxodo 6.6,7, em forma é excelso (4); ele ergue, "exalta", o des-
de canção. valido; ele, que se assenta no trono (5),
O salmo 113 baseia todos os aconte- assenta o desvalido ao lado dos príncipes
cimentos no Senhor - em como é intrín- - longe do pó, num trono, desfrutando de
seco de sua elevada dignidade exaltar o realização pessoal. Ele pega pessoas aban-
pobre e necessitado. O salmo 114 registra donadas (desvalido ... necessitado), revoga
o êxodo de forma majestosa, mostrando sua desonra e reverte seu desamparo. Essa
como o Criador usa a criação para be- dinâmica é bastante clara no êxodo - des-
neficiar seu povo. Os salmos 115 e 116 de o controle do Senhor sobre as potências
se completam, apresentando, respecti- terrenas (Êx 4.22,23; 14.30,31) até seu co-
vamente, a comunidade e o indivíduo nhecimento das necessidades de seu povo
salvos da morte espiritual (115) e física (Êx 2.24,25; 3.7) e dos gritos de desespero
(116). O salmo 117 estende o princípio das mães que perderam os filhos violenta-
do êxodo até seus limites mundiais - o mente (Êx 1.22)! Mas sua revelação acerca
que foi feito por Israel foi feito por todos. do Senhor é permanente: o que ele era na-
Finalmente, o salmo 118 nos permite jun- quele tempo, ele continua sendo hoje.
tar-nos à grande procissão que entra pelas (b) Salmo 114. O Senhor Soberano:
portas e chega à presença do Senhor. sobre tudo, em tudo, por meio de tudo
(a) Salmo 113. O Senhor, exaltado e A mensagem do salmo 113 não é um
exaltador pensamento fantasioso, pois o 114 mos-
O tema é o Senhor universal e trans- tra o Senhor com domínio supremo sobre
cendente, exaltado acima do céu e da terra, nações (1), identificado com os antigos
abrangendo todo o tempo, preenchendo desterrados (2), soberano sobre a cria-
todo o espaço, dominando as nações, er- ção (3-7), provendo para os necessitados
guendo o pobre e transformando o frustra- (8). Os fatos do êxodo sustentam os fatos
do. O movimento do pensamento vai da da revelação.
soberania que governa tudo à bondade que 1,2 Redenção e habitação. Quando o
toca cada um. Senhor redime, ele vem para ficar; separan-
1-3 O nome digno. O nome do Senhor do seu povo do mundo, ele os separa para
(o que ele revelou sobre si mesmo, Êx si. O salmo vai além do fato topográfico de
3.15) incita o louvor de seus servos e é dig- que o santuário do Senhor (seu "lugar san-
no de aclamação eterna e universal. A pa- to, onde ele habita") ficava em Judá; em
lavra nome ensina que o louvor responde vez disso, Judá, seu povo em si, tomou-se
à revelação, e a palavra servos mostra que o lugar onde ele habitava (Ef2.19-22). Pois
o louvor está enraizado num compromisso aqueles que ele redime, ele transforma: en-
de vida. contrando-os como Jacó, vivendo no meio
4-6 O Senhor exaltado. A tripla re- deles como Israel (Gn 32.27,28).
ferência ao nome em 1-3 corresponde à 3,4 Criação e conclusão. Maravilhas
tripla afirmação de exaltação em 4-6: ex- naturais acompanharam o êxodo, no
celso ... céus, trono, inclina... céu. Ele é mar Vermelho (Êx 14.2Iss.), no Jordão
exaltado sobre todas as pessoas e todos os (Js 3.14ss.) e no Sinai (Êx 19.16ss.). As
lugares, incomparavelmente exaltado, tão duas "travessias" marcam, respectiva-
transcendente que precisa se inclinar para mente, a saída do Egito e a entrada em
ver os céus. Sua glória é a mais eleva- Canaã. Portanto, o que o Senhor começa,
da das realidades, sua pessoa está acima ele termina - e a garantia de que ele pode
de todas as dignidades, sua onisciência fazer isso é o seu poder soberano como
abrange toda a criação. Criador, pelo qual barreiras humanamente

II I
851 SALMO 115

intransponíveis fogem (o mar... fugiu) respondendo em 9b,lOb,llb? Será que


diante dele. 12a é uma afirmação congregacional, e
5-8 Compaixão e provisão. Algumas 12b,13 são a resposta de ambos os corais?
perguntas fazem com que nos aproxime- Possivelmente, das porções em tomo desse
mos rapidamente do clímax: a simples pre- "núcleo", 1-3 e 16-18 eram ditas por toda
sença do Senhor era suficiente para efetuar a assembleia, enquanto 4-8 e 14,15 consti-
seus prodígios de libertação. Em sua mise- tuíam a fala do líder do louvor, declaman-
ricórdia, ele se identifica com alguém tão do contra os ídolos e pronunciando bênção
fraco, até mesmo desprezível, como Jacó; sobre Israel. De qualquer modo, o salmo é
e ele, que começa e termina sua boa obra tão "vivo" como um ato de adoração quan-
(cf. v. 3,4, cf. Fp 1.6), supre também as ne- to o é em sua teologia.
cessidades de seu povo durante a peregri- Os v. 4-8 são típicos da visão do AT
nação (Êx 17.1-7). acerca dos ídolos e dos idólatras. Por um
(c) Salmo 115. O Senhor, bendito e lado, não existe força espiritual ou reali-
abençoador dade por trás do ídolo; ele não representa-
Podemos apenas especular sobre o ce- va um "deus" invisível; sua realidade não
nário deste salmo. Será que o v. 2 sugere ia além de sua constituição material (4-7;
que o povo de Deus está confuso diante Is 40.18-20; 41.5-7). Apesar disso, os ído-
dos insultos do mundo e faz a pergunta tão los tinham o poder de destruir seus ado-
conhecida: "E quanto ao teu bom nome?" radores (8; ls 44.6-20). Em particular, não
(I, cf 1s 7.9)? É mais provável, mas ainda havia revelação oral (boca), nenhuma su-
uma especulação, que uma vitória tivesse pervisão moral (cf. 53.2), nenhuma respos-
sido conquistada recentemente, de modo ta à oração (ouvem), nenhuma propiciação
que o crédito devia ser dado ao rei ou ao por meio de sacrifício (cheiram, Gn 8.21),
exército. O inimigo, confiante na força de nenhuma proteção (mãos não apalpam,
seus ídolos, poderia zombar de um povo 95.7), nenhum movimento (andam) ou
cujo Deus era invisível. Mais provável pensamento (som, o murmúrio que indica
ainda é que o salmo seja imaginativo, ponderação). 11 Temem o SENHOR. Numa
discorrendo sobre a ocupação de Canaã: data bem posterior, "tementes a Deus" tor-
as batalhas foram difíceis, mas a vitória nou-se um jargão técnico para prosélitos
foi do Senhor; os pagãos foram expos- frouxamente ligados. Aqui, a expressão
tos como devotos de deuses mortos, e o descreve de forma abrangente as duas cate-
Senhor foi revelado como fiel (I) e sobera- gorias dos v. 9,10, o povo e os sacerdotes.
no distribuidor de tudo o que existe (16). A Confiar e reverenciar: a intimidade sim-
estrutura do salmo conta sua história: ples do primeiro, equilibrada pelo temor
respeitoso do segundo, marca o povo do
N (v. 1-3) Louvor devido apenas ao sobe- Senhor. 17 Por trás do salmo há uma cri-
rano Deus do céu se cujo livramento foi assegurado (1). Não
8 1 (v. 4-8) Os ídolos e os que confiam fosse pela intervenção e vitória divinas,
neles todos teriam morrido. Daí (18), há muito
8 2 (v. 9-15) O Senhor e os que confiam mais razão para glorificar o Senhor. Ler no
nele v. 17 o que o AT pensava sobre a situação
N (v. 16-18) Louvor devido ao soberano dos mortos e fazer referência a passagens
Deus do céu como 88.10-12 faz com que ambos sejam
mal compreendidos. O salmo 88 considera
O salmo é uma peça de adoração an- a morte debaixo da ira de Deus e, conse-
tifonal (cl Ed 3.10,11). Podemos ouvir quentemente, não dá nenhuma esperança.
um coro cantando em 9a, I Oa.Ll a, e outro Mas aqui, o v. 18 expressamente antevê
SALMO 116 852

uma oferta de louvor desde agora e para As palavras-chave eu cria (10), ocupam
sempre, "até a eternidade". Portanto, algo a posição mediana entre a nova vida de
que poderia estar restrito ao Senhor (17) alegria (8,9) e a velha vida de sofrimento
estimula um louvor que não tem fim (18). (10,11). Da mesma forma que, nos tempos
(d) Salmo 116. Fé e liberdade antigos, um grande clamor por socorro
A situação era de perigo de morte que deu início aos atos de Deus no êxodo
(3,8,15), causado por mentiras humanas (Êx 2.23,24), a fé operando através da ora-
(11) e falta de discernimento (6). Mas no ção continua sendo a maior força de que o
meio dessa situação entrou a oração (1-4). povo de Deus na terra pode dispor.
O Senhor ouve (1,2), é compassivo (con- 1 (Lit.) "Eu o amo ~ pois o Senhor
cede graça aos que não merecem), justo ouve a minha voz!". 3,6,11,15 Morte e
(nunca se esquiva do compromisso assu- inferno (sheol) são representados como
mido com seu povo e das promessas fei- agressivos, caçando vítimas (3). Outros
tas), misericordioso (se comove emocio- fatores também ameaçam: as aflições da
nalmente com o sofrimento) (5) e sente a vida (3), deficiências pessoais (6, onde
morte de seus amados (15). Então veio sal- simples poderia ser traduzido por "bobos/
vação (4-6), livramento da morte (8) e da simplórios/sem discernimento"), desones-
escravidão (16), e total suprimento (7,12). tidade humana (11). Apesar disso, (15) não
Consequentemente, há votos a serem fei- há essa coisa de morte prematura. Para o
tos e mantidos: de amor (1) e oração (2), Senhor, a morte é uma coisa muito pre-
de descanso (7) e caminhada (9), de pra- ciosa para ser desperdiçada. A morte dos
zer pessoal na salvação (13) e testemunho seus santos, "seus amados", é como uma
público (14,18). Acima de tudo, porém, a joia preciosa que ele concede ~ preciosa
crise foi enfrentada pela fé, a chave para para ele e para eles, porque na morte ele os
tomar novas todas as coisas (8-11), o pivô recebe em casa. Nesse sentido, a morte é a
de todo o salmo. última e maior de todas as bênçãos terrenas
que Deus confere ao seu povo. 10 Eu cria.
AI (v. 1,2) Invocando Deus no dia da an- Usado assim, o verbo significa "eu tinha
gústia fé". Ainda que. Enfrentar a dureza da vida
BI (v. 3,4) A situação enfrentada com com desânimo e confessar isso não é falta
oração de fé, mas uma evidência dela ("Mantive
C 1 (v. 5-7) Provisão total, descanso a fé mesmo quando estava mais desespe-
D (v. 8-11) F é; tomando novas rado", ou: "Agarrei-me à fé embora toda a
todas as coisas esperança tivesse acabado"). 13 A primei-
C2(v. 12-14) Provisão total, respon- ra forma de retribuir a bondade do Senhor
dendo é usufruir dela mais e mais. O cálice re-
B 2 (v. 15,16) A situação resolvida pelo presenta aqui seu presente de "salvações"
Senhor (heb.), i.e., completa salvação. 16 Servo ...
N (v. 17-19) Invocando Deus no dia do filho .... quebraste as minhas cadeias. Um
livramento vínculo tríplice: serviço escravo pesso-
al (servo), serviço escravo hereditário
Observe como 1,2 e 17-19 são acopla- (Êx 21.4) e servidão voluntária do escravo
dos por invocarei; 3,4 e 15,16, por laços liberto que ama seu senhor e não quer ir
de morte... morte... quebraste e Ó SENHOR; embora (Êx 21.5,6).17-19 Uma descrição
5-7 e 12-14, por tem sido generoso, "tem muito forte sobre "dar testemunho públi-
provido tudo", e seus beneficios, "sua pro- co" ~ ainda mais diante da natureza inten-
visão total". Tudo isso lança um foco de samente pessoal da experiência registrada.
luz sobre os v. 8-11, o papel central da fé. Os votos feitos em tempos difíceis não
853 SALMO 118

foram barganhas com Deus, mas uma evi- (f) Salmo 118. As portas da justiça
dência da intenção séria de aprender com O propósito do Senhor com o êxodo
a experiência e sair dela como uma pessoa foi muito além da libertação para reden-
melhor e mais dedicada. ção e de tomar os ex-escravos para serem
(e) Salmo 117. Um Deus, um mundo, "meu povo". É esse propósito supremo
uma alegria que o salmo 118 retrata simbolicamente.
Este salmo é citado em Romanos Seu movimento geral é uma procissão que
15.11 para dar suporte ao argumento de sobe até as portas do templo (19), depois
Paulo de que Jesus é o Messias mundial, e passa pelas portas e vai até o altar (27).
seu cumprimento está em Apocalipse 7.9. Mas à medida que a procissão avança, há
O salmo 117 chega ao cerne dos propó- uma antífona ou "diálogo" entre um grupo
sitos de Deus e alcança as mais remotas e um Indivíduo. A assembleia inteira fala
fronteiras do mundo. Desde o início, a fé em I e 29; o grupo e seu líder de louvor
do período do êxodo refletia a promessa respondem um ao outro em 2-4. Mas, no
abraâmica de bênção para o mundo por restante do salmo, o grupo age como um
meio da inclusão de regras para o recebi- eco responsivo do que o Indivíduo diz, e
mento de não israelitas na comunidade da a "verdadeira" sequência do salmo é a his-
aliança (Êx 12.48,49). Semelhantemente, tória das experiências desse Indivíduo por
a oração de Salomão começa com várias meio do sofrimento (5-7), da hostilidade
preocupações domésticas e passa com internacional (10-14) e do castigo divino
naturalidade para a antevisão de estran- (17,18), até o ponto em que ele reivindi-
geiros orando ao Deus de Israel e sendo ca seu direito de entrar pelas portas da
ouvidos por ele (lRs 8.41-43). Do mes- justiça (19). Durante todo o tempo, ele é
mo modo, o princípio de que os atos sal- acompanhado por um grupo que responde
vadores divinos direcionados para Israel com aprovação à sua postura confiante (6,7
também representavam salvação para o com 8,9) e endossa sua vitória no nome do
mundo inteiro está bem claro nos salmos Senhor (10-14 com 15,16).
(por exemplo, 96-98). Depois do v. 19, o tom muda: falar so-
Portanto, aqui está uma breve declara- bre o Senhor se transforma em falar com
ção de que existe um único Deus para to- o Senhor; e as vozes também mudam: os
das as pessoas (SENHOR ... todos... povos); porteiros (sacerdotais) expõem as con-
de que existe um povo mundial unido num dições de entrada (20) e seus colegas do
único Deus (o conosco do v. 2 reúne todos santuário saúdam o Indivíduo que entra
os povos em Israel); de que existe um só chamando-o de a pedra (22), aclamam sua
sentimento divino em relação a todos (sua chegada como o dia que o Ssnnon fez (24),
misericórdia e sua eterna .fidelidade); e abençoam-no como o que vem em nome do
que a verdadeira religião é uma resposta SENHOR (26) e convidam todo o grupo que
alegre e cheia de louvor ao que esse Deus o acompanha para se reunir no altar e fes-
único, amoroso e fiel é. 2 Grande, "po- tejar (27).
derosa", "dominante". Conosco, "nós". A "sensação" que o salmo transmite su-
Se o pronome se refere exclusivamente a gere uma ocasião real, possivelmente uma
Israel, então o salmo é um reconhecimen- celebração anual (Páscoa?) nas dependên-
to de que o que é para Israel é automati- cias do templo. Ou talvez uma cerimônia
camente para o mundo também. Porém, é em que o rei desempenhava o papel cen-
mais revelador enxergar aqui, como fize- trai, expressando de forma individual a pe-
mos anteriormente, um "Israel mundial" regrinação de todo o povo, da angústia (5)
- toda a família dos filhos de Abraão e oposição mundana (10), até com ameaças
(SI 47.9; Rm 4.11,I2; GI 6.16). de morte (17), para a luz (27) e a presença
SALMO 118 854

divina. Contudo, há elementos no salmo da ação realizada em e pelo nome do


que contemplam além das misericórdias SENHOR (10-12). Apesar disso, o perigo
de Deus registradas, superando tudo que o era real e a vitória só veio por meio da
povo ou qualquer rei possa ter suportado, intervenção divina (13), de força e li-
e exigindo mais do que qualquer um deles vramento concedidos por ele (14). 15,16
poderia cumprir. Quando foi que todas as Esses versículos fazem par com 8,9; os
nações cercaram, ameaçaram e foram re- que estão em ordem com Deus (justos)
chaçadas? Quem poderia chegar às portas têm júbilo e salvação. Mão simboliza
da justiça e ser recebido como a pedra e o força pessoal em ação, e destra, uma for-
que vem em nome do SENHOR (22,26)? ça ainda mais preeminente. Na vitória do
O salmo é esperançoso e comemorati- Indivíduo, eles veem o exemplo máximo
vo. Ele vislumbra um Indivíduo vindouro do Senhor em ação.
para quem todos os detalhes aqui descri- 17-21 Castigo divino, justiça, entra-
tos ainda estavam por se cumprir. No fi- da. Enquanto o Indivíduo dá um terceiro
nal, o Nr fornece a resposta, mas ele só faz testemunho (17,18), ele chega às portas
isso porque o Ar levanta a questão, pois do templo (19) e, embora estas sejam as
a ideia do Messias no NT não é um en- portas da justiça (portas que só podem ser
xerto (artificial) no Ar, mas sim um broto transpostas se a condição de justiça for sa-
(natural) dele. tisfeita), ele requer permissão de entrada.
1-4 Convocação e resposta. 1 O salmo Os porteiros respondem (20), ratificando a
136 explica as implicações dessa convoca- condição de entrada. Enquanto passa pela
ção: ela era um lembrete sucinto de todos porta (21), o Indivíduo agradece pela ex-
os grandes atos de Deus (cf Jr 33.11).2-4 periência de oração respondida e salvação
Cf 115.9-11. divina. 17 Em seu cenário originário, com-
5-7,8,9 Tribulação, oração, certeza, bina com 6,7: o falante afirma que quem
confiança. Sem introdução, ouve-se a voz terá a última palavra será ele, e não seus
de um indivíduo (5-7). A palavra tribula- inimigos mortais. Mas, quando vemos o
ção (cf 116.3) é "realçada" aqui por um salmo através da lente do Senhor Jesus,
artigo definido sugerindo "extrema tribu- o significado é que a morte não terá a úl-
lação". Em si, a palavra indica "pressão/ tima palavra (Jo 10.18). 18 (Is 53.5,6,10).
constrição" e contrasta com a liberdade Por trás da inimizade humana, o Indivíduo
que veio em resposta à oração. Folga, "em vê a mão de Deus (At 2.23). 19 Observe
lugar largo", desimpedido. Uma experiên- a natureza pessoal da reivindicação (Abri-
cia como essa gera confiança para o futuro me) de ter preenchido o requisito de justiça
- em relação à oposição humana como tal (Is 53.11; Jo 16.10; lJo 2.1).
(6; 56.11; Hb 13.6) e em relação ao resul- 22,23,24,25,26-29 A pedra, o dia e
tado. 7 Verei cumprido o meu desejo (cf aquele que virá. Nosso entendimento
112.8).8,9 O cortejo comenta o testemu- desses versículos fica mais claro se nova-
nho do Indivíduo, afirmando a eficácia do mente ouvirmos aqui vozes antifonais. Os
caminho da fé confiante. sacerdotes do templo saúdam o Indivíduo
10-14,15,16 Inimigos cercando, nome referindo-se a ele como a pedra, e o corte-
suficiente, destra poderosa. O Indivíduo jo que o acompanha responde (22,23); os
revela mais de sua tribulação (5): ele es- sacerdotes aclamam o dia de sua chegada,
tava cercado pela hostilidade de todas as e o grupo ora para receber as bênçãos do
nações, mas embora seu ataque fosse tão dia (24,25); os sacerdotes pronunciam bên-
feroz quanto o de abelhas silvestres, ele çãos sobre o Indivíduo e sobre o grupo (26,
foi contido tão depressa quanto o fogo vós), e o grupo responde; os sacerdotes os
consome os espinheiros (12), pela eficácia convidam para a festa (27); o Indivíduo
855 SALMO 119

(28) e o grupo (29) se juntam em adora- eventos (e principalmente tendo em mente


ção. A pedra é um símbolo messiânico (cf. a última Páscoa e a primeira Ceia) o sig-
Is 28.16; Zc 3.9). Em Mateus 21.42-44, nificado é "vinde e participai da festa que
Jesus correlaciona o v. 26 com Isaías 8.14 se baseia numa obra de salvação divina".
(v. também IPe 2.6-8; cf Rm 9.33). Em seu 28 Estaria este versículo refletindo o que
contexto originário no salmo, isso pode ser Jesus disse quando, na plena realidade de
um provérbio descrevendo uma extraordi- sua humanidade vitoriosa e glorificada, foi
nária reviravolta numa opinião humana: para seu Pai e nosso Pai, seu Deus e nosso
quem poderia imaginar que o povo escra- Deus (10 20.17)'1 E haveria melhor modo
vo fosse o povo escolhido, a chave para a de respondermos do que com o v. 29'1
história e o destino da humanidade? Ou, se
o salmo é algum retrato ritual da derrota do Salmo 119. O ABC dourado
rei davídico diante das nações e de sua sub- da palavra de Deus
sequente "ressurreição" por intervenção do Este salmo, o maior exemplo da arte do
Senhor: quem teria imaginado que alguém salmo alfabético ("acróstico"; v. artigo
tão humilhado iria se transformar no ápice Poesia na Bíblia), tem um tema digno de
dos propósitos divinos? Mas, como a rea- sua maestria. Não sabemos quando ele foi
lidade em Jesus ofusca todos esses cum- composto, portanto não é possível dizer
primentos preliminares! Por acaso algum quanto material escrito está subentendido
outro indivíduo foi tão afrontosamente quando ele fala da palavra do Senhor, ou
desprezado pelas autoridades da igreja e de seus mandamentos, preceitos e promes-
do estado? Algum outro sofreu tantas hu- sas. Temos o privilégio de cantar essas pa-
milhações, foi tão esmagado sob o peso lavras numa época em que toda a Escritura
da oposição internacional (Atos 4.27), foi está disponível em forma escrita; o salmis-
baixado ao pó da morte, recebeu o lugar ta teve o privilégio de celebrar a realidade
mais alto que há no céu, "acima de todo fundamental de que, independentemente
principado, e potestade [...] e de todo nome da forma em que ela existia, a palavra de
que se possa referir"? E (23) quem pode- Deus é fundamental para a vida do povo
ria ter feito isso, senão o próprio Senhor de Deus. Nosso Deus é um Deus que fala,
(Is 53.10; At 2.23; Fp 2.9-11). e é a posse dessa revelação verbal que dis-
24 O dia. O dia em que alguém orou tingue seu povo de todos os outros povos
sob extrema pressão e enfrentou todas as da terra.
circunstâncias com confiança em Deus Ao referir-se a esta "palavra de Deus"
(5-7); o dia em que ele enfrentou e venceu (coisa que ele faz em quase todos os seus
as forças dos exércitos do mundo reunidos 176 versículos), o salmo usa nove palavras
(10-12); o dia em que sofreu a hostilidade principais. Estas podem ser categorizadas
de um único inimigo (13, lit. "tu me em- em cinco grupos: (i) A palavra gerada pela
purraste", Jo 12.31) e saiu cantando e vi- fala divina. Palavra(s) (Heb. dãbãr, 9,16,
torioso (13,14); o dia em que ele saiu vivo 17,25,28,42,43,49,57,65,74,81,89,101, I 05,
da ameaça mortal e do castigo do Senhor 107,114,130,139,147,160,161,169) e pala-
(17,18) e, integralmente justo, passou pela vra/promessa(s) (heb. ' imrãh, 11,38,41,50,
porta e entrou na presença de Deus (19-21); 58,67,76,82, I 03, 116, 123, 133, 140, 148,
o dia em que a Pedra rejeitada se tomou 154,158,162,170,172) têm raízes em verbos
a cumeeira (22) - um dia e tanto na mão ligados à fala. A "palavra" é o que o pró-
criativa de Deus! prio Deus falou - quer diretamente, como
O v. 27 é uma peça muito obscura do a Abraão (Gn 17.1) ou a Moisés e por meio
hebraico. Adornai a festa poderia ser, tal- dele ou de qualquer um dos outros profetas
vez, "preparai a festa", mas em todos os (e.g., Êx 3.5; 19.9; Am 1.1,3).
SALMO 119 856

(ii) São usadas duas palavras que afir- 30,54,70,127,140,159,167), o compromis-


mam que esta palavra expressa o pensa- so de obedecer (17,34,60,100,106,129), a
mento de Deus:juízos (Heb. mishpãt 7,13, palavra mantida resolutamente em tempos
20,30,39,43,52,62,75,84,91,102,106,108, de dificuldade (51,61,83,87,95,109,110,14
120,132,137,149,156,160,164,175) vem 3,157,161). O interesse pela palavra serve
do verbo "dar sentença", decidir o que de argumento para pedir misericórdia (77)
é certo e o que é errado; testemunho(s) e livramento (153); o Senhor é sempre tão
(Heb. 'êdãh 2,14,22,24,31,36,46,59,79, bom quanto sua palavra (41,59,65,76,116,
88; "êdut (95,99,111,119,125,129,138, 154,170). Este salmo é um tesouro inesgo-
144,152,157,167,168) vem do verbo "dar tável. Ele é quase inteiramente um salmo
testemunho": em sua palavra, Deus "dá de oração, pois é todo dirigido ao Senhor
testemunho" de si mesmo, de sua nature- e vem de um coração verdadeiramente hu-
za e de sua autenticidade. mano em toda a sua fragilidade e falibili-
(iii) A importância permanente da pala- dade. Por maior que seja o nosso desejo de
vra de Deus é expressa por decretos (Heb. obedecer, de manter a palavra do Senhor
hõq 5,8,12,16,23,26,33,48,54,64,68,71 ,80, em primeiro lugar no pensamento e na
83,112,117,118,124,135,145,155,171 ). vida, continuamos sendo, até o fim, como
Derivada do verbo "gravar", "entalhar", ovelha desgarrada, precisando do cuidado
ela indica algo "gravado na pedra" para do Pastor (176).
perpetuidade. Embora ocasionalmente escrevendo
(iv) A autoridade da palavra e o amor um terceto (48,176), em todo o poema o
que a gerou estão amalgamados na descri- poeta dedica oito dísticos a cada letra do
ção lei (Heb. torãh 1,18,29,34,44,51,53,55, alfabeto em sequência. Mas, como sem-
61,70,72,77 ,85,92,97,109,113,126,136, pre ocorre na poesia hebraica, a forma
142,150,153,163,165,174). Embora a pa- está subordinada ao conteúdo, e cada se-
lavra seja usada para expressar imposição ção alfabética é uma declaração cuidado-
com base em autoridade, fundamental- samente composta.
mente ela significa "ensino" e é especifi- 1-8 Álej. O grande "tomara". Como
camente (Pv 3.1) a instrução que um pai é característico em todo este salmo, a se-
consciencioso dá a um filho amado. ção de abertura afirma que a obediência à
(v) Finalmente, a palavra de Deus pro- palavra de Deus é a chave para a vida. O
jetada para aplicação prática na vida. São os grande clamor do v. 5 é o pivô da seção.
mandamento(s) (Heb. mitswãh 6,10,19,21, Duplamente bem-aventurados são os que
32,35,47,48,60,66,73,86,96,98,115,127, vivem pela palavra de Deus com constân-
131,143,151,127,131,143,151,166,172, cia e compromisso (1-3), pois é a palavra
176). Se existe alguma distinção prática en- dele e ele quer que seja obedecida (4). Ah,
tre esta palavra e a próxima, é que manda- quem dera eu fosse assim (5) - pois, des-
mentos traduz a ideia simples de "fazer o que te modo, não haveria esperanças frustradas
lhe é ordenado", enquanto preceitos (Heb. (6), e sim louvor (7). Com a ajuda de Deus,
piqqud 4,15,27,40,45,56,63,69,78,87,93, eu obedecerei (8). Os v. 1-4 são bem obje-
94,100,104,110,128,134,141,159,168,173) tivos: estes são os fatos. Bem-aventurados
sugere a aplicação da palavra de Deus às (1,2) sob aprovação divina; irrepreensiveis,
mínimas coisas da vida, e caminhos (Heb. uma vida totalmente "integrada" em tomo
derek 3,15,37) é o que hoje chamamos de da lei do Senhor, exteriormente (andam)
"estilo de vida". e interiormente (coração); não praticam,
Todas essas palavras aparecem envolvi- "tomaram a decisão firme de não praticar".
das por certas ênfases que se repetem, por Tu (4), enfático, "Tu mesmo". Os v. 5-8
exemplo, o amor à palavra de Deus (16, são subjetivos: anseio pessoal, expectativa
857 SALMO 119

e resolução. Firmes. Este é o ideal de "ser- a obediência); 19,20 (o salmista como um


mos decididos e firmes no nosso cami- forasteiro na terra) combinam com 23,24
nho". Envergonhar, ficar desapontado com (o salmista como objeto de repreensão).
a vida. Teus decretos (8) é uma expressão Nossas paixões não facilitam em nada a
enfática, combinando com o tu do v. 4. vida em santidade (9); e, diz Guimel, as
9-16 Bêt. O coração absorto. Álef ex- circunstâncias em que vivemos também
prime um anseio (5), mas a atitude prática não. A terra é um lugar estranho (19); a
depois disso é focalizar esse anseio na pa- sociedade contém pessoas que abandona-
lavra de Deus e no próprio Senhor (10,12). ram a palavra (21), e enfrentamos oposição
É apresentado o caso de um jovem, i.e., pessoal - até mesmo oficial.
uma situação em que a vida de pureza está Como podemos viver a vida de Deus
sob constante pressão. A possibilidade de nas cortes da terra? Primeiramente (17,18),
levar uma vida pura depende da orientação requisitando ação divina. Sê generoso, "dá-
da vontade (10), do conteúdo dos pensa- me provisão completa para". Desvenda.
mentos e da memória (11), das preocupa- Na "provisão completa" solicitada, uma
ções da boca (13) e das emoções (14,16), coisa é especificada: a capacidade de en-
dos assuntos dos pensamentos (15,16). A tender todas as maravilhas da palavra. Em
vida exterior (caminho) é fruto de fato- segundo lugar (19,20), reconhecendo os
res interiores, todos contidos na palavra, fatos da situação e mantendo uma ordem
mas centralizados no Senhor em lou- de prioridades correta. Peregrino, forastei-
vor e instrução (12). 9 De que maneira, ro residente. Entretanto, apesar das possí-
uma questão prática, "por quais meios?". veis dificuldades de uma vida como essa, o
O problema se manifesta exteriormen- que ele busca ardentemente não é conforto
te (9), mas a solução (10-16) é interior. terreno, provisão ou até a volta ao lar, mas
10 A orientação deliberada (busquei) do sim o conhecimento da palavra de Deus.
coração (todo o ser interior) em direção Em terceiro lugar (21,22), o equivalente
a Deus e a prática de orações específicas. negativo do anterior: o anseio pela provi-
11 O coração abastecido com a palavra é são divina (17-20) se combina com a ação
o remédio para não pecar. 13 O versículo de evitar o desgosto divino por meio do
inicia com lábios humanos e termina com a compromisso com a obediência. Em quar-
boca divina: falando a nós mesmos ou aos to lugar (23,24), a qualquer custo (inclusi-
outros, nossa conversa está repleta daquilo ve a desaprovação de pessoas influentes), a
que Deus disse. 15 Até este ponto, os ver- palavra do Senhor domina o pensamento,
bos principais foram exemplos "perfeitos as emoções e o conselho prático que orien-
de determinação" ("eu estou determinado ta a vida.
a buscar... a guardar... a narrar... a me re- 25-32 Dálet. Tempo de tribulação,
gozijar"). Pensamentos paralelos são agora tempo de...? A situação apresentada em
postos em forma de oração: "Oh, deixa-me Guimel, um forasteiro num ambiente estra-
meditar... considerar". Nossos compro- nho, é real. Humilhação (25), cansaço (28),
missos precisam ser banhados em oração. tentação (29), frustrações (31) fazem par-
16 Uma última decisão tranquila concen- te da vida. Acontecimentos "nos abatem"
tra-se no uso apropriado das emoções e da (25, "minha alma gruda no pó"), a vida se
memória (16). toma demais (28, "minha alma não dorme
17-24 Guimel. O dependente do Senhor. por causa da depressão"). Porém, mais do
Os versículos se agrupam em pares: 17,18 que qualquer coisa, o tempo de tribulação
(atos de Deus permitindo a obediência) deve ser um tempo de oração.
combinam com 21,22 (atos de Deus cas- Esses oito versículos contêm sete ora-
tigando a desobediência e recompensando ções. Oração por renovação (vivifica, 25),
SALMO 119 858

aumento do conhecimento e da compreen- (Guímel) cheio de pressões (Dálet) e com


são na prática (26,27), força na necessi- um coração dividido (Hê). Um ingrediente
dade (28), graça, ou favor divino para o é mais importante que qualquer outro, as
necessitado que não merece (29), e por misericórdias e a salvação que o Senhor
um resultado favorável (31). O tempo de prometeu (41) ~ a misericórdia que sabe,
tribulação é também um tempo de com- cuida, provê e nunca falha, e a salvação que
promisso especial, tempo de fixar a mente surge para livrar na hora da necessidade.
na maravilhosa palavra do Senhor (27), de Daí a importância do "e" com o v. 41,
escolher e firmar o coração na sua verdade como se dissesse "e, claro, isso também".
(30), de enfrentar a tribulação com obediên- Então, vêm as "coisas que acompanham a
cia (31, "me apego aos teus estatutos"), de salvação" (42-48). Os v. 42,43 comparti-
se esforçar ("percorrerei"). Deus sempre lham o tema do testemunho oral: os que
será fiel à sua palavra (25b,28b,29b, me- conhecem o amor e a salvação do Senhor
lhor "de acordo com a tua lei"). falam sobre isso. Podemos confiar que a
33-40 He. Renovação interior, man- palavra de Deus responderá até mesmo ao
tendo o coração íntegro. O espírito de de- questionador hostil (42), mas (43) a pala-
pendência continua com nove pedidos em vra só pode ser usada com consentimento
oito versículos. Entretanto, o que ameaça a divino, e tem de haver uma sensível depen-
progressão no caminho do Senhor (32) não dência da boa-vontade divina em todos os
é o ambiente hostil (Guímel), nem as difi- momentos. Os v. 44-46 estão ligados por
culdades da vida (Dálet), e sim, o coração uma forma verbal mais forte que o futu-
inconstante que deseja obedecer (34), mas ro simples eu irei, podendo ser traduzida
pode ser facilmente atraído para propósi- por "eu prometo que irei". O testemunho
tos egoístas (36) e a seguir as seduções dos requer o contexto de uma vida obediente
olhos (37). Portanto, há uma tensão dentro (44), uma vida que demonstra a verdadeira
do próprio coração: a lealdade do coração liberdade que a obediência traz (45). Deste
ameaçada pela deslealdade do coração. A modo, não há embaraço nem medo do fra-
solução é a oração: só o Senhor pode man- casso, mesmo testemunhando diante de
ter o "caminho" obediente (33, seguirei, reis (46). Os v. 47,48 têm como elo o amor
lit., "o caminho dos teus decretos"), o co- pela palavra, pois a boca que fala a palavra
ração íntegro (34), guiar-nos à verdadeira (42,43) e a vida que a exemplifica (44-46)
felicidade (35), impedir-nos de buscar coi- têm de brotar de um coração que a ama.
sas que não têm valor (36,37), livrar-nos 49-56 Zain. Fideicomissário do mun-
da frustração (39, opróbrio) e renovar as do. Muitas coisas geram a reação "Por que
fontes da vida (40, vivifica). A seção se di- eu deveria continuar me importando?"
vide em três partes: 33-35, compromisso ~ angústia (50), zombaria (51) ou o fato
total, guardar a palavra de Deus de todo o de que ninguém mais parece se importar
coração; 36,37, perigos internos, o coração (53). Nesses momentos, o salmista con-
dividido; 38-40, cuidado e suprimento di- tinuava centrando sua vida na palavra de
vino e fiel. Deus, descobrindo que as promessas divi-
41-48 Vav. Progresso constante. Cada nas traziam renovação (50, vivifica); que
versículo deste grupo começa com "e". o período de oposição era justamente a
Isso não é apenas um recurso para usar a hora de se agarrar com o ensino do Senhor
letra Vav (que, como prefixo, significa "e"), (51); que os juízos de Deus traziam con-
mas é toda a mensagem da seção: há coisas solo (52); e que os momentos tenebrosos
que ocorrem em sequência. As seções an- da vida precisavam ser enfrentados com
teriores lutaram com o problema de viver uma resoluta "observância" (a "observân-
uma vida pura (Bêt) num mundo estranho cia" do servo, 55) e constante conservação
859 SALMO 119

(56, guardo, Iit. "mantenho intactos"), a lugar - seja hostil, privado ou público-
guarda do Fideicomissário. 49,50 A palavra a misericórdia de Deus está por toda parte.
de esperança e consolo. Promessa ... pala- Portanto, toda situação deve ser usada para
vra, "fala". A palavra tem origem na boca agradar a Deus - guardando a palavra na
do Senhor; consequentemente, ela trans- adversidade (61), organizando a vida para
mite (garantida) esperança e é uma força arranjar tempo para nos deleitarmos com a
revitalizante (50, vivifica, "renova"). 51,52 palavra (62), fazendo amizade com os que
A palavra firmemente defendida contra os seguem a palavra (63).
escamecedores: oposição irrestrita enfren- 65-72 Têt. Graduando-se na escola
tada por meio de compromisso firme, tra- do Senhor. Em Hêt, somos convocados
zendo conforto. 53,54 A palavra na tristeza a reorganizar nossa vida com base no que
e na canção. As pessoas adotam referen- o Senhor é; Têt se estende nesse redire-
ciais diferentes, e o mundo é um lugar hos- cionamento da nossa vida realizado pelo
til (casa da minha peregrinação, 54, "vivo Senhor. Somos alunos da sua escola da
como forasteiro", cf v. 19). Essas pressões aflição (67,70), ele é o Diretor da escola,
não o moldam, mas lhe causam revolta e e o prêmio pela graduação é o tesouro da
tomam as alegrias da palavra ainda mais sua palavra. 65-67 O surpreendente be-
preciosas. 55,56 A palavra a ser guarda- nefício da aflição. O Senhor cumpriu sua
da, ver acima. A seção Zain contrabalança palavra fazendo o bem ao seu servo (65,
qualquer impressão que a seção Vav tenha lit. "Tu fizeste bem..."); isso leva o servo
deixado de que a vida é vitória atrás de vi- a pedir que mais coisas lhe sejam ensina-
tória. A largueza ("liberdade", ARe) que a das (66), confiando no que o Senhor de-
palavra traz (45), a ousadia (46) e o prazer termina, ainda que a escola onde ele rece-
(47,48) precisam ser salvaguardados pela be os benefícios seja a escola da aflição.
tarefa muitas vezes estafante de agarrar-se 68-70 O benefício de um coração resoluto
firmemente à palavra. e alegre. Como o Senhor é bom, aconteça
57-64 Hêt. A organização da vida. A o que acontecer, ele só pode fazer o bem.
seção começa e termina dirigindo-se ao Podemos, portanto, ser alunos aplicados
SENHOR, falando de sua suficiência para em sua escola, comprometendo-nos a com-
mim e de seu amor fiel que enche toda a bater as mentiras com a obediência sincera
vida. Como reagimos àquele que é todo- à sua palavra (cf 56) e a desenvolver um
suficiente (57-60)'1 E como vivemos em coração verdadeiramente sensível, culti-
relação a alguém cujo amor se encontra vando o prazer em meditar na sua lei (70).
em toda parte (61-64)'1 Nós somos como 71,72 Benefícios da escola da aflição. Foi
a tribo de Levi (Js 13.14,33; 18.7) que não nessa escola que ele aprendeu os decretos
precisava de nenhuma outra fonte de su- do Senhor (i.e., sua palavra designada para
primento além do Senhor. Nossa resposta ser obedecida por nós) e aprendeu também
é quádrupla: assumir o compromisso de que a sua lei é um grande tesouro (i.e.,
obedecer (57), buscar de todo o coração o sua lei designada para nossa instrução).
seu favor e graça imerecida (58), analisar Observe o destaque da ideia de "bom" nes-
e modificar nosso modo de agir com de- ta seção: o que o Senhor fez (65, v. acima),
terminação (59) e obedecer prontamente o que ele é (68) e o que ele nos concede em
(60). Em suma, uma vida comprometida sua escola (71,72).
com a palavra de Deus, confiante em suas 73-80 [ode. Fazendo do sofrimento
promessas e conforme os seus estatutos. um testemunho. Na aflição, o salmista co-
Exteriormente, há adversários a enfrentar lheu benefício (de acordo com Têt), mas
(61), um programa a organizar (62), ami- agora descobrimos que ele está interessa-
gos a cultivar (63), pois em toda situação e do em viver de tal forma em aflição que
SALMO 119 860

o beneficio possa alcançar outros também. na realidade, ela é o melhor remédio. O


Os mesmos agentes humanos que causam sofrimento muitas vezes é prolongado
aflição reaparecem (78, cf 69), mas ele ora - desfalece (81), esmorecem (82), quan-
para poder suportar sua hostilidade, de ma- tos... dias (84) - mas, quando já não
neira que aqueles que te temem possam se aguentamos mais, existe também um lu-
alegrar na firmeza da sua esperança (74) e gar chamado "Esperança" (81,82) e outro
se juntar a ele (79). O início, o meio e o chamado "Obediência" (83,87). O sofri-
fim desta seção são compostos de orações mento pode causar extremo desconforto.
pedindo beneficios pessoais; depois, ele Ele pode ser provocado por pessoas hostis
passa à oração por outras pessoas e à in- e pode ser imerecido, mas o afastamento
fluência de um bom exemplo; além disso, deles da lei de Deus (85) tem de ser supe-
ele equilibra os dois agentes da aflição: o rado pela nossa obediência (88). A pala-
Senhor fiel e as pessoas hostis. 73 Me afei- vra fiel continua sendo nossa regra para
çoaram é antes "me estabeleceram": con- o presente (83,87,88) e a nossa esperança
sequentemente, "tu me fizeste o que sou e para o futuro (81,82).
me colocaste onde estou". Fizeram inclui 89-96 Lâmed. Palavra sem fim. A
todas as forças pelas quais o Senhor molda palavra hebraica que significa "para sem-
o nosso caráter. As "pressões" da vida são pre", traduzida por para sempre (89) e
as mãos do Oleiro. Ensina-me. A oração nunca (93), divide a seção em duas partes:
não pede instrução, mas "discernimento", a palavra do Senhor e o compromisso com
a capacidade de enxergar o cerne da verda- ela são igualmente "para sempre". O pen-
de de Deus. Essa seção trata especialmente samento se move da palavra no céu (89)
da avaliação do mundo do ponto de vista para a palavra desfrutada pessoalmente
interior: discernimento e aprendizado (73), (92), e depois desta (93) para a palavra em
confiança no futuro (74), conhecimento sua própria natureza ilimitada (96). Tua
(75), consolo (76), prazer (77), meditação palavra (89), que expressa a natureza e a
(78) e um coração irrepreensivel (80), i.e., vontade do Senhor, é o ponto fixo do céu.
um ser interior no qual todas as capacida- Mas o Senhor é o mesmo na terra (90). Sua
des são perfeitamente integradas em tomo fidelidade, coerência invariável, permane-
da palavra. Esta era a sua oração, seu alvo ce, sustentando sucessivas gerações e dan-
e seu compromisso num tempo de aflição do estabilidade à terra em que habitam.
(75) e sofrimento imerecido (78)! De fato, tão grande é sua invariabilidade
81-88 Caf, O fim das forças. A aflição que ele é o mesmo hoje, e tão absoluto é
continua. Seus oponentes são os mesmos o seu domínio que todas as coisas - tan-
(85, cf 69,78), o sofrimento é imerecido to boas quanto más - fazem a sua von-
(86, cf 69,78), e ele chegou ao fim de suas tade (91). E, no nível pessoal, acontece a
forças. Os v. 81-84 exprimem urgência e mesma coisa. A palavra eterna dá durabi-
suplica que o Senhor mude a situação; os lidade à pessoa que tem prazer nela. Isso
v. 85-88 oram por ajuda e renovação (88, leva naturalmente ao compromisso, pois a
vivifica-me) nessa situação. A seção inteira palavra que guardou da morte trouxe tam-
é uma oração, alternando declarações com bém renovação (me tens dado vida, 93).
súplicas à medida que ele expõe diante do Esse compromisso com a palavra marca os
Senhor os fatos e as necessidades da vida: e que são do Senhor (94). Ainda no mesmo
esta é a principal lição a ser aprendida, a de período de hostilidade (95, cf 69,78,85), a
que, quando já não aguentamos mais, exis- preocupação deve estar centrada nos teste-
te um lugar chamado "Oração". Com mui- munhos do Senhor (sua palavra declaran-
ta frequência, a primeira baixa que sofre- do o que ele é e o que ele exige). Este é o
mos na hora da aflição é a oração, quando, caminho da vida, pois "em todas as coisas
861 SALMO 119

finitas vejo um fator limitante, mas os teus manas em meio às dificuldades da


mandamentos significam verdadeira liber- vida, lembrada e observada.
dade" (96, cf 45). N (v. 111,112) Uma resposta alegre e a pa-
97-104 Mem. A palavra deliciosa. lavra como o guia para a vida: posse e
A essência desta seção encontra-se entre orientação.
duas exclamações iniciadas por Quanto/
Quão: 97, quanto amo, prazer subjetivo na 105 Lâmpada... luz. Provavelmente a
palavra; 103, quão doces, a delícia objetiva lâmpada para iluminar o próximo passo, a
da palavra. O v. 104 é um sumário conclu- luz para iluminar o caminho à frente. 106
sivo. Somos ensinados (97-100) que a pa- Juramento. A ideia de compromisso vo-
lavra deliciosa instrui a mente: na medida luntário é forte nesta seção. Os verbos usa-
em que o amor à palavra faz com que me- dos em 109,110 exprimem determinação:
ditemos prolongadamente nela, recebemos "Estou determinado a não esquecer... a não
uma sabedoria superior a todas as ameaças me desviar". Não devemos esperar ser le-
(98), maior que a sabedoria humana (99), vados por acaso à devoção pela palavra!
melhor que a tradição (100). Além disso, a 107 Vivifica, "renova". 108 Espontânea
deliciosa palavra orienta a vida (10 l-I 03): oferenda, devoções deliberadas, feitas por
ela ensina o que devemos evitar e o que de- vontade própria. Os v. 109,110 combinam
vemos fazer. Ela é a voz educadora do pró- riscos assumidos necessariamente durante
prio Senhor, e é intrinsecamente prazerosa. o curso da vida com riscos provocados pela
Em suma (104), este é o caminho para uma hostilidade de terceiros. Deste modo, todos
mente sadia (entendimento, compreensão e os perigos possíveis estão incluídos: todo
discernimento da verdade), para emoções o precário curso da vida deve ser manti-
confiáveis (detesto) e para uma vida justa do debaixo da palavra. 111,112 O coração
(caminho). Observe a sequência: a medi- alegre precisa estar ligado com o "coração
tação constante (97,98,99) transforma-se dirigido" (112), lit., "inclinei/dirigi meu
em obediência (100), o poder da palavra coração para cumprir os teus decretos".
para mudar nossa vida. Obediência (10 I) Alegria sem obediência é frivolidade; obe-
nascida do reconhecimento da divina auto- diência sem alegria é moralismo.
ridade da palavra (102) transforma-se em 113-120 Sãmeq, Firmeza, não condes-
prazer (103). cendência. O salmista contrasta com os in-
105-112 Nun. A palavra prática. As decisos, os malfeitores, os que se desviam
duras realidades da vida que aparecem nas e os ímpios. O ponto que os distingue de
seções anteriores estão presentes aqui como modo visível é a palavra, amada (113,119),
uma aflição indefinida (107) e como ciladas guardada (115, cf 56), lugar de refúgio
dos ímpios (110). Esse é o contexto do que e base para a esperança (114), foco no
é dito a respeito da palavra. Ela deve ser qual se deve atentar firmemente (117, lit.,
usada na vida real, num mundo real. Como "Olharei/Oh, possa eu sempre manter meu
ocorre com as outras seções, esta tem uma olhar fixo em..."), Mas o que os distingue
estrutura claramente definida: interiormente é o Senhor: pois esperar na
palavra é refugiar-se no Senhor (114); a
AI (v. 105,106) A palavra como um guia palavra constitui os mandamentos do meu
para a vida e uma solene resposta: a Deus (115); o temor da palavra e o temor
lâmpada e o juramento. do Senhor andam juntos (120).
B 1 (v. 107,108) A palavra na mão do Por outro lado, os que procuram um
Senhor em meio às dificuldades da meio-termo e os ímpios, ao rejeitarem a
vida, apta para renovar e ensinar. palavra, são rejeitados pelo Senhor (118):
B 2 (v. 109,110) A palavra em mãos hu- estando errados com sua palavra, eles
SALMO 119 862

não podem estar certos com ele. Desta amar a palavra do Senhor como nosso
maneira, Sâmeq desenvolve a ênfase no principal tesouro (127), aceitar sua total
compromisso de Nun. Esse compromisso correção (128a, lit., "todos os teus precei-
não é opcional nem negociável, mas in- tos sobre todos os assuntos") e abominar
trínseco à vida em comunhão e paz com todas as alternativas (128b). Aprendemos
o Senhor. A estrutura da seção esclarece aqui o contexto em que o Senhor, se assim
sua mensagem. o desejar, concede reavivamento? Oração,
conhecimento e amor por sua verdade,
AI (v. 113,114) Amor e refúgio aversão aos caminhos errados.
B' (v. 115) Separação decisiva 129-136 Pê. A lâmpada de filamento
CI (v. 116) Oração por amparo duplo. Em Áin, olhos cansados só conse-
C2 (v. 117) Oração por amparo guiam ver as trevas se tornando mais es-
B 2 (v. 118) Rejeição divina pessas. Agora, uma porta se abre para a
N(v.119,120)Amoretemor luz - a luz da palavra (130) que, antes do
final da seção, tornou-se a luz do Senhor
Assim, esta seção trata de uma pessoa (135). Entretanto, a situação é a mesma:
diferente, interior (113), vertical (114) e sua opinião pessoal sobre o caráter sobre-
exteriormente (115); uma vida amparada, natural da palavra do Senhor (129), deli-
de acordo com a promessa (116), trazendo mitada por parênteses que falam de sua
livramento (117); e um Deus que faz dis- tristeza por causa da zombaria de que a pa-
tinção: a base para a rejeição (118); uma lavra é alvo (136). Entre esses parênteses,
reação diferente: amor (119), um verdadei- encontramos:
ro temor (120).
121-128 Áin. Um plano para tempos AI (v. 130) A luz da palavra do Senhor
perigosos. O servo do Senhor vê que, ape- B\ (v. 131,132) A misericórdia divina,
sar de sua determinação de ser uma luz no satisfazendo a fome pela palavra
mundo, as pessoas opressivas e arrogan- B2 (v. 133,134) Redenção divina, tra-
tes predominam - e quanto tempo mais zendo liberdade
ele conseguirá aguentar (123)? A verdade N (v. 135) A luz do favor de Deus
divina é desprezada e o resultado final é
que só a ação divina poderá resolver (126). 129 Admiráveis, semelhante à nossa
Intervires (126) é o mesmo verbo de prati- palavra "sobrenatural". Observa, "salva-
cado (121), como se fosse "todos os meus guarda/protege /mantém intacta", (cf 56).
esforços fracassaram; é hora de assumi- Uma coisa que é única precisa de prote-
res". Deste modo, 126 é o clímax a que o ção. 130 Revelação (lit.) "porta, abertu-
trecho de 121-125 conduz, mas também é ra". O significado pode ser que, quando a
um pivô entre dois versículos de oração palavra se abre como uma porta, a luz do
(124,125) e dois versículos de declaração Senhor passa através dela. Isto é parte do
de fidelidade (127,128). Quando uma pes- caráter sobrenatural da palavra. Simples.
soa diz "tu precisas intervir" (126) e "eu Alguém que, se deixado sozinho, não tem
não posso fazer mais" (121-123), ela não nenhum princípio de orientação. 131,132
está escolhendo sair da competição e pas- O desejo ardente pela palavra e o amor
sando a vez a outro. As orações adequadas pelo Senhor andam juntos. É só por pie-
do servo pedindo segurança para si são dade (favor divino para com os que não
moduladas em orações para aprender e merecem) que a palavra é concedida para
compreender a verdade divina (125). Além alimentar a alma faminta. 133 Domine,
disso, afirmar a necessidade de ação divina "tenha controle", de modo que a liberdade
tem uma consequência (Por isso, 128a): de obedecer à palavra seja restringida ou
863 SALMO 119

destruída. 134 Livra-me, "paga o preço do meditação bíblica. No v. 149, a oração


resgate", assume a responsabilidade pelo não se baseia em compromissos humanos,
custo necessário. mas no amor do Senhor; v. 150,151 con-
137-144 Tsade. Senhor justo, palavra trastam duas "proximidades", e o v. 152
justa. Por que é que, quando a palavra dá arremata a seção com a verdade da palavra
luz, o Senhor dá luz (l30,135)? Tsadê res- eterna. 145-148 Perto do Senhor. A oração
ponde: Porque o Senhor se expressa e se é: (i) inseparável da obediência. Sem um
toma conhecido de modo perfeito e eterno compromisso moral sério, a intercessão é
em sua palavra: Ele éjusto (137) e sua pa- meramente egoísta; (ii) inseparável da au-
lavra tem justiça (144), teus testemunhos tonegação: não que a nossa urgência tome
(138) são "impostos com justiça" e (142) a oração eficaz, mas na verdadeira oração
sua própria justiça é justiça eterna. O "ca- existe um elemento de compromisso sacri-
samento" entre os dois é perfeito. 137,138 ficial; (iii) inseparável da palavra de Deus.
A palavra expressa o Senhor. Juízos, as Sem sua palavra, não temos condições de
decisões do Senhor, revelando sua mente; saber o que podemos esperar ou pedir.
testemunhos, o que ele "testificá", revelan- 149-152 O Senhor está perto. Quanto mais
do-se; impuseste, "ordenaste", revelando próximos os perigos da vida, mais perto
sua vontade. Assim, aquele que é justo está o Senhor. Perto (151) é uma palavra
dá ordens justas. Ele e sua palavra são ligada ao "resgatador", o parente mais
um. 139,140 A palavra cativa o servo do próximo. O Senhor se comprometeu a ser
Senhor. Ao se defrontar com inimigos, sua nosso parente mais próximo - aquele que,
primeira preocupação é com o prestígio quando estamos desamparados, assume a
da palavra; ao se defrontar com a palavra, responsabilidade pelo suprimento de todas
em toda a sua refinada pureza (puríssima, as nossas necessidades. Sua proximidade
"extraordinariamente refinada"), seu cora- está ligada, portanto, à sua bondade (fide-
ção explode de amor. 141,142 A palavra lidade amorosa prometida em compromis-
preocupa sua mente. Posição (pequeno) e so); e a nossa garantia de que ele é o nosso
reputação (desprezado) não são importan- parente mais próximo reside em seu teste-
tes, comparados com ter a palavra clara na munho imutável (prescrições) sobre o que
mente. O Senhor eternamente justo falou, ele é e o que faz. Mas, além disso, como
e sua palavra é a "verdade" em si. Que o Senhor e a sua palavra são um (v. Pê,
reflexão pessoal pode ser superior a isso? Tsade), a palavra é o seu agente renovador
143,144 A palavra traz vida. A qualidade da vida (149, vivifica).
de vida é ameaçada por tribulação e an- 153-160 Rêsh. Três coisas confiáveis.
gústia (143, "adversidade e pressão"), mas O salmista confiável que não se esque-
um tipo diferente de prazer é dado pela pa- ce da palavra (153), o Senhor confiável
lavra. Consequentemente, o alvo da oração (154,156,159) e a palavra confiável que
é inteligência, "discernimento", porque nunca muda (160). Mas a confiabilidade
este é o caminho para a vida de verdade. humana não pode ser considerada como
145-152 CO.f: A presença sentida. As algo garantido. A vida é marcada por afli-
duas metades da seção Cal correspondem ção, e a presença corrosiva de pessoas ím-
a Tiago 4.8: "Chegai-vos a Deus" (145- pias e infiéis ("traidoras"). A vida precisa
148), "e ele se chegará a vós" (149-152). de constante renovação, que depende do
Os v. 145,146 são ligados pela palavra co- amor, da promessa e da decisão do Senhor.
mum clamo; os v. 147,148 começam com Essa repetição da oração pedindo renova-
o mesmo verbo, (lit.) "antecipo-me... meus ção constitui o cerne desta seção.
olhos antecipam-se...", e juntos abran- 153,154 (AI) Vê a minha necessidade.
gem uma sessão de 24 horas de oração e Defende a minha causa. O salmista está so-
SALMO 120 864

frendo acusação. Livra (assim como perto, o que odiar; a batalha é pela persistência
151) pertence ao vocabulário do parente paciente até que o Senhor aja. Mas é a obe-
mais próximo: o "resgatador" se identifica diência o selo de qualidade do amor, e é
com seu parente atribulado, assume e salda por meio da obediência que agradamos ao
todas as suas dívidas, supre todas as suas Senhor (168).
necessidades. Em meio a essa situação 169-176 Tau. Errante, mas obedien-
difícil, a fidelidade à palavra permanece. te! Os v. 169,170 ligados por chegue a ti,
155 (B 1) Os ímpios. Os que se afastam são orações em que o salmista pede para
da palavra não podem esperar nenhuma ser ouvido e para que o Senhor aja confor-
intervenção salvadora da parte de Deus. me a sua palavra, operando interiormente
156,157 (C) Muitas misericórdias. Muitos (entendimento, "discernimento") e exte-
adversários. A misericórdia é o amor de riormente (livra-me). Os v. 171,172 estão
Deus que se comove prontamente. O amor ligados por referências a lábios e língua,
do Senhor corre ao nosso encontro e é e são ambos orações pedindo receptivida-
equivalente à dimensão de cada ameaça. de à palavra ensinada e reconhecida pelo
158 (B 2) Os traidores. Falsos com as pesso- que ela é. Os v. 173,174 pedem e anseiam
as, eles não têm compromisso com a pala- por ação divina, baseando seus pedidos na
vra. 159,160 (A") Vê o meu amor. Alertado reação (escolhi ... prazer) já demonstrada
pelo que acontece com os que ignoram a diante da palavra. Os v. 175,176 enfocam
palavra (158) e, portanto, não podem espe- necessidades pessoais, a sensação das forças
rar livramento (155), o salmista afirma seu se esgotando e a tendência a se desgarrar. A
amor pela palavra e sua eterna verdade. chave para a vitalidade e a recuperação é
161-168 Sin e Shin. Palavra valoriza- não esquecer a palavra sustentadora.
da, vida constante. Se seguirmos a distri- Os quatro primeiros versículos (169-
buição das letras iniciais Sin e Shin, esta 172, que poderiam ser intitulados "Ouve,
seção se divide em três partes: 161-163; Senhor!") estão centrados na voz do sal-
164-166; 167,168. Elas tratam, respecti- mista, com os temas de oração e louvor
vamente, do coração fiel (o que ele teme, baseados na palavra, considerada como
o que ele valoriza, o que ele ama), a vida aquilo que o Senhor disse e que é rece-
fiel (louva constantemente, não tropeça, é bido como ensino e ordem. Os quatro
obediente) e o observador fiel ("observân- últimos versículos (173-176, que pode-
cia" obediente que nasce do amor e cujo riam ser intitulados "Age, Senhor!") são
objetivo é agradar). O verbo "amar" ocorre a voz do testemunho (Escolhi... suspiro...
em todas as seções: o coração fiel guarda errante... não me esqueço) brotando da
seu amor pelo ensino do Senhor (163) por vontade, das emoções, da vida em si e
meio da correspondente aversão pelo que da mente/memória concentrada na pala-
é falso; a vida fiel desfruta de paz (integri- vra. Cada conjunto de quatro versículos
dade; paz com Deus, com as pessoas, e paz termina com a palavra considerada como
de espírito; uma vida completa e equilibra- mandamentos (172,176). De fato, uma
da) em consequência de amar o ensino do conclusão apropriada!
Senhor (165); o observador fiel é motiva-
do por amor pelo que o Senhor testificou Salmos 120-136.
a respeito de si mesmo (167). A vida que Louvor do peregrino
está determinada a ser fiel - sob pressão Provavelmente ° mais gracioso grupo
e com dedicação - encontra realização de salmos de todo o Saltério, os salmos
e paz; mas também enfrenta conflito mo- 120---134 se auto definem como "Cânticos
ral, pois não existe fidelidade que não seja de Degraus", embora sem explicação algu-
desafiada. A escolha é entre o que amar e ma de como se deve entender esse título. A
865 SALMO 120

palavra, lit., "subidas", é traduzida por de- (SI 120-131) apresentam as seguintes ca-
graus(Êx20.26; lRs 1O.19s.;cj2Rs20.9s.; racterísticas em comum: o primeiro salmo
Am 9.6) e também é usada, em uma oca- de cada grupo expõe uma situação de afli-
sião, com referência à jornada de "subida" ção; o segundo ressalta o poder do Senhor
da Babilônia e a pensamentos "surgindo" para guardar/livrar/edificar/dar esperança;
(Ez 11.5). "Degraus" evocava a tradição e o terceiro aborda o tema da segurança:
judaica para fazer uma associação muito em Sião (122; 125; 128); no Senhor (131).
imaginativa com os corais de levitas can- Este "movimento" em direção a Sião con-
tando nos degraus que levavam do Pátio corda e dá apoio à ideia do "Louvor do
das Mulheres para o Pátio dos Filhos de Peregrino". Toda a coleção mantém os
Israel, no templo de Herodes, mas não che- olhos do viajante fixos no alvo. Os salmos
gava a dizer que os coros cantavam exclu- 132-134 são salmos de chegada - a arca
siva ou especialmente essas canções. A re- em Sião, comunhão em Sião, bênção em
ferência a "degraus/escadas" em Neemias Sião. O peregrino que inicia sua viagem
3.15; 12.37 levou à hipótese mais razoável muito longe, num mundo áspero e cruel
de que essas canções eram cantadas numa (120), de fato nas "trevas" deste mundo
procissão até o templo, durante as festas. (Quedar, 120.5, significa "negro"), ter-
O tema constante Sião/Jerusalém/Casa do mina a viagem numa noite (134.1) muito
Senhor apoia essa hipótese. diferente, seguro na Casa do Senhor e de-
Ampliando o cenário, alguns comenta- baixo de sua bênção.
ristas associaram os salmos com a volta dos
exilados babilônicos. O único uso relevante Salmos 120-122. A primeira
de "degraus" em Esdras constitui uma base tríade. Quando vem a tribulação
muito fraca para que possamos considerar Pessoas antipáticas (120) e circunstâncias
essa palavra um termo técnico para o re- hostis (121) ameaçam o peregrino, mas há
tomo de Babilônia, mas essa teoria tem a paz dentro dos muros de Jerusalém (122).
"sensação" correta em relação ao aspecto
amplo e a alguns detalhes dos salmos. Salmo 120. Oração em
Os salmos, no entanto, provavelmente meio a um povo hostil
foram reunidos a princípio para providen- A ordem das palavras no v. 1 é"Ao Senhor,
ciar um hinário, o "Louvor do Peregrino", na minha angústia, eu clamo e ele me res-
para grupos de viajantes que se dirigiam ponde". Esta é a imagem que o salmo nos
a Sião na peregrinação anual para as fes- deixa: orando no meio da dificuldade, pro-
tas (Êx 23.17; cllSm 1.3; Lc 2.41). Com tegido pelo cuidado divino. Não há razão
certeza, eles são apropriados para tais oca- para pensar que os v. 3,4 fossem realmen-
siões. Cada salmo, é claro, tinha seu pró- te ditos ao adversário. Como Provérbios
prio ponto de origem e de uso antes de ser 20.22; Romanos 12.19 ordenam, o proble-
editado na posição que ocupa atualmente ma é levado ao Senhor e deixado lá, mas
nos "Cânticos de Degraus". Na maioria com a certeza do resultado final: setas (4)
dos casos, essa informação não pode ser apontadas com a habilidade de um valente
recuperada e, mesmo que pudesse, pouco têm de atingir seu alvo - o castigo cairá
ou nada se acrescentaria. O "Louvor do onde é merecido; mas por trás dele há bra-
Peregrino" foi editado com extrema habi- sas vivas, a justiça retributiva de um Deus
lidade, e o que importa é o significado do que odeia o pecado. Porém, nesse meio-
salmo em sua posição atual. tempo, enquanto deixa toda a retribuição
Os "Cânticos de Degraus" dividem-se para o Senhor, o salmista vive num mun-
em cinco grupos de três, mais os salmos do que não pode dar paz (5-7). Meseque,
135 e 136. Os quatro primeiros grupos no extremo norte (Gn 10.2), e Quedar
SALMO 121 866

(Jr 2.1 O), no deserto siro-arábico, são muito coroada com a chegada (2), a vista (3) e
distantes uma da outra para estar localiza- a construção (4,S) da cidade. Não admi-
dos onde o salmista vive. Metaforicamente, ra que tudo resulte em oração responsiva
essas palavras sugerem estar longe de casa, pelo povo do Senhor, sua comunhão e a
nos lugares ermos do mundo. Mesmo nes- segurança da própria cidade. Isaías 26.1-4
sas regiões, ele viveria em paz (esta é a ensina que, em meio aos perigos da vida,
sua natureza: 7, lit., "eu estou em paz"; cf nós já vivemos, pela fé, dentro da "cidade
109.4) e compartilharia a paz que conhece, forte" (Hb 12.22; cf Ef 2.6). Neste senti-
mas o mundo é um lugar peçonhento. do, o peregrino podia cantar a respeito de
pés fincados nas calçadas de Jerusalém en-
Salmo 121. Perigos desconhecidos, quanto ainda realizava sua perigosajorna-
seguranças conhecidas da. A essência dessa cidade é sua unidade
A questão de onde se pode encontrar segu- (3-S): a própria forma da cidade diz que
rança (1) poderia ter sido originariamente ela é compacta. Os que entram vêm como
suscitada por várias situações. Entretanto, tribos, mas são todos do Senhor, motiva-
no atual contexto de peregrinação, ela dos por obediência (como convém a Israel)
retrata um olhar de preocupação dirigi- e com o objetivo de louvar, privilegiados
do aos montes onde podia haver saquea- por terem a revelação de Deus acerca de si
dores escondidos, ou um olhar ansioso mesmo (nome). Eles chegam a um lugar
para as distantes colinas de Sião: como onde, em princípio, sob o governo do rei
conseguirei escapar dos perigos do cami- indicado por Deus, tudo é posto em ordem
nho e chegar aos montes (12S.2) de casa? (S, justiça). Eles precisavam orar porque
Mas (2), O SENHOR ... fez o céu e a terra: sua Jerusalém era deste mundo. A nossa é
toda ameaça surge e toda jornada é feita diferente (Hb 11.10), mas a convocação à
neste mundo onde ele governa supremo. alegria, unidade e oração permanece.
Consequentemente (3-8), seis vezes o ver-
bo "guardar" ressoa. Os perigos são des- Salmos 123-125.
conhecidos, mas a segurança é certa. 3,4 A segunda tríade.
O Senhor que resgatou (Êx 6.6) seu filho Quando os recursos falham
Israel (Êx 4.22) não irá perdê-lo agora, A zombaria (123) e a hostilidade (124)
no caminho de casa! 5,6 O divino compa- humana fazem com que o povo do Senhor
nheiro (à tua direita) se coloca entre você dependa inteiramente dele, mas (12S) os
e qualquer ameaça real (sol) ou imaginária que nele confiam estão tão seguros quanto
(lua). 7,8 Ele guarda de todo mal, garante a própria Sião. Em 120, o pedido era para
segurança pessoal (tua alma), acompanha que o Senhor resolvesse o problema dos
os afazeres do dia a dia (a tua saída e a inimigos; 123 pede que ele cuide das fra-
tua entrada) em todos os momentos (desde quezas; 121 enfocava perigos circunstan-
agora e para sempre). O Criador é também ciais; 124 retrata forças humanas em fúria;
o Redentor e o Companheiro. em 122, Sião simbolizava paz; em 12S, ela
simboliza força.
Salmo 122. A família na cidade
Imagine o peregrino no final do primeiro Salmo 123. O Senhor no céu
dia na cidade: (2) lit., "Nossos pés real- A igreja terrena está cercada de desprezo
mente estiveram parados nas tuas por- (3), escárnio e indivíduos que estão à sua
tas!". A maravilha do lar contrasta com os vontade e são soberbos (4). O que fazemos
"lugares distantes" (120.S); o companhei- quando não podemos "aguentar" mais (3)?
rismo dos irmãos (8), com as contendas Os olhos simbolizam anseio, necessidade,
dos inimigos (120.2,7). A expectativa foi expectativa. O "levantar dos olhos" diz
867 SALMO 126

tudo ao Senhor cujo trono celestial (I) fala ("desvio") da resistência, violando o que o
de seus inesgotáveis recursos, bem como Senhor ordenou (Rm 13.1).4,5 Tal situa-
de sua soberania sobre o mundo inteiro. Os ção, em que a confiança é posta à prova pe-
servos olham para os recursos incertos de las circunstâncias, exige oração. A oração
seus senhores terrenos. Nós olhamos para não é dirigida contra os ímpios (5) - estes
o SENHOR, que revelou seu nome e realizou são deixados a cargo do Senhor - mas
milagres para nós quando éramos escravos para beneficio dos que seguem o Senhor de
no Egito. Mas sua tríplice misericórdia coração (4), o seu Israel (5), o verdadeiro
(graça para os que não a merecem, 2,3) não povo entre os que professam sê-lo.
falhará. Basta manter os olhos fixos nele,
sujeitando nossas necessidades à sua esca- Salmos 126-128.
la de tempo (até que, 2). A terceira tríade.
Quando o fracasso ameaça
Salmo 124. O Senhor que O povo do Senhor ainda está no mundo.
está ao nosso lado Os dias são de lágrimas (126.5). Mas 127
Quatro imagens do perigo dizem tudo: ter- mostra o outro lado da moeda: em meio ao
remoto (3b; Nm 16.30) e enchente (4a) são trabalho pesado da vida, o Senhor dá "o
perigos avassaladores dos quais é pratica- sono" (ARC, 1,2), e as lágrimas com que
mente impossível ter livramento - mas o 126 termina convertem-se na felicidade
Senhor pode fazê-lo! As feras carnívoras (feliz) de 127.5. O salmo 128 está repleto
(6) e os passarinheiros (7) são perigos no de felicidade (I, bem-aventurado; 2, feliz
reino animal e entre os seres humanos. Não serás) dada e garantida pela bênção de
apenas saímos ilesos, como o próprio pe- Deus (4,5). Assim, o assunto é sutilmente
rigo foi destruído (7c). Somente um Deus diferente do tema "chegando a Sião" das
com domínio total, soberano e universal (8), duas primeiras tríades. Na verdade, num
poderia ter feito essas coisas - e esse Deus certo sentido, esta tríade começa em Sião
é o SENHOR comprometido e infalivelmente (126) e termina lá. Mas ela começa com
posicionado ao lado do seu povo (1,2). uma bênção muito desejada, uma colheita
que ainda virá, e termina com a bênção já
Salmo 125. O Senhor que desfrutada. Em resumo, esta é uma pere-
está ao nosso redor grinação do coração, e não dos pés: um an-
Este é um retrato de uma comunidade crente seio por uma bênção maior do que jamais
que encontra segurança na confiança (1,2); desfrutamos (126), uma segurança maior
uma comunidade ameaçada, aguardando do que jamais experimentamos (127).
pacientemente até que o Senhor remova a
carga do governo ímpio (3); uma comuni- Salmo 126. A tensão da experiência
dade dividida, onde os bons e os maus estão O êxtase inicial de Esdras 1-6 e a ero-
misturados (4,5). 1,2 A confiança nos toma são do entusiasmo provocada pela dureza
uma analogia viva da inabalável Sião; os da vida ilustram este salmo. É sempre a
montes que a circundam são uma analogia mesma coisa: quer pensemos no êxodo, no
do Senhor nos protegendo de todos os la- retomo de Babilônia ou até na obra reden-
dos. 3 Essa confiança inclui a fé no provi- tora de Cristo - a redenção está consu-
dencial domínio do Senhor sobre o mundo. mada, mas continua necessária! A alegria
A duração do governo opressivo ou incon- parece estar no passado; as lágrimas do-
veniente é ajustada conforme a paciência minam o presente. Se ao menos o Senhor
que o povo do Senhor tem para suportá-lo. agisse agora tão completa e dramaticamen-
Ele não dura tanto a ponto de fazer com te como no passado! Por isso oramos por
que o povo do Senhor caia na iniquidade torrentes no Neguebe (4), uma inundação
SALMO 127 868

repentina, transformando os leitos resse- áreas da vida: (i) pessoal e atual (2-4):
quidos dos rios, fazendo crescer um jardim prosperidade no trabalho e no casamento,
na terra abrasada! Mas não, na providên- e alegria doméstica; (ii) pública e futura
cia de Deus, depois de seus atos poderosos (5,6): vitalícia, em comunidade e família.
(1-3), a metáfora da colheita entra em ação O segredo disso tudo está no indivíduo: v.
(5,6). Haverájúbilo, mas só quando a can- 1 aquele, "todo aquele"; v. 4 o homem, o
sativa semeadura tiver sido completada e indivíduo. 1 Um coração reverente (teme)
os campos estiverem maduros para a co- ao Senhor e um estilo de vida (anda) con-
lheita. É neste ponto que nos encontramos dizente com o que ele determina (cami-
no plano perfeito de Deus (cf Fp 1.9-11; nhos).2 Comerás, uma imagem não só de
Tg 5.7,8; Ap 14.14-16). prosperidade, mas também de segurança
(cf Jr 31.5). 3 Videira. Em termos con-
Salmo 127. Descansando jugais, uma imagem de atração e prazer
no trabalho árduo sexual (cf Ct 7.8). Videira... oliveira.
Será que o salmo 126 diz tudo? Risos Juntos simbolizam a abundância das bên-
no passado, canções no futuro, lágrimas no çãos de Deus (cf Dt 8.8). O salmo 126
presente! O salmo 127 cobre três áreas da clamava por bênção; o 127 assegurava
atividade humana que podem gerar ansie- que ela não é resultado do trabalho ár-
dade - a casa, a cidade (1) e a família duo, mas da confiança; o 128 realiza os
(3-5) - e afirma que, sem o Senhor, não desejos do 126 e confirma as declarações
podemos fazer nada. Os v. 1,2 parecem do 127: Bem-aventurado (I)... bem (2) ...
sugerir "Deixe tudo com Deus; largue de abençoado (4) ... abençoe (5) - palavras
mão, deixe com Deus", e desfrute de uma diferentes, mas de mesma raiz, repetidas
vida descansada. Mas, na Bíblia, o antô- para confirmação.
nimo de descanso não é trabalho, e sim
inquietação; e os v. 3-5 acrescentam um Salmos 129-131.
corretivo. O Senhor ordenou que a huma- A quarta tríade.
nidade se dedicasse às atividades de pro- Quando o pecado ameaça
criar, conceber e criar. Contudo, insiste a A quarta tríade é diferente das anteriores,
Bíblia, não é a intervenção humana, e sim a já que a única referência a Sião aparece no
divina, que "abre a madre" ou, na verdade primeiro salmo (129.5). Sua semelhança
"fecha" (Gn 29.31; 30.2). Os filhos não são com a terceira tríade é observada princi-
realização nossa, mas dons de Deus (3). O palmente no salmo do meio, pois, enquan-
mesmo vale para uma casa construída e to 121 e 124 tratam de oposição externa,
uma cidade guardada (1,2). Toda a vida circunstancial e humana, 129 e 130 ressal-
precisa ser vivida em sua plenitude, todas tam tensão interior, perigos subjetivos: an-
as suas alegrias desfrutadas e seus deveres siedade e pecado, respectivamente. Mais
cumpridos com sossegada confiança na- uma vez, a peregrinação é a do coração.
quele que é o realizador de tudo. Atividade No salmo 129, Israel foi salvo graças ao
alegre, atividade cansativa - mas cheia de justo Senhor (1-4), e os inimigos ímpios
um sossego imperturbável (2d). podem ser deixados a cargo dele (5-8);
mas (130) será que essa mesma justiça
Salmo 128. A transcendência não é uma ameaça para Israel? Pois ne-
do fracasso nhum pecador pode sobreviver diante dele
Bem-aventurado (1) combina aqui as (130.3). Porém, ele é um Deus de perdão
ideias de "debaixo da bênção de Deus" e (4), misericórdia e redenção (7). Portanto,
"obter realização/felicidade pessoal". O segundo o salmo 131, há sossego no cora-
salmo promete essa experiência em duas ção e esperança no Senhor.
869 SALMO 132

Salmo 129. Justiça não há nada que possamos fazer: o perdão,


Os acontecimentos do passado (1-4) ensi- quando vem, é uma decisão e ação sobera-
nam como enfrentar os problemas do pre- na de Deus. Em 7,8, o individualismo do
sente e do futuro (5-8). Este salmo pode- salmo cede a vez a um apelo comunitário
ria ter sido escrito em qualquer época da mais amplo: há esperança para todos, se-
conturbada história de Israel. Mas, embora gura, certa, confiante esperança; porque o
as ameaças fossem muitas (1, muitas ve- Senhor tem duas outras companheiras in-
zes, "mais que o suficiente", 123.3), a li- separáveis: a misericórdia e a "abundante"
ção da história é clara: nem mesmo a cruel redenção - recursos e disposição da parte
opressão (3) conseguiu vencer, porque (4) de Deus em pagar o preço que for necessá-
o SENHOR é justo, i.e., uma vez tendo-se rio para nos redimir, "resgatar", de todas
revelado (Êx 3.15; 6.6) como o redentor as... iniquidades (8).
de seu povo e conquistador de seus inimi-
gos, ele jamais se desvia desse padrão. Os Salmo 131. Descanso
inimigos podem escravizar, mas o Senhor No salmo 130, a exortação à esperança
dá liberdade (4). E isso não é uma recons- tinha sua origem no que era verdadeiro a
trução ficcional da história! Onde está o respeito do Senhor; em 131.3, ela é mo-
Império Egípcio que escravizou Israel ~ tivada pelo que o salmista descobriu ser
ou os filisteus, assírios e babilônios? Em verdade pessoalmente. Ele assumiu uma
5-8, os verbos podem ser tanto profecia posição humilde (1); seu ser interior (2)
quanto oração. Se forem oração, referem- está sossegado ~ como uma criança cres-
se à maneira de lidar com a vida; se forem cida que deixou para trás as exigências ins-
profecia, falam de como enfrentar o futuro. tintivas e reclamações da infância e agora
Os que aborrecem a Sião (5) se mostrarão fica contente por simplesmente estar com a
passageiros (6), fracassados (7), desfavo- mãe. Qual teria sido a jornada que condu-
recidos e excluídos da comunidade aben- ziu o salmista do orgulho autoconfiante até
çoada (8, cf Rt 2.4). a humildade e o repouso, inspirando este
belo salmo? Não sabemos, mas seu chama-
Salmo 130. Perdão do: Espera, ó Israel, no SENHOR, o associa
A justiça põe esta tríade de salmos numa ao salmo 130 e o transforma no testemunho
categoria à parte. É verdade que, se o jus- de um pecador perdoado: humilhado pela
to Deus fica do lado de seu povo, então misericórdia de Deus e gozando de paz in-
nenhum inimigo pode prosperar (129); terior porque está em paz com o alto.
mas, se este Deus vem habitar junto ao seu
povo para poder estar do lado deles, sua Salmos 132-134. A quinta
justa presença não irá expor e condenar os tríade. Quando o objetivo
pecados deles? As palavras-chave do sal- é alcançado
mo 130 contam sua própria história: o Estes salmos estão todos centrados em
salmo abre com um clamor que nasce das Sião. A peregrinação já acabou; o lar foi
profundezas da distância e alienação, su- alcançado. Mesmo assim, há movimento
plicando por misericórdia, a graça imere- dentro dos três: dos fatos objetivos que
cida de Deus (1,2). Em seguida, passa para mostram que a cidade e a monarquia fo-
uma afirmação de que (lit.) "contigo (i.e., ram divinamente escolhidas e estabeleci-
como companheiro inseparável) está o per- das (132) para a comunhão providencial
dão que é perdão de fato!" (3,4). Depois, da família do Senhor (133) e, finalmente,
vem a espera (5,6). O verbo sem dúvida para a realidade de estar na presença do
contém a ideia de esperar com confian- próprio Senhor (134). Este é o fim da pere-
te expectativa, mas ainda assim é espera; grinação: o Senhor conosco (132), a igreja
SALMO 132 870

em perfeita comunhão (133), os servos do à grande prioridade. Morada, "uma habi-


Senhor no santuário do Senhor (134). tação adequada/grande", também no v. 7.
6 Efrata, de significado incerto, é espe-
Salmo 132. O Senhor em Sião: cialmente associada a Belém (Gn 35.16;
escolha divina Rt 4.11; Mq 5.2). Jaar, uma abreviação de
Este poema lindamente construído é uma Quiriate-Jearim (l Sm 7.1,2), onde a Arca
meditação sobre 2Samuel 7. Naquele ca- esteve alojada durante seus "anos perdi-
pítulo, Davi se dispôs a construir uma dos". 7 Morada ... estrado de seus pés. A
casa para o Senhor, mas descobriu que o importância do tabernáculo/templo se de-
Senhor é que estava se dispondo a cons- via ao fato de que ele tomava palpável a
truir uma casa para Davi. Por isso, aqui habitação de Deus no meio do seu povo
o juramento de Davi (2-5) é equilibrado (Êx 29.43ss.; lRs 8.10,11,13,27). Dentro
pelo juramento do Senhor (10,11). Cada da Tenda/Casa, a Arca, mais especifica-
uma dessas duas divisões segue o mesmo mente, a "sede da misericórdia/ propiciató-
padrão: oração (1,10), declaração (2,11), rio" (Êx 25.17-22; Lv 16.13,14) era o lugar
discurso (de Davi, 3-5; do Senhor, 11,12), onde o Santo Deus tocava a terra.
mais uma declaração (6,13) e um discurso 8 Levanta-te (Nm 10.35); tuafortaleza
final (exortação, 7-9; e promessa, 14-18). (Js 3.11; 1Sm 5). 9 Vistam-se. Vestimenta,
Assim, propósitos e desejos humanos (1-9) cf 16, simboliza caráter, função, compro-
são equilibrados e casados com propósitos misso, i.e., toma-os justos. Fiéis, os re-
e afirmações divinos (10-18). O juramento ceptores do imutável amor divino e que
de Davi (l-5) é seguido de dedicação hu- retribuem o seu amor. 10-18 Davi é citado
mana para cumpri-lo (6-9); o juramento do pelo nome três vezes (lO, 11,17), e indire-
Senhor (l0-12) é seguido de seu compro- tamente sete vezes. Tudo o que Deus fez
misso de realizá-lo (13-18). Podemos ima- por Sião e pela linhagem de Davi procede
ginar uma congregação pré-exílica reunida do juramento inicial (l l ) e da fidelidade
numa das festas anuais, cantando alegre- divina em relação à promessa. No jura-
mente sobre o zelo de Davi em construir mento estão implícitos: a escolha de Sião
o santuário e o compromisso do Senhor de (13; Hb 12.22), a habitação do Senhor em
fazer dele o que deveria ser. sua cidade (14; Ez 48.35; Ap 21.2,3), sua
1 Provações. O transporte da Arca para bênção, material (l5) e espiritual (16), e o
Sião não foi realizado sem frustração e so- propósito final: a vinda do Messias e seu
frimento (2Sm 6.5-9), preparação, custos e triunfo (17,18).
perdas (2Sm 6.12-23). A palavra, em sua
acepção de "humilhação/profunda humi- Salmo 133. A família em Sião:
lhação", também poderia se referir ao fato bênção divina
de Davi ter sido rejeitado como construtor O salmo começa com uma situação, pros-
do templo (2Sm 7.5,13; lRs 5.3; lCr 22.8; segue para uma dupla comparação (2,3ab,
28.3). 2 Nenhum juramento como esse lit., "é como... é como ...") e termina com
está registrado nas histórias. O salmo uma bênção garantida (3cd). 1 A unidade
pode estar acrescentando informações ou é enfatizada: cc••• viverem unidos". Isso é
aumentando poeticamente o zelo puro de (objetivamente) bom e (subjetivamente)
Davi em relação à honra de Deus ao fazer suave. Mas é muito mais que isso: a unida-
de Sião sua capital e planejar a constru- de gera uma resposta celestial de ilimita-
ção da casa. Poderoso de Jacó (Gn 49.24; da abundância, por meio da qual o Senhor
Is 49.26; 60.16; cf Is 1.24) ressalta o "po- (cf Êx 29.7; 30.25; Lv 8.12) consagra seu
der total". 3-5 A vida pessoal e o conforto povo para que eles sejam seus sacerdotes,
são postos em segundo plano em relação realizando seu próprio desejo expresso
871 SALMO 135

em relação a eles (Êx 19.6). Além disso, é eleição divina (135.4)? Ou ainda um outro
um milagre dos céus erradicar as divisões cântico (136) que, usando muito do mesmo
(1Rs 12.19) e unir o Hermom, a principal material numa grande antífona, associa as
montanha de Israel (norte), e Sião, a mon- mesmas qualidades e poderes do Senhor
tanha de Judá (sul), num orvalho divino e os mesmos beneficios concedidos ao
e vivificante (Êx 16.13,14; ls 26.19; Os seu povo a uma realidade intrínseca de
14.5). Consequentemente, ali (enfático), sua natureza: a sua misericórdia que dura
i.e., onde o v. I se aplica, "o Senhor orde- para sempre?
nou a bênção da vida para sempre".
Salmo 135. A eleição de Israel:
Salmo 134. Adoração em Sião: seu significado para o povo
divina comunhão A estrutura deste salmo é:
A peregrinação começa em Quedar (120.5)
e termina na casa do Senhor, onde os pe- AI (v. 1-4) Louvor ao Deus que escolhe
regrinos "bendizem ao Senhor" (2), e ele 8 1 (v. 5-7) O grande Senhor, soberano
os abençoa (3). Quando ele nos "abençoa", na criação (sete facetas de sua gran-
ele faz um inventário das nossas necessi- deza)
dades e as supre; quando nós o bendize- C (v. 8-14) Os atos do Senhor
mos, fazemos um inventário de suas ca- Cl (v. 8,9) Libertação
racterísticas ímpares e o adoramos. Que C2 (v. 10-12) Concessão
alegria devem ter sentido os peregrinos C3 (v. 13,14) Defesa
quando finalmente chegaram e seus pés B 2 (v. 15-18) Ídolos mortos e que ma-
pisaram não só em Jerusalém, mas na casa tam (sete facetas dos ídolos-deu-
do Senhor! Que alegria quando, dos dis- ses)
tantes limites da terra, da mais longínqua AI (v. 19-21) Louvor ao Deus que habita
costa do oceano, passando por portões de com seu povo
pérolas, entrou a inumerável multidão!
~ e o próprio Grande Sumo Sacerdote os 1-4 As referências a servos ... que as-
convocou a "bendizer ao Senhor" (1,2) e sistis e os adjetivos bom... agradável, aqui
pronunciar sobre eles a bênção do Senhor aplicados ao Senhor, estabelecem ligação
(3). 1 Assistis, lit., "estão em pé", aceitos e com 133.1; 134.2. Os repetidos incentivos
seguros. Noite, possivelmente sacerdotes ao louvor e as sete exaltações do nome
e levitas em serviço noturno na Casa; ou pe- divino são motivados pela escolha divi-
regrinos fazendo vigília à noite; ou (a mais na de Jacó e Israel, para sua possessão
venturosa hipótese) celebrando a festa no- (Êx 19.5; Dt 7.6; 14.2; 26.18; MI 3.17).
turna da Páscoa (Êx 12.42) ~ "o Cordeiro Para o significado, ver também o exemplo
é toda a glória na terra de Emanuel". "secular", 1Crônicas 29.3.
5-7 O louvor conjunto só tem o valor
Salmos 135 e 136. O povo da contribuição de cada indivíduo. Os pe-
escolhido do Senhor regrinos adoram j untos, mas a convicção
Estes salmos estariam muito bem situados pessoal é essencial: (lit.) "De minha parte,
se fossem contados juntamente com 120~ eu sei, de fato", O pensamento pagão per-
134, no Louvor do Peregrino. Haveria meava todo o universo com muitos deuses,
alguma coisa mais adequada para os pere- especialmente o mar e os abismos (6). Os
grinos recém-chegados do que um cântico salmos gostam de discorrer sobre o fato de
que rememora os passos da grande pere- que existe um único Deus Criador cujo de-
grinação fundamental do Egito a Canaã, creto vale em toda parte sem exceção (6), e
e se alegra pelos beneficios trazidos pela cuja vontade governa até mesmo o detalhe
SALMO 136 872

das mudanças climáticas (7). Todos os deu- história inspira submissão; sua bondade,
ses são mencionados não porque existam gratidão. Mas, quando vemos que toda
objetivamente, mas porque são adorados essa grandeza brota de um amor imutável
e atraem a devoção de mentes enganadas que se compraz em manifestar seu poder
(Is 44.6-20). (V comentário de 95.3). em misericórdia e provisão, então o Senhor
8-14 Todo o período do êxodo é coberto é verdadeiramente apreciado com admira-
aqui, desde o momento da saída do Egito ção, amor e louvor. Que significado tem
(8) até as últimas vitórias sob o comando para nós que ele seja bom, supremamente
de Moisés (11; Nm 21.21 ss.; Dt 2.20 ss.; exaltado, o Criador, o Senhor da história, o
3.1ss.), passando pela posse da herança sob benfeitor do seu povo no passado, se não
a liderança de losué (12) e, como o Senhor houver o amor imutável que nos envolve
não muda (13), alcançando uma data futu- também no abraço caloroso e na proteção
ra indeterminada em que ele sempre estará de um Deus assim?
ao lado de seu povo, em ação e coração: Portanto, nós também podemos, junta-
Julga significa "defende a causa de" seu mente com nossos irmãos e irmãs peregri-
povo; se compadece, "sente dó". nos do AT, remontar à nossa peregrinação
15-18 (Cf 115.4-8). Observe a forma inicial do Egito a Canaã, e cantar com eles,
cuidadosa com que este material "citado" a cada passo, que a sua misericórdia dura
desempenha seu papel no novo cenário. para sempre. Nenhum poder consegue re-
Como mostra o resumo apresentado acima, sistir a ele (1-3; Rm 8.31-39; ICo 8.5,6;
o salmo compara o Deus que age em toda Ef 1.19-22); estamos seguros porque o
parte (5-7) com os deuses feitos por mãos mundo em que vivemos é dele (4-9); nós
humanas cuja única "obra" é disseminar a também podemos ter redenção (10-15; 10
corrupção de sua morte (18). 1.29; lCo 5.7; lPe 1.18-21), desfrutar de
19-21 Excetuando o final do v. 21, em sua providência seja qual for a circunstân-
que o mesmo verbo é usado como em 1-3, cia (16; Fp 4.12,13,19), entrar na posse
bendizei traduz o verbo "abençoar" (cf da nossa herança por meio de sua vitória
134.2,3). Sobre as categorias do povo do (17-22; Cl 1.12-14), maravilhar-nos com
Senhor, cf 115.9-11; 118.2-4. O motivo sua condescendência por nos ter escolhido
de "abençoar" particularmente o Senhor (23,24; ICo 1.26-31) e comer nosso pão de
é "bendito seja o SENHOR, que habita em cada dia olhando com gratidão para a mão
Jerusalém!" (21). O Senhor escolheu que nos alimenta (25), a misericórdia que
seu povo porque desejou tanto tê-lo para dura para sempre.
si (4) que veio habitar no meio dele (cf
Ef 2.18-22; 2Co 6.16). Salmo 137. O estranho
cântico do Senhor
Salmo 136. A escolha de Israel: Como os tempos verbais de 1-3 são muito
sua raiz no Senhor naturalmente entendidos como passado e
A suprema realidade não é a posição do a palavra "ali" (omitida pela ARA) ocorre
Senhor (1-3), nem sua obra na criação nos v. I e 3, com um equivalente no v. 2,
(4-9) e na história (10-22), nem mesmo o salmista está olhando para trás no tem-
sua bondade para com Israel (23-25), mas po e para longe no espaço. Ele pertence ao
o que ele é em si, aquele cuja misericór- grupo de exilados que retomaram, e este
dia dura para sempre. Tudo converge para salmo recorda o cativeiro.
este ponto ressaltado e repetido. A posi- 1-4 A canção não entoada. Para os
ção do Senhor, por si mesmo, já inspira- exilados cheios de tristeza (I), as lembran-
ria terror; suas obras de criação nos dei- ças eram amargas (cf 7), e a alegria estava
xam maravilhados; seu poder evidente na relegada ao passado (2). Deliberadamente
873 SALMO 138

- pois seus captores exigiam canções e a Babilônia for tratada do mesmo jeito
alegria (3). Mas as canções do Senhor são que ela tratou Jerusalém, isso será justo.
afirmações da verdade e atos de adoração, O Juiz de toda a terra (Gn 18.25) terá agi-
não peças musicais de um concerto. E há do (Rm 2.5,6). O v. 8 reconhece a justiça
momentos em que só dá vontade de chorar. do que a Babilônia fez a Jerusalém (fizes-
A vida não é sempre alegria. Além disso, te, "retribuíste"). As ruínas que eles veem
o pedido para que eles cantassem era um evidenciam a justiça com a qual o mundo
convite velado para que se estabelecessem é regido por um Deus Santo; essa justiça
ali - vocês agora são babilônios! Mas eles será a porção da Babilônia. O v. 9 regis-
não podiam se esquecer nem se conformar. tra a crueldade da "justiça" babilônica (cf
Eles estavam numa terra estranha (4). 2Rs 8.12; Is 13.16 etc.), e o mesmo que
5,6 O lar é onde o coração está. As eles fizeram será feito com eles. Mas será
coisas agora assumem um aspecto indi- que o salmista está dizendo que quer que
vidual. Cada um tinha (e tem) de decidir isso aconteça? Não; ele só está afirmando
qual era a sua cidadania e viver de acor- que vai acontecer. Este é o tipo de mundo
do com ela - em pensamento (esqueeer... em que vivemos sob o controle de Deus.
lembrar), em ações (mão) e no coração
(alegria). Babilônia era o seu endereço; Salmo 138. Nova janela,
Jerusalém, o seu lar (Fp 3.20). novos olhos
7-9 O estranho cântico do Senhor. Foi uma daquelas ocasiões em que um
Mas havia uma canção que eles canta- único acontecimento descortina todo um
vam e, quando deixaram para trás uma novo ponto de vista - sobre a natureza
Babilônia bem conservada e voltaram para do Senhor (1-3), o futuro do mundo (4-
uma Jerusalém em ruínas, eles a cantaram 6) e a segurança pessoal (7,8). Sobre o
novamente. (i) Edom entregue ao Senhor. acontecimento em si, só sabemos que a
(7) (lit.) "Lembra-te pelos edomitas" (cf oração foi atendida de uma forma que deu
132.1, "Lembra-te por Davi") é uma fór- um novo alento de vida a Davi, de modo
mula legal para apresentar um caso diante que ele queria cantar o louvor do Senhor
do juiz. Gratuitamente, Edom tomou parte na presença dos chamados poderosos. Ele
e se alegrou quando Jerusalém foi arrasa- sentia que agora conhecia o Senhor como
da (Ob 10-14). Nada é pedido; nenhuma nunca conhecera antes (2). Ele sabia que
vingança é proposta ou planejada. Tudo nem tribulação nem inimigos (7) pode-
é exposto diante do Juiz divino. (ii) 8,9, riam jamais derrotá-lo ou impedir a reali-
Babilônia é entregue à justiça e, à luz das zação do propósito do Senhor (8, () que a
Escrituras (Jr 51.56 tem três verbos em mim me concerne).
comum com os v. 8,9), já está destruída. Talvez tudo tenha acontecido em
A tradução feliz é estritamente incorreta. 2Samuel 5. I7-21, quando os filisteus se le-
A palavra precisa ser sempre contextu- vantaram contra o recém-instaurado reino
alizada: na maioria das vezes, ela signi- de Davi e, em resposta a uma pergunta feita
fica "abençoado/sob a bênção de Deus" ao Senhor, Davi obteve uma vitória exem-
(32.1); frequentemente, ela significa "fe- plar, e os "poderosos" da Filístia se toma-
liz/pessoalmente realizado" (1.1); às ve- ram os destroços da batalha. Talvez, mas
zes, de acordo com seu significado básico tudo aconteceu por meio de oração feita e
de "reto", ela significa "certo/fazendo a oração respondida. O lugar de oração é o
coisa certa" (Pv 14.21; SI 106.3). lugar onde a revelação do Senhor a respeito
O salmista não pede coisa alguma em de si mesmo assume novas dimensões (2),
relação à Babilônia, mas apenas comenta é o lugar de renovação (3), de visão mun-
(e quem pode contradizê-lo) que, quando dial (4) e confiança em Deus (7,8).
SALMO 139 874

2 Templo, usado em I Samuel 1.9 com data posterior à época de Davi. Mas esses
relação à Tenda em Siló. Na época de sinais são insuficientes para sustentar essa
Davi, a Tenda estava em Gibeão (2Cr 1.3), hipótese. Sua teologia não é datável e se
mas provavelmente a referência aqui (cf encaixa perfeitamente na boca e na expe-
18.6) é ao templo celestial. 3 "No dia em riência de Davi.
que eu clamei, tu me respondeste". 4-6 As 1-6 Deus que tudo sabe: dos pensa-
palavras declaram a glória, definida como mentos interiores ao comportamento
o ato divino de condescender em identifi- exterior. Estes versículos estão cheios de
car-se com os humildes. Esta é a verdade verbos de "conhecimento". A afirmação
que, em resposta à oração, abriu os olhos geral do v. 1 é aplicada a atividades visí-
de Davi para as dimensões do nome do veis da vida e a pensamentos secretos (2),
Senhor e transformou-o interiormente. Ele ações do dia a dia e estilo de vida (3, ca-
está convencido de que essa verdade con- minhos), e pensamentos não expressos (4).
quistará o mundo, e por ela ele pode en- A vida pessoal fica inteiramente contida
frentar o futuro com segurança. dentro dos limites divinos, por trás e por
diante e sobre (5, "Pões a mão em concha
Salmo 139. Sem saída, sem sobre mim" - uma imagem que revela
queixas, sem concessões que tudo é para minha proteção e conforto;
Com certeza, este salmo ensina a onisciên- lo 10.27-30).
cia (1-6), a onipresença (7-12), o poder 7-12 Deus que está presente em tudo:
criativo (13-18) e a santidade (19-24) do do eterno ao temporal. O Espírito, a pre-
Senhor, mas essas abstrações estão muito sença dinâmica de Deus (7, lit. "face"), sua
longe de ser o seu cerne. Pois, para o sal- presença pessoal. Onde... onde... ? implica
mista, onisciência é o conhecimento total que o Senhor está presente e ativo em to-
que Deus tem a meu respeito; onipresença dos os lugares, e isso é explorado em 8-12:
é Deus comigo em todos os lugares; poder a dimensão eterna, acima e abaixo (8, NVI
criativo é o soberano domínio de Deus so- mrg. sheol); a dimensão espacial (9,10)
bre todas as minhas partes; e santidade é a - "Se eu pudesse ir longe em direção ao
vontade de Deus de que eu seja como ele. Oriente ao ponto de levantar-me com a
O salmo não foi escrito por alguém que manhã quando ela voa com suas asas so-
fugiria desse Deus se pudesse, ou fugiria bre a terra, e continuasse em direção ao
dele como um pecador, mas por alguém Ocidente, para além dos limites do mar...";
que sabe que não pode escapar e não tem a dimensão temporal (11,12): o v. l l suge-
do que se queixar em relação a isso. re a possibilidade de encontrar cobertura (o
O salmo é uma unidade. Pois, no v. 13, significado do verbo é problemático) numa
faz de 13-18 uma explicação de 1-6,7-12, e escuridão tão profunda que (11) a luz se
a redação idêntica nos v. 1,23 unem o todo. tome noite. Mas mesmo uma escuridão as-
Isso significa que a tensão entre o salmista sim não seria problema para o Senhor (lit.,
e os ímpios em 19-24 deve ser o contex- "escuro demais para ti"), pelo contrário
to que gerou o salmo. Alguma situação de (12), as trevas "se acenderiam", são a mes-
conflito moral, o mal- em suas mais cen- ma coisa ("como o dia", ARe) - no que diz
suráveis (19) e insultantes (20,21) formas respeito a ele e com relação à possibilidade
- fez com que Davi não só escolhesse de de eu não poder ser guiado por sua mão.
que lado estava (19-24), mas também que 13-18 Deus que criou tudo: da con-
re-explorasse seu refúgio e segurança em cepção à ressurreição. Por que é que Deus
Deus (1-18). Traços de aramaico e outros me conhece e me cerca? Porque, desde a
sinais de uma língua posterior no salmo concepção e gestação, e durante todos os
levaram alguns estudiosos a propor uma dias da minha vida, e até o "despertar" na
875 SALMO 140

eternidade ele é o meu criador-possuidor. que nós, sua santidade também era maior.
13 Formaste. O verbo significa "obter pos- Ficar do lado de Deus é identificar-se com
se" ~ e.g., comprar (Gn 25.10; Êx 15.16); a totalidade de seu caráter revelado e de
e, no caso do Senhor e da ordem criada, seus caminhos.
"desfrutar de posse por meio da criação"
(Gn 14.19,22). O meu interior, "rins", a Salmo 140-145. Orando
sede das emoções, o ser sensível. 15 Ossos, por meio do louvor
a estrutura óssea, o ser físico. 16 Substância Os salmos 140~ 145 formam um grupo
ainda informe, "embrião". Todo embrião davídico interligado. O salmo 142 está
é uma pessoa, uma possessão criada por relacionado com as experiências ruins
Deus planejada com dias de antecedência, que Davi teve com Saul, e o mesmo pe-
uma vida ordenada no céu para ser vivida ríodo se encaixa em todos os salmos até
na terra. 17 Preciosos ... grande, i.e., toda que chegamos (como ocorre com SI 18)
a extensão dos pensamentos expressos ao sol brilhante de um grande alfabeto de
nos v. 1-12 e, em particular, todo o cará- louvor, em 145. Os salmos 140~143 são
ter assombroso da criação do ser humano todos orações: a primeira reação diante da
(13-16). Mas isso não é tudo: ainda falta aflição e todas as suas muitas formas (v. os
a eternidade! Contaria, contaria, sem ja- títulos no comentário) é "levar o problema
mais chegar aofim, "quando acordo, ainda ao Senhor".
estou contigo", cf 17.15.
19-24 Deus todo-santo: do juízo vin- Salmo 140. Difamação
douro ao testemunho presente. Os ver- O salmo consiste em duas orações (1-5;
sículos estão em três pares: 19,20 Identi- 8-11), cada uma delas seguida de uma de-
ficando-se com o Senhor. Já que ele vai claração (6,7; 12,13). A primeira oração é
matar os ímpios quando chegar a hora, eu por proteção, a segunda é por calamidade;
me separarei deles agora. 21,22 Tomando a primeira declaração reconhece o Deus de
o partido do Senhor. Eles o odeiam; eu os salvação com seu cuidado protetor e pes-
odeio. 23,24 Agradando o Senhor. Entra soal, a segunda fala do Deus de justiça aos
no meu coração com teu escrutínio divino; olhos da sociedade. Cada uma das orações
controla o meu caminho para tirar o que faz menção especial a violência (1,4,11),
é mau e conduzir-me. Dizer que o clamor prejuízos pessoais e calúnias (3,11). Da
por juízo é um desvio do Jesus de Lucas mesma forma, o salmo mistura o pensa-
23.34 é esquecer o Jesus de Mateus 7.23; mento de um único indivíduo hostil com
25.41 ,46a; Apocalipse 6.15ss. ~ a dimen- os de um grupo hostil. Tudo isso aconteceu
são bíblica da ira de Deus. Talvez se es- com Davi na época do ódio patológico de
tivéssemos à altura da espiritualidade dos Saul por ele. Nos v. 1-5, observe como a
v. 1-18, pudéssemos julgar a moralidade mente incita a língua (3), que, por sua vez,
de 19-24. De fato, se nos empenhássemos move a mão (4). Como é típico na Bíblia,
tanto quanto o salmista em ter emoções a língua é vista não só como algo que ma-
morais (21) e demonstrássemos seu com- chuca (aguçam), mas como um instrumen-
promisso sem restrições (23,24), desco- to mortal (serpente ... veneno de áspide).
briríamos que não há outras palavras 7 Força da minha salvação, "libertador
possíveis. Se esses versículos nos chocam, forte". Protegeste, um tempo perfeito
o erro está mais provavelmente em nós. Se expressando hábito constante. Davi está
estivéssemos debaixo da mesma ameaça transformando em louvor o que a experi-
que Davi enfrentou, calcularíamos melhor ência lhe ensinou. Os v. 8-11 reintroduzem
o valor de suas palavras; mas, além de ele o que muitos consideram o "problema" da
estar mais mergulhado em sofrimento do imprecação. Mas o fato de que o pecado
SALMO 141 876

volta sobre a pessoa como um bumerangue exigindo que ele respondesse ou contra-
é uma verdade revelada (8,9,11), do mes- atacasse. Mas isso não deve acontecer: so-
mo modo que o juízo característico de Deus mente a voz de oração será ouvida, até (6,
sobre os ímpios consiste em fogo e inunda- lit.) "que os seus juízes sejam jogados dos
ção (10). Ao entregar tudo ao Senhor em penhascos, eles ouvirão minhas palavras,
oração - deixando que ele cuide de tudo, que são doces". As aflições desse período
descansando em oração, não se dispondo a incluíam tribunais corruptos (cf I Sm 8.1-
retaliar - Davi verbaliza realisticamente 3). A execução sumária (cf 2Cr 25.12)
o que o Deus a quem pertence a vingança de tais juízes significa o fim da opressão.
afirmou que faria. 12 Oprimido... necessi- Naquele dia, seu silêncio autoimposto ter-
tado, os esmagados e humilhados por pes- minará, não parabenizando a si mesmo ou
soas fortes e inescrupulosas. demonstrando espírito vingativo, mas em
palavras... agradáveis.
Salmo 141. Provocação 7-10 Oração protetora. Davi e seus
A acusação caluniosa de 140 contrasta com companheiros de infortúnio sentem-se
a preocupação em ter cuidado no falar (3): quebrados, quase mortos e enterrados (7),
ter apenas palavras de oração (1,2) e, quan- mas (8) - existe um constante "mas" de:
do a tribulação tiver passado, dizer pala- (a) expectativa (olhos), (b) um SENHOR
vras doces (não vingativas) (6, v. adiante). Deus soberano, (c) confiança (confio), ora-
Mas o salmo é, de fato, uma longa oração, ção pela vida (não desampares), seguran-
a verdadeira utilidade da língua do crente. ça (9), a merecida ruína dos ímpios e uma
1-4 Oração eficaz. Davi deseja que passagem segura pela aflição (10).
Deus veja em sua oração todo o poder
e aceitabilidade das ofertas diárias rea- Salmo 142. Solidão
lizadas segundo as ordenanças divinas A respeito do título, ver o salmo 57.
(Êx 29.38-42; 30.8). Mas a oferta pura di- Cercado de inimigos (140.9) e incom-
rigida a Deus precisa estar combinada com preendido pelos amigos (141.5), Davi,
o controle das palavras que dirigimos a ou- lamentando ter sido abandonado pelos
tros seres humanos (3; Tg 3.10-12). 4 Por homens (4), descobre que não foi aban-
trás da oração pela pureza da boca precisa donado por Deus (5). As três seções do
haver oração pela pureza do coração. Na salmo (1-3a; 3b-5; 6,7) contêm os mes-
companhia de homens... não coma. Uma mos temas: (i) Aflição pessoal: fraco; sem
tentação de pôr fim à contenda procuran- amigos; no fim faz minhas forças; (ii)
do conciliação, fazendo aliança com a Oração: descrevendo; afirmando; pedin-
oposição. "Comer suas iguarias" pode ser do; (iii) O Senhor: compreendendo; pro-
entendido literalmente como "sentar-se à tegendo; provendo; livrando.
mesa da comunhão", ou metaforicamen- 1-3a Oração de um espírito esmagado
te, como "ter prazer nas coisas que lhes a um Deus de graça e proteção. Embora
dão prazer". o Senhor conheça as nossas necessidades
5,6 Oração continuada. Nos v. 1-4, (Mt 6.32), ele nos manda pedir (Mt 7.7,8).
o salmista aceitou a hostilidade dos ím- 1 (lit., "Com minha voz clamo... com mi-
pios sem retrucar. Seu espírito humilde e nha voz suplico"), i.e., verbalizar os deta-
determinado foi mais adiante, aceitando lhes, derramar nosso espírito abatido diante
repreensões (5) de pessoas das quais se daquele que se importa (conheces, cf 1.6).
esperaria que compreendessem a situa- 3b-5 Oração feita, numa situação de peri-
ção. O v. 5 exprime um contraste. Pode go e isolamento, a um Deus de segurança
parecer que o justo o estava repreendendo e suficiência. Refúgio (4), um lugar para
por seu consentimento silencioso, e talvez onde correr; refúgio (5), abrigo disponível.
877 SALMO 144

Quinhão, suficiência de meios para a vida ao Senhor. 5,6 O tônico da memona.


(Js 18.7, cf 19.9), na terra..., aqui e agora. Muitas vezes, nossas lembranças do passa-
6,7 Oração feita, numa situação de desam- do provocam tristeza ou autopiedade; mas
paro, a um Deus que lida com as nossas lembrar dos feitos do Senhor no passado
necessidades de forma completa. Muito estimula a oração confiante. Anseia por ti...
fraco, "abatido": "sustenta minha alma de- sedenta, "abro as mãos para ti, minha alma
samparada". Quando me fizeres esse bem, para ti, como terra sedenta". Apelo silen-
lit., "porque fazes uma obra completa para cioso: a simples necessidade do seu povo é
mim", derrotando todos os inimigos, liber- um poderoso apelo diante de Deus. 7 A so-
tando de toda servidão, restaurando ao lou- lução está em Deus. Davi não ora pela re-
vor e à comunhão. moção, destruição etc., dos inimigos, mas
apenas para que o Senhor levante o seu
Salmo 143. O fim rosto em sinal de favor. Isso é tudo de que
Um crescendo com l l súplicas marca 7-12. precisamos - apenas um olhar! 8-10 O
Quanto maior a necessidade, mais fervo- anseio é pelo próprio Deus, e não sim-
rosa a oração. E a necessidade se tomou plesmente pelo fim da tribulação. O favor
realmente grande! Como um animal selva- divino tomará possível a vida de obediên-
gem ele foi caçado, derrubado, enjaulado cia. Teu bom Espirito (Ne 9.20). 11,12 Um
(3, cf o salmo 142, título) e está em deses- exemplo típico de oração imprecatória: fi-
pero (4). Sua resistência já se acabou. Será camos à vontade com o v. l l e poderíamos
que o Senhor o rejeitou e isso é realmente muito bem fazer uma oração assim, mas,
o fim? O salmo gira em tomo da urgência na realidade, os termos "brandos" do v. II
do v. 7: incluem os "cruéis" pedidos do v. 12, pois
este é o modo como o Senhor lida com
Ai (v. 1,2) Relacionamento acusações injustas (01 19.16-19). Há situa-
B 1 (v. 3,4) Perigo ções (como a que Davi estava enfrentando)
C' (v. 5,6) Confiança em que não há livramento sem destruição,
O (v. 7) Urgência e orar por uma coisa é orar pela outra.
C2 (v. 8) Confiança
B 2 (v. 9, IO) Perigo Salmo 144. E houve tarde e manhã
N (v. 11,12) Relacionamento Embora os salmos 144 e 145 se unam a
146-150 num hino de louvor para con-
1,2 (Relacionamento) Os atributos do cluir o Saltério, eles estão ligados mais
Senhor; 3,4 (Perigo) O esmorecimento do especialmente a 140-143, em primeiro
espírito humano; 5,6 (Confiança) As obras lugar por causa de seus títulos davídicos,
do Senhor no passado; 7 (Urgência) Só o e em segundo pelas conexões entre 144 e
Senhor; 8 (Confiança) O amor do Senhor 18 (e.g., I e 18.34; 2 e 18.2,47; 5 e 18.9;
no presente; 9,10 (Perigo) O divino Espírito 6 e 18.14). Do mesmo modo que o salmo
que orienta; 11,12 (Relacionamento) Os 18 marcava triunfalmente o fim da perse-
atributos do Senhor. guição de Saul, o salmo 144 anuncia a tão
2 Davi estava inocente durante todo o aguardada manhã, depois das profundas
episódio do problema com Saul, mas mes- trevas de 140-143.
mo assim, como a opressão continuava, 1-4 Salvação passada. Davi, finalmen-
um pensamento era inevitável: Será que eu te em seu trono (2, meu povo), atribui tudo
ofendi o Senhor? Nem todo sofrimento é ao Senhor, e não pode deixar de se ma-
consequência de pecado, mas cada situação ravilhar com tamanha bondade para com
dessas deveria nos levar a fazer um auto- um simples mortal. Rocha (I), invariabi-
exame, com temor de estar desagradando lidade (Dt 32.4; 2Sm 22.47-49), refúgio
SALMO 145 878

(SI 31.2,3), sustento (Êx 17.6; SI 95.1). veis, crescendo fortes. Lavradas como
Adestra (1). O Senhor determina muito colunas ... (12), combinando as imagens
mais do que o resultado da batalha. Ele de força, segurança em função da posição
cuida de detalhes, até mãos e dedos, a ação e beleza, e também dando estabilidade ao
e a habilidade de cada soldado. A batalha "edifício" de que fazem parte: a posição de
é dele - mas, ainda assim, cada indiví- mulher, esposa e mãe numa sociedade bem
duo do seu povo precisa ser um soldado organizada. Andem pejadas (14a), i.e., que
dedicado (Dt 7.1,2; Ef6.lOss.). Minha mi- puxem os pesados carros da colheita. O v.
sericórdia, (lit.) "meu Amor Invariável", 14 descreve uma guerra defensiva e outra
o atributo divino transformado em título. ofensiva, em sequência, e o lamento pelos
Fortaleza... alto refúgio... escudo, a pri- mortos que acompanha cada uma delas.
meira palavra implica força circundante; a Realmente, bem-aventurado o povo a quem
segunda, segurança inacessível; a terceira, assim sucede' (15).
proteção no momento do ataque. A verdade
positiva (1,2) de que só Deus é Salvador é Salmo 145. Um ABC
salvaguardada pela verdade negativa (3,4) da glória do Senhor
de que o homem não pode jamais merecer Este salmo é um acróstico alfabético. No
ou contribuir para a sua salvação. texto hebraico, a linha que começa com a
5-11 Livramento presente. Salmos letra Nun (n) não aparece. Supõe-se geral-
18.9-17 usa essas imagens (5,6) para retra- mente que tenha se perdido, e a maioria das
tar o que o Senhor já havia feito para livrar pessoas elogiaria a NVI por suprir a linha
Davi de Saul. Aqui, as súplicas são para o Nun a partir de outras fontes (13b, v. NVI
presente. Ainda existem inimigos, ainda mrg.). Não é nem certo nem óbvio que isso
existe necessidade de livramento. O louvor deva ser feito. É muito mais fácil enten-
é prometido, mas a oração precisa ser man- der por que algumas versões forneceriam
tida enquanto o perigo continuar existindo. a linha do que imaginar como ela poderia
As misericórdias do passado não geram ter-se perdido. O caráter mais marcante da
uma complacência do tipo "deixe isso com poesia hebraica é subordinar a fonna ao
o Senhor", mas sim uma urgência do tipo significado, e nós poderíamos pelo menos
"leve isso ao Senhor". Abaixa (5), como a considerar que o poeta omitiu proposita-
cortina de uma tenda se abre para permitir damente uma letra para indicar que nem
que o ocupante apareça (Is 40.22). Desce ... mesmo com o auxilio da revelação a mente
fumegarão (Êx 19.18). Muitas águas (7) humana consegue compreender totalmente
uma metáfora para perigos esmagado- as glórias de Deus. O salmo está contido
res (124.4). Estranhos (7) como os que entre dois parênteses (1,2; 21) constituí-
ameaçaram Davi após sua ascensão (2Sm dos por afirmações do propósito de exal-
5.l7ss.; 1O.lss.) Direita (8) como usada no tar ou proclamar as glórias do Senhor. Ele
juramento (106.26). abre com incessante louvor pessoal, mas,
12-15 Prosperidade futura. Este sal- ao chegar ao v. 21, fica claro que, para um
mo se encaixa muito bem na situação do Deus como este, nada é o bastante, senão
recém-entronizado Davi, refletindo seu o louvor de toda carne. O corpo do sal-
louvor pela vitória que acabara de rece- mo expressa esse louvor em seções cujas
ber (1-5), seu contínuo envolvimento em palavras iniciais se combinam: Grande é
situações perigosas (6-11) e agora sua o SENHOR (3-7), Benigno e misericordioso
preocupação com o futuro. A tônica é de é o SENHOR (8-16), Justo é o SENHOR (17-
confiança (15), enquanto ele procura bên- 20). Se a linha Nun for introduzida em 13,
ção na familia, na economia e na nação. surge mais uma seção: "Fiel é o SENHOR"
Plantas viçosas (12), com raízes saudá- (13b-16). Mas, dentro dessa segmentação,
879 SALMO 147

os atributos do Senhor se entrelaçam uns com o contínuo equivalente quíntuplo de


com os outros, pois Deus é Um e não há "Bem-aventurado o Senhor". Nestes sal-
conflito dentro de sua natureza: sua gran- mos, não há nenhuma referência a neces-
deza inclui sua bondade e justiça (3,7). Sua sidades pessoais, nenhuma súplica, pouca
benignidade inclui sua grandeza (8,11-13), coisa que possa ser considerada alusão his-
sua justiça inclui sua misericórdia (17-19). tórica; tudo está focalizado em Deus; tudo
3-7 A grandeza de Deus é apresentada é louvor. Mas esse louvor segue uma pro-
como algo que não tem limite, inspira res- gressão passo a passo. Ele começa com o
peito, é bom e confiável. Observe o entre- individual (146.1), envolve a comunidade
laçamento de testemunho coletivo e indivi- (147.1,12), expande-se para o céu e a terra
dual - sobre o que o Senhor é e fez. Seus (148.1,7). Entretanto, para que o mundo
feitos são poderosos, i.e., são maravilhas, inteiro dê louvores pelo que o Senhor fez
sobrenaturais, são tremendos, provocando por Israel (148.13,14), é preciso haver o
temor em quem testemunha. louvor de um povo comprometido com o
8-16 Agora, a graciosa benevolên- cumprimento de sua missão (149), até que
cia do Senhor é examinada em si mesma tudo que respira louve ao Senhor (150.6).
(8,9), no modo como sua natureza se ex-
pressa em bondade; e no testemunho de Salmo 146. Louvor individual
seu povo (10-16). Sua bondade específica A convocação inicial, assim como a final,
para com o povo da aliança (8; Êx 34.6,7) está no plural ("Louvai", ARe), mas passa
é acompanhada de uma bondade univer- imediatamente para o singular (2): o Senhor
sal (9). Por isso, todas as... obras, mas é digno do louvor da pessoa inteira (alma)
os seus santos em particular, lhe devem e durante a vida inteira. Os v. 3,4 guardam
gratidão (10). A eles também pertence o essa verdade na forma negativa: as pessoas
testemunho do seu poder (11) e da glória em quem os seres humanos normalmente
de seu reino (12), sua fidelidade à sua pa- confiam, sejam indivíduos singulares ou
lavra (13), sua graça em dar apoio (14) e comuns, são desprovidas de capacidade,
suprimento (15,16). 9 Misericórdias (cf permanência ou confiabilidade. 5-10 Mas
103.13). 10 Santos, os que são objeto do a contrapartida não é apenas "Deus", mas
amor comprometido do Senhor e retri- um Deus que já provou ser Aquele capaz
buem esse amor (110 4.19), estendendo-o de salvar (de Jacó), que é conhecido por
também uns aos outros (110 4.11). meio de sua autorrevelação como Salvador
17-20 No Senhor, a justiça anda junto (o SENHOR, Êx 6.6,7) e alcançável pela fé
com a bondade. Há uma moralidade intrín- pessoal (seu Deus). Ele é um Deus de to-
seca em tudo o que ele faz (17), e há quali- tal poder e imutabilidade (6), misericórdia
ficações morais pessoais para receber seus com alcance social (7) e pessoal, um Deus
santos benefícios (18-20). Embora justo, de correção (8,9) que se comove com o so-
ele também está perto, é o parente mais frimento dos necessitados - e um Deus
próximo de seu povo que ora. Ao mesmo que está sempre perto! Louvai-o de fato!
tempo, sua justiça é de fato uma justiça de
graça - que ama, satisfaz desejos, salva e Salmo 147. Louvor da comunidade
zela por nós - mas é também uma justiça A estrutura do salmo é marcada pelos cha-
de santidade. mados ao louvor em 1,7,12. Cada seção
se refere ao Senhor como Criador: Os v.
Salmos 146-150. 1-6 comentam seu detalhado conhecimen-
A infindável aleluia to sobre o universo e delimitam esse co-
O Livro de Salmos começou (U) com mentário com a preocupação que ele tem
"Bem-aventurado o homem"; e termina com os necessitados no meio do seu povo
SALMO 148 880

e o discernimento moral que sublinha suas uma base segura para a vida porque (15-
ações. Os v. 7-11 observam sua generosi- 18) a palavra de Deus é o agente eficaz
dade na provisão para a vida terrena, mas por meio do qual ele governa o mundo,
reiteram que, no caso das pessoas, suas seja com rigor (16,17) ou doçura (18).
ações têm uma base moral, buscando uma Os v. 15-18 estão envolvidos por 13,14
reação de reverência e expectativa. Os v. e 19,20, e nos deixam tirar nossa própria
12-20 ensinam que sua palavra é o fator conclusão: o Senhor é toda a segurança e
controlador na ordem criada e também a prosperidade (13,14) de que seu povo ne-
marca característica de seu povo. cessita; a posse da palavra (19) faz deles
1 Amável ou "pois ele é agradável. um povo único (20; Dt 4.5-8).
Louvar é uma coisa adorável". O v. 2
explica o quanto ele é agradável: ele se Salmo 148. Louvor da criação
preocupa com a estabilidade e as circuns- Além do louvor do indivíduo (146) e da
tâncias de seu povo como um todo e com comunidade (147), há um louvor que o
as necessidades interiores e exteriores (3) Criador deve receber de toda a criação:
dos indivíduos. Dispersos, "espalhados", os céus (1) e a terra (7), os dois sendo
não necessariamente os que foram "exi- introduzidos por ordens idênticas. Cada
lados" para a Babilônia, mas quaisquer chamada ao louvor baseia-se numa expli-
"dispersos"; talvez até, num sentido mais cação (5,6,13,14), também com introdu-
amplo, "atormentados". 4 (Cf Is 40.26). ções idênticas. O louvor celestial baseia-se
No AT, o Criador não só dá origem a tudo na existência do Deus Criador, que origi-
como também sustenta, controla e guia nou, sustenta e controla tudo (5,6). O lou-
tudo até seu destino designado. Além dis- vor terreno baseia-se nessa glória intrínse-
so, no v. 5, a ordem criada revela seu po- ca do Senhor e na posição singular do seu
der e conhecimento. 6 Humildes, os que povo (13,14). A direção do louvor em 1-6
se encontram junto à base do monturo da é para baixo, dos seres celestiais (2) para
vida. 8,9 O Criador também controla os os constituintes materiais dos céus (3,4);
processos de mudança climática, cresci- a direção do louvor em 7-14 é para cima,
mento e provisão. Estes não são automá- dos abismos (7) e da ordem inanimada
ticos ou independentes, mas sim manifes- (8,9) para os reinos animal (10) e humano
tações da operação e da vida de Deus na (11,12). Coisas que em si mesmas podem
ordem criada. se tomar objetos de adoração (anjos, 2; es-
10,11 Força é, tipicamente, coragem, trelas, 3) e coisas que frequentemente pa-
bravura, força militar. Cavalo e músculos recem contradizer a existência de uma ação
podem indicar cavalaria e infantaria, as ordenadora da parte de Deus (8) ~ todas
coisas que as nações consideram sinais elas e em todas as suas manifestações exis-
de força e status. Mas o maior "batalhão" tem unicamente para o louvor do Criador.
que podemos ter do nosso lado é o pró- De fato, as tempestades só lhe executam
prio Senhor, e (11) ele busca as qualidades a palavra (8).
espirituais de reverência e esperança (espe- 4 Águas que estão acima do firma-
ram) ~ os que aguardam a ação de sua mi- mento, a região das nuvens de chuva. 7-10
sericórdia com toda a confiança. 12-20 Da Como pode uma criatura "muda" louvar?
mesma forma que 7-11 é construído sobre Sendo o que é, sujeita ao Senhor, cum-
1-6, esclarecendo as condições necessárias prindo sua função, assim como em (6) o
para se obter a bênção divina (cf 10,11 "louvor" das estrelas é sua sujeição às orde-
com 6), 12-20 se apoia em 7-11: a reverên- nanças divinas estabelecidas. 13 A terra é
cia e a paciente confiança de 11 precisa do convocada não só a "louvar a Deus", i.e., a
alicerce da palavra revelada (19,20). Esta é corresponder a algum senso da existência
881 SALMO 150

de um ser sobrenatural, mas a louvar o vo do louvor: o Senhor se agrada, aceita


nome, i.e., corresponder ao que ele reve- alegremente o seu povo; salvação, a expe-
lou a respeito de si mesmo. Como pode a riência do povo com o "oposto da adver-
terra toda louvar algo que não conhece? A sidade", divina, humana ou circunstancial.
resposta a esse problema está subentendida Humildes, oprimidos, sem recursos para se
no v. 14 (v. SI 149), em que a existência de livrar. 5,6 O contraste entre leito e espada
um povo especial é um motivo adicional é intencional. O povo de Davi não foi cha-
para o louvor da terra: seu povo é o cami- mado para a conquista militar. Leito pode
nho pelo qual o mundo pode vir a conhecer sugerir um assento no banquete messiâni-
o Senhor. Só. A palavra todos/todas ocorre co (Is 25.6-10); uma espada, uma vitória
dez vezes (2,3,7,9,10 [ARe], 11,14), abran- já alcançada em princípio. Mas, para eles,
gendo todas as entidades criadas. Mas assim como para nós, as "conquistas" são
existe apenas um só! 14 Poder, "chifre", espirituais (2Co 10.5), e a vitória é a do
símbolo de força: o Senhor fez do seu povo calvário (Ap 12.11). 7 Vingança, o lado
uma coisa "permanentemente" ligada à negro do dia da salvação (Is 61.2; 63.4;
terra; povo... santos ... chegado. Círculos Fp 1.28; 2Ts 1.7-10; Ap 14.14-19; 20.15).
de intimidade crescente: ele escolheu seu 8 (Cf Is 45.14-25). Um retrato vívido, den-
povo dentre todos os povos possíveis; fez tro da metáfora do Rei/Reino, do fato de
dele o objeto de sua misericórdia; tomou- que aceitar a mensagem é submeter-se ao
os como seus parentes mais próximos. mensageiro (2Co 8.5). 9 Sentença escrita,
i.e., escrita no livro de Deus, julgamento
Salmo 149. Louvor do reino de acordo com os registros.
Respondendo à implicação de 148.13,
o salmo 149 explica que o propósito do Salmo 150. Louvai-o todos!
Senhor com Israel é trazer todo o mundo A sequência de salmos trouxe o mundo
para o seu domínio - e, portanto, para a (149.5-9) à submissão (Is 45.23; Fp 2.11)
bem-aventurança de que Israel desfruta. e o hino dos remidos está para começar
Dentro do conjunto 146-150, só 149.2 (Ap 5.8-14; 7.9,10).
descreve o Senhor como Rei a quem (8) os 1,2 Louvor adequado para Deus.
reis se submetem. Portanto, o salmo leva Desde o alto de seu santuário celestial,
a sério a metáfora do reino, incluindo a até o firmamento ("a expansão da/que
expansão do reino pela força das armas. mostra a sua força"), e até seus poderosos
Mas (cf Is 45.14-25; 60.1-22; Ef6.10-17; feitos (poder dominador) vistos na terra,
Ap 1.16) ainda é uma metáfora, assim o Senhor mostra muita grandeza, grande-
como (Is 9.4,5,7) o militarismo é uma me- za que excede a de qualquer pretendente.
táfora da expansão do reino de paz e, como Santuário poderia ser traduzido por "sua
em Atos 15.14-18, o retrato de Amós so- santidade", mas o significado seria o mes-
bre a submissão dos gentios a Davi é uma mo. A ideia é definida pela casa terrena
metáfora da expansão do evangelho. O cuja construção o Senhor ordenou: o lu-
prólogo (1) conduz à alegria num Rei sal- gar onde o Santo habita e onde seu povo
vador (2-4); alegria num domínio mundial se aproxima dele por meio do sacrifício
(o descanso e as conquistas de um povo de expiação. Este é o ponto mais alto da
que louva); seus objetivos; e, finalmente, grandeza do Senhor. Seus poderosos feitos
o epílogo (5-9). não são definidos, mas, assim como o fir-
1,2 Santos, segurança no amor do mamento, obra do seu poder ilustra a obra
Senhor (cf 5,9); Israel, filho (Êx 4.22) es- e o fato da criação, seus feitos são o que
colhido (Is 41.8), remido (Êx 6.6,7); Sião, ele fez: por seu povo, na redenção, no cui-
estabelecida no reino de Davi. 4 O moti- dado providencial e na disciplina.
SALMO 882

3-6 Louvor condizente com a huma- seja dada ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito
nidade. Usando todos os meios (3-5), e Santo" que encherá os céus e se estenderá
vindo de cada pessoa (6), temos aqui um por toda a eternidade.
grande grito digno de ser considerado o
clímax de toda a alegria da religiosidade do
AT e de ser um antegosto daquele "Glória 1. A. Motyer
PROVÉRBIOS

Provérbios apresenta ensino teórico e prá- consiste em duas meias linhas que se com-
tico acerca da vida, de duas formas prin- plementam, completam ou contrastam uma
cipais. Os capítulos 1-9 são em grande com a outra. Com frequência o seu signifi-
parte encorajamentos à vida moral (v., e.g., cado está entretecido e é interdependente.
1.8-19). Esses sermões estão em verso, Assim, 10.1 significa que o filho sábio é a
mas a forma poética é menos importante alegria tanto do seu pai quanto da sua mãe,
do que transmitir a mensagem, e os ver- e o filho insensato é a tristeza de ambos.
sos, em sua maioria, não são grandes ex- Comumente as meias linhas em equilíbrio
pressões artísticas. Os capítulos têm duas contêm somente três palavras cada uma, e
ênfases especiais; uma em que o leitor é assim três acentos tônicos; o hebraico com
encorajado a se aplicar aos ensinos dos sá- frequência combina palavras, mas no por-
bios e outra em que é estimulado a evitar tuguês o leitor muitas vezes consegue per-
relações adúlteras com mulheres. Os dois ceber quais são as palavras importantes em
temas estão relacionados: a infidelidade cada linha em tomo das quais as palavras
sexual é a máxima tolice. menores se aglutinam, e assim ver onde
Com o capítulo 10, a atmosfera muda. estão os três acentos. Em 1.2-4, temos um
A forma passa a ser predominantemente exemplo de todas essas características.
de ditos de um verso, associados de uma O material de Provérbios talvez reflita
maneira ou de outra, mas cada dito com- três panos de fundo sociais: a vida da famí-
pleto em si mesmo. Os temas se expandem lia, a sociedade em volta da corte e a esco-
e são muito diversos. Entre os tópicos re- la teológica. Em primeiro lugar, os mestres
correntes, além da sabedoria e das relações com frequência falam aos ouvintes como
sexuais, estão a natureza da justiça, o uso se fossem seus pais. Embora essa forma de
das palavras, os relacionamentos na comu- falar seja parcialmente metafórica, por trás
nidade, o trabalho, a riqueza e a realeza dela está a implicação de que o lar é o lugar
(17.1-5 é um bom exemplo). natural para o ensino e o aprendizado acer-
A terceira parte do livro (22.17-31.31) ca da vida, da sabedoria e dos caminhos
contém cinco coleções adicionais de mate- da justiça (cf 22.6). O primeiro pano de
rial, mistas em conteúdo e mistas também fundo provável do material em Provérbios
em forma. Essas coleções combinam ainda é a vida em família e no clã.
muitos outros ditos de um verso, algumas Em segundo lugar, em outras culturas
unidades mais longas e um poema final de do Oriente Médio, o ensino da sabedoria
22 versos. era obtido sob o amparo da corte real, com
Tanto os sermões quanto os ditos mos- recursos para o treinamento da nobreza em
tram as características habituais da poesia ação na corte. O conteúdo de Provérbios
nos profetas ou em outros livros - aliás, não aponta principalmente nessa direção;
elas tendem a ser mais regulares do que na ele está associado à vida do povo em geral.
poesia em outras partes do AT. Em geral, Mas as referências a Salomão e outros reis
cada versículo contém uma unidade de nos cabeçalhos das coletâneas, como tam-
pensamento, se não de fato uma frase, e bém as referências à realeza e às questões
PROVÉRBIOS 884

nacionais em alguns ditos, sugerem que a coisas como elas de fato são. Portanto, a in-
esfera da corte onde as pessoas eram trei- sensatez é uma forma de pensar e viver que
nadas para o serviço do rei pode ter sido ignora como as coisas são de fato.
um contexto em que o material era usado Tentar formular e coletar ensino de sa-
e coletado. bedoria pressupõe que não estamos limita-
Em terceiro lugar, o material às vezes dos ao aprendizado baseado na nossa pró-
reflete um interesse em questões teológi- pria experiência; também aprendemos com
cas, tais como a criação e a revelação (cf a experiência dos outros. Com base na sua
3.19,20; 8.22-31; 30.2-6), como também própria experiência e na de outros povos,
em questões mais cotidianas acerca da os sábios mestres de Israel nos oferecem
vida prática. O pano de fundo desse mate- percepções que nos ajudam a fazer sentido
rial pode ter sido de discussões nas escolas da experiência que tivemos, e podem nos
em que teólogos ou intérpretes ou escribas ajudar a proceder sabiamente no futuro.
eram treinados, as "casas da instrução" às Considerado teologicamente, o livro
quais Ben Sirac convida ("entrai para a de Provérbios começa da revelação geral
escola", Eclesiástico 51.23, BJ). de Deus, disponível às pessoas porque elas
Pouco sabemos acerca da autoria ou foram feitas à imagem de Deus e vivem
data real do material em Provérbios. O no mundo de Deus. Precisamente por sa-
material mais antigo se encontra entre ber que Deus é real, que as pessoas foram
aquilo que pode ser naturalmente usado feitas à imagem de Deus e que elas vivem
na vida em família, como vimos anterior- no mundo de Deus, Provérbios também
mente. Isso pode ter se originado mui- pressupõe que a moralidade e a fé são par-
to antes dos dias de Salomão e antes de te da própria vida à medida que as pessoas
Israel ter existido na Palestina, embora a experimentam.
certamente recebesse desenvolvimento e Os cristãos estão continuamente per-
acúmulo à medida que a vida em família mitindo ser influenciados pela sabedoria
prosseguia. O ensino que sugere a vida na e pela experiência humanas. Provérbios
corte supostamente pertence aos séculos encoraja isso. Também nos oferece algu-
a partir de Davi até o exílio. (Acerca da ma orientação acerca de como agir e como
relação de Salomão com isso, ver comen- não agir com relação a isso. Pressupõe que
tário de 1.1 adiante). O material mais teo- o mundo real inclui questões de fé e con-
logicamente desenvolvido talvez venha vicção moral, e coloca a nossa experiência
do período do Segundo Templo; ele provê no sentido limitado contra o pano de fun-
o pano de fundo da literatura final (cp. do dessas questões; Provérbios combina
1-9 e 30-31) para a nossa leitura da aprendizado, religião e moralidade. O livro
parte principal do livro com seus interes- insiste em que os princípios relacionados a
ses eminentemente práticos. educação, aconselhamento e negócios, por
Provérbios adota uma abordagem ex- exemplo, são formados em conjunto com
perimental, quase científica, da vida. Esse considerações religiosas e morais, e não
livro observa a própria vida a fim de discu- independentemente delas. Assim, diz um
tir diretamente como enxergá-la (grandes e "sim" e um "não", ou um "sim, mas", para
profundas perguntas acerca do seu signifi- tudo que aprendemos do mundo.
cado e de questões práticas acerca da nossa
compreensão de tópicos tais como amizade, Leitura adicional
casamento e família) e como viver a vida KIDNER, F. O. Provérbios: introdução e
com base nessa compreensão. Ele entende comentário. SCB. Vida Nova, 1980.
a sabedoria como algo que se constitui de AITKEN, K. L. Proverbs. OSB. St.
pensamento e vida em harmonia com as Andrew Press / Westminster / John
885 PROVÉRBIOS

Knox Press, 1986. McKANE, W. Proverbs. OTL. SCM, 1970.


HUBBARD, D. A. Proverbs. cc. Word, CAMP, C. V. Wisdom and lhe feminine in lhe
1989. book ofProverbs. JSOT Press, 1985.

essoço
!.1-7 Introduçã~~_.
1.8-9.18 Conselhos acerca da sabedoria
1.8-19 Advertência acerca de se envolver com bandos de
assassinos
1.20-33 A sabedoria chama os simples, os tolos e os autoconfian-
tes a prestar atenção se quiserem evitar o desastre
2.1-22 Promessas acerca dos benefícios morais que resultam da
atenção à sabedoria
3.1-12 Recomendação com respeito às atitudes para com Deus
3.13-20 A bênção da sabedoria
3.21-35 O chamado ao discernimento saudável e à boa vizinhança
4.1-9 O chamado a buscar a sabedoria e as promessas associa-
das às suas dádivas
4.10-19 O chamado a evitar o caminho dos maus
4.20-27 O chamado a guardar a mente e a vida
5.1-23 O chamado à fidelidade conjugal
6.1-19 Dois chamados à ação (em contraste com a demora), e
duas observações acerca da pessoa que causa problemas
6.20-35 A advertência a evitar o adultério por causa do seu ele-
vado custo
7.1-27 O chamado a resistir a qualquer tentação de ter um
caso extraconjugal
8.1-36 A oferta que a sabedoria faz da verdade e da vida
9.1-18 Os convites idênticos da sra. Sabedoria e da sra. Loucura

10.1-22.16 Provérbios de Salomão


10.1-22 Ditos acerca riqueza e das palavras
10.23-11.31 Justiça e maldade, e mais acerca de palavras e riquezas
12.1-28 Mais acerca de palavras e do trabalho
13.1-25 Desejo, riqueza e sabedoria
14.1~15.1 A sabedoria, o ser interior e a vida em sociedade
15.2~16.19 Deus em sua relação com a sabedoria, o rei e o ser
interior
16.20~22.16 A vida, a justiça, a sabedoria e Deus

22.17-31.31 Mais cinco coletâneas


22.17-24.22 Trinta ditos
24.23-34 Mais ditos sábios
25.1 ~29.27 Ditos transcritos na corte de Ezequias
30.1-33 Ditos de Agur
31.1-31 Ditos do rei Lemuel
PROVÉRBIOS 1 886

COMENTÁRIO a.C.!), mas o seu significado não se funda-


menta em informações desse tipo. Esses
1.1-7 Introdução provérbios estão relacionados a questões
Esses versículos constituem a própria in- humanas do cotidiano de todos os tempos.
trodução do livro à sua natureza e propósi- No v. 1, Salomão é descrito como fi-
to. O conteúdo do livro como um todo pode lho de Davi e rei de Israel (cf Ec 1.1).
ser descrito como provérbios, que têm as Eclesiastes prossegue em fazer de Salomão
duas formas principais bem diferentes cita- o seu modelo, pois como rei ele certamen-
das na introdução. Isso em si já mostra que te estava numa posição singular para fazer
provérbio é uma palavra de aplicação mais as declarações de Eclesiastes 1.12-2.11.
ampla e diversificada que a palavra "pro- Num sentido paralelo, os sermões em
vérbio" em português. Usar um provérbio Provérbios 1-9 talvez tenham Salomão
é um meio de comparação. A Bíblia, no en- como o seu modelo implícito; eles expres-
tanto, usa a palavra de forma mais ampla. sam o tipo de princípios que um rei como
Em diversos trechos, pode se referir a um Salomão deve ter seguido e vivido em sua
oráculo profético (Nm 23.7), um elemen- sabedoria. Aí há uma ironia!
to ilustrativo de uma lição (Dt 28.37), um A introdução prossegue e afirma o
dito (lSm 10.12), um discurso poético (Jó propósito do livro, e ao fazê-lo nos ofe-
27.1) e outras formas de discurso. Assim, rece um glossário dos termos técnicos da
sugere algo mais intenso, vigoroso e pro- sabedoria.
vocativo do que um simples dito. No v. 2, a sabedoria em si significa pri-
O v. 6 descreve o conteúdo do livro meiramente o know-how prático ou a inte-
como parábolas e palavras e enigmas dos ligência que se obtém das coisas (30.24-
sábios (NTLH: "o significado escondido dos 28), embora se torne uma disciplina mais
provérbios e dos ditados e [...] os mistérios abstrata relacionada a questões teológicas
que os estudiosos procuram explicar"). profundas (cf. 8.22-31). O ensino ou "ins-
Isso chama a atenção para mais duas ca- trução" (ARe) ou "disciplina (NVI; a mesma
racterísticas do ensino de Provérbios. Com palavra ocorre no v. 8) nos lembra que não
frequência, os ditos são formulados de ma- se obtém a sabedoria de forma barata ou
neira enigmática e não contados de forma sem sofrimento; ela inclui submissão (cf
clara e direta; isso faz o ouvinte pensar. 3.11; 6.23; 13.1,24). Assim, "repreensão"
Também reflete o fato de que o livro com (1.23,25,30) com frequência acompanha
frequência trata de questões profundas. o ensino ou a "instrução" ou a "discipli-
O título Provérbios de Salomão introduz na" (cf 3.11; 5.12; 6.23; 10.17). Entender
o livro todo, mas não indica que Salomão as palavras de inteligência significa a ca-
tenha sido o autor de todo o material conti- pacidade de analisar, o discernimento de
do nele (cf 24.23; 25.1; 30.1; 31.1). Antes, enxergar por trás das coisas ou de ler nas
faz uma declaração acerca da autoridade entrelinhas, e o discernimento para tomar
do livro todo como uma coletânea de sa- decisões à luz disso (cf. v. 6).
bedoria verdadeiramente salomônica, Pois A ligação da sabedoria com o bom pro-
Salomão é a grande personificação bíblica ceder (3) mostra novamente seu interesse
da sabedoria (v. lRs 3--4). O que ela con- prático; a palavra sugere ter bom senso (cf.
tém é o tipo de sabedoria que ele ensinava NVI: "sensatez"). Prudência no v. 4 é uma
e personificava. Não sabemos se partes es- palavra diferente, significando "astúcia",
pecíficas do livro foram obra sua. Na ver- "perspicácia", a capacidade que uma pes-
dade, não sabemos nada acerca de quando soa tem de levar os outros a fazer o que
as diferentes partes do livro foram escritas ela quer sem se deixar levar (cf 22.3 e
(além do fato de que foi entre 2000 e 200 Gn 3.1 no sentido negativo). Conhecimento
887 PROVÉRBIOS 1

pode se referir a conhecer fatos e conhe- pessoas que sempre estão com sua boca
cer pessoas, mas se sobrepõe a reconheci- aberta, e não seus ouvidos; elas já sabem
mento e, portanto, a compromisso ~ ele tudo e não têm necessidade de dar ouvidos
associa teoria e prática (cf 1.22,29; 3.6). a ninguém. São arrogantes, não ensiná-
"Conhecimento de Deus" (2.5) está ligado, veis, e ninguém gosta delas (cf'9.7,8; 13.1;
portanto, mais intimamente à obediência a 15.12; 21.24).
Deus do que a ter uma experiência pessoal Finalmente, a introdução revela a com-
de Deus. Bom siso ("bom senso", NVI) su- panhia de que se cerca a sabedoria, deixan-
gere a desenvoltura da pessoa prática que do claro que o aprendizado e a tomada de
sabe como fazer as coisas e não desanima decisões na prática não agem por si. Em
com os problemas; no sentido negativo, primeiro lugar, eles andam juntos com a
denota maquinação (12.2). moralidade (3b). A justiça, ojuízo e a equi-
No v. 5, a palavra traduzida por pru- dade são a preocupação característica dos
dência ("sabedoria", ARe; "conhecimen- profetas. Os mesmos três elementos ocor-
to", NVI) vem do verbo "tomar", "pegar", rem novamente em 2.9 e 8.6,20 ("fazendo
e indica o esforço envolvido em pegar ou o que é justo, direito e correto", NVI).
agarrar algo e a receptividade exigida pela Em segundo lugar, andam juntos com
sabedoria. A mesma palavra é traduzida a fé (7; cf 9.10 na outra ponta da coletânea
por "muitas palavras" ("a sedução das pa- de sermões e 31.30 na outra ponta do li-
lavras", NVI) em 7.21. Habilidade vem da vro). O temor do SENHOR sugere reverência
palavra para cordas e sugere destreza em e admiração que resultam em obediência
conduzir a vida em meio às suas tempesta- tcf. v. 29, com o comentário de conheci-
des (cf 24.6). mento acima); não significa ter medo de
A introdução do livro também especifi- Deus. O SENHOR é Javé, o Deus especial-
ca o seu público-alvo. Os simples (4) são os mente revelado a Israel. Provérbios não
jovens não instruídos que estão em perigo se refere a aspectos específicos da fé dos
de ser ingênuos, crédulos, facilmente leva- israelitas; mas ao empregar o nome de
dos ~ e felizes do jeito que são (cf. v. 10 Deus distintivamente usado pelos israeli-
~ "seduzir" é um verbo relacionado, e su- tas sugere que essa é a fé mencionada. A
gere desviar os ingênuos; também 1.22,32; sua sabedoria baseia-se no senso comum
14.15). Mas o ensino de Provérbios não é que toma essa fé como o seu quadro de
algo que o sábio ou o instruido atinja de- referência. O princípio do saber significa
finitivamente (5). A palavra para instruído o seu "fundamento" (REB), porque a pes-
está associada às expressões para entender soa nunca deixa de precisar desse saber.
as palavras de inteligência no v. 2 (v. co- Provérbios pressupõe que a pessoa não
mentário ali). Os sábios e instruídos sabem pode fazer sentido do mundo ou viver
que a maioria das pessoas geralmente tem uma vida plena e bem-sucedida a não ser
mais necessidade de agir em relação a ver- que enxergue a Deus por trás dela e nela, e
dades antigas do que descobrir novas. busque a compreensão dela em Deus, com
Em contraste com isso, outros se tor- reverência e humildade.
nam loucos (7) quando não estão dispos-
tos a aprender ou são complacentes em
1.8-9.18 Conselhos
sua confiança de que tudo vai acabar bem, acerca da sabedoria
ou quando viram as costas para antigas
verdades básicas (cf 1.32; 12.15; 17.12; 1.8-19 Advertência acerca de se
27.3,22). envolver com bandos de assassinos
Mais um alvo associado aparece no Essa primeira parte de conselhos é típica.
v. 22: "escarnecedores", A palavra sugere Começa com um desafio à atenção (8), que
PROVÉRBIOS 1 888

pressupõe que mãe e pai juntos conduzem deus Morte engolindo avidamente as pes-
a família no seu relacionamento com a vida soas. A NVI traz "sepultura" no texto e na
e com Deus (cf 6.20; 10.1). O desafio traz nota mrg.: "Esta palavra também pode ser
consigo uma promessa (9), acrescentando traduzida por profundezas, pó ou morte".
às dos v. 2-7 a promessa de que a sabedo-
ria não é somente benéfica mas também 1.20-33 A sabedoria chama
atraente. Instrução é uma das palavras do os simples, os tolos e os
campo da sabedoria (v. comentário de 1.1- autoconfiantes a prestar atenção
7), mas ensino é a palavra "torá" (lit. "dire- se quiserem evitar o desastre
ção", "instrução"), o que sugere que o estilo Os v. 20,21 personificam a sabedoria como
e o conteúdo dos livros sapienciais e os da uma profetisa pregando nos lugares em que
torá estão sendo combinados (cf "manda- as pessoas se ajuntam na cidade, de uma
mentos" e "sabedoria" bem próximos em forma à qual Israel estaria acostumado. Os
2.1,2). Isso está mais claro no cp. 28. v. 22-33 registram o que ela estava dizen-
Em seguida, prossegue ao seu principal do, reforçando a imagem de um profeta
desafio com relação a um aspecto particu- pregando, sendo ignorado (cf Is 65), e en-
lar de comportamento: o v. 10 resume o tão não estando disponível quando as pes-
que pode acontecer e como a pessoa deve soas querem consultá-lo (cf v. 23,24,28). A
reagir, os v. 11-14,15 ampliam as duas imagem do profeta ajuda a transmitir a ur-
partes disso. A sedução apela às emoções, gência do desafio da sabedoria às pessoas
violência, dinheiro, poder e camaradagem que estão numa situação crítica. Ela fala
do jovem. como se fosse tarde demais, como os pro-
Os v. 16- I9 associam razões aos conse- fetas com frequência fazem para sacudir as
lhos. A argumentação é proeminente nessa pessoas a que reajam antes que realmente
seção: ela ensina com autoridade, mas não seja tarde demais.
de forma autoritária. O banditismo é estú- O início (22) e o fim (32,33) resumem
pido. Os bandidos estão atrás de sangue o seu lamento, sua advertência e sua pro-
(11), mas estão se apressando a derramar messa. Amareis e aborrecereis (22) são
o seu próprio sangue (18). A sua estupidez atos apresentados como comprometimen-
é tal que eles não conseguem ver o desas- tos voluntários bem como emoções, como
tre quando este os olha de frente (17). O v. é regularmente o caso em Provérbios e em
16 provavelmente sugere a mesma ideia. outros trechos das Escrituras.
A palavra para mal seria mais bem-tra- Os v. 23-25 então ampliam o lamento:
duzida por "dano", "prejuízo". Eles estão as pessoas estavam deixando de responder
inclinados a causar dano - a si mesmos; e perderam a provisão transbordante da
são rápidos para derramar sangue - o seu sabedoria. Elas não estiveram dispostas a
próprio. Eles escarneceram da ingenuidade ouvir a repreensão e o conselho - o nega-
das suas vítimas; agora o mestre escarnece tivo e o positivo se complementam. Os v.
da deles. 26-28, por sua vez, ampliam a advertência
Nota. 12 O abismo (sheol) e a cova: cf com que uma profetisa caracteristicamente
27.20; 30.15,16; Salmos 49; Eclesiastes 9; dá seguimento à sua repreensão: as pessoas
Isaías 5.14. Quando as pessoas morrem, são ameaçadas pelo terror repentino e fi-
fisicamente o túmulo da família as engole cam abaladas pela aflição. Os versículos
por inteiro; o sheol é o equivalente não físi- exageram ao destacar esse ponto, na tenta-
co do túmulo, o destino da parte não física tiva de sacudir as pessoas para que voltem
da pessoa. Mas a imagem do sheol com sua ao juízo.
boca voraz também retrata a maneira como Os v. 29,30 e 31 repetem o padrão dos
mitos dos vizinhos de Israel descrevem o v. 23-25 e 26-28. Eles lamentam a recusa
889 PROVÉRBIOS 2

propositada das pessoas de se comprome- desafio dissimulado. A imagem do "cami-


ter com o que é certo e de usar a sua liber- nho" está presente em todo o capítulo.
dade humana para se curvar em obediência O desafio à atenção nos v. 1-4 assume
a Deus (29; cf v. 22,32 acerca da ênfase na urna forma condicional (de "se") mais sutil
responsabilidade e na escolha). Eles adver- do que o desafio direto de 1.8. Mas ain-
tem e mostram corno o resultado natural de da assim trata de mandamentos, corno na
tais decisões humanas pode ser comparado torá (v. comentário de 1.8), e de uma busca
à sensação de indigestão que nos sobrevém absolutamente séria, envolvendo quatro
quando comemos demais (31). formas de aplicação. Inclui treinar a me-
A imagem da sabedoria corno um pro- mória (1). Inclui abrir a mente (2; acerca
feta ajuda a destacar o ponto de que a sa- de coração v. comentário de 4.21). Requer
bedoria fala por Deus e da parte de Deus forte motivação (3), urna busca tão séria
(v. mais no cp. 8). O seu ensino é extraído quanto a da própria sabedoria (cf 1.20,21).
da experiência, mas não é mera opinião Requer esforço concentrado, como se al-
humana. Deus está envolvido na atividade guém estivesse cavando à procura de ouro
humana pela qual as pessoas buscam dis- (4): a linguagem de um tesouro encontrado
cernir a verdade que a própria vida pode e guardado em segurança (cf v. 1) já apon-
lhes ensinar. A própria sabedoria ensina ta para a promessa associada ao objeto da
que o empecilho principal para crescer busca. Obter entendimento é, em certo
em discernimento é de natureza moral, a sentido, uma questão simples e direta, mas
falta de disposição para aprender verdades requer muito esforço.
desconfortáveis. Ela também ensina que Como 1.9, os v. 5-11 explanam a pro-
uma vez que a pessoa se abra para a vida messa associada à atenção. A séria busca
orientada pelas percepções da sabedoria, pelo discernimento atinge o seu propósi-
estas abrirão o caminho para a vida bem- to quando as pessoas encontram a Deus e
sucedida e segura. A verdadeira segurança se submetem a ele corno aquele que tem
está nisso; contraste impressão de bem- a chave para esse depósito do tesouro.
estar ("falsa segurança", NVI) e seguro e Obter discernimento requer muito esfor-
tranquilo (32,33). Ao contrário, o desastre ço (1-4), mas quando a pessoa o encontra,
virá, não meramente porque Deus o envia, recebe-o como um presente! Encontrar
mas porque isso é o resultado "natural" de a Deus é então encontrar a chave para a
atos tolos (31,32). Essas são as promessas vida segura, porque a chave para a vida
características de Provérbios; o fato de que segura é também discernimento. Isso é as-
nem sempre funcionam é o ponto de parti- sim em virtude do aspecto moral do ver-
da de Jó e Eclesiastes. dadeiro discernimento; o discernimento
se expressa em forma de vida correta, e
2.1-22 Promessas acerca dos encontrar a Deus é encontrar alguém cujo
benefícios morais que resultam discernimento é direito.
da atenção à sabedoria Os v. 5-8 são explicados ainda mais
Após a exortação em tom paternal de 1.8- em 9-11, versículos paralelos: Então e o
19 e a advertência em tom profético de porquanto dos v. 9 e 10 retomam então e
1.20-33, esta seção toma ainda uma outra porque dos v. 5 e 6, e a promessa do v. 11
forma, a de observação e promessa. Ela não é paralela à dos v. 7 e 8. Os pupilos, fu-
contém nenhum imperativo: assim corno turos sábios, querem saber como viver, e
1.20-33 vem como urna advertência proféti- recebem a promessa de que vão descobrir
ca, esta aqui vem em forma de um conjunto isso (9).
de condições "se" e de promessas. Assim Nos v. 12-22, a promessa dos v. 5-11 é
as muitas promessas são em si mesmas um aplicada primeiramente à forma de retidão
PROVÉRBIOS 3 890

em geral - ou antes, ao caminho direito, ro o erro moral disso (12-17), mas as reais
porque a imagem de causar dano como advertências ressaltam que o caminho do
sendo a própria maldade está em todo o tre- mal leva à calamidade pessoal (18-22). O
cho dos v. 12-15. A sabedoria é a proteção pecado sexual é errado, mas aqui, além
que a pessoa tem contra os mentirosos dos disso, é também estúpido. As pressões do
v. 12-15 (parentes próximos dos bandidos nosso mundo glamorizam a autoexpressão
e assassinos de 1.10-19) que chamam preto sexual em nome do amor; comumente as
de branco e branco de preto com tamanha pessoas só descobrem depois que o sofri-
desfaçatez que o que dizem chega até a pa- mento e a perda dificilmente compensam
recer verossímil. o prazer. Provérbios considera o adultério
Os v. 16-19 apontam os holofotes para algo que conduz ao mesmo destino do ban-
as mulheres infiéis como também para ditismo: cf 1.16-19 e a descrição do sheol
esses homens maus. Os versículos talvez em 1.12.
tratem simplesmente do adultério no seu
sentido mais direto; Provérbios com cer- 3. 1-12 Recomendação com respeito
teza sublinha a fidelidade conjugal. Mas às atitudes para com Deus
a adúltera ou a estrangeira ("pervertida", Assim como 1.8-19, esta seção inclui uma
NVI) é um tema tão proeminente nos cp. introdução padrão que incentiva à aten-
1-9 (v. cp. 5; 6.20-7.27; também 22.14; ção em virtude dos benefícios que isso
23.26-28; 29.3) que parece haver nele algo traz (1,2); então vem uma série de reco-
mais do que simplesmente isso. Talvez a mendações diretas acerca de um tópico
infidelidade conjugal seja uma parábola da particular, acrescentado de suas próprias
infidelidade a Deus, como frequentemente promessas (3-12).
ocorre no AT; aqui, a tônica será a fideli- Em contraste com 1.8 e 2.1 (v. comen-
dade a Deus como expressa na fidelidade tário), o v. 1 usa somente o vocabulário
à sabedoria. As palavras não são, todavia, da torá (instrução e mandamentos). Isso
as comumente usadas com referência às nos prepara para o fato de que o conselho
mulheres imorais; elas significam "mulhe- específico dos v. 3-12 é mais diretamente
res estranhas e estrangeiras" (cf ARe). Isso religioso do que os de outras seções; as-
pode sugerir que essas mulheres estejam sociações específicas com Deuteronômio
comprometidas com deuses estrangeiros são observadas adiante. AIiás, os v. 3-13 se
e sua sabedoria. Elas irão iludir os que se ocupam com advertências acerca da sabe-
envolverem com elas a reconhecer esses doria e não com elogios a ela: o interes-
deuses - e estes os induzirão à idolatria e se pela sabedoria sai do controle quando
à imoralidade sexual. A admoestação para perde o contato com Deus. Mas primeiro,
que se leve a sério a sabedoria (o que inclui no v. 2, a introdução faz a sua própria pro-
reverência por Javé) e a que se resista às messa concernente ao valor do seu ensino.
tentações de outras mulheres (que levam a A paz de que fala aqui é o termo hebraico
pessoa a se envolver com outros deuses) shalom, o conceito bíblico bem abrangente
são, então, duas faces da mesma moeda. que inclui felicidade, completitude e inte-
Essa interpretação dá sentido aos trechos gridade nesta vida (cf v. 17).
posteriores que trazem referência à "adúl- Cinco atitudes específicas nos são en-
tera", embora aqui no v. 17 mais natural- tão aconselhadas. Em primeiro lugar, de-
mente signifique uma mulher israelita que vemos ser perseverantes no nosso compro-
abandonou o marido a quem fez os seus misso (3,4; cf Dt 6.8; 11.18). Benignidade
votos diante do Deus de Israel. e fidelidade são uma parelha de palavras-
Assim como 1.10-19, o trecho descre- chave do AT sugerindo o estabelecimento
ve o fazer o mal de forma tal que toma ela- e o cumprimento de compromissos. Tais
891 PROVÉRBIOS 3

características pertencem a Deus, e se tor- 9.1-18). Vamos nos referir a elas como sra.
nam alvos para a reação humana a Deus e Sabedoria e sra. Loucura.
a outras pessoas (e.g., 14.22; 16.6; 20.28; A árvore da vida (18; cf 11.30; 13.12;
S125.10; 40.10,11). 15.4) em Provérbios é uma metáfora para-
Em segundo lugar, devemos ser depen- lela a "fonte da vida" (e.g., 10.11; 13.14)
dentes no nosso pensamento (5,6). Confia para descrever algo que gera vida. Não tem
e te estribes sugerem a experiência física as conotações teológicas de Gênesis 2-3.
de se apoiar em algo ou alguém com total Referências anteriores à vida e à morte pa-
abandono, confiança e compromisso. recem ter o significado ordinário e básico
Em terceiro lugar, devemos ser humil- (e.g., 1.18,19; 2.18,19), mas por "vida" o
des em nossa obediência (7,8). Sábio aos AT com frequência quer dizer plenitude de
teus próprios olhos não denota meramente vida (vitalidade, saúde, bênção, prosperi-
orgulho da sua própria sabedoria, mas au- dade, realização) e por "morte", a ausência
tossuficiência nela e por isso a falta da per- de tudo isso. As referências em Provérbios
cepção da necessidade de levar as coisas precisam ser consideradas em seu contex-
a Deus (sem dúvida, uma tentação persis- to para verificar se esses significados estão
tente para pessoas empenhadas em buscar presentes (v., e.g., 3.22; 4.4,13,22,23).
a sabedoria). Os v. 19,20 então acrescentam um
Em quarto lugar, devemos ser prodiga- dito inesperado de grande significado. A
mente generosos nas nossas contribuições razão máxima para se levar a sabedoria a
(9,10; cf Dt 26). sério é o fato de que Deus o fez quando
Em quinto lugar, devemos ser submis- criou o mundo. (O SENHOR está numa po-
sos na nossa experiência de aflição (11,12; sição claramente enfática no começo da
cf Dt 8.5). frase). O cp. 8 vai desenvolver as duas
Podemos ser tudo isso, porque essas partes dessa ideia.
coisas nos trarão favor (4), direção (6), saú-
de (8) e prosperidade (10), e porque aquele 3.21-35 O chamado ao
a quem nos submetemos dessas diversas discernimento saudável
formas é o nosso Pai amoroso (12). Acerca e à boa vizinhança
de perguntas que essas promessas possam Os elementos nessa seção estão conecta-
suscitar, ver comentário de 10.1-11.11. dos de forma menos próxima do que os
de outras seções, e podem ser de origem
3.13-20 A bênção da sabedoria independente, mas, como está, o sermão
As Escrituras nos lembram constantemente segue a estrutura conhecida. Ele começa
que Deus está envolvido conosco na bên- com um chamado à atenção cuidadosa
ção de uma vida plena no mundo. Também à sabedoria (21), ao qual está associada
nos transmitem essa mensagem de diversas uma série de promessas: vida (v. comen-
formas (cf ICo 9.22). Há muitas formas tário do v. 18), distinção, segurança, tran-
de pregar um sermão! Aqui (14-18), nos quilidade, confiança, todas baseadas na
é apresentada a sabedoria personificada proteção divina (22-26).
como mulher. Ela vai reaparecer muitas ve- Seguem conselhos concernentes a as-
zes, com frequência personificada no char- pectos específicos de comportamento, des-
me de uma moça ou na maturidade de uma sa vez focalizando na sociabi Iidade (27 -31).
mulher casada. O seu exemplar oposto, São acrescentadas mais promessas acerca
a loucura, vem personificada de maneira de viver na segurança de Deus, de experi-
semelhante na tolice de uma adolescente mentar a bênção de Deus sobre a casa, de
ou na irresponsabilidade de uma mulher receber a graça de Deus e de encontrar hon-
casada desiludida (v. 4.1-9; 7.1-27; 8.1-36; ra aos olhos da comunidade (os v. 32-35
PROVÉRBIOS 4 892

formam uma série de notáveis opostos). A sua promessa associada de luz e advertên-
pressuposição é de que ser sensato e ser cia de escuridão (18,19).
sociável na verdade andam juntos - não é
inteligente (21) calcular e maquinar o pre- 4.20-27 O chamado a guardar
juízo dos outros (27) em virtude da maneira a mente e a vida
como Deus faz o mundo funcionar (32-35). Mais uma vez o chamado à atenção cuida-
dosa conduz à promessa de vida e saúde
4.1-9 O chamado a buscar (20-22). Isso introduz o conselho concer-
a sabedoria e as promessas nente ao cuidado pela pessoa como um
associadas às suas dádivas todo: mente, fala, visão e caminhos (23-
Esse trecho, que nos admoesta a prestar 27). A pessoa interior precisa estar em or-
atenção na sabedoria, é como 3.13-20 ao dem, porque ai está a fonte de todo o resto;
tratar a sabedoria como a uma pessoa, mas o comportamento exterior não pode
mas é semelhante a outros trechos em dar ser simplesmente deixado a se desenvolver
orientações fundamentadas nas promessas automaticamente daí. Precisamos prestar
dos benefícios da sabedoria. O leitor é con- atenção em falar retamente, olhar retamen-
duzido à atenção, aplicação, receptividade, te e caminhar retamente.
compromisso, coerência, sacrifício e entu-
siasmo (observe o repetido adquire). A mo- 5.1-23 O chamado à
tivação promete vida, proteção e honra. fidelidade conjugal
A ênfase no ensino em família é de- O desafio inicial do capítulo à atenção,
senvolvida aqui (1-4). Enquanto a atitude com sua promessa usual, é mais intenso do
dos pais pode oscilar entre o autoritaris- que de costume (1,2). O autor está seguin-
mo exagerado e a ausência total de orien- do sistematicamente um tema e avança
tação, Provérbios estimula o leitor a uma rapidamente à sua verdadeira preocupação
terceira via, que oferece ensino firme, mas com a adúltera à qual o homem precisa re-
está sempre sob o controle de Deus (em- sistir e com a esposa na qual ele deve se
bora nisso haja o perigo de se manipular alegrar (3-20) (v. também 2.16-19). Isso é
as pessoas!). resumido nos v. 19,20, que colocam lado a
A atraente sra. Sabedoria (8,9) provê lado fórmulas alternativas de fascínio; as-
uma contrapartida positiva à sedutora sra. sim como os v. 15-18 conduzem ao v. 19,
Loucura personificada na "mulher estran- os v. 3-14 fornecem o chão para o v. 20.
geira" de, e.g., 2.16-19. A mulher astuta O trecho conclui com o lembrete do
que pode usar sua feminilidade para atingir princípio geral da ética do ensino da sa-
os seus alvos pode agir também como con- bedoria, de que Deus julga (21), mas esse
selheira sábia para o seu marido e protegê- julgamento vem por meio de eventos que
lo da loucura. Nenhum preço é alto demais têm o seu desdobramento "natural" (22).
para se pagar pela mulher certa, metafórica A advertência tem um ferrão na cauda.
e literalmente falando (7). Perdido, cambaleia (23) é a expressão que
traduz o verbo que nos v. 19 e 20 é tradu-
4.10-19 O chamado a evitar zido por embriaga-te e andarias cego: o
o caminho dos maus homem que está envolvido pelo amor de
Novamente o chamado para prestar aten- outra mulher e não pelo da sua esposa está
ção conduz às promessas associadas à vida envolto pela mortalha da loucura (REB).
e à estabilidade (10-13). Isso introduz uma Assim, porum lado, o amor de outra mu-
advertência a que se evitem os caminhos lher pode ser uma proposta muito atraente
das pessoas que comem, bebem, dormem e (3), mas um romance proibido certamen-
respiram maldade e violência (14-17), com te termina com sofrimento terrível (4,5: a
893 PROVÉRBIOS 6

implicação pode ser que o amor dela por um estranho que então desapareceu.
não dure, mas, mesmo que dure, haverá De qualquer forma é tolo simplesmente
sofrimento). Você precisa saber que ela esperar que a situação se resolva por si
talvez negue esse fato (6). Por isso, é ne- só. A pessoa precisa tomar providências
cessário manter-se muito distante em vez urgentes para sair desse buraco, mesmo
de correr o risco de se envolver (7,8: v. que isso seja humilhante, tomando a ini-
Mt 5.28). Se não, as consequências serão ciativa de se entregar à misericórdia do
perdas financeiras, remorso, solidão e companheiro. (Cf 11.15; 17.18; 22.26,27
vergonha (9-14). acerca de como não cair nessa armadi-
Há uma alternativa: aprenda (como lha, e 20.16; 27.13 acerca de como tomar
um livro recente expressa esse aspecto) a iniciativa se você é o companheiro).
"a fazer amor com a mesma pessoa para o Embora tenhamos de ser misericordiosos
resto da sua vida". Faça dela o prazer dos para com um membro da família ou até
seus olhos, do seu corpo e de todo o seu para com uma comunidade local em ne-
ser (15-19). cessidades, isso não é desculpa para ser-
O conselho de Provérbios é espe- mos negligentes ou até arriscarmos a pró-
cialmente aplicável à cultura em que o pria sobrevivência financeira ~ e assim,
adultério é comum entre cristãos, que se no fim das contas, colocarmos em jogo a
convencem (como o mestre aqui vislum- nossa própria liberdade pessoal.
bra) de que no seu caso é a melhor coisa Nos v. 6-11, a pessoa preguiçosa (v.
a se fazer. O único problema que o con- comentário de 24.30-34) é encorajada de
selho de Provérbios parece levantar é que forma desdenhosa ~ e talvez sem muita
ele é expresso somente do ponto de vista esperança ~ a aprender a sabedoria da for-
do homem. Por um lado, a mulher que é miga (cf em 30.24-28 mais uma lição do
descrita aqui não é a única culpada: tal- mundo animal).
vez ela esteja infeliz no seu casamento e A pessoa que anda semeando con-
é compreensível que esteja desesperada tendas é o tópico dos v. 12-15 e 16-19. A
para fugir dele. Isso é razão maior ainda descrição nos v. 12-14 chega ao clímax
para que se tome cuidado com os desejos com esta expressão. Num dito numérico
dela. Por outro lado, os homens também como os v. 16-19, todos os sete itens po-
podem estar desesperadamente infelizes dem ser igualmente importantes, e todos
no seu casamento e propensos a fugir dele, certamente devem ser levados a sério, mas
e as mulheres precisam prestar atenção no depois dos v. 12-15 o verdadeiro ponto dos
equivalente masculino das pressões femi- v. 16-19 precisa estar no último item (cf
ninas descritas aqui. 30.18,19,29-31). As duas observações são
que a pessoa vai pagar por isso (15) e que
6. 1-19 Dois chamados à ação a Deus repugna especialmente esse com-
(em contraste com a demora), portamento (16). Contraste o conselho em
e duas observações acerca da 4.23-27 com o uso dos olhos, da língua, da
pessoa que causa problemas mente e dos pés aqui.
Nos v. 1-5, a pessoa parece ter dado fian-
ça a algum companheiro no lugar de um 6.20-35 A advertência a evitar
estranho que se esquivou da responsabili- o adultério por causa do seu
dade. A palavra estranho é traduzida tam- elevado custo
bém por "estranhos" em 5.10,17 e "estran- Voltamos à forma conhecida de sermão,
geiros" em 20.16 (cf também 27.13) em com o seu chamado inicial à atenção (20,21)
contextos semelhantes a este, assim pode e as promessas associadas (22,23). Essas
ser que a pessoa tenha ficado como fiador passam despercebidamente à admoestação
PROVÉRBIOS 7 894

para que se evite o adultério, ficando-se a mulher alheia (5; v. também comen-
alerta a palavras sedutoras e olhares cati- tário 2.16-19; 5; 6.20-35). A razão para
vantes (24,25; v. comentário de 2.16-19; 5). evitá-la é também menos ressaltada que
Segue um longo relato de razões para isso, usualmente (cf v. 22,23,26,27), embora o
que ocupa a maior parte dessa seção (26- que o texto de fato diz, ao advertir acerca
35). Focaliza no custo financeiro e na ver- das consequências decorrentes da recusa
gonha pública, sem falar da ira do marido em respeitar o mestre, faça um contraste
traído, sendo que tudo isso faz com que esse revelador com aquela breve promessa de
romance simplesmente não valha a pena. "vida" no v. 2 (v. comentário de 3.10).
Esse aspecto é destacado por meio O autor não está envergonhado em
de três comparações. Em primeiro lugar, aconselhar o filho com a repetição do ensi-
pode-se comparar esse caso extraconjugal no que agora é antiquado. Mas não se trata
com o contato com uma prostituta - o que de mera repetição: atinge o ser interior, a
de fato é um insulto a alguém que tem uma mente. O fato de que Deus precisa escrever
perspectiva romântica do caso (26). Pode coisas na mente (Jr 31.33) não nos exime
ser que a mulher seja chamada de prostitu- da responsabilidade de fazer isso - ali-
ta (embora não o seja literalmente) ou pode ás, isso toma possível que cumpramos
ser que esteja sendo comparada desfavo- com a nossa responsabilidade (cf também
ravelmente com uma prostituta (!), pois Ez 18.31). Essa atitude interior é expres-
ela custa muito mais; pode significar tudo sa de outra forma no v. 4: chamar alguém
isso, aliás. Em segundo lugar, ter um caso de irmã é pedir essa pessoa em casamento
é como brincar com fogo; a pessoa não es- (v., e.g., Ct 4.9-12), assim estamos sendo
capa sem se queimar (27-29). Os versícu- convidados a dar à sra. Sabedoria uma po-
los fazem um jogo de palavras aqui pelo sição que é incompatível com a atitude que
fato de que no hebraico fogo e mulher são o jovem carecente dejuízo tem para com a
palavras muito semelhantes. Em terceiro mulher da história.
lugar, ter um caso extraconjugal é como A história cnfoca o método de sedução
roubar (30-35): tomar algo que pertence a dela, descrito com palavras e imagens mui-
outra pessoa porque você está com fome. to vividas (6-21). A observação do mestre
No caso de furto comum, você paga com o por trás dos bastidores (6,7) ilustra como a
castigo; muito mais então no caso de rou- sabedoria procede, ao aprender suas lições
bar a esposa de alguém. Essa perspectiva da observação c da experiência, tanto das
do casamento como "propriedade" é toma- experiências das outras pessoas como das
da por certa aqui, porque era assim que as suas próprias. Há diversas formas de se ler
pessoas pensavam nessa questão, embora a a história. Talvez a mulher simplesmente
força da reação do marido talvez signifique seja alguém que se envolve em prostitui-
que o sentimento do adultério inclua mais ção quando tem oportunidade, pelo fato de
do que interferência com sua propriedade. seu marido estar fora de casa, embora os
v. 10-12 possam simplesmente significar
7.1-27 O chamado a resistir que ela está vestida de forma provocante e
a qualquer tentação de ter inclinada a uma aventura sexual. Talvez ela
um caso extraconjugal seja devota de outra religião em que há a
A seção final acerca do comportamento necessidade de um homem para fazer amor
sexual começa com o chamado comum à como parte das suas obrigações religiosas,
atenção (1-4), embora a recompensa geral como os v. 14-18 podem sugerir (acerca
por isso seja mencionada somente de pas- do v. 14 em particular, cf. Lv 7.15,16). Ou
sagem (2a). O sermão segue para seu tópi- talvez os dois já estejam apaixonados; ela
co específico, a possibilidade de se evitar esteve esperando por ele em particular, e
895 PROVÉRBIOS 8

ele veio ao encontro dela na esperança de que a riqueza é a recompensa daquele que
que seu marido estivesse fora. O mestre está preocupado com ajustiça e a equida-
não se preocupa em determinar qual dessas de (18-21). A sra. Sabedoria é a principal
hipóteses corrcsponde aos fatos da histó- conselheira do rei. Aqui mais do que em
ria. Esse não é o ponto. Não importa o tipo qualquer lugar vemos o que a sabedoria
de caso extraconjugal, ele é absurdo. O seu deveria ser, e às vezes era, para um rei
charme, que faz o jovem pensar que este como Salomão.
é o caminho do amor, na verdade é o ca- A terceira razão leva o argumento a um
minho da morte. Como já observamos an- plano diferente: a sra. Sabedoria estava en-
teriormente, o cenário da sedução também volvida com Deus já na criação do mun-
precisa ser visto da perspectiva da mulher do (22-31). Que argumento pode ser mais
para que ela resista ao charme fatal de um convincente para que se dê atenção a ela?
homem casado. A porta da sra. Sabedoria é aquela diante
da qual devemos esperar (32-36). No en-
8.1-36 A oferta que a sabedoria tanto, não é uma questão demasiadamente
faz da verdade e da vida solene (30,31).
Mais uma vez a própria sra. Sabedoria toma Assim Deus possuía a sabedoria desde
a sua posição em público (1-3). Ela chama o começo, antes de criar o mundo (22-26).
a atenção para si mesma, como o fez a mu- Deus usou a sabedoria ~ mente, inteligên-
lher estranha, mas faz uma proposta bem cia, senso comum ~ ao empreender a cria-
diferente. Suas palavras são mais como o ção (27-31). Quanto mais sabemos acerca
convite encorajador de Isaías 55 do que da criação, mais impressionante considera-
a repreensão confrontativa padrão de um mos a sabedoria.
profeta pré-exílico (cf. 1.20-33); o sermão A imagem da sabedoria como uma pes-
assume ainda uma outra forma no esforço soa pode ter sido usada literalmente em reli-
de transmitir o ponto. giões que se destacavam pelos seus muitos
A própria sra. Sabedoria fala nos v.4-36, deuses, cujos termos Provérbios então usa
incentivando a atenção por três razões. num sentido "desrnitologizado". Sua lin-
A primeira está relacionada à verdade e guagem também encorajaria os israelitas
à justiça do que ela está dizendo (4-11). a não adorar uma deusa concorrente posta
Aqui, o elo entre a sabedoria e a morali- lado a lado com Javé (cf Jr 44.17): a deu-
dade, afirmado em 1.1-7, é elaborado mais sa real (mas metafórica) a ser reverenciada
sistematicamente: observe o acúmulo de é a sabedoria. Na época cristã, ao tomar
termos para certo c errado lado a lado com literalmente a personificação e pensar na
as palavras para bom senso e tolice. É isso sabedoria como uma pessoa real separada
que toma o ensino tão valioso (10,11). Ao de Deus, as pessoas obtiveram uma forma
mesmo tempo, tudo o que ela diz contrasta de entender o relacionamento de Cristo
com as falsas promessas de homens menti- com Deus. Isso está na base de João 1.1-4
rosos e mulheres infiéis. e Colossenses 1.15-17.
A segunda razão para a atenção é o va- A expressão disponho de (12) geral-
lor prático do que ela está dizendo (12-21). mente significa "adquirir" em Provérbios
É ela que toma possível o exercício do po- (e.g., 1.5; 4.5,7), e as palavras da sra.
der e a produção de riquezas. Aqui o outro Sabedoria a empregam com esse sentido.
elo de 1.1-7, entre a sabedoria e a religião, O fato de interpretar literalmente a per-
também é observado (13), embora o foco sonificação da sabedoria (v. acima) levou
esteja na conexão entre a sabedoria e o que muitas pessoas a preferir a tradução "me
é certo e errado. Pressupõe-se que o poder gerou" no v. 22 ("me criou", NVI; também
é exercido de forma correta (cf v. 13,15) e assim BJ), que é mais adequada a Cristo,
PROVÉRBIOS 9 896

porque ele foi gerado como pessoa, e não sete colunas está aberto a conjecturas).
adquirido como um objeto. Uma palavra Mas talvez haja uma ironia nos v. 4-6; e
significando "gerado" é usada no v. 24 (cf pode ser que os faltos de senso rejeitem o
ARC). Isso contrastou com a tradução grega seu convite.
do AT, que a tinha interpretado como signi- O interlúdio (7-12), portanto, começa
ficando "criou". Nas controvérsias acerca num tom mais conformado. A experiência
da pessoa de Cristo, isso favoreceu os aria- sugere que o mestre não chegará a lugar
nos, que puderam usá-Ia como evidência algum com muitas pessoas, e é aconselhá-
para o seu ponto de vista de que Cristo foi vel (sábio!) ser realista quanto a isso (7,8).
um ser criado. Mas o mestre tem experiências mais bem-
No v. 30, a palavra traduzida por arqui- sucedidas (9). Esse comentário lembra a in-
teto ("aluno", ARC) ocorre somente aqui no trodução dos sermões (cf 1.5, também 1.3
AT. "Criancinha" (RSV, mrg.) ou "predileto" acerca da introdução de questões morais).
(NEB) se encaixa melhor no contexto dos v. Também leva a uma reafirmação do texto-
30,31, em que a ênfase está no jogo alegre lema (10, cf 1.7), com a promessa usual
da criação e não no trabalho árduo que ela da sra. Sabedoria associada a ele (11), e o
significou. Se isso está correto, os v. 22-36 destaque familiar dado à responsabilidade
talvez conduzam a sra. Sabedoria desde o pessoal (12).
nascimento, ao longo das brincadeiras da O interlúdio dá tempo à sra. Loucura
infância, até a estatura adulta. para preparar a sua medíocre imitação
do banquete da sra. Sabedoria. Se a sra.
9. 1-18 Os convites idênticos da Sabedoria segue o modelo de um profe-
sra. Sabedoria e da sra. Loucura ta, a sra. Loucura é modelada segundo a
O último sermão traz uma estrutura be- mulher estranha. Os v. 13-18 devem ser
lamente equilibrada: um convite da sra. comparados a 7.10-27, e águas roubadas
Sabedoria, um convite da sra. Loucura também com 5.15,16; a atividade sexual
que imita as palavras daquela, e entre eles ilícita com frequência tem parecido mais
uma coletânea de observações; e tudo rea- excitante do que alternativas mais conven-
firma as implicações dos sermões como cionais. Mas a sra. Loucura também leva
um todo. as pessoas ao mesmo destino que a mulher
O convite final da sra. Sabedoria (1-6) obstinada (18). Essa seção conclui, assim,
lembra novamente Isaías 55. Aqui ela dramaticamente, ao colocar diante de nós a
abandona o papel do profeta e assume o escolha entre a vida e a morte.
de anfitrião assim que os seus servos, e não
ela mesma, fazem o chamado. O retrato 10.1-22.16 Provérbios
que Provérbios faz da sabedoria tem assu- de Salomão
mido muitas formas: "Ela é tão impressio- A segunda parte principal do livro con-
nante quanto uma deusa, tão brincalhona tém provérbios no sentido mais estrito,
e divertida quanto uma criança, tão con- que está mais próximo do significado da
fortável quanto os braços de uma mãe, tão palavra em português; são ditos de um
desafiadora quanto um profeta, tão satisfa- versículo cada acerca de uma grande di-
tória quanto uma mesa repleta de comida, versidade de tópicos. Os ditos foram cole-
tão misteriosa quanto um amante escondi- tados e ordenados segundo ao menos três
do entre os lírios" (Camp). princípios.
Não é uma oferta autossacrificial que Em primeiro lugar, podem ser dividi-
ela apresenta: a comida é rica, o vinho é dos em quatro tipos gerais:
bom (misturado com especiarias) e o ce- a) observações acerca de como a vida
nário é esplendido (1; o significado das é (e.g., 10.4,12,26);
897 PROVÉRBIOS 10

b) observações acerca da sabedoria 10.6b e II b são idênticos; 10.11 e 12 usam


(e.g.,10.1,5,8); ambos o verbo "cobrir" (no original he-
c) observações acerca da justiça (e.g., braico). Como mostra o último exemplo,
10.2,6,7); essas associações nem sempre ficam evi-
d) observações acerca do envolvi- dentes nas versões bíblicas em português;
mento de Deus na vida das pessoas os comentários chamarão a atenção para
(e.g., 10.3,22,27). alguns desses exemplos.
Os grupos se sobrepõem com frequên- O autor talvez tenha usado conexões
cia, como ilustram os exemplos alistados verbais desse tipo por diversas razões.
acima, mas a divisão geral é útil. A ordem Pode ser um auxílio à memorização.
em que alistamos os tipos também tem Talvez indique prazer e alegria na beleza
sido considerada um indicador da sua ida- estética de tais associações de palavras.
de - os primeiros provérbios eram obser- Pode transmitir uma sensação de que tais
vações acerca da vida (como geralmente o associações refletem uma unidade interna
são os provérbios em português) e o seu na realidade, derivada no final das contas
uso foi ampliado mais tarde para se referir do único Deus.
à sabedoria, então à moralidade e depois à Ao passo que as linhas gerais e os
teologia. Isso pode até estar correto, mas muitos detalhes da ordenação dos capitu-
todos os quatro tópicos são igualmente an- los 10-22 refletem esses três princípios
tigos para a reflexão humana. organizadores, às vezes ditos individuais
Essa divisão quádrupla dos ditos é um parecem não ter conexão alguma com o
princípio segundo o qual eles foram agru- seu contexto. Pode ser que os capítulos
pados em Provérbios 10-22. Por exem- combinem conjuntos anteriores de ditos
plo, embora os capítulos 10-11 citem que eram uma miscelânea de conteúdos,
exemplos dos quatro grupos, eles contêm e que alguns desses conjuntos estavam or-
uma concentração especialmente densa de denados segundo o princípio do conteúdo
ditos acerca da justiça e da maldade. de um ou outro elemento que então trouxe
Em segundo lugar, os provérbios po- consigo outros acerca de tópicos diferen-
dem ser categorizados de acordo com os tes. Ou pode ser que ainda não tenhamos
tópicos de que tratam: por exemplo, em descoberto "o fio da meada" do princípio
10.1-22, há muitos provérbios acerca da organizador.
prosperidade e do uso da fala humana. As divisões que seguem estão funda-
Essa divisão se cruza com a que acabamos mentadas no aspecto de quais tipos de di-
de descrever. Fornece mais um princípio tos ou quais tópicos são predominantes em
que influenciou a organização dos pro- diferentes pontos. Às vezes as divisões têm
vérbios. Assim, os ditos em 10.2-5 tratam liberdade para se sobrepor nos pontos em
todos do tópico da prosperidade, mas ilus- que é útil considerar versiculos em mais de
tram todos os quatro tipos de ditos men- uma conexão.
cionados acima.
Um terceiro princípio organizador 10.1-22 Ditos acerca da
que conecta os ditados é puramente ver- riqueza e das palavras
bal - alguns ditos são colocados lado a 10.1-4 Introdução. Aexpressão Provérbios
lado porque empregam a mesma palavra de Salomão já apareceu em 1.1 (v. comen-
ou expressão-chave, mesmo que tenham tário). Aqui supostamente significa que em
sentidos diferentes nos dois contextos. Os algum tempo esse era o início de uma cole-
capítulos 10--11 novamente nos fornecem tânea separada que continha 10.1-22.16,
muitos exemplos: e.g., 10.6 e 7 se referem mas que agora teve a inserção dos capítu-
ambos à (às) bênção (bênçãos) do justo; los I-li antes do seu início.
PROVÉRBIOS 10 898

o restante de 10.1 é então uma introdu- (carros de luxo seriam uma outra questão).
ção, como as que vêm no início das seções Jesus reafirma a promessa das Escrituras
dos sermões (e.g., 1.S). Tais introduções de que colocar o reino de Deus e a sua jus-
encorajam a atenção à sabedoria que en- tiça em primeiro lugar conduz à satisfação
contramos no material que segue - embo- de todas as necessidades materiais da pes-
ra este também o faça de forma indireta. Os soa (Mt 6.33). Além disso, o chamado ao
v. 2 e 3 introduzem um dos tópicos predo- trabalho duro é colocado no contexto da
minantes dos ditos, mas o faz ao colocá-lo sabedoria e da piedade, com a preocupação
no contexto da justiça e da maldade e de pelo desenvolvimento da vida em comuni-
como Deus se envolve nessas questões. O dade, algo que também está presente em
v. 4 oferece um comentário mais direto e todo o livro de Provérbios. Isso faz com
franco acerca disso, sem referência eviden- que sua ênfase seja um desestímulo aos
te à sabedoria, à moralidade ou à religião. workaholics egoístas.
Os v. 1-4 contêm todos os quatro tipos A segunda questão - se isso funcio-
principais de ditos. Eles dão início a uma na - será considerada nos comentários
subcoleção, que abarca os v. 1-22, e ilus- de 10.23-11.1.
tram tanto o aspecto de como os ditos se Notas. 2 Os tesouros da impiedade são
ocupam, por natureza, com a própria vida os "tesouros de origem desonesta" (NVI). A
e com a forma sábia de se viver a vida, maldade e a justiça são assim contrastadas
quanto o aspecto de que a compreensão da nos v. 2,3,6. 5 Sábio é a palavra traduzida
vida e a busca da sabedoria nunca devem por "bom proceder" em 1.3 (v. comentário
estar separadas da moralidade e da religião de 1.1-7). 16a A vida está claramente asso-
(cf 1.1-7). ciado a para a vida no v. 17.
10.2-6,15-17,22 Riquezas. Os ditos ex- 10.6-14,18-21,31,32 Palavras. Uma
põem a convicção de que a prosperidade é ênfase característica nos ditos de Provérbios
resultado do trabalho duro (4), da sabedo- acerca das palavras é "quanto menos, me-
ria (5), da justiça (6,16) e do envolvimento lhor" (19). Ouvir é um sinal de sabedoria e
com Deus (22). A preguiça traz a pobreza um meio para obtê-Ia; tagarelar é o oposto
e a vergonha (4,5), mas esse também será (S, 1O). As palavras que os sábios e justos
o resultado da esperteza que ignora o certo de fato falam, no entanto, serão expressões
e o errado (2). Tanto a necessidade inte- valiosas e encorajadoras de amor, capazes
rior quanto o envolvimento de Deus fazem de desfazer o poder do mal e de encontrar
com que as coisas funcionem dessa forma aceitação com as pessoas (11,12,20,21,32).
(2,3,22). Ao mesmo tempo, há o reconhe- As palavras dos que têm língua solta ou
cimento dos fatos acerca da pobreza e da dos maus causam problemas a eles mes-
riqueza e de seus resultados, dos quais não mos e aos outros (6,11,13,14,21,31), espe-
se pode escapar (15). cialmente quando resultam de sentimentos
O ensino de Provérbios com frequên- maus e assim geram contendas e decep-
cia suscita duas questões opostas para as ções (12,IS). Até mesmo além da morte,
pessoas. A primeira é que o livro parece as palavras faladas sobre esses dois grupos
ensinar um "evangelho da prosperidade" continuam em contraste (7).
deste mundo ou uma desequilibrada "ética Notas. 6 A referência à boca sugere que
protestante do trabalho". O que Provérbios o provérbio adverte especialmente contra a
está na verdade prometendo é uma boa co- maldade na fala (e.g., engano). 7 A forma
lheita que garanta que a pessoa justa não da expressão há bênçãos não sugere que
tenha com que se preocupar - um supri- o justo "receberá a bênção" (como no v.
mento abundante das provisões da vida, 6; cf 11.26), mas que ele "se tomará um
não um suprimento para ostentar o seu luxo exemplo de bênçãos que será usado pelas
899 PROVÉRBIOS 10

pessoas nas suas orações por bênção" (cf da. Está intimamente associada ao termo
REB; e Gn 12.2). 8 O insensato de lábios retos (e.g., 11.3,6,11), uma palavra que
não é a mesma palavra, mas a mesma pes- está de fato associada à "retidão" (cf.'
soa, que o "escarnecedor" (v. comentário 11.5). Ambos esses termos estão também
de 1.1-7). 9 No seu tema, esse versículo intimamente ligados a íntegros; a palavra
pertence a 10.23-11.8, mas em sua forma integridade significa literalmente "com-
poética corresponde de forma distinta aos pletitude". Também ocorre em 11.3,5, em-
v. 8 e 10. 11 A boca do justo é manancial bora neste último versículo a NVI traduza
de vida supostamente significa que o justo por "irrepreensiveis"; v. também 10.9 - e
traz vida a si mesmo. 12 A maldade cobre a observe o contraste com a perversidade.
violência (11), o amor cobre pecados - o A justiça se expressa na honestidade,
mesmo verbo é usado com significados equidade, compaixão (até por animais)
muito diferentes. 13 Os que têm discer- e verdade (10.2; 12.5,10; 13.5). Resulta
nimento falam com sabedoria e fazem o em fala que é sábia, valiosa, encorajado-
bem; os tolos não. ra e doadora de vida (10.11,20,21,31).
Traz bênçãos à nação (11.11; 14.34).
10.23-11.31 Justiça e maldade, e Diferentes ditos prometem que os pró-
mais acerca de palavras e riquezas prios justos receberão como recompensa
10.23-27 Introdução. Os v. 23-27 são se- liberdade, bênçãos, satisfação, realiza-
melhantes aos v. 1-4: eles começam com ção, prosperidade, alegria, segurança, di-
mais um convite implícito à busca da sa- reção, plenitude de vida e graça aos olhos
bedoria e não da loucura, e acrescentam de Deus e de outras pessoas.
exemplos de mais outros três tipos de di- A impiedade, em contraste, por nature-
tos que aparecem na coletânea como um za já representa o que está fora da verdade,
todo. Assim eles nos convidam mais uma é desconjuntado, torto e errado. Pode ser a
vez a valorizar a sabedoria (23), mas des- "perversidade" (10.9; 11.20). Pode envolver
tacam o seu vínculo com a justiça (24,25), contendas ou transgressões (10.12 - NVI:
o tema que está presente em todo o trecho "dissensão"; 10.19 - NVI: "pecado"; 12.13
de 10.23-11.11. O v. 26 acrescenta o - NVJ: "falar pecaminoso"). Pode sugerir a
exemplo de um terceiro tipo de ditos, um falta em satisfazer os padrões esperados de
comentário franco e direto acerca da vida. nós (13.6: "pecador"). Pode ser retratada
O v. 27 coloca todos esses interesses no como desviar-se do caminho certo (10.17).
contexto do envolvimento de Deus com as Pode ser uma questão de astúcia em inven-
questões humanas. O início da seção assim tar o mal (10.23; 12.2). Pode sugerir o que
faz mais uma conexão com a vida, a sabe- causa problemas - a outras pessoas e a si
doria, a moralidade e a piedade. mesmo (10.29: "iniquidade"; NVI: "mal").
10.28-11.11 Justiça e maldade. Jus- Pode denotar uma perversa inversão para
to, justos, justiça e termos afins ocorrem deixar as coisas de ponta cabeça (10.31,32;
13 vezes na seção; e perversidade, per- também a palavra diferente traduzida por
versos e termos afins ocorrem 12 vezes, "falsidade" em 11.3). Pode incluir traição
uma concentração sem paralelos em toda ou infidelidade (11.3,6). Implica impieda-
a Bíblia. Cada uma dessas expressões de ou profanidade, o abandono intencional
ocorre 21 vezes em outros lugares de 10- do caminho da religião (11.9).
13, que leva adiante o tema desta seção, Concretamente, se expressa em deso-
sua natureza e as recompensas da justiça e nestidade, falsidade, sede de sangue, cruel-
da impiedade. dade e voracidade (10.2; 12.5,6,11,12).
A natureza da justiça é que ela é reta, Resulta em vergonha e destruição para a
correta, apropriada, ordenada e equilibra- comunidade, e, portanto, em alegria diante
PROVÉRBIOS 11 900

da morte dos maus (11.11,12; 13.5). Assim Em quarto lugar, o foco de Provérbios
como sua natureza é o oposto da natureza nas generalizações tem um elemento teoló-
da justiça, da mesma forma é o seu fruto: gico. Teologicamente, no final das contas
abandono, ruína, problemas, queda, ci- precisa ser verdade que o universo opera
ladas, ira, fome, destruição, esperanças de maneira justa. De outro modo, fica difí-
frustradas, propagação da violência, dete- cil acreditar que o juiz de toda a terra tenha
rioração da memória, o cumprimento dos ordenado as coisas de forma justa.
temores, a abreviação da vida, a perda da Em quinto lugar, outras partes das
casa e da terra e a ilusão dos seus ganhos. Escrituras resolvem o problema da apa-
Leitores modernos com frequência fi- rente injustiça da vida nesta era ao levar
cam perplexos diante das afirmações segu- em conta que a justiça é operada na era por
ras de Provérbios com respeito à utilidade vir. As declarações difíceis de Provérbios
da justiça. Pode não parecer verdade que precisam ser colocadas nesse contexto,
a justiça livra da morte (1104). Diversos mas não podem, por isso, ser roubadas da
comentários podem ser feitos acerca des- sua intensidade. Elas constituem uma parte
sa dificuldade. Em primeiro lugar, como importante do testemunho das Escrituras a
qualquer outro aspecto de Provérbios, este favor da convicção de que Deus é o Senhor
evidentemente se fundamentou na expe- desta era. A fé bíblica não é meramente
riência (cf SI 37.25); não era mero dogma uma questão de ir para o céu depois que
teológico. Leitores modernos que ficam você morre.
perplexos diante disso talvez precisem le- Notas. 10.26 Acerca do preguiçoso,
var mais em consideração a evidência dis- ver comentário de 24.30-34; também cf o
ponível na sua própria vida de que a justiça v. 4. O v. 26a sugere que ele é uma irritação
tem a sua recompensa. aos outros. Embora no seu conteúdo o ver-
Em segundo lugar, se é verdade que as sículo não se encaixe nesse contexto, em
afirmações de Provérbios funcionam me- forma ele corresponde ao v. 25 ("Como",
nos no nosso mundo, isso talvez reflita a no início dos dois versículos, também no
maldade do nosso mundo (e.g., na sua dis- heb.). 11.1 É retomada aqui uma expres-
tribuição injusta dos recursos). Provérbios são de 10.32: "Os lábios do justo sabem
talvez esteja refletindo uma sociedade em o que agrada [...] o peso justo é o seu pra-
que se dava mais atenção para que os ne- zer". Acerca do que é abominação para o
gócios e a vida em comunidade operassem SENHOR em oposição a o que agrada, ver
segundo padrões morais. Assim, isso nos comentário de 15.8. O v. 2 nesse contexto
desafia a combater a injustiça, não o fazen- amplia a ideia em 10.31,32 de que a fala
do meramente como último recurso, quan- sábia e justa também está associada à mo-
do a nossa impiedade finalmente nos tiver déstia; e a fala ímpia e tola ao orgulho e à
posto em perigo. desgraça. 4 O dia da ira é o dia da calami-
Em terceiro lugar, Provérbios às vezes dade, em que acontece uma coisa terrível
faz generalizações; mas é preciso lem- e quando parece que a ira de alguém caiu.
brar que há exceções. O livro sabe que a A expressão não sugere que tal evento de
vida é mais complicada do que é suge- fato venha da ira de Deus (cf Jó 21.30). A
rido por alguns ditos (cf 13.23; 30.1-4). morte é igualmente repentina e prematura.
Outros livros sapienciais, notavelmente 7 Aqui também faz melhor sentido tomar o
Jó e Eclesiastes, enfocam mais o fato de dito como uma referência à morte repenti-
que essas generalizações com frequência na que frustra as expectativas das pessoas.
não funcionam. Tanto as afirmações gerais 11.9-14 Palavras na comunidade. O
quanto as exceções precisam ser levadas poder das palavras para dar vida ou para
em consideração. destruir é reafirmado (v. comentário de
901 PROVÉRBIOS 12

10.9-14), mas aqui o destaque especial é a Deus e às que são o seu prazer, ver co-
o das palavras para a comunidade: observe mentário de 15.8. O v. 22 está associado à
alusões a próximo, cidade e povo. Nesse discussão da riqueza em virtude do fato de
contexto, há uma razão particular para que ela começa com coisas de valor. 25 A
o barulho (10) e uma nova razão para se alma generosa é lit. "a alma de bênção";
afirmar a capacidade de se manter a boca cf v. 26b. 29 No contexto, o que pertur-
fechada (13). ba sugere a tentativa de se obter riqueza
Notas. 9 Libertados fornece um víncu- por meio de avareza ou negligência. O v.
lo com o v. 8 ("libertado"). O v. 9b sugere 30 como um todo faz melhor sentido se o
que o versículo se refere ao perjúrio e não v. 30b for invertido como "o sábio ganha
à fofoca. 11 A bênção aparentemente é a almas". A ideia, então, é que os justos têm
que pronunciam e não a que recebem (com uma influência provedora de vida sobre os
base no paralelo no v. Ilb). outros, e os sábios ganham os outros para
11.15-31 Riquezas. Provérbios está a sabedoria.
consciente de que um dito que parece sim-
ples ou pragmático precisa ser acompanha- 12.1-28 Mais acerca de
do de outro que o complementa e complica palavras e do trabalho
a questão. A prosperidade de uma pessoa 12.1-4 Introdução. Há novamente uma
pode parecer o resultado de sua insensibi- semelhança entre os v. 1-4 e 10.23-27 no
lidade, de não ter um coração de mantei- aspecto de se combinarem ditos de todos
ga (que gera respeito, mas não engorda o os quatro tipos como uma introdução ao
bolso) (16). Mas também provém da ge- capítulo. Mais uma vez eles implicitamen-
nerosidade que alguém já possui (24-26), te desafiam o leitor à sabedoria e acon-
e se alguém espera que a riqueza ganha selham contra a loucura (1), afirmam o
seja real, ela depende de justiça (18,19,2 envolvimento do próprio Deus nas ques-
1,23,27,29,30,31); Deus deixa isso muito tões do homem (2), declaram que ajustiça
claro (20). O uso da riqueza requer bom e a perversidade obtêm sua recompensa
senso para não ser desperdiçado em cau- (3) e fazem uma observação sobre como
sas arriscadas, ainda que generosas, como, é a vida (4). O jogo de palavras (no origi-
por exemplo, ser fiador ou dar lastro para o nai) vincula do seu marido (4) com não
empréstimo dc um estranho (15). Também (3) e vincula procede vergonhosamente
inclui bondade, que nesse contexto signifi- com pensamentos no v. 5.
ca generosidade e que beneficia a própria 12.5-8,13-23,25,26 Palavras verda-
pessoa (17), e ainda inclui o sentido de não deiras e falsas. O tema predominante no
confiar na riqueza (28). Há situações em restante do cp. 12 é novamente o uso das
que uma verdade é relevante; outras situa- palavras, em particular o efeito contrastan-
çõcs requerem outra verdade. te entre palavras boas e más. Palavras jus-
Notas. 16 O "mas" na NVI é interpre- tas, retas, sábias, prudentes, verdadeiras,
tação; não há contraste aqui entre honra pacificadoras e boas resultam em justiça,
e riqueza, que devem andar juntas (3.16; liberdade, elogio, lucro, cura, alegria, dis-
8.18), e não há palavra separada para "ho- crição, encorajamento, e Deus tem prazer
mens" no original (como na NVI) antes de nelas. Palavras más, distorcidas, tolas,
poderosos (ou "valentes, ARe). O ponto, mentirosas, maldosas, impensadas, des-
portanto, pode ser que "há dois caminhos controladas e conspiratórias resultam em
para a riqueza e a honra, um via proce- engano, machucam as pessoas, e acabam
dimento gracioso (que é característico pondo em descrédito e trazendo problemas
das mulheres), outro via agressividade", para quem as profere e são rejeitadas por
20 Com respeito às coisas abomináveis Deus. É sábio ouvir o conselho e ignorar
PROVÉRBIOS 12 902

os insultos, e não vice-versa (15,16); mas Os ditos apontam para formas em que
também ser cuidadoso no relacionamento os desejos podem ser satisfeitos ou frus-
com os outros (26). trados. Uma chave está em se a pessoa
Notas. 5 A palavra conselhos é a que usa suas palavras de forma prudente e se é
foi traduzida por "prudência" em 1.5 capaz de manter a sua boca fechada (2,3),
(v. comentário). O v. 6 sugere que os per- outra, em se ela usa sua energia (4). Os
versos estão inconscientemente esperando v. 5,6,9,21,22,25 lembram os ouvintes em
na emboscada pelo seu próprio sangue termos gerais que as considerações morais
(cf 1.18). estão na base desses fatores, e o v. 11 toma
12.9-12,24,26-28 O trabalho e sua esse ponto mais concreto. O v. 23 reconhe-
recompensa. Ter comida suficiente e des- ce que as leis morais que em teoria regem
frutar de uma posição na sociedade pro- essas coisas nem sempre funcionam; elas
vêm de despender alguns esforços e de também contêm um desafio implícito a que
viver retamente, não de fazer de conta (9), se veja que a injustiça não pode afrontar
negligenciar os próprios animais (10), se- essas leis.
guir propósitos inúteis (11), imitar os es- Notas. 2 A violência é a que fazem a
quemas ímpios de outras pessoas (12) ou si mesmos, ironicamente, no contexto (cf
simplesmente não fazer coisa alguma (24) 1.18). 3 A palavra alma é relativa à vida
~ nem mesmo cozinhar a caça (27)! Cf da pessoa, mas também a apetite, e esse
também o v. 14b. significado é o que parece marcar o ca-
pítulo todo: cf. v. 2 (desejo), 4 (deseja),
13.1-25 Desejo, riqueza 19 (desejo, alma), 25 (apetite). 9 Uma
e sabedoria pessoa é comparada a uma casa, onde a
13.1 Introdução. O v. I é uma abertura presença de luz sugere a presença da vida
semelhante à das seções anteriores, impli- (cf Jó 18.5,6). lO Soberba é termo usado
citamente encorajando os ouvintes a pres- no sentido de fala arrogante que não aceita
tar atenção na sabedoria deste capítulo (cf correção (cf 21.23,24).
10.1). Não prossegue, no entanto, no estilo 13.13-20 Sabedoria. Em meio a esses
das introduções anteriores. Ao avançarmos ditos que têm a busca pela riqueza como
pelos capítulos, a justiça e a impiedade de- seu tema mais comum, os v. 13-20 nos
crescem em importância, e neste capítulo lembram que a sabedoria também está
o envolvimento de Deus praticamente de- na base dessa busca (cf. v. 10 e 24 e es-
saparece, embora se tome crescentemente pecificamente v. 18). A vulnerabilidade
proeminente nos capítulos seguintes. O ao conselho e à correção e a submissão
foco aqui, portanto, está na própria sabe- à sabedoria aprendida na companhia dos
doria (cf v. 13-20). sábios são a chave para o comportamento
13.2-12,18-25 Desejo e riqueza. Por prudente, para o ganho, a realização, o fa-
trás de questões acerca da riqueza estão vor, a honra e a vida ~ e vice-versa.
alguns dos mistérios da personalidade Notas. 17 Um lembrete para que se
humana que significam que as aparên- escolha cuidadosamente o mensageiro: um
cias não são sempre confiáveis (7) e que mensageiro fiel traz restauração a situa-
a realização ou a frustração do desejo ções difíceis; um mensageiro mau as toma
pode ter efeitos profundos sobre a pessoa piores. 19 Mal aqui mais provavelmente
(12,19). Há também mistérios associados significa "problema" "infortúnio" (mesma
à busca pela riqueza em si. Na verdade, palavra nos v. 20,21). A ideia é que eles
é uma realização ambígua; tanto resolve não vão se afastar do caminho que leva aos
problemas quanto causa problemas que os problemas e se voltar para o caminho que
pobres não têm (8). leva à realização.
903 PROVÉRBIOS 14

14.1-15. 1 A sabedoria, o ser e à maquinação de tramas (6.14,18). Em


interior e a vida em sociedade 6.32, é traduzido por "fora de si'; em 7.7,
14.1-4 Introdução. Mais uma vez o ca- por "juízo" ; 904,16, por "falto de senso";
pítulo inicia com um desafio implícito a em 7.10, associado à astúcia ("astuta de
que se busque a sabedoria e se evite a lou- coração"); em 8.5, associado à compreen-
cura (I). Nesse contexto, então, as duas são: "entendei de coração" (ARe). Quando
figuras são personificações da sabedoria e as versões usam o termo "coração", ge-
da loucura, como em 9.1,13 (cf também ralmente é sábio substituí-lo mentalmente
24.3,4), e o ponto do v. I b é que, se não por "mente". Assim, em 4.21,23, somos
somos cuidadosos, permitimos que a lou- encorajados a encher a nossa mente com o
cura derrube a casa que a sabedoria cons- ensino dos sábios e cuidar da nossa mente
truiu (cf v. 3). Repetindo, a compreensão como a principal fonte de toda a nossa per-
da sabedoria como algo que exclui Deus sonalidade (cf." Rm 12.2; Ef4.23; Hb 8.10;
e a moralidade é proibida por um dito que lPe 1.13, também Mt 15.18,19).
chama a atenção ao certo e errado e às ati- Notas. 10 Há um sentido em que to-
tudes de Deus (2). Os quatro tipos regu- dos estão sozinhos em seus sentimentos e
lares de ditos nesses capítulos são então experiências mais profundos. 11 Cf. v. 1.
concluídos por uma observação acerca da 13 Visto que o riso de uma pessoa com
vida no v. 4: limpo é mais literal do que frequência encerra sofrimento oculto (ou
"vazio" (NVI), sugerindo que o agricultor porque há sofrimento no coração de to-
precisa se conformar com um poueo de dos - assim, a maioria das traduções), a
bagunça se quer ter uma colheita. sua alegria nunca tem a última palavra. 15
14.1-9,15-18 A sabedoria e a loucura. Dá crédito a toda palavra, ou seja, crê em
Colocando isso de forma negativa, a lou- qualquer conselho ou promessa a respeito
cura é destrutiva (1), autodestruidora (3), do futuro (cf v. 15b).
autoperpetuadora (6,18,24), autoexpressi- 14.19-15.1 A vida em sociedade. As
va (7), auto enganadora (8), obstinada (9), palavras rei, príncipe, nações, povo, vizi-
crédula (15), cruel (16), impopular (17), nho e amigos não ocorreram muitas vezes
tem pavio curto (29) e no final das contas até aqui em Provérbios; sua ocorrência em
autoilusória (33). conjunto nos v. 19-21,28 e 34,35 fornece
Notas. 9 Os loucos não se importam um contexto comunitário para os interes-
em acertar relacionamentos quando estão ses habituais dos ditos acerea de tópicos
errados; os retos se preocupam com a boa eomo a prosperidade (23,24). A maneira de
reputação mútua. usar tal prosperidade certamente é para o
14.10-15 O ser interior. Coração é a bem do próximo (21), e não demonstrando
palavra recorrente aqui: cf v. 10,13,14 (em a atitude comum para com os pobres (20).
que é lit. "o infiel de coração"), 30 e 33. Os v. 19 e 32 tomam isso uma questão tan-
Esses exemplos mostram como "coração" to de moralidade quanto de interesse pró-
na linguagem bíblica não é meramente o prio. Tndo mais longe, o v. 31 acrescenta de
lugar das emoções, mas o centro interior da forma semelhante a motivação religiosa, e
pessoa como um todo, assim, ele se conec- os v. 26,27 vão além disso ainda nessa di-
ta com a mente e a vontade (com o pensa- reção e prometem que não precisamos te-
mento e a tomada de decisões) tanto quanto mer risco algum associado a isso.
com os sentimentos (que na Bíblia são com O v. 34 faz da justiça a chave da gran-
frequência associados com o estômago ou deza de uma nação, uma receita que tal-
os rins, e.g., 23.16a). O coração é associado vez ainda não tenha sido testada, embora
à compreensão e sabedoria (2.2,10; 3.5), à o seu inverso (34b) tenha sido provado
obediência (3.1), à memória (404; 6.21; 7.3) muitas vezes. Para tal sociedade, o amor
PROVÉRBIOS 15 904

e a fidelidade seriam o fundamento ideal, de 14.10-15). Esses dois aspectos ocorrem


e o v. 22 fornece uma receita para planeja- juntos em 15.11.
dores nessa mesma linha (maquinam tra- Essa declaração no v. II está ligada às
duz a mesma palavra que planejam - não referências nessa seção ao que Deus detes-
tem conotação ameaçadora aqui). Ajustiça ta ou àquilo em que tem prazer (8,9; cf. v.
legal também será de importância crucial 26; 16.5; também 11.1,20; 12.22; 17.15;
nesse caso. 20.10,23). Tais são as questões de honesti-
Os líderes são apenas tão importantes dade ou motivação humana, ou do vínculo
quanto o seu povo; o v. 28 ressalta as pres- entre o que se disse e o que se quis dizer.
sões sobre a liderança na sociedade. Isso Elas permanecem escondidas aos olhos
explica um pouco do elevado risco asso- humanos - mas não aos olhos de Deus,
ciado a trabalhar por eles e da necessidade diz Provérbios. Deus as vê e as detesta e
de saber como tratar desse relacionamento isso talvez ponha algum freio aos atos
de maneira sábia (14.35-15.1 - furor escondidos das pessoas.
faz conexão com a preocupação do ver- Os ditos ressaltam ainda outros aspec-
sículo anterior, embora seja uma palavra tos dos vínculos e diferenças entre o ser
hebraica diferente). A monarquia será um interior e a vida exterior. Há um vínculo
tema importante no cp. 16, mas não antes entre a loucura no pensamento e na fala
de termos refletido muito acerca de Deus (7). Também precisa haver um vínculo
no ínterim. entre os aspectos interiores e exteriores
da nossa espiritualidade (8) e até entre
15.2-16.19 Deus em sua como nos sentimos e a nossa aparência
relação com a sabedoria, (13). Mas a riqueza do ser interior pode
o rei e o ser interior compensar as pressões exteriores (15,16),
15.2-7 Introdução. Mais uma vez o enquanto uma boca aberta e uma mente
contraste entre a sabedoria e a loucura, aberta podem ser incompatíveis (14).
com seu desafio implícito a que coloque Notas. 11 O além e o abismo (sheol e
aquela como alvo (cf v. 5,7), abre a in- abadom) - ver comentário de 1.12. Nem
trodução de uma nova coletânea de ditos, mesmo o sheol está além do poder e alcan-
acrescentando uma afirmação acerca do ce de Deus (cf SI 139.8). 16,17 Esses dois
envolvimento de Deus nas questões da versículos se complementam, como é o
vida humana, além de outras observações caso de 15.15,16. A paz que procede de
acerca de como a vida é e a respeito dos reverenciarmos a Deus tira a dor maior da
justos e dos ímpios (3,4,6). O trecho de pobreza; é o que faz também a realidade
15.2-16.19 como um todo contém mui- do amor humano. Os v. 18,19 sinalizam a
tos ditos que inserem Deus na equação da continuação dessa conversa; o v. 18 amplia
vida humana. A seção está no centro de o v. 17, e o v. 19 depois adverte acerca de
10.1-22.16 e, assim, no centro do livro alguém ficar por demais acomodado!
como um todo, e com isso coloca Deus 15.20-33 Sabedoria e reverência por
no cerne do ensino do livro a respeito Deus. Os v. 20-24 começam como uma
da sabedoria. introdução de uma nova seção ou de um
15.7-19 O ser interior e o olho de discurso acerca da sabedoria (v. 20 de fato
Deus. Quatro referências a esse envol- repete a introdução do cp. 10), tendo a
vimento de Deus nos v. 8,9,11 e 16 são alegria como motivo recorrente: a alegria
entretecidas com seis alusões ao coração de perceber a sabedoria (20), a alegria de
humano nos v. 7,11,13,14 e 15; cf tam- exercitá-Ia (23) e a falsa alegria de evitá-Ia
bém v. 21 ("bom senso", NVI), 28,30 e 32 (21). Mas logo dá lugar à ênfase no envol-
(entendimento); 16.1,5 e 9 (v. comentário vimento de Deus com o mundo, que é a
905 PROVÉRBIOS 16

característica especial de 15.2-16.15 aplicado a outras formas de liderança


como um todo. Como o v. II combinou os política) é dupla. Em primeiro lugar, ele
dois temas recorrentes dos v. 7-19, assim o tem um poder terrivelmente decisivo, em
v. 33 combina os dois temas dos v. 20-33 palavras e ações (10,14,15). Em segundo
ao final desta seção. lugar, ele está comprometido com a justi-
Os seres humanos estão preocupados ça e a equidade (10,12,13). Em Israel e em
com a sabedoria e a honra (33): assim outros lugares, este aspecto era considerado
como os v. 20-24 expressam a preocupa- tão essencial à monarquia quanto aquele,
ção com a sabedoria, os v. 25-29 refletem embora pudesse ser visto também não me-
a preocupação com a honra, o primeiro ramente como uma questão de moralidade,
trecho de forma mais positiva do que o se- mas de interesse próprio (12). No contexto
gundo. Elas afirmam a atitude e a ação de dos ditos a respeito da monarquia, os co-
Deus em relação aos autos suficientes e aos mentários sobre a justiça, sabedoria, reti-
que não têm nada, as quais estão na base da dão e humildade nos v. 8 e 16-19 também
forma como os abastados com frequência se aplicam ao rei em particular.
recebem a sua retribuição. Isso é especialmente verdadeiro quan-
Os v. 30-32 gradualmente preparam o do os comentários acerca do rei são colo-
caminho para o v. 33 para declarar que a cados no contexto da atividade de Deus
chave tanto da sabedoria quanto da honra no mundo. O entrelaçamento dos dois
é reverência a Deus ou humildade. Nesse nos v. 10,11 ajuda a prevenir o seu dis-
contexto, a humildade é uma atitude dian- tanciamento, mas assim também o fazem
te de Deus e não meramente uma virtude as declarações acerca de Deus, pois elas
humana. A sequência dos versículos 30-33 também focalizam na soberania e justiça
sugere que as boas notícias nos ajudam a de Deus. É o envolvimento de Deus que
amadurecer como pessoas, mas assim tam- determina em que extensão os planos são
bém acontece com a crítica, e nada nos faz explicados de forma eficiente (1), como as
crescer em maturidade mais do que a críti- ações são avaliadas (2), até que ponto os
ca vinda de Deus. planos são bem-sucedidos (3) e como até
As palavras boas-novas (30), ouvidos fatores evidentemente negativos podem
que atendem (31) e atende à repreensão se encaixar num propósito (4). Também
(32) estão ligadas, de modo que os v. 31,32 determina até que ponto a arrogância do
sugerem que colocar afirmações eviden- poder tem controle sobre as coisas (5), os
temente negativas lado a lado com boas problemas são evitados (6), a diplomacia
novas pode ser igualmente avivador e edi- é eficaz (7), as ideias funcionam na práti-
ficante. O ponto é destacado pelo fato de ca (9) e os padrões honestos aplicados nos
que entendimento (32) é também a mesma negócios (11).
palavra traduzida por coração (30). Por Humanamente falando, os padrões nos
outro lado, disciplina (32) aparece de novo negócios eram a responsabilidade do rei.
no v. 33 (lit.: "o temor de Javé é uma dis- O v. II assim deixa especialmente claro
ciplina na sabedoria", de modo que o v. 33 como nessa seção como um todo a po-
explicitamente associa Deus ao ensino dos sição do rei está subordinada à de Deus.
v. 30-33). Isso transmitiu uma mensagem importante
16.1-19 Soberania divina e humana. a Israel no período do Primeiro Templo,
Como em nenhum outro lugar em Pro- quando eles tinham reis que aqui são de-
vérbios, Deus aparece nove vezes nos v. safiados a reinar de forma tal que reflita o
1-11; o rei, cinco vezes nos v. 10-15. governo de Deus - como também o são
A definição da posição do rei numa os governos do mundo moderno. Isso tam-
monarquia tradicional (o que pode ser bém transmitiu uma mensagem importante
PROVÉRBIOS 16 906

ao Israel do período do Segundo Templo, leitor querer prestar atenção no resto dos
quando os israelitas eram governados por ensinamentos do livro. Os v. 24-30 têm
reis estrangeiros, que no final das contas vínculos textuais com os v. 20-23 e entre
também são considerados subordinados ao si, de modo que os v. 20-30 formam uma
governo de Deus - um encorajamento por cadeia. Muitos desses vínculos aparecem
sua vez a povos hoje controlados por for- nas traduções; além disso, boca é a mesma
ças externas. palavra que a traduzida por fome (23,26);
Notas. 6 Mal aqui parece denotar o lábios ocorre três vezes (23,27,30); en-
desastre (a mesma palavra que está no v. quanto acha o bem (v. 20) é contrastado
4); voltar-se da maldade para os caminhos no v. 29. Juntos, então, eles prometem que
retos e para Deus toma possível à pessoa a sabedoria (associada à reverência por
evitar a calamidade resultante do seu pe- Deus) traz benefício, reputação, influência,
cado. 10 "A sua boca não transgride" (ACF) satisfação, cura, orientação e vida plena, e
é preferível a não transgrida (como temos eles advertem acerca da perversidade tola
na ARA; a mesma ideia está presente tam- que conduz à divisão, punição, desastre e
bém na ARe: " ... não prevaricará" e na NVI: morte. O v. 26 talvez sirva para aumentar
cc••• não deve trair..."; a afirmação é paralela a motivação: para os alunos, também, o
às dos v. 12,13. 12-15 O que é abominável seu apetite deve ser o seu estímulo. Nos v.
para o rei e o que é o seu contentamento e 21b e 23b, a ideia é que a fala agradável
benevolência (a mesma palavra heb.) são aumenta o saber; ver comentário de 1.7.
comparados à lista das coisas que Deus 16.31-18.1 A dinâmica dos relacio-
abomína e nas quais Deus tem prazer (cf. namentos. As observações concretas nes-
15.8 em que as mesmas duas palavras sa seção se concentram principalmente nos
ocorrem, e o comentário aí). 17 Acerca de aspectos dos relacionamentos dentro da
mal no sentido de "problemas", cf v. 6. família e da comunidade. Duas refletem a
posição especial e o orgulho mútuo das três
16.20-22.16 A vida, a justiça, gerações de uma família, os avós que são
a sabedoria e Deus os membros veteranos da comunidade, os
Nessa segunda metade da coletânea dos adultos ou pais, e as crianças (16.31; 17.6).
"provérbios de Salomão" que aparecem A confirmação da posição e da existência
em 10.1-22.16, tipos particulares de ditos dos três grupos e a visão dos seus inter-re-
e tópicos ocorrem de maneira predominan- lacionamentos têm algo a dizer aos países
te novamente em diferentes seções, e mui- desenvolvidos modernos. O v. 17 reflete
tos ditos têm vínculos textuais com outros acerca da importância que irmãos e irmãs
no contexto. Como um todo, no entanto, e amigos têm, uns para os outros, na vida
eles não estão divididos tão claramente em em geral, mas especialmente em tempos
seções como na primeira metade, e a razão de crise, mesmo que o v. 18 sinalize que
por trás da sua ordenação com frequência a preocupação com os próximos também
é menos clara do que na primeira metade. precisa ser exercida com prudência. Mas
Há três agrupamentos de ditos, uma coletâ- andarilhos obstinados e solitários impõem
nea de ditos acerca da justiça e da maldade perdas a todos (18.1).
perto do fim e pequenos conjuntos de ditos Uma série de ditos no cp. 17 está re-
que apresentam Deus. Os provérbios que lacionada à harmonia e ao conflito na fa-
fazem observações acerca da vida propria- mília e em outros lugares. O v. I afirma
mente dita são predominantes. que a harmonia familiar importa mais do
16.20-30 As bênçãos da sabedoria. que qualquer coisa. O v. 2 adverte, por-
Os v. 20-23 explicam algumas das bênçãos tanto, contra a dissensão, particularmente
da sabedoria de tal maneira que fazem o a relacionada ao dinheiro (embora o v. 8
907 PROVÉRBIOS 18

reconheça a influência do dinheiro sobre as ação é alguma expressão de orgulho. 18.1


pessoas), e os v. 21,22 e 25 observam a dor Novamente busca é o verbo que já ocorreu
a que tal insensatez pode levar pai e mãe. em 17.9 e 19, enquanto solitário está rela-
O v. 4 ressalta que as coisas que as cionado a separa em 17.9.
pessoas dizem com frequência são as que 17.24-18.8 A natureza e o preço da
causam os problemas (cf 16.28; 17.27,28). loucura. A loucura tem lugar proeminente
O v. 9 nos insta a estimular o amor e a ami- nesse conjunto de ditos. Ela é promíscua
zade a encobrir as transgressões em vez de nos seus ínteresses (17.24), tem díficulda-
falar sobre elas, embora isso não queira di- de em manter sua boca fechada (17.27 ,28;
zer que nunca devemos falar coisas duras cf 18.8), insiste em tomar decisões por
às pessoas (10). De maneira semelhante, os conta própria (18.1) e prefere falar a ouvir
v. 14 e 19 nos estimulam a evitar começar (18.2). Assim, causa problemas à família
brigas ou gostar delas (cf 16.32; 17.11-13), (17.25), perdas a outras pessoas afetadas
embora os v. 15 e 20 advirtam que isso pelas decisões (18.1) e sofrimento ao in-
conduz a concessões e engano. divíduo (18.6,7). Por outro lado, há con-
A "dissensão" é um tema recorrente textos em que a pessoa precisa se mani-
em Provérbios. Nas igrejas e comunidades festar e provocar o conflito se necessário
sempre há os agitadores, pessoas que gos- (17.26; 18.5).
tam de causar problemas. A causa pode ser Notas. 18.4 Mesmo que 18.4a e 20.5a
a raiva (15.18; 29.22), a zombaria (22.10), possam sugerir que os seres humanos têm
a bebida (23.29-35), a fofoca (26.20), a os seus próprios recursos interiores de sa-
ganância (28.25) ou simplesmente a per- bedoria, não é isso que Provérbios afirma
versidade (16.28). O resultado pode ser o no restante do lívro. Daí que o mas na NVI
conflito contínuo (26.21), o rompimento pressupõe um contraste entre a atitude
definitivo de relacionamentos (18.19) ou evasiva do ser humano e a clareza cinti-
problemas insuperáveis (17.14). A me- lante da sabedoria.
lhor solução é afastar-se da briga (17.14) 18.9-21 Questões de força e poder.
ou deixar que a questão seja decidida pelo Essa seção fala da força de uma fortaleza,
equivalente ao "cara ou coroa" de uma e de duas coisas que têm força semelhan-
moeda (18.18). Em outras palavras, a con- te. Uma é a riqueza (11; o v. 16 observa
tinuação teimosa de uma disputa causa outro aspecto do poder da riqueza em re-
maiores danos do que tomar uma decisão lação aos grandes). Mas o v. lOjá afirmou
errada menor. que Deus protege os justos, qualificando o
Ditos como 17.16,24-28 falam de sa- comentário acerca da (suposta) força inex-
bedoria, mas não somente sabedoria deste pugnável da riqueza. Também apoia uma
mundo. Os versículos em 16.33 e 17.3-5 compreensão diferente do orgulho, da hon-
simplesmente incluem Deus na equação. ra e da humildade (12). Os v. 13 e 15 estão
Esses versículos afirmam que Deus é o ligados a essa avaliação do orgulho, e o v.
árbitro de como acaba o destino de uma 9 sinaliza para outra forma de força, exer-
família, realiza o teste final da loucura de cida até pelos inativos.
uma família, e é o objeto final do insulto O espírito até consegue se sustentar,
das pessoas. mas não para sempre (14). A força prote-
Notas. 7 Há aqui mais um comentário tora de Deus provê a resposta. A segunda
acerca das coisas que as pessoas dizem, coisa que é tão forte quanto uma fortaleza
retomando o v. 4. 19 Assim como a pala- é o sentimento de ofensa pessoal que às
vra ama, a palavra facilita vincula o v. 19 vezes pode surgir entre irmãos (19). O v.
com o v. 9, em que é traduzida por separa. 18 fornece uma dica muito prática para re-
No v. 19b, a imagem não é clara, mas a solver tais disputas entre fortes oponentes.
PROVÉRBIOS 18 908

Em 16.33, temos a única outra referência a divertir quem olha de fora, mas os senti-
lançar sortes em Provérbios, de modo que mentos são funestos (19.13) e a verdadeira
o v. 18 pode tomar por certo que Deus é glória está em ser capaz de evitar as bri-
soberano quando sortes são lançadas. gas (20.3). A sabedoria, então, está em ser
18.22-19.10 Pobreza. A pobreza é capaz de "alongar a sua ira" - tradução
claramente uma coisa ruim; significa, por literal de "longânimo" (19.11); e a dádiva
exemplo, que você está sempre imploran- de Deus está em a pessoa não se envolver
do por misericórdia (18.23). Pode até le- nesse tipo de briga em casa (19.14).
var a sua família a desprezar você (19.7). O homem de grande ira ("homem de
Certamente reduz o número de pessoas que gênio difícil", NVI) pode ser incorrigível e
buscam a sua companhia (19.4,6,7). Nesse estar a caminho do desastre (19.19). Mas
contexto, 19.5 talvez signifique que isso isso não é razão para negligenciar que se
indispõe a corte a tratar você com justiça, digam as coisas duras em família, o que
mas promete que os que perjuram serão seria deixar alguém a caminho da morte
castigados (cf 19.9). (19.18). A preguiça pode em si mesma in-
O que mais se pode dizer para encora- duzir a um sono mortal e à fome (19.15);
jar os pobres? Eles ouvem aqui vários fatos ignorar a sabedoria pode levar à própria
que precisam ser lembrados. Primeiro, que morte (19.16).
o pobre que pede misericórdia (18.23) já 19.20-20.5 Sabedoria. Em 19.20, o
é o objeto da graça de Deus por meio da autor comenta os benefícios e riscos da
dádiva da esposa (18.22). Segundo, que sabedoria e da loucura (cf v. 25,27 com v.
um amigo íntimo pode ser melhor do que 26,29). Esses são ilustrados por diversos
muitos conhecidos e mais leal do que o retratos da sabedoria. Ela é incompatível
membro mais próximo da família (18.24). com o gosto pela bebida (20.1); é preci-
Terceiro, é melhor ser pobre e honesto do so dizer mais acerca da inclinação para o
que um tolo militante e enganoso que cul- álcool que caracteriza tantas comuni-
pa a Deus pelos problemas que ele causou dades acadêmicas? Isso é ilustrado pela
a si mesmo (19.1-3), e para quem a pobre- inatividade do preguiçoso, o objeto de
za de fato é adequada (19.10). Quarto, que alguns dos retratos breves preferidos de
ao buscar a sabedoria você está sendo o Provérbios (v. comentário de 24.30-34).
melhor amigo de si próprio (19.8). Quando A sabedoria capacita a pessoa a sondar
o pobre recebe graça humana, Deus sabe as profundezas ocultas e possivelmente
e vai recompensar isso (19.17). Assim as enganosas do coração humano (20.5; v.
pessoas são encorajadas a demonstrar tal comentário de 18.4).
graça (a palavra "graça" está por trás de se Somos lembrados, então, que o envol-
compadece ou "trata bem" [Nvr] em 19.17). vimento de Deus nas questões humanas
O pobre geralmente é preferível ao menti- significa que a mera sabedoria humana
roso, porque "o que se deseja ver num ho- nem sempre tem a última palavra, e que a
mem é amor perene" (19.22; NVI). reverência por Deus é tão importante para
Notas. 24 Amigos é usado também em a vida bem-sucedida quanto o empenho
19.4,6,7. Mas amigo em 18.24b é uma pa- intelectual (19.21,23). Os relacionamen-
lavra que denota mais intensidade e deriva tos humanos também contam (19.22),
da palavra "amar" (cf 19.8). Irmão é tam- como ajustiça (19.28, em que a referência
bém usado no plural irmãos em 19.7. ao escárnio está associada aos comentá-
19.11-19; 20.2,3. Conflito. A seção re- rios sobre o insensato como escarnecedor
toma tópicos de 16.31-18.1. A combina- nos v. 25,29).
ção de poder e ira é manifestamente temível Nota. 17,22 Ver comentário de 18.22-
(19.12; cf 20.2). Brigas em casa podem 19.10.20.2,3 Ver comentário de 19.11-19.
909 PROVÉRBIOS 21

20.5-19 Aparências e a verdade. A jus- Mas a soberania de Deus em relação ao


tiça pode ser definida como uma vida de in- rei (cf 21.1) sugere uma qualificação de
tegridade pessoal (7), mas é realmente difi- ambos esses ditos: somente Deus pode
cil encontrar um exemplo (6,9). A franqueza enxergar o interior do ser humano (20.27).
não é comum (5), como o ilustra o mundo Outro comentário do primeiro dito é que o
dos negócios (14), e a atitude evasiva do ser rei precisa focalizar os aspectos positivos,
humano é dificil de ser penetrada (15). aquilo que edifica o trono, não só em ações
O v. 5 aponta para a sabedoria como a punitivas concernentes a coisas que não
chave para penetrar a atitude evasiva. De deram certo (20.28).
forma mais prática e realista, o v. 8 aponta Jovens e velhos têm suas próprias gló-
para a autoridade exercida de olhos abertos. rias, força fisica e a autoridade da experiên-
O v. II sugere que ações são necessárias cia (20.29). Aqueles não devem desprezar
para se revelar a pista para o conhecimento nem enganar estes (20.20,21; amaldiçoa e
da pessoa real. O v. 12 considera os olhos abençoada são a primeira e a última pala-
abertos como dádiva de Deus, enquanto o vras dos dois versículos no original).
v. 10 acrescenta a advertência da aversão 21.2-29 Justiça e impiedade. Perto do
que Deus tem pelo engano nos negócios. fim de Provérbios 10-22 aparece mais
Os v. 16-19 estão interligados, visto um agrupamento de ditos acerca da jus-
que os v. 16,17 e 19 usam o mesmo verbo tiça e da impiedade, paralelo ao que está
de três maneiras diferentes, para transmitir perto do início desses capítulos. Depois
a ideia de "ficar por fiador de outrem", "ser dos dois comentários a partir da perspec-
suave" e "não se meter com" (daí o "evi- tiva de Deus (2,3), a impiedade está em
te" na NVI); o v. 19 também funciona como foco. A impiedade faz do orgulho a sua
uma qualificação do v. 18. Esses versículos luz orientadora (4), se expressa em vio-
conectam o tema dessa seção por meio do lência e desonestidade (7,8), é perversa e
v. 17 com o comentário acerca do engano. anseia pela ruína dos outros (10; mal é a
Nota. 13 Abre os olhos é o vínculo do palavra traduzida por "desgraça" [NVI] no
versículo com o contexto (cf v. 8,12). v. 12), é orgulhosa e arrogante (24), reli-
20.20-21.4 A soberania de Deus e a giosa mas hipócrita (27), e é atrevida, mas
autoridade humana. A seção inclui mais não se detém para refletir (29).
referências a Deus. Precisamos confiar em O desejar (ansiar) é um tema que aparece
Deus quando tivermos sido ofendidos ou em outros versículos, inclusive o desejo de
tratados injustamente (20.22). Nessa si- ser rico, que pode ser buscado de forma certa
tuação, podemos estar seguros da preocu- ou errada, sábia ou tola (5,6, 13,17,20,25,26),
pação de Deus pela honestidade e justiça mas cujo poder também precisamos encarar
(20.23; 21.3), do fato de que Deus conduz de forma realista (14).
os poderosos (20.24; a palavra traduzida A impiedade encontra a sua conse-
por homem aqui não é a convencional), da quência natural. Os violentos acabam sendo
compreensão de Deus pela forma como arrastados violentamente (7). O Justo age
os seres humanos "funcionam" (20.27) e contra pessoas cujo caráter é oposto ao dele
da conclusividade da avaliação que Deus (12). Os impiedosos não encontrarão mise-
faz (21.2). Em 20.25, o autor retoma um ricórdia (13). Os que se desviam acabam
exemplo de quando os seres humanos tal- se perdendo (16). Quando isso acontece, é
vez não se entendam nem a si mesmos. como se eles tomassem o lugar dos justos
O rei tem a responsabilidade de "joei- que estavam em perigo diante deles (18:
rar os perversos" (20.26), e o seu tipo de uma visão mais nítida do ponto destacado
ação punitiva tem função de purificar o ser em 11.8). Pessoas que colocam a sua con-
interior de outras pessoas também (20.30). fiança num lugar superficial são expostas
PROVÉRBIOS 21 910

pelos sábios (22). A testemunha que amea- neas de ditos dos sábios (22.17-24.22
ça a vida de alguém com suas falsidades e 24.23,24), uma coletânea semelhan-
perde a própria vida (28). te copiada pelos "homens de Ezequias"
Há diversos comentários marcante- (25-29) e os ditos de Agur (30) e do rei
mente positivos acerca da justiça. Deus é Lemuel (31).
chamado singularmente de O Justo (12), o
que lança nova luz sobre a palavra justi- 22.17-24.22 Trinta ditos sábios
ça em Provérbios 10-22 como um todo: O ensino nesses dois capítulos retoma a
tudo que diz acerca desse tópico deriva da ênfase dos capítulos 1-9 no seu estímulo
natureza de Deus. Há a alegria da justiça ao leitor para que adote ou evite certos
(15), um exemplo da forma pela qual o tipos de comportamento. Os ditos acerca
juízo de Deus - como essa expressão é da vida que são comuns em 10.1-22.16
comumente traduzida - é uma boa nova já não aparecem aqui, e a maioria das
no AT. Marca o justo reino de Deus (e con- unidades de pensamento se estende por
traste o v. 17, em que prazeres é a palavra alguns versículos e não apenas um. A for-
que anteriormente foi traduzida por ale- ma ampliada do ensino abre espaço para
gria). Justiça, bondade, vida e honra são comentários acerca de por que o leitor
combinadas no v. 21. deve obedecer. A NVI é muito útil ao mar-
Nota. 9,19 Vercomentáriode 16.31-18.1 car cada um dos "trinta ditados" (22.20;
21.30-22.16 Sabedoria, riqueza e nota mrg.) com parágrafo novo, assim é
Deus. Os últimos ditos em Provérbios possível ver como se dividem.
10.1-22.16 combinam ditos típicos de sa- Os trinta ditos estão proximamente
bedoria com um número surpreendente de relacionados a uma obra egípcia de trinta
ditos que inserem Deus na equação. Eles capítulos, o Ensino de Amenemope. Essa
afirmam, assim, a importância da sabedoria obra parece ser datada em algum tempo
edo esforço humanos (22.3 ,6, IO, 15;ditos ti- antes de Salomão, e geralmente se pensa
picamente sapienciais em 22.5,8, 11,13,14), que Provérbios dependeu de Amenemope
mas também declaram que esses ditos não e não o contrário. A abertura ao aprendí-
significam nada à parte da vontade de Deus zado da sabedoria de outros povos reflete
(21.30,31) e até exigem o envolvimento de a convicção teológica de que o Deus de
Deus se se espera que seus princípios sejam Israel é o Deus de todas as nações e de
cumpridos (22.12). Eles são realistas acerca toda a vida. Por isso não é de admirar que
da riqueza e da pobreza (22.7), e qualificam outros povos percebam verdades acerca
isso não somente pelas considerações hu- da vida das quais o povo de Deus também
manas (22.1,9 - abençoado aqui é as pes- pode se beneficiar. Os trinta ditos nos en-
soas falarem bem dele), mas também por corajam a usar o nosso próprio senso co-
observar o que os ricos e os pobres têm em mum no nosso serviço a Deus. O serviço
comum em Deus (22.2) e ao afirmar que as a Deus nem sempre requer "uma palavra
atitudes para com Deus são de importância do Senhor" para que enxerguemos o que
crucial nas questões de riqueza e pobreza precisa ser feito.
(22.4). A verdadeira reverência por Deus é O Ensino de Amenemope destinava-se
o fundamento da sabedoria. a oferecer conselho a pessoas envolvidas
em serviço público. Os trinta ditos têm
22.17-31.31 Mais muito a dizer a tais pessoas também.
cinco coletâneas Em primeiro lugar, tais pessoas de-
A última terça parte de Provérbios contém vem dar atenção às percepções da sabe-
mais cinco coletâneas distintas de dizeres doria (22.17-21, em que a frase: afim de
sapiencais de diversos tipos: duas coletâ- que possas responder claramente aos que
911 PROVÉRBIOS 24

te enviarem reflete o seu trabalho como dos temas prediletos de sabedoria; 23.29-
intermediários; 23.12,13-16,22-25; 24.3- 35, em que "vinho misturado" é o vinho
7,13,14). Elas precisam evitar desperdi- misturado com substâncias como o mel,
çar o seu tempo com tolos que não dão o equivalente aos nossos coquetéis). Isso
atenção a elas (23.9). Precisam observar pode fazê-las ceder à tentação do sexo
bons exemplos (22.29) e evitar influências fora do casamento (23.26-28). Enfrentar
erradas - por exemplo, pessoas que são pressões vai revelar do que na verdade
exemplo de gênio estourado e não de con- essas pessoas são feitas (24.10).
trole, um tópico importante na sabedoria
egípcia (22.24,25), ou pessoas inclinadas 24.23-34 Mais ditos sábios
à rebeldia (24.21,22). Esses ditos formam uma coletânea mista
Em segundo lugar, como pessoas co- acrescentada aos trinta ditos. Eles incluem
muns que aprendem com as percepções dois comentários breves acerca de apre-
dos sábios, elas devem lembrar do en- ciarmos alguém que fala de forma franca
volvimento de Deus na sua vida e traba- ou sincera (v. 26) e acerca da necessidade
lhar e esperar resultados disso (22.19,23; de alguém ter comida suficiente antes de
23.11,17; 24.12,18,21). ceder ao desejo de construir "a sua casa"
Em terceiro lugar, elas devem lembrar (27). Este último aspecto talvez tenha sig-
das exigências morais do seu trabalho e de nificado literal, mas a mesma expressão
quão facilmente se pode abusar do poder pode referir-se a começar uma família; a
(22.22,23,28; 23.10,11; 24.8,9,15,16). Mas natureza de um provérbio como esses é ser
elas também precisam ser precavidas do adequado a uma série de aplicações.
perigo contrário, de ser descuidadamente Dois ditos mais longos cobrem o com-
indulgentes com pessoas em dificuldades portamento na corte por parte dos juizes
financeiras (22.26,27). Elas nunca podem (não uma profissão, mas uma tarefa assu-
dizer: "Acaso, sou eu tutor do meu ir- mida por membros mais velhos da comuni-
mão?" (24.11,12), e sua responsabilidade dade) (23-25) e por parte das testemunhas
se estende aos seus pensamentos, e não so- (28,29; esses dois versículos parecem se
mente às suas palavras e ações (24.17). complementar, e assim cada um nos ajuda
Em quarto lugar, elas precisam lembrar a entender o significado do outro).
do perigo da autoindulgêneia. Isso pode Um dos ditos mais longos é um dos
fazer com que esqueçam as reais questões retratos mais belos em Provérbios de uma
com que se preocupam bem como de sua de suas personagens favoritas (ou melhor,
posição, que esqueçam da transitoriedade menos favoritas), o preguiçoso (30-34).
da riqueza, e tomem a amizade de alguém Ele não é confiável (10.26; 18.9), está in-
pelo seu valor superficial, quando deveriam satisfeito (13.4; 21.25), cercado de proble-
estar perguntando por que a pessoa está mas (15.19), faminto (19.15; 20.4), cheio
sendo tão generosa (23.1-9 - a ideia do de desculpas (22.13; 26.13), nunca termi-
v. 9 é que o seu belo diseurso vai ficar enta- na nada (12.27; 19.24; 26.15), está asso-
lado na garganta quando a verdade surgir). lado pela pobreza (12.24) e é incorrigível
Isso pode fazer com que tenham inveja ou (26.14,16). Em 6.6-11; 19.24 e 26.13-16,
se irritem diante do sucesso transitório temos ainda outros retratos verbais me-
dos malfeitores (23.17,18; 24.1,2,19,20). moráveis. Contraste com isso a pessoa
Isso pode fazer com que esqueçam o que trabalha duro (12.24,27; 13.4; 16.26;
quanto pode ser desperdiçado em autoin- 21.5). O trabalho duro é uma virtude da sa-
dulgência e quanto isso pode prejudicá- bedoria, necessário para ganhar sabedoria
las (23.19-21, que aponta para a relação e para o sucesso na vida; assim, a preguiça
entre a autoindulgência e a preguiça, um é o oposto.
PROVÉRBIOS 25 912

25.1-29.27 Ditos transcritos As questões de Deus envolvem mistério;


na corte de Ezequias o cp. 30 vai ampliar esse ponto. Esse re-
Oscp. 25-29 são paralelos de 10.1-22.16 conhecimento é importante, visto que com
no aspecto de que grande parte deles con- frequência Provérbios parece sugerir que
tém ditos de uma linha, e algumas seções a teologia é toda muito direta e simples.
desse trecho ordenam os ditos com base Provérbios não defende essa postura. Em
em elos verbais, particularmente no cp. 25 contraste, as questões práticas com que o
- e.g., a expressão presença do rei nos v. rei está preocupado são as que ele domi-
5 e 6; próximo nos v. 8 e 9 e referências ao na completamente (2). Por outro lado, a
ouvir e ouvido nos v. 10 e 12. No cp. 25, mente do rei é como a do próprio Deus
os ditos vêm em pares (v. paragrafação na (3). É necessário que assim seja, se deve
NVI), enquanto no cp. 26 estão reunidos em estar à altura das exigências que lhe são
agrupamentos maiores. Às vezes, o víncu- impostas, e faz bem em ocultar em seu co-
lo está na forma do dito - e.g., 25.13 e 14 ração alguns dos seus sentimentos e polí-
são ambos comparações do clima. ticas, se ele quiser manter a autoridade e
Há grande prazer nas metáforas e sími- o respeito.
les vívidas da primeira parte da coletânea. Assim lisonjeado, ele é confrontado
Elas são mais pronunciadas do que a tra- por um desafio no uso da sua autoridade
dução sugere, porque as palavras "como" (4,5), enquanto seus cortesãos recebem
e "é", ou "tal" e "assim" geralmente não alguns conselhos concernentes à sua pró-
são expressas (elas ocorrem em 25.13; pria conduta em relação a ele (6,7 - pa-
26.1,2,8,18; 27.8, mas não em outros ver- rece que Lc 14.7-11 deve alguma coisa a
sículos). Assim, 25.14 simplesmente diz esse texto).
(no original): "Nuvens e vento sem chuva; 25.8-28 Conflito. Como partes dos cp.
um homem que se gaba de dádivas que ele 10-22, o tema principal dos ditos nessa
não dá". O resultado é requerer dos ouvin- seção é a natureza do conflito e a forma
tes do dito que desenvolvam o seu signifi- de evitá-lo ou resolvê-lo. Em primeiro lu-
cado; este não lhes é dado de mão beijada. gar, não se apresse em se meter em conflito
25.1 Introdução. À luz do pano de público, certo de que o direito está do seu
fundo egípcio dos trinta ditos, é interes- lado; nem se você tomar isso uma questão
sante que se diga que a coletânea seguin- particular revele todas as suas fontes; de
te tenha sido editada no tempo do rei qualquer forma você pode ser humilhado
Ezequias, o período em que Judá teve o (8-10). Não perca o autocontrole, ou você
contato mais próximo com o Egito. Isaías pode acabar perdendo tudo (28). Não se
30-31 adverte Judá acerca da sabedoria deixe desviar da prática de falar a verda-
humana de pressupor que o Egito é o seu de em amor e de resistir ao mal (cf v. 26
melhor aliado, e deixar de levar Deus em - mas o versículo vem aqui por causa da
consideração. Ao preservar o material em imagem que contrasta com a do v. 25), mas
Provérbios 25-29, os mestres do período seja cuidadoso em como o faz (lI, 12; o v.
de Ezequias encorajaram o povo a ter uma 11 tem a mesma forma que outras com-
visão positiva da sabedoria humana, mas, parações; a NVI inverte a sequência: "A
assim como os compiladores dos capítulos palavra proferida no tempo certo é como
anteriores, eles também exortam o povo a frutas de ouro incrustadas numa escultura
que não deixe Deus fora de consideração. de prata").
25.2-7 Monarquia. À luz da origem Voltamo-nos agora para as relações
desta coletânea na corte, é de esperar que com nossos superiores. Se estão esgotadas
os seus primeiros ditos - três dísticos - e são potencialmente hostis, a confiabilida-
se ocupem com questões relativas ao rei. de vai renová-las e assim se reverterão em
913 PROVÉRBIOS 26

vantagem para nós mesmos (13; compara- tido a sua origem em algum lugar em que
ção com o v. 25 sugere que a referência é a chuva de fato vinha do norte; pode ser
à água gelada das fontes alimentadas pela mais uma indicação de influência egípcia
neve do monte Hermom até mesmo no ve- em Provérbios.
rão [tempo da ceifa], e não à real queda de 26.1-12 O insensato. Há pouca de-
neve no verão). Quando alguém precisa finição de insensatez aqui, mas vívidas
discordar dos seus superiores, o cuidado no ilustrações dela. Os insensatos em teoria
uso das palavras é de importância crucial. podem até apreciar a sabedoria, podem
As palavras certas podem quebrar a coluna talvez aprendê-Ia pela rotina e pelo hábito,
vertebral da resistência deles (15). mas não sabem usá-Ia (7). Eles são como
Mesmo quando não está sob pressão, a estudantes que acumularam conhecimento,
harmonia entre vizinhos precisa ser prote- mas não adquiriram a habilidade para apli-
gida. Por isso, não abuse da hospitalidade cá-lo: como alguém que tem uma arma pe-
do outro (16, I 7; a figura do v. 16a reapare- rigosa, mas não sabe manejá-Ia (9 - a não
ce no v. 27), não conte mentiras nem traia ser que o ponto desse versículo seja que
a confiança dele (18,19,23) e não aumente eles somente obtiveram o seu conhecimen-
(acidentalmente?) o sofrimento do seu pró- to por acidente). Tampouco conseguem se
ximo por sua falta de sensibilidade (20). beneficiar dos seus erros (11).
Poderíamos associar a isso ainda o lembre- Por definição, os insensatos não apren-
te de não prometer às pessoas mais do que derão com esses ditos. O que os sábios
podemos realizar (14). devem aprender com eles? Eles devem
Os vizinhos (próximo) podem ser divi- registrar que honrar insensatos é algo ridi-
didos entre amigos e inimigos, e o nosso culamente fora de tom (1,8 - uma pedra
"inimigo" (21,22, NVI; na ARA: o que te é colocada na atiradeira para ser lançada, e
aborrece) pode ser também nosso vizinho. não para ser mantida ali). Eles devem usar
Com a ordem para amarmos o nosso pró- o método de treinamento adequado aos to-
ximo (Lv 19.18) o autor supostamente tem los se querem atingir algum objetivo (6,10;
em mente tanto amigos quanto inimigos; o v. 10 sugere que algo será atingido, mas
assim, a ordem de Jesus para amarmos os não há jeito de saber o que será). Eles de-
inimigos somente toma isso mais claro. vem evitar se considerar superiores aos in-
O mesmo princípio está associado à preo- sensatos, o que poderia provar que não são
cupação de conduzir o próximo hostil ao (12, o aguilhão na cauda dessa seção).
arrependimento (na se refere a sinais de Os v.4,5 fornecem conselhos surpreen-
arrependimento, supostamente figurados). dentemente contrários com relação a
Ao oferecer conselhos para a restauração como se deve responder às perguntas
da harmonia na comunidade, no entanto, os dos insensatos. Depende se levamos as
mestres aqui apelam a instintos mais egoís- perguntas dos insensatos a sério, ou se
tas. O seu ponto é que amar o inimigo/pró- as desconsideramos e nos comportamos
ximo pode ser a melhor maneira de atingir como o insensato o faz em relação às
o nosso desejo de acabar com a hostilidade questões da vida. A vida é complexa, e a
da outra pessoa, quanto também pode ser mesma resposta fácil não se aplica a todas
uma política que Deus aprova. Paulo con- as situações. A pessoa sábia é aquela que
firma essa abordagem (Rm 12.20). consegue enxergar qual elemento de sa-
O conflito em casa pode ser o mais do- bedoria se aplica a cada circunstância.
loroso e insolúvel (24). Notas. 2 Esse versículo está aqui não
Nota. 23 Em Israel, a chuva não vem porque dê sequência ao tema, mas porque
do norte, mas do Mediterrâneo, do oeste sua forma o liga ao v. I: ambos são compa-
(cf Lc 12.54). Talvez o provérbio tenha rações da natureza e em ambos as palavras
PROVÉRBIOS 26 914

"como" e "assim" de fato estão no texto desgosto causado pela insensatez (3; cf v.
original, o que não é comum nas compara- 11,12,22), do poder da inveja, que exce-
ções desses capítulos. Visto que as palavras de até a força do furor impetuoso (4), e,
podem ter grande impacto, particularmen- mais tarde, acerca do poder de destruição
te orações e declarações de bênçãos e mal- da ganância (20).
dição, podemos temer que o cumprimento Os ditos se voltam à amizade e come-
de uma maldição seja inevitável; este dito çam de forma negativa, mas afirmam o
garante que isso não é o caso. valor positivo de uma repreensão sincera
26.13-16 Preguiça. Temos aqui quatro dada por um amigo, em contraste com o
caricaturas de pessoas preguiçosas com tipo de amor que se esquiva e não diz as
suas desculpas improváveis, sua rigidez coisas dificeis (5) ou de uma inimizade
(uma dobradiça [gonzo] tem o propósito de que se disfarça de amor aparente (6). No
girar, mas nunca sair do lugar, o homem é contexto do v. 9, que fala da doçura da
diferente!), sua preguiça e seu monumental amizade, o v. 7 fala de quão facilmente os
autoengano. (V comentário de 24.30-34). que não têm amigos podem se deixar en-
26.17-27.22 Amizade. O tópico de ganar por uma amizade simulada como a
26.17-22 é brigas (cf v. 17,20,21). Elas descrita no v. 6a. A amizade pode ser cria-
podem surgir de um defeito de caráter, de tivamente desconfortável (17), ou talvez
uma disposição para a briga (21), mas uma no v. 19, em que a ideia pode ser de que
causa particular é a estupidez que leva uma descobrimos a nós mesmos ao conhecer-
brincadeira ao exagero (18,19). Uma for- mos outra pessoa (v. nota mrg. BJ). OS v.
ma de freá-las é pôr um fim à maledicência 15,16 também pertencem ao contexto do
(20), embora seja mais fácil recomendar v. 9, pois o perfume do v. 9 é o óleo do v.
isso do que fazê-lo (22). É melhor não ten- 16. A ampliação no v. 16 do sentimento
tar resolver a briga de outros (17). familiar expresso no v. 15 assim ressalta
O tópico relacionado de 26.23-28 é a um ponto pungente: o amor é como o per-
falsidade nos relacionamentos pessoais fume, e quando se perde o amor o perfume
(cf v. 24,26,28). Isso é uma advertência não pode ser recapturado.
acerca da lacuna que pode haver entre De forma mais positiva, a doçura e a
palavras amigáveis e a intenção por trás alegria da amizade estão no conselho po-
delas. Os sábios sempre mantêm no fun- sitivo que podem trazer, resgatando-nos
do da sua mente a possibilidade de que há de nossos próprios artifícios (9), e na for-
mais no que alguém diz do que aquilo que ma como confiamos em nossos amigos
chega aos seus ouvidos, e eles aprendem nas épocas de crise em vez de termos de
a reconhecer a pessoa falsa (23-26a). Os caminhar quilômetros para obter o apoio
ditos prometem que o enganador vai pagar dos nossos familiares (10) - embora seja
por isso com desonra pública e sofrimento melhor nem ter se afastado (8). A amizade,
pessoal (26b-28). portanto, precisa ser protegida (14); exibi-Ia
O trecho de 27.1-22 contém ditos in- pode ser contraproducente!
dividuais que estão relacionados de forma A sociabilidade é um tema recorrente
geral aos bons relacionamentos. No início, em Provérbios. Pode ser muito benéfica
os v. 1,2 advertem acerca de duas formas para a saúde da comunidade, especialmen-
de vanglória (não te glories); nesse con- te quando indivíduos estão em necessidade
texto, a ênfase está na segunda com suas (14.21; 27.10) - embora também pos-
implicações para os relacionamentos (cf sa ser usada para fazer o mal (cf 16.29;
também nos v. 21 e 18 um comentário prá- 25.18; 29.5). Portanto, precisamos ser cau-
tico acerca de conquistar reputação). Os telosos quanto a ações que podem destruir
ditos prosseguem e advertem a respeito do o bom relacionamento com o próximo,
915 PROVÉRBIOS 28

como por exemplo, colocar em primeiro à justiça (3), ao mal no sentido moral (2),
lugar os nossos interesses em vez de fazer à integridade/inculpabilidade (2), à perver-
o bem e o que é devido (3.27,28; cf 14.20; sidade (2), à retidão (3) e a outras questões
21.10), deixar de fazer algo concreto no semelhantes.
caso de um real erro financeiro (6.1-5); Assim, esses capítulos repetem con-
trair a confiança do próximo (3.29); en- vicções acerca da moralidade e da sabe-
volver-se numa briga para obter ganhos de doria que apareceram anteriormente em
prazo curto (3.30,31); flertar com a mulher Provérbios. A justiça e a impiedade rece-
do próximo (6.29); destruir o próximo com bem a sua recompensa (28.1,10,18), e mes-
palavras (11.9); humilhá-lo em público mo quando não o fazem, aquela deve ser
(11.12); ficar por fiador de forma não sá- preferida a esta (6). A sabedoria é a chave
bia (17.18); mentir acerca dele no tribunal para a estabilidade do Estado (2), enquan-
(24.28); ser apressado demais em ir à justi- to, por outro lado, um governante opressor
ça (25.8); contar ao próximo a fofoca sobre falha na sua tarefa principal (3: a chuva
ele (25.9,10); ou - de forma mais irôni- tem o propósito de estimular a colheita,
ca - tomar a hospitalidade dele por certa mas pode fazer o contrário). O tirano é um
(25.17); fazer piadas sobre ele (26.18,19); perigo tão grande para o seu povo quanto
ou se mostrar animado demais com ele de um animal selvagem (5), e em sua falta de
manhã bem cedo (27.14). discernimento é um perigo até para si mes-
Nota. 27.13 Acerca do conteúdo, ver mo (16,17). O povo reconhece, assim, que
comentário de 6.1-5. Mas aqui o dito está é uma boa nova quando os justos vão bem
ligado ao v. 2 (em que as palavras outro e e é má notícia quando os maus prosperam
estrangeiro são as palavras traduzidas por (12, cf. v. 28; 29.2).
outrem e estranha no v. 13); adverte acerca Esses capítulos também se referem à
de sermos crédulos demais em relação às torá (lei). Em geral, a torá quer dizer ensi-
pessoas cujas palavras (2) nos encorajaram no ou instrução; o ensino ou instrnção dos
à confiança. sábios (e.g., 1.8; 13.14) ou de um profeta
27.23-27 Como preservar bens de (e.g., Is 8.16). Mas em Provérbios 28.4,7,9;
longa duração. Há posses que parecem 29.18, no contexto dos ditos morais e teo-
muito atraentes, mas talvez não durem lógicos que aí aparecem, os israelitas cer-
(24). Por isso é importante proteger e ga- tamente entenderiam torá como referência
rantir bens de duração mais longa, como ao ensino de Moisés.
rebanhos que podem dar a provisão de De forma geral, em Provérbios, o
roupas, capital e alimento (26,27), ao cui- entendimento ou o discernimento são as
dar das suas condições (23) e desenvolver qualidades e habilidades pessoais coti-
um programa correto de preparo da ração dianas do senso comum que os sábios
(25) - com o planejamento correto do tentam ensinar (e.g., 10.13; 19.25). Essa
tempo o agricultor pode fazer duas colhei- seria a forma natural de interpretar refe-
tas por ano. rências ao entendimento e discernimento
28.1-18 Justiça, sabedoria e religião. em 28.2,11,16,22; 29.19. Em 28.5, no en-
Observamos que as seções anteriores nos tanto, entendimento ou discernimento são
cp. 25-27 contêm retratos breves bem coisas que dependem de buscar a Deus
vívidos. Eles fizeram poucas referências à em contraste com ser uma pessoa má, e no
justiça e à impiedade, ou a Deus. Nos cp. v. 7 o filho com discernimento (prudente)
28-29, o equilíbrio é restaurado, e voltam não é meramente o que obedece ao seu
as questões da moralidade e da teologia. pai, mas o que guarda a torá (cf 29.7, em
Há muitas referências a Deus (5), à equida- que de nada disso quer saber é lit. "não
de (8), à maldade (10), ao erro/pecado (5), compreende o conhecimento").
PROVÉRBIOS 28 916

A compreensão religiosa e moral do chave para o possuir, em mais de um sen-


conhecimento e do discernimento nesses tido (27). Erro/pecado, confiança, Deus,
versículos também fornece ao ouvinte um tolice e sabedoria assim são combinados
novo contexto para a compreensão dessas de forma surpreendente mais uma vez nos
palavras em outros trechos. Mesmo que v. 24-26. A sabedoria aqui novamente tem
venham vestidas em algo que à primeira conotações espirituais e morais. A sabedo-
vista pareça o seu significado cotidiano ria e a confiança em Deus são colocadas
(cf 28.2,11; 29.19), elas têm conotações lado a lado, ambas sendo o oposto da con-
espirituais e morais. fiança em si mesmo.
É particularmente digno de observa- 28.28-29.27 Poder e justiça. Mais
ção como tará, impiedade, mal, justiça uma vez a natureza e o fruto da justiça
e a busca de Deus são combinados em e da impiedade são explicados, em par-
28.4,5 com o retrato do mundo moral ticular o seu efeito sobre a vida em co-
que fica cada vez mais confuso quando as munidade e sua liderança. O que mais
pessoas ignoram a torá e deixam de bus- interessa à sociedade é que os justos, e
car a Deus. Integridade/inculpabilidade, não os ímpios, floresçam e detenham o
impiedade, torá e discernimento então poder na comunidade (28.28; 29.2); na
aparecem juntos nos v. 6,7, em que o tema verdade, isso interessa até aos ímpios (1).
específico são as posses: a riqueza e a po- Para os governantes, governar com justi-
breza no v. 6, o desperdício da riqueza no ça é o meio para a estabilidade de uma
v. 7 e o acúmulo de lucro excessivo no v. nação (4), e para a estabilidade do seu
8. Torá, oração, retidão e inculpabilidade próprio governo (14). A influência dos
são combinados de forma semelhante nos arrogantes sabichões sobre a comunidade
v. 9,10, e pecado, confissão, misericórdia, significa mais um aumento de tensão do
temor e endurecimento do coração nos v. que de harmonia (8,9), e uma vez que um
13, 14 (embora aí não haja nenhuma refe- governante se torna conhecido por não
rência específica a Deus; de Deus [ARA] e premiar a verdade, logo descobre que os
"do Senhor" [NVI] são acréscimos). seus subordinados estão muito dispostos
Nota. 17 Carregado vem da mesma pa- a agir da mesma maneira (12). Ele precisa
lavra que "falto de inteligência" no v. 16; estar consciente de que a exaltação e a hu-
sugere que quem não usa o discernimento milhação podem ser facilmente revertidas
hoje é atormentado no devido tempo. (23). Os líderes em particular precisam
28.19-27 Prosperidade. O trabalho então se interessar pelos necessitados (7).
duro é a chave para a prosperidade (19). Tal justiça está associada à sabedoria e
Mas a busca pela prosperidade - ou mes- resulta em alegria (3,5,15), sabe o signifi-
mo pela sobrevivência - que age de forma cado do autocontrole (lI), está preparada
egoísta e não tolera concessões é errada, para disciplinar (17,19,21) e abomina a
cega e fútil (20-24). Como nos v. 1-18, o injustiça (27).
comentário de uma perspectiva religiosa Os líderes se opõem à impiedade que
lança esse sábio ensino num novo contex- não se preocupa com os necessitados (7)
to (25): a busca pela prosperidade também e que detesta e efetivamente ataca os retos
está propensa a separar uma pessoa das (10,27), que dá vazão imoderada a seus
outras; e pagar esse preço é duplamente pensamentos e sentimentos (lI ,20,22), e
estúpido, porque a chave para uma pessoa que com frequência se mascara de adu-
atingir a prosperidade é sua confiança em lação (5), mas paga o seu próprio preço
Deus. As pessoas que, em vez disso, con- (6,16,24).
fiam em si mesmas também são duplamen- Assim como outros aspectos de sa-
te estúpidas (26). Paradoxalmente, dar é a bedoria e moralidade, a sabedoria e a
917 PROVÉRBIOS 30

moralidade da liderança e da vida em co- 30. 1-33 Ditos de Agur


munidade são também aqui colocadas no 30.1-9 Introdução. Não sabemos nada
contexto da fé. O lembrete de que Deus de Agur e Jaque (I; tampouco de "Itiel e
é criador tanto dos pobres quanto dos Ucal", transliterados como nomes na ARC e
opressores é a segurança de um e o desa- traduzidos na ARA por: Fatiguei-me, ó Deus
fio ao outro (13); e, teologicamente, está etc.), e podem ser de origem estrangeira
na base da promessa ao rei que a equidade (cf 31.1 e comentário). Mas esse enigma
para com o pobre contribuirá para a esta- dá o tom certo para o mistério que Agur
bilidade do seu trono. está desejoso em admitir (2-4). Temos ob-
A estabilidade da sociedade em si de- servado que com frequência Provérbios
pende da abertura para a revelação e da parece ensinar generalizações exagerada-
receptividade à torá (18). A profecia é mente confiantes acerca de como funciona
uma referência ao ensino do profeta acer- a vida e como Deus opera, embora ambos
ca da vontade e do propósito de Deus tcf. sejam mais misteriosos do que as generali-
Is 1.1). Supõe-se que não havendo profe- zações sugerem. Aqui Provérbios sabe isso
cia significa: "ali onde a profecia de Deus muito bem. Os v. 2,3 talvez sugiram que
é ignorada" (a mera existência da profecia o problema está na falta de inteligência de
evidentemente não impede que um povo Agur; o v. 4 deixa clara a ironia da sua afir-
ultrapasse os limites, como o demonstra o mação inicial. Ele é simplesmente o único
ministério dos profetas). Esse dito, singu- que reconhece abertamente a ignorância
lar nos livros sapienciais, combina a torá por causa do mistério inerente das coisas
e os profetas como a chave para a bênção de Deus.
e a ordem na comunidade (no v. 18b, faz Há, contudo, ainda outra ironia; o v. 1
mais sentido interpretar o povo como su- já descreveu os seus ditos como "oráculo"
jeito do verbo como o é no v. 18a - i.e., (ARC), um termo padrão usado na referên-
"ele é abençoado quando guarda a lei"). cia à palavra profética de Deus tcf., e.g.,
Esse comentário nos encoraja a inter- ls 13.1; embora a palavra possa ser entendi-
pretar o entendimento do v. 19 como um da como nome da região Massá na Arábia,
discernimento espiritual (v. comentário mencionada em Gn 25.14, como na ARA).
de 28.1-18). A conclusão do versículo in- A ironia continua nos v. 5,6. Embora Agur
dica que esse discernimento espiritual na tenha sugerido que nem ele nem outra pes-
verdade não existe. (Não obedecerá é li- soa tenha trazido conhecimento do céu para
teralmente: "não há resposta", assim que a a terra, ele também insinua que de fato há
expressão conclui os v. 18,19 de forma tal palavras de Deus, que como tais são de-
que contrabalance com Não havendo pro- puradas e confiáveis, e requerem aceitação
fecia). A tentação é fazer de pessoas tais sem meio-termo.
como os governantes o objeto do nosso A introdução conclui com a oração de
medo e confiança, mas Deus é o verdadei- Agur para que seja protegido da falsidade,
ro objeto dessas atitudes e a fonte suprema mas também - e isso é mais surpreenden-
dessa bênção (26,27). te - dos extremos da riqueza e da pobreza,
Notas. 3 Alegra é uma forma do verbo porque ele percebe a armadilha em ambas.
que já ocorreu no v. 2 - colocado aqui, Ele nos lembra de que quando Provérbios
o dito sugere de que modo a sabedoria, fala dos ricos e dos pobres, como faz com
assim como a justiça, pode ser uma cau- frequência, não está falando de dois grupos
sa de alegria para o povo. 24 O cúmplice em que estão incluídas todas as pessoas.
não pode vir à frente e testemunhar, e por A maioria das pessoas está entre os dois
isso carrega a culpa que está associada ao grupos, e é aí que Agur gostaria de estar.
crime (cf. Lv 5.1). O seu reconhecimento solene do mistério
PROVÉRBIOS 30 918

da vida e de Deus (observe que ele usa o sagradáveis. Há uma boa dose de humor
nome israelita para Deus, Javé), é como o nesse dito, como também ocorre em alguns
de Eclesiastes (v. Ec 7.16-18). outros nesse capítulo. É provável que o v.
30.10-17 Segurança própria. Três 23a seja uma referência à mulher que pa-
unidades estão relacionadas entre si aqui. recia estar "na prateleira", mas aí agarrou
Amaldiçoar é o elo verbal entre o dito no um homem; o v. 23b talvez se refira a uma
v. 10 e a unidade mais longa dos v. 11-14. serva que tem um bebê enquanto a sua se-
O primeiro adverte acerca de interferir nhora é estéril. Em seguida são descritos
nas questões dos outros de forma tal que quatro animais; todos atingem grandes
a intervenção ricocheteie; aquele pode ser coisas apesar das suas limitações, e assim
o senhor ou o servo (ARe deixa o sujei- todos mostram grande sabedoria. Os seres
to oculto; NVI o define como "o servo"). humanos devem aprender deles.
Então nos v. 11-14 cada versículo descre- O quarto dito conduz a um clímax. As
ve um grupo de pessoas cuja segurança figuras de animais também estão aí para
muito arrogante é desaprovada como tal. ilustrar uma realidade humana, o poder
Tais listas com frequência chegam ao clí- imponente do rei, que se toma explícito no
max no final, e o v. 14 tem o dobro da final. Talvez haja um pouco de ironia na
extensão dos outros versículos. No seu comparação do rei não somente a um leão,
clímax, então, a unidade também está co- mas também a um galo e a um bode; o rei
nectada aos v. 7-9 com o seu tema da po- está sendo colocado delicadamente no seu
breza - embora suas reais palavras para lugar. Mas ao menos a sua posição lhe per-
aflitos e necessitados sejam diferentes das tence; os v. 32,33 seguem como uma ad-
usadas nos v. 7-9. O v. 15a prossegue a vertência acerca de nos exaltarmos a uma
partir daí, no sentido de que a sangues- posição e atitude que não nos pertencem de
suga com suas ventosas é evidentemente forma alguma. Bater [do leite], torcer [do
uma figura para representar o instinto que nariz] e açular [a ira] são a mesma palavra
os seres humanos têm de se apegar a tudo, no hebraico.
e os v. 15b,16 dão sequência ao tema. O
v. 17 nos leva de volta ao ponto em que 31.1-31 Ditos do rei Lemuel
começamos no v. 10. 31.1 Introdução. Como no caso de Agur,
30.18-33 Coisas que vêm em grupos também não sabemos nada acerca do rei
de quatro. Os ditos com a formulação: Lemuel além do seu nome, embora, se ele
"Há três coisas [...] sim, quatro" nos v. foi rei, não foi rei israelita. Como no caso
15b,16 conduzem a diversos ditos compa- das palavras de Agur, estas também reivin-
ráveis em forma (v. comentário de 6.16-19) dicam ser tratadas como um oráculo profé-
nos v. 18-33. O clímax do primeiro (18,19) tico (cf ARe: "profecia").
está novamente no último item da lista: o 31.2-9 Três exortações. A mãe de
caminho de um homem com uma mulher Lemuel admoesta o seu filho a que evite
compartilha o mistério das três coisas des- outras mulheres (2,3), embora num esti-
critas nos v. 18,19a. O dito no v. 20 é um lo completamente diferente do usado nos
dito independente, acrescido de forma bem cp. 1-9. Os votos dela supostamente
apropriada à luz do seu tópico, visto que eram promessas feitas a Deus associadas
propõe o tema de forma invertida. ao nascimento dele (cf 1Sm 1.11,27,28).
Nos ditos numéricos a seguir (segundo Lemuel também deve deixar a bebida forte
e terceiro) (21-23; 24-28), não há progres- para pessoas que precisam afogar as suas
são para um clímax. São descritas quatro mágoas e tristezas, porque no caso dele o
pessoas; todas desfrutam de sucesso ines- vinho pode fazer com que negligencie sua
perado; todas podem ser igualmente de- obrigação real para com os necessitados
919 PROVÉRBIOS 31

(4-7). Isso conduz a um chamado claro à com o do homem (e.g. 1.8; 6.20) cumpre
sua responsabilidade real (8,9). parte da visão de Gênesis 1-2 de homem
31.10-31 A mulher completa. Os v. e mulher juntos representando a imagem
10-31 são com frequência tratados sepa- de Deus e chamados a exercer autoridade
radamente dos ditos de Lemuel. Mas to- no mundo em nome de Deus, e convida
das as outras unidades independentes de homens e mulheres a buscar concretizar
Provérbios têm seu próprio cabeçalho, e a essa visão no mundo.
ausência de tal cabeçalho no v. 10 sugere A mãe de Lemuel (que como rainha-
que esta seção deve ser considerada parte mãe pode exercer um poder político muito
dos ditos de Lemuel. O fato de que os ditos significativo) encoraja a mulher comple-
de Lemuel vieram da sua mãe (1) sugere ta a cumprir ao máximo o que o papel da
que esta última seção do livro é a descri- mulher pode significar numa sociedade
ção que uma mulher faz do papel da mu- patriarcal e ainda a ampliar esses limites.
lher. Contém um acróstico de 22 versículos Os homens em geral precisam de pouco
que começam com as letras do alfabeto estímulo para deixar a sua marca e atingir
hebraico, uma forma poética que sugere os objetivos; as mulheres podem se sentir
uma exploração completa do seu tópico. A tentadas a se acomodar com o papel mais
sequência de afirmações no retrato é então acanhado e modesto na vida, que muitas
formal e não lógica. vezes tem sido tudo o que a sociedade es-
"A mulher talentosa" (BJ; v. nota mrg.) pera delas, e assim elas acabam deixando
é uma tradução melhor da expressão de de desenvolver o seu potencial divino de
abertura. Ela a retrata exercendo a respon- deixar sua própria marca. Sem dúvida, há
sabilidade da provisão de comida e roupa outros aspectos da visão que as Escrituras
para a casa, e também se envolvendo na têm da mulher (como a de Cântico dos
administração das finanças e dos negó- Cânticos), mas este estímulo à mulher para
cios fora da casa propriamente dita. Ela que vá atrás dos seus objetivos é um aspec-
também se preocupa com os necessitados, to importante dessa visão como um todo.
e cumpre um sábio ministério de ensi- O respeito e a honra que a mulher ob-
no. Esse elemento no retrato sugere que, tém do seu marido e filhos e das pessoas da
como uma mestra autorizada no final de comunidade mais ampla deve-se sobretudo
Provérbios (como a mãe de Lemuel no v. ao fato de que sua lealdade a Deus está na
1), ela é a contrapartida da sra. Sabedoria base dessa sua vida tão produtiva (30).
nos capítulos iniciais (cf expressões cor-
respondentes em 3.13-18; 9.1-6). O papel
de ensino da mulher no livro lado a lado John Goldingay
ECLE51A5TE5

Pessimismo versus fé Quem, então, é esse "Pregador"? A men-


Na literatura sapiencial do antigo Oriente ção em l.1 e as descrições nos cp. I e 2
Médio, havia um estilo de composição que se referem claramente a Salomão (embora
poderíamos denominar "literatura pessi- "filho de Davi, rei de Israel em Jerusalém"
mista". Na Bíblia, Eclesiastes é o seu único possa se referir a qualquer rei da linhagem
exemplo, mas a tradição remonta, tanto no de Davi). No entanto, o nome "Salomão" é
Egito como na Mesopotâmia, a no mínimo evitado. Não há reivindicação nenhuma de
2000 a.c. origem salomônica, como há em Cantares
Eclesiastes é "literatura pessimista", de Salomão 1.1 e Provérbios 1.1. O edi-
mas com uma diferença. As outras com- tor está apresentando o ensinamento real
posições "pessimistas" eram desoladoras, na tradição iniciada por Salomão, porém
sensuais e desprovidas de qualquer nota não afirma estar transmitindo as palavras
de esperança. No Diálogo do Pessimismo do próprio Salomão. A tradição, então, é
(uma obra babilônica do século XIV a.C.), o salomônica; contudo, o trabalho editorial
suicídio é a única resposta para os proble- é posterior.
mas da vida. Na Epopeia de Gilgamesh, o Qual é a data do trabalho editorial?
deus Shamash foi direto e franco: "A vida Três linhas de abordagem têm sido se-
que você busca, jamais a encontrará". guidas na tentativa de responder a essa
Embora Eclesiastes ecoe esse pessimismo pergunta; duas delas sem êxito algum.
antigo, o livro contém uma linha de pen- A primeira busca referências históricas
samento em forte contraste com as outras dentro do próprio livro. Tentou-se iden-
obras do gênero. Ele apresenta também a tificar os eventos em 4.13-16 e 9.13-16,
possibilidade de alegria, fé e segurança na mas os resultados não foram satisfatórios.
bondade de Deus. A segunda vê em Eclesiastes uma depen-
Eclesiastes é uma obra editada. Em 1.2, dência do pensamento grego, o livro, por-
7.27 e 12.8 as palavras "diz o Pregador" tanto, derivando da época grega (ou seja,
ocorrem entre provérbios e ditados. Em do século JJI a.c. ou posterior). Nada pode
12.9-14, aparece uma descrição: é óbvio ser afirmado nesse sentido. Não se encon-
que alguém está apresentando o ensina- tra nenhuma citação explícita do pensa-
mento de outrem. "Pregador" representa mento grego no livro. O pessimismo teve
o vocábulo hebraico qohelet, um nome origem séculos antes de qualquer possível
fictício (ainda que muito comum em data conferida a Eclesiastes. O próprio
sua estrutura) que quer dizer, em termos ceticismo grego talvez deva alguma coisa
aproximados, "Senhor Pregador". A raiz ao mundo mesopotârnico. A terceira linha
verbal significa "reunir" e, em outro con- de abordagem, e a que mais oferece pos-
texto, é usada como uma assemb1eia em sibilidades à datação de Eclesiastes, é o
que a palavra é dirigida ao público (assim estudo de sua linguagem. E mesmo isto é
"Pregador" pode ser interpretado como "lí- difícil. O livro não foi escrito exatamente
der da assembleia"). Ela tem o "sentido" no mesmo hebraico das outras partes do
da paráfrase "Senhor Pregador, o Rei". Antigo Testamento. A redação usa duas
921 ECLESIASTES

palavras persas que sugerem que a nossa um tratado evangelístico, convidando os


edição de Eclesiastes data do período que descrentes a enfrentar as implicações do
seguiu o domínio persa em Israel (século secularismo em que vivem, quanto uma
VI a.Ci). Porém há indícios mais antigos. A convocação ao realismo, conclamando
menção ao templo (5.1) exclui o período os israelitas fiéis a encarar seriamente a
em que este ainda não fora reconstruído "futilidade", o "enigma" da vida neste
(586-516 a.C}, Sugerimos a possibilida- mundo. Ele proíbe tanto o secularismo
de de datar Eclesiastes no século v a.C., (viver como se a existência de Deus não
porém estudos estatísticos mais comple- tivesse nenhuma utilidade prática neste
tos da linguagem talvez forneçam evidên- mundo) quanto o otimismo irreal (esperar
cias de uma data anterior. Ou um estudo que a fé anule a vida como ela realmente
adicional da linguagem poderá fornecer é). Sob seu aspecto negativo, Eclesiastes
evidências fidedignas de características nos adverte de que a "fé" está sempre
tanto anteriores quanto posteriores (o que em contraste com o que vemos, e não
sugere, portanto, tratar-se de obra de um nos fornece um atalho para entendermos
período anterior, mais tarde atualizada). completamente os caminhos de Deus.
Algum progresso ainda pode ser feito Sob seu aspecto positivo, ele nos concla-
nesse sentido, mas até agora não se con- ma a uma vida de fé e alegria. Resumindo
seguiu alcançar um consenso. Eclesiastes, 1. S. Wright (Eclesiastes,
The Expositor 's Bible Commentary, vol.
Propósito e mensagem permanente 5 [Zondervan, 1992]) costumava dizer:
Três características particulares de Ecle- "Deus detém a chave de tudo que é desco-
siastes são dignas de menção: (i) O li- nhecido, mas ele não a entregará a você.
vro divide a realidade em dois reinos, o Visto que você não tem a chave, precisa
celestial e o terreno, referindo-se ao que confiar que ele abrirá as portas".
está "debaixo do sol" ou "debaixo dos
céus" e "o que está na terra", por exem- Lugar no cânon
plo, "Deus está nos céus, e tu, na terra" Desde onde se pode constatar, Eclesiastes
(5.2). (ii) Eclesiastes faz distinção entre tem sido considerado "canônico" (ou seja,
observação e fé. O Pregador diz: "Atentei fidedigno entre os cristãos). Embora tenha
para todas as obras que se fazem debaixo havido uma disputa entre os rabinos em
do sol" (1.14), para então afirmar: "contu- Jamnia, em 100 d.C., em torno da razão
do entendi..." (2.14). Quando usa o verbo de sua autenticidade, concordou-se quanto
"ver", ele indica os sofrimentos da vida. à sua fidedignidade. A presença de manus-
A conclamação ao júbilo não é feita em critos de Eclesiastes em Qumran indica
relação ao que ele vê, mas sim ao que ele que mesmo anteriormente ele já era assim
crê sobre Deus, apesar do que vê. (iii) Ele considerado.
nos faz encarar as agruras da vida e, mes-
mo assim, urge-nos constantemente à fé Estrutura
e ao júbilo. Uma sequência de argumentos pode ser
Qual é, então, o propósito e a mensa- observada nos cp. 1-3. Nos cp. 4-10, a
gem permanente de Eclesiastes? coesão entre as seções é menos acentuada;
O livro é uma resposta ao pessimismo podem ser encontrados agrupamentos de
desconsolado que matiza grande parte provérbios, mas não há como determinar
do pensamento antigo. Porém, ao mes- qualquer razão ou lógica mais rígida para a
mo tempo, o livro não postula uma "fé" ordem das seções. Os cp. 11-12 são sig-
superficial que desconsidera o caráter caí- nificativos por soarem uma nota contínua
do do mundo. Eclesiastes é, pois, tanto de exortação.
ECLE51A5TE5 1 922

Leitura adicional WRIGHT, J. S. Ecclesiastes. EBC.


TIDBAL, D. That's Life! Realism and hope Zondervan, 1991.
for today from Ecclesiastes. Inter- EATON, M. A; CARR, G. L. Eclesiastes e
Varsity Press/UK, 1989. Cantares: introdução e comentário.
KIDNER, F. D. A mensagem de Eclesiastes. SCR Vida Nova, 1989.
BFH. ABU, 1989.

ESBOÇO
1.1-3.22 A busca
1.1 Título
1.2-2.23 Problemas do pessimista
2.24-3.22 Alternativa ao pessimismo

4.1-10.20 Enfrentando a realidade


----,-----=-=----,------:--:----~----~- ....... _...... _-~._-_._._---

4.1-5.7 As tribulações e os companheiros de vida


5.8-6.12 Pobreza e riqueza
7.1-8.1 O sofrimento e o pecado
8.2-9.10 A autoridade e a injustiça
9.11-10.20 A sabedoria e a loucura

11.1-12.8 Chamado à decisão


11.1-6 A aventura da
11.7-10 A vida de alegria
12.1-8 A urgência da decisão

12.9-14

1.2-2.23 Problemas do pessimista


1.2-11 Alguns fatos elementares. 2 Vaidade
1.1-3.22 A busca é a tradução de um termo que encerra con-
Após o título (1.1), o problema da vida é ceitos como de brevidade, descrédito, fra-
explorado (1.2-2.23), e o trecho conclui gilidade e futilidade, ausência de propósito
com um cenário de fracasso e desespero claro ("inutilidade", NVl; "ilusão", NTLH).
(2.23). Vem, então, um momento decisivo. 3 O progresso real não pode ser alcança-
Em 2.24--3.22, os fatos da vida não são do. Proveito (cf. NVl: "o que o homem ga-
diferentes, mas o autor introduz em cena a nha ...") é tradução de um termo usado no
bondade de Deus. O resultado é uma pers- comércio, e se refere a um empreendimen-
pectiva mais satisfatória (embora não isenta to substancial, evidência palpável de que
de problemas). algo de valor foi realizado. Trabalho e se
afadiga podem se referir ao esforço fisico
1.1 Título tcf. 2.4-8; SI 127.1) ou à aflição mental e
Pregador é qohelet em hebraico, um parti- emocional (cf 2.23; SI 25.18). O Pregador
cípio nessa língua, que tem um significado se refere ao que ele observa debaixo do
(como o nome Pires, em nosso idioma). sol. Devido à sua frequência e destaque
Ver Introdução. em 5.2, a expressão deve ser significativa.
923 ECLESIASTES 2

É verificada em vanas culturas antigas do sol" não conseguem resolver seus pro-
e refere-se ao reino na terra em oposição blemas. (iii) A vida contém nós e lacunas
ao reino dos "céus", onde Deus se revela insolúveis. Aquilo que é torto se refere
soberanamente. As expressões "na terra", tanto à vida humana (veja 1.3-4a) quanto
"debaixo dos céus" e "debaixo do sol" são ao ambiente (lAb). A fonte dos caminhos
equivalentes. Ver mais na Introdução. No tortuosos é sugerida em 7.13,29, mas não
momento, o Pregador limita explicitamen- é mencionada aqui. A vida e as circunstân-
te sua perspectiva aos recursos do mundo cias contêm "lacunas", lapsos lógicos ou
que ele examina. 4. A sucessão de gerações lacunas factuais que deixam a vida enig-
não altera a situação básica da humanida- mática. Nos v. 16-18, a expressão o que é
de. O problema da "falta de sentido" está loucura e o que é estultícia demonstra que
incorporado no mundo todo. Romanos o Pregador manteve a alternativa da sabe-
8.20 ressalta precisamente essa questão doria em mente. Isto prenuncia 2.1-11. Sua
e talvez seja uma alusão a Eclesiastes (a conclusão é que o esforço para resolver o
palavra grega empregada por Paulo ["vai- problema da vida aumenta a visão que a
dade"] é a da versão grega em Ec 1.2). 5-7 pessoa tem do problema, mas não traz so-
A natureza não demonstra progresso. Ela lução nenhuma. A busca mais aprofundada
está ativa no céu (5), terra (6) e mar (7), e, por uma solução concluiria pela espera do
no entanto, sua atividade não altera a situ- advento de Cristo.
ação primordial do ser humano. 8 O termo 2.1-11 O fracasso de buscar o prazer.
canseiras contém a ideia de "exaustão". Depois de mostrar o fracasso da sabedoria,
Ele implica que a atividade incessante da o Pregador mostra o fracasso do seu opos-
natureza a deixa esgotada, ou que os se- to. Vemos sua resolução (I a), sua conclu-
res humanos estão esgotados por causa são (l b,2), seu relato detalhado (3-10), e
dela. 9,10 Chegamos agora à história. As uma conclusão repetida (11).
circunstâncias (o quefoi) e a atividade hu- O riso (2) tende a ser usado na diver-
mana (o que sefez) se repetem a si mes- são superficial; o "prazer" (NTLH; alegria
mas. 11 Lembrança pode se referir à ação na ARA) - de um modo geral - é mais
de trazer à memória. Nossa vida presente criterioso. De todos os tipos de prazer,
não é resultado do que aprendemos com o nenhum consegue solucionar o problema
passado. O ser humano não aprende com do Pregador. Loucura é uma palavra as-
as gerações anteriores. sociada à perda de juízo. A pergunta sem
1.12-18 O fracasso da sabedoria. À luz resposta - de que serve? - faz-nos saber
dos problemas apresentados em 1.2-11, que nem mesmo os prazeres mais sublimes
será a sabedoria a resposta para a falta de resolvem o enigma da vida.
"ganho" (1.3) na vida? 12 É a sabedoria Os v. 3-10 registram os empreendi-
tradicional de Salomão que está sendo mentos do Pregador. Todos os tipos de
apresentada. 13a Esquadrinhar e infor- descontração e prazer estavam envolvidos.
mar-me se referem a abrangência e am- Servos, bois e ovelhas indicam grande ri-
plitude. Debaixo do céu nos informa que queza. Uma palavra difícil no v. 8 (mulhe-
uma área restrita está sendo considerada. res e mulheres) provavelmente significa
13b-15 Três conclusões são apresentadas. "concubinas" (NVI, harém). O v. 9 fala de
(i) A busca por propósito é uma questão seu prestígio e de como reteve sua objeti-
designada por Deus. Enfadonho tem o vidade (que é o sentido da última frase).
sentido de "atividade compulsória". (ii) A Nenhuma coisa exterior (visível aos olhos;
frustração é o resultado. Correr atrás do 10) ou interior (coisas que agradam o cora-
vento se refere ao esforço para alcançar o ção) lhe foi negada. O resultado foi a sen-
inatingível. Os seres humanos "debaixo sação de realização, mas nada além disso.
ECLE51A5TE5 2 924

Sua conclusão (11) não é diferente da- NTLH) é uma tradução válida, mas a expres-
quela de sua investigação da sabedoria (cf são também significa "sobre mim" e, às
2.11 com 1.17,18). O acúmulo de termos vezes, expressa o que é penoso (v. Is 1.14).
(vaidade, correr atrás do vento, nada [...] 18 O aborrecimento com a vida é seguido
bom) indica amargura e decepção. pelo aborrecimento com o trabalho árduo,
2.12-23 O destino inevitável de todos. um termo que se refere, às vezes, ao es-
Depois do problema da vida (1.2-11) e dois forço total por entendimento (1.13), mas
corretivos ineficazes (1.12-18; 2.1-11), aqui o foco está nas atividades cotidianas.
resta uma questão: há alguma preferência 19 Outro agravante é que um homem pode
entre a sabedoria e a busca do prazer? Sob arruinar o trabalho do seu predecessor
determinado aspecto, a sabedoria é melhor (Roboão sucedendo Salomão é um exem-
que a busca de prazeres. Sob outro, elas plo; lRs 11.41-12.24).20 Um abismo de
são iguais; nenhuma das duas lida com o desespero conclui as reflexões do Pregador
problema da morte. até aqui. A tradução da expressão hebraica
A segunda metade do v. 12, diz, lit.: pode ser: "ele deixou que seu coração se
"Que tipo de pessoa virá depois do rei, desesperasse'". 21 Era uma injustiça que
em termos do que já foi feito?" (v. M. A. outro se beneficiasse dos esforços de seus
Eaton, Ecclesiastes, TOTC [IVP, 1983], p. predecessores. Não obstante a sabedoria
68 para maiores detalhes). A NVI transmite (conhecimento prático), a ciência (infor-
aproximadamente o mesmo pensamento. mação) e a destreza (o sucesso que procede
O sentido é: "Serão os futuros reis homens da sabedoria e da ciência), não há nada
capazes de maiores realizações do que as que evite a morte ou garanta a permanên-
que consegui em minha busca?". Terão os cia. Somente o evangelho tem a resposta:
futuros reis de enfrentar o mesmo proble- "sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho
ma que o Pregador enfrentou? Que con- não é vão" (1Co 15.58). 22 Qual é o re-
selho pode ele dar? A sabedoria é a maior sultado da fadiga (trabalho, esforços) e do
necessidade do rei (v. lRs 3.5-28; Pv 8.14- empenho aflitivo (os conflitos emocionais
16). O estulto é notório por sua maldade e e intelectuais)? A resposta está no v. 23.
tagarelice impensada; para ele, a iniquida- Dores e desgosto podem se referir à mente
de é "diversão" (v. Pv 9.13-18). ou ao aspecto físico. Devemos considerar
Os v. 13,14a respondem à pergunta. A os dois aspectos, pois até de noite se refere
sabedoria tem valor. Luz é uma metáfora à insânia decorrente da frustração.
para compreensão, habilidade, destreza no
viver. Outro ângulo é apresentado nos v. 2.24-3.22 Alternativa
14b-16. O mesmo lhes sucede é uma refe- ao pessimismo
rência à morte, que todos enfrentam, sejam Deus pouco apareceu em 1.2-2.23, sen-
sábios ou estultos (14b). Sua inevitabili- do mencionado apenas em 1.13. O argu-
dade coloca o sábio e o estulto no mesmo mento anterior referia-se ao reino terrestre
nível. Nenhum deles pode derrotar o "ini- (1.3,13,14; 2.3,11,17-20, 22) e só de pas-
migo final" (15). O pensamento do v. 16 é sagem mencionou Deus como a causa da
igual ao de 1.16, mas, no primeiro caso, o frustração. Agora, porém, Deus é o contro-
destaque é para o indivíduo. As lembranças lador do seu mundo, o criador da beleza, o
são muito curtas para que o nosso esforço juiz das injustiças. O niilismo e o desespe-
valha a pena (v. também 9.15). ro se transformam em alegria, beleza, ge-
Nos v. 17-23, o Pregador considera a nerosidade divina, segurança e propósito
vida debaixo do sol. A morte interrompe a na vida.
sabedoria, o que, por sua vez, faz a vida 2.24-26 O Deus generoso. 24a A hu-
parecer sem sentido. 17 Me ("para mim", manidade deve desfrutar das coisas boas
925 ECLESIASTES 3

que Deus providenciou. Comer e beber à agressão pela ruína de lavouras, e a cul-
significam a provisão e contentamento que tivar a terra (o inverso de 2Rs 3.25; em
são a vontade de Deus para todos. 24b,25 Is 62.10, refere-se a dar boas-vindas a um
A vida agradável que experimentamos vem conquistador). As expressões no v. 5 se
de suas mãos. 26 Três bênçãos de Deus são referem a inimizade e amizade, individu-
a sabedoria (destreza no viver), o conhe- ai e coletiva. O que vem a seguir (6,7a) é
cimento (informação dos fatos, compreen- uma reflexão sobre posses ou ambições,
são, experiência) e o prazer ("felicidade", retendo ou abandonando a busca pelo que
NVI). O pecador é aquele que não vive se quer, mantendo ou desfazendo-se do
para agradar a Deus; o uso é diferente em que possui. Os v. 7b,8 se referem ao falar
7.20. O juízo sobre o pecador também é (estar calado e falar) e aos relacionamen-
dado por Deus. "Riquezas" (NVI) não está tos pessoais (amar e aborrecer) e nacio-
explícito no hebraico; o Pregador se refere nais (guerra e paz).
ao desejo irrefreado de aquisição (ajunte e 3.9-15 Contentamento e satisfação.
amontoe). Mas as posses caem apenas na Os v. 9-11 se referem a coisas sensatas. A
mão do justo. Não é isso que observamos. questão do v. 9 lembra que o proveito (ga-
Que "a riqueza do pecador é depositada nho) é o que se deseja, mas é difícil de ser
para o justo" (Pv 13.22) pode ser compro- alcançado. O v. 10 pode relembrar a busca,
vado pela queda das cidades de Canaã nas divinamente imposta, por sentido. O v. l l
mãos dos israelitas. A visão cristã da eter- nos faz lembrar o limite da nossa compreen-
nidade facilita a compreensão aqui (uma são. Os v. 12-15 são mais consoladores e
vez que o oposto parece acontecer nesta se dividem em duas seções (11-13; 14,15)
vida), mas para o Pregador deve ter sido começando com Sei.
uma questão de pura fé. Eventos como os No v. 9, a questão de 1.3 aparece no-
de Êxodo 12.35,36 podem ter sido a fonte vamente (porém a expressão "debaixo do
de sua convicção. sol" é omitida). Outra vez (10, repetindo
3.1-8 Deus controla o tempo. O obje- 1.13b) é dito que a busca pelo significado
tivo dessa seção é nos dar uma visão da so- é colocada nos homens (Deus impôs aos
berania de Deus que nos deixe tranquilos e filhos dos homens), ou seja, é designada a
equilibrados. Ela nos tranquiliza graças ao eles. Agora, no entanto, o ponto de vista é
controle de Deus; mas incita à austeridade diferente. 11 A forma como Deus organiza
porque o controle de Deus continua sendo o tempo é bela ("Tudo [...] formoso"), uma
misterioso. 1 Há propósito na vida em vir- fonte de alegria. A eternidade no coração
tude do controle de Deus sobre as estações se refere à capacidade para algo maior e
do ano (v. SI 31.15 "nas tuas mãos estão melhor que a sucessão tão incontrolável de
os meus dias"). Tempo significa uma "oca- tempos. (Tempo e propósito"["atividade"]
sião" ou "estação", e propósito destaca o no v. 1 formam um contraste com a eterni-
que se pretende fazer. 2-8 O controle do dade aqui). Os seres humanos têm capaci-
tempo por parte de Deus impõe-se sobre dade para coisas "eternas", algo que trans-
nós. O v. 2a trata do início e fim da vida cende a situação imediata. Isso não resulta
(e, portanto, tudo o que estiver entre esses em compreensão acerca de Deus e seus
dois pontos). Três pares (2b,3) estão asso- caminhos; ainda não se pode compreender
ciados a atividades criadoras ou destruido- do princípio até o fim.
ras (os verbos são amplamente usados em A vida outorgada por Deus é privilé-
sentido figurado). Depois vêm as emoções gio nosso (12,13) e, também, propósito
(4) particulares (chorar e rir) e as públicas de Deus, por ele sustentada ou (sob outro
(prantear e saltar de alegria). Espalhar e ângulo) julgada. 12 O pregador recomen-
ajuntar pedras provavelmente se referem da o contentamento. "Fazer o bem" (TB),
ECLE51A5TE5 3 926

no lugar de levar vida regalada (ARA) não remédio para o enigma da vida é usufruir
tem seu significado comum, mas o de vi- da bondade de Deus.
ver uma vida feliz. "Desfrutar do bem"
expressa a ideia. 13 Provisão e contenta- 4.1-10.20 Enfrentando
mento são dádivas de Deus. 14 A segu- a realidade
rança não é encontrada no reino terrestre, Há um agrupamento de provérbios nesta
que está sujeito à vaidade (1.2,4). A ação seção. Observamos os sofrimentos e per-
de Deus manifesta permanência e eficá- plexidades da vida; o companheirismo que
cia. Isso conduz ao temor (para que os ela demanda mas a solidão que ela exibe;
homens temam); consideração que inspira a pobreza e a riqueza; as adversidades hu-
respeito por Deus e seus caminhos (v. 5.7; manas; os limites da sabedoria e o impac-
12.13). O vocabulário do v. 15 foi usado to da estultícia. Cada uma dessas coisas é
em 1.9-11, mas agora reflete uma pers- problemática; contudo, o Pregador insiste
pectiva otimista. O passado é repetido; em que Deus está presente e que a fé nele
o presente será repetido. A descrição é de é extremamente vantajosa. A vida para o
estabilidade, mas (não como 1.2-11) o que cristão, muitas vezes, também é problemá-
nós temos não é pessimismo; Deus está tica, e as palavras do Pregador estão acima
presente para assegurar a continuidade de interesses antiquados.
do movimento do mundo. A NVI, no v.
15b, quer dizer que Deus é um juiz que 4. 1-5.7 As tribulações
inspeciona o movimento das épocas do e os companheiros de vida
tempo, e um dia "investigará o passado". Temos aqui cinco unidades (4.1-3; 4-6;
Outra tradução é que Deus "busca o que 7,8; 9-12; 13-16) e cada uma diz respeito,
se apressa", isto é, Deus cuida do mun- de certa maneira, ao isolamento, à falta de
do, que percorre seus ciclos (v. Eaton, companheirismo ou assistência humana
Ecclesiastes, p. 83). (nenhum consolador, 1; rivalidade des-
3.16-22 O julgamento de Deus. Se truindo os relacionamentos humanos, 4;
Deus é o controlador que 3.1-15 sugere, um homem completamente sozinho, 8; é
somos naturalmente levados a pensar nas melhor serem dois do que um, 9-12; o rei
injustiças do mundo. Temos uma obser- que fica solitário, 13-16). A seção 5.1-7
vação, dois comentários e uma conclusão parece um tanto isolada; ela reafirma a rea-
(16,17,18-21,22). O v. 16 apresenta o pro- lidade de Deus.
blema: injustiças. 17 As injustiças são con- 4.1-3 A opressão sem consolo. A
sideradas à luz de um evento ou período opressão é um fato (Vi, I), parte da cruel-
de julgamento divino futuro (Deus julga- dade do mundo (debaixo do sol, 1), re-
rá). Todas as pessoas estarão envolvidas voltante porque os opressores têm poder.
(o justo e o perverso). O julgamento ava- Nenhuma solução é apresentada (embora
lia o propósito e os feitos íntimos (na VA 2.26 e 3.22 tenham oferecido uma dica). A
"propósito" abarca pensamento e ações). pergunta implícita é: Como enfrentaremos
Os v. 18-21 fazem uma segunda observa- a realidade?
ção. Os pontos principais são que Deus usa 4.4-6 A inveja e suas alternativas. Se
as injustiças para mostrar que sem ele os a opressão atrapalha os relacionamentos
seres humanos são como animais (18); os (1-3), a inveja também o faz, só que mais
animais e os humanos são iguais no fato sutilmente (4-6). Muito esforço é motiva-
de que morrem (19,20); poucos reconhe- do pelo desejo de sobrepujar os outros. O
cem qualquer diferença entre as pessoas v. 5 é o oposto do v. 4. Se a rivalidade é
e os animais quanto ao que vem depois repugnante, o perigo oposto é retrair-se
da morte (21). O v. 22 é a conclusão; o completamente da vida. Fazer isso, porém,
927 ECLESIASTES 5

é destruir a vida de alguém. O contenta- solveu o problema da geração mais velha


mento (6) é melhor do que a rivalidade(4) (cf 1. 9-11).
ou a preguiça (S). Um punhado representa 5.1-7 O caminho para Deus. Se esta-
uma soma limitada, ambas as mãos cheias mos certos em entender que 4.1-16 trata de
são mais difíceis de ser manipuladas. O companheirismo, o assunto é interrompido
primeiro caso conduz à tranquilidade; o abruptamente sem que se ofereça uma so-
segundo, ao fracasso e frustração (correr lução real. Em vez disso, defrontamo-nos
atrás do vento). com Deus. O trecho de 4.1-16 suscita esta
4.7,8 Para que viver? Um homem pergunta na mente de qualquer leitor: Deus
não tem família nem amigos, embora seja não é a resposta? Mas precisamos nos
bem-sucedido e rico. Ele levanta a questão aproximar dele da maneira correta.
do v. 8, mas nenhuma resposta é dada, e Casa de Deus (1) é o templo, cuja es-
a pergunta continua no ar; isto é parte da trutura apontava para a santidade e ina-
frustração da vida. cessibilidade a Deus, exceto por meio do
4.9-12 A necessidade de companhei- sacrifício. O tolo não percebe como ofen-
rismo. O v. 9 apresenta uma ideia; os v. de a Deus com sua maneira de aproximar-
10-12 dão ilustrações; o v. 12b reitera o se dele. 2 A precipitação na oração deixa
assunto. Quedas (10), noites frias (11) e de ver a grandiosidade da diferença entre
bandidos (l2a) eram perigos enfrentados Deus e os seres humanos. Céus é o local da
pelos viajantes de antigamente, e sugerem glória de Deus; o adorador deve se lembrar
a necessidade de companhia por ocasião de que não se aproxima de Deus como um
de acidentes (10), inconveniências (11) igual.
e adversidades (l2a). O aumento de dois 3. Responsabilidades têm efeitos co-
(9,12a) para três é significativo: quanto laterais. Assim como produzem sono
mais amigos, melhor. perturbado, também podem resultar num
4.13-16 Um líder isolado. Alguns pro- fluxo de palavras impensadas. 4,5 O voto
nomes ambíguos no v. 14 significam que (acompanhamento da petição ou de uma
esse trecho pode ser entendido de várias expressão espontânea de gratidão) pode
maneiras. Provavelmente a NVI está certa. consistir em uma promessa de fidelidade,
O rei velho do v. 13 foi sábio (como o já uma oferta voluntária, ou a dedicação de
não sugere), mas perdeu a sabedoria. A um filho. Fazer um voto, mas não cumpri-
palavra usada para pobre se refere a ori- lo é ofensa a Deus. O mensageiro (6) seria
gens humildes. A juventude se estende da um sacerdote ou alguém enviado por um
adolescência aos 40 anos. No v. 14, deste sacerdote. Os sonhos (7) podem significar
se refere ao rei. Um jovem aparece; tudo algo como sonhar acordado, displicência,
lhe era desfavorável, mas o rei se isolou irreal idade ao se aproximar de Deus. Isto
(inferido no v. IS). O isolamento do ho- e a enxurrada de palavras descuidadas na
mem mais velho resultou no sucesso do oração são marcas do mundo sem sentido
mais jovem. O homem mais jovem foi (insatisfeito, pervertido). O temor a Deus é
bem-sucedido por um tempo (IS). No v. a solução. (cf 3.14; 12.13).
16, todo o povo que ele dominava significa
os que "eram seus subordinados". Para o 5.8-6.12 Pobreza e riqueza
mais jovem, a popularidade também não Temos aqui os pobres (S.8), o dinheiro
foi permanente. Ele repetiu o ciclo. Dois (S. 10), o aumento de bem, abundância
detalhes importantes que são verdades (S.II), o rico (S.12), as riquezas (S.13,14),
universais surgem na história: primeiro, riquezas e bens (S .19; 6.2) e o pobre (6.8).
o isolamento é parte da aflição dos seres 5.8,9 O pobre sob burocracia opres-
humanos; segundo, a nova geração não re- siva. O Pregador considera as frustrações
ECLESIASTES 5 928

da burocracia opressiva com suas demoras agruras da vida fica opressiva, ele nos re-
e desculpas. O pobre não tem condições de lembra de 1.2-3.22. Ele está interessado
esperar, e a justiça está perdida em meio à em ter uma perspectiva confiante e um
hierarquia. Nenhuma solução é oferecida; espírito satisfeito, com os quais enfrenta
assim é a natureza humana. as agruras da vida. Aqui ele relembra um
8 "Todo oficial está subordinado a al- modo de encarar a vida: a vida é agradável
guém em posição superior e sobre ambos no trabalho, e não em prescindir-se deste.
há outros em posição ainda mais alta", Comer e beber expressa companheirismo,
como traduz a NVI, pode ser entendido alegria, e satisfação, incluindo alegrias es-
como se um funcionário suspeitasse do pirituais (v. Dt 14.26). 19 A riqueza pode
outro (v. o verbo em ISm 19.11). A tra- conduzir à miséria (cf o v. 14), mas se é
dução da NTLH se adapta melhor ao con- parte da vida de contentamento, prove-
texto: "Pois cada autoridade é protegida niente de Deus, pode ser usufruída sem
pela que está acima dela". A última frase problema algum. O v. 20 faz um contraste
não se refere a Deus nem ao rei, mas aos impressionante com a labuta de 2.23, uma
muitos patamares de autoridade. prova de que o Pregador está consideran-
O v. 9 tem sido interpretado de formas do duas abordagens diferentes em rela-
diferentes. Se seguirmos a NVI, a ideia é: ção à vida. O hebraico traduzido por "o
a despeito dos entraves burocráticos, vale mantém ocupado" na NVI está associado
a pena possuir uma terra estável; até o rei ao termo "negócio" que vimos anterior-
precisa dela. Outra tradução possível é: mente. Há um "negócio" que frustra; mas
"mas a vantagem de uma terra para todos o "negócio" de receber a vida das mãos de
é: um rei sobre a terra cultivada". A opres- Deus também ocupa a atenção de quem a
são burocrática não sobrepuja o valor da vê dessa maneira.
estabilidade na sociedade. 6.1-6 A riqueza e sua insegurança. A
5.10-12 O dinheiro e suas desvanta- riqueza não garante o seu próprio usufru-
gens. Os limites para o valor do dinheiro to (1,2). Um homem pode viver na flor da
são: ele não pode satisfazer o avarento vida, com uma família próspera, e morrer
(10), atrai um círculo de dependentes insatisfeito e malquisto (3). Melhor seria
(11) e transtorna o sossego da pessoa não ter vivido do que ter vivido desconten-
(12). Dinheiro e abundância (10) são te (4-6a). A morte é inevitável (6).
prata, como meios de troca, e riqueza 6.7-9 A ânsia insaciável. Não se tra-
em forma de bens; fartura (12) pode se balha puramente por prazer, mas para se
referir à riqueza ou ao físico ("estômago obter um sustento na esperança de en-
cheio", NASV). contrar satisfação na vida. Mas "a ânsia
5.13-17 A riqueza - amada e per- não é satisfeita" (melhor do que apetite;
dida. Passamos para aqueles que tiveram a referência vai além do aspecto físico).
riqueza e a perderam. Vemos a riqueza ser 8 Duas perguntas para uma resposta ne-
adquirida (13) e perdida (14a). O homem gativa. Nem a sabedoria, nem a simpatia
rico não pôde doar nada para ninguém da pessoa pobre melhoram o seu quinhão.
(14b) nem levar nada consigo (15). O v. 9 pode ser um conselho, e estar reco-
16,17 A facilidade com que a riqueza mendando o contentamento. Entretanto, à
escorrega por entre os dedos de alguém é luz de 9b, provavelmente a ideia é que os
parte da frustração da vida (16a); no final, pobres, ainda que haja muito a ser visto,
a pessoa leva consigo exatamente (o he- sentem apenas um desejo errante que lhes
braico é enfático) o que trouxe: nada. aumenta a frustração.
5.18-20 A solução é recordada. Quando 6.10-12 Um impasse. Nome se refere a
a apresentação do Pregador a respeito das caráter. O mundo (tudo quanto há de vir),
929 ECLE51A5TE57

o homem e Deus (quem é mais forte que repentina, um estourar de faíscas, mas é de
ele) têm caracteres estabelecidos. O pro- breve duração e facilmente se extingue.
blema apresentado em 1.2,3 não desapare- 7.7-10 Os quatro perigos. Os quatro
cerá. 12 É necessário algo adequado todos obstáculos à sabedoria são: a corrupção
os dias (os poucos dias da sua vida ), mas (7), a impaciência (8), a amargura (9) e a
que seja para a vida toda (sua vida), algo nostalgia (10). O fim (8) tem o sentido de
que possa contender com o enigma da vida "resultado" (como em Pv 14.12). A prova-
(dias da sua vida de vaidade) e propiciar ção tem um resultado final. Colo ou "ínti-
experiência e valores proveitosos (o que mo" (9) se referem ao que é profundo. Se
é bom). As duas perguntas sugerem que o encontrar espaço, o ressentimento toma
povo em geral desconhece tal resposta, e conta da personalidade.
que outras pessoas não podem ajudar fa- 7.11,12 A necessidade de sabedoria.
cilmente. Poucos têm agora uma respos- Em Israel a herança se referia principal-
ta; não há certeza concreta para o futuro. mente à terra. Aqui a ideia está espiritua-
A seção chegou a um impasse. Somente lizada. Assim como a terra, a sabedoria
5.18-20 ofereceu alguma ajuda. também pertence a Deus, mas é concedida
a seu povo. Assim como a riqueza, a sabe-
7. 1-8. 1 O sofrimento e o pecado doria tem poder de proteger, mas em nível
Nessa seção, temos, de início, explicações mais profundo.
possíveis do que o sofrimento nos ensina 7.13,14 A vida sob o olhar de Deus.
(1-6), e, então, sobre seus perigos (7-10). O v. 13 evoca 1.15. A sinuosidade básica
A sabedoria é indispensável (11,12); a vida de nossa vida não é coisa do "destino", é
está nas mãos de Deus (13,14). A segunda ordenada por Deus. 14 Tanto as épocas
metade passa da sinuosidade da vida (13) boas quanto as ruins são propositadas.
para a da humanidade (29). Questões bási- Aquelas produzem alegria; estas, o reco-
cas concernentes à origem, universalidade nhecimento de que a vida está "sujeita à
e perversão do mal são apresentadas em vaidade" (Rm 8.20). As estações oscilantes
uma mistura de afirmações factuais e de da vida nos mantêm dependentes de Deus.
incentivo à ação. Ainda não estamos no céu.
7.1-6 O sofrimento instrutivo. Duas 7.15-18 Os perigos ao longo do cami-
comparações são postas lado a lado (1), e nho. Nos dias da minha vaidade, traduzido
poderiam ser traduzidas por: "Assim como na NVI por: "Nesta vida sem sentido" (15)
a boa fama é melhor do que o unguento é referência à vida dominada pelos pro-
precioso, assim o dia da morte é melhor...", blemas mencionados em 1.2-11. Nabote
Como o caráter interior é mais importante (IRs 21.13) e Jezabel (IRs 18-19.21)
que a fragrância exterior, assim as lições ilustram o cerne do v. 15. Ao deparar com
provenientes de um funeral são mais ins- a injustiça, tende-se ao farisaísmo (o senti-
trutivas que as lições de uma festa de ani- do do v. 16, que poderia ser traduzido por:
versário. O funeral nos faz pensar na vida, "fazer-se de justo") ou à capitulação ao pe-
mas a festa, provavelmente não. Nesse cado (17). O pensamento final do v. 17 po-
sentido, a tristeza faz melhor ao coração deria ser traduzido por: "deves fugir dessas
(3), ou seja, leva nossos pensamentos mais duas atitudes" e se refere aos v. 15,16.
íntimos a fazer avaliações verdadeiras. O 7.19-22 A necessidade de sabedoria.
v. 4a significa que o homem sábio aprende Um apelo à sabedoria é agora algo apro-
com a inevitabilidade da morte, mas (4b) o priado. A sabedoria pode ser mais im-
insensato está cego para as questões espiri- portante que a opinião coletiva de líderes
tuais e se preocupa mais com as festivida- experientes (19). Ela é necessária à luz do
des. 6. A risada do insensato é uma chama caráter pecaminoso da raça humana (20),
ECLESIASTES 7 930

e que se manifesta especialmente em sua Reluzír o seu rosto se refere a um compor-


fala (21). Não se deve dar muita atenção tamento generoso e bondoso (cf Dt 28.50;
à disposição vingativa dos outros. O v. 22 Dn 8.23).
relembra que a nossa própria experiência
nos leva a reconhecer seu caráter frequen- 8.2-9.10 A autoridade e a injustiça
temente falho. Após falar sobre a existência da autorida-
7.23,24 A in acessibilidade da sabe- de (2-9), das injustiças (l0-15) e perplexi-
doria. A sabedoria pode ser necessária dades (16,17) da vida e do absurdo final
(19-22), mas é dificil encontrá-la. O v. 24 (9.1-6), o Pregador mostra uma plataforma
reconsidera a pergunta de 1.12-18. "Quem sobre a qual se apoia em meio a toda com-
a achará?" é uma pergunta retórica. Em plexidade da vida (9.7-10).
termos gerais, a resposta é: ninguém. 8.2-9 A autoridade real. Os súditos
7.25-29 A pecaminosidade da raça reais fazem um juramento de fidelidade;
humana. Perceber os limites de nosso este foi testemunhado e sancionado por
acesso à sabedoria leva-nos a considerar Deus. 3,4 O Pregador adverte contra a
melhor o caráter da humanidade e da rea- deserção do próprio cargo. A pressa em
lidade (25). O meu juízo de tudo (25,27) deixar a presença do rei indicaria falta de
é uma expressão matemática: "a soma de afeição ou deslealdade (v. a frase em Os
tudo". O Pregador tira conclusões sobre 11.2). Nem te obstines pode também sig-
as mulheres (26,28) e os homens (29). Ele nificar "nem persistas". O poder do rei tem
teme certo tipo de mulher (26). A perso- de ser levado a sério. 5 Viver debaixo de
nalidade dela (o coração) tem instinto um regime autocrático envolve estar atento
caçador. Ela é veemente em suas inten- às oportunidades concedidas por Deus (a
ções (cujas mãos são grílhões). A fuga frase lembra 3.1-8) e observar a conduta
não é para todos, mas é uma dádiva de apropriada. Jônatas, Natã e Ester são exem-
Deus (cf 2.26). O v. 28 não é uma afir- plos (ISm 19.4-6; 2Sm 12.1-4; Et 7.2-4).
mação generalizada; ele enfatiza apenas 6,7 Mal refere-se à frustração e à perple-
o assunto referente à sabedoria (como xidade, que são o tema de Eclesiastes, in-
lTm 2.14; Tt 2.2-6) e apenas um tipo de tensificadas pela ignorância das pessoas
mulher. A palavra juízo não se encontra em relação ao futuro. O v. 8 menciona
no hebraico. Podemos comparar o v. 28 quatro limitações às autoridades. Primeira,
com 9.9 para obter outro ponto de vista. ninguém pode aprisionar o "espírito" (ARe;
O v. 29 apresenta uma conclusão sobre vento) de outrem (a nota da NVI esclarece
toda a raça humana, conduzida - quase o contexto). Segunda, a morte está sob o
que exclusivamente nos dias do Pregador controle de Deus. Terceira, nem há tréguas
- pelos homens. Tão-somente nos faz nesta peleja talvez se refira à extensão do
saber que todas as catástrofes da huma- poder do rei. O hebraico, contudo, pode ser
nidade têm uma única origem. O ser hu- traduzido por "nesta guerra" e prosseguir
mano não foi criado neutro, mas sim reto. deste segundo ponto. No conflito com a
A despeito de uma justiça inicial, entrou morte, nenhuma autoridade é capaz de aju-
o pecado. Ele é perverso (astúcias fala dar. Peleja é uma metáfora para a batalha
de um artificio para esquivar-se do que contra a morte que se aproxima. Quarta,
seria, de outra maneira, esperado), deli- nenhuma medida, por implacável que seja,
berado e universal (a palavra homem se trará libertação nesse caso. Em situações
refere a todas as pessoas). quando a lei, a ordem e a força dos go-
8.1 Quem é sábio? Este versículo dá vernantes parecem estar se esfacelando,
sequência ao tema do cp. 7. Quem encon- a ordem "obedeça ao rei" é, mais do que
trará a solução para os enigmas da vida? nunca, apropriada.
931 ECLESIASTES 9

8.9-11 As injustiças da vida. Nova- As palavras ao que teme poderiam ser tra-
mente o Pregador lança mão da observa- duzidas por "ao que evita fazer juramento"
ção (vi), da avaliação (me apliquei), da am- e se referem àqueles que evitam jurar fide-
plitude de visão (tudo isto [...] toda obra), lidade a Deus. O uso da palavra traduzida
mas com um limite (debaixo do sol). O por desvarios em outros contextos sugere
sepultamento era parte do tratamento hon- um estilo de vida impetuoso e desregrado.
roso em Israel; a honra dada aos perversos 9.4-6 Onde há vida, há esperança.
é anômala. A tranquilidade deles e o louvor Esta vida é fundamental, e a morte intro-
que lhes é oferecido parecem injustos. Não duz uma mudança decisiva. Os mortos não
nos faltam exemplos atuais. 11 A demora sabem coisa nenhuma lembra afirmações
do julgamento é malcompreendida. A falta semelhantes em Jó 14.21,22 e 2Rs 22.20.
de intervenção divina se parece mais com O texto não assevera que os mortos estão
indiferença do que com longanimidade. dormindo, mas sim que não têm contato
8.12,13 A resposta da fé. O pecado algum com este mundo, e também que os
do malvado pode ser grande (cem vezes) vivos logo se esquecem dos que partiram.
e sua vida, longa, mas o ponto de vista da A recompensa é recebida durante a vida. O
fé diz: eu sei. (O eu vi do v. 9 evidencia v. 6 menciona algumas experiências terre-
o que todos veem; o eu sei do v. 12 não nas que cessarão.
é uma opinião estimada por todo mundo). 9.7-10 A fé é a solução. O que antes
Por um ângulo, o pecador vive muito (12), fora conselho (2.24-26; 3.12,13,22; 5.18-
contudo o perverso não prolongará os seus 20) é agora um chamado à ação. A base do
dias como a sombra. A contradição suge- contentamento é o favor de Deus. A hu-
re que a perversidade não florescerá além manidade tem de receber o contentamen-
do túmulo, ao passo que o justo, de algum to como uma dádiva de Deus (cf 3.13); é
modo, florescerá após a morte. nesse contexto que Deus aprovará as obras
8.14 O problema é reformulado; a da pessoa. Vestes confortáveis (alvas em
solução é relembrada. Às vezes, ato e re- climas quentes), pele macia (aliviada da
tribuição são totalmente inconsistentes. Se irritação por meio do óleo) e o companhei-
o v. 14 intensifica o problema, o v. 15 evoca rismo de uma esposa (9) estão entre os seus
novamente o que é dito em 2.23,24 e 5.18- aspectos práticos. O casamento menciona-
20, ou seja, a solução do Pregador, que con- do é afetuoso, duradouro, monogâmico. 10
siste em aceitar as dádivas que Deus nos Amparados no contentamento (7), confor-
concede e colocar-nos em suas mãos. to (8) e companheirismo (9), aceitamos as
8.16-9.1 O enigma da vida. O enig- responsabilidades da vida. Tudo quanto te
ma da vida resulta em dias e noites atri- vier à mão se refere ao que está disponível
bulados (16; v. também 2.23). Então, (17) e dentro da capacidade da pessoa. A vida
devemos nos contentar em não saber tudo. deve ser ativa, vigorosa, prática. A morte é
Trabalho árduo, diligência, sabedoria acu- o fim das oportunidades.
mulada, tudo é ineficiente para a descober-
ta da resposta. O assunto da última parte 9.11-10.20 A sabedoria
do v. I é o fato de que ninguém sabe com e a loucura
antecedência que tipo de tratamento rece- Nessa seção, cada unidade está vinculada,
berá. (Este tratamento vem das mãos dos de algum modo, à sabedoria e à loucura.
semelhantes, e não das mãos de Deus). 9.11,12 O tempo e o acaso. Cinco reali-
9.2,3 O tratamento é igual para to- zações estão alistadas no v. 11, porém dois
dos. Os justos não recebem necessaria- fatores limitam o sucesso: o tempo (relem-
mente melhor tratamento que os perversos, brando 3.1-8 e o ensino de que as estações
não importa se diante da vida ou da morte. da vida estão nas mãos de Deus) e o evento
ECLESIASTES 9 932

inesperado (o acaso, segundo o ponto de 10.4-7 A tolice em posições impor-


vista humano). Os tempos de frustração ou tantes. A cólera de um governador não
de morte (o tempo da calamidade pode ser deve levar ninguém a desertar seu posto
uma referência a qualquer um deles) são (seja por pânico, seja por amargura). O
inesperados, mas invencíveis (como suge- conselho do v. 4a é seguido pelas razões
rem as palavras rede e laço). que o sustentam (4b-7). Pode haver lou-
9.13-16 A sabedoria não é reconhe- cura na liderança nacional (5) e estranhas
cida. O pregador lembra um conflito entre inversões de prestígio e posição que frus-
o prestígio (um grande rei) e a insignifi- trarão a sabedoria (6,7). As pessoas que
cância (uma pequena cidade), entre a for- dispõem de recursos (os ricos) podem
ça (grandes baluartes) e a fraqueza (uma carecer de oportunidade; as pessoas que
pequena cidade). O incidente específico dispõem de oportunidade (os príncipes)
é desconhecido, mas similar aos eventos podem carecer de recursos.
de Juízes 9.50-55 e 2SamueI20.15-22. A 10.8-11 A tolice em ação. A índole vin-
última frase do v. 15 pode significar que gativa traz em si mesma seus próprios cas-
ninguém se lembrou do homem pobre de- tigos. A figura de linguagem do v. 8 sugere
pois de ele ter prestado ajuda. Todavia, a maldade (v. Jr 18.18-22). As atividades
frase pode ser traduzida por: "ele poderia mais construtivas (arrancar pedras, rachar
ter salvado a cidade com sua sabedoria". lenha) podem também ser feitas com in-
Isso se encaixa no v. 16: as circunstâncias competência (9) ou a habilidade pode ser
humildes da pessoa pobre estão voltadas arrasada pelos infortúnios do "tempo e do
contra ela, e sua sabedoria é negligen- acaso" (9.11). O v. 10 nos diz que a pon-
ciada. Mas isso não é incentivo para que deração trará mais sucesso do que a força
abandonemos a sabedoria, como se ela bruta; todavia o v. 11 adverte contra o seu
fosse inútil, mas sim que perseveremos oposto: alguém capaz de lidar com uma si-
em sua luz e deixemos o resultado final tuação difícil (o encantador de serpentes)
com Deus. pode errar por falta de prontidão. A negli-
9.17-10.1 A sabedoria desprezada. gência pode anular a habilidade natural.
Se o homem pobre não é ouvido (16), os 10.12-15 A palavra e a obra do tolo.
governantes se fazem ouvir rapidamente Falar é o teste da sabedoria. Palavras em
(17). Os brados dos poderosos podem que háfavor são brandas, apropriadas, au-
sobrepujar a sabedoria. Além disso, a xiliadoras e atraentes. As palavras do tolo
sabedoria é facilmente subjugada (17), o consomem, prejudicam sua reputação
pois um pequeno equívoco deixa o odor (cf o v. 3) e a sua possibilidade de agir
da loucura mais forte que a fragrância da corretamente. "O princípio das palavras"
sabedoria (lO. 1). (13; As primeiras palavras) pode signifi-
10.2,3 A tolice. O restante da seção car a "fonte". A origem das palavras tolas
considera o lado invisível da vida de uma é a tolice inerente ao coração (cf o v. 2).
pessoa, em contraste com seu rosto (7.3), Seu "fim" [as últimas] (incluindo a ideia
mãos (7.26) ou corpo (11.1 O). Visto que ser de "resultado", como em 7.8) é a loucura
canhoto significava ser incompetente (v. Jz maldosa, uma irracionalidade moralmente
3.15; 20.16), ter o seu coração inclinado perversa. O v. 14 indica a arrogância de tal
para a direita significava ser justo, hábil e pessoa; a despeito da quantidade de suas
criativo na vida diária. Ter o seu coração palavras, ela não tem controle sobre o fu-
inclinado para a esquerda significava ser turo. O v. 15 passa da palavra para o tra-
desastrado e incompetente no "manancial balho. As cidades estão à vista de todos,
da vida" (Pv 4.23). Tal incompetência se mas o tolo erra o caminho até do que é
tornará visível. óbvio. A recusa em aceitar a salutar sabe-
933 ECLE51A5TE5 11

doria de Deus sempre deixa as pessoas em 12.1-7, que é uma longa frase. Os antes
sem propósito ou direção na vida. que (...] antes que (...] antes que (12.1,2,6)
10.16-20 A loucura na vida da nação. continuam indicando a realidade da morte
O Pregador contrasta, em nível nacional, o e a necessidade de ação rápida.
caminho do desastre (Ai de ti; 16) com o
caminho da segurança (Ditosa; 17). A pri- 11.1-6 A aventura da fé
meira necessidade é a de um líder maduro. Tudo em 11.1-6 pode ser resumido na pa-
O era pode ser traduzido por "é"; criança lavra "fé". Os navios estavam sujeitos a
é uma palavra que se refere à imaturidade. grandes atrasos, então qualquer empreen-
Em IReis 3.7, Salomão considerou-se ima- dimento comercial que envolvesse o des-
turo, necessitando da sabedoria de Deus. pacho de bens para outros locais requeria
Cujo rei é filho dos nobres (heb. "filho de confiança considerável (1Rs 10.22). Pão
homens livres") é referência a alguém cuja tem o sentido de "bens, sustento" como em
posição social lhe dá ousadia para agir sem Deuteronômio 8.3. 2 O Pregador recomen-
temor. Outra necessidade é o autocontrole. da que agarremos diferentes oportunida-
Comer e beber nas primeiras horas do dia des. Os numerais crescentes sete (...] oito
sugere auto indulgência. Embora ainda se falam de experimentar as rotas existentes
tenha a nação em mente (observe o v. 20), e então acrescentar mais uma. O contexto
o v. 18 concentra-se mais no indivíduo pode ser o da generosidade, em que se re-
dentro da nação. A preguiça do tolo traz a parte o que se tem com o pobre, ou pode
decadência ininterrupta como julgamento ser a continuação da cena do comércio e
(18). Ainda que o riso, o vinho e o dinheiro estar se referindo aos muitos riscos que
não fossem desprezados pelo Pregador, o ameaçam os comerciantes. A despeito de
sentido do v. 19 é que os prazeres não são nossa ignorância acerca do futuro, agora é
a única coisa que devemos vislumbrar na o tempo de agir. 3 Nem uma situação amea-
vida. No hebraico, a ênfase na ordem das çadora (nuvens repletas de chuva), nem um
palavras indica a falência da vida pregui- acontecimento inesperado (a queda de uma
çosa: "pão (...] vinho (...] dinheiro" é o li- árvore) devem impedir nosso entusiasmo
mite do seu horizonte. O v. 20 termina com pela vida. Não podemos controlar os even-
um conselho (usando o tema do v. 4) e de- tos, mesmo quando podemos prevê-los (as
safia o leitor a permanecer calmo nos dias nuvens e a chuva). Nem podemos deter-
de indolência, imaturidade e indulgência minar com clareza como os eventos ocor-
nacionais. "Um passarinho me contou" rerão; a árvore cai onde quer. A seguir há
(20) (i.e., ouvi rumores) é um provérbio de uma advertência contra a procrastinação
várias culturas, conhecido desde os antigos (4), e uma advertência acerca de que não
hititas até, mais tarde, os gregos, e até em devemos ficar aborrecidos pela nossa igno-
nossos dias. rância (5). 6 O Pregador, então, conclama
Tudo que foi dito acerca da sabedo- a uma vigorosa semeadura. Os provérbios
ria e da loucura nos remete novamente a dizem respeito não apenas à agricultura,
2.24~3.22 e à necessidade de vivermos mas à vida em geral.
um dia de cada vez, como bênçãos das
mãos de Deus. 11.7-10 A vida de alegria
A bondade da vida é luz. Ver o sol é estar
11.1-12.8 Chamado à decisão vivo. 8,9 A alegria deve ser duradoura. Ela
Mais do que em outras partes de Eclesiastes, envolve felicidade interior (pelos cami-
esta seção se caracteriza pelo encorajamen- nhos que satisfazem o teu coração) e exte-
to contínuo à ação. Os conselhos chegam a rior (e agradam aos teus olhos). Contudo
um clímax impressionante e ininterrupto há algumas advertências: dias de trevas se
ECLE51A5TE5 12 934

refere evidentemente aos dias de calamida- eterna) e o pranto vêm em seguida. O v. 6


de e juízo; o fato de que tudo [...] é vaidade apresenta duas figuras da morte: em uma,
nos relembra que os desafios da vida conti- um copo de ouro está preso aofio de prata;
nuam, e que suas alegrias vêm apenas com a morte rompe a corrente. A segunda figura
muito esforço. Há uma avaliação futura é a de um cântaro quebrado junto à fonte.
de todas as obras do ser humano. O arti- A morte ocorre quando a roda se desfaz, o
go definido usado diante de "juízo" (heb.) cântaro se quebra, e as águas da vida não
significa tratar-se de uma referência a um são mais renovadas.
acontecimento futuro específico. A busca O v. 7 dispensa o recurso a figuras. A
da felicidade deve ter isso em mente. 10. morte é o retomo do corpo ao pó. O espírito
Na medida do possível, os problemas que (o princípio da vida inteligente e responsá-
afetam o coração e a carne ("corpo", NVI) vel) tem um destino diferente. O Pregador
devem ser evitados. aponta para a vida depois da morte.

12.1-8 A urgência da decisão 12.9-14 Epílogo


O ser humano não deve buscar somente a O contraste com o povo sugere um Pregador
vida de alegrias, mas buscar também o seu respeitado. Atentando e esquadrinhando,
Criador. O v. Ib nos leva a uma única frase compôs muitos provérbios é uma frase que
(em hebraico), que descreve de forma pi- faz referência ao pensamento, ao estudo e
toresca a velhice e a morte. As figuras têm à organização. Duas características da obra
sido interpretadas de maneiras diferentes, do Pregador (10) são: sua proficiência (pa-
mas uma abordagem plausível é: a redução lavras agradáveis) e sua integridade (reti-
da luz (2a) se refere à diminuição da capa- dão e palavras verdadeiras). Aguilhões e
cidade de se alegrar. O retomo das nuvens pregos explicam que seu ensino encoraja
(2b) se refere à sucessão de perplexidades, a ação e é, ao mesmo tempo, memorável.
quando a velhice se aproxima. Guardas Deus é o Pastor; Eclesiastes contém uma
da casa é uma referência aos braços; os reivindicação à inspiração (11). Duas ra-
homens outrora fortes, às pernas; os moe- zões de cautela são: a sabedoria que não
dores da boca, aos dentes; os teus olhos procede de Deus e os projetos exagerada-
nas janelas é uma referência à visão (3). mente ambiciosos (12).
O v. 4 faz várias referências à audição de- O Pregador resume a mensagem cha-
bilitada, ao envolvimento reduzido com o mando a atenção à grandeza de Deus, à
mundo exterior e ao sono irregular. O v. urgência de suas palavras (13) e à inevi-
5 (deixando a representação um pouco de tabilidade do seu julgamento (14). Trata-
lado) fala do medo de altura. Como flores- se de um julgamento que incluirá todas as
ce a amendoeira é uma alusão ao cabelo pessoas e obras, sejam públicas ou ocultas,
embraquecendo. Gafanhoto retrata o andar boas ou más.
desajeitado. Perecer o apetite significa que
o desejo sexual diminuiu. A morte (a casa Michael A. Eaton
CÂNTICO DOS CÂNTICOS

INTRODUÇÃO
Quem foi o autor? Um lapso no relacionamento vem em
O livro declara ser da autoria de Salomão, e seguida (5.2-6.3), mas os dois acabam fa-
não há razão suficiente para duvidar disso. zendo as pazes (6.4-13). Segue-se, então,
Ele é mencionado várias vezes (1.1,5; 3.7, uma bela cena no quarto do rei (7.1-10) e
9,11; 8.11,12), e a referência a "éguas" em mais cenas eampestres (7.11-8.14). Faz
1.9 é interessante já que foi Salomão quem muito mais sentido ver isso como a se-
introduziu os cavalos, vindos do Egito, em quência de uma história do que como um
Israel. Todavia, alguns estudiosos, com base arranjo de cânticos de amor isolados. É im-
em características pessoais e linguísticas, portante observar que aqui não há nenhu-
sugerem outros autores. Eles questionam ma relação sexual antes do casamento; um
se Salomão, com as mil esposas que teve fato significativo à luz do comportamento
durante sua vida, teria escrito sobre o amor moderno.
exclusivo. Deus pode, entretanto, usar as
pessoas mais improváveis para a sua obra. o que o livro ensina?
Se Salomão de fato escreveu o livro, este 1. Cântico dos Cânticos, como o título su-
deve datar de aproximadamente 965 a.c. gere (1.1), declara-se o melhor cântico so-
bre o amor conjugal escrito até hoje. Ele é
Quantos protagonistas superior a toda a poesia amorosa e, portan-
há no livro? to, merece a nossa plena atenção.
Este comentário (bem como a ARA e a NVI) 2. Ele descreve o amor em termos poé-
adota a posição de que o livro conta com ticos, em vez de práticos. Isso contrasta
dois protagonistas: Salomão e a moça su- com a ênfase atual que é dada a mecanis-
lamita. Isso parece mais razoável do que a mos e técnicas de relação sexual, e que tão
opinião de que haja três: Salomão, a moça facilmente degradam o relacionamento.
sulamita e seu marido, a quem ela perma- 3. Deus se interessa pelo apecto físico
nece fiel, apesar das investidas do rei. do relacionamento. Afinal de contas, ele
nos fez, e nos fez para o relacionamento
Qual é a forma do livro? sexual. Como isso é uma parte muito im-
Alguns pensam que o livro seja compos- portante na vida do ser humano, Deus pro-
to por uma coleção aleatória de cânticos videnciou um livro inteiro sobre o assunto.
de amor, originariamente independentes Mas, para manter o equilíbrio, este é um
e posteriormente agrupados. Isso é impro- entre os 66 livros da Bíblia.
vável, pois o livro parece genuinamente 4. Não é errado falar sobre o corpo
seguir uma ordem. Esta principia com os humano (cf 4.1-5; 5.10-16; 6.5-7; 7.1-5).
primeiros dias da moça no palácio real Hoje em dia, provavelmente, não usaría-
(1.1-14), dali seguindo para uma agradável mos exatamente a mesma linguagem que
cena no campo (1.15-2.17). Isso é segui- o livro usa, pois ele foi escrito em um
do das cenas da moça pensando em seu contexto cultural particular. Além dis-
noivo (3.1-5), do dia do casamento (3.6-11) so, algumas descrições podem nos soar
e da noite de núpcias (4.1-5.1). estranhas, mas elas se referem tanto ao
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 936

sentimento evocado pelas figuras quanto às coisas que buscam extinguir as chamas
a seu aspecto físico. do amor, mas o verdadeiro amor nunca é
5. Devemos conhecer o tempo certo de extinto, pois sua fonte está no coração de
Deus para a intimidade sexual. O amor não Deus. Da mesma forma, as coisas mate-
deve ser despertado até que esteja pronto riais nunca podem comprar o amor.
(2.7; 3.5; 8.4). O mundo diz: em qualquer 10. Usado como ilustração, o cântico
tempo, em qualquer lugar. Deus diz: em diz coisas belas sobre o relacionamento
meu tempo, em meu lugar. de Cristo com a sua amada igreja. Somos
6. A instrução familiar é muito impor- lembrados, entre outras coisas, da fortale-
tante (8.8-10). Os irmãos da moça, espe- za do amor de Cristo (8.7); de seu prazer
cialmente, a treinaram para ser um "muro" em ouvir as orações da igreja (8.13); do
que mantivesse longe os intrusos, e não anseio por sua presença (8.14); do convite
uma "porta" que desse entrada a qualquer de Cristo para estarmos em sua companhia
um e, assim, prejudicasse a sua vida. Essa (2.13); dos perigos de não lhe abrirmos a
instrução logrou êxito. porta (5.2-8, cf Ap. 3.20).
7. É muito perigoso um cônjuge deixar Esse livro nos é imprescindível, parti-
de apreciar o valor do outro (5.2-8). Estes cularmente nesta época de "amor livre".
versículos constituem uma advertência Que ele não nos deixe esquecer do profun-
oportuna àqueles que não correspondem do interesse de Deus em nossos relaciona-
às investidas amorosas de seus cônjuges, mentos amorosos, não só nosso com ele,
e mostram o arrependimento causado por mas nossos uns com os outros.
essa negligência.
8. O amor conjugal é exclusivo (4.12). Leitura adicional
Em termos de amor físico, cada parceiro GLEDHILL, T. The message of the Song of
deve permanecer como um jardim fechado Songs. BST. lnter-Varsity Press, 1994.
e uma fonte selada. Cada vida é uma vinha DAvIDsoN, R. Ecclesiastes and the Song
privada para o outro (8.12). Nenhum deles of Salomon. DSB. St Andrew Press/
é um mercado aberto. Westminster/John Knox Press, 1986.
9. As coisas mais insignificantes po- EAToN, M. A; CARR, G. L. Eclesiastes e
dem deteriorar um relacionamento saudá- Cantares: introdução e comentário.
vel (2.15). Ambos parceiros têm de estar SCB. Vida Nova, 1989.
atentos às "raposinhas" que danificam os KINLAW, D. F. The Song of Songs em
vinhedos nos primeiros dias do casamento. GAEBELEIN, F. E. Psalms, Proverbs,
O amor verdadeiro é inextinguível e não Ecclesiastes, Song of Songs. EBC.
tem preço (8.6-8). Ninguém está imune Zondervan, 1991.

ESBOÇO
1.1-2.7 O rei se encontra com a sulamita em seu
1.1
1.2-8 As filhas de Jerusalém e a sulamita
1.9-2.7 O rei conversa com a sulamita

2.8-3.5 A visita do amado e a busca noturna da sulamita


2.8- 17 A visita
3.1-5 A busca noturna
937 CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1

3.6-5.1 Cortejo e cânticos do rei


3.6-11 Um tipo diferente de cortejo nupcial
4.1-5.1 O cântico de amor do rei na noite de núpcias

5.2=?3 A oportunidade per?ida .. _ ... _... ..__...._.__


5.2-8 A presença do amado já se tornou corriqueira
5.9-6.3 A sulamita descreve seu amado para as mulheres de
Jerusalém

6.4-8.14 O amor crescente


6.4-8.4 Fim estada sulamita no palácio
8.5-14 A natureza do verdadeiro amor

ele. Com todas as outras moças ao redor,


como poderá ela usufruir totalmente da
1.1- 2.7 O rei se encontra com a presença de seu amado? E veja para onde
sulamita em seu palácio. ela quer ser levada: para um lugar privado,
ou seja, os aposentos dele. Ali eles podem
1.1 Título fazer amor sem ser perturbados e, assim,
O título afirma duas coisas: a composição desfrutar ao máximo um do outro.
salomônica do livro, e a inexistência de As damas do palácio dizem: Em ti
cântico de amor comparável no mundo. É nos regozijaremos e nos alegraremos, ou
importante, então, que saibamos apreciar seja, no rei. Parecem um Ia-clube diante
este livro e viver de acordo com ele. de uma celebridade atual. Elas estão fas-
cinadas por ele, mas não do mesmo modo
1.2-8 As filhas de Jerusalém que a sulamita. Ela e seu amado têm um
e a sulamita relacionamento único e exclusivo; apenas
2-4 O aspecto físico do amor é apresenta- para eles. Ninguém pode beijar duas pes-
do de início. A moça nada mais anseia que soas ao mesmo tempo, e é assim que deve
os beijos do rei. O beijo é uma expressão ser o amor entre um homem e sua mulher.
de amor dada por Deus. É para isso que Outros podem reconhecê-lo e admirá-lo,
servem os lábios, entre outras coisas. O mas não podem e não devem compartilhar
vinho proporciona prazer físico, mas não dele. Assim também os verdadeiros cren-
pode ser comparado aos beijos que ex- tes são atraídos a Cristo pela beleza do seu
pressam o compromisso total do amado. caráter e do seu amor sacrificial.
Da mesma forma, o perfume desperta os 5-8 A sulamita está constrangida pelo
sentimentos, mas não há nenhum perfume fato de sua pele ser escura em comparação
que se iguale ao nome de seu cônjuge. O à das moças do palácio. Sua pele é como
perfume também pode causar associações; as tendas de pelo de cabrito negro dos
ele pode nos trazer à mente alguma pessoa nômades de Quedar (Kadai), ou como as
em particular. As outras moças do palácio cortinas escuras na tenda do rei. Sua pele
também gostavam do rei, pois ele tinha morena se destaca tanto que ela chega a ser
uma personalidade magnética. (É um bom objeto de curiosidade das outras moças,
testemunho quando os outros reconhecem e pede que não fiquem olhando para ela.
as boas qualidades de seu cônjuge). Leva- Mas de fato sua pele morena é um sinal
me após ti é mais uma expressão do verda- de bom caráter, pois ela trabalhara muito,
deiro amor. Seu desejo é estar a sós com todos os dias, debaixo do sol quente, sem
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1 938

proteção. Intimidada pelos seus irmãos (ou emergem da cultura oriental, devemos nos
meio-irmãos), ela havia labutado nas vi- dar conta de que nem sempre é a aparência
nhas da família, negligenciando a "vinha" da figura que serve de base para a com-
de sua própria pele. A sulamita pede que paração, mas o seu espírito, o sentimento
não a julguem por sua pele, pois a beleza que ela evoca. Aqui as éguas representam
não reside na mera superfície. Sob a pele graça, beleza e nobreza. No grupo de ca-
escurecida há uma doçura que serve de valos que puxava a carruagem, a égua se
exemplo para qualquer jovem moderna. destacava de modo único. O rei se dirige à
7 Seus pensamentos agora se voltam moça como querida minha, que tem o sen-
para o seu amado. Há uma coisa que ela tido de "minha amada". É uma expressão
deseja acima de tudo: estar com ele. Ela que ocorre frequentemente no livro (1.15;
o descreve em termos simples e belos: 2.2,10,13; 4.1,7; 5.2; 6.4).
ó amado de minha alma. Mais tarde, ela o 10 O rei passa da consideração sobre
descreverá em detalhes, mas agora isso é os ornamentos da égua para os ornamentos
suficiente e diz tudo. Trata-se de uma des- de sua amada. Tendo sido uma pobre moça
crição do relacionamento. Assim o cristão do campo, ela não está consciente apenas
pode dizer de Cristo: "Tu és aquele a quem de sua pele bronzeada pelo sol, mas tam-
amo". Ela pergunta: "Seria eu como a que bém de sua falta de joias. O rei, no entanto,
se cobre de véu?" (TB; na ARA: não ande dará um jeito nisso. Devido à sua grande
eu vagando junto ao rebanho). Uma mu- riqueza, ele a adornará com joias dignas
lher que se cobre com véu era uma moça de tal noiva. Do mesmo modo, Cristo, o
perdida (vagando), talvez uma prostituta. noivo rico dos céus, adornará sua noiva, a
Ela está dizendo, então, que ela não quer igreja, com as joias da graça e da verdade.
se parecer como uma dessas mulheres, Neste mesmo instante, ele está preparando
olhando ao redor à procura do próximo sua noiva para o grande banquete de casa-
cliente. Por isso é que ela solicita um lugar mento do Cordeiro.
especial e uma hora certa (meio-dia) para 1.12-14 A sulamita responde. A noiva
se encontrar com ele. fala novamente; desta vez, acerca do seu
As mulheres do palácio, em respos- perfume sedutor. O aroma desempenha
ta a sua pergunta, parecem dizer que ela um papel muito significativo no relaciona-
deve simplesmente ir em busca do amado mento sexual, mesmo no mundo animal.
~ siga o rebanho e você encontrará o pas- Ele pode excitar outros sentidos além do
tor. O cerne do parágrafo inteiro se refere olfato, mas a ideia aqui vai além. O nardo
tanto ao caráter quanto à vontade. Ajovem é um símbolo da profunda atração que o
é totalmente encantadora porque não tem rei sente por ela. Assim como apreciamos
medo do trabalho duro, ainda que isto pre- um aroma gostoso, a sulamita descansa no
judique seu corpo. E o seu único desejo é perfume e na força do amor dele. Ele é ir-
para o seu verdadeiro amado. resistível. Os cristãos são chamados a ser o
aroma de Cristo (2Co 2.14-16).
1.9-2.7 O rei conversa 1.15 O rei fala. O rei não consegue pa-
com a sulamita rar de repetir o quanto ela é linda. Além do
1.9-11 O rei fala. 9 Salomão sabia tudo mais, os cônjuges estão com o olhar fixa-
acerca de cavalos ~ ele possuía cavalos do um no outro, uma parte importante da
até demais (IRs 4.26; 10.26)! Enquanto as intimidade sexual. O íntimo contato visual
mulheres de algumas culturas talvez não pode dar acesso à vida um do outro. Pombas
achassem muito lisonjeiro ser comparadas sugere ternura, pureza e simplicidade.
a uma égua, a sulamita se sentiria bastante 1.16-2.2 A Rosa de Sarom. 16,17 A
elogiada. Em todas essas comparações, que noiva também usa palavras íntimas para
939 CÂNTICO DOS CÂNTICOS 2

responder ao rei. Para começar, ela diz deitados lado a lado, ele com a mão sob a
formoso e depois acrescenta amável. Além cabeça dela, sustentando-a e, sem dúvida,
disso, eles estão deitados sobre a grama, olhando fundo em seus olhos. A desemba-
na expectativa da consumação do casa- raçada franqueza conjugal do livro é mais
mento. Em contato com a natureza, eles se uma vez óbvia ao leitor.
sentem em casa. O nosso leito é de viço- 7 Esse versículo estabelece um dos
sas folhas significa que eles usam a grama princípios fundamentais de um verdadei-
como leito. ro relacionamento amoroso. Ele fala de
2.1 A moça abandonou a inibição ante- genuinidade, realidade e tempo certo. É
rior. O amor do rei lhe renova a autoestima. o pecado que leva o amor físico a ser ex-
Ela se vê como uma flor bonita. É maravi- presso no tempo errado, no lugar errado e
lhoso observar como ser realmente amado com a pessoa errada. Há um tempo certo
pode transformar a visão que a pessoa tem para tudo com Deus. O costume de nosso
de si mesma. Como crentes, somos obje- mundo pecador é incitar e despertar o amor
to do amor infalível de Cristo e belos aos de maneiras falsas e malignas. Do mesmo
olhos dele. 2 O rei responde e complemen- modo, em outra esfera, o evangelista e o
ta o seu pensamento. As outras são como pregador podem se valer de métodos frau-
espinhos se comparadas a ela. Isso pode dulentos e manipuladores que só produzem
ser um tanto rude para com as moças da "conversões" imaturas (v. 2Co 4.2).
corte, mas é o modo de o rei expressar a
singularidade de sua amada. 2.8-3.5 A visita do amado e a
2.3-7 A sulamita pensa em seu incom- busca noturna da sulamita
parável amado. 3 Se ela é um lírio dos
vales, então ele é uma macieira e, como 2.8-17 A visita do amado
tal, oferece-lhe sombra e alimento, pois 8,9 Embora seja verdade que o amor nun-
ela tem necessidade constante tanto de se- ca deve ser estimulado de modo errado,
gurança como de vigor. Quando era mais o verdadeiro amor também se caracteriza
nova, ela havia trabalhado arduamente sob por uma espécie de compulsão. No tempo
o sol escaldante (1.6), mas agora desfruta certo, o amado vem galgando e pulando.
de proteção e segurança ao lado dele. Além Ele mal pode esperar para vê-la de novo.
da segurança, ele oferece doçura e felicida- Ela responde de acordo, bradando a quem
de. Assim como é refrescante comer uma quiser ouvir que ele está a caminho com a
maçã saborosa no calor do dia, assim é o velocidade de uma gazela. Então, por oca-
gozo que ela tem no amor e na proteção sião de sua chegada, ele observa atenta-
do marido. mente pelas janelas, ansiando vê-la, falar
4 A sala do banquete é literalmente com ela.
a "casa do vinho", talvez significando a 10-13 Não há melhor época do ano
"casa do amor". O clima se toma mais ínti- para expressar completamente o amor
mo. A sulamita se aproxima de uma expe- que eles têm um pelo outro. É primave-
riência de alegria e felicidade intensas. Um ra, primavera no sentido exato da pala-
estandarte é um foco de atenção e, aqui, vra. Ele certamente tinha a primavera nos
comunica que ela quer que o mundo inteiro pés ao saltar os montes para encontrá-la.
saiba do seu amor um pelo outro. Ela tem a primavera em seu coração, ao
5,6 Desfaleço de amor significa estar vê-lo aproximando-se e depois observan-
perdido de amor. Ela suspira pelo amor do-a atentamente pelas janelas, com seus
dele e desmaia de felicidade. Ela então olhos ávidos, cheios de amor. Que época
imagina que está nos braços dele. É um para o amor! As flores estão nascendo; os
tipo de solicitação. A imagem é dos dois pássaros cantam suas próprias canções de
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 3 940

amor; as árvores mostram os seus frutos; noite abraçados - antes que refresque o
e o aroma do florescer primaveril faz pal- dia e fujam as sombras com o nascer do
pitar o coração. Não é de admirar que o sol. Sua completa integração espiritual tem
amor tenha sido frequentemente associado agora expressão física.
à primavera. Pois a primavera é o tempo
de nova vida e vitalidade. E não anelariam 3. 1-5 A busca noturna
os cristãos por uma primavera eterna em 1-3 Isso parece um sonho (ou um pesade-
seu relacionamento com Cristo? Do seu lo?), em vista da afirmação inicial - "A
interior deveriam fluir rios de águas vivas. noite toda [00'] em meu leito" (NVI). Trata-
Novos frutos, novas flores e novo perfume se de um sonho caracterizado pelo medo.
devem ser a expressão contínua da nossa Ela está tão unida a ele que não pode su-
vida com o Senhor. portar a ideia de sua ausência, e este temor
Tudo é coroado pelo convite para sair se manifesta em sonho. Todavia o sonho
com seu amado, apenas os dois, para con- termina bem. Alguns fiéis de outrora fize-
sumarem o amor que têm um pelo outro. O ram bom uso desse trecho ao descreverem
convite, para dar ênfase, é feito duas vezes o que tem sido chamado de "a noite escu-
(10,13). ra da alma", o clamor de agonia da pessoa
14,15 O rei fala, e há tanto um aspec- que acha ter perdido a presença de Deus, e
to positivo quanto um negativo no que ele com ela seu senso de filiação e segurança
diz. No positivo, ele busca receptividade (v. SI 42). Quatro vezes nesses versículos
completa por parte da sulamita. Era carac- iniciais a sulamita descreve o seu amado
terístico das pombas ocultarem-se nas fen- como o amado de minha alma. Ela sente
das dos penhascos, de modo que ninguém que perdeu uma parte de si mesma, e com
pudesse vê-Ias nem ouvi-Ias. Seu pedido é anseio intenso ela o procura. Ela faz tudo
para que haja uma exposição absoluta de o que pode para encontrá-lo, e vai percor-
toda a sua pessoa e caráter para ele. É as- rendo a cidade inteira, todas as suas ruas
sim que deveríamos estar, completamente e praças, perguntando a todos com quem
abertos para Cristo. No aspecto negativo, cruza se viram o seu amado. Somente o
ele solicita que qualquer coisa que possa amor profundo age desse modo, assim
prejudicar o relacionamento deles (as ra- como um pai que perdeu seu filhinho.
posinhas) seja aprisionado e eliminado, 4 Ah, que alegria encontrá-lo! Tal ale-
por menor que seja. O amor que um tem gria é expressa por um abraço que parece
pelo outro deve ser puro e autêntico. O atravessar a eternidade. É uma maneira de
amor já está florescendo de modo tão lin- dizer: "Por favor, nunca mais me deixe".
do; que terrível se alguma coisa prejudicar Mas por que ela o leva para a casa de [sua]
esse desabrochar. mãe? Porque era o seu antigo lar, o lugar de
16,17 O clímax se aproxima. De ma- sua segurança, onde sua mãe a cobrira de
neira compreensível e bela, ele começa amor. Após uma noite estranha de procura,
com uma declaração de posse mútua. Eles ela necessitava de um lugar profundamen-
pertencem totalmente um ao outro e, no te conhecido. As jovens recém-casadas vi-
tocante a seu casamento, a ninguém mais. sitam suas mães de tempos em tempos.
Esse é o padrão de Deus para o casamento,
e nesse pertencer há segurança. Ele pasto-
3.6-5.1 Cortejo
reia entre os lírios pode ser uma referên- e cânticos do rei
cia à descrição que fez de si mesma como
"lírio do vale". Ele encontra sua pastagem 3.6-11 Um tipo diferente
naquela que ele ama. O desejo final dela de cortejo nupcial
nesse parágrafo é para que eles passem a O indício de que este é o cortejo nupcial de
941 CÂNTICO DOS CÂNTICOS 4

Salomão é visto no v. 11 - "no dia de seu maravilhosa, mas também bela. O corpo
casamento" (desposório). Mas que corte- é o trabalho artesanal de um maravilhoso
jo! Primeiro, é visto a grande distância. A Criador. Para o amado, a admiração mútua
poeira levantada pelos cascos dos cavalos é o prelúdio do ato amoroso em si. O casal
se assemelha a colunas de fumaça. Então está agora na privacidade de seu quarto,
ele é identificado; trata-se de ninguém expondo-se completa e legitimamente um
menos que o próprio Salomão, e o cânti- ao outro. O rei não consegue se calar a res-
co expressa agradável surpresa. Que todos peito do que vê, pois o amor é total e ama
vejam. Nos casamentos de hoje, todos os tanto o espírito quanto o corpo. Falar do
olhos se voltam para a noiva quando ela corpo dela é uma expressão do seu amor.
inicia a caminhada rumo ao altar, mas aqui O cristão não deve ser tão "espiritual" que
todos os olhos estão em Salomão quando não possa admirar o corpo humano e nem
ele se aproxima com esplendor real para falar sobre ele. A Bíblia condena a luxúria,
desposar sua noiva. O esplendor e tama- e não o amor físico e verbal.
nho do cortejo são apropriados à ocasião. 1 Depois de uma declaração geral, logo
Salomão não poupou despesas nesse dia. de início, sobre a beleza do corpo de sua
Um único padrinho não lhe é suficiente noiva, o rei começa a detalhar sua bele-
- ele tem sessenta, e todos, com pompa e za. A comparação dos seus olhos com os
fausto, vestidos como nobres guerreiros da das pombas não se refere ao seu formato,
terra. É possível, também, que o rei queira mas ao seu brilho e suavidade. Seus cabe-
mostrar à sua noiva a proteção constante los escuros pendem ondulantes da cabeça
que lhe dará, pois cada guerreiro leva a es- aos ombros como um rebanho de cabras
pada à cinta. Os v. 9, I Odescrevem a carrua- negras descendo um monte. 2 Sua boca
gem nupcial. Novamente, tudo é do bom e aberta revela dentes perfeitos em núme-
do melhor. A carruagem é feita sob medida ro e formato, c completamente alinhados.
e com o material mais nobre. Quando o rei Eles também reluzem, como ovelhas re-
chega (11), todas as damas do palácio são cém-tosquiadas. Gêmeos significa que a
convocadas e orientadas a admirá-lo com arcada dentária superior corresponde per-
sua coroa especial de casamento. A coroa feitamente à arcada inferior, sem falhas.
(ou grinalda) era depositada na cabeça do 3 Seus lábios são de um vermelho brilhan-
rei por sua mãe (v. IRs 1.9-31; 2.13-25). te. Fio pode expressar a ideia de finura,
O dia de seu casamento é apropriadamente que é improvável, ou indica que seus lá-
descrito como o dia do júbilo do seu co- bios são bem definidos, como se por um fio
ração. Nem todo noivo pode custear tal delicado. (Pode-se pensar aqui no cuidado
magnificência e esplendor, mas todo mario- de algumas mulheres ao passar batom,
do deve providenciar o melhor para sua es- para evitar manchas e linhas irregulares).
posa e vice-versa. O verdadeiro amor traz As faces dela (ou melhor, "bochechas")
à tona o que há de melhor nas pessoas. Ele têm o belo tom bronze-avermelhado da
aperfeiçoa o caráter. romã, talvez especialmente corada com a
excitação do momento. 4 A torre de Davi
4.1-5.1 O cântico de amor sugere força. Isso está longe de significar
do rei na noite de núpcias que ela tem um pescoço de touro, mas de-
4.1-7 A beleza física da noiva. Este belís- nota a sua estirpe real. A decoração com
simo cântico de amor que Salomão entoa muitos escudos acrescenta a ideia de força
para a sulamita está baseado no wasf, um e coragem. 5 A comparação entre crias de
estilo de cântico ainda usado em casa- gazela e seios não se refere, mais uma vez,
mentos sírios. Ele nos lembra que não só ao seu formato, mas à sensação de os tocar.
fomos criados de forma impressionante e Ambos são agradáveis de acariciar.
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 4 942

6 O rei declara abertamente sua inten- fechado. 9 Além do mais, o noivo assegura
ção de apalpar, acariciar e ter relação se- estar totalmente dominado pelo amor de
xual com ela até o amanhecer, antes que sua noiva. Ele já não pertence a si mesmo,
refresque o dia, e fujam as sombras, res- e nem quer pertencer. Ele está feliz, pois
pondendo, assim, ao pedido da moça em diz: arrebataste-me o coração. (Há uma
2.17. Finalmente chegou a hora certa. O repetição disto em ICo 7.4). Basta um
amor foi deliberadamente incitado e des- olhar dela para que ele fique atordoado. É
pertado (cf 2.7). O tempo de Deus deixa um desamparo delicioso.
tudo absolutamente correto. 7 Por fim, o 10,11 Estes versículos falam de duas
rei declara a perfeição da sua noiva. Este formas de contato físico: carícias e beijos.
parágrafo todo não é necessariamente um A palavra traduzida por "carícias" na NVI
modelo para os amantes, da maneira que se pode significar a expressão física do amor,
apresenta. Algumas pessoas se sentiriam ou seja, a relação sexual. Ela é usada desse
um tanto constrangidas, para dizer o mí- modo em Ezequiel 16.8 e o contexto aqui
nimo, se tais palavras fossem usadas nesse o sugere. O noivo responde com profun-
contexto. O parágrafo explica que a ver- da alegria à iniciativa dela em acariciá-lo.
balização do amor não é inapropriada; que É a melhor sensação física que ele já teve
Deus não apenas ordenou as preliminares, na vida. Os beijos deles também (lI) são
mas também as carícias verbais; que as arrebatadores e íntimos (debaixo da tua
pessoas, especialmente os homens, não são língua). É possível que haja também refe-
animais, e não devem se precipitar para o rência a uma nova terra onde fluem o lei-
ato sem profunda consideração pelo cônju- te e o mel, a "terra" do corpo dela. Assim
ge; que as esposas não são objetos sexuais; como Deus providenciou a terra prometida
e, com tudo isso, afirma que Deus faz belas para toda a nação, agora ele providenciou
todas as coisas no tempo dele. esta mulher para o rei somente.
4.8-15 Convite e resposta. O rei agora 12-15 Aqui nestes belíssimos versí-
passa da admiração da forma física de sua culos está a comparação da noiva a um
noiva para a descrição do relacionamento jardim. 12 Um jardim fechado fala de re-
entre eles. Temos aqui um hino excepcio- lacionamento exclusivo. Somente ele tem
nalmente belo, que canta as promessas e acesso a esse jardim, pois ele está fechado,
delícias do amor e a intensa alegria da con- e com razão, para quem quer que seja. Ela
sumação do casamento (5.1). A descrição é mesma trancou o jardim e colocou uma
feita principalmente em termos de um belo placa: "Entrada proibida". Da mesma for-
jardim. O jardim está repleto de uma gran- ma, ela é como umafonte da qual somente
de variedade de flores, e o aroma que exa- o rei pode beber. Para ele, ela é como uma
lam é muito convidativo. A palavra noiva é nascente que propicia constante vitalidade
usada pela primeira vez. íntima de amor. 13,14 Teus renovos são
8 O cântico começa com um convite expressões diversas referentes à persona-
para que sua amada deixe de pensar em lidade cativante da noiva. O jardim de sua
outras coisas e concentre seus pensamen- vida é exposto de maneira atraente, com
tos nele. Ninguém pode "fazer amor" de uma rica variedade de árvores frutíferas,
verdade se os pensamentos estiverem dis- ervas aromáticas e arbustos. Ele percorre
tantes. Talvez ela também esteja apreensi- o jardim de alto a baixo, parando aqui e
va, nada incomum em uma noiva em sua ali para desfrutar cada faceta da persona-
primeira noite de lua-de-mel. Mas não há lidade cativante de sua noiva. 15 A ideia
"leões" nem "leopardos" aqui, somente a da fonte expande-se para torrentes que
segurança do abraço do noivo. Este não é correm do Líbano. Embora exclusividade
um campo estéril e ermo, mas um jardim dele, o amor da jovem continua crescendo
943 CÂNTICO DOS CÂNTICOS 5

e se expandindo. O amado tem dificuldade eles: minha irmã, querida minha, pomba
em encontrar figuras adequadas para des- minha, imaculada minha. Todas essas ex-
crever esse amor. pressões são íntimas e pessoais, e rumam
16 Da mesma forma que ele a convi- para um clímax. A cena é arranjada para
dou (8), agora é ela quem o convida para um belo retomo ao lar, o que não acontece-
ir ao jardim de sua vida, no sentido mais rá, pelo menos por enquanto. Outras coisas
pleno possível. O jardim está fechado para ocupam a mente da sulamita. O descanso
os outros, mas, certamente, não para ele. físico é mais importante para ela do que re-
A expressão "comer os seus frutos" não ceber o marido. Ela lavou os pés com tanto
é uma expressão moderna. Ela o convida capricho, e agora vai sujá-los mais uma
para fazer exatamente isso. Ele pode esco- vez? Além disso, vai ser um incômodo ter
lher e comer qualquer fruto que queira e o de se vestir de novo.
quanto quiser. A cena toda é um convite à Pouco depois ela muda de opinião, mas
posse completa. aí é tarde demais, pois o marido já se foi.
5.1 Uma noite inteira se passou, a pri- Não dá para acreditar. Ela se aflige e grita
meira noite de casados. Ele aceitou o con- em desespero, mas o silêncio é total. Ela
vite amoroso e apaixonado dela. Este é um sai correndo pelas ruas da cidade tentando
excelente versículo. Depois da noite de achá-lo, porém tudo o que recebe é espan-
amor, eles agora estão deitados, em pleno camento dos guardas. Finalmente, ela su-
contentamento, um nos braços do outro. O plica às filhas de Jerusalém que a avisem
parágrafo termina com palavras de encora- tão logo o encontrem, e que também lhe
jamento e endosso das damas da corte. descrevam a angústia de seu coração.
Talvez tudo isso tenha acontecido al-
gum tempo depois da noite de núpcias, e
5.2-6.3 A oportunidade
perdida seja a primeira indicação de que ela está
desvalorizando o marido, considerando a
5.2-8 A presença do amado sua presença a coisa mais normal do mun-
já se tornou corriqueira do. Aquele prazer inicial que sentiam na
Esta cena é mais provavelmente real, e companhia um do outro esfriou um pouco,
não um sonho, em contrate com 3.1-5. ainda que somente por um momento. Essa
De qualquer modo, estes versículos estão é uma das "raposinhas" (2.15) que preju-
repletos de drama e ensinam uma lição dicam o desabrochar de um novo relacio-
muito importante sobre o relacionamento namento. Isso é uma advertência para a
entre o marido e a esposa. O homem volta esposa e, fazendo-lhe justiça, ela responde
para casa tarde, depois do trabalho, e seu imediatamente. No fundo ela ainda o ama
cabelo está molhado de orvalho. Sem dú- de verdade, pois sentiu o coração bater por
vida, ele estava ansioso tanto pelo conforto ele (4). Esta é uma lição para todos nós, e
do lar quanto pela companhia da esposa, deve ser aplicada ao nosso casamento, bem
e pensando em como seria bom trocarem como ao nosso relacionamento com Cristo,
carícias na cama. Mas no quarto a histó- nosso noivo celestial. Como o seu coração
ria é outra. A esposa tomou seu banhou, deve se entristecer quando ele nos oferece
trocou de roupa e foi para cama. Ela está suas delícias e nós não damos a mínima. O
caindo num sono gostoso quando o marido conforto físico, ou de qualquer outro tipo,
bate à porta. Ele fala com palavras cari- ocupou o lugar do nosso amor por ele.
nhosas e bonitas (talvez as tenha ensaiado Há um detalhe comovente no v. 4 que
no caminho de casa) e dirige-se à esposa reflete o coração do amado. Não há rai-
chamando-a por quatro nomes diferentes, va nem mau humor de sua parte, somente
usando o pronome possessivo em todas uma profunda decepção. Mas o que ele
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 5 944

faz é perfumar a maçaneta da porta com descrição do seu abdome expressa força
mirra, um sinal do amor fragrante e con- e beleza. Não há gordura excessiva; ele é
tínuo por ela. Para sua imensa alegria, ela saudável e atlético. 15 Novamente se su-
o descobre quando a mirra goteja em sua gere força na comparação de suas pernas
própria mão. com colunas de mármores. Elas não se do-
brariam facilmente sob peso algum, mas
5.9-6.3 A sulamita descreve estariam sempre prontas a sustentá-la. As
o seu amado para as mulheres bases de ouro puro são seus pés. Toda a
de Jerusalém aparência dele é como o majestoso monte
9 Neste versículo, as amigas da sulamita do Líbano, ou como o cedro, o rei das ár-
falam. Elas fazem uma pergunta oportuna, vores. 16 Ele é totalmente desejável ("Ele
pois assim dão a ela a oportunidade de ex- é todo maravilhoso") são as palavras ade-
primir a apreciação que tem pelo marido. quadas que ela usa quando tenta resumir
Sua atitude anterior fora uma expressão de quem ele é, e faz um paralelo adequado à
ingratidão; agora, pede-se dela que declare abertura do v. 10.
o quanto ele realmente significa para ela. 6.1-3 1 Para onde foi o teu amado?
E que resposta! Ela nos brinda com mais é a segunda pergunta feita à sulamita em
uma descrição detalhada e deliciosamente sua aflição, e é tão significativa quanto a
poética do homem que ela ama e admira primeira. A pergunta a leva a pensar em
tão profundamente. como ele teria reagido à rejeição temporá-
10-16 Nesta seção, é importante lem- ria que ela demonstrou. Conhecendo o ca-
brar que as imagens usadas nem sempre fa- ráter dele, como ela o conhece, qual será
zem referência a aparência e forma físicas. a reação mais provável? 2 Ela sabe ime-
O autor também tem em mente, em igual diatamente. Não será de mau humor nem
medida, as sensações e impressões que as raiva; ele irá para o seu trabalho, pois o
imagens evocam. O v. 10 traz a declaração trabalho é uma bênção em situações como
geral de abertura. A sulamita descreve seu essas. Porém, mais que isso, ele está apa-
amado em poucas palavras, dizendo que nhando flores para ela. Como a chamou
ele é único e incomparável. Rosado deri- de "lírio do vale", então ele está colhendo
va do hebraico "incandescer, brilhar". O lírios como um presente de amor. Ele não
fulgor de seu caráter brilha em seu rosto. se sente ofendido, apenas decepcionado.
11 Ouro mais apurado é uma referência Ele está oferecendo uma resposta cristã
à nobreza de sua forma e porte ou ao seu à rejeição e retribuindo mágoa com amor
rosto bronzeado pelo sol, emoldurado por (Rm 12.17-21).3. Além de tudo isso, ela
cabelos negros ondulados. 12 Sua força é se sente segura no conhecimento de que
acompanhada de bondade. Assim como a eles ainda pertencem totalmente um ao
pomba está entre as mais dóceis das aves, outro. Um revés temporário não resultaria
assim brilham os olhos dele com intensa em separação permanente. Eles se com-
e apaixonada bondade. O branco de seus prometeram solenemente um com o outro
olhos é resplandecente como uma pomba. para a vida toda.
13 Suas faces (isto é, barba) são delicio-
samente perfumadas. A delícia dos beijos 6.4-8.14 O amor crescente
dele é como a aspiração de muitos perfu-
mes irresistíveis, que gotejam mirra pre- 6.4-8.4 Fim da estada
ciosa. 14 Se traduzirmos "mãos" aqui, em da sulamita no palácio
vez de braços, a referência será aos dedos, 6.4-10 Elogios adicionais. Estes versícu-
que são, individualmente, como perfeitos los fazem mais uma descrição da sulamita.
cilindros de ouro, ricamente decorados. A Em vez de saudá-la com uma repreensão
945 CÂNTICO DOS CÂNTICOS 7

pelo seu comportamento, o rei a cobre de é primavera de novo no relacionamento


elogios. Segue-se um padrão semelhante deles. De repente, ela é colocada na carrua-
às descrições anteriores, iniciado com uma gem do rei, sem dúvida nenhuma a mais
declaração geral. Ela é nobre e graciosa, importante da frota, e encontra-se via-
uma combinação magistral. jando ao lado dele, perante todo mundo.
4 Tirza, que significa "deleite", "pra- É uma exibição pública de reconciliação
zer", foi a capital do Reino do Norte des- total. Eles estão juntos novamente, e uma
de o tempo de Jeroboão até o reinado de nova primavera começou. Tudo é flores-
Omri (1 Rs 16.23), e era uma cidade bo- cência, e "raposinha" alguma prejudicará
nita. Formidável como um exército com o seu florir (2.15).
bandeiras fala da personalidade impo- 13 As mulheres do palácio seguem a
nente da sulamita. 5a Quando ela lhe di- carruagem, chamando por ela, queren-
rige o olhar, ele fica deslumbrado. Talvez do rever em seu semblante o eloquente
ela esteja chorando, profundamente triste, olhar de júbilo pelo relacionamento res-
por tudo que fez. taurado. Na segunda metade do v. 13, o
5b-7 Estes versículos são, de certa ma- rei expressa seu deleite em ver como as
neira, uma repetição de 4.1,2. As mulheres mulheres do palácio estão absortas no di-
não se cansam, necessariamente, de ouvir vertimento do casal. Ele diz que é como o
os mesmos elogios. Ela não diz: "Ah, você entusiasmo de quem assiste a uma dança
já disse tudo isso antes". Assim ele fala animada, exuberante.
novamente de seus longos cabelos negros 7.1-9a Uma descrição muito íntima.
ondulados, de seus dentes harmoniosos e Estes versículos fornecem a lista definitiva
faces rosadas. Seria tudo isso uma lem- dos belos elogios que o rei faz à amada.
brança de sua noite de núpcias, quando Temos aqui o auge do processo de recon-
ele usou as mesmas palavras? 8,9 Novas ciliação, comparável, de modo interes-
coisas, porém, são acrescentadas, e se en- sante, ao trecho que descreve sua noite de
caixam bem na situação. Que a sulamita núpcias (cp. 4). Algumas coisas podem
fique certa de que ninguém ainda se iguala ser observadas. Primeira, que a intimida-
a ela: mas uma só é a minha pomba. Que de sexual pode ser uma provisão de Deus
mais pode ele dizer? O perdão é completo; para a reconciliação completa. Segunda,
há certeza total de que seu amor por ela que essa descrição é ainda mais íntima que
não mudou nem mesmo um pouquinho. 10 a da noite de núpcias. Pela primeira vez
As virgens da corte acrescentam um toque ele fala dos seus quadris ("coxas", NVI) c
maravilhoso ao ecoarem os sentimentos do ventre ("cintura", NVI). Terceira, talvez ele
rei. Alva, lua, sol e exército ['1 de estrelas] queira lembrá-la da primeira noite que pas-
falam todos de luz, resplendor c glória. saram abraçados e assim enfatiza que nada
Talvez toda a personalidade dela tenha sido mudou. A descrição vai dos pés à cabeça.
iluminada pela resposta de amor c perdão "Desde o solado dos seus pés até o topo de
da parte dele, e contrasta de modo absoluto sua cabeça, você é incomparável", ele diz.
com a escuridão da noite no cp. 5. 1 Até os pés (passos) podem ser belos
6.11-13 O jardim das nogueiras. Estes aos olhos de quem ama, e não menos belos
dois versículos são difíceis de interpretar, são os pés daqueles que pregam o evange-
especialmente porque o hebraico do v. 12 lho (ls 52.7). As joias feitas por um artífi-
não está totalmente claro. Provavelmente ce-mestre exprimem a perfeição da beleza
é a moça que está falando aqui. (Alguns da amada. Suas pernas têm formas per-
sugerem que é o amado). Ela percorre o feitas, c se movem de maneira totalmen-
jardim das nogueiras, onde acredita que o te graciosa. 2 Toda a região do abdome é
amado está, e descobre maravilhada que tão desejável como uma refeição acom-
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 7 946

panhada de vinho delicioso. Ele mal pode dormem o sono profundo e satisfeito dos
esperar para se satisfazer. Parece que os amantes verdadeiros.
homens orientais daquela época não gosta- 7.9b-8.4 A resposta afetuosa da
vam de mulheres magras! 3 A comparação amada. A sulamita aproveita a metáfora
dos seios às gazelas se baseia no toque e do vinho utilizada pelo marido e lhe diz
percepção; ambos são delicados. 4 Seu que quer ser tudo o que ele deseja, inclu-
pescoço é tão forte e majestoso como uma sive no beijo apaixonado que trocam. A
torre de marfim. Isso dá a impressão de um expressão entre seus lábios e dentes mos-
tipo correto de autoconfiança; ela mantém tra o quão intensa é essa paixão. 10 Este
a cabeça erguida, não há desânimo nela. versículo sintetiza mais uma vez o seu re-
Sem dúvida, as piscinas de Hesbom eram lacionamento (cf 2.16 e 6.3). Essa é uma
límpidas e tranquilas, e assim são os olhos declaração da extrema segurança que eles
dela. Fitá-los é agradável e revigorante. A encontram um no outro. Dessa vez, entre-
torre do Líbano, que olha para Damasco tanto, ela acrescenta a expressão: e ele tem
indica força, altivez. A Síria, com sua capi- saudades de mim. É no desejo e paixão dele
tal Damasco, era um inimigo constante de que ela encontra tal segurança. Semelhan-
Israel. Padrões de beleza variam de lugar temente, é no amor imortal de Cristo por
para lugar e de época para época, e talvez nós que encontramos a nossa segurança. O
narizes protuberantes fossem considerados próprio Deus garante: "Tomar-vos-ei por
bonitos naquele tempo. meu povo e serei vosso Deus" (Êx 6.7).
S O monte Carmelo era conhecido por 11 Agora, pela primeira vez, a sula-
seu aspecto nobre e belo. O rosto da su- mita toma a iniciativa no relacionamento
lamita era o ápice e coroa de toda a sua e sugere que eles passem mais um dia e
beleza. Ser atraído e cativado pelo cabelo uma noite no campo fazendo amor. Num
de uma mulher é comum na poesia, 'daí relacionamento tão seguro assim, a esposa
a frase: um rei está preso nas tuas tran- não tem medo de que o marido a considere
ças. 6 Cada parte graciosa de seu corpo muito "atrevida". O v. 12 fala da primavera,
é chamada de "delícia", não apenas em si mas antes também era primavera. Será que
mesma, mas pelas sensações deliciosas o relacionamento deles é tão maravilhoso
que produz no rei. (É como provar um a que a primavera lhes parece eterna? E não
um os bombons de uma caixa inteira, só é este o relacionamento ideal de Cristo e
que muito melhor). sua igreja? Deveria haver flores sempre;
7-9 Todo o seu porte dá a impressão deveria haver sempre a promessa de novos
de uma palmeira: alta, esbelta e graciosa. frutos (cf Jo 7.38; 15.1-11) 13 Mandrágo-
Os destaques em tal palmeira são os seus ras são plantas que além do aroma atraente
deliciosos cachos, os seios dela. Ele diz também têm propriedades supostamente
que os acariciará e apalpará delicadamen- afrodisíacas. Na verdade, a amada está di-
te: pegarei em seus ramos. Dos seios ele zendo: "Vamos buscar a ocasião propícia
passará aos lábios da amada, acrescen- para fazer amor". Não somente isso, to-
tando o vinho aos cachos. Os teus beijos davia, pois ela se mostra previdente, ten-
("boca", NVI, ACF; "paladar", ACF), lit. "pa- do armazenado tanto o fruto novo como o
lato", sugere o mais íntimo dos beijos. A seco para a ocasião. Isso nos traz à mente
Sulamita o interrompe e convida a fazer o duas coisas agradáveis sobre o nosso rela-
que ele tanto anseia. "Beije-me o quanto cionamento de amor com Cristo e uns com
você quiser", ela diz. Após a consumação, os outros. A primeira, que as expressões
eles adormecem nos braços um do outro. de amor tanto expressam modos antigos,
Lábios e dentes talvez se refira a "lábio dos testados e aprovados quanto exploram o
sonolentos" (v. NVI), indicando que eles (ainda) desconhecido. A segunda, o verda-
947 CÂNTICO DOS CÂNTICOS 8

deiro amor sempre inclui um planejamento entre seus pais, agora há um segundo, que
altruísta. Isso reflete o coração de um Deus é o nascimento do seu amor verdadeiro
que armazenou tais coisas boas para aque- pela sulamita. A palavra "despertar" deve
les que o amam (Jo 14.3; IPe IA). estar associada a "acordar" no v. 4. Ela
8.1-4 Aqui a esposa canta para si mes- oferece o despertar genuíno. O tempo e as
ma acerca do seu amado. No Israel antigo, circunstâncias não podiam ser mais certos;
não era costume as mulheres expressarem não há nenhuma transgressão sexual aqui.
seu amor em público, nem mesmo o amor Tais princípios devem continuar guiando
entre marido e esposa. É por isso que ela todo e qualquer relacionamento sexual.
gostaria de ser irmã dele, para beijá-lo 6,7 Prossegue-se agora na definição
sempre que quisesse, mesmo no mercado, do verdadeiro amor, havendo várias li-
sem ser desprezada por ninguém. Mas ela ções importantes aqui. O selo é um sinal
também conhece a importância do auto- de posse visível a todos. A sulamita dese-
controle e da "aparência das coisas". Ela ja que seja óbvio a todos que ela pertence
aprendeu isso com sua mãe ("aquela que completamente a ele e a mais ninguém (cf
me ensinou", NIV, em inglês). Ela não se 2Tim 2.19). O selo deveria estar em dois
esqueceu da criação sensata e íntegra que lugares: no seu coração (o símbolo dos sen-
recebeu na infância e, portanto, não é de timentos dele) e no seu braço (o símbolo
surpreender que queira levar o marido para da força física dele). Ele a possuiria, ama-
o antigo lar, onde estão suas raízes. Os pais ria e protegeria completamente. Além do
ainda têm obrigação de ensinar seus filhos mais, o verdadeiro amor é tão forte quanto
sobre o namoro, embora eles não compreen- a morte, no sentido de que ambos são irre-
dam tudo no momento. 3 Novamente ela sistíveis. Assim também, o amor de Cristo
pensa, cheia de alegre ansiedade, no próxi- a tudo conquista. Paulo descobriu que o
mo encontro deles, quando se unirão num amor de Cristo o compelia irresistivelmente
abraço íntimo e cheio de amor, não em pé, (2Co 5.14). O verdadeiro amor tem certo
mas deitados, pois o seu braço esquerdo ciúme que é um reflexo do ciúme de Deus
está debaixo da sua cabeça. Este uso da (v. Êx 20.5; 2Co 11.2).A esposa tem todo o
imaginação é uma parte genuína do amor. direito de ter ciúmes se o marido começar a
Isso é algo bem diferente das fantasias em se envolver com outra mulher. O ciúme fere
que a mente se permite pensar languida- e o faz de modo cruel, e essa é a razão de
mente em relações físicas ilícitas. O v. 4 ele ser duro como a sepultura. Mais ainda,
repete o refrão de 2.7 e 3.5. o verdadeiro amor é um fogo inextinguível
como brasas de fogo (cf Êx 3.2). Veemen-
8.5-14 A natureza do tes labaredas pode ser entendido como "a
verdadeiro amor própria chama do Senhor" ("labaredas do
A introdução dessa descrição do verdadeiro Senhor", NVI). O verdadeiro amor tem sua
amor está em forma de pergunta. A descri- fonte em Deus, pois Deus é amor. Esse tipo
ção mostra o casal num agradável passeio de amor tem um poder sobrenatural que ne-
no campo, onde eles se sentem totalmente nhuma força humana consegue extinguir.
em casa, e a sulamita é vista apoiada no A humanidade tentou extinguir tal amor
corpo forte do marido enquanto cami- no Calvário, mas seu esforço foi inútil. As
nham. "Quem é este homem?", o autor águas do pecado, morte, sheol, Satanás e
pergunta. A esposa é quem deve responder. toda a rebelião da humanidade não podem
Para começar, ela nos faz lembrar a oca- matar o amor de Cristo pelo mundo. Por
sião em que eles fizeram amor no mesmo fim, o amor verdadeiro não pode ser com-
lugar onde ele nasceu. Assim como houve prado. O amor desdenha a oferta, embora
o primeiro nascimento, resultante do amor o preço oferecido seja extremamente alto.
CÂNTICO DOS CÂNTICOS 8 948

o convite do evangelho é para vir e com- A palavra confiança pode ser traduzida
prar sem dinheiro (Is 55.1). por "paz" ou "completude" (v. ARe). Deus
8-10 Este é um parágrafo muito signi- sabe que somente na obediência à sua lei,
ficativo sobre o tema de se guardar a de- nesta e em outras áreas, encontraremos
monstração do amor físico para o tempo nossa verdadeira saúde.
certo. Não é um tema novo no livro, mas 11,12 O autor continua a sequência de
ocorre agora de um modo díferente. Ele pensamentos sobre a natureza inestimável
retrata uma família cuidadosa e leal que do amor. Estes versículos são um tipo de
protegeu a irmã caçula do mau uso do parábola. Salomão era dono de uma vinha
sexo. Desde a infância, antes do seu desen- em Baal-Hamom que ele entregou a alguns
volvimento físico (Temos uma irmãzinha guardas por mil siclos de prata cada; os
que ainda não tem seios), os irmãos mais guardas, por sua vez, tiveram um lucro de
velhos, em particular, ensinaram-na e a in- duzentos siclos. Em contraste, a vinha da
centivaram a guardar-se para aquele com vida e o caráter da sulamita não estão no
quem se casaria. No dia em que for pedida mercado. Ninguém invadirá a sua proprie-
refere-se à idade apropriada para o casa- dade, por preço nenhum: A vinha que me
mento. Até lá, a jovem tem duas opções: ser pertence está ao meu dispor.
um muro, resistindo a todas as investidas 13,14 Esse cântico ímpar termina com
do falso amor, ou uma porta, consentindo uma nota belíssima. Primeiro, o amado
que qualquer homem vença suas defesas e pede para ouvir a voz de sua amada. Talvez
a leve a perder a virgindade antes do tempo ela esteja conversando com as suas amigas
de Deus. Isso tudo é unificado pelo refrão e haja um burburinho generalizado. O rei
não acordeis, nem desperteis o amor, até quer que sua voz se destaque dentre as ou-
que este o queira (4). Se ela se disciplinar tras (cf 2.14). Podemos comparar o desejo
a si mesma, seus irmãos a recompensarão do rei às palavras do Pai em meio à agita-
com adornos. Se ela ceder e fizer pouco ção do mundo: "Este é o meu Filho amado;
caso da sua família, eles serão ainda mais a ele ouvi" (Me 9.7). Segundo, a sulamita
firmes na proteção e a cercarão com tábuas pede ao seu amado que ele faça amor com
de cedro. O v. 10 indica que ela corres- ela mais uma vez (cf 2.17). Nesses pedidos
pondeu totalmente ao ensino recebido. ouvimos o desejo de Cristo, o noivo espi-
Ela alcançou a maturidade física e mental ritual, de ouvir as orações de sua noiva; e
(meus seios são como suas torres) e per- o desejo da igreja de manter comunhão es-
maneceu um muro. Fui tida por digna da treita e íntima com o seu Senhor: "Amém,
confiança do meu amado significa que ela vem Senhor Jesus" (Ap 22.20).
encontrou a integridade verdadeira no re-
lacionamento exclusivo com o seu marido. John A. Balchin
OS PROFETAS

o restante do AT consiste nos profetas. Os vida e ministério dos profetas que devem
livros dos profetas em geral não estão or- ser levadas em consideração quando lemos
ganizados em sequência histórica no AT. O esses li vros.
quadro a seguir mostra datas prováveis da

Os profetas em ordem histórica

Samuel 1050-1000 Saul, Davi Unido


Elias 870-852 Acabe, Acazias Israel
Eliseu 852-795 Jorão, Jeoás Israel

Micaias 853 Acabe Israel

Joel 810-750 Joás - Uzias Judá


Amós 760 Jeroboão II Israel
Jonas 760 Jeroboão II Israel
Oseias 760-722 Jeroboão 11- Oseias Israel

Isaías 740-700 Uzias - Ezequias Judá


Miqueias 740-687 Jotão - Ezequias Judá
Sofonias 640-610 Josias Judá
Naum 630-612 Josias - o exílio Judá
Jeremias 626-587 Josias - Jeoacaz Judá
Jeoaquim - Joaquim Judá
Zedequias Judá
Habacuque 600 Jeoaquim Judá

Daniel 604-535
Ezequiel 582-570

Obadias ? 587
Ageu ? 520
Zacarias ? 520
Malaquias ? 450
ISAíAS

o contexto histórico nação em 722 a.c. Para Judá, que agora


Isaías viveu numa época crítica da história fazia fronteira com uma província cosmo-
da sua nação, a segunda metade do século polita da Assíria (2Rs 17.24), no território
VIII a.c., período que testemunhou o surgi- em que Israel tinha existido, não havia
mento da profecia escrita na obra de Amós, encorajamento algum para movimentos
Oseias, Miqueias e na dele mesmo, mas patrióticos, muito pelo contrário.
também assistiu à queda e ao desapareci- Mas foi um patriota que sucedeu o
mento da maior parte de Israel, as dez tribos rei Acaz. Ezequias (v. sua cronologia
do Reino do Norte. (Veja página anterior). em 2Rs 18.1) era um agitador em quem
Em 740 a.C., a morte do rei Uzias a fé e a impaciência se revezavam para
(6.1) marcou o final do último período de atiçar a chama. Grande parte da energia
tranquilidade no qual Judá e Israel tinham de Isaías foi dedicada a mantê-lo longe de
desfrutado de um período de 50 anos de intrigas com a Assíria (v. comentário de
paz, sem agressões de grandes proporções. 14.28-32; 18.1-7; 20.1-6). No final, esse
Isso logo seria mera lembrança. O restante conflito chegou a um ápice amargo entre
do século seria dominado por reis assírios o profeta e uma facção pró-Egito na corte,
predadores: Tiglate-Pileser III (745-727), que está implícito nos cp. 28-31. A con-
Salmaneser V (726-722), Sargão 11 (721- sequência foi a revolta de Ezequias contra
705) e Senaqueribe (705-681). As suas am- a Assíria (cp. 36; 37), que fez cair sobre
bições eram por um império e não somente ele o poder de Senaqueribe em 701 a.c.
por despojos; em busca disso eles desarrai- e deixou o pequeno reino de Judá quase
garam e transplantaram populações intei- prostrado, apesar do livramento milagro-
ras, castigando qualquer sinal de rebelião so de Jerusalém.
com represálias imediatas e terríveis. Os assuntos que Isaías tratava com
Em 735, Jerusalém sentiu a onda de Ezequias nunca ficaram restritos a ques-
choque da aproximação deles, quando os tões de prudência política, nem ao futuro
exércitos de Israel e da Síria chegaram imediato; e o último encontro com o rei
para forçar o rei Acaz a aceitar uma coa- identifica com precisão a diferença en-
lizão anti-Assíria. O confronto do rei por tre esses dois homens de fé. Em 39.5-7,
Isaías (cp. 7) trouxe à luz a questão crítica Isaías aponta para o futuro distante do ca-
desse período, a escolha entre a fé serena e tiveiro babilônico, resultado da desobedi-
as alianças desesperadas. A decisão do rei ência do rei, mas a única reação do rei é
de apostar tudo, não em Deus, mas na pró- alívio: "Haverá paz e segurança nos meus
pria Assíria, gerou a rejeição dele e da sua dias" (39.8). Era um horizonte compreen-
linhagem, e resultou na profecia de um rei sível para um monarca; impensável para
perfeito, Emanuel, que surgiria do tronco um profeta. Assim, a profecia segue para
derrubado da dinastia davídica. a conclusão na seção final.
Israel pagou pela sua rebelião com a Os eventos sugeridos nos cp. 40-55
perda da região do norte ("Galileia"; 9.1) são identificados de forma inconfundí-
em c. 734 a.c. e da sua existência como vel pelo nome de Ciro (44.28; 45.1), o
951 ISAíAS

que nos leva de imediato para o mundo Autoria


do século VI. Ciro, rei de Anshan, no
sul da Pérsia, tinha tomado o controle o ponto de viste tradicional
do Império dos Medos em 550 a.c. e a e neotestamentário
maior parte da Ásia Menor em 547. Isso Até a época moderna, Isaías era uni versal-
o colocou numa posição de domínio con- mente considerado uma unidade, produto
tra o Império Babilônico (onde os judeus do profeta do século VIII a.c. de mesmo
estavam cativos desde antes da queda de nome. Um rolo único foi usado para todo
Jerusalém em 587). Esse império estava o livro, como aprendemos não somente de
dividido e enfraquecido a essa altura, es- Qumran, mas de Lucas 4.17 (onde a leitu-
tando Nabonido, o rei, ausente da capital ra escolhida foi de um dos últimos capítu-
(onde o seu filho Belsazar estava no con- los). A mesma pressuposição de unidade
trole em seu lugar) e em desacordo com já é evidente em Eclesiástico 48.22-25,
os sacerdotes. Em 539, Ciro derrotou o escrito aproximadamente 200 anos antes
exército babilônico no campo, e suas for- do período do NT. O NT concorda com
ças entraram na capital, Babilônia, sem isso plenamente: ver, e.g., João 12.37-41;
combate. Em harmonia com a profecia Romanos 9.27-29; 10.20,21.
de Deus em Isaias 44.28, ele repatriou os
judeus (entre outros povos subjugados) A crítica moderna
com orientações para que reconstruis- À parte de uma tentativa de questiona-
sem o seu templo (Ed 1.2-4; 6.2-5). A mento pelo estudioso judaico medieval
sua própria inscrição no Cilindro de Ciro Ibn Ezra (cujas observações em outro lu-
(agora no Museu Britânico) revela que gar, no entanto, endossam o ponto de vista
essa era a sua política, a fim de recrutar tradicional), a ideia de uma autoria múlti-
os bons oficiais dos deuses que ele de- pla de Isaías surgiu somente nos últimos
volveu aos seus santuários (v. comentá- dois séculos. Sua forma mais simples e
rio de 41.25). persuasiva atribui os cp. 1-39 a Isaías e
Um número considerável de judeus 40-66 a um profeta anônimo que viveu
retornou, mas logo entraram em choque entre os exilados do século VI na Babilônia.
com os povos da terra quando rejeitaram Sugere-se que, por ser uma continuação
a ajuda deles para a reconstrução do tem- apropriada de Isaías, essa obra foi anexada
plo (Ed 4.3). Toda a obra foi interrom- à de Isaías, e, por ser anônima, a certa altu-
pida durante aproximadamente 20 anos, ra perdeu a sua identidade distinta.
até que Ageu e Zacarias inspirassem uma Os motivos principais desse ponto de
nova tentativa em 520, e a obra foi con- vista e de suas principais variantes são, em
cluída em 516. Muitos comentaristas con- primeiro lugar, o que tem sido chamado de
sideram essa situação, com suas tensões "analogia da profecia", i.e., o fato de que
e preocupações com Jerusalém e o tem- os profetas em geral se dirigem aos seus
plo, o pano de fundo pressuposto nos cp. contemporâneos (e as pessoas endereçadas
56-66. Neste comentário, no entanto, nos cp. 40-66 são predominantemente
o fio que une os últimos capítulos é te- exilados); e, em segundo lugar, o estilo, o
mático e não histórico; a preocupação já vocabulário e a ênfase teológica distintivos
não era com a Babilônia, mas com a ter- dos cp. 40-66. Esses motivos serão con-
ra natal e a cidade-mãe, tanto como eram siderados mais tarde.
na sua imperfeição quanto na medida em Mas é verdade que nenhum estudioso
que apontavam para além de si mesmas, defende essa teoria nessa forma simples,
para o novo céu e a nova terra, e para a pois, pelos seus próprios princípios, ela
"Jerusalém lá de cima". exige ser muito mais desenvolvida. Uma
ISAíAS 952

análise típica mostra os cp. 1-39 (a por- único autor não é pensar em dois autores,
ção do livro atribuída a Isaías) subdividi- mas em algo como uma dezena deles.
dos em uma coleção básica de oráculos do É apropriado acrescentar que a ênfase
século VlII escritos pelo profeta, suplemen- dos estudiosos críticos recentemente tem
tada por material de discípulos posteriores sido na unidade dentro dessa diversidade.
de diversos períodos (e.g., cp. 13 e 14 do Os complementadores são vistos como
exílio babilônico no século VI; cp. 24-27 uma escola de discípulos, imbuídos do
talvez do final do regime persa, no século pensamento de Isaías e profetizando no es-
IV). Esse material anexado, incluindo mui- pírito dele às novas gerações. Assim, o seu
tas contribuições mais breves, pode chegar ensino, de acordo com esse ponto de vista,
a 250 versículos dos cp. 1-39 (i.e., em continuou a produzir ramos de novo cres-
tomo de um terço); e algumas das inser- cimento durante séculos depois da morte
ções mais extensas são elas mesmas ana- dele, e o seu nome foi apropriadamente
lisadas como compostas, com sua própria ligado à família de escritos gerados pelos
história de desenvolvimento. seus oráculos.
Os cp. 40-66 são geralmente subdivi-
didos em duas seções principais: Deutero- Uma avaliação dos argumentos a
(i.e., Segundo-) Isaías (40-55; material favor da autoria múltipla
exílico; digamos c. 545 a.Ci) e Trito- Diante da forte tradição de unidade da au-
(Terceiro-) Isaías (55-56; pós-exílico; toria, o ônus da prova está com os que di-
digamos c. 520 a.C.). O primeiro desses videm o livro. Seus critérios principais não
dois é em geral considerado uma unidade, são invulneráveis.
obra de um "grande e desconhecido" dis- 1. "A analogia da profecia". Não há
cípulo de Isaías; mas a segunda parte (cp. como negar que, se os cp. 40-66 são de
55-66) é com maior frequência conside- fato de Isaías, a profundidade e a extensão
rada obra de seguidores do segundo pro- da sua imersão numa época distante tomam
feta, de diversas escolas de pensamento, essa experiência altamente excepcional.
que interpretaram a sua mensagem para Mas, em primeiro lugar, desaprovar tudo o
a geração seguinte. Os comentaristas di- que transcende analogias conhecidas é co-
vergem em tomo do número de situações locar a analogia acima da razão, e de ma-
históricas e de partidos (e.g., moralista, neira secundária discordar do Deus inova-
institucionalista, patriótico, universalista) dor desses capítulos (43.18). Em segundo
identificáveis aqui, e consequentemente lugar, isso exagera nesse caso o que é uma
na sua análise de Trito-Isaías; mas ao me- diferença de grau e não de espécie entre
nos quatro fontes são comumente distin- estes capítulos e o restante. Os cp. 1-39
guidas nos seus onze capítulos. contêm muitas digressões sobre um futuro
É importante perceber que essa galáxia reconhecível que têm sido atribuídas criti-
sugerida de autores e complementadores camente, na maioria dos casos, a editores
não é totalmente arbitrária. Uma vez que posteriores e não a Isaías, isso com base
os critérios iniciais para a divisão do livro nessa mesma "analogia da profecia" (que
foram aceitos, não podem ser descartados assim se revela baseada em textos adapta-
depois do primeiro corte; eles precisam dos para lhe servir de apoio). Além disso,
ser usados de forma coerente (com os algumas dessas profecias falam (como o
resultados que vimos) ou não usados de fazem os cp. 40-66) como se estivessem
forma alguma. Assim, apesar da simpli- falando do interior do futuro que elas des-
cidade atraente de uma suposta obra de crevem, e.g., os verbos no tempo perfeito
dois volumes (por Isaías e um sucessor), a do tão conhecido oráculo do nascimento
única alternativa viável à hipótese de um de 9.2-6, ou na visão do cativeiro e julga-
953 ISAíAS

mento em 5.13-16 (apesar dos verbos no autoria de Isaías se esses capítulos fossem
futuro na NVI). Em mais detalhes, Jeremias dirigidos a uma situação e público compa-
comemora a ruína da Babilônia como se ráveis aos dos cp. 1~39. Mas se de fato
fosse do ponto de vista da geração final vêm da mão de Isaías, são o produto da sua
dos cativos, agora apressando-os para que idade avançada, uma mensagem escrita, e
escapem (Ir 50.8; 51.45; c/ Is 48.20) ~ ao não pregada, concentrada em confortar e
passo que ele tinha proibido tais pensamen- não advertir, e dirigida a uma geração futu-
tos a seus contemporâneos propriamente ra com rara conexão com a sua própria ge-
ditos, cujo tempo e papel eram diferentes ração. Temos aqui diferenças imensas. Tal
(Jr 29.4-14). profecia pode parecer uma improbabilida-
Ainda mais apropriado ao nosso argu- de intrínseca (v. acima), mas não se pode
mento, o trecho de 13.1~14.23 (um orácu- usar a objeção nos dois sentidos. Pois seria
lo identificado como sendo de "Isaías, filho ainda mais extraordinário (considerando
de Amoz") enxerga a Babilônia como os que Isaías foi o autor) se uma alteração tão
cp. 40~66 a enxergam, não como a pro- radical de situação, método e objeto não
víncia assíria rebelde dos dias de Isaías, produzisse nenhuma mudança significati-
mas como um poder mundial cuja queda va de pensamento e expressão.
iminente significará o fim do exílio de Certamente se pode esperar nos cp.
Israel. A esse oráculo precisamos acres- 1~39, se todo o livro é de Isaías, um ante-
centar a visão como de um sonho em 21.1- gosto ocasional dos cp. 40~66, quando os
10, em que a queda relatada da Babilônia temas destes últimos foram rapidamente
lança Isaías em estado de choque. adiantados; e isso de fato é assim. A sobe-
À luz de tudo isso, o engajamento in- rania de Deus na história (um dos principais
tenso dos cp. 40~66 com o exílio babilôni- temas de 40~66) é expressa a Senaqueribe
co, suas lições e suas consequências podem em 37.26 (701 a.C} exatamente no mesmo
transcender a expectativa dos leitores, mas tom e nos mesmos termos dos capítulos fi-
dificilmente a de Isaías. Para ele, isso po- nais: "Acaso não ouviste?" (c!" 40.28); 'já
deria bem ser o desdobramento final da sua há muito dispus eu estas coisas" (c!" 41.4;
preocupação com a interação entre esses heb.); "já desde os dias remotos" (cf 45.21;
dois opostos, Babilônia e Israel, segundo os 46.10); "eu o tinha planejado" (c!" 46.11);
propósitos a longo prazo de Deus, e repre- "Agora, porém, as faço executar" (cf. 48.3).
sentar o cumprimento do seu ministério. Há linguagem semelhante acerca desse tema
Pode ser significativo também acres- em 22.11. Acerca do "êxodo maior", o cp.
centar que até a anomalia suprema, a no- 35 não somente corresponde à eloquência
meação de Ciro um século e meio antes do mais refinada dos cp. 40~66 (com os quais
seu tempo (44.28; 45.1), não é algo sem precisa ser agrupado para salvar a teoria da
paralelo (v. a predição de Josias, num in- autoria múltipla) mas também, em quase
tervalo duas vezes tão longo, em lRs 13.2). cada versículo, usa as expressões idiomá-
Em segundo lugar, o poder de predizer é ticas especiais de 1~39. Novamente, nas
exatamente a evidência ostentada aqui visões da harmonia definitiva, os trechos de
de que somente Javé é Deus (cf. 41.21- 11.6-9 e 65.25 dificilmente podem ser se-
23,26-29; 44.7,8,25-28; 46.10,11; 48.3-8. parados. Estes podem ser raridades compa-
Observe que 48.8 culpa a surdez de Israel, rativas, mas são reconhecíveis primícias da
não o silêncio de Deus, pela ignorância do colheita como um todo.
povo acerca das novas coisas que estavam 3. Vocabulário. A tarefa inicial de Isaías
para acontecer no final do exílio). de denúnciarequeria tais termos como "espi-
2. O estilo distintivo dos cp. 40-66. nheiros e abrolhos", "açoite", "tempestade",
Esse só seria um argumento válido contra a "remanescente"; mas a obra posterior de
ISAíAS 954

encorajamento e vocação destacava a ini- of Isaiah", TSF Bulletin, primavera 1957,


ciativa de Deus em "criar", "escolher" p. 3-7), as profecias de 1-39 conduzem à
e "redimir". O "propósito" dele pode ser predição de um castigo histórico devasta-
visto no fato de ele abarcar as "ilhas" dis- dor, o que apresenta sérios problemas teo-
tantes, as "extremidades da terra" e "toda a lógicos em vista das doutrinas e promessas
carne" (ARe); isso naturalmente desemboca propostas em outros trechos desses capítu-
no convite para "louvar", "jubilar" e "exul- los. Os cp. 40-66 são, portanto, mais do
tar em cânticos". Até as partes suplemen- que um complemento; eles são a solução
tares da linguagem refletem a mudança de sem a qual os cp. 1-39 terminariam em
tópico, pois os últimos capítulos estão re- desacordo não resolvido. E "se um profeta
pletos de termos que conferem entusiasmo pode ser inspirado para declarar a verdade
e ênfase a uma declaração. de Deus no contexto da história [...] não
Lado a lado com as variações, no entan- é demais esperar que ele também seja ins-
to, precisa ser colocado um número signifi- pirado para encontrar as soluções para os
cativo de termos que são comuns a ambas problemas teológicos suscitados por essas
as partes de Isaías, mas raramente ou nun- revelações...",
ca são encontrados em outros trechos do Resumindo: A teoria da autoria múltipla
AT. "O Santo de Israel" (12 vezes em 1- (visto que a autoria dupla se desdobra nisso)
39, 13 vezes em 40-66) é o exemplo mais cria no mínimo tantas dificuldades quantas
conhecido, mas diversas outras expressões parece resolver. (Também suscita dificulda-
usadas para se referir a Deus acrescentam des em outros trechos do AT em que profe-
o seu testemunho menor: e.g., a expressão tas pré-exílicos parecem usar material deste
para "aquele que os formou" usada com livro; mas isso não pode ser aprofundado
um pronome pessoal (22.11; 29.16; 44.2); aqui). Isso faz de Isaías o autor da espinha
"o Poderoso de Jacó/Israel" (1.24; 49.26; dorsal do livro; admite um critério de análi-
60.16). Há também designações raras ou se segundo o qual sobram poucos profetas
singulares de Israel que ocorrem em am- como autores únicos dos seus escritos; isso
bas as partes como "cego" (29.18; 35.5; leva em conta séculos de atividade criativa
42.16-18), "surdo" (29.18; 35.5; 42.18; não somente por uma "escola-de-Isaías",
43.8), "os que deixaram o SENHOR" (1.28; mas por grupos semelhantes que reveren-
65.11), "os resgatados do SENHOR" (35.10; ciavam outros profetas, cuja liberdade de
51.11), "obra das minhas mãos" (29.23; expandir ou ajustar a obra dos seus mestres
60.21). (Esses exemplos são extraídos da estranhamente contrasta com o cuidado,
lista mais ampla de R. Margalioth, The numa data muito posterior, de transmiti-
Indivisible Isaiah, 1964). É esse grande la inalterada, grupos cuja existência em si
suprimento de expressões segundo o estilo não é mais do que uma inferência. Também
de Isaías que fizeram surgir a teoria (para a precisa explicar a intacta tradição primitiva
qual há pouca evidência comprobatória) de acerca da unidade de Isaías, e precisa che-
que um círculo de discípulos perpetuou as gar a um acordo com o endosso evidente
formas de pensamento de Isaías ao longo que o NT dá a esse ponto de vista.
dos séculos. É mais simples pressupor uma Certamente se pode argumentar que o
única mente. NT não está pronunciando um juizo sobre
4. Teologia. Deveria estar claro a essa essa questão, mas está fazendo citações sem
altura que essas duas partes principais do digressões; essa é a opinião de muitos que
livro estão voltadas para situações diferen- sinceramente aceitam a sua autoridade. Não
tes e fornecem ensino complementar. Mas obstante, faremos uma exegese mais dire-
há mais do que isso. Como 1. A. Motyer ta, a não ser que as objeções sejam esma-
mostrou ("The 'Servant Songs' in the Unity gadoras, se tomarmos "Isaías" aqui como
955 ISAíAS

querendo dizer "Isaías"; e em todos os as- Leitura adicional


pectos essa abordagem parece apresentar GROGAN, G. W. Isaiah. ESC. Zondervan,
uma simplicidade similar. As alternativas 1990.
(que existem em maior número do que as OSWALT, 1. N. The book of lsaiah (caps.
mencionadas aqui) tendem a se tomar tanto 1-39). v. 1. NICOT. Eerdmans, 1986.
mais detalhadas quanto mais as acompa- _ _ _ _o The hook ofIsaiah (caps. 40-
nhamos; e esse não é um sintoma encoraja- 66). v. 2. NICOT. Eerdmans, 1998.
dor. Quando isso acontece, geralmente está MOTYER, 1. A. The prophecy of Isaiah.
na hora de se buscar um foco diferente e um Inter- Varsity Press, 1993.
esquema mais compacto e integrado.

1.1-31 Uma de crise


1.1 o profeta e o seu período
1.2-4 A grande acusação
1.5-9 A devastação de Judá
1.10-20 A corrupção religiosa e sua purificação
1.21-31 O lamento de Deus e sua resolução

2.1-4.6 A Jerusalém de Deus e a do homem·_··c·_·c··~c·····_················· ...•...- _..........•..


2.2-5 A de Deus
2.6-9 A cidade de mamom
2.10-22 O terror do Senhor
3.1-15 Juízo por meio da decadência
3.16-4.1 De seda a pano de saco
4.2-6 A glória por vir

5.1-30 A vindima
51 7 A
5.8-23 Os seis ais
5.24-30 Os predadores de Deus

6.1-13 O chamado do
7.1 12.6A eo Assíria e
7.1 17 Isaías o rei Acaz
7.18-8.22 A escolha é exposta
9.1-7 A aurora do Messias
9.8-10.4 A sombra sobre Samaria
10.5-34 O machado de Deus sobre Judá
11.1-12.6 O reino messiânico

!~.1---:.~3.1 ~. Mel"l~_agel"l~paEi:l. as nélções


13.1-14.23 Babilônia
14.24-27 Assíria
14.28-32 Filístia
15.1-16.14 Moabe
ISAíAS 956

17.1-14 Damasco e o norte de Israel


18.1-7 Etiópia
19.1-25 Egito
20.1-6 A crise de Asdode
21.1-10 Babilônia, "O Deserto do Mar"
21.11,12 Dumá
21.13-17 Arábia
22.1-25 Jerusalém
23.1-18 Tiro

24.1-27.13 A vitória final de Deus


24.1-23 A terra e o céu são lu"~a'JV'"
25.1-12 O grande livramento
26.1-27.1 O triunfo sobre a angústia
27.2-13 Um povo para Deus

28.1-31.9 A crise assíria: de Deus ou do homem?


28.1-29 Um aos escarnecedores
29.1-8 Perdão de última hora para "Ariel"
29.9-24 A escuridão interior de Israel é aprofundada e dissipada
30.1-31.9 Egito e Assíria em perspectiva

3~2:1-3~:1O As~vaç~o~e~~u prel~~()~~olTlbrio__


32.1-8 Um reino de verdadeiros homens
32.9-20 Não há caminho fácíl para a paz
33.1-24 O desejo de ser livre
34.1-17 O juízo universal
35.1-10 O florescer do deserto

36.1-39.8 Os testes derradeiros


36.1-37.38 O ataque assírio
38.1-22 A enfermidade de Ezequias
39.1-8 Os enviados da Babilônia

40.1-48.22 Uma noite na distante Babilônia


40.1-11 O tão esperado Senhor
40.12-31 Deus, o incomparável
41.1-29 Deus e a história
42.1-17 Luz para as nações
42.18-48.22 Servo inconstante e Senhor imutável

49.1-55.13 A aurora da
49.1-13 O "Cântico Servo"
49.14-23 Conforto para Jerusalém
49.24-50.3 Conforto para os catívos
50.4-9 O terceiro "Cântico do Servo"
50.10,11 Um epílogo do cântico
51.1-8 Mais alimento para a fé
957 ISAíAS 1

51.9-52.12 Expectativa crescente


52.13-53.12 O quarto "Cântico do Servo"
54.1-17 A fervilhante cidade-mâe
55.1-13 Graça transbordante

56.1-66.24 A

dístanciamento do termo "santo" pelo fato


de que Deus se doou a Israel. Oseias 11.9
1.1-31 Uma situação de crise prevê essa ideia.

1. 1 O profeta e o seu período 1.5-9 A devastação de Judá


Isaías significa "Javé é salvação", um Se esse é um dos oráculos posteriores de
nome muito apropriado para o "profeta Isaías, colocado aqui para abrir o livro com
evangélico". A lista de reis indica que ele um tom de urgência, ou se é um lampejo
profetizou durante ao menos 40 anos, de de uma visão antecipada (o como tanto no
aproximadamente 740 a.C., o último ano v. 7d quanto no v. 8d sugere isso, pois o
de Uzias (cf 6.1), até algum ponto após o profeta parece estar descrevendo somente
cerco a Jerusalém em 701, durante o tem- o que ele consegue enxergar), ele realça
po de Ezequias, cujo reinado continuou certos temas que lhe foram dados na oca-
até 687/6. sião do seu chamado. Cf as mentes fecha-
das do v. 5a com 6.9,10; a devastação do v.
1.2-4 A grande acusação 7 com 6.11,12; a compaixão por alguns no
O apelo aos céus e à terra lembra as ordens v. 9 com 6.13. Aqui está a primeira pista do
de despedida de Moisés (Dt 30.19), ao qual tema do "remanescente", que virá a se tor-
o enfáticojilhos acrescenta uma nota de in- nar proeminente com o desenvolvimento
tensidade pessoal. Com a declaração direta da profecia (v. especialmente 10.20-22).
do Senhor nos v. 2b,3, em que aparece três O quadro nos v. 5,6 não é de um homem
vezes a primeira pessoa, e com o comen- doente, mas de alguém fustigado quase até
tário confirmador do v. 4, já estamos no a morte, mas que continua pedindo mais. O
centro da crise: a família de Deus rompeu v. 5a destaca esse ponto, e os sintomas do
relações com ele. (O v. 3 é ainda maís pun- v. 6b são de ferimentos sofridos; cf contu-
gente no conciso texto original, sem o mas. sões com as "pisaduras" de 53.5. A realida-
No v. 4a, o sentido pode bem ser "raça de de literal vem à tona nos v. 7,8: é a terra de
malignos [de Deus]" - o mesmo paradoxo Judá pisoteada sob hordas estrangeiras, e só
do v. 2b). O título o Santo de Israel é quase Jerusalém (Sião) sobrou em pé. É evidente-
peculiar a Isaías, com 12 ocorrências nos mente uma referência à situação após a in-
cp. 1-39 e 13 nos cp. 40-66. Em outros vasão de Senaqueribe, cujo esboço está em
livros, só há duas ocorrências. Faz eco ao 2Reis 18.13; seus efeitos são vistos de re-
brado dos serafins (6.3), contudo abranda o lance em Isaías 37.30-32 e suas estatísticas
ISAíAS 1 958

estão registradas no Prisma de Taylor, no (cf ló 23.7). Deus precisa ter o confronto
qual Senaqueribe afirma que capturou 46 franco; mas, isso posto, ele pode mudar o
cidades muradas, junto com "inúmeras vi- imutável e apagar o indelével (a escarlata
las" e um quinto de um milhão de pessoas. e o carmesim não eram somente cores bri-
A choça é o abrigo dos trabalhadores do lhantes, mas também firmes); só assim pode
campo ou dos vigias, uma relíquia aban- o chamado Lavai-vos, purificai-vos (16) ser
donada da colheita. Mas chega de falar da algo mais do que ironia. Os v. 19,20 nos
gloriosa Sião, a um passo de ser eliminada . lembram mais uma vez das alternativas de
como Sodoma (9). vida ou morte em Deuteronômio 30.15-20
(cf v. 2 acima), passagem que quase pode
1.10-20 A corrupção religiosa ser chamada de texto do discurso.
e sua purificação
Ser tratado de Sodoma era acusação e 1.21-31 O lamento de
sentença numa palavra só. Como lugar Deus e sua resolução
de desastre, Sodoma significava tudo que 1.21-23 Pureza perdida. Como num lamen-
Pompeia e Hiroshima vieram a significar to fúnebre ("Como caíram os valentes!",
para nós; daí o v. 9. Sodoma estava sozi- 2Sm 1.25; cf o "Como - !" de 14.12; Lm
nha na sua má reputação até que Isaías fa- 1.1 etc.), o tema é a glória que se foi; até as
lasse o v. 10. Ele foi apoiado por Ezequiel metáforas decrescem do trágico para o tri-
(Ez 16.48) e pelo nosso Senhor (Mt 11.23), vial (prostituta ... prata ... licor). Somente
que mediu (e ainda mede) a culpa segundo a perda moral é lamentada; não o império
a oportunidade. Dentre todas as manifes- de Davi ou a riqueza de Salomão, simples-
tações de revolta dos profetas diante da mente a sua justiça. O v. 23 apresenta em
ilusão religiosa (cf I Sm 15.22; lr 7.21-23; miniatura a mesma progressão da revolta
Os 6.6; Am 5.21-24; Mq 6.6-8), esta é a de espiritual para a injustiça social que foi se-
maior impacto e a mais bem fundamentada. guida entre os v. 2 e 17.
Sua veemência é incomparável, até mesmo 1.24-26 Fogo depurador. Deus reto-
a Amós, e a forma e o conteúdo crescem ma a sua própria metáfora do v. 22, para
juntos. Primeiro, as ofertas são rejeitadas, revelar o aspecto abrasador do amor e
depois, os ofertantes (11,12); mas ao passo o aspecto misericordioso do juízo. É o
que o tom de Deus se acentua de desgosto amor, o contrário da indiferença, que faz
para repugnância, a sua acusação específi- das tuas escórias os meus inimigos (cf
ca é retida até o final sombrio do v. 15: as 62.1; Ap 3.19).
vossas mãos estão cheias de sangue. 1.27-31 Fogo destruidor. A linha de
Agora a reprimenda dá lugar à ordem, Deus entre amigo e inimigo, entre a cidade
em oito chamados trovejantes, para que redimida e os destruídos, passa exatamen-
acabem com o mal (16) e se ocupem com o te por Sião; não entre judeus e gentios, mas
bem (17). Isso é arrependimento em toda a entre os que se arrependem (i.e., os que
sua amplitude, impiedosamente pessoal, in- se voltam) e os transgressores. Quanto a
cansavelmente prático (cf Dt 4.27; Mt 3.8; estes, o fogo é o fim, não o começo. A cha-
Lc 19.8). Mas essas exigências minuciosas ve para a metáfora de carvalhos e jardins
preparam para a oferta de salvação imereci- (29,30) está no v. 31; aqui representam a
da que segue imediatamente. força e a organização humanas em que so-
É impressionante que a grande oferta mos tentados a confiar, i.e., o forte e a sua
seja introduzida (18) como a grande acu- obra, impressionantes, mas incertos e ins-
sação dos v. 2-4, com um eco das leis do táveis (cf Am 2.9). (É desnecessário ver
tribunal: Vinde, pois, e arrazoemos, i.e., va- nisso uma referência a ídolos ou rituais
mos colocar os argumentos da nossa causa de fertilidade, e.g., os "jardins de Adonis"
959 ISAíAS 2

em miniatura cujo murchar simbolizava a menos a luz para as nações retratada há


morte anual do deus, embora estas alusões pouco - sugere os dias de Jotão e Acaz, no
possam ter sugerido a incomum metáfo- início da carreira de Isaías, entre a prospe-
ra). Há algo dc atual na advertência de que ridade de Uzias e as reformas de Ezequias.
exatamente a habilidade do homem pode Por mais cheia que esteja, a terra está de-
levar à sua destruição, pode ser a faísca samparada; ela tem tudo menos Deus (6a).
(31) que desencadeia o incêndio. Acerca da reputação quanto às adi-
vinhações (6), cf. 1Samuel 6.2-6; 2Reis
2.1-4.6 A Jerusalém 1.2-4. Acerca do materialismo evidencia-
de Deus e a do homem do no v. 7, cf. Deuteronômio 17.16,17. A
O novo titulo sugere que essas profecias palavra para ídolos é o termo predileto
podem ter circulado como uma unidade de Isaías, talvez porque seja idêntico ao
antes de sua inclusão na coleção com- adjetivo "inúteis", "que não valem nada"
pleta. Elas alternam de forma acentuada (cf. Jó 13.4). A gente e o homem ('ãdãm ...
entre a glória final de Jerusalém e o seu ish, os termos genérico e individual para
sórdido presente. "homem") são traduzidos por "humildes"
c "grandes" em Salmos 49.2 (ARe); mas
2.2-5 A cidade de Deus isso é dar-lhes um significado exagerado.
Aqui, como no texto quase idêntico de Eles são recorrentes, como forma de dizer
Miqueias 4.1-5, se vê a verdadeira emi- "todos", nos v. 1i e 17.
nência de Sião, pois o Senhor está nela
(cf. SI 68.15,16, em que picos mais altos 2.10-22 O terror do Senhor
observam com inveja); e esta é a única Os refrões agourentos (I Ob, 19b,21b; 1I c
glória da igreja. O seu papel é atrair as 17) c a imensidão dessa cena fazem desse
pessoas (2c,3a), não persegui-Ias; mas a trecho um poema de impacto extraordiná-
sua necessidade é da verdade intransigen- rio. Ele conclui a visão inaugural que Isaías
te e do governo de Deus (3b,4a; cf 42.4), tem do Senhor "assentado sobre um alto e
o centro inabalável de qualquer círculo sublime trono" (6.1) e fornece o argumen-
perfeito. A conclusão idílica da profecia to final contra a confiança no poder terre-
(4bc) não pode ser separada do seu início, no, que é um tema constante da sua profe-
ou então nos sobra a amarga caricatura cia. O fato de que o SENHOR dos Exércitos
dessa cena em Joel 3.9,10. Assim, tanto tem um Dia (12) dá à pregação de Isaías
aqui quanto em Miqueias, a visão resulta o mesmo impulso que a mensagem de
em apelo (5), não de sonhar com um mo- Paulo (cf. At 17,31) - um elemento que
vimento mundial algum dia, mas de reagir a igreja tende a perder - e nesse trecho
no presente e no ato. a referência é claramente ao último dia e
Talvez o nosso Senhor tenha tido esse não a uma erise intermediária. Os capítulos
trecho em mente quando os primeiros repre- apocalípticos de 24 a 27 tratarão disso em
sentantes da afluência dos gentios evocaram mais detalhes.
a sua profecia de ser levantado/elevado (o A lista de coisas valorizadas cobre muito
mesmo verbo, num sentido mais amplo, do que sempre consideramos impressionan-
que é usado na LXX em ls 2.2b) para atrair te em termos de recursos naturais (13,14),
todos os homens a si (Jo 12.32). defesas construídas (15), realizações técni-
cas e culturais (16; v. adiante) e, acima de
2.6-9 A cidade de mamom tudo, no próprio homem e na religião ide-
A inundação de superstições (6), alianças alizada por ele (17,18). Mas o fim é ainda
(6c), riqueza (7a), armas (7b) e ídolos (8)- mais impressionante, com a sua cena de
fazendo da cosmopo lita Judá qualquer coisa urgência frenética (como em Ap 6.15-17)
ISAíAS 3 960

colocando em relevo a paciência presente meio da total incompetência e da anarquia


de Deus, que poderia nos reduzir em um resultante (4,5) e finalmente por meio de
instante a uma fuga infame e nos levar a uma ruína tão completa que pareceria irre-
lançar fora o que há tanto tempo ele nos parável (6-8). Os meninos e crianças do
ordenou que lançássemos (20). v. 4 são metáforas reveladoras, como as
Társis (16; cf NVI) talvez signifique crianças e mulheres do v. 12; mas esta ruí-
uma refinaria, e navios assim chamados na (6; "monte de ruínas", NVr) pode bem
talvez fossem os que foram construídos ter um significado literal. Apesar da garan-
para levar cargas de lingotes. Ou talvez tia de que Jerusalém não cairia diante de
represente Tartesso na Espanha, e barcos Senaqueribe (e.g., 37.33-35), Isaías enxer-
de longo alcance (cf 23.6). A rara palavra gou tão claramente como Miqueias que a
traduzida por "barco" na NVI ("tudo que é sua glória final (cf. 2.2-4) teria de ser pre-
belo à vista", ARA; "pinturas desejáveis", cedida pela destruição (e.g., 22.4,5; 32.14;
ARe) tem, como parece, o sentido de "na- 39.6; cf Mq 3.12; 4.1-8). Não fazia parte
vios", destacando nesse caso a sua beleza, do seu ensino (embora isso com frequência
e não o seu tamanho. O v. 22 está ausente seja afirmado) que Deus preservaria incon-
na LXX, mas tem a mesma função impor- dicionalmente a sua cidade.
tante do v. 5, ou seja, traduzir a visão em Paradoxalmente, o derrotismo com-
ação. Fôlego e nariz são alusões à escassa pleto que é predito nos v. 6 e 7 retrocede
garantia de vida das pessoas; fazem um nos versículos seguintes ao presente espí-
prelúdio eficaz ao capítulo seguinte. rito de bravata. A refinada demonstração
de pensamento liberal e de ousadia mo-
3.1-15 Juízo por meio rai, descrita nos v. 8b e 9, não somente
da decadência é uma afronta ao próprio Deus, que é a
Aqui tudo é tão miserável quanto na cena única fonte de glória (como deixa claro o
anterior tudo era cósmico e esmagador. É impressionante fim do v. 8), mas faz com
um estudo sobre desintegração, por meio que a pessoa fique sem nada em que possa
da pressão da escassez sobre um povo crer. Depois de ter vivido a sua aventura,
sem ideais. A escassez, que é desespera- o cético se vê encalhado na terra devas-
dora, é dupla: de coisas materiais (susten- tada que ele ajudou a produzir. Assim os
to e água, v. I; veste, v. 7) e de liderança v. 13-15 pronunciam a sentença sobre os
(2-4). Em partes de Judá, a profecia sem contemporâneos brutais e impiedosos de
dúvida estava começando a se tomar rea- Isaías, que colocaram em marcha esse
lidade na época em que os assírios tinham processo fatal. O cp. 5 será mais explícito;
feito os seus saques e deportações (v. co- mas não mais condenatório.
mentário de 1.5-9). Mas o seu verdadeiro
cumprimento esperou um século, até que 3.16-4.1 De seda a pano de saco
Nabucodonosor levasse os cidadãos mais A trivialidade nunca foi exposta de for-
capazes para a Babilônia (cf 2Rs 24.14), ma tão impiedosa, e nunca foi tomada tão
deixando para trás um regime extrema- abruptamente pela tragédia. Até a ostenta-
mente fraco e irresponsável. ção inicial é irritante e também absurda em
Essa lista de líderes (2,3) fornece um face do pano de fundo horrendo do v. 15, que
vislumbre de primeira mão da sociedade é o seu custo humano. Não há necessidade
dos dias de Isaías, cujas figuras respeita- de caricaturas; os 21 itens de ornamentos
das incluíam uma dose generosa de char- (18-23) constituem um pequeno reino em
latães (adivinho, encantador perito). Mas si mesmos, o suficiente para ocupar toda a
apesar de todo o desgoverno desse grupo, mente da pessoa, mas totalmente vulnerá-
o pior estava por vir; primeiramente por veis. A terrível cena da transformação tem
961 ISAíAS5

sido retratada com frequência (3.24-4.1); tabernáculo, como aconteceu no deserto,


e nos v. 25,26 o destino dos indivíduos se visto que todos são agora santos. A presen-
toma símbolo do destino da própria cida- ça de Deus está de fato sobre a sua igreja e
de-mãe - uma imagem que será usada em volta dela. Cf v. 6 com 25.4,5.
novamente em referência à Babilônia e a
Jerusalém (cf 47.1-3; 52.2). 5.1-30 A vindima amarga
Embora essas trivialidades particulares Uma sequência completa em si mesma,
possam parecer distantes, todas as gerações esse capítulo tem muito em comum com
- e ambos os sexos - têm seus próprios os precedentes (acerca da metáfora da vi-
disparates que podem consumir todo o ser nha, cf 3.14; acerca da humilhação dos
humano. No contexto desses capítulos, altivos, cf 2.9 com 5.15), e corrige alguns
eles nos apresentam mais um aspecto da dos pecados sociais que já encontramos.
glória terrena, de seu vazio e nulidade, que Conduz a longa abertura do livro a um
precisam ser envergonhados diante da gló- intenso clímax.
ria de Deus. Esse esplendor agora irrompe
na seção seguinte. 5.1-7 A parábola
Esta é uma pequena obra de arte. Sua aber-
4.2-6 A glória por vir tura, como um cântico de amor, cativa o
O teor geral desse trecho, no seu contexto, ouvido e a imaginação; a vinha, como o
é que a salvação está no ponto extremo do jardim e o pomar murados de Cântico dos
julgamento. A glória de Israel precisa ser a Cânticos (e.g., Ct 4.12-15), certamente fa-
do novo crescimento depois da destruição, lará da noiva e de sua beleza, guardada para
de santidade após a purificação abrasadora, o noivo. Mas os ouvintes são sacudidos
e da "shekinah" de Deus - sua presença pelo anticlímax e o pedido da sua opinião
manifesta, como nos dias do êxodo. (3,4) - apenas para descobrir que, como
Renovo (2) é uma referência ao "bro- Davi diante de Natã (2Sm 12.1-7), eles es-
to de novo crescimento" que é paralelo a tão consentindo com a sua própria repreen-
fruto da terra. O ponto é que Israel precisa são (cf também Mt 21.40-43). Finalmente,
nascer de novo; das suas raízes precisa sur- na língua original, a acusação é reforçada
gir uma nova colheita, quando o juízo tiver por uma última linha inesquecível, concisa
removido toda a sua glória presente e todas como uma epigrama (7). Seu duplo jogo de
as pessoas, a não ser alguns sobreviventes. palavras resiste à reprodução, mas pode ser
É a comunidade renovada que o autor tem livremente traduzido por: "Encontrou ele
em mente aqui; mais tarde vai aparecer um justiça? Nada senão revolta! Encontrou ele
homem que será esse novo crescimento decência? Só desespero".
par excellence (cf Jr 23.5; Zc 3.8; 6.12; e A parábola reforça, como nada mais
expressões semelhantes em Is 11.1). conseguiria, a total insensatez e indefensa-
Tanto a ARA quanto a NVI obscurecem bilidade do pecado - ficamos procurando
o individualismo do v. 3 (lit. "aquele que alguma causa do fracasso da vinha, mas
ficar [00'] todo aquele que estiver inscrito não há. Somente seres humanos poderiam
entre os vivos", ARe). O novo Israel consis- ser tão inconstantes assim.
tirá nos pessoalmente santos, cujos nomes
estão no livro da vida (cf Êx 32.32,33; 5.8-23 Os seis ais
MI3.16; Ap 20.12-15). Mas o v. 5 retrata a Aqui as "uvas bravas de Judá" (expressão
comunidade destes, reunidos num espírito de G. A. Smith) se mostram com os termos
muito diferente daquele de 1.13, e cobertos mais francos. Os ais seguem um ao outro
pela glória de Deus. Essa glória repousa- com rapidez crescente, para dar o sentido
rá sobre todo o monte, não meramente no da veemência que se avoluma, como nos
ISAíAS S 962

apelos fervorosos do clímax de 1.12-17. versidade não é arrastado para o pecado,


Eles são uma amostra, não uma descrição mas o arrasta ansiosamente e se certifica
detalhada, relacionados ao tema predomi- dele. Há os tais "pensadores destemidos"
nante de Isaías da arrogância humana e de em todas as gerações, não importa se
sua queda; assim, são predominantemente blasfemos (19), pervertidos (20) ou tran-
os pecados dos altivos e poderosos. quilamente oniscientes (21). Eles são um
O ataque tem toda a ação lancinante de retrato tão nítido como o dos destemidos
uma descrição verbal pessoal. Aqui estão beberrões do v. 22, e dos realistas do v.
os grandes, para que todos os vejam; eles 23 que sabem o valor do dinheiro, mesmo
aparecem como extorsores (8-10), boas-vi- que de nada mais.
das (11,12; cf 22,23) e zombadores, cujos
únicos valores previsíveis são dinheiro 5.24-30 Os predadores de Deus
vivo (18-23). A repetida expressão Pelo que (ou Por isso)
5.8-10 Extorsores. A lei da proprieda- confere um tom duplamente inevitável ao
de que Nabote defendeu com a sua vida (cf julgamento, em termos de consequência ló-
Lv 24.23; lRs 21.3) se tomou letra morta, gica (24) e de ira judicial (25), sendo que
mas o desejo por terrenos vazios é ironica- ambas estão sempre presentes quando Deus
mente satisfeito. O bato era uma medida castiga. A mão estendida para ferir será vis-
de líquidos igual ao efa seco, em tomo de lumbrada novamente em 9.12,17,21; 10.4;
36 litros; o ômer (não deve ser confundido assim essa referência isolada poderia ser
com o ômer de Êx 16.36) tinha dez vezes um deslocamento causado por um escriba,
essa medida (cf Ez 45.11). Assim, a co- mas é melhor considerá-la uma sombra da
lheita produziria desastrosamente menos tempestade iminente que une este capítulo
do que a semeadura. de juízo com os seguintes. O exército com
5.11-17 Os boas-vidas. A recusa em precisão e ferocidade aterrorizantes, apre-
pensar, i.e., encarar os fatos de Deus (12b, sentado nos versículos finais, com armas e
13a), é anátema para os profetas (Jr 8.7; feras em união, certamente é o da Assíria.
os 4.6; Am 6.1-7), não importa se assume Mas esse poder, o maior dos seus dias, está
a forma de religião negligente (1.3,10-17), às ordens do Senhor (26) - pouco confor-
de raciocínios sofísticos (5.20,21), de ocul- tador para o rebelde, para quem esse con-
tismo (8.19,20) ou do estúpido escapismo junto de capítulos termina sem um único
retratado aqui. O juízo desses sensualistas, raio de esperança.
como o das mulheres obcecadas pela moda
de 3.16-4.1, será perder aquela coisa pela 6.1-13 O chamado do profeta
qual viveram (13b) e descobrir que são ob- Somente agora fazemos um intervalo para
jetos de um apetite mais insaciável que o a visão inaugural, tão urgente foi o cha-
seu próprio (14). A cova é lit. sheol (v. co- mado inicial para o arrependimento, e tão
mentário de 14.9,15; 38.10,18). necessária a cena detalhada desses capítu-
5.18-23 Zombadores. Visto que o he- los para mostrar o que arrancou de Isaías a
braico com frequência usa a mesma pala- sua confissão (5) e qual era o contexto da
vra para uma coisa e o seu resultado, o v. ordem para o endurecimento (9,10). Nessa
18 pode significar: "que atraem o castigo visão, os tópicos principais do livro são
(sobre si mesmos) [00'] que atraem a retri- discerníveis: a santidade incontestável de
buição (sobre si mesmos) 00'" (cf Heb. de Deus e sua majestade exclusiva; a glória
Gn 4.13; Zc 14.19). O versículo seguinte que ele ordenou e o desprendimento que
tende a confirmar isso. Como alternativa, isso exige; a purificação dos penitentes e
a metáfora pode ser intencionalmente es- a vida ressurgente que ainda vai brotar do
tranha, visto que o zombador na sua per- tronco de Israel.
963 ISAíAS 6

o rei Uzias morreu depois do chamado de que o juízo é proeminente na purifica-


de Isaías, não antes, como 1.1 deixa claro. ção. No início, o mensageiro flamejante e a
Se a sua morte tem algum significado, além brasa ardente devem ter pressagiado tudo,
da sua data, está no fato de que ele morreu menos salvação (cf 1.25,26; 4.4); contu-
como leproso, por desprezar a santidade de do vieram do lugar do sacrifício, e o men-
Deus quando "exaltou-se o seu coração" sageiro falava a linguagem da expiação
(2er 26.15; cf Is 2.17). Os temas do trono (perdoado vem do verbo heb. "expiar"). A
e do templo (1) e Rei (5) sugerem a alguns brasa viva simboliza o significado total do
autores um festival de entronização divina, altar de onde ela veio: que a pena do peca-
mas não há evidência consistente para isso; do foi paga por um substituto oferecido no
a sua importância, de todo o modo, está em lugar do pecador. O símbolo, aplicado aos
mostrar diante de quem toda a autoridade lábios de Isaías (o ponto em que sua neces-
humana precisa se curvar. sidade era mais urgente), lhe dá certeza de
O termo Serafins significa "flamejan- perdão pessoal.
tes", um epíteto adequado às serpentes de A exclamação de Isaías: eis-me aqui,
Números 21.6,8 e Isaías 14.29; 30.6. Aqui envia-me a mim é duplamente notável. Em
essas criaturas aladas são semelhantes ao primeiro lugar, pelo seu contraste com o
homem (seus pés; sua mão no v. 6), mas desespero anterior (5), e pela relutância de,
o propósito da descrição é destacar nova- digamos, Moisés ou Jeremias. Em segundo
mente a santidade de Deus, em cuja presen- lugar, pelo fato de que essa voz humana é
ça até os esplêndidos e impecáveis ficam aceita na corte celestial. (V 1Rs 22.19-23
extasiados, incapazes de vê-lo e de serem e Ap 5.1-14 para comparação e contraste).
vistos, contudo rápidos para servir (2) e in- O decreto de endurecimento, citado na ín-
cansáveis para louvá-lo (3). A antífona (3), tegra ou em parte ao menos seis vezes no
apesar da sua brevidade, ressoa, como um NT (e.g., Mt 13.14,15; At 28.26,27), deve
trovão (cf v. 4), a natureza, o nome e o po- ser lido totalmente até o seu final nos v.
der de Deus na sua primeira linha (SENHOR 11-13, onde se mostra que o juízo limpa
dos Exércitos significa também Senhor dos o terreno para o novo crescimento. Isaías
recursos, que ele domina no céu e na terra), cumpriu essa comissão de cegar e ensur-
e, na sua segunda linha, o escopo e o cará- decer ao proclamar (e não reter) a verda-
ter do seu domínio. A glória é o resplendor de. Deus compartilha aqui com o profeta
do que ele é, e, portanto, da sua santidade; o significado crucial do seu ministério. O
toda a terra, não somente Israel, foi fei- pecaminoso Israel chegou ao ponto em que
ta para isso. As vastas implicações disso mais uma rejeição da verdade vai final-
para o juízo e salvação são vistas em 11.9; mente confirmá-los para o juízo inevitável.
40.5; Nm 14.21-23; Hc 2.14. Observe as O dilema do profeta é que não há nenhuma
variações sobre o tema da completude nos maneira de salvar o pecador, a não ser pela
v.l,3,4. verdade, cuja rejeição o condenará total-
O abalo dos fundamentos, a escuridão mente. Aquele sinal de vida (cf 11.1; Jó
e o assombro evocam lembranças do Sinai 14.7-9) está ausente na LXX, que omite o
(Êx 19.16-18) e premonições de juízo. (V v. 13c; mas o rolo de Isaías encontrado em
o comentário do NT acerca de todos esses Qumran apoia o nosso texto, e é inconcebí-
aspectos em Hb 12.18-29, e observe a rele- vel que a doutrina do remanescente divino
vância de Mt 5.8). Faz parte da mensagem em Isaías (e.g., 10.20-23) contradissesse a
de Isaías que as suas palavras serão as de sua comissão inicial. Assim a visão con-
um homem perdoado, sendo ele tão culpa- clui com esperança. Em vez da "semente
do quanto aqueles a quem vai oferecer vida de malignos" (1.4, ARe), sobreviverá a san-
ou morte. Também é característico o fato ta semente - uma expressão de promessa
ISAíAS 7 964

infinita à luz tanto do v. 3, com respeito menos até o reinado de Esar-Hadom (cf
à santidade, quanto das promessas recor- Ed 4.2). Ao final disso (669 a.C.), Israel
rentes da "semente" vitoriosa em Gênesis estava de fato destruído e tinha deixado
3.15; 22.18; Gálatas 3.16. de ser povo (8).
O significado dos v. 7b-9b aparente-
7.1-12.6 A tempestade e o sol; mente é que enquanto, por implicação,
Assíria e Emanuel Judá está sob o único Deus, os seus inimi-
Esses capítulos têm sido chamados de gos estão inevitavelmente sob o controle
"Livro de Emanuel", em homenagem ao dos homens - e que homens; só nomeá-
filho prometido de 7.14; 8.8, cuja natureza los já é suficiente! O chamado à fé (9b) é
e reino emergem em 9.1-7 e 11.1-10 con- o cerne da pregação de Isaías, cujo jogo de
tra o pano de fundo da ameaça local (7.1- palavra segue o estilo de um lema, tão fu-
9) e da dispersão mundial (11.11-16). As gidio para o tradutor quanto o de 5.7. Ele
profecias surgem diretamente de uma crise poderia ser parafraseado assim: "Ponha
contemporânea, mas se estendem até os Deus em dúvida, e você não resistirá".
últimos dias (9.1) e a toda a terra (11.9,10; 7.10-17 O sinal de Emanuel. Fornecer
12.4,5). qualquer prova a que Acaz desse valor
deixou claro que o chamado à fé era (e é)
7. 1-17 Isaías confronta o rei Acaz primeiramente um chamado à vontade (cf
7.1-9 O chamado à fé. A data é c. 735 Jo 7.17). Desprezar a oferta era rejeitar a
a.C., e a situação é a aposta desesperada de Deus de maneira aberta e franca, mas Acaz
Israel e Síria em se unir aos seus vizinhos já tinha determinado o que faria. A fé não
contra a Assíria, dominadora do mundo. fazia parte da sua religião (2Rs 16.3,4,10-
Depois que Judá se recusou a cooperar, os 20) nem da sua política. Por trás da lingua-
vizinhos vieram com todas as forças para gem religiosa e bíblica (12; cf Dt 6.16)
substituir o rei por um de seus homens, o havia um plano de sobrepujar os seus ini-
.filho de Tabeal (6). migos por meio da amizade com o maior
A intervenção de Isaías, em meio a deles (cf 2Rs 16.7-10). Isaías deixou claro
um sobressalto geral, é impressionante e no v. 17, com reforço nos v. 18-25, que tipo
significativa. O seu filho, "Sear-Jasube" de amigo a Assíria seria.
(Um-Resto- Volverá) era um presságio Enquanto isso, Deus tinha o seu pró-
vivo do juízo e da salvação (v. comentá- prio sinal, para uma plateia mais ampla
rio de 1.27; cf 8.18). O próprio lugar do que Acaz (o "vós" implícito em Ouvi e o
encontro algum dia provaria o quão fatal "vos" nos v. 13,14 mostram que a palavra
era o curso que o rei estava determina- é dirigida a toda a dinastia de Davi) e de
do a seguir (36.2). A ordem: Acautela-te significado mais abrangente do que uma
e aquieta-te era o primeiro de uma série demonstração de poder. Os detalhes que o
de apelos que ele ouviria a vida toda para acompanham em parte confirmam (15,16)
que confiasse e não se metesse em intri- e em parte advertem (17); a manteiga e
gas (cf v. 9b; 8.12,13; 28.16 e especial- o mel são enigmáticos, são símbolos de
mente 30.15). O apelo foi suficientemente abundância natural (cf. 22; Êx 3.8), mas
racional: Síria e Israel, os dois tições fu- também de uma terra despovoada (22b) e
megantes, logo seriam apagados. A Síria não cultivada (cf 23-25). Mas o cerne do
foi esmagada em 732, enquanto Israel sinal é Emanuel. Sua identidade permane-
perdeu os seus territórios do norte já em ce desconhecida; emergirá em 9.6,7; 11.1-
734, sua existência como nação em 722 e 5. Basta dizer que enquanto o rei convida
sua identidade racial por meio de uma sé- um exército, Deus aponta para o nascimen-
rie de repovoamentos que continuaram ao to de uma criança (cf Gn 17.19).
965 ISAíAS 8

Como o sinal se encaixa na crise é as- Quando (15) provavelmente deveria


sunto muito debatido. Como uma profecia ser "até que" ou "a fim de".
direta de Cristo (cf Mt 1.22,23), pode pa-
recer distante demais para significar algo 7.18-8.22 A escolha é exposta
para Acaz; contudo, o sinal era para a casa 7.18-25 Invasão e suas consequências.
[ameaçada] de Davi (6,13; v. o parágrafo As duas metáforas dos v. 18-20 fazem das
acima), e a simples visão da vinda de um multidões de soldados saqueando a terra
príncipe já era em si um encorajamento. não somente uma perspectiva desconforta-
Cf 37.30; Êxodo 3.13; Romanos 4.11 a velmente vívida, mas claramente um fla-
respeito de sinais que confirmam a fé em gelo divino (tema desenvolvido em 10.5-
vez de estimulá-la. Cf também comentário 11). Acerca da navalha alugada (20) cf.
de 8.1-4, adiante. Mas Deus pode ter reve- Ezequiel 29.18-20. A ironia era que Acaz
lado a cena distante por meio da próxima. imaginava que ele a tivesse alugado. O
Alguns sugerem que o sinal tinha valor ponto dos v. 21-25 é o triste espetáculo da
imediato (a) no tempo para o qual aponta- terra prometida voltando ao estado primiti-
va (os poucos anos desde a concepção de vo de matas fechadas por falta de israelitas,
uma criança - qualquer criança - agora, sua abundância (22), uma repreensão à sua
até que alcançasse a idade da escolha cons- dispersão e o seu estado ermo, uma pro-
ciente; 16) ou (b) no nome ("Deus [está] va do seu declínio. É o tipo de repreensão
conosco") que uma mãe contemporânea que uma igreja em declínio pode receber
se sentiria inclinada a dar à seu filho - o de glórias e compromissos herdados que já
contrário de Icabode (I Sm 4.21); ou (c) na não pode sustentar.
hierarquia, pois anunciava um nascimento 8.1-4 O sinal de Maer-Salal-Hás-Baz.
da casa real, que tendia a ser um arauto de O sinal de Emanuel (7.14-17), embora
esperança. (Mas de qualquer forma, essa concernente a eventos finais, de fato suge-
criança não podia ser Ezequias, nascido ria uma promessa para o futuro imediato,
alguns anos antes). Essas possibilidades pois não importava o quão rapidamente
não estão necessariamente em conflito en- Emanuel nascesse, a ameaça presente te-
tre si nem com a predição a longo prazo do ria passado antes mesmo que ele pudesse
nascimento de Cristo. se conscientizar dela. Mas o tempo do seu
O termo virgem (14) é apoiado pela nascimento ficara encoberto; daí o novo si-
LXX como citado em Mateus 1.23. O equi- nal ser dado, para tratar somente da cena
valente mais próximo em português seria contemporânea e do seu aspecto mais som-
"moça". O termo hebraico descreve uma brio. Esse filho teria um nascimento co-
noiva em potencial, em Gênesis 24.43, e mum, e, pelo seu nome, Rápido-Despojo-
ajovem Miriã, em Êxodo 2.8; pressupõe a Presa-Segura, ele seria uma testemunha
virgindade, mas não a afirma, e é um termo permanente (cf 8.18) das predições de
que não é usado para se referir a ela depois Deus tanto em relação ao inimigo à porta
do casamento. Antes do seu cumprimen- (4; cf 7.16) quanto em relação à vítima se-
to no NT, as suas implicações milagrosas guinte da Assíria, o próprio povo de ludá
passariam despercebidas, eclipsadas por (cf 7.17). A cuidadosa atestação (2) cha-
aquelas mencionadas anteriormente. (Y. maria a atenção e também confirmaria que
tratamento completo em E. 1. Young, o nome tinha precedido o evento. (Acerca
Studies in Isaiah [IVP, 1954], p. 143-98). de um cartaz posterior, v. 30.7,8).
Os tempos verbais de conceberá e dará à 8.5-8 A corrente branda de Deus e a
luz são indeterminados; os particípios no torrente da Assíria. Visto que Siloé (cf. 10
hebraico não fazem distinção entre pre- 9.7) é outra palavra para "conduto", "ca-
sente e futuro. nal" (neste caso, um aqueduto aberto, não
ISAíAS 8 966

o túnel de Ezequias, algo ainda futuro), foi Mas os v. 16-18 são o cerne de uma
provavelmente o encontro com o rei (7.3) imensa promessa. Com a expressão meus
que sugeriu essa figura da branda ajuda de discípulos, Deus introduz uma nova defi-
Deus. Ao chamar o mal para combater o nição do seu povo e de sua relação com
mal, Judá acabaria justamente no caminho ele (cf Jo 6.45). (Essas são as possíveis
da inundação que ele havia desencadeado; exceções de 6.9,10). A fé responsiva de
e a terra que eles estavam colocando em Isaías (17) fala por tais, e o pequeno gru-
jogo era a terra de Emanuel. Mas, além da po do v. 18 é visto em Hebreus 2.13 como
ameaça, há também esperança na expressão típico da igreja reunida em tomo de Cristo
até ao pescoço (8); por causa de Emanuel, - uma igreja-modelo de fato, ensinável,
é estabelecido um limite (cf 10.24-27). fiel, esperançosa, visível. Acerca da fun-
8.9-15 Deus, nosso refúgio ou nossa ção dos filhos de Isaías como sinais e ma-
ruína. Esses versículos esplendidamente ravilhas, cf 7.3; 8.1-4. Quem fala nos v.
desafiadores são a resposta do profeta ao 16 e 17-22 evidentemente são o Senhor
significado de Emanuel, Deus é conos- (16) e o profeta (17-22); os imperativos
co (1 Oc), e à forte insistência do Senhor do v. 16 estão no singular, e não há ne-
(tendo forte a mão sobre mim; 11) no nhum indivíduo a quem o profeta estaria
sentido de que o povo deve reformular se dirigindo naturalmente. Uma alternati-
todo o seu pensamento, inclusive seus va atraente a Isaías como receptor suge-
termos para as coisas e suas atitudes emo- rido da mensagem de Deus poderia ser
cionais (12), em tomo do próprio Deus. Emanuel (cf v. 8c; Hb 2.13), mas o autor
(Cf o chamado à renovação da mente em parece ter em mente no v. 18 os filhos de
Rm 12.2). Conjuração pode ser uma re- Isaías portadores dos sinais.
ferência à coalizão de intimidação de 7.2; O contraste com esse grupo piedoso está
como alternativa, talvez não signifique bem definido nos v. 19-22. Com necroman-
nada mais que "liga" ou "aliança" e seja tes no lugar de profetas, murmuração no
o termo que Acaz estava usando para a lugar de ensino e mortos como guias dos
sua parceria com a Assíria. Neste caso, vivos, não é de admirar que jamais verão a
Isaías está dizendo: "Isso não é aliança alva. Acerca da proibição de tais práticas,
que mereça esse nome", i.e., "Não confie cf., e.g., Deuteronômio 18.9-12.
na Assíria nem tema a Síria, mas tema a
Deus e confie nele". 9.1-7 A aurora do Messias
Os v. 12b,13a são citados em lPedro A Bíblia Hebraica coloca o v. 1 junto com
3.14,15, o que de forma impressionan- o capítulo anterior, mas Mateus 4.15, 16 faz
te identifica Cristo com o SENHOR dos dele a abertura do nosso trecho. Zebulom e
Exércitos, como de fato o próprio Jesus já Naftali são certamente tópicos aqui, porque
tinha dado a entender em sua alusão a Isaías caíram nas mãos da Assíria poucos meses
8.14,15 em Lucas 20.18a (cf Rm 9.33; 1Pe depois do encontro de Isaías com Acaz (v.
2.7,8). Cf também comentário de 28.16 comentário de 7.1-9). Assim a primeira
adiante. É como a mais sólida de todas as parte de Israel a sucumbir seria a primeira
realidades que Deus é representado aqui; a ver a glória (I b) - uma profecia impres-
ou todossuficiente ou insuperável. sionante que ficou ignorada (cf Jo 1.46;
8.16-22 A luz é retirada. O teor geral 7.52). O alívio e a alegria crescentes nos
do parágrafo é que Israel está recusando a v. 1-5, à medida que os laços da guerra são
luz (19-22) e assim perdendo o ensino e abolidos, nos preparam para encontrar o li-
a bênção de Deus (16,17). Tudo que eles bertador; mas no lugar de um Gideão dos
querem são sinais (18); tudo que poderão últimos dias (cf v. 4), está o menino (6) já
esperar é escuridão. anunciado como Emanuel em 7.14; 8.8.
967 ISAíAS 10

Enquanto 7.14 se concentra no nasci- 9.13-17 Juízo sobre a frouxidão. O


mento dele e 11.1-16 no seu reino, os v. juízo começa com os líderes (cf Tg 3.1),
6,7 destacam principalmente a sua pes- mas não isenta os seguidores (17). Entre
soa. Outros trechos bíblicos confirmam aqueles, são os profetas que recebem o
que os primeiros três títulos sugerem di- desprezo de Deus como também sua cen-
vindade; e.g., Maravilhoso regularmente sura (15), comparados, como o expressa
significa "sobrenatural" (cf especialmen- Delitzsch, ao "rabo de um cão adulador".
te Jz 13.18), e é Javé quem é "maravilho- 9.18-21 Juízo sobre a desunião. O pe-
so em conselho" em Isaías 28.29. Tem cado, duplamente destrutivo, primeiro reduz
havido tentativas de reduzir Deus Forte a sociedade a uma mata, então espalha o seu
a "herói semelhante a deus" (cf Ez 32.21, fogo através dela - como nossos conflitos
onde, contudo, o termo está no plural), modernos ainda testemunham. Mas juizo
mas 10.21 usa o termo idêntico lado a auto-imposto ainda assim é juízo de Deus
lado com "o SENHOR, o Santo de Israel" (v. 19a,21b).
(10.20). Pai da Eternidade não tem pa- 10.1-4 Juízo sobre a injustiça. Não o
ralelo exato, mas há um paradoxo em dar furor bruto de parágrafos anteriores, mas
esse nome a uma criança que ainda vai os erros legalizados do governo (I) é o que
nascer. Pai significa a benevolência pater- constitui o clímax da série. A pergunta in-
na do Governante perfeito sobre um povo sistente do v. 3 é capaz de minar os feitos
a quem ele ama como seus filhos. Paz de uma vida inteira, sendo todos realizados
em hebraico sugere prosperidade como segundo as leis da terra.
também tranquilidade, e o v. 7 retoma o Esse é um importante tratamento do
termo hebraico de Príncipe (na palavra controle de Deus sobre a história, no mundo
governo) assim como paz, acrescentan- como um todo e entre o seu povo escolhido.
do agora a primeira garantia explícita de Os v. 9-11 parecem datar o oráculo após a
que o príncipe será de linhagem davídica queda de Samaria (722 a.C}; mas a com-
(cf 11.1). Acerca da expressão final do pleta certeza anterior que Isaías teve desse
v. 7 cf Ezequiel 36.22; Zacarias 8.2. evento (cf 8.4) não deve ser ignorada.

9.8-10.4 A sombra sobre Samaria 10.5-34 O machado


A mão de Deus, preparada para ferir, foi de Deus sobre Judá
vista em 5.25; a mesma ameaça está sobre 10.5-19 Assíria, o instrumento de Deus.
este trecho, sa1ientando-a em 9.12,17,21; O conhecimento de que o agressor é mane-
10.4. Embora o autor tenha em mente prin- jado por Deus coloca a questão do sucesso
cipalmente o Reino do Norte (9,21), o tre- dos maus no seu contexto apropriado, ao
cho final (10.1-4) pode bem incluir Judá, mostrar que serve aos propósitos da justi-
como o fez 5.24,25. ça quando parece desafiá-los (6,7), e nem
9.8-12 Juízo sobre a bravata. Rir e é impressionante em si mesmo (15), nem
descartar os fatos (10) podem dar ânimo fica impune no final das contas (12). Sua
a uma plateia, mas são uma recusa de en- falta de conteúdo é auto-admitida, inci-
frentar o significado dos sintomas. Nada dentalmente, nas amostras do pensamento
pode então impedir o juízo. Os adversá- assírio: a complacência nos v. 10,11, o or-
rios de Rezim (11) seriam principalmente gulho no v. 13a e a mentalidade de ladrão
os assírios (v. comentário de 7.1-9); as nos v. 13b,14. As cidades fortificadas do v.
pressões do v. 12 podem ter se desenvol- 9 (cf 36.19) marcam a aproximação inexo-
vido entre a conquista de Damasco pela rável do inimigo, preservada na ordem das
Assíria em 732 e a queda de Samaria palavras no texto hebraico, de Carquemis
em 722. até o Eufrates e descendo até Samaria ali
ISAíAS 10 968

perto. Cf o avanço mais localizado, em um ataque do norte, cobrindo os últimos


forma de redemoinho, nos v. 28-31. 15 a 30 quilômetros até Jerusalém. Visto
Das duas metáforas, tísica efogo da flo- que a real rota das forças de Senaqueribe
resta, entretecidas nos v. 16-19 (o hebraico seria a partir de Laquis (cf 36.2), a sudo-
não tem convenção alguma contra metáfo- este de Jerusalém, o alvo do oráculo não
ras mescladas), a primeira tem a arma adi- é, supostamente, informar, mas inspirar,
cional, talvez, de fazer a correspondência primeiro invocando a mais vívida impres-
com os reais meios que Deus usará contra são de um inimigo do norte mergulhando
o exército assírio (v. comentário de 2Rs sobre Jerusalém, então abruptamente mu-
19.35), enquanto a segunda reforça o tema dando a cena para a derrubada de gigantes
predominante de Isaías de humilhar o que da floresta (33.34) - a metáfora distintiva
é altivo (cf v. 33,34; 2.12,13). do juízo (cf 2.12,13; 6.13; 10.18,19). Isso
10.20-23 A conversão do remanes- reforça de forma comovente o conforto de
cente. As duas implicações dos dois ter- Isaías: não temas (24), seu lema em toda a
mos na expressão: Os restantes se conver- crise (cf 7.4; 8.12,13).
terão (Sear-Jasube, cf 7.3) são destacadas
nesse trecho muito significativo. Por um 11.1-12.6 O reino messiânico
lado, não mais que um pequeno grupo so- Voltamos ao tema do Emanuel, e embora o
breviverá ao juízo iminente ou voltará da destino caído da casa real (I) revele o lado
deportação (22,23; cf 11.11); por outro sombrio do sinal dado a Acaz (7.13-25), o
lado, se converterão ao Deus forte (21) restante é iluminado.
significa conversão. Deus busca um povo 11.1-5 O rei perfeito. A árvore, der-
que se arrepende, cuja confiança, ao con- rubada mas não destruída, faz um con-
trário da de Acaz em 2Reis 16.7, está nele traste revelador com a floresta arrasada
e não no homem (20,21). Esse é o verda- da Assíria (10.33,34). Em 6.13, o toco era
deiro Israel; não é toda a multidão dos des- Israel, sobrevivendo no remanescente (v.
cendentes de Abraão (v. a alusão no v. 22a também comentário de 4.2); aqui é a casa
a Gn 22.17; cf Rm 4.16; Gl 3.7-9). Paulo de Davi, e o seu ponto de crescimento é
não somente cita esse trecho (Rm 9.27,28) um homem.
como também argumenta detalhadamente 1-3a O Espírito (2), não somente o
que o "remanescente segundo a eleição da nascimento da linhagem real, o prepara
graça" (Rm 11.5) é a chave para a relação para o posto, assim como acontecia com
de Deus com Israel e o mundo. os juízes e antigos reis (cf Jz 3.10; 6.34
Acerca de Deus forte (21), ver comen- etc.; 1Sm 10.1 O; 16.13), de modo que ele é
tário de 9.6. Acerca da dupla menção à Salomão, Gideão e Davi em um, contudo
destruição determinada (22,23), observe não é dotado de forma parcial ou vacilante,
a deliberação com que Deus age em todo mas de forma constante (2a) e ampla. Os
esse capítulo - veja a mão preparada do dons vêm num conjunto de três, em vez
v. 4 (com 9.12 etc.), a imparcialidade dos de sete: sabedoria e entendimento para o
v. 12,25, o interesse pela justiça simples governo (cf IRs 3.9-12), conselho efor-
nos v. 2,22b e o resultado positivo vis- taleza para a guerra (cf 9.6; 28.6; 36.5),
lumbrado nos v. 20,21. e conhecimento e temor do SENHOR para a
10.24-34 O agressor é detido. Esse é liderança espiritual (cf 2Sm 23.2). O de-
um apelo duplo à fé. Em primeiro lugar, leite do v. 3a leva consigo a implicação de
ao lembrar do amor dele em tempos pas- que o temor do SENHOR é agradável a ele.
sados (24-27); em segundo, ao retratar Os v. 3b-5 mostram esses poderes sen-
uma ameaça assíria repentinamente redu- do exercidos por sua vez, fazendo dele o
zida a nada (28-34). Isso é retratado como guia, guardião e exemplo para o seu povo.
969 ISAíAS 13

Já começa a aparecer no v. 4b que ele é o do caminho plano [...] da Assíria obterá


sobrenaturalmente dotado, e isso fica cla- um significado mais rico em 19.23-25.
ro além de qualquer dúvida nos versículos 12.1-6 O cântico da salvação. Após a
seguintes. alusão ao êxodo (11.16), há ecos apropria-
11.6-9 O paraíso é reconquistado. dos do cântico de Moisés (cf v. 2b com
Nessa cena idílica, o título "Príncipe da Êx 15.2a e, menos exatamente, v. 5a com a
Paz" (9.6) é desenvolvido perfeitamente. resposta de Miriã, Êx 15.21a).
É significativo que a paz seja difícil de A ira que estava suspensa sobre Israel
ser obtida; ela segue o juízo (cf v. 4b) e no refrão de 9.12,17 etc. finalmente é afas-
provém da justiça (cf v. 5), de maneira tada, e o cântico celebra o fim da desaven-
fiel à sequência exposta em 32.17. O seu ça (1), do temor (2) e das necessidades (3).
cerne, no entanto, é o relacionamento ex- É característico de Isaías que a confiança
presso como o conhecimento do SENHOR tranquila (2) encontre um lugar preco-
(9; cf Jr 31.34). Como um retrato, isso ce aqui, e que o conforto de Deus siga o
é inesquecível e expressa a reconciliação, cativeiro (1; cf e.g., 40.1; 66.13). Mas o
a harmonia e a confiança com eficácia próprio Deus é o verdadeiro centro do sal-
máxima. O reino de Cristo já produz esse mo; Deus em relação ao cantor (1,2); Deus
tipo de transformação na esfera do caráter conhecido pelos seus atos (4,5) e pelo seu
humano, e transformará definitivamente nome, i.e., sua autoproclamação (obser-
toda a criação (cf Rm 8.19-25). Se isso ve a combinação incomum "o SENHOR, o
vai ser realizado literalmente como des- SENHOR" [o SENHOR Deus, ARA; "o SENHOR
crito aqui é outra questão; parece melhor JEOvÁ", ARe; "o SENHOR, sim o SENHOR,
tomar isso como uma expressão terrena NVI] no v. 2 destacando o nome pessoal
dos "novos céus e nova terra" (65.17,25) explicado em Êx 3.14,15; observe também
nos quais a diversidade não será uma ini- a expressão especial de Isaías: o Santo de
miga, e os fracos serão o complemento e Israel no v. 6); acima de tudo, o Deus gran-
não mais a presa dos fortes. Cf o v. 9b de presente no meio de ti (6).
com Habacuque 2.14.
11.10-16 A grande volta para casa. O 13.1-23.18 Mensagens
v. 10, ecoado no v. 12a, rompe os limites para as nações
da nacionalidade, ao mesmo tempo em que Apesar de toda a sua obscuridade de deta-
ressalta que há salvação em somente um lhes, esses capítulos ensinam uma verda-
nome debaixo do céu (cf At 4.12). Esse de fundamental e central: que o Reino de
rei é tanto raiz quanto "rebento" (cf v. 1) Deus é o mundo. É fácil anunciar isso em
da casa real (cf Ap 22.13,16). Observe a termos gerais; explicar em detalhes, como
reação voluntária das nações nos v. 10, esse trecho o faz, é mostrar que a soberania
12a (cf 2.3; 42.4; 51.5). Ao mesmo tempo, não é algo nominal, mas real e penetrante.
nem todos afluirão a ele, e está tão claro Os oráculos foram anunciados em épo-
neste trecho quanto em outros que aque- cas diversas (cf 14.28; 20.1). Combinados,
les que escolhem a inimizade encontrarão, formam um prelúdio às visões mundiais
logicamente, a destruição (14: cf v. 4). A dos cp. 24-27, e um interlúdio entre a
supressão da inveja (cf 9.20,21) é a con- predição da crise assíria nos cp. 1-12 e o
traparte humana nos v. 6-9, deixando a seu ataque nos cp. 28-39.
combatividade do povo de Deus para o seu
uso adequado (14; cf Tg 4.1,7). 13.1-14.23 Babilônia
O tema de um êxodo maior (15,16) O fato de que Isaias, filho de Amoz (13.1;
será desenvolvido amplamente em capítu- cf 1.1) foi designado para profetizar acerca
los posteriores (e.g., 35.1-10; 48.20,21), e da Babilônia como o grande opressor, ante-
ISAíAS 13 970

vendo o seu papel um ou dos séculos mais Ciro no seu reino medo-persa, estavam
tarde, tem implicações importantes para a destinados a derrotar a Babilônia sob Ciro
autoria dos cp. 40-66 (v. Introdução). em 539 a.c. A sua proeza militar (17,18),
Contra essa posição, S. Erlandsson (The que derrubou o Império Babilônico, não foi
Burden of Babylon [Lund, 1970]) argu- necessária contra a cidade em si, tomada
menta que "Babilônia" aqui é meramente sem batalha. Isso foi, contudo, o começo
a cidade como ela era nos dias de Isaías, do fim da Babilônia. Os v. 19-22 focam no
antes da sua ascensão ao poder imperial, declínio que se tomou irreversível quando
e que a sua destruição é a de 689 a.C. pelo Seleuco Nicator abandonou a cidade, no
seu dominador, o rei da Assíria. Esse ponto final do século IV a.c., para construir a sua
de vista, no entanto, significa (a) associar nova capital, Selêucia, a 64 quilômetros
somente 6 dos 46 versículos diretamente dali. Mesmo assim, a sua deserção não foi
à Babilônia; (b) considerar o retomo de total até o século li d.C. As criaturas dos v.
Israel do exílio em 14.1,2 algo não rela- 21,22 (cf 14.23; 34.11-15; mas 35.7) não
cionado ao cativeiro babilônico; e (c) di- são todas identificáveis, mas são evidente-
rigir o canto de escárnio de 14.4-23 contra mente sinistras e cerimonialmente impu-
Senaqueribe da Assíria, sob um dos seus ras. Daí que sátiros (um tipo de demônio;
títulos secundários, o de rei da Babilônia. cf Lv 17.17) é uma tradução mais provável
Embora os detalhes dessa tese sejam im- no v. 21 do que "bodes selvagens" (NVI),
pressionantes, é dificil enxergar por que a visto que bodes eram ritualmente puros.
Babilônia provincial dos dias de Isaías de- O contraste entre o ornamento dos reinos
veria atrair esse oráculo de abalo mundial, (19) e esse "covil de toda espécie de espí-
se não tivesse relação alguma com o papel rito imundo e esconderijo de todo gênero
que a Babilônia exerceria no cativeiro e no de ave imunda e detestável" (Ap 18.2) rea-
segundo êxodo de Israel. Acima de tudo, a parece na queda final do mundo ímpio em
dissecação do cp. 13, pela qual a Babilônia Apocalipse 18, descrito como Babilônia
se toma quase que um complemento (19- - o mundo cuja glória Satanás ofereceu a
22), e o redirecionamento do cp. 14 à Jesus em Mateus 4.8,9.
Assíria fazem essa interpretação parecer 14.1,2 A virada de mesa. Aqui está o
mais forçada do que convincente. embrião dos cp. 40-66 e particularmen-
13.1-16 O Dia do Senhor. O poema te dos cp. 56-66, em que o domínio de
mergulha diretamente na cena de batalha, Israel é um tópico importante. O ponto
com os sinais e gritos de um ataque que de partida, como no cp. 40, é a graça di-
se revela como um completo juízo divino vina, descrita aqui em termos de emoção
(4,5). Eles são os consagrados (3) de Deus, (contraste a compaixão de Deus [1] com a
não importa se o servem intencionalmente dureza de coração de 13.18) e de volição
ou não. O termo aqui é amoral, como ex- (elegerá). Nesse pequeno espaço, dois as-
plica o v. 16. pectos da futura relação dos gentios com
Embora Babilônia seja o ponto focal Israel são esboçados, mostrando-os como
do capítulo (1,19), representa algo muito convertidos e servos. Com os estrangeiros
maior do que ela mesma, visto que a pala- residentes do v. 1, integrados na comuni-
vra hebraica ambígua para pais (5) ou terra dade, cf 56.3-8.
(9,13) dá lugar a outro significado, mundo Os degraus do serviço vislumbrados no
(11). Esse é um cenário de revolta cósmica v. 2, desde a ajuda cordial (2a) até a servi-
como o que o NT usa para descrever os últi- dão (2b), reaparecem em, e.g., 66.18-21 e
mos dias (cf v. 10,13 com Mt 24.29). 60.10-16 (v. comentários).
13.17-22 A queda da Babilônia. Os 14.3-23 Um insulto ao rei da Babi-
medos (17), como parceiros principais de lônia. Deus faz com que a última palavra
971 ISAíAS 14

sobre os vencedores seja pronunciada pelas do seu regime, e não à sua queda anterior
suas vítimas, não seus admiradores (3,4a). da graça (cf Ap 12.9-12).
Acerca da identidade do rei da Babilônia, Alguns sugerem que uma narrativa co-
certamente não se trata do ineficiente nhecida acerca da estrela da manhã, opri-
Nabonido, o último rei (a quem Belsazar mindo o resto e depois caindo sobre a terra,
estava representando), mas a dinastia toda pode estar por trás desse poema (há parale-
e o reino personificado nela. V. também los verbais cananeus da estrela da manhã
comentário dos v. 12-21, adiante. personificada e da alva, do título Altíssimo
Os dois movimentos do cântico de es- e da figura de um monte da congregação,
cárnio (4b-11; 12-21), enquadrados entre ao norte, da corte celestial); mas tal narra-
o prólogo e o epílogo (3-4a; 22,23), anun- tiva, se existiu, não veio à luz. A ideia de
ciam o seu tema de uma vez, nos v. 4b e assaltar o céu, no entanto, certamente es-
12, com o grito característico da exclama- tava associada à Babilônia (i.e., Babel; Gn
ção: Como ... ! (v. comentário de 1.21). 11). Uma das suas ironias é que ser seme-
Cf. cp. 47. lhante ao Altíssimo (14) é ser alguém que
O opressor subjugado é o primeiro se exalta, ao passo que é ser alguém que se
tema; o seu verdadeiro epitáfio é o alívio doa (cf Fp 2.5-11). A feiura como também
indizível que o mundo sente em virtude a brevidade da falsa glória são mostradas
da sua partida (7). O nome que Deus dá a com toda a força nos v. 16-21.
tais malfeitores não é "homens com desti- A expressão no mais profundo do abis-
no", mas "bodes" (o significado literal da mo (15), em correspondência e contraste
palavra heb. traduzida por "príncipes" no com as esperadas mais altas nuvens do
v. 9), uma descrição quase tão oca quan- monte divino (13), dá um vislumbre pre-
to o estado patético a que eles chegaram. coce das distinções no sheol que se tomam
A coberta real do v. 11 é a última verdade mais claras no NT (cf Lc 16.26).
brutal para o hedonista. A cova (lit. sheo{)
é o termo geral para o reino dos mortos; 14.24-27 Assíria
não é o inferno penal, para o qual o NT usa Isso reafirma brevemente 10.5-34, acerca
o termo geena. A palavra traduzida por da ameaça imediata que pende sobre Judá.
"mortos" (ARe), sombras (ARA) ou "espí- A afirmação de Deus como determinei (24)
ritos dos mortos" (NVI) é de derivação in- retoma exatamente a mesma palavra usada
certa. A descrição poética aqui e em 26.14 dos próprios planos da Assíria em 1O.7a
e Salmos 88.10 sugere praticamente uma ("intenta"). O fato de que o inimigo de-
suspensão da existência; mas o AT conse- veria ser subjugado no momento aparente
gue enxergar além disso, e às vezes até a da sua vitória, na minha terra, é caracte-
ressurreição do corpo (v. comentário de rístico da estratégia divina (cf At 4.27,28).
26.19; Dn 12.2). Acerca da mão que está estendida (26,27),
A estrela da manhã caída é o segundo cf 9.12; 10.24-27.
tema, i.e., a ambição fatal do tirano e não
sua opressão. Com frequência se considera 14.28-32 Filístia
que esse cântico conta a revolta de Satanás Os v. 28 e 32 dão vida a esse oráculo.
(em conjunto com Ez 28); mas essa é uma Acaz, o rei pró-Assíria, está morto; a
conjectura precária. A narrativa do orgulho Assíria está em dificuldades (29a); agora
e da queda só é semelhante, no máximo, uma missão da Filístia (32a) chega a Sião
ao que é dito de Satanás em, e.g., Lucas para propor uma rebelião - uma ideia
10.18; lTimóteo 3.6 e, de todo o modo, sempre simpática a Ezequias. Se isso ti-
quando as Escrituras falam diretamente da vesse acontecido em 727, quando morreu
sua queda, referem-se ao desmoronamento o assírio Tiglate-Pileser IIl, o v. 29a teria
ISAíAS 15 972

sido mais enfático; mas 716/15 é uma data Lc 12.21) estão evidentemente atravessan-
mais provável. Foi um teste de obediên- do uma fronteira; as torrentes dos salguei-
cia tão difícil para Ezequias como o do ros ("ribeiro dos salgueiros", ARe) talvez
cp. 7 o fora para Acaz; e os filisteus eram sejam o uádi el-Hesy entre Moabe e Edom.
um povo formidável para se ofender (cf Mas apesar da compaixão de Deus, o juízo
2Cr 28.18,19) nessa época. vem dele, e precisa se intensificar (cf Mt
A resposta de Deus é tríplice. Em pri- 23.37,38).
meiro lugar, coisas piores da Assiria ain- 16.1-5 Moabe pode olhar para Sião.
da estão por vir (29); em segundo lugar, Moabe foi aconselhado a "habitar na ro-
a Filístia é um povo condenado (30b,31); cha" (heb. Sela; cf. 2Rs 14.7; i.e., na forta-
em terceiro lugar, o verdadeiro bem-estar leza edomita conhecida como Petra), como
está somente no Senhor (30a,32). Essa é a uma pomba que faz aí o seu ninho (cf Jr
mensagem constante de Isaías: confiança, 48.28). Mas aqui Deus agitou o ninho (2)
não intrigas. para fazer com que busque um refúgio
melhor do que o vassalo de Sião. Ovelhas
15.1-16.14 Moabe eram o tributo costumeiro dessa terra de
Conhecimento íntimo e compaixao in- criação de ovelhas (cf 2Rs 304). O verbo
tensa, prontos para aliviar o juízo, mas no v. I pode ser enviai ou "eles enviaram"
incapazes de impedi-lo, são as marcas es- (RSV); enviai parece preferível.
peciais desse oráculo, que é citado e am- Mas o páthos do v. 2 é mais eloquente
pliado em Jeremias 48. Moabe tinha laços do que qualquer dinheiro de tributos ~
de família com Israel (cf Gn 19.36,37) e não importa se os v. 3,4a expressam o ape-
particularmente com Davi (cf Rt 4.17; lo dos refugiados ou a ordem do Senhor
ISm 22.3,4), mas não tinha nada em co- a Sião para que os receba. O apelo, ou a
mum com a fé e a religião de Israel, sendo ordem, também podem representar dra-
que aparece no AT como uma influência maticamente para nós o chamado para que
maligna (cf, e.g., Nm 25) e como um ini- usemos a mente (conselho), a consciência
migo inveterado (cf 2Rs 304-27). (juízo) e os recursos (sombra) a favor dos
15.1-9 Derrota e fuga. A localização perdedores na vida (a quem Deus pare-
de Ar (I) é desconhecida; as consoantes ce chamar aqui de "meus desterrados"
podem ser lidas como "cidade", fazendo no texto não-emendado do v. 4a [assim,
dela um outro termo para Quir, i.e., Quir- ARe]). Depois a perspectiva de Sião como
Haresete (cf 16.7,11), a fortaleza princi- refúgio e um lugar a que se possa correr
pal de Moabe (a atual Kerak), situada ao (cf 14.32; 2.3,4) conduz nos v. 4b,5 a mais
sul. Tendo caído Quir, tudo mais estava uma das visões de Isaías de um rei perfeito
perdido, mas a fuga ao sul para Zoar (5) que está por vir. Entre as quatro virtudes
em Edom sugere que a invasão tinha vin- desse regime (5), observe a sua rapidez
do do norte, cujas cidades citadas aqui (a em promover o que é justo em contraste
maioria na estrada real; cf Nm 21.21-30) com a perversidade de 59.7 e a paralisia
tinham buscado em Quir um porto seguro. de Habacuque IA.
A angústia do v. 5 reaparece novamente 16.6-14 O orgulho de Moabe e a sua
em 16.7,9,11. A sensibilidade para com as queda. O conforto fatal de Moabe é capta-
misérias da guerra (cf Jr 4.19-21) e a ge- do nas metáforas da vindima de Jeremias
nerosidade para com o inimigo (cf, e.g., 48.11: "Despreocupado esteve Moabe
Êx 2304,5; Pv 25.21,22) não são incomuns desde a sua mocidade [...] [como vinho]
no AT, mas raramente são combinadas de não foi mudado de vasilha para vasilha".
forma tão pungente como aqui. Os refu- O vinho, esteio principal da prosperidade
giados agarrados aos seus tesouros (7; cf de Moabe, também predomina neste orá-
973 ISAíAS 19

culo, com os seus produtos derivados (7), 18.1-7 Etiópia


exportação (8b) e festas (10), todos extre- A palavra para Etiópia no v. 1 é Cuxe, ou,
mamente vulneráveis. nos nossos termos, o Sudão; mas Isaías
O v. 12 contém um jogo de palavras inclui a região além dos rios (i.e., suposta-
amargo no hebraico em: Ver-se-á [...] se mente Atbara e o Nilo Azul), o que sugere
cansa, e sua memorável expressão final a atual Etiópia. O termo para roçar não é
mostra a falência de toda a religião pagã, distinto de "tsé-tsé", imitando o zumbido
de forma bem semelhante ao que faz o dos insetos. Tudo ressalta que os enviados
nosso Senhor em Mateus 6.7. Tais como desse capítulo vêm dos confins da terra; e
de jornaleiro (14) significa "anos cur- o apelo exótico desse fato seria reforçado
tos", associando isso com a ansiedade de pela sua aparência impressionante (ho-
um trabalhador desinteressado em ver o mens altos e de pele brunida) e de repu-
tempo passar. tação formidável (2b) - pois Cuxe tinha
justo assumido o controle do Egito. Mas
17. 1-14 Damasco e o norte de Israel essa missão enviada (v. comentário de
Isso evidentemente é dos dias iniciais de 14.28-32) é despedida com uma palavra
Isaías, quando a Síria e o Israel do norte de Deus: Ide. (A ARA e a ARC são engano-
eram unha e carne (v. cp. 7) e os seus rei- sas aqui ao inserir o "dizendo" no v. 2a,
nos ainda estavam intactos. Damasco re- pois isso muda o sujeito da frase e o sen-
cebe um aviso rápido do seu destino, mas tido; melhor como está na NVI). Deus não
Israel recebe o impacto maior da repreen- tem necessidade alguma de intrigas; ele
são, como também a indignidade de ser vai aguardar o seu tempo, trabalhando tão
classificado entre os pagãos, tendo o seu silenciosamente quanto as estações (4). O
oráculo colocado entre os deles. inimigo atingirá o monte de Judá (3; cf
Os v. 3b,4, talvez formulados de tal 14.25), somente para ser eliminado no
maneira que lembrem a partida da glória limiar da vitória, assim como uma safra
nos dias de Eli (cf 1Sm 4.21), apresentam destruída na véspera da colheita (5,6).
um quadro alarmante da beleza que se foi O último versículo parece apontar para
e, com o v. 5, da destruição metódica. Mas além da crise imediata da agressão assíria
o plano de Deus de respigar e catar uma que tinha trazido os enviados a Jerusalém.
mão cheia de convertidos, que adorem o Isaías agora vê os víajantes sob nova luz,
seu Criador (7) em vez das suas próprias como os primeiros de muitos que virão a
fabricações, de fato se concretizou (v. 2Cr Jerusalém um dia por reverência (o heb.,
30.10,11). As suas cidades fortes (9) são ao omitir no v. 7a a preposição [por, ARA],
as que foram deixadas pelos cananeus e sugere que serão eles mesmos o presente
ainda estavam de pé nos dias de Isaías. de reverência e honra; cf ARC e NVI). É a
Se esse foi um processo tragicamente de- perspectiva já vista em 2.3; 11.10 e que
vastador, os v. 10,11 mostram que isso foi será mais desenvolvida nos cp. 60-62.
escolha de Israel, na dupla metáfora da Isso é expresso de forma exultante em
fortaleza negligenciada (1Oa) e da vindi- Salmos 68.31-35; 87.4.
ma desperdiçada. As mudas de fora, tão
promissoras em pouco tempo, representa- 19.1-25 Egito
vam o pacto de Israel com a cidade pagã Esse oráculo é uma expressão forte da ver-
de Damasco contra Judá e a Assíria, para dade segundo a qual Deus fere a fim de
a sua própria ruína (cf 7.5-8). Os v. 12-14 curar (cf v. 22). O colapso inicial é seguido
generalizam as garantias dadas em, e.g., de uma renovação que vai além de qualquer
7.8; 8.4; o seu paralelo mais impressio- coisa prometida a uma nação gentílica no
nante é o Salmo 46. AT. Talvez o Egito seja mostrado aqui em
ISAíAS 19 974

seus dois aspectos: em primeiro lugar, como Se as cinco cidades (18) tiveram signi-
a potência mundial para a qual Israel estava ficado literal, agora não é possível identi-
sempre olhando (cf 20.5) e, em segundo ficá-Ias. É mais provável que a expressão
lugar, como parte do mundo de Deus, com signifique "algumas", ou então seja uma
o qual ele se importa, e que tem um lugar alusão ao precedente de Josué 10 em que
no seu reino em que classes e raças atuais a conquista de cinco cidades dos cana-
serão completamente suplantadas. neus levou à vitória geral. A Cidade do
19.1-5 O Egito é prostrado de joe- Sol (18b) seria On, mais tarde conhecida
lhos. A metáfora da nuvem ligeira de Deus como Heliópolis; mas o hebraico soletra
(1) indica que as imagens poéticas vão ex- essa palavra aqui (talvez como trocadilho)
pressar as verdades desse trecho, no qual como: "Cidade da Destruição". O ponto é,
se mostra que todos os recursos do Egito de qualquer maneira, a captura espiritual
falham. É significativo que os seus recur- de uma extraordinária fortaleza do paga-
sos espirituais são os primeiros a desmoro- nismo. Em torno de 170 a.c., foi construí-
nar: suas crenças, sua moral (1), a unidade do um templo em Leontópolis no Egito
(2) e a sabedoria terrena (3). Em seguida, por um sacerdote expulso, Onias IV, que
o que se vai é a sua liberdade (4). O senhor recorreu ao v. 19 como justificativa. Mas
duro podia ser um dos seus dominadores a intenção do versículo, assim parece, é
etíopes, e.g., Tiraca no tempo de Isaías, ou falar em linguagem típica: haverá terreno
um dos seus conquistadores posteriores, sagrado ali onde antes tudo era profano.
persa ou grego; podia ser até um tirano Cf coluna com o monumento de Jacó em
nativo. É a sequência, da decadência até Betel, afirmando ser ali o próprio território
a tirania, que é importante, e não a iden- de Deus (Gn 28.13,18).
tidade individual. Depois Deus toca a sua Os v. 23-25, ao estender o outro braço
espinha dorsal, o Nilo, e uma por uma as para abraçar também a Assíria (tão fre-
suas indústrias murcham. O estado final é quentemente associada com o Egito nos
de anarquia desesperadora (11-15), o que piores contextos; cf Os 7.11; 9.3), apre-
é ainda mais atormentador para uma na- sentam uma visão incomparável da com-
ção que tinha se orgulhado durante mais pleta inclusão dos gentios no reino. Israel
de dois mil anos da formação dos seus terá somente uma parte igual (Israel será
oficiais. Çf o v. 12 com IReis 4.30. Zoã o terceiro, 24; mas não o terceiro lugar),
e Mênfis (13) eram as capitais, atual e an- e os seus títulos distintivos serão com-
tiga, do Egito. Zoã (provavelmente Tanis, partilhados com os seus inimigos mais
no Delta) foi lembrada como o cenário da cruéis. (Acerca de meu povo, cf Os 2.23;
grande opressão (cf SI 78.43). Cf o v. 15 lPe 2.10; acerca de obra de minhas mãos,
com 9.14,15. cf Is 29.23; acerca de minha herança, cf
19.16-15 O Egito convertido. O refrão Dt 32.9).
quintuplicado: Naquele dia... é um sinal
que aponta (como em outros trechos, e.g., 20. 1-6 A crise de Asdode
2.11,12) para o dia do Senhor. Isaías prevê Uma inscrição de Sargão completa esse
a conversão dos gentios, sob a imagem da- quadro. A cidade dos filisteus, Asdode,
quele que é o opressor e sedutor mais anti- tinha se revoltado contra a Assíria, que
go do povo de Israel (cf 30.2-5). O proces- prontamente depôs o seu rei. O novo lí-
so é traçado desde o seu início com tremor der dos rebeldes, Yamani, levou adiante a
e temor (16,17), conduzindo à submissão disputa com o apoio prometido do Egito
(18) e ao acesso concedido por Deus (19- e da Etiópia, sendo que também tinha se
22; altar e sacrificios), e ao direito à comu- aproximado de Judá. A dissuasão pode-
nhão (23) e completa aceitação (24,25). rosa de Isaías se mostrou completamente
975 ISAíAS 21

justificada: o Egito não veio lutar, Asdode dos últimos capítulos, pelo fato de que
foi subjugada, e Yamani, que tinha fugido são exatamente os sentimentos de alguém
para a Etiópia, foi entregue às afáveis mi- para quem (assim como para os exilados)
sericórdias dos assírios. a Babilônia parecia tanto a prisão quanto
Tartã na verdade é um título em assí- o lar. Se Isaías deveria de fato consolar
rio, e por isso a NVI traz: "general". O ano ("falar ao coração de", 40.1) uma geração
era 711 a.c.; a revolta irrornpera em 713, posterior, como se ele mesmo fosse um
e o traje de escravo que Isaías usava tinha deles, esse profundo envolvimento seria
sido adotado então, sem explicação, como claramente um pré-requisito; é o lado in-
mostra o v. 3. (o v. 2 é um interlúdio). Deus terior de sua profecia. Observe, também, a
o expõe agora como o destino reservado sua percepção dupla. Em certo sentido ele
para os rebeldes assírios. está à distância do seu eu de atalaia (6) e
Visto que Judá não foi castigado pela precisa relatar somente o que ele vê e ouve
Assíria, parece que essa advertência foi (cf Hc 2.1-3). Essa objetividade é grande-
aceita. G. A. Smith ressalta que essa lin- mente ressaltada (6,7,10).
guagem de sinais (cl 8.18) fez a mensa- No v. 8a (fascinantemente inconse-
gem calar fundo no povo, não somente na quente depois do v. 7, no texto padrão,
corte. O desconforto e a humilhação de seguido por algumas traduções: "Um leão
Isaías foram o preço pago pela segurança gritou"), a ARA (como também a NVI) com
do seu povo. razão seguem o texto dos manuscritos de
Qumran. Justo quando a sua vigília parece
21.1-10 Babilônia, interminável, o profeta enxerga a prome-
"0 Deserto do Mar" tida cavalgada e sabe que ela significa o
Este oráculo, como o seguinte, tem uma fim da Babilônia. Apocalipse 18.2 retoma
forte característica visionária (na metáfo- o grito: "Caiu! Caiu", e trata a Babilônia
ra do "atalaia") e um título simbólico. O como representante típica do mundo ím-
tópico emerge no v. 9 como a queda da pio. O clamor final: Povo meu, debulhado
Babilônia. A expressão deserto do mar (I) e batido como o trigo da minha eira capta
parece combinar duas figuras da natureza não somente a agonia, mas também o pro-
indomada e invasora, que são mais explíci- pósito da longa provação de Israel.
tas em Jeremias 51.42,43. Mas as mesmas
consoantes poderiam resultar simplesmen- 21.11,12 Dumá
te em "desertos" ou "destruidores". Os topônimos pertencem a Edom, mas o
Uma figura desconexa e vívida (2-7) título Dumá (cf Gn 25.14) pode ter sido
é formada a partir de um ataque dos per- escolhido pelo seu significado pressa-
sas (Elão, como uma satrapia persa) e dos gioso: "silêncio". O ponto da questão é:
medos (2) que pegará os defensores da "Quanto tempo ainda falta até a manhã?"
Babilônia despreparados e em festa (5), - refletindo um tempo de sofrimento. A
exatamente como Daniel 5 registra esses resposta não é uma trivialidade, mas uma
fatos. Mas o envolvimento de Isaías nas advertência de que qualquer trégua será
visões é a sua característica mais impres- apenas temporária (cf. Pv 4.18,19). Os
sionante. A sua grande perturbação nos três imperativos hebraicos, lit. "perguntai,
v. 3,4 é semelhante à do profeta Jeremias voltai, vinde" (l2b), podem ser entendidos
em Jeremias 4.19-26, mesmo que a queda pelo seu valor superficial ou, mais profun-
dessa cidade perseguidora, esse lugar de damente, como o chamado divino básico:
gemido (2), seja algo que ele tem deseja- "Buscai, arrependei-vos, vinde", Mas a
do (4). Mas essas reações contrárias lan- resposta de Edom pode ser compreendida
çam uma luz indireta sobre a composição com base em, e.g., 34.5-17 e em Obadias.
ISAíAS 21 976

21.13-17 Arábia líderes em fuga (3; cf. 2Rs 25.4,5) e suas


Na segunda ocorrência de Arábia no casas derrubadas para fortalecer os muros
v. 13, as versões antigas trazem "noite" (10; cf Jr 33.4). O papel desempenhado
("tardezinha"), que tem as mesmas con- nisso por guerreiros do Elão e de Quir (6)
soantes. Provavelmente haja aqui uma não é mencionado em outros textos bíbli-
intenção dupla de significado (cf o v. 11 cos; mas Quir ficava no Império Assírio
e os títulos simbólicos em 21.1; 22.1). O (cf 2Rs 16.9), e contingentes de merce-
significado especial desse oráculo está na nários desses postos avançados podem
sua advertência às tribos mais livres e ina- bem ter feito parte do legado da Assíria
cessíveis de que o longo braço da Assíria a Nabucodonosor.
vai alcançar inclusive a elas, sob a ordem Acerca da Casa do Bosque como depó-
de Deus. As do longínquo sul, Tema e sito de armas (8), cf 1Reis 10.17; acerca do
Dedã, terão de socorrer a sua tribo-irmã suprimento de água (9,11), cf os prepara-
mais exposta, Quedar. Isso pode signifi- tivos de Acaz e Ezequias (7.3; 2Rs 20.20)
car que as caravanas de comércio camba- nos dias do próprio Isaías. Os dois muros
learam em partes desoladas pela guerra (11) provavelmente eram "a convergência
e voltaram de mãos vazias e com fome. dos muros em volta da colina a sudeste,
A invasão da Arábia por parte de Sargão com uma extensão para incluir ambos os
em 715 a.C. que foi registrada toma mais tanques" (1. Gray).
provável, contudo, que os fugitivos te- Observe, em tudo isso, que Jerusalém
nham estado sob ataque direto. Cf os v. oscilava entre o ativismo (9-11) e o esca-
16,17 com 16.14 e comentário. pismo (12-14); aquele era uma negação da
fé (11b) e este, uma negação do arrependi-
22.1-25 Jerusalém mento. As palavras do v. 11b (e de 37.26)
22.1-14 "O vale da Visão". O título simbó- são uma prenunciação notável dos cp.
lico (cf 21.1,11,13) ressalta que a própria 40-66, em que Deus é repetidamente ci-
base do profeta, da qual ele analisou as na- tado como (lit.) "fazendo e formando" ("o
ções, não está isenta de juízo. Vale, termo que tinha feito [...] o que o formou", ARC)
tomado do v. 5, pode ser uma referência a e como aquele que faz isso desde outrora
Jerusalém como lugar cercado por montes (cf 43.7; 44.2,24). É mais uma indicação
(cf SI 125.2), ou a um lugar mais especifi- de autoria única (v. Introdução).
camente localizado (cf JI3.12,14). 22.15-25 "Esse administrador [...]
Há um contraste claro entre a alegria Sebna". Esse alto oficial aparece no-
da cidade (2a,13) e o seu futuro horrível. vamente, com Eliaquim (cf v. 20), em
Não está totalmente claro se a folia está 36.3; 37.2. Possivelmente ele era o líder
em andamento como Isaías está dizendo do partido pró-Egito (v. cp. 30; 31) que
(talvez depois da retirada de Senaqueribe; zombou da pregação de Isaías; mas a sua
37.37) ou se devemos inserir um verbo no condenação aqui é pronunciada simples-
passado no v. 2a: Tu, cidade que estavas mente por arrogância e ostentação. Cada
cheia ... (como faz a ARA; cf ARC), como menção a ele na mensagem de Deus vem
no lamento de 1.21. De qualquer forma, em tom de desprezo, desde esse adminis-
somente Isaías enxerga onde vai terminar trador (15) até tu, vergonha da casa do
esse escapismo, que é resumido para todas teu senhor (18). Isso expõe o anseio hu-
as épocas no v. 13b (cf lCo 15.32). mano pelo reconhecimento e pelo poder,
Com característica visão de longo al- e o amor do mundo pelos símbolos da po-
cance (cf 21.1-10), ele prevê a queda de sição (sepultura e carros) e pela pompa
Jerusalém um século antes (586 a.Ci), com dos cargos, todos mera casca. Um grande
mortes pela fome (2b; cf Lm 4.9), seus lintel de túmulo de um oficial desses, com
977 ISAíAS 23

a descrição dele como "mordomo" (cf v. 23.1-14 A repercussão e as causas da


15), foi encontrado em Siloé e poderia ser queda de Tiro. A notícia é descrita como
o de Sebna; mas o furo de um entalhe da- tendo alcançado os seus navios em Chipre,
nificou o nome. sua colônia mais próxima (1; v. comentá-
Eliaquim está em forte contraste com rio de 2.16 acerca de Társis), deixando-os
Sebna, sobre o qual ele parece tcr sido sem pátria; como tendo feito o próprio mar
promovido quando eles reaparecem em parecer sem filhos por falta dos seus mer-
36.3. Por Deus, ele é chamado meu servo cadores (4); como tendo causado assombro
(20; cf "esse administrador", v. 15); para no Egito (5); e como tendo espalhado o
os homens, ele será como pai para a sua povo da própria cidade de Tiro ("morado-
comunidade (21). Contudo, a sua queda res da ilha", 6 [ARe]) até a distante Társis
(24,25) virá exatamente desse paternalis- (6) ou até a ilha próxima de Chipre (12).
mo exercido equivocadamente, i.e., da sua A índole colonizadora de Tiro, um des-
incapacidade de dizer "não" para qualquer dobramento do seu comércio, é a referên-
"aproveitador" da sua família que reivindi- cia do v. 8; e o obscuro v. 10 talvez des-
ca o seu amparo. Por bem intencionado que creva uma colônia distante que irrompeu
esteja, isso é um abuso da sua função, e as em anarquia diante do colapso da cidade-
mais sólidas promessas de Deus nunca ga- mãe. Canaã (cf NVI e nota mrg.) é usado
rantem esse tipo de atitude. Cf a sequência no v. II como o nome do território natal
dos v. 23 e 25 com 1SamueI2.30; Jeremias de Tiro e Sidom, um termo que era amplia-
22.24; Apocalipse 2.1,5. do para abarcar toda a Palestina; a palavra
A chave [...] de Davi (22) aparece nesse mercadores no v. 8, intimamente associa-
contexto de prestação de contas. Uma cha- da com esse termo referente ao território
ve era um objeto essencial, guardada no ("Canaã"), mostra como eram sinônimos o
cinto ou pendurada sobre o ombro; mas as nome do seu âmbito geográfico com o do
palavras iniciais do v. 22 (que ecoam 9.6) seu negócio.
destacam a responsabilidade dada por Deus No v. 13, parece que a causa humana da
que a acompanhava, para ser usada para os queda é a Babilônia e não a Assíria, e am-
interesses do rei. O "fechar" e o "abrir" bas as potências subjugaram Tiro em parte.
significam o poder de tomar decisões que (Mais tarde, os gregos, e mais tarde ainda
ninguém abaixo do rei poderia alterar. Esse os sarracenos e os cruzados a capturaram e
é o pano de fundo do comissionamento de recapturaram). Mas a causa-raiz é buscada
Pedro (cf Mt 16.19) e da igreja (cf Mt no v. 8 e respondida no v. 9: Quemformou
18.18) - com a advertência do abuso su- este desígnio [...] O SENHOR dos Exércitos...
gerido acima. A autoridade máxima, no en- Temos aqui um exemplo específico do fato
tanto, é reivindicada nesses termos, para o de que ele julga a soberba (9) sempre que
próprio Cristo (cf Ap 3.7,8). ela aparece, e este é um dos grandes temas
desse livro (v. comentário de 2.10-22).
23.1-18 Tiro 23.15-18 O antigo encanto de Tiro
Tiro tinha um alcance maior até do que a é renovado. Como a história comprova,
Babilônia; os seus mercadores eram co- depois de cada desastre (até a época da
nhecidos desde o oceano Índico (cf 1Rs Idade Média) Tiro se recuperava após um
10.22) até o canal da Mancha. Os cp. 17 intervalo e recomeçava o seu comércio. Os
e 18 de Apocalipse combinam os oráculos setenta anos aparentemente são um núme-
do AT relacionados a Tiro e à Babilônia (cf ro redondo para denotar o período de uma
Is 14; Ez 27) resultando na figura composta vida, como os "setenta anos" do cativeiro
do mundo como sedutor (cf v. 17) e opres- de Judá. Mas a metáfora da prostituta es-
sor, em oposição à cidade de Deus. quecida (15-17) toma a renovação tanto
ISAíAS 24 978

patética quanto deturpada. Vemos aqui a esperança emerge da menção ao rebuscar


capacidade de sedução das coisas mate- (13), do fato de poucos restarem (6), como
riais, embora o versículo final as reivin- em 17.6 e dos trechos que falam explicita-
dique para o seu uso apropriado. Essa é a mente do "remanescente", e.g., 10.20-23.
dupla ênfase de Apocalipse 18.3 e 21.24. 24.14-16 Louvor no final, mas pri-
vação presente. O cântico parece vir do
24.1-27.13 A vitória remanescente espalhado (v. comentário
final de Deus do v. 13), que à luz do evangelho pode ser
Após as nações individuais (cp. 13-23), visto como o povo de Deus tanto gentio
agora o mundo como um todo entra em quanto judeu (cf Jo 11.52). A expressão no
foco. Esses quatro capítulos, às vezes va- Oriente (15) é lit. "nas luzes"; a tradução
gamente conhecidos como o "Apocalipse da NVI é apoiada pela expressão correspon-
de Isaías", mostram a queda de inimigos dente "desde o ocidente" (14). Mas isso
sobrenaturais e terrenos (24.21,22; 27.1), é uma antecipação; voltamos ao presente
e da própria morte (25.8). Eles contêm restrito no v. 16 (cf as mesmas metáforas
(26.19) uma de duas claras promessas em 17.4-6).
no AT de ressurreição corpórea. Mas esse 24.17-23 Juízo cósmico. Os primeiros
cenário mais amplo ainda é contemplado três substantivos do v. 17, notavelmente
do próprio ponto de vista de Isaías em semelhantes no original, ressaltam a im-
Jerusalém, com Judá, Moabe (25.10-12) placabilidade do juízo. Cf. a fuga infrutí-
e as potências maiores do Egito e Assíria fera do v. l8a com Amós 5.19. (Acerca do
(27.12,13) a média e longa distância. Por pano de fundo do v. l8b, v. comentário do
esmagadores que os juízos sejam, o tom v. 5). As hastes celestes (lit. "exército no
predominante é a alegria, desembocando alto") (21) em alguns contextos significam
nos cânticos que com frequência irrompem simplesmente "as estrelas" (cf 40.26); mas
na profecia. aqui, como contrapartida dos reis da terra,
condenados a serem aprisionados e cas-
24.1-23 A terra e o céu são julgados tigados (cf 2Pe 2.4), elas são claramente
24.1-13 A humanidade no caos. O im- "as forças espirituais do mal" (Ef 6.12). A
pactante retrato traçado pelas palavras é referência veterotestamentária mais abran-
reforçado por repetições, rimas e jogos gente a tais seres está em Daniel 10.2-21;
de palavras. A razão para o juízo emerge cf talvez Salmos 82. No NT, ver também,
(observe o duplo por isso no v. 6) do fato e.g., Romanos 8.38,39; Colossenses 2.15;
de as pessoas zombarem de todas as leis e Apocalipse 12.7-12. Mas o final é pura gló-
obrigações. Não se pode afirmar categori- ria (23). Se a lua e o sol vão perder o seu
camente que a aliança eterna seja a pro- brilho, é somente porque foram excedidos
messa divina para todos os seres viventes pela própria luz, pelo Senhor reinando em
em Gênesis 9.9-11, visto que a expressão estado pleno. É essencialmente a mesma
no v. 5 poderia significar simplesmente "o visão de Apocalipse 21.22-27.
mais duradouro dos empreendimentos"
(mas observe a referência à inundação no 25.1-12 O grande livramento
v. l8b). 7ss. A ênfase na falta de alegria é 25.1-5 O final da tirania. Esse cântico
o que Hebreus 11.25 chama de "prazeres irrompe sem ter sido anunciado (dife-
transitórios do pecado"; e a expressão usa- rentemente dos cânticos do v. 9; 26.1,2;
da na RSV "a cidade do caos" (10; cf Gn 27.2-11), e, pela sua reiteração da pala-
1.2) é um testemunho da ação regressiva vra "opressores" ou "tiranos" (3,4,5), ele
do pecado, fazendo a ordem de Deus retro- expressa o sofrimento especial e a cor-
ceder à ausência de forma. O único raio de respondente gratidão dos fracos e opri-
979 ISAíAS 26

midos. É um Magnificat do AT. Duas das (10) conecte esses versículos de forma um
características da ação de Deus (tens feito pouco mais próxima. Há uma indicação
maravilhas e executado os teus conselhos) de expectativa intensa no verbo traduzido
já apareceram nos nomes do rei prometi- por em quem esperávamos (cf 26.8; 33.2;
do (9.6) e reaparecerão em 28.29. Acerca 40.31; "em quem aguardávamos", ARe).
do longo processo de amadurecimento dos Moabe, algo surpreendentemente local
seus planos (conselhos antigos), uma ênfa- em um cenário tão universal (cf Edom em
se privilegiada por Isaías, ver comentário 34.5), é introduzido como a personificação
de 22.11. De forma apropriada, o cântico do orgulho (lI b; cf 16.6), talvez especial-
comemora não somente a vitória por vir mente o orgulho dos pequenos. O monturo,
(quando as defesas dos inimigos estiverem ou monte de esterco, expressa igualmente
destruídas [2], ele tiver recebido sua hon- a indignidade como também a qualidade
ra [3] e o seu tumulto tiver sido silenciado definitiva e final do juízo dos orgulhosos
[5]), mas também o refúgio que já está sen- (cf a sequência em 14.14,15,19).
do achado em Deus enquanto o mal realiza
o que tem de pior (4). O seu ataque é retra- 26.1-27.1 O triunfo
tado nos termos dos extremos da natureza sobre a angústia
por meio da chuva potente (tempestade) e 26.1-6 A cidade permanente. Finalmente,
do calor escaldante. a nossa própria cidade aparece, em con-
25.6-8 O fim das trevas e da morte. traste com a sua rival. Esta tem um novo
O banquete (6) introduz uma nota positi- epíteto, exaltada (5), acrescentado aos de
va no que de outra forma é principalmen- 25.2 ("forte") e 25.3 ("cidade das nações
te um relato de males eliminados. Tem o cruéis", NVI). Nossa cidade éforte, não por
tom de feito heroico (pois um banquete é força bruta, mas pela atividade salvado-
uma comemoração), de abundância (6b) ra (I b) do Deus vivo, a rocha eterna (4).
e de prazer compartilhado (observe as Assim o nosso desfrutar dessa proteção
cinco ocorrências de "todos" [ou "todas", pessoal e invisível precisa também ser pes-
"toda"] nos v. 6-8). O Senhor apreciou soal, em verdade (2) e com confiança (3,4).
essa perspectiva festiva enquanto entre- Esses versículos são tão lógicos quanto são
gava um cálice bem diferente aos seus belos, arraigados em Deus. Perfeita paz
discípulos (cf Mt 26.29). (lit. "paz, paz") é a dádiva dele de bem-
A coberta (7) pode ser ou o lamento estar e completude de uma mente não sim-
(8b) ou a cegueira (cf 2Co 3.15) da hu- plesmente firme mas firmada (a palavra é
manidade caída; ambos são apropriados. A passiva, como reflete a ARe: "cuja mente
tradução para sempre (8a) é a mais direta está firme em ti"; algumas versões anti-
e simples (cf, e.g., 28.28), mas a raiz con- gas trazem: "firmada em ti"). O chamado
tém também a ideia de "vitória" (cf ICo para a confiança perpétua no Senhor (4) é
15.54) ou de preeminência, e é assim usada igualmente lógico, fundamentando a nossa
em 1Samuel 15.29 e ICrônicas 29.11, em fé na fidelidade de Deus que é como uma
que aparece como "Glória" e "majestade" rocha e baseando o perpetuamente do nos-
respectivamente. Em qualquer desses sen- so compromisso na eternidade do ser dele.
tidos, a promessa é um dos auges do AT e Jesus destacaria, ainda, a eternidade do
do NT. No mesmo e único versículo (cf compromisso de Deus para com os seus
também Ap 21.4), o último inimigo se foi (Mt 22.31,32).
e a última lágrima foi derramada. 26.7-18 A longa noite de espera. A
25.9-12 O fim do orgulho. O v. 9 per- "espera" nesse trecho ocorre em parte pela
tence tanto ao parágrafo precedente quanto derrota do mal por meio da correção (9-
a este; mas talvez a conjunção "porque" 11) ou da destruição (11 c, 13-15) dos maus,
ISAíAS 26 980

mas é fundamentalmente um anseio pelo O v. 20 reproduz o mesmo padrão de


próprio Deus (no teu nome; na tua memó- salvação contido no juízo que foi visto
ria, 8,9). As expressões: vereda do justo é quando o Senhor encerrou Noé na arca e
plana e tu [...] aplanas a vereda do justo quando Israel no Egito foi orientado a se
(7) são enganosas, pois o contexto indica proteger do anjo destruidor (Êx 12.22). O
tudo menos um andar tranquilo. A formu- juízo (21; 27.1) é tão abrangente quanto
lação deveria ser: "O caminho do justo é em 24.21, em que "as hastes celestes"
reto, e tu pesas o andar do justo" (cf ARC; correspondem ao dragão aqui ("levia-
cf também Pv 5.6). A proclamação do tã", ARC) (cf "o dragão e seus anjos" em
nome de Deus (8) pode ser uma experi- Ap 12.7-9). Os epítetos incomuns veloz
ência tocante durante a adoração pública e sinuosa (ou "escorregadia", "com me-
(cf SI 34.3; 68.4). A última expressão do neios") são exatamente os termos usados
v. 13 é uma alusão a isso e zomba dos tira- acerca de leviatã na antiga epopeia ca-
nos que abusaram dos direitos de coroa de naneia de Baal, que subjugou o monstro
Javé. Que estes são dominadores terrenos que está no mar. Esse material cananeu
e não falsos deuses está indicado no v. 14a é reformulado para a verdade divina que
(v. comentário de 14.9 acerca do termo "os agora transmite - a verdade que deita
mortos" [ARe]; "as sombras", ARA). É uma por terra a sua estrutura pagã. Tanto aqui
predição de cumprimento tão certo que se quanto em 51.9,10 o contexto é de juízo,
pode usar o tempo passado ("o pretérito não (como no paganismo) de uma su-
profético"). Os v. 16-18, com sua confissão posta batalha em que, antes que pudesse
de fracasso e frustração (por demais apli- prosseguir para a sua tarefa desejada de
cável à igreja cristã), apresentam mais um criar um mundo ordenado, o deus-criador
ingrediente a esse anseio geral por coisas tivesse de vencer a oposição dos deuses
melhores. Há um extravasar semelhante da desordem.
no segundo "Cântico do Servo", em 49.4.
Aqui, como lá, a resposta de Deus eleva 27.2-13 Um povo para Deus
a situação toda a um novo plano, que é o 26.2-6 A vinha frutífera. O cuidado amo-
tópico do parágrafo seguinte. roso (2-4) e a frutificação abundante (6)
26.19-27.1 Ressurreição e juízo fi- precisam ser vistos ambos contra o pano
nal. Depois da oração dos v. 7-18, o Senhor de fundo do contexto do cp. 5, a vinha que
agora dá a resposta. O v.19, embora obscu- não frutificou e foi abandonada. Aqui está
ro nos seus detalhes, promete claramente o alvo para o qual Deus tem trabalhado.
a ressurreição corpórea. A sua declaração Os v. 4,5 são herméticos, mas podem ser
paralela, Daniel 12.2, acrescenta outros entendidos com o significado de que a ira
dois aspectos: a ressurreição dos injustos de Deus já não está contra a sua vinha,
e a eternidade da vida ou da vergonha. somente contra os espinheiros e abrolhos
Deveríamos formular (com a RV): "meus (ou seja, contra os inimigos do seu povo)
corpos mortos" (como aqui a ARA: meu ca- que os atropelaram em 5.6; e mesmo com
dáver), pois os servos de Deus, mesmo na esses antagonistas ele preferiria se recon-
morte, são dele, inclusive os seus corpos. ciliar a destruí-los. O fruto (6) que benefi-
Há diversas traduções para a última linha, ciará o mundo é interpretado em 5.7 como
mas a NVI, entre outras, preserva correta- justiça e equidade. Observe o lembrete,
mente o contraste entre a triunfante metá- como em 37.31, de que tanto moral quan-
fora do nascimento no v. 19b e a trágica to fisicamente, a raiz (raízes) é a condição
linguagem de nascimento do v. 18b, sendo para ofruto.
as duas ligadas por um verbo hebraico que 27.7-11. Privações frutíferas, poder
têm em comum. infrutífero. Essa seção realça o contraste
981 ISAíAS 28

entre as privações moderadas que fariam 28.1-31.9 A crise assíria: ajuda


parte da formação de Israel (7-9) e a total de Deus ou do homem?
ruína que destruiria o tirano (10,11).
A primeira palavra hebraica do v. 8 é 28.1-29 Um desafio
obscura. "Guerras" (segundo a LXX) parece aos escarnecedores
conjectura. Outras sugestões são: "medida O cp. 28, uma série de clarões luminosos
por medida", isto é, contadas galão por ga- e não um cenário constantemente ilumi-
lão (cf "Com medida contendeste", ARe), nado, desafia os levianos que governam
"expulsão" (se sa 'sã = nosso xô! xôf) para Jerusalém a enfrentar as realidades da
o exílio inferi da do restante do versículo história, da moralidade e da ação divina.
(cf "Pelo desterro ...", NVI). A renúncia da Fragmentos de uma discussão impetuosa
idolatria (9) é mostrada como sendo tanto parecem estar preservados nos v. 7-13
a condição (Por isso) quanto a consequên- ou além deles. O contexto é o período
cia contínua (todo o fruto) de se desfrutar tempestuoso da intriga com o Egito, que
da expiação concedida por Deus (cf Pv conduziu à revolta de Ezequias contra a
16.6). Se o exílio é um passo para isso, não Assíria e às represálias de 701 a.c. des-
será em vão. A cidade fortificada (10,11) é critas nos cp. 36 e 37; mas as profecias
claramente a cidade do opressor (cf 25.2). com frequência rompem os limites desse
Aqui a descrição nos v. l Ob, 11 a talvez es- estreito confinamento.
teja matizada pelo retrato contrastado da 28.1-6 Os bêbados de Efraim. Temos
vinha bem cuidada dos v. 2,3. Cf o v. 11 b aqui claramente uma profecia antiga, de
com 44.18,19; 45.6,7. antes da queda de Samaria em 721. Acerca
27.12,13 A colheita em casa. A co- da sua função no contexto, ver comentá-
lheita descrita pode ser a do pomar ou do rio dos v. 7-13. Os v. 1-4 captam a beleza
campo, visto que o verbo "debulhar" (Iit, exterior dessa afluente cidade estabelecida
"bater") é usado tanto para denotar a de- sobre uma colina, mas a enxergam como
bulha à mão de certos grãos (28.27) quan- uma flor na fronte de um bêbado (1b)
to para se referir a fazer cair azeitonas de - uma rica metáfora de uma glória que
galhos altos (Dt 24.20), para depois serem é imprópria e (4a) que desvanece rapida-
colhidos um a um. O ponto é a colheita mente. O segundo aspecto é novamente
perfeita que Deus faz do seu verdadeiro destacado pela queda de saraiva do v. 2
povo, para que "nem uma só [venha] a fal- (uma referência à Assíria), a ser retomada
tar" (cf 40.26,27). Para a parte de Israel no v. 17, e pela metáfora do "figo maduro"
que está na terra natal (12), a ênfase está (Nvr) (como o devemos chamar) do v. 4b.
em peneirar e separar a minoria dentre a Em um único parágrafo, Isaías resume as
multidão (cf 10.20-23). Para os que estão advertências de Amós à sua cidade amante
dispersos além das fronteiras, o destaque do prazer e encharcada de bebida (cf Am
está no toque da trombeta que vai chamá- 2.12; 4.1; 6.6). De forma característica, as
los de volta para casa (13). O NT mostra- nuvens se afastam por um momento para
rá o chamado do evangelho já tendo esse mostrar a verdadeira coroa (5) que enfei-
efeito duplo de peneirar e de salvar (1Co ta o verdadeiro Israel, os restantes de seu
1.23,24), entre judeus e gentios. Assim os povo (v. comentário de 10.20-23). Observe
dois versículos mostram o triunfo final do que o espírito de justiça [...] efortaleza (6;
Senhor, não em termos de conquista ou v. comentário de 11.2) é o próprio SENHOR,
da nova criação (como pode ser descrito), presente e ativo entre seus servos.
mas simplesmente de pessoas recolhidas e 28.7-13 Os bêbados nos seus cargos.
trazidas para casa. Isso é, afinal, o cerne da Nas palavras também estes, a relevância do
questão (cf Ap 7.9ss.). oráculo anterior para o seu contexto pre-
ISAíAS 28 982

sente se toma clara. O embriagado Efraim estimativa que Deus faz da esperança de-
tinha fracassado; agora Judá é mais um de- les, colocada em suas bocas. A versão deles
les, ladeira abaixo, começando pelos seus certamente foi: "Nada pode nos tocar; as
líderes. O sacerdote e o profeta cambalean- nossas alianças são à prova d'água". Deus
tes, e vomitando, são retratados de forma conhece os seus verdadeiros inimigos e os
tão vívida que se pensa que essa seção pre- seus pretensos amigos. A promessa da pe-
serva um encontro real entre Isaías e um dra angular, junto com a de 8.14, é citada
grupo deles em assembleia reservada. em Romanos 9.33; IPedro 2.6; cf Salmos
Nesse caso, os v. 9,10 podem ser o es- 118.22. Em 8.14, significa explicitamente
cárnio usado por eles (em que Isaías fica o Senhor, mas aqui é o Senhor que coloca
subentendido como a pessoa de quem es- a pedra; as duas afirmações se encontram
tão falando), e o v. 13 é uma réplica pres- em Cristo, como fica claro no NT. Romanos
sagiosa em que as mesmas palavras são 9.32,33 explica as implicações da cláusula
lançadas de volta. O hebraico do v. 10 é da fé (cf 7.9), "aquele que confia, jamais
umjingle, quase equivalente ao nosso de- será abalado" (16, NVI). O heb. é (lit.): "não
preciativo blá-blá-blá, mas não tão insig- ficará afobado", visto que afobação sugere
nificante. (Acerca de regra, lit. "linha", cf ansiedade e confusão.
v. 17a). (Cf J. B. Phillips: "Será que aca- Entre a profusão de metáforas, as da
bamos de ser desmamados [...] Precisamos saraiva e da inundação já apareceram no v.
aprender que A-Iei-é-a-Iei-é-a-Iei-é-a-Iei, 2, simbolizando a Assíria; a régua e o pru-
A-regra-é-a-regra-é-a-regra-é-a-regra...? mo (17) lembram o caráter final e decisivo
[...] Sim, com lábios gaguejantes e uma lín- de 30.13,14 e de Amós 7.7,8; a cama [...]
gua estranha o Senhor falará a este povo". curta e o cobertor [...] estreito (20) dão a
Em outras palavras, façam contra-senso do última palavra acerca dos recursos que fa-
senso de Deus e vocês receberão a sua me- lham miseravelmente. Acerca de Perazim
dida da Assíria (11) e a sua condenação das e Gibeão (21), ver ICrônicas 14.11,16.
palavras que poderiam salvá-los (12,13). A Deus, que varreu do mapa os inimigos de
mensagem rejeitada do v. 12 encontra uma diante de Davi, agora varrerá o reino de
expressão clássica em 30.15; cf comen- Davi. O parágrafo seguinte lançará luz so-
tário de 7.9b. A citação que Paulo faz do bre essas estranhas reversões. Lutero, coin-
v. l l em ICoríntios 14.21 é, portanto, um cidentemente, encontrava grande conforto
lembrete, fiel ao seu contexto, de que lín- na sua reflexão de que enquanto o juízo é a
guas desconhecidas não são a saudação de obra estranha de Cristo, a salvação é a sua
Deus a uma congregação crente, mas sua "obra característica".
repreensão a uma congregação descrente 28.23-29 A arte do lavrador: uma pa-
(cf C. Hodge, comentário de ICo). rábola. As constantes mudanças do lavrador
28.14-22 O fundamento seguro e o e sua diversidade de tratamento, tão excên-
refúgio das mentiras. Como em 8.11-15, tricas à primeira vista, mas tão habilmente
mas agora num contexto de certeza despreo- apropriadas, dão a pista para a compreen-
cupada, aliança e pedra angular estão em são dos complexos caminhos de Deus, que
contraste. A aliança com a morte e com o é o mestre (26,29). Por estranha que seja, a
além ("inferno", ARe; lit. sheoi) talvez seja obra de Deus (cf v. 21) é exatamente apro-
uma alusão a uma invocação dos deuses priada, como está implícito, às diversas
do submundo, e.g., pela necromancia (cf ocasiões (24), tipos (25) e texturas (27,28)
8.19) ou a um tratado com o Egito. No en- com que ele lida. Acerca de com vara se
tanto, mais provavelmente deve ser com- sacode o cominho (27), ver comentário de
preendido como a jactância no v. 15b ou 27.12; e que aprendamos dessa parábola a
como a mentira e afalsidade, i.e., como a não lidar com todas as situações com uma
983 ISAíAS29

técnica predileta! Observe a conexão en- ção convidou o seu próprio castigo. Cf
tre maravilhoso e conselho (29) como no 6.9,10; 30.10,11.
nome do príncipe divino de 9.6 e como 29.13,14 Religião sem realidade. Jesus
em 25.1, em que os termos "maravilhas" viu esse v. 13 como a própria figura do fa-
e "planejadas" na NVI deixam de captar o risaísmo (Me 7.6,7). O v. 14 é o seu resul-
eco verbal. tado característico; pois sem profundidade,
a inteligência se volta contra si mesma para
29. 1-8 Perdão de última obscurecer tudo o que toca. Cf Romanos
hora para "Ariel" 1.22; 1Coríntios 1.19.
[NT: "Ariel" é um termo transliterado usa- 29.15,16. Desprezo pelo Criador. A
do por outras versões (ARC; NVI) nesse tre- combinação de dissimulação e bravata (cf
cho (v. 1,2,7) em que a ARA traduz o termo 30.1) provavelmente se expressava de
por Lareira de Deus.] formas inconscientes, tais como a supres-
O final do v. 8 identifica "Ariel" (ARC) são de verdades indesejadas (cf 30.9-11).
(Lareira de Deus, ARA]) com Sião, e em Jeremias (Ir 2.26) e Ezequiel (Ez 8.12)
Ezequiel43.15 o seu significado é "altar-la- encontraram a mesma manipulação equi-
reira"; daí que algumas versões e comenta- vocada da consciência nos seus dias. A
ristas trazem aqui (para destacar o elevado ilustração irrefutável do oleiro (16) é usa-
chamado de Jerusalém): "a lareira e o altar da novamente em 45.9 e, penitentemen-
de Deus" (Lareira de Deus, ARA). A alusão te, em 64.8; Paulo a retoma em Romanos
cúltica no v. 1b confirma isso, mas o v. 2b 9.20,21.
dá uma conotação horrível à metáfora pela 29.17-21 A grande reversão. O absurdo
insinuação de um holocausto, assim com o de se planejar contra Deus (15) aparecerá
v. 3a marca o orgulho da cidade no passado quando a sua obra estiver completa, quan-
(cf la: "onde acampou Davi", NVI). do o melhor que conhecemos for suplan-
A promessa de libertação milagrosa tado (17) e as inabilidades e injustiças do
(5-8) teve um cumprimento parcial no ano presente tiverem sido corrigidas (18-21).
de 701 (cf. 37.33-37). Mas o ajuntamen- O ponto principal é indicado nos verbos do
to das nações (7,8), as obras de cerco (3; v. 17, i.e., o presente Líbano (não-cultiva-
cf. 37.33) e os sinais espetaculares do v. 6 do, como o deserto de 32.15) se converterá
sugerem uma batalha ainda maior (cf Zc em terra boa, ao passo que a terra boa atual
14.1-21). O desapontamento das nações é será [tida] como um mero bosque em com-
vividamente sugerido nos v. 7,8; já tem ha- paração com sua nova fertilidade.
vido inúmeras ocasiões menos importantes 29.22-24 Um povo para o louvor de
em que o mundo comemorou prematura- Deus. O Jacó individual certamente está na
mente a morte da igreja. mente do autor em 22b,23a, apesar da ARA
aqui: quando ele e seus filhos virem ... (o
29.9-24 A escuridão interior de heb. traz: "a sua face [...] quando vir a seus
Israel é aprofundada e dissipada filhos", assim ARC e cf NVI) (cf 63.10). Ele
29.9-12 Um povo sem visão. A expressão já não vai se virar no túmulo (como dize-
muito sugestiva os vossos olhos (os prole- mos) diante do comportamento dos seus
tas) (10) mostra que Israel é o tema desse descendentes. A ideia de que o povo de
oráculo, que amplia as lições de Provérbios Deus expresse a santidade de Deus, que é
29.18 e ISamueI3.1-14. Um vislumbre de um dos primeiros tópicos da oração do Pai
tal estado, em que a vontade de Deus se Nosso ("santificado ..."), é desenvolvida
tomou um livro selado, é apresentado em em Ezequiel 36.23 e no seu contexto, e em
Salmos 74.9. Os verbos reflexivos no v. 9 Efésios 1.4,5 etc., fazendo com que a per-
sugerem que a cegueira é justa: a obstina- feição futura já se expresse em nós agora.
ISAíAS 30 984

30.1-31.9 Egito e Assíria 30.15-17 O preço da incredulidade.


em perspectiva O v. 15 pode ser destacado como o desa-
30.1-5 A sombra do Egito. O refúgio ilu- fio distintivo de Isaías (v. comentário de
sório denunciado em 28.14-22 é finalmente 7.1-9). Em vos converterdes fala de "vol-
citado. Dez anos antes, Isaías tinha dissua- tar-se" para Deus (cf 10.21); sossego (em
dido Judá de entrar no jogo do Egito contra sossegardes) e tranquilidade são a antítese
a Assíria (cp. 20); agora o clima ficou ainda do ativismo frenético do v. 16 (cf 28.16);
mais pesado, e os enviados de Judá estão a confiança colore cada uma dessas afirma-
caminho. Os príncipes (4) aparentemente ções com amor. A ameaça do v. 17 rever-
são os do faraó (o original não traz: "de te, de forma triste, a promessa de Levítico
Judá"), e nesse caso Hanes provavelmente 26.18; cf Deuteronômio 32.30.
se localizava perto de Zoã (que é Tanis, a 30.18-26 As coisas boas que estão
cidade importante mais próxima da fron- reservadas. O Egito e a Assíria desapa-
teira de Israel), e não 80 quilômetros rio recem de cena à medida que a glória co-
Nilo acima, como comumente é identifi- meça a brilhar, descrita primeiramente
cado. (Y. artigo "Hanes" no NDB, ed. rev. em termos pessoais (18-22), depois em
Vida Nova, São Paulo, 2006). termos materiais (23-26). Observe a rela-
30.6-8. O aliado acomodado. Isaías ção entre a espera de Deus e a do homem
enxerga os desconfortos e perigos da via- (espera [18a] no original está na forma
gem (6a) como algo característico de todo intensa do verbo esperar [esperam, 18d],
o empreendimento, e os tesouros do v. 6b, e o benefício da exaltação dele como Juiz
tão impróprios para o ermo Neguebe, como (l8b,c; cf 5.15,16). A intimidade descri-
um retrato de esforços e recursos desperdi- ta nos v. 20,21 é a da nova aliança (cf Jr
çados. Gabarola (7): "Raabe" em hebrai- 31.31-34) e não a da glória final, pois não
co, a partir do nome familiar de Josué 2, é exclui a angústia ou a possibilidade de
um termo que também faz alusão ao Egito alguém se desviar, por limitada que seja
em Salmos 87.4 (cf SI 89.10). Parece sig- (21). Mestres é um substantivo plural com
nificar "arrogante" ou "turbulento" e é um verbo singular, i.e., um plural da ple-
associado com "o monstro" (crocodilo?) nitude e majestade de Deus, e a palavra
em Isaías 51.9, que é mais um dos nomes está associada à instrução moral ou torá
do Egito em Ezequiel 29.3. Moffatt tra- ("lei"; cf "instruidores", ARe). A voz dele,
duz o v. 7c de forma brilhante: "Dragão que novamente nos chama, vem de trás
Não-Faz-Nada" - um apelido devasta- (21) somente quando nos desviamos, não
dor a ser espalhado em cartazes (8) por quando seguimos. Os v. 23-26, em con-
toda a Jerusalém; é tão penetrante quanto traste com o v. 20a, expressam em termos
um slogan anterior tinha sido enigmático do mundo conhecido a nova criação que
(cf 8.1). irá transcendê-lo de forma total e absoluta
30.9-14 A estrutura mal-construída. (cf 60.19-22; 65.17-25).
A verdade e a retidão (10) são mostradas 30.17-33 O fogo purificador. Mesmo
como tão vitais para uma comunidade que esses versículos analisem a situação
como a solidez e a precisão o são para uma imediata, citando a "Assíria" (31), eles se
construção (13). Essa é uma das afirmações aplicam também adiante, ao fim dos tem-
mais claras da lógica dos juízos de Deus; pos. Um dia, os poderes do mal serão cap-
cf Ezequiel 13.10-16 acerca de (como cos- turados (como Judá em 8.8) numa maré en-
tumamos dizer) passar massa corrida sobre chente, e puxados pela rede de Deus (como
as rachaduras; Amós 7.7,8 acerca do pru- a Assíria em 37.29) para a sua destruição.
mo; e Habacuque 2.9-11 acerca da cons- Mas para nós, isso é livramento (29). Cada
trução prestes a cair do tirano. golpe dejuízo terá direito ao som de tambo-
985 ISAíAS 32

rins (32) como os de Miriã (cf Êx 15.20); zido por: "Se um rei governar com justiça
porém, o túmulo dos opressores j á não será ... então..." etc. Mas a formulação tradicio-
o mar Vermelho, mas "Tofete" (ACF), i.e., a nal é uma construção mais simples e tam-
fogueira da destruição final que o NT cha- bém mais relevante para o ensino de Isaías
ma de geena, ou inferno. Jeremias 7.31,32 a partir de 7.14).
nos conta como se chegou a esse significa- Depois do plural príncipes, a tradução
do. A alusão aqui ao rei provavelmente é a correta de (lit.) "homem" (2a; ACF: "aquele
Milcom (cf 2Rs 23.10), que é basicamente homem") é cada (como na ARA e na NVI).
a mesma palavra que rei. Aqui há homens no poder, usando o po-
31.1-5 Alguns confiam em cavalos der como Deus o usa (cf v. 2 com 25.4,5;
... O poder relativo da carne e do espírito 26.4). Aqui também há pessoas usando as
(3), que é como Isaías o enxerga, contra- capacidades que têm (v. 3; contraste com
dizia completamente a avaliação dos seus 30.10,11; 42.20) e encontrando novas ha-
contemporâneos (cf 30.15,16) ~ e, em bilidades (4). Acima de tudo, a verdade
grande parte, também a nossa. É a chave desalojou as lendas e mentiras nas quais a
para o pensamento dele, e seria sustentado depravação busca refúgio. Cf o v. 5 com
dramaticamente (cf a ironia de 36.8,9 com Lucas 22.25-27, pois Deus não reconhece
o resultado em 37.36-38). No v. 2, "desgra- títulos de cortesia. Os v. 6-8 não são uma
ça" (NVI) interpreta melhor o termo amplo predição, mas um comentário dos termos
mal (cf 45.7; Am 3.6). O leão que ruge e usados no v. 5, corretamente expressos no
as aves que pairam ambos descrevem o tempo presente na maioria das versões.
que está isento de interferência humana;
possivelmente também os aspectos formi- 32.9-20 Não há caminho
dáveis e afáveis do Senhor como protetor fácil para a paz
(cf. Dt 32.11). As mulheres alienadas dos v. 9-13 (cf
31.6-9 A derrota da Assíría. A derro- 3.16-26) são somente um exemplo extre-
ta sobrenatural da Assíria está registrada mo da sociedade predominantemente esca-
em 37.36. Mas Isaías está interessado na pista da época (cf 22.13; 28.15). 10 Se a
conversão (Convertei-vos) até mais do que NVI está certa no v. 10a, esse oráculo pode
no livramento; observe a sua avaliação pe- ser datado aproximadamente da época da
netrante da situação (tanto [vos afastastes] revolta de Ezequias contra a Assíria, cuja
é lit. "profundamente"; cf 29.15; Os 9.9). represália foi a invasão de 701. Mas o v.
Cf o v. 7 com 2.20; 30.22. Cf o fogo do 10a pode também significar "durante um
Senhor em Sião (9) com suas implicações longo período". De todo modo, o desas-
profundas em 33.14. tre do v. 14 e a glória dos v. 15-20 trans-
cendem qualquer coisa que aconteceu no
32.1-35.10 A salvação tempo de Isaías. A presente época desde o
e seu prelúdio sombrio Pentecostes (cf v. 15) pode estar parcial-
mente incluída na figura de um povo de
32.1-8 Um reino de Deus livre da Jerusalém terrena (14,19).
verdadeiros homens O princípio básico exposto nesse poe-
Esse quarto oráculo acerca do rei vindou- ma é que paz não é uma coisa que Deus
ro (cf 7.14; 9.6,7; 11.1-5) mostra o seu concede a uma sociedade corrupta: o terre-
maior triunfo, que está no desenvolvi- no precisa ser limpo e semeado novamente
mento de suas próprias qualidades (dadas com justiça, cujo fruto é a paz (16,17). Para
pelo Espírito do Senhor, 11.2; cf 32.15) no isso, a promessa do Espírito (15) é indis-
caráter dos seus súditos, a começar pelos pensável: é o segredo dos dons concedidos
seus assessores. (O trecho pode ser tradu- pelo Messias nos v. 1,2 acima. Acerca do
ISAíAS 33 986

v. 15b, ver comentário de 29.17. Essas e atitudes agressivas (11b). Acerca desse
figuras de uma terra segura e bem rega- tópico da autodestruição, ver também 1.31
da (e.g., v. 20) expressam, em termos de e, com outra metáfora, 30.13.
coisas já conhecidas, as "coisas novas" de O diálogo perscrutador do coração nos
Deus que estão por vir. v. 14-16 é semelhante aos de Salmos 15;
24.3-6. Alguns comentaristas têm sugerido
33. 1-24 O desejo de ser livre que esses estão baseados em testes rituais
Esse capítulo, semelhante a um salmo em de admissão empregados nos santuários
suas muitas alterações de disposição de (e.g., Êx 19.14,15), acrescidos de um con-
ânimo e narradores, parece designado para teúdo ético. 15 Observe o "puritanismo":
o uso público em uma emergência nacio- as vigorosas renúncias reconhecem o po-
nal (cf a voz de Deus que responde nos v. tencial de hábitos, palavras, pensamentos e
10-12 com a de Salmos 60.6-8, e o diálogo percepções dos sentidos como sementes da
nos v. 13-19 com Salmos 24.3-6). ação. Se esse versículo é negativo, é para
33.1-9 O anseio pelo socorro. Denún- esclarecer o significado de "puro de cora-
cia (1), oração (2-4), louvor (5,6) e la- ção", como preparativo para o v. 17.
mento irrompem em rápida sucessão. 1 33.17-24 A felicidade do cumprimen-
O destruidor permanece anônimo, talvez to. A promessa inesquecível do v. 17a,
para tipificar aqueles cuja maldade bem- para o qual a última expressão do v. 15 é
sucedida os toma cegos para as represálias indispensável (cf Mt 5.8; contraste com o
que estão acumulando para si mesmos. 2-4 desânimo de Is 6.5), é o foco desse trecho.
Mas o recurso ao próprio Deus traz uma Outras perspectivas irradiam dele (a terra a
visão mais abrangente do que o recurso perder de vista, v. 17b, alegrando os olhos
à justiça bruta do homem. Com Deus, há depois da confinação do cerco; e a tranquila
não somente a perspectiva da resposta final Sião sendo novamente o lugar de peregri-
(3,4), mas nesse meio tempo o seu braço nação, v. 20), enquanto lembranças de tira-
(2) é suficiente para as exigências de cada nos e indignidades agora passadas dão um
dia (cf 50.4). 5,6 Além disso, em contraste prazer adicional ao presente (18,19); mas o
com o v. 4, aqui temos alegrias concretas olho se volta para o próprio Senhor como
e um tesouro duradouro, resumidos no forte e soberano (21,22). Os títulos de auto-
temor do SENHOR - esse relacionamento ridade,juiz, legislador, Rei, em quem Judá,
entre o senhor celestial e o servo terreno como nós, sempre relutava em confiar, são
que é o tesouro, não meramente a "chave" a sólida base dessa serenidade.
para ele (como traz a inserção da NVI). 7 O retrato de uma cidade cercada de
Cf 36.2,3,22. 8 As estradas [...] desoladas melhores defesas (21) do que o Nilo ou
lembram (embora em linguagem diferen- o Tigre (cf Na 3.7,8) - pois serão águas
te) a época difícil antes de Débora (cf Jz que nenhuma frota hostil poderá usar- dá
5.6), cuja vitória transformou uma outra origem a uma nova metáfora no v. 23 para
situação desesperadora. a desordem dos sem lei (sejam eles gentios
33.10-16 A resposta em forma de de- ou "os pecadores em Sião"; cf v. 14). Mas
safio. A intervenção de Deus não será con- isso é um interlúdio; o trecho termina ao
finada ao inimigo (10-12), mas também reafirmar a graça enriquecedora, restaura-
eliminará pelo fogo o mal de Sião (13-16). dora e perdoadora de Deus (23b,24).
14 O fogo devorador não é somente a in-
tolerância pessoal dele pelo pecado; con- 34.1-17 O juízo universal
siderado de outro ponto de vista, é a au- Assim como os cp. 24-27 coroaram os
toimolação do pecador (11,12), provocada oráculos locais com a perspectiva de juí-
pela combinação de propósitos vãos (11a) zo e salvação finais, assim os cp. 34 e 35
987 ISAíAS 36

deixam a crise assíria num passado dis- em meio à terra devastada imaginária do
tante. Outra semelhança é que em meio cp. 34 e a história de guerra, doença e in-
a esses eventos cósmicos, cuja descrição sensatez dos cp. 36-39.
majestosa no v. 4 é ecoada em Apocalipse O tema é o êxodo vindouro, maior do que
6.13,14, Edom, como Moabe em 25.10-12, o primeiro. 1,2 A pergunta por que o deser-
é separado aqui, em contraposição a Sião, to está acarpetado com flores da primavera
de cujo ano de livramento se fala (cf v. 8 (narciso corretamente substitui a tradicional
com 35.4), para um juízo que conduz toda "rosa", na ARe) é respondida com a notícia
a ação a um repentino e dramático clímax. de que o vosso Deus passará por ali (3-6),
5-7 A tempestade, depois de dar a volta em e a razão de ele vir surge no v. 4 (cf v. 10):
todo o horizonte, chega e fica praticamente ele vem para buscar e levar o seu povo para
suspensa no v. 5 e ali permanece, pois nas casa. Hebreus 12.12 trata o v. 3 como ainda
Escrituras Edom simboliza os ímpios tcf relevante para a esperança cristã; e mesmo
Hb 12.16) e o perseguidor (cf Ob 10-14), que os evangelhos anunciem que o novo dia
o oponente e adversário da igreja. A me- dos v. 5 e 6 já amanheceu, a promessa plena
táfora nos v. 5-7 é uma variante horrível do v. 4b ainda está para se cumprir (cf 61.2;
da cena do banquete (cf 25.6), e se atém Lc 4.19-21; 2Ts 1.7-10).
à carnificina por trás da festa sacrificial, Se a vinda de Deus foi indiretamente re-
usando expressões correntes para mostrar tratada nos versículos iniciais, refletida no
que todo o povo, desde os "novilhos" e os deserto em flor e no irromper da esperança
líderes na sociedade (7a) até os menores e dos milagres de cura (l-6a), a jornada do
e menos importantes (6), está condenado seu povo para casa é apresentada de forma
(cf 63.1-6). semelhante nos v. 6b-l O. O deserto produz
8-17 A terra devastada desses versícu- ribeiros e campinas, a estrada segura apa-
los traz à memória tanto Sodoma quanto a rece e finalmente os próprios peregrinos
Babilônia com o enxofre e o piche ardente aparecem no cenário no último versículo,
dos v. 9,10 e as ruínas mal-assombradas cantando no seu caminho para Sião.
dos v. 11-15 (cf 13.19-22). 11b Destruição Assim a profecia atinge o seu clímax
c ruína são o "sem forma" e "vazia" de que já se ergue muito acima do próprio
Gênesis 1.2; significam aqui e em Jeremias tempo de Isaías e antevê o estilo e pensa-
4.23 a destruição da própria criação. A mento dos cp. 40--66 (cf a citação do v.
menção ao cordel de medição e ao prumo 10 em 51.11) em seu retrato lírico do novo
dá à demolição um toque perturbador de êxodo, da vinda do próprio Deus, do repo-
precisão, igualado apenas pela diligência voamento de Sião e da alegria incessante
(l6,17) com que as ruínas são providas dos redimidos.
dos monstros adequados. 14 Acerca de sá-
tiros, ver comentário de 13.21. Fantasmas 36.1-39.8 Os testes
podem ser algumas criaturas do deserto ou derradeiros para Ezequias
demônios (por exemplo, "lilite", um demô- Nesses quatro capítulos, a situação política
nio da noite). É digno de nota que o juízo é que se desenvolveu durante todo o minis-
descrito aqui e em outros textos como algo tério de Isaías atinge o seu imenso clímax,
pior do que a extinção; o último estado é reforçado por dois testes minuciosos da fé e
um tipo de paródia, obscena e (17b) e per- da integridade do rei, que terão consequên-
sistente, do primeiro. cias de longo prazo.
À parte do salmo de Ezequias, encon-
35.1-10 O florescer do deserto trado somente em 38.9-20, esses capítulos
A glória desse capítulo é realçada, se isso é coincidem quase que palavra por palavra
possível, pelo seu contexto como um oásis com 2Reis 18-20.
ISAíAS 36 988

36.1-37.38 O ataque assírio agora em ruínas (cf. 28.14-15;30.1-5; sobre


Ver detalhes no comentário de 2Reis Eliaquim e Sebna (2) v. 22.15-25). No vívi-
18.13-19.37. Isaías omite 2Reis 18.14-16 do cântico de triunfo dos v. 22-29, era hora
e parte do v. 17a. de responder ao desafio de Senaqueribe -
36.1-22 No cp. 36, em geral, a técnica " ...em quem, pois, agora confias, para que te
da subversão é exposta de forma clássica rebeles contra mim?" (36.5) - com a per-
nos discursos dos v. 4-10 e 13-20. Aí ve- gunta A quem afrontaste ...? (23), e escarne-
mos o uso habilidoso que o tentador faz da cer dele por não saber o significado de sua
verdade, entretecendo na sua argumenta- própria carreira (26; note a ênfase de Isaias
ção alguns fatos irrefutáveis (e.g., a des- no fato de que Deus já há muito dispusera
lealdade do Egito [6] e o fracasso dos deu- estas coisas; v. 22.11).
ses [19]), o uso da ridicularização (8), de O final da história mostra que são exata-
ameaças (12) e de bajulação (16,17), e sua mente os sucessos que nutrem a arrogância
deturpação da teologia - distorcendo as humana (em qualquer época) que também
reformas de Ezequias (7), escolhendo par- anunciam, quando tudo se dá a conhecer, a
tes da pregação de Isaías (10; cf 10.6,12) infalível soberania de Deus.
e tirando conclusões perniciosas das falsas
religiões (18-20). A instrução do rei: Não 38.1-22 A enfermidade de Ezequias
lhe respondereis (21) levou em devida Ver observações acerca de 38.1-8,21,22 no
consideração o fato de que o porta-voz es- comentário de 2Reis 20.1-11.
tava buscando a vitória, não a verdade. 38.9-20 O lamento de Ezequias. Esse
37.1-38 O cp. 37 (v. mais detalhes no lamento é semelhante ao clamor de Jó (cf,
comentário de 2Rs 19) é um modelo de res- e.g., Jó 7) e a diversos salmos (cf, e.g., SI
posta à intimidação. A firmeza de Ezequias 88), particularmente aqueles que se trans-
não se devia a um otimismo cego; o seu formam em louvor. As palavras finais, em
pano de saco (I) era prova disso. O seu pe- que o singular dá lugar ao plural, sugerem
dido pela oração de Isaías (4) mostrou onde o uso público do salmo (cf, e.g., SI 25.22;
estava a sua confiança; e a sua metáfora do 51.18,19).
nascer (3) o revelou como homem de visão, 10 Além (lit. sheol; v. também comen-
cujos anseios não eram pela velha ordem, tário do v. 18 e de 14.9; "sepultura", ARe) é
mas pela nova (observe também a evidên- retratado aqui poeticamente como uma ci-
cia em 36.7 de suas corajosas reformas). A dade ou prisão; como uma comunidade no
sua alusão aos que ainda subsistem, o "re- v. 18; e como um monstro devorador em
manescente" (4), sugere ainda a atenção à 5.14. 12 A finalidade da ação do tecelão
pregação de Isaías (cf 10.20-23). Depois de está em foco aqui; em Jó 7.6, é a rapidez
Senaqueribe injetar nova tensão na guerra da sua lançadeira.
de nervos (9-13), Ezequias foi mais uma vez 13.15a Há um espanto semelhante ao
suficientemente sábio para não descartar a de Jó nesses versículos, em que o recurso
ameaça e nem sucumbir a ela. O fato de ele instintivo de Ezequias a Deus é reprimido
estender a carta perante o Senhor (14) resu- pelo pensamento de que a sua situação di-
me o ato de oração, e a franqueza das suas fícil vem exatamente dele (15a). Mas se
palavras finalmente ecoa o seu gesto. Como isso acentua o problema, também começa
nos salmos, a situação clareou enquanto ele a resolvê-lo, visto que uma única e perfeita
orava (19), e a sua motivação foi elevada ao vontade é soberana. Ver adiante comentá-
mais alto nível (20). rio dos v. 17-20.
Note, nas sucessivas respostas de Isaías 15b,16 Esses versículos têm significado
(37.5-7,21-35), a ausência de rancor pessoal incerto, como indicam as diferentes versões.
contra aqueles cujos estratagemas estavam No v. 15b, talvez o verbo hebraico, com sua
989 ISAíAS 40

alusão a uma procissão (cf SI 4204), conte- Baladã para sugerir que esse rebelde aven-
nha a ideia de "andarei em temor e assom- tureiro contra a Assíria tinha planos de ficar
bro". A referência a estas disposições no v. encoberto sob o disfarce dessa visita. Mas
16 não está clara, e o estado confuso do tex- a Bíblia silencia acerca disso, e Ezequias é
to hebraico aqui sugere um texto corrompi- condenado por se orgulhar na riqueza e no
do; mas o v. 15 aponta para a aceitação da amparo humano.
vontade de Deus como sendo essa discipli- O preço da deslealdade é muito alto (5-7).
na que gera vida (cf, e.g., SI 119.50,67,71). Para Ezequias, houve conforto no adiamen-
17-20 Aqui a realidade do amor de Deus to (8); mas não para Isaías. Evidentemente
começa a clarear, a partir da primeira garan- ele levou esse fardo para casa consigo, e
tia de que foi para minha paz, passando pela assim viveu debaixo do seu peso, para que
impressionante frase: "tu amaste a minha quando Deus lhe falasse novamente, fosse
alma desde a cova", até a certeza do perdão a alguém que em espírito já tinha vivido
no v. 17c. O uso de sepultura (sheof) como longos anos na Babilônia (6,7) e podia "fa-
sinônimo de morte é a chave para os v. 18 e lar ao coração" (cf 40.2) de uma geração
19 e para o uso do termo no AI em geral, que de exilados ainda por nascer.
concentra nesse conjunto de termos tudo que
é negativo na morte: a separação das pessoas 40.1-48.22 Uma noite
da congregação de adoradores; o fato de que na distante Babilônia
perdem o direito a poder e posição; o fato de Independentemente de qual seja o nosso
desaparecerem no passado; o seu retomo ao ponto de vista da relação entre os cp. 40-
pó. Ao mesmo tempo, está claro com base 48 e do seu grandioso prelúdio em 1-39
no v. 17 que Ezequias tinha se imaginado (v. Introdução), emergimos em 40.1 em
morrendo sem a certeza do perdão dos seus um mundo diferente do de Ezequias, mer-
pecados, e é nesse contexto que ele enxerga gulhado na situação predita em 39.5-8, da
a vida depois da morte como ingrata e sem qual com tanta gratidão ele escapou. Nada
alegria - como de fato seria. Entretanto, há se diz acerca do intervalo de um século e
aspectos positivos expressos em outros tex- meio; acordamos, por assim dizer, no outro
tos do AI numa fraseologia distinta: e.g., ser lado do desastre, esperando impaciente-
"tomado" por Deus (e.g., Gn 5.24; 2Rs 2.9; mente pelo fim do cativeiro. Nos cp. 40-
SI 49.15) e estar "com" ele (e.g., SI 73.23; 48, o livramento está no ar; aí temos a pro-
cf SI 139.18 com SI 17.15. Çf em Is 26.19: messa constante de um novo êxodo, com
"viverão [".] ressuscitarão [.,,] desper- Deus à sua frente; aí temos a aproximação
tai"; e Dn 12.2). Mas ainda não há síntese. de um conquistador, finalmente revela-
Ezequias pode se alegrar (19,20) em pro- do como Ciro, para romper as defesas da
messas suficientes para que continue assim, Babilônia; temos aí também um novo tema
por enquanto (2Rs 2004-6). O restante ele sendo desenvolvido, para revelar a glória
descobrirá muito em breve (1Co 2.9). do chamado de ser servo e luz para as na-
ções. Tudo isso é expresso com eloquência
39.1-8 Os enviados da Babilônia crescente e exultante, num estilo que até
Ver notas detalhadas no comentário de aqui só foi ouvido em raros espasmos (cf,
2Reis 20.12-19. e.g., 35.1-10; 37.26,27), mas agora é sus-
A fé e a confiança de Ezequias, prova- tentado de tal forma a dar seu tom distinti-
das por golpes mais pesados, derretem ao vo aos capítulos restantes do livro.
toque de bajulação (observe os seus relatos
encantados nos v. 3,4), e o mundo ganha 40.1-11 O tão esperado Senhor
mais uma vítima por meio da sua amizade. 40.1,2 A voz amável. Consolai tem o seu
Sabe-se o bastante acerca de Merodaque- significado conhecido aqui. Corresponde à
ISAíAS 40 990

amabilidade feminina de 66.13, ampliada diz" [ARe]). Toda a carne ecoa a mesma
no v. 2 na expressão: Falai ao coração, expressão do v. 5, mas a coloca na pers-
que na maioria das ocorrências é usada pectiva da presença dominadora de Deus.
em contextos de encorajamento e no sen- 8 Sem o grande final do v. 8, o trecho teria
tido de conquistar novamente uma pessoa somente o anelo de, e.g., Jó 14.1-12; mas
(cf, e.g., Gn 50.21; Jz 19.3; 2Sm 19.7; Os com ele, reafirma a pregação incansável
2.14). O meu povo e Jerusalém estão em de Isaías acerca da fé (cf, e.g., 7.9; 31.3).
evidência nesses capítulos, separados até Suas completas implicações emergirão em
que a cidade-mãe receba de volta os seus 1Pedro 1.23-25, onde a palavra, na sua
filhos (cf cp. 54). forma final como o evangelho, já não é um
A expressão recebeu em dobro [...] por mero contraste com a nossa transitorieda-
todos os seus pecados pode ser entendida de, mas a sua cura (cf 1Jo 2.17).
ou no sentido de abundância de, e.g., 61.7; 40.9-11 As boas-novas do arauto.
Zacarias 9.12 (esses textos usam outra pa- 9 Tu [...] que anuncias boas-novas é uma
lavra para "dobro") ou, em concordância única palavra no hebraico, equivalente
com a maioria dos comentaristas, no sen- a "evangelista" no grego (não como um
tido punitivo de, e.g., Levítico 26.18,43; termo técnico especializado). Aqui é pala-
Apocalipse 18.6. Aquele sentido expres- vra feminina, em concordância com Sião,
saria bem a graça que está na base desses donde se conclui que Sião provavelmente
capítulos, enquanto este último não precisa seja o mensageiro. Em 41.27; 52.7, Sião é
ser forçado a significar o merecimento da o ouvinte.
salvação, mas é somente uma forte convic-
ção de que a sentença de Jerusalém já está 40.12-31 Deus, o incomparável
mais do que pronta. Não é impossível, por Esse poema magnífico repreende nossas
falar nisso, que dobro signifique "contra- ideias pequenas e nossa fé debilitada, em
parte" ou "equivalente". certo sentido de forma parecida com o
40.3-5 O chamado do arauto. O gran- desafio do Senhor a Jó (Já 38---41), por
de caminho processional (que toda a huma- meio da sua apresentação de Deus como
nidade trilhará, 5) devidamente faz parecer o Criador (12-20) e Administrador (19-26)
minúsculos os roteiros cerimoniais das de um universo reduzido a um tamanho
festas pagãs. O deserto é duplamente sig- minúsculo diante da sua presença. O alvo
nificativo, tanto como um exemplo das bar- do trecho é o v. 31, em que as imaginações
reiras que precisam ceder ao avanço real (18) e dúvidas humanas (27) dão lugar à
(4; v. cp. 35) quanto como lembrete do pri- expectativa humilde a que o livro todo nos
meiro êxodo. Oseias 2.14 faz dele, em sua estimula (cf 26.8; v. comentário de 7.1-9).
austeridade, um lugar de arrependimento e 40.12-20 O Criador. A matéria (12), a
renovação; João Batista, com simbolismo mente (13,14) e os seres vivos (15-17) são
profético, usou o deserto de verdade justa- todos colocados no seu lugar diante de seu
mente para essa obra (cf Mt 3.1-3). Mas a grande Originador, vistos segundo ele pode
vinda de Deus (cf Mt 3.13-17) e o "êxodo" vê-los. Isso não é dito para esvaziá-los de
que ele realizaria (cf Lc 9.31) assumiriam significado, mas para que obtenham o seu
uma forma totalmente inesperada. significado somente dele (cf Pv 8.22-31;
40.6-8 A palavra do pregador. 6 Aqui Rm 11.34). Tal Criador dificilmente preci-
se apresenta o profeta e sua responsabili- sa do nosso conselho impaciente, também
dade (a formulação "e eu digo" [RSV] retém não compartilha da nossa impotência! A
as consoantes hebraicas e é bem fundamen- visão de nós por meio dos olhos de Deus
tada; semelhante também na NVI; diferente toma a visão de Deus (18-20) por meio dos
de e alguém pergunta [ARA] e "e alguém olhos do homem duplamente absurda. Os
991 ISAíAS 41

esforços patéticos do idólatra são estuda- 2 O ponto em questão é o avanço alar-


dos a fundo em 44.9-20; 46.1-7; e a obs- mante daquele que vem do Oriente, a quem
tinação que causa a cegueira é exposta em 44.28 identificará como Ciro. Ele é convo-
Romanos 1.18-23. cado como "o justo" (ARC), i.e., para os
40.21-26 O Administrador. As gran- justos propósitos de Deus de julgar e liber-
diosas símiles continuam e deveriam ser tar. (Nesses capítulos, a "justiça" tende a
tomadas como poesia, não ciência (com ter esse sentido dinâmico, com frequência
v. 22b, onde cortina sugere a espessura de associado à "salvação", e.g., 45.8; 56.1). A
gaze, cf as símiles de SI 102.26; 104.2). cujos passos é (lit.) "a cujos pés" ("para o
23,24 Esses versículos acerca da transito- pé de si", ARC) e significa seguir de perto
riedade dos poderosos levam a verdade ge- (cf Jz 4.1O),pois o verdadeiro comandante
rai dos v. 6-8 um passo mais perto da situ- é o não reconhecido Javé (cf 45.2,4).
ação particular dos cativos;e o v. 26 extrai 4-7 O anúncio nobre do v. 4 é a única
a lição verdadeira do majestoso avanço das voz clara no pânico predominante diante
estrelas: a precisão, e não a ausência, do da aproximação de Ciro. Enquanto estadis-
controle de Deus. O pensamento é levado tas tentam melhorar a disposição de ânimo
adiante na seção final. do povo (5,6a) e os artesãos tentam desen-
40.27-31 O "socorro sempre pre- volver uma "forte coleção de deuses", o v.
sente". 27 A dedução incorreta a partir da 4 coloca o cenário todo no plano e ação pe-
transcendência de Deus é que ele é grande rene de Javé, o Criador. Isso será detalhado
demais para se importar; a correta é que ele em 44.24--45.8.
é grande demais para falhar (28); não há 41.8-20 O servo de Deus é encora-
possibilidades de que as coisas sejam gran- jado. Há certa ternura em Mas tu... e nos
des demais para ele. Mas os v. 29-31 fazem repetidos nomes pessoais. A longa corren-
a grande transição do poder exercido para te de promessas nos verbos futuros dos v.
o poder concedido na palavra esperam (cf IOb-20 está caracteristicamente ancorada
comentário de 25.9). Assim o lembrete fi- em fatos do presente e do passado: o rela-
nal para a fragilidade humana (30) é olhar cionamento prometido (8,lOa) e a escolha
para frente; isso limpa o caminho para a e o chamado irrevogáveis (9). A palavra
verdade e a superação de recursos naturais. servo cunhará a sua própria natureza nos
A expressão renovam as suas forças (31) próximos capítulos, com ênfase crescente
é (lit.) "trocam as forças", assim como al- na sua implicação de autoentrega, até o clí-
guém troca e veste roupas frescas ou troca max do cp. 53. Aqui, no entanto, simples-
uma coisa velha por uma nova. Talvez seja mente aponta para a proteção do Senhor,
significativo que as três metáforas finais que é vista como uma garantia multíface-
falem de vencer uma impossibilidade na- tada de força concedida (10), inimigos es-
tural e duas fraquezas naturais, terminando palhados (11-13), triunfo sobre obstáculos
na nota de progresso constante. (14-16; cf Mt 21.21) e provisão inexaurí-
vel (17-20). Os títulos divinos, () Santo de
41. 1-29 Deus e a história Israel (14,16,20; v. comentário de 1.2-4),
41.1-7 O desafio de Deus para as nações. o teu Redentor (14, i.e., seu resgatador
1 O chamado ao silêncio abre os procedi- protetor; cf Lv 25.25) e Rei de Jacó (21)
mentos imaginários de um tribunal, no qual colocam sobre ele o seu selo.
Deus vai encarar o mundo pagão com uma Todas as coisas são vistas aqui contra
pergunta de teste. (O chamado renovem as o pano de fundo realista de um Israel sub-
forças parece uma repetição acidental de jugado (e.g., v. 10,11) e debilitado (e.g., v.
40.31, mas talvez seja uma advertência de 14), um ponto de partida adequado para a
que o encontro será tremendo). graça de Deus. 15,16 Um trilho cortante,
ISAíAS 41 992

por contraste, era o mais sólido dos obje- 26-29 Com sua ênfase na predição,
tos, sendo fabricado de lâminas pesadas, esses versículos tocariam o mundo pagão
guarnecidas de pederneira; era arrastado num ponto bem sensível, visto que a adivi-
sobre o cereal colhido para abrir as espi- nhação era uma das grandes preocupações
gas, que eram então joeiradas ao ar, pos- (cf 47.13); e Creso da Lídia pagaria caro
sibilitando assim que as cascas e a palha pela ambiguidade nos oráculos de Delfos
fossem levadas pelo vento (16). A enorme acerca da sua expectativa contra Ciro.
escala da metáfora deve ter sido interpre- (Informado pelo oráculo de Delfos de que
tada de forma errônea pelo "dia das coisas ele destruiria um grande império, entrou na
pequenas" (Zc 4.10, ARe) que seguiu o re- batalha e destruiu o seu próprio). Acerca
tomo da Babilônia; contudo não exagera o desse desafio de predizer eventos como
impacto do povo de Deus sobre o mundo, Javé o fez, e o seu significado para a auto-
passado ou vindouro. ria desses capítulos, ver Introdução.
41.21-29 O desafio de Deus é renova-
do. O tom dos v. 1-7 retoma, mas agora a 42. 1-17 Luz para as nações
palavra é dirigida aos próprios deuses (cf 42.1-9 O primeiro "Cântico do Servo".
v. 23). 22-24 A acusação do v. 22 é que eles O silêncio repentino depois dos temas
não conseguem nem mesmo interpretar os intensos dos cp. 40 e 41 tem sido compa-
eventos (as profecias anteriores), muito rado à voz suave e calma de 1Reis 19.12.
menos predizê-los (v. comentário dos v. Quatro ou cinco vezes tal trecho solitário
26,27). Quando a incompetência deles é emerge silenciosamente nesses capítulos
acrescida disso (23b), a única conclusão para retratar o Servo como "o homem para
é a sua irrealidade (24,29) - e a palavra os outros", com ênfase crescente no sofri-
abominação (24) de repente revela o es- mento em 49.1-13; 50.4-9; e 52.13-53.12,
cárnio como mortalmente sério. Essa pala- seguidos do jubilante trecho de 61.1-4 para
vra geralmente é reservada para rituais ou listar as bênçãos que ele confere.
ídolos pagãos (cf, e.g., 44.19); transferida Ao final da série, ele é um no lugar dos
para o adorador, ela mostra o quanto é de- muitos, mas no v. 1 ele é apresentado como
pravante a escolha de uma mentira como o meu servo e está intimamente associado
objeto de lealdade máxima de uma pessoa. com o "Israel" de 41.8-10. A capacitação
O ponto é levado à sua conclusão definiti- com o Espírito e a promulgação do direito
va em Romanos 1.18-32. (1,3,4), ou da verdadeira religião, contudo,
Os v. 25-29 cobrem o terreno dos v. 2-4 são características do rei davídico de 11.1-5
acrescentando alguns detalhes. 25 O Norte e 32.1-8 (cf a combinação desse trecho
e o Leste são agora citados juntos (cf v. com a expressão régia de S12.7 no batismo
2), definindo mais precisamente as con- de Jesus, Mt 3.17), de modo que um indi-
quistas de Ciro, que abarcavam o Império víduo já começa a se destacar da multidão
Babilônico desde o golfo Pérsico até o mar de Israel. A conclusão do capítulo (18-25)
Cáspio e o mar Negro. A observação ele reforça intensamente essa impressão.
invocará o meu nome precisa ser tomada 2-7 A mansidão do Servo, tanto a não
com 45.4, i.e., Ciro invocaria o nome de agressividade (2) quanto a amabilidade
Javé (cf Ed 1.2,3), mas não como um ver- para com os fracos e imperfeitos (3), não
dadeiro convertido. Isso é indiretamente é frustrada por nenhuma fraqueza própria.
apoiado por suas inscrições, que diplo- As palavras quebrará e desanimará (4)
maticamente atribuem suas vitórias aos propositadamente retomam os termos he-
deuses dos povos que ele venceu (e.g., a braicos já usados para quebrada e apaga-
Marduque na Babilônia, mas a Sin, o deus- rá (3). O retrato é identificado em Mateus
lua, em Ur). 12.17-21, e o vislumbre de um mundo em
993 ISAíAS 43

expectativa (4c) confirma a natureza da da motivação quanto o fazem sua amabili-


missão. Uma luz para os gentios (6) era dade (16a) e sua constância (16b) para com
uma das primeiras designações de Jesus as vítimas do mal. A salvação virá somente
(cf Lc 2.32) e um dos títulos formativos da por meio do juízo e não será para os im-
sua igreja (cf At 13.47). Mas enquanto a penitentes (17). Cf 63.1-6, o complemento
igreja devia compartilhar desse livramen- impetuoso do cp. 53.
to dos cegos e do cativo (7; cf "o servo
do Senhor" descrito em 2Tm 2.24-26), so- 42.18-48.22 Servo inconstante
mente seu cabeça podia ser descrito como e Senhor imutável
mediador da aliança de Deus, unindo o Nesses capítulos, há um intercâmbio in-
SENHOR com o povo (6; cf 49.8) na sua cessante entre a graça de Deus e a obsti-
própria pessoa (cf Mt 26.28). nação do seu povo, cuja determinação para
8,9 Esses versículos combinam esse a autodestruição é superada somente pela
motivo do Servo com os temas dos cp. 40 tenacidade dele expressa de forma clássica
e 41 respectivamente, pois o ciúme de Javé em 43.21.
pela sua verdadeira glória se expressará 42.18-25 Guias cegos que guiam ce-
principalmente na difusão da sua luz por gos. Esse amargo anticlímax do retrato
todo o mundo. Essa é a fase vindoura do do verdadeiro servo (1-9), do mundo em
seu propósito, as novas coisas declaradas expectativa (10-12) e do ansioso Redentor
agora, que foram desveladas também em (13-17) é vividamente adequado ao fracas-
esboço "desde o princípio" (41.26,27; cf so perene da igreja em viver à altura do seu
Gn 12.1-3). chamado. Na primeira visão de Isaías, ver
42.10-12 O mundo aclama o seu e ouvir sem percepção (cf v. 18-20) era
Senhor. Irrupções de cânticos são uma um sinal perigoso (cf 6.10-13); aqui é uma
característica desses capítulos (cf 44.23; incapacidade mutiladora. A futilidade do
49.13; 52.9 etc.), como também o são dos mensageiro incompetente (cf 2Sm 18.29)
cp. 24-27, sendo proximamente seme- é a futilidade de Israel, e é propositada: ele
lhantes a Salmos 93; 95~ 100 em tema e é herdeiro da aliança (19b; v. nota adiante);
linguagem. 10 Cf v. IOacom Salmos 96.1; ele tem a capacidade (20) e os dados (21)
98.1; e o v. 10b com Salmos 107.23,24. para o conhecimento da vontade de Deus;
Aqui não somente a natureza, mas tam- ele ainda é convidado a ouvir atentamente
bém as nações irrompem em cânticos por (23). Até mesmo a situação difícil em que
causa da alegria da libertação que acabou está agora tem o propósito de ensinar e não
de ser relatada. 11 Os mordazes rivais de destruí-lo (25b); mas até aqui, ele não
de Israel, Quedar (cf SI 120.5-7) e a ci- entendeu a lição.
dade edomita de Sela (em algumas ver- Nota. 19 O meu amigo ("o galardoado",
sões antigas; na ARA "os que habitam nas ARC; "o que é perfeito", ACF) provavelmen-
rochas"), citados pela última vez em con- te seja mais bem-traduzido por: "aquele
textos de juízo (21.16,17; 16.1), demons- que está em paz comigo" (RV; cf SI 7.4). A
tram a amplitude da sua graça. Mas veja o forma passiva aqui sugere "aquele que foi
parágrafo seguinte. trazido para a paz [relações amigáveis]".
42.13-17 O Senhor declara o seu zelo. 43.1-21 Graça transbordante. O Mas
As símiles intensas, como valente (13) e agora (1) é uma característica desses capí-
como a parturiente (14), descartam qual- tulos, à medida que o amor de Deus, conti-
quer ideia da graça como uma mera suavi- nuamente recusado, retoma continuamente
zação do humor de Deus. Antes, a sua fúria a iniciativa. A mesma expressão hebraica
(13) contra o mal e o seu zelo contido para é encontrada em 44.1; 49.5; 52.5; 64.8
repará-lo (14; cf Lc 12.50) fornecem tanto (7, Heb.).
ISAíAS 43 994

1-7 Esses versículos dão a Israel, com Para o seu cumprimento precisamos
detalhes eloquentes, a mesma garantia que olhar além dos retornos modestos da Babi-
Cristo dá à sua igreja, que as portas do lônia nos séculos VI e v a.c., (embora estes
hades não prevalecerão contra ela. Fogo certamente estejam em vista), para o êxodo
e água, pessoas e distâncias não podem que o Filho de Deus realizou em Jerusalém
cobrar os seus direitos; todos (7) a quem (Lc 9.31; cf. 1Co 10.4,11), que justifica de
Deus diz: tu és meu (1) chegarão em se- forma inigualável a linguagem desse tre-
gurança (cf 40.26). Muitas das linhas que cho e de outros relacionados. Ver também
os ligam a ele são enumeradas, como a comentário do cp. 35 e de 40.3-5.
criação, a redenção, o chamado (1), o amor 43.22-28 Graça desprezada. 22-26
(4), a adoção (6) e a honra ao seu nome A reação devastadora de Israel ao fervor
(7). O relacionamento singular é destacado divino é um bocejo de apatia. Nenhuma
pela figura ousada de um resgate humano rejeição poderia ser pior; apesar disso, dá
(3,4; cf v. 14), i.e., grandes nações caíram lugar a uma comparação penetrante entre
e cairão para abrir caminho para Israel. a religião como um fardo (23b,24a) e a re-
Provérbios 21.18 fala em termos seme- ligião como reverência grata (23a) àquele
lhantes; o outro lado da questão é que as que carregou o fardo (24b,25; cf 46.3,4),
nações ganharão de Israel muito mais do que mais uma vez se oferece para defen-
que perderam (cf. 42.1-9), e que o seu res- der a sua causa no tribunal aberto (26;
gate definitivo precisa ser uma vítima mui- cf 41.1).
to diferente (cf 53.5,6). 27 Teu primeiro pai provavelmente é
8-13 Aqui Israel é confrontado nova- Jacó nesse contexto, visto que os israelitas
mente com o seu pecado contra a luz (8; cf. estão sendo lembrados de que têm pouco
42.18-20); contudo é desafiado a se ape- de se gabar, tanto entre os seus ancestrais
gar ao seu elevado chamado como servo quanto entre os líderes espirituais (guias).
e escolhido (10), tanto para a sua própria 28 O golpe final é mortal, pois destruição
instrução (para que o saibais [...] creiais, e é o termo hebraico hêrem, reservado para
entendais) como para a instrução do mun- tais alvos de juizo como Jericó ou os ama-
do. É exatamente a sua história que testifi- lequitas, a quem nenhuma concessão podia
ca de Javé (10-12); um dia o título minhas ser feita. É o termo mais forte na língua.
testemunhas teria a sua força total (cf At 44.1-28 O Deus vivo e o seu grande
1.8), mas no presente, Israel aparece como desígnio. 1-5 Uma questão aparentemen-
um testemunho passivo e relutante. O con- te fechada é reaberta com um caracterís-
texto forense é o de 41.1-4,21-23; o ponto tico Agora. pois (v. comentário de 43.1),
em questão é a não existência de qualquer reafirmando de forma surpreendente o
Deus a não ser Javé, em épocas passadas, chamado do ingrato Israel como servo
presentes ou por vir (1Ob, 11,13). [...] a quem escolhi (1, repetido no v. 2),
14-21 A mesma Babilônia aparece pela junto com o carinhoso "Jesurum" [(ARe; Ó
primeira vez desde 39.7, e embora o he- amado na ARA), ("reto"; cf. Dt 33.5, mas
braico do v. 14 tenha as suas obscurida- v. Ot 32.15; cf comentário de Is 42.19)], e
des, o teor principal do trecho é uma clara prosseguindo em prometer coisas maiores
promessa de um grande êxodo, no qual os por vir. O derramamento do Espírito (3) é
milagres de Deus no deserto (19,20) su- um vislumbre da nova aliança, como em
plantarão até mesmo os milagres do mar Jeremias 31.31-34; Ezequiel 36.26,27;
Vermelho (16-18). A promessa é mais uma Joel 2.28,29; e as confissões de lealdade
vez arraigada na aliança (observe os ter- no v. 5 são um raro antegosto das conver-
mos de relacionamento nos v. 14,15 e de sões dos gentios, como aquelas de Salmos
eleição nos v. 20c,2I). 87.4-6 (em que, no entanto, é Deus que
995 ISAíAS 45

as registra). Essa nova posteridade (3) divina de realizar essas novas maravilhas.
de Israel marcará o fluxo da água viva de 28 A expressão meu pastor não significa
Deus, assim como uma fileira de árvores nada mais do que o emprego que Deus faz
marca o curso de um rio (3,4). O livro tra- desse governante para os seus próprios fins
ça parte dessa corrente de vida por meio (v. 45.4 e comentário de 41.25).
da terra seca. 45.1-25 O Deus de toda a terra. 1-8
6-8 Esses versículos dão a própria Esses versículos colocam o controle que
essência desses capítulos, com sua ên- Deus tem sobre Ciro no contexto da sua
fase em Deus como o defensor de Israel soberania total (7), da sua revelação de
(Redentor, 6; cf 41.14), seu monoteísmo abrangência mundial (6) e da sua vontade
explícito (6b,8), sua ênfase na predição de vindicar a justiça (8).
(7b) e seu tom reconfortante ao descon- 1-3 O termo ungido é a base do título
fiado Israel (8). Messias; mas o seu uso veterotestamentá-
9-20 Aqui um outro lado da mesma rio é geral, principalmente para os reis un-
mensagem é pregado, transformando o gidos de Deus (e.g., Saul em ISm 24.6).
apelo visual da idolatria em um embara- Aqui ressalta que Ciro foi designado e está
ço, não poupando nenhum aspecto dela. capacitado para uma tarefa suprema para
É um tema predileto desses capítulos (cf a qual todas as suas vitórias serão apenas
40.18-20; 45.20; 46.1-7). Toda adoração o prelúdio. Cada expressão dos v. 1b-3a
de coisas dadas por Deus (9; cf v. 14) e destaca esses sucessos; e.g., os tesouros es-
forjadas pelo homem contém a mesma condidos ("tesouros das escuridades", ARe)
absurdidade e blasfêmia (cf Rm 1.25). A são os que estão mais bem-escondidos,
incapacidade final de o homem enxergar como sendo os mais preciosos. (ao vencer
isso (que é tão atual quanto naquela épo- Creso e a Babilônia, Ciro obteria riquezas
ca) vem da recusa anterior de encará-lo incalculáveis). 4 Mas o ato que de fato foi
(18-20; cf Rm 1.21). o clímax da sua carreira, a libertação de
21-28 Voltamos agora à revelação po- Israel (cf v. 13), foi sem dúvida um episó-
sitiva e alegre do verdadeiro Deus. 21 O dio insignificante para Ciro, tão equivoca-
chamado de abertura, Lembra-te, prova- das são as avaliações humanas (cf 55.8). O
velmente seja uma referência às questões seu reconhecimento de Javé (cf Ed 1.2-4),
das quais Israel já pode testemunhar (cf v. como também de outros deuses, parece ter
8), como também das tolices dos pagãos sido superficial (v. comentário de 41.25):
que acabaram de ser descritas (há um cha- o reconhecimento de sua existência e in-
mado semelhante em 46.8). Mas a afirma- fluência (3) sem o conhecimento pessoal
ção repetida do Senhor de que controla a correspondente (4).
história e prediz o seu curso é agora reno- 7 Luz e [...) trevas [...) paz e [...) mal
vada de forma dramática pelas promessas são expressões tipicamente hebraicas
específicas dos v. 26-28. As predições ve- como pares de opostos para representar
ladas das boas-novas para Jerusalém e de "tudo o que existe" (cf SI 49.1,2). Mal:
um libertador em 41.2 e 25-29 são subita- essa palavra hebraica é geral demais para
mente desveladas para mostrar Ciro e seu sugerir que Isaías está fazendo de Deus o
édito de reconstrução; uma profecia que autor da maldade (v. mais propriamente
se cumpriu a tempo (cf Ed 1.1-4). Tal mi- Jó 2.10; Am 3.6; Rm 11.36). Alguns têm
nuciosidade de detalhes encontra paralelo visto nisso um ataque ao dualismo do zo-
somente em IReis 13.2, em que Josias é roastrismo, com os seus deuses rivais do
nomeado 300 anos antes do seu tempo. 27 bem e do mal; mas esse versículo se opõe
A referência à profundeza é mais uma alu- igualmente ao politeísmo, o alvo da maior
são ao êxodo, um lembrete da capacidade parte da crítica desses capítulos. Não há
ISAíAS 46 996

evidências claras de que Ciro tenha sido minhos inescrutáveis de Deus, "além do
adepto do zoroastrismo, como o foram al- entendimento". Os v. 18,19 respondem
guns dos seus sucessores. que, por tudo isso, ele agiu para atingir
9-13 O foco se volta de Ciro para o um grande propósito e se revelou inequi-
queixoso Israel (os sujeitos dos verbos no vocamente. A palavra usada tanto para a
plural do v. II e a alusão a Ciro na tercei- expressão para ser um caos (18) quanto
ra pessoa no v. 13 indicam essa mudança), para em vão (19) é a mesma de Gênesis
com uma repreensão clássica à suspeita 1.2 ("sem forma"); o v. 18b aponta para
de que Deus esteja se atrapalhando com a o fim que está em vista na criação (cf a
sua obra (cf 29.16). Tanto a ARA quanto a expressão para ser habitada): a transfor-
NVI corretamente interpretam os imperati- mação de um estado inicial sem forma em
vos do v. l l como intensamente irônicos, um mundo habitável. Assim também um
equivalentes a perguntas de indignação. fim glorioso será atingido com Israel.
12 A lição ilustrada num objeto que usa 22-25 Os versículos finais são notá-
os céus estrelados como exemplo já foi veis primeiramente pelo quadro que pin-
empregada de forma semelhante, mes- tam de conversões mundiais e profundas
mo que mais moderada, em 40.26-31. 13 e, em segundo lugar, pelo uso ousado que
Cf 44.28. o NT faria dos versículos 23,24, aplican-
14-25 Prevendo o grande afluxo de gen- do-os diretamente a Cristo em Filipenses
tios, esses versículos saltam para muito 2.10,11 (e indiretamente em Rm 14.9,11).
além da libertação. Os cp. 60-62 vão re- Cf o emprego feito de 8.12b,13a em
tomar o tema de forma mais abrangente. IPedro 3.14,15.
Aqui ele é expresso primeiramente numa 46.1-13 Os deuses impotentes da Ba-
palavra dirigida a Israel (14-19) e depois bilônia. Em harmonia com o foco que está
num apelo à humanidade para que reco- se fechando cada vez mais nessa cena (cf
nheça o seu Senhor, como um dia terá de as referências explícitas a Ciro [44.28;
fazer, e por meio disso encontre a salvação 45.1] e à Babilônia e sua queda [47.1-
na companhia da nação que uma vez des- 15]) está o fato de que deuses específicos
prezou (20-25). são agora citados. 1 Bel ("senhor"; cf
14 Nomes como os do Egito etc. e os Baal) era um título transferido do antigo
detalhes de grilhões e de atos de deferên- deus Enlil ao deus protetor da Babilônia,
cia retratam o triunfo de Deus em termos Marduque, cujo filho Nebo (Nabu) era o
do cenário contemporâneo, usando a ví- deus do aprendizado. Os seus nomes apa-
vida coloração das vitórias humanas. No recem em, e.g., Belsazar, Nabucodonosor.
cumprimento, esses aspectos serão suplan- Ambos os deuses eram transportados em
tados, como deixam claro os v. 20-25. Os procissões, mas nesse cenário são refu-
gentios desse versículo são aqueles que giados monstruosos, fazendo arquejar os
nunca fizeram parte do império de Israel; a animais de carga. O contraste entre esses
rendição deles será tão completa como a de dois fardos, com sua demanda por dinhei-
prisioneiros de guerra, porém, na verdade ro e músculos (6,7), e aquele que carrega
nascerá da convicção (14c-16) e resultará o fardo para sempre, Javé (3,4), conduz a
na salvação (22,24). série de ataques à idolatria nesses capítu-
15 A expressão Deus misterioso ("Deus los a um clímax impressionante. O tema
que te ocultas", ARe) talvez seja a continu- da predição, ingrediente constante nesses
ação da confissão dos convertidos, reco- trechos (cf, e.g., 41.23), recebe o seu tra-
nhecendo o Deus invisível em contraste tamento clássico no v. 10a; e as realida-
com os ídolos deles; é mais provável que des gêmeas da carreira do conquistador
seja a exclamação de Israel diante dos ca- - tanto predatória quanto predestinada
997 ISAíAS 48

- são colocadas lado a lado no v. II a (cf atenção da Babilônia para Israel está lon-
41.2,25; 44.28; 45.1-7). ge de ser agradável. A conversa superfi-
12,13 Justiça é uma palavra com diver- cial deles sobre o SENHOR e a santa cidade
sas camadas de significado. Basicamente (1,2) está em desarmonia com a sua idola-
significa o que é certo, i.e., como algo de- tria persistente (5); eles emergem de fato
veria ser em seu estado ideal. Assim pode como hipócritas empedernidos (1,4,8).
incluir as ideias de retidão, de justiça e a É um quadro mais sombrio do que da
atitude de endireitar ou corrigir o que está infidelidade em 40.27 e até da frieza em
errado. Nesses capítulos, o último desses 43.22, embora tenha sido previsto no pe-
sentidos é predominante, inclusive mati- cado contra a luz, sugerido em 42.18-20.
zando o significado da vitória (v. comentá- O argumento da profecia, até aqui dirigi-
rio de 41.2); mas a dimensão ética não está do contra os pagãos (cf, e.g., 41.21-24),
ausente (cf, e.g., 48.1; 53.11; 58.2), e aqui agora precisa ser voltado contra o próprio
toma a precedência no v. 12, deixando que povo de Deus, esses céticos obstinados
o sentido secundário, a libertação, apareça (3-8). Ver Introdução.
no v. 13, paralelo a salvação. 9-22 Tudo isso, no entanto, serve so-
47.1-15 A Babilônia está condenada. mente para revelar a paciência de Deus
Temos aqui um canto fúnebre, ou canto naquilo que ela é: imerecida (9), constru-
de escárnio, no ritmo decrescente de tais tiva (10; v. nota adiante) e resoluta (11).
poemas (sente-se isso, na tradução, na su- Depois de toda a sua franqueza ele ainda
cessão de uma frase mais longa e de outra pode confirmar tanto o seu chamado (12)
mais breve no v. 2a). Cf 1.21-31; 14.4-23. quanto o seu amor (v. comentário do v.
É o destino apropriado para a Babilônia: 14), e dar uma ordem libertadora: Saí da
não pode haver misericórdia, porque ela Babilônia (20). Isso vai ecoar novamente
não mostrou misericórdia alguma (6; cf ao longo dos capítulos seguintes (cf 49.9;
Tg 2.13). Mas a descrição não é feita sem 52.11; 55.12; 62.10). Mas isso não é uma
compaixão. Estamos assistindo ao triunfo rapsódia; o alto preço pela obstinação é
da justiça, mas também à tragédia do peca- afirmado e reafirmado como nada menos
dor. PÓ e labuta, nudez e vergonha, silên- do que um adeus à paz (18,22), i.e., a toda
cio e escuridão (1-5) - esses símbolos de a saúde da alma e da sociedade. O triste
condenação recebem um toque a mais de realismo do v. 22 vai reaparecer em 57.21,
amargura por meio do vislumbre da alegria e o livro acabará com a nota ainda mais
arrogante (8) que eles apagam para sempre dura de 66.24.
(7-11). Podemos sentir a desilusão de seu Notas. O v. 10 apresenta problemas de
coração à medida que os recursos conheci- tradução. A NVI pressupõe um erro de co-
dos de antes falham (os encantamentos .fei- pista no v. lOa (o heb. traz "com"), que
tiçarias e horóscopos dos v. 12-14), e os an- também pode significar: "à custa de" ou:
tigos parceiros se afastam prudentemente, "no caráter de"; no original isso é uma
cada qual pelo seu caminho (15), como os única letra, facilmente confundida com
amigos das horas boas que eles são. como). No v. l Ob, o rolo de Isaías do mar
Os registros confirmam com riqueza, Morto apoia o provei (ARA, ARC, NVI), mas
por sinal, a profusão de ritos mágicos da "escolhido" é o significado comum da pa-
Babilônia, aos quais se faz alusão nos v. lavra encontrada no texto padrão (assim
9,12,13; e Ezequiel 21.21 descreve vivi- ACF: "escolhi-te..."), 16 Esse versículo ter-
damente uma seleção deles usados por mina com uma mudança surpreendente da
Nabucodonosor. pessoa que fala: já não é o Senhor, como
48.1-22 Amor demonstrado a quem nos v. 15,16a, mas alguém enviado por ele,
não é amado. I -8 A mudança do foco da assim como o Espírito também é enviado.
ISAíAS 49 998

Pode ser o profeta, mas é mais significa- "o Israel de Deus" (At 13.47; GI 6.16).
tivo se a referência apontar para o "me" Também o tema da conquista por meio do
de 49.1; 50.4; 61.1; em outras palavras, o serviço, mencionado em 42.1-4, começou
Servo com quem o próprio Jesus se iden- a tocar a nota do sofrimento e da rejeição
tificaria. É um vislumbre notável, à distân- (4,7), que crescerá em intensidade e signi-
cia, da Trindade. ficado no terceiro e quarto "Cânticos".
8 A primeira parte desse versículo é ci-
49.1-55.13 A aurora tada por Paulo em 2Coríntios 6.2 como um
da redenção dito agora cumprido (cf o uso que o nosso
Senhor faz de Is 61.1,2 em Lc 4.18-21).
49.1-13 O segundo Acerca da expressão aliança do povo, ver
"Cântico do Servo" comentário de 42.6. 9-13 Os presos voltan-
Os limites desse trecho têm sido fixados do para casa como grande multidão nos v.
de diversas formas, geralmente nos v. 1-6. 8-13 são visualizados como os dispersos
Mas cada um dos v. 5-8 introduz uma parte de Israel por todo o mundo, não somente
da comissão de Deus como resposta ao seu na Babilônia (cf v. 12 com v. 22); mas a
servo; e o v. 8, que ecoa 42.6, não pode ser alusão ao v. 10 em Apocalipse 7.17 mos-
deixado sem continuação. tra que podemos enxergar corretamente
Depois do cp. 42, com seus retratos aí também os gentios partindo para a sua
mutuamente incompatíveis de "meu servo" nova pátria (cf 44.5). 12 Sinim (v. nota
(42.1-4,18-21), a questão da inadequação mrg. Nvr) era claramente um enigma para
de Israel se tomou cada vez mais crítica. os antigos escribas e tradutores, que suge-
Os próximos capítulos resolverão a tensão, riram, e.g., Pérsia, o Sul ou Assuã (assim
não pela destituição ou pelo aprimoramen- na NVI). Alguns estudiosos renomados têm
to desse servo, mas pelo surgimento claro argumentado se tratar da China (cf o an-
do verdadeiro Servo cuja missão será pri- tepositivo de origem grega "sino", usado
meiramente para todo o Israel. em termos compostos referentes à China).
Nesse trecho, isso fica evidente imedia- Mas o máximo que podemos dizer com
tamente a partir da clara consciência que segurança é que o v. 12 prevê convertidos
o Servo tem da sua identidade e missão. sendo trazidos de terras muito distantes,
Aqui ele não mostra contrição alguma pe- das quais Sinim era evidentemente um
los pecados lastimados em 48.1-6, ou pela exemplo notável.
cegueira em 42.18-20; só a percepção de
ser preparado para o momento de Deus (1- 49.14-23 Conforto para Jerusalém
3; cf 48.16). A indiferença de lsrael é algo 14 As ruínas devastadas de Sião são uma
com que ele já lutou, não compartilhou (4), característica desses capítulos, personifi-
e, embora seja tratado de "Israel" (3), seu cadas como uma mulher privada de marido
campo missionário é o próprio "Israel" (5) e filhos. 15,16 A resposta de Deus aqui é
antes do mundo (6). típica. Em primeiro lugar, ela não foi aban-
Esse paradoxo de um Israel que é en- donada, pois ele não consegue esquecê-Ia.
viado a Israel é parte da propulsão fortíssi- Em segundo lugar, os melhores dias dela
ma do AT em direção ao NT, visto que nem o ainda estão por vir, quando sua nova fa-
"remanescente" dos verdadeiros israelitas mília ultrapassará todas as suas fronteiras
(Rm 9.6,27) pode cumprir as vastas ex- (19,20). O NT aplica tais promessas não
pectativas dos v. 1-13. Somos conduzidos à "Jerusalém atual", mas à "Jerusalém lá
a buscar uma personificação mais perfeita de cima" (GI 4.25-27; cf Is 54.1), i.e., a
da luz e salvação (6) de Deus e da aliança igreja universal no céu e na terra. As ruínas
(8) em Cristo como cabeça da sua igreja, da cidade foram de fato reconstruídas nos
999 ISAíAS 51

séculos VI e V a.c., mas essas profecias obediência; 6 Em relação aos homens, uma
transcendem a escala mais modesta da- dádiva voluntária, custosa, e não uma exi-
queles eventos. 22,23 Acerca da rendição gência ressentida (Ofereci [...] não escon-
odiosa descrita aqui, ver comentário de di...); 7-9 Em relação a si mesmo, ele usa o
45.14. Acerca de os que esperam em mim, seu descrédito e isolamento para purificar a
ver comentário de 25.9. sua total confiança em Deus. Em Romanos
8.31-39, Paulo canta a variante cristã desse
49.24-50.3 Conforto para cântico, para quem a justiça de Outro si-
os cativos lencia o acusador, e para quem a ajuda de
Há uma apreensão dupla refletida aqui, so- Deus (7a,9a) é agora declarada explicita-
bre o poder e a vontade de Deus para salvar. mente como amor (Rm 8.35,37,39).
Aquela é aliviada pela afirmação do con-
trole de Deus sobre a história (49.25,26) e 50.10,11 Um epílogo do cântico
a criação (50.2,3), e esta, pela comparação Os dois versículos aproveitam as palavras
entre o seu caráter e o de Israel (50.1) - de fé recém-pronunciadas para fazer delas
pois não há inconstância nele como há no o pivô de vida ou morte para o ouvinte.
povo, e não há pressão de fora exercida so- 10 O compromisso com Deus significa cla-
bre ele (meu credor). Somente os pecados ramente a lealdade ao mesmo tempo ao seu
do povo explicam a ruptura (cf 59.1,2); a Servo, cujas palavras são determinantes e
atitude do Senhor é, por implicação, a de cuja fé é normativa (cf v. 7-9). É um si-
Oseias 3.1-3, em que a esposa pecadora é nal que aponta para a sua identidade, como
amada e trazida para casa. indivíduo e como mestre de discípulos.
11 Esse versículo descreve ou os persegui-
50.4-9 O terceiro dores (cf v. 6 e SI 118.12) ou, mais prova-
"Cântico do Servo" velmente, os que são autossuficientes, em
Depois da demonstração da paciente bon- contraste com o v. 10. A sua última linha
dade no primeiro "Cântico" (42.1-9) e da pode ser uma generalização da tristeza que
aceitação da labuta frustrante no segundo sempre é o resultado do pecado, mas talvez
(49.4,7), aqui o Servo encara a fúria e o já esteja antevendo o ensino neotestamen-
ódio ativos do mal. É apenas um passo, as- tário do castigo após a morte.
sim sente o leitor, para a cruz. Não há nem
mesmo uma indicação agora do desânimo 51.1-8 Mais alimento para a fé
momentâneo de 49.4; o Servo se dispôs a A fé, que "é pelo ouvir" (Rm 10.17, ARe),
aprender (4) e a dar 6), como alguém de- é nutrida pelas três mensagens introdu-
dicado de corpo e mente. 4 O plural (lit.) zidas por Ouvi-me (I), Atendei-me (4) e
"aqueles que aprendem" (ARe) ressalta Ouvi-me (7). Elas confirmam o chamado
que ele está aceitando o curso natural de de 50.10 a uma confiança inabalável, por
treinamento (cf. Hb 5.8), e o elemento de meio do apelo, primeiro, a olhar para trás
repetição na expressão todas as manhàs para as origens humildes de Israel, para
sugere uma atenção vitalícia à vontade de ver o que Deus pode fazer com alguém
Deus que está se revelando, "segundo cada mesmo "sendo ele só" (1,2, ARe); depois,
dia o exigir" (cf IRs 8.59). A autoridade a olhar para a frente para a consumação
e capacidade resultantes das suas palavras prometida tanto neste mundo (4,5) quanto
são as do profeta por excelência. no próximo (6); finalmente, a olhar para
Assim, o seu sofrimento, embora não as humilhações presentes em contraste
explicado (até o cp. 53), já é frutífero, tal pano de fundo (7,8). O pensamento da
como todo sofrimento pode ser. 5 Em re- mortalidade do homem, à luz da eterni-
lação a Deus, ele faz disso a sua oferta de dade de Deus, tem o seu eco nas palavras
ISAíAS 51 1000

do Servo em 50.9. 6 A tradução como mostra que estes estão na 2a pessoa singu-
mosquitos, em contraste com a expres- lar feminina, o que personifica de forma
são mais suave "semelhantemente" (ACF), constante e coerente a cidade-mãe (v. co-
postula aqui de forma plausível um sin- mentário do v. 16). Entre as diversas me-
gular coletivo do substantivo usado em táforas, a do cálice da sua ira, ou cálice
Êxodo 8.16,17 (12,13, Heb.). do atordoamento, destinado a mudar de
mãos (17,22), transmite a mensagem prin-
51.9-52.12 Expectativa crescente cipal, enquanto o páthos e as brutalidades
As repetições rápidas conferem urgên- da derrota se tornam vívidas pelo tatear e
cia a toda a seção, que toma o seu tom da prostração nos v. 18,23 e pela símile do
abertura: Desperta, desperta. O apelo do antílope pego na armadilha (20). A vista
homem resulta na garantia e desafio como de todos os caminhos (20) repletos e salpi-
resposta, marcados pelas próprias repeti- cados de moribundos deixaria a sua marca
ções de Deus: Eu, eu sou aquele que (12); profunda em Lamentações (cf, e.g., Lm
Desperta, levanta-te (17; lit.); Desperta, 2.11,12,19,21).
desperta (52.1) e finalmente: Retirai-vos, 52.1-10 As boas-novas de paz. 1,2 O
retirai-vos (da Babilônia) (52.11). chamado de Deus - Desperta, desperta
51.9-11 O êxodo suplantado. 9,10 - lança de volta sobre Israel a sua pró-
Raabe e o dragão, que para um não-is- pria oração de 51.9 numa réplica que é a
raelita sugeririam os poderes do caos em melhor resposta. Cf uma réplica parecida
confronto com os deuses na criação (cf do nosso Senhor em Marcos 9.22,23. 3-
comentário de 27.1), são símbolos aqui do 5 O objetivo principal desses versículos
êxodo, como o v. 10 deixa claro. Raabe já é livrar a metáfora da redenção de qual-
foi apelido do Egito em 30.7 (v. comen- quer noção de transação comercial. Como
tário). Acerca de simbolismo semelhante 50.1 destacou, os dominadores de Israel
para o juízo final, ver comentário de 27.1. não têm direitos sobre o povo, nem sobre
11 Mas o argumento de Isaías a favor de Deus; eles é que são agentes dele (e longe
mais um êxodo traz à sua memória uma de inocentes nesse aspecto), e não seus cre-
promessa já feita, e esse versículo cita, dores. Mesmo que 1Pedro 1.18,19 dê uma
quase literalmente, 35.10. nova nuança ao v. 3b, a salvação soberana
51.12-16 Os oprimidos são conforta- de Deus, por causa do meu nome [...] meu
dos. 12-14 O próprio Deus (Eu, eu sou ... ) nome (5,6; cf. Ez 36.21; Rm 2.24), é aqui
é o fundamento do conforto, tanto como o o único interesse.
SENHOR, que te criou, em contraste com a 7-10 Esses versículos, retratando de
transitoriedade de meras criaturas, quanto forma comovente a chegada das boas-no-
como o Deus da aliança (15,16) (teu Deus vas (cf 2Sm 18.19-33), ressaltam os três
[...] meu povo). Ele considera o fato de ter componentes de cada experiência dessas.
chamado Israel a coroação da glória, não O primeiro é o mensageiro, cujo esplendor
o anticlímax, da série surpreendente: céus é o da sua mensagem (e isso precisa ser
[...] terra [...] Sião. Note que Sião é um nada menos que um envio especial, como
termo para o próprio povo na última fra- Paulo ressalta em Rm 10.15); o segundo
se do v. 16. O v. 16a lembra a ordem ao são os atalaias, os que estão esperando "a
Servo em 49.2; e, aliás, é como um por- redenção" (Lc 2.38), pois se não as boas-
tador das palavras de Deus ao mundo no novas vão cair em ouvidos moucos; o ter-
sentido de que Israel cumpriu principal- ceiro é o evento, que aqui não é nada mais
mente o seu chamado. que o Senhor em ação, (8b-10), visto não
51.17-25 A virada de mesa. A forma de longe, mas de perto (lit. "olho a olho",
dos verbos (no Heb.) em todo o trecho i. e., face a face, como em Nm 14.14 acerca
1001 ISAíAS 53

de ver o Senhor). Observe a exultação, ao "borrifará..." (ARe) a ARA traz causará ad-
estilo dos salmos, nos v. 9,10 (cf SI 98.3,4; miração (apoiado pela LXX), expressão que
v. comentário de 42.10-12). faz uma boa introdução para a sequência:
52.11,12 A ruptura completa com admirados, silenciados, convictos. Mas
a Babilônia. O retrato é de uma procis- "borrifar", que é gramaticalmente suspeito
são sacerdotal, não a partida informal de mas não indefensável, cabe bem no con-
Êxodo 12.33. Os relatos da volta para casa texto com suas implicações de purificação
de Esdras 1.5-11 e 7.7-10 teriam algo des- sacrificial (cf IPe 1.2) e talvez de estabe-
sa natureza, e o próprio Esdras levou a pro- lecimento de aliança (cf Êx 24.6,8; uma
messa da escolta divina muito a sério (Ed palavra diferente).
8.22) e não foi desapontado. Mas por trás 53.1-3 O desprezo dos homens. O
da partida literal da Babilônia, Apocalipse abismo entre a pregação de Deus e a
18.4 enxerga um movimento maior, que é opinião do homem está bem evidente no
a necessidade de a igreja afastar-se do en- contraste entre o que é revelado (cf o v.
volvimento e juízo do mundo, "para não I com Rm 10.16,17,21) e o que é natural-
serdes cúmplices dos seus pecados e para mente atraente (2) ou impressionante (3).
não participardes dos seus flagelos". Cf a reação ao Jesus humilhado em, e.g.,
Mateus 27.39-44, e à pregação da cruz
52.13-53.12 O quarto (1Co 1.23). As palavras dores e padecer
"Cântico do Servo" (3) - cujo eco ouvimos novamente no
Da grande volta para casa nos voltamos v. 4 - significam literalmente "enfermi-
à figura solitária cuja agonia foi o preço. dade", o que talvez sugira ao leitor alguém
Estamos no cerne do livro, o centro de enfermo ou com uma ferida no coração
todo o seu padrão de pecado e justiça, gra- (como em Jr 15.18). Mas há ainda outra
ça e juízo. categoria, a do envolvimento voluntário
O poema, inesperadamente simétrico, do médico; pois ele também é um homem
está em cinco parágrafos de cinco versícu- de dores e enfermidades no sentido de que
los cada. Começa e termina com a exalta- ele se doa a essas coisas e ao seu alívio.
ção do Servo (primeira e quinta estrofes); Esse é o sentido definido em Mateus 8.17,
embutida nisso está a história da sua rejei- citando Isaías 53.4.
ção nas seções quatro e cinco, que por sua 53.4-6 Que doce troca. Essa é a estrofe
vez emolduram a parte central (4-6), em central. Aqui o significado da desgraça do
que o significado expiatório do sacrifício Servo irrompe, com a ordem invertida das
é explicado. Deus e o homem reconcilia- palavras do v. 4a para realçar a troca de pa-
dos compartilham a narração (v. o "meu" péis, e com os pronomes enfáticos ele e nós
e "eu" das seções marginais e o "nós" e o (4a,4b) para expor o nosso engano: "as nos-
"nosso" de 53.1-6). sas enfermidades ele carregou, e as nossas
52.13-15 A alegria colocada diante dores ele levou; mas nós pensávamos...".
dele. Aqui está o endosso celestial das 4,5 O significado cresce em clareza ao
corajosas palavras de 50.7-9, aplicando longo desses versículos: a dor que ele está
ao Servo termos de exaltação que podem carregando é nossa (4); é o castigo do pe-
caracterizar o próprio Deus (cf "alto e su- cado (5a); é o preço da salvação (5b). Mas
blime", 6.1; "o Alto, o Sublime", 57.15; continua sendo um paradoxo, um dos ca-
cf também 5.16; 55.9). Os muitos posi- minhos de Deus que são mais elevados que
cionados contra ele darão lugar aos muitos os nossos (55.9), como somos lembrados
sentenciados e iluminados (14,15; obser- pela combinação das suas pisaduras (i.e.,
ve a volta dessa palavra, num nível mais "contusões"; cf 1.6) e nossa cura, como
profundo, em 53.11,12). 15 Em vez de causa e efeito. 6 Esse versículo talvez seja
ISAíAS 53 1002

a mais penetrante de todas as descrições para revelar o SENHOR (enfático no v. 10;


do pecado e da expiação, expondo a nos- cf At 4.28) e o Servo (12; derramou a sua
sa imprestabilidade que é a nossa segunda alma) como os últimos executores do que
natureza e a obstinação que nos isola de foi feito. Além disso, em cada versículo
Deus e do homem; mas revelando também a ressurreição e o triunfo do Servo estão
a iniciativa divina que transferiu o nosso claramente implícitos, enquanto ainda
castigo para o substituto. A metáfora pela mais facetas da sua expiação aparecem aí
qual a iniquidade é colocada sobre ele é es- do que nos v. 4-6.
clarecida por, e.g., Gênesis 4.13; Levítico 10 Uma oferta pelo pecado era o sa-
5.1, 17 (em que a pessoa [lit.] carrega a sua crifício que falava de compensação ou sa-
iniquidade, i. e., seu castigo) e por, e.g., tisfação. O hebraico desse versículo pode
Levítico 10.17; 16.22 (em que a responsa- fazer ou da "sua alma" (i. e., ele mesmo) ou
bilidade cai sobre outro). Observe as ex- do Senhor o ofertante do sacrifício; mas o
pressões todos nós e de nós todos, que dão v. 12 não deixa dúvidas quanto ao autossa-
ao versículo começo e fim idênticos no he- crifício do Servo. 11,12 Outros aspectos da
braico; a graça dá uma resposta completa sua obra salvífica são mostrados e expres-
ao pecado. sos em termos de justificação, de expiação
53.7-9 Mãos ímpias, vítima voluntá- do pecado, de identificação (contado com
ria. O silêncio da vítima (contraste com os transgressores; cf. Lc 22.37) e de inter-
o clamor de outro "manso cordeiro", Jr cessão, i.e., intervenção. Ele é apresentado
11.19; 12.3) é resultado de amor e fé, como como sacerdote e sacrifício, patriarca (1Ob)
Jesus demonstraria (IPe 2.23,24), não de e rei. Finalmente, os muitos [...] muitos,
fraqueza ou prudência. Levando em consi- dos v. 11,12 (a mesma palavra é traduzida
deração a formulação da NVI (v. 8): "Com por poderosos no v. 12), pelos quais esse
julgamento opressivo ele foi levado"; toda um sofreu, reaparecem como cumprimento
a estrofe lembra de forma inevitável o jul- da promessa inicial tcf 52.14,15, "muitos
gamento de Jesus e sua continuação (v. co- [...] muitos").
mentário do v. 9).
8 A tradução "descendentes" (NVI) 54.1-17 A fervilhante cidade-mãe
harmoniza melhor com a LXX, citada em A exuberância, paz e segurança desse capí-
Atos 8.33, do que com o texto hebraico, tulo emanam do desamparo e da morte re-
cuja palavra dôr aponta antes para os con- cém-descritos, que em 52.14 atravessam a
temporâneos de uma pessoa. É mais bem descrição da grande volta ao lar. Em termos
traduzido por: "e quanto à sua geração, cristãos, o Calvário do cp. 53 é seguido da
quem lhe deu alguma consideração?". Cf igreja em crescimento do cp. 54 e do cha-
"Quem creu... T", mado à conversão ao evangelho no cp. 55.
9 A NVI deveria retomar ao singular 54.1-10 Esposa e mãe. Paulo associou
do hebraico, "rico". Foi um enigma até o esse trecho com a história de Sara e Agar
evento de Mateus 27.57,60, e ainda pertur- (cf GI 4.27) e enxergou aqui a verdadei-
ba aqueles que não aceitam a predição de- ra igreja, com seus membros nascidos do
talhada. Mas as versões antigas e os rolos alto (v. também comentário de 49.14-23).
confirmam a autenticidade de rico, a últi- A promessa de expansão mundial (3; cf.
ma fonte certamente corrigindo um plural 49.19) e a indicação de pressões vindou-
encontrado na LXX, mantendo o singular, ras sobre a velha estrutura (2) seriam vi-
como no texto padrão. vidamente reveladas na era dos apóstolos.
53.10-12 Coroado de glória e honra. Acerca da metáfora da esposa errante, ver
Nessa estrofe, a vindicação é completa. 50.1; aqui, no entanto, com rara compai-
Os perseguidores desaparecem de vista, xão, não a culpa mas a dor (6) da aliena-
1003 ISAíAS 55

ção é posta em evidência, com a ternura missão mundial do Messias. Davi é citado
correspondente do reencontro (7,8) ~ sua somente aqui nos cp. 40~66, mas isso é
permanência sendo vista como incondicio- suficiente para identificar o Messias real
nal e imerecida (cf misericórdia no v. 10), de 7.14 etc. com o Servo de 42.1 etc., pelo
como a promessa de Gênesis 9.11 e (pode- qual as nações esperam. (A sugestão de
mos acrescentar agora) de Mateus 16.18. que a promessa dada a Davi em 2Sm 7.12-
54.11-17 Cidade construída de joias. 16 é aqui transferida do rei ao povo não
A tenda apertada do v. 2 e a Jerusalém aba- harmoniza com a ênfase no v. 3b sobre sua
lada são igualmente excedidas em brilho permanência. Antes, a visão de Davi em
por essa união de beleza e força, um qua- SI 18.43-45,49, de nações subjugadas para
dro irradiante da igreja, a ser desenvolvido o testemunho do Senhor, é ampliada pela
em Apocalipse 21.10-27. Mas o seu signi- perspectiva das nações convertidas; cf v. 5
ficado é traduzido em termos não gráficos com Zc 8.20-23; 9.9,10).
nos v. 13-15, nos quais ajustiça do v. 14 e a 55.6-13 Pecado, perdão, glória. 6-9
invencibilidade dos v. 15-17 estão profun- Se o homem está com fome e precisa ser
damente arraigadas no discipulado pessoal saciado (1-5), ao mesmo tempo também
(13; cf Jr 31.34), que é uma das marcas da é iníquo e precisa de salvação. O chama-
nova aliança. Essa é a verdadeira força da do e a busca de Deus (1-5) precisam ser
cidade de Deus, que não recebe a promessa correspondidos pela contrapartida do pe-
de imunidade aos ataques, mas da arma ir- cador. O v. 7 é uma afirmação clássica de
refutável da verdade (17; cf Lc 21.15). arrependimento, desafiando a mente (cf a
palavra do NT para "arrependimento") e a
55.1-13 Graça transbordante vontade, os hábitos (caminho) e os planos
Esse chamado aos necessitados é inigualá- (implícitos no termo heb. para pensamen-
vel pelo calor de sua acolhida, até mesmo tos). Isso é tanto negativo (Deixe) quanto
no NT. O capítulo conduz duas vezes a um positivo (converta-se), tanto pessoal (ao
clímax, primeiramente nos v. 1-5, depois, SENHOR) quanto específico (porque ele se
por um trecho ainda maior, nos v. 6-13. compadecerá); e o seu apelo é reforçado
55.1-5 Pobreza, abundância, missão. pela brevidade do tempo (6) e pela pura
1-3 O quádruplo vinde é tão amplo quanto generosidade da promessa (7).
a necessidade humana (observe a ênfase 10,11 A declaração dos v. 8,9 não so-
em anseios não satisfeitos nos v. 1,2, como mente aponta em retrospectiva ao v. 7,
em, e.g., Ec 1.3; Jo 4.13) e tão restrito mas indica adiante para os v. 10-13, para
quanto um só indivíduo (no heb., há uma nos envergonhar das nossas expectativas
alternância de singulares e plurais no v. 1). pequenas. Os pensamentos de Deus têm
A Bíblia conclui com um eco disso (Ap alcance mais longo e são mais frutíferos,
22.17), e Jesus fez a mesma identificação como também mais elevados, do que os
de vinde [".] e come i com "v inde a mim" nossos. A comparação da sua palavra à
em João 6.35. O paradoxo de comprai [.,,] chuva e à neve sugere uma ação lenta e si-
sem dinheiro realça os aspectos duplos da lenciosa, transformando a face da terra no
posse segura e da total dependência que tempo certo. A referência é ao seu decreto
estão implícitos na graça (cf a união de (cf, e.g., 44.26; 45.23) e não ao seu convi-
confiantes mas carecedores de misericór- te ou instrução, que podem ser recusados
dia em Hb 4.16). (48.18,19; cf as figuras semelhantes às do
3-5 Esses versículos elevam o convite v. 10 em Hb 6.4-8).
para o plano totalmente pessoal, engajan- 12,13 O seu decreto é dado nesses ver-
do a mente e a vontade e atraindo os ou- sículos, combinando as alegrias da liber-
vintes à aliança, para que partilhem da tação (l2a), da própria vinda do Senhor
ISAíAS 56 1004

(cf 12a com 52.12; 12b com SI 96.12,13) dada em amor (para tomar essa mutilação
e da cura das antigas devastações (cf 13a cruel algo detestável em Israel, já que em
com 7.23-25 e talvez Gn 3.18). Observe o nenhum outro lugar era assim); e esse
seu "renome" (NVI; glória, ARA) especial amor agora de forma sensível fez corres-
como libertador (13b). ponder à sua deficiência algo melhor (5),
respondendo à sua exclusão física com a
56.1-66.24 A glória palavra dentro, e à sua falta de posterida-
e a vergonha de Sião de com a palavra eterno. O estrangeiro
Enquanto os cp. 40-55 analisaram o exí- também é tratado de acordo com a sua
lio babilônico, descrevendo o padrão de re- atitude, não o seu nascimento - um prin-
denção principalmente em termos da volta cípio já estabelecido pelo fato de Deus ter
dos israelitas para casa, a parte restante do aceito, apesar de Deuteronômio 23.3, a
livro fixa a nossa atenção na pátria, que é convertida Rute. Mas as grandiosas pala-
vista parcialmente no seu aspecto por de- vras do v. 7b eram amplas demais para os
mais conhecido como um lugar de corrup- administradores do templo (cf Me 11.17;
ção (56.9-59.15a) e devastação (63.7- At 21.28). Cf o pouco conhecido v. 8 com
64.12). Mas ela é mostrada também como João 10.16; é uma das diversas indicações
aparecerá, depois que Deus tiver vindo de que o nosso Senhor conhecia intima-
para o livramento, para fazer dela uma mente esses capítulos.
"bela coroa" (61.3, NVI), o centro e ímã de A importância do sábado, repetida nes-
toda a terra (cp. 60-62). Os capítulos fi- se trecho (2,4,6), surge mais claramente
nais (65-66), como o prelúdio (56.1-8), nas duas frases de apoio no v. 4, fazendo
mostram a acolhida do Senhor para com os desse dia não um fim em si mesmo, mas
estranhos e pagãos no seu santo monte e uma marca de amor a Deus (cf 58.13) e de
seu reino eterno, mas reforçam o perigo da lealdade à aliança (cf Êx 31.13).
exclusão eterna dessas glórias.
56.9-59. 15a A vergonha de Sião
56. 1-8 Saudação aos marginalizados 56.9-12 Os vigias estão dormindo. Ver,
1,2 Depois do clímax festivo dos cp. para contraste, 52.8; 62.6. Uma série de ex-
40-55, esses versículos apresentam as sé- pressões dos v. 10,11a caracteriza os líderes
rias obrigações de integridade (1) e de se espirituais do povo (atalaias; cf Ez 3.17);
manter afastado da mundanidade (2), que a palavra pastores geralmente é emprega-
constituem os elementos básicos da salva- da no AT com referência aos governantes. A
ção. No v. 1, o juízo (NVI: "justiça") exibe sequência é instrutiva; não ter visão espiri-
duas de suas facetas ao ser associado com tual (1Oa; cf 1Sm 3.1) é não ter mensagem
justiça (NVI: "o que é direito") e salvação (1Ob) e desviar-se para o escapismo (1Oc) e
(assim também na NVI); pois a retidão de a autossatisfação (l l a). Aliás, os pastores
Deus é orientada para corrigir e endireitar estão se comportando como suas ovelhas,
as coisas, não simplesmente para condená- pois todos se tornam para o seu caminho
las como erradas (cf Rm 3.21-26; v. tam- (11b; cf 53.6). Pior, eles são predadores e
bém comentário de 46.12,13). beberrões (llc,12), forçando a ganância e
3-8 Esses versículos produzem uma o escapismo ao limite.
tradução igualmente prática da visão mis- 57.1-13 Apostasia flagrante. Os vigias
sionária dos cp. 40-55 em termos mo- relaxaram (56.9-12), e o mal logo inun-
destos, na preocupação demonstrada pelo dou a nação. A época pode bem ser a de
eunuco e pelo estrangeiro, estranhos em Manassés, o filho apóstata de Ezequias,
meio ao povo de Israel. Aos eunucos se cuja perseguição aos inocentes (2Rs 21.16)
mostra que a lei contra eles (Dt 23.1) foi está em harmonia com o v. 1, e cujo ato
1005 ISAíAS 58

de queimar o seu próprio filho (2Rs 21.6) 20,21 A condição difícil dos ímpios é vista
corresponde ao reavivamento da adoração em seguida, mais claramente do que em
a Mi1com aqui (5b,9). 48.22, nos termos da salvação que eles re-
2 O pensamento do versículo é seme- cusaram. Somente a escolha deles separa
lhante a Apocalipse 14.13. 5 O tema da a paz, paz do v. 19 da expressão não têm
concupiscência é uma referência aos ritos paz do v. 21.
sexuais de fertilidade da religião cananeia, 58.1-14 Fingimento e realidade. O cha-
desenfreados também nos primeiros dias mado de trombeta de Deus (I) aos forma-
de Jeremias (cf Jr 2.20-25). (Acerca do v. listas está relacionado à acusação anterior
5b, v. o primeiro parágrafo acima). Depois (57.1-13), em grande parte de forma pa-
de falar da prostituição literal, é natural a recida à maneira como Romanos 2 está
transição à figura de Israel como a esposa relacionado a Romanos I, e sua ênfase é
que se tomou prostituta. Nos v. 6-13 (em basicamente a mesma dos evangelhos e de
que te, tua etc. são sempre femininos no Tiago. Negativamente (1-5), observe a
heb.), as metáforas como leito, símbolos combinação de meticulosa observância re-
(i.e., os símbolos do negócio da prostituta), ligiosa (2,5) e opressão social (3b,4), que
perfumes etc. estão entretecidos com as os piedosos de todas as gerações parecem
atualidades, tais como sacrificio e "ídolos" incluir na sua (ou nossa) rotina (cf Mt 23;
(57.6, NVI) no âmbito religioso, e embaixa- Tg 4.1-3), mas que Deus considera repug-
dores no âmbito político. Não é possível nante (cf 1.15). Positivamente (6-14), a
determinar se o v. 9a se refere à religião redefinição do jejum como reforma social
ou à política; o texto hebraico traz: "o rei", (6), cuidado amoroso (7) e o abster-se do
que pode ser ou "Mo loque" (NVI) (v. o pri- aparente direito de "apontar o dedo" (9) é
meiro parágrafo acima) ou um aliado terre- um antegosto da abordagem construtiva da
no (cf, e.g., 30.2-5). lei, exemplificada pelo nosso Senhor.
Há algo de amoroso no retrato da te- 9 A promessa: então, clamarás ... aponta
nacidade exaustiva no v. 10 e na obsessão para trás, para as orações não respondidas
e desilusão por vir nos v. 11-13. O trecho do v. 3 (cf Tg 4.3, 8-10), e o seu esplên-
todo faz um par adequado a Oseias 1-3 e dido desenvolvimento nos v. 9b-12 é uma
Lucas 13.34,35. expressão do princípio de Mateus 7.2:
57.14-21 Graça abundante. Repeti- "com a medida com que tiverdes medido,
ções, tais como: Aplainai, aplainai, e mais vos medirão também". 11 A bela símile
tarde: paz, paz (19), são profundamente do jardim regado reaparece em Jeremias
características dos cp. 40-66 (cf, e.g., 31.12. Toda a série de metáforas nos v. 10-
40.1; 52.1; 65.1); assim também é o tema 12 merece um estudo aprofundado. 13,14
de Deus como Salvador, apresentado de Mas para que não pareça que filantropia é
forma vívida aqui. No v. 14, ele é o gran- tudo, esses versículos descrevem o rigor e
de libertador. No v. 15, a combinação do a alegria da guarda e celebração do sábado
Sublime e do contrito e abatido de espírito que Deus deseja. Se o jejum deve ser uma
nos prepara para Mateus 11.28-30; João oportunidade de demonstrar amor ao nosso
1.14. O v. 16 ecoa Gênesis 6.3 acerca da próximo, o sábado deve expressar, em pri-
paciência de Deus, e os v. 17,18 expõem a meiro lugar, o nosso amor por Deus (em-
sua clara resolução de recuperar os que não bora tanto o trecho anterior quanto a prá-
merecem e não prometem nada, resumida tica do sábado por Jesus insistam em que
na memorável primeira linha do v. 18. 19 ele precisa transbordar para o ser humano).
Assim a oferta de graça é cristalizada, para Isso significa esquecer-se dos próprios in-
reaparecer em Efésios 2.17 como o em- teresses (l3a) e exercer o autodomínio de
brião do evangelho de Paulo aos gentios, ir além do trivial (13b). Mas a pessoas que
ISAíAS 59 1006

têm esse espírito, Deus pode seguramente único que está fora do ritmo. É uma rup-
dar grandes coisas (14). tura pior do que a de Amós 5.13, i.e., não
59.1-15a Alienação mútua. Esse tre- somente a justiça pública foi desvirtuada,
cho é em grande parte a contraparte do cp. mas junto com ela a opinião pública.
58. Aí está o mesmo problema da oração
não respondida e uma resposta semelhante 59.15b-21 O libertador
(1,2). Mas ao passo que o cp. 58 descreve a solitário (cf. 63.1-6)
verdadeira justiça e suas bênçãos, o cp. 59 A ação divina é a única ponte entre a ver-
retrata o pecado (3-8) e sua supressão de gonha de Sião recém-descrita e as glórias
todos os valores (9-15) (cf v. 10 de cada que seguem (v. comentário que introduz a
capítulo). O final é o caos, com a vida hu- seção 56.1-66.24).
mana (na expressão de Hobbes) "solitária, 16,17 O interesse do Senhor é ainda
pobre, sórdida, brutal e breve". mais intenso do que sugerem as nossas
2 Esse versículo explica de forma clás- versões. Maravilhou-se ("admirou-se",
sica a aparente inatividade de Deus como o NVI) deveria ser: "ficou horrorizado", se-
efeito da separação, a qual não é explicada melhante a 63.15 na ARe: "espantei-me".
aqui em função de sua repugnância (como Cf essa indignação não compartilhada
em 1.15), mas como o resultado adequado com a tristeza e a ira solitárias de Jesus em
do próprio pecado. 3-8 A anarquia propaga- Lucas 19.41,45. A armadura e a vestimenta
da nesses versículos fixa o ponto; se o pe- do v. 17 reafirmam o ponto do v. 16b; o
cado é assim, nem mesmo a sociedade so- Senhor não tem auxílio externo para com-
brevive a ele, muito menos a comunhão do bater o mal, somente a sua pura e intensa
homem com Deus. 5,6 Os ovos de áspide e rejeição do mal. Ajustiça parece ter tanto
a teia de aranha falam de forma marcante, o seu sentido dinâmico e intenso quanto
em primeiro lugar, da influência venenosa o seu significado mais estático de integri-
de pessoas ímpias, propagada justamente dade (cf comentário de 46.12, \3). Assim
pela tentativa de erradicá-la (5b; cf , e.g., a armadura de Deus aqui lança luz sobre
os efeitos de banir a arte obscena), e, em Efésios 6.13-17; é algo que ele mesmo usa,
segundo lugar, da futilidade de confiar nas não somente algo que ele dê.
orientações ou promessas delas (6), frágeis Esse zelo é controlado por rigorosa
como teias de aranha. justiça. O v. 18 está salpicado de palavras
7,8 Paulo extraiu alguns aspectos des- de retribuição: retribuirá [...] devido [...] a
ses versículos em Romanos 3.15-17, ao paga (cf Rm 12.19), mas limpa o cami-
conduzir sua reflexão ao clímax concer- nho para um reino de convertidos. 19-21
nente à nossa culpa universal. 9 Com o seu Nenhum lugar de origem pode desquali-
Por isso, esse versículo introduz as conse- ficar (19) ou qualificar (20) um homem a
quências progressivas de alguém escolher fazer parte do rol de membros; o teste é
o mal. 10 O tatear à plena luz do dia é o juí- espiritual (19a, 20b; cf Mt 8.10-12), e a
zo que os contemporâneos de Jesus atraí- aliança é reconhecidamente a nova alian-
ram sobre si (cf Jo 3.19) e sofreram (cf Jo ça, cujos participantes não somente "co-
12.35-40). 14 As quatro figuras personifi- nhecerão" todos o Senhor (Jr 31.34), mas
cadas, com a verdade (i.e., confiabilidade) todos falarão por ele como uma nação de
prostrada no chão (sempre é a primeira sacerdotes (cf Nm 11.29; JI2.28).
vítima em tempos de desordem), podem
ter contribuído de alguma forma para a 60. 1-62. 12 A glória de Sião
linguagem figurada em Apocalipse 11.7,8. Esses capítulos exultantes retratam bên-
15a Talvez o toque mais revelador seja o çãos que transcendem a antiga ordem e,
fato de ser sacrificado o homem decente, o em alguns aspectos, até a própria era cristã;
1007 ISAíAS 61

mas a linguagem é a das ordenanças do AT base no sacrifício de carneiros no altar da


e da Jerusalém literal - ela precisará ser casa da minha glória (o templo), que eram
traduzida nos termos da "Jerusalém lá de apenas "sombra dos bens vindouros" (Hb
cima" (cf GI 4.26). Também Apocalipse 10.1; cf. Hb 13.10-16; Jo 4.21-26). Acerca
21.6 cita livremente o cp. 60 para desen- de Társis, ver comentário de 2.16.
volver o seu quadro da cidade radiante do 60.10-16 As bênçãos da conquista.
céu; e a interpretação dessa visão (da qual Os gentios desse trecho não são conver-
mais de um ponto de vista é possível) pre- tidos mas súditos, derrotados e não con-
cisa afetar a da profecia presente. O pon- quistados. As Escrituras sempre preveem
to de vista adotado aqui é que o retomo muitos desses (cf, e.g., Lv 19.27; Ap 20.7-
para Jerusalém dos israelitas dispersos foi 9). Com metáforas de vitória e seus frutos
transformado no modelo de um movimento - mão de obra estrangeira (10), imuni-
muito maior, o influxo mundial de crentes dade a ataques (11a; cf Ap 21.25,26), tri-
para a igreja, e que a visão repetidamente butos exóticos (11b) e coisas semelhantes
aponta além disso para o fim, o estado de - Deus promete o triunfo do seu reino e
glória suprema. a felicidade incessante (15) do seu povo.
60.1-9 Estrela-guia das nações. O te O imperialismo evidente do trecho só ex-
e o tua desse capítulo estão no singular pressa a verdade sensata de que rejeitar o
feminino no hebraico, estando associa- domínio de Deus é suicídio (12), e que os
dos à cidade-mãe, Sião (v. comentário de mansos herdarão a terra.
49.14-23; 51.17-23; 54.1-10), cujosfilhos 60.17-22 O esplendor completo da gló-
efilhas (4) são de todas as nacionalidades, ria. O ouro no lugar do bronze é uma troca
não somente da dispersão israelita (cf SI caracteristicamente divina (cf 61.3,7), em
87.3-6; GI 4.26). Assim, as nações (3) e contraste marcante com a desvalorização
as terras do mar (9; "ilhas", ARC) são mais e o declínio humanos (cf considere os
do que meros portadores desse tráfego em substitutos em IRs 14.26-28 e o páthos de
direção à pátria; elas mesmas compõem Lv 4.1,2). O trecho está tão repleto dessas
uma grande parte dele como os que bus- novas glórias que só pode estar retratando
cam e se encaminham para a [00'] luz [de a perfeição final, na qual dentre um povo
Sião] (3) e olham ansiosamente para o em que todos [00'] serão justos, não serão
Senhor (9), voando como pombas "para necessários inspetores nem exatores, mas
os seus ninhos" (NVI) (8; lit. "suas jane- apenas da coerção da justiça e da paz (I 7b),
las" [ARC] ou "treliça"). Mas ver também e nenhuma defesa, a não ser a Salvação
comentário dos v. 10-16. O ouro e incenso que é inseparável de Deus (cf 59.17), e o
(6) lembram o leitor cristão dos precurso- Louvor que é a confiança aperfeiçoada. O
res dessa migração em Mateus 2, cuja ho- cerne vivo dessa glória, a presença imedia-
menagem então, no entanto, foi perigosa, ta de Deus, é revelado nos dois versículos
e cujos presentes incluíam a enigmática centrais, 19,20. Apocalipse 21.23 e 22.5
mirra tcf. Me 15.23; lo 19.39) - sinaliza- confirmam que essa visão ultrapassa não
dores dos esforços ainda por vir. somente o AT, mas também a era cristã, ex-
Acerca do contexto e simbolismo espe- pressando em termos terrenos (cf, e.g., v.
cialmente dos v. 6-9 (dos quais o v. 7 é fun- 22) a nova criação da qual 65.17-25 trata-
damentai para a compreensão do capítulo), rão novamente.
ver as observações introdutórias da seção 61.1-4 O cântico do Ungido do Senhor.
60.1-62.12. Os termos sacerdotais do v. Embora a expressão "Servo do Senhor" es-
7 impedem uma interpretação estritamente teja ausente nesse cântico (como, aliás, de
literal da profecia, visto que o NT insiste em 50.4-9), parece artificial a tentativa de fazer
que não pode haver retomo à adoração com da referência a "mim", no v. I, um novo
ISAíAS 61 1008

narrador. O nosso Senhor viu a sua mis- 19.24,25; 45.22; 66.18-21, como se rele-
são tão claramente revelada nesse cântico gasse os gentios à servilidade perpétua.
quanto nos outros (cf Lc 4.17-21; 7.22); e Isso é confundir a metáfora com o fato.
podemos observar, nesse indivíduo capaci- Sob a figura de um Israel sacerdotal, ser-
tado pelo Espírito (cf 11.2; 42.1) e por ele vido por estrangeiros (5,6) e enriquecido
ungido, uma mescla de termos que estão por seus antigos saqueadores (7,8), a rea-
associados ao Servo e Rei Messiânico. lidade é o povo de Deus (cuja posição não
A alegre tarefa aqui é uma continuação é nacional; cf IPe 2.10; Ap 7.9), vindi-
adequada do trabalho árduo dos cânticos cado e desfrutando da sua herança com-
anteriores (v. comentário de 42.1), cujo pleta como reis e sacerdotes (cf lPe 2.9;
fruto foi vislumbrado em 53.10-12. O nos- Ap 1.6), enquanto o orgulho do homem
so Senhor pôde citar esse trecho no início é humilhado e o seu poder subjugado.
da sua carreira porque ele já tinha aceita- Acerca dos gentios considerados subjuga-
do, no seu batismo e tentação, o papel do dos, ver comentário de 60.10-16; acerca
Servo Sofredor e com ele a cruz. Esses são dos gentios convertidos, ver comentário
os benefícios da sua paixão; os seus mila- de 19.16-24; 60.1-9. 7 Cf a prometida du-
gres falavam a mesma língua. pla honra com possivelmente 40.2.
O contexto continua sendo o cativeiro, 61.10,11 O cântico dos justificados.
visto por sua vez da Babilônia (I b) e da Cf essa explosão de alegria com 12.1-6
Jerusalém arruinada (3). Aos seus primei- e os cânticos dos cp. 24-27. Observe as
ros ouvintes a promessa seria tão literal duas metáforas para a justiça: a primeira
quanto a ameaça anterior do exílio (cf é a do manto, acerca do qual o comentá-
39.6); mas da forma como foi cumprida rio perfeito é "a melhor roupa" de Lucas
por Jesus (cf Lc 4.21) deu início às bên- 15.22, festiva e imerecida; a segunda são
çãos, proclamadas nas bem-aventuranças os renovos da vida vegetal, frutos do que
e em outros trechos, aos oprimidos e par- é semeado, cuja vitalidade inerente resul-
ticularmente aos que pranteiam (cf talvez ta em crescimento e forma. Aquela retrata
Am 6.6). A libertação aos cativos seria a justiça como algo conferido de fora (cf
também espiritual, como João Batista pre- Rm 3.22); esta, como algo que surge do
cisou aprender (será que a sua pergunta interior (cf Rm 8.10); ambas fazem dela
em Lc 7.19 foi provocada pelas esperan- uma dádiva de Deus. Acerca das suas nu-
ças que ele tinha colocado no "manifes- anças, cf comentário de 46.12,13.
to" de Lc 4.l8?). Observe o elemento de 62.1-5A beleza nupcial de Sião. Temos
amadurecimento lento e de reconstrução aqui mais um poema da série (começando
paciente, implícito nas metáforas carva- em 49.14, terminando com 66.7-16) que
lho e cidades arruinadas. retrata Sião como uma mulher ansiando
Mas a marcante omissão na citação de pelo marido e pela família. Mas aqui a ên-
Jesus das palavras o dia da vingança... (cf fase está no lado divino dessa reunião: a
Lc 4.19,20) aponta adiante, de maneira im- energia da sua vontade (Ia); a altitude (Ib)
plícita, para o estágio final ainda por ser e amplitude (2) da sua ambição por ela; o
cumprido (cf Mt 25.31-46; At 17.31; 2Ts orgulho que ele tem em aperfeiçoá-Ia (3); a
1.6-8). Em seus diversos contextos, então, sua alegria em trazer para casa os desterra-
a profecia é vista em botão, em flor e, por dos (4a); e o mistério central: que isso não
implicação, em seu pleno fruto. Ver ainda é filantropia mas amor ardente (4b,5b).
comentário de 63.4. 4 Dentre os quatro nomes aqui, dois
61.5-9 A ampla compensação. Às ve- passaram para o vocabulário cristão como
zes se pensa que esse trecho está aquém "Hefzibá" e "Beulá" (v. nota mrg. na
do espírito missionário generoso de, e.g., NVI) e sua ocorrência combinada aqui faz
1009 ISAíAS 63

o contraste entre a fé bíblica e os cultos (4), um tema que foi combinado em 61.2
cananeus; pois a metáfora de Deus como com o da restauração. As duas atividades
marido é de fidelidade (cf. comentário de estão associadas de forma causal, assim
50.1) e Delícía, ao passo que Baal como como a vitória (com o seu derramamento
marido era pouco mais do que fonte de de sangue) está relacionada ao livramento
fertilidade (cf Os 2.12,13). 5 O uso defi- (com sua alegria e paz); o NT endossa a
lhos de Sião talvez desfigure a metáfora sequência, desenvolvendo esse poema em
aos nossos ouvidos, mas tem a intenção Apocalipse 19.11-16, texto em que Jesus
de enriquecê-Ia pelo lembrete de que os é o guerreiro. Mas em ambos os testamen-
tementes a Deus são tanto casados com tos, Deus primeiro ofereceu um refúgio
a cidade-mãe quanto gerados por ela, e do seu juízo (cf 27.5).
a restauração dela é um prazer tanto para 1,2 Edom e sua cidade Bozra já tipi-
eles quanto para Deus. ficaram o mundo impenitente em 34.6.
62.6-12 Apressando o grande dia. Agora há umjogo de palavras com o nome
A grande volta para casa é vista tanto do Edom (vermelho) e indiretamente com
centro quanto da periferia: da Jerusalém Bozra, uma palavra semelhante a "coletor
que espera (6-9,llb,12) e dos distantes de uvas". Falo em justiça (1) é uma refe-
exilados (10, II a). Cada um desses con- rência ao cumprimento infalível do que
textos provê o seu retrato de preparativos Deus anuncia (cf 45.23; 55.11). Observe
humanos adequados para o momento de- poderoso para salvar; esse é o interesse
cisivo de Deus. 6-8 Deus primeiramente predominante, até mesmo nesse trecho de
dá a certas pessoas um interesse por Sião juízo. 3 A expressão: O lagar, eu o písei
como o dele mesmo (cf v. 6,7 com v. I), sozinho talvez faça o cristão lembrar-se
convocando esses guardas (cf 56.9-12) e do Calvário, mas o seu significado (cf
os que incitam outros (a ideia aqui para Ap 19.15) é que somente Deus se importa
os que fareis lembrado o SENHOR; v. co- o bastante e tem poder suficiente para levar
mentário de 63.7) à oração insistente (cf a cabo a obra de juízo.
Lc 11.S; lS.7), que ele encoraja com pro-
messas explícitas (7,S). 10 Em segundo 63.7-64.12 As necessidades
lugar, ele chama aqueles que estão presos gritantes de Sião
a que reivindiquem a sua liberdade, e ofe- As glórias dos cp. 60-62 e a visão da ação
reçam liderança às nações distantes, das decisiva de 63.1-6 incitam o profeta a uma
quais e com as quais ele traria os cida- das intercessões mais eloquentes da Bíblia,
dãos de Sião para casa. Acerca da iden- à medida que ele analisa a bondade passa-
tidade deles, ver comentário de 60.1-9. da de Deus e as presentes dificuldades do
12 Observe finalmente o nome quádruplo seu povo.
dessa comunidade redimida (cf o novo 63.7-14 As antigas misericórdias de
nome prometido no v. 2); um clímax Deus. 7 Isaías está fazendo o trabalho de
triunfante para esse grupo de capítulos e alguém que traz algo à memória dos ho-
ainda uma promessa para a igreja de Deus mens (cf 62.6); a sua resolução "Falarei"
que está sob enorme pressão. é (lit.) "Trarei à memória". 8 Na metáfora
das expectativas do pai por seus filhos, ele
63. 1-6 O vingador solitário destaca o tema de abertura do livro (1.2,4),
Esse é o trecho complementar de 59.15b- e no v. 9 extrai livremente alguns aspec-
21 (cf o v. 5 com 59.16). Embora ambos tos de Êxodo (cf 3.7; 33.14; 19.4). 10-14
tratem de juízo e da salvação resultante, Os termos são semelhantes aos de Salmos
este poema com o seu diálogo dramático 7S; e.g.Joram rebeldes e contrístaram (cf.
(cf SI 24.7-10) realça o dia da vingança SI 78.40) e à símile de conduzir animais
ISAíAS 63 1010

à pastagem nos v. 13,14 (cf SI 78.52,53). Acima de tudo, recorre-se ao Pai como
Mas ele usa os termos com nova intensi- oleiro (64.8) que sabe tudo e controla tudo.
dade (v. 9a) e com nova ênfase no Espírito Essa confiança submissa tem um espírito
Santo como o Senhor em meio ao seu povo muito diferente daquele de 45.9,10; faz da
(10,11,14). Nos v. 10-14, a referência é à oração, que começou resolutamente com
rebelião de Israel pós-deserto, pela qual fo- louvor (63.7), um modelo para todos os
ram castigados (lO), mas não desprezados. que precisam clamar das profundezas.
Por causa das suas misericórdias antigas, o Mas conclui com uma pergunta. A res-
Senhor ainda os conduziu (cf os v. 13b,14 posta de Deus revelará o quanto ou o quão
com SI 78.72, onde Davi continua a obra pouco a contrição do profeta encontrou
de Moisés). eco em seu povo.
63.15-64.12 A família de Deus de-
samparada. O apelo, usado três vezes, 65.1-66.24 A grande divisão
Mas tu és nosso Pai (63.16; 64.8), confere Longe de terminar com um esplendor ge-
a essa oração uma intensidade especial, en- ral, esses capítulos acentuam de forma im-
quanto o sentimento de alienação conflita piedosa o contraste entre a luz e as trevas
com o de aceitação. e eliminam qualquer verniz de privilégio.
Os sintomas de alienação são em par- É um fim tão perscrutador quanto o de
te exteriores, com o inimigo pisando tudo Apocalipse e das parábolas de juízo, perse-
o que era sagrado (63.18; 64.10,11); mas guindo às últimas consequências as impli-
muito mais sérios são os sintomas interio- cações da visão inaugural de Isaías (cp. 6).
res: a dureza espiritual de 63.17, a devasta- 65.1-16 Os aceitos e os rejeitados.
ção do pecado descrita em 64.5b,6 (um re- 1,2 O hebraico como está apoia Romanos
trato brilhante do seu poder para habituar, 10.20,21, ao atribuir o v. I aos gentios e o
perverter e desintegrar) e uma indiferença v. 2 a Israel. Na NVI, a frase hebraica: "uma
geral (64.7), que toma a condição humana- nação [...] não chamada pelo meu nome"
mente incurável. (i.e., os gentios) foi ajustada para: "A uma
Em tudo isso se mostra o juízo de Deus, nação que não clamava pelo meu nome"
que deteve a sua intervenção (63.15), endu- (o que ainda pode ser Israel). Embora essa
receu o coração deles (63.17; cf 6.10) e os formulação possa reivindicar apoio antigo,
devastou (heb. "dissolveu") por causa das o hebraico inalterado (como na ARA e ARe)
[ou por meio das] iniquidades deles (64.7). aponta muito claramente para os gentios,
A última dessas expressões deixa claro que respondendo ao desprezo de Israel em
Deus não pode ser culpado pela situação 63.19b, e não só ecoando 64.7.
espiritual desesperadora deles; ela procede Os gentios, então, devem ser acolhidos,
do seu próprio flerte com o mal. e o Judá apóstata, rejeitado (1-7); mas os v.
Em contrapartida a isso, há a constân- 8-10 reafirmam a promessa de um "rema-
cia do Pai à qual se pode apelar (v. comen- nescente" de israelitas tementes a Deus (v.
tário inicial, acima); é mais persistente que comentário de 10.20-23). A linha divisória
a fidelidade humana (cf 63.16 com 49.15; de Deus claramente não corre entre judeus
SI 27.10) e sua história é mais duradoura e gentios como tais, mas entre "os que bus-
(desde a antiguidade, 63.16). Além dis- cam" e "os que abandonaram" (lOc, lia),
so, ela já foi provada pelas poderosas in- que são respectivamente abençoados e
tervenções dele a favor daquele que nele amaldiçoados nos v. 13-16.
espera (64.4; cf 8.17; 30.18) - e por que 3-7 Cf os rituais proibidos com 57.3-10.
essas não deveriam ser renovadas (64.1- Os desvios anteriores foram predominante-
5a)? (O NT ressalta quão incrivelmente elas mente licenciosos; os atuais são provocati-
seriam suplantadas; cf ICoríntios 2.9,10). vos, no sentido de que descartam os altares
1011 ISAíAS 66

de Deus (3b,7b; cf Dt 12.2-7), metem-se dades (17b); alegria (18,19); vida (20; v.
com a necromancia (4a; cf Dt 18.11), de adiante); segurança (21-23a); comunhão
forma desafiadora comem carne proibida com Deus (23b,24) e harmonia entre suas
(4b; cf 66.17; Dt 14.3,8) e reivindicam criaturas (25).
uma "santidade" mágica dessas perversões, O ponto de viver até os cem anos (20)
potentes como um encantamento (5a é [lit.] é que nesse novo contexto um mero século
"porque eu sou santo para ti"). Acerca do é vergonhosamente breve, tão vasta é a es-
insulto que coroa tudo, cf v. 11. cala de comparação.
S A símile das uvas boas em um cacho Isso deixa a questão aberta se o trecho
medíocre associa o tema do "remanescen- promete essas bênçãos literalmente, ou re-
te" ao da vinha arruinada no cp. 5, usando trata o estado final por meio de analogias
talvez o início de um cântico da vindima terrenas. Se as condições são literais, se-
para reforçar o ponto, visto que Não o des- rão as do milênio, como numa leitura sim-
perdices parece o nome de uma melodia ples e direta de Apocalipse 20, em que os
nos títulos dos Salmos 57-59. 10 Acerca santos ressurretos parecem conviver com
do vale de Acor, com o seu passado atri- pessoas da ordem presente, antes do juízo
bulado e perspectiva esperançosa, ver final. Contra isso, no entanto, está a sequên-
Josué 7.26; Oseias 2.15. 11,12 Fortuna e cia pela qual a nova criação (17,18) pre-
Destino, Gade e Meni (NTLH), eram adora- cede essas bênçãos aqui, mas as segue em
dos na Síria e em outros lugares. Observe Apocalipse 21.1. Por essa razão, parece que
o jogo de palavras no v. 12a: também vos devemos interpretar esse trecho como uma
destinarei ... Cf. mesa e a referência a servir analogia, e suas alusões ao pecador (20; v.
vinho com lCoríntios 10.21,22, em que a nota mrg. NVI) e à serpente (25) como pro-
pergunta de Paulo: "Ou provocaremos ze- messas de juízo e vitória. Os maus já não
los no Senhor?" (cf. o nosso v. 3) pode indi- prosperarão, nem os fortes farão dos fracos
car que ele tinha em mente esse capítulo. as suas presas, nem o tentador escapará da
13-16 Aqui o ritmo inicial é o de um sua sentença (cf o v. 25 com Gn 3.14,15)
canto fúnebre ou canto de escárnio (cf. no mundo perfeito por vir. Mas tudo isso é
14.3-23), e os contrastes acentuados an- expresso de forma livre, local e ilustrada
teveem os dos evangelhos (cf, e.g., Mt para despertar a fé e não alimentar a curio-
25.31-46; Lc 6.20-26; Jo 3.36). O nome, sidade. Observe finalmente a implicação,
o Deus da verdade (16), é (lit.) o Deus do pela alusão a 1I.6-9, de que isso é levado
"amém", i. e., o que é certo e fidedigno; cf. a existir não por uma simples ordem, mas
a expressão do nosso Senhor: "Em ver- por meio do Rei Messiânico.
dade, em verdade" ("Amém, amém"), e o 66.1-5 Adoradores, bem-vindos e in-
seu título em Apocalipse 3.14 (v. também desejáveis. Isso não é um protesto contra a
2Co 1.18-20). reconstrução do templo, como alguns têm
65.17-25 Novos céus e nova terra. O sugerido, pois Deus a ordenou (Ag 1.2-
novo é retratado totalmente em termos do 11). Antes, é uma repreensão ao eclesias-
antigo, só que sem os antigos sofrimen- ticismo - o espírito que construiria muros
tos e tristezas; não há tentativa alguma de humanos ao redor de Deus (1,2a; cf 28m
descrever qualquer outro tipo de novida- 7.6,7; At 7.48-50,54). 2b Observe a atitude
de. Daí o cenário conhecido, Jerusalém, e disciplinada que Deus espera de nós, como
as satisfações modestas, em grande parte em Lucas 18.13, visto que o homem não
a oportunidade de "desfrutar da obra das é somente pequeno mas pecador. Ver, no
[próprias] mãos". Isso possibil ita que as entanto,57.15.
coisas mais importantes sejam proeminen- O eclesiasticismo também produz a
tes no trecho: a cura de antigas enfermi- ilusão (3) e a intolerância (5).3 O hebraico
ISAíAS 66 1012

traz (lit.) "imolando um boi, ferindo um 65.3-7; Lv 11.7,29), que conheceram a luz
homem" etc. e pode significar ou (assim a e a desprezaram. 17 A deusa que está no
maioria das versões) que um ritual mera- meio era provavelmente quem liderava o
mente correto é como matança e idolatria ritual mágico-religioso ("sacerdote", NVI;
sem sentido (cf 1.13; Jr 7.21), ou então cf "Jazanias [00'] que se achava no meio
que no presente ele coexiste com bruta- deles" em Ez 8.11).
lidade e sacrilégio. A intolerância do v. 5 66.18-24 As nações são recolhidas e
foi expressa, quase literalmente, em João acolhidas. Do ponto de vista milenista,
9.24,31. É uma das alusões mais antigas à a vinda do Senhor será seguida de mais
perseguição puramente religiosa e ao ódio evangelização do mundo, do completo
teológico, uma das manchas mais escuras retomo de Israel e do estabelecimento de
da igreja. Jerusalém como a capital do mundo e o
66.6-17 A última intervenção. Embora centro da peregrinação. Como alternativa,
os termos dessa seção e da seguinte ainda podemos interpretar essa seção final como
sejam os do AT, com o seu templo (6), fi- um epílogo que abarca a primeira e a se-
teiras (20; "carros e carroças", NVI), sua gunda vindas de Cristo. O v. 18 então afir-
Festa da Lua Nova e sábado (23), eles ma o propósito dele para o mundo, e os v.
aludem claramente ao tempo final. Os v. 7- 19-21 os seus meios de realizá-lo: o sinal
9 realçam a total novidade do evento, que (Cristo crucificado e ressurreto; Mt 12.38-
zomba dos processos lentos da história. A 40?); os sobreviventes, ou o remanescente
expressão: nação que nasce [00'] de uma só salvo, enviado às nações (19); e o ajunta-
vez é equivalente a lCoríntios 15.51,52: mento do seu povo em sua Jerusalém (20),
"transformados seremos todos [...] num os gentios sendo acolhidos para a completa
abrir e fechar de olhos". O v. 9 apresenta participação com os judeus (21). Jerusalém
a resposta final triunfante à mensagem de segundo esse ponto de vista não é a cida-
Ezequias a Isaías em 37.3. de literal (cf novamente Gl 4.25,26). Os
10-14 A exuberante cena familiar des- v. 22-24 descrevem (ainda em termos ve-
ses versículos, concluindo os poemas acer- terotestamentários) o estado da glória e da
ca de Sião como esposa e mãe (v. comen- perdição final.
tário de 49.14-23), está centrada agora nos No v. 19, os nomes representam os
filhos de Sião (cf 014.26). Observe que a distantes postos avançados do mundo de
cidade-mãe é realmente a fonte secundária, Israel. 20,21 Dos lugares mais remotos da
não a primária, da sua riqueza e conforto; terra, então, os dispersos de Israel serão
tudo é do Senhor, até mesmo o amor de trazidos a Jerusalém, como uma oferta de
mãe (13), embora ele use a comunidade re- homenagem pelos gentios. Há um signifi-
dimida para repartir essas dádivas. As duas cado duplo nesse termo, que representava
últimas linhas desse versículo apresentam a oferta de manjares em Levítico 2 etc.,
a origem e o lugar dessa ajuda: Jerusalém. mas também os vasos puros, não só ade-
Comunhão direta com Deus, e completo quados para conduzir os israelitas, porém
engajamento na sua igreja, são mantidos como sacerdotes e levitas eles mesmos.
juntos. Em João 16.22, Jesus conferiu ao v. (Gramaticalmente, o termo alguns poderia
l4a uma forte referência pessoal. ser uma referência aos israelitas que retor-
15,16 O fogo e a espada são os aspec- naram, mas o anticlímax é improvável).
tos severos de toda intervenção divina (cf Paulo usa uma variante marcante desse
Mt 10.34), mas esta é a intervenção final simbolismo em Romanos 15.15,16.
(cf v. 24; 2Ts 1.7-10). Mesmo podendo ser 22 Cf os novos céus e a nova terra
associada a toda a carne, os objetos espe- com 65.17. 23 Festa de Lua Nova e sá-
ciais da ira são os apóstatas do v. 17 (cf bado já não são obrigatórios para os cris-
1013 ISAíAS 66

tãos (cf CI 2.16), é implausível sugerir cujos ouvidos tinha caído a grande profe-
que essas "sombras" serão restabelecidas. cia, com toda a sua música e todo o seu
Representam aqui a sua essência, a alegre evangelho [...] ainda assim continuarem a
consagração de toda a vida ao Criador. preferir os seus ídolos, sua carne de porco
23 Cf Daniel 12.2; Marcos 9.48. Na [...] seu sentar em túmulos, a um Deus tão
sinagoga, o v. 23 é lido novamente depois evidente e a uma graça tão grandiosa".
do v. 24 para suavizar o término da profe- Buscai o SENHOR enquanto se pode
cia. Mas é um final legítimo. "É evidente" achar (55.6).
(para citar G. A. Smith) "que nenhuma ou-
tra coisa pode resultar, se os homens em Derek Kidner
JEREMIAS

INTRODUÇÃO
Autor e contexto que agora representava a nova ameaça ao
Jeremias profetizou ao reino de Judá du- povo de Deus. Jeremias a descrevia como
rante os reinados de Josias (640-609 a.C), um exército que viria "da terra do Norte"
Jeocaz (609), Jeoaquim (609-597), Joaquim (6.22). Como no século anterior, também
(597) e Zedequias (597-587). As palavras agora os planos de Deus para seu povo se
de abertura do livro (1.2) contam que seu alinhavam com os fatos históricos e polí-
ministério teve início em 627 a.c. Jeremias ticos sobre os quais ele tinha controle. Ele
trabalhou durante 40 anos, uma carrei- mesmo seria responsável por trazer um ini-
ra completa, que coincidiu com os últi- migo contra seu povo infiel (5.15).
mos anos do reino de Judá. Assim como
Ezequiel, ele pode ser considerado um dos A mensagem
profetas do exílio (v. também página 949). Os profetas frequentemente dirigiam suas
Tanto Ezequiel quanto Jeremias foram palavras aos reis, uma vez que a estes ca-
sucessores dos grandes profetas do século bia a responsabilidade especial de manter
anterior (Isaías, Oseias, Amós e Miqueias), a vida religiosa do povo. Desse ponto de
que haviam profetizado na época em que vista, o ministério de Jeremias é bastante
ainda havia dois reinos: Israel (o Reino do interessante, pois teve início no tempo em
Norte) e Judá (o reino do Sul). O primei- que o rei Josias empreendia uma reforma
ro, entretanto, havia sido desmantelado em religiosa em Judá. Os cp. 22-23 de 2Reis
722 a.c. pelo poder dos assírios ("a vara descrevem com detalhes as medidas por
do meu [de Deus] furor" [Is 10.5, NVI]), ele tomadas e as relaciona à descoberta, no
depois de os avisos de Amós e de outros templo, do "Livro da Lei" (provavelmente
profetas não terem sido ouvidos. Embora o Deuteronômio), perdido, possivelmente,
Judá de Jeremias tenha sobrevivido ao vio- durante o longo e cormpto reinado de
lento ataque dos assírios (v. 2Rs 18-20), Manassés (2Rs 22.8). Isso aconteceu em
ele se tomara apenas um pequeno e frágil 621 a.c., cinco anos após o chamado de
remanescente do povo de Deus. Por quanto Jeremias. É possível que a reforma estivesse
tempo ainda poderia ele sobreviver? A res- acontecendo desde 628, como sugere
posta dependeria de o povo ouvir ou não a 2Crônicas 34.3-7. De forma surpreendente,
palavra de Deus por meio do seu profeta. portanto, as profecias de Jeremias - muito
Na primeira vez que Jeremias ouviu críticas em relação aJudá - tiveram iní-
a palavra de Deus, a Assíria já não era a cio durante o reinado de um rei justo e fiel.
potência que havia sido. Foi durante seu Isso pode sugerir que para Jeremias a mera
declínio (o destino de todos os impérios) reforma em si não conseguiria produzir no
que o rei Josias pôde reafirmar a antiga povo a profunda mudança que Deus dese-
reivindicação de Israel sobre o território java. Seu chamado seria para uma comple-
do Reino do Norte, perdido centenas de ta mudança de coração (4.4).
anos antes (2Rs 23.15-20). Em 612 a.c., Jeremias, todavia, criticou a todos os
Nínive, a capital da Assíria, caiu sob o po- líderes em Judá por não ensinarem nem
der da nova potência regional, a Babilônia, liderarem de acordo com os padrões da
1015 JEREMIAS

aliança pela qual eram responsáveis. Reis conseguia sentir a ira de Deus pelo peca-
(cp. 22), profetas (23.9-40) e sacerdo- do que o cercava (8.21-9.3). Portanto,
tes (2.8) foram atacados sem distinção. Jeremias experimentou o juízo a partir de
(Josias foi a única exceção; 22.15,16.) A ambos os lados, o que depositava umjugo
condenação é ainda mais espantosa em quase insuportável sobre ele.
virtude de Jeremias ter sido tanto profeta A dor causada por seu chamado pro-
quanto sacerdote (1.1). O povo da alian- fético é descrita de modo pungente nas
ça, na verdade, era totalmente infiel (9.2- passagens poéticas conhecidas como "as
6). Esse é o ponto de partida de toda a confissões" (1.18-23; 12.1-6; 15.10-21;
mensagem do profeta. 17.12-18; 18.19-23; 20.7-18). Nelas, ele
A mensagem em si, no entanto, prega- se queixa a Deus quase com amargura.
da durante um longo período, e em face Todavia, também é delas que brotam a
de um panorama em drástica mudança, confiança e a certeza da salvação de Deus
parece ter passado por vários estágios (15.19-21).
distintos. Primeiro, Jeremias conclamou
o povo a se arrepender de seus pecados, A mensagem e o leitor cristão
para que não viessem a sofrer nas mãos da Não será muito simples ao leitor cristão
Babilônia (3.12). Em determinado ponto, traduzir a mensagem de Jeremias para
entretanto, ele anuncia que Deus de fato algo relevante em sua vida pessoal. O
puniria Judá pelas mãos daquela nação. O que o juízo de Deus sobre seu povo an-
tempo do arrependimento havia termina- tigo pode ter a ver com a vida pessoal de
do; o castigo de Deus era agora inevitável um cristão? De fato, como a pregação de
(21.1-10). Todavia, esse segundo estágio Jeremias, voltada para a salvação de uma
estava intimamente ligado ao terceiro, nação, entendida como retorno a uma ter-
que anunciava o propósito restaurador ra, num contexto político e militar, pode
desse castigo. Na misericórdia de Deus, ser relacionada ao evangelho?
o exílio na Babilônia seria o caminho da Uma primeira resposta seria apontar
vida para aqueles que aceitassem a puni- para a obra de Cristo. No âmago da men-
ção (21.9; 24.4-7). É no contexto desse sagem de Jeremias se encontra a verdade
último estágio que as promessas, as quais de que a punição de Deus visa sempre à
incluíam a esperança de uma nova alian- salvação do seu povo. Esse princípio da
ça (31.31-34), devem ser compreendidas. salvação por meio do juízo prenuncia, aci-
No fim, portanto, a aliança uma vez des- ma de tudo, a cruz de Cristo, na qual ele
prezada por Israel é restabelecida pela mi- próprio suportou o juízo pelo pecado a fim
sericórdia de Deus. de salvar a humanidade pecadora.
Jeremias estava intimimamente envol- Jeremias também aponta para Cristo
vido com sua mensagem, sendo profun- em suas profecias sobre a nova aliança
damente atingido por ela. Por causa dela, (cp. 30-33). Elas apontam, em primeira
exteriormente o profeta passou por sofri- instância, para o retorno do antigo povo de
mentos de várias formas; teve de renun- Judá à sua terra em fidelidade, mas apon-
ciar à sua vida social e familiar (15.17; tam, em última instância, para Cristo, que
16.2), foi alvo de conspirações contra vive, ele mesmo, a vida do "Israel" fiel e
sua própria vida (11.18-23; 18.18) e ví- concede o Espírito Santo aos que estão
tima de prisões e espancamentos (20.1-6; nele, para que também possam participar
37.15,16; 38.6). Interiormente ele também dessa vida de fidelidade.
foi atingido, pois já sentia intensamente Entretanto, se o livro de Jeremias
a aflição pela qual, ele sabia, passaria o aponta principalmente na direção das
povo (4.19-21; 10.19-22). Além disso, ele grandes coisas que Cristo fez por seu
JEREMIAS 1016

povo, existe alguma maneira em que o pecado e juízo, concentra seu foco de ma-
livro possa ser um guia para como viver neira singular no amor e na compaixão de
a vida cristã? A resposta aqui também é Deus, cujo desejo mais profundo é dar vida
afirmativa. Para isso é importante enten- e bênção às suas criaturas.
der que o evangelho cristão não se preo-
cupa somente com indivíduos, mas com a Forma. estrutura e
igreja como um corpo e é importante su- composição do livro
por que há uma coerência básica na forma O livro de Jeremias é longo e contém uma
como Deus lida com o seu povo. Isso quer grande variedade de material. Parte dele
dizer, primeiro, que a mensagem dirigida consiste nas palavras de Jeremias ditas
a Judá, tanto de juízo quanto de salvação, em forma de poesia, oráculos ou ditados
pode ser em certo sentido aplicada à igre- (e.g., cp. 2-6); segue um estilo mais de
ja como corpo. Assim como o povo de sermão (e.g., 7.1-15), escrito em prosa na
Deus na Antiguidade, ela também precisa maioria das versões (incluindo na NVI);
estar prevenida contra a complacência e também podemos encontrar trechos sobre
não deve se considerar acima do castigo Jeremias, presumivelmente escritos por
(cf Ap 2-3). A igreja (ou parte dela) um terceiro (e.g., cp. 26). A maior parte
pode até mesmo passar por períodos de dos oráculos poéticos pode ser encontrada
disciplina, apenas para experimentar, no nos cp. 1-20. Geralmente o texto não traz
fim, a renovação de Deus. as datas e os lugares desse tipo de depoi-
Em segundo lugar, Jeremias destaca a mento. Podemos obter mais informações
necessidade de uma liderança responsável sobre datas e locais de oráculos e aconte-
e adverte como a corrupção pode se espa- cimentos específicos nos sermões e narra-
lhar entre o povo de Deus. Também alerta tivas, entretanto, não é uma biografia; ele
sobre a falsa esperança entre os que são fala sobre Jeremias com o único intuito de
religiosos, talvez uma falsa esperança na ajudar a proclamar sua mensagem.
própria religião. Ele mostra que quando Sabemos muito pouco sobre como o
a vida da igreja se toma corrompida, esse livro foi formado. Ele não segue um pa-
caráter corrupto pode ser transmitido de drão cronológico consistente, e pode ser
geração em geração (44.9). Essa percep- difícil de ler como um todo coerente.
ção também pode ser aplicada a outras co- Provavelmente foi formado em estágios.
munidades além da igreja, sejam de caráter Isso está implícito no cp. 36, onde pode-
nacional ou tradicional, o que explicaria a mos ler sobre como o primeiro rolo das
transmissão de ódios e preconceitos entre palavras de Jeremias foi destruído pelo
elas ao longo dos séculos. A profecia tam- rei Jeoaquim e em decorrência disso, o
bém apresenta a psicologia do pecado e a profeta escreveu um novo rolo com mais
forte inclinação dos seres humanos a ele palavras que o primeiro (36.32). Isto tam-
(3.6-10). O retrato do rei Zedequias é um bém é sugerido pelo fato de a versão gre-
grande símbolo da eterna hesitação dos se- ga do AT (a LXX) conter uma versão menor
res humanos entre o bem e o mal. do que a que aparece em nossas Bíblias.
Por fim, o livro traz maravilhosas ex- Parece que o profeta trabalhou na produ-
pressões de alegria na salvação, sobretudo ção do livro juntamente com Baruque, seu
nos cp. 30-33. A poesia desses trechos é assistente e escriba. Este pode, portanto,
por si só uma inspiração, e, em seu contex- ter participado da composição do livro
to, como uma profecia que diz muito sobre como hoje o conhecemos.
1017 JEREMIAS

Leitura adicional MCCONVILLE,l .G. Judgment and Promise:


KIDNER,F. D. The message of Jeremiah. an interpretation of the book of
BST. Inter-Varsity Press, 1971. Jeremiah. Apollos/Eisenbrauns, 1993.
GUEST, J. Jeremiah, Lamentations. cc. BRIGHT, 1. Jeremiah. AB. Doub1eday,
Word,1988. 1965.
THOMPSON, 1. A. The Book of Jeremiah.
NICOT. Eerdmans, 1980.

1.1-19 Jeremias
~J-4.4 A~acusélç~<:I do . . _ . _~ntrél_!ie.':l.E.0vo __ ~.._ . _ ....~ .._ ... .__.._
2.1-8 Um amor abandonado
2.9-28 A acusação
2.29-37 A sentença
3.1-4.4 Pode Judá voltar a Deus?

4.5-6.30 Finlll"'" do de Judá


4.5-31 o inimigo se aproxima
5.1-31 O castigo devido à falsidade de Judá
6.1-30 "Em vão continua o depurador"

7.1-8.3 e fé falsas
7.1-15 Um sermão no
7.16-29 Além da redenção?
7.30-8.3 Abominações para o Senhor

8.4-10.25 O pranto pela apostasia de Sião~~~__~~~~~~~~~_


8.4-22 Nenhum arrependimento verdadeiro
9.1-11 Um povo totalmente falso
9.12-26 Lamento pelo povo que tem de sofrer
10.1-25 Ninguém é semelhante ao Senhor

11.1-13.27 A quebra da aliança ~_~~_. ~~_._.. _


11.1-17 Jeremias expõe a rebeldia do povo
11.18-12:6 "Confissões"
12.7-13 Deus e sua "casa"
12.14-17 Um plano para as nações
13.1-27 Sinais do juízo

14.1-15.21 Fome, espada e peste


14.1-10 A seca
14.11-22 Tarde demais para orações
15.1-9 Tarde demais para compaixão
15.10-21 Uma confissão - e a resposta amorosa de Deus
JEREMIAS 1018

16.1-17.27 Figuras do exílio e da salvação


16.1-21 Exílio prenunciado
17.1-13 Confiança nos recursos humanos - confiança no Sen hor
17.14-18 Uma confissão
17.19-27 Guardando o sábado

18.1-19.13 Dois vasos quebrados e uma confissão


18.1-18 Um vaso quebrado e refeito
18.19-23 Uma confissão
19.1-13 Um vaso quebrado que não pode ser refeito

19.14-20.18 Jeremias amaldiçoa o dia em que nasceu


19.14-20.6 Jeremias no templo
20.7-18 Uma última confissão

21.1-24.10 Salvação somente por meio do exílio _


21.1-14 Nenhum livramento da Babilônia
22.1-30 Reis indignos
23.1-8 Um novo rei davídico
23.9-40 Sobre os falsos profetas
24.1-10 Dois cestos de figos

25.1-38 Deus julga todas as nações


25.1-14 O período babilônico
25.15-38 O cálice da ira de Deus

26.1-29.32 Jeremias se torna um profeta da salvação


26.1-24 Jeremias por pouco não escapa da morte
27.1-22 Servi a Nabucodonosor!
28.1-17 A mensagem de Jeremias mostra-se correta
29.1-14 "Edificai casas na Babilônia"
29.15-32 Profetas na Babilônia

30.1-33.26 A promessa de uma nova aliança


30.1-24 A saúde é restaurada
31.1-26 O retorno do remanescente
31.27-40 A nova aliança
32.1-15 Jeremias compra um campo
32.16-44 Acaso há alguma coisa difícil demais para o Senhor?
33.1-13 A voz de júbilo e de alegria
33.14-26 Uma aliança eterna

34.1-36.32 Resistência à de Jeremias


34.1-22 para os escravos
35.1-19 Os recabitas fiéis
36.1-32 Jeoaquim rejeita as palavras de Jeremias
1019 JEREMIAS 1

37.1-39.18 Os últimos dias de Judá


37.1-10
37.11-21 A prisão de Jeremias
38.1-13 Jeremias é atirado em uma cisterna
38.14-28 A última audiência com Zedequias
39.1-18 A queda de Jerusalém

~O.1-=-45.4 O .':.emanescentedo povo foge para o Egito _


40.1-12 Gedalias como governador
40.13-41.18 O assassinato de Gedalias
42.1-21 "Não entreis no Egito"
43.1-13 Ao Egito
44.1-14 O apelo final
44.15-30 "Não te obedeceremos a ti"
45.1-5 Uma palavra para Baruque

46.1-51.64 Profecias contra as


46.1-28 Contra o Egito
47.1-7 Contra os filisteus
48.1-47 Contra Moabe
49.1-39 Profecias mais curtas
50.1-51.64 Contra a Babilônia

52.1-34 A de Jerusalém

COM propósitos. Sua vontade, uma vez revela-


da, exigia que Jeremias se sujeitasse inte-
1.1-19 Jeremias gralmente a ela. Toda sua vida seria por
Jeremias era filho de um sacerdote. Sua ela profundamente afetada.
cidade natal, Anatote, fora especialmente A primeira reação de Jeremias ao cha-
reservada para as famílias dos sacerdotes mado foi de relutância (6; cf a relutância
(1; cf Js 21.18). A cidade ficava perto de de Moisés, Êx 4.10-13). Ele era apenas
Jerusalém, e os sacerdotes tinham de per- um jovem (a palavra criança seria melhor
correr esse pequeno trajeto para exercer traduzida por "jovem", pois Jeremias se
seu ofício. Dentro do curso normal dos encontrava na casa dos 20 anos). Em uma
eventos, Jeremias teria exercido o ofício sociedade que valorizava a sabedoria dos
sacerdotal no tempo devido. mais velhos, é bem provável que ele te-
Essa expectativa, entretanto, foi inter- nha se sentido incapaz de "falar", isto é,
rompida por seu chamado para ser profe- não sentia ter qualificação natural alguma
ta. A expressão a ele veio a palavra do para liderar ou interpretar acontecimentos
SFNHOR (2) é uma tipica maneira de falar para toda a nação. O Senhor, entretanto,
sobre o chamado profético no AT (cf Os tinha previsto sua objeção; ele o conhece-
\.I; JI 1.1; Ez 1.3; Mq 1.1). Isso é uma ra e o escolhera antes de seu nascimento
clara demonstração de que a missão pro- (5). Essa é uma declaração extraordinária
fética não era aspirada pela pessoa que a da presciência de Deus, particularmente
recebia; antes, Deus a escolhera para seus em relação ao chamado de uma pessoa.
JEREMIAS 2 1020

Ela relega às sombras todas as qualifica- eles, mas também seus deuses, agora go-
ções naturais e adquiridas que o escolhi- vernavam a cidade. Parece que o próprio
do possa ter. Ela também o faz quanto a Deus abandonara seu povo. Mas o profeta
outras aspirações. Quando Deus chamou mostrará por que a humilhação deveria vir
a Jeremias, estendeu suas mãos sobre ele dessa maneira.
de tal maneira que o profeta não teve outra O povo deveria ser julgado pelo pecado
escolha senão ouvir e obedecer. Ele fora fundamental da quebra da aliança com o
separado para aquele momento e propósi- Senhor ao rejeitá-lo e trocá-lo por outros
to. Ainda assim, evidentemente ele tinha deuses (16). Isso era o mesmo que atacar
de fazer a escolha, obedecer e continuar a a raiz da aliança, como o povo já fizera no
fazê-lo por todo o seu ministério. monte Sinai (Êx 32). Esse será um tema
A palavra ao profeta não apenas lhe presente em todo o livro.
trouxe mais segurança, mas também va- Por fim, Jeremias ouviu novamente que
lidou seu ministério entre o povo. Nesse deveria permanecer firme (17). Do mesmo
sentido, ela também se dirige a todos (não modo que a nação teria inimigos, ele tam-
apenas aos ministros e outros oficiais da bém os teria dentre seu próprio povo, inclu-
igreja) que se sentem incapazes de cum- sive dentre os poderosos (18). O Senhor,
prir o chamado de Deus para a sua vida. entretanto, é mais poderoso do que todos
Também adverte o povo da igreja em geral eles, e o protegerá. A promessa terá de ser
contra a superficialidade na avaliação dos repetida- e mantida (cf 11.18-23).
dons e ministérios de outros membros.
Deus assegurou a Jeremias que o pro- 2.1-4.4 A acusação do Senhor
tegeria daqueles que a ele se opusessem e contra seu povo
o odiassem. Como portador da palavra de
Deus, ele, de certo modo, compartilhava 2.1-8 Um amor abandonado
da autoridade de Deus até mesmo sobre os O cp. 2 contém a essência das acusações
reinos (10). A mensagem de Jeremias de do profeta contra Judá. Nesse trecho de
fato se mostraria importante para um gran- abertura, o Senhor relembra os primeiros
de número de nações, e não apenas para dias da vida de Israel, quando libertou o
Judá e a Babilônia (v. cp. 46-51). A pala- povo da escravidão no Egito e fez dele seu
vra de Deus, tanto para o juízo quanto para próprio povo, por meio de uma aliança
a salvação, deixaria suas marcas. no monte Sinai (Êx 19-24). O tempo no
A Jeremias foram dadas visões como deserto (2) é relembrado como um tempo
provas divinas da autenticidade do seu de fidelidade. Naquele lugar infrutífero,
chamado. A primeira visão, a de uma vara fora essencial confiar em Deus para todas
de amendoeira, deriva seu significado da as coisas. E ele protegera o seu povo con-
semelhança, na língua hebraica, entre a tra todos os inimigos (3b; v. Êx 17.8-13).
palavra amendoeira e a palavra vigiar. A (O povo de Israel nem sempre fora fiel no
segunda, a de uma panela ao fogo, mostra deserto; cf Êx 32. Jeremias, entretanto,
que a mensagem seria de juízo vinda das vê o deserto como um lugar de verdadeira
mãos de um povo oriundo do Norte (14). A comunhão com Deus, assim como Oseias
visão nada dissera ainda sobre a Babilônia. também o fizera; Os 2.14,15.)
O plural (todas as tribos [...] cada reino; A intenção em mostrar a imagem de fé
15,16) é bastante vago. Jeremias pode não em uma geração passada é de contrastá-la
ter sabido a princípio que a Babilônia seria com a corrupção do povo de Judá nos dias
o inimigo em questão. O estabelecimento de Jeremias. Agora Deus os chama para
de tronos de reis estrangeiros às portas de prestar contas (4). A aliança envolvia com-
Jerusalém (15) implicava que não somente promisso de ambos os lados. Ao mesmo
1021 JEREMIAS 2

tempo em que prometera terra e bênçãos, Essa troca, além disso, é ilusória. A
o Senhor também exigira lealdade do povo própria história de Israel e de Judá pode
de Israel. Ele agora faz uma pergunta re- comprová-lo. Os leões (15) aparentemente
tórica, indagando se alguma falha de sua é uma referência à Assíria, que havia des-
parte havia levado o povo de Israel a se truído o Reino do Norte em 722 a.C. (cf
afastar dele (5). O pecado afetava não ape- v. 18 e v. também a introdução). A derrota
nas a presente geração, mas também a de no passado é comparada à ameaça contem-
seus pais. porânea do Egito a Judá. O v. 16 pode ser
O pecado que roubara o coração do uma referência à morte do rei Josias pelas
povo era nada mais nada menos que o da mãos do faraó Neco, em Megido, em 609
idolatria. Equivalia a rejeitar o primeiro e a.c. (2Rs 23.29). Que esperança haveria,
mais fundamental de todos os mandamen- então, nas tentativas de aliança com esses
tos (Êx 20.3). Na terra de Canaã, que Deus impérios (18)7 Essa política havia sido ten-
tinha dado a seu povo, eles tinham adora- tada no passado com a Assíria (2Rs 16.7) e
do a Baal, um deus comumente adorado desacreditada (v. comentário de Is 7). E al-
pelo povo cananeu. (A expressão "ídolos guns de Judá procurariam refúgio no Egito
sem valor", que aparece no v. 5 da NVI, (24.8). Tudo isso seria em vão, causando
é um trocadilho com o nome de Baal na seu próprio castigo (19).
língua hebraica; a intenção aqui é mostrar O tema da falsidade é também ex-
que Baal na verdade era um ídolo fraco, plorado nas figuras usadas por Jeremias.
sem poder.) O povo tinha transferido toda Israel é escravo (14), quando deveria ser
sua confiança para Baal, tendo vários lí- servo do Senhor; é uma prostituta, quan-
deres traído suas responsabilidades espe- do deveria ser sua noiva (20; cf 3.1); era
cíficas em relação ao Senhor e ao povo, uma vide brava quando deveria ser uma
devotando-se a esse outro deus (8). Essa vide excelente (21; cf. Is 5.1-4). As coi-
era uma retribuição amarga para o Deus sas falsas frequentemente não passam
que os havia guiado através dos perigos de zombaria, de uma imitação da verda-
do deserto para uma terra de fartura (6,7; de, prometendo tudo que a verdade pode
cf Dt 8.7-10). Quando ele a chama de sua trazer. Todavia, quando a vida é baseada
herança (7b), a questão não é como ele a em falsas ideias e falsa adoração paga-se
conseguiu, mas sim que ela lhe pertence obrigatoriamente um preço; e a insensatez
perpetuamente (cf Lv 25.23). Todavia, seu de Judá seria exposta para sua vergonha,
povo, por meio de seu pecado, fizera dela como quando um ladrão é pego em fla-
uma abominação; o povo havia se corrom- grante (26). Em momentos de crise, Judá
pido com as mesmas práticas que um dia pode se voltar novamente a Deus (27b) em
o Senhor decisivamente removera dessa desespero; mas isso também é falsidade,
terra (Lv 18.19-30). uma tentativa de usar a Deus, o genuíno
espírito da idolatria.
2.9-28 A acusação
Na verdade, Judá tinha sido a parte infiel 2.29-37 A sentença
na aliança. Portanto, o Senhor agora faz a Aqui se retoma o tema principal. É Judá,
sua acusação. O povo é acusado de adorar e não o Senhor, o responsável pela quebra
a outros ídolos em vez de adorar o verda- da aliança (31,32). À acusação do pecado
deiro Deus. A expressão sua Glória é uma religioso (33) é acrescentada a acusação
alusão a Deus (v. 11), evocando suas apa- do pecado da injustiça social (34), um
rições a Israel durante a peregrinação pelo tema profético comum (cf Am 5.10-15).
deserto (Êx 40.34,35). A aberração dessa O Senhor, entretanto, não pode ser enga-
troca é realçada nos v. 10-12. nado; nenhuma estratégia de defesa será
JEREMIAS 3 1022

suficiente contra ele (36b); ele realmente misericórdia ao verdadeiro arrependimen-


punirá seu povo desobediente (3Sb,37). to. No v. 14, a mensagem, que já fora ne-
gligenciada, é novamente aplicada aJudá.
3.1-4.4 Pode Judá voltar a Deus? Entretanto, Judá é um povo de filhos rebel-
A seção inteira diz respeito à necessidade des; a palavra é associada ao verbo conver-
de Judá se voltar ao Senhor em verdade. tei-vos e significa que o povo, habitualmen-
Entretanto, surge uma questão, a saber, se te, "volta-se" para longe de Deus em vez de
o Senhor pode se voltar novamente em voltar-se para ele. O chamado para a con-
amor para um povo que persistentemente versão, ou para o arrependimento, é feito a
violou a aliança. Esse é o ponto central um povo cujo coração resiste firmemente.
em 3.1-S. A cena muda abruptamente nos v. IS-
Nesse trecho, estabelece-se uma analo- 18 onde Jeremias vislumbra um dia de
gia segundo a qual a separação entre Deus salvação em que Deus redimirá um povo
e Israel é comparada a um divórcio. A lei que será fiel. É um tempo no futuro em
do divórcio em Deuteronômio 24.1 proi- que o Senhor trará o seu povo de volta a
bia a mulher, que tivesse se divorciado e Sião (significando Jerusalém e Judá). Essa
casado com outro homem, de retomar ao imagem pressupõe uma nova aliança, que
primeiro marido. O Senhor, agora, retrata será apresentada mais detalhadamente em
a Judá como tendo efetivamente se divor- Jeremias 30-33. Este trecho mostra como
ciado dele, devido à sua aliança com ou- a pregação de Jeremias pelo arrependi-
tros amantes, isto é, os deuses de Canaã mento, na ocasião, não deu em nada, e que
(1b). Pela analogia com a lei do divórcio, a esperança de Judá para o futuro dependia
portanto, Israel não poderia esperar que o de alguma outra coisa, e esta era um novo
Senhor a recebesse de volta. A forte acusa- ato redentor da parte de Deus.
ção de prostituição é usada aqui (I-S) pela Pastores segundo o meu coração (lS)
disposição de Judá em adorar a outros deu- são líderes justos, ao contrário dos líderes
ses. Isso tinha acontecido em muitos luga- corruptos de Judá (cf 23.1-4). A atitude de
res (2a), e, como resultado, a terra ficou não se lastimar a perda da arca da alian-
"poluída" (v. comentário de 2.7). Se agora ça é compreensível na conjuntura da nova
parece que Israel quer se voltar ao Senhor, aliança, a qual dependerá muito mais de
há hipocrisia nisso (4,S). uma verdade interior do que de sinais ex-
A ideia do divórcio continua nos v. 6- teriores (cf 31.33). Será necessária a vinda
lO. Aqui, Israel, o antigo Reino do Norte, de Cristo para transformar e capacitar o
é apresentado como exemplo de uma se- povo de Deus. Ele também será aquele que
paração de uma parte do antigo povo de consumará para sempre a aliança de Deus
Deus (2Rs 17). No tempo de Jeremias, isso com Israel.
já era um fato histórico consolidado. O Voltando à cena presente, o Senhor la-
destino de Israel, entretanto, era um aviso menta a traição de Judá, recorrendo a dife-
para Judá (cf 2Rs 17.18,19) - mas Judá rentes metáforas de relacionamento (para
teimava em não levar o aviso a sério. Israel como "filho" de Deus, v. Êx 4.22,23;
Nos v. 11-14, esse argumento é levado cf Is 1.2; Oseias também utilizou essas me-
ainda mais longe. Judá é na verdade muito táforas, Os 2.2; 11.1,2). O lamento do Senhor
pior do que Israel havia sido (11). Agora faz par ao de Israel, que parece conhecer a
Jeremias prega o arrependimento ao Reino ruína de seus falsos caminhos (21).
do Norte (para o lado do Norte). Esse é um A última seção do capítulo é aberta
artifício retórico, uma vez que o Reino do com um novo chamado ao arrependimen-
Norte já não existia; ele está defendendo a to, prenunciando a cura final pela nova
tese de que o Senhor sempre responde com aliança (eu curarei...). A resposta imediata
1023 JEREMIA54.'"
li.

de Judá, no entanto, limita-se ao mero arre- Nos v. 5-9, Jeremias descreve o pânico
pendimento formal (22b-25), o fingimento que a aproximação do inimigo causará. O
descrito no v. 10, como se pode ver pela toque da trombeta é um chamado às armas;
ocorrência de um novo apelo em 4.1-4, que os lavradores correrão para as cidades em
dá vazão a ameaças de juízo. Contudo, ela busca de proteção, onde se ajuntarão em
traz ecos do v. 21, com seus sinais de reco- tropas de proteção; a bandeira hasteada
nhecimento da futilidade da idolatria. rumo a Sião é provavelmente uma adver-
Os versículos de abertura do cp. 4 tam- tência (5,6). O inimigo, impiedoso como
bém pertencem à presente seção, uma vez um leão (cf 2.15), já partiu para a sua jor-
que eles voltam a tratar do arrependimen- nada de destruição. Ele não é ainda identi-
to ou da conversão. Em primeiro lugar ficado como a Babilônia. A expressão vir
(1,2), Judá (chamado de Israel) é lembra- do Norte não fornece nenhuma pista, uma
do de sua missão de conduzir as nações ao vez que, qualquer que fosse o agressor
Senhor; esse fora o motivo do chamado ou (com exceção do Egito e dos vizinhos ime-
da eleição de Abrão por Deus no passado diatos de Judá), ele encontraria um aces-
(Gn 12.1-3). Muita coisa dependia de sua so mais fácil para a terra por aquele lado.
fidelidade. Em segundo lugar, o povo é ad- Aqui o apelo é dirigido a todo o povo (8); a
vertido a não confiar em rituais exteriores, inevitável exposição e revelação dos falsos
tais como a circuncisão. Antes, eles devem líderes (9) não diminui a responsabilidade
ser marcados como alguém que pertence a de todos.
Deus por algo mais profundo em seu cora- Jeremias não é indiferente à mensagem
ção, isto é, por uma devoção de todo o seu que fora chamado a pregar. No v. 10, obser-
ser, tanto individualmente quanto em so- vamos uma nota de lamento, à qual ele
ciedade. A ordem para que lavrassem um voltará mais adiante (15.18). Em sua angús-
campo novo é referência ao desejo de que tia ele acusa o Senhor de ter traído o seu
dessem vida ao que se encontrava morto. povo, presumivelmente por ter permitido
O chamado ao arrependimento e à ver- que falsos profetas convencessem o povo
dadeira espiritualidade é algo que a igreja com uma mensagem de paz (cf 6.13,14).
precisa ouvir constantemente e que, a não A única resposta é a própria confirmação
ser pela graça do próprio Deus, ela também do Senhor de que o juízo é certo.
pode distorcer das formas mais sutis. As vívidas imagens do perigo são reto-
madas nos v. 13-18, como se uma sentinela
4.5-6.30 Figuras estivesse de fato observando a aproxima-
do juízo de Judá ção dos exércitos inimigos (13). Nos v. 15-
16, a mensagem é anunciada primeiro de
4.5-31 O inimigo se aproxima Dã, que ficava distante, no norte de Israel;
O restante do cp. 4 retrata de modo ima- então, com a aproximação do inimigo, é
ginativo e apaixonado a iminente devas- anunciada de Efraim, na região monta-
tação de Judá. O narrador, do começo ao nhosa, até que a notícia chega a Jerusalém.
fim, é Jeremias; todavia, ele expressa a Essas palavras podem ter sido proferidas
palavra de Deus, e o discurso por vezes com o intuito de levar Judá ao arrepen-
é tão direto quanto o do próprio Senhor dimento (14) e assim evitar o desastre.
(e.g., 6b). Algumas versões tentam dividir Contudo, Jeremias sente a dor, sabendo ser
o discurso entre Deus e o profeta, mas é isso inevitável (18).
muito difícil fazer isso de maneira coeren- Agora Jeremias expressa livremente
te. Em todo caso, a verdade é exprimida, sua própria angústia (19-22). O que ele
o significado não sendo, de um modo ou descreve não é literalmente um "ataque
outro, afetado. cardíaco" (19), mas uma agonia do espírito
JEREMIAS 5 1024

que ele sente fisicamente. Nesse trecho, ele do livro. Na experiência de Jeremias, há
se identifica por completo com o povo em esperança mesmo em face da própria mor-
sua iminente aflição. O som dos gritos de te. Isso somente é possível por Deus, que
guerra também o enche de terror (l9c). As se revela a nós em Jesus Cristo.
tendas de Judá são também suas (20b).
O v. 22 pode ter sido proferido tanto 5.1-31 O castigo devido
pelo Senhor como por Jeremias. Demonstra à falsidade de Judá
que Jeremias se identifica não apenas com O tema de todo este capítulo é o castigo
o povo, mas também com Deus; embora devido pela falsidade inveterada. Sua intro-
o castigo seja insuportável, ele será mere- dução, com a busca por uma única pessoa
cido. Os v. 19-22 são muito importantes que pratique ajustiça ou busque a verdade
para se entender Jeremias. Seu sofrimento, (l), por amor de quem o Senhor pudes-
tanto em relação a Deus como ao povo, faz se poupar o povo, relembra a oração de
dele um tipo de "mediador" entre ambos. Abraão por Sodoma (Gn 18.22,23). Por ou-
Ele prenuncia o sofrimento de Jesus Cristo tro lado, a questão é que não há ninguém;
para a salvação do mundo. a corrupção de Judá é total. Todavia, não
O fato de Judá não ter obedecido à é Jeremias alguém que pratica a justiça e
aliança afeta de fato o mundo inteiro (cf busca a verdade? Seu papel de mediador
4.2). Jeremias retrata agora nada menos já fora observado (4.19-22), e nós veremos
que a eliminação da ordem criada no mun- que no final ele terá de fato um papel espe-
do, em palavras espantosamente parecidas cial na salvação do povo.
com as de Gênesis 1 (23-26). Se a aliança A ideia da total corrupção do povo é
com o povo escolhido de Deus malogras- agora desenvolvida (3-6). Sua recusa da
se, não poderia haver esperança final para verdade (3) aplica-se igualmente ao povo
o mundo. É por isso que a vida de Cristo em geral (4) e aos líderes em particular (5).
precisa ser vista como um cumprimento A intenção do v. 4 não é excluir as pessoas
daquela aliança, a fim de ser luz para os comuns. Ao contrário, os dois versícu-
gentios (cf Is 42.6). los juntos mostram que nenhuma parcela
A última seção do capítulo mostra o do povo está isenta da culpa - embora a
exército inimigo espalhando destruição culpa dos líderes seja, sem dúvida alguma,
entre o povo que desesperadamente tenta muito maior devido em virtude de suas
se refugiar. As duas figuras finais formam responsabilidades especiais. Todos juntos
um contraste chocante. Na primeira (30), precisam encarar o castigo devido (6).
Jerusalém é uma prostituta, esperando lu- O Senhor agora justifica seu plano de
crar com seus amantes. Aqui, o "amante" punição (7-13). Há um entendimento táci-
pretendido é a Babilônia, mas a esperança to de seu direito a fazê-lo. Esse direito está
de que a Babilônia possa ser seduzida será implícito na lógica da aliança. Esta era
frustrada. Não há escapatória para a morte vista como uma espécie de tratado, pelo
nesse falso amor. A imagem feminina se qual a nação mais forte se reservava ao di-
altera para aquela da parturiente dando à reito de punir a mais fraca caso esta não
luz em meio a um massacre (31). A ilusão se ativesse a ele. Na aliança entre Deus
é destruída e substituída por uma realidade e Israel, Deus tinha o direito - que não
aterradora; o ato de gerar a vida é envol- exigia nenhuma justificativa básica - de
vido pela morte. O capítulo fecha com um infligir o castigo final; o doador da vida
último lamento. tinha o direito de tirá-la. Aqui, entretan-
Há um indício, entretanto, de que esse to, ele explica por que a sentença é justa
desfecho não é definitivo (27). Essa espe- nesse caso (9). A metáfora da prostituição
rança tomará forma em partes posteriores é usada novamente (8), e a acusação é de
1025 JEREMIAS 6

falsidade, implicando os profetas em par- na retidão não apenas em relação ao pró-
ticular (11-13). Esta falsidade é profunda, prio Deus, mas também entre as pessoas
uma mentira sobre o próprio Deus, que o em aliança com ele. A verdade não está
supunha indiferente à perversidade (12). A confinada ao domínio das intenções, mas
gravidade dos falsos ensinamentos sobre é conhecida nas ações. O NT também ex-
Deus não deve ser subestimada. pressa de maneira vigorosa esse ponto em
O trecho seguinte diz mais sobre o po- seu ensino de que "a fé sem obras é morta"
deroso inimigo, embora a Babilônia ainda (Tg 2.26; cf Rm 12). A suprema expres-
não tenha sido citada (14-19). A intenção é são da verdade é o próprio Jesus (10 14.6);
mostrar que o próprio Deus está enviando realmente a verdade é a palavra, mas a pa-
a calamidade como cumprimento de sua lavra que se fez carne no relacionamento
palavra (14), e que haverá a destruição de com o homem. Não pode haver verdade
tudo quanto é bom. O v. 17 contém todo onde há egoísmo.
o tipo de bênção de Deus para Israel (cf O capítulo conclui repetindo a justi-
Dt 7.13). A vinda da Babilônia consiste na ficativa do Senhor em punir o seu povo
supressão dessa bênção por parte de Deus, (29); uma última reflexão sobre a falsida-
e no fato de fazer valer as maldições con- de condena os profetas e sacerdotes por
tidas na aliança (v. Dt 28.15-68). Mostra- ensiná-la e o povo todo por aceitá-la de
se agora que o desastre iminente inclui um bom grado (30).
período de exílio (19). Esse é o resultado Essas palavras terríveis são lidas hoje
da punição; entretanto, é também uma da- por uma igreja que foi definitivamente
quelas portas de esperança que Jeremias, aceita em Cristo, e por um povo a quem
em sua pregação do juízo, por vezes deixa nada pode separar do amor de Deus (Rm
entreaberta (18; cf 4.27; 5.10). 8.38,39). Não obstante, muito se perde na
O Senhor agora prossegue afirmando obstinação contra a palavra de Deus e a ne-
ser ele a única fonte de tudo que é bom cessidade de vigiar.
para Israel. O temor que o seu povo lhe
deve (22) não é outra coisa senão a adora- 6. 1-30 "Em vão continua
ção correta, embora essa adoração deva ser o depurador"
repleta de temor, uma vez que é dirigida O capítulo retoma às cenas de pânico vis-
àquele que é todo-poderoso. A adoração é tas no cp. 4. Os lugares mencionados se
devida a Deus em primeiro lugar por ser localizavam não muito longe de Jerusalém
ele o Criador (22), e, em segundo, por ser (Benjamim, a terra ao norte; Tecoa, ao sul;
ele o doador da vida e do bem-estar de seu Bete-Haquerém não pode ser localizada
próprio povo; esse é o ponto central dos v. com certeza). Jerusalém é descrita como
24,25, que estão intimamente relacionados uma mulher (filha de Sião) preocupada
ao v. 17. com sua formosura, mas prestes a ser pi-
Jeremias volta sua atenção (como já lhada por seus agressores (isso está su-
o fizera antes) à opressão do fraco pelos bentendido nos termos do v. 3a; pastores
poderosos em Judá (26-28; cf 2.34). Os provavelmente é uma alusão aos líderes
ricos não somente exploraram os pobres, babilônios). Assim, a imagem é similar a
mas se utilizaram até mesmo das cortes de 4.30. As palavras nos v. 4,5 são ditas pelos
justiça para assim fazê-lo (28; cf Êx 23.6- agressores babilônios.
8). Esse desrespeito pela justiça é também O restante do capítulo é dividido em
uma forma de "falsidade". Isso é assim oráculos do Senhor. O primeiro (6-8) es-
porque a "verdade" no contexto da aliança colhe o tema da opressão violenta de Judá
com Deus não se resume a meras palavras, contra os fracos (cf 5.26-28) e qualifica sua
mas significa um relacionamento baseado condição como uma doença. Um povo que
JEREMIAS 7 1026

mantém a aliança é inteiramente saudável; meras formalidades, que não nasce no co-
um povo que quebra a aliança está infecta- ração. Eis aqui mais um lado da falsidade
do em cada aspecto da sua vida. Essa me- de Judá; não apenas a adoração a outros
táfora será utilizada com frequência. deuses é um grande mal, como também o é
No segundo oráculo (7-15), o ato de a hipocrisia na adoração ao Senhor. Esse é
rebuscar um remanescente de Israel (os re- um tema comum a todos os profetas (Is I;
síduos de Israel, 9) parece não atingir uma Am 5.21-25; Mq 6.6-8).
nota de esperança como em outros trechos Um pequeno oráculo (21) evoca nova-
(4.27; 5.10; cf Is 17.4-6, em que o ato de mente a totalidade do desastre iminente,
rebuscar um remanescente tem o sentido afetando os parentes e amigos íntimos de
de juízo). O tom do trecho inteiro aponta cada pessoa - chegando mesmo a fazer
nessa direção (10-15). Assim como a cor- troça desses relacionamentos.
rupção do povo foi total, afetando todas as O Senhor, então, volta novamente a
camadas da sociedade (cf 5.3-5), assim retratar a ferocidade e o poderio do exér-
também será a punição; daí o horror dos v. cito inimigo que se aproxima. No v. 24,
11,12. Também no v. 13 o povo todo é res- palavras de medo e angústia são colocadas
ponsabilizado novamente, antes de a aten- na boca do povo, evocando as palavras
ção se voltar de modo mais específico para do próprio Jeremias (4.19). O medo toma
os profetas e sacerdotes. O v. 14 é o centro conta deles quando percebem que não há
da acusação contra os falsos líderes. Eles como escapar da tribulação iminente.
subverteram completamente a verdade, fa- As palavras finais do capítulo são diri-
zendo os outros acreditarem na mentira de gidas a Jeremias. A imagem é baseada no
que Deus não se opõe à perversidade. Essa refino da prata, que envolvia a fusão do
mentira fez com que aferida de toda a so- minério e posterior depuração da prata, se-
ciedade - tanto o pecado quanto o sofri- parando-a do chumbo com o qual frequen-
mento dele resultante - não fosse tratada. temente estava combinada. O processo de
Eles cometem abominação sem sentir ver- refino poderia falhar por diversas razões,
gonha por isso. Na verdade, não só deixam não resultando nenhuma prata pura. O re-
de se arrepender, como são incapazes de sultado, neste caso, seria a prata de refu-
sentir vergonha por seus atos (15b). go. Assim também Israel, apesar de todo o
O terceiro oráculo (16-20) começa cuidado e auxílio de Deus para que fosse o
com o apelo do Senhor para que busquem verdadeiro povo da aliança, deve ser final-
as veredas antigas, isto é, o tipo de vida mente rejeitado.
ordenado por Deus, conhecido desde que
ele se revelou a si mesmo e a seus cami-
7.1-8.3 Adoração e fé falsas
nhos na aliança do Sinai (Êx 19-24). Nos
caminhos do Senhor está a vida (Dt 30.16). 7.1-15 Um sermão no templo
Aqui, entretanto, o apelo serve meramente O tema central do chamado "sermão do
para apresentar a intransigência do povo. templo" é o da falsa confiança depositada
Eles não caminharão pelas veredas antigas na religião exterior. Ele é central para a
nem darão ouvidos aos atalaias, isto é, aos mensagem de Jeremias e de fato uma forma
verdadeiros profetas, que os incitam a fazê- do que é presumivelmente o mesmo sermão
lo (16,17). Deus invoca testemunhas (con- aparece em 26.1-6, sendo-lhe atribuída uma
tinua, assim, a ideia da aliança como um data no princípio do reinado de Jeoaquim.
tratado; cf Dt 30.19; 32.1) para atestar que Nesse tempo, Jeremias ainda estava eviden-
o destino que recairá sobre o povo é fruto temente pregando arrependimento.
de seus próprios atos (19). Finalmente, ele O templo era o coração da vida de Judá.
repudia o tipo de adoração que se resume a Jeremias se posta em um dos portões do
11I
1027 JEREMIAS 7 - : .

pátio do templo, pelo qual estavam passan- interceder pelo povo (16). Isso é mau sinal,
do muitas pessoas (2), que provavelmente na verdade, pois interceder era uma das
vinham para uma das grandes festividades funções do profeta (cf Gn 20.7; Êx 32.9-
do ano (Êx 23.14-17). Assim, o sermão é 14). A proibição aparecerá novamente para
um desafio eminentemente visível à reli- Jeremias (11.14; 14.11; cf 15.1). Essa é
gião oficial e às práticas do povo. Era um uma das maneiras de o Senhor indicar que
ato de grande coragem (como mostra o re- o tempo da sua paciência para com o seu
lato no cp. 26). povo está prestes a acabar. (Essa questão é
O cerne do sermão está nos v. 3-11. suscitada repetidamente: os chamados ao
Jeremias chama o povo ao arrependimen- arrependimento não foram ouvidos e isso,
to, mostrando-lhes que estão em grande por fim, levou ao juízo.)
perigo, mas que ainda podem evitá-lo (3). Segue então um trecho que fornece uma
Ele zomba das palavras vazias do ritual clara compreensão das práticas habituais
praticado na época (4) e mostra que a ver- da idolatria, que aqui consistem nas ofer-
dadeira religião consiste tanto na conduta tas de pão e bebida a Astarote, deusa dos
quanto no ritual religioso (5,6; cf comen- cananeus. Os bolos talvez fossem feitos na
tário de 5.20-28). A base para a conduta forma da deusa. A preparação envolve toda
correta é a conhecida lei do Senhor, estabe- a família, um sinal da completa corrupção
lecida na aliança; há alusões a alguns dos do povo. O pecado carrega a semente de
Dez Mandamentos (Êx 20.2-17) no v. 9, seu próprio castigo (19).
em que se combinam abominações religio- O Senhor declara que sua ira se volta-
sas (o fato de seguirem a outros deuses) e rá contra o povo, e recorda as gerações de
transgressões sociais. Em virtude do tipo obstinada resistência a ele. Essa passagem
de vida que o povo de Judá está levando, tem em comum com o sermão do templo
sua confiança, quando se colocam diante a critica ao ritual vazio (22). O hebraico,
de Deus, tem fundamentos muito frágeis. aqui, sugere que não foram os sacrificios
Grande parte do problema está na falsa do povo que levaram Deus a falar, tam-
confiança inspirada pela simples presen- pouco pretendia ele, ao falar, receber sacri-
ça do templo e de seus rituais. Com base ficios. O trecho termina com um sinal de
em ideias tomadas dos cananeus, o povo lamentação, significando o extenninio do
se convencera de que isso significava uma povo (29; cf 16.6; Mq 1.6).
espécie de garantia da presença e proteção
de Deus. Jeremias lhes mostra a insensatez 7.30-8.3 Abominações
disso, ao apontar para um precedente in- para o Senhor
cômodo (12-15). O santuário de Siló, que O próprio templo parece ter sido macu-
havia sido o santuário central para todo o lado pela prática do culto a um ou mais
povo de Israel muito antes de Jerusalém, dos falsos deuses. Embora o culto assírio
já não estava lá, pois tinha sido elimina- instituído pelo rei Manassés (2Rs 21.7) ti-
do, assim supomos, pelas guerras contra vesse presumivelmente sido destruído pelo
os filisteus. Se Siló pôde cair, por que não rei Josias em sua reforma (v. Introdução),
Jerusalém? Em nossos dias também não há é evidente que algo semelhante tinha res-
baluarte algum da igreja estabelecida que surgido, provavelmente sob o reinado de
possa se considerar sacrossanto; todos são Jeoaquim (31). Além disso, estava acon-
chamados à fidelidade prática. tecendo o sacrificio de crianças em Tofete
(lit. "lugar de fogo"), no vale de Hinom, a
7.16-29 Além da redenção? sudoeste da cidade. Isso era algo proibido
O sermão do templo termina com uma pa- em Israel, onde a antiga oferta do primogê-
lavra para o próprio Jeremias: ele não deve nito fora substituída pela oferta de animais
JEREMIAS 8 1028

(Êx 13.2). Entretanto, essa era a terrível instruções estabelecidas na aliança mo-
consequência de se adotar o culto de ado- saica. Os chefes de famílias tinham uma
ração a outros deuses (cf Dt l2.3lb). responsabilidade geral com relação a isso
Ironicamente, esse massacre de inocen- (Êx 13.14-16), e os sacerdotes, uma res-
tes dará lugar a um outro massacre, o juízo ponsabilidade específica (Dt 31.9-13). A
de Deus (32). A morte sem sepultamento interpretação incorreta da lei era um caso
considerada um destino particularmente de negligência intencional, que ocorria
amaldiçoado no mundo antigo (33; cf Dt para atender aos interesses dos responsá-
28.26). E, de fato, a tudo aquilo que ine- veis pelo ensino (1Ob). Os que ensinam a
vitavelmente acontece nas guerras será palavra de Deus têm uma grave responsa-
acrescentada a desonra da exposição dos bilidade, nunca estando isentos desses ris-
corpos dos já enterrados, desde os reis até cos morais, ou, de fato, do juízo especial
as pessoas comuns, à luz das estrelas que de Deus (cf Lc 17.2; lTm 1.7). (Os v. 10-
eles tinham adorado (2Rs 21.3-5). 12 são muito parecidos com 6.12-15; v. co-
mentário.) O v. 13 é um lembrete de que a
8.4-10.25 O pranto pela falsificação da verdade não pode continuar
apostasia de Sião sem resultados desastrosos.
Em meio a essas palavras de acusação
8.4-22 Nenhum arrependimento temos mais um trecho (14-17) retratando
verdadeiro a aproximação do inimigo e o pânico que
A seção inicia com uma breve reflexão ele trará (cf 4.5,6,13-15). O v. 15 contém
(4-7) sobre a ideia de "voltar", "retomar", as palavras dos que foram enganados pelos
"arrepender-se" (todas essas palavras são falsos profetas e mestres.
traduções do mesmo verbo em hebraico; cf A última seção do capítulo (18-22)
também cp. 3). Judá é acusado por desviar- vem da boca de Jeremias, embora suas
se continuamente (5b), o oposto de arre- palavras contenham um tipo de diálogo
pender-se, de se voltar em direção a Deus. envolvendo tanto a Deus como o povo.
A inaturalidade desse proceder é ilustrada Jeremias começa expressando sua angús-
por menções à ordem vislumbrada na na- tia a Deus (cf 4.19), em parte por cau-
tureza e nos costumes (4,7; cf Is 1.3). Tais sa do sofrimento do povo (18,19a). As
observações são características da literatu- palavras do v. 19b são ditas pelo povo,
ra sapiencial (e.g., Ec 3.1-8). Portanto, de abatido diante da perspectiva de derrota.
acordo com a própria natureza, é inconce- A promessa que Deus fizera ao rei Davi
bível que o povo escolhido não conheça as (2Sm 7.llb-16) parecia assegurá-lo da
exigências de Deus. presença de Deus e da vitória permanente
Jeremias continua com o tema da sa- do rei sobre seus inimigos (SI 2). O povo
bedoria, ao criticar os que se consideram acreditava ter uma garantia incondicional
sábios (8), possivelmente pela própria pos- da parte de Deus (cf 7.1-15). É essa cren-
se de uma lei escrita bem como, talvez, ça que explica aqui as palavras do povo.
pela sua responsabilidade de interpretá-la. O Senhor responde com uma acusação
Estes talvez sejam os próprios sacerdotes familiar (19b). O v. 20 registra mais um
(10), e não uma classe especial de pessoas, lamento do povo, cujo contexto pode ser o
como os antigos "escribas" do NT. A ques- início de uma seca - o assunto do cp. 14.
tão apontada por Jeremias nos v. 8-11, en- Os últimos dois versículos são palavras de
tretanto, é que os responsáveis pelo ensi- Jeremias, expressando novamente sua afli-
no correto em Judá haviam corrompido o ção pelo povo. Gileade (a leste do Jordão)
próprio ensino, enquanto ainda alegavam era bastante conhecida por suas ervas
interpretá-lo. O ensino é a Torá, as leis e aromáticas, usadas para fins medicinais.
11II
1029 JEREMIAS 911II-
11II
11I

Mas esse tipo de aflição exigia uma cura e animais, e finalmente chegará a Jerusalém
bem mais profunda. e às outras cidades. O desastre será total.

9.1-11 Um povo totalmente falso 9.12-26 Lamento pelo povo


As últimas palavras do v. 3 nos mostram que tem de sofrer
que esses versículos de abertura vêm da Em um oráculo anterior (8.8,9), foi ex-
boca do Senhor. Contudo, a primeira im- posta a falsa sabedoria, que se fiava mera-
pressão é que são de Jeremias (pois seria mente na posse da lei. Agora Jeremias faz
mais apropriado que ele procurasse uma uma pergunta retórica (12). Quem é sábio
estalagem no deserto para se refugiar; v. o suficiente para entender a razão de a ter-
2). Já pudemos ver, por mais de uma vez, ra ter sido arruinada? (A perspectiva dessa
a dor que o profeta sente pelo seu povo. declaração pode ser um período posterior
A presente passagem também mostra que ao primeiro ataque de Nabucodonosor a
esse sofrimento revela um sofrimento se- Jerusalém [2Rs 24.1,10,11].) A pergunta
melhante da parte de Deus. Essa é mais uma instiga uma resposta do Senhor, a de que
função do papel mediador de Jeremias. o povo tinha toda a sabedoria de que pre-
A razão do sofrimento que Deus e seu cisava na sua lei, a qual eles intencional-
profeta compartilham é a falsidade do mente negligenciaram. O resultado seria
povo. Sua determinação em se manter na o exílio (16).
mentira é introduzida nos v. 2 e 3 (falsi- Com a definição do fim de Judá, não
dade implicando infidelidade, como no lhe restava outra opção a não ser lamentar
caso do adultério). Nos v. 4-8, o retrato da seu destino. As carpideiras eram prante-
falsidade é sustentado. Uma grande varie- adoras profissionais. Entretanto, não há
dade de vocábulos é usada para comunicar nenhum indício de artificialidade nesse
a hipocrisia, a falsidade (enganar, caluniar, lamento; ele será tão real que as carpidei-
proferir mentiras). Mentir havia se toma- ras terão inúmeras razões para manter viva
do um hábito (5b), de modo que eles eram a sua arte (20). A aterradora imagem no
incapazes de qualquer outra coisa; e não v. 21 personifica a morte, provavelmente
havia um relacionamento sequer, a des- em consonância com a mitologia dos ca-
peito de laços mais íntimos, que pudesse naneus - algo irônico, em vista da crítica
ser caracterizado pela honestidade (4,5). que o profeta fizera à devoção do povo aos
A imagem é exatamente oposta à de uma deuses cananeus. Nos v. 21 e 22, a morte
sociedade construída com base na aliança. é retratada em todo lugar, dentro ou fora
Os propósitos de Deus tinham em vista um de casa, em qualquer lugar para onde se
povo íntegro e que seria abençoado em sua possa olhar.
própria integridade. Essa realidade é enten- Um oráculo aparentemente isolado
dida por todos aqueles que vivem, mesmo (23,24) insiste que o gloriar-se - seja por
nos dias de hoje, em sociedades excessi- sabedoria, força ou riquezas - não se en-
vamente corruptas. Em Judá, seus propósi- contra no âmbito natural dos seres huma-
tos tinham sido totalmente frustrados. Em nos, mas é algo que vem somente de Deus.
uma sociedade em que não há aliança, não As qualidades descritas no v. 24b são as
há escolha a não ser a sua destruição (9). É que ele mesmo exibe na aliança. A miseri-
pouco provável que o "refino" tenha algum córdia é fundamental, o amor leal que une
sucesso (cf 6.29). Deus a seu povo e pelo qual ele se com-
O pranto do v. 10 pode ser novamen- promete a cuidar. Juízo e justiça significam
te tanto de Jeremias quanto do Senhor, ou seu zelo, respectivamente, pelos direitos
mesmo de ambos. Haverá desolação nos dos que fizeram aliança com ele e pelo
montes e nas pastagens, atingindo pássaros comportamento correto entre eles. Quando
JEREMIAS 10 1030

o Senhor diz que se agrada dessas coisas Em contraste, quando Deus, aquele
(24), ele quer dizer que essas mesmas qua- que criou todas as coisas, fala, toda a ter-
lidades devem ser demonstradas por seus ra é afetada (12,13). Ele deve mesmo ser
parceiros na aliança. temido (7), embora o temor a Deus, sendo
O trecho final destaca que várias nações a verdadeira adoração, é totalmente dife-
sofrerão, no devido tempo, nas mãos da rente do terror inspirado pelos deuses das
Babilônia (cf 27.3; 46.2). O trecho também nações. Quando Deus é retratado como a
mostra que a circuncisão era uma prática Porção de Jacó, e o povo, de forma cor-
muito disseminada no Antigo Oriente. O respondente, como sua herança, a lingua-
fato de toda a casa de Israel ser incircuncisa gem transmite a ideia de um pertencer
de coração (26), isto é, não entender o sig- mútuo em um relacionamento de amor e
nificado da circuncisão como um sinal da cuidado. (Uma ideia idêntica ocorre em
aliança (cf Gn 17.10), fez deles uma nação Dt 4.20 e em Deuteronômio como um
como outra qualquer. O sinal exterior nada todo, em que ela é uma parte importante
significava em si mesmo (cf 4.4). da expressão do relacionamento da alian-
ça.) Esse sempre foi o objetivo de Deus
10.1-25 Ninguém é para seu povo. É a insensatez dos seres
semelhante ao Senhor humanos que dá lugar a outros tipos de
O severo ataque à adoração de ídolos nos esperança, a qual nada acrescenta a não
v. 1-16 pode ter sido dirigido ao povo que ser frustração e destruição.
já se encontrava no exílio, que estava im- Outra declaração sombria aponta para
pressionado pela grandeza dos templos o exílio nas mãos do poder vitorioso
e ídolos babilônicos, e se sentia tentado (17,18). A ela segue uma declaração de
a acreditar que os deuses babilônicos ti- Jeremias (19-25), na qual ele expressa,
nham provado ser mais poderosos que mais uma vez, sua própria dor pela imi-
o próprio Senhor. Na verdade, somente nente calamidade. Feridas e moléstias
Deus tem o verdadeiro poder. O povo não dão, mais uma vez, o tom da sua lingua-
devia ficar aterrorizado por aqueles que gem (cf 4.19-21), já usada para Judá
não detinham poder algum (2,5). O pro- (6.7; cf 8.15,22). Aqui também a dor de
feta zomba impiedosamente do absurdo Jeremias é, ao mesmo tempo, a dor de
de se curvar diante daquilo que os mer- Judá. Seus filhos (20) não podem ser li-
cadores haviam importado e os artistas teralmente seus, uma vez que ele estava
esculpido (4,5,8,9,14). Que tolice adorar destinado a permanecer sem filhos (16.2).
artefatos, ou mesmo a própria obra das Sua expressão de dor, entretanto, abarca
mãos de Deus (os sinais dos céus, isto é, sua fúria pelo fracasso dos líderes (os
as estrelas; 2) no lugar do próprio Deus pastores). Nesse sentido, sua experiência
vivo. A sabedoria das nações também é é uma representação daquela que deveria
falha (7b). (Os sábios, aqui, podem ser ter sido a experiência do povo.
semelhantes aos astrólogos e mágicos en- A oração (23-25) também é uma ora-
contrados no livro de Daniel.) Por mais ção do povo que é expressa por Jeremias
impressionantes que pareçam os deuses (observe a semelhança com SI 79.6,7, em
estrangeiros e a cultura a que pertencem, que o povo ora por libertação frente ao
eles se mostrarão falsos e inúteis (11,15). inimigo que, nesse caso, provavelmen-
O v. 11 é um versículo isolado em aramai- te também é a Babilônia). Ela contém a
co, a língua oficial do Império Babilônico, aceitação da correção ou castigo - um
como se as palavras fossem dirigidas di- sinal de que no futuro a punição será
retamente aos líderes e deuses babilôni- considerada justa e, também, de que há a
cos - um gesto retórico provocador. promessa de uma nova vida após o exílio
1031 JEREMIAS 11

(cf 24.5-7). Jeremias também pode estar ao Senhor, eles mais e mais buscarão seus
orando por si mesmo, na busca por "cor- ídolos, mas em vão. O v. 13 faz referência
reção", ciente, sem dúvida, como todo o ao politeísmo de Canaã (cf 2.28) - uma
povo piedoso, de suas próprias falhas. Em espécie de promiscuidade religiosa. Que
duas ocasiões, o Senhor de fato o repreen- insensatez trocar a "Glória" (2.11) pela
de (12.5; 15.19). vergonha (13b).
A sentença irrevogável é repetida (14-
11.1-13.27 A quebra da aliança 17; cf 7.16), agora em termos poéticos.
A minha amada é Judá (cf 12.7), mas
11. 1-17 Jeremias expõe há ironia - a amada não tem direi tos
a rebeldia do povo na casa de Deus; seus sacrifícios traem
A linguagem da aliança é mais explícita seu falso coração. A oliveira simboliza o
aqui do que em qualquer outro lugar do li- bem-estar que deveria ter sido dela, mas
vro de Jeremias. Desta aliança (2,3) é uma que será destruído.
alusão à aliança feita entre Deus e o povo Essas palavras de Jeremias nos dizem
no monte Sinai (Êx 19-24) e regularmen- muito sobre a forma de qualquer relaciona-
te renovada pela leitura de suas leis (Dt mento entre Deus e o povo, e serve também
31.9-13). Essas palavras podem ter sido como advertência para que não se tome por
ditas por ocasião da renovação da aliança, certo esse relacionamento.
seja com Josias (2Rs 23.1-3), seja com um
rei posterior. A aliança envolve, em pri- 11.18-12.6 "Confissões"
meiro lugar, a salvação de Deus para seu Jeremias profere muitas orações, frequen-
povo, quando o livra do Egito e lhe dá a temente conhecidas como suas "confis-
terra de Canaã (4a; cf Dt 4.20); em segun- sões", as quais revelam seu tormento
do lugar, um mandamento (4a, cf Dt 11.1) interior (v. Introdução). Esse trecho traz
e, por fim, um juramento (5a; cf Dt 1.8). A a primeira delas, ou melhor, as duas pri-
aliança traz a promessa do relacionamento meiras (11.18-23; 12.1-6). Em essência,
com Deus (4c - uma fórmula típica; cf elas consistem na queixa de Jeremias a
Lv 26.12) e de bem-estar (5b; cf Êx 3.8). Deus acerca de seu próprio sofrimento,
E é motivada pela certeza tanto da bênção ocasionado por seu chamado profético.
quanto da maldição, daí os v. 3b, 8b (cf Aqui fica evidente ter havido um complô
Dt 27.15-26; 28.15-68; cf 28.1-14 sobre contra a vida de Jeremias, que o pegou de
a bênção). Pelo que foi visto anteriormen- surpresa (19; cf SI 44.11), e que foi parti-
te, ficará claro o quanto essas palavras de cularmente terrível por ter sido planejado
Jeremias se constituem na pregação de por seus próprios concidadãos (21). É bem
uma tradição já bem estabelecida. O ob- possível que os sacerdotes não tenham re-
jetivo dos v. 1-5 é o arrependimento; os cebido bem as críticas à instituição do tem-
v. 6-8 contêm o veredicto de que a alian- plo (7.1-15), feitas por um de seus colegas
ça havia sido violada e que, portanto, as (1.1). O profeta, na verdade, não era bem
ameaças desta aliança deveriam recair recebido em sua própria terra (Lc 4.24). A
sobre o povo. oração de Jeremias, muito mais por justiça
Os v. 9-13 elaboram a razão de o macha- do que por vingança (20b), retrata sobre-
do ter sido posto à raiz de Judá. A ideia de tudo a ansiedade para que a verdade e a
uma conspiração significa ter havido algo justiça prevaleçam (cf SI 7.9). O Senhor o
como um acordo entre Judá e Jerusalém tranquiliza (21-23) em termos que relem-
para abandonar o Senhor; isso tinha sido bram a promessa feita em 1.17-19.
verdade por muitas gerações. Agora que A segunda confissão (12.1-4) traz con-
o fim se aproxima, longe de se voltarem sigo tanto o sofrimento de Jeremias quanto
JEREMIAS 12 1032

o dos inocentes em geral. Sua abertura é esforços para cuidar dele e protegê-lo. Mas
semelhante à do salmo 73, cujo tema é o na verdade ocorrerá o contrário. O que era
sofrimento do inocente, enquanto o per- produtivo se tomará estéril e infrutífero;
verso prospera. A oração tem um elemento pastores (isto é, governantes estrangeiros;
de acusação a Deus, que não evitou esse 10) virão para destruir. Além do mais, isso
sofrimento mas, na verdade, até mesmo será obra do próprio Deus (12b), e sua mal-
causou esse estado de coisas (2a). Aqui dição significará que a terra não será capaz
Jeremias expressa a solidão e o isolamento sequer de produzir frutos (13).
que sente em seu trabalho profético (cf 15- A confiança nas "forças de mercado" e
17) e sua frustração devido ao fato de que a busca cega pela prosperidade financeira
o juízo de Deus, que ele sempre é obrigado são dois aspectos da cultura contemporânea
a proclamar, não vem. (Mais de quarenta que fazem paralelo à idolatria de Judá.
anos se passaram entre seu chamado, em
627 a.c., e a devastação final de Jerusalém, 12. 14-17 Um plano para as nações
em 586.) O v. 3 é semelhante a 11.20; como Jeremias fora chamado para ser profeta
uma oração para que o Senhor não permita não apenas para Judá, mas para as nações
ser considerado injusto, dá seguimento ao (1.10), proclamando tanto o castigo quanto
v. 1. A seca a que Jeremias frequentemen- a reconstrução. Este trecho declara primei-
te alude já sinaliza que a perversidade do ro que as nações que o Senhor está trazendo
povo está tendo suas consequências (4a) , contra Judá também serão, ao seu tempo,
embora estas continuem não sendo consi- julgadas, ao serem retiradas de suas terras
deradas, e o juízo de Deus seja negado (4b) (Eis que os arrancarei da sua terra; cf
- uma parte essencial da "maldade" que "para arrancares", em 1.10.) Notavelmente,
caracteriza o povo. no entanto, assim como houve vislumbres
A resposta do Senhor (5) evidentemen- de esperança para Judá para além do exí-
te significa que, embora Jeremias já tenha lio (3.14-18), agora a esperança também é
vacilado, ainda terá de suportar sofrimen- estendida até mesmo para essas nações. Se
tos maiores. Isso sempre fará parte de seu as outras nações aceitarem adorar ao Deus
chamado, e ele deve continuar acreditando verdadeiro, também elas desfrutarão de to-
em Deus. O Senhor continua, advertindo-o dos os beneficios decorrentes de ser o povo
para que não desista, sobretudo que não de Deus. Essa é uma nota singular no livro
o faça devido à opinião de seus próximos de Jeremias, mas uma parte da revelação
(6). Eles ainda o trairão. Quem quer ser fiel do AT de que a salvação é, no final, para
a Deus só pode contar, muitas vezes, com a todas as nações (cf Is 19.23-25; 40.5).
fidelidade do próprio Deus.
13. 1-27 Sinais do juízo
12.7-13 Deus e sua "casa" Os profetas não somente recebiam pala-
Assim como a própria família de Jeremias vras para falar, mas algumas vezes tam-
o traiu, o próprio Senhor sabe da traição bém sinais para representar, destinados a
dos que lhe são mais próximos (7-13). demonstrar a realidade das palavras. Eles
Judá - a minha casa - voltara-se com eram mais do que "auxílio visual" para as
violência contra ele (8). Ele, por sua vez, palavras, pois, assim como as palavras,
voltara-se contra ela (7,8c). Várias metá- eles traziam a autoridade do Senhor. (Cf
foras falam do íntimo vínculo entre ele e os dois últimos sinais na casa do oleiro;
o povo: minha casa, minha herança (cf cp. 18-19; também Is 20.1-6.) Quando a
2.7), a que mais eu amava, minha vinha, palavra do Senhor é expressa tanto verbal
meu quinhão (7-10). Certamente aquele quanto visualmente, a intenção é confe-
que assim descreve seu povo não mediria rir-lhe autoridade e eficácia redobradas.
1033 JEREMIAS 13 (
li

Os cinco sinais nesse capítulo são: um cin- cidas metáforas para salvação e juízo (cf
to, jarros de vinho, um rebanho, a mulher Is 9.1,2; Am 5.18). Uma vez que a luz
em trabalho de parto e o restolho - todos artificial era escassa, as trevas eram uma
sinais de rejeição. metáfora de grande impacto no mundo an-
O cinto, ou colete, usado por Jeremias, tigo, e falavam naturalmente do medo e da
representa o íntimo relacionamento entre morte. Essas palavras podem bem ter sido
Deus e seu povo (11). Quando o cinto é pronunciadas quando Jeremias ainda tinha
tirado e abandonado num lugar chamado esperança de que o povo se arrependeria.
"Perate", vindo a estragar-se (NVI; ARA e Assim como em outros oráculos similares,
outras versões trazem Eufrates), temos seu cenário e as declarações de desastre
um sinal da humilhação da força da qual certo e inevitável servem simplesmente
o povo tanto se orgulhava, mas que não para enfatizar que não fora sempre assim.
passava de uma ilusão (7,9). O local pode A lamentação de Jeremias pelo povo em
ter sido Pará, provavelmente um lugar não ruínas já fora vista anteriormente (cf 9.1).
muito distante de Anatote, a cidade do pro- O segundo oráculo é dirigido ao rei e à
feta (Js 18.23). O nome Pará, entretanto, sua mãe, que devem ser identificados como
também significa Eufrates, e o sinal faz Joaquim e Neústa (2Rs 24.8). A rainha-
uma conexão, portanto, com os impérios mãe pode ter um papel altamente influente
da Mesopotâmia. A referência pode ser re- no antigo Israel (cf 1Rs 2.19). O oráculo
lacionada tanto à aceitação da religião da vê a ambos destituídos de seu trono e po-
Assíria por Judá quanto à ameaça do exílio sição real, a terra sofrendo devastação até
na Babilônia. (O exílio, na verdade, teria o Neguebe, a área das fronteiras ao sul de
um efeito restaurador, e não destruidor, Judá e até a área mais distante do alcance
24.5-7.) Os muitos dias do v. 6, então, são dos exércitos babilônicos.
uma referência ao longo período em que O oráculo final (20-27) é dirigido a
tanto Israel quanto Judá persistiram no pe- Judá, no singular, como se fosse a uma
cado (cf v. 10). Esse pecado foi, inevita- mulher (lugares frequentemente são, em
velmente, a causa da sua ruína. termos gramaticais, do gênero feminino,
O estranho oráculo de Jeremias (12) fato que se presta à sua personificação
pode ser uma estratégia para atrair a aten- como mulheres na linguagem poética). Ao
ção dizendo-se algo que, de tão ordinário, mesmo tempo, o oráculo parece ter em vis-
acabe sendo confuso, ou que soe amea- ta a liderança (20b,21a). Há ironia no fato
çador, pelo fato de ele saber que a abun- de Judá ser dominado por aqueles a quem
dância que o povo tinha conhecido iria tinha buscado se aliar (21a; cf 4.30).
terminar. Diante da resposta irônica (12a), As imagens femininas são agora desen-
ele interpreta o oráculo da embriaguez volvidas de diversas maneiras. Em primei-
que será trazida sobre o povo. A confusão ro lugar, a aflição da invasão é comparada
dos povos sob julgamento também é des- às dores de parto (21b). Em segundo, a bru-
crita como embriaguez em outras partes talidade da invasão será como o estupro de
do livro (25.15,16). Acima de tudo, serão uma mulher (22b,26,27), o que sem dúvida
afetados os líderes do povo; não apenas alguma também ocorreria literalmente. Em
um, mas vários reis serão subjugados pela terceiro, a metáfora da prostituição é usada
invasão estrangeira (cf 22.18,19,24-27; uma vez mais para retratar a infidelidade
2Rs 24.1-4,8-17; 25). do povo (27; cf 2.20). Esse retrato também
O restante do capítulo é composto de tinha sua contrapartida literal, na medida
três oráculos separados. Os v. 15-17 são em que deve ter sido parte dos rituais de
dirigidos a Judá em geral. Esse oráculo adoração dos cananeus. Seria equivocado
usa a linguagem de luz e trevas, conhe- procurar por coerência ou padrão nessas
JEREMIAS 14 1034

imagens femininas; elas são usadas com isso (10) está em consonância com o fato
licença poética. A última imagem é a da de Jeremias ter sido proibido pelo Senhor
impureza ritual (Até quando ainda não te de orar. (Y. também a confissão insincera
purificarás?) causada pelos pecados re- do povo, feita pelo povo em 3.22-25.) A
ligiosos de Judá. A pergunta é retórica; a expressão este povo, como uma réplica ao
força do v. 23 está no fato de que Judá é v. 9b, evita de maneira proposital a expres-
incapaz de mudar. são "meu povo", típica da aliança (9.7).

14.1-15.21 Fome. 14. 11-22 Tarde demais para orações


espada e peste A proibição de orar (11; cf 7.16; 11.14),
neste contexto, significa que nem a pre-
14.1-10 A seca sente fome nem os outros sinais do juízo
No antigo Israel, o suprimento de água seriam removidos. Antes, a figura dos v.
era algo que não se podia tomar por certo. 11-16 é estendida para abranger a espada,
Grandes cisternas (3), cavadas na rocha e afome e a peste, uma tríade que pretende
revestidas internamente (as "cisternas ro- abranger a totalidade da miséria humana.
tas" de 2.13 são aquelas cujo revestimento As maldições de Deuteronômio 28.15-68
fora danificado), reteriam água das enchen- são basicamente variações desses temas.
tes rápidas nas estações chuvosas, propor- Havia, evidentemente, aqueles profetas
cionando certo alivio, por algum tempo, que se apressavam em assegurar o povo de
durante a seca. A seca neste caso, entretan- que seus sofrimentos não significavam es-
to, obviamente é severa e bem avançada. A tar ele sob as maldições da aliança. O fato
aflição que esse tipo de situação gera (4-6) de ser oficialmente um profeta, entretanto
infelizmente também é muito conhecida (cf 1Rs 22.5-8), não garantia que alguém
em nosso tempo. falasse em nome de Deus (lRs 22.24)!
Uma vez que a água é tão fundamental Alegar autoridade para profetizar quando
para a vida, seu suprimento é uma bênção Deus não dera mensagem alguma era par-
básica da aliança, e sua escassez uma gran- ticularmente abominável. Os falsos profe-
de maldição (Dt 28.12,24). Enquanto a seca tas trariam o castigo não somente sobre si,
pode de modo geral ser encarada como um mas também sobre o povo (l5b,16).
desastre natural, no contexto da aliança en- Os v. 17,18 representam novamente a
tre Judá e Deus, deve ser vista como um agonia do Senhor através dos lábios e da
juízo de Deus sobre seu povo. A data exata experiência de Jeremias. O Senhor não é
dessa seca não é conhecida; pode ter sido indiferente à dor do seu povo, muito embo-
relativamente próxima ao tempo da chega- ra seja ele mesmo quem a traz, como juízo,
da dos babilônios, a julgar pela combina- sobre o povo. Seu pranto corresponde ao
ção dafome com a espada no v. 12. de Judá (I; cf 9.1).
A descrição da seca é seguida pela A oração seguinte (19-22) contém ele-
confissão do pecado e de uma súplica por mentos conhecidos de certos salmos (e.g.,
ajuda dirigida ao Senhor. Lembra muito SI 74; 79) - o protesto a Deus a respeito
alguns dos conhecidos "lamentos" dos sal- do severo tratamento que vem dispensando
mos (e.g., SI 10.1). O Senhor deveria agir a seu povo, uma confissão, um apelo para
para mostrar seu poder para tanto (7); des- que ele aja de acordo com a aliança e por
de o tempo do êxodo do Egito, ele tem sido honra de seu nome. Essa ainda não é uma
o verdadeiro Salvador de Israel; agora ele oração que possa propriamente ser atribuí-
é, finalmente, reconhecido como o Deus de da ao povo. Como a oração de Jeremias a
Israel (9b). A oração pode ser de Jeremias, favor do povo, ela já foi rejeitada (14.11).
a favor do povo. A fria resposta de Deus a Como um discurso de Jeremias, um israelita
1035 JEREMIAS 15

fiel, pode ser que ainda contenha uma pro- seu chamado. Os v. 10-21 são estruturados
messa de graça (v. adiante 15.19-21). como dois apelos ao Senhor por parte do
próprio profeta (o do v. 10 respondido pelo
15. 1-9 Tarde demais v. 11, e o dos v. 15-18 respondidos pelos v.
para compaixão 19-21). Seu arrependimento por um dia ter
A oração de Jeremias em 14.19-22 é segui- nascido (10; cf 20.14-18) efetivamente põe
da novamente de outra declaração de que em dúvida a promessa pessoal que Deus fi-
tal oração não terá validade, uma vez que zera a ele (1.17-19). O Senhor, entretanto,
Deus se decidiu pela punição (1). Moisés e reitera o conteúdo daquela promessa, indo
Samuel, ambos profetas, são notórios por mesmo além dela, quando diz a Jeremias
suas orações a favor do povo (Êx 32.11- que seus inimigos precisarão dele em suas
13; lSm 12.23). A sequência de desastres aflições. Tal fato é consumado nos últimos
no v. 2 é uma pequena variação do trio ci- dias de Judá, quando Zedequias depende
tado em 14.12; as aflições aqui não são, é totalmente de Jeremias (37.3).
claro, mutuamente excludentes. O clímax Os versículos seguintes (12-14) con-
de tudo é o cativeiro. A retórica descrição tinuam a reassegurar Jeremias de que o
do horror da invasão e da conquista conti- juízo sobre o povo está determinado (mes-
nua no v. 3, em que toda a criação parece mo que essa seja uma notícia difícil para
ser chamada a se integrar ao propósito de ele). O ferro do Norte que ninguém pode
Deus de expulsar o povo infiel da terra que quebrar provavelmente se refere à invenci-
um dia lhe fora dada. bilidade da Babilônia, comparada aJudá;
A referência ao rei Manassés evoca relembra também a promessa de que o
2Reis 23.26. A culpa de Judá fora acumu- próprio Jeremias será posto por coluna de
lada por gerações. Entretanto, Manassés ferro contra seus inimigos (1.18). O orá-
se destaca como o rei que cometeu as culo dirigido a Judá nos v. 13,14 também
idolatrias mais atrozes contra o Senhor serve, nesta posição, como uma afirmação
(v. 2Rs 21). a Jeremias de que o Senhor realmente pre-
Em harmonia com a proibição de orar tende cumprir sua palavra contra o povo.
pelo povo, a perspectiva dos v. 5-9 é a de Todavia, Jeremias agora pensa nova-
uma decisão que agora se toma. O signifi- mente em seus próprios inimigos (15-18).
cado do v. 5 é, com efeito, semelhante ao Suas palavras têm elementos em comum
do v. 6b - é tarde demais para compaixão; com palavras que, em outros lugares, apli-
Judá tem demonstrado definitivamente que cam-se ao desejo do povo por livramento
seu caráter é indigno da aliança (6a,7c). diante da Babilônia. A ideia de umaferida
Como um povo apóstata, ele se afasta em que necessita de cura (18), quando apli-
vez de se aproximar do Senhor (cf 3.11- cada ao povo, ocorre em 8.22. Enquanto
14). A proliferação da morte é uma contra- 14.9 diz que nós (o povo) "somos chama-
dição direta da promessa da aliança, feita dos pelo teu nome", em 15.16 é Jeremias
a Abraão, de uma descendência numerosa quem é chamado pelo nome de Deus. A
(8a; cf Gn 22.17). Aquela que tinha sete acusação de que Deus tinha enganado o
filhos (9) é considerada particularmente povo (ao enviar falsos profetas; 4.10) é
feliz; sua felicidade, entretanto, é transfor- feita agora por Jeremias acerca de si mes-
mada em dor intensa. mo (18). Toda a experiência de abandono
do profeta, portanto, corre em paralelo à
15.10-21 Uma confissão - e a experiência do povo.
resposta amorosa de Deus Em decorrência disso, quando o Senhor
Jeremias novamente expressa sua própria renova a confiança de Jeremias (19-21), isso
angústia, derivada da responsabilidade de pode significar a renovação da confiança
JEREMIAS 16 1036

também para o povo. De fato o v. 19a se toma o amor mais profundo do que o com-
parece muito com a oração de "Efraim" promisso da aliança (e.g., SI 51.1; Is 54.7).
(uma designação para o povo) em 31.18b, Tudo é revogado; mais uma vez, este povo
a qual é respondida nos versículos se- não é, significativamente, o "meu povo".
guintes. Em meio a oráculos de conde- O sentido dos v. 8,9 é semelhante ao
nação, portanto, a própria experiência de dos v. 1-4. Pode-se dizer que Jeremias in-
Jeremias se toma uma promessa da salva- siste em certos temas. A pergunta do povo
ção final para todo o povo. (10), entretanto, revela sua lentidão em ou-
Esse é o significado de seu papel me- vir a mensagem de Deus. Em sua resposta,
diador ou representativo. Em certo sentido, Jeremias novamente mostra que o povo
portanto, Jeremias sofre em lugar do povo. tem pecado constantemente por várias ge-
Em sua total entrega à vocação proféti- rações (cf 11.7-10). Entretanto, os peca-
ca, de fato, ele até mesmo se parece com dos da presente geração são muito maiores
Cristo. Sua devoção e agonia são marcas do que os de seus antepassados; é devido
essenciais (e talvez negligenciadas) de sua a seus próprios pecados que o castigo virá
verdadeira liderança espiritual. sobre eles (12). Nenhuma alegação de des-
vantagem pode ser admitida.
16.1-17.27 Figuras do O presente capítulo coloca, lado a lado,
exílio e da salvação oráculos de julgamento e de esperança.
Precisamos levar em conta que os orácu-
16.1-21 Exílio prenunciado los não foram necessariamente proferidos
Jeremias já tinha utilizado um sinal para na ordem em que se encontram. Jeremias
reforçar sua mensagem (13.1-11); agora, pode muito bem, mais tarde em sua vida,
sua vida toda se toma um sinal (1-4). Ser ter desejado pôr esses oráculos contrastan-
solteiro era incomum no antigo Israel, o tes lado a lado, para mostrar um padrão de
fato de ele ser solteiro e sem filhos sobres- juízo seguido de misericórdia. O oráculo
sae-se, portanto, como digno de nota. Na nos v. 14,15 é uma continuação inesperada
verdade, essa condição do profeta é preten- dos v. 1-13. Significa que, no tempo cer-
dida por Deus como sinal de que toda vida to, Deus será misericordioso novamente.
normal em Judá virá a cessar. A dádiva da O fato de o Senhor estar agora revogan-
vida é escarnecida pela iminência da mor- do seus compromissos com a aliança não
te (4; cf. 4.31). A família era uma bênção, significa que ele tenha mudado. De fato
pois conferia certa posição na sociedade, e haverá uma salvação (do jugo babilônico?)
carregava o nome de um homem até gera- maravilhosa a ponto de substituir mesmo
ções futuras (Dt 25.5,6; SI 127.3-5; 128.3- o êxodo do Egito como o centro da con-
6). Agora ela está prestes a se transformar fissão de Judá de Deus como Salvador (cf
numa maldição. Is 43.14-19).
Jeremias também é proibido de partici- Um oráculo adicional de juízo (16-18),
par das costumeiras cerimônias fúnebres, por meio de suas metáforas acerca de ca-
como um sinal de que a morte será tão di- çadores e pescadores, adverte sobre o im-
fundida em Judá que essas cerimônias se piedoso desmembramento que se infligirá
tomarão impraticáveis (5-7). A linguagem a Judá. O pagamento em dobro por seus
do v. 5b toma claro o cancelamento da pecados lembra Isaías 40.2, em que aquele
aliança. Paz aqui é shãlõm (lit.), entendida profeta diz que Jerusalém já recebeu em
como um completo bem-estar; benignidade dobro por todos os seus pecados.
é hesed, o amor leal que é típico do relacio- A nota final, entretanto, é de salvação,
namento da aliança; misericórdia, ou com- agora aplicada às nações em geral. A ima-
paixão, é aquela qualidade em Deus que gem de nações vindo até Judá à procura do
llIII
1037 JEREMIAS 17 . .
...
Deus verdadeiro, em algum momento fu- O contraste entre os dois tipos de con-
turo, é encontrada também em Isaías 2.2-4; fiança sugere Deus provando os corações
Miqueias 4.1,2; cf Habacuque 2.14. Isso (10; cf 9.7). No AT, o coração é a própria
será consumado por Cristo com o fim da base do caráter, incluindo a mente e a von-
separação entre judeus e gentios (01 3.28) tade. O v. 10b não está ensinando salvação
e na missão da igreja para os gentios. pelas obras, mas ressaltando o ponto de
que o Senhor realmente conhece o caráter
17. 1-13 Confiança nos recursos de uma pessoa. O v. 11 ilustra vividamen-
humanos - confiança no Senhor te a mentira da injustiça, uma forma de
O primeiro oráculo (1-4) zomba do uso autoengano (sobre a verdade como ação,
ilegítimo que Judá faz tanto da lei escrita cf 5.26-28). A exclamação nos v. 12,13 é
quanto da religião. A inscrição do pecado também sugerida pelo tema do engano pró-
em seus corações, como leis em tábuas prio. Não apenas indivíduos, mas também
de barro, é uma sátira mordaz do pecado o povo todo pode enganar-se a si mesmo,
inveterado que nega a lei (isto é, os Dez ao não acreditar que o Senhor é a verdadei-
Mandamentos e outras leis) que eles reivin- ra fonte de seu bem-estar (12,13). O louvor
dicam como sua. Seus sacrificios somente (12) está na boca de Jeremias.
ressaltam seus pecados. Seus filhos, que
deveriam ser versados nos caminhos do 17. 14-18 Uma confissão
Senhor (Dt 6.7), foram ensinados nos cami- A quarta confissão de Jeremias inspira-se
nhos de outros deuses (2; cf as proibições nos temas do capítulo. A cura verdadeira
em Dt 12.2,3).A geração que recebeu a ido- vem das mãos do Senhor (14). Jeremias
latria de seus próprios antepassados agora a aqui se apresenta como aquele que confia
repassa a seus filhos. A necessidade de se no Senhor (7). Ele tem sido fiel ao seu cha-
instruir os filhos nos caminhos do Senhor mado, apesar do escárnio (15, 16). Seus ini-
não poderia ter sido mais bem retratada. migos, que para todos os fins eram todos de
Monte do campo é Sião, o templo onde Judá, estão sob a maldição de Deus (18; cf
Deus habita (cf 8.19). Os v. 3,4 repetem v. 5). Retoma-se aqui um tema importante
a essência de 15.13,14. A seguir vem um no livro: Será que há em Judá "um homem
contraste (muito parecido com o do salmo que pratique a justiça e busque a verdade"?
1) entre o homem que depende da força (v. comentário de 5.1) Como tal pessoa, o
humana para seu o bem-estar e o homem próprio Jeremias pode certamente esperar
que coloca sua confiança em Deus (5-8). a salvação do Senhor. Ele pode até mesmo
O fato de um ser maldito e o outro bendi- ser o portador dessa salvação para o seu
to decorre da aliança (cf Dt 28). A aliança povo (v. comentário de 15.19-21), cujo
guarda um paradoxo que é constantemen- castigo ele jamais desejou (16). Ser a única
te verdadeiro: a tentativa de se colocar a pessoa fiel a Deus pode ser bastante dificil;
própria vida sobre um fundamento segu- contudo, a fidelidade de uma pessoa tem
ro, por meio da confiança egoísta em suas efeitos incalculáveis para o bem.
próprias habilidades, traz ruína; a confian-
ça em Deus, que implica obediência e às 17.19-27 Guardando o sábado
vezes envolve agir contra os próprios in- O mandamento do sábado (Êx 20.8-11; cf
teresses, é o caminho que leva à vida (cf Am 8.5) proibia o trabalho remunerado
Mt 10.39). Esse paradoxo é crucial para o em um dentre cada sete dias, em sinal de
entendimento da aliança. Apesar da ênfase adoração e confiança no cuidado de Deus.
que Jeremias dá a "esta vida" e prosperi- Deixar de lado os meios de sustento por um
dade, a religião da aliança nunca pode ser dia era um ato de fé. Em termos atuais, isso
calculista ou egoísta. significa reservar, sistematicamente, um
JEREMIAS 18 1038

tempo da nossa vida para a adoração e o infidelidade de Judá, e, ao mesmo tempo,


descanso, mesmo à custa do progresso pes- mostra como isso é contrário à natureza
soal. O trecho retrata uma intensa atividade (15; para esse tipo de argumento, cf 8.4-
comercial nos dias de sábado, o que era fa- 7). É o cúmulo da insensatez. As veredas
cilmente observável nos portões da cidade, antigas (15; cf 6.16) eram seguras; vere-
que possivelmente envolvia tanto os reis das não aterradas podiam ser perigosas. A
como as pessoas do povo (19). A observân- ruína resultante faria do povo um objeto de
cia do sábado podia ser um termômetro do escárnio - o destino normal de uma nação
estado espiritual de Judá; por essa razão, a derrotada (cf 25.9; 51.37, sendo a última
solene advertência sobre a necessidade de citação referente à Babilônia). Esses versí-
se guardar esse mandamento. A promessa culos, após o chamado ao arrependimento
de uma dinastia davídica renovada será re- dos v. 5-12, sugerem que tal chamado foi
tomada em outro ponto (23.5,6). em vão.

18.1-19.13 Dois vasos 18.19-23 Uma confissão


quebrados e uma confissão A ocasião da quinta confissão de Jeremias,
assim como a da primeira (11.18-23), é de
18.1-18 Um vaso quebrado e refeito um complô contra ele, evidentemente le-
Os dois sinais envolvendo um vaso que- vado a cabo por pessoas proeminentes na
brado (aqui e em 19.1-14) são significa- nação (18). As três classes nomeadas dão
tivamente diferentes um do outro. Neste um indício da posição das importantes fi-
incidente, Jeremias vai à casa do oleiro, guras da sociedade constituída (nesse con-
onde observa o seu trabalho. O oleiro, des- texto, o sábio é aquele que aconselhava os
contente com o vaso que estava fazendo, reis; como Aitofel em 2Sm 16.23). A ra-
utiliza o mesmo barro para fazer outro. O zão do complô, evidentemente, é a crítica
Senhor então declara que ele, assim como que Jeremias faz a essas figuras eminentes
o oleiro, está livre para rever suas intenções (2.8; 8.8-11). Aqui não há nenhum plano
para com Judá (6). O princípio é desen- explícito para matá-lo; entretanto, a acusa-
volvido nos v. 7-10 e aplicado a qualquer ção feita pode bem ter sido a de traição (cf
nação. O ponto crucial, entretanto (11), é 37.13), e isso, por si só, pode ter colocado
que, embora o Senhor tenha elaborado um sua vida em perigo.
plano para julgar seu povo, ainda há tem- A confissão em si é quase inteiramente
po para que eles se arrependam e evitem uma oração pelo juízo de seus inimigos. O
o desastre. O arrependimento, mesmo que bem que ele havia feito a eles (20) é lhes
tardio, ainda será honrado por Deus; esse ter dito a verdade e orado por eles. A par-
princípio também aparece na vida e minis- te central da oração (21,22) pode ser lida
tério de Jesus (Lc 15.11-32; 23.40-43). O como a resignação de Jeremias: isso é o
apelo do Senhor para que mudem é real, que eles haviam escolhido; agora, isso tem
embora ele saiba que eles não responderão de acontecer, por horrível que possa ser.
(12). Seu julgamento será resultado da pró- Se o motivo do v. 23 é censurável, o senti-
pria escolha deles. Esse ponto está bastan- mento ainda está de acordo com o propósi-
te claro em toda a pregação de Jeremias. to declarado de Deus e com a proibição de
Por que o Senhor precisa remodelá-los? o profeta interceder pelo povo.
Devido à dureza de seus corações (13-
18). As ilustrações mostram a constância 19. 1-13 Um vaso quebrado
da natureza: a neve no pico dos montes do que não pode ser refeito
Líbano, sempre alimentando as correntes Agora Jeremias ouve a orientação para que
geladas. Essa constância contrasta com a retome à casa do oleiro (1). Parece que
1039 JEREMIAS 19

ela ficava próxima à Porta do Oleiro, que delado (10,11; cf 18.4). Os dois sinaisjun-
parecia se abrir para o vale do filho de tos ilustram bem a passagem do tempo de
Hinom, no lado sul e ocidental da cidade. arrependimento para o tempo quando já é
Provavelmente, era assim chamada pelo tarde demais para isso. O Senhor não vol-
fato de os oleiros levarem para ali suas tará atrás na sua determinação de castigar
mercadorias danificadas e inúteis. Os pe- Judá. O sinal, como em 13.1-11, reforça a
daços na pilha de entulho não podiam ser mensagem. Tofete, o lugar onde crianças
reaproveitados, uma imagem poderosa do tinham sido sacrificadas (7.31), tinha sido
que Jeremias tinha a dizer. A área do por- profanado (isto é, tomou-se inadequado
tão, provavelmente, estava repleta de pes- para sacrifícios), pelo rei Josias, em sua
soas fazendo negócios. reforma (2Rs 23.10); esse seria agora o
Diferentemente do primeiro incidente destino de toda a cidade.
envolvendo um jarro, Jeremias agora não
era apenas um observador; ele tem de com- 19.14-20.18 Jeremias
prar uma botija de barro a fim de com ela amaldiçoa o dia em
executar um ato simbólico. Esse ato deve que nasceu
ser cuidadosamente preparado e testemu-
nhado pelos anciãos da comunidade, tanto 19.14-20.6 Jeremias no templo
clérigos como leigos (1). Jeremias deve O sinal executado no "vale do filho de
ter desfrutado de respeito entre alguns Hinom" sem dúvida tinha o propósito de
desses membros, de outro modo não teria usar Tofete como um símbolo de destrui-
tido condições de preparar esse evento (cf ção. Jeremias agora sobe ao templo e ali
26.17-19,24). faz novamente sua advertência (14,15;
Antes de executar o tal sinal, Jeremias cf 7.1-15).
declara que Judá certamente será destruída As consequências imediatas (20.1-6)
(3-9). O fato de seu discurso ser dirigido mostram quanta agitação o profeta estava
aos reis e anciãos de Judá demonstra seu promovendo nos altos escalões da socieda-
caráter simbólico e solene (3; cf 17.20). O de. Se alguns dos líderes estavam prepara-
pecado condenado é o da idolatria, envol- dos para ser vistos ao seu lado (cf 19.1),
vendo particularmente a adoração a Baal e outros não estavam. Pasur, que parece ter
às estrelas (cf 8.2; 2Rs 21.5). Essa adora- sido uma espécie de guarda sacerdotal, res-
ção é detestável tanto por si mesma, pela ponsável pela boa ordem na área do templo,
sua desumanidade (5; cf 7.31; 2Rs 21.6), pode ser algo típico, a julgar pela própria
quanto por ser uma traição ao Deus que pregação de Jeremias. Temos aqui um pri-
lhes tinha dado a vida e feito uma alian- meiro registro do sofrimento físico vivido
ça com eles (4-5b). A punição seria não pelo profeta, conforme ele fora advertido
somente severa, mas pública (3; cf 2Rs que aconteceria (1.19). O Senhor tinha
21.12). A humilhação devia ser aplicada a prometido que Jeremias não seria derrota-
um povo que, ironicamente, fora chamado do por seus inimigos - mas não que não
para revelar Deus às nações. (Os v. 5,6 são sofreria. Do mesmo modo, o cristão rece-
repetições de 7.31,32.) Os v. 7-9 evocam be a garantia da vitória final em virtude da
de forma sombria o cerco e o resultado da ressurreição de Cristo - mas não de imu-
batalha. O canibalismo parece ter, de fato, nidade ao sofrimento ou oposição.
acontecido durante o cerco de Jerusalém, Livre do tronco, Jeremias dirige a
em 586 a.c. (Lm 2.20). Pasur o tipo de oráculo que anteriormen-
Jeremias então executa o sinal, despe- te proferira acerca dos sacerdotes e líde-
daçando a botija, cujo barro, por estar já res em geral (19.4-6). Pasur é rebatizado
acabado e seco, não pode mais ser remo- como Terror-Por-Todos-Os-Lados (19.3),
JEREMIAS 20 1040

pois sua recusa em ouvir a palavra de Deus outra vez a verdade, ou seja, que Deus
é precisamente a atitude que assegurará será justo e, consequentemente, agirá com
o terrível destino de Judá. Ironicamente, integridade para com ele, embora ele não
aquele que pensava estar guardando as tenha a menor hesitação em compartilhar
instituições e tradições fazia justamente seus sentimentos com Deus. O clamor no
o oposto; o templo com seus rituais e ri- v. 12 é semelhante ao que se encontra em
quezas, que ele protegia dos desordeiros, outra confissão (11.20). Acerca do grito de
logo já não existiria, e o sacerdócio se tor- louvor, cf. Salmos 146.1,2; 147.1.
naria irrelevante em uma terra estrangeira. É curioso o fato de a recuperação re-
Nenhuma instituição, por melhor que seja, cém-observada ser seguida de uma decla-
pode ser um fim em si mesma; ela só pode ração de profundo desespero por parte de
ser boa se aponta para o reino de Deus. Jeremias (14-18). Amaldiçoar seu próprio
nascimento (cf Jó 3.3-19) é uma forte ne-
20.7-18 Uma última confissão gação dos bons propósitos que Deus tem,
Muito apropriadamente, o relato dos maus seja para a pessoa, seja para o mundo. O
tratos sofridos por Jeremias é seguido da pensamento introduzido em 15.10 é explo-
expressão de sua angústia causada por seu rado à exaustão nesse trecho. Até mesmo o
ministério profético em geral. O trecho homem que dera as novas a seu pai é amal-
está dividido em duas partes: v. 7-13 e v. diçoado. A nota final (18) questiona se algo
14-18. A primeira parte (7-13) é como um de bom pode ser tirado dos problemas que
salmo de lamento, no qual um salmista faz ele está enfrentando e que recairão sobre
um protesto ao Senhor e recebe uma garan- o povo.
tia ou uma resposta (e.g., SI 13). O problema de Jeremias é o da própria
Os termos do protesto são fortes. Ape- fé. Até os cristãos mais comprometidos
sar das garantias de proteção por parte de podem ser atormentados pela dúvida. De
Deus, Jeremias ainda sente que tem sido modo bastante significativo, o problema
injustamente exposto ao perigo, talvez até não é enfrentado numa batalha mental si-
mesmo iludido (7a), e que os grandes sa- lenciosa, mas na questão prática da conti-
crificios pela causa de seu ministério pro- nuação da vida de obediência que envolve
fético têm sido em vão. Ele também sente um alto preço. A fé e a dúvida podem se
estar sendo levado, impotente, a não anun- chocar fortemente, de forma desordenada,
ciar nada além de condenação, ficando como é ilustrado quando se colocam lado a
necessariamente isolado do resto do povo lado os v. 7-12 e 13-18.
(7b-9). O v. 10 fornece uma imagem de sua Em certo sentido, o v. 18 encerra a
rejeição de inspirar pena. Terror por todos primeira parte do livro. Pode haver algum
os lados talvez seja aqui um nome sarcás- bem resultante da persistente pregação de
tico aplicado a ele, usando as mesmas pa- Jeremias sobre o juízo? Ele é tentado a
lavras que ele tinha usado para Pasur (3). pensar que não. Entretanto, o Senhor lhe
O termo amigos é irônico; eles estavam mostrará o contrário, no devido tempo.
esperando que ele cometesse um erro que
poderia ser sua desgraça.
21.1-24.10 Salvação somente
Esse sentimento de isolamento pode por meio do exílio
ser uma experiência muito comum na vida
cristã. É, entretanto, a seu próprio modo, um 21.1-14 Nenhum livramento
engano, pois a verdade mais fundamental é da Babilônia
que Deus tenciona o bem para seus servos A profecia alcançou um estágio crucial.
fiéis (Rm 8.28-30). Jeremias agora recupe- Até agora, tivemos poucas indicações da
ra a compreensão desse fato (11,12), vendo data de incidentes específicos. Agora so-
11
1041 JEREMIAS 22 '11'11
'11'11

mos transportados ao reinado do último da condenação. Se antes Deus expulsara


rei de Judá, após o primeiro ataque do rei outras nações da terra prometida para que
Nabucodonosor (2Rs 24.15-20; Jr 37.1,2). Israel ali vivesse, agora ele as trazia de
A profecia não segue uma ordem estrita- volta e expulsava Judá. Eles devem acei-
mente cronológica. Neste momento ela tar esse juízo como sua única esperança.
vai até o final do período em questão para Sempre há benignidade do outro lado do
mostrar que o ponto não é mais se Judá irá castigo de Deus.
ou não se arrepender, mas sim como res- O oráculo final (11-14) relembra qual
ponderá ao juízo de Deus. Não há mais ne- tinha sido a responsabilidade da casa real
nhuma dúvida sobre quem será o inimigo. (a casa de Davi) (12a), a saber, administrar
Na época de Zedequias, era dolorosamente a justiça (o nome Zedequias significava,
óbvio que se tratava da Babilônia. ironicamente, "O Senhor é justo"). As pa-
O rei Zedequias consultou a Jeremias lavras são citadas para mostrar que a casa
regularmente na medida em que aumenta- real- e, mais especificamente, Zedequias
va a ameaça babilônica. (O Pasur aqui en- - tinham falhado. Eles tinham tomado a
viado como mensageiro é diferente daque- certeza da presença de Deus (2Sm 7.11b-
le que espancara Jeremias em 20.2.) Ele 16) como motivo de orgulho de sua pró-
espera que o profeta traga uma palavra de pria força (13b). Essa perversão do amor
salvação (2), do mesmo modo que Isaías de Deus deve resultar na quebra da aliança.
havia feito nos dias da dominação assíria, O destino de Judá é uma advertência con-
quando Jerusalém fora liberta de forma tra toda a presunção que tome por base a
milagrosa (2Rs 19.32-36). graça de Deus.
Jeremias será coerente, no entanto, em
sua declaração de que não é tempo de li- 22.1-30 Reis indignos
vramento, mas de punição. A resposta ao O oráculo anterior leva agora a uma série
pedido do rei é terrivel (4-6); não apenas de oráculos contra os reis em cujos reina-
os babilônios, mas o próprio Deus pelejará dos Jeremias tinha profetizado. O primeiro
contra Judá. Isso significa inverter a dire- trecho expande 2U2a (2,3) e é aplicado
ção da antiga peleja de Deus em favor de aos reis em geral (uma vez que nenhum
seu povo, quando ele expulsara os antigos rei é nomeado, embora as palavras tenham
ocupantes da terra de Canaã; até a mesma presumivelmente sido ditas a um deles em
linguagem é utilizada (cf Dt 1.29-30; 4.34; particular). O oprimido (3) se refere àque-
5.15; 7.19). A promessa do juízo toma-se les que devem ser objeto de proteção es-
agora terrivelmente específica: o próprio pecial por meio de atenta justiça (v. exem-
Zedequias será a vítima (cf 52.8-11). plo do rei Davi agindo com justiça em
Nabucodonosor é o instrumento do juízo 2Sm 8.15; cf Dt 14.29). A promessa do v.
de Deus. A linguagem utilizada mostra o 4 reafirma 2Samuel 7.11b-16 (cf também
quanto ele será o agente da ira do próprio Jr 17.25 sobre os termos usados) - mas a
Deus (7; cf 13.14). responsabilidade dos reis é realçada.
A sentença é definitiva - embora Um outro oráculo (6,7) comenta a ri-
ainda haja uma chance (8-10). O povo de queza de Judá e, em particular, da casa
Judá pode aceitar o juízo de Deus ou ten- real. Gileade era um local fértil, um símbo-
tar resistir e dele se esquivar. O caminho lo da bênção de Deus (cf 8.22). O Líbano
da vida e o caminho da morte originaria- também era uma terra irrigada, famosa
mente significavam a opção entre manter por seus grandes cedros, muitos dos quais
ou rejeitar a aliança (Dt 30.15,19). Agora, tinham sido utilizados na construção do
isso recebe uma nova aplicação, sendo en- templo (1Rs 5.6-10) e da casa real (lRs
tendido em termos da aceitação ou recusa 7.2). A riqueza de Judá é agora vista como
JEREMIAS 23 1042

algo frágil, estando sujeita à vontade de O oráculo seguinte é dirigido à própria


Deus, que a concedera e cuja bondade eles Jerusalém (na 23 pessoa do singular; 20-
haviam deixado de reconhecer. 23). Os vãos apelos aos aliados (Assíria e
O anúncio público do motivo da queda Egito, cf 2.36) são feitos de lugares mon-
de Judá (8,9) é um dos temas da profecia tanhosos no norte e no sul (20). A persis-
(cf 18.16). Esta era uma maneira de pro- tente infidelidade de Jerusalém (21; cf
clamar a fidelidade de Deus, apesar da in- 7.25,26) agora resulta na remoção de todas
fidelidade de Judá. as suas bases de apoio (22, onde pastores
Profecias relativas a determinados reis significa a própria liderança de Jerusalém).
ocupam os v. 10-30 (para suas datas, v. Com base no v. 23, o foco do oráculo são
Introdução). Elas provavelmente foram os reis, onde Líbano significa simbolica-
proferidas em épocas diferentes, durante mente o palácio do rei (lRs 7.2).
ou logo após os reinados dos reis em ques- O rol de vilões é completado por Joa-
tão. Foram reunidas para elucidar o tema quim (Conias, em hebraico e, em algumas
do fracasso desses reis (todos eles são an- versões, Conias ou Jeconias), que suce-
teriores a Zedequias, que foi assunto do deu seu pai Jeoaquim depois da deposi-
cp. 21). ção deste (2Rs 24.6). A marca de que ele
Os v. 10-12 estão relacionados a Josias pertencia ao Senhor (a aliança davídica,
(o morto) e a seu filho Jeoacaz (aqui, simbolizada pelo anel de sinete) não im-
Salum), que reinou por pouco tempo e foi pediria que fosse enviado ao exílio de
exilado no Egito (2Rs 23.30-34). Seu exí- modo permanente (24-27).
lio talvez seja uma prenúncio do exílio de As palavras finais contam o destino de
Judá - por isso o lamento. toda a dinastia davídica em um oráculo
Os v. 13-19 tratam de Jeoaquim. Acu- contra Jeoaquim. Sua expulsão representa
sado de injustiça e de engrandecer-se a si a expulsão de todo o povo da terra que um
mesmo, ele é comparado desfavoravel- dia lhes pertenceu. O v. 29 registra a an-
mente ao seu pai, Josias (l5b, 16). Josias, gústia do Senhor pelo abuso de sua terra
aqui, está de acordo com o ideal davídico. (cf 2.7; 12.4). O último versículo põe fim
Neste ponto, Jeremias chega o mais pró- a essa dinastia. Embora Joaquim tivesse
ximo de lhe dar crédito por sua reforma filhos, nenhum deles reinaria em Judá
(2Rs 22-23). Entretanto, a reforma em (lCr 3.17,18).
si não é mencionada; não havia sido sufi-
ciente redimir a dinastia de sua obstinação 23.1-8 Um novo rei davídico
ou de sua queda final. A sucessão de Josias Os dois primeiros versículos repetem
por Jeoaquim o prova. Jeoaquim é pesso- o veredicto sobre os falsos pastores (cf
almente acusado de todos os males arrola- 22b). Jeremias, entretanto, olha ago-
dos na condenação geral de Jeremias (cf ra para além do exílio (3-8). Haverá um
6.13; 7.6; 26.20-23). Sua punição será a futuro melhor para o povo de Deus. Ele
de que ele não receberá a honra de um en- mesmo será o seu pastor (3), seu pastora-
terro acompanhado dos rituais de praxe. do será delegado a líderes fiéis (4). Além
(As palavras meu irmão [...] minha irmã disso, embora a histórica dinastia davídi-
são provavelmente ditas por pranteadores ca esteja chegando ao fim, um novo rei
entre si.) Pior, ele nem mesmo terá um en- davídico se levantará, um que será como
terro apropriado. Não há sequer um regis- Davi. Seu nome, SENHOR, Justiça Nossa, é
tro da morte ou do enterro de Jeoaquim, parecido com o de Zedequias em hebrai-
embora ele tenha sido deposto à força do co. Esse rei, entretanto, faria jus ao nome.
seu trono pelos babilônios (2Rs 24.2-6; cf Jeremias olha em direção ao messiânico
também Jr 16.5,6). filho de Davi, cujo nascimento seria para
11
1043 JEREMIAS 24 11-
1111

a salvação de Israel (Mt 1.1; Lc 2.29-35). eles nenhum mandato especial da parte de
A esperança imediata, entretanto, é o re- Deus. Na verdade, eles tinham interpreta-
tomo do povo de Judá à sua própria ter- do mal sua vontade. A falsidade dos falsos
ra, como um novo marco nas relações de profetas, ademais, não podia ser escondi-
Deus com o seu povo (7,8; cf 16.14,15). da de Deus (23,24).
Isso será um prenúncio da grande salva- Jeremias desenvolve a ideia dos pro-
ção por vir. fetas enganadores (25-32), contrastando o
poder do profeta genuíno com a inutilida-
23.9-40 Sobre os falsos profetas de dos dissimulados. Ele termina com um
Assim como o cp. 22 reuniu as pregações ataque à depreciação da palavra do Senhor,
do profeta contra os reis, este trecho tam- porque em todo lugar é procurada, mas
bém é voltado para os profetas que não apenas para ser distorcida, e porque qual-
tinham ouvido a palavra de Deus e que en- quer um alega tê-la, o que toma impossível
ganaram a Judá (cf 5.31; 6.13,14). Parte ouvir a verdade quando ela aparece. A pa-
do próprio sofrimento de Jeremias era de- lavra do momento é sentença (33b). Quem
vido ao abuso da palavra de Deus por par- disser outra coisa será separado para o cas-
te de outros (9). Sua acusação, a mesma tigo (34). Em termos de declarar a palavra
que ele fez ao povo em geral, é aplicada de Deus na igreja de Cristo e em um mun-
aos profetas em particular. A infidelidade do descrente, a responsabilidade - algo
deles é como um adultério (cf 5.7,8; 9.2) e tão dificil como o era para os profetas do
pode ter dado origem a um adultério literal passado - é declarar a sentença pesada do
(14), pois a vida deles desmente quaisquer SENHOR, jamais a talhando aos nossos pró-
pretensões de que são mensageiros de prios fins ou tomando-a mais palatáve1 do
Deus (cf 5.26-28). Profetas e sacerdotes que realmente é.
estavam com o caráter corrompido. A ini-
quidade atingiu o âmago da vida da nação 24. 1-10 Dois cestos de figo
(11; cf Ez 8.5-18), tomando Jerusalém Esta seção da profecia (cp. 21-24) come-
indistinguível das notoriamente perversas çou com uma mensagem para Zedequias.
Sodoma e Gomorra (Gn 19.1-29). A par- Depois prosseguiu tratando dos quatro reis
tir desses líderes a iniquidade se espalhou que o precederam (cp. 22). Agora, comple-
como um câncer (15). O mal, entretanto, ta o ciclo e volta novamente a Zedequias,
traz consigo sua própria recompensa (12; que havia se tomado um fantoche de
cf SI 73.18). Nabucodonosor como rei de Judá, após o
A essência da acusação seguinte, di- exílio de Joaquim (597 a.c., 2Rs 24.8-17).
rigida à classe dos profetas (16-24), é a A perspectiva dessas duas visões pode es-
de que eles não estiveram no conselho do tar voltada em direção ao final do reinado
SENHOR (18). Antes, sua única autoridade de Zedequias, quando o exército babilôni-
procede das visões de seu próprio cora- co estava novamente à porta.
ção (16b). Naturalmente, portanto, suas A visão é um dos meios em que o
mensagens são enganosas, proclamando Senhor se comunica com seus profetas (cf
paz quando não há paz alguma (17b). 1.1; 13; Am 7.1). Os figos bons e ruins su-
Houvera um tempo, como no caso de gerem referências a colheitas boas e ruins
Isaías, em que fora correto o anúncio da e, portanto, à benção da aliança ou à falta
paz pelos profetas (2Rs 19.32-36). Esses dela. Essa visão é de crucial importância
falsos profetas, portanto, podem ter esta- para a mensagem de Jeremias.
do imitando a mensagem de Isaías. O ar- Como no cp. 21, o exílio é agora uma
gumento de Jeremias é que essa não era certeza; a questão é apenas como o povo
uma mensagem genuína, por não terem responderá à decisão de Deus de puni-lo.
~III JEREMIAS 25 1044

Os bons figos são as pessoas que aceitam 25.1-38 Deus julga


a necessidade de passar pela devastação todas as nações
da terra, pelas mãos da Babilônia e pelo
próprio exílio (5). Para essas, o Senhor 25. 1-14 O período babilônico
promete novamente vida, utilizando-se O ano de 605 a.C. foi o quarto ano do rei-
de termos como edificar e plantar, já bem nado de Jeoaquim e o vigésimo terceiro do
familiares em Jeremias (1.10; 18.7-10). ministério de Jeremias (calculados inclusi-
Essa vida depende da outra face do cas- vamente, cf. 1.2). Naquele ano, a Babilônia,
tigo, do "destruir" e "arrancar". Assim, sob o reinado de Nabucodonosor, obteve
a vida de Judá faz um paralelo à vida de o controle sobre a Síria e a Palestina ao
Jesus, que morreu, mas ressuscitou - e derrotar as forças egípcias na batalha de
da igreja, sepultada com ele na morte pelo Carquemis, no Eufrates. Na verdade, de
batismo, a fim de ressuscitar (Rm 6.1-4). acordo com Daniel 1.1, alguns prisioneiros
O padrão de juízo seguido de salvação de Judá foram levados naquele ano. A essa
está, portanto, profundamente arraigado altura, a Babilônia era claramente uma for-
na revelação bíblica de como Deus lida ça a ser temida.
com o mundo. Jeremias usa o momento para uma re-
Além disso, a nova vida é de uma nova trospectiva. Ele pregara de forma contínua
qualidade. Os termos do v. 7 incluem a e coerente uma mensagem alinhada com
bem conhecida fórmula da aliança. (Serei a de outros profetas que advertiram sobre
o vosso Deus e vós sereis o meu povo; o julgamento (4). A mensagem (resumida
Lv 26.12). A novidade, entretanto, está no nos v. 4-6) chamara o povo ao arrependi-
fato de o Senhor lhes dar um coração para mento e oferecera a oportunidade de uma
que possam conhecê-lo, de modo que ao vida contínua na aliança e na sua própria
menos possam obedecer ao chamado que terra (cf o sermão de Jeremias no templo;
outrora não ouviriam (4.4). Isso não quer 7.3-7). É repetida aqui somente para mos-
dizer que a vontade humana seja anulada trar que o povo não dera a devida atenção
ou extinta. De alguma maneira, ela será à mensagem (3,7; cf 7.25,26).
alinhada com a vontade do Senhor. No As palavras do juízo (8-11) também
sentido bíblico, isso finalmente acontece possuem o caráter de um sumário, ecoan-
por meio do habitar de Cristo em nós e do do palavras anteriores (9c, cf. 24.9; 10, cf
recebimento do Espírito Santo (o trecho 16.9). A ascensão da Babilônia, entretanto,
de Rm 8.1-17 pode ser estudado dessa confere a essas palavras um novo foco e
perspectiva). Em Jeremias, a linguagem um tom ameaçador. Não apenas Judá, mas
começa a revelar o ensinamento da nova outras nações também sofrerão nas mãos
aliança (cf 31.31-34). do povo da Babilônia (9-11). Uma nova e
Os figos ruins são as pessoas que re- terrível observação é acrescentada: Judá (e
cusarem o castigo do Senhor. Esse castigo as nações) serão escravizados por 17 anos
não pode, é claro, ser literalmente evita- (12). A geração que vai ao exílio nunca
do, mas recusado em espírito. Zedequias mais verá sua terra natal.
tipifica aqueles em Judá que procuram As más notícias, entretanto, têm um to-
uma aliança com o Egito para rechaçar que de esperança, pois a força da Babilônia
a ameaça babilônica. Essa aproximação terá um fim e, portanto, o exílio também.
com o Egito simbolizava rebelião contra Nabucodonosor tem sido um servo de Deus
o Senhor (cf Dt 17.16). Isso persistiria (9) unicamente como agente de seu juízo,
até o final da história de Jeremias, um si- embora ele próprio tenha agido de forma
nal de que alguns não ouviriam a Deus, egoísta e cruel ao fazê-lo. A Babilônia, por-
acontecesse o que acontecesse. tanto, receberá o castigo de Deus (12,14).
1045 JEREMIAS 26 <
Aqui Jeremias é visto como o profeta da inimigo da nação (2.15), é agora o Senhor
queda da Babilônia, tomando-se assim (38; cf Am 3.8).
"um profeta para as nações" (1.5).
A Babilônia cairia frente ao Império 26.1-29.32 Jeremias torna-se
Medo-Persa, sob o reinado de Ciro, em um profeta da salvação
539 a.C (v. 2Cr 36.20-23). Os setenta anos
podem ser contados tanto a partir de 605, a 26.1-24 Jeremias por pouco
data da presente profecia e do ano em que não escapa da morte
Nabucodonosor levou os primeiros exila- O cenário é novamente o templo, no prin-
dos, a 539, ou um pouco depois, quando os cípio do reinado de Jeoaquim. O sermão
exilados começaram seu retomo; quanto a registrado nos v. 2-6 é uma forma reduzi-
partir de 586, a data da destruição do tem- da do sermão do templo em 7.1-15, que
plo, a 516, quando este foi reconstruído. destaca o mesmo ponto, isto é, que Judá
deve ouvir a palavra de Deus e não basear
25.15-38 O cálice da ira de Deus sua confiança, irrefletidamente, na mera
Por conseguinte, mais ou menos na meta- posse de uma instituição. Isso é repetido
de do livro de Jeremias, o juízo contra as aqui para a introdução de uma narrativa
nações em geral é pronunciado. Tais orá- sobre a resposta à palavra de Deus, con-
culos também são encontrados em outros forme dada pelo profeta, por parte de vá-
livros proféticos, falando da soberania de rias seções do povo.
Deus sobre todas as nações e advertindo- Jeremias é preso por um grupo lidera-
as de sua responsabilidade perante ele do por sacerdotes e profetas (8), furiosos
(Is 13-20; Am 1.1-2.3). (A principal com suas críticas às formas de adoração
seção dos oráculos de Jeremias contra as e às instituições da terra, e apoiados por
nações, cp. 46-51, é, na verdade, colo- todo o povo. A acusação é de que ele é
cada neste ponto na antiga versão grega falso profeta, um crime que levava à pena
do AT, provavelmente preservando assim de morte (Dt 18.20). A dificuldade, entre-
a ordem originária.) tanto, era saber diferenciar o falso profeta
O sinal do beber do cálice da ira foi do verdadeiro. Um teste possível, ou seja,
executado, presumivelmente, de forma verificar se suas palavras se cumprem (Dt
simbólica, com a ideia da embriaguez 18.21,22), pode não apresentar resultado
como juízo de Deus, cf 13.12-14. Os juí- definitivo por um longo tempo. (Foi assim
zos contra essas nações são tratados, de no caso de Jeremias.) Poderia ele ser con-
modo mais completo, nos cp. 46-51. É denado pela mensagem em si? A questão
importante observar que a Babilônia (cha- pode ter sido baseada nas antigas profecias
mada pelo codinome "Sesaque", ARe), ten- de que Jerusalém seria protegida da des-
do causado sua própria destruição, bebe truição (Is 31.4,5; 37.33-35).
por último (26). Importante também é a Segue um julgamento no qual os sacer-
declaração de que Judá não será a única dotes e profetas acusam Jeremias perante
a ser punida (29). O sofrimento da nação, os príncipes de Judá (10,11). Todo o povo,
longe de sugerir a fraqueza do Senhor por agora, coloca-se ao lado dos príncipes
se tratar da nação que ostenta o seu nome como aqueles que devem ser persuadidos
(cf 7.12), provará seu domínio sobre todo da culpa de Jeremias. Essa mudança no
o mundo. Os dois últimos oráculos sobre quadro retrata muito bem a incerteza de
o juízo (30.31,32-38), que empregam ter- muitos em Judá acerca do profeta, bem
mos conhecidos da pregação de Jeremias, como a prontidão com que a massa popu-
são também dirigidos contra as nações em lar pode mudar de partido. Em sua defesa,
geral. O leão, outrora identificado como o Jeremias afirma ser realmente um profeta
JEREMIAS 27 1046

de Deus, e repete seu chamado ao arrepen- justamente o que Jeremias havia alertado
dimento, o que implica a ameaça à cidade a Zedequias a não fazer (21.1-10; 24). O
e ao templo (12-15). sinal das correias e canzis (2) é bem esco-
Tanto os príncipes quanto todo o povo lhido para simbolizar o jugo, tanto o que é
decidem a favor de Jeremias (16). Sua exigido dessas nações quanto aquele ainda
decisão foi apoiada por certos anciãos de pior, que seguirá se elas não obedecerem
Judá, que relembram o modo semelhante ao Senhor.
com que o profeta Miqueias pregara con- Novamente Jeremias afirma sua auto-
tra os pecados de Jerusalém (Mq 3.8-12). ridade como profeta às nações. Ao pedir
Ora, se a pregação de Miqueias era correta, explicações às nações, ele usa uma lingua-
então, a de Jeremias também o era, e se o gem que fala do poder do Senhor (5; cf
povo não se arrependesse, como fizera o Dt 4.34), para mostrar que ele é o Criador
rei Ezequias, então o desastre de fato es- de toda a terra e, portanto, tem pleno di-
tava por vir. reito de subjugar os governantes (4-7). Tal
O trágico caso do profeta Urias (20-23) ponto será finalmente provado em relação à
mostra que Jeremias não estava sozinho própria Babilônia (7; cf 25.12; Dn 4.25).
em sua pregação. Ele não foi tão afortuna- A necessidade de se submeter à Ba-
do quanto Jeremias em receber o favor de bilônia, imposta primeiramente aJudá,
pessoas influentes (cf v. 24), tomando-se é agora imposta a todas as nações, espe-
uma vítima do rei Jeoaquim e dos que eram cialmente as envolvidas na conspiração.
leais a este. Nossa narrativa não está sim- O trio espada,fome e peste (8; cf 14.12)
plesmente contando a história de Jeremias, tipifica o terrível juízo que lhes sobrevirá
como um biógrafo moderno o faria. Antes, se rejeitarem essa palavra. Essas nações
está contando a história da resposta de Judá também tinham seus falsos profetas, que
à palavra de Deus. Jeoaquim se faz conde- davam apoio ao "poder estabelecido",
nar como alguém que a rejeitou de pronto dizendo que tudo estava bem, quando
e brutalmente (v. também Jr 36). na realidade não estava (9,10). Não era
A questão de como saber o que Deus apenas Judá que era obrigada a buscar a
está dizendo é bem complexa. Um dos verdade ou que estava sujeita à palavra
indicadores é o comprometimento do pre- do Senhor. Assim como também não o
gador (Jeremias e Urias estavam dispostos são, nos dias de hoje, somente os que se
a morrer), embora essa não seja uma re- dizem cristãos.
gra infalível. Outro sinal é a coerência da A mensagem para Zedequias (12-15)
mensagem com aquilo que se sabe sobre a essa altura já é familiar (cf 21.1-10). O
Deus. Nada substitui o estudo, a experiên- contexto imediato, entretanto, demonstra
cia acumulada e a oração por discernimen- que ele está sendo fortemente apoiado
to. A tentação de acompanhar a multidão por certos profetas em sua política de re-
(mesmo na igreja), em vez de se dedicar a sistência à Babilônia. Por conseguinte, a
uma rigorosa busca da verdade, pode ser o campanha de Jeremias contra esses profe-
maior obstáculo para encontrá-la. tas assume uma nova urgência.
O trecho final revela a natureza da
27.1-22 Servi a Nabucodonosor mensagem dos falsos profetas. O cenário
O cenário é novamente o reinado de Zede- retrata que o exílio está para começar. O
quias, no ano de 594/3 a.c. (cf 28.1). rei Joaquim já fora levado cativo para a
Zedequias aparentemente está discutindo Babilônia, e alguns dos tesouros do templo,
sobre a rebelião contra a Babilônia com rica provisão do rei Salomão, foram leva-
embaixadores das nações mencionadas (3), dos como símbolos da aclamada superio-
possivelmente em aliança com o Egito. Era ridade dos deuses da Babilônia. Os falsos
11
1047 JEREMIAS 28 11-
11-

profetas agora têm de afirmar que eles em do de profeta (1) e usa a linguagem profé-
breve serão trazidos de volta. A posição tica, alegando falar em nome de Deus (2a;
que defendem é crescentemente negada tivesse ele falado em nome de qualquer
pelas evidências. Contudo, eles continuam outro deus, poderia ter sido denunciado;
a defendê-la. Até mesmo o que resta dos Dt 13.1-5; 18.20). A princípio, Jeremias
utensílios do templo logo também será le- encontra-se impotente para demonstrar
vado (19; cf 52.17; cf lRs 7.15-37). que ele está certo e Hananias errado. Ele
É impossível exagerar a importância da só consegue dizer que espera que Hananias
perda desses tesouros para o povo de Judá. esteja certo (6). No entanto, ele permanece
Toda essa compreensão de si mesmos esta- firme na palavra que sabe ter recebido de
va estreitamente ligada a essas coisas. Na Deus, e lança seu próprio desafio (9). Este
verdade, o templo e seus ornamentos lhes consiste na invocação de um dos critérios
tinham sido dados por Deus. Mas se esses pelos quais se sabe se um profeta é verda-
ornamentos tinham se tomado, em si mes- deiro, a saber, se as suas palavras vêm a se
mos, o objeto de sua esperança (cf 7.4), cumprir (Dt 18.21,22). Hananias, intrepi-
então precisavam lhes ser tirados. Num damente, quebra o jugo de sobre o pesco-
sentido muito importante, o exílio consiste ço de Jeremias, reivindicando, assim, por
na perda do templo; entretanto, é também meio do tipo mais intenso e convincente de
a oportunidade de se buscar a Deus nova- simbolismo (13.1) ser ele aquele que co-
mente de maneira genuína. Isso explica nhece a vontade de Deus. Com isso ele pa-
por que essa foi a maneira escolhida por rece ter obtido a vitória do dia, e Jeremias
Deus para renovar o seu povo. Às vezes se retira (11).
é necessário mostrar ao povo de Deus que Então o Senhor dá a Jeremias sua defesa
eles estão depositando sua confiança em mais dramática. Ele mostrará que Jeremias
coisas exteriores, em vez de depositá-la no diz a verdade ao pronunciar uma terrível
próprio Deus. sentença contra Hananias. Jeremias, retor-
nando ao confronto, pronuncia uma vez
28.1-17 A mensagem de Jeremias mais a mensagem de que Judá deve se
mostra-se correta curvar perante o jugo da Babilônia, só que
As denúncias gerais de Jeremias sobre os dessa vez trata-se de um jugo de ferro (12-
falsos profetas atingem seu ponto crucial 14; cf 27.6). E a mensagem é reforçada
em sua confrontação com um deles em pela profecia de que Hananias irá morrer
particular. Enquanto Jeremias ainda está naquele mesmo ano. Se a demonstração
usando o jugo com o qual tinha alertado final quanto à autenticidade da mensagem
para a chegada dos tempos de servidão à de Jeremias sobre o juízo demoraria um
Babilônia (27.2), Hananias deliberadamen- pouco mais, a morte de Hananias seria uma
te se opõe a ele (1b) e desafia seu sinal (2). prova imediata e poderosa da questão.
Hananias, então, profere justamente o tipo Hananias morre por ser um falso profe-
de oráculo ao qual Jeremias se opunha (2- ta (Dt 18.20) que contribuiu para impedir
4; cf 27.16), prometendo que a opressão o povo de enxergar os verdadeiros peri-
exercida pela Babilônia em breve cessará. gos. Sua morte também serve para vingar
Isso era o mesmo que negar o fato de que Jeremias. Agora não há justificativa, se é
Deus estava julgando o seu povo e, con- que alguma houve, para não dar a atenção
sequentemente, que tinha havido motivo à sua mensagem.
para a ira divina. A solene história é uma perpétua ad-
A questão, introduzida no cp. 26, gira vertência contra alegações levianas de que
em tomo de como distinguir entre o verda- alguém possui uma palavra especial do
deiro e o falso profeta. Hananias é chama- Senhor, e um convite a todos os professores
JEREMIAS 29 1048

para que sejam, antes de mais nada, eter- gantes; com Deus sempre haverá um futu-
nos e humildes aprendizes. ro verdadeiro. Nele há comunhão desejosa
e alegre com ele, não mais encoberta pelo
29.1-14 "Edificai casas na Babilônia" egoísmo humano. Tampouco está esse fu-
Se as pessoas em Judá queriam acreditar turo em algum reino "espiritual" imaginá-
que os efeitos da primeira invasão babilô- rio. Ele está presente no contexto da vida
nica logo seriam desfeitos, o mesmo que- comum; daí o casamento, as casas e - e
riam aqueles que já haviam sido levados ao no devido tempo - o retomo à antiga terra
exílio. Jeremias envia uma carta (inciden- (14). A frase traduzida por tornarei a trazer-
talmente mostrando que a comunicação vos ao lugar donde vos mandeipara o exílio
entre esses dois locais continuava sendo é muito mais rica do que isso possa sugerir,
possível. Sempre houve tráfego em tomo implicando na completa restauração da vida
da rota comercial que ficava entre esses em todas suas dimensões. Ela aparece di-
dois pontos. A família de Safã novamente versas vezes nos capítulos seguintes.
aparece a serviço de Jeremias, 3; cf 26.24).
Na Babilônia também as várias classes 29. 15-32 Profetas na Babilônia
sociais estão representadas (sobretudo as Diante da objeção de que os exilados ti-
classes mais altas; 2Rs 24.14). Ali também nham seus próprios profetas (15), Jeremias
era travada uma batalha pela mente deles; responde com um resumo de sua antiga
profetas estavam persuadindo-os de que mensagem sobre o juízo, relembrando a
logo estariam em casa (8,9). visão dos figos ruins que havia condena-
A carta contém o que aparentemente do aqueles que resistiram ao exílio (17; cf
são más notícias, mas também um grande 24.8-10). Não deveria haver falsa esperan-
encorajamento. As más notícias são que o ça para os exilados no fato de Zedequias
exílio não será curto. Jeremias repete sua ainda ocupar o trono de Jerusalém, ou de o
mensagem de que durará 70 anos (10; cf templo ainda estar de pé.
25.11). Entretanto, na "morte" do exílio es- A carta continua com palavras de juízo
tão as sementes de uma nova vida. A carta contra alguns profetas em particular que,
começa a reverter a até então desanimado- como Hananias (cp. 28), estão afirman-
ra pregação do profeta. Se antes ele mesmo do ser inválidas as palavras de Jeremias.
se abstivera de se casar como um sinal de Acabe e Zedequias (não o rei) mostraram
que o casamento e a geração de filhos ces- sua falsidade por sua própria vida adúltera
sariam em Judá (16.2), agora ouve-se que (20-23). À luz do cumprimento das pala-
os exilados podem retomar seus relaciona- vras de Jeremias sobre Hananias (28.17),
mentos normais (6). O povo poderá cres- sua profecia a respeito deles é realmente
cer em número novamente, quando suas terrive1 (22). Semaías, o neelamita, opõe-
palavras anteriores não pareciam prometer se a Jeremias tão diretamente quanto pode
senão a extinção (4.7). àquela distância, refutando, em resposta a
Justo agora, quando todos os planos pa- um dos sacerdotes, a carta do profeta. Ele
recem inúteis, o Senhor tem planos de novo também ousou demais, e conhecerá a ira
para o seu povo (11). O ato que parecia ter de Deus (24-32).
posto fim à aliança na verdade restaura a
vida justo ali onde parecia não haver nada 30.1-33.26 A promessa
mais que aparência dela. A história ilustra de uma nova aliança
claramente a diferença entre o pensamento
do Senhor e os planos humanos (Pv 16.9; 30.1-24 A saúde é restaurada
Is 55.8). O que parece o fim da esperança Os três capítulos seguintes são tomados
nada mais é que o fim de sonhos extrava- pelas promessas de salvação para Judá e,
li
1049 JEREMIAS31 1111
11
11

na verdade, para Israel, após a punição Uma nova seção começa relembrando
do exílio. O assunto central será a nova mais uma vez as profecias sobre o juízo
aliança (31.31-34). O foco principal estará (12-15). As metáforas sobre feridas e doen-
nos exilados que retomam da Babilônia. ças predominam (cf 8.11,22). Amantes
Mas esse ato redentor de Deus aponta lembra a metáfora da prostituição (2.33;
mais profundamente para a criação de cf 22.20-22). A acusação judicial contra
um novo tipo de povo na igreja de Cristo. Judá (13a) foi feita pelo próprio Senhor
(V nota adicional no final do comentário (2.9,29).
do cp. 31.) Seguem então dois oráculos de salvação
É animador passar do juízo à salva- como "resposta" (16,17; 18-24). O primei-
ção. Também é algo extraordinário ouvir ro começa com a expressão Por isso. Algo
Jeremias falar agora como o "profeta da surpreendente, vindo depois do v. 15b. Ele
salvação", tendo ele gasto tanta energia em mostra que o plano do Senhor para salvar
se opor àqueles que prometiam a salvação Israel/Judá baseia-se inteiramente na sua
muito cedo. A diferença entre Jeremias generosa decisão de fazê-lo. Os opressores
e Hananias (cp. 28), entretanto, é que do povo serão destruídos (cf 25.12). E ha-
Jeremias insistia em que a punição devia verá, enfim, cura verdadeira (17), e não a
primeiramente seguir o seu curso e ser em imitação oferecida, sem nenhum proveito,
si mesma parte da restauração. pelos falsos profetas (cf. 8.11,15).
A ordem para escrever em um livro O segundo oráculo descreve um povo
todas as profecias já proferidas (2) teste- feliz e próspero (19,20), em contraste di-
munha de atividade contínua (v. cp. 36). reto com a privação e miséria do tempo da
Aqui isso sinaliza um ponto de virada na punição (4.29c; 16.9). Esse repovoamento
mensagem. O tema dos cp. 30-33 é es- é agora previsto para a terra natal, e não
tabelecido por 30.1-3, a saber, a completa apenas para a comunidade vinda do exílio
restauração do povo de Deus ao relacio- babilônico, como em 29.6; daí a recons-
namento que com ele fora estabelecido na trução de tendas (18), fortificações e do
aliança (3; cf 29.14). palácio (o provável significado do v. 18c).
O método do cp. 30 consiste em citar Eles serão novamente governados por um
as profecias sobre o juízo e respondê-las dos seus (21), um sinal do livramento da
com palavras de salvação. Assim, os v. opressão. Tudo isso resulta da renovação
5-7 relembram passagens anteriores (e di- da aliança, indicada pela fórmula do v. 22
ferentes) sobre o juízo (5, cf 20.3,10; 6, (cf Lv 26.12).
cf 4.19,31). O dia (6) do Senhor foi usa- Os últimos dois versículos são repe-
do por Amós para falar do futuro desastre tições de 23.19,20. Essa repetição aqui é
(Am 5.18). deliberada e significa que o tempo refe-
Em contraste com toda a dor, haverá rido anteriormente é chegado. O dia em
um dia de livramento (8). O tempo da que- que o povo entenderá que o plano de Deus
bra do jugo chegará enfim (cf 28.10-14), está próximo.
e o povo de Deus o servirá com autentici-
dade sob um rei verdadeiramente davídico 31.1-26 O retorno do remanescente
(9; cf 23.5,6). Quem será restaurado não é Esse capítulo contém várias imagens do
ninguém menos que Israel (ou Jacó), em- povo restaurado, encabeçadas por uma va-
bora de uma nova maneira. A promessa da riação da fórmula da aliança (1; cf 30.22)
presença de Deus entre o seu povo é fun- e uma declaração poética sobre a renova-
damental para a aliança (11; cf Êx 3.12) ção que está além do juízo (2).
e a razão para que nada temam (Is 43.2). A figura da virgem foi usada anterior-
O v. 11b se refere à disciplina do exílio. mente apenas de forma irônica (18.13-15);
JEREMIAS 31 1050

aqui (4) ela contrasta com a da antiga do Reino do Norte. Seu choro representa
"prostituta" (2.20). Na nova aliança, as an- a dor de Israel, especialmente a de todas
tigas manchas foram lavadas. A nova vida, as mães por suas perdas, as das tribos do
além do mais, é aquela que pode ser retra- Norte para o exílio na Assíria e as das
tada por figuras simples e alegres. A ideia tribos do Sul para o exílio na Babilônia.
de Israel como uma virgem nos remete à A restauração é a resposta a esse choro
colorida imagem de jovens filhas da terra (16,17). Efraim (representando todo o
saindo a dançar em rodas, quem sabe em Israel) é retratado como alguém que se ar-
algum festival (cf Jz 21.20,21). No devido repende de verdade (em contraste com o
tempo, os agricultores farão as colheitas e falso arrependimento do passado; 3.22b-
celebrarão, em adoração, em Jerusalém a 25). O povo se volta a Deus, e Deus se
generosidade de Deus (6b). Tudo isso se volta ao povo (18); no passado, o povo
dará porque o amor de Deus não acaba não se voltara senão para longe dele
com o juízo; seu amor nunca morre. Ele (3.22a). Foi o próprio Deus quem fez tudo
é expresso naquele amor especial (amor isso; sua compaixão é no fim, mais decisi-
eterno, benignidade) que ele derramou so- va que seu juízo (20; cf Os 11.8).
bre o seu povo (3). Segue um apelo (21,22), mostrando
Do exílio retoma um povo (7-9), um que, mesmo nessa nova ordem, o Senhor
remanescente (cf 6.9), ainda que em gran- ainda chama seu povo à fidelidade. A últi-
de número, trazendo suas enfermidades, ma frase (22b) é obscura, mas talvez repre-
ainda que chorando de alegria, enquanto o sente uma mãe protegendo seu filho varão,
Senhor, seu pai, lhes prepara um caminho um eco feliz de Raquel chorando pelos
reto. Israel é a cabeça das nações (7), e seus. Esse povo protegido é também um
não apenas uma dentre aquelas nações que povo adorador (23-25).
Deus puniu por meio de Nabucodonosor Os oráculos até esse ponto no capítulo
(27.8); e ela assim o é pelo fato de ter sido parecem ter sido dados a Jeremias em um
escolhida para conhecer o amor de Deus sonho (26).
(cf Dt 7.7,8).
Mais um oráculo é dirigido às nações 31.27-40 A nova aliança
(10-14). Um povo jubiloso é guardado O preâmbulo à nova aliança (27-30) res-
por seu pastor (cf 23.3), suas bênçãos ponde a um antigo provérbio dos tempos
são retratadas em termos concretos: ce- do exílio, o qual se queixava de que aquela
real, vinho e azeite, símbolos básicos da geração sofria pelos pecados de gerações
benignidade (cf Dt 7.13); um jardim e anteriores (cf Ez 18.2). Pelo contrário, o
dança (novamente, cf v. 4). Toda a co- Senhor estava lidando com cada geração, e
munidade é retratada na forma de con- até mesmo com cada indivíduo, separada-
traste entre homens e mulheres, jovens e mente e de modo justo.
velhos, sacerdotes e leigos (13,14). Tudo A ideia de uma nova aliança está con-
isso para testemunhar às nações que Deus tida em todas as profecias dos cp. 30-31
é fiel a seu povo e capaz de abençoá-lo registradas até aqui. Agora ela é exposta
como prometeu. Nenhuma nação pode claramente (31-34). A aliança fora firmada
impedi-los quando ele decide redimi-los com Israel e Judá. A renovação retrocede
(11; cf Rm 8.31). até Abraão e Moisés, e não apenas à que-
As fortes imagens femininas prosse- da de Judá, e recria a aliança; "nova" pode
guem (15-22) com Raquel chorando por significar "renovada".
seus filhos. Raquel, a esposa mais jovem Essa aliança, entretanto, será diferente
de Jacó, era a mãe de José (Gn 35.24), o daquela que as gerações anteriores haviam
ancestral de Efraim e Manassés, as tribos violado (32). Ela será escrita no coração
1051 JEREMIAS 32 (
111

do povo, não apenas em pedras como os O NT ensina que o cumprimento decisi-


Dez Mandamentos (33; cf Êx 24.12). Em vo da profecia da nova aliança acontece em
outras palavras, a aliança será um cálido Jesus Cristo (lCo 11.25; Hb 8.7-13; 9.15).
deleite para o povo, e não uma fria pres- Isso significa que a aliança com Deus é
crição. Esse sempre fora o ideal (cf Dt finalmente obtida pelas pessoas que estão
10.16; 30.6), mas que só agora se reali- "em Cristo". O novo tipo de perdão é pos-
zaria, pois de alguma maneira o Senhor sível pelo fato de ele ter feito um sacrifício
criaria esse desejo e habilidade em seu definitivo pelo pecado, o que toma obsole-
povo (a escreverei...). tos todos os outros sacrifícios (Hb 10.15-
Duas características da nova aliança 18). É uma aliança que não tem fim, pois
são agora mencionadas (34). A primeira é foi aperfeiçoada em Cristo. Ainda assim, o
que o povo não precisará ser encorajado a novo povo dessa aliança é chamado a ser
conhecer a Deus, pois todos o conhecerão. fiel e recebe a dádiva do Espírito Santo a
Tal conhecimento significa não apenas o fim de capacitá-lo.
conhecimento do caráter e da maneira de Há, portanto, um paralelo entre o modo
ser de Deus, mas é algo pessoal e implica como Deus agiu em relação ao antigo
um compromisso voluntário. Isso é uma Judá, ao trazê-lo de volta da Babilônia, e
resposta ao seu conhecimento de nós, o o modo como ele age em relação a todo
que também é um compromisso total de o mundo em Cristo. Os antigos Israel e
sua parte. A segunda é que Deus perdoará Judá têm sua contrapartida na igreja, que é
os pecados do povo de maneira nova e de- o corpo de Cristo e chama todos os povos
cisiva (cf Hb 10.1-7). para Cristo.
Os dois trechos seguintes afirmam,
primeiro, que a nova aliança será eterna 32.1-15 Jeremias compra um campo
(35-37), e segundo, que em consequência O cenário é novamente o reinado de Ze-
disso a cidade de Jerusalém será recons- dequias. Judá está sitiado, e Jeremias, pre-
truída (38-40). so. As profecias de esperança continuarão
Nota adicional sobre a interpretação em contraste com esse pano de fundo. Parte
da nova aliança. O sentido claro da pro- desse pano de fundo está relacionado à re-
fecia em 31.31-34 a relaciona com as cusa de Zedequias em ouvir a palavra de
nações históricas de Israel e Judá. Ela se Deus para ele. Aqui essa palavra é repetida
refere, em primeiro lugar, ao retomo dos pelos lábios do próprio Zedequias - tão
exilados da Babilônia. Isso fica claro pela familiar ela lhe era (3-5; cf 21.3-7).
referência à reconstrução da cidade nos A mensagem do juízo agora se toma
v. 38-40. Os cp. 30-31 também tendem mero prelúdio para uma nova palavra de
nessa direção. A profecia da nova aliança, esperança, ou melhor, um sinal: a saber, a
portanto, cumpre-se primeiramente quan- compra de um campo. Não se sabe o que
do Deus traz de volta os exilados em 539 pode ter causado o desejo de Hananeel
a.c. e nos anos seguintes. de vender o campo a Jeremias. Talvez ele
Entretanto, a profecia sugere mais do fosse idoso, não tivesse filhos, e estivesse
que isso. A inclusão de "Israel", que havia pedindo a Jeremias para manter aquele pe-
deixado de existir como nação nos tempos daço de terra em família (8). Não se pode
de Jeremias, sugere que se busque o cum- afirmar se Jeremias pagou ou não um preço
primento de algo bem mais profundo do maior do que o esperado. O procedimen-
que um simples retomo físico à pátría. A to descrito era presumivelmente rotineiro
antiga aliança será enfim cumprida de uma para"a época. Seu caráter público reveste-
maneira nova por um povo que é capaz de se aqui de nova importância, pois a venda
participar dela pela ajuda de Deus. também será um sinal (14,15).
l1li
. . JEREMIAS 32 1052
.l1li

o sentido da transação é que Judá vol- juízo se transforma em palavra de salvação.


tará à vida normal em seu devido tempo Embora o povo esteja sendo expulso, ele
(15). O sinal é impactante: a propriedade retomará, não apenas para a sua terra,
de um campo sugerindo a propriedade de mas para uma aliança (38), nada menos
toda a terra. É ainda mais impactante se do que a nova aliança (31.31-34), à qual
contrastado com o cenário do cerco e da ele será fiel e que não terá fim (39-41).
provável perda de tudo, sem mencionar As palavras porei meu temor no seu co-
do próprio campo que Jeremias acaba- ração retomam a promessa da nova alian-
ra de comprar. Por meio desse sinal, as ça: Na mente, lhes imprimirei as minhas
profecias que insistiram no fato de que as leis (31.33), no sentido de que o próprio
atividades normais em Judá chegariam a Senhor se compromete a tomar uma nova
um fim súbito são efetivamente revertidas iniciativa para que isso aconteça. Esse é
(cp. 16). o milagre que "não é difícil demais" para
o Senhor.
32. 16-44 Acaso há alguma coisa Os versículos finais (42-44) voltam ao
difícil demais para o Senhor? campo de Jeremias. Sim, campos serão
A excentricidade de se comprar um cam- novamente adquiridos em Judá. A compra
po em meio a um cerco leva a uma oração aparentemente tola de Jeremias não é algo
por parte de Jeremias. Ele começa com a sem sentido, mas repleto de promessa
afirmação: "nada é difícil demais para ti" e esperança.
(NVI, 17; coisa alguma te é demasiada-
mente maravilhosa, ARA). Ele desenvolve 33. 1-13 A voz de júbilo e de alegria
essa ideia, exaltando o poder de Deus na O capítulo final do chamado Livro da Con-
criação (17), no juízo (18,19), na salva- solação, assim como os cp. 30 e 32, con-
ção do povo de Israel, na saída do Egito e tém palavras de juízo respondidas por pa-
no fato de ter lhes dado uma terra (20-22; lavras de salvação. A palavra do Senhor a
cf Dt 26.8), e, finalmente, na punição de- Jeremias sobre seu poder na criação (2; cf
les por seus pecados (23). A oração é, na 10.12) contrasta com a situação do pro-
verdade, uma pergunta: Pode esse sinal feta, ainda preso (cf 32.2), numa cidade
fazer sentido? sitiada. A revelação das coisas grandes
O Senhor, ao responder a Jeremias e ocultas (3) retoma a ideia de que nada
(26-44), faz a seguinte pergunta: por aca- é demasiadamente maravilhoso para o
so haveria alguma coisa demasiadamente Senhor (32.17) e resulta na promessa da
maravilhosa para ele (27)? Ele começa salvação (cf Is 48.6 sobre uma ideia si-
repetindo palavras conhecidas sobre o milar). Palavras sobre o juízo são relem-
juízo. Os babilônios destruirão a cidade bradas (4,5) para que conduzam de modo
(28,29) devido ao persistente pecado de inesperado a palavras de promessa (6-9).
Israel e Judá, centrados em sua idolatria A transição do julgamento para a promes-
(30-35; cf 7.18,30-32; 19.13). Essas pa- sa é abrupta. A sequência em si mostra
lavras, entretanto, meramente introduzem como Deus age; ele traz salvação e bên-
a palavra de salvação que segue. O sen- ção do mais sombrio desespero.
tido, aqui, é que não há nada mais difícil Padrões similares podem ser encontra-
que trazer salvação a partir da destruição. dos nos v. 10,11,12,13. O v. 10 ecoa o tre-
Isso, entretanto, é exatamente o que ele cho de 4.23-26, mas é correspondido por
planeja fazer. um retrato da vida (v. 11; contrasta tam-
A promessa tem início no v. 36. A longa bém com 7.34; 16.9). A desolação abrirá
ameaça de "espada, fome e peste" (14.12) caminho para a paz e segurança por toda a
bate à porta. Agora, entretanto, a palavra do terra de Israel (os lugares mencionados no
1053 JEREMIAS 34 - :


v. 13 abrangem o comprimento e a largura como objetivo a salvação do mundo todo
de Judá e Benjamim e, na verdade, até ul- (Gn 12.3) e que seriam finalmente cum-
trapassam a fronteira norte de Judá). pridas nesses termos.

33.14-26 Uma aliança eterna


34.1-36.32 Resistência à
A última parte do capítulo desenvolve a mensagem de Jeremias
ideia da promessa de um novo reino da-
vídico, feita em 23.5,6, a qual é citada 34.1-22 Perdão para os escravos
aqui (15,16). A linguagem desse trecho, A perspectiva retoma ao tempo do cer-
e das palavras que seguem, relembram co, com outra palavra de Jeremias para
a primeira promessa a Davi (2Sm 7.12- Zedequias (1-5). A mensagem de 21.3-7 e
16; cf lRs 2.4). Aquela promessa pare- 32.3-5 continua inalterada em sua essência.
cia ter falhado, uma vez que a histórica Uma adição feita aqui (4,5) permite que se
dinastia de Davi encontrara seu fim, tenha alguma esperança de um abrandamen-
como Jeremias disse que aconteceria (cf to da sentença para o rei, um ponto em que a
22.30). Agora ela é reafirmada (17). O outra declaração não tinha sido muito pre-
mesmo se dá com a promessa de Deus em cisa sobre seu destino pessoal. O significa-
relação ao sacerdócio (18). Os sacerdotes do era de que ele não morreria na batalha, e
tinham um papel indispensável na aliança que seria pranteado de maneira apropriada
mosaica (Êx 28-29) e, na verdade, eles (cf 22.18 para o destino de Jeoaquim, mas
tinham sua própria aliança com o Senhor v. também 52.11). A iminência da queda da
(Nm 25.12,13; lSm 2.30,35). cidade é indicada por 6,7; de acordo com
O restante do capítulo afirma a per- esses versículos, apenas duas outras cida-
manência da renovada aliança nos termos des, além de Jerusalém, continuaram a re-
mais fortes possíveis (19-22; 23-26). Ao sistir aos invasores. A maior parte de Judá
restaurar o seu povo, Deus estará man- já havia sucumbido.
tendo suas antigas promessas, até mesmo O incidente relatado a seguir, relacio-
a promessa feita a Abraão de que seus nado à alforria dos escravos, toma-se
descendentes constituiriam uma nação uma ocasião para um novo oráculo contra
(26; cf Gn 12.2). Deus assim o faria para Zedequias. O incidente em si mesmo dá
provar que estavam errados os que diziam uma interessante ideia da vida de Judá na-
que ele havia rejeitado seu povo (24). quele período em que agonizava. A escravi-
A promessa de um reino permanente dão era uma instituição permitida em Israel,
contrasta de forma estranha com o ser- sob condições claras e definidas. Essas
mão de 7.1-15, no qual Jeremias tinha condições, referidas no v. 14, estão expli-
deixado bastante claro que o povo não cadas em Êxodo 21.2-11, Levítico 25.39-
poderia tomar por certas as instituições e 55; Deuteronômio 15.12-18. Conforme
a nacionalidade. A diferença se toma pos- originalmente tencionada, a escravidão não
sível pela nova aliança. O reino previsto era uma instituição desumana. Ela permi-
no cp. 33 não é outro senão o da nova tia que aqueles que houvessem caído em
aliança, interpretado pelo NT da maneira desgraça, talvez por safra insuficiente ou
que já mencionamos acima. Os termos, é dívidas, pudessem recuperar sua indepen-
verdade, foram extraídos da antiga alian- dência. Isso requeria uma interpretação al-
ça, com seu rei e sacerdotes. Isso, entre- truísta por parte daqueles que estavam em
tanto, deve ser visto simplesmente como melhores condições, sendo que, na verda-
um meio para a garantia de que Deus, ao de, geralmente ocorriam abusos.
final, se manteria totalmente fiel às suas No calor do cerco, Zedequias procla-
promessas que originariamente tinham mou a libertação dos escravos, a qual foi
JEREMIAS 35 1054

aceita por seus senhores (9,10). Para o o iminente perigo dos babilônios. O perigo
rei, que tinha dado sinais de hesitação e descrito no v. 11 é uma referência ao ata-
fraqueza durante o cerco, esta pode ter que dos babilônios em 605 a.c.
sido uma tentativa de reparar o mal que Jeremias usa os recabitas como exem-
havia feito, antes que fosse tarde demais. plo de fidelidade, um modo de contrastar
Presume-se, entretanto, que o decreto cau- com a infidelidade de Judá como um todo.
sou furor, e o resultado foi que os senhores Muito do que é conhecido dos recabitas
tomaram de volta os escravos alforriados está contido no presente capítulo. Seu an-
(11). O ato foi um tanto irracional à luz tepassado, Jonadabe, tinha auxiliado o rei
da situação de que tudo estava para ser Jeú, mais de dois séculos antes, em seu
perdido. Contudo, esse fato talvez seja zelo de dar cabo da adoração a Baal em
prova da cegueira humana, e um exemplo Israel, o Reino do Norte (2Rs.IO.15-23).
extremo da recusa em aceitar a vontade Não se sabe se esse Recabe é o mesmo de
e, consequentemente, o castigo de Deus, 1Crônicas 2.55; entretanto, a família era
atitude que Jeremias tanto havia criticado um clã de Judá (cf lCr 2.3) ligado aos an-
(cf 21.9). tigos nômades queneus, que tinham sido
Esse ato tão duro e desprovido de amistosos com Israel durante sua peregri-
compaixão se toma a ocasião para uma nação no deserto (1Sm 15.6). Jonadabe
futura promessa de juízo. A ideia de li- aparentemente criou uma série de regras
berdade (apregoada aos escravos e depois para seu clã, as quais tinham elementos do
retirada) é usada de forma irônica para o nomadismo e impunham a abstinência a
tipo de liberdade que Deus dará ao povo a todos os tipos de bebidas fortes (6,7). Não
ser punido (17). Esta é, de fato, a natureza fica muito claro se a casa dos recabitas era
de toda declaração de liberdade unilateral composta estritamente de descendentes
em relação a Deus, uma ilusão que leva de Jonadabe, ou se era uma comunidade
apenas à ruína. mais aberta, talvez até mesmo uma espécie
O ritual descrito nos v. 18-20 envolvia de associação.
o sacrifício de um animal como um sinal O que está em questão não é a origem
solene da aliança. O caminhar entre as e constituição dos recabitas, mas a sua
duas partes do animal sacrificado pode ter fidelidade às próprias leis. A passagem
significado uma forma de amaldiçoar-se a não toma posição alguma a respeito de
si mesmo, isto é: "Que tal coisa (a saber, se essas regras serem boas ou más em si
a morte) aconteça comigo se eu não cum- mesmas; o sentido é a fidelidade dos re-
prir a aliança" (cf Gn 15.17; lRs 19.2). cabitas a elas. Jeremias recebe a ordem
Tal ritual pode ter acompanhado a aliança de realizar um sinal profético com isso,
ordenada por Zedequias com respeito aos colocando vinho diante deles e os convi-
escravos. O Senhor agora simplesmente dando a beber, sabendo que eles estavam
diz: Que assim seja. comprometidos com a abstinência (2). A
O capítulo termina com o familiar execução do sinal ocorreu numa das salas
cenário de morte para a cidade e a terra laterais do templo e pode ter sido teste-
(21,22). munhada por importantes oficiais do tem-
plo. Uma vez mais Jeremias foi ao âmago
35. 1-19 Os recabitas fiéis do poder da nação.
Os dois capítulos seguintes voltam ao tem- Os recabitas recusam, conforme es-
po do reinado de Jeoaquim. O desenvol- perado (6), e Jeremias explica o signi-
vimento da narrativa aqui, entretanto, é ficado do sinal (12-16). A repreensão a
temático, não cronológico. Os temas são a Judá assume uma forma familiar (15; cf
resistência à aliança feita com o Senhor e 25.4-6), mas ganha nova força a partir
111
1055 JEREMIAS 36 .111
l1li.

do contraste entre seu comportamento e o mesmo comprometimento e coragem de


o dos recabitas. A repreensão é seguida seu mestre, sempre que necessário. Uma
de uma palavra de juízo (17; cf 11.11). vez mais, a família de Safã é envolvida
Uma guinada final promete vida longa em obter uma audiência para as palavras
aos recabitas (18,19) em termos que per- de Jeremias (10; cf. 26.24).
tencem particularmente à promessa do rei As consequências imediatas da leitura
davídico (19b; cf lRs 2.4). Isto aponta são de fato notáveis, pois causaram impac-
o contraste, de forma propositada e com to em alguns dos principais oficiais, mais
certa ironia, ao próprio rei, uma vez que a uma vez por iniciativa de um membro da
continuação da dinastia é precisamente o família de Safã. A redação por si só pode
que está sob ameaça nesse momento pela ter acrescentado algo ao efeito, ou talvez
falha dos reis. a mera junção de tantas palavras tão dife-
rentes (15-18).
36.1-32 Jeoaquim rejeita Os oficiais, consternados, leram o rolo
as palavras de Jeremias pela terceira vez, agora diante do próprio
O reinado de Jeoaquim tinha testemunha- rei. A reação do rei e a de seus aliados mais
do o principal conflito entre Jeremias e as próximos contrasta nitidamente com a dos
autoridades sobre sua pregação no templo oficiais que lhe trouxeram o rolo. Seu in-
(cp. 26). O presente capítulo é uma espécie sensível desdém pelas palavras do profeta
de continuação daquele incidente, e retoma é enfatizado como algo quase inacreditá-
o tema da rejeição das palavras do profeta vel (24; cf v. 16). A queima do rolo hor-
por parte dos oficiais. Jeremias, na verdade, rorizou a Elnatã, Delaias e Gemarias, que
fica evidentemente impedido de frequentar viram nisso uma blasfêmia. Já para o rei,
a área do templo (5), sem dúvida devido isso pode indicar mais do que mera indife-
a um acordo entre as forças que queriam rença, e ser uma tentativa supersticiosa de
executá-lo e aqueles que lhe deram apoio. destruir o poder das palavras.
A proibição era muito séria, pois impedia A ação do rei provoca um contras-
Jeremias de circular não somente entre te ainda maior com a atitude de seu pai,
os oficiais do templo, mas também entre o rei Josias, quando o Livro da Lei fora
a grande multidão que o frequentava nas descoberto no templo e lido para ele (2Rs
grandes ocasiões. 22.8-13). O papel do próprio Safã, inci-
O Senhor, portanto, ordenou que Jere- dentalmente, também é mencionado na-
mias escrevesse todas as palavras que tinha quela ocasião.
falado até então em um rolo (2), de modo É inútil a tentativa de destruir a pala-
que pudessem ser lidas na ausência do vra de Deus. Jeremias recebe a ordem de
profeta. (Parece que Jeremias se lembrava fazer um novo rolo (28), e segue a mensa-
de todas elas, como mostra a surpresa dos gem especial sobre o juízo que Jeoaquim
oficiais [17,18] diante do fato de que elas causara devido à sua impiedade. É uma
fossem escritas, bem como pela resposta negação expressa da promessa de uma di-
de Baruque.) nastia que Davi passara a Salomão (30b;
O humilde papel de Baruque como cf lRs 2.4) e uma repetição da profecia
escriba do profeta o coloca agora como de que ele não teria um sepultamento
representante do profeta perante uma apropriado (30c; cf 22.19).
grande multidão em um dia festivo, o O novo rolo contém palavras que não
que deve ter parecido uma repetição do estavam no primeiro (32). Isso, presumi-
grande desafio de Jeremias no sermão do velmente, reflete o contínuo ministério de
templo (6-10; 26.2-6; cf 7.1-15). O papel Jeremias e é evidência do início de uma
secundário de Baruque, portanto, requeria compilação de escritos de suas profecias.
JEREMIAS 37 1056

37.1-39.18 Os últimos lo, resistindo a sua palavra até o fim, mes-


dias de Judá mo em meio à cidade agonizante. O profeta
tira vantagem do alívio proporcionado pela
37.1-10 Ajuda do Egito? retirada dos babilônios para ir a Anatote,
A ação avança rapidamente em direção sua terra natal (12), possivelmente para
à queda final de Judá e Jerusalém peran- uma reunião em que se discutiria o patri-
te os babilônios. O cenário de agora em mônio da família. A compra do campo de
diante se refere à última parte do reina- Hananeel por Jeremias (32.1-15) pode ter
do de Zedequias, o rei que subira ao tro- sido um resultado posterior dessa tentativa
no pelas mãos dos próprios babilônios de viagem aqui descrita.
(2Rs 24.17,18). A questão era se o rei Ele é preso já nos portões da cidade sob
ouviria o anúncio de Jeremias de que a a acusação de ser um desertor que passou
cidade teria de cair e se amenizaria o im- para o lado dos babilônios (13). O pretexto
pacto do desastre por meio da sua rendi- para a acusação é sua pregação a favor da
ção; a mensagem mencionada no v. 2 foi rendição como a única maneira de sobre-
primeiramente introduzida em 21.1-10. viver (21.9); mas a acusação de traição é
Zedequias não deve imaginar que haverá forjada. Sua negação, é mentira (14), re-
uma ajuda efetiva do Egito. mete à expressão "juram falso" com a qual
Apesar de sua consistente recusa em ele havia descrito toda a condição em que
considerar o impacto total da mensagem se encontrava o povo (cf 5.2). Sua prisão,
de Jeremias, o rei não obstante procura o como está subentendido, é resultado da re-
profeta, esperando desesperadamente al- jeição de sua mensagem por parte do povo,
gum apoio. Ele incita Jeremias a exercitar e não de algum indício de traição de sua
seu papel profético de intercessor (3), o parte. Mesmo assim, ele é preso.
qual, evidentemente, ele fora proibido de Ainda assim, Zedequias continua a
exercer (7.16) única e tão-somente devido buscar em Jeremias uma palavra de con-
à dureza do coração de Judá. O desejo de forto. Ao recusar, o profeta apela para o
Zedequias pela palavra de Deus é falso, fato de que a falsidade dos profetas que a
visto que ele só aceitará o resultado que ele se opunham agora com certeza estava
ele próprio prescreveu. evidente (19). O rei, ainda, assim, não lhe
No tempo em questão, o cerco babilô- dá ouvidos. O que ele faz, no entanto, é
nico à cidade foi temporariamente inter- amenizar as duras condições da prisão do
rompido pelo avanço das forças do Egito, profeta (20,21).
concentradas em recuperar algum terreno
de seu antigo inimigo (4,5). É uma ocasião 38.1-13 Jeremias é atirado
propícia para falsas esperanças nas forças em uma cisterna
egípcias, contra as quais Jeremias já aler- Assim como Judá se encontra em gran-
tara. Assim, a esperança de Zedequias pa- de perigo diante da Babilônia, também
rece ter alguma base. Entretanto, a situa- Jeremias corre perigo diante de seus inimi-
ção fundamental não mudara (6-10). O gos pessoais. Certos oficiais do palácio se
único fator decisivo nisso é a intenção do opunham fortemente a ele, e ele está muito
Senhor de punir a Judá. Falsas esperanças vulnerável diante das trocas de aliança e
são facilmente encorajadas por aparên- dos jogos de poder de pessoas influentes
cias superficiais. (cf 21.1 sobre Pasur, filho de Malquias,
em um papel mais neutro). Os oficiais ci-
37.11-21 A prisão de Jeremias tam o já tão conhecido conteúdo da prega-
A prisão de Jeremias é a última tentativa ção de Jeremias nos últimos dias de Judá
desesperada de seus inimigos de silenciá- (2,3; cf 21.7-10), e pedem sua pena de
li
1057 JEREMIAS 39 ••
li.

morte (cf 26.11). A acusação é de traição, algumas das complexas tensões no interior
como a do incidente no cp. 37. Zedequias da comunidade judaica desse período).
parece impotente frente a seus oficiais (5). Essa palavra possui um elemento pessoal
Sua tentativa de permanecer no poder, por que afeta a família do rei; o mesmo se dá,
conseguinte, ao recusar a mensagem de entretanto, com a outra alternativa, pois, se
Jeremias, é de uma ironia patética, uma ele se recusar, tanto ele quanto sua família
vez que ele não possui o verdadeiro poder sofrerão (21-23). A perda do harém real era
para governar. uma humilhação extraordinária na guerra.
A morte de Jeremias na cisterna lama- Zedequias não respondeu a essa pala-
centa era certa. Coube a um estrangeiro vra, embora suas ações nos últimos dias
do serviço real, o etíope (cuxita) Ebede- sugiram grande agonia mental. A sequên-
Meleque (lit. "servo do rei"), provocar o cia no cp. 39 mostra o quão fatal foi sua
rei a agir, ao apelar a ele enquanto este se hesitação em face do que ele sabia ser di-
encontrava assentado diante dos portões reito, e que de fato se comprovou.
da cidade, sem dúvida ouvindo e julgan- Jeremias teme retomar à casa de Jônatas
do os casos que lhe eram trazidos (7-10). (cf 37.15, o retomo à cisterna estava fora
A casa real está evidentemente dividida; de questão, uma vez que o rei tinha impe-
o próprio rei, além de não ser firme em dido seu assassinato ali), mas o rei permite
suas decisões, é facilmente infiuenciável. que ele volte ao átrio da guarda, onde per-
Jeremias é novamente levado ao átrio da manece até a queda da cidade (28).
guarda, onde se encontra em relativa segu-
rança (11-13). A reação de seus inimigos é 39. 1-18 A queda de Jerusalém
deixada à imaginação. O desastre de que Jeremias falara repeti-
damente é agora brevemente relatado, em-
38.14-28 A última audiência bora a campanha em si mesma tenha dura-
com Zedequias do algum tempo e recebido ao menos um
O último encontro de Zedequias com Jere- revés (1,2; cf 37.5). As datas em questão
mias insinua sigilo (a terceira entrada na são janeiro de 588 a.C. e julho de 587 a.c.
Casa do SENHOR, v. 14, não é mencionada (v. também 52.4; 2Rs 25.1). O falso poder
em nenhum outro lugar e é, presumivel- de Zedequias e sua corte é brutalmente
mente, um lugar silencioso, talvez um exposto quando os babilônios entram na
local privativo do rei). Esse fato não so- cidade, ocupando com um simbolismo de-
mente reflete a insegurança do rei em seu liberado uma posição que representava a
próprio palácio, mas também a compre- autoridade real na cidade (3). O rei-fan-
ensível irritação de Jeremias com aquele toche foge humilhado, mas não encontra
que pergunta o tempo todo, mas nunca escapatória nem alívio para as punições
aceita a única resposta verdadeira (15). O das quais Jeremias havia falado (5-7; cf
profeta, como o próprio rei percebe, sem 38.17-23).
dúvida nenhuma também está sofrendo Há sofrimento no cumprimento das
com as perpétuas aflições e incertezas de profecias de Jeremias a Zedequias. Na ver-
sua própria vida (16). dade, Zedequias veria "o rei da Babilônia
A palavra dada por Jeremias nessa face a face" (32.4; 34.3) apenas para ter
ocasião traz algum conforto a Zedequias, seus olhos cruelmente vazados (7). Sua
não por alterar o conteúdo constante da própria morte não ocorreria no calor da
mensagem, mas ao lhe assegurar sua so- guerra mas, supostamente, depois, em um
brevivência pessoal, caso ele se renda aos tempo de paz e com os funerais devidos
babilônios, e até mesmo proteção con- (34.5), mas haveria pouquíssima paz para
tra seus inimigos (17-20; o v. 19 revela a sua alma.
JEREMIAS 40 1058

A prisão do antigo rei, somada à execu- da de Jeremias. Entretanto, na providên-


ção de seus filhos (herdeiros em potencial cia de Deus, a bondade do rei em relação
do trono) e de seus oficiais, é parte da re- a Jeremias não só possibilitou que ele per-
pugnante necessidade política de afirmação manecesse entre os que foram deixados
do governo babilônico. É ao mesmo tempo para trás, em Judá, mas também que conti-
o final da história de pequenas hostilidades nuasse seu ministério entre eles (11-14).
por que passara o exercício do poder em Surge agora uma palavra especial do
Judá. De fato tinha havido falsidade no co- Senhor em relação a Ebede-Meleque, o ofi-
ração de um povo da aliança que não pude- cial que havia salvado Jeremias da morte
ra jamais realmente reivindicar o mandato quando este foi atirado na cisterna (15-18;
de Deus para governar, e nem tampouco cf 38.7-13). Ele deveria ser poupado na-
pôde, ao cabo, desfrutar de sua proteção. quele terrível dia e, mais do que isso, pos-
A pregação de Jeremias desde o início to a salvo de seus inimigos pessoais, que
se dirigira não apenas à liderança, mas ao eram os mesmos de Jeremias, sem sombra
povo em geral. O povo comum não tinha de dúvida (ou os que dentre eles tivessem
sido isento da culpa de sua própria infide- sobrevivido).
lidade a Deus, mesmo que os líderes carre- A história dos últimos dias e da queda
gassem uma responsabilidade bem maior. de Jerusalém testifica não apenas a ira do
Assim, na punição, todo o povo é afetado Senhor em relação ao seu povo pecador,
(8,9). Somos deixados outra vez a con- mas também a bondade de sua providên-
jecturar quanto às tensões que possam ter cia. Em meio a esses confusos aconteci-
existido no interior da comunidade judaica mentos, ele preserva a vida de seu profeta
no exílio, entre aqueles que desertaram em e de outros servos fiéis. E até a severa pu-
um estágio inicial (respeitando as palavras nição pretende ser um bem no final.
de Jeremias!) e aqueles que permaneceram
na cidade até o final (9). Embora alguns
40.1-45.5 O remanescente
dentre os mais pobres tenham sido deixa- do povo foge para o Egito
dos para trás (10), Judájá não existia como
entidade política. 40.1-12 GedaJias como governador
A ordem específica de Nabucodonosor A presente passagem expande o breve
em relação a Jeremias talvez gere surpre- relato em 39.13,14 ao dar mais detalhes
sa (11,12). Não é necessário presumir, no sobre a entrega de Jeremias a Gedalias.
entanto, que o profeta tenha tido algum O comandante babilônico, Nebuzaradã,
tipo de comunicação com as autoridades soltou o profeta da prisão que este dividia
babilônicas antes de sua captura. Sua com seus compatriotas (1), demonstran-
mensagem nunca precisou de colabora- do conhecimento de sua mensagem e tal-
ção; a intenção declarada de Deus dificil- vez respeitando sua posição como profeta
mente poderia requerer tal coisa. Antes, que conhecia a mente de seu Deus (2,3).
os conquistadores estavam dispostos a Jeremias tem a oportunidade de escolher
ser favoráveis a qualquer um em Judá entre ir para a Babilônia ou permanecer
que eles achassem que tivesse apoiado em Judá. Pode parecer que a coerência
sua causa. A defesa que Jeremias fez da exija a sua ida, uma vez que sempre pre-
rendição deve ter chegado aos ouvidos de gou a rendição à Babilônia. Entretanto,
Nabucodonosor por meio dos judeus que uma vez que o governo da Babilônia rei-
já se encontravam no exílio. Sua percep- na agora em Judá, mesmo aqueles que ali
ção do que Jeremias estava fazendo (ou, permanecerem estavam, de certo modo,
na verdade, do que ele mesmo estava fa- "na Babilônia". Quando Jeremias vai até
zendo) evidentemente não era a mesma Gedalias, o judeu escolhido como gover-
nador por Nabucodonosor, ele o faz por
1059 JEREMIAS 40 _-

de Gedalias estão convencidos da trama


-.-
ordem de Nebuzaradã, mostrando assim contra ele, o próprio governador, ingenua-
sua submissão às autoridades babilônicas. mente, prefere não acreditar (14). Joanã,
a próprio Gedalias é da família de Safã, filho de Careá, que aparentemente havia
que já apoiara Jeremias (26.24). a servi- se firmado como figura de destaque entre
ço de inteligência da Babilônia deve ter os combatentes, quer tomar ações mais de-
concluído que ele também era simpático à cisivas para preservar a comunidade. Tais
causa do conquistador. ações, no final, gerarão um conflito entre
a governo de Gedalias (significativa- ele e Jeremias.
mente centralizado em Mispa, cidade do a traiçoeiro assassinato de Gedalias
interior, e não na rebelde Jerusalém) causa vem prontamente em seguida, outro golpe
um breve avivamento no destino de Judá. contra o sábio conselho dos que esperariam
A questão para aqueles que permaneceram por uma ação divina nestes tempos peno-
é bastante clara: juntar-se a Gedalias impli- sos. A dimensão do crime, que se estendera
ca submissão à Babilônia, de acordo com ao assassinato de soldados babilônios, su-
a mensagem de Deus a Jeremias (9,10). gere uma tentativa determinada de frustrar
Dessa maneira, a obediência a Deus dará a política babilônica na área (2,3).
início ao retomo à vida frutífera e normal A consequência imediata do assassi-
na terra (10). As notícias de que a questão nato (4-9) é interessante por testemunhar
se tomara crítica em Judá espalhou-se de- a contínua utilização do local do templo
pressa; os judeus começavam a compreen- para adoração, na verdade, peregrinação,
der, nos lugares mais distantes, o fato de mesmo após a destruição do templo em si.
que o desastre tinha sido apenas o começo a sétimo mês (cf v. 1) era aquele em que
de alguma coisa nova e promissora. Eles acontecia a Festa dos Tabernáculos, e seria
também começam a retomar à terra natal, a ocasião da peregrinação. Evidentemente,
em estranho antegozo da restauração final havia aqueles que, no território do anti-
do povo, prenunciada por Jeremias (29.14). go Reino do Norte, permaneciam leais à
E a terra produz fruto, de novo um sinal da exigência da lei de se apresentar diante
bênção da aliança (10-12). a resto recorda de Deus nas grandes festas (Êx 23.14-
4.27 e 5.12. a Senhor ainda pode trabalhar 17), talvez desde a reforma do rei Josias
com essa pequena comunidade. (2Rs 22-23).
Ismael acrescenta a seus crimes o as-
40.13-41.18 O assassinato sassinato desses peregrinos, e pela mais
de Gedalias cínica das trapaças, presumivelmente para
Entretanto, ainda não é chegada a hora tentar manter seu crime em segredo. Ao
do final feliz. Alguns homens do exérci- poupar alguns em troca de provisões (8),
to de Gedalias ouviram rumores de que talvez sua intenção fosse apenas a de adiar
Baalis, rei dos amonitas, procurava matar a morte deles. Uma vez terminados seus
Gedalias. A oposição de Baalis a Gedalias atos brutais, ele foge com os cativos para
pode ter tido origem na sua hostilidade à se encontrar com os filhos de Amom (10).
Babilônia (cf 27.3), de modo que Gedalias a resultado da aventura de Ismael é
pôde vir a se tomar uma vítima da ten- miserável e humilhante. Ele e alguns dos
dência de se resistir à Babilônia, mesmo seus escapam com vida de Joanã, tendo
depois de Nabucodonosor ter visitado a que desistir de seus prisioneiros de guer-
Jerusalém. Ismael, judeu da família real, ra (11-15). Contudo, sua interferência na
agente de Baalis (41.1), pode ter deseja- vida da comunidade que havia começado
do fomentar uma futura rebelião contra a florescer sob o governo de Gedalias teve
a Babilônia. Enquanto alguns soldados um efeito decisivo e desastroso: Mispa é
11
;11 JEREMIAS 42 1060

abandonada, e com ela a política de sub- do juízo, em vez de prenunciá-lo. No mo-


missão à Babilônia. Essa mudança no mento, a intenção do Senhor em relação a
modo de pensar do povo foi ocasionada, seu povo é abençoá-lo, de acordo com suas
sem dúvida, pela sua exposição ao terrível promessas dos cp. 30-33.
perigo pelo qual passaram, quando estavam Essa profecia é muito semelhante às
sob a proteção dos babilônios. Além disso, anteriores, porém espera por uma resposta.
temiam represálias da própria Babilônia O povo deve estar disposto a permanecer
(18). Entretanto, em princípio, o povo se na terra e ter fé que Deus pode e será tão
defronta com a mesma questão enfrenta- bom quanto sua palavra. Se eles não per-
da antes da queda de Jerusalém, a saber, a manecerem, então haverá, como sempre,
falsa promessa do Egito como proteção na um futuro sombrio, uma alternativa à bên-
fuga da Babilônia. Os pensamentos e ações ção que Deus daria. Confiar no Egito ago-
do povo se voltam mais uma vez naquela ra é uma ofensa tão grande a Deus quanto
direção (16-18). sempre foi (24.8), pois isso representaria
incredulidade. Se o povo optar por ir, des-
42.1-21 "Não entreis no Egito" cobrirá, mais uma vez, que o caminho que
Quando Joanã e o povo se voltam para parece seguro, segundo sua própria per-
Jeremias em busca de uma palavra do cepção, é, na verdade, o caminho da morte
Senhor, nessa nova e inusitada situação (Pv 16.25; Lc 9.23,24). A ironia disso fica
(1-3), é significativo o fato de que o povo muito clara no v. 16a; se permanecerem,
já estava a caminho do Egito. Jeremias, eles estão seguros em relação à espada da
contudo, ouviu seu pedido e prometeu Babilônia, mas, se partirem, cairão por
orar ao Senhor a respeito da questão. essa mesma espada. O Egito se mostrará
Para ele também a situação era nova. Ele um aliado ineficaz (cf 22.20,22). O juízo
tinha sido usado para alertar os reis so- que caiu sobre Judá será estendido direta-
bre a vinda da Babilônia. Essa vinda era mente ao seu coração, como continuação
agora coisa do passado; ele precisava de daquela mesma punição (17,18; cf 7.20;
uma nova palavra do Senhor a respeito 14.12; 24.9; 25.18).
desse restante do povo. Sua disposição Jeremias conclui a palavra do Senhor
em orar (4) sugere que a antiga proibição dirigindo-se ao resto (remanescente) de
(7.16) estava agora suspensa. A declara- Judá (19). O tom de seu discurso alerta
ção e prontidão do povo em ouvi-lo é elo- que não haverá, apesar de tudo, salvação
quente - mas será que ela se mostrará por meio desse remanescente. Ao perce-
bem fundamentada? ber que o coração deles está no Egito ape-
A palavra do Senhor não vem de for- sar de suas declarações (42.5,6; NVI mrg.
ma imediata, Jeremias não pode exigi-la "vocês cometeram um erro no coração" é
(7). Quando vem, é expressa em termos preferível no v. 20a), ele proclama que o
bem familiares (10; cf 1.10; 18.7-10) e juízo com certeza virá sobre eles. É im-
representa uma adaptação da mensagem portante perceber, todavia, que embora
que Jeremias pregara no passado. Ela ain- Jeremias tenha previsto a escolha que fi-
da envolve submissão à Babilônia e traz zeram, a escolha em si é real e a verdadei-
consigo a segurança de que o povo precisa ra causa do juízo.
contra possíveis represálias (11; cf 41.18).
As palavras testificam também da tristeza 43.1-13 Ao Egito
do Senhor sobre a destruição de Judá e Até este ponto, a verdade das palavras de
Jerusalém (10). Essa não é uma nova nota Jeremias dificilmente poderia ter demons-
na profecia (cf 9.1-3). No entanto, esta trada de forma mais vívida do que pela re-
agora se volta para o passado para falar cente destruição do templo. Mais uma vez,
no entanto, ele é acusado de haver profe-
1061

44.1-14 O apelo final


JEREMIAS 44 . .
.

rido falsidade em relação à ida ao Egito. A impressão passada pelo v. 1 é a de uma


O conhecimento da verdade nunca foi fácil comunidade judaica estabelecida de ma-
para Judá, e o povo já fora enganado antes neira dispersa; os migrantes recentes de-
por aqueles que proclamavam conhecê-la, vem ter se juntado aos grupos já existentes
mas que falavam falsamente embasados que ali viviam. Eles são os destinatários da
em sua própria autoridade (23.16-18). palavra de Deus, mais uma vez, por meio
Joanã e os outros não recusaram aberta- de Jeremias, que relembra primeiramente a
mente a vontade de Deus; ao contrário, recente destruição de Judá como resultado
eles alegaram conhecê-la muito bem. Isso, da longa desobediência a Deus. O pecado
é claro, não é uma questão de autoridade, em questão, como sempre, é a idolatria, a
mas de enganar-se a si mesmo. A tentação básica rejeição de Deus, e os termos por
de considerar verdadeira a nossa interpre- ele utilizados são bem familiares (3-6; cf
tação da vontade de Deus, especialmente 1.16; 11.17). A recordação pretende servir
se esta corresponde àquilo em que deses- como lição. O Senhor é tão bom quanto a
peradamente queremos acreditar, é real e sua própria palavra.
atual. O fiel Baruque se toma o bode ex- O objetivo, porém, era fazer com que
piatório da nova liderança (3). o remanescente no Egito se voltasse para
Segue a fuga para o Egito (4-7). Ela é Deus (7-10). Eles continuam, evidente-
apresentada como uma anulação daquilo mente, a adorar a outros deuses (8). A pa-
que Deus generosamente havia começado lavra a eles dirigida, portanto, baseia-se
a fazer ao restaurar o povo e a prosperidade em sua atual rebelião contra Deus, não no
da terra (40.12). Trata-se de um abandono comportamento passado tanto deles quanto
voluntário e decisivo da terra, envolvendo de seus ancestrais - embora esse também
o que restara da casa real (6; cf 41.10) e não deixe de ser marcado pela rebeldia (9).
até mesmo Jeremias, o mais relutante dos A idolatria continua, agora possivelmente
migrantes, que tanto falara contra a procu- com deuses egípcios (8). Entretanto, o pe-
ra de refúgio no Egito. cado é o mesmo, quer persista nas práticas
Mesmo no Egito, todavia, Deus tem antigas, quer assuma novas formas. É certo
palavras para o povo por meio de Jeremias. que a punição virá, e com aquele elemento
Isso é em si um tributo a sua graça e pa- de humilhação que lhe é imposto quando
ciência (e Deus ainda apelará a eles por as nações do mundo olham para o destino
arrependimento; 44.7). No momento, en- do povo do Senhor (8b; cf 24.9; 25.18).
tretanto, a palavra é de juízo. Mesmo no Isso, entretanto, é a última coisa que Deus
Egito, a punição de Deus a seu povo de- deseja, e ele então apela para que o povo
sobediente, pelas mãos de Nabucodonosor, evite o juízo (8a).
continuará. Ao tentar salvar-se a si mes- Segue imediatamente a palavra de juí-
mos da Babilônia, eles se colocaram dire- zo (11-14). Isso reflete a determinação do
tamente no caminho de seus batalhões. O povo em não dar ouvidos a esse novo ape-
sinal profético de Jeremias aqui tem como lo de Deus. O ponto não é somente mos-
objetivo mostrar a inevitável vitória da trar que Deus sabe a resposta de antemão,
Babilônia sobre o Egito (o que realmente mas que o juízo de Deus, quando vem, é
veio a acontecer em 568-567 a.C; cf Ez sempre uma consequência da rejeição in-
29.17-20). As palavras de juízo ao Egito tencional de Deus, e não de algo predeter-
são parecidas às anteriormente proferi- minado ou a que não se possa resistir. O
das contra Judá (11; cf 15.2). A vitória de povo no Egito continua se mostrando me-
Nabucodonosor será uma demonstração da recedor da ira de Deus. A recorrência do
debilidade da religião egípcia (13). termo resto (restantes) nesses versículos
JEREMIAS 44 1062

(7,12,14) pretende insistir no fato de que o povo de salvar-se a si mesmo. E como tal
propósito de Deus em continuar com o seu se mostraria terrivel (29,30).
povo, no futuro, não será alcançado pelo
grupo no Egito. Isso é coerente com a pre- 45.1-5 Uma palavra para Baruque
gação de Jeremias nos dias de Zedequias O oráculo dado a Baruque veio no ano em
(24.8-10). Contudo, é digno de nota o fato que ele ajudou Jeremias a preparar um rolo
de que mesmo a esse grupo foi dada uma para ser lido perante o rei Jeoaquim (36.1).
oportunidade, no fim, de fazer reparações e Parece ter vindo entre a redação e a leitu-
responder a Deus em verdade. ra do rolo (1) e se relaciona a um protesto
de Baruque a respeito do enorme peso de
44.15-30 "Não te sua tarefa (3). Não tínhamos ouvido nada a
obedeceremos a ti" esse respeito até esse ponto, e isso foge, é
A adoração à Rainha dos Céus (para os claro, da sequência cronológica. Baruque,
cananeus Astarote e para os babilônios entretanto, deve ter compartilhado de algu-
Ishtar) continua sendo praticada, embora ma forma da dor e frustração de Jeremias.
condenada por Jeremias desde os dias de A palavra de Deus para ele aqui tem ele-
Jeoaquim (7.18). Tanto no passado quan- mentos comuns às palavras dirigidas a
to agora famílias inteiras participam des- Jeremias, seguindo algumas de suas "con-
sa prática (15,19). Persistindo na falha fissões" (12.5,6; 15.19-21) e contém tanto
de enxergar a verdade de sua situação, o repreensão quanto encorajamento. O con-
povo agora usa o mesmo falso argumento texto da palavra é o iminente juízo de Deus
do passado, ou seja, de que tinham pros- sobre toda a terra de Judá (4; cf. 1.l0).
perado quando adoraram a Rainha dos Frente a tão grande nivelamento, toda pre-
Céus (17b,18). Jeremias destaca que foi tensão humana será vista em sua miserável
justamente tal adoração que pôs fim àque- inutilidade. Baruque é, portanto, advertido
les dias de prosperidade (20-23). O povo a deixar de lado as pequenas ambições,
se recusa a enxergá-lo, estando tomado de mas é consolado, sendo assegurado de que
uma obstinação perversa. sobreviveria à devastação geral (5). Uma
O último oráculo de Jeremias ao povo palavra de encorajamento muito semelhan-
no Egito ironicamente os entrega ao des- te foi dada a um outro fiel colaborador de
tino que escolheram para si mesmos. Sua Jeremias, Ebede-Meleque (39.16-18).
rejeição de Deus irá ao encontro daquilo
que na realidade eles mesmo têm deseja- 46.1-51.64 Profecias
do: Deus os abandonará (26). E manterá contra as nações
sua intenção de puni-los com a mesma Como profeta para as nações (1.5), Jere-
determinação com a qual ele abençoará mias dirige palavras específicas para algu-
aqueles que enfrentaram o cativeiro ba- mas das nações vizinhas de Judá, Oráculos
bilônico e que retomarão a ele de todo o contra outras nações eram uma caracte-
coração (27, contraste com 24.6; cf tam- rística comum nos livros proféticos (cf
bém 1.12). A palavra de Deus tem de ser Is 13-23; Am 1-2; Ez 25-32). Os orá-
cumprida, nenhuma outra tem autoridade culos de Jeremias em geral defendem a
alguma (28). tese de que a vinda da Babilônia é o juízo
As alusões a um pequeno remanescente de Deus para todas as nações - mas, no fi-
de judeus que retomarão do Egito (14,28) nal, a própria Babilônia será julgada, e Judá
têm a intenção de mostrar que não era por será salvo de sua opressão. Esse ponto foi
estes que Deus havia levado adiante seus defendido pela primeira vez em 25.15-19,
planos para o povo. Toda a fuga do Egito mas o é agora de forma mais ampla, como
estava sob sua ira, por ser uma tentativa do a palavra final da profecia.
1063 JEREMIAS 48 • •

11.
46.1-28 Contra o Egito A promessa de restauração do Egito é
É natural que o Egito tenha um lugar de singular, a não ser por um paralelo (cf Is
honra, uma vez que tem sido um símbolo 19.23-25). Deus não é apenas um Deus de
da falsa esperança e da falsa confiança em juízo, mas também de salvação, no final
toda a profecia. O primeiro oráculo (3-12) das contas para o mundo inteiro.
evidentemente diz respeito à derrota do O oráculo para o Egito é seguido de
Egito diante da Babilônia, em Carquemis, uma palavra de conforto para o povo dis-
no Eufrates, em 605 a.c. (2). Ele mostra o perso de Judá (27,28). No juízo de Deus
exército egípcio se preparando para a bata- sobre as nações também haverá espaço
lha (3,4), deixando o Egito em marcha or- para a restauração delas. Essas palavras
gulhosa, pensando que sua força é irresistí- repetem as de 30.10,11, na longa seção de
vel como a cheia do Nilo (7,8). Entretanto, profecias da restauração de Judá.
o tom é de zombaria, pois esse exército tão
bem preparado é logo retratado em terror 47.1-7 Contra os filisteus
(5; cf 6.25; a linguagem certa vez usada A época do grande poderio do povo filisteu
contra Judá agora é utilizada para o Egito). aconteceu antes da ascensão da monarquia
O exército do Nilo, com suas fileiras en- davídica, muitos séculos antes de Jeremias.
grossadas por mercenários da África e da A ocasião de que se trata aqui, entretanto,
Grécia (9), é derrotado no Eufrates (6). No é o ataque do Egito contra eles, possivel-
duelo de titãs, o resultado é a ação de Deus, mente durante a campanha na qual o Egito
seu dia de vingança, sendo que a derrota enfrentou a Babilônia, em Carquemis (1).
do Egito é uma espécie de sacrifício (10). Gaza, localizada na planície costeira, es-
Em sua intenção de conquistar e crescer taria na rota do exército do norte em sua
não achará cura para suas feridas nem mes- direção sul. O grande levante de nações ao
mo pela utilização dos recursos naturais do tempo de Jeremias teve terríveis consequên-
solo estrangeiro (11; cf 8.22). cias para muitos naquela região. O Egito,
O segundo oráculo (14-26) alerta sobre embora incapaz de derrotar a Babilônia,
o ataque da Babilônia no próprio territó- vingou-se dos filisteus (2; cf 46.7,8). A
rio egípcio (cf 44.29,30; cf 2.16 e 44.1 imagem é de extremo sofrimento (3-7).
sobre os locais aqui citados). No tumulto O desastre ocorrido em Gaza, cuja
da derrota, os mercenários decidem fugir causa e contexto histórico são bastante es-
para casa (16). O que temos no v. 17 é uma pecíficos, é colocado no contexto da lon-
brincadeira com o nome do faraó, e alude ga história dos filisteus e visto como uma
ao erro de cálculo na campanha contra a punição por toda a sua perversidade. Seu
Babilônia. O destino do Egito, inclusive destino é o juízo divino, seu tempo havia
o próprio exílio, lembra-nos do destino chegado (4a,7). Deus assim afirma sua so-
de Judá (19; cf 2.15; 4.7; 9.12). Tabor e berania sobre os eventos da história, mes-
Carmelo são respectivamente símbolos mo quando parecem explicáveis em termos
de altitude e fertilidade sem precedentes, exclusivamente humanos e políticos.
aplicados aqui à superioridade da anfitriã
Babilônia (18). Tendo fugido os seus mer- 48.1-47 Contra Moabe
cenários, o Egito se volta para uma fuga Moabe, um dos inimigos históricos de Israel
infame, impotente diante do ataque como (Jz 3.12-14; 2Rs 3.4-27), fora um dos alia-
um bosque perante gafanhotos (21-24). dos de Zedequias contra Nabucodonosor
O juízo se aplica tanto aos deuses quan- (27.3), mas que, na verdade, fornece-
to aos reis egípcios, e também àqueles ra tropas à Babilônia contra Jeoaquim
que neles confiam - como os refugiados (2Rs 24.2). A ocasião do presente orácu-
judeus (25). lo provavelmente seja sua própria derrota
JEREMIAS 49 1064

para Nabucodonosor, em 582 a.C., depois especial contra Israel (26-30). A derrocada
de uma revolta. do orgulho certamente é grande (28). Em
Os nomes dos lugares, frequentemente sua agonia, o próprio profeta lamenta por
encontrados nesse capítulo, são de locais ela, como fizera uma vez por seu próprio
situados em toda a extensão de Moabe, a povo (31,32; cf. 9.10; cf também v. 33
leste do mar Morto. Alguns deles haviam com 16.9). Moabe, como Judá certa vez,
sido dados pelo Senhor à tribo de Rúben, tomou-se objeto de escárnio para todos
no tempo da conquista da terra de Canaã que para ela olham (39; cf 24.9).
por Josué (Nm 32.3,37,38; Js 13.15-19). O oráculo final (40-47) repete alguns
Isso não é apresentado de maneira explíci- dos temas principais. A águia é Nabu-
ta como razão para o juízo de Moabe, ain- codonosor (40). A imagem do juízo ines-
da que a consumação da guerra santa por capável (44) lembra o estilo de argumenta-
Canaã possa estar implícita aqui. ção usado em Amós 5.19. A desonra final
A abertura do oráculo (1-6) retrata a an- é o exílio (46). Os termos dos v. 45,46 su-
gústia de um povo que está sofrendo com a gerem que um antigo oráculo, primeira-
invasão, assim como Judá uma vez sofrera mente registrado na narrativa da conquista
com a invasão por parte da Babilônia (cf de Hesbom pelo rei Seom (Nm 21.28,29),
4.19-31). Segue uma descrição irônica dos está para ser cumprido.
frutos da falsa confiança, a saber, a humi- Após todo o discurso sobre o juízo, a
lhação do exílio e a triunfal remoção do nota final é de salvação (47; cf 46.26b). A
ídolo da nação derrotada, que no caso de linguagem é a mesma usada repetidamen-
Moabe era Quemos, a quem Salomão ado- te para a restauração de Judá no chamado
rara certa vez em sua apostasia do Senhor Livro da Consolação (29.14; 30.3 etc.). O
(1Rs 11.7,33). Tal demonstração de impo- Senhor do juízo é também o Senhor da gra-
tência do deus derrotado era lugar-comum ça. E sua graça não será aplicada exclusi-
nas guerras antigas. O destruidor (8) é su- vamente a um único povo, mas até mesmo
postamente a Babilônia. A maldição do v. àqueles que têm sido seus inimigos.
10 toma a linguagem da guerra santa, que
requeria a destruição da raiz e dos ramos 49.1-39 Profecias mais curtas
(cf lSm 15.3,11). A destruição de Moabe 49.1-6 Contra Amom. Amom, antigo ini-
pela Babilônia é o próprio juízo de Deus migo de Israel (Jz 11.4-33) assim como
sobre ela. Moabe, também fornecera tropas a Nabu-
Moabe é primeiramente descrito como codonosor (2Rs 24.2), mas subsequen-
perdido em sua própria complacência temente participara da aliança contra ele
(na figura de um vinho maturado que su- (27.3). O pecado de Amom está intima-
bitamente é despejado, v. 11,12), sendo mente ligado à sua antiga inimizade contra
destituída de seu orgulho (14-17). Signi- Israel, a qual envolve a posse, em nome
ficativamente o Senhor aqui se refere a de seu deus Mileom (também chamado
si mesmo como Rei (como também em Moloque), do território de Israel (1,2). A
46.18), para ressaltar que somente ele dis- tomada da posse da terra de Israel era uma
põe sobre os assuntos humanos, e não o rei ofensa ao Deus que a tinha dado ao seu
de Moabe, nem mesmo Nabucodonosor, povo e cujo nome estava a ela ligado.
que não passa de um de seus servos (25.9). Aqui também é retratada a miséria de
Seguem outras figuras da devastação (18; um povo atacado e exilado, novamente
cf 14.1,2, de Judá), novamente evocando mostrando a humilhação de seu deus (3).
geograficamente toda a terra (19-25). O (Hesbom, como uma cidade de fronteira,
orgulho de Moabe é destacado como seu pode ter pertencido a Moabe e a Amom em
principal pecado, manifestado de maneira diferentes épocas; v. 3, cf 48.2.) São usa-
1065 JEREMIAS 50 ~
1111

dos os típicos temas de Jeremias, isto é, a de Damasco, tomou-se uma expressão fixa
falsa confiança de Amom em seu próprio (cf Am 1.4).
poder e riqueza, e o terror que o juízo trará 49.28-33 Contra Quedar e Hazor.
(4,5). Entretanto, Amom também, assim Esse oráculo diz respeito às tribos árabes
como o Egito e Moabe (46.26b; 48.47), nômades que viviam a leste de Israel, des-
desfrutará da restauração. cendentes dos antigos midianitas e amale-
49.7-22 Contra Edom. A amargura quitas (Jz 6.3; cf Gn 25.13). Os temas do
causada pela hostilidade de Edom para terror e da devastação estão presentes no
com Israel, tanto anteriormente quanto oráculo (cf 6.25; 9.11). A vulnerabilidade
na época de Jeremias, tomara-se pior por dos nômades em suas terras não fortifica-
meio dos seus laços de parentesco, sendo das é utilizada como uma espécie de ilus-
Edom descendente de Jacó, irmão de Esaú tração para a falsa confiança.
(8; cf Gn 25.29,30). A ajuda que Edom 49.35-39 Contra Elão. Elão era um
dera à Babilônia contra Judá ocasionou o importante centro de poder a leste da
oráculo contra eles em abadias. Babilônia, mas que fora dominado por esta
Edom, localizado ao sul do mar Morto, potência na época de Nabucodonosor. A
evidentemente era famoso por sua sabedo- referência aos quatro ventos (36) é uma
ria. (Elifaz, o "consolador" de Jó, era de maneira de falar do poder de Deus em toda
Temã, uma cidade em Edom; Jó 4.1.) Sua a terra (Ez 37.9; Dn 8.8; Zc 6.1-8). Mesmo
sabedoria, no entanto, não pôde prevenir a ascendência da Babilônia sobre Elão,
o desastre iminente, e este não poupará permitindo-lhe que fizesse o trabalho de
nada; tampouco podem suas cavernas e Deus no juízo sobre Judá e outras nações,
esconderijos nas montanhas prover segu- está sob o controle de Deus. Elão, entretan-
rança (lO). Os fracos entre eles terão de ser to, será restaurado nos dias que estão por
entregues à misericórdia do Senhor (11). vir (39; cf 48.47).
O cálice (12) é o cálice da ira que todos
têm de beber (25.15), e o v. 12 destaca 50.1-51.64 Contra a Babilônia
retoricamente que Edom merece bebê-lo. Os oráculos contra as nações terminam
Bozra (13) era a capital de Edom na época com uma longa série de oráculos contra
de Jeremias (um lugar diferente da Bozra a Babilônia, o "destruidor" que paira so-
moabita; 48.24). bre todo o livro. Sua enorme importância
Não há onde se esconder do juízo de no livro como instrumento da ira divina
Deus, mesmo numa terra de esconderijos contra seu povo infiel é agora igualada
(14-16; cf Ob 1-4). Algumas das figuras pela tremenda quantidade de palavras de
de destruição já foram usadas com re- juízo dirigidas contra ela. É essencial para
ferência aJudá (18,19; cf 10.6; 23.14). a lógica da profecia que o destruidor deva
A águia sem dúvida é mais uma vez no final ser destruído. Seu poder de subju-
Nabucodonosor (cf 48.40). gar outras nações não é a palavra final do
49.23-27 Contra Damasco. Damasco Senhor na história. Nós já sabemos que ele
representa a Síria, outro inimigo antigo de novamente trará salvação e bênçãos a seu
Israel; os Estados menores de Hamate e próprio povo (cp. 30-33). Em sua justiça,
Arpade, também ao norte de Israel, são in- todavia, o tempo da própria Babilônia deve
cluídos. Sua queda e terror são expressados chegar (cf também 25.11,12,17-26).
em termos da pregação de Jeremias agora 50.2-17 O inimigo do Norte. Marduque
já bastante familiares. Esses reinos flores- era o principal deus da Babilônia, o herói de
ceram bem antes da época de Jeremias, e sua criação épica. Bel, também conhecido
ele talvez esteja utilizando um antigo orá- de Isaías 46.1, embora fosse originariamen-
culo. A critica de Ben-Hadade, antigo rei te uma divindade à parte, aparentemente
JEREMIAS 50 1066

acabou se identificando com ele. A con- em 722 a.C., e então o da Babilônia. Tudo
denação da Babilônia começa muito apro- se deu sob o controle de Deus, e a história
priadamente por seus deuses. Embora Judá terminou com a renovação de seu povo.
tenha sido exilada para a terra onde exer- 50.18-32 Israel e Judá. A restauração
ciam seu pretenso poder, mesmo assim é novamente retratada como a restauração
eles não provaram sua superioridade sobre total do Israel histórico (20). A imagem
o Senhor; pelo contrário, sua fragilidade move-se do literal para o domínio figura-
agora se tomará visível (cf. 48.7). do, em virtude do fato de que o povo do
A Babilônia certa vez já fora o inimigo norte de Israel mal existia como um povo
do Norte no que diz respeito aJudá (1.14; organizado. A restauração dos exilados,
6.1). Agora as coisas trocam de lugar (3,9, embora seja em si uma salvação real, é
v. também 51.27,28). Não há poder que também uma sombra daquilo que Deus
detenha direitos absolutos para governar a fará por toda a humanidade, no solo de
terra, somente o Senhor o detém. Judá, por meio do judeu que morreria por
Com a queda da Babilônia, Judá está li- todos na cruz.
vre para se voltar a seu Deus em penitência, A batalha contra a Babilônia é retratada
numa volta que é em princípio a restaura- de maneira vívida (21-24), e a guerra é a
ção total do Israel histórico. Eles buscarão guerra santa do Senhor, na qual ele mesmo
a Sião, não como lugar da falsa confiança se prepara para a luta, tendo a destruição
que fora certa vez (7.1-15), mas como o algo da natureza de um sacrifício (25-28).
lugar onde o próprio Deus se revelara em A nota da vingança soa novamente, dessa
verdade (cf. Is 2.2-4), e lá eles renovarão a vez estando diretamente relacionada ao
antiga aliança (5; cf. 31.31-34). Agora se templo (28). A destruição deste era o su-
fala do pecado e da punição de Judá como premo ato de sacrilégio e blasfêmia, ainda
algo do passado (6,7; cf. Is 40.1,2). A opor- que isso também fosse o próprio decreto
tunidade de deixar o cativeiro tem também de juízo de Deus contra seu povo. Era um
a força de uma ordem (8). desafio ao governo de Deus na terra, o ato
O pecado capital da Babilônia é seu de uma nação arrogante (29-32). Seu juízo
escárnio pelo povo de Deus e sua terra sobre a Babilônia consequentemente nasce
(11). Enquanto o Senhor sofria com o jul- da necessidade de mostrar às nações que
gamento que trouxera, a Babilônia regozi- ele é, apesar de tudo, o Senhor de todas as
java-se na pilhagem. Por essa razão, a ação coisas. A vitória será simbolizada, no devi-
de Deus contra a Babilônia caracteriza-se do tempo, pela reconstrução do templo.
especialmente como um ato de vingança 50.33-46 "Seu Redentor é forte". A
(15). Com a transformação do orgulho em história chega ao fim. A princípio, o Senhor
vergonha, com a vinda da desolação onde apresentou sua causa contra o seu próprio
antes só havia opulência e vida agitada, os povo, Judá, condenando-o por seus peca-
temas comuns ao juízo agora recaem so- dos; agora, ele traz o juízo a favor do seu
bre aquele que de modo tão desprezível os povo. Ao fazê-lo, ele é apresentado como
trouxera (12-15). Não apenas Judá, mas o seu Redentor (34). Esse termo é extraído
também as outras nações que sofreram, da antiga lei consuetudinária de Israel, de
podem agora retomar livremente para as acordo com a qual uma viúva ou um órfão
suas terras (16). podia ser adotado por um outro membro
A primeira parte do oráculo termina da família (v. Rt 4). Ao utilizar ele mesmo
(17) com uma reflexão sobre dois muito esse termo, o Senhor enfatiza a ligação na-
parecidos episódios de exílio do povo de tural que tem com seu povo. Uma redenção
Israel: primeiramente o de Israel nas mãos desse tipo é pessoal e custosa, atraindo o
dos assírios, que atingiu o Reino do Norte redimido ao relacionamento mais próximo
11
1067 JEREMIAS 51 - : .

possível com o seu redentor. A ideia é parte surgiram como o novo poder no mundo an-
do contexto do AT para redimir o mundo do tigo. Ciro, cuja chegada foi anunciada por
pecado por intermédio de Jesus Cristo. Isaías (Is 45.1), era o rei dos medos que
Ao julgar seu povo, o Senhor é fiel às chegara ao poder na Pérsia, e preparara o
promessas de restauração feitas a ele nos caminho para o Império Persa. A sucessão
cp. 30-33. de impérios aparentemente indestrutíveis
Isso implica a queda da Babilônia, cuja na história bíblica é em si um testemunho
descrição continua aqui. Muitos dos moti- da fragilidade da força humana, e da for-
vos que anteriormente foram aplicados ao ça da "fraqueza" de Deus (cf Dn 2.31-45;
juízo de Judá são aplicados agora contra a 1Co 1.25).
Babilônia, com certo tipo de ironia, a sa- As palavras de Jeremias contra a re-
ber, espada (35-37; cf 14.12), seca (38; cf ligião idólatra - estabelecendo um con-
14.1), despovoamento (39,40; cf 4.29), um traste entre o verdadeiro poder criativo
inimigo vindo do Norte (41-43; cf 6.22-24 do Senhor e a fraqueza dos falsos deuses
- uma virtual repetição). Os versículos (15-19) - , que outrora foram proferidas a
finais (44-46) repetem 49.19-21 (contra Judá (l0.12-16), agora são dirigidas à pró-
Edom) , agora colocando a Babilônia no pria Babilônia.
lugar da caça. Essa queda é parte do plano Finalmente nesta seção, a época do
de Deus para o mundo todo (46). poder da Babilônia como instrumento nas
51.1-10 Sião é vingada. O fato de o mãos do Deus é relembrada em palavras
Senhor se voltar contra seu antigo agente, comissionadas por Deus (20-23), somente
a Babilônia, mostra que, apesar de tudo, para demonstrar que ela chegara ao fim, ao
ele não rejeitara para sempre o povo da ser lida em conjunto com o v. 24.
aliança; o fato de que ele não abandonara 51.25-32 As nações contra a Babilô-
o seu povo (lit. eles "não enviuvaram do nia. O ataque de muitas nações à Babilônia
seu Deus"; 5) é o outro lado da sua re- é uma irônica reviravolta, pois a Babilônia,
denção (50.34). A Babilônia fizera a terra a seu tempo, havia subjugado a muitas de-
sofrer a ira de Deus (7; cf 25.15); ela está las, além do próprio Judá, também por or-
tão enferma que não pode mais ser cura- dem de Deus (27.4-8). Os medos são agora
da (9; contraste 30.17, de Israel/Judá). O retratados como líderes de um grande nú-
Senhor julgou por Sião (colocando-se ao mero de nações (28), do mesmo modo que
lado do povo e da terra, v. 10; as pala- a Babilônia uma vez havia dominado suas
vras aqui são proferidas por aqueles que próprias nações-satélites (cf 2Rs 24.2; cf
haviam retomado). Isto é, ele salvou o seu também a inversão de 46.23 no v. 27). A
povo e os colocou no caminho correto; a Babilônia é retratada em sua última e de-
linguagem prenuncia o que o apóstolo sesperada agonia, exausta e abatida, suas
Paulo chamaria de "justificação pela fé" grandes defesas, sejam seus vaus ou seus
- a salvação pela graça de Deus daqueles muros, inúteis diante da força e impiedosa
que não a merecem. estratégia do inimigo (29-32).
51.11-24 Vingança contra a Babilô- 51.33-44 O triunfo de Judá. As pala-
nia. A vingança agora se toma um tema vras do povo de Judá, que sofrera sob o po-
predominante, trazida à tona novamen- der da Babilônia (34,35), lembram o salmo
te pelo fato de a Babilônia ter insultado 137, com sua terrível oração contra o opres-
a Deus quando destruiu o templo (11; cf sor. Entretanto, elas são seguidas de uma
50.28). Aquela que teve um período de palavra do Senhor, novamente prometendo
abundância e poder tem agora de encarar a queda do reino, porque ele havia abra-
o juízo (13; cf 25.12). Os medos (11), com çado a causa deles (36; cf 50.34). Aqui,
a queda do império de Nabucodonosor, como nas seções anteriores, é feita uma
111
. . JEREMIAS 51 1068
111
111

referência aos abundantes recursos hídricos Nota. "Babilônia" no NT. O juízo do


da cidade (36), devido à sua localização no Senhor sobre a Babilônia tem um significa-
Eufrates, na região da Mesopotâmia, "a do mais abrangente que a mera libertação
terra entre rios". A confiança nos recursos do antigo Judá. Antes, ele figura aqui como
naturais e suas vantagens não podiam pro- um símbolo de hostilidade ao governo de
tegê-la do juízo de Deus. Deus no mundo. A linguagem usada com
"Sesaque" (41, ARe) é um codinome relação à "Babilônia" em Apocalipse 17-
para a Babilônia (cf 25.26). Bel (44) é um 18 deve muito aos oráculos do AT dirigidos
dos deuses da nação (cf Is 46.1), que ainda contra ela. A Babilônia em Apocalipse tem
não havia, a despeito das aparências ante- o propósito de, em primeiro lugar, evocar
riores, triunfado sobre o Senhor. a perseguição por parte de Roma à igreja
51.45-58 "Saí do meio dela". A últi- primitiva, mas se estende para se aplicar
ma parte do oráculo contra a Babilônia é a todo o ódio dirigido contra Deus e seu
uma ordem aos exilados para que fujam, povo. É contra a "Babilônia", entendida
agora que é chegada a sua oportunidade como toda manifestação de perversidade e
(45,46). A libertação não era, afinal, um opressão, que os cristãos são advertidos a
ato irresistível de Deus, mas exigia um permanecer firmes, com a certeza de que
ato de fé, de obediência e coragem por Deus, em seu devido tempo, derrubará
parte do povo, que poderia ser desenco- toda oposição.
rajado por frequentes boatos sobre a que-
da da cidade, levantando esperanças que 52.1-34 A queda de Jerusalém
eram logo destruídas. (Um apelo similar O último capítulo do livro é muito simi-
encontra-se em Is 55.6.) A confiança é lar ao texto de 2Reis 24.18-25.30, em
restabelecida em resposta a tais temores que esse relato parece se encaixar mais
(47,48). naturalmente. Jeremias, na verdade, já fa-
A punição da Babilônia é proporcional lara sobre a queda da cidade (em 39.18)
a seus crimes contra o povo de Deus (49). e também dos acontecimentos posterio-
A dor do povo é relembrada, com espe- res em Judá (cp. 40-44). Esses eventos
cial foco na destruição do templo (51), são relatados brevemente no livro de Reis
apenas para ser respondida por uma pro- (2Rs 25.2-26), em uma passagem que é
messa de que até os deuses da Babilônia omitida no presente capítulo, uma vez que
seriam derrubados. Toda a miséria que a a informação já fora dada. O presente re-
Babilônia espalhou será totalmente retri- lato provavelmente foi colocado no final
buída (56,57). de nosso livro como uma conclusão apro-
51.59-64 Um sinal profético. Os orá- priada dos oráculos já registrados.
culos contra a Babilônia terminam com Há algumas diferenças pouco significa-
uma mensagem e sinal datados do quar- tivas em relação ao relato do livro de Reis.
to ano do reinado de Zedequias, quando A menção à execução dos oficiais do rei e à
o rei visitou a Babilônia, possivelmente prisão perpétua deste (11,12) é encontrada
para explicar sua participação na rebelião somente aqui, o que não surpreende, haja
(27.3). Seraías, o irmão de Baruque (cf vista o interesse do livro por Zedequias.
32.12), acompanhou o rei nessa ocasião Há uma diferença em relação à data da vin-
e foi comissionado por Jeremias a anun- da de Nabucodonosor a Jerusalém (décimo
ciar o fim da Babilônia com um sinal. As dia de acordo com o v. 12, cf sétimo dia em
palavras no rolo podem ter contido alguns 2Rs 25.8), presumivelmente devido a erro
ou até mesmo todos os oráculos dos cp. do escriba de um dos textos. Divergências
50-51 contra a Babilônia, os quais não similares são encontradas nos v. 22 e 25
são datados. (cf 2Rs 25.1 7,19). O número de exilados
li
1069 JEREMIAS 52 . -
111.

nos v. 28-30 é bem menor do que o regis- A esperança oferecida pelo livro de
trado em 2Rs 24.14 e 16, possivelmente Jeremias é bem mais profunda. É uma
pelo fato de o número incluir apenas os esperança no Senhor da história, que traz
adultos do sexo masculino. juízo sobre o pecado, mas também prome-
O incidente final, a libertação do rei te salvação e uma nova aliança (31.31- 34)
Jeoaquim da prisão, com a morte de Nabu- e cumpre tudo isso em seu próprio filho,
codonosor, às vezes tem sido interpretado Jesus Cristo (Hb 10.11-18).
como sinal do fim eminente do exílio. Isso
é possível, mas não é, em si, um firme in-
dicador de esperança. Gordon McConville
LAMENTAÇÕES

INTRODUÇÃO
Data e autoria Um exemplo de lamento é o salmo 74, o
Desde o tempo do Antigo Testamento qual (assim como Lamentações) foi cla-
Grego, ou Septuaginta (LXX; escrita um sé- ramente motivado pelo exílio. O livro de
culo ou mais antes de Cristo), o livro de Lamentações tem, num ou noutro lugar,
Lamentações tem sido atribuído a Jeremias. todas as características aqui mencionadas.
As versões inglesas seguem a LXX e colo- O livro também tem certas feições esti-
cam o livro logo depois do livro proféti- lísticas particulares. Sua métrica (isto é, a
co de Jeremias. Este com certeza compôs forma do seus versos) é a do quinah, típica
lamentos, como sabemos por meio de seu do lamento. Cada poema (exceto o cp. 5)
livro profético (a saber, Jr 11.18-20; 20.7- segue a forma de um acróstico, isto é, cada
13). Há também algumas similaridades de versículo começa com uma letra diferen-
expressão entre os dois livros. (cf Jr 14.17 te, em ordem alfabética. Como o alfabeto
e Lm 3.48-51). Além disso, somos infor- hebraico tem 22 letras, muitos acrósticos
mados por 2Crônicas 35.25 que Jeremias do AT têm 22 versículos ou linhas (e.g.,
compôs um lamento para o rei Josias. Lm 1; 2; 4; SI 34). O cp. 3 traz uma pe-
Embora essa evidência não seja con- quena variação disso, uma vez que cada
clusiva, os dois livros por certo formam letra do alfabeto é representada por três
uma unidade sob vários aspectos impor- versículos consecutivos, resultando em 66
tantes. Jeremias se ocupa dos fatos ocor- versículos no total.
ridos em Judá até a queda de Jerusalém, O cuidadoso trabalho artistico aplicado
e mesmo depois da queda da cidade e do à forma de acróstico parece contrastar com
templo diante de Nabucodonosor, o rei o intenso sentimento expressado pelos
da Babilônia, em 586 a.c.; a composição poemas. Entretanto, toda poesia é de certa
de Lamentações também parece ter ocor- forma artística, o que não necessariamente
rido logo depois desses terríveis eventos, sufoca a verdadeira emoção. Antes, o cui-
em virtude de suas referências ao exílio, dado do poeta pode ser visto como um ato
à queda dos reis e à destruição do templo de devoção ao Senhor. É um tributo à mo-
(l.3,10; 2.2-7). deração e à disciplina que, sem dúvida, são
necessárias para se abordar tal tema. E tem
Estrutura e forma o efeito adicional de sugerir o tratamento
Os cinco capítulos do livro são cinco poe- completo de um tema (e.g., no uso que faz
mas distintos. Estes seguem uma forma co- do alfabeto completo).
mumente conhecida como lamento (como
o fazem alguns dos salmos). Os lamentos Propósito
contêm expressões de protesto ou queixa a É difícil resumir o propósito de Lamenta-
respeito de infortúnios, bem como de con- ções. Teologicamente, aceita-se que o desas-
fissões e orações por livramento. Como os tre é um juízo justificado pelos pecados do
autores dos lamentos sabiam da fidelidade povo. Essa tese se baseia na antiga alian-
de Deus, eles frequentemente expressavam ça, a qual estabelece que a desobediência
sua crença de que no final ele os salvaria. e infidelidade do povo em relação a Deus
li
1071 LAMENTAÇOES . .
11
l1li

resultariam em "maldições" (Dt 28.15- juízo quanto do amor redentor de Deus.


68). Tais maldições contrastavam com as Essa interpretação deveria nos tomar mais
"bênçãos" que decorreriam da obediência cautelosos quanto à atitude de encontrar
e fidelidade (01 28.1-14). A pregação dos exemplos específicos do juízo de Deus
profetas sobre o juízo também se apoiara no sofrimento de nações ou indivíduos ao
sobre essa mesma base. Em certo sentido, nosso redor.
portanto, o livro de fato justifica a ação de
Deus e mostra que não foi devido à sua fra- o que aprender do livro de
queza perante outros deuses que o exílio Lamentações nos dias de hoje
ocorrera. Ao contrário, o triunfo dos inimi- Lamentações pode parecer um livro de
gos de Judá na verdade tinha sido causado aplicação particularmente difici1 aos olhos
pelo próprio Senhor. do leitor cristão de hoje, seja pelos even-
Contudo, o livro também mostra a tos específicos que o ocasionaram (eventos
imensa dificuldade que o povo teve em ocorridos sob a égide da "antiga aliança")
aceitar o terrível sofrimento que seguiu a ou simplesmente por falar tanto em juízo.
destruição de Jerusalém, com a morte de Como pode tal livro falar àqueles que co-
muitas pessoas e o exílio da maioria que nhecem a salvação em Jesus Cristo?
sobreviveu. Tal sofrimento, no entanto, não Há diversas respostas possíveis. Pri-
era mais fácil de ser aceito só porque se meiro, o livro pode falar para qualquer
sabia que era justo. Não era essa punição, pessoa, inclusive cristã, que se sinta só
apesar de tudo, cruel e excessiva (2.20- ou abandonada por Deus. Nesse aspecto
22)? Seria correto que Deus agisse como ele é bastante parecido com os salmos de
um inimigo de seu próprio povo (2.4,5)? "lamento". É bom expressar honestamente
Os poemas expressam livremente agonia e tais sentimentos e ter certeza da graça de
perplexidade, e é isso o que lhes confere Deus em meio a eles.
uma capacidade tranquilizadora em qual- Em segundo lugar, o livro de Lamenta-
quer situação em que pessoas possam se ções pode ajudar o leitor a se identificar
sentir angustiadas e abandonadas. com aqueles que estão passando por gran-
A coisa mais dramática sobre os poe- de adversidade. Num mundo em que de-
mas, entretanto, é que, em meio ao sofri- sastres, guerras e fome são trazidos à nossa
mento mais assustador, possa haver uma atenção o tempo todo pela mídia, é natu-
expressão de esperança em Deus (3.22- ral que perguntemos onde está Deus nisso
26), alguém que acima de tudo é um Deus tudo. Talvez nos espantemos ainda mais
de amor e compaixão. A colocação desses quando terríveis acontecimentos sobrevêm
versículos no coração do livro parece dizer a nossos irmãos e irmãs em Cristo. E não
que essa é a coisa mais importante a ser questionamos simplesmente o porquê; nos
dita sobre Deus. É, portanto, uma extraor- identificamos com a sua dor. O livro de
dinária declaração de fé em meio a uma Lamentações nos ajuda a expressar essa
grande aflição. Outras passagens também agonia, não apenas por nós mesmos, mas
refletem a crença de que o fim do sofri- também pelos outros.
mento virá (4.22). A disciplina que pudemos notar no pro-
O livro de Lamentações ainda vai além, cesso de composição do livro também pode
pois fala do sofrimento suportado por um nos ajudar. Ela sugere que a utilização do
em favor de muitos (cf 3.49-66). De modo livro também deve ser um ato disciplinado,
mais profundo, então, o sofrimento dos uma decisão a ser tomada com toda a se-
judeus no exílio prenunciou o sofrimen- riedade, para que possamos enfrentar pro-
to expiatório de Jesus Cristo por todos os blemas que de outra maneira seriam bem
povos - a maior demonstração tanto do dificeis de encarar. A palavra de Deus pode
LAMENTAÇÕES 1072

trabalhar dessa maneira, não somente en- são. Podem ser até mesmo um louvor, pelo
sinando nossa mente, mas nos fornecendo fato de nos dirigirmos ao Deus que é justo.
meios de expressar o que é muito profundo Sua justiça não resulta apenas em juízo,
para nós, e instruindo mente e coração du- mas também, e decididamente, em miseri-
rante esse processo. córdia. A leitura desse livro, portanto, deve
O elemento da confissão do pecado não ser feita à luz de nosso conhecimento de
é fácil de encaixar nesse padrão. O povo de Jesus Cristo, que com sua morte e ressur-
Judá sabia que o exílio era decorrente da reição revelou que Deus está redimindo
desobediência à aliança feita por seus an- seu mundo e um dia enxugará dos nossos
tepassados com Deus. Não podemos tratar olhos toda lágrima.
todo o sofrimento dessa mesma maneira.
Contudo, aqui também podemos nos iden- Leitura adicional
tificar com nossos ancestrais na fé, pelo (Veja a bibliografia no livro de Jeremias)
simples reconhecimento de que o pecado
humano - no qual cada um de nós tem HILLERS, D. R. Lamentations. AB.
parte - é a raiz do sofrimento do mundo. Doubleday, 1972.
O questionamento e o protesto, portanto, PROVAN, I. W. Lamentations. NCB.
podem ser ao mesmo tempo uma confis- Eerdmans/Marshall Pickering, 1991.

ESBOÇO
1.1-22 O sofrimento de Jerusalém
1.1-7 A perda da grandeza de Jerusalém
1.8-17 A ira do Senhor contra Jerusalém
1.18-22 Apelo ao Senhor

2.1-22 A ira do Senhor


2.1-10 "Qual inimigo"
2.11-19 Lágrimas como um ribeiro
2.20-22 Apelo a Deus

3.1-66 As misericórdias de Deus


3.1-21 "Cercou-me de um muro"
3.22-30 "As suas misericórdias não têm fim"
3.31-39 "Não aflige, nem entristece de bom grado"
3.40-48 "Voltemos para o Senhor"
3.49-66 "Remiste a minha vida"

4.1-22 Os horrores do cerco


4.1-10 Um povo desumanizado
4.11-22 "O castigo da tua maldade está consumado"

5.1-22 "lembra-te, Senhor"


1073 LAMENTAÇOE5 1

COMENTÁRIO caminhos de Sião (4) são aqueles da pere-


grinação para as grandes festas anuais (cf
1.1-22 O sofrimento "caminhos aplanados" em SI 84.5). Havia
de Jerusalém "religiosidade" abundante em Judá, mas
por ser uma religiosidade sem coração,
1.1-7 A perda da grandeza sem autenticidade, tinha se tomado odiosa
de Jerusalém a Deus (cf Is 1.11-17). Um dos efeitos do
A ideia central nesses versículos é que juízo de Deus sobre o povo tinha sido pôr
Jerusalém, uma vez favorecida pelo fim a essa falsa religiosidade.
Senhor, perdeu todos os sinais desse fa-
vor. A cidade era um símbolo do relacio- 1.8-17 A ira do Senhor
namento especial entre Deus e seu povo. contra Jerusalém
No contexto da alíança mosaica, Deus O fato de que o sofrimento de Jerusalém
havia feito uma promessa especial ao rei era resultado de seu pecado foi primei-
Davi de que ele e os seus descendentes ramente mostrado no v. 5, e é agora de-
reinariam em Jerusalém (2Sm 7.11-16; senvovido nesses versículos. Os termos
SI2). Davi tinha tomado grandes a cidade imundícia e repugnância (8,9) evocam a
e a nação (a palavra "grande", que no he- ideia de impureza ritual, aqui extendida
braico aparece duas vezes no v. 1, é tradu- à pecaminosidade que tivera o efeito de
zida para o português uma vez por grande afastar o povo de Deus. As imagens aqui
e outra por populosa); e Salomão a tinha sugerem a violência e a humilhação da in-
agraciado ainda mais com a construção do vasão inimiga (8) e da profanação do tem-
esplendoroso templo (lRs 5-8). Agora a plo (10). A miséria provocada pelo cerco
cidade se encontrava em ruínas. Onde an- e invasão tomou-se ainda pior com a falta
tes houvera vitória, agora havia somente de alimentos (11).
derrota; onde antes houvera prosperida- A voz no poema tinha até agora sido
de, agora havia desolação. O destino de a do poeta falando sobre Jerusalém, em-
Jerusalém em 586 a.C se tomou para sem- bora a própria cidade personificada tenha
pre um símbolo da insensatez do orgulho falado duas vezes (9,11). Agora, a cidade
e complacência humanas. aparece falando em causa própria (12-
A cidade é frequentemente personifi- 16). Seu apelo ao Senhor por misericórdia
cada como uma mulher no livro de La- (9,11) se transforma num apelo àqueles
mentações. A expressão filha de Sião (6) o que testemunham sua miséria, pois foi o
exemplifica claramente. (Sião é um outro Senhor que trouxe essa angústia sobre
nome para Jerusalém no livro de Lamen- ela. O dia do furor da sua ira é chama-
tações). A imagem feminina é explora- do em outro lugar de "o dia do SENHOR"
da no contraste poético entre a viúva e a (Am 5.18). A ideia subjacente é a da guer-
princesa (1). A ideia de seus amantes (2) ra santa, na qual o Senhor pelejou a favor
lembra a propensão de Judá a ser infiel de Israel contra seus inimigos (ver, e.g., Dt
ao Senhor, ao adorar deuses de outras na- 2.24,25). A presente passagem expressa o
ções e fazer alianças políticas com elas (cf choque pela ideia de que ele pudesse ter
Jr 3.1). Há nuanças da personificação femi- voltado sua ira contra seu próprio povo.
nina na imagem de um lamento feminino, Contudo, nem mesmo o seu povo poderia
que evoca fortemente o lamento do povo se sentir assim tão seguro ao ignorar os
em geral; daí a alusão às virgens (4) e aos preceitos da aliança; embora a tentação em
filhinhos (5b). fazê-lo esteja sempre presente.
O tema do exílio é mencionado pela Em meio a toda essa miséria não há nin-
primeira vez nesses versículos (3,5). Os guém que a console (16,17; cf v. 9). Essa é
LAMENTAÇÕES 1 1074

uma imagem profunda da desgraça, a qual apenas retirou sua destra (3; cf Êx 6.6;
revela o profundo desejo por um "messias" Dt 4.34), como também entesou seu arco.
- aquele que finalmente libertará o povo Essas imagens metafóricas da inimizade
de Deus de seus pecados e aflições. A ideia do Senhor são, evidentemente, extraídas
do "consolo" depois do exílio está presente da terrível realidade da guerra. Os nomes
também em Isaías 40.1. Ele seria cumpri- de Israel, Jacó e Judá são usados nessa se-
do em Jesus Cristo, e, então, se estenderia ção com aplicação à destruição empreen-
para o mundo inteiro. dida por Nabucodonosor em toda a terra
de Judá, o remanescente do antigo povo
1.18-22 Apelo ao Senhor de Israel.
Os últimos versículos admitem que o Partindo da perspectiva de toda a na-
Senhor estava certo em seu juízo (18); con- ção, o poeta estreita seu foco para o templo
tudo, logo se transformam num apelo a ele, (o seu tabernáculo, o lugar da sua con-
pois a miséria da cidade é muito intensa gregação; cf Êx 25.22) e as instituições
(20). Há também desapontamento ante a a ele associadas, como o sacerdócio, os
falsidade das outras nações como amigas e sacrificios e as festas anuais (6,7). A ideia
fonte de socorro (19). Há aqui um terrível de que pôs em esquecimento as festas cap-
reconhecimento da verdade do pecado e ta tanto o próprio passado de negligência
da punição bem como da realidade do po- da verdadeira adoração por parte de Sião
der exclusivo de Deus. Novamente é dito: quanto a remoção dos disfarces dessa falsa
não tenho quem me console. Ninguém que adoração pelo Senhor. Negligenciar a ver-
fosse um mero aliado poderia fazer isso; dadeira adoração é negligenciar o próprio
somente Deus - e não era ainda chegado Deus, nada menos do que uma violação do
o tempo de ele fazê-lo. O poema tennina primeiro mandamento (Êx 20.3).
com um apelo para que Judá não enfrente Finalmente, o poeta se volta para a
sozinha a ira de Deus, mas que seus inimi- cidade como um centro de poder; o seu
gos também sejam trazidos a prestar con- reis e os seus príncipes tinham ido para o
tas no dia da sua ira (21; cf v. 12). exílio; o estado já não existia (9). Profetas
e sacerdotes negligenciaram suas obriga-
2.1-22 A ira do Senhor ções de ensinar a lei de Deus e de proferir
sua palavra. Essa grande responsabilida-
2.1-10 "Qual inimigo" de trouxe uma condenação ainda maior
Como o primeiro poema, este também (cf Lc 12.48).
começa com uma imagem da queda de
Jerusalém de sua graça. Filha de Sião, gló- 2. 11-19 Lágrimas como um ribeiro
ria de Israel e o estrado de seus pés são Os sentimentos do próprio poeta estão
todas maneiras de se referir à cidade (em- agora em primeiro plano. Sua angústia
bora estrado de seus pés fosse, estritamen- pelo sofrimento de seu povo nos lembra
te falando, a arca da aliança; SI 132.7; mas Jeremias (cf Jr 4.19), assim como o fazem
cf SI 99.5). Afirmar que Deus não lembrou as vívidas imagens da miséria (cf Jr 4.31).
do estrado de seus pés é uma maneira de Em sua própria dor, ele fala ao povo e quer
dizer que Deus não cumpriu a promessa da desesperadamente confortá-lo (cf 1.2). Sua
aliança (cf 1.1-7). angústia se transforma em raiva quando ele
A ira do Senhor contra o seu povo é se lembra da falha dos líderes responsá-
retratada nos v. 2-5. Ele não apenas "es- veis por trazer o povo para o caminho da
queceu" sua aliança; mas se voltou de ma- obediência (14; cf Jr 5.12,13; 23.9-40).
neira ativa contra seu próprio povo, qual A consequência tinha sido a ruína da na-
inimigo (veja acima em 1.8-17). Ele não ção e a humilhação que seguiu. As nações
l1li
1075 LAMENTAÇOES 3 ~
111

vizinhas a Judá não demoraram a ver a pela experiência da recusa de Deus em res-
degradação daquela que fora uma cidade ponder às suas orações (e.g., SI 10.1; 13.1;
orgulhosa (seu escárnio na verdade se re- 22.2). A imagem então se toma mais vio-
fere a SI48.2; 50.2, com suas excepcionais lenta, sugerindo tanto os perigos à espreita
descrições do esplendor de Jerusalém). do viajante nas velhas estradas quanto os
Contudo, na verdade, esses eventos perigos da batalha (10-12).
eram o juízo de Deus, as "maldições" da A aflição que o Senhor impõe ao poeta
aliança (v. Introdução). O poeta retoma o agora assume a forma de uma perseguição
tema das lágrimas (18) e insta o povo a di- pelas mãos de seu próprio povo (13-15).
rigir seu pranto a Deus. Jeremias também atraíra extrema hostilida-
de por parte de seus compatriotas (Jr 20.7;
2.20-22 Apelo a Deus cf 11.18-23). Assim como se deu com o
O apelo final (a partir do v. 19) poderia profeta, o sofrimento do poeta nas mãos de
estar tanto na boca do povo (o "eu" do v. 22 seu próprio povo pretende evocar o sofri-
sendo a cidade) quanto do poeta. (De todo mento do povo nas mãos de seus inimigos.
modo, no último evento o poeta se identi- A falta de esperança do poeta alcança seu
fica intensamente com o povo). O apelo é clímax (16-18) quando ele diz que perdeu
um protesto a respeito do excessivo rigor sua paz, ou o senso de bem-estar que de-
da punição. Contudo, ele não deixa de ser veria ser a marca de um relacionamento
um indicador de esperança pois, embora saudável entre Deus e seu povo.
ainda não haja até agora nenhuma palavra Quando, entretanto, o poeta reflete sobre
tranquilizadora, a oração é um voltar-se a sua condição, seus pensamentos se trans-
Deus como a única fonte de libertação. formam em esperança (justamente como
acontece com os salmistas; SI 42-43).
3.1-66 As misericórdias de Deus À medida que se deixa levar pela própria
O terceiro poema está na boca do próprio memória, seus pensamentos se voltam para
poeta. Ele fala de suas próprias aflições nas a bondade de Deus no passado. Tal uso da
mãos de Deus, de uma maneira que nos memória é sempre vital na vida espiritual.
lembra Jó (e.g., Jó 19.21), os Salmos (SI
88.7,15) e, talvez acima de tudo, Jeremias 3.22-30 "As suas misericórdias
(Jr 15.17,18). No entanto, o indivíduo cla- não têm fim"
ramente expressa a dor de toda a comuni- Essa passagem central do poema é uma
dade, e a voz plural dela vez ou outra vem à das confissões de fé do Antigo Testamento.
tona (22,40-47). A notória passagem relati- A mente do poeta já começara a se afas-
va às misericórdias de Deus ocupa o centro tar dos horrores do presente (21), e ago-
do poema, um lugar de proeminência. ra ele pensa nas verdades eternas sobre
Deus. As misericórdias (22; "amor", NVI)
3.1-21 "Cercou-me de um muro" é um termo frequentemente traduzido por
O poema começa com a apresentação de "amor leal" na NVI, a mais típica quali-
várias imagens da aflição humana. As tre- dade de Deus. Está aqui no plural para
vas são imagens bíblicas típicas para a per- enfatizar que se trata de um amor dura-
dição (cf Is 9.2). É muito difícil distinguir douro que nunca falha. O juízo não pode
enfermidade de morte (6), em si mesma uma ser a última palavra de Deus, pois sua
sombria ausência de vida (cf Jó 3.11-19; compaixão triunfa sobre ele, ainda que
Is 14.18-20). de forma agonizante. Essa agonia é mui-
A dor física leva à frustração profun- to bem expressada em Oseias 11.8, e tem
da, beirando o desespero (7-9; cf SI 88). sua mais profunda expressão no sofri-
Os autores dos salmos também passaram mento de Jesus na cruz - o maior juízo
LAMENTAÇOES 3 1076

de Deus sobre o pecado e seu ato final de 3.40-48 "Voltemos para o SENHOR"
entrega e amor pela humanidade. Nos v. 40-47 ocorre uma súbita mudança
Pelo fato de o amor e a misericórdia da narrativa para a primeira pessoa do plu-
serem os principais atributos de Deus, eles ral, com uma confissão que abre caminho
são sempre renovados, prontos para serem a uma queixa. É possível que a decisão de
provados e conhecidos novamente (23). voltar para o Senhor (isto é, de arrepen-
Por essa razão, os que foram afligidos po- der-se; 40) não seja sincera (cf Jr 3.22-25;
dem sempre colocar sua confiança nova- 14.7-9). O perdão do Senhor parece ter sido
mente em Deus, em busca de aceitação e esperado como algo a que tivessem direito
restauração. Deus é "fiel", ou imutável, em (42). O povo continuava a reclamar que o
seu amor. Portanto, o poeta pode ficar con- Senhor não ouviria suas orações e que, por
tente por Deus ser a sua porção (SI 73.26) isso, estavam sofrendo (43-47). A implica-
em qualquer circunstância. ção é que Deus é injusto - uma sugestão
Uma vez que Deus é assim, é bom que os versículos anteriores declararam não
buscá-lo. Fazer isso, entretanto, pode ter ser verdadeira. O versículo final desse gru-
um custo, como implicam os v. 27-30 po retoma a voz do poeta, que pranteia não
(que, mais uma vez, lembram a vida de apenas pelo sofrimento do povo, mas talvez
Jeremias). Pode ser que a bondade de Deus também por sua falta de entendimento.
seja conhecida somente depois de se supor-
tar pacientemente o sofrimento. 3.49-66 "Remiste a minha vida"
O restante do poema é a resposta do poeta à
3.31-39 "Não aflige nem queixa do povo nos versículos precedentes.
entristece de bom grado" Aqui outra vez sua própria perseguição re-
O pensamento nos versículos precedentes presenta, em certo sentido, o sofrimento do
conduz agora a uma expressão completa povo nas mãos dos inimigos. Além disso,
da ideia de que a aflição não é a última há nesse lamento uma expectativa de que
palavra do Senhor. O amor e as miseri- seu pranto seria ouvido (56-60,64-66). Se,
córdias de Deus serão conhecidos depois então, o poeta podia esperar o livramento
da aflição, pois ele não aflige de bom gra- do Senhor, talvez o povo também pudesse.
do (33; cf Os 6.1). Por essa razão, Deus A ideia de ser lançado em uma cova
não pode tolerar a aflição injusta - como (53; cf SI 88.6), ser submerso pelas águas
aquelas que às vezes são impostas aos e clamar pela ajuda do Senhor (54,55; cf
seres humanos por seus pares (34-36; cf SI 18.3-6) é bastante comum nos lamentos.
Jó 8.3). Contudo, quando calamidades Aqui, no entanto, as expressões lembram a
acontecem devido ao pecado, não se tra- própria experiência de Jeremias. Ele tam-
ta de injustiça (37-39). É nesse contexto bém foi lançado numa cisterna (Ir 38.6); ele
que Deus pode afligir - embora ele odeie sabia que tramavam contra sua vida (60; cf
a aflição. Ir 11.19; 18.18), e clamou ao Senhor para
Os leitores modernos devem ter bas- que agisse contra seus inimigos pessoais
tante cuidado ao interpretar pensamentos (64-66; cf Jr 11.20; 18.19-23).
como este. O sentido aqui é que se estabe- Não é por acaso que o livramento do
lece um relacionamento entre juízo e sal- povo, prometido nos v. 22-30, envolveu
vação; um está além do outro. Essa ordem o sofrimento de uma pessoa que tomou o
é exemplificada na morte e ressurreição de seu lugar. Há grante pungência no fato de
Cristo. As profecias sobre juízo no AT nun- que o poeta (ou profeta) sofredor suporta-
ca devem levar à conclusão de que alguma va, por assim dizer, as angústias do povo,
aflição em particular seja um juízo particu- mesmo quando sofria nas mãos deste. Há
lar sobre aquele que a sofre. evidentes semelhanças aqui com o cântico
II1II
1077 LAMENTAÇÕES 4 .:..

do Servo Sofredor (Is 52.13-53.12). E há outras nações, como ficamos sabendo (12),
um prenúncio da crueldade e insultos lan- tinham considerado Jerusalém invencí-
çados sobre Jesus Cristo pelo povo que ele vel - sendo que um poderoso inimigo,
veio salvar, mesmo quando mostrara em Senaqueribe, não tinha conseguido domi-
si mesmo as profundas "misericórdias" de ná-la, apesar de sua força militar bastante
Deus por eles. superior (2Rs 18.13-19.37). Entretanto,
tudo isso não levava em conta a determi-
4.1-22 Os horrores do cerco nação do Senhor em mostrar a sua pró-
pria justiça, que era em si mesma parte da
4.1-10 Um povo desumanizado aliança (13).
Assim como o ouro e as pedras preciosas, O tema que é desenvolvido agora é o
outrora tão valorizados pelo povo de Judá, da falsa confiança. Os líderes religiosos ti-
agora se mostraram inúteis (1), assim o nham tido uma responsabilidade especial
povo, que já fora "propriedade peculiar" na sua propagação e, portanto, deveriam
de Deus (Êx 19.5) era agora tratado como assumir grande parte da culpa. A crítica
um povo comum e sem valor (2). Pior que que o poeta faz a eles (que se assemelha,
isso, eles tinham sido embrutecidos por em alguns aspectos, à de Jeremias; cf
seu sofrimento. Mesmo a maternidade, Jr 23.9-40) continua nos versículos seguin-
que frequentemente retrata o ser humano tes. Quando, no exílio, o povo estivesse
em seu estado de maior compaixão, ultra- espalhado entre outras nações, mesmo ali
passara os animais em sua insensibilidade os líderes seriam especialmente conde-
(3,4; avestruzes eram aparentemente co- nados ao ostracismo (15) e destituídos da
nhecidos por não cuidarem de seus filho- honra a que achavam ter direito (16).
tes, cf Jó 39.13-18). A falsa confiança também fora deposi-
O luxo e abundância de uma vida refi- tada nas alianças com outras nações (17), o
nada chegava ao fim (5; cf Am 4.1-3; 6.1), que implicara no reconhecimento dos deu-
pois a perversão de Judá estava gerando ses daquelas nações e na falta de confiança
seus próprios frutos (a palavra maldade exclusiva no Senhor. A confiança deposita-
no v. 6 sugere tanto a iniquidade quanto as da nessas nações rapidamente se transfor-
suas inevitáveis consequências). A compa- mara em selvagens ataques por parte delas
ração de Jerusalém a Sodoma (6) é parti- (18,19). O perigo de se confiar em poderes
cularmente chocante, em função da notória estrangeiros tinha sido bem ilustrado pela
maldade de Sodoma e de sua justa punição política de Acaz, rei de Judá, que pedira
(Gn 19.1-29). ajuda à Assíria na geração anterior, apenas
O destino dos líderes é trazido à aten- para que seu sucessor, Ezequias, viesse a
ção (6,7), pois sua riqueza e fina aparência descobrir que a Assíria era um amigo falso
tinham mascarado a verdade de que eles (2Rs 16.7-19; 18.13-16).
eram injustos. A imagem final da miséria O objeto final de falsa confiança era
sob o cerco reside no horror de uma morte o próprio rei, o ungido do SENHOR (20),
lenta, causada pela fome, e retoma, de ma- devido à suposição do povo de que a
neira ainda mais horripilante do que antes, antiga promessa a Davi significava uma
o tópico da maternidade brutalizada (9,10; garantia incondicional de proteção diante
cf Dt 28.53-57). dos inimigos.
Uma parte importante da intenção de
4.11-22 "O castigo da tua Deus ao dar cabo de Judá era mostrar que
maldade está consumado" era ele, Deus, o único objeto apropriado da
O foco recai agora sobre a ira de Deus (11). confiança do povo. O livro de Lamentações
Não apenas o povo de Judá mas também se posiciona como testemunha contra a
LAMENTAÇÕES 5 1078

falsa confiança em qualquer instituição que mos, responsáveis por sua presente sorte
seja, inclusive a igreja, para a salvação. (cf. v. 16; cf. Jr 31.29,30; Ez 18).
A última palavra do capítulo, entretan- Seguem imagens de uma desesperadora
to, é uma palavra de esperança. Embora miséria (11-16): mulheres indefesas contra
os inimigos de Judá possam se alegrar os abusos (e provavelmente marginaliza-
momentaneamente por causa da queda do das em consequência disso); jovens força-
povo, o dia do castigo virá também para dos a trabalhos humilhantes; homens mais
eles, para Edom e para as outras nações (cf. velhos privados de funções normais, como
Jr 25.15,20; 49.7-22, Obadias). E o castigo também do seu papel em gerir os afazeres
de Judá terminará em um novo dia de gra- da comunidade (14a); não há júbilo, não
ça (22; cf. Is 40.2). há romance (14b, 15); memórias indeléveis
das atrocidades cometidas contra seus lí-
5.1-22 "Lembra-te, SENHOR" deres (12; cf. Dt 21.22,23 sobre a degra-
O poema final se diferencia dos outros dação desse destino). Sião desolada é uma
tanto na forma (v. Introdução) quanto na imagem fortíssima da miséria e do caos em
perspectiva, aparentemente refletindo um potencial de uma vida sem Deus.
período em que o cerco à cidade já fazia O poema termina (19-22) afirmando
parte do passado. As consequências da que Deus é realmente rei. Esses versículos,
derrota permaneciam, entretanto, sob a em si mesmos, têm a forma de um lamen-
forma de miseráveis condições de vida. to; entretanto, trazem elementos de louvor
As imagens da miséria opressiva aqui acompanhados de elementos de queixa e
são uma inversão patética do potencial da petição. A oração no v. 21 traz uma nota
vida na aliança. positiva, pois abrange um apelo pela res-
A terra, herança do Senhor (2; cf tauração - não somente de um relaciona-
Dt 4.21), era agora controlada por estran- mento pleno, mas também da posse da ter-
geiros - embora o Senhor certa vez tives- ra - e um novo compromisso por parte do
se dela expulsado outras nações para dá-la povo de voltar para o Senhor (cf. Jr 31.18).
a Israel (tema do livro de Josué). Também O último versículo previne o poema de ter-
já fora recomendado ao povo de Israel minar numa nota complacente. Todavia, a
que tivesse cuidado especial com viúvas e verdadeira natureza desse poema, assim
órfãos (Dt 14.28,29); agora, todo o povo como de toda a coletânea, é de petição.
está desamparado como eles, sem o direito Só há esperança na volta ao Senhor. O
de gozar das bênçãos da terra e da paz em livro de Lamentações mostra isso cons-
relação aos inimigos e opressores (4,5; cf. tantemente, ao expor a falsa confiança do
Dt 8.7-10; 12.9). O povo poderia e deve- povo, o que tinha trazido sobre eles esse
ria ter sido um povo livre e realizado, se terrível juízo. E o livro o mostra, sobretu-
apenas tivesse confiado e obedecido ao do em 3.22-30, em sua comovente cele-
Senhor. As exigências do AT em relação à bração da compaixão e do amor de Deus.
confiança em Deus são inflexíveis, e va- Estas são as coisas que perduram, e que
lem tanto para os leitores modernos quanto continuam sendo a esperança dos cristãos,
para os do passado. que as viram reveladas na vida, morte e
A reflexão do povo acerca de seu sofri- ressurreição de Jesus Cristo. Mesmo em
mento devido ao pecado das gerações pas- Cristo, entretanto, a igreja necessita saber
sadas (7) lembra Êxodo 20.5. É mais bem em seu coração que sua paz se encontra
interpretada como uma alusão à persistên- na confiança e na obediência.
cia do povo em pecar contra o Senhor, em
vez de sugerir que não fossem, eles mes- Gordon McConville

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