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Universidade Federal Fluminense

O medo à criminalidade como fenômeno da


contemporaneidade brasileira: controle social e rebelião

Cristina Mair Barros Rauter

Tese Apresentada à banca de Concurso Público para


Professor Titular de Psicologia Social e Institucional
do Departamento de Psicologia

Niterói
2012
1

Sumário

Resumo 2

I) Introdução: O Dispositivo da Criminalização e a Despotencialização do


coletivo 3

II) Das Engrenagens Carcerárias à Democracia da Multidão 15

2.1 A solução prisional brasileira 26


2.2 Um povo de mudos e manetas 33
2.3 O simples e o complexo 40
2.4 A repulsa, o asco e o medo. 45

III) O Medo e a Vida Coletiva na Filosofia de Spinoza 49

3.1 Submissões alegres e tristes 56


3.2 Não há um grau zero de potência 60
3.3 Pensar e agir: é possível ultrapassar o medo e a submissão alegre? 68
3.4 A transitoriedade do medo: barata pode ser um barato total 70
3.5 A fraqueza do dispositivo da criminalização: o rei está nu 76

IV) O Comodismo contemporâneo e as Múltiplas Dependências 80

Considerações Finais: Outra razões para se ter medo 92

Referências Bibliográficas 99
2

Resumo

Um estudo sobre o medo à criminalidade numa perspectiva transdisciplinar, partindo de


uma análise sobre o que denominamos “dispositivo da criminalização” no qual as
engrenagens carcerárias desempenham um papel primordial. Analisamos inicialmente o
afeto de medo como efeito desse dispositivo; a seguir, passamos a discutir os afetos a
partir da filosofia de Spinoza. O medo é abordado em seu caráter transitório e variável,
enquanto afeto humano, o que revela as limitações do próprio dispositivo e de seus
efeitos. A conclusão é de que no contemporâneo estão dadas condições, tanto para um
aprofundamento do comodismo e da submissão, quanto para a rebelião e para a
construção coletiva a partir do contágio afetivo.

Palavras chave: crime; medo; multidão.


3

I) Introdução: O Dispositivo da Criminalização e a


Despotencialização do coletivo

O controle sobre a produção de subjetividades é um dos elementos principais


nos quais se assenta a reprodução do capitalismo globalizado atual. É em torno do
fenômeno da criminalidade que se organiza um dos principais dispositivos de controle
social contemporâneos, através da disseminação do medo e da multiplicação da
experiência da violência, também experimentada através de imagens constantemente
veiculadas pelos meios de comunicação. A palavra violência é como um guarda-chuva,
abrigando diferentes fenômenos que pouco têm em comum, como a violência do
trânsito, a violência na instituição médica, o crime em suas tantas formas. Sua utilidade
é despolitizar os enfrentamentos que se dão no campo social, tornando-os inevitáveis,
frutos de uma tendência natural e justificando ações repressivas do estado.

O fenômeno da violência criminal está associado ao controle dos grandes


contingentes de despossuídos que é produzido por este sistema econômico-social. O
controle passa também pelo uso da polícia, exércitos e do sistema penal, de maneira
diferenciada, de acordo com a realidade cada país. Esse processo é globalizado, mas no
Brasil é potencializado pela histórica desigualdade e estratificação da sociedade, que
tem raízes coloniais. Definimos o que entendemos por “dispositivo da criminalização”
numa pesquisa anterior1 como o conjunto de dispositivos que têm um papel central nos
processos de produção de subjetividades contemporâneo. Faz parte desse dispositivo
uma rede de instituições sociais: a polícia, o sistema prisional, o sistema judiciário em
todas as suas ramificações, incluindo as instituições para jovens e é claro, a mídia. Além
delas, o exército, que com frequência é chamado a intervir sobre a criminalidade urbana,
além da escola, que tem um papel importante na produção de estigmas que serão
“colados” a jovens e crianças, etc.

1
“Produção da Violência e Subjetividade Contemporânea: Construindo novos dispositivos clínicos
transdisciplinares”, pesquisa que desenvolvemos no departamento de psicologia da Uff entre 2000 e 2004,
e em parceria com o Grupo Tortura Nunca Mais-RJ.) Entre 2005 e 2009 desenvolvemos uma nova
pesquisa intitulada “Clínica e Violência: Construções e Problematizações para uma Clínica do
Contemporâneo”.
4

Um dos efeitos do dispositivo da criminalização é o de produzir um


esvaziamento do coletivo, através da produção de um “envenenamento” que nos torna
“tristes” no sentido spinozista do termo, dificultando a possibilidade de que nos
organizemos coletivamente. Assim, um dos efeitos desse dispositivo corresponde a
imprimir uma variação negativa aos graus de potência.

Constatamos também nessas pesquisas anteriores, que o modo pelo qual eram
veiculados os fatos violentos fazia com que estes fossem vividos de modo distanciado,
como que envoltos num véu. Esse modo de perceber a violência trazia consigo uma
incapacidade de reagir. Em parte porque assistimos aos fatos violentos sentados, na
intimidade dos nossos lares, através de uma tela de TV, em parte porque tendemos a
negar a experiência da violência quando ela se torna próxima demais. Percorremos com
algumas instituições de saúde, propondo às equipes de saúde a pergunta “Como você
percebe a violência no quotidiano de sua atuação profissional?” ao que recebemos como
resposta, com frequência, que ela não acontecia ali onde estávamos, mas numa outra
unidade próxima que nos sugeriam que visitássemos. Qual não foi a nossa surpresa, ao
deixarmos uma unidade onde os técnicos “não viam” a violência, constatar que o tráfico
mandara fechar a rua onde se localizava a unidade de saúde em razão da morte de um
conhecido traficante, o que dificultaria em muito nossa saída do local... Percebemos
então que a percepção da violência estava atravessada pela negação e pelo
distanciamento, e que isso era válido tanto para a equipe de saúde quanto para a
clientela. Com frequência os moradores do Rio de Janeiro escutam tiros nos bairros
onde moram, mas sempre buscam se convencer de que ali, no local exato onde moram,
não há perigo. Pois se acreditassem que a qualquer momento poderiam ser alvejados por
tiros na sala de jantar, não poderiam viver seu quotidiano. E se dedicam a fazer
complicados raciocínios, como os que faziam os moradores de um condomínio em
Laranjeiras, onde morei na década de 90, sobre o ângulo onde estão os prédios, que
tornava difícil que estes fossem atingidos por tiros disparados do morro do Serro Corá...
Atribuímos sempre ao vizinho (o bairro vizinho, o condomínio vizinho) o perigo maior.

Há um modo de experimentar os fatos violentos característico do dispositivo da


criminalização. Nas grandes cidades do mundo tememos frequentemente algo que se
passou não diretamente conosco ou com alguém de nossa família, mas que pode ter se
passado do outro lado do globo e, no entanto, aparece “ali na nossa frente”. Diariamente
somos bombardeados, nos noticiários de televisão e também noutros tipos de mídia, por
5

imagens e relatos de fatos violentos. Chama à atenção esse caráter repetitivo e diário na
difusão desses fatos, e que são geradores afetos tristes de vários matizes: desânimo,
apatia, medo, indiferença. Geralmente não reagimos a esses fatos – apenas os assistimos
sentados, na intimidade de nossos lares. Pensamos que essa atitude passiva com a qual
assistimos a noticiários frequentemente escabrosos se constitui na experiência de uma
“incapacidade de reagir”. É certo que nossas reações a acontecimentos que se passam
num círculo mais próximo de pessoas diferem em intensidade daquelas que podemos ter
quando sabemos de notícias que ocorrem do outro lado do globo. Porém o paradoxal é
que hoje ficamos sabendo com muita rapidez e riqueza de detalhes de fatos que em
muito ultrapassam nosso círculo mais próximo de relações – sabemos mais sobre esses
acontecimentos distantes geograficamente do que sobre aqueles ocorridos com nossos
vizinhos.

Pensamos que o dispositivo da criminalização é um dos meios pelos quais se


torna possível a gestão da massa de “desafortunados” do capitalismo globalizado, em
especial no Brasil. Podemos considerar a polícia e o sistema penal como as duas
principais políticas públicas do capitalismo atual e novamente este processo é bastante
visível em nosso país, embora ocorra noutros. Loic Wacquant (2011) propõe a
denominação “estado penal” para se referir à transformação dos dispositivos de controle
social contemporâneos, em substituição àqueles do estado de bem estar social,
implicando num aumento da população prisional sem precedentes nos Estados Unidos.
No Brasil também se verificou um aumento impressionante da quantidade de pessoas
presas a partir dos anos 90 (Salla e Alvarez, 2012).
Com a adoção das políticas neoliberais, vêm se produzindo em vários países
importantes reduções de investimento em saúde e educação, ainda que se possa dizer
que todas as crianças estão na escola. Richard Sennett (2004) chamou atenção para a
diferença entre as políticas sociais no neoliberalismo, que muitas vezes se restringem à
distribuição de bolsas e auxílios pecuniários e aquelas típicas do estado de bem estar
social, que efetivamente produziam subjetividades, realizando um controle mais fino e
sendo capazes de interferir na produção de sonhos e maneiras de ser. No neoliberalismo,
as políticas sociais não são tão capazes de interferir nos processos de produção de
subjetividades: mesmo a escola talvez tenha perdido essa capacidade.
Dissemos que um dos efeitos do funcionamento do dispositivo da criminalização
é a despotencialização do coletivo. Tal efeito é conseguido a partir da disseminação do
6

medo à criminalidade. Veiculando à exaustão fatos violentos, denunciando e muitas


vezes funcionando como um verdadeiro tribunal quando noticia crimes e apresenta
suspeitos, a mídia deixa de veicular, por outro lado, fatos que poderiam agir no sentido
inverso, potencializando o coletivo.

Examinemos, em contraste, o que ocorre quando somos informados do que


ocorre à nossa volta. Houve recentemente um momento no qual a população reagiu de
forma diferente a um fato que ocorria bem próximo dela. Por alguma razão que não
cabe nesse momento investigar, a divulgação pela mídia conseguiu ultrapassar o
silenciamento frequentemente imposto a esse tipo de movimento e divulgou
amplamente os incidentes relacionados à greve dos bombeiros, em agosto de 2011. Os
telespectadores puderam acompanhar as imagens dos grevistas presos sendo
transportados pela ponte Rio-Niterói, assim como dados sobre a justeza de suas
reivindicações (tabelas salariais, comparando a situação dos bombeiros do Rio de
Janeiro à de outros estados do Brasil), e o movimento nas escadarias da Assembleia
Estadual. Tal superação do silenciamento foi um fato muito importante. Apesar de ter
havido por parte de uma alta autoridade uma tentativa de estigmatizar os bombeiros em
greve como bandidos, marginais, irresponsáveis, dessa vez os estigmas não produziram,
como costuma acontecer, um fosso, uma separação entre os grevistas e a população, o
que facilitaria a repressão do movimento. Tive ocasião de testemunhar a passagem dos
bombeiros presos, sendo saudados pela população, que aplaudia e dava vivas, enquanto
os grevistas agitavam bandeiras do Brasil. Tinha sido rompida a apatia ou a
despotencialização do coletivo, e isso se deveu em grande parte ao fato que dessa vez a
mídia ou uma parte dela cumpriu um papel diferente do habitual, de difusão da
informação de que estava ocorrendo um movimento social. “Todos somos bombeiros”,
era o que se lia em adesivos colados ao peito de muitos dos que acorreram aos atos
públicos em apoio à greve e a mobilização cresceu rapidamente. Trouxemos neste
momento um breve recorte sobre um fato relativamente raro, no qual o efeito de
silenciamento e despotencialização não se deu, para melhor descrever o que geralmente
se produz graças ao que denominamos “dispositivo da criminalização”. Ressaltamos
aqui a importância de que tais fatos tenham sido veiculados pela mídia, que dessa forma
possibilitou que a população ficasse sabendo de algo que a afetava diretamente e que
ocorria na cidade em que vive. Embora isso ocorra apenas em algumas afortunadas
vezes, os resultados, como se viu, foram rápidos. Em geral, somos apenas informados
7

dos roubos, dos assassinatos escabrosos, de acidentes sangrentos, da impunidade


reinante, do perigo que se instala em alguma cidade ou região de uma cidade, situação
para a qual a solução é pedir mais e mais polícia. Não que a mídia seja a única
responsável por esse esvaziamento do que está próximo, ou do nosso “em torno”: há um
esvaziamento das ruas e das relações entre vizinhos.

Vivemos de modo paradoxal, no mundo contemporâneo, a era do controle e das


disciplinas, mas também um tempo em que temos a possibilidade de criar novos
mundos para viver, novas formas de família, novos territórios (Guattari, 1990). Porém,
se há uma desorganização das instituições disciplinares, um novo tipo de controle social
a céu aberto age de modo a não deixar que haja um vazio de poder. Pensamos que as
disciplinas não serão substituídas por um novo tipo de controle, mas por um conjunto de
dispositivos, alguns deles ainda disciplinares, enquanto outros agem de forma menos
individualizada, sobre o coletivo.

Milton Santos enxergou nos pobres do capitalismo neoliberal, que se amontoam


nas favelas urbanas, a possibilidade de protagonizarem grandes mudanças sociais
compreendidas no que ele denominou “uma outra globalização” (2001). Há diferenças
entre os pobres de hoje e os pobres de antes do capitalismo globalizado. Milton Santos e
René Schèrer (2009) fazem uma diferenciação entre pobreza e miséria. Ser pobre pode
propiciar a se estar “mais próximo da erva” e a escapar do desejo abjeto de se ter falta.
(Deleuze e Guattari, 1976, p.44). Há uma pobreza que é fruto da situação de se ter
poucas coisas, e a partir daí construir uma vida plena, como ilustram vidas como a do
compositor Cartola, que não precisou de muitos bens para se comunicar com as rosas.
Porém há hoje uma situação de “miséria” que diz respeito à experiência da falta – a falta
gerada quando não se tem acesso aos inúmeros bens de consumo aparentemente “ao
alcance da mão”, já que são constantemente difundidos em todos os lares, pelas imagens
da televisão. Esses miseráveis ou pobres de um novo tipo têm acesso a muitas das
novidades do consumo e são muito bem informados, tendo um gosto em tudo
semelhante aos dos que têm condições efetivas de comprá-los. Por outro lado, suas
subjetividades já não são produzidas da mesma forma pelas instituições disciplinares,
face ao fracasso da escola no sentido disciplinar, e de outras instituições que se
tornaram muito caras para o capitalismo atual ou que não tem mais a mesma força.
Assim, eles não se acomodarão da mesma forma, mas transformarão em ato, com mais
facilidade, suas reivindicações. Sem uma memória forjada na disciplina e no
8

adestramento corporal, talvez eles estejam numa condição mais favorável para
estabelecer laços horizontais com os que vivem situações próximas das suas.

Para Milton Santos (2001), neste ponto coincidindo com o pensamento de


Deleuze (1990), algumas condições estão dadas no capitalismo atual para que imensas
multidões se formem: a concentração urbana, o fato de muitos estarem vivendo uma
situação de escassez, desde aqueles que historicamente já a viviam, até os novos pobres,
ou os setores da classe média que experimentam agora a escassez, deserdados da
condição mais favorável que o milagre econômico da década de 70 os teria alçado. De
par com essa ascensão das massas, que os recentes acontecimentos da crise europeia e
da primavera árabe tão bem ilustram, percebemos a ação de dispositivos de controle que
embora poderosos, não poderão – e é o que pretendemos desenvolver neste trabalho –
impedir esse novo protagonismo da multidão no contemporâneo.

Partimos da ideia de que o dispositivo da criminalização atua como uma


engrenagem que produz despotencialização do coletivo a partir da disseminação do
medo e de outros afetos tristes. Iremos, ao longo desse trabalho, avaliar a força do
dispositivo ou o grau em que realiza seu intento. O capitalismo é, desde o seu inicio, um
sistema que se baseia na acumulação de capital e também na “acumulação” de homens:
homens agrupados nas cidades, homens amontoados, mas despotencializados no que
poderia daí emergir no sentido de sua força política. Nas grandes cidades do mundo,
somos muitos e vivemos muito próximos e hoje vivemos em condições muito
semelhantes. Mas essa proximidade com nossos semelhantes não necessariamente
resulta em que tenhamos uma vida coletiva rica. Raramente vizinhos se conhecem numa
grande cidade e quando se organizam na direção de algum objetivo, geralmente o fazem
“contra” algo. Recentemente tive oportunidade de confirmar essa hipótese quando fui
convidada por uma vizinha, pela primeira vez em mais de dez anos de moradia no
bairro, a participar de uma manifestação cujo objetivo era pedir mais polícia. Para
Sennett (1988, p. 359) processos de subjetivação em curso no contemporâneo fazem
com que as “lutas contra” sejam mais comuns do que as lutas “a favor” de algo.
Vizinhanças quem podem, através do disque-denúncia, apontar anonimamente um
pedófilo escondido num bairro ou um possível traficante, mas raramente, uma
coletividade unida para lutar por algo. Se lançarmos um olhar para algumas práticas que
se querem dizer políticas no cenário atual, veremos que muitas delas têm uma conotação
punitiva. O movimento feminista, que na década de 60 era um movimento em prol da
9

libertação sexual das mulheres, hoje quase não tem bandeiras afirmativas, assim como
outros tantos “movimentos sociais” que pedem punição: da homofobia, de padres
pedófilos, de erros médicos, dos políticos corruptos, etc. Não estamos aqui invalidando
esses movimentos, pois eles são modos pelos quais grupos humanos buscam afirmar sua
potência e enquanto tal são válidos, mas observemos essa sua característica negativa e o
quanto estão atravessados por afetos tristes. Para muitos, fazer política reduz-se a pedir
a punição de deputados corruptos, correndo-se o risco de aumentar ainda mais a
descrença na política, colocando-se sob suspeição toda a classe política. Creio que a
matriz desse modo de fazer política está no dispositivo da criminalização. Através da
difusão do medo à criminalidade e de sua exaustiva visibilidade nos meios de
comunicação, da conclamação à punição exemplar dos culpados e do júbilo popular que
acompanha algumas condenações, torna-se evidente sua força, que se estende até
mesmo ao próprio modo de fazer política.

Podemos mencionar os recentes movimentos de massa no Egito e na Tunísia


como movimentos bem sucedidos, a favor de algo. As condições econômicas reinantes
no capitalismo mundial atual parecem apontar para a possibilidade de que tais levantes
ocorram em diferentes partes do mundo com possibilidade de sucesso. Porém muitas
análises atuais sobre o capitalismo são depressivas e negativas – alguns teóricos se
esmeram ao expor o funcionamento de dispositivos de captura de tal forma abrangentes
que nos levam a pensar que está “tudo dominado”, não vendo que, ao contrário, temos
sempre a oportunidade de “estar fórum2”. Enquanto isso, outros intelectuais parecem
estar sempre prontos a afirmar que o socialismo é impossível e que o capitalismo
venceu, restando-nos agora somente cumprir nosso triste destino.

Após as duas pesquisas a que já nos referimos, prosseguimos com nossa análise,
dessa vez lançando mão da filosofia de Spinoza para compreender melhor o fenômeno
do medo e da potência do coletivo3. Algumas perguntas nos inquietavam: seria o
dispositivo da criminalização poderoso o suficiente para comprometer definitivamente
ou a longo prazo a capacidade coletiva de transformar o sistema social em que vivemos?
Qual o alcance desse dispositivo? Quais os caminhos e possiblidades de sua superação?
2
Refletindo sobre o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, Eduardo Passos cunhou a expressão
« Tô Forum », para se referir às possibilidades sempre presentes de construir linhas de fuga frente a
dominação pelos dispositivos de controle.
3
Em 2010 e 2011 desenvolvemos a pesquisa de pós doutorado “A filosofia de Spinoza na
construção abordagens transdisciplinares no campo da violência e da criminalidade
contemporâneas” da qual este trabalho pode ser considerado como um produto.
10

Pode causar surpresa o fato de estarmos recorrendo a uma filosofia do século


XVII para pensar questões contemporâneas. Ao longo de nossas pesquisas, fomos
constatando que a filosofia de Spinoza era fecunda para a resolução de alguns impasses
teóricos e práticos que atravessávamos. Inicialmente questionamos, a partir dessa
filosofia, a “imposição limites” como único objetivo da intervenção terapêutica ou
socioeducativa no campo da chamada delinquência. (Rauter, 2005.) Ou a repetição
estéril de propostas repressivas nesse campo, sem que se possa construir estratégias
melhor fundamentadas teoricamente e com outro direcionamento e que se diferenciem
de soluções humanistas bem intencionadas, mas igualmente inócuas. A ineficácia do
ódio e da vingança e o fortalecimento de práticas de expansão da vida - essas são as
direções que pudemos depreender a partir do estudo dessa filosofia do século XVII e
surpreendentemente atual.
Consideramos que uma das utilidades maiores da filosofia de Spinoza é essa
possiblidade de transitar entre aspectos individuais e sociais sem os impasses que
muitas vezes paralisam a construção de estratégias clínico-políticas (Passos e Barros,
2009). Deleuze e Guattari viram essa qualidade do pensamento de Spinoza, que penso
ser uma das principais fontes das reflexões de “O Anti-Édipo”. A dificuldade ou
impossibilidade de transitar do campo individual ao campo social (e vice versa) era o nó
central de toda a psicologia e não bem resolvido pela psicanálise. Esse nó levava
frequentemente à despolitização do “campo psi”. O conceito de transversalidade, que
podemos considerar como herdeiro direito do pensamento de Spinoza, permite que a
psicologia deixe os grilhões da intimidade e o psicologismo, podendo com mais
desenvoltura lançar-se ao estudo de questões ditas sociais que envolvem também, assim
como as ditas individuais, o estudo dos afetos.

A ética não pode estar baseada na mera obediência a códigos ou princípios


gerais. Tal direcionamento, também proveniente de nossos estudos spinozistas, é
bastante útil para pensar o campo da chamada violência e da criminalidade e também a
construção de práticas neste campo. Pensamos que as práticas psicológicas dirigidas a
pessoas que cometeram crimes não podem estar apoiadas na mera obediência e menos
ainda na coerção e na ameaça. Não apenas por serem métodos incompatíveis com a
democracia, mas por serem ineficazes, como ilustram os chocantes relatos sobre o se
passa no dia a dia de prisões e instituições fechadas para jovens que apenas são capazes
de produzir sofrimento e mortes. (Arantes 2004, Kolker, 2009 Vicentin, 2005). Alguns
11

tratamentos atualmente propostos a dependentes de drogas, no campo da chamada


“justiça terapêutica” propõem a abstinência como condição de tratamento, o que seria
como exigir a cura antes do tratamento começar. A experiência penal e socioeducativa
brasileira está permeadas por preconceitos e valores morais que apenas reproduzem o
senso comum, conduzindo a práticas punitivas e coercitivas, ou à busca de soluções
inócuas e antidemocráticas, como o sempre tentado rebaixamento da maioridade penal,
proposta que goza do respaldo de uma parte da opinião pública.

Aprendemos com Spinoza que apenas a partir da liberdade de expressão e da


potência podem ser produzidas transformações subjetivas. Esperamos, a partir da
pesquisa conceitual nos domínios dessa filosofia, reforçar a construção de “conceitos
ferramenta” que possam nortear estratégias de trabalho com esse direcionamento.

A experimentação e o conhecimento: são esses os principais caminhos para


desconstrução do ódio, do medo, da impotência enquanto figuras do negativo. Mas o
conhecimento deve ser pensado, não como algo que se distancia do corpo e da
afetividade, mas como o que emana da experiência e que, portanto, não pode ser
desvinculado da afetividade. O clamor por punição e vingança são, na perspectiva
Spinozista, limitações do conhecimento, que podem ser superadas através de uma outra
modalidade de conhecimento onde “afeto e razão se conjugam”. (Martins, 2009)

O Brasil vive o paradoxo de ser uma democracia há algumas décadas e ao


mesmo tempo, um país onde existe extrema desigualdade econômica, o que é em si um
paradoxo, mas comparativamente ao período ditatorial, penso que avançamos do ponto
de vista de um maior protagonismo do coletivo. Apesar disso, convivemos com prisões
e instituições ditas socioeducativas para jovens que são verdadeiros campos de
concentração, onde podemos considerar que sobrevivem práticas ditatoriais (Coimbra,
2001). O pensamento político de Spinoza se revela, a nosso ver, muito fértil para se
pensar propostas de trabalho institucional na democracia. Qualquer sistema de governo
se erige sobre a multidão, que é de onde emana o poder político. Na construção de
práticas psicológicas ou intervenções clínico-políticas se trata sempre de estabelecer
conexões com o plano do coletivo. A sociedade é um campo vivo de forças e sua
organização não se refere à obediência cega a contratos abstratos, impostos de cima para
baixo, mas à construção de acordos coletivos complexos, com diferentes forças sociais
em jogo. A possibilidade de resistência da multidão está sempre presente, num
12

pensamento social que tem na guerra o pano de fundo da vida social. Diferentemente da
concepção clássica de Hobbes e que ainda se faz presente nos debates atuais, não é o
contrato, o respeito à lei considerada abstratamente, que fundamenta a sociedade.
(Bove, 2010) A atividade política enquanto virtude humana é produtora de acordos e
contratos provisórios que demandam atividade e potência, e não temor e obediência.
Não seria, portanto, a ameaça de punição que levaria à inibição de comportamentos
antissociais, mas o exercício democrático pleno, que incluísse todas as forças vivas da
sociedade em sua capacidade de resistência e afirmação. O temor à punição pura e
simples não é capaz de inibir o crime. Apenas a expansão da potência humana pode
concorrer para inibição do ódio, que é fruto, em última análise, das limitações e
coerções impostas a essa potência.

Neste trabalho, em que enfocamos especificamente o medo e a


despotencialização do coletivo como efeito do dispositivo da criminalização,
estudaremos a construção do conceito de multidão desde a Ética, acompanhando sua
elaboração nas partes III e IV até o Tratado Político. Noutro aspecto também a filosofia
de Spinoza se revela como portadora de importantes “ferramentas” para a psicologia
social e para a psicologia em geral: no desenvolvimento de uma perspectiva
transdisciplinar na qual a psicologia possa transitar para além de suas fronteiras.

O plano da vida se expressa tanto por meio de ações quanto por meio de ideias.
Ele é engendrador de problemas, de pensamentos, de estratégias construídas no sentido
da “perseverança no ser” ou no sentido da potência. A noção de estratégia clínica
retorna4, dessa vez voltada para construções que possamos fazer no campo da chamada
violência, ou nas instituições que compõem o dispositivo da criminalização. Na
construção dessas estratégias Clínico-Políticas, além de levarmos em conta os processos
em curso, buscamos estabelecer uma sintonia com o plano do coletivo ou do comum.
Importa-nos avaliar o grau em que nossas estratégias podem potencializar a vida, mais
do que sua pertinência a filiações teóricas. A noção de estratégia diz respeito também à
transdisciplinaridade. Podemos buscar em Spinoza seu fundamento: em Deus estão

4
Num trabalho anterior, Clínica do Esquecimento, assim nos referimos à prática clínica, à
trandisciplinariedade e à construção de estratégias: Não pensamos a prática clínica como técnica
sustentada por um corpo teórico do qual esta seria "aplicação". Assim, não se trata de propor uma
nova teoria ou uma nova técnica terapêutica que viesse resolver os problemas das demais. Trata-se,
ao problematizar o campo clínico entendido como campo teórico/prático, de propor estratégias
teórico-clínicas particulares, singulares, que digam respeito aos problemas também singulares que a
clínica nos propõe. Rauter, Clínica do Esquecimento, p.11.
13

presentes todas as ideias e enquanto essas ideias expressam sua potência infinita. Não há
um só caminho para se chegar a esse plano: os caminhos são múltiplos e o que mais
importa é estabelecer com o plano de imanência uma relação de porosidade. A noção de
estratégia diz respeito, por um lado, à afirmação de um ponto de vista, de um
pensamento adequado e útil no que diz respeito a essa expansão da vida. Diz respeito
também à singularidade e a diferença desse pensamento em relação a outros
pensamentos nesse campo. Neste sentido, diz respeito a um combate. Porém esse
combate não tem como finalidade o estabelecimento de uma teoria verdadeira, mas ao
grau em que as diferentes teorias podem ou não potencializar a vida que há nos
indivíduos e nas coletividades humanas. Em todas as teorias está presente um grau de
potência do pensar. A questão seria verificar, numa conjuntura dada, o quanto um
pensamento ou uma teoria está sendo ou não capaz de engendrar uma vida potente: o
que Spinoza define como sua utilidade.

A transdisciplinaridade, pensada a partir da filosofia de Spinoza, é também o


acolhimento da multiplicidade. Quanto mais encontros fizermos, mais
experimentaremos diferentes possibilidades e aproximações, podendo atingir uma
crescente complexidade na compreensão de um dado fenômeno. A complexidade é uma
das facetas da transdisciplinaridade e também de uma democracia da multidão –
diferentes campos do saber, diferentes aproximações com relação a um mesmo
fenômeno contribuem para uma complexificação das concepções sobre esse fenômeno.
Essa complexificação atende aos interesses de expansão da vida e da potência humanas.
Neste trabalho, composto de uma multiplicidade de autores e teorias, pretendemos
fortalecer a construção de estratégias democráticas para o campo da violência e da
criminalidade contemporâneas.

Os homens perseveram no seu ser quer com ideias adequadas, quer com ideias
inadequadas5. Mesmo com o medo à criminalidade hoje onipresente e partilhado
coletivamente, o povo brasileiro “persevera no seu ser”. O conhecimento, para Spinoza
não diz respeito a uma sabedoria presente apenas na mente do sábio ou do filósofo e sim
a uma “utilidade” que deve ser compreendida como a capacidade de se por em sintonia
com a dimensão do coletivo. O conhecimento útil é aquele ligado ao aumento de nossa

5
A mente, quer quando tem ideias claras e distintas, quer quando tem ideias confusas, esforça-se
por perseverar em seu ser por uma duração indefinida e está consciente do seu esforço. (E III, prop.
9).
14

potência. Agir, para Spinoza, é pensar bem e só se pensa bem sendo, o mais que se
possa, livre e autônomo.

Certamente teremos, enquanto povo brasileiro, outras lutas a empreender na


direção de nossa autonomia. Ou estaremos fadados ao medo paralisante em razão de
uma criminalidade avassaladora? Quais seriam os caminhos para vencermos essa as
engrenagens produtoras de medo e despotencialização? Para responder a essas questões,
analisaremos, no capítulo II um dos componentes do dispositivo da criminalização: as
engrenagens carcerárias, vislumbrando seus efeitos mortíferos sobre as subjetividades e
os coletivos, problematizando a solução penal e policial para crime. Com Spinoza e
também com Reich buscaremos compreender alguns dos efeitos do dispositivo da
criminalização, indicando brevemente a democracia da multidão como saída, porém
somente ao término do capítulo III este conceito se tornará mais claro. Nele discutirmos
a teoria dos afetos em Spinoza, focalizando o afeto de medo. O caráter político desse
medo coletivo nos levará ao conceito de multidão, bem como a uma reflexão sobre
nossas possibilidades de resistência frente aos dispositivos de captura construídos a
partir do medo à criminalidade. No capítulo IV analisaremos as outras figuras do
contemporâneo que produzem medo e outros afetos negativos, tais como a busca do
comodismo, a fuga do conflito e as dependências. Porém graças à natureza variável dos
afetos humanos, o controle social pelo medo só pode ser transitório, numa perspectiva
que aponta para a possibilidade sempre presente de que o medo se transforme em
rebelião e que as forças do coletivo possam ser acionadas.
15

II) Das engrenagens carcerárias à Democracia da Multidão

“Pobres demais para a dívida e numerosos demais para a prisão”. A afirmação


de Deleuze (1990) corresponde a um certo olhar sobre o contemporâneo, apontando
para a impossibilidade de que as coletividades sejam inteiramente controladas e
impedidas de empreender movimentos de resistência.

Fazendo parte do dispositivo da criminalização, um conjunto de instituições atua


em “em rede” contribuindo para a difusão de diferentes estereótipos produtores de
subjetividades. Uma das instituições que atuam nessa rede é a prisão. A prisão é vista
por Foucault(1977) como a mãe das instituições disciplinares, no sentido de que ali são
gestadas muitas das engrenagens que se multiplicarão no campo social. Uma das
“utilidades” políticas da prisão é a de produzir uma separação entre as ilegalidades,
fazendo com que estas percam sua proximidade com as reivindicações ou lutas
populares. O capitalismo assistiu, desde o seu início, a ondas de contestação popular,
com quebra-quebras de máquinas, greves e outras manifestações. Através do que
Foucault descreveu como produção da delinquência, o cometimento de atos ilegais
passa a ser expressão de um certo modo de subjetivação que tem na infração à lei um
sintoma. “Porém o espantoso, como diz Reich, não é que algumas pessoas roubem, que
outros façam greve, mas antes, que os famintos não roubem sempre e que os explorados
não façam sempre greve” (Deleuze e Guattari, 1976, p. 47). A produção da
delinquência, operada na engrenagem carcerária, fará com que muitas manifestações de
rebeldia ganhem uma conotação patológica e apolítica. Não que todo crime possa ser
considerado diretamente político, mas muitos crimes dizem respeito às condições de
exploração geradas pelo capitalismo. Cavando um fosso entre atos considerados como
crime e outros tipos de rebeldia popular, a prisão e a produção da delinquência impedem
ou diminuem as possibilidades de que a contestação se alastre.

A prisão é apresentada como solução para o crime, como destino natural do


criminoso, apesar de ser uma instituição que todos sabem fracassada. Porém em seu
contínuo fracassar, a prisão se reedita e se torna insubstituível. As instituições
carcerárias se constituem numa região importante do dispositivo da criminalização,
16

porém a experiência prisional não se esgota no espaço intramuros: há uma lógica


prisional que é disseminada no campo social, com consequências políticas importantes6.
Neste sentido, o que aprisiona não são apenas as grades.

Um fenômeno que sempre me impressionou em minha experiência em prisões


foi o a quantidade tão pequena de guardas nos presídios em relação ao número de presos
e a possibilidade real de que presos amotinados as derrubassem e fugissem, inclusive
face à precariedade das construções. O que os impede de fugir? Até mesmo os guardas
se surpreendem com esse fato! Há muitos presídios e penitenciárias onde o número
daqueles encarregados da custódia de presos é irrisório, como ocorria num presídio de
“segurança máxima” que visitei.

Para responder a essa questão teremos que examinar os múltiplos mecanismos


de produção da submissão ou da servidão, ponto sobre o qual retornaremos, e que terá
relevância em nosso trabalho. Ao focalizarmos neste momento o que se passa nas
prisões, teremos que fazer menção ao que concorre para a destruição dos laços de
solidariedade horizontal e para o privilégio dos laços verticais, hierárquicos, que
implicam em relações de comando e obediência. Faz parte do funcionamento das
engrenagens carcerárias o estabelecimento de uma situação de carência generalizada -
nas prisões brasileiras faltam cobertores, sabão e pasta de dente, colchões, remédios, e
nem sempre porque o poder público não providencia esses itens, mas porque eles não
chegam ao destino face à corrupção institucionalizada. Os agentes de segurança
“governam” premiando a delação, estabelecendo diferenciações entre presos que
colaboram e que não colaboram, tendo os primeiros muitas vantagens sobre os demais e
constituindo a zona cinzenta a que se referiu Primo Levi ao analisar o funcionamento do
campo de concentração. Como mostrou Levi (1990, p.7), sem uma zona cinzenta de
colaboração dos próprios prisioneiros, o domínio nazista não teria sido possível nos
campos. E do mesmo modo, nas prisões brasileiras, uma complexa engenharia subjetiva
de dominação se encarrega de fazer com que, tal como em nossas ruas, o vizinho de cela
seja mais frequentemente um rival ou um inimigo do que um aliado.

Em torno de qualquer prisão está a polícia militar fortemente armada para


impedir fugas e podemos lembrar Carandiru, o presídio de São Paulo no qual mais de

6
Pensamos uma lógica prisional partindo do que Peter Pal Pelbart propôs como sendo uma
lógica manicomial ou um “manicômio mental”, que mesmo com a extinção dos
manicômios continuaria presente “extra muros”, no campo social. (Pelbart, 1993).
17

cem presos desarmados foram mortos a tiros pela polícia, em 1992, o que pode parecer
razão suficiente para saber o que mantem uma massa de homens presos. Porém Foucault
mostrou, através do conceito de poder disciplinar, que não é apenas pela força das armas
que os homens se assujeitam, mas também por dispositivos que os transformam em
indivíduos úteis e dóceis. Esses dispositivos operam no campo da produção de
subjetividades – eles passam pela produção de posturas corporais, pelo controle sobre a
agressividade e pelo controle das mentes.

Pensamos estar havendo uma desorganização de alguns dispositivos


disciplinares, como a escola ou até do quartel (que hoje enfrenta dificuldades para servir
refeições gratuitas aos soldados). Esses controles mais finos, que agem
individualizadamente, estão sendo substituídos por dispositivos de controle a céu
aberto, que agem de modo não tão minucioso, mas mais abrangente, sobre um grande
número de pessoas. Podem ser descritos como dispositivos visuais e de estratégia
militar – quantas pessoas havia numa passeata? A polícia parece dispor de um saber
sobre isso, embora seus cálculos sejam sempre divergentes (para menos) daqueles
realizados pelos organizadores dos movimentos sociais. Podemos pensar que as
multidões contemporâneas são também compostas por individualidades que foram
trabalhadas pelos dispositivos disciplinares hoje em fase de desorganização, mas que
estão sendo “controladas” por outros meios. As disciplinas talvez tenham se tornado
“muito caras” para as economias neoliberais. No horizonte da sociedade de controle, as
prisões estão também sofrendo um processo de transformação: de instituições parentes
próximas do quartel ou mesmo da escola, talvez estejam se tornando instituições de
simples armazenamento de uma massa de homens emparedados. Em relação a eles, o
estado não parece ter mais nenhuma ilusão “re” (ressocializadora, recuperadora, de
reinserção social, etc). (Batista, 2008)

A defesa do encarceramento como solução para o crime e mesmo para questões


que outrora pertenciam à outra esfera, como as pensões alimentícias, violência
doméstica ou crimes ecológicos, é uma constante no contexto brasileiro. Há um
ressurgimento da prisão no contemporâneo, instituição que parece sempre estar pronta a
ressurgir das cinzas.

Que ganhamos ou o que ganha a sociedade ao encarcerar alguém? Apenas seu


isolamento, com efeitos mortificadores não só sobre ele próprio, mas que se estendem
18

como uma mancha sobre aqueles que lhe estão próximos, alastrando-se pelo campo
social. Se o apenado era alguém que não tinha emprego antes de cumprir a pena, depois
de cumpri-la terá muito mais dificuldades de conseguir trabalho lícito. Se cometeu um
delito leve, depois da prisão terá, muitas vezes, entrado de vez na carreira criminosa. No
entanto, no panorama político atual, nada sobressai tanto quanto a demanda crescente
por mais punições e condenações, configurando um “clamor pela solução penal de
questões sociais”. (Rauter, 2006)

Uma das vertentes dos discursos que apontam a prisão como solução é o de que
a certeza da punição pela pena de prisão teria o poder de inibir o crime. Os indivíduos
seriam dissuadidos de praticar atos criminosos caso soubessem que a punição viria com
certeza. Associada a essa ideia está a de que os indivíduos podem optar entre cometer
ou não um delito, decorrendo este de uma escolha. Ora, muitos atos criminosos resultam
não desse cálculo racional, mas justamente da suspensão do mesmo. A concepção de
que é possível escolher entre praticar e não praticar um delito mediante a uma avaliação
custo-benefício (se cometer um assalto, vou preso, então vou desistir de praticá-lo)
estende para a humanidade inteira aquela que parece ser a mente de um homem de
negócios, sempre buscando decidir lucidamente sobre o passo a seguir de modo a evitar
prejuízos. Embora possa existir quem faça tal cálculo antes de cometer um crime,
muitos atos criminosos expressam não a escolha pela transgressão, mas a suspensão da
capacidade de fazer escolhas racionais (Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar, 2003, pp.
117). O que ocorre muitas vezes nos crimes contra a vida é deixar-se tomar pelos afetos
de ódio, de inveja e vingança. Outro elemento a ser considerado é que alguns crimes
praticados por organizações criminosas e máfias têm na possibilidade de ser preso algo
que faz parte do negócio, existindo mesmo um esquema montado no interior dos
cárceres, que são apenas um ponto na engrenagem da organização. O poder inibidor ou
de dissuasão da pena de prisão nesses casos é mínimo. É frequente, no estado do Rio de
Janeiro, que quem cumpre pena em regime aberto receba instruções da facção a que
pertence para funcionar com uma espécie de pombo correio da organização, entre o
dentro e o fora do cárcere.

A palavra crime designa uma quantidade grande e diferenciada de ações


humanas. Em especial nos crimes contra a vida, podemos considerar que eles
correspondem a se deixar tomar por afetos tristes, que resultam sempre, de certa
19

passividade, de perda da capacidade de agir de modo autônomo, mais do que de uma


atitude ativa.

Façamos uma breve reflexão a cerca do mal a partir de Spinoza que poderá nos
ajudar a pensar sobre o problema do crime. Para Spinoza, os afetos humanos são iguais
em toda parte, quer se trate de policiais, criminosos, psicólogos ou empresários. Não
buscaremos tendências inatas ou constitucionais para explicar atos que resultem na
eliminação de outros seres humanos, para o egoísmo, o ódio ou a vingança. Buscamos
compreendê-los, como todos os outros atos humanos, como efeitos dos encontros que
fizemos ao logo da vida. Não existe no mal qualquer substância. A negatividade
presente no campo social que se expressa tanto na violência policial quanto nos atos
criminosos, em especial nos crimes contra a vida, corresponde não a uma tendência
inerente ao humano ou à sociedade humana, mas processos a ser compreendidos, a uma
genealogia dos modos de subjetivação, produzidos num campo social dado. (Rauter,
2003B).

Uma só substância engendra tanto fenômenos positivos quanto os negativos,


presentes na destrutividade dirigida a si e aos outros. Esse plano virtual é concebido
como um campo para além do bem e do mal, não cabendo pensa-lo como ligado à
negatividade, esta sim engendrada a partir de constrangimentos que são secundários em
relação a esse plano. O negativo é visto como ilusão da razão. O mal não pode ter
qualquer existência real, não pode estar presente na essência do ser. Já o “mau” tem
uma existência concreta e resulta do mau encontro, do constrangimento, de tudo o que
gera a tristeza. A crítica spinozista a instâncias transcendentes (o mal) traz novos
parâmetros para a construção de uma ética pensada nas experimentações concretas do
campo das práticas coletivas.

Negando ao mal qualquer substância, coloca-se a questão acerca do mal


praticado pelo mal feitor. Poderia haver um ser cuja essência fosse a prática de crimes?
(Deleuze, 2002). Se por um lado, a literatura atual sobre o transtorno antissocial parece
ir nessa direção, encontramos na filosofia de Spinoza outras direções. Examinemos o
ato criminoso nele mesmo. Aquele que ergue o braço e empunhando uma faca, mata,
expressa com este movimento uma potência do corpo e enquanto tal, expressa algo
disso que está para além do bem e do mal. Mas o que faz desse ato um ato mau (e aqui
utilizamos propositadamente o adjetivo mau e não o substantivo mal, que encerra uma
20

generalização) é a ideia que o acompanha, a ideia de matar, de decompor com esse ato
as relações de um outro corpo que não pode suportar esse encontro sem que seja
aniquilado, suprimindo assim a possibilidade de novos encontros de corpos. A ideia de
matar, o ódio, são eles próprios afetos tristes, sempre secundários, sempre resultado de
constrangimentos e de tiranias que são internalizados, mas que não estão dados no plano
do ser, ou seja, não podem ser considerados como tendências inatas ou constitucionais,
independentes ou anteriores ao ambiente e às experiências adquiridas. A ideia de
destruir é que configura a maldade do mal feitor. E as ideias, para Spinoza, nascem da
experimentação ou das vivências que temos. A ideia de matar é uma ideia inadequada.
O ódio está sempre ligado ao constrangimento e à impotência, a ideia de destruir só
aparece como efeito das tiranias e envenenamentos que a produziram. Assim, se
quisermos compreender os crimes contra a vida a partir da filosofia de Spinoza, teremos
algumas importantes ferramentas teóricas: modos de subjetivação, o indivíduo
composto de múltiplas partes; o ato violento como fruto de limitações do conhecimento,
de ideias inadequadas, mas nunca fruto de uma essência.

Penso que há um problema colocado para a vida social quando muitos seguem o
caminho do crime. Porém a maneira de diminuir o número de crimes não é a de
anunciar todos os dias a prisão ou a perseguição aos ditos bandidos, ou já teríamos
conseguido baixar os índices da criminalidade entre nós, tal a “ferocidade” do
noticiário. O caminho da pena não é um bom caminho para garantir a paz. Adverte
Spinoza: “[está] mal constituída uma cidade em que todos os dias são divulgadas penas
exemplares contra os delinquentes” (Spinoza, Tratado Político, Cap. VIII, 41, p.114) .
Essa incapacidade de proporcionar a paz e a concórdia aos cidadãos ameaça
constantemente a sobrevivência do próprio estado.

Para o criminólogo inglês Jock Young (2002) a difusão do medo, do terror e das
soluções penais e policiais frente ao crime são mais sintoma que solução. Ou como
poderíamos dizer a partir de Spinoza: são ideias ligadas a afetos tristes,
despotencializadoras, o que Spinoza define como “ideias inadequadas”. Uma espécie
de armadilha na qual estamos todos capturados.

Embora a palavra “crime” abrigue, como já mencionamos, muitas situações e


sentidos diferentes, podemos considerar que atos destrutivos são consideravelmente
agravados, como bem sabem os educadores, quando a resposta frente a eles é ao estilo
21

“olho por olho, dente por dente”. Como os indivíduos são complexos, sejam eles
criminosos ou não, ou como “os afetos humanos são os mesmos em toda parte”
(Tratado Político, Capítulo 5, artigo 2) – seja numa favela pacificada, num condomínio
de luxo ou numa universidade, o que importa é compreender as causas dos
comportamentos destrutivos e agir sobre elas. Não discordamos de que a sociedade deve
decidir o que fazer com quem rouba e mata, evitando um mal maior caso cada um se
ache no direito de resolver pessoalmente o que fazer quando lhe ocorrem essas
situações. Porém a possibilidade de pensar positivamente o direito de julgar e condenar
se encontra dificultada ou até impossibilitada em sociedades desiguais, hierarquizadas e
arbitrárias como a nossa, onde se pune muito mais pela cor e pela quantidade de
dinheiro que se tem do que pela gravidade do ato praticado. A ilegitimidade do sistema
penal, em especial na América Latina, como apontou Zaffaroni (1991), se deve ao seu
funcionamento seletivo e discriminador, configurando-se num verdadeiro instrumento
de genocídio dos pobres. Porém essa ilegitimidade flagrante dos sistemas penais tem se
alastrado.

Mesmo nos países há até bem pouco tempo considerados do primeiro mundo, as
polícias estão cada vez mais voltadas para os pequenos roubos, e para os chamados
crimes de bagatela, aqueles que permitem encarcerar os pobres urbanos. E sem dúvida,
para os crimes ligados ao tráfico e ao uso de drogas, dependendo largamente também,
da “personalidade do agente” e de sua “periculosidade” a severidade com que estes
crimes serão punidos. Na definição de periculosidade desempenha na prática um papel
importante a cor e a origem social do suspeito de crime, porém esse critério de avaliação
pode permanecer oculto. O código penal brasileiro de 1940 deu aos juízes a
possibilidade técnica de julgar personalidades, mais do que atos criminosos e tal
possibilidade permanece e se amplia, também através da solicitação de laudos e
pareceres técnicos que instrumentarão as decisões de juízes e outras autoridades
judiciárias (Rauter, 2003).

Ex-presidentes, políticos e policiais, como John Grieve, da Scotland Yard, têm


vindo a público defender a descriminalização das drogas. Grieve (2009) declarou que a
política criminal antidrogas, tal como vem sendo praticada na Inglaterra, tem apenas
contribuído para encarcerar pessoas negras e pobres, enquanto o consumo e o comércio
de drogas não param de crescer. De resto, é curioso pensar que sociedades que fazem o
22

elogio de tudo vender e tudo comprar livremente se dediquem tão obstinadamente a


prender e até matar aqueles que, em princípio, desenvolvem uma atividade comercial.

A criminalização do uso de drogas é em vários aspectos insustentável do ponto


de vista jurídico, por ser este um tipo de delito sem vítima, ou cuja vítima é o próprio
usuário, que voluntariamente faz uso de uma substância. Mesmo a venda de drogas não
implica nela mesma em nenhum dano a terceiros. O direito penal exerce de modo
flagrante, neste caso, uma função onde sobressai uma intenção meramente repressora,
com duvidosos fundamentos morais ou vagos e genéricos objetivos de saúde pública.
(Carvalho, 2006, p. 151-153). No entanto, é o discurso belicoso contra as drogas uma
das figuras do chamado direito penal do inimigo e não diz respeito apenas a discursos,
mas a práticas de guerra, como ilustra a lei brasileira que autoriza, desde 2004, a
destruição de aeronaves suspeitas de tráfico de drogas. Em alguns países, essa postura
belicista cria a todo momento “estados de exceção”, em plena vigência de constituições
democráticas, o que contraditoriamente costuma ser defendido também pela esquerda.
Karam (1996) analisou o funcionamento de uma “esquerda punitiva”, que hoje defende
a pena como solução de conflitos sociais, fazendo coro a setores da direita. Constitui um
verdadeiro paradoxo que grupos se organizem para reivindicar o fim da tortura ou para
denunciar torturadores e ao mesmo tempo defendam que torturadores vão para a prisão,
postura que muitos defendem, mas com a qual não concorda o Grupo Tortura Nunca
Mais do Rio de Janeiro. O surgimento de uma esquerda punitiva apenas concorre para
que a prisão seja vista de forma unânime, por muitos setores da sociedade, como
solução para o crime, o que é perfeitamente condizente com a ascensão do “estado
penal” tal como descrito por Loic Wacquant (2001). Para este autor, a principal política
social do neoliberalismo é o encarceramento, configurando o fim do estado de bem estar
social. Na construção dessa política, a guerra contras drogas ocupa um lugar central na
América Latina, seguindo diretrizes impostas pelos Estados Unidos. Salo de Carvalho
(2006) relata que a política criminal antidrogas brasileira, iniciada nos anos 70 e
seguindo diretrizes norte-americanas, combatia a cocaína quando essa droga se quer se
constituía num problema real entre nós. Os crimes relacionados ao comércio e ao uso de
drogas tem levado para as prisões brasileiras uma quantidade sempre crescente de
jovens pobres, o que foi agravado desde a aprovação da lei dos Crimes Hediondos em
1990, que incluiu o tráfico de drogas entre os crimes assim classificados. Para Salo de
Carvalho, “o efeito visível deste novo tratamento penal da questão das drogas é a
23

potencialização do encarceramento” (Carvalho, 2006, p. 153). Além disso, a política


criminal brasileira em relação às drogas pode ser classificada como uma “política
criminal com derramamento de sangue” (Batista, 1998), o que podemos constatar pelas
mortes autorizadas de traficantes e suspeitos de tráfico nas favelas e bairros populares
por todo o Brasil.

Muito se alardeia sobre o interesse da polícia em capturar assassinos, pedófilos e


outros criminosos particularmente odiados, porém o fato é que temos, no Brasil, uma
polícia em grande parte incapacitada pra investigar e prender criminosos, pois é, antes
de tudo, uma força bélica que se prepara para uma guerra. Numa guerra importa a
eliminação pura e simples de um inimigo. Para prender criminosos são necessárias
outras habilidades mais sutis.

Retornemos ao exame das razões que nos impedem de considerar a prisão como
solução para o crime ou para qualquer problema social: se o crime não pode ser
considerado expressão de uma tendência para o negativo, se queremos combate-lo ou
diminuir sua incidência, devemos considerar a ineficácia de apenas dar limites ou de
encarcerar7. Devemos levar em conta, além disso, que dadas as condições de operação
das atuais engrenagens jurídico-policiais, elas só conseguem que caiam em sua malha
atos “toscamente praticados, pelos agentes mais vulneráveis” (Zaffaroni et al, 2003, p.
119). Contrastando com essa realidade inquestionável de que os grandes crimes
financeiros, ecológicos e mesmo os homicídios de massa ficam de fora do alcance desse
sistema, como também mostrou Hannah Arendt8 quando discutiu o julgamento de
Eichmann, cabe perguntar o que se pretende quando se conta com o sistema penal para
pretensamente garantir a paz social. Numa cena que talvez seja mais tipicamente
americana do norte, muitos familiares de vítimas de homicídio hoje se declaram, diante
das câmeras de TV, justiçados ou vingados pela condenação de seu autor. Essas pessoas
procuram expressar algum contentamento diante da condenação do criminoso após um
longo processo criminal que geralmente se arrasta anos a fio, mas acabam expressando
muito mais um cansaço em relação a tudo pelo que tiveram que passar. Uma outra

7
Abordei essa questão num artigo anterior: Para Além dos Limites, 2005.
8
Hannah Arendt mostrou que Eichmann, o grande executivo do extermínio, responsável pela
deportação em massa de judeus dos países da Europa para os campos, não poderia a rigor ser
acusado de nenhum crime. Havia um problema espinhoso para a ordem jurídica ocidental... [o de]
“lidar com culpas históricas e políticas com processos criminais”. (Arendt, 2000, p. 33)
24

idiossincrasia desse sistema é que, monopolizando o direito de vingança, o estado pouco


ou nada faz pelos que foram diretamente afetados.

Para algumas teorias do direito penal o que importa é aspecto comunicacional,


ou seja, a difusão, no campo social da punição, que contentaria ou confortaria aqueles
que se abstêm de praticar delitos, pois em princípio qualquer um poderia praticá-los. O
estado seria um verdugo, sempre espreitando seus cidadãos, criminosos em potencial,
para aplicar-lhes severas penas. Nesse pensamento “o delito perde sua essência de
conflito no qual direitos são feridos, reduzindo-se à infração de um único direito
subjetivo [ ...] o do próprio estado que exige obediência”. Esquece-se inteiramente que o
estado “é um instrumento de vida e não um carcereiro ou verdugo”. (Direito Penal
Brasileiro, p. 119). Mais à frente teremos ocasião de discutir a função do estado a partir
do pensamento político de Spinoza, porém indiquemos neste momento que para este
filósofo, a função do estado é a de promover, tanto quanto possível, a paz e a concórdia,
sendo, aliás, esse o único meio que assegura a sobrevivência do próprio estado,
enquanto ele for capaz de provê-las.

O simplismo de algumas certezas veiculadas na mídia, tanto por especialistas


quanto por autoridades, contrasta com a complexidade da questão do crime.
Concordamos com Milton Santos, que pensa que um sistema social como o nosso, onde
a guerra de todos contra todos é incentivada através o estímulo à competição, colhe
como resultado que muitos tenham que lutar com as armas que têm. O fato é que os
valores atualmente veiculados, de defesa da economia de mercado e da livre
competição, produzem, além de agravar a imensa desigualdade social brasileira,
desastrosos efeitos subjetivos que afetam diretamente as possiblidades de haver “paz e
concórdia”. Por certo não nos referimos aqui à paz diretamente vinculada à ação
policial, à chamada “pacificação” que seria proporcionada pelas assim chamadas
Unidades de Polícia Pacificadora ou pelo aumento do efetivo policial nas ruas do Rio,
por vezes reclamado por movimentos “pela paz”. Podemos considerar que esse tipo de
paz seja a paz dos cemitérios – a não seria a primeira vez que a palavra pacificação é
utilizada com esse sentido. Como mostrou Vera Malaguti (2012) essa palavra designa
desde o século XIX as ações repressivas do estado contra os movimentos populares,
sempre gerando muitas mortes, como no caso da repressão ao movimento conhecido
como cabanagem, que incluiu também o massacre de muitos índios: “O estabelecimento
da centralização do território para o Império brasileiro também foi chamado de
25

pacificação [...] Só no estado do Grão-Pará foi massacrada quase a metade da


população” (Batista, 2012, p. 7).

2. 1) A solução prisional brasileira

E depois que prendemos um criminoso? Que acontece depois da prisão? Não


fazer essa pergunta tem reeditado entre nós o mesmo silenciamento e indiferença sobre
o destino dos judeus, ciganos, comunistas e homossexuais na segunda guerra mundial,
que acabou levando ao extermínio de milhões de pessoas. Muitos são os homens de
mídia ou cidadãos que clamam pela prisão como solução para ondas de criminalidade
disseminadas de modo súbito nas cidades e que se regozijam com o anúncio da prisão
de alguns criminosos, porém quase ninguém se pergunta ou se interessa pelo que
acontece depois.

As prisões brasileiras podem ser consideradas como campos de concentração e,


no entanto, elas são diferentes deles e nem sempre para melhor, exceto pelo fato de não
haver fornos crematórios. É verdade que nas prisões brasileiras não se mata
oficialmente, embora haja muitas mortes nas prisões. Há todo um esforço para prender,
como se essa fosse a solução para o crime, mas o que ocorre depois é a continuidade do
crime, dessa vez cometido pelo próprio estado e em razão da superlotação carcerária,
dos espancamentos, das péssimas condições sanitárias e outras violações de direitos
humanos que ocorrem durante o cumprimento da pena.

Continuemos com nossas comparações entre os “lager” ou campos de


concentração e as prisões brasileiras: nos primeiros havia espaço físico, mas pouca
comida. Nas nossas prisões geralmente há comida (apesar de conter às vezes detritos ou
de estar estragada), mas com muita frequência falta espaço. Nos campos de
concentração da segunda guerra não se dormia “valetado”, ou seja, organizado com os
pés e cabeças alternadamente distribuídos, os corpos encaixados, que é como dormem9
os presos em carceragens superlotadas, destinadas a presos provisórios no Rio de

9
Algumas dessas prisões são desativadas por pressão de setores da sociedade, porém acreditamos
que o problema da superlotação persiste em todo o Brasil.
26

Janeiro. Abordando as “estratégias de rodízio para o sono de presos no Rio de Janeiro”,


Rossotti (2011) descreve a seguinte sena:

“Alguns nas redes, outros esperando de pé, enquanto uma enorme


massa ocupa o chão “valetando”. No momento da construção do relato,
todavia, falhou-me a memória e fui haver-me coma a lembrança de
homens desesperados, amarrando-se com lençóis às grades, de modo a não
esperar sua vez no rodízio para dormirem”. (Rossotti, 2011, p. 48.)

Nos lager havia trabalho estafante e mortal, enquanto nas nossas prisões há
ociosidade entediante, que é também mortal para a subjetividade, como mostrou
Goffman (2011) ao analisar os processos de mortificação do eu enquanto efeitos das
instituições totais sobre as subjetividades. “Lá era o maior veneno: no pátio o dia todo.
O único direito que você tem é ficar sentado o dia todo, quieto, no proceder. Todo
mundo, o maior silêncio. Uma hora tem que quebrar (Vicentin, 2005, p. 52)!”

Podemos dizer que nas prisões brasileiras não há extermínio sob a forma de
câmaras de gás, mas há mortes decorrentes da falta de tratamento para doenças e
ferimentos, alguns produzidos por espancamentos ou pela tortura, além daquelas
ocorridas em conflitos entre presos, por vezes com a conivência ou incentivo dos
carcereiros. Nada caracteriza tão bem a tragédia do nosso sistema penal quanto a
superlotação carcerária. O Brasil teve um ritmo de encarceramento “alucinante” na
última década (Salla e Alvarez, 2012):

Em 1993, eram 126.152 presos (taxa de 83,2 por 100 mil habitantes) e, em junho
de 2011, chegou-se a 513.802 presos (taxa de 269,3 por 100 mil habitantes). O impacto
desse crescimento sobre os sistemas prisionais dos estados foi considerável, uma vez que os
investimentos em construção e aparelhagem dos estabelecimentos prisionais nunca
seguiram esse ritmo, da mesma forma que a contratação de pessoal sempre esteve abaixo
das necessidades.

Houve um crescimento da população carcerária do Estado do Rio de Janeiro da


ordem de 45% entre 2002 e 2006. As condições de insalubridade se agravaram ao ponto
em que hoje a incidência de tuberculose nos cárceres cariocas e fluminenses é 35 vezes
maior do que na população em geral. (Diuana, 2008, p. 106). A tuberculose mata nessa
instituição, mesmo quando existem médicos e remédios. O que ocorre é que parece ser
muito difícil realizar ações voltadas para a saúde num local especializado na produção
27

de sofrimento e morte. Os agentes penitenciários recusam-se à tarefa de zelar pela


continuidade do tratamento do interno após a alta da unidade hospitalar, afirmando que
essa não é sua função. O próprio preso também, com frequência, recusa a medicação,
talvez por recusar mais esse estigma que lhe é colado à pele: além do estigma do
bandido, deverá carregar o estigma do doente contagioso. Verifica-se com frequência
que o uso da medicação é interrompido uma vez que a doença, como tudo o mais,
insere-se na lógica prisional – a pesada hierarquia impede que guardas possam exercer
sua função de custódia no sentido de zelar pela continuidade do tratamento, ou que os
presos se cuidem, talvez por viver em tristeza e desânimo culposo. O medicamento pode
ser “tomado” do preso, em meio as frequentes ações justificadas por razões de
segurança, os muitos “conferes” nos quais todos os pertences do preso lhes são
confiscados. Porém o feitiço vira contra o feiticeiro e o pavor do contágio assombra os
agentes penitenciários:

Prender a respiração ao entrar nas celas ou ao abrir o camburão: último recurso


para manter a separação e impedir a penetração do mal, tanto no plano do corpo como no
das identidades. Essas medidas defensivas baseadas em premissas equivocadas, além de
ineficazes, acabam por contribuir para aprofundar ainda mais a distância e dificultar o
convívio já difícil entre agentes de segurança penitenciária e detentos. (Diuana, et al. P.
109).

Algumas mortes nos presídios brasileiros podem até mesmo ocorrer por mera
desorganização desse sistema, não necessariamente pela intenção malévola de alguém,
mas apenas por “descuido”. Do mesmo modo, por esse tipo de “descuido”, muitos
presos são soltos após anos de cumprimento de pena sem qualquer aviso: a tão ansiada
liberdade chega e o pega desprevenido, “sem lenço e sem documento”, porém sem o
glamour da música de Caetano. E estes homens são literalmente “cuspidos” para fora do
sistema, e nessas condições, podem com facilidade ser recapturados por estarem sem
documentos, restando-lhes o retorno às práticas que os levaram à prisão. Operam aqui
as engrenagens descritas por Kafka, nas quais os grandes e os pequenos personagens se
igualam em importância: um juiz linha dura, diretor de presídio benevolente, um guarda
especialmente mau, um psicólogo bem intencionado. Nessa engrenagem sem centro não
importam os indivíduos, mas a engrenagem ela própria, com todos os seus pequenos
“dentes”, incluindo-se aqueles que do espaço extramuros pedem constantemente mais e
mais prisões. Enquanto isso, mais uma onda de “medo” é desencadeada pela divulgação
pela mídia dos últimos fatos violentos ocorridos, alternadamente, ora num, ora noutro
28

ponto da cidade. Esses que há pouco estavam tomados pelo medo tendem a alegrar-se
ao saber que “bandidos” são presos, desde os que manifestamente clamam pela pena de
morte até os que simplesmente se despreocupam e chancelam esses “descuidos” que
tornam os presos no Brasil um fardo que ninguém quer carregar, nem mesmo as
autoridades que têm essa responsabilidade. E poderíamos aqui trazer inúmeros relatos
em diferentes épocas, de maior ou menor gravidade, todos eles conduzindo à
constatação já prenunciada: a de que se trata de vidas não importantes, perfeitamente
matáveis e de um sistema que opera em duas faces: a produção do medo em larga
escala e a fabricação em série de presos, sem que se tenha onde ou como absorvê-
los, tal a velocidade dessa fabricação.

Às vezes o estado encontra “soluções” heterodoxas para a superlotação


carcerária, acomodando os presos em containers:

O local tem capacidade para 144 presos e tinha quase quatrocentos [...] A
temperatura, no verão, passa de 45 graus, segundo vários depoimentos. Não há
qualquer atividade laboral [...] Não há médico. Não há advogado. Não há
defensoria. [...] As visitas são feitas através de uma grade farpada. São fatos
comuns crianças se cortarem ao tentar pegar na mão dos detentos por entre as
grades. Sob as celas encontramos um rio de esgoto. Na água preta e fétida
encontravam-se insetos, larvas, roedores, garrafas de refrigerantes, restos de
marmitas, restos de comida, sujeiras de todos os tipos. [...] O cheiro era de causar
náuseas. Vencendo a repugnância do odor, aproximamo-nos dos presos. Novas
denúncias de comida podre e de violências. Encontramos um preso com um tiro no
olho e outro com marcas de bala na barriga. (Conselho Nacional de Política
Penitenciária apud Rossotti, 2011, p. 48.)

As engrenagens carcerárias brasileiras são letais. São muitas as mortes em


nossas prisões, embora não haja dados oficiais sobre isso e nem uma política oficial de
extermínio de criminosos. Isso, é claro, sem falar nas mortes dos suspeitos de crime pela
polícia nas ruas, mais frequentes quando o suspeito é negro e pobre. Por outro lado,
tomados pelo espírito de vingança, muitos são os que, ao saberem de alguma melhoria
das condições carcerárias, acham injusto que bandidos vivam em melhores condições
que trabalhadores honestos e pensam que as prisões devem continuar ser como são.
Como as condições de trabalho e de salário reinantes no país estão muito aquém das que
poderiam proporcionar uma real melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores,
qualquer melhoria relativa às condições dos encarcerados é vista com suspeição. “Quem
tem que melhorar sou eu, que sou cidadão honesto! Pra bandido, isso até que está muito
29

bom”! Esse pensamento é um obstáculo para que profissionais que atuam nos cárceres e
mesmo em programas sociais extramuros não busquem melhorar a qualidade do seu
trabalho. Eles pensam que o pouco que fazem, já é muito.

Nos projetos sociais atualmente realizados em “comunidades” do Rio de Janeiro,


é comum que se veja o projeto como uma benesse e se um jovem o abandona, a culpa é
sempre dele. (Chagas, 2010, p. 90) Os projetos sociais não falham, já que são dirigidos
aqueles que personificam a própria falha: os jovens pobres, negros e favelados.
Esquecidos de que apenas a partir do desejo ou do engajamento desses jovens se pode
produzir transformações que façam sentido para eles, muitos dos responsáveis por essas
iniciativas as impõem de forma hierarquizada, com pouca ou nenhuma discussão por
parte dos beneficiados. As razões das faltas ou abandono não são discutidas; atestam
apenas alguma falha do próprio jovem. Mente vazia é oficina do diabo! É preciso o
ocupar esses jovens, antes que eles se tornem criminosos... Esse é o texto subjacente a
algumas missões “de salvação” em comunidades “pacificadas”. Nossos trabalhadores
sociais com frequência condenam o baile funk e enaltecem jovens dançando ballet
clássico, tocando violinos e violoncelos, atualizando nos morros cariocas uma antiga
visão colonialista, que considera que o gosto Europeu deve se generalizar por toda a
humanidade.

Na Casa de Inverno, projeto social desenvolvido pela equipe coordenada por


Antônio Lancetti na prefeitura de Santos, na década de 90, as propostas de organização
da casa deveriam surgir nas assembleias das quais participavam moradores de rua e
técnicos, num direcionamento democrático nem sempre presente em projetos sociais.
Sem esse direcionamento, a dimensão do coletivo não pode ser acionada, perdendo-se
grande parte da potência afetiva e criadora dos participantes dos projetos e das próprias
equipes. Nas assembleias da Casa de Inverno,

“cada ideia organizativa era ancorada em simpatia ativa ou afecções amorosas;


quando alguém se prontificava a integrar uma equipe de trabalho era aplaudido... logo nos
primeiros dias de convivência instalou-se um clima contagioso de solidariedade, as
assembleias eram intensas e as pessoas interrompiam as discussões com aplausos e outras
manifestações afetivas”. (Lancetti, 1993, p. 73-74)

Que dizer dos projetos “educativos” ou semelhantes realizados nos cárceres?


Que efeitos produzem? Nos raros relatos sobre situações em que os presos têm
oportunidade de deixar a ociosidade mortal e se dedicarem a alguma tarefa que não seja
30

a mera “faxina” do estabelecimento, os resultados são impressionantes. Algo de


surpreendente se passa, como naqueles casos em que uma praia recupera rapidamente a
limpidez da água do mar e da areia depois que alguma medida de despoluição, por
mínima que seja, é tomada. Verifica-se um reflorescer quase imediato, revelando a força
da vida frente ao que lhe é contrário. Este foi o caso de uma Oficina de Leitura realizada
numa prisão do Rio de Janeiro (Céspedes, 2010), na qual a discussão coletiva de contos
lidos pelos presos mobilizou a todos e multiplicou-se, mesmo entre aqueles que não
tinham participado diretamente da experiência, restrita a um número limitado. Apesar
das inúmeras dificuldades de reunir detentos em grupo, esbarrando com razões ditas de
segurança, e graças à persistência da psicóloga, que tinha que aguardar, por vezes por
horas, pela autorização dos agentes penitenciários para subir até a galeria e iniciar o
trabalho, pode se verificar o florescimento do interesse pela leitura entre homens que
ainda não tinham tido essa experiência em suas vidas.

Outro relato nessa direção é o que nos traz Ferreira (2010) sobre sua experiência
de teatro de Augusto Boal na prisão de Charqueadas, no Rio Grande do Sul.

“Cena I: Uma jovem presa, depois de horas em ensaio, me pergunta como faz para
ir ao banheiro e eu lhe peço para esperar um pouco até que encontre a guarda para sua
escolta. Neste momento ela me olha e diz: - Claro! Está tão bom aqui que até me esqueci
que estou presa [...] Cena II: logo que os membros do grupo começaram a chegar, com
alegria e buscando os demais para saudá-los com abraços e beijos, o colega guarda voltou-
se para mim e perguntou: Do que se trata isso daqui? Nunca vi presos agindo assim tão
cordiais”... (Ferreira, 2010, p. 80)

É necessário mencionar que os que trabalham nos cárceres, guardas, psicólogos e


outros profissionais, são também afetados por processos mortificadores, descritos na
literatura sobre prisões como o fenômeno da “prisionização”. Nunes (2010) examinou
as ideias dos psicólogos que trabalham em prisões e verificou que em face de sua
experiência de aprisionamento, com frequência estavam tomados por ideias tristes, que
os incapacitavam para a produção de estratégias de ação em seu trabalho.
A tristeza dos psicólogos e de outros técnicos se refere algumas vezes às ideias
que têm, quando acreditam em tendências para o negativo ou em naturezas especiais
que explicariam o crime, o que os faz enxergar um mundo no qual seu trabalho não
encontra outros sentidos além do controle e da opressão. Pode se dever também ao fato
de que também os psicólogos estão aprisionados, não podendo realizar os trabalhos de
que gostariam, reduzidos à tarefa de realizar laudos de cessação de periculosidade ou
31

assemelhados, que como bem definiu um preso-poeta W., são “a pena do psicólogo”
(Bandeira, 2003, Apud Nunes, 2010) .

Psicologia
O seu castigo é este:
Falar comigo quando chegar,
Sentar na cadeira e me entrevistar,
Saber da minha vida e como será.
O seu castigo é este:
Me fazer perguntas
E saber como estou,
Quais os meus problemas
A dor, o dilema,
O que me apavorou.
O seu castigo é este:
Formar ideias, mas sempre com as suas
Saber se eu minto,
Se a verdade é sua
E como será o meu amanhã.
O seu castigo é este:
Parar, pensar, dar seu parecer,
O que será que pensou,
O que será que vai ser.
Será que o juiz também pensa o mesmo?

Tudo o que afeta a mente afeta o corpo, e vice-versa e desse modo, muitos não
conseguem ultrapassar sua condição de “funcionários do cárcere”, ou de mera
reprodução das engrenagens carcerárias10. E porque os laudos são a pena do psicólogo?
Porque ele é colocado no lugar de responder algo sobre o futuro do preso, se voltará ou
não a delinquir, se está pronto para progredir para um regime mais brando, entre outras
atribuições, numa espécie de exercício de futurologia em tudo contrário à sua ética,
tanto profissional quanto pessoal.

A prisão é como um microcosmo onde tudo que há na sociedade como um todo


ali ocorre de forma mais carregada nas tintas, o que permite que observemos de modo
privilegiado na prisão o quanto os afetos tristes limitam nossa ação, fenômeno
característico do mundo atual, no qual técnicos e especialistas tudo sabem e pouco ou

10
Usamos a expressão funcionários do cárcere num artigo anterior, Diagnóstico Psicológico do
Criminoso, Tecnologia do Preconceito, publicado pela primeira vez em 1989. A categoria dos
psicólogos está hoje muito mais consciente desse seu lugar na engrenagem carcerária e noutras
engrenagens, como ilustram as várias lutas empreendidas pela categoria profissional pelo fim do
exame criminológico, e mais recentemente, contra o chamado “depoimento sem dano” na qual o
psicólogo deve funcionar como uma espécie de olheiro do juiz, a fornecer-lhes informações
colhidas junto a crianças envolvidas em conflitos entre pais sobre a guarda de filhos, abuso sexual,
entre outras querelas do campo da justiça de família.
32

nada conseguem transformar. Ainda assim, há vida nos cárceres, e algumas vezes ela
floresce, na ação dos que ali vivem e trabalham, em encontros teatrais, em oficinas de
leitura, em poesias e outras formas de expressão.
33

2.2) Um povo de mudos e manetas

Qual o resultado dos métodos coercitivos, ou da “solução penal” de conflitos


sociais (Rauter, 2006)? Podemos constatar a ilegitimidade do nosso sistema penal e ao
mesmo tempo sua “utilidade” na reprodução de uma sociedade hierarquizada e
caracterizada pela desigualdade econômica, em que crescem constantemente o temor ao
crime e à violência e os pedidos por mais e mais punições. Porém, apesar disso,
queremos reafirmar a inutilidade da coerção e da ameaça como método terapêutico e
educativo, e como modo de lidar com os conflitos sociais.

Através da ameaça e da punição é certo que conseguimos muitas vezes o silêncio


daqueles a quem são dirigidas essas ações, ou uma submissão aparente, mas não
conseguiremos nada no sentido de transformá-los. Visitei certa vez uma unidade da
FEBEM do Rio Grande do Sul e na ocasião chamou-me à atenção o silêncio que reinava
no pátio. Fui informada de que havia mais de 600 adolescentes naquele prédio, porém
parecia que não havia ninguém ali! Reinava ali o medo: dos cuidadores, em razão das
frequentes rebeliões nas quais ocorriam depredações e violência física, e dos próprios
adolescentes. Concordo com Vicentin (2005) quanto ao fato de que se há um estado
constante de rebelião entre esses jovens institucionalizados, ele não diz respeito à sua
natureza essencialmente má ou negativa, mesmo que vista como reações a frustrações
que teriam sofrido na infância, mas principalmente ao modo como eles são tratados
pelas instituições a eles destinados e pela sociedade em geral. Eles percebem
(acertadamente) que a lei é contra eles, o que torna a rebelião legítima por denunciar
uma situação de ilegitimidade. Esse tipo de violência é algo diverso da desobediência
civil, uma vez que os adolescentes não estão inseridos na sociedade civil: “as rebeliões
são vistas [pelo adolescente] como uma forma de ‘se aparecer’ ou seja, a única forma de
visibilidade social que eles têm”. (Vicentin, 2005, p.132). As outras razões, familiares
ou decorrentes da contestação adolescente mais típica não podem ser levadas em conta
enquanto prevalecer a situação de ilegitimidade reinante nessas instituições. Franco
Basaglia também pensava que, antes de tudo, a instituição psiquiátrica tinha que
resolver a situação de exclusão política e institucional a que ela própria submetia os
doentes mentais ou aqueles assim designados socialmente, que coincidentemente eram
também os mais pobres. As grandes assembleias com a participação de pacientes e
34

técnicos que foram a marca registrada da reforma psiquiátrica basagliana, tinham o


poder de contagiar pacientes e pessoal técnico. Os primeiros no sentido do retorno à
vida após terem estado há anos confinados, mostrando que sua cronicidade se devia à
própria situação de encarceramento. Os segundos, em especial os psiquiatras, no sentido
de recusar suas práticas produtoras de exclusão (Basaglia, 1972).

Não é exagero pensar que uma parte não desprezível da sociedade brasileira e
mesmo de autoridades não deseja transformar ou cuidar de seus jovens pobres e
difíceis11, mas bem ao contrário, vê no seu extermínio a solução, como sugerem as altas
taxas de morte de jovens por causas externas no Brasil, sendo a primeira delas o
homicídio e atingindo homens entre 20 e 29 anos. (Ramos et Al, 2003, p. 80.) Temos
também que trazer para nossa análise as mortes “após a liberdade” ou à saída da medida
de internação, relatadas em alguns estudos. (Vicentin, 2005, p. 104; Arantes, 2004)
Escutei também de terapeutas e educadores de adolescentes quando em visita à Escola
Porto Alegre12, em 2002, que uma das causas mais frequentes de interrupção dos
tratamentos é a morte do paciente.

Vicentin apresenta o relato de um promotor acerca do que realmente ocorre


quando numa instituição para jovens após uma rebelião, reveladora do que a autora
denomina como a farsa socioeducativa:

Como se observa pelas fotos, os internos estavam amontoados, apenas com


cobertores, dormindo no chão sem colchão, obrigados a permanecer sentados com
as mesmas roupas que usavam durante a rebelião, sem tomar qualquer banho desde
então, dispondo de menos de 1 m2 para cada, sem realizar qualquer atividade e mal
podendo conversar entre eles. Para tornar ainda mais aviltante a situação, são
obrigados a urinar em garrafas de refrigerantes que são colocadas em caixas e
depois retiradas do local pelos próprios jovens. As refeições são servidas no
mesmo local, sendo que se alimentam sentados no chão, ou seja, em resumo, a
dantesca situação que os coloca piores do que animais do zoológico,
assemelhando-se aos nefastos campos de concentração, violando os direitos mais
comezinhos de qualquer ser humano. O fato é tão chocante que nem se avalia mais
a obrigação do artigo 94 do ECA, mas sim aquelas básicas inerentes à pessoa
humana. (Vicentin, p. 81)

11
Tenho sempre dificuldade de encontrar palavras para designar esses jovens que se tornam a
clientela das instituições socioeducativas. Utilizei aqui “jovens pobres e difíceis”, porque nem todo
jovem pobre merece esse tratamento.
12
Escola criada na gestão de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, voltada para jovens em situação
de rua.
35

O relatório da Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em


Conflito com a Lei, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia em 2006 aponta que
em todo o país ocorrem nessas instituições espancamentos com paus e cassetetes,
superlotação, convivência com baratas, ociosidade, excesso de medicação psiquiátrica,
aulas de 15 minutos, celas de castigo, adolescentes apáticos ou dormindo em pleno dia,
ou ausência de banheiros. E não nos alongaremos nessas descrições, pois elas não
podem mais nos surpreender, tão sistemáticas que são as violações de direitos humanos
em instituições para jovens em nosso país, além daquelas que ocorrem nas prisões. Nas
prisões brasileiras ignora-se com frequência o número exato de presos, o que revela que
esses estabelecimentos não são panopticons, isso para o bem ou para o mal, pois se o
fossem, um olho central não deixaria de contar o número de presos ali estão confinados.
Elas não se parecem também com aquelas prisões dos filmes americanos e histórias em
quadrinhos, que mostram presos com número e uniforme listrado. Muitas de nossas
prisões são como masmorras modernas13, lugares onde seres humanos são amontoados,
sem nome ou número.

Fernand Deligny, educador francês, dedicou-se aos “infants terribles” do pós-


guerra e que escreveu entre 1945 e 1975 uma obra sui generis e esquecida por muito
tempo, mas que inicialmente reabilitada por Deleuze, hoje está sendo redescoberta. De
forma bastante próxima do pensamento de Spinoza, para quem os homens são iguais no
que se refere aos seus afetos, para Deligny “a semente do malandro é a mesma que a do
homem14”. Se o educador acredita que o mundo se divide entre os que são honestos e os
que não são, se surpreenderá ao perceber, a partir desses jovens, que a única diferença
está entre os que são pegos e os que não são.

Porém não se trata, como diz de Deligny em seu livro “Semente de Malandro”,
de um humanismo ingênuo:

“H. foi posto no mundo pela mãe, criado pela tia, depois por uma prima, colocado
numa fazenda de onde foi retirado por seus avós para depois chegar até você fresquinho,
saído da prisão. E você culpa a sociedade? Quando você conhecer H. estará cheio de

13
No estado do Paraná há algumas prisões privadas que fogem a esse quadro. Certamente há outras
prisões que poderíamos considerar como panopticas no país, mas não estamos aqui fazendo seu
elogio.
14
La graine de crapule c’est de même de la graine d’homme. A tradução é minha e o texto original
constará do rodapé (Deligny, 1998, p.7).
.
36

indulgência pela mãe, pela tia, pela prima, pelo fazendeiro, pelo avô e pelo diretor da
prisão(Deligny, 1998, p. 10).15”

Com sua experiência de educador de jovens infratores, ele adverte sobre a


inutilidade da coerção e da ameaça quando se deseja produzir mudanças:

Não obterás nada pelo constrangimento... Se você cortar a língua de quem mentiu
e a mão que roubou você será, em alguns dias, senhor de um pequeno povo de mudos e
manetas. Se hoje você dá um tapa, amanhã, uma vez que o tapa não fez efeito, terá que dar
um soco, depois de amanhã um golpe de cassetete e depois instalar uma câmara de
suplícios16. (Deligny, p. 13)

Na contramão dos terapeutas e educadores que defendem “dar limites” como


objetivo principal da terapêutica, ele adverte que os interditos farão com que “o
rebanho” se precipite e com prazer se dedique a ultrapassá-los. Deligny segue algumas
diretrizes que porá em prática nos “métodos” educativos que ele declara não ter.
Podemos dizer que seu “método sem método” passa pela surpresa, por abrir mão de
modelos pré-estabelecidos, por não aderir aos valores da moral dominante, pela
disposição para a brincadeira, por não esperar resultados rápidos e deixar de lado os
etiquetamentos diagnósticos. Ele acredita no trabalho árduo e diário, na sinceridade do
educador e em sua capacidade de “incomodar”. O educador ou outro profissional deve
ajudar a esses jovens, mas não é exigido que lhes tenha amor. Acima de tudo, deve se
livrar das ideias pré-concebidas e não esmorecer frente alguns fracassos: “Não os ensine
a serrar se você não sabe portar uma serra; não lhes ensine a cantar se cantar te
aborrece; não se encarregue de ensiná-los a viver se você não ama a vida17”. (Deligny,
2004, p. 23)

Numa perspectiva próxima, Lancetti (2011) narra uma experimentação que fez,
na linha do que denomina uma “pedagogia da surpresa”: ao transplantar jovens
moradores da Praça da Sé para ajudar na reforma de sua casa de praia, ele e sua equipe
descobrem que um dos mais temidos do grupo teve medo de escuro. Ao se sentir mais à
15
H. a été mis au monde para sa mère, élevé para sa tante, puis par une cousine, placé dans une
ferme, repris par ses grands-parents pour t’arriver frais sorti de prison. Et tu accuses la société ?
Quando connaîtras H, tu seras plein d’indulgence pour la mêre, la tante, la cousine, le fermier, le
grand-père et le directeur de la prison. Ce qui n’excuse pas la société.
16
Tu n’obtiendras rien de la contrainte... si tu coupes la langue qui a menti et la main qui a volé tu
seras, em quelques jours, maître d’um petit peuple de muets et de machots. 13 Si aujourdhui tu
donnes une gifle, demain, puisque la gifle aura été sans effet, il te faudra donner um coup de poing,
après-demain um coup de matraque, puis installer une chambre des suplices.
17
Ne leur apprends pas à scier si tu ne sais pas tenir une scie; ne leur apprends pas à chanter si
chanter t’ennuie; ne te charge pas de leur apprendre à vivre si tu n’aimes pas la vie.
37

vontade, fez um café para todos e ao contemplar a lua disse que precisava fazer um
projeto diferente para sua vida.

Como supervisora de estágio18, também pude constatar a importância dessa


dimensão afetiva da sinceridade. Percebi que o que deveria nortear os estagiários na
construção de estratégias clínicas, mais do que qualquer teoria específica, era seu gosto
pela vida e a possibilidade de transmitir isso ao cliente. O tratamento de um menino de
seis anos que mordia a professora foi soltar pipa no Campus do Gragoatá: a estagiária
percebera, ao visitar a escola, que o estigma de criminoso precoce rondava essa criança
e a intervenção clínico-política teve um sentido potencializador. Mas isso não seria
possível se a estagiária não tivesse se interessado sinceramente por aprender a fabricar
uma pipa...

Deligny adverte sobre a profunda influência que tem a forma como o educador
age sobre os resultados de sua ação. Ao cultivar a semente de vagabundo, temos que
“brincar” da brincadeira certa. Todas as ressonâncias com o pensamento de Winnicott
acerca do brincar devem ser consideradas: “Se você brincar de policia, eles brincarão de
bandido; se brincar de Deus eles brincarão de diabo”. “Se você brincar de carcereiro
eles brincarão de prisioneiro. Se você for você mesmo, eles ficarão incomodados19”.
(Deligny, p. 16)

Pondo em suspensão todos os rótulos e diagnósticos médicos, ele faz do brincar


o centro do seu “método”, porém sabemos que brincar não é método, mas apenas ser
capaz de deixar agir a criança que há em nós. Não seria a primeira vez na história da
psicanálise e da pedagogia que se pensou que brincar é algo precioso e capaz de
produzir mudanças, em oposição aos diagnósticos e etiquetas, que nada mais farão do
que aumentar nossa coleção de monstrinhos:

Não espere encontrar entre eles esses defeitos miraculosos que fazem a glória de
um museu psicológico [...] cuidadosamente etiquetados [...] eles vão proliferar, [...] tornar-
se monstruosos e sua pequena coleção de anormais surpreenderá os visitantes. Epileptoide,
deprimido, hipomaníaco [...] eis o olhar médico. Mas seu refrão deve ser: de que vamos
brincar?20 (Deligny, 1998, pp. 27 – 31). (o grifo é meu)

18
No Serviço de Psicologia Aplicada da Uff.
19
Si tu joues au policier, ils joueront aux bandits. Si tu joues au bon Dieu, ils joueront aux diables.
Si tu joues au geôlier, eils joueront aux prisonniers. Si tu es toi-même, ils seront bien embêtés.
20
Ne crois pas trouver en eux de ces défauts miraculeux qui feraient la gloire d’un musée
psychologique ...soigneusement étiquetés [... ] ils vont devenir monstrueux et ta petite collection
d’anormaux étonnera les visiteurs.[...] Épileptoide, déprimé, hypo-maniaque [...] voilà qui regarde le
médicin. Toi, ton refrain doit être: à quoi alons-nous jouer?
38

Qual é o método geralmente praticado nos estabelecimentos para jovens? E nos


damos conta que nas instituições brasileiras talvez tenhamos que falar de uma intenção
de exterminar, mais do que num método educativo. A crueldade e o moralismo estão
presentes em muitos “tratamentos”. Algumas casas de educação agem como no caso da
vaca que nasce com cinco patas: toda vez que passa, o fazendeiro bate na pata
suplementar, envia a vaca ao catecismo para aprender que a pata é um defeito terrível,
outro traz os amigos para rir. Eis o “método” usado nas instituições para jovens
infratores, segundo Deligny, (1998, p. 40)

Winnicott já apontara seu estranhamento quanto ao fato de que sejam os mais


jovens aqueles que são enviados para morte na frente de batalha, pelo recrutamento
militar. A morte dos jovens implica sempre num empobrecimento, por diminuir as
chances de renovação da vida social através do conflito de gerações. Os modos letais de
resolução do conflito adolescente implicam, para ele, em perda para a toda a sociedade.

Que produzem a situação de encarceramento e as múltiplas proibições que


cercam a vida de um jovem em cumprimento de medida socioeducativa ou de uma pena
de prisão? Para Deligny, “colocar jovens na prisão... é produzir abortos sociais maiores
do que o próprio crime”. Com certeza, nossas prisões, nas quais uma significativa parte
dos presos é constituída de jovens entre 18 e 25 anos, e também nossas unidades
fechadas do sistema socioeducativo, são males maiores do qualquer crime, porque são
crimes oficiais, praticados pelo estado.
39

2.4) O simples e o complexo

Combater violência com mais violência é algo fracassado por várias razões.
Apesar da disseminação do medo que produz, o máximo que se consegue é imobilizar o
corpo do prisioneiro a quem se deseja incutir medo, sem conseguir atingir sua alma21.
Não atingindo sua alma, e face à impossibilidade de governar apenas pelo medo, a
médio prazo teremos novas rebeliões, que nos farão sempre recomeçar do zero. Quando
se governa pela esperança, mais estabilidade se obtém – porém melhor seria um
governo que pudesse assegurar o funcionamento da potência, tanto de indivíduos quanto
de coletividades. Além disso, um governo da esperança não pode se basear somente em
mentiras, pois sedo ou tarde será desmascarado.

Em sociedades marcadas pela simplificação e linearização das maneiras de


afetar e ser afetados, um dos efeitos que podemos cartografar é o de que muitos dos que
sofrem diretamente a repressão entram em processos contraditórios e violentos, tendo
sua agressividade transformada em destrutividade. Para Spinoza, os indivíduos não são
maus nem bons por natureza, mas são as sociedades que são mal organizadas e
fracassam em produzir a paz e a concórdia. Spinoza se levanta claramente contra uma
contra uma leitura individualista do social, sempre pensando os indivíduos e seus
comportamentos como efeitos. Esses efeitos devem ser pensados no plano do coletivo.

Spinoza não é nem pessimista nem otimista quanto à natureza humana ou quanto
ao devir da História, (que é sem finalidade). Ele nos convida a compreender e agir sobre as
causas, quer dizer, sobre as estruturas determinantes de nossos comportamentos. Somente
pela via da modificação da potência pode uma verdadeira obediência e uma paz durável
serem alcançadas. Enquanto a repressão e o medo simplificam corpos espíritos, deve-se
encontrar outros aportes, outras estratégias que, bem ao contrário, sigam diferentes meios,
que devem ser postos em prática [...] Uma política da complexificação de corpos e espíritos
e não de sua simplificação. Uma política na qual, efetivamente, a potência constituinte da
alegria se substitua aos processos destrutivos da tristeza e do medo. Por essas vias e
somente por essas vias (para as quais é necessário e difícil inventar os meios práticos e
institucionais), capazes de modificar os regimes de potência, pode uma verdadeira paz e
22
uma verdadeira obediência serem alcançadas . (Bove, 2012)

21
Para Spinoza, a alma é a ideia do corpo.
22
Spinoza n’est ni pessimiste ni optimiste quant à la nature humaine ou quant au devenir de l’Histoire
(qui est sans finalité...), il nous invite à comprendre (intelligere) et à agir par/sur les causes, c’est-à-dire
les structures déterminantes de nos comportements. Or si la répression (et la crainte) “simplifie” les corps
et les esprits, il faut donc trouver d’autres approches, d’autres stratégies qui, bien au contraire, suivant
différents moyens qu’il s’agit de mettre en œuvre, favorisent le développement des manières d’affecter et
40

A potência de conhecer que tem a mente humana e em especial as mentes de


vários homens juntos (a potência do comum ou da multidão) levará ao encontro de
melhores estratégias para lidarmos com a questão do crime, ultrapassando a “solução”
repressiva majoritariamente utilizada. Para isso, com certeza, é necessária a
democratização das instituições que compõem o dispositivo da criminalização. Seria
isso possível? Uma certa concepção marxista propunha que o “interior do aparelho
repressivo de estado” não era o melhor local para uma prática democrática, que deveria
ser realizada num futuro distante, depois da revolução. Mas as prisões “capitalísticas23”,
sempre tiveram muitas semelhanças. Em Cuba chegou-se a imaginar o fim do crime
uma vez implantado o comunismo. Uma singela concepção, que conduziu ao ensino do
marxismo em prisões como uma prática de reeducação, pois o crime seria uma espécie
de alienação política. O comunismo extinguiria as razões para que alguém se tornasse
criminoso. Na União Soviética, os Gulags são consequências bem mais funestas dessa
ideia.

Porém não teremos que esperar por nenhuma revolução futura para terminar com
as masmorras dos tempos atuais, porque nos importam os devires revolucionários e não
o futuro da revolução (Deleuze, 1988). Ou podemos considerar que sob as instituições
está a multidão (Bove, 2010). Nas práticas institucionais, se trata sempre de “involuir”
de modo a tocar, ainda que de modo frágil, esse plano da multidão, que é sempre de
onde emana o poder institucional.

Examinemos brevemente a instituição policial como um dos componentes do


dispositivo da criminalização, seguindo essa perspectiva “involutiva”, de acionar o
plano da multidão. A polícia militar é uma criação do nosso período ditatorial, que
parece ter vindo para ficar. É uma organização fortemente hierarquizada, onde existe
uma separação rígida entre oficiais superiores e soldados, que faz com que muitas das
ideias preconizadas pelos oficiais, que com frequência têm formação superior e
formação humanista, não possam ser “executadas” por seus comandados – justamente

d’être affectés des corps et des esprits. Une politique de la complexification des corps et des esprits en
quelque sorte et non pas de leur simplification. Une politique pour laquelle, effectivement, comme vous le
soulignez, la puissance constituante de la joie se substitue aux processus destructeurs de la tristesse et de
la crainte. C’est par ces voies et par ces voies seulement qui modifient les régimes de la puissance (dont il
faut – et c’est difficile – “inventer” les moyens pratiques et institutionnels ) qu’une paix véritable et une
vraie obéissance seront possibles...

23
Termo cunhado por Guattari para se referir tanto às sociedades ditas capitalistas e comunistas no
período anterior à queda do muro de Berlin.
41

aqueles que estão nas ruas e cujos erros e excessos custam muitas vidas, inclusive as
deles próprios. É muito comum que nas instituições que compõem o dispositivo da
criminalização, ideias humanistas e democráticas tenham apenas uma função de
fachada, não podendo operacionalizar-se nas ações cotidianas, o que ilustra o fato de
que ideias adequadas podem funcionar de forma inadequada, já que não têm nelas
mesmas, do ponto de vista formal, nada que as diferencie das ideias adequadas, tudo
dependendo do uso que delas é feito.

Esse divórcio entre palavras e atos é o que configura a situação frequente nas
democracias capitalísticas atuais, na qual se pode falar qualquer coisa, desde que não se
coloque nada em prática. Novamente, a questão é examinar o que pode dificultar ou até
mesmo impedir que a potência do pensamento funcione, sendo toda a potencialidade
nele presente coartada.

Há no contemporâneo uma confusão entre saber de todos os fatos e contribuir


para mudar realidades a eles ligadas. Grande parte da militância de hoje diz respeito a
esse conhecimento especializadíssimo acerca de algo, mas que não necessariamente se
traduz em mudanças reais. O que muitos entendem como “direito a informação” nos
leva a ficar sabendo, por exemplo, de todos os desastres de avião além daqueles que nos
diriam respeito, por conhecermos alguma vítima, ou por irmos com frequência aquele
destino. Passamos a ter acesso a inúmeros detalhes técnicos “ensinados” por
especialistas na televisão e nos tornaríamos especialistas em diversos assuntos não fosse
o excesso desses ensinamentos, que nos impede de absorvê-los. Acima de tudo,
geralmente não podemos ser ativos com relação a eles, fazendo um uso prático dessa
enxurrada de informações. Em especial quando se trata de notícias entristecedoras ou
chocantes, a consequência da informação é apenas a impotência, ou uma espécie de
estado de anestesia.

Para Spinoza, a democracia corresponde, no plano do coletivo, ao que ele


entende por ideia adequada no plano individual. É a potência do pensar comum que
adquire sua expressão mais alta no momento que vigoram as ideias democráticas,
gestadas no coletivo. A democracia da multidão corresponde à saúde da vida coletiva: o
regime democrático é o melhor dos regimes por contemplar essa saúde. Não me refiro
com certeza à democracia que vivemos no contexto neoliberal, no qual o aparato
42

policial e prisional tem uma presença crescente e ostensiva, mas à democracia da


multidão, que subjaz todas as instituições, mesmo a instituição policial.

Examinemos neste momento as ideias do ex-secretário de segurança estadual


Nazareth Cerqueira (2001) sobre a formação de policiais:

Era necessário enfrentar o ritual militar pessimamente copiado pelas polícias


militares, simbolizado nos seguintes ditos que florescem na cultura policial: soldado não
pensa; soldado não sente; ele tem que ser duro e insensível para o combate e burro para
cumprir ordens sem contestação. A permissão dada era só pra agir de forma robotizada.
Uma política da atividade, uma atividade burra, cega, perversa e inconsequente. (Cerqueira,
2001, p. 110)

Esse tipo de obediência, que Gizlene Neder24 chamou de obediência cadavérica


também foi praticada pelos nazistas e que teve como resultado o extermínio de milhões,
hoje condenadas por todos e até banalizadas por uma filmografia que tende a culpar
muitas vezes a maldade especial dos alemães ou a loucura de Hitler pelas atrocidades
praticadas, com isso encobrindo o fato denunciado por Hannah Arendt(2001) e também
por Primo Levi(1990), de que os nazistas eram em geral homens perfeitamente comuns.
Em sua célebre análise sobre Eichmann, Arendt nos apresenta um homem cuja maior
“qualidade” era a obediência e o respeito à autoridade.
Policiais brasileiros, capazes de exterminar jovens apenas por estarem sem
documentos25, e que “olham” para os pretos e pobres e detectam neles características
criminosas que os autoriza a praticar essas ações, são também brasileiros perfeitamente
comuns que não diferem tanto dos valores do brasileiro mediano. Práticas autoritárias os
querem insensíveis e burros e produzem suas subjetividades para que sejam assim. Na
contramão da insensibilização e do emburrecimento, ou da simplificação, Nazareth
Cerqueira preconizava a democratização pela criação do que ele chamou de “grupo de
representantes de pares” que favoreceria a democracia interna da instituição policial.
Tais inovações despertaram feroz oposição daqueles que temiam pelo enfraquecimento
da disciplina, ao que retruca ele:

Nosso entendimento era totalmente diferente: tínhamos certeza que a humanização


da relação superior/subordinado, longe de debilitar a disciplina, iria fortalecê-la,

24
Gizlene Neder denomina de obediência cadavérica, uma concepção de cidade e de polícia
cuja matriz repousa em nossa tradição inquisitorial ibérica. NEDER, Gizlene. 2007.
25
O Movimento de Mães de jovens mortos pela polícia no Espírito Santo denominado “Posso me
Identificar?” diz respeito a esses fatos.
43

aumentando o respeito entre as partes [...] Pretendíamos uma nova PM, um novo policial,
uma nova concepção de ordem pública, na qual a construção da ordem seria mais
importante que a manutenção da ordem e onde a colaboração comunitária seria essencial.
(Cerqueira, p. 111)

Nazareth Cerqueira preconizava a superação do modelo antigo, de cunho


Taylorista-militar, no qual a hierarquia era privilegiada. Porém ele constata, como
Secretário de Segurança, “havia uma grande repulsa manifestada pelos nossos policiais
e por parte significativa da sociedade carioca relativa à política de direitos humanos
para criminosos. Era bastante significativo o movimento em torno do brocardo bandido
bom é bandido morto”. (Cerqueira, p. 112.)

Inspirando-nos na filosofia de Spinoza, estamos sempre em busca das causas e


do acompanhamento dos processos e neste caso, aqueles geram policiais que agem
como máquinas de matar. Localizamos no campo das causas as práticas autoritárias e
violentas presentes na formação dos policiais militares que hoje se generalizam,
orientando também a formação da guarda municipal, antes encarregada principalmente
do cuidado do patrimônio das prefeituras, sem a função de vigilância de estilo
policialesco que hoje adquire. A polícia que temos é a polícia produzida a partir das
práticas institucionais presentes na instituição policial e também a partir das demandas
de amplos setores da sociedade, que pressionam os governos no sentido de mais polícia
e mais prisões. Muitos se horrorizam com os atos praticados por policiais, quando estes
revelam uma incapacidade de pensar ou um automatismo cego, sem compreender que
eles cumprem a função para a qual foram produzidos na sociedade que temos.
44

2.3) A repulsa, o asco e o medo

Que dizer a propósito da repulsa que uma parte da sociedade carioca e brasileira
manifesta a que se busque tratar a questão do crime de forma democrática ou que se
realizem práticas democráticas no interior de instituições policiais ou em prisões? Penso
que é da democratização desses espaços, ou do estabelecimento de linhas que possam
tocar o plano da multidão que alguma transformação poderá se dar. Porém ações neste
sentido costumam ter como resposta reações extremadas, carregadas de intensos afetos.
Também durante as sucessivas administrações do Partido dos Trabalhadores em Porto
Alegre, desencadeou-se este tipo de “repulsa” a ações do governo dirigidas a meninos
de rua ou a mudanças nos cárceres, desencadeando ondas conservadoras muito
semelhantes àquelas verificadas no Rio26. Nessas ondas conservadoras, a mídia alardeia
as muitas razões que os cidadãos teriam para temer as ruas. O baderna e o caos, o
descaso das autoridades, a negligência frente ao crime, que mereceria ações mais
contundentes da parte dos governos, todas essas “palavras de ordem” martelam os
ouvidos de todos durante essas ondas midiáticas, tendo como resultado o disseminação
do medo e a justificação de ações repressivas e autoritárias.
É interessante assinalar que “repulsa”, o asco ou o nojo, são sentimentos
experimentados também com relação à sexualidade. Mas o tipo de repulsa que estamos
examinando, embora envolva fenômenos de ordem psicológica, não pode ser
compreendida individualizadamente, à luz das vicissitudes de uma infância ou de
experiências familiares. As massas desejaram o fascismo – a famosa frase de Reich
deve ser tomada no contexto de uma teoria do caráter que formule o desejo associado às
lutas políticas, ao coletivo. O fenômeno de que o desejo possa desejar sua própria
repressão só surge secundariamente, como efeito de um campo social organizado para
produzir uma economia libidinal mortífera que nem sempre se expressa como
sofrimento psíquico. Há economias libidinais estáveis e com um mínimo de conflito que
configuram modos de subjetivação sádicos, masoquistas, vingativos, etc.

26
Podemos mencionar as gestões de Nilo Batista, na secretaria de segurança do Rio de Janeiro
(entre 1990 e 1994), e de José Paulo Bisol na secretaria de segurança, no Rio Grande do Sul (1999-
2002), como períodos ricos em intervenções democráticas dirigidas a policiais e agentes
penitenciários.
45

O conceito reichiano de peste emocional é oportuno para compreender a repulsa


a toda a política de direitos humanos27 desenvolvida nos governos Brizola no Rio de
Janeiro. É bem possível que essa repulsa tenha a ver com o assassinato de Nazareth
Cerqueira28. Ele foi também o único policial negro a ocupar o posto de Secretário de
Segurança e Comandante Geral da Política Militar. Podemos também lembrar a repulsa
de parte da população dirigida às políticas sociais que caracterizaram as administrações
petistas na prefeitura de Porto Alegre nos anos 90, ou o governo de Olívio Dutra, no
qual se buscou interferir na formação da Brigada Militar num sentido democratizante.
Através do conceito de peste emocional podemos considerar simultaneamente os
campos da psicologia individual e o campo político- institucional, analisando a esfera da
sexualidade como um plano que se comunica com a política e com outros aspectos da
vida. A peste emocional é algo a que todos estamos sujeitos, não apenas o neurótico, e
que pode explicar o grande temor do novo e os obstáculos que costumam se interpor, na
luta política, à alteração de modos de vida fortemente arraigados, assentados sobre uma
economia libidinal regida pela repressão da energia vital. Reich é o solitário pioneiro
que, no âmbito da psicanálise, buscou considerar simultaneamente os campos da
psicologia individual, institucional, político e social, analisando o sexual e o não sexual
em suas múltiplas relações de vizinhança.
No livro Psicologia das Massas do Fascismo, Reich mostra os múltiplos
mecanismos que permitiram a construção do ódio aos judeus e aos comunistas através
da manipulação dos afetos relativos aos temas sexuais. A energia sexual impedida de se
expressar fornecia, para ele, a matéria prima, que deslocada de seus investimentos
sexuais produzia temores difusos, ódios até certo ponto inexplicáveis, que desviados de
seus alvos originários passaram a se expressar sob a forma de sentimentos de asco e
repulsa, dirigidos a outros objetos, no caso, aos judeus, aos comunistas, etc. É a energia
vital que, coartada e transformada, fornece a matéria prima para esses poderosos afetos,
ligados ao moralismo e ao preconceito, que impedem a experimentação do novo e do
diferente. Enquanto atacados de peste emocional, resistiremos a teorias e a ideias
27
Temos uma reflexão crítica sobre o que sejam “direitos humanos” abstratamente considerados,
uma vez que as democracias capitalísticas que conhecemos não dispõem de meios para proporcionar esse
direitos a todos, mas apenas a alguns (os cidadãos de bem). Assim, a defesa dos direitos humanos nesse
tipo de sociedade tem muitas vezes um tom de farsa. Porém defender “direitos humanos” pode ser um
modo de acionar a democracia da multidão.

28
O coronel Nazareth Cerqueira foi assassinado a tiros no Rio de Janeiro em 2009, em
circunstâncias não inteiramente esclarecidas.
46

politicas transformadoras, e estaremos também avessos ao contato com outras pessoas.


Esse tipo de repulsa é dirigida a homens públicos, políticos e técnicos quando eles se
propõem a interferir sobre configurações subjetivas fortemente sedimentadas. Quando
os conhecimentos ou os discursos deixam de funcionar apenas como fachada, muitas
consequências políticas podem ser observadas.
Quando o médico Edison Biondi, na década de 9029, conseguiu implementar
melhorias nos serviços de saúde penitenciários do Rio de Janeiro, muitos se indignaram,
alegando que os cidadãos honestos estariam sendo injustiçados. Além do asco ou da
repulsa social, dirigida a “bandidos”, a inveja destrutiva é uma resposta frequente dos
agentes penitenciários e mesmo de setores da sociedade a qualquer melhoria da situação
de pessoas presas.
Podemos nos referir também ao preconceito racial, aliás, fortemente associado,
no Brasil, ao estereótipo do criminoso. O racismo é um afeto associado à repulsa, ao
asco e ao medo. Ultimo país do ocidente a abolir a escravidão, a associação entre crime
e cor escura da pele é um componente de subjetivação que permanece assombrando
nosso presente, retornando das práticas da escravidão com um Frankenstein, atualizado
a partir do olhar da polícia.
Analisaremos o afeto de medo de modo mais específico no capítulo a seguir.
Sigamos no momento com uma discussão mais geral sobre os afetos tristes nos
utilizando do pensamento de Reich. Para Reich, como para Spinoza, os vários matizes
de afetos tristes que experimentamos são provenientes dos maus encontros que fazemos,
que se expressam tanto na mente quanto no corpo. O capitalismo e suas instituições, a
instituição familiar ou o que ele denomina “familite30”, a instituição médica31, são
consideradas, também por Reich, como engrenagens que agem no sentido de
obstaculizar a riqueza da vida coletiva e da vida afetiva em todas as suas dimensões.
Não esqueçamos que também para Freud, Eros é antes de tudo uma força agregadora,
que age na direção do coletivo, o que poderia ter levado Freud a outras concepções, se
ele não tivesse permanecido mais ligado a Thanatos do que a Eros em suas explicações
sobre a vida social. Para Reich a destrutividade que se expressa em várias formas de
29
Visitando o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho nesse período, chegue a ver com meus próprios
olhos que nas camas dos pacientes havia lençóis e que eles comiam com talheres, fato inteiramente
novo nos hospitais do sistema penitenciário. Edson Biondi foi coordenador de saúde do
Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e conseguiu trazer recursos do SUS para
o sistema penitenciário, o que foi interrompido no governo Garotinho.
30
O apego excessivo e neurótico à família.
31
Reich (1949) se refere à “máfia de branco inimiga da vida” quando analisa à medicalização do
parto.
47

negatividade é decorrente de uma transformação da agressividade operada por várias


modalidades de controle social. (Reich, 2001B e 1972) A distinção entre agressividade
em destrutividade faz dessas figuras do negativo (o sadismo, o masoquismo, o espírito
de vingança, o ódio social) consequências de uma transformação, de uma limitação, de
um constrangimento, tal como encontramos em Spinoza. Não correspondem a qualquer
tendência básica inerente ao humano ou à natureza.
48

III) O medo e a vida coletiva na Filosofia de Spinoza

O dispositivo da criminalização tem na produção e difusão do medo no campo


social um dos efeitos do seu funcionamento. Nesse momento, investigaremos melhor o
fenômeno do medo no contemporâneo, buscando elementos na filosofia de Spinoza para
pensá-lo. Faremos um uso prático dessa filosofia, tal como propôs Deleuze. Bove
propôs também esse uso operatório da filosofia de Spinoza para pensar questões
contemporâneas. Chegamos, em pesquisas anteriores, à ideia de que o medo,
disseminado pelo dispositivo da criminalização, produzia despotencialização do
coletivo. Na contemporaneidade temos uma vida social extremamente rica, com cidades
populosas e uma interdependência complexa no campo do trabalho e ao mesmo tempo,
parte dessa complexidade é reduzida em sua potencialidade política por múltiplos
dispositivos: midiáticos, policiais, carcerários, pedagógicos, entre outros, funcionando
em rede.

Psicologia das superfícies: podemos nomear assim esse estudo dos afetos no
qual eles são compreendidos como variação a partir das afecções do corpo. Numa
psicologia das profundidades, nossos afetos se ligariam a memórias infantis ou
corresponderiam a tendências presentes na base do psiquismo, distanciados do plano
dos encontros de corpos, que é o plano da vida cotidiana. Buscamos neste trabalho
construir uma cartografia do medo à criminalidade, distanciando-nos das profundidades
psicológicas para compreender as causas desse medo e aproximando-nos das afeções
estabelecidas no presente, através das experimentações feitas pelo corpo coletivo dos
brasileiros, acompanhando os movimentos desse corpo num plano de afetação, de ações
e paixões.

O medo aparece na filosofia de Spinoza como um entre outros afetos tristes.


Nessa perspectiva, ele teria algo em comum com o ódio e com a tristeza. O medo
corresponde a uma variação para menos da potência, enquanto a alegria corresponde a
uma variação para mais. A variação dos afetos humanos é um fato da natureza,
comparável à variação das marés e do clima; estamos determinados a experimentá-la a
partir dos encontros que fazemos. Uma das razões que fazem da filosofia de Spinoza
49

uma fonte de ampliação do conhecimento psicológico é a possibilidade de compreender


os afetos a partir da vida cotidiana, a partir das relações que estabelecemos e não a partir
do que está interiorizado ou escondido em alguma profundidade psicológica. Spinoza
está determinado a compreender os afetos humanos a partir de “linhas, superfícies e
corpos32” e a questionar os que consideram os afetos como uma espécie de maldição do
homem e que pensam que é necessário ultrapassá-los para conhecer algo. Spinoza leva
também a psicologia para longe da crença de que os fatos psicológicos são feitos de
outra matéria que os fatos políticos, ao considerar que os afetos humanos são
determinantes tanto para compreendermos os indivíduos quanto as coletividades.

Spinoza sempre buscará meios para ampliarmos nosso conhecimento, de modo a


deixarmos de estar à mercê da variação afetiva proveniente de causas externas sobre as
quais não temos domínio, chegando à possibilidade de sermos causa, tanto quanto
possível, da ampliação de nossa potência. Há um elogio da alegria em Spinoza por este
afeto corresponder uma variação para mais da potência, porém quando proveniente de
causas externas, a alegria apresenta uma limitação33.

É através de nossa imaginação que nos informamos sobre os estados do nosso


corpo a partir dos encontros com outros corpos. É tão grande a variação a que estamos
submetidos, que “qualquer coisa pode ser para nós causa de alegria ou de tristeza”. (15,
E3) dependendo do que nossa imaginação construiu a respeito dela. Spinoza se refere a
dois afetos principais, característicos da experiência coletiva: o medo e a esperança. O
medo é definido como uma tristeza relacionada a algo coisa ruim que temos dúvida se
acontecerá ou não, e a esperança é por outro lado, uma alegria relacionada a algo bom,
mas igualmente duvidoso, que ainda está por vir. A este panorama complexo
acrescente-se que nosso corpo é formado de muitos indivíduos de natureza diferente e
podemos assim ser afetados de maneiras diferentes por uma mesma situação, ao mesmo
tempo em que diferentes situações que podem afetar um só indivíduo. “A natureza
inteira é um só indivíduo cujas partes, isto é, todos os corpos, variam de infinitas
maneiras, sem qualquer mudança do indivíduo inteiro.” (Escólio do lema 7 da
proposição 13.) Ou ainda, como aparece no postulado 1 da parte II da Ética: “O corpo

32
Tratarei, assim, da natureza e da virtude dos afetos, bem como da potência da mente sobre eles,
por meio do mesmo método pelo qual trate, nas partes anteriores, de Deus e da mente. E considerei
as ações e os apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou
de corpos. Ética III, Prefácio.
33
... alegria só é má à medida que impede que o homem seja capaz de agir (E IV, prop. 59,
demonstração)
50

humano compõe-se de muitos indivíduos de natureza diferente, cada um dos quais é


também altamente composto”.

O reino dos afetos é o reino da multiplicidade e da imprevisibilidade. Por isso


experimentamos com relação aos outros seres humanos, de forma gratuita, muitos afetos
diferentes e passíveis de flutuação. Spinoza define o amor no Escólio da proposição 13
da Ética III como “uma alegria com uma causa exterior” ou o ódio como “uma tristeza
com uma causa exterior”. Ele mostra que podemos desenvolver afetos intensos em
relação a quem não conhecemos, odiando quem odeia a quem amamos, ou o contrário,
amando a quem proporciona alegria aos nossos objetos de amor, o que é bem expresso
no chamado “amor de mãe”, para quem seus filhos sempre lhe parecem os pimpolhos
mais lindos do mundo. Podemos ter tristeza pela desgraça alheia, principalmente no
caso de consideramos o infeliz como semelhante a nós. (22, E3) Ou nos alegrarmos com
a desgraça de quem odiamos, ou ainda estarmos indiferentes aos infortúnios vividos por
quem consideramos diferente de nós. E considerar semelhante ou diferente é também
algo imaginário.

Os homens perseveram em sua existência, buscando ter ideias alegres que


aumentem sua potência, ou lutando contra a tristeza, quando imaginam a própria
impotência. Eles perseveram no seu ser em meio aos afetos que experimentam e não
rompendo com eles. O projeto spinozista de tornar-se o que se é não diz respeito a um
eu, mas à produtividade integral do real, em si e por si, quer dizer à atualização total de
sua potência – experimentação total e produtiva de nossa potência de agir (Bove, 1996,
p 11).

Através da imaginação nos inteiramos das relações que estabelecemos com


nossos semelhantes e através dessas relações, experimentamos afetos que não são
apenas nossos enquanto indivíduos, mas que correspondem a afetos vividos em
coletividade. Isso ocorre porque somos contagiados pelos afetos daqueles a quem
imaginamos que são nossos semelhantes. “Por imaginarmos que uma coisa semelhante
a nós e que não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em
razão dessa imaginação, afetados por um afeto semelhante” (E III, Prop. 27).

A proposição 27 da Parte III da Ética, que acabamos de citar, se reveste de


importância fundamental para aqueles que querem, como é o nosso caso, aproximar-se
51

da compreensão do funcionamento afetivo das coletividades humanas34. Gabriel Trade


analisa a “lei da imitação dos afetos”, no mesmo sentido de Spinoza, dando relevo ao
contágio imitativos dos afetos como fenômeno humano e como meio de compreensão
da vida coletiva. Verificamos também, na proposição 31 da parte III da Ética, “que cada
um se esforça para que outros amem o que ele ama, e odeie quem ele odeia”. Spinoza
considera que os amantes e também o povo sob um governo vivem alternando entre os
afetos de esperança e medo. Referindo-se aos ódios e preconceitos aparentemente
inexplicáveis, dirigidos a grupos e minorias, Spinoza diz que podemos ser afetados de
alegria ou de tristeza por alguém que pertença “a um grupo social ou nacional diferente
do seu”, alegria ou tristeza que vem acompanhada da ideia genérica desse grupo como
causa (E III, prop. 46).

Na filosofia de Spinoza os afetos podem ser abordados do ponto de vista dos


gêneros do conhecimento, ou seja, referindo a vida afetiva ao primeiro gênero do
conhecimento e à imaginação, plano que devemos ultrapassar, para chegar ao segundo
gênero e daí ao terceiro, etc. Isso nos conduziria a hierarquizações no campo do saber e
a perspectivas epistemológicas que consideramos afastadas do que há de mais rico no
pensamento de Spinoza. Ainda que Spinoza considere que o conhecimento obtido
através da imaginação pode nos enganar, ele não para de apontar as virtudes da
imaginação, e de mostrar que a imaginação se faz presente em todos os gêneros do
conhecimento. (Martins, 2010)

Podemos considerar como uma virtude da imaginação essa possibilidade de


estabelecer ligações e através da imitação dos afetos, chegar a formar com nossos
semelhantes um corpo comum. Há um vetor horizontal dado pela imitação do
semelhante, que vai no sentido da produção de afetos coletivos, alegrias e tristezas, que
experimentamos coletivamente. Esse vetor horizontal explica porque passamos, por

34
A partir da proposição 27, a relação de objeto vai, com efeito, ser integrada à um processo no qual a
necessidade autônoma é a da imitação dos afetos que, pela primeira vez no texto, se centra explicitamente
no estudo das lógicas afetivas nas maneiras de viver dos homens e por isso mesmo sobre o movimento
perpétuo dos afetos que fazem com que os homens tendam as aproximar (e a constituir um corpo
comum), mas que lhes conduz necessariamente também, segunda as mesmas leis, a entrar em perpétuos
conflitos. (À partir de la proposition 27, la relation d'objet va, en effet, être intégrée à un processus dont la
nécessité autonome est celle de l'imitation des affects ce qui, pour la première fois dans le texte, recentre
explicitement de fait l'étude des logiques affectives sur les manières de vivre des hommes, et par là même
sur le mouvement perpétuel des affects qui font que les hommes tendent à se rapprocher (et à constituer
un corps commun) mais qui les conduit nécessairement aussi, selon les mêmes lois, à entrer dans de
perpétuels conflits.) Bove, Ética III.
34
52

exemplo, a “não querer o que queremos” e a “querer o que não queremos”35 ao imitar
quem consideramos como semelhante com nossa imaginação. Este processo é o que
permite aos estados governar os afetos da multidão, mas que permite também à
multidão superar esse domínio. Saber como se dá essa superação seria responder à
célebre pergunta spinozista - porque os homens lutam por sua servidão como se fosse
sua liberdade? Verificamos que as lógicas de imitação levam à servidão, o que podemos
comprovar examinando as múltiplas técnicas de submissão postas em ação a partir das
“palavras de ordem”36 (Deleuze, 1995) que atravessam o coletivo, que podem ir no
sentido do consumo, do medo à criminalidade, do regozijo quando um criminoso é
castigado ou da inveja despertada pelo que os outros têm e que acreditamos não ter.

É necessário nesse ponto deixar a Ética e tomar o Tratado Político para vermos o
funcionamento no espaço coletivo dos mecanismos da vida passional “individual”
conduzindo a uma teoria geral das instituições sociais. Neste ponto seguiremos Lordon
(2010 A) para compreendermos as instituições a partir dessa lógica de imitação dos
afetos. De onde as instituições retiram esse poder especial de afetar em grande escala,
produzindo ordem por homogeneização dos afetos e de normalização dos
comportamentos? A resposta a essa questão está no conceito de potência da multidão.
Neste ponto Spinoza abandona toda transcendência e busca na multidão a explicação
acerca do modo como os homens se afetam coletivamente.

Vimos que, para Spinoza, os corpos sociais são como que agrupamentos de
indivíduos, assim como um indivíduo também é formado por uma multiplicidade de
indivíduos. Isso nos leva a concluir que na vida coletiva estão presentes os fenômenos
ditos individuais assim como nos fenômenos individuais está presente a dimensão
coletiva. Para Lordon (2010 B) o que ocorre com os homens é efeito dos outros homens,

35
E III, prop. 39: Escólio. E assim, cada um, de acordo com seu afeto, julga uma coisa como boa ou
má, útil ou inútil. De resto, o afeto que deixa o homem numa situação tal que ele não quer o que
quer e quer que não quer chama-se temor, o qual, portanto, não é senão o medo, à medida que deixa
o homem numaa situação tal que ele evita, em troca de um mal menor, um mal que julga estar por
vir.
36
As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão
ligados aos enunciados por uma "obrigação social". Não existe enunciado que não apresente esse vínculo,
direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem. A linguagem só pode ser
definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma
língua em um dado momento. (Deleuze e Guattari, 1995, p. 11)
53

em singularidades ou em coletividades – na singularidade está presente a coletividade,


ou seja, nos fenômenos singulares humanos estão presentes os fenômenos coletivos.

A potência do soberano ou do estado, por sua vez, a força pela qual um soberano
reina ou um estado governa é a composição de suas potências, captada por ele e
retornada contra eles. De modo semelhante, Freud explica de onde provém a energia
despendida pelas resistências ou mecanismos de defesa do ego contra as exigências do
Id: ela provém da própria energia do Id voltada contra ela própria. Assim, a força do
estado ou a soberania do soberano provém da potência mesma daqueles sobre quem ela
se aplica. Assim, o poder politico é sempre um empréstimo. O poder de afetar de um
soberano não lhe pertence, ele é um depositário de uma potência que não é sua, um
ponto sobre o qual transita a potência da multidão. A noção de captura ganha neste
ponto maior clareza: podemos considera-la como uma confiscação que os políticos e
governantes fazem da potência coletiva.

O modus operandi da potência da multidão é o afeto comum. Se a potência é o


poder de afetar, a potência da multidão é o poder de afetar a todos. A composição de
potências pode ser compreendida como composição de afetos. Como os homens se
afetam entre eles? Como já vimos, a neutralidade é impossível diante de um indivíduo
desconhecido; “a imitação é como um tijolo na formação de afetos coletivos
compostos”. (Lordon, 2010 B, p. 6).

O estado e suas instituições aparecem nesse pensamento como uma composição


mimética de afetos individuais em afetos comuns. Imitando-se uns aos outros quanto ao
que consideram bom ou mau, ilícito e lícito, eles chegam às definições que servirão de
base à produção das normas jurídicas, das noções de legal e ilegal, lícito e ilícito. Pela
imitação são produzidos afetos de grande extensão e por sua propagação, todos passam
a concordar. Somente a multidão pode, a partir dos afetos individuais, produzir esse
grau de homogeneização, produzindo o cimento que dá a consistência do afeto comum.
(Lordon, 2010). Quando analisamos os fenômenos políticos de sujeição, de
disseminação do medo, de captura, confirmamos a ideia de Spinoza de que os homens
são conduzidos com mais frequência pelos afetos que pela razão. (TP cap. VI, 1)

Os homens se curvam às normas por estarem impressionados, afetados, porém


eles não apenas se curvam, pois no fundo desse poder, para além de todas as mediações,
está a potência da multidão. Imaginariamente a fonte do afeto comum é o governo e
54

suas instituições, ou são os líderes. Porém a autoridade política não tem outra base que
os afetos da multidão. Para Lordon, o conceito duplo de potência da multidão e afeto
comum libera o principio da autoridade social em geral, sendo esse o princípio de toda a
eficácia institucional. Esse princípio rege também a ordem monetária, contrariando
aqueles que pretendem que os ditos “ajustes econômicos” da era neoliberal estariam
fora da política. A potência da multidão é capturada e se expressa nas redes
institucionais, nas quais as instituições se apoiam mutuamente. Por essa razão, a
produção do medo e a disseminação de afetos que tomam uma direção contrária à do
estabelecimento de laços horizontais entre os indivíduos não é fruto de uma instituição
apenas, mas dessa rede complexa de instituições (como o dispositivo da
criminalização), incluindo-se aí os efeitos historicamente construídos de instituições que
já deixaram de existir. É assim que para compreendermos os processos de sujeição no
Brasil, não pode ser excluída a instituição da escravidão e as práticas hierarquizadas por
ela produzidas, ainda hoje disseminadas na vida social. Podemos considerar que
algumas figuras do contemporâneo brasileiro, entre as quais o modo violento como a
polícia aborda os que têm pele mais escura, como efeito de longa duração dessa
instituição.

Por outro lado, a ordem política institucional está também atravessada por uma
fragilidade constitutiva. Spinoza não para de ver a decomposição do horizonte da
ordem, se expressando em forças que operam tanto para o melhor quanto para o pior.
Certos movimentos da vida passional coletiva podem levar os homens tanto a buscar e
desejar a autoridade, ou a conjura-la. Mais importante é agir sobre as causas que levam
os homens a se submeter a tiranos – não adianta apenas eliminá-los fisicamente, pois
outros virão. De onde vêm as ameaças á autoridade? Sempre de dentro, responde
Spinoza. Uma cidade está sempre mais ameaçada por seus cidadãos que pelos inimigos,
pois permanece sempre em cada um o direito natural de julgar, sentir e discordar, numa
palavra, de resistir. Assim as ameaças à ordem institucional vêm da própria instituição,
como poder instituinte que não pode ser inteiramente neutralizado.

A matéria prima de todos os grupos é a potencialidade da multidão. Ela é sempre


de algum modo captada pelo terapeuta de grupo, pelo coordenador, pelo chefe... A
55

potência da multidão é o que faz com que o dispositivo grupal funcione37, desfazendo
capturas e contagiando no sentido contrário ao dos afetos tristes. Os grupos
institucionais, terapêuticos, de trabalho, de estudos, assembleias sindicais, reuniões
institucionais, todos eles se utilizam da potência da multidão para fazer e pensar coisas.
Quanto mais autônomo for este grupo, melhor pensará e agirá. Verificam nos grupos
processos de captura: linearização e não multiplicidade, homogeneização e não
heterogênese, hierarquização e não democracia. Assim, estarmos reunidos, mesmo que
em grande número, não significa necessariamente que acionamos a dimensão do
coletivo. Nas universidades, apesar de muitos jovens estarem reunidos, dispositivos de
linearização estão em ação e nem sempre eles conseguem romper com a submissão ou a
apatia. Conseguiremos vencer as hierarquizações produzidas pela instituição-escola,
cujo principal objetivo, como mostrou Foucault, é obter em primeiro lugar, disciplina e
sujeição? Para vencer esses mecanismos institucionais, os grupos na instituição devem
ser capazes de acionar o conatus grupal38 ou a capacidade do grupo de perseverar no seu
ser.
No acompanhamento de grupos terapêuticos, atravessamos marés da culpa,
competitividade, de busca de uma atenção individualizada e exclusiva, de inveja. Porém
os momentos mais ricos de um grupo ocorrem quando a grupalidade (Lancetti, 1993)
entendida como expressão da potência grupal, prevalece ou pode se expressar,
superando esses afetos tristes. Sempre chama à atenção dos terapeutas de grupo a
qualidade das intervenções feitas por seus participantes uns sobre os sobre outros, que
dispensam as intervenções dos terapeutas. Essa qualidade aponta justamente para o fato
de que fazer e saber estão sempre juntos e que parte da potência da multidão é sua
capacidade de produzir boas ideias. A inventividade de grupos de trabalho e estudos não
hierarquizados é facilmente constatável em diferentes contextos institucionais.
No caso da rede de instituições que compõem o dispositivo da criminalização,
automatismos, simplificações e estereotipias resultam em ações letais, produtoras de
estigmas e sofrimento. Ações com outro direcionamento buscarão a complexificação e a
democratização dessas instituições. Um certo triunfalismo de esquerda paralisou muitas
ações neste campo, quando se pensava em termos de tudo ou nada. Ou fazemos a
revolução e resolvemos tudo, ou estamos no capitalismo de pés e mãos amarradas frente

37
Regina Benevides criou o conceito de Grupo-Dispositivo. Um dos efeitos desse dispositivo é
desindividualizar e coletivizar, rompendo os processos de individualização e linearização e valendo-
se para isso da potência grupal.
38
Conatus é o mesmo que potência.
56

ao genocídio das populações emparedadas e adoecidas que hoje temos em nossas


prisões. A democratização das instituições policiais e de segurança penitenciária através
de uma atenção especial à sua formação já foi tentada com algum sucesso em governos
democráticos, com resultados que o preconceito de muitos impediu de avaliar
corretamente, como já referimos no capítulo anterior. É necessário lembrar que
enquanto esperamos pelo futuro da revolução, perdemos os devires revolucionários que
estão passando diante de nós. (Deleuze, 1988).

3.1) Submissões alegres e tristes

A esperança e o medo são afetos presentes em duas figuras principais da vida


contemporânea: a submissão alegre ao consumo ou à suprema delícia de ter um
emprego ou, por outro lado, o medo da violência, do terrorismo ou da criminalidade. O
governo pela alegria ou pela esperança é muito mais bem sucedido, pois consegue maior
estabilidade.

Lordon (2010 A, p. 87) chamou de “submissão alegre” o modo apaixonado ou


afetivo como o capitalismo hoje consegue produzir submissão, apesar do visível
retrocesso nas condições de trabalho e salário: a ampliação da jornada de trabalho,
mesmo quando camuflada pelo uso do computador em casa, os baixos salários pagos, o
esvaziamento dos sindicatos e a diminuição das greves, os empregos temporários, a
perda do direito a férias, etc. Em tempo de rarefação do emprego, pelo medo constante
de ser demitido, embora se diga de modo um tanto cínico que sobram empregos mas
que faltam trabalhadores qualificados, a alegria por trabalhar não vem mais, como nos
tempos do taylorismo, da possibilidade de adquirir bens ou do prazer das férias. Hoje
ela vem do simples fato de estar trabalhando. Tarefas outrora consideradas
enfadonhas ou inaceitáveis tornam-se motivo de alegria quando se tem medo de não ter
como subsistir! É assim que vemos hoje jovens considerando seriamente a possibilidade
de fazer concurso para gari ou outras profissões outrora evitadas, pelo simples motivo
de que “pagam bem” ou de que são um emprego público. Quem considera o fato de
estar empregado como uma dádiva, aceita também qualquer salário. Poder fazer muitas
coisas diferentes tornou-se uma qualidade do trabalhador. E assim, mesmo que receba
pouco, está feliz por ter um emprego, não importa qual.
57

Lordon (2010A, p. 69) refere-se ao fenômeno da “liquefação da força de


trabalho” no capitalismo neoliberal como

“[o] projeto de tornar o volume de emprego global [...] tão fluido, reversível e
facilmente ajustável quanto um portfólio de ativos financeiros[o que] tem por efeito
inevitável, do lado dos empregados, a entrada num mundo de incerteza extrema. Reduzidos
à espera passiva dos comandos de um desejo-mestre tornado tirânico, os assalariados são
lançados a um mundo de terror: estás de mal humor? Será que foi porque deixei que seu
filho morresse? Pergunta Calígula a Lepidus, o qual não tem outra alternativa que
responder : não ... bem ao contrário”. (Lordon, 2010, p. 69)39

Não há esperança sem medo e medo sem esperança. Assim, quando


conseguimos um emprego, temos medo de perdê-lo. Quando nos engajamos numa
prestação longa para alegremente comprar um bem que desejamos, temos medo de não
conseguir pagá-la ao ficarmos desempregados. Prosseguindo em nossa análise sobre o
funcionamento do dispositivo da criminalização, diremos que nossa imaginação é
trabalhada pelas instâncias de controle social no sentido de fazer com que as causas
desse medo não possam ser identificadas adequadamente. A insegurança crônica
derivada das relações de trabalho transforma-se em medo de ser assaltado, medo da
favela, medo do crack, entre outros tantos medos. Pouco se fala do medo do
desemprego, mas se fala muito do stress contemporâneo, ou da síndrome do pânico,
atribuindo a esses males genericamente ao excesso de trabalho, ou à vida moderna, sem
que se investigue de modo adequado as causas desses males. Entre os afetos que
experimentamos, muitos têm como causa a insegurança ou o esgotamento físico e
mental derivado das condições atuais de trabalho, incluindo-se aí as atuais condições de
saúde do trabalhador. Estamos tão felizes por comprar alguns pequenos e maravilhosos
objetos de alta tecnologia que esquecemos que se precisarmos de uma cirurgia ou de um
dentista, talvez não possamos pagá-lo ou tenhamos que ir parar no corredor de um
hospital público por não ter plano de saúde ou mesmo tendo plano de saúde, ver
recusado o atendimento segundo alguns critérios obscuros.

Através de suas “leis da imitação” Gabriel Tarde descreve o modo como nossa
imaginação se constrói no contágio com os outros, ou seja, na vida social. Os
39
La liquéfaction de laforcede travail est bien le projet capitaliste à l’époque néolibérale, projet de
rendre le volume de l’emploi global aussi fluide, réversible et facilement ajustable que les éléments
d’um portefeuille d’actifs finaciers, avec invévitalemente pour effet, du coté des enrôleés, l’entrée
dans un mode d’incertitude extrême. [...] la réduction à l’attente passive des comandements d’un
désir maître devenu tyrannique plonge le salariat dans un monde de terreur :‘tu as l’air de mauvaise
humeur. Serait il parce que j’ai fait mourir ton fils ? demande Caligula à Lepidus [...] lequel ne se
trouve pas d’autre choix que de répondre : Mais non ... bien au contraire.
58

governantes sabem disso, pois se utilizam dela para nos dar ordens, que nos chegam
através da televisão, entre outros meios. Tarde (1901, p. 68) descreve o modo como a
generalização da leitura de jornais, o telégrafo, a melhoria do correio, criou outro tipo
de coletividade, mais homogênea, criando um “espírito público” inexistente
anteriormente. O surgimento do partido político estava, para ele, muito relacionado ao
advento do jornal, e à criação de uma comunidade informada e de certo modo
apaziguada.

No axioma da parte IV da Ética estão importantes elementos para uma


compreensão da vida social a partir de Spinoza, plenos de consequências para nossa
análise a cerca do funcionamento coletivo dos afetos. Os povos constroem através de
seus mitos, suas crenças, e também através de seus medos, meios para resistir e
perseverar, porém devem se defrontar com as duras condições reinantes na vida social e
na natureza em geral.

Não existe, na natureza das coisas, nenhuma coisa singular relativamente à


qual não exista outra mais potente e mais forte. Dada uma coisa qualquer, existe
uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída (E IV, Axioma).

Os homens inventam meios de perseverar no seu ser tanto individualmente


quanto coletivamente, construindo acordos e impedindo que essas condições de
autêntica guerra, que se impõe como pano de fundo para a sociedade humana, não
prevaleça. Através desses acordos e estratégias, buscam também afirmar sua potência
ou perseverar no seu ser. Tanto no plano individual quanto no plano coletivo, a guerra é
o pano de fundo. A imaginação coletiva, os afetos expressos nos costumes, nos medos,
nos mitos de cada povo, correspondem a essa perseverança, analogamente ao que leva o
indivíduo a buscar, quer com ideias adequadas, quer com ideias inadequadas, algo que
possa aumentar sua potência e impedir sua destruição.
Afirmar um plano da natureza que é pura positividade e causa de si próprio, não
coincide um otimismo ou ingenuidade, já que as condições expressas no axioma da
parte IV configuram um mundo onde reina um autêntico “pega pra capar”. A cada
movimento de afirmação de si ou “virtude” como expresso no corolário da proposição
22 da Ética IV40, seguem se movimentos de outras forças que podem nos levar ao

40
E IV, prop 22, corolário O esforço por se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude.
Com efeito, não se pode conceber nenhum outro princípio que seja primeiro relativamente a este e,
sem ele, não se pode conceber virtude alguma.
59

aniquilamento, configurando a existência, tanto individual quanto coletiva como um


combate. Porém Spinoza não está afirmando um certo modo de vida ou um certo regime
político no qual se resolveria essa situação de combate, mas apontando para a
inexorabilidade desse combate: um combate sem tréguas, sem sujeito nem objeto fixos e
sem finalidade. Um combate que diz respeito à própria vida em suas formas de
expressão. Viver, pensar e agir são correlatos (EIV, 24). Estamos assim sempre
perseverando em nosso ser, pensando e agindo, com os meios de que dispomos e com as
limitações, que estão sempre presentes. A limitação é algo com que convivemos
enquanto estamos vivos, porém ela provém sempre do exterior, não pertence ao plano
do ser. Retirar o negativo do plano do ser não abre um mundo ameno, muito pelo
contrário. Não há em Spinoza outro mundo no qual possamos viver ou uma ideia que
nos garanta chegar à verdade, mas apenas ideias úteis e potentes enquanto armas nessa
luta pela afirmação de nossa potência. Esse combate se dá tanto no corpo quanto na
mente, que são duas formas de expressão deste mesmo combate.

3. 2) Não há um grau zero de potência

Se há uma vida nua, ela só pode ser consequência de um combate, que não é o
último nem o primeiro combate41. O poder político nunca pode atingir uma região fora
da política – como que um âmago do ser, quebrando qualquer outro núcleo duro da
subjetividade, como se pode depreender do que Agambem refere em “O que resta de
Auschwitz”(2008). Para Agambem o muçulmano, esse personagem terminal descrito
por Primo Levi que habita os campos de concentração, teria tocado essa dimensão da
“górgona”, como que um núcleo duro que estaria para além do humano e, portanto da

41
Para Lucchese (2010, p. 76) “a vida nua é um conceito radicalmente negativo, que entende
exprimir o grau extremo de humanidade reduzida a um objeto inerte. A filosofia de Spinoza e
Machiavel parece, ao contrário, negar a possibilidade [...] ontológica da vida nua. A filosofia da
resistência e da afirmação absoluta da vida que emerge das páginas desses autores interdita o
pensamento da nudez da vida, que não se dá jamais como um objeto puramente passivo da ação
violenta e do poder. “la vie nue [...] semble être uma figure plus théorique que réelle, un concept
radicalemente négatif, que entend exprimer le degré extreme de l’humanité réduite à un objet inerte.
La philosophie de Machieavel et de Spinoza semble, au contraire, nier la possibilite même [...]
ontologique de la vie nue. La philosophie de la résitance et de l’affirmation absolue de la vie, qui
émerge des pages de ces auteurs, interdit de penser la nudité de la vie, qui ne se donne jamais
comme objet purement passif de l’action violente et du pouvoir.
60

vida social humana ou da política. O muçulmano seria o limite entre vivo e não vivo,
homem e não homem.

“Se ver a Górgona equivale a ver a impossibilidade de ver, então a


Górgona não nomeia algo que está ou acontece no campo, algo que o muçulmano
teria visto e não o sobrevivente. Ela designa, isso sim, a impossibilidade de ver [...]
de quem, no campo, chegou ao fundo, tornou-se não homem. [...] que no fundo do
humano não haja senão uma impossibilidade de ver: isso é a Górgona, cuja visão
transformou o homem em não homem”. (Agambem, 2008, p. 61) (os grifos são
meus)

Divergindo nesse ponto de Agambem e concordando com Lucchese, pensamos


que as limitações de nossa potência, por mais extremas que sejam, se apresentam em
meio às estratégias que construímos na vida mesma, na superfície dos encontros de
corpos, não correspondendo a nenhuma outra dimensão que à vida nela mesma. Se o
muçulmano atingiu um grau mínimo de potência que o impedirá de narrar o que viu,
outros poderão fazê-lo. E esse grau mínimo de potência é ainda potência humana. Eis no
que consiste a obra de Levi: o esforço de testemunhar, que podemos considerar como a
continuidade de uma luta política, o Muçulmano fala pela boca de outros, mesmo que
ele próprio já não possa fazê-lo.

Os homens estão sempre lutando, perseverando no seu ser. Eles procuram


sempre se afastar daquilo que é causa de tristeza, ou “buscar não considerar tal coisa
como presente” (E III, prop. 28), como bem ilustra a negação das situações de violência
que verificamos nas equipes de saúde, que tendiam a afirmar que a violência estava
sempre numa unidade de saúde vizinha, mas nunca naquela em que trabalhavam. Agem
como aquela família italiana narrada por Primo Levi (1990) que prefere acreditar numa
versão mentirosa acerca do paradeiro de seu parente, (de que este se encontrava
vagando desmemoriado na União Soviética) do que naquela trazida por Levi, que
testemunhara seu assassinato à saída do Campo.

A esperança e o medo são os principais afetos experimentados na vida social,


através dos quais o estado civil governa. As artes da política se dariam a conhecer aos
políticos abeis, mais dotados que os filósofos dessa sabedoria sobre os afetos humanos.
Numa situação de medo, os homens podem aceitar um mal menor para evitar um mal
maior que imaginam estar por vir. Assim, a produção do medo é uma arma política
cujo efeito é a submissão, mas esse efeito é temporário.
61

O que parece interessante para os objetivos neste trabalho, é assinalar que uma
das vias mais importantes de ampliação de nossa potência e de superação do que pode
limitá-la – e, portanto do medo – é também a via do coletivo. Em algumas proposições
da Ética III e da Ética IV estão elementos para pensarmos que a via do coletivo é como
que nosso “remédio”, que age tanto na direção de ganharmos mais domínio sobre nossa
vida afetiva, quanto com relação a essa condição de limitação de nossa potência, cujo
alcance é definido sempre em relação às potências do que nos cerca. Estamos, assim,
sempre ameaçados de destruição por algo ou alguém que tenha uma potência mais forte
que a nossa, numa concepção que tem na guerra o pano de fundo da política e da vida
social. Porém há uma “saída”: a via do coletivo.

Na proposição 14 de Ética II podemos encontrar um dos pilares desse


direcionamento, quando Spinoza assinala que “a mente humana é capaz de perceber
muito mais coisas e tanto mais é capaz quanto maior for o número de maneiras pelas
quais seu corpo pode ser arranjado”. Ou no postulado IV: “é totalmente impossível que
não precisemos de nada que nos seja exterior para conservar o nosso ser e que vivamos
de maneira que não tenhamos nenhuma troca com as coisas que estão fora de nós”.

Após assinalar que tudo o que acontece no corpo é percebido pela mente,
Spinoza considerará que a possibilidade de ter experiências variadas, tanto com coisas e
pessoas quanto com pensamentos, amplia a nossa potência: servir-se das coisas e com
elas deleitar-se o quanto possível (não certamente à exaustão, pois isso não é deleitar-se)
é próprio do homem sábio42.

Assim, se de um lado poderia parecer que nossos afetos são nossa prisão, nos
condenando a variações de nossa potência que não podemos deixar de experimentar a
partir de nosso corpo, Spinoza fará claramente um elogio dessa experiência de variação,
de experimentações que podemos fazer com coisas e pessoas, considerando a solidão,
essa sim, como uma limitação. É assim que nossa vida afetiva se constitui em nossa
maior riqueza e nossa maior vulnerabilidade. Ligada a essa duplicidade da vida afetiva
está também nossa capacidade de imaginar. Por um lado, a imaginação corresponde ao
primeiro gênero do conhecimento e através dela acompanhamos, de modo limitado, os

42
E IV, prop. 44, Escólio 2.
62

efeitos dos encontros que fazemos, desconhecendo suas causas. Mas se a imaginação
pode nos enganar, também é por meio dela que perseveramos na existência, buscando
sempre imaginar o que nos potencializa, lutando desse modo contra a tristeza enquanto
variação para menos da potência. E, além disso, é também por meio da imaginação que
podemos nos contagiar com outros afetos para além dos que experimentamos num dado
momento.

Examinemos a proposição 55 da segunda parte da Ética. “Quando a mente


imagina sua impotência, por isso mesmo, ela se entristece”. O que queremos sublinhar
neste momento é que na solidão temos menos possibilidades de nos contagiar com
afetos experimentados por nossos semelhantes e ficamos restritos àqueles que podemos
nos proporcionar a nós mesmos. Tristes e solitários, mais facilmente estaremos
submetidos a uma potência exterior mais forte que a nossa, que pode nos controlar ou
até nos destruir. Paradoxalmente, na solidão somos menos livres por estarmos mais
suscetíveis com relação aos afetos tristes, entre os quais o medo.

O homem que se conduz pela razão é mais livre na sociedade civil, vivendo
de acordo com leis comuns, do que vivendo na solidão, onde obedece apenas a si
mesmo. O homem que age pela razão esforça-se por agir por bem, alegrar-se. (E
IV, prop. 73)

O termo razão se refere, em Spinoza, a algo muito diferente daquele tipo de


conhecimento produzido num espaço retirado do mundo e dos afetos e de sua constante
variação. Ao contrário, diz respeito a um tipo de conhecimento que provém da
multiplicidade de experiências e, portanto da vida em comum.

A filosofia de Spinoza diz respeito à afirmação de si, a ser o que se é, tanto do


ponto de vista das ideias quanto das ações, entendendo-se este si não como o que é
individual, mas como a essência que constitui tudo o que existe, a causa sui Spinozista,
o âmago de sua concepção bastante peculiar de Deus. Um Deus que está em tudo o que
existe e que se expressa no viver cotidiano e coletivo, tanto em pensamento quanto em
atitudes: agir, viver, perseverar no seu ser são a mesma coisa, têm o mesmo significado.
Viver uma vida sendo capaz de buscar o que é “útil” para si próprio. Ao contrário do
que poderíamos pensar, o útil para si próprio é o que é comum, numa concepção que o
homem contemporâneo pode ter dificuldade de compreender.
63

Continuando essa pesquisa que diz respeito à construção do conceito de


multidão a partir da Ética, examinemos outras proposições pertinentes da parte IV.
Reafirmando no Escólio da proposição 18 o que dissera na proposição 14 da Ética II, já
citada, Spinoza considera ser impossível viver sem nenhuma troca com as coisas que
estão fora de nós. Também na proposição 38 este direcionamento é muito claro:

É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas
maneiras ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; é tanto
mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros
corpos de muitas maneiras. E [...] nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso (E
IV, prop. 38).

Quando dois indivíduos se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais
potente do que cada um deles considerado separadamente. Nesta medida, para Spinoza,
“nada é mais útil ao homem do que outro homem”. “Nada é mais vantajosos aos
homens para conservar o seu ser do que estarem em concordância, como se formassem
um só corpo, uma só mente, buscando juntos o que é de utilidade comum para todos”.
Essa possibilidade de formar com outros indivíduos um só corpo, uma só mente, é
reafirmada por Spinoza no Tratado Político. Ela nasce da capacidade que temos de nos
contagiar com os afetos dos nossos semelhantes. Essa é a essência de sua concepção de
multidão.

A multidão é não só um indivíduo no sentido dos afetos e ações, mas também no


sentido de ser um indivíduo que conhece. Em Spinoza pensamento e corpo são atributos
da substância e neste sentido uma coisa só. Assim, viver em concórdia diz respeito a
uma ampliação do conhecimento, a pensar melhor. Estaria este conhecimento restrito a
alguns eleitos, ao filósofo, aos líderes? Não. Como lemos na proposição 1 da ´Parte IV
da Ética, esse conhecimento é acessível a todos, é uma potência do pensar humano. Se o
homem pensa bem, ele conhece Deus. Como sabemos, a concepção de Deus de Spinoza
o levou a se confrontar com a fé institucionalizada e com as concepções de Deus
geralmente presentes nas igrejas, de um Deus criador e transcendente. Quando usamos
hoje essa palavra Deus, as ressonâncias nela contidas podem nos impedir de reconhecer
algo que se torna claro à leitura dos textos: para Spinoza Deus corresponde à
dimensão do coletivo. Corroborando esse pensamento, para o filósofo, pensamos
melhor quando estamos em coletividade. Ele nomeia como “estar sob a condução da
64

razão” esse conhecimento que conduz os homens a concordarem entre si, a buscar o que
lhes é útil, que é justamente viver na paz e na concórdia. (E IV, propor. 35, Corolário 1).
Porém dizer que esse conhecimento está ao alcance dos homens e não é exclusivo dos
sábios43 não significa dizer que ele não seja raro. E como é raro que os homens se
conduzam pela razão! “O homem é um Deus para o homem. Entretanto, é raro que os
homens vivam desse modo. Em vez disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria,
invejosos e mutuamente nocivos (E IV, prop. 35, Corolário 2, Escólio).”

Retornando ao dispositivo da criminalização, podemos pensar uma maneira de


ultrapassar o medo por ele produzido, que age no sentido da despotencialização do
coletivo: por meio da ajuda mútua, os homens conseguem aquilo que precisam e apenas
pela união de suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam por toda a parte.
Assim, se se trata de enfrentar perigos que nos rondam, nada melhor do que unirmos
forças com nossos semelhantes. Esse conhecimento comum, mais acessível se tivermos
muitas experiências, nos tornará mais capazes de desejar para os outros o que desejamos
para nós mesmos. Há um meio de fazer com que reine um certo tipo de paz que é fruto
do medo. Por meio de um afeto de medo, a depender de sua força, pode-se conseguir
submissão. Os governos se valem desse caminho para obter uma paz aparente, o que
para Spinoza não é paz, mas ausência de guerra. (Bove, 2008) Resta-nos perseguir a
paz por meio desse outro tipo de conhecimento raro, que emerge das práticas
coletivas e das lutas comuns (E IV, prop. 37).

Perseguir a paz e a concórdia é uma questão de engenharia política, de construir


estratégias neste sentido. Uma democracia da multidão deve, através da potência da
mente humana, construir estratégias capazes de produzir paz e concórdia. Os homens
podem estar tomados pelo ódio mútuo – que é uma paixão – e dessa forma tornarem-se
reciprocamente contrários. Mas sempre haverá algo em que os homens possam
concordar entre si, e igualmente, algo em que possam discrepar entre si. No segundo
caso, os homens podem se tornar inimigos, com grande prejuízo para todos. (34, EIV)

É claro que podemos ser dominados por causas exteriores. Quando deixarmos de
estar “sob a jurisdição de nós mesmos” ou quando descuidamos da conservação do
nosso ser, sobrevém a impotência em suas várias figuras, como o vício, a apatia, o

43
O supremo bem dos que buscam a virtude é comum a todos e todos podem desfrutá-lo
igualmente. Escolio: pertence à essência da mente humana ter um conhecimento adequado da
essência eterna e infinita de Deus (E IV, prop. 36).
65

suicídio... Várias situações em que buscamos nossa própria destruição, mas que só o
fazemos por estarmos dominados por causas exteriores. Como vimos no capítulo
anterior nenhum desses fenômenos denominados como crime expressa uma tendência
para o negativo que estaria presente “na base”, mas corresponde a ação de contrários
que mesmo agindo no interior da subjetividade, correspondem a forças externas que
foram interiorizadas em razão de sua força relativamente à da essência singular daquele
indivíduo. Essa expressão “estar sob a jurisdição de si próprio”, aparece no Tratado
Político, mas pode perfeitamente ser aplicada quando consideramos um indivíduo
isoladamente, uma vez que Spinoza sempre transita indistintamente entre fenômenos
individuais e fenômenos de grupo ou sociais, como já nos referimos. Para Spinoza, a
sociedade é um indivíduo composto de muitos indivíduos, que pode deixar-se dominar
por contrários, como o ódio mútuo, entre outras figuras do negativo.

Há um elogio da prudência em Spinoza, pois apesar de não haver um elogio do


medo, há situações em que a fuga é uma virtude: “a virtude com a qual o homem livre
evita os perigos é tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta”. (E IV, prop.
69)

Agir, para Spinoza, é também pensar bem, ou seja, ter ideias adequadas A noção
de ideia adequada não se refere a uma adequação da ideia a seu objeto, como o termo
parece sugerir, mas uma relação entre a ideia e a potência que a atravessa. Quando
estamos dominados a partir do exterior, submetidos aos afetos, não agimos, mas
padecemos ou estamos sujeitos às paixões. Na vida individual e coletiva temos paixões
tristes, sendo o ódio uma delas. O espírito de vingança, a alegria pela desgraça do outro,
ou o sentimento de regozijo do tipo “antes ele do que eu” que podemos ter ao
contemplar imagens de uma morte violenta, todos esses afetos podem ser estimulados,
mas as consequências de uma coletividade assim construída é a infelicidade e a injustiça
e não a paz e a concórdia.

Já nos referimos a que a imaginação não recua em presença do verdadeiro


enquanto tal, mas apenas em função de uma ideia mais forte, mesmo que falsa. (E IV,
prop. 1) As ideias inadequadas envolvem privação do conhecimento, mas não têm nada
de positivo pelo qual se digam falsas. Assim, quando tememos algum mal futuro, o
temor pode se desvanecer quando ouvimos um desmentido, mas podemos nos acalmar
em função de uma mentira ou de um desmentido inverossímil. Nosso medo pode
66

diminuir ou desaparecer tanto a partir de uma notícia falsa quanto de uma notícia
verdadeira. Tal proposição é rica para pensarmos a violência atual e para buscarmos
responder a questão com a qual iniciamos esse capítulo. Seria o medo contemporâneo
justificado porque grandes seriam os perigos a que estamos sujeitos nesse momento da
história? Seria justificável temer as ruas no Rio de Janeiro e de outras tantas cidades
brasileiras e por isso pedir mais e mais polícia?

Ao realizar as Oficinas Clínica e Violência44 em várias cidades brasileiras, foi


interessante observar que o medo à criminalidade aparecia por toda parte, mesmo em
cidades menores. E os participantes de oficinas costumavam narrar fatos que
justificavam seus temores como se houvesse uma competição nacional para definir qual
a cidade mais violenta, enquanto nós cariocas sabíamos que tal troféu nos pertencia. Em
tempos melhores já exercemos liderança nacional por sermos de oposição, ou por
sermos um povo descontraído e bem humorado.

Ora, é verdade que há sempre o perigo que de algo mais forte que nós possa nos
destruir. Tal condição de vulnerabilidade é própria à vida humana, tanto mais numa
cidade como a nossa, em não diremos que a paz e a concórdia reinem. Porém nossa
imaginação luta constantemente contra essa percepção, através da potência do conatus
ou perseverando no seu ser, lutando, inclusive, através da negação e da mentira. E aqui
chegamos a uma importante conclusão para os nossos propósitos: temer algo não diz
respeito a que o objeto temido seja ou não verdadeiro, mas à crença em sua ocorrência
futura. No caso da esperança, se dá o contrário: temos a esperança de que um mal não
nos venha a ocorrer. Nada disso precisa ser verdadeiro enquanto tal, mas depende
apenas da força dessa ideia frente a outras que tenhamos.

Em que consiste a força de um afeto? Como podemos compreender que um afeto


seja mais forte que outro? Sabemos que um afeto não pode ser refreado nem anulado
senão por um afeto contrário e mais forte (E III, prop. 7). Quando a mente é tomada de
algum afeto, o corpo é simultaneamente afetado e sua potência de agir é aumentada ou
diminuída. E como lemos no corolário dessa mesma proposição, um afeto, enquanto

44
Atividade realizada pela equipe Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais, com apoio da União
Europeia entre 2002 e 2006, que consistia na realização de oficinas Clínica e Direitos Humanos.
Tais oficinas eram espaços de reflexão teórico-prática sobre a prática de profissionais que atuavam
na área social, entre psicólogos, assistentes sociais, operadores do direito, etc. Muitas delas foram
organizadas por conselhos regionais de Psicologia de todo o Brasil.
67

está referido á mente, não pode ser refreado nem anulado senão pela ideia de uma
afecção do corpo contraria àquela da qual padecemos e mais forte do que ela.

E neste ponto retomemos uma questão importante para nossos propósitos: qual
força da mídia no dispositivo da criminalização? Ou melhor: qual a força dos afetos que
experimentamos ao recebermos nosso bombardeio diário de fatos violentos?

Uma característica do modo como a mídia veicula estes fatos é de que eles nos
são apresentados como fatos presentes, acontecendo “em tempo real”: são câmeras
escondidas filmando arrastões, repórteres acompanhando sequestros ou incursões em
favelas para a implantação de UPPs, que se fingem de usuários de drogas ou de
participantes de esquemas de corrupção, que usam capacetes de bombeiros e entram no
espaço de salvamentos de vítimas, ou que até morrem diante de nossos olhos atingidos
por uma bala “perdida”. Todos esses fatos compõem um presente ameaçador ou no
mínimo muito impactante. Desse modo, eles adquirem mais força afetiva do que se
fossem narrados como passados ou futuros, como expresso no corolário da proposição 9
da Ética IV: “Um afeto cuja causa imaginamos, neste momento, estar presente, é mais
intenso ou mais forte do que imaginássemos que ela não está presente”. E em seu
corolário: “a imagem de uma coisa futura ou passada é mais débil que a imagem de uma
coisa presente”.

Notícias de fatos violentos “em tempo real” têm uma força afetiva mais forte, no
entanto, é sempre possível desligar a TV. Nisso se apoiam os homens de mídia para
responder às críticas sobre o modo como são veiculados os fatos violentos ou mesmo a
propaganda, apoiando-se no livre arbítrio do telespectador e convictos que seu trabalho
diz respeito a assegurar a todos o “direito à informação”. É verdade que sempre será
necessário encontrar hábitos e modos de vida mais potentes e mais fortes para escapar
ao fascínio do desfile diário de objetos cobiçados e de fatos ameaçadores diante de
nossos olhos, colonizando nossa imaginação. O grande perigo de imaginar é a
possibilidade de acreditar em quimeras. Podemos nos divertir acreditando em cavalos
alados, mas se pretendermos voar neles, aí sim teremos um problema. (Martins, 2009).
68

3.3) Pensar e agir: é possível ultrapassar o medo e a submissão alegre?

Spinoza reserva a definição de ação para o que fazemos quando temos ideias
adequadas. Quando temos ideias inadequadas não agimos, apenas padecemos. Governar
é dar razões ao povo para ter medo e esperança, e isso não apenas no capitalismo atual.
Diversos fenômenos contemporâneos ilustram o fenômeno da “incapacidade de agir”
entre os quais o medo da criminalidade. Um dos serviços prestados pelo dispositivo da
criminalização é desvincular o medo e a revolta da figura dos governantes e mesmo do
estado. A despolitização do crime: eis a maior utilidade da invenção da figura do
delinquente pelas ciências humanas, a partir das engrenagens carcerárias, transformando
o crime na expressão de uma doença ou de uma anormalidade e afastando-o de qualquer
conotação política que possa ter enquanto oposição à lei.
O capitalismo não para de se oferecer como tema de discussão: porém essas
discussões deveriam torná-lo superável, o que ainda não vimos ocorrer. (Lordon, 2010
A, p. 9) Não resta dúvida de que este sistema econômico e político conseguiu sobreviver e
se fortalecer, ao ponto em que alguns acharam que a história tinha acabado, restando apenas
o presente liso e eterno do capitalismo neoliberal. A sobrevivência do capitalismo se deu,
apesar de que se processasse continuamente aquilo que Marx descreveu como sua
contradição principal, que levaria ao seu fim: o caráter cada vez mais social da produção,
em contraste com a apropriação privada dos lucros. Porém, foi no campo da produção de
subjetividades que o capitalismo construiu importantes aperfeiçoamentos que permitiram
sua continuidade. E apesar de que o desenvolvimento das forças produtivas se tornasse cada
vez mais social, como anunciou Marx, no nível das relações de produção, os modos de
distribuição de riquezas permaneceram hierarquizados e privados. E para garantir que este
sistema continuasse se reproduzindo apesar desse incrível incremento da vida coletiva,
novos dispositivos de controle social capazes de produzir sujeição e docilização foram
inventados. Foi o que Foucault (2008) mostrou, ao analisar a emergência do poder
disciplinar e sua reorganização aperfeiçoada que corresponde ao Biopoder.

O capitalismo contemporâneo no regime do Biopoder imita a vida, como se fosse


ele mesmo a própria vida. Mas apenas como se, pois é impossível que exista, no plano da
substância, qualquer tendência ou condição prévia que imponha limites à vida. A vida é por
definição o contínuo engendramento do novo. Incluindo-se aí a invenção de novos
dispositivos de controle social, que são produções da vida, mas que nunca a produzem. Não
está tudo dominado, como afirma Eduardo Passos (2001), ao convidar-nos ao embate com
69

as forças de assujeitamento através de uma clínica-política. Do ponto de vista da filosofia de


Spinoza, há uma impossibilidade ontológica de que tudo esteja dominado.

Seria o capitalismo apenas um sistema social entre os outros que o precederam ou


há nele algo de especial que o torna diferente de todos os outros? Para Deleuze e Guattari, o
capitalismo não é apenas mais um sistema social – nele ocorre algo inédito com relação aos
demais sistemas, no campo da produção de codificações, ou no campo da produção de
subjetividades.

“Porque não dizer apenas que o capitalismo substitui um código por outro, que ele
efetua um novo tipo de codificação? Por duas razões [...] uma impossibilidade moral e uma
impossibilidade lógica [...] seu cinismo essencial. Com o capitalismo o corpo pleno se torna
realmente nu [...] a axiomática não tem mais a necessidade de se inscrever em plena carne,
de marcar os corpos e os órgãos nem de fabricar uma memória para os homens. No
capitalismo a reprodução social vai se tornando independente da reprodução humana. O
socius como corpo pleno se tornou diretamente econômico enquanto capital-dinheiro, não
tolera nenhum outro pressuposto”. (Deleuze e Guattari, 1976, p. 257)

A axiomática não mais se inscreve em plena carne e dessa forma, não é capaz de
produzir memória, o que permite falar sempre de pelo menos dois lados dessa mesma
moeda. Podemos dizer que no contemporâneo, pelo enfraquecimento das codificações
produzidas pelas instituições disciplinares e pelos processos de desterritorialização
acelerados que estão em curso, a reprodução do capitalismo está sempre ameaçada. O
conceito de desterritorialização é para Deleuze e Guattari um outro nome para criação. Ele
diz respeito tanto a esse fenômeno da decodificação através do qual esse sistema social
destrói todos os territórios que não os do capital, quanto às possibilidades de reinvenção de
modos de existir e agir que a partir desse mesmo fenômeno se abrem.

3.4 A transitoriedade do medo: “barata pode ser um barato total”

No Tratado Político encontraremos uma importante reflexão sobre medo e


solidão, que nos interessa neste momento. Já vimos que na solidão temos mais
dificuldade de superar o medo, pois não podemos nos contagiar com afetos de nossos
semelhantes. E a quem consideramos nosso semelhante? Vimos que a semelhança é
algo da ordem da imaginação. Na raiz do contágio afetivo está a política e a capacidade
70

que temos de superar ou não o medo. A não superação do medo, para Spinoza, diz
respeito a um fracasso da vida coletiva, da vida social. Quando os homens se
desencantam com a vida coletiva estão desorientados e muito mais expostos ao perigo.
Porém podem também permanecer juntos em função de um medo comum.

[...] um estado civil que não elimine as causas das revoltas, onde há
continuamente que recear a guerra e onde, as leis são [...] violadas, não difere
muito do próprio estado natural, onde cada um vive consoante o seu engenho, com
grande perigo de vida. (TP 2009, capítulo V, artigo 2, p.44)

O medo é um dos modos de experimentar o coletivo, ou um dos modos através


dos quais experimentamos a potência do conatus, mas de modo diminuído. O afeto de
alegria ou de esperança é mais benigno, porém ele é também um modo pelo qual os
governos exercem sua dominação.

O medo é uma das reações básicas do corpo, uma reação às ameaças externas e
enquanto tal, uma reação em favor da vida. Porém Freud já distinguira entre perigos
externos e perigos internos, sendo os segundos injustificados do ponto de vista objetivo.
É o caso das fobias, em que podemos temer algo que não nos oferece nenhum perigo
real. Quando tememos o crime, à primeira vista estamos temendo algo real, porém, ao
examinarmos mais detidamente, nos daremos conta de que estamos temendo um
acontecimento que prevemos que se dará, e enquanto tal, algo da ordem da imaginação.

A realidade, para Spinoza, está sempre envolta num véu que é a imaginação e
faz pouca diferença, quanto às nossas reações emocionais, se algo está efetivamente
acontecendo ou se apenas o imaginamos como presente. Por consequência, o medo não
pode ser referido somente um “perigo externo”, pois sabemos que os homens são
capazes de enfrentar incríveis perigos ultrapassando ou convivendo com o medo, até
gostando de ter medo, ou experimentando pouco ou nenhum medo. Assim, a
intensidade do medo depende das deias que temos na mente. A tristeza e a alegria são
efeitos dos encontros que fazemos, ou das afecções que temos. Tais efeitos se produzem
no corpo e na mente, podendo traduzir-se em ideias inadequadas ou despotencializadas.
O afeto de medo é por definição uma paixão, ou seja, é um dos afetos que temos quando
não podemos ser causa adequada de uma afecção. Afetos de medo podem prevalecer em
nossas ideias acerca do contemporâneo, impedindo que transformações possam ocorrer
71

a partir delas. Podemos pensar que pensadores, intelectuais, políticos, podem perder o
contanto com sua essência singular, com a produtividade mesma da natureza que existe
neles próprios e produzir ideias derrotistas, entristecidas. Algumas ideias que temos são
a expressão dessa perda de contato, que nos torna, em grande parte, impossibilitados de
agir e podendo apenas padecer. Não podemos vencer o medo se estivermos tomados por
ideias tristes, mas somente se outras ideias surgirem a partir de outros encontros.
Podemos concluir que o medo que experimentamos está relacionado ao estado de
nossos afetos e à potência que temos naquele momento, e apenas secundariamente,
ligado a quão perigosa se apresenta a realidade.

Não é o perigo real que nos leva a nos acomodarmos. Vimos que a noção de
perigo real se torna problemática, pois o medo parece estar sempre permeado pela
imaginação, pelas paixões, por estarmos dominados por causas exteriores. A reação de
medo a um perigo real não explica todas as manifestações do medo humano. Um dos
efeitos do dispositivo da criminalização é também fazer-nos crer que estamos
paralisados e cautelosos porque os perigos são muitos. Nossos medos seriam, assim,
justificados. Porém o medo é sempre relativo à nossa potência, pois sabemos que
“quando a gente está contente, barata pode ser um barato total45”.

O estado de nosso conatus determina se podemos empreender alguma ação ou se


ficamos paralisados. Para tal, a vida coletiva se apresenta como um facilitador. Se
estamos isolados e sozinhos, estamos menos potentes, menos capazes de reagir. Tal
princípio está presente na política de Spinoza, para quem, quando os indivíduos estão
inteiramente tomados pelo medo é porque eles estão isolados. Num artigo anterior,
“Tortura como ataque à dimensão do coletivo” (2010) propusemos que a tortura é
utilizada pelo estado autoritário para calar e contagiar pelo medo, buscando diminuir as
possibilidades de contestação coletiva e de revolta.

45
Barato Total –Música de Gilberto Gil, gravada por Gal Costa.

Quando a gente tá contente [...]


Barata pode ser um barato total
Tudo que você disser deve fazer bem
Nada que você comer deve fazer mal
Quando a gente tá contente
Nem pensar que está contente
[...]Nem pensar a gente quer, a gente quer
A gente quer, a gente quer é viver.
72

Para Keleman (1992, p. 76) há um reflexo do susto que pode ser passageiro e
quando passa o perigo, o indivíduo volta ao estado anterior. O homem é o único animal
que expõe a parte macia da barriga ao andar na postura ereta, enquanto os demais
mamíferos a mantém oculta e protegida quando estão em posição de ataque ou de
defesa. Assim, a posição ereta humana, de exposição das partes vulneráveis do corpo, é
adotada e mantida à custa dos meios de defesa que a vida coletiva traz aos homens,
incluindo as armas que foi capaz de inventar.

Keleman traz uma descrição de estados de medo progressivos, levando ao final à


paralisia, que é o estado de pavor. Porém seu foco de análise é o indivíduo isolado. Se
pensarmos a partir do coletivo, podemos encontrar maiores possibilidades de que esse
percurso físico e psíquico do medo não se cumpra. O indivíduo que está em relação com
outros indivíduos pode, como vimos, se contagiar com afetos que o mobilizem noutras
direções que não a do pânico ou do pavor. É claro que o inverso também pode ocorrer,
ou seja, o contágio pelo medo, chegando ao pânico e à fuga desabalada. De qualquer
modo, concluímos que o medo é um estado sujeito à variação, podendo sempre ser
alterado por interferências externas e internas.

A transitoriedade e a variação afetiva no campo dos dispositivos de controle


pode ser pensada também à luz do conceito reichiano de peste emocional, a que já nos
referimos no capítulo II. Estar atacado de peste emocional corresponde a uma variação
para menos da energia vital. Seus efeitos têm sua raiz no medo às reações naturais do
corpo e a um emperramento da capacidade de entrega sexual ou numa limitação da
energia vital. Reich não dissocia vida psíquica individual e vida social em sua definição
da peste emocional, examinando seus efeitos na vida política, na multiplicação do
fascismo. Porém poderemos experimentar novamente um reflorescimento tanto de
práticas quanto de pensamentos quando a energia vital puder fluir novamente.
Seguimos construindo essa possibilidade de pensar o medo como um afeto
transitório. Enquanto afeto, ele é passível de transformação noutro afeto. Vimos que
tanto Freud quanto Reich, além de Keleman, se referem a essa possibilidade de
transformação dos afetos: do amor em ódio e do ódio em amor, enquanto expressões de
uma mesma libido, ou o papel central que Reich concede ao trabalho clínico com a
agressividade como meio para chegar à sexualidade.
73

Para Reich o medo é como que o outro lado do impulso sexual: é em princípio
uma reação saudável do corpo, mas pode se cristalizar. A angústia é como o outro lado
da energia sexual; é o medo neurótico por excelência, que aparece quando a libido está
obstaculizada, impedida. Estabelece-se uma via de mão dupla entre angústia e energia
sexual ou essa transitoriedade é interessante para pensarmos os dispositivos de captura
contemporâneos. Os dispositivos de captura não podem ter como efeito um grau zero de
potência, o que seria como imaginar que a expressão da energia sexual pudesse ser
inteiramente impedida. Neste caso, poderíamos imaginar uma sociedade onde o sexo
fosse inteiramente abolido, substituído por pílulas, como aparece em algumas criações
da ficção científica, o que não é possível, a partir de Reich.

Pensar que existe um grau zero de potência é afirmar a existência de uma


angústia prévia e básica na experiência humana atuando como uma tendência originária
para o negativo ou como uma causa destrutiva interna, o que não é possível na
perspectiva de Spinoza, como expresso em vários momentos da ética, como na
proposição 4 da parte III:

Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior. [...] Pois a
definição de uma coisa qualquer afirma a sua essência, ela não a nega. Ou seja, ela
põe a sua essência; ela não a retira. Assim, à medida que consideramos apenas a
própria coisa e não as causas exteriores, não podemos encontrar nela nada que
possa destruí-la.

Qual a importância de afirmarmos que o medo, enquanto afeto, é transitório e


variável? Nosso interesse diz respeito a pensar os efeitos de medo produzidos pelo
dispositivo da criminalização: teria esse dispositivo o poder de nos paralisar
inteiramente?

Vera Malaguti Batista (2003) estuda a história do medo na cidade do Rio de


Janeiro a partir de uma matriz que é o medo de que os escravos se revoltem. Ele eclode
em diferentes momentos da história da cidade e que teve um de seus momentos de
explosão no período em que se deu a independência do Haiti, em 1804. Em todo lugar,
as elites enxergavam a possiblidade de que explodissem revoltas e em razão desse
medo, muitos negros foram perseguidos e mortos. Um aspecto interessante é a
coincidência, no Rio de Janeiro colonial, dos espaços de reunião de escravos, em que
estes cantavam e dançavam, com os pelourinhos, que eram locais de castigo, como
ocorreu no Campo de Santana, no início do século XIX. O mesmo se dá em Salvador,
74

onde o Pelourinho é a principal referência do carnaval, embora tenha sido um local de


tortura e sofrimento. Essa coincidência ilustra bem esse aspecto de transitoriedade do
medo, também captada por esses antigos dispositivos de controle social hoje em desuso.

A cidade do Rio de Janeiro parece ter sido atravessada pelo medo coletivo em
diferentes momentos de sua história (Bicalho, 2003, p. 64). Em 1758 um terror pânico
tomou conta da cidade quando da “arribada” de uma esquadra de navios franceses
comandados pelo conde de Aché. À época interessava a Portugal manter boas relações
com a França, mas estava vivo na memória da população o saque à cidade realizado por
franceses em 1711. Após algumas tentativas de desembarcar na cidade, a tripulação
acabou desistindo, face a alguns acontecimentos que evidenciavam o pânico da
população, talvez agravado pela ausência do governador Gomes Freire, que fora
enviado pela coroa portuguesa para lutar nas províncias cisplatinas. Certo dia surgiu
fogo na casa onde se hospedava o general francês e o povo correu ao local dizendo
“morram esses franceses que nos querem botar fogo à cidade”, ao que novamente
acudiu um desembargador da relação, evitando um provável motim do qual
participavam, “homens, mulheres e pretos”. E a partir de então os franceses desistiram
de sair à noite pela cidade. Avalia um bispo que “a viva lembrança que conserva esse
povo do gravíssimo dano causado pela nação francesa, quando no ano de 1711
[saqueou] a cidade” foi o que desencadeou a sublevação. (Bicalho, p. 65). Para o conde
de Aché era “quase impossível conter um tão numeroso povo”. “De nada adiantara
dobrarem-se as guardas, impotentes para impedir que seus habitantes [...] apedrejassem
e tentassem apunhalar os oficiais que tiveram permissão de desembarcar [...] o que
impossibilitou a resolução dos negócios que os trouxeram ali”.

Outro exemplo da história da cidade do Rio de Janeiro ilustra a transitoriedade


do afeto de medo e a possiblidade de sua transformação noutro tipo de afeto. Enquanto
no exemplo anterior o medo claramente se transforma em revolta, neste se trata de que,
através da experiência comum de medo, a solidariedade e a potência do pensar são
acionadas, pesar dos efeitos despotencializadores do dispositivo médico.
Acompanhando o surto de gripe espanhola ocorrido no Rio de Janeiro em 1918
(Bertucci, 2009) verificou-se um “surto de medo” na cidade, no qual, incentivada pelas
autoridades sanitárias, a população era desaconselhada a todo tipo de contato, incluindo
apertos de mão e até mesmo o acompanhamento dos enterros das vítimas. Escolas
foram fechadas, reuniões e festas canceladas. Famílias inteiras se mudavam para o
75

interior abruptamente, deixando para traz empregos e até a luz da casa acesa, o que
levou a que um jornal perguntasse em manchete: “estariam todos mortos”? Além do
medo do vizinho e do parente infectado, verificou-se o medo do hospital, do qual
muitos fugiam. Porém, outro movimento existiu ao lado desse, na direção do coletivo,
apesar do perigo real existente e do quanto o medo parecia justificado.

... “o medo da gripe de 1918 motivou também a solidariedade, expressa de maneira


singular na divulgação de práticas caseiras de cura que, combinadas com esparsas informações
médicas e com a fé, traduziram a generosidade de indivíduos que difundiam gratuitamente aquilo
que, acreditavam, poderia acabar com a epidemia”. (Bertucci, p. 45)

E foi assim que ao lado do pavor e da localização dos focos de infecção nos
bairros mais pobres, muitos se dedicaram a divulgar receitas que incluíam o uso de
amuletos e patuás pendurados no pescoço, simpatias e também o uso de sucos de
cebola, limão, e inúmeros chás e receitas caseiras, que passaram a circular, nos jornais,
além de ações de solidariedade organizadas por igrejas e associações, propiciando
momentos em que muitos, esquecidos do medo dos “espanholados”, voltavam a se
agrupar. Como a ponta Spinoza a o medo sempre inclui esperança, pois em sua luta por
perseverar no seu ser, os homens constroem com sua imaginação saídas para as
situações de medo extremo. Por outro lado, a esperança também cede lugar ao medo,
quando tememos que o bem que esperamos possa não se realizar. Porém há ainda outra
saída para o medo, essa ditada pela potência do coletivo, que irá mobilizar saberes e
práticas que possam ser capazes de apontar saídas para as situações vividas, como foi o
caso da mobilização dos saberes populares e da solidariedade.

3.6) A fraqueza do dispositivo da criminalização: o rei está nu

O afeto de medo pode se transformar em rebelião, como ilustrou o exemplo


anterior, no qual a população, inicialmente amedrontada, acaba por tomar nas mãos a
defesa da cidade. Seria esse medo diferente do que hoje é disseminado, a partir do medo
à criminalidade? O que impede ou em que condições este medo pode se transformar em
ações de solidariedade ou de sublevação? Constatamos que o dispositivo da
criminalização, por ser centrado no medo, possui assim suas limitações. Seus efeitos
76

poderão ser considerados tão transitórios quanto o medo e dessa forma constatamos sua
fragilidade.

A presença de Machiavel no Tratado Político, a última obra de Spinoza, traz


como uma de suas marcas a possibilidade sempre presente de que o medo se transforme
em revolta. Numa concepção sempre dinâmica acerca da dominação política que um
estado pode exercer, temos que um governo opressor recolhe sempre como resultado, o
medo, porém esse medo é perigoso para os governantes, pois pode se transformar em
indignação e em revolta. Desse modo, um governo pelo medo tem curta duração;
quando um governo pelo medo adquire alguma estabilidade, é porque conseguiu dar
razões ao povo para acreditar seus anseios são ou serão em curto prazo contemplados.
Por outro lado, se um rei ou príncipe pode ser enganado com relativa facilidade, como
ilustram as várias conspirações de que é alvo, é muito difícil que alguém consiga
enganar a todos ao mesmo tempo ou por muito tempo.

O medo se reveste de importância positiva, por ser um estado afetivo vizinho da


revolta. Para Machiavel, a quem Spinoza se referiu como “o arguto florentino” não é a
opressão pura e simplesmente que leva à revolta, mas a superação do medo ou sua
transformação noutro tipo de afeto. Assim, podemos considerar que há uma distinção
de grau entre medo e revolta e não de natureza, sendo o estado de rebelião um estado
vizinho ao de medo. (Lucchese, 2010)

Sabemos partir de Spinoza que um mau encontro implica em despotencialização,


tanto do corpo quanto da mente. Quando falamos em afeto, em Spinoza, falamos
também em ideias. Não há dissociação entre corpo e pensamento e os afetos dizem
respeito tanto ao corpo quanto à mente que são por sua vez expressão de uma única
substância. A despotencialização da mente corresponde a sermos tomados por ideias
negativas – de que estamos encurralados, de que não há saídas. Mas se superarmos
essas ideias, poderemos ampliar nossa potência, o que sempre pode sempre ocorrer,
enquanto estamos vivos.

Nossa questão passa a ser, portanto, o que faz com que o estado de medo se
prolongue e deixe de seguir um curso bastante provável, no caso do medo como
fenômeno coletivo: o de se transformar em revolta. Ou seja, qual o alcance real das
pílulas de medo destiladas diariamente pelo dispositivo da criminalização? Se esse
dispositivo produzisse apenas medo, seus efeitos só poderiam ser transitórios como é o
77

afeto de medo. Porém temos que considerar que dispositivo da criminalização funciona
ao lado de outros dispositivos que agem sobre o coletivo. E é claro, há as armas e a
força bruta, porém nem mesmo elas podem explicar totalmente a paralisia e a
submissão. E como já mencionamos, não são apenas as grades que mantem os homens
presos.

Os efeitos desse ou de qualquer dispositivo não podem ser pensados como


definitivos, capazes de instalar um estado de alienação inexorável. Porém não devem ser
desprezados os efeitos redutores das possibilidades de experimentação coletiva através
da disseminação do ódio vingativo, entre outros afetos tristes, em ressonância com a
competitividade já reinante no campo social face às condições de trabalho no
capitalismo atual. Algumas proposições da Parte III da Ética parecem descrever o
contexto da cultura competitiva e punitiva que vivemos: “Quem imagina que aquilo que
odeia é destruído se alegrará” (E III, prop. 20). Ou “Esforçamo-nos por afirmar, quanto
a uma coisa que odiamos, tudo aquilo que imaginamos afetá-la de tristeza e
contrariamente, por negar aquilo que imaginamos afetá-la de alegria” (E III, prop. 26).
Outro nome para o conatus ou capacidade de perseverar no ser pode ser
“resistência”. A distinção “estado natural e estado civil”, que aparece no Tratado
Político, nos é útil para seguirmos investigando as possibilidades de superação do medo
coletivo. O estado civil opera sempre sobre o estado natural, que em Spinoza não
corresponde a um estado de natureza caótico a ser organizado de cima para baixo, pela
lei do estado, como seria o caso em Hobbes. A partir da concepção spinozista de
estado natural, podemos falar de uma base ontológica para a resistência enquanto
desejo sempre presente de não ser dominado por um semelhante. Eis a razão pela
qual podemos considerar que contra as instituições sempre operam as resistências, ou
que sob o estado civil sempre opera o estado natural, no qual não há qualquer princípio
moral e que não pode jamais ser inteiramente superado ou vencido.

No chamado realismo político spinozista estão sempre colocadas questões


estratégicas sobre como conseguir “a paz e a concórdia”, o que não significa dizer que
ele pense em tal ou qual forma de estado isso estaria garantido. A palavra virtude é um
outro nome para potência na terminologia de Machiavel. Na política estamos sempre às
voltas com o acaso, sendo a virtude o que podemos acionar frente ao acaso de modo a
diminuir seus efeitos nefastos. Como um estado ou governo pode conseguir a paz e a
concórdia? Certamente não é incutindo o medo:
78

“De uma cidade em que os súditos não pegam em armas unicamente em razão do terror
que os paralisa, deve-se dizer, não que aí haja paz, mas antes, que a guerra aí não tem lugar.
Pois a paz não é a ausência de guerra. É uma virtude eu nasce da força da alma, e a
verdadeira obediência é uma vontade constante de executar tudo aquilo que deve ser feito
segundo o decreto comum da cidade. Do mesmo modo, uma cidade em que a paz não
possui outra base senão a inércia dos súditos, os quais se deixam conduzir como um
rebanho e não são habituados senão com a servidão, merece mais nome de solidão do que
o de cidade”. (Tratado Político, capítulo 5, 4)

Em que consistiria a “verdadeira obediência”? A discussão de uma verdadeira


obediência nos interessa também para investigar o que pode impedir que um povo se
revolte, face às condições sempre presentes de que o medo se transforme em revolta,
como vimos. Há em Spinoza um tipo de obediência diferente da opressão assim, como
há uma paz diferente da ausência de guerra.

Já mencionamos que, para Spinoza, nossa potência é sempre relativa às


potências do mundo, dos outros indivíduos que nos cercam, que podem ser maiores do
que a nossa, o que pode nos limitar ou até nos destruir. Essa ideia nos impede de pensar
que, muito embora não haja uma tendência de base para o negativo, o mundo spinozista
seja um mundo ingenuamente alegre. Assim, “a solução política da afirmação positiva
da paz [...] repousa paradoxalmente sobre o reconhecimento [...] do direito de guerra da
multidão como direito de resistência à dominação” (Bove, 2008). Ou seja, a paz é
sempre uma conquista, ou o estado é sempre “eterno enquanto dure (Torres, 2010, p.
15)”, ou seja, enquanto não encontre uma potência mais forte que possa destruí-lo. Essa
potência mais forte pode ser seu próprio povo. Assim, para que um estado possa se
manter, tudo depende do grau em que ele possa contemplar os anseios da multidão ou
lhe dar razões para ter esperança. “O direito comum da multidão repousa sobre o direito
de guerra da própria multidão”. (Bove, 2008, p.5). O mundo descortinado por Spinoza é
um mundo em constante conflito, que tem a guerra como pano de fundo, mas também
um mundo o mundo dos acordos e alianças, sendo este o sentido spinozista de que a
política seja a continuação da guerra por outros meios46.

O conceito de multidão surge no Tratado Político, obra na qual o pensamento de


Spinoza incorpora as contribuições de Machiavel às teorizações que iniciara nas partes

46
« A política é a guerra por outros meios», frase de Clausewitz citada por Foucault (2000). Para
Spinoza se trata sempre de pensar sobre esses outros meios, que são as estratégias que possam ser
construídas.
79

III e IV da Ética. Observemos que essa experiência de formar um só corpo e uma só


mente, que ocorre na multidão, é dada a partir do contágio dos afetos. Assim, todo
estado capaz de durar se organiza sobre o direito natural da multidão, tendo que se haver
sempre com o desejo insurgente- dos seus cidadãos. A democracia da multidão seria
um estado capaz de contemplar ao máximo os anseios coletivos. Spinoza não aponta
uma forma de governo específica na qual isso estivesse garantido. A democracia da
multidão não é um estado a que se atinge de uma vez por todas, mas uma construção
sem descanso.
80

IV) O Comodismo Contemporâneo e as Múltiplas Dependências

Do ponto de vista de nossa análise sobre os efeitos do dispositivo da


criminalização, pensamos que a ação desse dispositivo faz disseminar no campo social
um medo difuso cujo resultado pode ser o esvaziamento do coletivo no sentido político.
Em outras palavras, o medo do crime e da violência seria o responsável por esse
esvaziamento e por esse enfraquecimento dos laços horizontais. Já discutimos a relativa
fraqueza desse dispositivo, em função da variação a que estão sujeitos os afetos
humanos, além do fato de que o próprio dispositivo capta da multidão sua força.

Muitos estarão se perguntando onde está essa capacidade insurgente da


multidão, pois o que mais observamos são indivíduos acomodados, até mesmo
contentes com algumas migalhas ou indivíduos que encontram muitas razões para temer
desde os acidentes de trânsito, passando pelo degelo das calotas polares, indo até o
medo do pobre, do negro, ou do terrorista. Podemos também nos perguntar onde estão
as multidões que há algumas décadas atrás se concentravam na Cinelândia, no centro do
Rio, nos comícios de Brizola e Lula ou que antes disso, pediam eleições diretas. E neste
ponto recorremos a Machiavel, para quem a razão da inercia e do medo difuso não
são os perigos reais, mas as comodidades da vida.

No capitalismo atual estão dadas as condições de contágio afetivo e de


uniformização imitativa num grau inusitado na história da espécie humana. No entanto,
é visível a ação dos dispositivos de controle social como forças contrárias à
potencialidade política da multidão. As instituições têm o poder de homogeneizar
afetos, tanto tristes quanto alegres. Novos meios técnicos favorecem a comunicação
horizontal em amplos setores e alguns movimentos sociais organizados via internet e
celular têm ilustrado este fato. Condições históricas favorecem os laços horizontais, que
vão no sentido da solidariedade e da aliança. Porém forças poderosas agem noutro
sentido, o das relações verticais, hierarquizadas e também na produção do comodismo.

Uma das figuras do comodismo contemporâneo é a fuga do conflito, a ideia de


que o conflito é mau e deve ser evitado a qualquer custo. Para Machiavel o conflito é,
ao contrário, saudável e positivo, pois a partir dele é que podem ser “criadas boas leis”,
81

aquelas que propiciam a verdadeira obediência por se apoiarem não na opressão, mas na
potência, que se expressa em acordos e estratégias coletivamente firmadas. Por outro
lado, quando sistematicamente evitados ou impedidos, os conflitos se tornam
destrutivos e letais, já que “humores” não podem ser externalizados47. Existe no
pensamento de Machiavel uma relação criadora entre conflito e lei (Luchese, p. 141)
demonstrada, por exemplo, quando ele crê que é dos conflitos entre os nobres e o povo
de Roma que resultaram boas leias agrárias, que não teriam existido se esse jogo
conflitivo não tivesse se dado. É o conflito que pode instaurar uma relação virtuosa
com a lei. Porém nem todo o conflito tem esse desfecho, pois alguns podem ter efeitos
destrutivos. Além disso, não se trata de conflito binário, mas de instabilidade e
desequilíbrio, ou de uma multiplicidade de forças em ação:

Para se chegar a uma regulação virtuosa do conflito necessita-se de soluções virtuosas,


como não excluir os vencidos. A recursividade perene entre lei e conflito é a chave de leitura do
direito em Machiavel. [...] o que se percebe é que a instabilidade e o desequilíbrio (e não um dos
dois termos do conflito binário) são o motor virutuoso que mantem viva e fecunda a relação
de causalidade entre lei e conflito. (Lucchesi, p. 143)

Um conflito frequentemente recusado em nossos dias é o conflito de gerações ou


mesmo a abolição da diferença entre as gerações numa sociedade em que todos querem
parecer jovens.

Winnicott faz uma aproximação entre adolescência e delinquência que pode nos
ser útil neste momento. A questão central da adolescência para este autor diz respeito ao
modo como a sociedade é capaz ou não de incorporar o novo e o diferente. Para
Winnicott o adolescente é um pouco delinquente e o delinquente é um pouco
adolescente, no sentido de que traz com sua rebeldia a possibilidade de que a sociedade
dos adultos se confronte com novos valores, diferentes dos de sua geração. A riqueza de
uma sociedade e a possibilidade de que esta se renove diz respeito ao grau de
acolhimento que pode dar a esse conflito. Aos adultos não cabe esvaziar o conflito
abrindo mão de seus próprios valores para aderir aos dos adolescentes, nem impor seus
valores através da força bruta, calando o conflito. É a experiência do conflito enquanto
tal que levará a que os adolescentes possam adquirir autonomia e afirmar seus próprios
valores.
47
Pode-se observar aqui uma proximidade com Reich, quando ele analisa o bloqueio da energia
vital pela couraça caracterial.
82

Desejarão os rapazes e moças ser compreendidos? Penso que a resposta é


não. [...] Qualquer coisa que digamos ou façamos está errado. Damos apoio e
estamos errados, retiramos o apoio e também estamos errados. Mas com o passar
do tempo descobrimos que este adolescente [...] está agora preparado para começar
a identificar-se com a sociedade, com os pais e com grupos mais amplos, e a fazer
tudo isso sem sentir ameaça de extinção pessoal. (Winnicott, 1994, p. 160).

Muitos saúdam essa boa época, na qual todos podem se falar a qualquer
momento pelo celular, fato que leva muitas operadoras de celulares a veicularem
propagandas adocicadas. Porém não se deve esquecer as novas formas de dominação
que esses dispositivos tornam possíveis, entre pais e filhos, entre cônjuges, sem contar
as câmeras de televisão que nos vigiam nas ruas e na entrada de prédios. Espionar e
delatar são ações que podem em muito ser potencializadas, ativando o vetor vertical e
opressivo também otimizado por esses pequenos e amados aparelhos.

Com frequência se denuncia de forma raivosa e indignada que presos estão


usando telefones celulares. Em mais este exemplo constatamos que “a semente de
vagabundo é mesma do homem”(Deligny, 1998) e que os anseios dos encarcerados em
nada diferem dos demais brasileiros, ainda que para eles, mais do que para os demais,
vencer o isolamento seja escapar à mortificação48.

Em as Três Ecologias, Félix Guattari pensou nossa contemporaneidade como um


momento da história em que, graças à desterritorialização, temos a chance de inventar
modos de vida singulares, porém tudo dependerá da capacidade das sociedades lidarem
com a diferença e com os conflitos produzidos a partir dela, o que é uma questão
clínico-política. Novas formas de família se anunciam, desde aquelas que têm a mãe
como chefe de família, até aquelas formadas por pessoas do mesmo sexo que se
propõem a criar filhos. No entanto, há ainda um modelo familiar dominante, formado
pelo casal heterossexual e pela família conjugal. A abolição das diferenças num mundo
onde todos querem parecer jovens pode não levar a uma proximidade de valores, ao
diálogo, como alguns creem, mas a um mundo homogêneo no qual o conflito é
escamoteado ou está ausente. O mundo liso, diverso do mundo estriado (Deleuze, 1995,
Vol. V), onde se jogam as oposições e os conflitos que são engendradores de novas
formas de convivência. Se tudo parece conduzir ao diálogo entre esses “iguais”, na

48
Impressionava-me, no final da década de 70, a rapidez com que circulavam as notícias nos
cárceres cariocas. O que acontecia numa unidade de Bangu rapidamente chegava à Água Santa, e
vice versa, isso muito antes dos celulares.
83

prática isso pode encerrar dificuldades. Uma criança contemporânea pode ter
dificuldade para perceber a idade das pessoas num mundo onde todos usam roupas
jovens. A linearização das experiências que temos atualmente, a simplificação e
homogeneização do território em que vivemos, criam situações onde os confrontos
diminuem em número e em intensidade, fazendo com que uma vida protegida dos
perigos externos seja desejada por muitos, sem perceberem isso pode resultar num
empobrecimento vital geral.

Deligny se refere aos pais abusivos e preconceituosos com relação à juventude


dos filhos que chegam a uma velhice medrosa na qual permanecem “à cavalo sobre seus
filhos como árabes sobre o asno”(Deligny, 1998, p. 132). Não será o que ocorre quando
os pais pretendem seguir educando e protegendo os filhos adultos que vivem hoje por
mais tempo na casa dos pais como se eles ainda fossem crianças? Ou por outro lado,
quais as consequências de que esses filhos vivam ilhados em seu próprio quarto sem
participar da divisão de trabalho doméstico? A eliminação do conflito entre pais e filhos
tem levado à infantilização dos filhos e a relações onde a indiferença ou crueldade dos
filhos com relação aos pais é um elemento presente.

Para Machiavel, é o comodismo que leva à diminuição da capacidade de luta de


um povo – ou de sua capacidade de vencer seus medos. O problema, do ponto de vista
político ou do ponto de vista de uma democracia da multidão, não é que se tenha medo,
mas sim que o medo perca esse parentesco com a revolta, e se cristalize ou ainda, que se
transforme em submissão alegre. Hoje vivemos um verdadeiro paroxismo do
comodismo. Não que a vida tenha se tornado de fato cômoda, mas sim que todos têm
como ideal uma vida cômoda e buscam expurgar de sua percepção tudo o que não se
encaixa nesse ideal. Felicidade e calmaria estão fortemente identificadas. Uma boa vida
é uma vida onde podemos ser cuidados por todos os tipos de especialistas, com um
mínimo de trabalho. Multidões buscam com ansiedade a felicidade de um fim de
semana sem ter que trabalhar, mesmo que para isso tenham que enfrentar horas de
engarrafamento. Querem viver para sempre num condomínio, protegido dos incríveis
perigos que imaginam nos oferecer as ruas. Pode-se observar a semelhança
arquitetônica entre alguns condomínios de luxo e cemitérios verticais – um ser
alienígena talvez os confundisse. Há também proximidade quanto ao que se deseja viver
nos condomínios e residências gradeadas e com muros altos e a paz que reina nos
cemitérios. Ouvimos nossos próprios passos, movendo-nos por ruas vazias em bairros
84

luxuosos, em que algumas casas se assemelham a mausoléus. Não há crianças nas ruas,
os transeuntes são raros, as suntuosas casas não parecem ser habitadas. Isso quando
muitos têm hoje a fantasia de viver para sempre, vencendo todas as doenças. Porém
ninguém se pergunta que tipo de vida se estará vivendo neste presente eterno. O que nos
faz relembrar uma frase em desuso, mas pertinente: antes uma boa morte...

Sublinhemos a questão dos encontros em Spinoza, quer com coisas, quer com
pessoas. Deleuze diz que precisamos estar “à espreita dos encontros”, mas também se
refere a quão decepcionantes podem ser esses encontros no mundo atual. Deleuze
parece estar irritado com a inutilidade de alguns eventos científicos, para os quais os
intelectuais viajam sem sair do lugar. E sublinha várias vezes, no verbete “Cultura” do
Abecedário (Deleuze, 1988) que os encontros “são com coisas e não com pessoas”.
Penso que essa afirmação diz respeito à noção de território. Nossos encontros dizem
sempre respeito a coisas e pessoas, mas nem sempre nos damos conta disso porque os
encontros com pessoas estão hoje submetidos às “tiranias da intimidade”. Acreditamos
nos encontrarmos apenas com as pessoas ou com suas interioridades (Baptista, 2000),
com seu “perfil” como hoje alguns sites de relacionamento propõem. Indivíduos
buscam alguém parecido com eles para que possam se relacionar, quando se trata
justamente de buscar a variação e a exterioridade. Quando acreditamos que estamos nos
encontrando apenas com pessoas, estamos deixando de lado ou não considerando o
território onde estes encontros se dão.
As ruas das cidades recortam nossos encontros, restringindo alguns e facilitando
outros. Dependendo da quantidade de dinheiro que tenhamos, nos encontraremos com
determinados tipos de alimentos, roupas, cosméticos. Dependendo do local onde
tenhamos nascido, e também da quantidade de dinheiro que tenha nossa família,
estudaremos em diferentes tipos de colégio, desenvolveremos ou não o gosto pela
leitura, pela música clássica. Trata-se das relações entre coisas e pessoas, que podemos
chamar de territórios. Porque tendem ao fracasso muitos encontros humanos, como por
exemplo, as relações de um casal? Talvez porque os casais se cobrem mutuamente
soluções para problemas que dizem respeito ao território em que vivem, e não apenas ao
relacionamento entre eles.
Cabral e Baptista (2010, p. 428) apontam como a cidade linear pode dificultar os
encontros, ao passo que as sinuosidades de algumas cidades podem facilitá-los. Na
cidade nada está dado, tudo está em constante fazer-se. Há algo de irredutível nas
85

grandes cidades pela experiência de multiplicidade que elas possibilitam, que não pode
ser inteiramente neutralizada. A porosidade das cidades nos abra caminho para uma
política do contemporâneo “que possa interpelar um mundo sem saída”, onde se
banaliza a felicidade e o horror.

Caiafa (2011) aponta os modos singulares brasileiros de viver as transformações


tecnológicas analisando a introdução de novos bilhetes eletrônicos no metrô carioca.
Persiste nesse serviço uma forte relação com funcionários que orientam e ajudam, como
no caso da sobrevivência no Brasil do cobrador de ônibus, mesmo com adoção de
cartões eletrônicos. Por outro lado, a população não pode usufruir de todas as
funcionalidades tecnológicas que adviriam da adoção dos novos cartões do metrô, como
a diminuição das filas. Aos cariocas não são oferecidas as mesmas vantagens dadas, por
exemplo, aos parisienses, na compra de bilhetes antecipados, pois no metrô do Rio o
cartão funciona apenas como um adiantamento de dinheiro dado pelo usuário à
empresa, sem qualquer desconto nas passagens. Percebemos que decisões políticas
permeiam o relacionamento entre humanos e máquinas, embora o mundo das máquinas
nos seja frequentemente apresentado como um mundo à parte.

Na cartografia das resistências cotidianas desenvolvidas por indivíduos e grupos,


podemos verificar a vulnerabilidade dos dispositivos de controle social
contemporâneos. É no cotidiano e no coletivo que essa vulnerabilidade pode ser
experimentada. A solidão dificultará essa experiência. Porém a solução nem sempre
coincide com estar fisicamente próximo a muitas pessoas. Acionar o coletivo: eis o que
importa e que nem sempre se consegue, mesmo em situações em que estamos próximos
de muita gente. A internet é hoje um meio para acionar o coletivo, porém esse meio
também produz linearização e ao achatamento das porosidades. A internet resolve
alguns problemas sobre como encontrar pessoas se não temos tempo ou dinheiro. Porém
ela cria alguns outros. As lutas do coletivo hoje se passam sempre nesse limiar – por um
lado, sua rarefação se tomarmos um ponto de vista arborescente (Deleuze e Guattari,
1995) e por outro sua força, graças a uma incrível capacidade de multiplicação e
contágio por todo o campo social, se tomarmos um ponto de vista horizontal.

Neste trabalho buscamos explorar essas regiões de “luz e sombra” (Milton


Santos, 2001), de controle e vulnerabilidade do controle. Um espaço não dialético onde
importa mais localizar as resistências que se dão “entre”, acrescentando-se
86

horizontalmente, lado a lado e não verticalmente, de forma hierarquizada e sistemática.


Estamos em busca das “redes quentes”, em meio às “redes frias” do capitalismo
mundial integrado. (Passos e Barros, 2009)

Em sua análise sobre a globalização autoritária, que ele denomina “globalitária”,


Milton Santos viu essa associação entre empresas nacionais e multinacionais e empresas
do setor de comunicação como estando na raiz da difusão do pensamento único. Ele,
que morreu em 2001, não viu os acontecimentos de 11 de setembro nem o
enfraquecimento desse pensamento único a que assistimos hoje. Não viu também a
ascensão, prevista por ele, dos países emergentes e a realização de novos pactos que
permitiriam que o Brasil revisse, ao menos em parte, sua histórica submissão aos países
do antigo primeiro mundo no que diz respeito à sua posição perante às economias
globais. Também não viveu para ver a derrocada de algumas economias hegemônicas
como a dos Estados Unidos e mais recentemente a da Europa.

O otimismo de Milton Santos dizia respeito principalmente a possibilidades que


estão presentes no momento atual e que os fatos estão ilustrando, que é o incremento
dos contatos horizontais no sentido da expansão – a utilização das tecnologias no
sentido da potencialização do coletivo, além do fato de que mais e mais pessoas se
encontram niveladas por uma mesma situação de escassez e insegurança. Porém mesmo
nesse quadro, verificamos que o dispositivo da criminalização vem sendo pouco
afetado, e que sua ação silenciosa e ao mesmo tempo ruidosa prossegue, no sentido de
desfazer os laços sociais ou enfraquecê-los, aumentando o medo e a desconfiança
mútua, a inveja, o espírito de vingança, entre outros afetos negativos que permeiam as
relações sociais.

A geometria spinozista nos facilita a compreensão dos novos territórios


contemporâneos, pois colocou os afetos humanos numa superfície. As subjetividades,
racionais, interiorizadas, não podem lidar bem com essas novas territorialidades fluidas
que podem ser construídas sob a uniformização e monotonia crescentes produzidas
pelas tecnologias urbanas.

Uma recente matéria de jornal apontava os pintores de mais de oitenta anos que
continuavam ativos, vendendo quadros e fazendo exposições. Mas note-se bem: eles
mereceram espaço no jornal não por suas obras, mas por sua longevidade. Não é a arte
87

desses senhores que merece admiração, mas a arte tornada signo de uma vida longa e
cômoda, numa operação de captura do que pode haver de disruptivo na arte49.

Podemos enxergar várias figuras do comodismo contemporâneo, em número


suficiente para supormos que temos diminuída nossa capacidade de reagir nos termos
apontados por Machiavel (1994). As durezas da vida, para o arguto florentino, tornam
os povos mais fortes. Alguns povos perdem sua força em função de uma educação
“mais voltada para padecer do que para agir” (Lucchese, 2010, p. 80), fazendo surgir
uma forma moderna de preguiça, que foi produzida pelo cristianismo. (Machiavel,
1994, livro II, capítulo II). Há povos que se acostumam a viver “sob leis alheias”
(Machiavel, Livro I, Capítulo XVI) e “são como animais selvagens criados numa jaula.
Quando postos em liberdade, não sabem mais prover seu próprio sustento”. (Machiavel,
Livro I, Capítulo XVI). Após séculos de laminação do campo social a partir de
múltiplos dispositivos, verificamos no contemporâneo essa docilização, essa dificuldade
de viver de forma autônoma, ilustrada pelas figuras ou cartografias do contemporâneo
que nesse momento analisamos.

A ligação intensa com os computadores é uma dessas cartografias do


contemporâneo: jovens permaneçam conectados o dia inteiro, sem parar se quer para
comer, (ou se tornando obesos pela vida sedentária) e até convivendo pouco com outros
jovens no mundo real. Os resultados dessa prática devem ser cuidadosamente
cartografados. Se de um lado vemos uma estratégia de superação do isolamento nas
cidades, onde crianças e adolescentes parecem ter sumido das ruas há alguns anos50, por
outro lado, quadros de bulimia e distúrbios do sono acompanham esse movimento em
direção aos computadores. Alguns jovens são considerados dependentes da internet, nos
mesmos moldes de outras dependências, e frente a isso se sentem ou são vistos como
impotentes.

Muito do que percebemos da realidade nos é fornecido através de telas de


televisão, computadores, cinema e outros dispositivos. Ao visitar a Europa no início do
século XX o chefe samoano Tuiavi (Scheurmann, 2001) fez algumas pitorescas
observações sobre o cinema em seus primórdios, entre as quais o fato de que no cinema

49
Suely Rolnik tem apontado em seus trabalhos mais recentes essa apropriação constante da arte
contemporânea por dispositivos de captura.
50
O vetor positivo produziu novas formas de ocupar as ruas, como a Street Dance e o Sport, as
Flash Mobs, além do movimento Ocupa, nas praças do mundo.
88

o corpo ficava inerte enquanto os olhos se voltavam para uma tela num cômodo escuro.
Os assistentes estão todos hipnotizados, não se falam ou se veem, embora estejam
juntos. Todo um mundo complexo e imaginário povoa nossa mente a partir de telas há
mais de um século e seus efeitos dizem respeito tanto à despotencilização do coletivo,
ao difundir o medo e possibilitar o controle, quanto à potencialização. Os efeitos
imitativos produzidos a partir “das telas” são poderosos, justamente por essa capacidade
de por ao alcance dos nossos olhos e ilusoriamente ao alcance de nossa mão coisas que
queremos mas não podemos ter, ou que não conhecíamos e passamos a desejar, como
observou Tuiavi. É de se notar que ao fazê-lo, estamos geralmente sentados ou deitados
em nossas casas. Não são acionados os sentidos do olfato, do gosto, não tocamos ou
somos tocados por ninguém. Porém o cinema é também um modo de escapar à
passividade frente às imagens e de com elas produzir caminhos que apontam para a
criação e para a atividade.

Mesmo quando nos utilizamos da internet para protestar, para assinar abaixo
assinados, um certo grau de passividade corporal está presente. Não negamos que a
internet possa ter efeitos políticos multiplicadores, como o têm ilustrado movimentos
sociais e até eleições de presidentes. A produção acadêmica pode hoje circular de forma
mais democrática. Identificamos, também neste caso, o funcionamento dos dois vetores,
horizontal e vertical. O horizontal vai no sentido do contágio afetivo e pode conduzir à
potencialização coletiva. Mas o outro vetor que produz despotencialização é forte. Num
grau bastante baixo de potência, podemos estar todos, cada um em suas casas, voltados
para espiar o que se passa num reality show.

A figura da dependência química e de outras dependências frequentes no mundo


atual configuram situações submissão a uma causa exterior: a droga. O dependente é
visto e muitas vezes instado a se ver como impossibilitado de decidir ou de mudar seu
destino. Muitos tratamentos incluem esse tipo de posicionamento inicial – o de
reconhecer-se como portador de uma doença incurável. Nunca mais beber, pois um só
gole pode levar ao retorno à condição dependente, ou mesmo de passar do álcool a
outras drogas. O crack é a mais recente e assustadora dessas figuras da dependência,
frente às quais não poderíamos reagir. Alguns especialistas vêm a público ensinar que
experimentar o crack é quase sinônimo de tornar-se dependente ou de morrer.
Contrariando essa difundida ideia, Dias, Araújo e Laranjeira (2011) apontam para a
possibilidade do uso continuado de crack e também de superação da dependência a
89

partir de tratamento. O governo chegou a formular um Plano Nacional de Combate ao


Crack em 2012 apesar de já ter uma política complexa em fase de implantação, que
acionava Centros de Atenção Psicossocial voltados para o atendimento de usuários de
álcool e outras drogas, consultórios de rua, leitos hospitalares, entre outros dispositivos.
Em mais uma “onda” alarmista e afetivamente carregada, o crack tornou-se um
problema nacional e uma constante ameaça para nossos indefesos jovens e sob o
espanto e decepção de alguns, reclamou-se uma vez mais o recolhimento compulsório
de pobres e marginalizados. É o retorno ao simples, mesmo quando já se tinha chegado
ao complexo.

A política do recolhimento involuntário oferece apenas um dispositivo, a antiga e


inadequada internação psiquiátrica, que a mesma política de Saúde Mental vinha
combatendo por seu caráter repressivo e violador dos direitos humanos. Esta forma não
pode ser encarada como um tratamento adequado e resolutivo na nossa modernidade, mas
apenas um retorno ao “tratamento moral” do começo da psiquiatria no século XVIII.
(Oliveira, Edmar. 2012)

A dependência pode também dizer respeito a alguns hábitos outrora inocentes.


Hoje não se gosta mais de chocolate, mas se é chocólatra. Ser chocólatra é não poder
deixar de consumir chocolates, mesmo querendo. A “dependência” de comida e a
crença na impossibilidade de vencer tal apego, podem levar a soluções no mínimo
contraditórias, e até mesmo letais, como a cirurgia bariátrica. O reganho de peso após a
cirurgia vem sendo constatado, assim como o surgimento de diferentes problemas
metabólicos como consequência de tal “solução” para a obesidade (Burkle, 2012).
Há algo surpreendente no campo da dependência de drogas: vista por muitos
médicos e técnicos da área como “química”, a cura pressupõe, no entanto, admitir a
própria fraqueza e a submissão a Deus (um Deus, sem dúvida, criador e transcendente).
Não seria mais coerente, para quem pensa que a dependência é um fenômeno químico,
buscar o antídoto do veneno da droga?
Afigura da dependência produz, antes de tudo, subjetividades dependentes, pois
paradoxalmente, a superação desse mal pressupõe a admissão de que se é um
dependente em recuperação eterna, como ocorre nos mais difundidos tratamentos para
usuários de drogas, nos quais se considera que a cura não existe. Já na chamada “Justiça
Terapêutica” a abstinência é exigida no início, como se a cura devesse ser obtida antes
do tratamento começar. Toda essa discussão sobre dependências, que podem ir da
dependência a drogas pesadas ou a medicamentos até a dependência do sexo, do
90

chocolate, de computador, apontam para um dispositivo de controle social de amplo


espectro no contemporâneo.
A figura da dependência ilustra o que para Spinoza significa a impotência: ser
governado do exterior. Vencer a impotência pode ser considerado o coração de toda sua
filosofia: através de um conhecimento que inclua os afetos poderemos, tanto quanto
possível, governar nossa vida a partir de nossa essência singular, escapando dos
múltiplos dispositivos de controle social que buscam administrá-la em nosso lugar,
reduzindo-nos à condição de dependentes. As dependências correspondem a um modo
paradigmático de experimentar o desejo no capitalismo atual e a possibilidade de vencê-
las se reveste de um importante caráter político ou psicopolítico.
“Quando a mente imagina a sua impotência, por isso mesmo ela se entristece.”
(Ética II, prop. 55). Imaginar ser impotente é um passo importante na direção da
impotência. Essa proposição da Ética segue uma direção oposta à dos tratamentos mais
difundidos para usuários de drogas, nos quais muitas vezes se começa por declarar
publicamente a própria fraqueza. Um dependente precisa acreditar na sua potência para
largar seu vício e muitos tratamentos se iniciam pela admissão dessa extrema fragilidade
e da incurabilidade do mal de que se sofre. Talvez a juventude tenha deixado de ser
considerado o período da vida em que temos maior vigor e alegria para passar a ser um
período onde somos assaltados por imensos perigos. Jovens são conclamados a se
verem como prováveis ou atuais dependentes e a adquirirem um tipo de prudência
excessiva e medrosa que os levaria a deixar o vício. Esquece-se que, ao menos no início,
a busca pela droga foi a busca, mesmo que enganosa, de uma vida intensa. Para Spinoza
só abandonamos um afeto intenso quando surge outro afeto de intensidade comparável
ou mais forte que o primeiro, pouco valendo a intenção de se proibir ou de ser proibido
de fazer algo.

Recordemos que a força pela qual cada um persevera em sua existência é sempre
limitada por uma força exterior mais forte. Há uma limitação universal de um modo
com relação a outro modo e uma potência em relação a outra potência. A limitação e a
finitude caracterizam a totalidade da natureza. A força efetiva e o recrudescimento de
uma paixão qualquer e sua perseverança de existir não são isoladas, mas dizem respeito
à potência de uma causa exterior comparada à nossa. A sobrevivência de cada modo
finito não depende apenas da força que pode a limitação externa, mas da atividade e da
potência que pode ser acionada frente a essa limitação. Spinoza faz uma distinção entre
91

agir quando “se está em si”, que corresponde à atividade, e a agir quando se é
governado por forças exteriores, o que o filósofo entende, como já vimos, como
padecimento e não como ação. Assim, ser obrigado a se tornar abstinente, ou passar a se
ver como fraco e impotente não pode conduzir a nenhum ação no spinozista.

O projeto Meninos e Meninas de Santos realizado naquele município paulista na


gestão do Partido dos Trabalhadores, no final da década de 80, foi intenso o suficiente
para que alguns daqueles jovens deixassem de se interessar pelo crack. Projetos como o
TV Muleke (Lancetti, 1996) produziram afetos mais fortes que o crack ou a cola de
sapateiro. Todo mundo e não apenas o drogado querem vidas intensas. Quando
queremos deixar o cigarro, o que pode fazer com que cheguemos a esse objetivo é
experimentar em nossas vidas afetos fortes o suficiente para que este hábito perca sua
força e possa ser deixado de lado. Foi o que levou redutores de danos a abandonar o uso
das drogas, o que não era exigido deles como condição prévia para que se engajassem
nessa nova atividade. Não foi qualquer tipo de proibição externa que os levou a essa
decisão, mas ela ocorreu na maioria dos casos, a partir da descoberta de outros modos
de vida a partir da experiência que estavam tendo. (Lancetti, 2011)

Spinoza mostra que conhecimento adequado do que é bom ou “mau51” está


ligado a um afeto. O mero conhecimento do que é verdadeiro é insuficiente para que nos
afastemos do que faz mal52. Sabemos o que é “mau”, mas corremos ao seu encontro, ou
fugimos do que é bom. É o que ocorre quando o conhecimento sobre os males do
cigarro se revela insuficiente para nos fazer parar de fumar, o que é demonstrado pelo
sucesso moderado da maioria desse tipo de campanhas de esclarecimento, baseadas na
divulgação de fatos científicos.

Uma vida sem graça é muitas vezes substituída pela velocidade letal da droga.
Uma vez tendo tido acesso a essas velocidades, não se vai querer retornar facilmente a
uma vida de calmaria. Muitos indivíduos hoje vivem vidas verdadeiramente insípidas
frente às quais têm pouca autonomia; vidas meramente utilitárias e adaptadas. Tais
modos de vida são o oposto da saúde, para Winnicott, que define saúde mental como a
capacidade que temos de achar que a vida vale à pena.

51
Utilizo o adjetivo mau para sublinhar que não se trata de um valor transcendente, “o mal”, mas d
o que é efeito dos encontros de corpos e portanto sujeito a variações.
52
O conhecimento verdadeiro do bem e do mal, enquanto verdadeiro, não pode refrear qualquer
afeto; poderá refreá-lo apenas enquanto considerado como afeto. (E 4, prop. 14)
92

Muitos buscam na droga intensidades, porém essa busca pode levá-los ao limiar
da morte. Não que busquem a morte: o que eles buscam é a intensidade. Para Spinoza, a
morte vem sempre do exterior. Nada há no campo da subjetividade que tenda para a
morte, embora possamos experimentar o desejo de morrer por algo que, no início era
externo, mas que hoje age do interior da subjetividade. A possibilidade de reverter tais
processos destrutivos existe, mas nem sempre é conseguida.
93

Considerações Finais: Outra razões para se ter medo

Seriam as condições de trabalho no capitalismo atual cômodas? Muito longe


disso. No capitalismo atual estamos submetidos a uma situação de carência e de
insegurança generalizadas, onde muitos não sabem como viverão na próxima semana,
próximo mês ou no próximo ano. Reduzidos à condição de “empresas de si mesmos”
(Foucault, 2008) muitos trabalhadores têm que cuidar de seus seguro de vida, de sua
aposentadoria, de seu seguro de saúde, de sua formação ininterrupta, além de trabalhar.
Torna-se extremamente visível a luta de todos contra todos, a situação de guerra que
para Spinoza é o pano de fundo da política, não no sentido de que a violência seja
inerente ao humano, o que levaria a mais uma concepção entristecida sobre a sociedade
humana, mas no sentido de que no momento atual estão dadas as condições, a partir das
condições de trabalho reinantes, de que nosso semelhante se torne com muita facilidade
nosso competidor e nosso inimigo. “Eu quero ter o que ele tem”, mas isso não é
possível, pois o mercado de trabalho está organizado de forma tal que o trabalho é uma
benção, um prêmio a ser conseguido, num mundo onde muitos não o conseguem. Daí o
atual elogio das histórias de superação, nas quais os exemplos a serem seguidos são os
dos que possuem alguma limitação física e mesmo assim dançam, vencem olimpíadas,
praticam esportes radicais, o que dá uma boa ideia do grau de exigência a que estão
submetidos os trabalhadores.

Além da diminuição ou extinção de direitos trabalhistas, condições desumanas


de trabalho se verificam, por exemplo, em algumas empresas de telemarketing, nas
quais a micção dos funcionários virou um problema, chegando a ser sugerido às
operadoras que usem fraldas (Santos, 2011). Há longo tempo deixou-se de querer criar
máquinas que imitem os homens e que os substituam, passando-se à busca de homens
que sejam capazes de imitar as máquinas, adequando-se ao seu ritmo na produção. E
para Laymert Garcia dos Santos, não se trata de pedir o retorno a um tempo perdido sem
máquinas, mas de propor relações homem-máquina que permitam a expansão humana.
Estamos longe disso no capitalismo atual, em que assistimos a intervenções nos ritmos
vitais através de medicamentos ou à produção de conhecimentos do campo da
neurociência que poderão ser usados para obter acoplamentos homem-máquina no
sentido da aceleração produtiva.
94

Um recente programa de televisão focalizava o aumento da expectativa de vida


do brasileiro, que se ampliou para a média de 73 anos, mostrando uma família onde um
casal já com mais de 50 anos não tinha ainda conseguido estabilidade financeira. O
tema da reportagem era o elogio da capacidade de luta do casal, seu empreendedorismo,
as diferentes profissões que já tinham exercido, sublinhando que a mulher já tinha sido
funcionária pública e sacoleira, enquanto que o homem já tinha ido de policial a corretor
de imóveis. Richard Sennet (1999) já apontara que hoje o trabalhador virtuoso não é
mais aquele que permanece num só emprego durante toda a vida, tornando obsoletos os
dizeres que constam de todas as carteiras de trabalho no Brasil – o de que a carteira de
trabalho seria um espelho da fidelidade do trabalhador a um emprego. Talvez a carteira
ainda seja um espelho, mas hoje um espelho estilhaçado face às muitas entradas e saídas
de emprego que pode revelar. Pede-se do trabalhador que seja capaz de criar, que seja
flexível, que busque sempre novas oportunidades. Neste mesmo contexto, ter um
emprego público é visto como estar próximo do céu, quadro que ofusca as perdas
salariais sofridas pelo funcionalismo público ao longo dos governos neoliberais, com a
perda de direitos. No entanto, o sonho de tornar-se funcionário público torna-se uma luz
no fim do túnel para muitos jovens desempregados, que hoje se submetem a uma vida
insípida: a de estar constantemente se preparando para um concurso e com escassas
possibilidades de êxito face à competitividade extrema. Há no capitalismo atual algo
que favorece de modo especial a guerra de todos contra todos e o enfraquecimento da
solidariedade. Uma das expressões desse estado de coisas cuja matriz está no mundo do
trabalho é atribuir a insegurança que experimentamos a um aumento avassalador da
criminalidade. (Pegoraro, 1996)

Porém as condições para um incremento da comunicação horizontal estão


também dadas, potencializando o coletivo. Milton Santos expressou seu otimismo
quanto às possibilidades de “uma outra globalização”, cujas condições em estado latente
estavam dadas, por esse incremento da vida social, possibilitado por diversos meios
técnicos e condições econômicas. A globalização que temos, para ele, era perversa, por
estar apoiada na expansão da competitividade. Há algo extremamente perverso nas
relações de trabalho atuais – porém esse fato é escamoteado pelas empresas e pelas
agencias de comunicação a elas associadas, que se empenham, como é notório, na
difusão das razões que temos para temer os assaltantes, o chamado “crime organizado”,
a desejar pacificações letais de certas áreas da cidade, a partir da eliminação física de
95

suspeitos de crime, etc. Se o projeto das UPPs contém outras premissas que possam
reverter esse tipo de atuação letal da polícia, elas só poderiam de fato se verificar a
partir da democratização da instituição policial, hoje marcada por um baixíssimo grau
de democracia interna e uma forte hierarquização. Se o projeto das Unidades de Polícia
Pacificadora tivesse um verdadeiro cunho social como se alardeia, pressuporia uma
polícia profissional; as últimas greves de policiais parecem expressar esse anseio. A
greve em si mesma já é uma ruptura de relações hierárquicas e estereotipadas
predominantes nesse campo. É curioso pensar que embora tenhamos o hábito de copiar
tudo o que é americano do norte, não copiemos sua polícia comunitária, e fiquemos com
nossas policias militarizadas, que exercem um controle direto sobre a população pobre,
sempre associado a muitas mortes. O projeto das Upps só foi possível após uma década
inteira de extermínio e aprisionamento de uma das facções do tráfico de drogas do Rio
de Janeiro (Misse, 2011). Essa é face menos divulgada desse projeto, entre outros fatos:
nas áreas ocupadas, os jovens não podem mais descolorir o cabelo como faziam antes,
as tias não podem vender comida na quadra, o baile funk se torna restrito, o que
demostra que as ditas comunidades “pacificadas” são como prisões a céu aberto
(Passetti, 2011, Batista, 2012). Além disso, o policial herói de hoje, glorificado pela
mídia e personificado por artistas de cinema, pode ser o preso de amanhã quando se
ultrapassa os ambíguos limites do pudor nacional.

Na perspectiva Spinozista não há o modo certo de fazer política. Lutamos


sempre como podemos, com nossos medos, com nossas limitações. A questão não é
tanto encontrar o modo certo de lutar, mas o modo de sempre empreender alguma luta,
driblando e escapulindo dos múltiplos obstáculos. Embora sempre estejamos sujeitos a
muitas limitações, não há um grau zero de potência enquanto estamos vivos. As
coletividades sempre podem se organizar ou se potencializar nos sentido da união,
formando um corpo comum. Há sempre a possibilidade de que estabeleçamos esses
laços com o semelhante de modo a aumentar nossa potência. Essa é uma via sempre
aberta. Desse modo, quando Spinoza fala desse autêntico “pega pra capar” que nos
ameaça sempre de destruição por uma potência mais forte que a nossa, isso não conduz
a nenhuma ontologia do negativo, ou seja, a uma crença na existência de uma tendência
negativa “de base” na natureza ou na subjetividade humana, uma vez que há sempre
esse vetor horizontal que leva a que os indivíduos estabeleçam relações de modo a
aumentar sua potência. Assim, é na variação constante dos encontros que fazemos com
96

pessoas e coisas ou através do plano dos afetos que está a possibilidade de escapulir do
controle. Por outro lado, tudo aquilo que impede essa possibilidade, age no sentido de
diminuir a potência humana. Há também, na vida afetiva fontes de diminuição da
potência, quando, por exemplo, queremos sempre impor aquilo de que gostamos a
todos, quando odiamos quem odeia o que amamos, quando generalizamos o ódio que
sentimos de alguém a todo o grupo social a que pertence.

Se por um lado, as condições atuais do mercado de trabalho concorrem para que


sejamos hoje competidores e inimigos, por outro, alguns acontecimentos demonstram
que esses afetos destrutivos e competitivos podem ser superados, exibindo a
ambiguidade paradoxal do dispositivo da criminalização: sua fragilidade, geralmente
oculta aos nossos olhos. Essa fragilidade pode ficar evidente de modo repentino, como
naquele conto infantil no qual se descobre que o rei estava nu depois que uma criança
teve a coragem de gritar para a multidão esse fato, que estava encoberto. Acreditamos
que apesar de sua ruidosa ferocidade, o dispositivo da criminalização é frágil, embora
este fato, na maior parte das vezes, esteja oculto, envolto num véu imaginário. Nossa
imaginação é produzida, graças a esse e outros dispositivos de controle social
contemporâneos, por palavras de ordem que perpassam o campo social e que vão no
sentido da ruptura dos laços horizontais de solidariedade, produzindo apatia, indiferença
e modos de vida insípidos e cômodos.

O mecanismo da produção do medo em larga escala está hoje em ação no


contemporâneo e em plena evidência. Como compreender seu funcionamento? De um
lado esse sistema social opera por meio de dispositivos de produção de um tipo de
submissão alegre, ou seja: as pessoas se sentem livres para escolher e aderir a múltiplos
objetos de consumo. Quando têm emprego, que é uma pré-condição para a felicidade,
elas podem ter acesso a muitas delícias disponibilizadas no mercado até mesmo para os
que têm pouco dinheiro. Mas há um outro lado da moeda, que é o medo. Podemos
considerar o medo do desemprego com um medo palpável, isso se ele não fosse negado
em favor de outros medos! E como assinalamos, o objeto do medo é deslocado, pois
passamos a temer o assaltante, o pedófilo, o arrastão, e na Europa o imigrante que pode
ser um terrorista disfarçado. Alguns dirão: mas isso tudo existe! É verdade, podemos ser
assaltados ao chegar do supermercado, sermos vítimas de balas perdidas, ou de uma
bomba no metrô de Paris. Não estamos afirmando que essas possibilidades não existem,
mas apenas que há entre nós e os fatos violentos uma espécie de véu, que é constituído
97

pela imaginação. O medo que temos não diz respeito aos fatos reais, e sim ao modo
como os imaginamos. Além disso, pouca gente pode se manter alegre por muito tempo
face aos limites impostos a este consumo desenfreado que facilmente se transforma em
endividamento e medo de “ficar o nome sujo”, ou ainda em medo de perder o emprego
face às condições de trabalho tirânicas a que muitos se submetem. Tudo isso poderia
levar – e de fato leva algumas vezes – a explosões coletivas e a revoltas, porém não
ficamos sabendo de alguns desses acontecimentos e desse modo, essas explosões não se
alastram tão facilmente.

Sofremos um bombardeio diário de notícias violentas todos os dias, mas a


fraqueza desse dispositivo fica demonstrada por essa insistência – ele é diário e sem
tréguas porque nada mais o sustenta. Para Spinoza as coisas passadas e futuras podem
nos afetar tanto quanto as coisas presentes. Porém as coisas presentes podem afetar
nosso corpo de um modo especial. Experimentamos a violência como um fato presente
e há um esforço da mídia neste sentido – de tornar, tanto quanto possível, a notícia
“real”. Porém podemos ser igualmente potencializados no sentido da revolta ou da
contestação de modo rápido, quando fatos presentes são veiculados rompendo a apatia,
como no acordar súbito de um longo sono.

As condições de superação do medo estão sempre dadas em razão de ser o medo


um afeto e enquanto tal, transitório. Isso obriga a um trabalho contínuo e diário
realizado pelos dispositivos de controle social. A principal consequência de pensar os
afetos num regime de transitoriedade, pensando a possibilidade de transformação de um
afeto em outro, ou na atribuição fortuita de causas aos afetos que experimentamos, diz
respeito a constatar que os dispositivos de controle social contemporâneos não são
perenes e imutáveis, mas sujeitos à instabilidade. O trabalho diário realizado por estes
dispositivos demonstra, por um lado, sua fraqueza, manifestada também no enorme
dispêndio de recursos realizado pela formidável maquinaria que os põem em ação. Isso
só se dá porque, do outro lado, estão sempre agindo forças que resistem, acionadas pela
extrema mutabilidade e inconstância dos afetos humanos. Algumas palavras de ordem
são repetidas à exaustão, pois só dessa maneira esse emperramento das máquinas
desejantes poderá durar.

Alguns dispositivos de controle social contemporâneos se especializam na


colonização de nossa imaginação por imagens tanto alegres, ligadas ao consumo, quanto
98

tristes, ligadas ao crime e aos perigos de toda ordem que podem nos atacar quando
saímos à rua ou até mesmo se ficarmos em casa. Muitos filmes nos mostram que
dormimos com o inimigo ou que o perigo mora ao lado - pacatos cidadãos são na
verdade monstros, o que por vezes é corroborado por fatos reais. Em nossa pesquisa
sobre violência aprendemos que muitas vezes a realidade delira, ou seja: tanto a mídia
produz esses fatos aparentemente exagerados que passam a povoar nossa imaginação,
como eles de fato acontecem e começam a acontecer, funcionando como profecias que
se auto-realizam. Num impressionante relato de uma psiquiatra que atuava num Caps do
subúrbio do Rio, um paciente psicótico falava do cheiro de cadáver que sentia em casa,
o que era tomado como parte do seu delírio. Qual não foi a surpresa da equipe de saúde
ao constatar que o paciente de fato convivia com um cadáver, insepulto há algum
tempo. A expressão, usada pela psiquiatra, de que a realidade delira me pareceu muito
adequada para descrever a situação.

***

Influenciamo-nos pelos afetos vividos por aqueles que nos são semelhantes,
tanto assim que se nossos semelhantes se entristecem, nos entristecemos também, ou se
estão alegres, nos alegramos. Retornando à questão inicial sobre as causas da servidão
humana, podemos dizer que atribuímos de maneira fortuita a classificação de boa ou má
às coisas, ou que, como vimos na proposição 39 da ética III, cada um julga de acordo
com seu afeto. Mas como vivemos sempre cercados das pessoas que amamos (família,
amigos próximos) ou semelhantes (os que vivem na mesma cidade, os da mesma
profissão, os da mesma rua, etc.) então já não se trata de “cada um”, mas temos também
que considerar os afetos vividos pelos nossos semelhantes que podem nos afetar, tanto
para o lado da potencialização quanto para o lado do medo.

Como enxergar no funcionamento dos afetos dos indivíduos a potência humana?


Uma certa tradição no campo das ciências humanas, em especial no campo da
criminologia, nos diz que nos grupos os homens se comportam como crianças ou como
criminosos, que são incapazes de controlar sua afetividade, que seria controlada apenas
pelo líder ou pelas instituições, que com suas regras os modelariam do exterior. Porém
essas deias não se coadunam com o ponto de vista trazido por Spinoza, no qual a
potência emerge a partir da multiplicidade de encontros de que um indivíduo é capaz.
99

Desse modo, concluímos que as bases da vida social repousam sobre afetividade
humana, no sentido de que quanto mais nos abrirmos para a experimentação com
pessoas e coisas, mais potentes seremos, mais chances teremos de formar com os outros
homens um só corpo e uma só mente. Melhor pensaremos e agiremos e desse modo
seremos mais capazes de construir uma sociedade baseada não no medo e na
obediência, mas na democracia da multidão.
100

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