Resumo
O autor apresenta um estudo da questão da política e sua relação com a psicanálise. Em primeiro
lugar, dá ênfase ao aparecimento da psicanálise como política da falta-a-ser, na relação psicana-
lista-psicanalisante (psicanálise em intensão). Em extensão a psicanálise se apresenta em duas
faces, a saber, na relação entre os analistas e a causa analítica e em sua presença na pólis. Tece
ainda breves considerações sobre questões próprias ao Brasil.
Palavras-chave
Poder, Estratégia política, Transferência, Sujeito suposto saber, Causa analítica, Formação do
analista, Discurso do capitalista.
Freud refere-se a três profissões impossí- Como nosso tema diz respeito à psica-
veis: governar, educar e curar, e assinala nálise e à política, privilegiaremos o gover-
no prefácio do livro de Aichhorn que, nar e curar, deixando o poder do pedagógi-
por estar inteiramente ocupado com o co para ser aprofundado em outra ocasião.
curar, não teve tempo suficiente para se Vamos desenvolver a temática da
ocupar com a aplicação da psicanálise política da psicanálise em intensão, ou
ao educar, o que não significa para ele seja, no processo analítico, e a política da
desprezo ao alto valor social do trabalho psicanálise em extensão será desenvolvida
realizado por aqueles que se ocupam na perspectiva do governar, abordando
deste mister. questões próprias a nossa cultura e nosso
Como assinala Coutinho Jorge (2004), país.
Freud retoma esta mesma argumentação
naquele que seria um dos seus últimos Política na intensão
escritos, Análise Terminável e Interminável, Freud, em seus escritos técnicos e em
de 1937, ponderando que, quanto às três outros textos, menciona como fator
profissões – e aí Freud não fala mais em fundamental para o desenvolvimento
curar, porém em psicanalisar –, podemos, da transferência e eficácia do processo a
de antemão, estar seguros que chegaremos autoridade do médico. Em suas recomen-
a resultados insatisfatórios. dações adverte várias vezes de um certo
Em vários de seus escritos, mormente distanciamento afetivo e da atenção que
no Mal-Estar (FREUD, 1929) e quando se deveria dar ao furor curandi para se
responde a Einstein (FREUD, 1932), preservar a referida posição de autoridade.
Freud mostra quanto se interessava pelas É, no entanto, Lacan (1998a), em seu
questões políticas. texto de 1958, A direção do tratamento e os
O impossível envolvido nas três pro- princípios de seu poder, que vai aprofundar
fissões sem dúvida tem a ver com o real esta questão do poder na relação analíti-
do poder e o seu manejo, ou seja, seu uso ca. Para tal se vale do livro de Karl Von
e abuso. Clauswicz (Da guerra).
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A ética do desejo e a política da falta
Lacan tentou introduzir a ideia de que a Lacan diz então que a mais-valia
partir do discurso do analista, poder-se-ia torna-se, desde aquela época em que foi
compreender alguma coisa relacionada às formulada, extraída não do capitalismo,
coletividades. como afirmara Marx, mas da causa do
Como sabemos, cada discurso é uma desejo, da qual toda economia faz seu
modalidade de laço social. Estes laços princípio.
entre os humanos, com seus corpos e Causa do desejo para todos, capita-
suas falas, são ordenados pela linguagem listas e proletários. Uns para se apropriar,
e só existem por serem ordenados pela outros para recuperar.
linguagem. Outro ponto importante assinalado
Ainda segundo Soler, a expressão “dis- por Lacan consiste em dizer que quando a
curso capitalista” é de Lacan e data do con- mais-valia é causa de desejo de toda uma
texto de pós-68 ou exatamente de 1970. economia, isto engendra o que ele chama
O paradoxo é que, com o discurso ca- produção extensiva, logo insaciável da
pitalista, Lacan descreve um discurso que falta a gozar.
desfaz o laço social ao invés de enlaçá-lo. Produzir e consumir são os dois gran-
Na época em que tal discurso foi ela- des imperativos da economia capitalista.
borado, as questões a ele ligadas não eram Produzir e consumir geram a falta a gozar.
tão legíveis como o são hoje em dia. Lacan atribui a falta a gozar a todos os
Em 1970, o mundo ainda era binário, atores da economia capitalista, pois a falta
prevalecia a guerra fria com todas as suas a gozar é o seu motor.
consequências e acusações recíprocas. Lacan escreveu o discurso do capi-
O que hoje é bastante explícito talismo com os mesmos elementos dos
quanto à ideologia capitalista, quanto, outros discursos, porém colocando-os de
por exemplo, a inventar formas fáceis de forma diferente:
lucro, em 1970 não era totalmente claro.
Poderíamos perguntar: o que Lacan S S2
percebeu, naquele momento, ao formular S1 a
o discurso do capitalismo?
Lacan tinha Marx em grande conceito Entre os elementos e de forma cruza-
e retém da leitura da teoria marxista o da, Lacan desenha uma flecha contínua,
conceito de mais-valia. sem ruptura.
Sem nos determos e aprofundarmos Enquanto nos outros discursos existe
nesta questão, podemos dizer que a mais- uma ruptura, uma descontinuidade, que
valia é a parte do trabalho que não é paga é uma barreira para designar que entre
e que é apropriada pelo capitalista, dono o gozo que um discurso torna possível e
dos meios de produção. A mais-valia é a verdade daquilo que é esperado como
subtraída do trabalho proletariado para gozo existe sempre um hiato. Na escrita
engordar o capital. do discurso do capitalismo não há um
Ainda com Soler (2011) poderíamos hiato.
dizer que a mais-valia é o que incita o ob- Temos um circuito fechado, contínuo,
jeto causa de desejo do capitalismo. sem ruptura, onde se pode afirmar que o
A consciência da classe proletária – sujeito é comandado pelo objeto – produ-
aquela que só tem sua força de trabalho tos, gadgets.
para vender – é uma consciência na qual Constatamos, então, que quanto mais
a mais-valia se constitui como objeto per- o tempo passa, mais somos instrumentali-
dido, cotidianamente perdido, mais que zados por todos os produtos, os quais nós
objeto oculto ou roubado. não podemos dispensar.
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A ética do desejo e a política da falta
Não apenas somos instrumentalizados Ele conclui que isto levaria à fora-
pelos produtos como ameaçados pelos clusão da castração. Esta conclusão é de
efeitos da produção. início paradoxal; exprime, no entanto, o
Data de pouco tempo a consciência fato de que o amor entre parceiros coloca
da ameaça que pesa sobre o planeta da em jogo a castração. Neste sentido, um
relação entre a economia capitalista e a discurso que exclui as coisas do amor,
ciência – tecnologia. exclui logicamente a castração.
O que a formulação do discurso nos É ao excluir as coisas do amor, desfa-
mostra é que o capital, S1, demanda à zendo o laço social, que o discurso do ca-
ciência tecnológica que produza objetos pitalismo tem um efeito sobre a violência e
(a) para o consumidor (S/ ). as atrocidades, pois quando os laços sociais
A consequência disto é que o discurso se desfazem, a dissidência das pulsões se
do capitalismo não descreve nenhum laço manifesta de uma forma bem diferente.
entre os parceiros humanos. Ele só descre- Freud (1921) já chamara nossa atenção
ve a relação de cada sujeito (consumidor) para este fato em Psicologia das Massas.
com certo objeto mais-valia. Há um laço Talvez aqui possamos perceber com
direto entre o sujeito e o objeto a. clareza o que é rejeitado no discurso que
Já em 1970, Lacan nos dizia que o discur- retorna de outra forma. Com a exclusão
so do capitalismo desfaz o laço social e com das coisas do amor, como laço, retornam
isso todas as solidariedades sociais, e deixa sob a forma de romance barato, filmes
cada um cara a cara com o objeto causa. eróticos e práticas na internet.
De início, observamos a precariedade O sexo clivado do amor aparece de
dos laços possíveis no trabalho. forma acentuada na clínica, mormente
Colette Soler (2011) sublinha então por parte das mulheres que buscam al-
dois pontos básicos, a saber: o clamor guém, um companheiro, frequentemente
sobre a precariedade e em segundo lugar sem encontrá-lo. O pegar, o ficar, com
um sentimento do sem sentido (non sens), muita frequência não caminha em dire-
verdadeiramente um índice de que os ção ao laço amoroso, gerando angústia e
mais-de-gozar, produtos de consumo, não decepção.
só não conseguem estancar a aspiração Outro ponto que observamos é que
humana, pois excluem o vetor do desejo, todos os discursos, sob suas formas his-
mas aumentam de forma devastadora o tóricas diversas, sempre implicaram uma
sentimento de falta a gozar. disparidade de lugares.
O resultado da fragmentação dos Mais uma vez, Soler assinala que a
laços sociais é um individualismo louco discriminação é a repartição das dispari-
e forçado. dades, a repartição dos lugares preciosos.
Soler ainda cunha o termo narcinis- Os quatros discursos estabelecem
mo, que combina este tipo particular de os lugares ordenados que definem uma
posicionamento típico do nosso tempo: ordem. Estas ordens reinaram na história,
narcisismo e cinismo. Esta lógica faz com como bem sabemos: mestre – escravo;
que os indivíduos assumam, sem nenhum homem – mulher; professor – aluno; pais
constrangimento, uma série de manobras – filhos etc.
de exploração colocadas como astúcia ou Todos estes discursos eram discursos
capacidade de competir. da violência instituída. A violência atual
Não se faz lucro sem algum abuso. não é instituída, mas produzida.
Outro ponto importante que Lacan Muitas questões relevantes e de inte-
sublinha em 1972 é a exclusão das coisas resse poderiam ser levantadas, o que esten-
do amor pelo discurso do capitalismo. deria sobremodo nosso texto e exposição.
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Arlindo Carlos Pimenta
Façamos um ponto de basta para nos Freud, em suas reflexões sobre a cultu-
perguntamos: E então, o que a psicanálise ra, aborda a verdade das origens da forma
pode dizer? E o que pode fazer? possível, a saber, pelo viés do mito.
Lacan, a partir do que foi construído Em 1973, em Televisão, Lacan (2003b)
da estrutura subjetiva, pôde interpretar o vai dizer que o Mito é uma forma épica de
discurso do capitalismo, ou seja, revelar mostrar a estrutura. O mito procura dar
seus modos de gozo. uma forma discursiva a alguma coisa da ver-
Mas, hoje em dia, o que é possível ser dade que por si mesma não poderia passar
feito? Assim como Freud, que no final do enquanto tal. A forma discursiva pode ser
século XIX e início do século XX, a partir universal ou individual. Já em Totem e Tabu,
da Histeria, criou o discurso do psicanalis- Freud (1913) vai falar da herança arcaica
ta, o que pode o psicanalista de hoje frente que aparece já na pré-história dos povos, e
ao discurso prevalente do capitalismo? que a história por assim dizer se inicia pelo
Lacan (2003b) nos afirma, em seu ato memorável e terrível do assassinato do
texto Televisão, de 1973, que o discurso pai. Porém, é em Moisés e o Monoteísmo
analítico pode promover a saída do dis- (1939) que Freud resgata o conceito de tra-
curso do capitalismo. dição como forma de transmissão, que tal
É claro que sendo realistas, não se como no mito constitui o que poderíamos
trata de uma revolução psicanalítica, mas denominar o Outro Social, composto por
como o próprio Lacan assevera, trata-se traços que formam os ideais de um povo.
antes de uma subversão. Neste sentido, como hipótese inicial
O que a psicanálise pode objetar do a ser aprofundada e mais bem embasada,
discurso capitalista é suscitar um desejo poderíamos fazer a proposta de um enten-
outro ou sustentar os desejos outros. dimento de nossa realidade atual com uma
Para Lacan, o final de análise é ca- visão a posteriori de nossa tradição.
racterizado pela emergência de um outro Evidentemente, com todo cuidado e
desejo que não diretamente pelo Outro. sabendo que esta é uma contribuição a
Sustentar um Outro desejo, que é uma um tema muito complexo e formado por
forma não de fazer barra, desde que todos inúmeras variáveis.
estamos presos ao discurso capitalista, mas Sabemos que a primeira forma de
de subtrair alguma coisa deste discurso. exercício de poder existente em nosso país
Aqui, mais uma vez, sobretudo deve foram as Capitanias Hereditárias.
vigorar a política da falta-a-ser, que possi- Sérgio Buarque de Holanda (1997)
bilita a emergência do desejo e de sua ética. em seu escrito sobre as raízes do Brasil
Para finalizar, algumas palavras sobre enfatiza a diferença entre colonização e
a realidade política de nosso país, que se exploração, ocorrida após a descoberta do
mostra mais evidente e agravado pelo Novo Mundo.
discurso da contemporaneidade. A diferença entre a colonização ocor-
Chama-nos a atenção um modo es- rida, por exemplo, nos Estados Unidos e no
pecífico de exercício do poder de nossos Canadá e a exploração Ibérica constituída
políticos, independentemente da área em no puro gozo da terra e suas riquezas.
que atuam: executivo, legislativo ou judi- As Capitanias Hereditárias consti-
ciário, ou mesmo independentemente do tuíram a política da Coroa portuguesa
partido político a que pertençam. sem recursos para investimentos na nova
Impera o regime da barganha de in- colônia. Portugal resolveu, então, adotar
teresses pessoais, a corrupção e o distan- o modelo feudal e destinar aos donatários
ciamento dos interesses comunitários em um número aproximado de quatorze faixas
contraste com os individuais e familiares. de terras.
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