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MLO 4/5

REVISTA BRASILEIRA DO CAMPO FREUDIANO

Clínica da perversão

JAN-DEZ 89
MLO
REVISfA BRASILEIRA
DO CAMPO FREUDIANO
ANO UI NÚMEROS 4/S
JANEIRO-DEZEMBRO 1989

.Aluanbrt

lliblioteca iligital

1itora FATOR
Editor responsdvel
Comissão Brasileira do Campo freudiano
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Sociedade Psicanalftica de São Paulo
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Cllnica freudiana
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Caterina Koltai- BFB/SPSP
Fábio Thá- CF
Nora Gonçalves - Cf
Sérgio Laia- SCF

Produção
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Jairo Gerbase, Maria Luiza Miranda, Nora Gonçalves - Revisão
Victor Arruda - Capa

Co"espondente em Portugal
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Consultor
J11cques-Alain Miller

e para os textos de Lacan: Sucessão Lacan; estes textos


são publicados com a autorização de J.-A. Miller, depositário do
· direito moral de J. Lacan sobre a sua obra.
4:> para os textos brasileiros: Editora FATOR
© para os outros textos: Fondation du Champ Freudien
31, rue de Navarin 75009 Paris France

Arede Scilicet 11 retine, ao lado de Omicar?, revista do Campo freudiano


editada em Paris, as publicações periódicas de orientação lacaniana
criadas através do mundo pela Fundação do Campo freudiano.
Trata-se de- alemão: WO ES WAR- 6100 Ljubljana, Rasiska 18,
Yugoslávia; - Inglês: NEWLETTER OF THE FREUDIAN FIELD-
Departament of English. The University of Florida Gainesville,
FL 32611, USA; - Espanhol: EL ANALITICÓN- Muntaner 499, 5? 4?,
08022 Barcelona, Espanha;- Italiano: LA PSICOANALISI- Via Francesco
Dall'Ongaro 43, 00152, Roma Itália; Portugues: FALO- Rua Agnelo de
Brito 20 Ed. Vinte 2? andar .Salvador 40000, Bahia Brasil;
- Servocroata: RAZPOL 6100 Ljubljana, Rasiska. 18, Yugoslávia; -
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ISSN 0103-121X
Contribuição legal
Impresso no Brasil
Junho de 1991
Sumário

Editórial

ANTONIO QUINET Os três saberes.......................................... . 5

I - CLÍNICA DA PERVERSÃO

Lacan sobre Wedekind

JACQUES LACAN O despertar da primavera ........................ . 7

Contribuições teóricas

NORMA WERNECK Alguns aspectos da perversão em Freud .. 10


NEUSA PINHEIRO Perversão - traços e estrutura .................. . 21
ANTONIO GODINO De Sade a Masoch: um passo .................. . 25
CF (Anna Pietruza et alii) Leopold von Sacher-Masoch .................... . 28
ECF (Guy Clastres et alii) Fetichismo e fobia ................................... .. 32
ECF (Robert Lefort et alii) Traços de perversão e estruturas clínicas
na prática com crianças ............................ . 37
ECF (D. Silvestre et alii) A homossexualidade masculina nas estru-
turas clínicas ........................................:..... 42
SANTANA e BACELLAR Neurose e fantasia ................................... .. 49
P.-GILLES GUEGUEN Um traço de perversão - um caso de Lacan 53
ECF (Serge Cottet et alii) A homossexualidade na neurose .............. . 56
JAIRO GERBASE Fantasia masoquista e traço de perversão 61
JORDAN GURGEL Traço de perversão na histeria ................ . 65
J ÉSUS SANTIAGO A toxicomania não é uma perversão ........ 68
Ma. ROSÁRIO BARROS Gide e Madeleine: um ato de Medéia ..... . 73
SONIA ALBERTI A homossexualidade de André Gide ........ 76
MARIE CLAIRE BOONS Posição perversa e fim d e análise ............ . 83
ANTONIO QUINET Schaulust e perversão ............................... . 87

Casos clfnicos

SERGE ANDRÉ Transferência e interpretação em um ca-


so de perversão .......................................... 93
GENEVIEVE MOREL Um fetichismo malogrado......................... 100
ANGELINA HARARI Um homossexual casa-se........................... 104
JOÃ O BATISTA Traços e trocas .......................................... 107
JEAN-JACQUES GOROG Traços de perversão, perversão transitória 111
M.-HÉLENE BROUSSE Auto-erotismo e traços de perversao ....... 115
YASMINE GRASSER O álibi do amor na perversao ................ .. . 119

Conexões

SLAVOJ ZIZEK Traços de perversao nas estruturas políticas 125


MIRTA ZBRUN Verdade, gozo e perversao - num conto
de Drummond de Andrade....................... 131
BERNARD BAAS O desejo puro............................................ 135
JO ATTIÉ Traço perverso e sublimaçao ...... .......... .. . . 163
ALEXANDRE STEVENS Uma carta de Sade.................................... 167
SÉRGIO LAIA Aids............................................................ 171

História da Psicanálise

ECF (Seçao belga) A homossexualidade feminina .. ............... . 178


BATISTA e PINHEIRO Masoquismo feminino............................... 186

II - O PROBLEMA DA ESCOLA HOJE

JACQUES LACAN Ato de fundaçao da EFP .. .......................


. 193
J.-ALAIN MILLER Acier l'ouvert..... ........... ........... .. ... ...... .
. . . . . . 202
Entrevista sobre a causa analítica............. 206
Esboço das opçOes fundamentais da ECF 218
Carta aos grupos do Campo freudiano .... 223
COLETTE SOLER Apresentaçao da EEP . .. .. .. .. . .. ...... ....
. . . .. . . . . 225
ERIC LAURENT Entrevista sobre a EEP ............. ............... . 227

Boletim

CÉLIO GARCIA O radical Freud ........... ..... .. .... ............


.. . . . .. 231

Informações do Campo freudiano


no Brasil e no mundo
Editorial

OS TR�S SABERES
O que o analista deve saber?

1 Ignorar o que ele sabe - é a resposta de Lacan em 53


- -

paraque a análise possa ser reinventada em cada caso, a cada


vez. O que não implica num estímulo à ignorância, mas ao saber
que leva a cingir o não saber como ponto de partida. Este é da
ordem do saber e não da ignorância crassa, pois a acumulação
de saber é necessária à formação do analista. O saber, que se tra­
ta de acumular para que se possa ignorá-lo com o analisante,
deve se ordenar, segundo Lacan, no triângulo epistemológico cons­
truído pelos métodos do linguista, do historiador e do matemáti­
co onde se inscrevem todas as disciplinas propostas por Freud
em "A questão da análise leiga".

2 Saber o que fundamenta a experiência analftica - é a res­


-

posta de Lacan com a criação da Escola em 64 - sendo para tal


requisitado uma praxis da teoria que ele faz equivaler à própria
ética da psicanálise. Disto se deduz que quando a teoria psicana­
lítica é vacilante para o analista, a ética falha e o ato falta. Se­
guindo essa orientação na "Proposição" de 67, Lacan enfatiza o
saber textual, que sustenta não apenas a psicanálise em extensão
com seu ensino ex-catedra mas igualmente a psicanálise em inten­
são uma vez que ela só é consistente graças ao texto freudiano,
pois é ele que fundamenta a experiência.

3 - Saber que não há relação sexual que possa ser escrita


pois a psicanálise se sustenta da lógica do não-todo, sendo que
todo o analista "sabe ser um rebotalho" - é a resposta de Lacan
em 1974 na carta aos italianos. Este saber deve ser adquirido
pessoal e verificado no dispositivo do passe.

O que pode um analista?

É o tema do III Encontro brasileiro do Campo freudiano


em que poderão ser articuladas as questões entre o saber do ana­
lista e a possibilidade de sua transmissão.
Os dois primeiros saberes são aqueles a partir dos quais se
pode julgar o que pode um analista, como trabalhador decidido
a testemunhar, fazer como o que sua experiência enquanto ana-
5
lista deposita. O terceiro se refere ao saber do analisante - o
que pode o analisante transmitir de sua própria experiência do
inconsciente? Eis uma questão que só pode ser formulada a par­
tir da Escola de Lacan.
Com "A pergunta de Madri" de Jacques-Alain Miller sobre
o dispositivo do passe na entrada da Escola e a modalização de
sua resposta, os anos noventa descortinam o período de unifica­
ção dos três saberes para que melhor se responda à questão "o
que é um analista?"
Neste número duplo, ao lado das sessões sobre a psicanáli­
se com seus conceitos, sua clínica, sua história e suas conexões
em torno do tema do último Encontro internacional do Campo
freudiano "Traços de perversão nas estruturas clínicas", Falo inau­
gura a sessão sobre a questão da Escola de Lacan a partir da cri­
se que abalou a Ecole de la Cause freudienne e da criação da Es­
cola Européia de Psicanálise.

A.Q.

6
I - Clínica da perversão

Lacan sobre Wedeking

Jacques Lacan

O DESPERTAR DA PRIMAVERA*

Tradução de Sérgio Laia

Circunstâncias: Brigitte Jaques, cuja ELVIRNJOU­


VET 40 está em cartaz e faz sucesso no teatro, monta­
va naquele tempo O DESPERTAR DA PRIMAVE­
RA, de Wedeking. Eu traduzi para ela uma passagem
das ATAS da Sociedade psicológica de quarta-feira,
a sessão de 13 de fevereiro de 1907, consagrada ã pe­
ça; e pedi a Jacques Lacan um texto. Ele escreveu es­
te que foi publicado no cabeçalho do programa e de­
pois retomado na edição da peça (Gallimard, 1974).

J.-A.M

Assim um dramaturgo aborda em 189 1 a questão do que é, para os rapa­


zes, fazer amor com as moças, marcando que eles não aspirariam a isso sem o
despertar dos sonhos.
É notável que isso seja encenado com tal: ou seja. demonstrando que is-
so não é satisfatório para todos e até confessando que, se isso rateia, é para cada um.
É o mesmo que dizer que é da ordem do jamais visto.
Mas ortodoxo quanto a Freud, - eu entendo, o que Freud disse.
Isso prova, concomitantemente, que mesmo um hanovriano (pois eu, de
início, é necessário que confesse,havia inferido que Wedeking era judeu), que
mesmo um hanovriano - digo e não é dizer muito? - é capaz de achar isso.
Achar que há uma relação no sentido com o gozo.
Que este cozo seja fático, é a experiência que responde por isso.
Mas Wedeking é uma dramaturgia. Que lugar dar a ela? o fato é nossos
judeus (freudianos) se interessam por ela, encontraremos a atestação nesse pro­
grama.
É necessário dizer que a família Wedeking tinha primeiramente errado
pelo mundo, participando de uma diáspora, esta idealista: tiveram de deixar a
terra-mãe devido a um fracasso de uma atividade "revolucionária". É isso que
fez Wedeking, eu falo do nosso dramaturgo, se imaginar de sangue judeu? Pe­
lo menos seu melhor amigo testemunha isso.
Ou é mais uma questão de época, posto que o dramaturgo, pela data que
anotei, antecipa, e muito, Freud?

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1989 p.7-9


Jacques Lacan
Posto que podemos que em tal data, Freud cogita ainda o inconsciente
e que, quanto a experiência que instaura seu regime, nem se quer perto de sua
morte ele a terá posto de pé.
Acabou que coube a mim fazê-lo antes que algum outro me substitua
(não mais judeu, talvez, do que eu).
Que o que Freud assimilou de que o que ele chama de sexualidade faça
buraco no real, é onde se chega a partir do fato de que ninguém se sai bem
nisso, e malgrado isso, ninguém se incomoda.
Trata-se, entretanto, de. uma experiência ao alcance de todos. Que o pu­
dor designa: privado. Privado de que? Justamente de que o púbis não chega
senão ao público, onde ele se mostra por ser objeto de uma levantamento de véu.
Que o véu levantado não mostre nada, eis aí o princípio da iniciação (às
boas maneiras da sociedade, pelo menos).
Eu indiquei o laço de tudo isso com o mistério da linguagem e com o fa­
to que é ao se propor o enigma que se encontra o sentido do sentido.
O sentido do sentido é o que se liga ao gozo do rapaz como interdito.
Não, certamente, para interditar a relação dita sexual, mas para fixá-la na não­
relação que vale no real.
Assim, faz função do real o que se produz efetivamente, o fantasma da
realidade cotidiana. Através dele desliza-se na linguagem o que ela veicula: a
idéia de TUDO, a qual, entretanto, o menor reencontro com o real faz objeção.
Não há língua que não se force a isso, não sem gemer ao fazer como po­
de, ao dizer "sem exceção" ou ao se valer de um numeral. Só nas nossas lín­
guas que se vai direto a isso, ao tudo - ao tudo e a ti, se ouso dizer.
Moritz, no nosso drama, chega, entretanto, a ser exceção, pois Melchior
o qualifica de moça. E ele bem que tem razão: a moça é apenas uma e quer
assim permanecer, o que no drama passa como o às.
Resta que um homem se faz O homem ao se situar como Um-entre-os­
outros, ao entrar entre seus semelhantes.
Moritz, ao se excetuar, se exclui no mais além. É apenas aí que ele se
conta: não por acaso entre os mortos, enquanto excluído do real. Que o dra­
ma o faça sobreviver; por que não? se o herói está morto antecipadamente?
É no reino dos mortos que"os não-tolos erram" (1), eu diria com um tí­
tulo que ilustrei.
E é por isso que eu não errarei mais muito tempo ao seguir em Viena,
no grupo de Freud, as pessoas que decifram ao avesso os signos traçados por
Wedekind em sua dramaturgia. Salvo, talvez, ao retomá-los no que a rainha
só poderia estar sem cabeça se o rei lhe tivesse retirado o par normal, de cabe­
ças, a que teria direito.
Não é para lhas restituir (ao supor o rosto escondido) que serve aqui o
Homem dito mascarado? Este, que faz o fim do drama, e não somente pelo
papel que Wedekind lhe reserva de salvar Melchior das garras de Moritz, mas
pelo que Wedekind lhe dedica da sua ficção, tida como nome próprio.
Eu leio para mim o que eu recusei expressamente àqueles que apenas
se autorizam falar entre os mortos: dizer-lhes que entre os Nomes-do-Pai, há
aquele do Homem mascarado.
. Mas o Pai tem tantos nomes e tantos que não há Um que lhe convenha,
senão o Nome do Nome do Nome. Nenhum Nome que seja seu Nome-Próprio,
senão o Nome como ex-sistência.
Ou seja, o que, por excelência, faz as vezes de (2). E "o Homem mascara­
do" diz isso muito bem.

8
O despertar da primavera

Pois como saber o que ele é se este está mascarado, e o ator oao usa
aqui a máscara de mulher'!
Só a máscara ex-sistiria no lugar vazio onde eu coloco A mulher. É por
isso que eu oao digo que não haja mulheres.
A mulher como versão do Pai, só se figuraria em Per-versão (3).
Como saber se, como formula Robert Graves, o próprio Pai,.nosso pai
eterno para todos, não é senão Nome entre outros da Deusa branca, aquela
que, no seu dizer, se perde na noite dos tempos ao ser af a Diferente, a Outra
para sempre em seu gozo,- como essas formas do infinito das quais só começa­
mos a enumeração ao saber que é ela que nos surpreenderá.

12 de setembro de 1974.

NOTAS DO TRADUfOR

• Texto extraído de: ORNICAR?, revue du Champ freudien, n° 39, ocL�éc., 1986, p. 5-7. Revisio:
Célio Garcia.

1. No original: "Les non�upes errent". Tal frase admite, em franc!s, uma outra leitura, por homofo·
nia, também explorada por Lacan: "os nomes�o-pai erram".

2. Traduzi pela expressão "o que faz as vezes de", o termo lacaniano "semblant", pois se perde muito,
comprometendo-o com a noçio de aparência, semelhança, traduzindo-o apenas por "semblante".
Há algumas traduções • uma inclusive deste mesmo texto de Lacan, feita por José Martinho • que
propõem o termo "simulacro".

3. No original: "Pére-version". Como uma tradução tipo "Pai-versão" ou "Versã�o-Pai" perde, a meu
ver, muito do jogo que Lacan nos lança, decidi por uma tradução onde o hífen que separa o prefi·
xo "Per", destaca a pronúncia fcancesa de "pere".

9
Contribuições teóricas

Norma Werneck

ALGUNS ASPECTOS DA PERVERSÃO EM FREUD

"Cumprir com seu dever" - o que será que essa frase enigmática de Lacan
quer dizer quando ele a associa à essa outra "nao ceder de seu desejo" como
uma via de saída à longa trajetória da análise?
Assumir seu destino, assinar a carta da história pessoal, dizer sim aos im­
passes do desejo e da falta. Isso tudo implica na assunçao da castraçao. Aceita­
çao da falta, da perda, da incompletude, da inexistência da adequaçao.
Essa temática nos serve de fio condutor à introduçao da questao da per­
versao, cujo avatar último remete justamente a recusa da castraçao.
Vamos fazer aqui o balanceamento das vicissitudes pelas quais passa o su­
jeito da constituição de sua falta-a-ser, na submissao à lei e à dialética do falo.
Mas vamos nos limitar ao exaro� daqueles que sao redigidos por uma es­
trutura particular que é a perversao. E sabido que as vicissitudes pulsionais, pa­
ra manter uma terminologia freudiana, se inscrevem de modo a configurar três
grandes categorias estruturais que são a neurose, a psicose e a perversão. Sabe­
se também que a cada estrutura corresponde um mecanismo específico no ma­
nejamento pulsional. Pulsional porque corresponde a um conceito "princeps"
na distribuiçao daquilo que estrutura a economia psíquica. Entao o mecanismo
psíquico que corresponde à estrutura da perversao é o desmentido - Verleugnung.
Assim vamos tentar situar a perversão dentro do enfoque nas pulsões e
seus destinos partindo do desmentido da castraçao e da clivagem do eu, acom­
panhando a evoluçao desses conceitos na determinaçao da estrutura perversa
ao longo da obra de Freud.

A neurose como o negativo da perversão


Observando em suas clínicas a existências de fantasias inconscientes e so­
nhos perversos em pacientes neuróticos, Freud é levado inicialmente a fazer
uma distinçao entre as perversões passivas - as neuroses, e as perversões ativas
que seriam as perversões propriamente ditas. Isso vai permitir a Freud dizer
que a neurose é o negativo da perversao na medida em que nestas as fantasias
são conscientes e agenciadas em condutas.
Ao observar que neuróticos também podem ter fantasias perversas cons­
cientes, chegando a colocá-Ias em prática, Freud se dá conta insuficiência des­
ses critérios, mesmo admitindo que ao contrário dos perversos, a prática perver­
sa do neurótico permanece um caso isolado.
· Freud é entao levado a investigar, para além da fenomenologia, os meca­
nismos específicos que determinam a verdadeira perversão. E o faz inicialmen­
te tentando articulá-la coma pulsao, que é um elemento essencial da economia
psíquica na configuração das perversões.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.l0-20
Alguns aspectos da perversão em Freud
A pulsão
É o conceito de pulsao que permite a Freud elaborar sua teoria da sexua­
lidade infantil e de circunscrever o campo da patologia perversa.
É este conceito que o leva a situar o lugar das "aberrações sexuais" segun­
do uma dupla determinação: seja como um desvio relativo ao objeto da
pulsao sexual, seja como um desvio relativo a seus fins.
No primeiro dos 'Três Ensaios sobre a Sexualidade', de 1905, Freud defi­
ne a pulsao como "o representahte psíquico de uma fonte contínua de excitação
proveniente do interior do organismo".
A pulsao estaria assim no limite entre o psíquico e o somático. A pulsao
sexual é composta por pulsões parciais que se localizam num órgão de onde pro­
vém uma excitação sexual, que ele chama de zonas erógenas.
A finalidade da pulsao é a satisfação da excitação produzida pela zona eró­
gena. No entanto, essa satisfação não se dá de modo imediato e instintual, mas
obedece a um processo de idealização. Desde o início, Freud percebe a concor­
rência dos fatores psíquicos na constituição da sexualidade humana.
Inicialmente Freud concebe a pulsão como composta por um par de ten­
dências opostas (o que supõe já uma certa divisão do sujeito).
O desenvolvimento da pulsão sexual pode conhecer várias vicissitudes co­
mo a desintricação dos seus componentes, com a regressão e a fixação, a um es­
tágio infantil da sexualidade, enquanto que o outro componente cede ao recal­
que durante o período de latência.
A fixação exprime a idéia de que certas impressões infantis, que produzem
satisfação pulsional a partir de sua representação permanecem investidas, co­
mo a cena primitiva, por exemplo.
Freud é levado a dizer num primeiro momento que essas tendências fixa­
das na fantasia não são recalcadas nos perversos, enquanto que no neurótico a
tendência recalcada reaparece sob a forma do sintoma. Mais tarde ele será leva­
do a dizer, como veremos, que na perversão ocorre também o recalque dessas
representações ligadas à sexualidade, sob a forma de traços no inconsciente.
Nessa época Freud explica a perversão como um tendência geral da pul­
sao na organização sexual infantil que é a de se desviar de sua finalidade e de
seu. objeto. A sexualidade infantil tem o caráter de uma perversao polimorfa
porque determinada pelas pulsões parciais que desconhecem o objeto e a finali­
dade sexual normal que seria a submissão ao primado da zona· genital, o que
se dá durante a puberdade. Isso é obtido pela intervenção de mecanisos psíqui­
cos que agem no sentido de educar a pulsao por meio de forças inibidoras, le­
vando as pulsões parciais a uma síntese sob o primado da genitalidade, isto é,
do falo. Então o que caracteriza a perversão propri!lmente qita não é a pulsão
em si mas a posição subjetiva em r_ela.çao à pulsao.._ é a fantasia onde a pulsão
se inscreve e que deteonina seu destino.
Freud assim faz uma distinção capital entre pulsão e perversão pela inter­
venção da elaboração psíquica. Diz ele no artigo "generalidades sobre as perver­
sões": "Talvez precisamente nas mais horríveis perversões é onde se pode reco­
nhecer a máxima participação psíquica na transformação da pulsão sexual.
Produz-se aqui um trabalho anímico ao qual, não obstante seus espanto­
sos resultados, não se pode negar a qualidade de uma idealização da pulsão".
Nesse processo de idealização acompanhado de uma hipervalorização se­
xual do objeto, intervém a itensidade do prazer preliminar que é preferido ao
ato normal e se substitui a ele.

11
Nonna Werneck

E mais adiante Freud acrescenta: "Podemos deduzir que a pulsao sexual


não é talvez algo simples, mas composto e cujos componentes voltam a separar­
se uns dos outros nas perversões".
Desse modo, se a sexualidade infantil tem uma disposição perversa ela
llilQJ,ta perv_ersão. No decorrer da evolução sexual sob a influência de modifica­
ções físicas, e das inibições psíquicas, as pulsões parciais submetidas ao prima­
do do falo entram a serviço da reprodução e favorecem o ato sexual. Se há no
entanto, fatores internos e externos que perturbam esse desenvolvimento, são
mantidos os investimentos nos estágios anteriores à fase fática havendo então
fixação numa fase e mesmo regressão e desintricação da pulsão.
Nesse sentido a perversão seria um tropeço, uma falha na assunção fáli­
ca, onde as pulsões parciais permanecem isoladas, e onde aquela mais forte do­
minará sob a forma de perversão, por desintricação ou fixação, que se acompa­
nha sempre de uma regressão à um estágio anterior.
No caso das neuroses, certos componentes parciais da pulsão são atingi­
dos pelo recalque, e pelo retorno do recalcado se manifestam sob a forma de
sintomas.
Na perversão as fantasis inconscientes dos neuróticos, não são atingidas
pelo recalque e são conscientes e postas em prática. Isto é: a perversão é uma
posição subjetiva sustentada por uma fantasia consciente posta em prática. As­
sim, nessa fase de sua obra, Freud faz uma distinção tópica entre neurose e per­
versão, o que o leva a dizer que "a neurose é o negativo da perversão".
Assim vê-se que é justamente a posição subjetiva com relação às exigen­
cias pulsionais que permitem à Freud distinguir as neuroses da perversão que
coloca em cena a pulsão nas condutas determinadas pela sua fantasia.
No Capítulo sobre 'A Pulsao e seus Destinos' da Metapsicologia de 1915,
Freud faz um detalhado estudo das características e vicissitudes da pulsão, que
é definida como o representante psíquico da sexualidade.
A pulsao é uma força interior constante, sendo esse aspecto de -PJ'J�_!l,gi.Q
sua essência mesma. A concepção do psiquismo como sendo regido pelo princí­
pio do prazer, i.e., como tendência para a redução de tensão, faz Freud situar
o fim de toda pulsão como uma descarga, uma redução de excitação, e nisso
consistiria sua satisfação. No entanto, observa Freud, há diversas maneiras de
satisfazer a pulsão, há fins intermediários que se combinam e se substituem.
Freud concebia nesse tempo dois grupos de pulsão, as de auto-conserva­
ção, que são as pulsões do eu, e as pulsões sexuais que são aquelas estudadas
neste trabalho.

Os destinos da pulsão e a perversão

Se nos 'Três Ensaios' Freud já havia elaborado a idéia dos desvios da pul­
são quanto aos fins e ao objeto, salientando mesmo a independência da pulsão
com relação ao objeto, é no estudo sobre a "Pulsão e seus destinos" que Freud
desenvolve essa idéia, dizendo que o objeto não constitui o essencial nem da
pulsão, nem da perversão.
Os destinos da pulsão estudadas neste texto são o retorno sobre a própria
pessoa e a transformação em seu contrário, que são os movimentos pulsionais
que distinguem os pares voyeurista - exibicionista e sado/m�soquista.
Como toda pulsão parcial, a pulsão sado/masquista é auto erótica na me­
dida em que aquilo que é visado é a satisfação da zona erógena envolvida.
Freud fala da pulsao sado/masoquista justamente por levar em conta o

12
Alguns aspectos da perversão em Freud
caráter reversivo da pulsao.
FreiJd concebe inicialmente o sadismo primário como o desenvolvimento
excessivo da componente agressiva de pulsao que visa apropriar-se e dominar
o objeto.
A vontade de infligir dor é vista como vontade de dominar ao invés de se­
duzir. Já nessa obra Freud vê no sadismo e no masoquismo as perversOes cardiais.
Para que uma perversão seja caracterizada é necessário, no caso do sadis­
mo e do masoquismo a existência de ereotização do sofrimento e de um agente
externo ao sujeito. No caso do sadismo, o parceiro é aquele com quem se identi­
fica ao torturar. No masoquismo, o gozo se manifesta na erotização dos tormen­
tos infligidos pela pessoa amada.
O gozo da dor seria uma finalidade origináriamente masoquista mas que
se constitui sobre um fundo sádico originário. Para Freud nesse período o maso­
quismo é secundário com relação ao sadismo; ele seria um movimento pulsio­
nal de transformação em seu contrário. A isso se acrescenta um outro movimen­
to que é o da transformação do sujeito em ob.jeto.
Assim, tanto no sadismo quanto no masoquismo entra em jogo a pulsao
sado/masoquista. A perversão própriamente dita se constitui no fechamento
do circuito da perversão, isto é, na posição do sujeito em sua relação com o par­
ceiro e do papel deste. No sadismo, o sujeito atormenta o parceiro tomado co­
mo objeto e goza de modo masoquista pela erotização dos tormentos que ele
lhe inflige enquanto que no masoquismo, o sujeito se faz de objeto frente ao
parceiro que se tornou atormentador em sua fantasia, e ele goza pela erotiza­
ção da dor infligida pelo parceiro.
Quanto ao par voyeurista/exibicionista, o mecanismo de retorno sobre a
própria pessoa também se encontra presente: o voyeur goza de olhar um mem­
bro ao mesmo tempo que goza de ser olhado por si mesmo. No voyeurismo o
sujeito se identifica ao objeto olhado, enquanto que no exibicionismo tira sua
satisfaçao ao se constituir um objeto para um outro ao qual se exibe.
Vemos assim, como nessa época Freud dá as razOes do mecanismo perver­
so acentuando principalmente as moções pulsionais e a posiçao subjetiva fren­
te a elas.
Já observamos como na época dos "Três Ensaios" Freud nao atribuía im­
portância à função do recalque na gênese das perversões.
No artigo de 1919 intitulado "Bate-se uma criança", no capítulo V, Freud
volta sua atenção para o papel do recalque em sua relação com o Complexo
de Édipo na compreensão da perversão. O conceito do recalque ao lado daque­
les de fixação e de regressão deu uma nova luz para o estudo da gênese das per­
versões.
Nesse trabalho, Freud articula a perversão com o Complexo de Édipo.
Ela seria a herdeira de uma carga libidinal. A perversão representa uma posição
subjetiva específica constituída na dialética edipiana. Ela é o herdeiro desse com­
plexo, ora recalcado.
Com relação ao masoquismo, Freud conserva a tese proposta pela meta­
psicologia que o considera não como uma mimifestação primária da pulsao,
mas como uma reversão do sadismo sobre a própria pessoa.
O masoquismo não se caracteriza só pela passividade (que é uma das fina­
lidades de algumas pulsOes) mas implica ainda o caráter de desprazer tão estra­
nho na realização da pulsão. Concepção que vai ser reformulada no texto de
1924 quando aborda a questão do masoquismo primário.
A causa dessa transformação pulsional estaria ligada à influência da culpa-

13
Nonna Werneck
bilidade que toma parte no recalque. A perversão se constituiria assim a partir
de um núcleo recalcado que produziria três efeitos:
- Torna inconsciente o resultado da organização genital;
- Produz uma regressão nessa organização, levando ao estágio sádico anal anterior;
- Transforma o sadismo em masoquismo, por exigência da consciência de cul-
pa contra o sadismo e o incesto.

A pulsão e a fantasia
Esses mecanismos ficam claros no agenciamento fantasmático que os ma­
nifesta. Aqui se vê a articulação do Édipo e seus destnos pulsionais com a fanta­
sia. A fantasia tem já para Freud nesse período a estrutura irredutível de um
enunciado gramatical cuja gênese se liga a história do indivíduo. Os seus ele­
mentos constantes são a compreensão da estrutura do sujeito.
Vamos seguir o exemplo trabalhado por Freud nesse texto em seus três
momentos:
- "0 pai bate uma criança que eu odeio". Essa primeira forma de fantasia, que
tem a estrutura de um enunciado, exprime a fase do Édipo onde a satisfação
provém do desejo incestuoso de ser amado pelo pai.
- O segundo momento "eu sou batida pelo pai" comtém já um caráter masoquis­
ta decorrente da culpa ligada à realização de um desejo incestuoso. Manifesta­
se já aí a inscrição de uma fixação, da estrutura, representando a satisfação de
um desejo culpado. Freud articula aqui a fantasia ao desejo como aquilo que
o sustenta e que revela a posição do sujeito.
- O terceiro momento, que apresenta a forma impessoal "bate-se uma criança",
traz a marca de uma excitação sexual que é satisfeita com sua evocação, de mo­
do masturbatório. A sua forma sádica oculta na verdade um gozo masoquisa
cujo conteúdo foi recalcado devido ao seu caráter edipano e pela influência da
consciência de culpa que toma parte nesse processo.
Freud faz ainda nesse estudo uma importante distinção que incide sobre
as estruturas psíquicas que produzem uma tal fantasia.
Ou seja, ele distingue a perversão da fantasia perversa. Essa fantasia, cons­
truída por uma paciente neurótica, é isolada do resto da neurose e é o suporte
daquilo de que se trata na pulsão aí envolvida.
Freud ressalta as notáveis diferenças observadas entre os homens e as
mulheres portadores de fantasias de fustigação.
Nos homens, a segunda fase "eu sou batido pela mãe" é consciente, e nao
é primária, existindo um estágio preliminar inconsciente eu sou batido pelo pai".
Essa fantasia, nos diz Freud, se encontraria nos verdadeiros perversos masoquis­
tas e homossexuais. Ela implicaria a adoçao de uma posição feminina ao mes­
mo tempo que uma recusa da castração.
Nos perversos, essas fantasias seriam como que sequelas do complexo de
Édipo.
Vê-se como cada vez mais Freud faz do complexo de É dipo o pivO estrutu­
rante das perversões, o que leva a desenvolver cada vez mais a questão da cas­
tração e seus destinos na explicação de sua gênese.Mas antes de seguir nesta
vertente, vamos ainda examinar a direção que toma suas investigações sobre a
pulsao e suas vicissitudes no seu grande trabalho de 1924 intitulado "O Probfe­
ma Econômico do Masoquismo".
A grande modificação introduzida por Freud na sua concepção sobre a
pulsao a partir da obra "Para além do Princípio do Prazer" de 1920, vai redun-

14
Alguns aspectos da perversão em Freud
dar numa mudança também no seu conceito sobre o masoquismo.
Freud chamava de pulsao sado masoquista a uma combinação de duas ten­
dências pulsionais originárias, uma componente sádica e outra masoquista, sen­
do que a perversão própriamente dita seria a expressão dominante de uma de­
las que se tornaria independente vinculada à posição subjetiva.

O masoquismo primário e a pu/são de morte

Nesse texto Freud vai tentar compreender a economia psíquica que rege
o masoquismo, agora concebido como primário.
A questão é de como articular o princípio do prazer com o dualismo pul­
sional para explicar o masoquismo primário. O prazer agora não se expressa ne­
cessariamente como uma redução de tensão provocada por estímulos, na medi­
da em que há tensões prazeirosas, como no caso de excitação sexual. Assim,
não se trata de explicar o desprazer pela quantidade de tensOes, mas sim pela
qualidade da excitação envolvida.
Freud, ao longo de seu escrito desenvolve a idéia de que a pulsao de mor­
te teria dado origem ao princípio do prazer por uma modificação e acentua o
fato que a libido se impõe à pulsão de morte na regulação dos processos psíquicos.
Assim, o princípio de Nirvana, identificado com a tendência à anulação
da magnitude de excitação, expresaria a tendência da pulsão de morte, enquan­
to que o princípio do prazer representaria as aspirações da libido e suas modifi­
cações, devido às influências do mundo exterior, o princípio da realidade. A libi­
do deve lutar contra a pulsão de morte ou de destruição contrária, que é domi­
nante, e o faz orientando-a para o mundo exterior.
Uma parte dessa pulsao ficaria ligada a função sexual, que seria o sadis­
mo propriamente dito.
Outra parte permaneceria voltada para o indivíduo adquirindo um caráter
sexual. Esse seria o masoquismo primário erógeno. Este teria um caráter eróge­
no devido ao fato que: "a excitação sexual nasce como efeito secundário de to­
da uma série de processos internos na medida em que a intensidade dos mes­
mos ultrapassa determinados limites quantitativos. Pode-se mesmo dizer que to­
do processo algo importante traz um componente à excitação do instinto sexual.
Em consequência, também a excitação provocada pela dor e pelo despra­
zer há de ter tal consequência". E adiante Freud diz: "A coexcitaçao libidinosa
na tensão da dor, variável em sua importância segundo a constituição sexual
do sujeito, subministraria, em todo caso, a base sobre a qual pode levantar-se
mais tarde, como superestrutura psíquica, o masoquismo erógeno".
Trata-se então de um modo de apropriação da pulsao de morte pela libi­
do, uma er.otização da pulsão de destruição voltada para o eu, aquilo que cons­
titui a base do masoquismo. Este, assim como o sadismo testemunham da vincu­
lação da pulsão sexual com a pulsao de morte, que vai determinar a estrutura
psíquica.
O masoquismo primário.acompanha a libido em seus estágios evolutivos,
e toma deles sua determinação subjetiva. Assim o medo de ser devorado pelo
pai procede da a fase oral, o desejo de ser maltratado pelo pai da fase sádico
anal e as fantasias masoquistas de castração se ligam à fase fálica.
O masoquismo erógeno constitui fJ base de duas outras formas de maso­
quismo concebidas por Freud: o masnquismo moral e o feminino. Este último
caracteriza o masoquismo perverso propriamente dito, e Freud o encontra nas
fantasias e práticas sexuais do perverso masoquista. O conteúdo dessas práticas

15
Norma Werneck
consiste em sofrimento, humilhação e dor para o sujeito. Freud interpreta essa
posição como expressão do desejo do sujeito de ser tratado como um menino
mau e em outras fantasias estudads por Freud verifica-se uma representação
de feminilidade: ser castrado, suportar o coito ou parir.
Por essa razão Freud chama de masoquismo feminino aquele que caracte­
riza o masoquismo e a homossexualidade masculina enquanto verdadeira perversão.
A feminização da posição subjetiva e sua ligação com o complexo de Édi­
po e o de castração, como fatores comuns na perversão em geral vão ser cada
vez mais relacionados por Freud com a recusa da castração (Verleugnung) na
mulher e a clivagem do eu a ela ligado.
É sobre essa vertente que vamos agora acompanhar as investigações de
Freud acerca das perversões.

O complexo de Édipo e o desmentido da castração

Já em 1907, em seu pequeno ensaio "As Teorias Sexuais Infantis" Freud


introduz uma explicação que terá grande alcance para tais teorias e que será a
fonte de inspiração para sua concepção final dos mecanismos que regem a perversão.
Diz Freud: "a primeira de tais reorias se enlaça com o desconhecimento
das diferenças sexuais, indicado já antes como característica infantil, que consis­
te em atribuir a todas as pessoas, inclusive nas do sexo feminino, órgãos geni­
tais masculinos, como os que o menino conhece pele seu próprio corpo. Precisa­
mente naquela constituição sexual que reconhecemos como "normal" é já na in­
fância o pênis a zona erógena diretiva e principal objeto sexual autoerótico, e
o valor que o sujeito lhe concede se reflete logicamente em uma impossibilida­
de de representar-se uma personalidade análoga ao eu sem um elemento tão
essencial. Quando o menino vê nua uma irmãzinha ou outra menina, suas mani­
festações demonstram que seu preconceito chegou a ser enérgico o bastante pa­
ra falsear a percepção do real. Assim, não comprova a falta do membro, mas
diz regularmente, como uma intenção consoladora e conciliante: "ele é ainda
pequeno, mas crescerá quando ela for maior". E mais adiante: "Quando esta re­
presentação da mulher provida de um membro viril chega a ficar fiXada no me­
nino, resistindo a todas as influências da vida ulterior e criando a incapacidade
de renunciar ao pênis no objeto sexual, o sujeito - cuja vida sexual pode perma­
necer normal em todos os outros aspectos - se faz necessariamente homosse­
xual e busca seus objetos sexuais entre homens que por algumas características
somáticas ou anímicas lembrem a mulher. A mulher real, tal como a descobre
não pode constituir jamais para ele um objeto sexual, pois carece a seus olhos
do atrativo sexual essencial, e inclusive pode chegar a inspirar-lhe horror".
Encontra-se aí explícito pela primeira vez a recusa da percepção da castra­
ção da mulher pela criança, o que dará origem a fantasia da mulher fálica.
A descrição desse mecanismo aí explícito pela primeira vez a recusa da
percepção da castração da mulher pela criança, o que dará origem a fantasia
da mulher fática.
A descrição desse mecanismo ainda não formulado como (Verleugnung)
desmentido, vai ser desenvolvido ao longo de sua obra até a sua formulação fi­
nal �,lo estudo sobre o fetichismo de 1927.
O estudo de 1910 sobre "Uma Recordação Infantil de Leonardo da Vin­
ci" é decisiva na consideração das implicações da fantasia da mulher fálica.Freud
considera a fantasia de Leonardo como um emblema que rege sua vida afetiva
e sexual e explica suas tendências homossexuais.

16
Alguns aspectos da perversão em Freud
Ele interpreta a imagem do abutre como representando uma Deusa egíp­
cia que teria tal forma e que simboliza a maternidade e que é dotada dos atribu­
tos ao mesmo tempo femininos e masculinos.
Trata-se de uma mãe fálica: "Há de fato na vida individual uma época
em que os órgãos genitais masculinos resultam harmonizáveis com a representa­
ção da mãe( ...).

Acha essa parte do corpo tão valiosa e importante que na pode crer que
dela careçam as pessoas que o rodeiam e a quem acha semelhantes, e como
não pode adivinhar que existe outro tipo equivalente de formação genital, tem
que acolher a hipótese de que todos, inclusive as mulheres possuem um mem­
bro igual ao seu".
E Freud nos explica que só a ameaça de castração acaba por alterar a per­
sistente crença na presença do pênis na mulher e de como coexistindo ao lado
do temor por sua própria virilidade, pode estar o desprezo e repugnância pela
mulher, sendo a causa da homossexualidade e do fetichismo. Já nesse tempo,
o objeto fetiche é explicado como um símbolo sustitutivo do pênis da mulher.
Ou melhor, o que já se configura aqui é a idéia de que não se trata exatamen­
te do pênis real mas do falo como símbolo da ausência de pênis. A criança hesi­
ta entre o reconhecimento da ausência do pênis na mae e a sua negação utilizan­
do-se de um 'Ersatz', um símbolo que expressa o seu desejo. Está já presente
de forma embrionária a divisao do sujeito diante da castração que vai ser deter­
minante para configurar a perversão.
Nesse estudo sobre Leonardo, Freud aborda a questão da escolha de obje­
to homossexual salientando a intensa relação do futuro homossexual com sua
mãe durante os primeiros anos da infância.
Nos diz ele: "Em todos os homossexuais submetidos à análise se descobre
um intensíssimo enlace infantil, de caráter erótico e esquecido depois pelo indi­
víduo, a um sujeito feminino, geralmente a mae; enlace provocado ou favoreci­
do pela excessiva ternura da mesma e apoiado depois por um afastamento do
pai da vida infantil do filho".
Num dado momento esse amor sucumbiria ao recalque sendo deslocado
para a própria pessoa que se substitui à mãe por identificação. Ao mesmo tem­
po, o indivíduo se toma como modelo elegendo pessoas que a ele se assemelham.
O auto-erotismo então se manifestaria nas escolhas do objeto de amor que são
reproduções da própria pessoa. Ele ama o outro como foi amado por sua pró­
pria mãe.
A sua eleição objetai segue a direção do narcisismo, a partir da identifica­
ção com a mãe fálica.
Assim, o homossexual permanece fiXado à mãe. A ação do recalque man­
tém esse amor inconsciente. Ao perseguir um homem o que faz na verdade é
tentar manter-se fiel à mãe, transferindo a excitação causada por uma mulher
à um homem.
No pequeno artigo de 1923 intitulado 'A Organização Sexual Infantil',
Freud faz uma retificçao teórica de grande alcance para a compreensão dos
mecanismos ligados ao complexo de castração e a seus efeitos quanto à estrutu­
ração da subjetividade.
Ele explica aí a diferença entre a sexualidade infantil e a adulta, nao pela
primazia dada ao genital, que também é encontrada na infância, mas pela pri­
mazia dada ao falo, único órgao genital concebido para ambos os sexos.
Nos diz ele: "Assim, pois, [o menino] atribui a todos os demais seres ani­
mados, homens e animais, órgãos genitais análogos aos seus e chega até a bus-

17
Norma Werneck
car nos objetos inanimados um membro igual ao que possui".
Nesse artigo Freud descreve a reação do menino diante da percepção da
falta de pênis na menina como uma negação, um desmentido (Verleugnung) que
se apoia depois na convicção de que o membro é pequeno mas vai crescer.
Num outro momento a criança conclui que a menina antes possuía um
órgão semelhante que teria sido cortado. Diante da possibilidade de que o seu
tenha o mesmo destino, instala-se o complexo da castração, que é portanto con­
temporâneo da fase da primazia do falo.
Mas essa generalização não se dá de imediato e a princípio o mesmo crê
que a castração foi efetuada como uma punição em algumas meninas, conser­
vando assim, a idéia de que a mãe possa ter conservado o seu.
O conceito de desmentido (Verleugnung) será formalizado no texto de
1925. "Algumas Consequências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Se­
xos", onde Freud diz que a percepção, pelo menino, do genital feminino susci­
ta desinteresse - não vê nada, ou repudia sua percepção ou a atenua dizendo
que vai crescer. Mais tarde, diante da ameaça de castração, tal observação tor­
na-se decisiva. Poderão, no entanto, surgir duas reações que podem ftxar-se e
que determinarão permanentemente suas relações com a mulher: o horror ou
o desprezo.
Utilizado inicialmente para explicar o mecanismo da psicose que rejeitaria
um aspecto da realidade, Freud mais tarde se dá conta de que o conceito de
desmentido é insuficiente para distinguir a psicose da neurose, uma vez que é
encontrada em indivíduos não psicóticos sob a forma da recusa da castração.
É no estudo sobre o fetichismo de 1927 que Freud articula o mecanismo
do desmentido com a perversão. No fetichismo, a recusa da realidade vai se cen­
trar sobre a falta de pênis na mulher, assim à questão do desmentido da castra­
ção, que Freud já havia observado em trabalhos anteriores, notadamente naque­
les que tratam da sexualidade infantil. O que configura a perversão fetichista é
a persistência no adulto desse desmentido infantil. Haveria af uma regressão e
uma fixação à um estado da evolução sexual infantil.
Na perversão se organiza um processo de defesa contra a angústia da cas­
tração que Freud descreve assim:
( ...) A criança se recusou a tomar conhecimento da realidade percebida:
a mulher não possui um pênis. Não, isso não pode ser verdade porque se a mu­
lher é castrada, uma ameaça pesa sobre a posse de seu próprio pênis, contra o
que se rebela esse pedaço de narcisismo com que a natureza previdente dotou
esse órgão".
O horror à castração, pela ameaça e a angústia a ele ligadas encontra
uma proteção, no caso do perverso fetichista sob a forma de uma solução de
compromisso representada por uma ambivalência expressa pela aceitação e pe­
la negação dessa realidade ao mesmo tempo, como se verá adiante.
A atitude de reconhecimento da castração produz, no caso da perversão,
um mecanismo que permite contorná-la com a criação do fetiche que represen­
ta não exatamente o pênis, mas o véu com que se mantém a ilusão de sua exis­
tência e sustenta a fantasia da mãe fálica.

A clivagem do eu
Na sua obra inacabada de 1938 sob o título de "A Clivagem do Eu nos
Processos de Defesa", Freud diz ao se referir à hesitação da criança entre a re­
cusa e o reconhecimento da realidade da castração: "A criança responde ao con-

18
Alguns aspectos da perversão em Freud
flito por duas reaçaes opostas, todas duas válidas e eficazes.
De um lado com a ajuda de mecanismos determinados, ela nega a realida­
de e não se proíbe nada; por outro lado, ao mesmo tempo ela reconhece o peri­
go da realidade, assume, sob forma de um sintoma mórbido, a angústia, face a
essa realidade e tenta ulteriormente se garantir contra ela ( ...)". As duas partes
em litígio receberam seu lote: a pulsao pode conservar sua satisfação; quanto
à realidade, o respeito devido lhe foi pago. No entanto, o sucesso foi atingido
ao preço de uma dilaceração no eu, dilaceração que não se resolverá jamais
mas crescerá com o tempo. As duas reações ao conflito, reaçaes opostas, se
mantém como núcleo de uma clivagem do eu".
Patrick Valas no seu ensaio intitulado 'Freud e a P erversão' publicado
na revi�ta Ornicar o!? 45, comenta assim esse texto de Freud: "Na perversão há
recalque da castração materna, que é desmentida, enquanto que na criança, pa­
ra seu próprio pênis, nada mudou" - a recusa da castração da mãe a colocaria,
parece, ao abrigo da sua própria, em lhe fazendo a economia da angústia de
castração.
Mas isso, não sem que ela ressurja sob a forma mascarada de uma angús­
tia de receber um castigo do pai: "Essa angústia com relação ao pai, ela também
não diz nada sobre a castração", exceto a remetê-Ia, graças a regressão, à fase
oral, onde ela aparece como angústia de ser devorado pelo pai".
A criação do fetiche representa então, uma solução de compromisso de
duas atitudes opostas diante da realidade: a de reconhecimento, e a do desmen­
tido que persistem e convivem ao longo da vida sem se influenciarem mútua­
mente. Freud chama de clivagem do eu (Ichspaltung) a essa coexistência, no
eu de duas atitudes psíquicas opostas com relação à realidade da castração.
O desmentido da castração é então indissolúvel da clivagem do eu, que
são os mecanismos que vão estruturar a perversão.
A solução fetichista é um caso particular das diversas formas que pode to­
mar a pulsão no encontro com a questão fálica. Isso porque é da ordem da pul­
sao que procede o desmentido, na medida em que a pulsão só pode ser conhe­
cida pelo seu representante psíquico que é o elemento sobre o qual recai o des­
mentido. Uma vez recusada a representação da castração, o "quantum" de afe­
to ligado à representação desmentida é deslocada para a representação substitu­
tiva, no caso, o fetiche. O fetichismo, pelos mecanismos que ele coloca em ação
aparece como a matriz originária das perversões.
É importante insistir no fato de que a base da questão perversa é sua rela­
ção com a castração, o que foi percebido por Freud desde 1908 com seu trabalho
"As Teorias Sexuais Infantis" já mencionadas. E que o mecanismo do desmenti­
do (Verleugnung) vai incidir sobre ele.
O desmentido da castração é o elemento comum a toda perversão - tan­
to daquelas que são ligadas a uma fixação da libido a um estágio precoce co­
mo o voyeurismo, o exibicionismo, o fetichismo, como também das que se cons­
tituem mais tarde, como a homossexualidade. Mas a importância da compreen­
são do desmentido da castração para a perversão só é possível se pensarmos
na castração com relação ao falo enquanto simbolizando a falta.
Como se expressa muito bem Patrick Valas em seu trabalho já menciona­
do: "Dois paios da fantasia permitem assim definir a perversão freudiana: o ob­
jeto é escolhido em função da relação do sujeito com a castração, cuja sorte se
decide na dialética edipiana. Quando a câstração é desmentida, o objeto é mar­
cado pelo traço do desmentido: a mãe fálica, à qual se substitui a mulher falici­
zada pelo fetiche, ou bem o objeto é ele próprio portador do pênis falicizado,

19
Nonna Werneck
ele é um duplo narcfsico do sujeito homossexual".
Isto é, o desmentido da castração implica sempre numa identificação do
sujeito com a mãe fálica.
É essa identificação que determina a posição do sujeito na perversão. É
uma identificação que se liga à dimensão do falo imaginário da mãe.
Renunciar ao falo da mãe seria renunciar também à sua identificação fáli­
ca imaginária de ser aquele que completa a mãe.
Mas abordar essas dimensOes imaginárias e simbólicas do falo em sua rela­
ção com a castração seria já antecipar os aportes teóricos trazidos por Lacan,
de que se tratará num outro encontro.

REFEM NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, SIG. - Obras Completas ed. espanhola.


1. Três Ensaios sobre a Sexualidade.
2. As Teorias Sexuais Infantis.
3. Uma Recordação Infantil de Leonardo da Vinci.
4. A Pulsá o e seus Destinos, em Metapsicologia.
5. Bate-se uma Criança.
6. Para Além do Princípio do Prazer.
7. A Organização Sexual Infantil.
8. O Problema Econômico do Masoquismo.
9. Algumas Consequências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos.
10. O Fetichismo.
1 1 . A Clivagem do Eu nos Processos de Defesa.

VALAS, P. ' Ornicar, n2 39, 41 e 45.

20
Nelisa S. Pinheiro

PERVERSÃO - TRAÇOS E ESTRUTURA


Uma estrutura com o a linguagem
e a palavra como fetiche

"reconhecer-se como objeto de seu desejo é sempre


masoquista" (Lacan - Seminário Angt1stia)

"a palavra está lá onde o desejo s e retirou" (Lacan -


Juventude de Gide)

A teoria psicanalítica parte, desde Freud, de uma articulaçao peculiar en­


tre corpo e alma, que situa o corpo pulsional como articulado ao corpo do sim­
bólico. Esse modo de articulaçao é proposto por Freud numa perspectiva estru­
tural, referida aos "sistemas" e às "instâncias" do aparato psíquico, e esse modo
de articulaçao é retomado por Lacan com o modelo topológico do nó borrome­
ano. A alma, o espírito, como categorias trabalhadas pela filosofia, assumem,
na psicanálise, uma materialidade objetivada na produçao discursiva de cada su­
jeito. O par corpo-alma da filosofia passa a ser, para o sujeito psicanal!tico, cor­
po-linguagem.
Se o objeto de estudo da teoria psicanalítica é, por excelência, o inconscien­
te, como pensar, dentro do nosso tema de estudo, o que Lacan enuncia com a
proposiçao - "o inconsciente é estruturado como uma linguagem"? Ao se pensar
numa anterioridade lógica do simbólico, atribui-se à linguagem um conjunto
de leis que determinariam a ordenaçao do pulsional. Mas, nao bastaria recorrer
à linguística para estudar a linguagem como estrutura estruturante do sujeito.
A linguagem também é estruturada a partir de uma relaçao do sujeito com o
mundo; e cada discurso particular aponta para algo que o causa, e revela uma
posiçao do sujeito dividido entre a enunciaçao e o enunciado que emite. A psi­
canálise provoca, em cada um, uma indagaçao sobre o que diz e sobre a origem
do seu. dizer, e, para isso, parte da surpresa e do estranhamente de cada um
diante do que diz e faz.
Pode-se tomar a função da linguagem, para a psicanálise, como uma ope­
raçao de perversao estrutural. O sujeito só emerge através da linguagem: emer­
ge como um para um outro, emerge como humano, e emerge como homem
ou mulher... Emerge, enfim, numa estrutura de linguagem, que, por si, afasta
qualquer idéia de uma "natureza sexual", e faz surgir uma concepçao de sexuali­
dade referida à estrutura que articula corpo-linguagem. Trata-se de uma perver­
sao da natureza, ou melhor, perversao da própria noçao de natureza enquanto
dissociada do simbólico.
Tentando pensar o que é a estrutura e a linguagem como estrutura, procu­
raremos levantar pontos que situem o que pode ser tomado como "estrutura
clínica" para a psicanálise. Tomaremos a estrutura clínica da perversao, desde
Freud, em linhas gerais que a diferenciam de um traço de perversao. Daremos
um exemplo, segundo Lacan, de um traço de perversao no uso da palavr,a co­
mo fetiche.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.21-24
Nelisa S. Pinheiro
1 - A estrutura e a linguagem
Há diferentes conceitos de estrutura que podem ser agrupados em três
categorias: um estruturalismo genérico, um estruturalismo metodológico e um
estruturalismo ontológico.
Com Saussure, em 1915 (Cours de Linguistique) , a língua é tomada co­
mo sistema, e tem propriedades estruturais - por ex. a "solidariedade sincrôni­
ca", que defin� que um termo só pode ser apreendido no contexto. A posição
determina diferenças.
Desde 1929, o Círculo de Praga começa a definir leis da estrutura dos sis­
temas fonológicos, e a operar uma investigação diacrônica.
Lévi-Strauss, em 1960 (Pensée Sauvage), conceitua estrutura como siste­
ma de diferenças com a possibilidade de transposição (transformação).
Roland Barthes vem, a seguir, caracterizar um;. "activité structuraliste",
bem diversa dos métodos e modelos de Piaget. Trata-se de construir um obje­
to como simulacro teórico para torná-lo inteligível.
É de Starobinski esta formulação estruturalista: "um sistema não é consti­
tuído pela soma das partes; o sentido do todo é imanente a cada um dos seus
elementos constitutivos".
Jakobson, entre os formalistas russos, aponta uma dialética crítica entre
a individuação de modelos recorrentes e a singularidade numa obra isolada.
Surgem estudos vários sobre a recorrência de modelos constantes nas obras de
arte, na literatura, etc.
O objetivo da crítica estruturalista é buscar apreender uma espécie de sis­
tema de sistemas, como em Barthes, que situa a estrutura não como ideal, mas
como abrangente. Daí a preocupação com a universalidade submetida a uma
verdade de razão (e não de fato), como está assumida por Lévi-Strauss quan­
do procura formular mecanismos universais de pensamnto - os mitos se remete­
riam a uma matriz de significações, e cada matriz se remeteria, como significa­
ção última, a algo universal do espírito humano. - "os mitos se pensam nos ho­
mens", e também a linguagem se fala nos homens.
A confrontação entre pensamento estrutural e pensamento serial, e o que
um modo de pensar pode indicar ao outro, permite que se chegue a uma noção
de estrutura como ausência, falta. No pensamento serial não existe a suposição
de uma estrutura geral que gere um pensamento particular - todo ato de fala,
por ex., pode se constituir numa discussão sobre a língua, é uma produção no­
va e não uma descoberta (vide concepções como o grupo musical de Stockhau­
sen, a "action painting", "assemblage" discursiva). P. Boulez (1966 - Relevés d'ap­
prenti) diz que o pensamento serial cria de cada vez os objetos de que necessi­
ta e a forma necessária para organizá-los. Enquanto o pensamento estrutural
trabalha na direção de um reconhecimento dos "universais", o pensamento se­
rial destrói qualquer pseudo-universal para reconhecer o contingente histórico.
Pode-se pensar o primeiro como formulador de hipóteses que o segundo procu­
ra refutar, criando novos códigos e novas estruturas (como duas faces de uma
dialética: a constante e o processo). É como se cada a estrutura pensada, a ca­
da apreensão, correspondesse uma desmontagem. A não ser que se pensasse a
estrutura como ausente da consciência: L. Strauss faz uma indicação para o in­
consciente, mas é, Lacan que, como psicanalista, estuda a questão, cuja abran­
g!ncia vai muito além da psicanálise. Para Lacan, o homem é capturado, em
seu ser, pela ordem simbólica, pela insistência da cadeia significante, e a subjeti­
vidade não se origina de uma referência ao real, mas de um traço significante.

22
Perversão - traços e estrutura
A lógica referida, em seu artigo sobre o tempo lógico, a um mecanismo de pen­
samento comum a todos, faz parte do que denominou Outro - uma estrutura
de determinação que determina o sujeito. O inconsciente é definido como .Ü is­
curso do Outro. O inconsciente é estruturado como uma linguagem: além da
estrutura binária (como na lingufstica de Saussure, e Jakobson, e na álgebra
de Boole, aplicada aos computadores e à teoria dos jogos), como no "fort-da"
assinalado por Freud enquanto par significante que exprime presença e ausên­
cia, Lacan considera a ausência como constitutiva, constituindo-se sobre ela a
cadeia significante. Trata-se de uma hiância constitutiva: de um lado, um isso
real, e, de outro, o ser articulado ao signifocante - WO ES WAR, SOLL ICH
WERDEN. Esse significante é um traço e tem estatuto ontológico, dentro de
uma estrutura discursiva.

2- A psicandlise e a estrutura clfnica


A estrutura clínica em psicanálise, apesar da herança nosográfica da psi­
quiatria, deve ser depreendida da transferência, dentro do dispositivo analítico.
Desde Freud, e mantida por Lacan, a classificação das estruturas clfnicas inclui
três estruturas diferenciadas: a psicose, a perversao e a neurose. Para Freud,
segundo comentário de Lacan no Seminário sobre "Os 4 conceitos fundamen­
tais da psicanálise", a perversao seria uma estrutura radical na operaçao de se­
xualização, que arranca o sujeito de um registro instintual, natural, e o insere
como sujeito no registro humano da sexualidade. A estrutura perversa é a que
Freud denominou "perverso polimorfo", para referir-se à articulação parcial das
pulsOes; uma fixação nessa estrutura explicaria o perverso na clínica - a fantasia
perversa (negativo da neurose), o gozo perverso, seriam traços de perversão.
Para Freud, na perversao, um prazer sexual seria obtido através de des­
vios ou do objeto sexual ou das condições extrínsecas ou da zona erógena. Se­
riam desvios em relaçao a "uma parte da chamada constituição normal", que
só podem ser assim considerados a posteriori. A idéia de "normal" vai ser cons­
truída, Freud formula mais adiante, a partir do Édipo e do investimento priori­
tário em objetos genitalizados - só desta posiçao será possível interpretar a posi­
çao perversa como um desvio. A genitalidade é um registro de diferença sexual,
de dois sexos diferenciados simbólicamente por um significante - o Falo - apre­
endido num contexto imaginário - o falo. O perverso, nesse contexto, afirma o
falo e desmente a castraçao já afirmada (Verleugnung) como castração da mãe,
da mulher. O protótipo desta montagem perversa é o fetichismo, em que o obje­
to fetiche emerge no lugar do objeto arrancado pela castração - o objeto fetiche
sendo um véu em relação ao vazio de um objeto que falta. Esta montagem fi­
xa o sujeito perverso numa certeza que oculta uma verdade; por isso, o analis­
ta só poderá ser colocado num lugar de cúmplice, de testemunha, de platéia
ou de mestre desafiado, diferentemente do lugar de sujeito-suposto-saber.

3 - Um traço de perversão - a palavra como fetiche


A ficçao, na literatura, pode elucidar algo sobre a perversao. Regido pe­
las leis da linguagem, da escritura, por uma ordenaçao do Outro, um autor dia­
letiza esse seu assujeitamento com uma liberdade que ele mesmo só se permi­
te encobrindo-a
· com um véu.
No artigo "Jeneusse de Gide ou la lettre et /e désir" (1958), Lacan toma o
que se revela no instante em que Madeleine queima a sua correspondência com

23
Nelisa S. Pinheiro

Gide e este reconhece tal correspondência como legado único deixado a ela co­
mo testemunha - e ri, revelançlo com o riso, a natureza de fetiche, para ele, das
cartas - uma revelação das "lettres", da "lettre" e da "litérature" enquanto fetiche,
ou seja, aquilo que toma um lugar de onde o desejo se retirou.
"Jeneusse de Gide" é o título de um livro biográfico sobre Gide, escrito
por Jean Delay, um psiquiatra, que recebera do próprio Gide vasta documenta­
ção para escrevê-lo. Gide se interessava pela psicanálise e tentara mesmo uma
análise com a polonesa Mrne, Sokolnicka. Havia na atitude tornada para com
seu biógrafo, já um endereçamento a um analista. Endereçou-lhe toda sua cor­
respondência, que cuidadosamente guardara, exceto a correspondência com
Madeleine, sua prima e, depois, esposa. E este biógrafo se deu o direito de po­
der revelar o que lhe pareceu a intrusão, na obra, da vida privada do autor - o
direito de retirar o véu que a obra literária mantém sobre o desejo do sujeito
que a produz.
Lacan adverte contra o desvelamento: "o estilo é o objeto", lembra ele a
partir de Buffoo. Continua: "há um traço presente em toda verdade: ela se reve­
la numa estrutura de ficçao". Trata-se também em Gide, de urna relação do su­
jeito com a "lettre", de urna máscara posta no lugar de um desejo confinado à
clandestinidade. Para Gide, era insistente a necessidade de representar, de man­
ter uma discussão permanente sobre o ser e o parecer. Também em relação a
Madeleine emergia uma máscara - a do protetor, do amor cortês. A morte e
suas máscaras se sucedem nos seus escritos. Um certo "ideal do anjo", mascaran­
do a sexualidade, é associado à sua mãe, e talvez, como um ideal do eu, tenha
feito seu desejo ficar confinado.à clandestinidade.
Apesar de um casamento sem sexo, Madeleine reagiu de modo enciuma­
do diante da homossexualidade do marido. Apesar da perda das cartas, da sua
"criança" como ele as chamara, de um pedaço de sua imortalidae, Gide riu. Seu
riso foi uma resposta sobre o estatuto das cartas: elas haviam tomado, como fe­
tiche, o lugar de onde o desejo se retirou, e o riso acolhia a subjetividade pega
de surpresa.

Trabalho escrito a p<Irtir de uma apresentação no Seminário sobre Perversão, realiza­


do pelo Corte Freudiano em maio-junho 1 990.

24
Antonio Godino Cabas

DE SADE A MASOCH: UM PASSO

Que Sade soe encontrar sua cara metade em Masoch, eis uma tolice larga­
mente reprisada pela literatura analftlca. Que essa idéia é um mau sonho antes
do que um verdadeiro conceito é o que se depreende do ensino de Lacan. É o
que pretendemos tratar aqui para estabelecer a distancia que separa a obra de
Sade ("Justine ou os infortúnios da virtude") da obra de Masoch ("A vênus das
peles").

Jrl - O passo nas letras.


Em princípio, direi que esse passo mede a distancia que separa a ética li­
bertina da ética romântica.
O Marquês de Sade é um autor de seu tempo. Seus escritos fazem eco
ao debate das luzes. Um debate que dá o tom do século. O tema é a liberdade
e o direito sem limites da razao levados até suas últimas consequências. Na sub­
versao iluminista, a crença em um ser-de-puro-saber é substituída pela desco­
berta de um outro saber: a metafísica cede lugar à física. E quem melhor ilustra
este movimento de báscula é o próprio Sade (1). Ao interrogar a natureza e for­
çá-la a dar resposta ao enigma da experiência humana, Sade a eleva ao estatu­
to de um grande Outro. Transformada em uma sorte de biblioteca universal,
ela surge na ética sadiana como o grande livro do século das luzes. Será pois o
grande magistrado encarregado de ministrar o ensino das leis naturais e, correla­
tivamente, o direito ao usufruto (2).
Um século separa o iluminismo do romanticismo. Um século separa Sa­
de de Masoch. Trata-se pois de um passo. Um passo de cem anos nas 'profun­
dezas do gosto' distinguindo a ética libertina da tragédia romântica. Com efei­
to, o romanticismo faz a retomada dos temas libertinos, sim, mas sob o signo
da tragédia após que a lâmina cortante da verdade fizera seu curso de morte
sob o nome de 'lâmina de Guillot'. Em outras palavras, os românticos sabem
que há um ponto de treva nas luzes da razao e que a liberdade do homem en­
contra um limite no seu horizonte: é o gozo real do Outro.
Leopold Von Sacher-Masoch é fiel a seu tempo. Os ventos da razao com
seu sopro de liberdade dão lugar às tempestades que submetem o homem aos
caprichos do destino. O homem de Masoch parece assim um joguete de suas
paixões, um ser sujeito às leis da natureza que nao mais o libertam. E embora
isso pareça, é isso que nao é. Ainda assim, a chama libertina permanece - mais
do que nunca - acesa. O retrato que Masoch esboça do seu personagem - Seve­
rino - ajoelhado aos pés da natureza nao esconde nem a mordaz ironia e nem
o tom de caricatura quando pinta essa mesma natureza com os traços de uma
mulher apaixonada, uma mulher chamada Wanda, uma mulher que cede seu
corpo para fazer-se o instrumento de uma vontade de gozo que não lhe pertence.
O século que separa Sade de Masoch nao se mede pois pelo tempo e sim
pelo estilo. Se com Sade ainda é possível crer que 'o estilo é o homem', com
Masoch a retificaçao do aforismo boufonesco se impõe: "o estilo é o objeto". (3)
FAW, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1 989 p.25-27
Antonio Godino Cabas
2P - Sade ou Masoch.

Mesmo assim há algo que aproxima o autor libertino do escritor românti­


co e é o fato que ambos desdobram um fantasma literário. Trata-se de uma fic­
ção - logo: de um ponto de queda da verdade - onde a visada do gozo encontra
seu suporte na mulher. O tema é a mulher em tanto instrumento de um gozo
cuja razão e cujo objeto estão fora dela. Excêntrica, ela só ingressa no fantas­
ma a título de ferramenta ainda que para isso deva pagar com sua própria divi­
são subjetiva.
Justine e seus mestres, Wanda e seu servo fazem o contraponto de uma
cena onde a mulher não é protagonista senao em uma perspectiva de aparen­
cias. É uma perspectiva para tolos já que tanto Sade quando Masoch só têm
em mira um bem: a educaçao das mulheres. Demonstram com isso uma rara
vocaçao para regrar o Outro sexo.
Mas daqui em diante os caminhos se bifurcam e se separam de maneira
irremediável. sao duas sendas que divergem na selva do fantasma.
Única na sua tortura, Justine encontra na multiplicidade dos autores de
seu tormento um agente anônimo. O verdadeiro protagonista do fantasma sadia­
no é a vontade sem limites de um mestre cuja identidade se apaga sob o peso
do número em uma série de repetições que apenas se deixam entrever um sig­
no do objeto (4). Única na sua mestria de faz de COJ?ta, Wanda encontra - em
contrapartida - na singularidade de seu servo o verdadeiro agente de seu sofri­
mento. Também na experiência dela o protagonista é uma vontade de gozo cujo
alcance depende do ponto de mira de seu adorador e escravo.
Assim, ali onde Sade multiplica para obter sua série, Masoch reduz à uni­
dade para obter uma única presença. E eis que ele obtém um homem que se
faz servo, escravo e mártir mas para erguer-se no dejeto de um fantasma onde
ele encarna de maneira literal nada menos que a função da causa e o estatuto
do objeto.
Neste sentido Masoch vai além de Sade. Enquanto o torturador sadiano
não é mais do que um humilde funcionário posto para agenciar a divisao no
Outro, o servo de Sacher-Masoch é o derradeiro agente e o destinatário do go­
zo. A ele, e só a ele, cabe o usufruto da divisão no Outro como uma satisfaçao
indizível que lhe deixa sua marca na própria carne.
Em suma e posto que é possível dizer que Sade nos dá a verdade de Kant,
adendaremos que Masoch nos entrega a verdade da montagem sadiana:
$ <> a.
O passo •que separa Sade de Masoch não é tao somente um passo históri­
co. Ele é - sobretudo - lógico, coisa que se mede não apenas em termos de tem­
po ou de estilo como pelo destino efetivo desse gozo. Afinal, o verdadeiro per­
verso - se posso assim dizer - é o masoquista tão longe quanto a perversão es­
tá atrelada, sempre segundo Freud, a um fantasma cujo enunciado quer que
uma criança seja espancada.

3!! - Masoch e seu texto.


Vindo ao mundo das letras cem anos após Sade, Masoch nao é nem seu
discípulo e nem seu herdeiro. Sua escola não completa e nem retifica o ensino
sadiano, haja visto que sua obra nao é feita do eco da dor das vftimas do Mar­
quês. Sua volúpia de sofrimento nao é um apelo como tampouco a resposta a
uma vontade no Outro. Em suma, Masoch nao é o complemento de Sade.

26
De Sade a Masoch: Um passo
Em Masoch o gozo se disfarça. Tanto que a princípio tudo leva a crer que
se trata do encontro amoroso de um homem com uma mulher. Porém, os véus
que encobrem o mistério caem por terra muito cedo para dar lugar à revelação
que o gozo do Um não está relacionado com o desejo do Outro. Assim, seu per­
sonagem - Severino - não encontra o Outro sexo a não ser para fazer dele uma
estátua de suprema beleza esculpida em um bloco de pedra. Transformada em
mármore ao término da operação masoquista, Wanda não é mais do que a re­
presentação de um fetiche forrado de peles. Que é isso senão uma metáfora
muito bem feita para dizer do rechaço ao desejo do Outro?
. Porém, Masoch vai mais longe - já o dissemos - posto que não é mais da
liberdade de gozo do Outro, postulada por Sade, que sua obra trata. É mais va­
le de sua petrificação, de sua redução ao estatuto de um puro instrumento ao
serviço de uma vontade cujo verdadeiro mestre e senhor é o destinatário do castigo.
Eis porque Masoch pode dizer: "o gozo é a deusa". Enquanto isso, Wan­
da não é mais do que uma vítima, tão infortunada na sua virtude quanto o fo­
ra Justine na sua desgraça.

49 Conclusão.
-

A distância que separa o sadismo do masoquismo não é superior a um


passo. E ainda assim esse passo basta para excluir toda relação entre um e ou­
tro. Nada há na estrutura que exija o encontro do sádico com o masoquista, a
não ser uma hipótese - melhor: um devaneio - surgida das entranhas de um fan­
tasma. A rigor o encontro não é de estrutura. Isso não impede a contingência
de tecer seus fios segundo uma lógica do puro acidente.
No mais, a crença que Sade encontra sua cara metade em Masoch e, assim
sendo, sua máxima satisfação e derradeira felicidade não é mais do que um sonho.
. Um sonho destinado a sustentar a crença que há um lugar (ao menos um)
onde a proporção sexual é possível.
. Um sonho destinado a alimentar a suposição que o gozo pode encontrar seu
complemento tão longe quanto for possível crer que o gozo sádico se comple­
menta na satisfação masoquista.
. Um sonho destinado a manter a esperança que há um mercado onde a mágica
do comércio seria capaz de tornar possível o intercâmbio dos gozos.
. Um sonho destinado, enfim, a apagar o estatuto do objeto na experiência fan­
tasmática e a vontade de gozo no ato perverso, em benefício de uma ambígua
- porém ecumênica - intersubjetividade.
·
Para concluir, direi que eis porque o passo sádico não se coordena com
o passo masoquista ou - o que vem a dar na mesma - não há Sade com Masoch.

Curitiba, Junho de 1990.

BIBLIOGRAFIA

* J LACAN - Kant avec Sade. Écrits, pag 765


* SADE - Justine ou os infortúnios da virtude.
* SACHER-MASOCH, L - A vênus das peles
1. S PEREZ - "Sade e a fJJ osofia no toucador". In: Letras da Coisa, N° 3, pag 53, Ed. Coisa Freudiana,
Curitiba, 1986
2. A GODINHO CABAS - "De Kant a Lacan: um passo". In: Letras da Coisa N° 8, pag pags 58!59
3. J LACAN - "Jeunesse de Gide ... ". É crits, pag 740
4. J LACAN - Le Seminaire, Livre XI, Conf XVII, §4, pag 205

27
Cois a Freudiana

Anna Alice W. Pietrnza, Antonio Godino Cabas, Fabio Thá,


Gilberto de Araújo, Gilberto Rudeck da Fonseca, Juan Fernando Peiía,
Norma Santamaria de Angulo, Silvina Perez, Zaira Belan

LEOPOLD VON SACHER-MASOCH


E O DOCE TERROR DE UMA ESTRANHA DEMANDA

Leopold von Sacher-Masoch é o autor de uma obra que lhe valeu o direi­
to de ceder seu nome a um gozo inefável (1). O propósito do presente trabalho
é de estabelecer algumas notas acerca do fantasma de Masoch, um fantasma li­
terário que desdobra a versao do sujeito e a petrificaçao do desejo, quando pre­
valece um gozo cuja nota é o doce terror de uma demanda que faz da mulher
a carne de Deus.

1 - A paixão do servo

Sem dúvida A Vênus das Peles é o paradigma desse fantasma. Sobretu­


do se considerarmos o fato de que o personagem feminino cede - por sua vez -
o nome a uma jovem, Aurore Rumelin, que o adota ao aproximar-se de Leo­
pold e o toma definitivamente ao tornar-se sua mulher e companheira (2). Cu­
rioso efeito, onde a ficçao mostra sua eficácia selando o êxito de uma máscara:
Wanda de Sacher-Masoch.
A narrativa se situa no interior do diálogo de dois homens sobre o tema
da servidao passional. A novela se inicia com o sonho de um deles - aquele que
justamente nao tem nome . É um sonho composto pelo diálogo tenso e insinuan­
-

te da Vênus das Peles, uma mulher bela, voluptuosa e cruel, em suma, a deu­
sa do amor em pessoa e o "eu" do sonhante, um homem culto, devotado ao cul­
to da dama.
Ao contar seu sonho ao amigo cujo nome é nada menos que Severino, ele
obtém a modo de resposta as confidências deste. A maior parte da novela é ocu­
pada pelas confissões que, sob forma de manuscrito, ele confia ao amigo sonha­
dor. E a história de sua relação com Wanda Dunajew, uma exposição vivida
do fantasma masoquista.
O relato desse caso de amor se desenvolve em três tempos:
O primeiro é a exposição da proposição fantasmática. Severino se esfor­
ça em convencer Wanda de encarnar a deusa inacessível de seus sonhos à qual
entregara seu destino dando-se como escravo. Tudo aqui lembra o tratado pa­
ra a educação das mulheres. Para isso Severino não poupa nem suas lembran­
ças de infância e nem suas referências filosóficas, desfilando o exemplo dos es­
cravos que sustentavam, na antiguidade, os prazeres de seus mestres até a sole­
ne agonia dos mártires cristaos na Roma Imperial.
O segundo é a demonstraçao. A experiência é levada a efeito sob a supos­
ta condução de Wanda que, a esta altura, parece ter aceito seu lugar de Vênus
do do adorador supra-sensual.
O terceiro é o desenlace que se precipita trágica e pateticamente. Apaixonada

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.28-31


Leopold von Sacher-Masoch

por um outro homem - um homem que semelha um mestre - Wanda deixa cair
as peles e submete o servo à derradeira provocação sob o chicote do Grego,
deixando-o amarrado e espancado a mercê de seu fantasma.
No fim, Severino que se julga curado conclui sua história com o enuncia­
do de uma moral: Quem se deixa chicotear merece ser chicoteado... A rosada
bruma de minha imaginação se dissipou e ninguém me fará tomar as monas sa­
gradas de Benarés (a mulher ideal) ou o galo de Platão (o homem despojado)
pela imagem de Deus.(3)

2 - Do masoquismo

Essa experiência identifica com tamanha precisão um modo de satisfaçé1o


já observado pela psiquiatria que Krafft-Ebbing dá a esse gozo o nome do escri­
tor fazendo surgir o masoquismo como entidade clínica (4).
O tipo clfnico consiste na submisão a uma pessoa do sexo oposto, chegao­
do aos limites do castigo físico. A casuística - predominantemente masculina -
revela que a pulsao sexual é responsável por uma busca de servidão que deixa
o sujeito incapaz de uma vida sexual. No entender de Krafft-Ebbing a impotên­
cia é o efeito da satisfação perversa que desvia o fim sexual.
Essa montagem se apóia na conjunção da dor com a servidão. A dor que
nasce da excitação que o apelo do Outro desperta desloca o impulso sexual pa­
ra um êxtase que invade o sujeito com luxúria. Por seu lado a servidão sexual,
um modo de sujeição presente em todo enamoramento, está relacionado com
a fraqueza do sujeito e a sobrestima passional do objeto.
O resultado é que a relação de um homem com uma mulher se reduz a
uma cena onde o cômico surge em estado puro, demonstrando como é verda­
deira a sentença que quer que do sublime ao ridículo não haja senão um passo.
Krafft-Ebbing encerra suas considerações postulando que o masoquismo é uma
derivação clínica do fetichismo e inscreve este desvio do fim sexual no campo
das perversões. (5)
Freud, que havia apontado a relação com o narcisismo, retoma a observa­
ção de Krafft-Ebbing para dizer que a servidão sexual integra as relações do ho­
mem com o Outro sexo toda vez que o tabu da mulher se faz presente. Mas ob­
serva também sua presença na homossexualidade sob uma condição: o masoquis­
ta é um homem. E o que demonstra a jovem homossexual ao identificar-se com
o homem no amor por uma mulher. (6)
O empuxo ao ideal impõe uma dimensl:lo de coisa assexuada (que Havel­
lock Ellis já identificara como "inversão estética"). Finalmente, a reserva do ma­
soquista repete o silêncio que reina nas perversões no que concerne ao gozo.
O silêncio da pulsão de morte torna forma de frase monótona aparentemente
irrelevante: bate-se numa criança. A análise de sua gramática revela que esse
gozo está em débito com a necessidade da Lei para por freio ao capricho do Outro.
Eis porque Lacan situa o masoquismo em um fantasma e nesse ponto que
é o objeto 'a' desde o qual o perverso interroga o Gozo do Outro.

3 - Do fantasma

Severino não busca nem castigo nem humilhações. Esse é o preço pago
com sua pessoa pelo resgate de um desejo preso à deusa. (7) Basta vê-lo retra­
tado pelo pintor alemão - seu semelhante - com o pé da Vênus sobre seu pesco­
ço, fixa,1o feito puro dejeto. É o riso cruel de Waoda e ele aos pés, reduzido a

29
Anna Alice W. Pietruza et alii

menos do que nada. Esse quadro nao tem sentido senao no campo escópico.
Só o olhar pode dar lastro a uma cena que beira a derrisao.
Essa máscara, esse duplo, esse invólucro é a forma separada que o sujei­
to dá de si para encontrar - por meio da ficçao - uma certa sobrevalia. O maso­
quista a encontra ao situar-se precisamente como dejeto. Ocorre que essa iden­
tificaçao ao objeto a está ligada à captaçao do gozo. Eis sua economia.
Deste modo Severino, um sujeito moroso, afetado pela "agonia solene"
diante das mulheres, parece erguer-se diante de Wanda em desejante. Mas es­
sa mudança é o resíduo de uma subtraçao simbólica. Confrontado à mulher ele
nao pode senao reproduzir a abnegaçao de seu gozo e o envolvimento de seu
amor. Do desejo não resta senão a incidência negativa para dar forma ao ideal
de uma Deusa que impureza alguma poderia tocar. (8)
Trata-se do rechaço, do suspeito rechaço, do covarde rechaço do desejo.
E assim o masoquista vive em estado de pura esfera, recuando infinitamente o
desejo e obtendo uma dor - ela própria esperada - que o torne permitido.
Enfim, Masoch é o narrador da lógica da vida de Sade: "Agente do tor­
mento, sim, é no Outro que é rechaçada a vontade de gozo que o afeta." (9)
Demonstrador por essência, como todo perverso, o masoquita está em
condições de dar a verdade da empresa sádica ao identificar-se ao objeto. Ele
sabe que coisa busca e onde encontrá-la. Quanto à mulher, ele só quer que se
preste ao jogo.

4 - Do gozo

Dois sao os gozos que concernem à função sexual: o Fálico( <I> ) e o Ou­
tro (A). Diante disto Severino tenta tocar o gozo da mulher pois sabe o quan­
to ele não está mal transado(10)).
Ainda assim ele experimenta o limite da sua própria divisão. O gozo per­
manece impossível. Seu arranjo, mesmo evitando as perturbaçoes do desejo,
não é melhor sucedido.
Resta a dizer que esta estratégia cujo pré-requisito é de ter elevado uma
mulfler à dignidade da Deusa, lhe dá a aparência de estar imerso no Gozo mís­
tico. Afinal ele se dedica desde a infância ao culto dos mártires, e seus desejos
diante da Vênus são de uma profunda castidade. Eis que renuncia a tudo, se
despoja de toda razão e se doa ( 1 1). Eis que ele se faz servo do Outro e fica
louco pela falta que o significante de sua demanda lhe faz experimentar.
Mas como não faltaria se é o significante que não existe, posto que não
há A mulher? Nada há de místico nessa proposta em que ele se faz servo para
possuir a Deusa. Não há dialética do ser e do ter, mas colusão de um e outro.
Trata-se, mais vale, do culto da perversão no qual um homem adora uma deu­
sa de verdade, (ou seja: de carne e osso), para assujeitá-la até o limite e petrifi­
car essa carne. Trata-se de reduzir a Deusa a um pedaço de pedra. Não é que
a sua adoração se acende quanto mais se pareça ela com uma estátua de mármore?
Esse Deus ex-nihilo é certamente um fetiche mas não uma vontade que
possa dividf-lo. No fim, Masoch demonstra com Seu Severino que quando "o
homem quer A mulher, ele não a alcança senão fracassando no campo da per­
versão". ( 12)

5 - Conclusão

Há que dizer que é uma obra de pregador. Masoch não faz senão demons-

30
Leopold von Sacher-Masoch

trar o irrazoável desse anseio e o caráter devastador desse desregramento do


gozo. A Vênus de Masoch é uma Gradiva levada até o limite e o texto culmina
como o relato de uma verdadeira cura-tipo. Severino calça as botas após reen­
contrar o significante do pai cujo olhar o acopanha após a morte. Quanto ao
sujeito, há que dizer que a travessia do texto o mostra transformado: agora é
ele quem empunha o chicote para desespero das jovens camponesas de pele
de cordeiro.
Ainda assim, Severino se encontra com o libertino em mais do que um ponto:
- O ,gozo da deusa jamais se encontra com o que se esboça como gozo (i­
nefável, indizfvel, sem-nome) no sujeito.
- O acordo dos desejos não tem lugar: quando ele a quer cruel, a encon­
tra apaixonada; quando quer a servidão, ela o adverte "isso é loucura"; quando
quer a liberdade, ela o acorrenta.
- O acordo das vontades, o contrato ou pacto, não são senão assuntos do
Outro, nunca do sujeito.
Obra honesta nesse ponto, ela se vê obrigada a concluir que diante da au­
Sêl;lcia do desejo não há outro recurso que a lei moral, isto é, a lei kantiana. É
a retomada romântica dos temas libertinos, com um desenlace imprevisto. Mes­
mo porque ela se inscreve de cheio nos pórticos da ética cristã como a confissão
de uma renúncia à fé pagã e como o relato de uma reconciliação. No fim, Seve­
rino afirma que não há outro Deus a não ser o Deus, e que a sujeição ao gozo
do Outro, seja pelo culto ao homem de Platão ou às mulheres de Schopenhauer,
é desatino. '
Após tentar em vão comprazer uma deusa de carne e osso, Severino que
havia dito não ao desejo, diz não a esse gozo.

REFER�NCIAS BIBI1IOGRÁFICAS

1. Lacan, ]. Fonctions de la psychanalyse en criminologie, in Écrits, Paris, Ed. du Seuil, 1966. pag. 148
2. Deleuze, G. Apresentação de Sacher-Masoch, Rio de Janeiro, Taurus Editora, 1983, pag. 9
3. Sacher-Masoch, L. A Vênus das Peles, Rio de Janeiro, Taurus Editora, 1983, pag. 301
4. Krafft-Ebbing, R. Las psicopatias sexuales, Barcelona, Ed. Sagitario, 1970, capítulo 12: masoquismo.
5. Krafft-Ebbing, R. Ibidem
6. Freud, S. Psicogenesis de un caso de homossexualidad femenina, in Obras Completas vol. li, Madrid,
Ed. Biblioteca Nueva, 1968, pag. 1004 .
7. Lacan, J. Remarque sur )e rapport de Daniel Lagache, in Écrits, Paris, Ed. du Seuil, 1966, pag. 683
8. Lacan, ]. Jeunesse de Gide ou la lettre et le désir, in crits, Paris, Ed. du Seuil, 1966, pag. 754
É
9. Lacan, J. Kant avec Sade, in Écrits, Paris, Ed. du Seuil, 1966, pag. 778
10. Lacan, J. Le seminaire, Livre XX Encore, Paris, Ed. du Seuil, 1975, pag. 56
11. Dunnand, A. Commentaire de Hadewijch (!e poême XVIII) in Ornicar? n2 47, Paris, Navarin Editeur,
1988, pag. 22
12. Lacan, J. Télévision, Paris, Ed. du Seuil, 1974, pag. 60

31
École de la Cause freudienne

G. Clastres, H. De/tombe, M.-L. Mayer, A. Tardis

FETICHISMO E FOBIA

Tradução de Fábio Thá

Associar em um título fetichismo e fobia é, aparentemente, apenas, justa­


por duas estruturas clínicas cuidadosamente distingüidas há muito tempo na psi­
canálise, notadamente por Freud, que situou, sem discussao, a fobia no campo
das neuroses, e o fetichismo, ao qual ele consagrou vários estudos, no das perversões.
É a abordagem estrutural dos fenômenos inconscientes, introduzida por
Jacques Lacan no discurso analítico, que nos permitirá, ao menos o esperamos,
justificar a pertinência de nossa escolha. Mas, antes de ir adiante, convém, nes­
ta introduçao, relembrar alguns pontos para situar o problema.
Freud descobriu, a partir da análise de sujeitos adultos, o que se chamou
a perversao polimorfa da criança, ou seja, sua aptidao para gozar pelo investi­
mento de tal ou qual zona erógena de seu corpo próprio. Este polimorfismo in­
dica, de fato, uma disposiçao geral à perversao que subsiste em estado de fan­
tasma no inconsciente do neurótico, mas, que será posto em ato na estrutura
perversa.
Assim, Freud refere, partindo da clínica, uma distribuiçao tópica que situa
a neurose como o negativo da perversao: o neurótico sonha com a perversao,
na falta de poder chegar a ela. Ele sonha com um gozo ao qual o perverso se
consagra para o Outro. Notemos que este lugar do neurótico o confronta à dia­
lética do desejo nas formas que são as da sua estrutura: desejo prevenido, im­
possível ou insatisfeito - enquanto que o ato, para o sujeito perverso, está orien­
tado, polarizado pelo gozo.
Convém lembrar, também, que, em 1927, Freud produziu um termo que
lhe pareceu dar conta do mecanismo inconsciente próprio à perversao, justa­
mente em seu artigo sobre o fetichismo: Verleugnung. Para este termo, traduzi­
do clássicamente em francês por déni (recusa), Lacan propôs, de início, désaveu
(repúdio), em seguida, démenti(desmentido), que lhe pareceu, finalmente, co­
mo o termo francês que restitui, da melhor maneira, o sentido freudiano.
Notemos que este termo introduz um modo de negaçao particular, distin­
to daquele pelo qual o inconsciente se afirma die Verneinung, a denegaçao -
-

e distinto, também, do modo de negação absoluta própria à psicose die Ver­ -

werfung, a foraclusão.
Notemos, enfim, que o problema clínico que nos propomos examinar foi
abordado por Freud em seu último artigo, datado de 1937: "Die Ichspaltung im
Abwehrvorgang", "A divisão do eu no processo de defesa". Com efeito, para ilus­
trar "essa rasgadura no eu que não sarará jamais", Freud toma o exemplo de
uma criança tornada fetichista na qual subsiste uma fobia do toque. Assim, es­
ta falha no eu que Freud constata, falha bordeada, de um lado, por uma perver­
sao e, de outro, por um sintoma fóbico, nos introduz à construção por Lacan da
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-ilez 1989 p.32-36
Fetichismo e fobia

topologia do sujeito do inconsciente. Esta topologia dá conta da coexistência,


constatada por Freud, no caso que lhe serve de exemplo.

Clfnica do objeto: o sintoma e o fetiche

A metáfora do brasão convém à fobia, mas, é atrás do disfarce do véu


que a perversão se mascara. Neste brasão que apresenta ao Outro, o fóbico ins­
creve a imagem de seu medo. Aqui, um cavalo empinado, lá, cinco lobos empo­
leirados numa árvore centenária, acolá, uma torre, mas, também pássaros, ain­
da, uma serpente com mandíbulas de dragão. Não importa que o objeto da re­
alidade do mundo pode servir para escrever as armaduras atrás das quais o su­
jeito se esconde, mas, que o representam; não importa qual objeto, pois, este
objeto é a linguagem que o fornece. Também, o dia e a noite podem ser eleva­
dos à categoria de fobia, ao além da realidade fenomenal que representam.
Assim, o objeto fóbico deve ser destacado de sua realidade imaginária e
lido como um significante entre outros, suscetível de obedecer às leis da combi­
nação e de substituição que regem o funcionamento da cadeia significante.
Por sua função de signo, ele indica ao sujeito os limites nos quais ele crê
situar seu ser, lhe significando seu medo e prevenindo sua relação indizível com
a angústia. Assim, os lobos da fobia do Homem dos Lobos pOem em forma sig­
nificante a angústia que o subverteu no traumatismo, como a análise de Freud
o demonstra a posteriori.
·
Se o cavalo de Hans é o objeto imaginário de seu medo, é ante s de tudo,
o significante do qual ele pode falar, que associa a outros, e que faz passar por
toda uma série de permutaçOes; ele é o significante de seu sintoma, "sua bestei­
ra", como ele próprio diz, alegremente.
o fetiche, porém, não tem este valor. o sujeito o considera como uma sim­
ples anomalia da qual ele se felicita pelas facilidades que traz à sua vida amoro­
sa, como Freud nos lembra. Assim, aparece uma primeira oposição simples com
o objeto da fobia: um limita e inibe, enquanto que o outro traz "facilidades";
um produz repulsa, horror, angústia, o outro, ao contrário, conduz à satisfação.
Se a presença de uma afeta o sujeito dividindo-o, com o outro, ao contrário, o
sujeito parece se juntar.
Assim, dois movimentos opostos em direção e efeito parecem se desenhar
na relação ao objeto, conforme seja fóbico ou fetiche. Inibição que pode ir até
a paralisia, num caso; sedução que tem efeito de estimulação, no outro. O en­
contro com o objeto fóbico é temido pelo sujeito, mesmo se ele lhe traça um
limite, enquanto que é desejado e procurado no caso do fetichista. Ao impossí­
vel de suportar que impOe ao sujeito o objeto da fobia, se opOe, então, o neces­
sário à satisfação do fetiche; ao desprazer que um produz, responde o prazer
que o outro engendra.
São essas todas as suas oposiçOes? Acrescentemos ainda a seguinte: se o
objeto fóbico é retirado da realidade circundante, porquanto esta realidade es­
tá ela própria estruturada pelo significante sem que o sujeito nada saiba disso,
o objeto fetiche, como objeto da perversão, é geralmente escolhido, exclusiva­
mente, a partir de sua relação significante à imagem do corpo de Outro. Pode
ser uma parte do próprio corpo: lembremos o exemplo apresentado por Freud
em seu artigo sobre o fetichismo do brilho do nariz, mas, também, o pé, os ca­
belos, etc... Pode ser, também, o que recobre o corpo, em parte, ou na totalida­
de - sapatos, meias, vestido, peça de lingerie - e, ainda, um instrumento utiliza­
do para a higiene do corpo tendo produzido no sujeito um gozo ao qual ele per-

33
Guy Clastres et alii

manece fixado e para o qual ele desvia o instrumento de seu uso.


Esses traços do fetiche, Lacan os resume da seguinte forma: "Trata-se de
um objeto exclusivo, tanto mais exclusivo e tanto mais perfeitamente satisfató­
rio por ser inanimado; como objeto, ele está ao alcance do desejo do sujeito e,
como tal, não pode decepcioná-lo". Se o objeto fóbico toma um valor significan­
te, o fetiche é símbolo. Com efeito, este objeto inanimado e insignificante preen­
che a função simbólica de um objeto que falta: o falo materno. É o fantasma
da mãe fálica que sustenta a relação satisfatória ao objeto fetiche, que esta, aí,
somente, para simbolizar este falo.

Ofalo e o complexo de castração

A psicanálise, ao além da clínica da fobia e do fetichismo, articula os fenô­


menos à função do falo na estrutura do complexo de castração, tal qual foi des­
coberto por Freud. O fetiche é substituto do pênis que falta à mãe; como obje­
to, ele se faz suporte do fantasma da mãe fálica. "O membro falta, eis uma coi­
sa inquietante e insuportável; o fetichismo do pé e dos sapatos femininos consti­
tui um símbolo do Ersatz do membro adorado dos tempos da infância e desde
então lembrado." (Freud, "Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci").
O que falta à mãe, o que falta a uma mulher simboliza o que pode ser
perdido, o que pode faltar ao ser, ou seja, o que pode faltar à sua satisfação.
O falo ocupa, então, a função do significante da falta-a-ser, segundo a definição
que Lacan dá. Ele é o significante da perda, desta perda que o sujeito sofre pe­
Ja divisão do significante, de dever se fazer representar por um significante pa­
ra um outro. Ele é, para o falanteser, em seu imaginário, o efeito da intrusão
do significante: em outras palavras, é o real do significante que engendra, no
imaginário do animal humano, esta referência simbólica ao falo, ao falo como
significante da vida, mas, também, significante do gozo, uma vez que o efeito
do significante é de introduzir nele o corte.
É esta função do falo simbólico � na estrutura que dá conta da descober­
ta por Freud do complexo de castração, e é, somente, o complexo de castração
que pode explicar as particularidades clínicas das respostas do sujeito na fobia
e no fetichismo. O complexo de castração é estrutural do sujeito: esta frase de
Lacan interpreta a descoberta que Freud faz em seu artigo já citado: "A divisão
do eu".
Sigamos, então, em que ele consiste, segundo Lacan: se, no simbólico, a
interdição do gozo implica num sacrifício do qual o falo é o significante, é no
imaginário que este sacrifico vai se jogar. É pelo deslocamento desta negativa­
ção sobre a imagem do pênis (o falo imaginário) que se opera a exclusão desta
parte na imagem especular, produzindo uma falta constitutiva, "protótipo para
o mundo dos objetos". -<p faz incidir sua marca sobre o objeto: é nessa junção
que se situa a problemática neurótica da fobia, e a perversa, do fetichismo. É
esta marca da castração no imaginário que representa, para suprí-la, o objeto
fóbico, por uma lado, e o fetiche, por outro, mas, de maneira diferente que, so­
mente, a abordagem estrutural nos permite precisar.

O objeto metonímico e a falha do sujeito

O fetiche é este objeto metonimicamente eleito como substituto do falo


que falta à mãe e que é posto em posição de símbolo do -<p da castração, que
ele nega ao mesmo tempo. Se a forma do desejo feminino se escreve /ft.. (� ),

34
Fetichismo e fobia

materna no qual se pode ler a nostalgia do falo imaginário (penisneid), o fetiche


simboliza este <p neste objeto irrisório que, negando o defeito fálico, visa com­
pletar o Outro suprindo sua falha. Ele garante, entao, para o sujeito, seu aces­
so ao gozo sexual sem sofrer o risco da castraçao. A cena de seu fantasma se
encontra posta em ato pela via deste objeto cuja funçao é recuperar o falo ima­
ginário, quer dizer, velar a falta a designando.
Assim, nos é necessário, com Freud, insistir sobre uma clivagem presente
na constituiçao do fetiche, que procede por um julgamento duplo, de afirmaçao
e de negaçao, que poderíamos traduzir assim:
1) é verdadeiro que a mulher nao tem falo ( <p )
-

2) nao é verdadeiro que ele falte, o fetiche o testemunha e me protege


da angústia que poderia surgir face a esta hiância a ( <p ).
E para significar este duplo julgamento, que nao é a denegaçao, que Freud
propôs o termo de Verleugnung, desmentido, que especifica a forma do desejo
perverso.
O sujeito fóbico, face ao defeito fático encontrado no Outro, eleva a mura­
lha de seu significante de seu objeto, que traça o limite atrás do qual ele se
mantém. Mas, olhando mais de perto, esta relação ao significante na fobia não
é tao estável quanto parece, coisa que o caso do pequeno Hans nos faz pressen­
tir. No jogo de engano entre sua mãe e ele ao redor do falo imaginário, Hans
manifesta, diante da calcinha materna, um interesse momentâneo que nos indi­
ca uma tentativa de produzir um fetiche, ou seja, de franquear o limite de seu
sintoma, apoiando-se num objeto que faria símbolo do falo que falta.
O sintoma na fobia é, com efeito, menos estável q\le na obsessao ou na
histeria. Ele está aberto a outras transformações e a clfnica nos ensina que uma
resposta obsessiva pode ser a resposta à questão aberta pela fobia, como mani­
festa a neurose infantil do Homem dos Lobos; a fobia pode ser, também, a por­
ta de entrada numa perversão.
Assim, Lacan interpretou o função do objeto fóbico como a de um signifi­
cante que serve para tudo e situou a fobia na estrutura como uma encruzilha­
da, ou seja, como uma placa giratória. A passagem à perversão, como mostra
a clfnica, se produz quando o objeto fóbico se transforma em fetiche.

Fetichização do objeto fóbico

A transmutação do objeto fóbico em fetiche mostra esse deslocamento


na estrutura, que vai do sintoma ao fantasma, pela ênfase posta sobre o gozo,
a partir de um novo valor dado ao objeto; há com efeito, uma virada desta fun­
çao do significante fóbico, permutável numa combinatória múltipla, à fixidez
de um objeto que faz parada, que faz arrimo na relação do sujeito à cadeia sig­
nificante.
Reenviamos o leitor a uma excelente observaçao clínica em Scilicet I "Fc­
-

tichização de um objeto fóbico" -, que mostra a mudança de estatuto de u!ll ob­


jeto, no caso um botão de vestimenta, segundo ele seja um ou múltiplo. Unico,
ele suscita malestar e angústia, múltiplo, torna-se objeto necessário à consuma­
ção da satisfação, segundo a estrutura do fantasma.
A análise do caso mostra que o sujeito, criança, tinha ocupado, para sua
mãe, o lugar de um fetiche, ou seja, o do objeto a do fantasma, lhe dando, as­
sim, o falo perdido; bem entendido, é uma carência paterna inscrita na história
que o havia abandonado a este lugar, sem cumprir com seu ofício de separuçllo.
B do real que lhe volta a questão da castração, "a postcriori" de uma intcrvcn-

35
Guy Clastres et alii

çao cirúrgica (apendicectomia), e, a partir deste corte no real, se instala uma fo­
bia do botao. Em suma, é o encontro com o real que despertou para a proble­
mática do complexo da castração, mas, de modo particular, que deixou no incons­
ciente do sujeito a possibilidade de desmentf-lo ( Verleugnung). Este desmenti­
do aparece no novo valor dado ao objeto, no que ele perdia seu caráter de uni­
cidade, para aparecer múltiplo e ordenado, se destacando sobre o véu de uma
vestimenta feminina. Este a-mais, que ele faz surgir sobre o cobre o véu, o tor­
na, ao mesmo tempo, sedutor e necessário, inclusive, ao cumprimento do co­
mércio com o Outro sexo. O sujeito encontrou seu fetiche, apto para sustentar
seu gozo. De alguma maneira, é o apagamento de Um do significante fóbico
que faz virar o objeto a, este novo estatuto de símbolo, fixando, então, o mais­
de-gozar adquirido nesta virada.
Se o significante da fobia acentua a falta-a-ser do sujeito, sublinhando sua
divisao numa borda, o fetiche a vela, fechando-a sobre a outra, pela "fixação"
do objeto segundo o gozo do objeto a do fantasma ($ <> a).

Para concluir

Enquanto o sintoma fóbico enfatiza a falta do pai, que este sintoma ten­
ta suprir, já que foi interpretado por Freud como um apelo ao pai smbólico,
ao Nome-do-Pai, o fetichismo nos parece a tentativa de esquivar essa vertente
da questão, propondo sua própria resposta face ao enigma do desejo do Outro.
Com efeito, o fetiche é e'!te objeto que permite ao sujeito este curto-circuito,
evitando-lhe a passagem pelo Outro do significante, onde sua verdade está escrita.
Ao contrário, é diante deste Outro que o fóbico hesita, se angustia e se
queixa. De seu fetiche, o sujetio não se queixa: aliás, porque se queixaria, já
que ele lhe designa, permanentemente, o ponto de verdade? (Lacan, "A Ciencia
e a verdade"). Neste sentido, ele não tem nada a demandar, uma vez que ele
tem a seu alcance a soluçao que lhe convém.
Como Lacan nos diz, em seu Seminário "A relação de objeto", o fetichis­
ta é um simples amante da natureza, enquanto que o fóbico é um metafísico,
pois, ele conduz a questão ao ponto em que há algo que falta.

Revisão de Sara Fux.

BIBLIOGRAFIA

Freud, S. : História de uma Neurose Infantil


Análise de uma Fobia num menino de cinco anos
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
Contribuição à Psicologia do Amor
Inibição, Sintoma e angústia
Esbôço de Psicanálise
A divisão do eu no processo da defesa

Lacan, J. : O Seminário: A relação de objeto (1955/56)


Escritos:
Função e Campo da Palavra e da Linguagem em Psicanálise
Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Vemeinung de Freud
Resposta ao comentário de Jean Hyppolite
A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud
A direção da cura e os princípios de seu poder
Observação sobre o relatório de Daniel Lagache
A significação do falo
Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano
A ciência e a verdade

36
École de la Caw;e freudienne

Robert Lefort (relator), S. Achache Witnitzer, J.-C. Brisou, P. Bruno,


M. Fourré, J. Granon-Lafont, F. Josselin, Y. Lachaize Oemichen, Rosine Lefort,
C. Mazel, H. Séré de Rivieres, M. Strauss, E. Solano Suarez

TRAÇOS DE PERVERSÃO E ESTRUTURAS CLíNICAS


NA PRÁTICA COM CRIANÇAS

Tradução de Zaira Antonieta Belan

"Perversao polimorfa" escrevia Freud a propósito da criança, com a reser­


va de que a perversao nao se encontra como tal na criança, ao menos nao na
criança pequena.
Classicamente, a referênca ao Édipo é mais especialmente ligada na per­
versao à recusa imaginária do pai enquanto promotor da diferença de sexos. A
criança futuro perverso se detém neste ponto e retorna às suas antigas posiçOes
pré-genitais em relaçao ao objeto. É neste ponto, "este momento da história
onde a imagem pára e o filme se cristaliza subitamente" (1) que surgem as dife­
rentes figuras da Verleugnung, da recusa, às quais o perverso se suspende.
Lacan avança que "todo o problema das perversOes consiste em conceber
como a criança, na sua relaçao com a mae, relaçao constituída na análise nso
pela sua dependência vital, mas pela dependência do seu amor, isto é, pelo dese­
jo do seu desejo, identifica-se ao objeto imaginário deste desejo enquanto a
mae, ela mesma o simboliza no falo" (2).
Tal é o caso do discurso analftico no qual podem desenvolver-se as três
grandes estruturas, e isto pela dialética da demanda de amor e da prova do de­
sejo. A proeminência de um dos três elementos em causa - o Outro, o objeto
fálico ou o corpo próprio - determina esta estrutura do sujeito a tal ponto que
Lacan disse: "O neurótico é normal na medida em que o Outro tem a máxima
importância, o perverso é normal na medida em que, para ele o falo tem a má­
xima importância e o psicótico é normal na medida em que para ele o corpo tem
a máxima importância" (3).
É a partir do seminário "A relaçao de objeto" que um de nós (4) desen­
volveu algumas reflexOes tomando como ponto de partida o falo imaginário.
Na segunda fase da frustraçao a mae é dita entao "real" porque ela pode,
por sua presença ou sua ausência, dar ou recusar o que ela nSo tem.
O falo imaginário é o primeiro valor dado ao que ela nao tem, tanto pe­
lo menino como pela menina. Desta apercepçao da falta do falo imaginário na
mae resulta toda uma série de fatos clfnicos que tem a mesma significaçao ge­
ral: paliar esta falta para confirmar a "toda-potência" da mse, enquanto esta to­
da potência foi e continua sendo, desde a fase do espelho o que garante o eu
da criança.
As perversoes se inscrevem em torno desta importancia máxima" do falo,
e sao todas ordenáveis em relaçao ao fato de que o sujeito se faz isca de um fa­
lo imaginário, destinado - uma vez que o desejo nao pode ser satisfeito - a enganar
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/S, jan·dcz 1989 p.37-41
Robert Lefort et alii

este desejo.
Quanto à fobia, ela desengana o desejo em vez de enganá-lo. Desenganar
quer dizer que o desejo só é desejo por ser impossível de ser satisfeito. A fun­
çao paterna introduz-se aqui como o que garante o desejo, e a busca de uma
garantia do eu na toda-potência materna esta af desde entao subordinada. É a
este nível que a neurose infantil se constitui e que os traços remanescentes de
pervers!io são desde então, por ela, enquadrados. É a escolha do pequeno Hans
que, nos diz Lacan, "pediu que se escrevesse a Freud que quando ele tinha vis­
to as calças, ele tinha cuspido, tinha caído no chão, depois ele tinha fechado os
olhos. É, justamente por isso; por causa desta reação, que a escolha é feita, que
o pequeno Hans não será jamais um fetichista.
Se, pelo contrário, ele tivesse reconhecido que estas calças eram precisa­
mente o seu objeto, à saber este misterioso falo que ninguém jamais verá, ele
estaria satisfeito com ele e teria se tornado fetichista" 4 (bis).
Na constituição do fantasma $ <> a, a substituiç!io do objeto a por A ofe­
rece, nos diz Lacan, uma possibilidade de "recuperaç!io" do falo imaginário. Es­
ta af a eventualidade maior concernente à perversão que abre duas possibilida­
des: ou traços de perversao no quadro da neurose, ou perversão como forma
de assujeitamento ao Outro no qual a relação do sujeito ao objeto é tal que o
sujeito "se faz" aí instrumento do gozo do Outro.
Lacan no seminário sobre Hamlet (5), situa a perversão como analisável
e interpretável, do mesmo modo que a neurose, mas situa o fantasma da perver­
sao num espaço fora do tempo, contrariamente àquele da neurose, um espaço
no qual os significantes são objetivados, cortados da relação intersubjetiva. (6)
A referência à Nádia seguida por Rosine Lefort, nos permite apreender
um momento fronteiro que Lacan chama "o molde da perversão", com "esta di­
mensão imaginária prevalente nesta valorização da imagem, enquanto eJ.a per­
manece o testemunho privilegiado de alguma coisa que, no inconsciente, deve
ser articulado, recolocado em jogo na dialética da transferência." (7)
O ponto essencial gira em torno do objeto a e daquilo que do sujeito fi­
cou no Outro. Duas soluções: ou o sujeito escolhe entre S 1 e S2, e o que retor­
na ao sujeito, de sua demanda, é a mensagem do Outro sob uma forma inverti­
da, ou então isto fica no Outro, constituindo o recalque do inconsciente, numa
relação que não se realiza e não afeta o Outro do seu desejo.
Se o que é amado no objeto é o que lhe falta, e que não se dá senão o
que não se tem, o fetichista coloca o objeto como permanecido no Outro - o
objeto que ele lhe deu. Não se trata do pênis real, mas o pênis enquanto a mu­
lher o tem, quer dizer enquanto ela não o tem: o falo simbólico, tanto ausência
como presença, objeto que circula; é portanto sempre o menino que é fetichis­
ta e jamais a menina.
Se nós retomamos o véu, Nádia mostra bem que é sobre ele que se pin­
ta a ausência sobre o fundo da presença do além: quer seja o objeto, o 5 de de­
zembro ou o 17 de janeiro, ou mais tarde a presença da estagiária como tercei­
ro termo no espelho que ela simboliza, velando-a antes de emitir seu "pa-pa­
pa", paradigma do simbólico.
Aparece aí a diferença entre o sintoma neurótico e a perversão, na medi­
da em que Nádia se centraliza sobre o falo, mas sem o fechamento, sem a para­
da sobre a imagem, uma vez que ela interroga af o Outro, não somente o Outro
do significante, mas o Outro da Lei. O objeto não interrompe seu questiona­
mento, sua história, não faz parada enquanto tal, quer dizer simples metonímia
do véu que fará o fetiche, já que ela introduz a metáfora paterna e isso pela

38
Traços de perverstlo na prdtica com crianças
transferência.
NSo se pode senso reconhecer neste objeto a referência do ponto de re­
calc�mento. Al�m do objeto começa o sujeito. Entretanto, pelo fato de que na
fase pré-genital (mais do que na fase pr�-edípica) o Outro é o portador do obje­
to - de um objeto que o pequeno sujeito tem que tomar por ele mesmo, nSo
sob forma de uma mensagem, mas de um significante, quer dizer enquanto fal­
ta - o conduz a aproximar-se mais perto desta imagem da mae fálica: ou a ima­
gem se detém e é fetiche, ou o significante toma o lugar e é o Outro do signifi­
cante que coloca o desejo no limite da Lei, o que conduz ao recalcamento e à
castraçao simbólica.
Melanie Klein, sem a dialética significante, faz aqui o quadro da psicose,
pelo objeto real do corpo próprio - o pênis paterno - sem aceder à Imagem do
fetiche. Há, entretanto um ponto de passagem, é esta identlflcaçao à mulher
confrontada a este pênis destrutor, ou inversamente esta identificaçao ao falo
imaginário que a mae pode devorar ou destruir. Daqui, há duas saídas: seja re­
al e mortífera na psicose, na ausência da metáfora paterna, seja Imaginária na
perversao. Nos dois casos, há uma Insuficiente slmbollzaçso, ou mesmo sua au­
sência e, portanto, uma relaçao dual c nao terceira.
Nádia nos mostra que a criança pode ser entregue a uma rclaçSo pura­
mente escópica com suas conscquênclas auto-destrutivas. � um primeiro mo­
mento, porque o Menino do Lobo, nas suas reaçoes motoras extremas, nao es­
tá menos submetido à destrulçao mortífera sem poder decidir se é ele ou o ou­
tro a v!tlma, ponta extrema que nso permite no seu primitivismo estrutural evo­
car uma ambiguidade pulsional sado-masoquista: o próprio corpo está ou nao
está a!, no real, c o imaginário que constituiria o fetiche está ausente.
Fica bem evidente nos dois casos a noçao de um objeto a mais, mas com
um estatuto diferente.
Um tal objeto pode ser exemplificado sob tres formas, as mais típicas.
Em primeiro lugar, a título de informaçao, recordemos o Impermeável, atrás
do qual o sujeito se centraliza enquanto Identificado à mae e onde a mie tem
necessidade de ser protegida por um cnvólucro. Em segundo lugar, atrás do pa­
no ou da fralda, é o objeto que falta e esta falta interroga a falta no Outro, se­
ja a preencher na pervcrsSo, seja dialctizada na trans�rencia para Nádia. E,
em terceiro lugar, para o Menino do Lobo, atrás da fralda está o horror do bu­
raco real, diante do qual ele grita seu "lobo" e que � necessário preencher com
um objeto do seu próprio corpo. Quanto ao envólucro do avental, no seu caso,
nao é uma proteçSo do Outro absoluto, mas o ser ou nso ser do sujeito. A ves­
timenta, inclusive, nSo serve unicamente para ocultar do objeto, mas, também
para ocultar a falta de objeto; mas para Robert, atrás do avental aO há o vazio,
o buraco do significante, porque ele nSo tem sequer seu primeiro nome. A rela­
çao ao Outro passa pela falta significantizada para Nádia e nao pelo objeto re-
al que é o próprio corpo para Robert. ·

� Nádia quem nos diz que a introjeçao, fenOmeno simbólico, pode "lem­
brar-se" das suas raízes corporais e orais: quando ela quer servir-se de um de­
do (o de Rosine Lefort), que ela molha no mingau para chupá-lo, isto é, encar­
ne a recupcraçao do falo Imaginário sobre o corpo do Outro que poderia ter
feito o molde da pervcrsao sem o ato do analista como ponto de parada.
Marie Françoise, autista com seus Impulsos bulímicos c o fetichismo apa­
rente do seu marinheiro, mostra a pcrverslo como tentativa de saída possl'vcl
ao seu impasse autista: a prlvaçao, a frustraçao .af fazem surgir o objeto nlo
imaginário, mas real, sem a dimensao fálica, evidentemente.

39
Robert Lefort et alii

No trajeto de Robert, no entanto, a simbolização por sua análise faz com


que o bico, objeto real, quando ele nomeia, torne-se parte simbolizada do obje­
to e este objeto pode, então, tornar-se pulsional. O significante faz com que o
objeto da pulsão, o seio, possa ser representado e contornado sem ser atingido,
o o que coloca o Outro como deixando de ser absoluto, ja' que atrás do repre­
sentante do bico, o que cai é o objeto deste Outro.
O estatuto do objeto da perversão está ilustrado claramente nos casos clf­
nicos comunicados no grupo que preparou esta contribuição.
Em um destes casos (8), uma paciente adulta tem um sonho canibalfsti­
co onde ela é devorada por sua mãe e sua irmã fálicas, isto em simetria com
uma foto de uma criança no seio que ela dá à analista de um modo provocan­
te, fazendo disto o paradigma da devoração que regra a relação mãe-filho.
Em outro caso (9) a negação da castração materna leva a paciente a par­
ceiros belos e feminilizados. Ela faz parte de um fantasma no qual, em um ca­
sal de homens, ela é um dos dois, isto é, na situação de recuperar o falo mater­
no no pênis do homem feminilizado. A recuperação do objeto fálico, realiza-se
tanto no nível oral quanto anal, seja pelas crises de bulimia, seja no cerimonial
de defecação que ela não realiza senão comendo ao mesmo tempo uma maça,
situação em que se reencontra o traço de perversão numa fixação infantil e au­
to-erótica.
O traço perverso pode ser representado por uma afecção somática grave
e sua utilização como fetiche. É o caso de um menino de 13 anos ( 10) cujo dis­
curso é o discurso médico da sua doença. Ele se faz escravo disto, S2 que sabe,
seus deveres diante da doença S 1, num evitamento fantasmático da falta como
afrontamento ao pai, massivamente recusado. O retorno do gozo passa por ex­
plosoes de violência.
Um informe sobre a gênese da homossexualidade masculina ( 1 1) sublinha
bem este ponto de parada na organização fálica da recusa da castração da mãe.
A escolha homossexual do parceiro provido de pênis é como uma escolha narcf­
sica, onde a posta em ato da recusa da falta do Outro maternal coloca a mu­
lher "tornada toda" inaceitável como objeto sexual. A passagem se faz do amor
à identificação. Esta escolha se efetua sobre os fundamentos de uma posição
subjetiva em relação ao desejo e ao gozo, em que se revela "a verdade do que
acontece na infância, de original". ( 12)
O diagnóstico diferencial entre neurose, psicose e perversão - e particular­
mente entre as duas últimas - pode ser feito em relação a objetos ou traços que
poderiam impor o diagnóstico da perversão.
Em um caso ( 13) o objeto "sapato" aparece realmente como um objeto
masturbatório, mas rapidamente este objeto se impõe pelo que ele é, um obje- .
to real, objeto do Outro que o sujeito deve ao Outro, Outro absoluto, não des-·
completado. O sapato não é então o representante imaginário do falo dado ao
Outro que dele também poderia carecer, mas um objeto real, estorvante de­
mais que o sujeito deve restituir ao Outro. Isto está perfeitamente claro, mes­
mo que um tal objeto impeça o acesso ao simbólico, até mesmo a constituição
do fantasma.
É esta mesma questão do estatuto do objeto que aparece num outro ca­
so (14) em que a alucinação de uma forma erigida se acompanha do sentimen­
to "de uma inquietante estranheza" - retomada no olhar do cachorro do sujeito
que o observa. É um tal olhar do Outro, reconduzido ao olhar animal, que o
torna envergonhado de sua imagem no espelho que não tem outro estatuto se­
não aquele de um pênis que a enurese do sujeito revelaria como tal.

40
Traços de perversdo na prática com crianças

A função do fantasma perverso que se pode reconstruir em análise ope­


ra no sentido de [Jlascarar a angústia, (15) corno no caso de uma mulher devora­
da de angústia desde os jogos perversos, aos quais a submetia seu avô. Um tal
fantasma não exclui, entretanto, as passagens ao ato, nas tentativas de experiên­
cias perversas em que ela aparece como se oferecendo sem limite ao gozo do Outro.
· Mas, contrariamente à psicose, seu Outro resiste à completude e fica mar­
cado pela falta, os objetos perversos que ela tenta colocar af só despertam a angústia.
Um de nós ( 16), em referência a sua prática, sublinha que a adolescência
é fecunda, tanto em traços de perversão como passagens ao ato (fugas, toxico­
mania, tentativas de suicídio) que colocam o problema de um diagnóstico de
estrutura. Com efeito, estas condutas podem ser tanto os signos sintomáticos
de uma culpabilidade neurótica no momento da passagem à sexualidade adulta
e da sua posta e[Jl ato, como reaçOes, às vezes extremas, de defesa contra um
desmoronamento psicótico.
Esta ambiguidade clínica perversão/psicose encontra-se num caso de psico­
se adulta em análise (17), com episódios delirantes e alucinatórios, no qual o
sujeito reconstrói ou talvez reencontrar toda sua história, inclusive aquela do
traumatismo desencadeante em retaçao ao seu pai e um comportamento perver­
so sado-masoquista em relação a sua meia-irmã. Um episódio de travestismo
por identificação a sua mãe se revela na sua história como uma• tentativa de evi­
tar o desmoronamento psicótico, [Jlas, em vão e este sobrevém após uma histó­
ria de pacto com o diabo para pagar o preço de ter riscado pai e mãe da realida­
de e tentar, através deste pacto, torná-los imortais.

REFE�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Lacan, J., Le Séminaire IV, "i,a .. �Jation d'objet" (1956-1957), inédit, séances des 19.121956, 16 et
30.11.1957, 6.2.1957.
2. Lacan, J., "D'une question préliminaire.. ." Ecrits, Seuil; p. 554.
3. Lacan, J., Le Séminaire IX, "L'identificati on" (1961-1962), inédit
4. Bruno, P.
4.(bis) Lacan, J., Le Séminaire IV, "La relation d'objet" (1956-1957)
5. Granon-Lafont, J., Ornicar? 26.27; p. 13.
6. Lacan, J., Le Séminaire IV, séance du 19.121956.
7. Ibidem
8. Acbache'Wiznitzer, S.
9. Lachaize-Oenmichen. , Y.
10. Strauss, M.
1 1 . Solano-Suarez, E.
12. Lacan, J., É crits; p. 859.
13. Fourre, M.
14. Josselin, F.
15. Brisou, J.-C.
16. Mazel, C.
17. Séré de Rivieres, H.

41
École de la Cause freudienne

M.-H. Brousse, A. Dunand, L. Izcovitch, F. Leguil, F. Linard,


D. Silvestre (relatora), M. Strauss, H. Wachsberger

A HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA
NAS ESTRUTURAS CLÍNICAS

Tradução de Wellington Domingues Tibúrcio

O lugar da homossexualidade nas estruturas clfnicas é um tema que per­


corre toda a obra de Freud: progressivamente isolada da bissexualidade pouco
precisa dos primeiros tempos, ela se ordena, posteriormente, em relaçao ao com­
plexo de castraçao e à funçao do pai, que servirao, daí em diante, de bússola
essencial para tudo o que concerne ao campo psicanalftico.
Trê& marcações exemplares sao suficientes para demonstrá-lo. 1910: "U­
ma lembrança infantil de Leonardo da Vinci" (4), onde a homossexualidade é
fixada na neurose; 1912: o caso Schreber, onde sua posiçao causal é afirmada
na psicose paranóica ( 13); 1919: "Uma criança é espancada" (15), onde a ho­
mossexualidade é interrogada enquanto perversao. É notável que cada um des­
ses artigos de Freud parte da análise de um fantasma, ao qual ele atribui um lu­
gar eminente na organização psíquica. Por outro lado, se a homossexualidade
é onipresente na obra de Freud - de seus casos clfnicos mais célebres nao há
um em que nao se faça alusão a ela -, ela opera como latente, recalcada, ou se­
ja, inconsciente, à excessao do chamado caso da jovem homossexual, a qual
ama, platonicamente, sem dúvida, uma pessoa do mesmo sexo, mas com um
amdr que ela reivindica como tal (18).
Depois de Freud, os psicanalistas foram freqüentemente tentados a classi­
ficar a homossexualidade masculina entre as perversões. Alguns Ílzeram das per­
versões um sub-capítulo das neuroses (33), eliminando, desta forma, toda distin­
çao de estrutura; outros, como muitos autores anglo-saxões, acreditaram resol­
ver esta questao reservando o termo perversao à homossexualidade manifesta
ou atuada (3,37). De fato, a maioria considera, em geral, que os homossexuais
se encontram diversamente repartidos nas três estruturas. Raramente, é sua ho­
mossexualidade que os levam a consuitar o psicanalista e ela nao é decisiva pa­
ra incluí-los na categoria dos perveros. Quanto a estes, o consenso psicanalíti­
co reconhece ter pouco a fazer, falta demanda por parte deles. E, mesmo, se a
· homossexualidade fosse apresentada como sintoma, sendo aquilo de que o su­
jeito se queixa, a tarefa analítica nao seria fácil (19). "Desobstruir a via que con­
duz ao outro sexo" pode nao ser suficiente para fazer renunciar ao objeto de
prazer, como o demonstram aqueles que sao chamados de "bissexuais" e cuja
tragédia da AIDS tem contribuído para revelar sua importância numéricá.

Situando o problema
Retomemos a Freud e consideremos com ele (21) como "patológica toda

FAW, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.42-48


Homossexualidade maculina nas estruturas clínicas

perversão de caráter exclusivo e fixo", ficando bem entendido que a "disposiçao


à perversão é parte integrante da constituição normal do indivíduo" (22). Propo­
mos definir, então, a perversão como a necessidade de uma condição absoluta
de gozo, o que autoriza a fazer do fetichismo o arquétipo da perversão, mas,
não impede de fazer valer o "traço de perversão" na neurose, desde que uma
tal condição esteja presente nela - freqüentemente de forma transitória. Não
nos surpreenderá, então, encontrar um polimorfismo da homossexualidade: do
traço de perversão que pode constituir sintoma do neurótico, ou uma passagem
ao ato, ou mesmo até desencadear uma crise de angústia (levando alguns à aná­
lise a partir de uma ruptura .da homeostase do gozo), até a perversão autênti­
ca com uma fetichização do objeto no pênis do semelhante ou posição masoquis-
·
ta adequada para assegurar o gozo.
Poderíamos, portanto, opor a homossexualidade como sintoma neurótico,
em relação com a defesa e o desejo, à homossexualidade como flxaçâo libidinal
em relação com o gozo, perversa, já que seu caráter de exclusividade está paten­
te (não deixaremos de lado o seu papel eminente na psicose e retornaremos so­
bre este ponto, mais adiante). Isto confirma que o termo homossexualidade não
designa outra coisa, senão, a escolha de objeto sexual, ou a "conduta" sexual, o
que não inclui, necessariamente, a fetichização do objeto ou a posiçao masoquis­
ta do sujeito, que são as únicas que autorizam o uso do termo perversão. Isto
está de acordo com a constatação de que a perversão é rara entre as mulheres,
se considerarmos que, para elas, é, de algum modo, o pênis do homem, e mes­
mo o filho, que vale como fetiche, e que, por outro lado, o masoquismo não
deixa de contaminar, em maior ou menor proporção, o que se convencionou
chamar de posição feminina.

A mãe do homossexual

O ano de 1910 é rico em contribuições clínicas e é quando encontramos


as primeiras elaborações teóricas concernentes à homossexualidade, conforme
testemunham as Minutas da Sociedade PsicanaUtica de Viena. Sadger, já em
1909, põe em discussão um caso complexo qualificado como "perversão multi­
forme" (34). Sadger é o primeiro a dar ênfase ao papel desempenhado pela
mãe; Ferenczi (1) e Freud (5) farão referência a sua abordagem da questão, as­
sim como ao termo narcisismo que ele antecipa e que Freud, por sua vez, reto­
ma em seu "Leonardo" (6), como observa Strachey em seu prefácio a este tex­
to (35). Por outro lado, Freud apresentará na sessão de F' de dezembro de
1909, menos de um mês após a exposição de Sadger, sua elaboração de um "fan­
tasma de Leonardo" ( 1 1), primeira versão de seu estudo, de clareza e precisão
impressionantes.
A partir da lembrança infantil, Freud propõe a reconstrução de um fantas­
ma, no qual a mãe de Leonardo ocupa uma posição chave: "minha mãe me en­
cheu a boca de inumeráveis beijos apaixonados" (7). A seguir, Freud generali­
za sua análise: "em todos os homossexuais homens, nós reencontramos, na pri­
meira infância, período logo esquecido pelo sujeito, uma intensa ligação eróti­
ca com uma mulher, geralmente a mãe, ligação provocada ou favorecida pela
ternura excessiva da própria mãe, logo reforçada por um apagamento do pai
da vida da criança" (8). Ligação erótica a uma mulher e carência paterna são,
por conse..guinte, apresenadas por Freud como decisivas para esta solução parti­
cular do Edipo que é a escolha de objeto homossexual. Em Leonardo, esta esco­
lha de objeto, por demais platônica, é concebida por Freud como uma escolha

43
Daniele Silvestre et alii
narcfsica, pois que Leonardo amaria nos rapazes a criança que ele mesmo foi
para sua mãe. Esta identificação à mãe coincide com o recalcamento desta,
meio para desembaraçar-se dela.
Em seu comentário do caso de Sadger, Freud faz esta observação essen­
cial a respeito da escolha de objeto: " ... em geral, o homem tem dois objetos se­
xuais primários (a mãe ou seu substituto, e ele mesmo), e sua vida posterior de­
pende daquele ao qual ele permanece fixado. É importante se liberar dos dois.
.. Normalmente, a própria pessoa é substituída pelo pai que não demora a ocu­
par uma posição hostil. É neste lugar que a homossexualidade se bifurca" ( 1 2).
Com efeito, o homossexual é aquele que não se "libera de si-mesmo", após ter
recalcado seu amor por sua mãe, identificando-se com ela.
Em Leonardo, Freud desdobra a função da mãe: de uma lado, aquela da
primeira infância, aquela que foi abandonada pelo pai e que colocou seu filho
no lugar do marido, "desposando-o, através de uma maturação muito precoce
de seu erotismo, de uma parte de sua virilidade", por outro lado, u111a segunda
mãe, a mulher do pai, mãe edfpica, porém, estéril. Do gozo da primeira, perma­
nece em sua obra, diz Freud, este sorriso estático, marca do amor primeiro,
que se imprime na maior parte de suas obras. Talvez, deva-se ver, também, nes­
ta veneração da mãe, por parte do pintor, uma persistência de seu amor por
ela, uma forma de fidelidade, modo de não renunciar a este objeto, apesar do
recalcamento ou graças a ele (9).
Desta primeira elaboração freudiana, decorrerá uma doxa analftica que
impregnou até mesmo o senso comum, fazendo da mãe "fática" a condição da
escolha homossexual (36). Mas esta figura materna, da mesma forma que aque­
la do pai, é apreendida, freqüentemente, apenas, em seu estatuto imaginário
(24). Contudo, Freud avançou com algumas precauções sobre a via desta "causa­
lidade materna": "...o número dos casos, onde se pode descobrir as condições
requeridas por nós para este tipo homossexual, ultrapassa bastante aquele on­
de aparece, realmente, o efeito derivado delas" (10). Há, então, outras condi­
ções além daquelas relacionadas com a mãe, em que está sempre referida a
uma carência do pai. Assim, somos levados a supor que, sob o termo da mãe,
Freud designa, de fato, elementos estruturais diferentes, como o deixa pressu­
mir sua expressão "as duas mães" (aquelas de Leonardo), da mesma forma que
o pênis tem de ser diferenciado do falo.
Observemos que, sob a pena de Lacan, em seu texto dos Escritos "Juven­
tude de Gide", reencontramos a mesma expressão: ele distingue, de uma lado,
a mãe do amor, ou seja, a verdadeira mãe de Gide, de outro lado, a mãe do de­
sejo, na pessoa de sua tia, que desperta nele uma comoção, fixando, para sem­
pre, como objeto erótico a criança que ele era no olhar clandestino desta tia
(25). Esta duplicação aponta uma particularidade do É dipo gidiano que separa,
de uma lado, o amor fora do sexo, ligado ao dever e à santidade, e, de outro la­
do, o sexo tomado da criança que ele foi e que, assim, reduz o falo significante
ao órgão não negativizado em seu gozo (cf. sua leitura de Goethe, aos 18 anos).
A posição particular adotada face à castração da mãe implica uma particu­
laridade da metáfora paterna: Lacan dá conta dela pela disjunção entre o amor
de uma mãe inteiramente orientado, para além do pai real, na direção de Deus
e do filho, e o desejo em oposição à Lei que caracteriza a tia adúltera e seduto­
ra. Disso resulta em Gide a separação do objeto de amor na pessoa de Madelei­
ne, sua mulher, o anjo assexuado, em relação ao objeto do desejo, o jovem ines­
crupuloso coni o qual apenas um gozo masturbatório é possível. A referência
aos três registros do real, do simbólico e do imaginário permite, também, escla-

44
Homossexualidade maculina nas estruturas clfnicas
rescer este estereótipo pós-freudiano da mãe homossexual, sobre a qual Freud
já fazia incidir uma divisão ao apontar em um sujeito a oposição entre uma cor­
rente de ternura em relação à mãe e a corrente erótica, divisão que, por ser ge­
ral na sexualidade masculina, não deixa, por isso, de sofrer uma acentuação na
escolha de objeto homossexual. Assim, poderíamos dizer que alguns homosse­
xuais, como Gide, se consagram a amar a mulher na vertente da sublimação,
como lembrança desta mãe, cuja castração eles denegam, e desejam o menino
que eles foram, fetichizando, assim, no pênis de seus parceiros, o falo que eles
mesmos foram para sua mãe. Ferenczi, em sua descrição daqueles que ele cha­
ma "homo eróticos de sujeito" (os invertidos propriamente ditos, aqueles que
querem ser amados pelo homem como mulher), acrescenta, não sem paradoxo,
esta observaçao de "que , desta forma, eles realizam com elas(as mulheres) a
componente homossexual de sua sexualidade" (2).

A homossexualidade na psicose

Esta "feminizaçao" assumida, sem conflito, na posiçao perversa é aquilo


contra o qual se defende o paranóico; a tese de Freud da defesa contra a ho­
mossexualidade coloca esta última, não na categoria de fenômeno, mas, na cate­
goria de causa da própria existência do delfrio paranóico. É a partir do caso
Schreber (14), que ele introduz a noção de irrupçao da libido homossexual co­
mo causa do desencadeamento, sob a influência do "complexo paterno".
Lacan, em sua "Questão preliminar ... ", reexamina a herança freudiana à
luz da tripartiçao metodológica: imaginário, simbólico, real. A construçao do
fantasma delirante pode passar para determinado sujeito pelo destino de uma
vida homossexual - esta escolha é, então, o subterfúgio que mantém o "tripé
imaginário", impedindo o desenvolvimento do delfrio e a submersao do sujeito.
Esta· homossexualidade, como "solução imaginária", testemunha de uma escolha
de objeto narcfsica, protege o sujeito de uma confrontaçao com a carência fáli­
ca. Trata-se, então, de uma verdadeira prótese, de uma defesa que permite ao
sujeito nao reencontrar a hiância com a qual a pulsão se confronta, e que faz
retorno pelo gozo do Outro.
A referência constante de Freud à função do pai e ao Édipo, nos incita,
segundo Lacan (26), a nao pararmos af. A homossexualidade deve ser situada
como sintoma articulado no "processo" da psicose. Ao nível simbólico, ela não
é uma resposta (um significado do Outro) à questão incerta sobre o sexo, co­
mo na histeria. Pois, não se trata de uma questão incerta, mas impossível: real­
mente, há o desfalecimento da função imaginária do falo e o complexo de cas­
tração é inoperante como "fase normativa da assunçao pelo sujeito de seu pró­
prio sexo" (27). A homossexualidade é, então, uma maneira de tentar contornar
esta impossível assunção de identidade sexual interrogando o laço com o obje­
to: ele ama os homens ou as mulheres? O benefício barganhado seria uma iden­
tificaçao onde o ser se diria através da facilitaçao de um gozo plausível. A urgên­
cia de restaurar a funçao imaginária do falo, desemboca, assim, sobre um ques­
tionamento real. A certeza psicótica veni de que o sujeito não tem a ver com
um Outro desejante, mas com um Outro gozador. A homossexualidade é, entao,
o índice deste Outro, a ameaça da intrusão de seu gozo. A carência fálica signi­
fica que nenhuma mediação é possível: diante deste gozo, o sujeito pode, ape­
nas, ser negado, violentado, "fudido". A homossexualidade, aqui, só poderia ser
catastrófica, uma vez que ela é a interpretaçao que avalisa esta tirania do Out ro.
Na via da feminizaçao, a homossexualidade é apenas um dos modos possf-

45
Daniele Silvestre et alii
veis desta transformação: a eviração, tal como Schreber nos fêz saber, é um ou­
tro. Sobre este horizonte real do empuxo-à-mulher, a homossexualidade traz,
parece, a insuplantável questão do ser para o psicótico; lá onde o significante
falta, o sujeito responde por uma escolha _de gozo. Mas, acrescenta Lacan, se
Schreber se decide pela eviração, como resultado lógico desta homossexualida­
de paradqxal, é porque, como sujeito, ele estava ... morto. Esta "desordem provo­
cada na junção mais íntima do sentimento da vida no sujeito" o libera para o
Outro, fazendo dele "a esposa de Deus" (28). Clinicamente, é melhor pensar
duas vezes antes de evocar uma eventual posição feminina que não é, então,
sem conseqüências para o sujeito, uma vez que se fazer objeto do Outro pode,
ou não, significar esta morte do sujeito que Lacan evoca. A diferença é realmen­
te de peso, pois, é af que nós iremos distingüir masoquismo e psicose.

Rivalidâde e pai
O fantasma "uma criança é espancada" ( 16) só pode ser conhecido, diz
Freud, como um traço primário de perversão (17). Trata-se, aí, da análise de
um fantasma masoquista, e, neste trabalho, nós o abordaremos apenas do pon­
to de vista dos meninos. Neles, a relação com o pai é predominante, uma vez
que, atrás do conteúdo consciente "ser batido pela mãe", Freud revela um está­
gio precursor, "eu sou espancado pelo pai", que ele reconstrói com seu sentido
escondido de "eu sou amado pelo pai". O laço incestuoso com o pai é, por con­
seguinte, central, e, pela reorganização deste tempo inconsciente do fantasma,
o menino se safa de sua homossexualidade. O fantasma consciente mantém a
posição feminina sem escolha de objeto homossexual. Para Freud, é claro que
é a posição masoquista do sujeito que assinala a natureza perversa do fantas­
ma. Ele insistirá, no caso da jovem homossexual (20), sobre a noção da concor­
dância (ou não) da escolha de objeto com a posição do sujeito (masculina ou
feminina) e, certamente, parece que o traço se faz da homossexualidade mascu­
lina uma perversão seja, freqüentemente, aquele do masoquismo.
Quando Freud distingue a homossexualidade perversa e a paranóia, no
seu artigo de 1922 "Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia
e na homossexualidade", é, ainda, a relação com o pai que marca a diferença.
A homossexualidade perversa, com efeito, não se baliza, somente, pela identifi­
cação com a mãe, pela escolha de objeto narcfsica e pela alta estima do órgão
masculino, (que o induz a não renunciar �o objeto de amor), mas, também, pe­
la relação ao pai: " ... um poderoso motivo para a escolha de objeto homossexual
é a diferença ou a angústia que o pai inspirava, uma vez que a significação da
renúncia à mulher é que renunciar-se à concorrência com o pai ... " (23) Mas, re­
nunciar a esta concorrência implica, sem dúvida, uma anterioridade onde ela
estava presente, o que marca uma diferença com relação à psicose onde o pai
. feroz e aniquilador deixa o sujeito excluído da rivalidade. Renúncia à rivalida-
de e exclusão da rivalidade são o índice de uma relação diferente com o comple­
xo de castração. Enfim, nos perversos, os rivais tornam-se, após o recalcamen­
to da rivalidade, objetos de amor, enquanto que, para o paranóico, as pessoas
amadas tornam-se perseguidores odiados. Freud mantém, então, sua tese da
defesa contra a homossexualidade como causa da paranóia.
É a tese inversa que sustentarão, a seguir, os alunos de Melanie Klein: a
homossexualidade é uma defesa contra a paranóia, mesmo que ela seja seja to­
mada como latente ou manifesta, como neurótica ou perversa (cf. Rosenfeld)
(32). Sem entrar nos detalhes, notemos, contudo, que esta tese é homogênea

46
Homossexualidade maculina nas estruturas clfnicas

àquela do núcleo psicótico, a qual é congruente com o lugar prevalente conferi­


do à mãe e com o clima de luta persecutória e sem piedade, onde se desenvol­
ve a relação primordial mãe-criança.
Contudo, a homossexualidade como defesa é uma tese que se encontra
em outros autores; ela está em voga na Sociedade Psicanalítica de Paris sob o
impulso de Nacht (30). Ela é, antes de tudo, medo inconsciente da mulher e
pavor à castração, e encontra sua circunscrição no Édipo. Nacht, como Freud,
faz da fiXação erótica com o homem um lugar à parte na determinação de algu­
mas formas de homossexualidade, onde o pênis do parceiro deve sua importân­
cia à função de resseguro (3 1 ) .

Conclusão provisória

Parece-nos, em suma, que nao existe, para nenhum dos pós-freudianos


que nós pesquisamos, uma categoria clínica específica de homossexualidade.
Contudo, a questão do seu lugar estrutural é, freqüentemente, elucidado graças
às consideraçces metapsicológicas (importância variável do narcisismo, da fiXa­
çao, da regressão), enquanto que a referência freudiana conduz, indefectivel­
mente, a situá-la em relaçao ao complexo de castraçao, o que traz conseqüên­
cias tanto clínicas como teóricas. Lacan, com a metáfora paterna, indica a mes­
ma via: ser o falo para a mãe ocasiona um certo número de problemas, mas,
não forçosamente, um destino homossexual. Este destino se inscreve diferente­
mente, quando ele significa...a ausência de significação fática por falta do signi­
ficante paterno, ou quando ele indica uma "significação de gozo", tal como o fe­
tiche ilustra. De que modo o Outro falta e de que modo a homossexualidade
vem responder a esta questão ou não, tal é, em todo caso, o problema que colo­
ca à psicanálise uma "escolha sexual" que se poderia interrogar pelo viés do des­
jo ou pelo viés do amor, tanto é verdadeiro que isto lhe traz uma clareza sub­
versiva. A homossexualidade é a evitação ou a demonstração da relaçao sexual
que não existe? "Imaginar-se ser o Outro para assegurar seu gozo" (29) pode
abrir a via da homossexualidade, mas assegurar-se do Outro, pode, igualmente,
conduzir à homossexualidade. O importante, então, de qualquer forma, é se
orientar nesta questão.

Texto publicado em Traits de perversion dans le� structures cliniques, Nayarin éditeur, Paris,
pp. 162-171. "L'homossexualité masculine dans les structures cliniques" foi apresentado no VI Encon­

tro Internacional do Campo Freudiano, Paris, julho de 1990. Revisão de Sérgio Laia e Sara Fux.

REFER�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paris, Payot, 1970; T. II, p. 117-129.
2. FERENCZI, S., Ibid. p. 122
3. FREEMAN, T., "Clinicai and theoretical observation on male homosexuality", Int. J. of Psychoa.,
1984; vol. 65. .
4. FREUD, S., Un souvenir d'cnfance de Léouard de Vinci (1910). Paris, Gallimard (Idées), 1977.
5. FREUD, S., Ibid - p. 78.
6. FREUD, S., Ibid - p. 80.
7. FREUD, S., Ibid - p. 97.
8. FREUD, S., Ibid - p. 79.
9. FREUD, S., Ibid - p. 80.
10. FREUD, S., Ibid - p. 81.

47
Daniele Silvestre et alii
1 1. FREUD, S., - Minutes de la Societé Psychanalytique de Vienne, Paris, Gallimard; T. 11, séance
du 1et décembre 1909, p. 333-346.
12. FREUD, S., lbid - p. 307.
13. FREUD, S., - "Le Président Schreber" (1912) in Cinq psychanalyses, Paris, PUF, 1977.
14. FREUD, S., lbid.
15. FREUD, S., - "Un enfant est battu" (1919) in Névrose, psychose et perversion, Paris, PUF, 1973.
16. FREUD, S., lbid.
17. FREUD, S., lbid - p. 221.
18. FREUD, S., "Sur la psychogenese d'un cas d'homosexualité féminine" (1920), in Névrose, psychose
et perversion.
19. FREUD, S., Jbid - p. 249.
20. FREUD, S., lbid - p. 269.
21. FREUD, S., -Trois essais surJa théorie de la sexualité (éd. 1928) Paris, Gallimard - (idées) - 1976; p. 48.
22. FREUD, S., lbid - p. 61.
23. FREUD. S., - "Sur quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie, la paranoia et l'homosexualité"
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24. GLASER, M., - "Identüication and its vicissitudes as observed in the perversions". Int. J. of Psychoa.,
1986; vol. 64.
25. LACAN, J., - Jeunesse de Gide ou la lettre et !e désir", in Ecrits, Paris, Seuil, 1966; p. 755.
26. LACAN, J., - "D'une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose", in Ecrits; p. 544.
27. LACAN, J., ld - p. 543.
28. LACAN, J., lbid - p. 558.
29. LACAN, J., - "Subversion du sujet et dialetique du desír", in Écrits, p. 824.
30. NACHT, S., - "Homosexualité - Etudes psychanalytiques" - 1955, 371051, 20, p.1-3.
31. NACHT, S., - "L'homosexualité", in Pathologie de la vie amourese. Essai psychanalytique Paris,
Denoel, 1937; p. 149-170.
32 ROSENFELD, H., - "Remarques sur les relations de l'homosexualité masculine avec la paranoia,
l'angoisse paranoide et !e narcissisme", in Etats psychotiques, Paris, PUF, 1949; p. 47-69.
33. ROSOLATO, G., "Les perversions sexuelles". Encycl. Méd. Chir., 37392 A 10, année 1968.
34. SADGER, 1., Minutes de la Société Psycbanalytique de Vienne, Paris, Gallimard, 1978; T. 11, séa­
ces des 3 et 10 novembre 1909, p. 286-309.
35. STRACHEY. J., - Standard Edition des oeuvres de Freud. Voi. 1 1, Editor's note, p. 54-62.
36. TORRES, E. M., " From the analysis of a perversion", lnt. J. of Psychoa, 1987, vol. 68, p. 353-370.
37. WIEDEMAN, G. H., - Survey of psychoanalytic literature on overt male homosexuality. Japa,
1962; vol. 10.

48
Sérgio Santana e Jardelina Bacellar Santana (*)

NEUROSE E FANTASIA

Introdução

o conceito de fantasia fundamental estabelecido por Lacan acarretou a


prática do psican alista um grande número de questões. Abordaremos aqui ape­
nas uma dessas, tl saber, como diferenciar as fantasias dos neuróticos, fantasias
que estao atreladas à questão do desejo do Outro, daquela dita fundamental.
Agora por ocasião da realização deste VI Encontro Internacional do Cam­
po Freudiano, essa questão volta ao centro dos debates pela articulação que se
pde faze r., notada mente nas neuroses; entre os traços de perversão nas estrutu-
ras clínicas e a fantasia do sujeito. .·
.

Assistimos ao aparecimento de vários equívocos quando se tenta forçar o


caso clínico para se acomodar à teoria. Assim, constatamos que as fantasias de
sedução sao confundidas com a fantasia fundamental, o mesmo se encontran­
do nos relatos de casos de neurose obsessiva em que suas fantasias derivadas
da visão da cena primordial são colocadas do mesmo modo.
Tentaremos pois estabelecer a distinçao entre a fantasia fundamental e
as fantasias dos neuróticos que Freud agrupou sob a denominação de fantasias
originárias. Vale lembrir que a esse respeito Lacan (1) escreveu que o neuróti­
co tenta resolver a angústia que lhe produz o desejo do Outro dando uma pre­
dominância tal à demanda que termina orgnizando a sua fantasia à maneira da
pulsão ($ <> D) em lugar de ($ <> a).
Então temos no neurótico a fantasia como desejo do Outro, quer dizer,
se organiza conforme seja o desejo: para mantê-lo insatisfeito ou tomá-lo impossível.

Fantasias originárias

As fantasias originárias Urphantasien - pruLurantasias - aparecem nos ar­


-

tigos de Freud de 1915: "Estas formações fantasfsticas (observacsão da relacsão


sexual entre os pais, ser seduzida, fantasia de castração) eu as denomino de fan­
tasias originárias" (Um caso de paranóia contrário à teoria da doença). Elas têm
a característica de não corresponderem a cenas realmente vividas pelo sujeito,
porém têm um caráter específico para cada estrutura neurótica. Os temas das
fantasias originárias (coito, sedução e castração) são encontrados na raiz da ob­
sessao, histeria e fobia. Parecem portanto se referir às origens da sexualidade,
da diferença dos sexos e da própria vida (2).
A idéia básica de Freud é de que existem na vida de fantasia, no devaneio
neurótico, estruturas irredutíveis às contingências dO vivido individualmente.
"Quando aparecem no contexto da análise, com efeito de verdade próprio
à transferência, estas fantasias . que regem a existência,. se resumem, em última
instância, a sequ ências reduzidas"(3). Inicialmente foram colocadas por Freud,
como já foi dito, como fantasia de sedução para a histérica e da cena primária
para a neurose o bsessiva. Se a fobia é considerada como uma neurose, se agre­
garia à fantasia de castração.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-<lcz 1989 p.49-52
Sérgio Santana e Jardelina Bacellar Santana
As fantasias de uma mulher, que quando mantém relaçoes sexuais, pen­
sa em dois outros homens estuprando-a, ou do obsessivo que se masturba anal­
mente com idéias de ser submetido por outro homem, caem no rótulo dessas
fantasias originárias, nada tendo a ver com o que se conhece como fantasia fun­
damental. Podem perfeitamente ser reduzidas à sedução ou à cena primária.

Neurose e fantasia
Lacan (4) nos dá uma extensa citação, da explosão desses dois termos que
compõem o materna da fantasia, que são o sujeito e o objeto. Lembramos que
na neurose a falta do Outro, o falo significante é confundido com a sua demanda:
"um, no obsessivo, na medida em que ele nega o desejo do Outro, forman­
do sua fantasia ao acentuar o impossível do desvanecimento do sujeito, outro,
na histérica, na medida em que o desejo ar só se mantém da insatisfação que
ar se traz ao se esquivar como objeto".
Quer dizer que a resposta à dúvida obsessiva, na falha de uma soluçao
de compromisso, pode ser dada através da fantasia, às vezes através uma passa­
gem ao ato, que tem a funçao de retirar o sujeito dessa indeterminação subjeti­
va. Quer dizer, de impedi-lo de se dividir como sujeito. É o caso do impotente
que atribui esse sintoma a uma suposta homossexualidade e pode passar ao ato
para buscar a verificação última dessa certeza que o Outro não lhe dá. Retoma­
mos assim a questão do desejo no obsessivo, situado graficàmente no esquema
que Lacan denomina de abridor de garrafa em ponto de interrogação: o sujei­
to obsessivo recebe do Outro dois significantes que representam o seu desejo
e com os quais estrutura o seu clássico sintoma em dois tempos. Vemos nesse
gráfico que a resposta é o materna da fantasia.
É pois rotineiro que o obsessivo procure sua certeza no ato, no que se
chama uma "travessia selvagem da fantasia"(5). Aqui se levanta todo o proble­
ma o qual Lacan diz ser· a pretensa perversão posta no infcio da neurose: "Ela
está no inconsciente do neurótico como Jantasia do Outro"(6) . .
Pelo lado da histérica a fantasia explode no que concerne ao objeto, ou
seja, forma sua fantasia para se esquivar como objeto mantendo assim o dese­
jo insatisfeito.
O estatuto de discurso em que foi colocada a histérica, enfatizou o obje­
to pequeno a num lugar de verdade, fazendo com que na histérica seu laço so­
cial seja a insatisfação. Ser causa mas não ser o fim. O que Dora faz-na constru­
ção do seu célebre quarteto, no qual ela se inclui, é o que vai ser chamada a in�
triga histérica, que é a atuação da fantasia histérica: quer dizer, suscitar o dese­
jo do homem por uma Outra mulher. O que comprova que na histeria a ques­
tão sobre o sexo é uma questão sobre o Outro sexo, ou seja, o que é ser mulher.
É na armação da intriga histérica que aparece o traço de perversão da bis­
teria, por excelência, a homossexualidade. Homossexualidade por identificação
a um homem, diferente da jovem homossexual de Freud em que a demanda
de amor e o desafio ao desejo jogam o papel principal.
Esse traço perverso da histérica é compatível com a sua identificação vi­
ril: ela como o homem aponta em seu parceiro feminino o objeto cobiçado des­
de o ponto de vista do homem.
É na intriga histérica que se diz que se pode achar o "acento da perversao
que é tentador denunciar na presente histeria" (7), escreve Lacan se referindo
à bela açougueira de Freud.
Tudo isso quer dizer que é do ponto de vista de um homem que a bistéri-

50
Neurose e fantasia
ca se interessa por uma mulher, no sentido de se descobrir a si mesma como mulher.
É ainda na histérica que podemos comprovar de maneira clara que o dese­
jo é uma defesa contra o gozo e que no obsessivo é uma forma de se certificar
do desejo.
Assim, queremos dizer que na neurose se pode colocar a fantasia como
desejo do Outro e para retomar o tema das fantasias originárias entendemos
que são elas, ainda que a fantasia não esteja reduzida às mesmas que mantém
· a esquiva histérica do gozo (cena de sedução) e a negação do desejo pelo obses­
sivo (cena primária).
Se considerarmos a fobia (neurose ou passagem para a neurose) temos
que levar em conta as cenas de castração, atribuindo tal função a um objeto fá­
lico que é coberto pela fantasia que o torna impossível de desconhecer o uso
que o sujeito faz da fantasia: esconder sua angústia do desejo do Outro, sua
castração.
Em todos os casos, as fantasias dos neuróticos, implicam uma relação ao
falo: a sedução quando a histérica encarna o falo, a cena primária quando o ob­
sessivo constitui a copulação do casal e aquele que olha é então aquele que une,
quer dizer, o falo. Organizam-se na fase do Édipo em que o sujeito é o falo pa­
ra a mãe e cuja permanência nessa posição o levará à perversão(8). A castração
simbólica que tira o sujeito desta posição de falo, de ser o falo, tem como conse­
quência a constituição das fantasias dos neuróticos, ou, se se quer, das fantasias
originárias cuja função é recuperar o gozo que foi perdido pelo recalque e recu­
perar a identificação ao falo da qual o sujeito gozara anteriormente.
"Pois o neurótico não quer, o que ele recusa obstinadamente até o fim
da análise é sacrificar sua castração ao gozo do Outro deixando-o af se servir"(9).

Fantasia fundamental
Existe um fator comum entre as fantasias originárias e a fantasia de espan­
camento que é citada como paradigma da fantasia fundamental:( lO) são fanta­
sias de um adulto que se remete à infância edfpica. É pois um adulto que fala
da experiência infantil de ser seduzido ou de presenciar uma cena de coito. No
bate-se uma criança, um sujeito infantil é espancado por alguém, ou até pelo
próprio pai daquele que fantasia. Porém, a diferença das fantasias originárias
dos neuróticos, o próprio sujeito não se implica. É por uma construção da fanta­
sia fundamental que o sujeito se implica. É esse o traço marcante da estrutura
da fantasia fundamental, além de seu caráter masoquista. Não nos alongaremos
aqui para o que já está bem estabelecido: significação absoluta, afastamento
do resto da trama da neurose, lógica gramatical dessubjetivada, etc.
Interessa-nos no entanto alguns aspectos: a fantasia fundamental é contem­
prânea ao recalque primário ( Urverdriingung) e à própria constituição do obje­
to. É contemporânea à entrada do sujeito na linguagem o que impoe uma mor­
tificação ao sujeito. A fantasia fundamental conjuga o gozo erógeno da pulsão
com o pai obsceno e cruel que escapa à regulação da lei e da castraçao.( l l)
Masoquismo primário é o nome do gozo pulsional real, resto da divisão
fundante que retorna sobre ela - a divisão. A frase construída em análise: "eu
sou espancado por meu pai" opera sobre o que jamais é recordado nem teve
nunca acesso à consciência. Implicar o sujeito na fantasia fundamental é re-si­
tuá-lo subjetivamente;
Concluindo diríamos que esta mortificação das origens é um gozo maso­
quista, um masoquismo erógeno e a fantasia de ser espancado ou de ver uma

51
Sérgio Santana e Jardelina Bacellar Santana
criança sendo espancada acompanha regularmente o gozo masturbatório.( 12)
Ao contrário do que diz Freud sobre as fantasias originárias: "elas conti­
tuem um tesouro de fantasias inconscientes que a análise pode descobrir em to­
dos os neuróticos e, provavelmente em todas as crianças"( 13), temos na fantasia
fundamental, em primeiro plano a estrutura do real: ocupa o lugar do real, e
isto justifica a lógica da fantasia, no que lhe acentua também o caracter signifi­
cante que instaura numa lógica que culmina em um real, real produzido por es­
ta lógica significante"(14 ) .

• Membros da Clínica Freudiana, Salvador · Bahia - Brasil.


VI Encontro Internacional do Campo Freudiano - Paris - 1990

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

01. LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo. Écrits - Editions du Seuil - 1966.
02. LAPLANCHE, H; PONTALIS, J.B. - Fantasia originária, fantasia das origens e origens das fantasias.
Zahar - 1988.
03. POMMIER, G. O desenlace de uma análise. Zahar, 1990.
04. LACAN, J. - Subversão do Sujeito e dialética do desejo - Écrits - Editions du Seuil - 1966.
05. COTTET, S. - Estudos Clínicos, Transcrição 4, CF/FATOR - 1988.
06. LACAN, J. - Subversão do Sujeito e dialética do desejo - Écrits - Editions du Seuil - 1966.
07. Idem. A direção da cura - Écrits - Editions du Seuil - 1%6.
08. Idem. De uma questão preliminar a todo tratamento pos;;ível da psicose - Écrits - Editions du Seuil - 1966.
09. Idem. Subversão do Sujeito e dialética do desejo - Ecrits - Editions du Seu i! - 1966.
10. MILLER, J. A. - Percurso de Lacan - Zahar - 1988.
1 1 . VIDAL, E - Como se analisa hoje - Manantial - 1986.
12. POMMIER, G. - O desenlace de uma análise - Zahar - 1990
13. FREUD, S. - A interpretação dos sonhos - !mago - 1985.
14. LACAN, J. - A lógica da fantasia - Sem. XIV - Inédito - 1967.

52
Pierre-Gilles Gueguen

UM TRAÇO DE PERVERSÃO
Observaçaes sobre um c aso de Lacan

Tradução de Sonia Alberti e Stella Jimenez

O "homem na rodada de bonneteau" ( 1 ) é um caso de Lacan. Eles são su­


ficientemente pouco numerosos para serem remarcáveis e este é, em compara­
ção aos outros, desenvolvido com uma certa prolixidade no artigo dos Escritos
intitulado "A direção da cura".
O bonneteau é um jogo que se pratica ao ar livre; é um jogo de apostas
proibido por lei, pois acontece que os néscios, enganados pelos ganhos, sempre
perdem. Esse caso pois é descrito por Lacan como um momento de "quem per­
de ganha", e além disso é como um caso digno de ser emparelhado com aque­
le da "bela açougueira", como paradigma da neurose obsessiva.
Trata-se do final de uma cura, como Lacan o indica no texto, assinalan­
do de infcio que o homem esgotou seus argumentos, e acentuando em seguida
o fato de que o caso se lê na perspectiva de um final de análise, o falo sendo
aqui, para Lacan, "como Freud o observou, a chave do que é preciso saber pa­
ra terminar suas análises e nenhum artiffcio suprirá isto para tal fim". O caso
vem ilustrar· essa observação - observação que a invenção do objeto a e a "Pro­
posição de 1967. . " não invalidam, mesmo se estas lhe dão um alcance novo.
.

Enfim, esse caso apresenta um traço de perversao (ao menos potencial­


mente) acoplado a um acting-out posto que o paciente tenta fazer reconhecer
pelo seu analista a função de sua homossexualidade latente e já pediu explicita­
mente a sua companheira que ela introduza outro homem no casal.
É sobre esse traço de perversão que eu quero focalizar a atenção, exami­
nando particularmente seu estatuto em relação com a funçao do falo, posto ser
nessa época o tema que Lacan desenvolve em toda sua amplitude ( 1 958).
Em sua análise (no momento em que Lacan situa a virada), o sujeito po­
de calcular sua posiçao em relação ao desejo do Outro, ou seja, situar o modo
de defesa segundo o qual se constitui seu desejo, modo aqui peculiar ao obses­
sivo: "impossibilidade de desejar sem destruir o Outro" - quer dizer, sem trazer
o A ao pequeno outro semelhante, em relaçoes rebaixadas ao nfvel imaginário
e sustentadas de agressividade.
Lacan lembra aqui que para "fazer reconhecer" ao sujeito em que ponto
está na sua C\lra, foi preciso, no entanto, que o analista pontuasse todos os des­
vios e os detalhes, ao mesmo tempo em que cuidasse para não analisar as agres­
sOes imaginárias (cf. sobre esse capítulo o que ele desenvolvia dez anos antes
em "A agressividade em psicanálise").
· A operação que se desenrola tem por efeito sintomático devolver ao sujei­
to uma possibilidade de desejar, depois que ele se queixou com seu analista de
uina impotência que ele atribui a sua homossexualidade latente. Num outro nf­
vel ele assinala a fase final da cura precipitando o cálculo do sujeito em relação à
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, o.4/5, jan�ez 1989 p.53-55
Pie"e-Gilles Gueguen

castração.
A operação sobrevem em resposta a uma interpretação não dada pelo ana­
lista mas pela companheira do paciente: ela sonha ter um falo e ela deseja que
esse fálo entre em sua vagina. Observemos, no entanto, que esta sequência é
contada a Lacan em sessão, e ele estima ainda ter que pontuá-la de uma inter­
pretação própria (da qual ele não dá a receita). Ele concede, porém, o valor in­
trínseco de interpretação ao enunciado do sonho que a comadre faz a seu parceiro.
A operação do. caso consiste pois, af onde se manifesta uma demanda do
paciente (demanda da qual podemos adivinhar que ela é feita sob o modo da
a na !idade), de fazer entrar em jogo a Bedeutung do · falo.
Lacan se recusa a interinar a alegação feita pelo paciente de sua "homos­
sexualidade", e daube a clínica americana que dá importância a esta descrição.
Jacques-Aiain Miller, em seu seminário de D.E.A., observa que o termo
de "fábula", que ele emprega a esse propósito, se aplica tanto à maneira que o
paciente tem de utilizar esse suporte para apresentar sua fantasia, como a utili­
zação que a clínica dos EUA faz em casos semelhantes do recurso à homosse­
xualidade como se tratasse de uma perversão estabelecida mas posta em reserva.
Parece-me que quanto a ele, Lacan prefere remeter no fundo essa alega­
ção a uma demanda anal Ja qual sempre pensou (cf. "Radiophonie") que era
um caso de incompetênci� do ana lista interpretá-la como tal.
Mas então, em que podemos considerar que essa fantasia, como toda fan­
tasia neurótica, é uma fantasia perversa?
Observemos de início que aqui a fantasia é uma designação pouco preci­
sa para evocar um estabelecimento da função significante de uma demanda (se­
gundo uma fórmula dos Escritos). Trata-se, então, nesse caso de mostrar as co­
ordenadas da passagem da escrita $ <> D a $ <> a .
O que é interessante no jogo de esconde-esconde d o qual s e trata nesse
caso, não é o imaginário da história (a saber, que essa mulher se apresenta pro­
vida de uma falo, ou seja, como um homem, erro onde se funde a tese, que La­
can repudia, da mãe fática e castradora).
A solução que Lacan dá é uma solução que, do ponto de vista clínico, é
muito sutil no manejo da dialética. Para que o falo, com efeito, possa operar
como significante, ele deve designar as duas vertentes do sintoma obsessivo:
por um lado o desejo do impossível (Lacan utiliza a fórmula: "denegação da na­
tureza" obsessiva) e a falta do sujeito que é também falta do Outro, encarnada
nesse caso pela castração da mulher. Somente então o desejo pode aparecer
sob o véu do que o desejo exige para subordinar à fantasia: a garantia e o im­
possível; mas a operação ela mesma, sem desvelar o falo, permite que um saber
sob sua efetividade se desprenda. O resultado é agora "apropriar o parceiro a
uma fantasia", e indica ao sujeito o que o divide. Ele lhe dá um apanhado sobre
o que ele maquinou sem saber.
Esta operação é novamente explicada por Lacan na "Subversão do sujei­
to... " (Écrits, p. 837). Lacan evoca nesse texto "a passagem da imagem fática
de um lado ao outro do imaginário ao simbólico". Isso designa no caso do ho­
mem na rodada do bonneteau, o efeito de retorno, sobre o sujeito, da interpre­
tação de sua companheira; ele aí indica que agora o falo muda de valor: "Por
mais que seja suporte de ( -1 ), ele aí se torna <I> (fi maiúsculo), o falo simbólico
impossível de negativar, significante do gozo. E é esse caráter do Outro que ex­
plica tanto as particularidades da abordagem da sexualidade pela mulher, quan­
to o que faz do sexo masculino o sexo frágil diante da perversão."
Lacan indica em seguida, nesse artigo, o jogo de escapada que se institui

54
Um traço de perversão
nesse momento que ele descreve como aquele onde o objeto a da fantasia se
substitui ao Outro. Temos pois uma sequência lógica: cálculo do falo, apreen­
são do- Outro · e estabelecimento da função do objeto a, que pode permitir o cál­
culo do objeto (série que enunciava Eric Laurent numa conferência na École
de la Cause Freudienne, em junho de 1990).
E é precisamente nesse momento de conclusão que a perversão pode se decla­
rar, no lugar da fantasia perversa do neurótico. Basta, com efeito, como Lacan
o indica na "Subversão do sujeito ... ", que "a perversão aí acrescente uma recupe­
ração do que nao pareceria nada original, se aí não interViesse o Outro como
tal de maneira muito particular".
Essa maneira muito particular, Lacan a designa como "se fazer instrumento do
gozo do Outro". ·

Para o neurótico então a série citada acima, pode se escrever assim:


s A
(-<P) �

Para o perverso, ela poderia talvez se formular:


s A
(-<P) �

para dizer que no momento onde aparece a falta no Outro, o sujeito não pode
consentir a se deixar dividir por ela e a negativá-la de novo.
Para terminar, eis aqui algumas consideraçOes sobre o caso de Gide que
Lacan aborda nos Escritos, acentuando o aspecto do fetichismo que ele comporta.
É uma posição clínica de Lacan: não abordar a homossexualidade enquan­
to tal, mas antes como um traço incluído numa estrutura clínica neurótica, per­
versa ou psicótica. Mede-se mal, sem dúvida, toda a modernidade dessa posição,
e notadamente que ela evita todo tratamento moralizante da questão, o que,
por exemplo, as categorias do DSM 111 de homossexualidade ego-sintônica ou
distônica não evitam.
Nessa ótica, poderíamos aproximar o caso de Gide e aquele do homem
da rodada de bonneteau por certos aspectos, e notadamente colocando em evi­
dência o fato de que Gide teve algumas experiências heterossexuais, o que indi-
ca que ele teria relação com a primeira operação lógica: (�) ; mas . a série pos­
terior o leva (seminário D.E.A. de Jacques-Alain Miller de 1989) a escolher
um objeto de amor único e totalmente separado de seus objetos de des.ejo, ao
mesmo tempo em que ele rejeita a divisão do Outro fazendo-a sua leitora privi­
legiada e testemunha de sua pureza literária (cf. episódio das cartas queimadas
-

por Madeleine ).
Quer dizer que diante da castração feminina, esse sujeito, assinando assim
uma posição perversa e não mais um traço perverso, escolhe um objeto rolha,
a saber, o objeto da demanda, sem maculá-la da falta fática.
Ele pois está mal pré-disposto para efetuar a operação _:, , ou seja, o cál-
culo em relação ao objeto a, que Lacan desenvolverá nos casos ulteriores e que
já está ao alcance do homem na rodada de bonneteau (cf. os exemplos da "Pro­
posição de 1967... ") que demonstram uma posição nova dos sujeitos em relação
ao objeto e da qual Eric Laurent colocou em evidência todo valor clínico quan­
do de sua conferência na ECF, em junho de 1990.

(1) N. das Ts: Jogo de ttês cartas que o bonneteau (banqueiro) embaralha após tê-las virado, o joga­
dor devendo adivinhar onde se encontra uma de suas cartas.

55
École de la Cause freudienne

A. Chaves, S. Cottet (relator), J. J. Gorog, Ch. Schreiber.


L. Solann. M n Wnrtel. A. Vaissermann, S. Yakobski

A HOMOSSEXUALIDADE NA NEUROSE

Tradução de Eliana Bentes

A fórmula célebre de Freud: "a neurose é o negativo da perversão" intro­


duziu, desde os "Três ensaios", a idéia de uma extensão dos traços perversos fo­
ra dos limites estritamente definidos da perversão manifesta. O caso de homos­
sexualidade é notável do seguinte modo: "A pretensão pela qual os homosse­
xuais e os invertidos afirmam que são seres excepcionais desaparece diante da
constatação de que nao há um único neurótico no qual nao se possa provar a
existência de tendências homossexuais e que um bom número de sintomas neu­
róticos sao apenas a expressao dessa inversao latente." (Introdução à psicanáli­
se, cap. 20).
Esta declaração, provocante para a época, adquiriu, hoje, um tal caráter
de evidência que sua significação se encontra fortemente desgastada: haveria
"tendências" em cada um.
Freud, entretanto, buscando determinar o vínculo entre neurose e homos­
sexualidade, nao considera nem que a perversão seja o real cujo sintoma seria
a vestimenta simbólica, nem que, na homossexualidade, a pulsao seja a céu aber­
to, nao recalcada. A precisao deste vínculo se fêz, em 19 19, com o caso da jo­
vem homossexual. A relação da neurose com a perversão não se resolve pela
oposição do manifesto e do latente. Da mesma maneira que na psicose a ho­
mossexualidade ppde ser totalmente manifesta, e, mais plenamente, o transexua­
lismo, da mesma forma o ato perverso não é exclusivo da neurose.
Foi Ferenczi que mostrou a compatibilídade da neurose obsessiva com a
homossexualidade que ele considera, neste caso, como um sintoma.
Mais tarde, nos anos 20/30, foi o berlinense Felix Boebm que praticou as
primeiras análises de homossexuais, demonstrando que é, realmente, uma trans­
formação do complexo de Édipo que domina a psicogênese do sujeito e que as
fixações pré-edipianas não dão conta do conjunto do quadro clínico. É o ponto
de vista oposto que prevalece hoje nos Estados Unidos.
Enfim, sem seguir Stoller, para o qual a homossexualidade não é um diag­
nóstico, mas, decorre da escolha do objeto como tal, contingente e independen­
te da estrutura subjetiva, pode-se, entretanto, sublinhar a variedade das condu­
tas abusivamente reagrupadas sob este mesmo vocábulo.
A heterogeneidade dos sintomas e dos atos legitimados sob esta rubrica
é tal que ela desqualifica a pretensão de isolar uma "pulsao homossexual" autô­
noma que joga sozinha sua partida no jogo do desejo.
Sempre integrada a um mixto (Triebmischung) interessante - tanto as pul­
sões parciais quanto a pulsao do eu, a parte dita homossexual da libido atraves­
sa o campo da clínica em muitos aspeCtos. Ela motiva, em última análise, a fuga
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.56�0
A homossexualidade na neurose

diante da mulher (é a homossexualidade como defesa contra a castração do ou­


tro sexo, segundo os clássicos). É, também, uma das figuras do complexo de
Édipo do menino: a atitude feminina em relação ao pai ou o Édipo dito inverti­
do, como no homem dos lobos. Notamos também sua proximidade com a libi­
do narcfsica que permite distinguir traços da mesma relação imaginária com o
outro. Enfim, ela tem seu lugar, a título de homossexualidade sublimada, no tra­
balho do laço social.
Vemos, também, se desdobrar o conceito de homossexualidade: por u m
lad ?L como significação suposta dos sintomas, por outro lado, como ato perver­
so. .b esta segunda acepção que devemos privilegiar, já que ela é a menos incon­
testável clinicamente.

Falsos perversos

Parece, então, que as práticas homossexuais manifestas podem ser encon­


tradas nos sujeitos neuróticos. Lacan precisou a estrutura desta relação: "Para
voltar à fantasia, digamos que o perverso se imagina ser o Outro para garantir
seu gozo, e é isso o que revela o neurótico imaginando ser um perverso: ele pró­
P,rio para garantir-se do Outro."(Subversion du sujet et dialectique du désir",
Ecrits, p. 824, 825).
Sonhar ser um perverso é sonhar com a existência de um parceiro cujo
desejo não causa angústia; positivando sua falta no fetiche, por exemplo, o su­
jeito se garante de um gozo não contaminado pelo desejo do Outro.
A neurose nesse sentido aparece como a verdade da perversão. O comple­
mento de uma perversão supre a impotência do sujeito para alcançar o parcei­
ro, graças à mediação do objeto fálico como suporte instrumental. Na homosse­
xualidade masculina, é o pênis que representa este papel, não como significan­
te do desejo, mas, antes, como objeto a, fetiche.
Compreendemos que esta disposição do gozo possa convir ao neurótico
especialmente obsessivo, levando em conta a função fálica que prevalece na sua
fantasia, ou seja, a equação fálica servindo para moeda de troca de seus objetos.
Lembramos do artifício imaginado por um obsessivo ao qual Lacan se re­
fere n"'A direção da cura" para suspender uma impotência e restituir à amante
seu valor fálico: que ela durma com outro homem. Ele sonha que é homossexual.
Entretanto, este cenário não autentifica, de forma alguma, uma homosse­
xualidade latente, onde o ciúme seria o alimento do desejo. Coloca, antes, em
evidência o lugar da mulher como objeto de troca, como não sendo toda dele.
Desta forma, ele lhe atribui a consistência do objeto que torna suportável a cas­
tração da mulher.
É verdade que existem aqueles que sonham com isto e aqueles que o rea­
lizam. A causa fálica do neurótico não se converte obrigatoriamente em homos­
sexualidade. Cabe, entretanto, privilegiar a homossexualidade na série dos cená­
rios perversos nos quais a neurose engata seu desejo. Temos prova disso no ter­
reno privilegiado da transferência.

Homossexuais sob transferência

Foi Maurice Bouvet que ilustrou nos anos 50 esta possibilidade, com nu­
merosos exemplos; eles certificam a docilidade do neurótico obsessivo face H

57
Serge Cottet et alii
uma técnica da direçao da cura que favorece os traços homossexuais da transfe­
rência ("Importância do aspecto homossexual da transferência de quatro casos
de neurose obsessiva masculina" - 1948). Supondo, com efeito, o obcecado en­
cerrado na jaula de seu narcisismo e logo dotado "de uma fraca corrente de libi­
do objetai", assistimos a ereçao de fantasias homossexuais, que têm como fuo­
çao, segundo Bouvet, abrir uma via de acesso ao outro por meio de uma ídenti­
ficaçao viril. No modo pré-genital e regressivo, as fantasias de felaçao realizam
a comuobao fálica com o analista e inauguram uma nova etapa das relaçoes de
. objeto.
Vemos, entretanto, nessas observaçOes, que o surgimento de fantasias ho­
mossexuais com relação ao analista oao obedece, de forma alguma, a uma lógi­
ca do desenvolvimento. Elas se manifestam em momentos privilegiados, sobretu­
do quando sao precedidas de pensamentos agressivos. O que Bouvet traduz
em termos de rivalidade imaginária nao é menos revelador de "(a angústia que
o Outro) inspira de oao ser um semelhante" (cf. Écrits, p. 615).
Em 1958, na "Díreçao da cura", Lacao julgava, severamente, uma técnica
que consiste para o analista em encarnar no real o peso e a medida da boa rela­
çao com o objeto, a título de ser ele mesmo o significante fático em pessoa. É
a condíçao para que se efetue um actíng out perverso, que consiste em se conse­
guir no real este agalma fático.
De um modo geral, Lacao oao buscou opor neurose e perversao por uma
diferença no desenvolvimento, mas, pela funçao que representa o operador do
("1') da castraçao na fantasia. Sua crítica de uma coocepçao da gênese da ho­
mossexualidade fundamentada no Complexo de Édipo invertido, segundo os clás­
sicos, permite precisar os avatares da metáfora paterna em cada caso.
Crítico da orientação de Boehm (The feminity complex in man - 1930),
Lacao faz observar que o Édipo do "homossexual" é normal e oao é discriminan­
te, do ponto de vista de uma clínica diferencial: neurose ou perversao. A rivali'­
dade com o pai existe da mesma forma que os traços de ídeotificaçao viril em
cada caso. Dito isto, Lacan limitou o campo da perversao propriamente dito,
desvinculando-a da demanda de amor dirigida ao pai. Assim, no "Homem dos
lobos", Freud designa com o termo homossexualidade o conjunto dos traços
de submissao passiva ao pai, cooseqaêocía de sua identificação com o gozo matemo.
A este registro de amor pelo pai, Lacao opOs uma versao que acentua o
objeto e, sobretudo, o objeto da fantasia; numa época em que se considerava,
apressadamente, por influência do Kleínísmo, que o pênis do pai era objeto da
cobiça do homossexual, Lacao se referia, antes, a uma topologia do objeto inter­
no. Ela correspoode a uma posição subjetiva .b em particular: é a angústia do
encontro com o pênis no interior do corpo da mulher que gera, propriamente,
a ínversao e a exigência de um reaparecimento do objeto no real.
É, pois, a fantasia da potência fálica da mulher, e oao do pai; que opera.
Sem dúvida, esta última oao é o atributo do homossexual. Para lhe garan­
tir uma especificidade, Lacao retomou as observaçOes de Boetlm para deduzir
uma conjectura propícia à .efetuaçao desta fantasia: a saber, um pai apaixona­
do demais pela mae do paciente, e que oao está em posição de representar a
lei de seu gozo.
Que possa daf resultar um acidente da metáfora paterna, é, realmente, o
que se passa no caso de André Gide; nao se poderia dizer que o desejo de sua
mae foi significado pelo falo. Uma conjuntura, vemos, que, favorecendo a per­
versao ao mesmo tempo, oao excluí as inibições, sintomas, angústia.

58
A homossexualidade na neurose

Homossexualidade e histeria

Para a menina homossexual, sem entrar no detalhe dos mecanismos típi­


cos, podemos, aí também, distinguir um traço de homossexualidade decidida, a
variedade dos traços de perversão que pode suscitar na histeria a incidência do
ideal feminino como o valor agalmático de sua imagem. (cf. a alvura do corpo
da Sr" K).
Podemos tomar como exemplo um caso de Masud Khan, onde o acting
out homossexual segue as manifestações de uma transferência exigente. Esta
permanece indecifrável para o analista que desconhece a demanda de amor diri­
gida �o pai que aparece nesta transferência. O encontro erótico com uma mu­
lher vem sancionar uma decepção desencadeada pela rejeição desta demanda.
A direção da cura seguida neste caso é instrutiva; é, efetivamente, no ras­
tro de uma interrogação sobre o próprio corpo, de uma "reconciliação" com o
corpo, que esta experiência realizou-se, enquanto satisfação narcísica. Bastou
que, em tal contexto, o analista desse um empuxo à mulher, para que a analisao­
te, nesse curto-circuito, se precipite numa perversão transitória.
Acting out, então, que, aliás, não teve nunca a autenticidade da perversão
manifesta, caracterizada pelo cuidado tomado com o gozo do parceiro, que im­
plica a vontade de gozo. Mas, a aproximação entre histeria feminina e homosse­
xualidade é maior.
A distinção estabelecida por Lacan em 1964 (Seminário XI), entre "desa­
fio" da homossexual e sustentação do desejo do pai na histérica, não deve levar
a concluir que há uma antinomia.
O traço de homossexualidade que a histeria comporta é compatível com
sua identificação viril: ela banca o homem e visa na sua parceira o objeto cobiça­
do do ponto de vista do homem. Ao mesmo tempo, o desafio militante, que in­
duz a contestação da ordem fálica, se afina com a rejeição da fantasia masculi­
na pela qual o valor fálico da mulher depende da sua castração.
Nos anos 70, a promoção em Lacan do discurso da histérica introduz, no
contexto geral do feminino, um elemento novo, propício para incluir a homosse­
xualidade na estrutura da histeria. Apreendemos que a histérica esteja interessa­
da na promoção de um discurso que faz, enfim, existir "A mulher", para além
de sua redução ao objeto que a fantasia sexual do homem impõe. Ela pode de­
nunciar o insuportável de só poder ser amada ao preço de sua castração, o que
é, com efeito, a posição subjetiva da homossexual. Assim, existe uma certa com­
plementação no casal que podem formar, ocasionalmente, uma histérica com
uma homossexual reconhecida. Ele contém a promessa de ser, enfim, amada
por ela mesma.
Enfim, se formos sensíveis a esta referência implícita ao terceiro masculi­
no na homossexualidade feminina, compreendemos que Lacan até sustente o
paradoxo segundo o qual as verdadeiras heterossexuais são as homossexuais:
elas fazem existir a mulher a título de complementá-las com um amor que não
implica, obrigatoriamente, em reciprocidade. ("L 'Etourdit").
Situação bem diferente da paixão amorosa no homem que, por mais hete­
rossexual que ela possa parecer relativamente ao sexo do objeto, é, contudo,
em muitos casos, mediatizada pela imagem narcfsica, ao ponto em que Lacan
pode fazer da "hommosexualité" (dois m), aquela do homem.

Revisão de Sara Fux.

59
Serge Cottet et alii
BIBLIOGRAFIA

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- "The feminity complex in man" I. J. P., XI, 1930.
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vrose obsessionelle masculine". (1948) in La relation d'objet, T. I., Payot.
Freud, S., "L'homme aux loups", in Cinq psychanalyses, PUF, 1967.
- Introduction à la psychanalyse, Payot, 1974: chap. 20.
- "Psychogenése d'un cas d'homosexualité féminine", 1919, in Névrose, psychose et perversion, PUF, 1973.
- "De quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie, la paranoia .et l'homosexualité", 1922, idem.
Gillepie, W., "The general theory of sexual perversion", L. J. P. n2 37, 1956
Khan, M., Figures de la perversion: "Rolê de la sexualité dans L'homosexualité féminine", GaJlimard, 1981.
Klein, M., Essais de psychanalyse, Payot, 1968.
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- "Propos directifs pour un Congrés sur la sexualité féminine", idem.
- "Jeunesse de Gide", idem.
- "Subversion du sujet et dialectique du désir", idem.
- Le Séminaire "Les formations de l'inconscient" leçon du 29.1.1958, inédit.
- Le Séminaire "Le désir et son interprétation", leçon du 13.5.1959, inédit.

Le Séminaire livre XX, Encore, Seuil, 1975.


"L'Etourdit", in Scilicet 4.
Socarides, Ch., The overt homosexuel, Ed. Grume and Stralton, New York, 196
Stoller, R, La perversion, Payot, 1978.
Revue Recherches: "Grande Encyclipédie des homosexualités, Trois milliards de pervers", mars 1973.

60
Jairo Gerbase

FANTASIA MASOQUISTA
E TRAÇO DE PERVERSÃO

Em que uma fantasia masoquista deve ser diferenciada de um traço


de perversão? Desde o instante em que o sujeito neurótico faz sua
fantasia perversa atuar, o limite entre a fantasia e traço torna-se im­
preciso.
Alguns fragmentos destinam-se a ilustrar essa questão que espera­
mos desenvolver clfnica e conceitualmente.

Nosso tema supõe que vamos limitar nosso trabalho ao exame de uma de­
terminada posição subjeiva, sustentada por uma fantasia que o sujeito pode ser
levado a atuar, de acordo com o cenário dessa mesma fantasia.

Histeria e perversão

Desde 1905, Freud teve necessidade de diferenciar as estruturas neuróti­


ca e perversa e o fez, do ponto de vista tópico, com esse postulado de que a his­
teria é o negativo da perversão, ou seja, de que uma fantasia "inconsciente" no
neurótico é idêntica a uma fantasia "consciente" do perverso.
É habitual que uma histérica realize uma fantasia num sintoma, porém é
possível que a realize encenando um atentado, ou uma sevícia. Por exemplo,
uma histérica pode simular um coito através de convulsão, pode também ence­
nar uma sedução de seu pai trancando-se em seu quarto. Pode, em seguida, de­
senvolver uma agorafobia.
Nosso tema também supõe outra coisa: que em nenhum momento vamos
dar ênfase ao mecanismo freudiano do desmentido, suscitado desde as observa­
ções do menino Hans e desenvolvido cabalmente no artigo sobre o fetichismo.
Isto porque o mecanismo do desmentido é específico da estrutura perver­
sa e nossas consideraçoes limitar-se-ao, efetivamente, à estrutura neurótica.
A menos que se possa falar de desmentido localizado, o que, para nós, é
uma interrogação.
Trata-se, em uma palavra, de examinar alguns comportamentos perversos,
sustentados por uma "fantasia recalcada". O termo é problemático, e quer dizer
que aqui se trata do recalque sensu lato da ausência de pênis na mulher.

Autoerotismo e gozo

Freud também teve necessidade de diferenciar as atividades autoeróticas


(o chupar, o onanismo da primeira infância, o prazer da micção e da defeca­
ção) das primeiras manifestações da libido na criança (prazer de ver, de mos­
trar-se, de sofrer etc) onde já se trata da escolha de objeto, isto é, onde a pre­
sença do outro torna-se essencial. Do outro, do corpo do outro, de parte do
corpo do outro ou, finalmente, de algo que o simbolize.
Vejamos um exemplo disso: um sujeito expressa sua fobia de contato atra­
vés do receio de haver contraído a Aids. Exibe uma diarréia que só será amenizada

FALO, Rovisla Bra•ilcira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1989 p.61 -64
Jairo Gerbase

através da sugestão de um Orixá - um cipó amarrado na cintura durante 3 dias, etc.


Ao examinar seu erotismo anal, ele passa a relatar uma prática masturba­
tória acompanhada da introdução de algo (uma escova de dentes) em seu ânus.
Somos levados a pensar que af está um exemplo do traço de perversão.
Eu oporia essa a outra descrição do mesmo sujeito segundo a qual, para obter
o gozo masturbatório, lhe era necessário a pré-condição de vestir-se com o bi­
quíni de sua irmã. Aqui aparece com mais clareza o traço de perversão de um
obsessivo. Entra em cena algo (uma peça do vestuário) do corpo do outro.
Fréud atravessa da ordem biológica à estrutural, à ordem do complexo
de Édipo. A diferença dos sexos é essencial para se entender a lógica da prima­
zia do falo e a escolha dos primeiros objetos de amor.
A significação do falo pode, todavia, não dar conta de todas as pulsões
parciais. E assim que surge a primeira elaboração do conceito de perversão.
Uma pulsao parcial determinada pode desobedecer ao domfnio do falo, pode
sofrer desfusão.
Uma ilustração disso é uma escolha homossexual como expressão de uma
neurose obsessiva e não de uma perversão propriamente dita. O prazer de olhar
de um homem cujo offcio é essencialmente estético, e que, por estar ferido em
seu narcisismo, fixa seu olhar no homem belo, consumando isso em relações
homossexuais.
Dividido entre essa e sua relação heterossexual onde frequentemente es­
tá impotente, sua relação homossexual se realiza com um amante. Sua divisão
se exprime entre dois amores: nesse caso, uma mulher e um homem. O que,
no entanto, caracteriza sua homossexualidade como neurótica é o fato de acre­
ditar que seu gozo é proibido, de acreditar que o Outro quer a sua castração.
Considerações dessa natureza levaria Freud a postular que não é o tipo
de escolha de objeto que qualifica a perversão.
Surge então a segunda elaboração do conceito de perversão: a do meca­
nismo que preside a escolha do objeto, ou seja, da relação do sujeito com a cas­
tração feminina.
O primeiro exemplo dessa segunda elaboração é o de da Vinci. A homos­
sexualidade platônica de Leonardo da Vinci considerada um traço de perversão.
Logo, para Freud, a estrutura perversa depende da posição do sujeito na
fantasia, ou, da localização do gozo do sujeito. Por sua vez, a localização do go­
zo do sujeito depende da relação do sujeito com a castração feminina.

Pu/são e perversão

Freud ainda distingue pulsao e perversão. Na obsessão encontramos o re­


torno da pulsão sádica em direção ao sujeito, porém sem que o mesmo ocupe
uma posição passiva diante do objeto. Há auto-punição mas não masoquismo.
Passa-se da voz ativa à reflexiva.
No sadjsmo, o sujeito avilta o objeto. Seu gozo é todavia masoquista, de­
vido à identificação com o objeto aviltado.
No masoquismo, o sujeito se faz objeto diante daquele que em sua fanta­
sia se faz de atormentador; seu gozo é devido à erotização da dor infligida pe­
lo parceiro: gozo também masoquista.
A pulsão voyeurista, o prazer de olhar o falo, é simultaneamente o prazer
de ter o pênis exibido. Esse é o movimento de reversão da pulsão.
No voyeurismo é necessário introduzir o outro, o parceiro do sujeito. O
sujeito se satisfaz em olhar um parceiro tomado como novo objeto na sua iden-

62
Fantasia masoquista e traço de perversão

tificação com ele.


No exibicionismo o olhar está dirigido para o próprio corpo. O sujeito se
faz objeto para um novo sujeito diante do qual se exibe.
O gozo é, em Lacan, um quarto tempo lógico da elaboração do conceito
de pulsão (Miller). É um conceito que reunifica a libido e a pulsao de morte.
Pode-se gozar com o seu próprio corpo (autoerotismo), pode-se conten­
tar com um pedaço do corpo do outro (fetichismo) e falamos de amor quando
o gozo é condescendente com o desejo.
O que em Freud é oposição externa (libido e pulsão de morte) em Lacan
se apresenta como antinomia interna, como nó de insatisfação, como sofrimento.
Esse conceito de divisão interna-o gozo, corresponde à divisão da pulsao,
ao prazer e menos-prazer unificados. O gozo é o conceito que acolhe simultane­
amente o prazer e o desprazer. É uma forma de satisfação que inclui em si mes­
mo seu contrário, que comporta sua própria negação (Miller). O masoquismo
é a melhor ilustração do conceito de gozo.

Fantasia masoquista e traço de perversão

O texto clássico "Uma criança é espancada" é um estudo de uma fantasia


de espancamento que se encontra em numerosos neuróticos.
Não se trata ainda nem de perversão, nem de traço de perversão.
Trata-se de uma fantasia de espancamento, cuja compreensão de sua ori­
gem pode permitir reconstruir a estrutura de uma perversão ou de um traço
de perversão.
Tal fantasia é um traço primário de perversão o que não quer dizer tra-·
ço de perversão.
A fantasia de espancamento inscreve a questão do ato perverso no quadro
do complexo de Édipo, ou seja, na relação do sujeito com o Outro (o pai), em
geral, segundo Freud, a partir do nascimento de um irmão.
Uma perversão infantil tal como Freud descreve a fantasia de espanca­
mento, pode vir a tornar-se uma perversão mas pode também sofrer outra vicis­
situde: ser substituída, recalcada ou sublimada. Por exemplo: o recalque de
uma pulsao sádica resulta em neurose obsessiva.
Toda vez que nos encontramos diante de uma perversão ou traço de per­
versão, podemos procurar seu ponto de partida numa fantasia de espancamen­
to dessa natureza.
A segunda fase dessa fantasia de espancamento que é inequivocamente
masoquista tem sido referida como a fantasia fundamental.
A fantasia masoquista é encontrada essencialmente em masoquistas verda­
deiros ou verdadeiramente perversos. Isso deixa supor existirem falsos perversos.
É qu e o masoquismo pode se exprimir em sessões sexuais masoquistas
com coito normal (Freud' e em práticas masturbatórias sustentadas por fanta­
sias masoquistas.
Isso é uma diferença, em Freud, entre perversão e traço de perversão?
Como formulá-la em termos estruturais?
Vejamos um exemplo: o sujeito é inequivocamente obsessivo, a julgar, en­
tre outros elementos, pela dúvida quanto a seu gozo, por sua indeterminação
subjetiva, por não querer gozar nem do corpo de um homem nem do de uma
mulher e, cada vez que tem a chance de fazê-lo, a anulação do desejo se opera.
Por isso ele goza só do seu próprio corpo, autoeroticamente, através do
gozo masturbatório. Até af, penso que ele é puramente obsessivo.

63
Jairo Gerbase

Porém, o fato de que para obter seu gozo autoerótico, masturbatório, lhe
é obrigatório pensar na crucificaçao de Cristo, ou nas torturas de escravos co­
mo os descritos em "A Escrava Anastácia" nos leva a pensar que ele realiza
um gozo perverso que deve ser caracterizado como um traço de perversao do
neurótico obsessivo.
Mas pode também lhe ocorrer encenar uma fantasia masoquista sem pas­
sar necessariamente ao gozo masturbatório.
Por isso, somos levados a concluir que uma fantasia masoquista deve ser
diferenciada de um traço de perversão. Falta à primeira a natureza de um ato
perverso que se acaba ou num gozo masturbatório ou num gozo sexual propria­
mente dito.

64
Jordan Gurgel

TRAÇO DE PERVERSÃO NA HISTERIA

A realização da posição sexual no ser humano está ligada à prova da tra­


vessia de uma relação simbólica, a do Édipo - que comporta uma posição de
alienação do sujeito, isto é: o faz desejar o objeto de um outro e possuí-lo por
procuração deste Outro.
Na mulher, a realização de seu sexo não se faz no Complexo de Édipo
de forma igual a do homem; não é pela identificação com a mãe, mas, ao con­
trário, é pela identificação com o pai.
Não é o instinto (como nos outros animais) que determina o destino se­
xuado e sim um mecanismo psíquico inconsciente (na verdade um fato de cultu­
ra) que empurra a menina para o pai - e não é porque ele é homem e por isso
ela se sente atr�ída, mas é pelo ódio à mãe (que é a iniciadora das relações libi­
dinais ativas e passivas. É através dos cuidados corporais iniciais que a criança
experimenta as sensações de prazer nas zonas genitais).
Há portanto uma dissimetria fundamental do Édipo no menino e na me­
nina. Freud, em 1938, no seu "Esboço de Psicanálise", cap. VII, nos diz: "é a
ameça de castração que dá fim ao complexo de Édipo no menino e, ao contrá­
rio, é a falta de um pênis que impele a menina ao Edipo".
Poderíamos resumir assim o complexo da castração na menina: inicialmen­
te haveria um ódio pré-edipiano: a menina traz a marca da insatisfação a partir
da perda do seio materno. Esquematicamente poderíamos dividir o complexo
de castração em 4 tempos:
1!?. Universalidade do pênis. A menina ignora seu órgão sexual (a vagina) e atri­
bui ao clitóris o mesmo valor do pênis.
2!?. Visualmente comparado ao pênis, o clitóris é inferior. A menina torna-se vft­
ma da inveja do pênis e sente-se castrada.
35?. A mãe é castrada; "fui castrada como ela". Ressurge o ódio pela mãe e a es­
colha do pai como objeto de amor.
Tempo final: Separação da mãe, o desejo dirige-se IJara o pai e para outros ho­
mens. Fim do complexo de castração e entrada no Edipo.
Diante da evidência da falta de pênis a menina teria 3 atitudes, a seguir,
que irão definir a sua feminilidade:
1!!. Diante de sua "desvantagem anatômica", recusa-se a entrar em rivalidade
com o menino, portanto não teria inveja do pênis e consequentemente se desvia­
ria de toda a sexualidade.
2!!. Nega o fato de sua castração e alimenta a esperança de um dia ser detento­
ra de um pênis; não desiste de sua masculinidade ameaçada. A fantasia de ser
homem permanece como um objetivo de sua vida. O clitóris continua como
um "peniszinho" e pode levá-la à escolha manifesta de objeto homossexual.
(Freud; 1912: Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre
os sexos)
A 3!! reação, que Freud chama de normal, é o reconhecimento definitivo
da castração. A mãe cede lugar ao pai e se inicia o complexo de Édipo - o clitó­
ris cede lugar à vagina. A inveja do pênis significa, neste caso, o gozar com o
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jao-dcz 1 989 p.65-67
Jordan Gurgel

penis no coito. E por fim ocorre a mudança do objeto desejado: o penis cede
lugar a um filho.
A busca da feminilidade é uma constante na vida da mulher, a partir de
uma multiplicidade de trocas, com o objetivo de encontrar um equivalente pa­
ra o penis.
Mas para Freud surge um impasse: a mudança de sexo (substituição do
clitóris pela vagina), e a mudança do modo de satisfação (substituição da ativi­
dade pela passlVldade), não dão conta da problemática feminina. O estatuto
do desejo de ter um filho e a identificação com o pai tampouco resolvem.
Para Lacan a problemática situa-se na divisao entre a linguagem e o cor­
po, entre o Simbólico e o Real. O questionamento da feminilidade encontra-se
para além da dialética do Significante e da Castração, seria da ordem de um "in­
significável", um "insubjetivável", algo em que não pode haver um traço no in­
consciente, senão sob a forma de um umbigo, um buraco, uma hiância.
Atrelado nesta idéia, Lacan define o problema da feminilidade como o
de uma falta no inconsciente, falta de recalque (já que só o significante pode
ser recalcado) - há, portanto, uma falta do significante que represente a mulher
· no inconsciente.
A mulher quer ser reconhecida como sujeito e isso só é possível se algo
advém no lugar dessa falta, e um dos caminhos para suprir esta falta é a HISTE­
RIA. A histérlca põe-se ao abrigo do falo, mas logo percebe que isso não a completa.
Toda a Clínica da Histeria gira em torno deste ponto de umbigo: o falo
que a histérica encontrou em seu pai é sempre insuficiente. O pai é estrutural­
mente impotente; ele não pode dar a ela o apoio esperado para assentar sua
identidade feminina. Há af uma falta .radical, mais que uma falta no recalque,
é uma impossibilidade de recalcar, porque o significante que deveria ser recalca­
do falta pura e simplesmente. Não há no Outro um significante do sexo femini­
no. É por isso que a histérica aborda a sexualidade à maneira do homem. Mas
onde estaria a parte feminina da feminilidade? Não há resposta para isso. No
entanto a histérica acha que tem: privada de sua feminilidade ela se coloca no
lugar de objeto de consumo entregue à perversão do homem. _

A Constatação de que a Histérica, a partir da identificação imaginária com


o pai, aborda a sexualidade à maneira do homem, não a faz homossexual no
sentido clínico do termo. Podemos falar na homossexuação do desejo, ligada
às identificações masculinas e femininas pelas quais teve que passar para interro­
gar sobre sua própria feminilidade.
No caso Dora, por exemplo, ela se identifica com seu irmão, seu pai e o
Sr. K, adotando uma posição masculina para saber do desejo da mulher, e é af
que ela se confronta com o enigma, o mistério da mulher, no caso a Sri!. K.
Joan Riviere, proeminente psicanalista francesa, contemporânea de Freud,
escreveu em 1929 (antes dos artigos de Freud: "A Sexualidade Feminina", de
1931, e "A Feminilidade", de 1932), um livro intitulado: "A feminilidade como
mascarada", onde defende a seguinte tese: "As mulheres que aspiram uma cer­
ta masculinidade podem se revestir da máscara da feminilidade (como a dama
da jovem homossexual), para afastar a angústia e evitar a vingança que tem da
parte do homem", ..."fazer-se de mulher, ou revestir-se de sua aparência pode
ser um modo de afirmar sua masculinidade que não pode ser explicada, neste
caso, como simples bissexualidade que seria inerente a homens e mulheres; nao
'leria uma tendência inata, mas seria o produto de uma interação de conflitos
e especialmente de uma reação contra a angústia".
Lacan, nos "Escritos" (Pg. 713 - "idéias diretivas para um congresso sobre

66
Traço de perversão na histeria

a sexualidade feminina"), nos diz sobre a perversao masculina: "O motivo imagi­
nário é o desejo de preservar o falo que é o que interessou ao sujeito na mãe.
Portanto a ausência do fetichismo na mulher deixa suspeitar um destino diferen­
te desse desejo nas perversOes que a mulher representa".
A partir destas 2 citações podemos deduzir que pode advir algo além da
fantasia homossexual na histérica (que seria uma vicissitude da própria feminili­
dade), algo da ordem de um gozo retido, não submetido à castração simbólica,
relacionado com a perversão polimorfa da criança. Estamos querendo dizer que
a mulher pode dar um passo à frente em busca de sua feminilidade, passando
. ao ato, colocando sua fantasia em ato.
Vejamos um fragmento de um caso clínico:
Erna é uma jovem Sr". que nos procurou trazida pela famfiia. Após a se­
paraçao do marido (há 6 meses), passou a vivenciar um certo deslumbramento,
com desinibiçao e euforia, levando-a a atitudes irresponsáveis, tanto profissio­
nais como em sua vida privada. Nas entrevistas iniciais quase não falava de sua
sexualidade; referia ter tido "casos" mesmo quando ainda casada, mas, atualmen­
te, apesar de muito procurada, estava arredia às investidas dos homens. Durao­
te 2 sessões ameaçou contar um segredo: "eu sei que você já está acostumado
com isso, mas é difícil falar ... mas você já sabe, não é?" O imaginário do analis­
ta funcionou; em silêncio, naturalmente.
Na 3!! sessao, contou que teve um relacionamento homossexual com uma
amiga da prima, na casa desta, onde estava hospedada. - "eu não sei como acon­
teceu ... ela é uma mulher incrível, linda, todo mundo comentava isso ... eu nun­
ca imaginei que ela fosse sapatao". Continua seu relato: " ... para mim ela é ao­
drógina ... transei 3 vezes e gozei muito ... era como um homem" ... "mas não te­
nho nada a ver com mulher ... você sabe que eu gosto de homem". Nas sessOes
seguintes passou a falar do interesse em reconciliar-se com o marido.
Sabemos que na Histeria o mecanismo estruturante é o recalque, diferen­
te do desmentido da Perversão, onde o sujeito reconhece e desmente a castra­
ção materna. Ele diz um não que resulta, ao mesmo tempo, em um sim e um
nao. Nao podemos então falar de perversão no sujeito histérico, mas sabemos
que este sujeito age, atua. O sintoma histérico é uma ação (nos diz Freud e La­
can); a conversão é uma manifestacão de um ato que expressa a divisão do su­
jeito, é uma encenação visando a realizaçao do gozo.
Para que ocorra um ato perverso é necessário passar do limite, ultrapas­
sar uma certa barreira imposta pela angústia de castração, no qual o neurótico
geralmente se detém. Mas ele pode ir adiante, colocando sua fantasia em ato,
passando ao ato e af teremos um traço de perversão em uma estrutura neurótica.
Voltemos aos casos clínicos:
No caso Dora, ela não faz da Sr!!. K sua parceira sexual, ela não coloca
em ato sua fantasia histérica de procurar uma outra mulher para dar conta de
sua feminilidade e portanto nao há traço de perversão em Dora, porque o tra­
ço de perversao sempre implica no ato do sujeito sobre a realidade.
Em Erna, a nossa paciente, a fantasia é colocada em ato e af temos um
Traço de Perversão em uma estrutura neurótica. A nossa reflexão e o propósi­
to deste trabalho é colocar o Traço Perversao na Histeria, como um recurso ex­
tremo da histérica na tentativa de dar uma resposta ao seu questionamento
em relaçao à sua feminilidade. No caso de Erna foi-lhe preciso fazer um ato ho­
mossexual para se dar conta da sua condição de mulher desejante, privada do
falo e colocar-se na posição de objeto do desejo do homem. Restou-lhe, por fim,
a opçao de reconciliar-se com o ex-marido.

Trabalho apresentado na 5� Jornada da Clínica Freudiana. Salvador · Bahia 09/06/90

67
Jésus Santiago

A TOXICOMANIA NÃO É UMA PERVERSÃO

I - Freud e a droga: a "satisfação substitutiva".


l.
É possível encontrar ao longo da obra de Freud vários vestígios dos seus
escritos sobre a cocaína, redigidos antes mesmo da emergência teoria analítica.
Trata-se das inúmeras referências sobre a suposta existência de um elemento
de "toxicidade" presente na base do funcionamento das pulsões. Tais vestígios
constituem uma das incidências do cientificismo de Freud, de sua indubitável
crença na ciência. Seu cientificismo poderia ser considerado como um dos aspec­
tos da constante confrontação estabelecida por Freud com o domínio da ciência.
Neste sentido, se em Freud não há um tratamento específico da toxicomania,
por outro lado, ele ocorre no tocante à droga.
Bem mais tarde, no final de sua obra a droga aparecerá sob a formulação
de uma "satisfação-substitutiva" ( 1) [erzatsbefriedigung], decorrente do mal-estar
na civilização. Entretanto, num primeiro momento, o chamado "biologismo de
Freud" faz da droga um elemento capaz de fornecer uma termodinâmica das
pulsCles onde o gozo se cifraria como energia, Lacan menciona aí o erro de
Freud em ambicionar uma cifragem do gozo, que encontraria no futuro da ciên­
cia sua explicaçao póstuma (2). Mais tarde a droga se inscreverá no texto de
Freud não somente no registro de uma energética ou de uma homeostase, co­
mo algo que se cifra, mas, ao contrário, como algo que se decifra. Se decifra
enquanto um "mais-gozar", inserido no curso da satisfação pulsional do sujeito.

li - Glover, a droga e a toxicomania: objeto-parcial e estado transicional.

Esta aproximação entre a droga como "sastisfação-substitutiva" e o gozo


será radicalmente extingUida com a noção de objeto parcial. Após Freud, a dro­
ga não escapará a mais uma das tantas reduçCles teóricas realizadas a partir des­
ta noção. É curioso notar os impasses de Glover para situar a perversão e a to­
xicomania em seu sistema. De início, ele ensaia, à sua maneira, uma opção pe­
la noção de traço de perversão, acreditando que tanto a toxicomania como a
perversão existiriam em "associação seja com um ego normal, ou com formas
de psicose bem definidas (3)". Mas, fimdmente, elas serão concebidas uma varia­
ção dos estados "boderlines" descritos por Glover como o grupo dos "estados
transicionais".
Nos parece importante salientar que, no encontro da toxicomania com a
psicanálise, deriva-se mais este elemento de degradação da teoria . analftica con­
cernente aos estados "boderlines" (4}. Através de um complexo sistema classifi­
catório Glover propõe a "reduçao do abismo entre as psicoses e as neuroses
(5)". Este sistema se estabelece a partir de uma ordenação das diferentes séries
de desenvolvimentos paralelas às estruturas clínicas freudianas em consonância
com os mecanismos primários de introjeção e de projeção.
· Uma destas séries paralelas constitui os denominados estados transicio­
nais que se impõem através da elaboração ldeiniana de posição, destituindo assim to-
FALO, Revista Brasileira do Campo freudianó, n.4/5, jan-dez 1989 p.68-72
A toxicomania não é uma perversão

da e qualquer referência ao conceito de estrutura. A toxicomania enquanto esta­


do "transicional" se localiza entre a paranóia e a neurose obsessiva. Os mecanis­
mos de projeção destes estados transicionais são considerados mais localizados
e disfarçados que os da paranóia, mas, bem mais resistentes que aqueles das
afecções obsessivas. Suas raízes se encontram, portanto, nos estados paranóides,
mas, considerando o fator de preservação de uma relação adequada à realida­
de, a toxicomania mantem laços estreitos com a neurose e particularmente com
o fetichismo (6).
Essa intrincada assimilação da toxicomania a um estado transicional se
complementa ainda com a hipótese kleiniana do "édipo-precoce", concebida co­
mo fase pré-genital, portadora de uma forte carga de sadismo. Por outro lado,
o "édipo-precoce" permitiria a existência de uma série de situações edfpicas nu­
cleares, às quais o toxicômano estaria fixado. A toxicomania se constitui portan­
to, a partir da fumção a um "sistema edípico transicional, sistema que se encon­
tra entre os núcleos edfpicos mais primitivos, responsáveis pelas angústias para­
nóides, e os núcleos responsáveis pelas reações obsessivas mais tardias (7)". Sua
função defensiva é de dominar as cargas sádicas consideradas menos violentas
que as da paranóia e mais severas que aquelas das formações obsessivas. Na to­
xicomania os mecanismos de projeção são concentrados e localizados sobre as
drogas, onde o ato de se drogar aparece como proteção contra uma reação psi­
cótica advinda do processo de regressão.
Para Glover, a toxicomania viabiliza a localização das reações sádicas ca­
racterísticas dos "sistemas paranóides sobre as drogas nocivas, e desta maneira
o toxicômano é capaz de preservar o sentido de realidade (8)". A toxicomania
se transforma numa espécie de escudo protetor das alterações do sentido de re­
alidade. Em resumo, trata-se de uma estratégia de estabilizaçao do sentido de
realidade obtido através da defesa contra o sadismo próprio dos sitemas paranóides.
É nesta abordagem da estabilização das relações do toxicômano ao senti­
do da realidade que Glover propõe uma verdadeira justaposição entre a toxico­
mania e a formação perver.sa e fetichista, estas últimas, consideradas por ele
particularmente frequentes no sintoma toxicomanfaco. Tanto na toxicomania
como na perversão haveria preservação do sentido de realidade pelo "processo
de libidinização que anula ou mantém em suspenso os sistemas de medo irreal
através da neutralização do sadismo (9)". Em suma, nesses dois casos haveria
preservação da realidade em todos os domínios com exceção da droga para o
toxicômano e do fetiche para o perverso.
Na transição entre os sistemas paranóides e aqueles de uma reação nor­
mal à realidade, a toxicomania e o fetichismo "representam de um lado a conti­
nuidade do sistema de angústia em condições mais restritas, e de outro, o início
da expansão de um sistema de apaziguamento (10)". Segundo Glover, quando
por uma razão ou outra, uma certa forma de angústia infantil é reanimada ou
exacerbada na vida adulta, uma resposta possível consiste no reforço das libidi­
nizações primitivas através da droga ou do fetiche.

III - Toxicomania: "mais-gozar" particular.

Durante o Seminário sobre "O desejo e sua interpretação" Lacan nos suge­
re, vivamente, a leitura do texto de Glover como exemplo do que seria "um er­
ro revelador da apreensão da pesquisa freudiana sobre a perversão ( 1 1)".
A inspiração capital de Glover reside no discernimento da . função de pro­
teção que o sujeito encontra no curso das formações perversas, particularmen-

69
Jésus Santiago

te no caso do fetichismo. A perversão constitui um meio de conter as dilacera­


çoes próprias, ao que não pode ser dito numa realidade coerente. Ela aparece
como um "meio de salvação, através do qual o sujeito pode assegurar a esta re­
alidade uma ex-sistência contínua". É inegável a onipresença da função perver­
sa ao longo do sistema de Glover onde a toxicomania desempenha o papel de
coadjuvante. Lacan assinala em diferentes momentos desse seminário o remane"
jamento das estruturas freudianas realizado pela toxicomania, concebida por
Glover como etapa intermediária entre o que se define cronologicamente co­
mo o primitivismo das psicoses e a organização ulterior das neuroses ( 12).
A meu ver, uma das dificuldades de Glover é precisamente a caracteriza­
ção da finalidade desta função de proteção nas formaçOes perversas. Protege­
se contra o processo regressivo em curso nestas formações, afim de evitar a dis­
solução do sentido de realidade própria às psicoses. Esta função de proteção é
evocada por Freud no tema do fetichismo. Não se trata, entretanto, de uma pro­
teção genérica contra uma psicose eminente mas à realidade precisa da angústia
de castração. Sua hipótese sobre o fetichismo não autoriza nenhuma referência
à constituição de um sentido da realidade. Ao contrário, ela diz respeito a uma
perda, à perda de um fragmento da realidade bastante específico, a saber a au­
sência do falo na mãe.
O sujeito fetichista se encontra no impasse de decidir entre o consentimen­
to e o desmentido [Verleugnung] da realidade da castração. Em relação à instaura­
çao desse conflito entre a "reivindicação da pulsão e a objeção feita pela realida­
de ( 13)" os tradutores franceses remarcam a utilização de uma terminologia jurí­
dica, evidenciando que tal realidade não é pensável fora da função significante ( 14).
Na realidade tal reivindicação se exprime através de uma moção pulsio­
nal dirigida à instância do Outro sobre o invólucro de um desmentido. O feti­
che se apresenta como desmentido desse pedaço de realidade que encarna a
ameaça de castraçao. A realidade para Freud tem como ponto-de-partida u m
mais-além d o vivido do sujeito; ela traz e m seu cerne o horror d e castração, sua
consistência se funda na dimensão da fantasia. Para Freud toda satisfação obti­
da pelo sujeito através de um desvio dessa realidade se pagá com um fragmen­
to do Isso. A perda da realidade que se configura como um processo caracterís­
tico das psicoses em função do rechaço da castração e não de um déficit da re­
alidade, concebida como pura objetividade.
Para Lacan, o funcionamento do campo da realidade exige a constituição
da fantasia como fator estruturante essencial do sujeito. Por sua vez, a relação
da fantasia à realidade da castração é objeto de uma derivação lógica que encer­
ra em última instância o processo de extração do objeto (a), processo decisivo
na sustentação do campo da realidade. Assim, o "pouco-de-realidade" alcançá­
vel é um produto da operaçao de incidência do significante sobre a privação ori­
ginária do sujeito. Esse "pouco-de-realidade" se instala no limiar do recorte ope­
rado pelo significante no real que, no ensino de Lacan, aparece em decorrência
desta operação de extração.
Para Glover, a realidade é um a priori, onde o princípio da castração é
substituído pela objetividade de uma etapa preliminar, preparatória, referente
à faculdade do sujeito em conservar um efetivo contato psíquico com os obje­
tos que permitem a gratificação da pulsão. O fetiche e a droga são tentativas
de uma retificação funcional dessa realidade, concebida como "reàlity testing",
numa cooptaçao imediata ou automática da reivindicação pulsional ao objeto
da pulsao. A droga e o fetiche, enquanto obj etos-parciais, seriam responsáveis
pela regulagem de todas as outras relações objetais. ·

70
A toxicomania não é uma perversão

O texto de Freud nos permite fazer uma aproximaçao entre a droga e o


fetiche segundo um outro vetor de orientaçao teórica. Retomando a formulaçao
da droga como "satisfaçao-substitutiva", é possível ressaltar a operaçao de subs­
tituiçao que se instala sob o fundo de uma angústia fundante. Na verdade esse
processo de substituição se apresenta com muito mais rigor no caso do fetiche,
pois ele concerne precisamente à ausência do falo materno. Com relação à dro­
ga, nós somos obrigados a admitir uma certa indeterminaçao do elemento a ser
substituído, que só adquire concisao caso por caso e segundo a estrutura do sujeito.
Salienta-se portanto que o revestimento de angústia presente no fetiche
e na droga, chamados como medida de proteçao e garantia pelo sujeito, se fa­
brica em torno da castraçao. Eles aparecem na tentativa de proteção do sujei­
to através do corte da angústia proveniente da castraçao. Se há uma relaçao
da droga com o gozo, ela aparece em funçao do que se poderia designar como
seu traço de fetichismo. Como no fetichismo a droga aparece como uma tentati­
va de barrar a deriva metonfmica de um objeto que falta. Sabe-se que se o feti­
che se constitui numa relação metonímica ao falo materno, ele é também uma
metáfora pois fixa o gozo em um ponto da anatomia feminina ( 15).
A toxicomania se constitui numa forma de sintoma que consente ao sujei­
to uma relaçao de continuidade ao gozo do corpo a partir da subtraçao do go­
zo que o Outro lhe impõe no processo da castração. Para o sujeito, trata-se de
uma operação de recuperação do gozo que foi subtraído pelo Outro e que se
encontra de alguma forma desvanecido no Outro. Podemos estabelecer um pa­
ralelo entre essa manobra de restituição do gozo com os objetos tomados nas
margens do Outro, a saber: o objeto (a) enquanto "mais-gozar" reivindicado
ao Outro. Neste sentido, a toxicomania enquanto um "mais-gozar" particular
evocaria na modernidade o gesto público de rrta.�turbaçao como signo da satisfa­
ção cínica considerada no registro de um tratamento médico do gozo (16).
É evidente que o modo de satisfaçao cínica que aparece no horizonte da
toxicomania se mostra insuficiente para toda e qualquer aproximação entre toxi­
comania e perversão. Para tal seria necessário a identificaçao da droga como
um elemento que especificaria um uso perverso da fantasia. Nós sabemos que
a satisfação masoquista se constitui um paradigma do modo de gozo da estrutu­
ra perversa e não o que se afirma como satisfaçao cínica presente na toxicoma­
nia, considerada aqui com uma "forma de sintoma".

VI Encontro do Campo freudiano tarços de perversão nas estruturas clínicas


Simpósio do Campo freudiano - Belo Horizonte Brasil - Paris Julho 1990

NOTES

1. S. Freud, Malaise dans la civilisation, P. U. F., p. 19.


2. J. Lacan, Télévision, Seuil, p. 36.
3. E. Glover, "The relation of perversio-formation to lhe developement of reality-sense" (1932), lnl
J. Psychoan., 1932, vol. 13, p. 486.
4. É inegável que o conceito de "estado-limite" resulta de uma série de contribuições da teoria analítica,
onde nós podemos incluir Glover e Stern, mesmo se sua origem remonta às descrições da "folies
limites" de C. Hugues. Deve-se notar, entretanto, que Glover prefere para a toxicomania a expres­
são "transitional" e não "boderline" que ele reserva aos estados mais próximos da psicose.
5. E. Glover, "The relation of perversio-formation to lhe developement of ceality-sense". op. cit., p. 491 .
6 . E . Glover, O n the aetiology o f drug addiction (1932), Inl J . Psychoan, 1932, vol. 13, p . 324.

71
Jésus Santiago
7. lbid., p. 315.
8. E. Glover, "The relation of perversio-formation to the developement of reality-senae", op. ciL, p. 491.
9. lbid., p. 499.
1 o. lbid., p. 502.
11. J. Lacan, le s�minaire, livre VI, le Désir et sou interpretation, (1958), in�dit, 13 mai 1959.
12 lbid., 11 juin 1959.
13. S. Freud, "Le clivage du moi dans le processus de défenae" (1938), Ré�ultat, idées, problemes, PUF,
p. 284.
14. J.-L. Gault et d'autres, "Structure du f�tichisme", Traits de perversions dans les structures cliniques,
Navarin, p. 29.
15. lbid., p. 31.
16. J. Lacan, La logique du fantasme, le �minaire, livre XIV, in�dit, 10 de mai 1967.

72
Maria do Rosário Collier do R�go Barros

GIDE E MADELEINE: UM ATO DE MEDÉIA

Como dizer algo deste texto de Lacan, objeto de nosso cartel, "A Juventu­
de de Gide", que tem como subtítulo "a letra e o desejo", e onde está em ques­
tão, entre outras coisas, o problema da relação do homem à letra?
Lacan se apoia, neste escrito, nos livros de Jean Delay ( 1 ) e de Jean Schu­
lumberger que fazem a psicobiografia de Gide, utilizando para isto o que ele
chama "pequenos papéis", ou seja, notas pessoais, diário íntimo, caderno de lei­
tura e toda a sua enorme correspondência.
A letra, então, se refere af ao conjunto dos escritos de Gide, seus roman­
ces e todos esses "pequenos papéis", onde as cartas tomam um lugar todo espe­
cial, sobretudo pelo vazio deixado por aqueles que Madeleine Rondeaux-Gide,
prima e esposa de Gide, queimou.
Madeleine descobre o que ela sempre quis . ignorar: as relações homosse­
xuais de Gide quando ele parte para a Inglaterra ao encontro do amante, pelo
qual tinha se apaixonado.
Então, desesperada pela "transfiguração por amor" que ela percebe pela
primeira vez nele, e num movimento de "ciúme elementar", como diz Schulum­
berger, ela queima as cartas endereçadas a ela por Gide durante 30 anos de cor­
respondência, após lê-las uma por uma.
Diante desta traição, ela diz ter que fazer alguma coisa. "Eu tanto sofri...
Eu queimei tuas cartas para fazer alguma coisa ... "
Este ato, Lacan o compara ao ato de Medéia, ato pelo qual Madeleine
mostra claramente que ela se separa do ser ideal que Gide quis fazer dela (2).
Ato que Lacan considera como o de uma "verdadeira mulher", "em sua
inteireza de mulher".
É deste ato que cu gostaria de partir para tentar apreender, levando em
conta o efeito dele sobre Gidc, o que este escrito de Lacan pode nos ensinar
sobre a articulação da letra e do desejo, ou, mais precisamente, da letra e do
gozo. Digo da letra c do gozo porque parece ser o que se revela a partir do va­
zio deixado por essas cartas queimadas. Essas cartas, diz Lacan, "ocupavam o
lugar mesmo de onde o desejo se retirou" (3).
Neste vazio as cartas, enquanto objeto, vieram se instalar.
A reação de Gide a este vazio, que encontramos no que ele escreve no
seu diário íntimo e -no seu escrito "Et nunc manet in te", nos revela a dimensão
de objeto "a", de condensador de gozo dessas cartas, às quais Lacan dá um esta­
tuto de objeto fetiche.
Então, o gozo não está presente explicitamente neste texto, mas na sua
presença está aí indicada no vazio deixado pelas cartas queimadas que, ao desa­
parecerem, revelam sua função de gozo.
A letra é aí abordada no momento em que ela falta, é queimada, o que
denuncia sua dimensão de objeto.
É importante sublinhar aqui o equívoco da palavra "letre", em francês,
que reenvia tanto à carta como a letra.
Então: a letra-carta e o desejo.
FALO, Revista 13rasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1 989 p.73-75
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

a letra carta e o gozo.


Para abordar esta questão, o primeiro passo é tentar estabelecer relaçlio
da carta com o significante e a letra.
A carta tem sua incidência de significante no trajeto que lhe é próprio
de mensagem, e tem também sua incidência de objeto. Enquanto significante, ela
veicula uma mensagem. Em suas significações, ela tem um endereçamen­
to que é o Outro, tesouro dos significantes. Já enquanto objeto, ela tem um
destino: o lixo.
As cartas, depois que realizam sua função de mensagem, permanecem co­
mo um resto: como as cartas de Gide, na gaveta fechada à chave do escritório.
Este resto, quando atrelado ao Outro, tem um valor de objeto precioso­
agalma, e, quando dele destacado, revela seu estatuto de dejeto. De "palea", co­
mo dizia São Tomás de Aquino no final de sua vida, a respeito do conjunto de
sua obra.
Por isto, as cartas têm um destino, além do endereçamento. Lacan sem­
pre se interrogou, desde seu Seminário sobre a Carta Roubada, a respeito do
destino desta carta-letra, além de seu endereçamento como significante.
Este destino da carta-letra, ele é sempre alcançado, pois logo que é ende­
reçado ela se perde, infringindo ao sujeito uma perda, uma falta, que tem efei­
to sobre ele.
É o que Lacan nos diz quando escreve:
"É assim que o que quer dizer "a carta roubada", ou seja, "em espera", é
que uma carta chega sempre ao seu destino ( 4) . .
É isto também que Gide parece dizer, quando escreve, em seu romance
"Tentação Amorosa", que o livro tem uma influência sobre aquele que o escre­
ve, "porque saindo de nós, ele nos muda.. .".
Quando Lacan diz "a carta-letra chega sempre ao seu destino", está já ar
fazendo referência ao seu destino como objeto, e não ao seu endereçamento
como significante.
Podemos dizer com Lacan que, se assim não fosse, não teria sentido o ri­
tual de devolver as cartas amorosas, quando se termina uma história de amor.
Se tento fazer esta distinção aqui, é para ajudar a entender o valor de ob­
jeto dessas cartas que não tinham cópia, não tinham duplo, o que confirma sua
dimensão de objeto "a", não especularizável.
Madeleine, ao queimá-las, impinge a Gide uma perda irreparável, obrigan­
do-o a um trabalho de luto que parece mais desembocar num luto patológico,
melancólico.
Em seu diário, Gide diz que nestas cartas ele colocou o melhor dele, ele
confiou nelas seu coração, sua alegria, enfim, sua alma. Elas eram para ele co­
mo um filho.
Lacan, em "Televisão", diz que o que dá consistência à ilusão da alma é
o corpo, enquanto inércia de gozo, que sobrevive à decadência, enquanto duplo
inerte do corpo que não envelhece.
Nestas cartas Gide descobre estar o seu ser. Elas tinham então para ele,
uma função além da função significante de mensagem.
Que função é esta? Condensador de gozo, objeto fetiche.
Com elas, ele fazia de Madeleine A MULHER, TODA, além de que elas
eram um complemento precioso à sua obra literária, que ele endereçava à poste­
ridade.
A MULHER TODA, provida deste atributo fático que para o homem fun­
ciona como fetiche, tentando encobrir sua falta.

74
Gide e Madeleine: Um ato de Medéia

Ele a constitui assim, como objeto de seu amor, amor etéreo, como dizia
ele, não carnal, e evitava de se confrontar com o desejo dela. Ele a provia des­
tes objetos, acreditando com isso lhe dar o gozo que faltava e que não conse­
guia, dar de outra forma, porque nos, braços de uma mulher ele se sentia de
mármore e ela se tornava uma estátua. E o que ele diz em "Se o Grão não Morre ... ".
Ele se assegura de um gozo, se pode dizer assim, não contaminado pelo
desejo (vontade de gozo).
Estas cartas é o que liga Gide c Madeleine. Este ato de Medéia produz
assim, como diz Lacan, uma fratura na consistência imaginária deste laço, fazen­
do ecoar sem cessar para Gide o "não há relação sexual".
Com este ato, Madeleine o obriga a confrontar-se com a "não relação se­
xual" que ele tentava tanto fazer existir.
Ela o obriga a confrontar-se com a falta na mulher, nesta mulher não toda.
Por isto, por este ato, ela se torna uma ''verdadeira mulher", ou seja, ape­
nas uma mulher, castrada, desejante, que, como tal, "só é sem ter", como diz
Lacan no Seminário "0 Desejo e sua Interpretação".
Diante desta constatação, Gide entra num trabalho de luto que, com a
morte de Madeleine, se torna infindável, patológico.
Por que?
Minha hipótese é de que este trabalho de luto, frente ao buraco no real
aberto pelas cartas queimadas; como pela morte de Madeleine, exigia de Gide
separar-se, ou seja, subjetivar a perda de um objeto já perdido desde sempre
que ele tentava, pelo objeto fetiche, fazer existir, para em sua "vontade de go­
zo" devolvê-lo ao Outro.
Perder este objeto ao qual ele mesmo estava identificado, era perder seu
próprio ser, o que para ele significava morrer.
Gide escreve: "Perdi o gosto de viver, tudo me é indiferente. Eu só vivo,
desde este ato, de uma existência póstuma, e como à margem da verdadeira vida".
A morte aparece justamente aí, onde a castração parece impossível para
Gide, porque tem que ser desmentida.
A sombra do objeto recai sobre o sujeito, como diz Freud em "Luto e
Melancolia" a propósito do luto melancólico. Gide, identificado a este objeto,
cairia junto com ele.
No trabalho de luto, o objeto fica sempre perdido e o Outro para sempre
descon;pletado. O sujeito pode, então, investir um novo objeto.
E este trabalho que Gide não consegue completar.
Queria terminar com uma frase de Gide que ilustra essa dificuldade com
a castração e a particularidade do seu trabalho de luto.
"É o melhor de mim que desaparece e que não contrabalança mais o pior".
O pior, podemos pensar, é justamente para ele a falta radical do Outro,
a falta radical da mulher.
Para as jornadas de Cartéis do Corte Freudiano.

NOTAS

1. Jean Delay que Lacan tanto elogia, tem o mérito de criar o que ele chamou de psicobiografia, on­
de não é de uma história natural dos espíritos que se trata, como em Saint-Beuve, onde a obra apa­
rece como um reflexo puro e simples da vida do sujeito.
Ao contrário deste, Delay toma todos esses "pequenos-papéis" endereçados por Gide à posterida­
de, através dele, enquanto biógrafo, em sua dimensão de ficção, de fantasia.
2. Lacan diz na pág. 761 dos Escritos, comparando Gide a Jasão: "Pobre Jasão: parte para a conquista
do tosão de ouro da felicidade, ele não reconhece Medéia!" Medéia, mulher de Jasão, o ajuda com
sua magia na busca desse tosão de ouro - espécie de troféu, de graal, objeto agalmático. Mas Jasão
a tra i. E para vingar-se, ela mata, estrangula seus filhos.
3. J. Lacan: Escritos, pág. 762.
4. J. Lacan: Escritos, pág. 41.

75
Sonia Alberti

A HOMOSSEXUALIDADE DE ANDRÉ GIDE

"0 hotel estava situado fora da cidade, cujos arredores, deste lado, são
arenosos. Fazia pena ver essas oliveiras, tão belas no campo ao redor, submergi­
das pela metade na duna movediça. Um pouco além, éramos surpreendidos por
um riacho, um magro curso d'água, surgido da areia o tempo suficiente para
refletir um pouco do céu antes de ligar-se ao mar. Uma assembléia de lavadei­
ras negras, acocoradas perto desse pouco d'água doce, tal era o assunto diante
do qual vinha de se instalar Paul." ( 1) Paul era companheiro de viagem de An­
dré Gide, ambos virgens, tendo partido juntos de Paris em 1893 para conquista­
rem no norte da África aquil_o que antes por "timidez, pudor, nojo... " (2), não
haviam experimentado. "Eu havia prometido juntar-me a ele; mas, por mais can­
sativa que fora a caminhada na areia, eu deixei me levar para a duna por Ali -
esse era o nome do jovem carregador:" que acompanhava o turista francês "nós
atigimos em seguida um tipo de funil ou de cratera, cujas paredes dominavam
um pouco a paisagem, e donde era possível ver chegar. Assim chegado lá, sobre
a areia em cdeclfnio, Ali joga xale e mantô: ele lá se joga a si mesmo e, todo
deitado de costas, os braços em cruz, começa a me ohar rindo. Eu não era to­
lo a ponto de nao compreender seu convite: mesmo assim não respondi imedia­
tamente. Sentei-me, não longe dele e, no entanto nem tão próximo, e, olhan­
do-o fixamente por minha vez, esperei, com grande curiosidade, pelo que ele
iria fazer ( ...). Sobre o limite do que se chama: pecado, eu ainda hesitava? Não;
eu ficaria por demais decepcionado se a aventura tivesse que se terminar pelo
triunfo de minha virtude - que (então) eu já desprezava, eu já tomara em hor­
ror. Não; foi bem a curiosidade que me fez esperar... E eu vi seu riso lentamen­
te dissipar, seus lábios se fecharem sobre seus dentes brancos; uma expressão
de tristeza sombreou eu rosto charmoso. Enfim ele se levantou:
"Então, adeus, disse ele.
"Mas pegando a mão que ele me estendia, eu o fiz rolar pelo chão. Seu
riso imediatamente reapareceu. Ele não se impacientou por muito tempo co­
mo os nós complicados de seus laços que faziam a vez do cinto; tirando de seu
bolso um pequeno punhal, ele cortou de uma só vez o emaranhado. A roupa
caiu; ele jogou longe sua camisa, e se levantou nu como um deus. ( ... ) No esplen­
dor adorável da tarde, de que raios se vestia minha felicidade!... (3)
Essa foi, relatada pela pena do próprio escritor, a sua primeira experiência.
A outra, descrita no mesmo livro, relata sobretudo o estado no qual Gi­
de se encontra após uma cena dessas que ele chama de puro prazer:
"Minha felicidade foi imensa e tal que eu não posso imaginá-la mais ple­
na se o amor af se misturasse. Como haveria af questão de amor? Como eu te­
ria deixado o desejo dispor de meu coração? Meu prazer era sem ruminaçOes
e não devia ser seguido de nenhum remorso. Mas como eu chamaria então mi­
nhas exaltações ao fechar em meus braços nus esse pequeno corpo selvagem,
ardente, lascivo e tenebroso?...
"Eu fiquei por muito tempo, depois que Mohammed me deixara, num es­
tado de jubilação fremente, e, mesmo já tendo, a seu lado, atingido cinco vezes a
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.76-82
A homossexualidade de André Gide

volúpia, eu revivi muitas vezes ainda o meu êxtase e, retornando ao meu quar­
to de hotel, prolonguei até o amanhecer os seus ecos.
( .. .... .. ........... )
.. .. .

"Aonde eu passava da medida era nisso que se seguia, e é af que para


mim começa o estranho (l'étrange); tão embriagado que estivesse e tão exaus­
to, eu não tinha parada e descanso senão quando levava a exaustão ainda mais
longe. Várias vezes experimentei depois o quanto era vão procurar me mode­
rar, apesar do que me aconselhava a razão, a prudência; pois cada vez que o
tentava, me foi preciso em seguida, e solitariamente, trabalh!).r até essa exaustão
total fora da qual eu não experimentava nenhum descanso ( ... ). Por ora, eu não
me encarrego de explicar nada; sei que será necessário deixar a vida sem ter
compreendido nada, ou muito pouco, do funcionamento do meu corpo." (4).
Dois anos após aquele primeiro episódio, Gide se casa finalmente com
sua prima Madeleine Rondeaux, à quem ele dedicara seu eterno amor desde o
episódio em que a encontrou chorando, quando tinha quinze anos, com a pro­
messa de protegê-la do mal e da vida. É uma promessa de amor puro, aquilo
o que na experiência com Mohammed não teria a menor razão de ser, pois, se
com Mohammed Gide vivera um puro prazer, seguido de nenhuma ruminação
senão de uma exaustão extrema, com Madeleine, a mulher é idealizada a pon­
to de se tornar única, e única também a fazer ruminar seu coração. O amor de
Gide por Madeleine foi também extremo, escreve Lacan, pois se amar é dar o
que não se tem, Gide deu a Madeleine a imortalidade.
E no entanto, essa clivagem. Quando Freud escreve seu texto inacabado
sobre o assunto, ele o introduz pelo meio da perversão cujo modelo é sempre
o do fetichismo. Freud escreve na ocasião: "A saída normal do horror da castra­
ção é então que o menino se submete à ameaça por meio de uma obediência
total ou pelo menos parcial - não levando mais a mão ao genital ( ... )" (5). E, fa­
lando de um paciente, Freud continua: "Nosso paciente encontrou uma outra
saída. Ele arranjou um equivalente para o pênis da mulher que faltava, um feti­
che. Com isso aliás ele desmente (verleugnet) a realidade mas salva o seu pró­
prio pênis, podendo prosseguir impertubavelmente sua masturbação" (6). Se es­
se recuo diante da realidade beira a psicose, há aí, no entanto, uma grande dife­
rença, conclui Freud. O paciente não contrariou a sua percepção alucinando
um pênis ali onde não havia algum, mas ele operou somente um deslocamento
de valor, transferindo a significação do pênis a uma outra parte do corpo da
mulher. E, no entanto, esse não é todo o desmentido. Se de um lado, a mastur­
bação pode. continuar, sem nenhuma proibiçao da parte do Outro ridiculariza­
do, por outro, a angústia necessariamente surgida, a partir da percepção des­
mentida, amarra a realidade a um respeito pecuniário. É no que tange o Outro
enquanto realidade que a devoção é todo respeito. Daí essa incisão incurável
no eu, que aumenta com o tempo, e que mostra quão pouco de razão temos
ao atribuirmos ao eu o lugar de síntese. Se é na clínica da Verleugnung que se
evidencia a divisão, a característica que daí ressalta é a perfeita identidade des­
te amor com a demanda, ambos dissociados do desejo com o significante que
mortifica.
Na clínica das neuroses Freud já havia postulado, anos antes, a divisão
subjetiva - Escolha amorosa do homem ( 1 9 1 0) (7). Na escolha amorosa, no ca­
so aí relatado, a fixação na mãe curto-circuita o desejo de maneira que af a bar­
reira do incesto torna o desejo impotente (8). Dessa forma a clivagem se torna
possível: de um lado as mulheres vulgares, objetos sexuais de puro prazer co­
mo diria Gide, aonde se confirma, de alguma forma para o sujeito, a sua virili-

77
Sonia Alberti

dade. De outro lado a esposa, escolhida no reflexo dos caracteres maternos, ob­
jeto de puro amor, o que faz da impotência psíquica o segundo fator de maior
incidência na queixa do psicanalista - como diz Freud no texto que se segue àque­
le, na trilogia sobre a vida amorosa. No amor, a mesma demanda, mas no dese­
jo a marca da impotência que está longe de reconhecer no desejo a marca do
significante que mortifica.
A homossexualidade não é da ordem da perversão em geral. A questão
pois que se coloca é a de saber se estamos diante dessa divisão tal qual Freud
a desenvolve no texto de 1910, o que nos fará concluir uma homossexualidade
neurótica, ou se, como em Gide, a homossexualidade aponta não para uma im­
potência do desejo mas para um desejo, que, com diz Lacan, jamais foi humani­
zado (9).
Do quebra-cabeça de sua história, dos petits-papiers aos textos auto-biográ­
ficos, passando pelos romances que, como dizia Delay, psicobiografavam o artis­
ta, o que nos fica hoje que nos permite diagnosticar mais esta do que a outra
das hipóteses?
A começar, como mostrou Stella Jimenez em seu trabalho, um enigma,
o qual o próprio autor nos deixa de forma consciente: deixando a vida sem na­
da ter compreendido, ele relega a tarefa ao psiquiatra. E aqui Gide se diferen­
cia fundamentalmente de Schreber que tem certeza de seu delírio e em suas
Memórias procura mostrar ao psiquiatra aquilo o que seus contemporâneos não
queriam entender.
Se Gide tivesse querido realmente esclarecer o enigma, ele não o poderia
ter tentado? Sua passagem rapidíssima no divã de Mme. Sokolnicka, deixa mais
uma vez a questao da análise quando o traço não é traço mas estrutura, e sua
observação sarcástica para com Freud e a psicanálise no tempo em que o Pai
da Psicanálise ainda era vivo, de maneira que ele poderia tê-lo procurado pesso­
almente, demonstram que aquele excesso estranho não trazia problemas para ele.
Se no início Gide ainda viveu a relação com Mériem - prostituta árabe
com a qual foi bem sucedido -, o desejo ali não insistiu. Assim que apareceu a
mãe, mesmo a tendo afrontado anunciando que iria rever Mériem, Gide não ti­
nha mais coragem ( 10) para repetir a experiência. É no longo fio de Ariadne
que o desejo se imprime. Não, ao contário, o objeto de escolha homossexual
torna-se, após Mohammed, a sua "normal", de forma que , o desejo se normali-
za aí na clandestinidade, como diz.
E no entanto, escreve Gide, há muito mais formas de homossexualidade
que um heterossexual pode supor, e uma faz horror a outra. Assim Gide se hor­
roriza quado assiste a penetração anal de Mohammed. Nada disso é para ele.
"Para mim, que não compreendo o prazer senão face a face, recíproco e sem
violência, e que muitas vezes, igual a Whitman, o mais furtivo contato satisfaz,
eu fiquei horrorizado por um lado pelo jogo de Daniel, e por outro, de ver se
prestar, tão complacente, Mohammed" ( 1 1).
Nada disso escaparia a Freud já em 1905 em seus Três Ensaios ... , ou se­
ja, somente dez anos após essa experiência de Gide, já postulava que "Entre os
homens a relação per anum não corresponde de forma alguma à inversão; mas­
turbação é de igual frequência o único alvo, e delimitações do alvo sexual - até
o simples espargimento sensível (Gefuehlsergiessung) - são aqui até mais co­
muns do que no amor heterossexual ( 12).
Delay já aponta que o modo de gozar em Gide não sofre qualquer altera­
ção com a puberdade. O prazer sempre foi e sempre será masturbatório. Evi­
dentemente não se trata aqui de falta de criatividade, Gide dá vastas provas de

78
A homossexualidade de André Gide

que sofre tão pouco da falta desta como da falta de poder condensar em seu
objeto sexual as duas tendências - a terna e a prazerosa. Trata-se antes de um
alvo sexual que veio para ficar, para se substituir ao gozo primário da primeira
infância, fenômeno que Lacan identifica a um "mimodrama de sua histeria infan­
til": a quebra da louça, a estranha metamorfose de Gribouille, que nesta época
o levam ao orgasmo.
Vertente do ser nessa criança solitária, educada na mais estrita moral pro­
testante, e para a qual fica a pergunta: foi ou não foi desejada? Delay contra­
põe a história de Kafka à de Gide: Kafka é o filho de uma mãe dece e de um
pai tirânico, Gide é filho de um pai doce e de uma mãe tirânica ( 13). E é claro
que quando se coloca essa pergunta é sobre o desejo da mãe que nos perguntamos.
Há um certo momento em que Gide esclarece esse desejo. É quando a
mãe diz: eu não vou deixar você ser um virtuose no piano pois há algo melhor
para você do que simplesmente interpretar as obras dos outros ( 14). Gide já
era quase adulto mas isso não invalida o fato de que aí se reconhece um dese­
jo da mãe. E se reconhecemos que todo desejo é desejo do Outro, a obra literá­
ria de Gide está aí para respondê-lo. E no entanto ...
Em 1884, no dia de ano novo (Gide tinha quatorze anos), voltando da ca­
sa de Anna Shackleton, "já contente de si, do céu e dos homens, curioso de tu­
do, alegre de nada e rico imensamente do futuro" ( 15) Gide viu de repente, des­
cer no céu em sua direção, como em resposta à sua felicidade, uma pequenina
coisa voadora e dourada, à maneira do Espírito Santo. "Eu levantei a mão; um
lindo canário nela se alojou; ele palpitava como meu coração que eu sentia en­
cher meu peito.
"Voltei correndo para perto de minha mãe, contente de trazer o canário;
mas sobretudo o que me enchia, o que me levantava da terra, era a certeza en­
tusiasmante de ter sido celestialmente designado pelo pássaro. Eu já me inclina­
va a me acreditar uma vocação; quero dizer uma vocação de ordem mística;
me parecia que uma espécie de pacto secreto me ligava dali em diante, e quan­
do ouvia minha mãe desejar para mim tal ou tal carreira ( ... ) eu me prestava a
seus projetos por conveniência, ( .. ) como se prestaria alguém a um jogo, mas
.

sabendo bem que o interesse vital estava em outro lugar. Por um pouco eu te­
ria dito a minha mãe: Como disporia eu de mim? Não sabe então que eu não
tenho o direito? Você ainda não compreendeu que eu sou eleito? Eu acho mes­
mo que um dia em que ela me empurrava a escolha de uma profissão, eu lhe
retruquei alguma coisa desta ordem." (16)
Não é possível datar pelo texto o que veio antes e o que veio depois na
história de Gide, se foi a mãe quem lhe disse primeiro que ele serviria para al­
go melhor do que simplesmente interpretar a obra dos outros ou se foi essa cer­
teza mística, que beira o delírio, de ser eleito pelo Espírito Santo e que se repe­
te inúmeras vezes em seus textos autobiográficos. Provavelmente ambas passa­
gens são concomitantes, pois não resta dúvida que as duas dizem respeito a
uma e mesma coisa. A elas não é possível deixar de associar todo o sentimento
de solidão e de dessemelhança experimentado por Gide desde a memória a
mais remota e que deixou esta marca de palavras ditas com desespero aos on­
ze anos, pouco depois da morte do pai: "eu não sou igual aos outros! Eu não
sou igual aos outros!" ( 17).
Desespero que evoca o mesmo Schaudern, que poderíamos traduzir co­
mo 'calafrio na espinha do ser' (tremblement du fond de l'être, como diz Delay),
e que Gide já experimentara, quando seu pai ainda era vivo. Lacan o retoma,
esse Schaudern, para mostrar que aí se aloja sua própria morte. Algo que pode-

79
Sonia A/bem

rfamos dizer: Schaudem em Schaudem o ser morre mais um pouco, de manei­


ra que Gide via se desdobrando cada vez mais, dando-lhe, como diz Lacan, a
dimensão da persona na qual se torna. É da .dialética entre vida e morte que se
trata aqui e não do que o histérico se pergunta: sou homem ou mulher?
Se existe algo que falta a Gide não é absolutamente o Nome-do-Pai, mas
o pai enquanto objeto de desejo da mãe e vice-versa. Desse casamento dos dois
não sobra nada senão a aliança ingrata da qual o pai só se desvencilha com a
morte prematura. Onze anos de casamento no século passado, numa famOia re­
ligiosa como a de Gide, sem nem mais uma gravidez, só podem ter uma explicação.
Juliette Rondeaux - mãe de Gide - casou-se tarde, por insistência da famf­
lia, quando seu desejo já se satisfazia com a presença de Anna Shackleton, a
governanta e amiga. De moral puritana, encarava a vida como um dever e mui­
to provavelmente assim também se ofereceu a seu marido para conceberem An­
dré. De Paul Gide ela se queixou certa feita a André já adulto: se seu pai me
tivesse dito pelo menos alguma vez que me achava bem e bela na sociedade...
Paul Gide passava a maior parte de seu tempo no escritório em casa, templo
ao qual às vezes convidava Gide - raros momentos em que este passava com o
pai que, diante das diferenças nas opiniões pedagógicas entre o casal, deixara
toda a educação de seu filho a encargo da esposa a qual, segundo Gide, era tão
déspota quanto espetava. Juliette achava que a criança tinha que se submeter
sem procurar compreender, Paul guardando sempre a tendência a lhe explicar
tudo. Com a morte do pai, Gide chegou mesmo a ler livros que teriam feito so­
frer o pai se este o visse, tais como os de Mme. de Ségur. Razão pela qual es­
sa morte do pai já é a duplicação do que faltava, reavivada mais uma vez, mui-
·

to mais tarde, com a queima das cartas por Madelaine.


O gozo af se cristaliza em torno dos personagens das estórias de Georges
Sand e de Mme. de Ségur. Quando mais tarde conhece o desejo, a partir de
uma identificação com a tia (mãe de Madelaine) que o deseja, este já não po­
de ser vivido senão na clandestinidade. E é assim também que não deseja Made­
laine nmas quer protegê-la do mal e da vida. O pai já falecido não podia mais
humanizar esse desejo, diz Lacan. E daf que não é à toa que Gide escolhe os
meninos: de uma lado identifica os meninos com o objeto de desejo que não
foi; de outro, um homem e um menino, eis af a versão do pai, a pere-version.
A primeira confirmação vem da reação de Gide diante do cadeado que
colocam para impedf-lo de brincar: ele compra outra chave e espera poder com
isso sacanear com o Outro. Tal qual no caso da jovem homossexual, a idéia
aqui é ridicularizá-lo. Mas do ridfculo da interdição Gide já fizera antes a expe­
riência: a primeira vez que vai à escola aos nove anos é suspenso por masturba­
ção em sala de aula. Os pais, preocupados, o levam a um médico que, colocan­
do diante dele uma série de instrumentos cortantes e extirpantes, faz da amea­
ça de castração alguma coisa à qual Gide não vai atribuir a menor crença: seria
violento demais para poder ser verdade. E, finalmente, se ainda temia na infân­
cia a "crique qui croque" (espécie de moura torta ou bruxa), ele passa a achá-la
engraçada "rigolo", depois.
Como já vimos, a masturbação é o alvo ao qual a pulsao se fixa pois o fa­
ce a face se assegura da existência do falo no outro. Se já na obra há duplicação,
nessas cenas de puro prazer, em espelho, Gide se assegura de que nada venha
ali faltar. Não há tampouco af questão para o sujeito. Mas se isso não coloca
questão para Gide, esse não questionamento é diférente do não questionamen­
to de um Rousseau, por exemplo. Para Rousseau - um dos autores favoritos
de sua juventude - , a crença é dada pelo qut" sente, não lhe restando outro pa-

80
A homossexualidade de André Gide

râmetro em sua paranóia. Para Gide, ele crê no que sente mas porque isso o
coloca na série dos autores que começa a encontrar então - de Goethe a Proust,
passando por Nietzsche e Oscar Wilde, e que lhe restituem a vida. Para estes,
trata-se de levar a lei do Outro às últimas consequências, o que nós, lacanianos,
não podemos deixar de associar à obra de Sade. Gide escreve: "Começou a me
parecer que o dever não era talvez para cada um o mesmo, e que Deus poderia
ele mesmo ter em horror esta uniformidade contra a qual protestava a nature­
za, mas ao que tendia, me parecia, o ideal cristão, pretendendo macerar a natu­
reza. Eu não admitia mais senão as morais particulares e apresentando às vezes
imperativos opostos. Eu me persuadia que cada ser, ou pelo menos: cada elei­
to tinha que desempenhar um papel sobre a terra, o seu precisamente, e que
não se assemelhava a nenhum outro... " ( 18). E é então que Gide relê o Evange­
lho com novos olhos, denunciando o que dele fizeram as Igrejas, e projetando
escrever: O cristianismo contra Cristo ( 19). "Emancipar-me da regra; legitimar
meu delírio, dar razão à minha locura" (20). E é assim que Gide ergue uma no­
va moral, em adoração a um Apolo desconhecido (21), com a ajuda de Goethe,
a ajuda de Nietzsche, e que tem como Outro o seu Corpo Próprio, a Natureza
do romantismo alemão, o Diabo que no seu corpo se aloja e, finalmente, a pró­
pria Literatura. Seu gozo vem completar esse Outro, e como escreve ao que vi­
mos no início, esse gozo é da ordem da exigência, do imperativo "diabólico" que
deve ir além da exaustão, nesse gozar face a face, onde a castração não se mos­
tra. Daf que até a velhice pode dizer: "eu não sou senão uma criancinha que
se diverte" e, confirmando o que Freud disse em 1938, "eu não colo, eu jamais
pude colar perfeitamente com a realidade. Não há nem mesmo, propriamente
falando, desdobramento que faça que, em mim, alguém continue espectador
daquele que age" (22). Haveria prova mais explícita da redução do Outro à divi­
são subjetiva? "Não: é aquele mesmo que age, ou que sofre, que não se leva a
sério. Eu creio mesmo que na hora da morte, eu me direi: 'tiens! il meurt' (o­
ral ele morre)" (22).
Mas se é em Goethe que primeiro encontrou a mensagem, reconcilian­
do-o com a vida, é também a partir de sua leitura que ele pode deixar cair sua
inibição e tornar-se escritor a ponto de vir a ser Prêmio Nobel de Literatura.
Finalmente, na adolescência, sua mãe o obrigava a escrever cartas para a avó
paterna, que escrevesse qualquer coisa, mas que escrevesse sempre ... Essa litera­
tura, até o último momento, seis dias antes da morte, como diz Gide, é também
um imperativo (23).

Trabalho apresentado nas Jornadas de Cartéis do Corte Freudiano em 23 de junho 1990.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1. GIDE, André Si /e grain ne meurl in Joumal 1939-1940 Souvenirs, Paris, Bibliotheque de la Pieda-
de, Gallimard, 1954, Vol 104, p. 560.
2. Idem, p. 552.
3. Idem, pp. 560-1.
4. Idem, pp. 593-4.
5. FREUD, Sigmund "Die Ichspaltung im Abwehrvorgang" (1938) in Studienausgabe, Frankfurt a. M.
, S. Fischer Verlag, 1975, VoL III, p. 393.

6. Idem.

81
Sonia Alberti
7. FREUD, Sigmund "Ueber einen besonderen Typus der Objektwahl beim Manne" (1910) in Studie­
nausgabe, op. cit,. Vol. V.
8. Cf. C01TEf, Serge Freud et /e désir du psychanalyste, Paris, N avarin, 1982. p. 154.
9. LACAN, Jacques "Jeunesse de Gide ou la Jettre et )e désir" (1958) in Écrits, Paris, Seu i!, 1966. pp. 753-4.
Com relação a essa falta da palavra que humaniza o desejo, gostaria ainda de acrescentar que sem
ela o desejo permanece identificado à sujl causa e, jamais submetido ao - da castração, impossibili­
tando o "immer was anderes", fixando o alvo da pulsão.
10. GIDE, A, op. cit., p. 569.
11. Idem, p. 596.
12. FREUD, Sigmund "Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie" (1905) in Studienausgabe, op. cit., VoL
v. p. 57.
13. DELAY, Jean La jeunesse d'André Gide, Paris, Gallimard, 1956. VoL 1, p. 267.
14. GIDE, A, op. cit., p. 516.
15. Idem, p. 478.
16. Ibid.
17. Idem, p. 439.
18. Idem, p. 542.
19. Idem, p. 607.
20. Idem, p. 606.
21. Idem, p. 570.
22. GIDE, André "Ainsi soit-il ou Les jeux sont faits" in Joumal ... op. cit., pp. 1226-7.
23. Idem, p. 1243.

82
Marie Claire Boons

POSIÇÃO PERVERSA E FIM DE ANÁLISE

Tradução de Elza Marques Lisboa de Freitas

P ropor-se ao Outro ser "sua" falta, até mesmo lhe oferecendo por ser sua
própria morte em se servindo desta parte vazia, perdida - preservada? - na Alie­
nação significante, e assim, do próprio lugar daquilo quP neste Outro faz lacu­
na, questionar um desejo do qual se trata de provar - nos três sentidos desta
palavra, seja "pór o desejo do Outro à prova", "reconhecer se ele tem as qualida­
des requisitadas", "sentir" este desejo, - tal seria o "gesto" do sujeito que Lacan
inscreve no coração mesmo do segundo processo de "causação" do sujeito, aque­
le da Separação. Como sabemos, esta interseção das hiâncias, desenha o lugar,
em abismo, do objeto "a", o objeto que faltará sempre, e que circunscreve a pulsão.
Sabemos também que, em seu intinerário circular em torno do objeto per­
dido, a pulsão que parte do corpo e a ele faz retorno, não sem haver por um
instante excedido o princípio do prazer, por um ganho transitório do gozo, rom­
pendo assim o equilíbrio mantido das tensões internas do aparelho psíquico, es­
ta pulsão se serve necessariamente de um objeto qualquer, indefinidamente subs­
tituível, do qual ela espera um efeito de retorno ligado à suscitação do objeto
perdido. Quer dizer que utilizando este qualquer objeto, a pulsão abre, no pró­
prio lugar da perda, a possibilidade fulgurante de preenchê-la, e é sobre isso,
sobre esse ganho de gozo, que no instante seguinte ela se fecha.
Para Freud, como para Lacan, a montagem pulsional e o trajeto que ela
implica, ressalta de uma subjetivação sem sujeito que lhe advém de ter desapa­
recido sob o surgimento identificatório de sua Alienação no Outro do significan­
te. É pois esta parte vazia de todo significante que é posta em risco no proces­
so de Separação, acomodada à falta percebida no Outro.
Em outros termos: o sujeito faz de seu desaparecimento um objeto para
o outro e este objeto, declara Lacan, é talvez o primeiro objeto do sujeito. O
primeiro objeto que ele (o sujeito) propõe a este desejo parenta!, do qual o ob­
jeto é desconhecido, é sua própria perda - PODE ELE ME PERDER? - (Os
quatro conceitos, Ed Francesa p. 194).
Com repeito à problemática do sentido, constituída na Alienação, pode­
mos resumir as coisas assim - coagulado sob um primeiro significante fora senti­
do, o S I que o prende a um qualquer ideal recebido do Outro - o sujeito sucum­
be, quando da colocação em circuito do S2, o segundo significante, pelo qual o
sentido se introduz. Este segundo significante é portanto responsável pela que­
da do sujeito, (por seu recalque originário), e por sua entrada no jogo do senti­
do e do não sentido.
Na Separação, é sua parte fora sentido que o sujeito arrisca: ele faz de
sua perda, - e, em sua fantasia, de sua morte - o objeto do desejo do Outro, o
"Che vuoi?" advindo na transferência: "Que quer ele de mim?" passa por um
"Pode ele me perder?" questão cuja incidência toma ao final do tratamento uma
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1 989 p.&3-86
Marie Claire Boons

forma radical.
Assim, ao se incluir como falta no Outro, o sujeito se faz ser, o "se faz"
remetendo aos modos próprios da libido em jogo na pulsão. Em busca dos obje­
tos sempre cessfveis, nos limites das zonas erógenas que ela recorta sobre o cor­
po e separa de suas funções, a pulsao se liga à produção em eclipse do objeto
perdido. Como sabemos, para que o objeto funcione como causa, é necessário
que haja af um traço desta perda. O objeto perdido só é perdido se passa pela
provação de sua queda. É um objeto que foi perdido, cuja perda provoca o de­
sejo e que, no instante reversivo da pulsão, vai surgir e se perder. Que é, se per­
dendo. Não é um objeto foracluído que não estaria no campo. Está no campo
e a pulsão o faz circular na vacilação de seu jorramento e de sua escapada.
Os suportes do objeto perdido são hoje célebres, tantas vezes enumera­
dos, e são fundamentalmente quatro, mas, podemos contar entre eles, além da
placenta evocada no livro XI do Seminário, o falo como; objeto imaginário, o
jato de urina, o fonema, o nada. (Écrits, p. 8 17). Eles materializam a perda, de­
la são "as figuras": se eles oferecem um suporte de ser a parte desaparecida do
sujeito, servem também para simbolizar o mais profundo "objeto perdido" do
qual nos é dito no Livro XI do Seminário, que ela é esta parte de si mesmo que
o vivente perde por ter que entrar no ciclo sexual para se reproduzir.
Por isto Lacan propõe a pulsao como tendo duas faces: ela presentifica a
sexualidade no inconsciente, e (ela) representa, em sua essência, a morte.
Modelada em torno do objeto a pulsão é, portanto, - no início de um cor­
po "aparelhado" pelos significantes, - em tomada de contacto com um real de
um gozo sempre em excesso sobre aquilo que dele faz passar como sexualida­
de, na economia psíquica inconsciente e na dialética do desejo. Mas ela repre­
senta também a morte e dizer da pulsão que ela representa, é, ao mesmo tem­
po, colocá-la a partir das leis significantes: é engajá-la nos circuitos do semblante.
Na pulsão, o sujeito não está lá, ou melhor, como dissemos, ele só está
Já segundo sua parte vazia, aquela ejectada de sua inscrição alienada ao significante.
Ora, um dos traços que distingue a pulsao da perversão é principalmente
que na perversão o sujeito está Já encarnando o objeto perdido, a "totalização
do laço": na própria perversão do circuito pulsional, onde implicou um outro
qualquer, o qual divide ou angustia, e do qual recebe na vergonha, na surpresa
ou no viés de uma identificação imaginária, seu ser de objeto: este objeto que
em sua "encenação" o perverso vem a ser, não é o objeto "a" enquanto ausência,
no qual se margeia sua busca, mas, em seu lugar exato, um destes, perdidos e
por um instante restituídos, que o figuram: voz, olhar, seio, fluxo de merda, flu­
xo de urina etc.
Atribuamos um lugar à parte no teatro perverso, à posição masoquista
do sujeito, a qual não é, como se empenha em sublinhar Lacan, o puro e sim­
ples avesso do desejo sádico.
Evocarei aqui uma paciente muito antiga. Ela se lembra de uma frase que
foi decisiva para uma longa paixão amorosa. "Eu te dobrarei à minha lei", esta
frase única pronunciada pelo homem encontrado, nela desencadeou um orgas­
mo. A continuação da ligação fez aparecer, ao nível sexual, um modo de rela­
ção intenso e cúmplice onde ela gozava ao ser forçada à obscenidade. Este ho­
mem tornou-se para ela, nos instantes repetidos de um gozo obtido, a voz de
comando enquanto ela perdia progressivamente toda possibilidade de uma pala­
vra que fosse sua. Quando ele se apaixonou por uma outra mulher, certamen­
te ela não faltou ao encontro com a dor e nem em se constituir como dejeto
desta relação, afinal bastante banal, tanto assim que caracteriza em nossas sacie-
Posição perversa e fim de análise

dades, os lugares ainda ocupados por homens e mulheres.


Mas o que importa sublinhar e que foi produzido, decifrado passo a pas­
so, no tratamento desta mulher, é o modo singular de fracasso de sua inscriçao
significante, como se um fantasma marcasse no real, as situações de sua vida.
Na verdade, o que esta mulher buscava era um pai a altura de sua função
e em suas relações amorosas aparentemente heterossexuais, tal como esta aqui
evocada, ela não cessava de cair sobre uma mãe que fazia a lei. O que nos sig­
nificantes lacanianos poderia ser traduzido assim, talvez: um significante respon­
dia, com certeza, ao chamado do s2 no Outro, mas este segundo significante re­
petia algo do primeiro. Era duas vezes o mesmo, e não o mesmo a vir em segun­
do. Era necessário, portanto, a qualquer preço, para não se coagular pura e sim­
plesmente sobre o S 1 isolado, manter a distância entre os dois significantes, pa­
ra que aí houvesse no mínimo dois.
Sua maneira de se alojar, como nada no Outro e, de alguma forma, dar­
se a ser, se apoiava na obrigação de sustentar o afastamento entre os significan­
tes. Fenomenologicamente, isto se encarnava no vivido do seu corpo, especial­
mente pela impressao de estar presa entre duas peredes que iriam se fechar so­
bre ela e esmagá-la. Ela se encontrava, dizia ela, ENTRE pai e mae, sua cópu­
la, de certa forma, mas o pai era para ela apenas um desdobramento da mae fática.
É neste contexto, onde a castração simbólica não havia podido trazer sua
marca, que ela encontrava seus parceiros aos quais ela assegurava o gozo fazen­
do-se puro objeto de suas vontades. De um lado, ela obtinha um gozo certo,
de uma espécie de aniquilamento de si mesma, de um tornar-se dejeto, ou me­
lhor, de um tornar-se nada, para que o Outro esteja no todo de um gozo supos­
to. Ao modo do místico, do qual ao longo de sua adolescência conhecera a expe­
riência. A fantasia que balizava sua conduta, punha em cena uma mulher, (à
vezes uma criança), no ato de morrer nos braços de um personagem poderoso.
Havia neste momento, uma última e terna troca de sorrisos, à qual, dizia ela,
não haver podido jamais renunciar. Não estaria aí, na cavidade de um gozo não
esvaziado, o modo pelo qual ela nao cessava de se assegurar do desejo do Ou­
tro, assim como de seu amor? É verdade que ela nao foi acolhida de braços aber­
tos, - sua mae quer um filho - e em se fazendo dejeto profano, menos do que
nada, ela acreditava se fazer reconhecer, desafiando um desejo que só admitiu
a contragosto.
Esta estrutura, onde a morte masoquista se impôs várias vezes, como re­
al, fazendo irrupção na vida desta mulher, se manifestou como uma força parti­
cular no final do tratamento, ela se sentia morrer sobre o divã. Podemos sem­
pre dizer, a este respeito, que aí está a "Reação terapêutica negativa". A ques­
tao permanece sendo a de saber como o analista deveria sustentar seu ato, de
forma a que esta analisante deixasse sua posiçao masoquista, ou seja, que lhe
cesse a tomada real de uma forma de sacrifício que utilizava seu corpo para en­
carnar o dejeto. Trabalho que devia se abrir à questão que esta analisante colo­
cava ao desejo e à sua maneira própria de evitar a castraçao do Outro. Traba­
lho tanto mais complexo quanto se inscreve, - nao o esqueçamos, mas sempre
o esquecemos, - no contexto histórico pós-nazista onde o sacriffcio de milhões
de corpos e sua feitura em dejeto foi cientificamente organizada e realizada.
Vamos às questões que sustentam o argumento de nossa proposiçao:
No momento em que se anuncia o fim de análise, o sujeito, digamos, tor­
na-se capaz de articular em saber algo de sua história, ele chega a nomear a -

construir? - algo de seu fantasma entrevisto. Neste momento, no decurso do


processo de Separação, em princípio centrado sobre o desejo do Outro, apare-

85
Marie Claire Boons

-:e frequentemente com uma força particular, uma posição masoquista onde é
o gozo que ele retorna com força e resiste a toda colocação de saber, que ele,
o analisante, enunciara, a menos que, por um mesmo efeito, sejam convocados
em seu corpo, ainda sobre o divã, doenças que o destruam.
Trata-se de agarrar ao sujeito suposto saber do qual o analista foi supor­
te, no próprio momento em que este entra em vacilação, trata-se de inquietar
este Outro, de alertá-lo, de suscitar nele a angústia, agitando a bandeira da des­
truição, de fazê-lo reagir a qualquer preço, como se fosse absolutamente neces­
sário que ele cuspa, enfim, um pedaço, como se houvesse uma última palavra
a mais, uma palavra do fim que a pronunciaria, e que seria o todo do enigma
do desejo e. do gozo.
Assim como o voyeur procura o que não se pode ver e, surpreendido pe­
lo outro, torna-se, por inteiro, olhar escondido, da mesma forma, o analisante,
face a uma recrudescência da pulsao masoquista, se empenha em encarnar o
nada do gozo que não se pode dizer e do qual nada quer saber, quando af se
trataria de largar este nada, deixando vir as palavras a respeito deste nada, e
elaborando o que estas palavras dizem, ou seja, dotando do nada em questão
de um nome suplementar. Em suma, fazendo a volta do nada, com palavras com­
pondo um saber. Isto, o analisante resiste a fazer, pelo fato de que este gesto
não somente faz o Outro imcompleto, não somente deixa mal a demanda de
amor, como também o confronta com as relaçOes sexuais. Há af, portanto, uma
manobra extrema para evitar a torsão pela qual a Separação representa o retor­
no da Alienação.
Porque, depois de tudo, esta torsão consiste essencialmente nisto; por
um lado, o analisante, afinal de contas, indefinidamente relançado, deixa de tra­
zer o material a aquele que não é mais presumido como detentor de suas cifras,
se confronta com o fracasso do sentido e o larga, deixando efetivamente aque­
le que não cessou, por outro lado, de representar este fracasso, em sua flutua­
ção silenciosa em sua poltrona.
Mas, ao mesmo tempo, é de fato se apropriando das condiçOes significan­
tes que lhe foram feitas na Alienação, em as fazendo-as suas, como faz seu o
fantasma que fixava sua relação ao gozo; fantasma do interior do qual ele sabe
que de agora em diante se desdobra, e se desdobrará ainda sua história signifi­
cante que ele pode, enfim, deixar sua própria bagagem - o equipamento de seu
passe - pelo saber que ele emite, que ele pronuncia, ele, o analisante, a seu pro­
pósito. Desde af, hei-lo pronto para um desejo de saber que servira à história
de outros sujeitos.
Destacado, acéfalo, não estará preparando o seu desejo, não para encar•
nar, mas sim para representar o ideal, não para encarnar o objeto, mas sim pa­
ra simulá-lo, mesmo se seu corpo e mais particularmente a sua voz evocam es­
te objeto para efeitos de verdade e de sentido? Não lhe virão estes da palavra
de alguns outros, à qual ela poderá, daí em diante, decifrar, conduzir a este pon­
to de onde se arranca e se elabora um pouco de saber a respeito do real?

86
Antonio Quinet

SCHA UL UST E PERVERSÃO

A pulsão não é a perversão, mas esta coloca a nu o mecanismo daquela -


o que no sintoma neurótico precisa ser decifrado para ser aprendido. Na perver­
são há uma economia desse deciframento do percurso da pulsão. Daf Freud e
Lacan recorrerem à perversão para depreenderem, um, a gramática pulsional
e, o outro, seu circuito, utilizando ambos, para tal estudo, a fenomenologia do
voyeur e do exibicionista que testemunham da satisfação da pulsão: a Schaulust
- o gosto da vista, a alegria de ver, o prazer de mirar, o gozo do olhar: o espetáculo.
Em seu estudo sobre a pulsão escópica em "A pulsão e seus destinos",
Freud depreende a dicotomia entre o sujeito e o objeto, este sendo representa­
do aqui pelo orgão sexual, para desenvolver os três tempos da pulsão: lQ) - O
sujeito olha seu próprio órgão; 2Q) - o sujeito olha um órgão sexual; 3Q) - um
órgão sexual é olhado por uma pessoa. Uma vez que esses três tempos estão
sempre presentes na força constante da pulsão, Lacan resume a atividade pulsio­
nal por um "fazer-se ver" que a perversão revela ser um "fazer-se olhar" - expres­
são denotando que ao ser arrematado o circuito pulsional o sujeito desaparece
e em seu lugar há um objeto que o representa: o sujeito é seu objeto.
"A única afirmação correta a fazer sobre a pulsão escópica, nos diz Freud
nesse artigo, seria a de que todas as fases de seu desenvolvimento, tanto sua fa­
se preliminar auto-erótica quanto sua forma ativa ou passiva final, coexistem la­
do a lado; e a verdade disso se torna evidente se basearmos nossa opinião, não
nas ações às quais a pulsão conduz, mas no mecanismo de sua satisfação". O
gozo pulsional é correlativo ao arremate do circuito da pulsão como nos mostra
seu esquema proposto por Lacan.

Goal

Nos Três ensaios, l'reud nos diz que Schaulust pode se tornar uma perver­
são sob três condições:
Primeira: quando esse gozo do olhar se limita exclusivamente às partes geni-
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.87-92
Antonio Quinet

tais.
Segunda: quando o sujeito desconhece o nojo. E ele dá o exemplo do vo­
yeur das funçOes de defecação e admite uma grande plasticidade e reversibilida­
de de objetos que podem servir para satisfazer diversas pulsOes simultaneamente.
Terceira: quando no lugar de preparar o ato que ele chama de normal, a
cópula, ela se desvia deste.
Freud termina pela afirmação de que os exibicionistas mostram suas par­
tes genitais para que façam o mesmo com eles - o que denota nessa perversão
o circuito da pulsao: o exibicionista se exibe para que em retorno alguém se exi­
ba para ele, presentificando o que Freud designa por atividade e passividade.
Numa nota de 1920, ele observa que o exibicionista depende em grande parte
do complexo de castração, e que aí se encontra a afirmação renovada da inte­
gridade do órgão sexual masculino e a sexualidade infantil do menino diante
da idéia de que esse órgão falta ao aparelho genital feminino.
O exibicionista mostra o pênis para se assegurar do desmentido da amea­
ça de castração (a "reafirmação da integridade do órgão sexual") pela positiva­
ção da falta ( + ), onde vem oferecer à vista, não apenas seu pênis como órgão
real mas a própria posição do sujeito como falo. O perverso em seu ato mostra
ao mesmo tempo que ele é o falo e que tem o falo. Isto permite depreender
uma dupla identificação do perverso com respeito ao significante fático: ele se
identifica com o falo que falta ao Outro materno; e se identifica com o Outro
falicizado, como o travestismo o ilustra.
Em toda perversão o sujeito joga com o significante fático, daí Lacan de­
nominar o fetichismo de "a perversão das perversoes", onde é manifesta a valo­
rização do falo. A perversão é uma via na qual o objeto se envereda para cons­
tituir-se, na verdade, como esse objeto simbólico para enganar o desejo da mãe.
A questão sobre o desejo do Outro, o sujeito responde colocando-se nessa posi­
ção de ser seu falo. A valorização do significante fático na perversão se situa,
portanto, na dimensão da tapeação: trata-se de tapear o Outro a respeito de
sua castração, desmentindo-a. Essa dimensão de jogo, de encenação, de burla
está sempre presente. O coupeur de nattes corta as tranças reafirmando a castra­
ção para melhor desmenti-la. O que o exibicionismo mostra é o que não se po­
de ver, o falo simbólico que ele tenta representar pelo pênis; O voyeur procura
ver o objeto como ausência para tampar o furo no Outro.
Lacan nos diz, no Seminário XI, que o olhar pode representar a falta cen­
tral manifesta no fenômeno da castração ( .JV,- ). Com efeito, encontramos a
correlação do olhar com a castração desvelada no mito da cabeça da Medusa,
comentado por Freud no artigo de 1922 com esse mesmo título.
A cabeça de Medusa tem serpentes no lugar de cabelos e a percepção de
seu olhar é mortal, petrifica o espectador. Atenas, a deusa virgem, carrega a ca­
beça de Medusa em seu escudo de guerreira com o objetivo de aniquilar seus
inimigos. A decapitação (da cabeça cortada de Medusa) e a multiplicação dos
símbolos fálicos (as serpentes) denotam, segundo Freud, a castraçao - permitin­
do-o fazer equivaler ao horror provocado pela Medusa com a angústia do meni­
no diante do órgao sexual feminino, cujo efeito retroativo é conhecido como
ameação de castração. A visão da cabeça de Medusa deixa o espectador rígido
de terror - petrificação que Freud identifica com a ereçao do pênis. O mito de
Gorgona ilustra dois aspectos presentes no domínio visual - horror e prazer -
horror da castraçao e o prazer escópico. Prazer mixto de horror, o mito demons­
tra a vinculação de Eros com a pulsão de morte e expressa o paradoxo do go­
zo no âmbito escópico, a Schaulust, que é desvelado na perversão.

88
Schaulust e perversão

O sujeito, ao fitar a cabeça de Medusa, é mortalmente transformado em


estátua em que o olhar dela o seu olhar atinge, fechando o circuito da pulsao.
Ambos olhares são, na verdade, um único e mesmo olhar, com o qual o sujei­
to confunde sua petrificação - é um ponto de aniquilamento do sujeito no qual,
objetivado, ele se reduz ao próprio objeto: ele é olhar.
Em seu livro O visível e o invisível, Merleau Ponty aponta aquilo que vem
a ser o ponto central na teoria de Lacan sobre o campo visual, sua percepção
e o olhar: a preexistência de um olhar no espetáculo do mundo. Neste há um
olhar que nos fita. De acordo com Merleau Ponty o visível está na dependência
do olho do vidente, tratando-se aqui de uma perspectiva platônica na medida
em que se supõe um ser absoluto onividente, ser imaginário ocupando o lugar
de um eterno olhar. Para Lacan trata-se sobretudo de mostrar a esquize entre
a visão e o olhar. Há um olhar inapreensível, invisível, que é objeto da pulsao:
olhar apagado de nosso mundo. E exatamente nessa divisao que a pulsao se
manifesta no registro escópico. Ao invés do olho do vidente, Lacan acentua a
preexistência de um dar-a-ver, de um ser-visto. A pulsao indica que o sujeito é
olhado: há um olhar que objetiva o sujeito, mas é um olhar que está excluído
do campo da visão.
Esta esquize nos fornece a distinção entre o que é da ordem do imaginá­
rio (I) e o que é da ordem do real (R) onde se manifesta a pulsao. O que ve­
mos, nosso mundo perceptivo, pertence ao imaginário que é estruturado pelo
simbólico (S): nosso mundo visual é um mundo de imagens, cuja geometria nos
é dada pelo espelho. O estádio do espelho é o protótipo do registro imaginário
com a comcomitante constituição do eu pela imagem do outro [i(a)). O especu­
lar é distinto do escópico que é o registro pulsional do objeto a.

VIS ÍVEL INVISÍVEL


I
I s R
especular escópico
imagem pulsão
visão olhar
i(a) (a)

Normalmente, ou seja, na neurose, a visão das imagens recobn '> olhar


· i�a)_
como objeto a - o objeto da pulsao escópica como invisível:

Na perversão da Schaulust o sujeito tenta fazer coincidir a visão e o olhar,


como veremos a seguir.
Vamos nos deter no caso do voyeur cujo desejo é suportado pela suposi­
ção de que algo do lado da vítima se presta ao espetáculo. Mas trata-se de um
espetáculo roubado que se situa no registro da indiscrição. O voyeur é sempre
um indiscreto. Num primeiro momento é importante que a vítima não se saiba
olhada para justamente num segundo momento de descortinar a presença do
olhar: é quando a vítima se percebe olhada e este olhar retorna.ao voyeur, pe­
go em flagrante, arrematando o circuito da pulsao trazendo o gozo ao sujeito
da perversão. Esta fenomenologia do ato perverso desvela sua posição de obje­
to na fantasia e sua tentativa de unilateralização da castraçãodo lado do Outro.
Ele força a divisão do Outro (o não consentimento da vftima é, portanto, neces­
sário) provocando nele: surpresa, choque, desejo, nojo, susto, escândalo (o que
é também evidente no caso do exibicionismo). a <> $ como aparece na fórmu­
la paradigmática da fantasia sadiana, proposta por Lacan, onde $ vem represen-

89
Antonio Quinet

tar o Outro para o perverso reduzido aqui ao objeto.


O neurótico, em seu dito ato perverso, está do lado do sujeito dividido,
sujeito do desejo e reduz o Outro a um objeto. Ele está sempre atrás da corti­
na, atrás da porta e se ele é pego em flagrante é menos para causar a divisão
subjetiva na vítima do que para ser punido pelo sentimento de culpa de sua
transgressão. O neurótico é quem vê filmes e revistas pornográficas, strip-tease
et peep-show.
Retomando a relação do perverso com o Outro, Lacan em seu seminário
"de um outro a Outro" chama a atenção sobre a distinção entre castração do
Outro e objeto a. O lugar do Outro é evacuado de gozo e essa hiância, esse ôco,
é distinto do objeto a, objeto mais-de-gozar.
Poder-se-ia dizer que o perverso tem um certo desprezo pelo parceiro
mas contrariamente a isso, nos diz Lacan, o "perverso é aquele que se dedica a
tampar esse furo no Outro" - esse furo deixado pela deserção do gozo.
O neurótico reduzirá o Outro a um objeto para que este não manifeste
seu desejo e possa responder do lugar de objeto de sua fantasia.
Para o perverso o Outro não sabe gozar e ele então se esforça para fazê­
lo gozar apresentando-se como aquele que vai consegui-lo. O perverso vai ten­
tar restituir o objeto que falta ao Outro segundo duas modalidades:
1) Confeccionando um objeto fetiche utilizando-se d'alíngua como no exem­
plo de Freud der glanze auf der nase, em que pela homofoniQ translingufstica
ele introduz o olhar (glance em inglês) como objeto perdido no Outro tomado
como corpo do parceiro colocando um brilho (Glanz em alemão) em seu nariz.
2) Sendo ele próprio o objeto, como fica evidenciado no voyeurismo e m
que o sujeito s e faz olhar. Esta modalidade situa a identificação perversa, não
por meio do significante como é o caso do neurótico ( SSl ) mas por meio do objeto:
; , materna da identificação perversa proposta por Jacques-Aiain Miller.
,

A perversão de Schaulust não só ilustra, mas constitui o paradigma dessa


mod.alidade de tentativa de restituição do objeto ao Outro na perversão em que
o sujeito é representado pelo objeto como aparece no filme de Michael Powel
Peeping Tom�
Pepping Tom é o nome de um personagem inglês da lenda de lady Godiva.
. I:ady Godiva é a padroeira de Coventry. Em 1040 Leofric, Earl de Mercia
e Lord de Coventry, impôs certas exigências aos seus locatários e, Lady Godi­
va, então, implorou-lhe que estas fossem abolidas. O Lord de Coventry prome­
teu eliminar novas taxas com a condição de que ela cavalgasse nua pela cidade.
Lady Godiva assim o fez, e Leofric cumpriu fielmente sua promessa.
A lenda conta, como nos diz Freud em seu artigo sobre os distúrbios da
visão, que os habitantes da cidade se esconderam atrás de janelas a fim de ali­
viar a tarefa de Lady Godiva de cavalgar nua pelas ruas em pleno dia. Houve,
no entanto, apenas um homem, um alfaiate, que espiou através das venezianas,
para observar a beleza de sua nudez, ficando imediatamente cego. Esse alfaia­
te foi chamado de "Peeping Tom of Coventry." (Cf. Freud S. E. Voi. XI p. 217)
Nesta lenda nota-se como o desejo está conectado à proibição, e como a
satisfação da pulsao é uma tra nsgressão - o preço deste �ozo, desta Schaulust
é a cegueira. Peeping Tom of Coventry demonstra o que 'OS desvela São Pau­
lo e Sade: a lei é a oração para ser desmedidamente pecador. A pulsão, giran­
do em volta de Lady Godiva retorna exatamente como um bumerangue, tor lan­
do o sujeito cego. A beleza ofuscante de Lady Godiva, como um forte b1 ilho,
cegou-o. Quem é o observador e quem é observado nesta estória? É difícil di-

90
'ichaulust e perversão

zer já que o sujeito desaparece diante do objeto. Vemos, por meio deste exem­
plo, como a pulsao se manifesta na neurose: ela se satisfaz no sintoma, mostran­
do-nos em sua constituição o gozo, Schaulust, do objeto causa de desejo. O pre­
ço desse gozo foi o desaparecimento da visão.
Peeping Tom é também o nome de um filme de Michael Powel, realiza­
do em 1960, que foi censurado por muitos anos.
O Peeping Tom é um caso muito peculiar: ele não é o voyeur clássico que
espia em toilettes e lugares escondidos para capturar o olhar no momento da
surpresa ou pânico quando a vítima o descobre. Mark Lewis é um fotógrafo pro­
fissional e cameraman que usa o seu trabalho para fotografar ou filmar os últi­
mos momentos das mulheres que ele mata: ele filma o rosto e a expressão da
vftima exatamente no momento em que ele está matando com o tripé da sua
câmera, o qual tem uma faca afiada no final de um dos pés. O olhar aterroriza­
do da vítima é multiplicado por um engenhoso mecanismo revelado no final
do filme. Ele começa filmando uma linda modelo que se exibe para ele e de re­
pente ele aponta para ela um tripé de onde sai uma faca. Ao mesmo tempo
em que se aproxima da vftima com a câmera e a sua faca afiada ereta - aponta­
da para a garganta da vftima - ele retira de dentro da máquina um espelho pa­
ra que a mulher petrificada de pavor possa ver o seu próprio olhar esgazeado.
O espelho serve para amplificar ainda mais o pânico da mulher. Desta maneira
extremamente sofisticada ele reproduz o par imaginário do estádio do espelho,
porém, ao invés da jubilação, prolonga o terror a fim de capturar o olhar co­
mo objeto a - ele faz isso por saber que, de certo modo, esse olhar incapturá­
vel é um olhar de morte, um olhar de medusa - o mesmo olhar presente na pin­
tura de Holbein "Os embaixadores". Trata-se de uma tentativa de tirar esta foto­
grafia impossível de alguém sendo visto pelos próprios olhos - como Édipo de­
pois de ter arrancado os seus - no momento em que a mulher de certa manei­
ra já morreu, pois já não poderá escapar da morte, estando, no entanto ainda
viva. O dispositivo do espelho no momento da morte é a resposta à questão for­
mulada por uma de suas vítimas: "O que é que pode me matar de medo?" A
resposta e Mark Lewis é a amplificação do medo. Contudo, nós, como especta­
dores, sabemos que o medo é para Mark o significante-mestre que provém do
Outro. Seu pai era um cientista, um biólogo que dedicou sua vida à análise do
medo - das reações humanas ao medo. O diagnóstico de escopofilia é dada no
final do filme pelo psiquitra chamado para ajudar nas investigações dos crimes.
A explicação é sugerida quase no começo, quando Mark mostra à sua vizinha,
H elen, um dos filmes que seu pai fizera quando garotinho.
O filme mostra o menino como o principal objeto de interesse, curiosida­
de, pesquisa e experiências do pai. Este, interessado nas reações do medo, ate­
moriza o filho de vária maneiras enquanto vai filmando suas reações. Há uma
cena em que o pequeno Mark está dormindo quando, de repente, veinos uma
luz refletir-se em seu rosto, despertando-o. O espectador sabe que se trata do
pai que, com uma lanterna focaliza o rosto do menino dormindo na penumbra
do quarto. A técnica cinematográfica nos permite identificar esse foco de luz
como o olhar do Outro. O pai aparece como um sádico ao tentar compreender
a ansiedade do sujeito... e com este propósito não dispensa nenhum meio, até
mesmo o de colocar um lagarto na cama do menino para despertá-lo e filmar
seu pânico. Este filme dentro do filme tem a mesma função da peça dentro da
peça (the play in the play) em Hamlet, de Shakespeare; a qual, segundo Lacan,
torna presente a estrutura fictícia da verdade (Sem. VI, 1 1 de Março de 59) c
·
serve para Hamlet como uma orientação para suas ações. "The play is the thing

91
Antonio Quinet

wherein 1'11 catch lhe conscience of the king". Parafraseando Hamlet podemos
dizer que para Mark Lewis "The film 's the thing wherein 1'11 catch lhe look of
Helen". Com efeito, sua vizinha fica horrorizada com o que vê e Mark a olha
enquanto ela o filme de seu pai o olhando - e o espectador olhando tudo isso ­
o que provoca o Unheimlich de uma infinitização do olhar do olhar do olhar.
O filme do pai de Mark não é apresentado como ficção mas como um documen­
tário, podendo desta maneira escamotear o que ele realmente é: a revelação
da sua fantasia inconsciente que poderia ser assim formulada: "Uma criança é
olhada", o que pode ser desdobrado em: "Uma criança é torturada pelo olhar do pai".
Outra cena extremamente signicativa é aquela em que o menininho está
sentado numa cerca olhando um casal de namorados beijando-se. Repentina­
mente, o casal se vira e descobre o pequeno Mark completamente absorvido
em seu ato. E a câmera está sempre lá, nas mãos do grande Outro que se diver­
te com a situação e não tem a piedade nem consideração por nada da ordem
do pathos; um Outro que não admite nenhum afeto - "Enxugue suas lágrimas
e não chore, seu menino bobo." - diz a voz do Outro em "off''. Nestes exemplos
podemos perceber a posição do perverso de ser, segundo Lacan, "um instrumen­
to do gozo do Outro". Na vida adulta, a câmera de seu pai não está mais cons­
tantemente sobre ele. Entretanto, ele faz o que tem de fazer como uma tarefa,
servindo ao gozo do Outro como um mandamento do supereu, do qual não po­
de escapar. O Outro observa-o o tempo todo. A única coisa que pode detê-lo
é a prisão - ele a evoca pelo menos duas vezes. Helen, sua vizinha, não é capaz
de contê-lo, apesar de sua vocação histérica de salvá-lo da infelicidade. A mãe
de Helen, que é cega e por isso vê para além do mundo das aparências, se con­
sidera bastante forte para detê-lo em sua corrida em busca do gozo - e o acon­
selha a falar com alguém sobre isto. Ela sabe que falar é um modo de limitar
o gozo com o simbólico. O caso dele é urgente, e ele realmente se esforça em
falar, mas quando o psiquiatra lhe diz que a análise leva tempo, ele desiste - e
faz de Helen uma testemunha de seus gostos. No final do filme ele tem a esco­
lha de ir para a prisão, mas prefere abandonar-se completamente à ordem dita­
da pelo gozo - ele faz com ele o que fazia com suas vftimas: mata-se fitando o
seu horrível olhar agonizante no espelho, realizando sua identificação com o ob­
jeto e fechando sobre si mesmo o circuito da pulsão escópica ao �e oferecer
em holocausto ao gozo do Outro for ever. Efetuação da versão do pai: sua pere ­

version.

92
Casos Clínicos

Serge André

TRANSFER�NCIA E INTERPRETAÇÃO EM
UM CASO DE PERVERSÃO (*)

Tradução de Washington França

Eu gostaria de trazer, hoje, algumas reflexões a respeito de uma análise


que conduzi há alguns anos e na qual tudo se passou em torno de uma interpre­
tação precisa. "Da angústia à perversão", assim poderia se intitular esse trajeto
analftico no qual a interpretação, levantando de maneira espetacular o sintoma
do sujeito, fêz precipitar, de alguma forma, sua estrutura perversa. Essa virada
se traduziu, como vou mostrar, em uma mudança radical do estilo e da lógica
da transferência, a tal ponto que o prosseguimento da análise se mostrou cada
vez mais difícil, até a interrupção final - prematura, a meu ver, ainda que o ana­
lisante tenha me abandonado feliz e curado. Esse desencadeamento da perver­
são na análise e o seu fim mutilado, me levam a me interrogar sobre a justeza
e a oportunidade da interpretação, segundo a qual eu operei nesse caso. E, além
dessa interrogação pontual, essa análise me reenvia às questões fundamentais
sobre o efeito terapêutico da análise, sobre o bom ou o mal desenvolvimento
do que aí pode se revelar ao sujeito.
O rapaz em questão estava verdadeiramente "no limite" quando veio me
procurar. No limite, no sentido de que, para colocar um fim a um sofrimento
pouco comum, ele só enxergava duas soluções: ou colocar um fim aos seus dias,
ou se submeter à psicanálise, na qual, de início, ele quase não confiava. No limi­
te, igualmente, no sentido em que ele chegou ao fim de uma corrida que, há
vários anos, levou-o a consultar, em vão, os melhores especialistas europeus
em neurologia. Com efeito, ele estava afetado, há mais de cinco anos, exatamen­
te, �sde seu casamento, de uma nevralgia facial extremamente dolorosa, locali­
zada no lado esquerdo da face. Os exames não puderam objetivar nem situar
precisamente uma afecção do nervo, a medicina só pôde lhe propor remediar
os efeitos de sua dor: haviam, então, lhe prescrito analgésicos, cada vez mais
potentes com o correr dos anos. Assim, ele chegou, pouco a pouco, a doses co­
tidianas de Palfium e começava a se inquietar para saber se não tinha se torna­
do toxicômano e se as dores que ele sentia, quando esquecia ou deixava de to­
mar essa estupefaciente, não eram o sinal de um fenômeno de abstinência.
Inicialmente, eu me mantive prudente na apreciação desse sintoma, e não
me apressei demais para tomar essas dores como manifestações de ordem histé­
rica ou psicossomática. As nevralgias faciais constituem, efetivamente, um pon­
to obscuro do campo médico: as afecções desse nervo podem provir de origens
diversas e não são facilmente localizáveis nem tratáveis; Eu, apenas, insinuei a
esse rapaz que era possível que a psicanálise o conduzisse a elucidar um tal sin­
toma, se esse se revelasse como uma manifestação do inconsciente. E como, além

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1989 p.93-99


Transferência e interpretação

disso, ele apresentava certas singularidades (por exemplo, ele passava a noite
acordado e dormia durante o dia), e mencionava uma angústia arrebatadora,
eu me decidf a tomá-lo em análise.
Somente após um longo ano de análise é que a natureza de seu sintoma
me pareceu clara, assim como sua estrutura subjetiva de perverso fetichista.
Nesse período, a análise foi marcada - e isso, desde a primeira sessão propria­
mente dita - por uma transferência maciça se manifestando por verdadeiros aces­
sos de pânico durante a sessão. Minha presença na poltrona c meu silêncio ins­
piravam nesse analisante um verdadeiro terror, contra o qual ele não cessava
de lutar, enc'lrquilhado sobre o divã em um mutismo doloroso, de onde emer­
gia, periodicamente, um "você me faz medo" ou um "eu quero ir embora imedia­
tamente!" Após algumas sessoes, ele começou uma espécie de diário do qual,
gradativamente, ele me trazia páginas; na maioria das vezes, essas eram redigi­
das em forma de cartas que me eram endereçadas e que lhe eram ditadas pelo
horror que eu lhe inspirava. Essas páginas, não desprovidas de um talento literá­
rio que eu situaria no estilo de Maldoror ('Les Chants de Maldoror' de Isidore
ducasse, Conde de Lautreamont - nt), eu tive a impressão de que ele me entre­
gava como a oferenda destinada a conjurar a potência de um deus feroz. Seu
conteúdo detalhava o menor de meus gestos, cada pose de meu corpo, cada do­
bra da minha roupa, e ralatava o que ele chamava "a experiCncia atroz", isto é,
sua relação comigo! Ele a descrevia, eu cito, como "a aspiração em um cômo­
do onde se é a poeira", e me designava por diversos sobrenomes tais como: "a
aranha Nilfisk" ("Nilfisk é uma marca de aspirador), "a aspiro-batedeira", "o pol­
vo multi-tentaculado", "a borboleta de ouro de tromba sugadora", ou o "bura­
co sem fundo"; em contrapartida, ele próprio se apresentava como "uma mani­
festação do ridículo", "uma pilha de carne para salsicha explodida", "um tipo es­
pecial de fodido", "um puro produto de polução", "uma alimpadura" etc ... Por
diversas vezes, ele termina suas missivas com um desenho, traçado com os ca­
racteres da máquina de escrever: o desenho de uma bacia de WC, na qual ele
inscreveu, um dia, a seguinte legenda: "Mas, enfim, bem lá no fundo, encontrar­
se-á os restos bem escondidos dos traços de nossos pais."
Então, nosss sessões não .eram fáceis de conduzir; ele, esperando angustia­
do que eu reagisse a suas oferendas, e eu, convidando-o a me falar sem a distân­
cia do escrito, quer dizer, a se dirigir à minha presença e não à minha ausência.
Os finais de sessão eram particularmente delicados, meu analisante se encontran­
do dividido entre o terror e o pânico de que eu me aproximasse dele, e a exigên­
cia, também exacerbada, que eu me mostrasse gentil para com ele. Mai� de
uma vez, quando, literalmente, ele foge do meu consultório, pára na escada, a
uma boa distância de mim, para me gritar: "Afinal, você gosta de mim?".
Apesar de tudo, ele me falava um pouco, e, assim, eu descobri que sua in­
fância fora marcada pela ausência do pai e pela grande diferença de idade que
o separava de seus irmãos e irmãs. Com efeito, ele nasceu tardiamente, crian­
ça não esperada de um casal que havia passado os quarenta anos e que já tinha
vários adolescentes crescidos. Aliás, ele não tinha, rigorosamente, nenhuma lem­
brança de seu pai, a não ser a visão de uma cabeleira negra gomalinada; ele se
explicava pelo fato de que seu pai morrera quando ele acabava de completar
cinco anos. A esse respeito, o trabalho de análise lhe impôs fazer uma descober­
ta que clareou a obscuridade que caiu sobre esse pai: assim, ele conseguiu levan­
tar o véu de que, até então, tinham-lhe, cuidadosamente, escondido, a saber,
que a morte de seu pai foi, na verdade, um suicídio. Contudo, ele não pôde elu­
cidar suas razões, sua família recusava respoder a suas perguntas. Ele tinha vivi-

94
Serge André

do com sua mãe, desde sempre ou quase, uma verdadeira vida de casal, já que,
muito rapidamente após a morte do pai, os irmãos e irmãs mais velhos tinham
abandonado a casa. Esse casal foi mais consolidado pelo desaparecimento do
pai, na medida em que esse foi seguido por um revés da sorte: o padrão de vi­
da da casa, até então muito alto, teve que ser, de um dia para outro, reduzido
a uma quase-sobrevivência alimentar.
Mas, a respeito de tudo isso, ele falava pouco, obnubilado que estava pe­
la transferência, e por suas nevralgias cotidianas. Ora, a análise começara há
cerca de um ano, quando ele se pôs a se queixar de que suas dores - até então
localizadas no lado esquerdo da face, da fronte ao osso maxilar - começaram a
se estender e a descer pelo pescoço, em seguida, passando pelo ombro, a inva­
dir o lado do braço e do antebraço. Essa notícia me fez decidir a tomar essa "ne­
vralgia facial" como um fenômeno de conversão. - não há, com efeito, nenhum
trajeto nervoso que corresponda à linha que descrevia sua dor. Eu comecei, en­
tão, a interrogá-lo, sistematicamente, sobre essas dores e sobre o contexto no
qual elas apareciam. Ele admitiu, muito rapidamente, que elas deviam estar liga­
das a fantasmas masturbatórios, já que, desde que a nevralgia se manifestou,
sua primeira reação era de se masturbar. Em seguida, ele percebe que seus fan­
tasmas eram anteriores à dor nevrálgica, e que havia, certamente, uma ligação
de causa e efeito entre eles.
·

Então, com as maires dificuldades, ele me fêz uma confissão que esclare­
cia a formação de seu sintoma e abria uma porta para a estrutura de seu dese­
jo. Essa confissão comportava inicialmente uma lembrança infantil, a mais anti­
ga de suas lembranças, dizia ele. Quando ele tinha a idade de sete anos, aproxi­
madamente, ele teve a oportunidade de observar uma menina africana urinan­
do; a menina tinha uns dez anos e ainda não era púbere. Olhando por baixo
da porta da privada, ele pôde ver, distintamente, o sexo da menina que ainda
não estava oculto pela penugem pubiana, e surpreendeu-se tanto pela linha que
desenhavam os lábios unidos do sexo, quanto pelo jato brilhante que dalf saía.
Desde aquele dia, me diz, ele ficou obsecado por essa visão, por essa linha do
sexo feminino glabro, linha que ele reencontrava em todos os lugares: bastava,
por exemplo, que ele percebesse um grão de café, ou, então, que ele cruzasse
com uma mulher que o olhasse com um ar afetado, (os lábios cerrados), para
que ele entrasse em ereção e se sentisse impelido a se masturbar.
Mais marcante ainda, esse rapaz que gostava de escrever e desenhar, só
podia fazê-lo por intermédio de máquinas, pois, a simples visão de certos traços
saindo de sua caneta induzia nele fantasmas masturbatórios. Ele me declarou,
também, que, regularmente, fazia curtas viagens nos países limítrofes, com o
único fim de procurar revistas pornográficas onde ele pudesse encontrar figuras
do sexo feminino glabro e não excitado, quer dizer, não entreaberto. Da mes­
ma forma, ele não podia se impedir de fazer, pelo menos uma vez por mês, o
circuito das prostitutas até descobrir uma cuja forma do sexo lhe conviesse -
aliás, ele não mantinha com ela nenhum outro ato sexual, senão o. de olhar seu
sexo e dormir em seus braços.
Sua relação com a mulher tinha sido, certamente, perturbada pela exigên­
cia precisa de seu fetichismo. Sua mulher tinha aceito, rapidamente, raspar o
púbis e lhe oferecer para comtemplar a linha de seus lábios unidos; mas, desde
que ela entrasse em excitação, era preciso, rapidamente, apagar a luz para que
ele não visse a fenda se abrir. E, além de tudo, desde que ele teve um filho, seu
sexo não se fechava mais como antes: permanecia uma ligeira irregularidade.
Na linha, uma abertura mínima dos lábios, inspirava em· meu analisAnte umu

95
Transferência e interpretação

aversão horrível.
Esses elementos me permitiram situar esse rapaz como um perverso feti­
chista, ou, pelo menos, de assim qualificar seu fantasma. Seu fetiche fora susci­
tado no instante de ver inicial quando, ante& mesmo de perceber a castração fe­
minina na menina africana, ele viu alguma coisa na superfície do buraco, a sa­
ber a linha formada pelos lábios. Em seguida, por metonímia, o caráter de feti­
che se estendeu a toda uma série de linhas e de traços.
A partir do momento em que ele me fêz essas confidências, o estilo de
seu discurso mudou. Inicialmente, ele tornou-se falante. Em seguida, a insolên­
cia e o desafio tomaram o lugar do pânico e da submissao que tinham, até en­
tão, marcado a transferência, e a continuidade de seu diário se interrompeu.
Ele começa, por exemplo, a ironizar o meu saber de psicanalista - sobre o qual,
aliás, ele tinha adquirido alguns conhecimentos -, fazendo-me observar que, cer­
tamente, nao fora por acaso e, sim, por causa de seu grafismo que Lacan tinha
escolhido a letra "Phi" para designar o símbolo do gozo sexual... Dito de outra
forma, ele . começou a me de mostrar que meu saber nao estava organizado de
maneira diferente do seu fantasma, e que nós estávamos ligados, cada um à sua
maneira, a nosso grao de café...
- Mas sobre essa função do desafio perverso, eu voltarei daqui a pouco.
Faltava elucidar seu sintoma de nevralgia facial. A soluçao apareceu quan­
do eu lhe pedi para me contar, mais uma vez, a cena durante a qual ele tinha
observado a menina urinando. Ele me descreveu, precisamente, a porta do ba­
nheiro, esburacada de alto a baixo, o sexo da mocinha e o jato de urina. "Vo­
cê nao estava deitado sobre o lado esquerdo, o lado do rosto apoiado sobre o
solo?", pergunto-lhe. - "Sim!", me respondeu ele, completamente capturado pela
minha intervenção. E ele acrescenta que, ao se levantar, ele tinha sentido em
seu rosto o formigamento causado pelos cascalhos (graviers: cascalhos e também
cálculo urinário na terminologia médica nt) sobre os quais ele tinha apoiado
-

a bochecha. Suas nevra!gias cessaram de um dia para outro, e um pequeno tra­


tamento de desintoxicação lhe permitiu libertar-se do Palfium em quinze dias.
Happy end! (Em inglês no original - nt), vocês dirão. Pensem, então!... com
um perverso, é preciso nunca acreditar que tivemos a última palavra. Aliviado
de seu sintoma, meu paciente se sentia muito melhor e entrava em ,uma fase
de euforia. Mas, essa melhora deveria ser aproveitada pela outra vertente de
sua estrutura de denegação.
Eu percebi, rapidamente, que a desaparição da dor significava para ele
um novo triunfo do fetiche, no sentido de que ele poderia, a partir de então,
se dedicar a seus fantasmas masturbatórios sem ter que lhes pagar em sintomas.
A mãe fática, em suma, estava, a partir de agora, mais acessíveis para ele gra­
ças à psicanálise. Mas, essa consolidação da negação da castração só poderia
ocasionar uma insistência do lado de seu reconhecimento, como em um meca­
nismo de vasos comunkantes. Assim, na outra vertente da denegação, no lado
onde a mae é reconhecida como castrada, no lado onde a castra_ção ameaça, no­
vas medidias de proteção tornaram-se necessárias. Ele me mostrou isso nas se­
manas que se seguiram, colocando-me a par de uma série de fantasias que ele
nunca tinha evocado até então: fantasias de tatuagem. E eu não pude impedi­
lo de passar à realização dessas novas fantasias: ele começou efetivamente a ser
tatuado, e considerou que isso era o final feliz de nosso trabalho. Essa nao era
a minha opinião; eu o fiz saber, e assim ele se foi, muito irritado por não rece­
ber o meu aval.
O que ele queria inscrever sobre a pele? Ele não levou a derrisão até o

96
Serge André

ponto de me mostrar sobre seu próprio corpo o signo todo poderoso que deve­
ria conjurar o borrar da castração, mas, me falou disso com detalhe, e me en­
viou o cartão do tatuador onde estava desenhado a figura que ele faria traçar
sobre as costas. Tratava-se de uma mulher-dragao, as pernas afastadas, que ele
iria trazer nas costas de tal maneira que a fenda do sexo dessa mulher, não de­
senhada como tal, se confundiria com a linha que separava suas próprias náde­
gas. Assim, ele realizaria sobre seu próprio corpo, a denegação perversa: rapaz,
lado cara e moça, lado coroa - e sabe-se lá se o lado coroa não é um simples
prolongamento do lado cara ou vice-versa. Aliás, fazendo de si o próprio carre­
gador do fetiche, ele expunha uma proteção a mais contra o pai imaginário, o
pai terrível e castrador que, por lbe ter faltado, realmente, não era menos poten­
te fantasmaticamente: bastava, com efeito, uma vez ta•uado, que ele lhe voltas­
se as costas para mostrar-lhe que ele era mulhP:r, logo. já castrado - saborean­
do em segredo o engodo dessa castração em trompe-l'oeil. (Pintura visando es­
sencialmente criar, pr artifícios de perspectiva, a ilusão de objetos reais em rele­
vo - nt).
A mim também, seu psicanalista, ele volta as costas, de uma certa forma .
.. É o motivo pelo qual pensei ser bom adverti-lo de que essa tatuagem era, so­
mente, uma dissimulação. Ele me respondeu que disso eu nada sabia e que, ne­
gligenciando a solução que lhe oferecia essa tatuagem, eu não levava em conta
a dor que ele deveria suportar durante meses, até mesmo anos, sob a agulha
do tatuador. A esse respeito, ele não estava completamente sem razão, pois, as­
sim, ele me reenviava à necessidade do sintoma - a tatuagem tomando o lugar
da nevralgia da qual eu o tinha livrado.
A lição desse percurso, pitoresco sem nenhuma dúvida e cheio de ensina­
mentos, bem que poderia ser essa: aliviando esse sujeito de seu sintoma, a psica­
nálise talvez o tenha conduzido ao pior, o analista, finalmente, sendo, apenas,
· um intermediário na direção do tatuador. Sem dúvida - mas, isso não é uma ex­
plicação, somente, uma interrogação a mais. O desenlace desse caso é tributário
da modalidade de transferência própria ao perverso? Modalidade que vou ten­
tar, para concluir, articular a alguns traços de estrutura.
Sobre a transferência perversa, eu direi que o caso, do qual eu acabo de
lhes relatar brevemente o essencial, é absolutamente exemplar. A mudança que
afeta a transferência desse analisante, no momento em que seu sintoma se escla­
rece, nos dá quase que uma materialização da Spaltung própria ao perverso:
de um lado a angústia - esse é o lado onde a castração é presentificada - , e do
outro lado, o triunfo - quando o feitche reencontra sua potência. A essas duas
vertentes da transferência e da denegação correpondente, dois modos de discur­
so e dois endereçamentos distintos.
Na primeira vertente, o analisante não se comporta de maneira diferente
que um neurótico; ele oscila entre duas posições: aquela na qual se identifica
ao suposto objeto do qual o Outro se nutre (a poeira para o aspirador), e aque­
la que ele só pode se afirmar como sujeito, com a condição de se castrar de seu
imaginário. A dialética dessas posições é conhecida: é aquela em que o sujeito
busca, desesperadamente, embora temendo alcançar, enganar o Outro, e aquela
em que o sujeito supõe que o que o Outro lhe demanda é a sua própria castra­
ção. Nessa primeira fase, o sintoma é colocado à frente até ocupar, ao máximo,
todo o discurso do sujeito; o fantasma, ao contrário, é mantido secreto, sua apro­
ximação sendo marcada por um desvanecimento subjetivo traduzido pela humi­
lhação - o amor é, então, exigido do analista, como uma condição prévia para
que o fantasma seja abordado, porque, somente o fato áe ser amado pode rcs-

97
Transferência e interpretação

taurar a dimensão subjetiva que se desmorona na humilhação.


Mas, é na segunda vertente - a do triunfo do fetiche - que a perversão é
referida como tal na transferência, onde ela se manifesta por uma desordem
da relação ao Outro e por uma subversão da posição do sujeito suposto saber.
Pode-se apreender essa desordem e essa subversão pelo novo lugar que o fan­
tasma ocupa na segunda fase da análise que eu lhes relato hoje. O fantasma
ocupa, agora, toda a cena, todo o discurso do sujeito. Este é um traço caracte­
rístico que não deixou de surpreender todos os analistas que lidaram com sujei­
tos perversos sem que tivessem, contudo, percebido o fundamento da estrutu­
ra. Ao escutar falar o perverso, não se pode deixar de experimentar uma impres­
são de indecência; sente-se, sempre, um pouco violentado por seu discurso. Por
que isso? Se concordamos com Freud (ver "Espanca-se uma criança") que não
existe fantasma próprio ao perverso - no sentido de que os fantasmas dos neuró­
ticos são cenários perversos - , eu também não penso que possamos contentar­
nos em dizer que o que definiria o perverso seria passar ao ato, realizar seu fan­
tasma na cena do mundo. Nem todos os perversos passam ao ato. Por outro la­
do, eu penso que é preciso perceber que existe uma maneira perversa de enun­
ciar o fantasma. A perversão é, em suma, uma quesUio de estilo - quero dizer
que é na sua própria fala que o perverso começa a passar ao ato.
Sabe-se que o neurótico se cala sobre seu fantasma, ou que ele só o entre­
ga com uma grande dor, como uma confissão arrancada com humilhação, cer­
cando-se de todas as formas de precauções. É que, para ele, fazer passar o fan-.
tasma da cena privada à cena pública, apresentá-lo a um auditor, é, automatica­
mente, se designar como culpado e se expor às condenações do Outro. Não é
este o caso com o perverso, que manifesta, ao contrário, uma tendência a ex­
por seu fantasma, geralmente sob a forma de provocação. De fato, é o Outro,
o auditor, que o perverso procura culpabilizar, até mesmo, submeter à falta. A
razão dessa diferença deve-se a um traço de estrutura do fantasma. O fantas­
ma, com efeito, comporta, por essência, uma redução do Outro objeto causa
do desejo. O fantasma anula a subjetividade do Outro, a começar por sua fala,
para fazer dele uma marionete inanimada que só ganha vida graças à potência
do desejo do sujeito. Dito de outra forma, o enunciado do fantasma se susten­
ta, sempre, na pulsão de morte que se volta para o Outro. Esse alvo mortífero
que não é outra coisa que a realidade escandalosa do desejo, o neurótico o car­
rega como uma culpa: confessando seu fantasma, ele nos diz de uma maneira
ou de outra, "eu te mato". O perverso não ignora esta lança mortal, mas ele se
ajeita para que a culpa caia sobre o auditor. Pelo enunciado do fantasma, o per­
verso não nos diz "eu te mato", e sim, "você me mata". Por isso, sua maneira
de enunciar o fantasma tem sempre em relação ao auditor - especialmente seu
analista - uma função de iniciação, de corrupção: ele nos convida ao crime.
Nesse sentido, a fala perversa me parece relevar uma reviravolta da rela­
ção ao Outro, tal como Lacan a define com seu esquema L. Se este nos mostra
que, na fala, o sujeito recebe do Outro sua mensagem de forma invertida, o
perverso inverte essa estrutura, na medida em que ele se apresenta como encar­
regado de nos desvelar nossa própria verdade: dito de outra forma, ele nos ofe­
rece sua fala como a inversão de nossa própria mensagem. Quando ele nos en­
trega seu fantasma, é menos para perceber de que forma ele lhe está assujeita­
do do que para nos demonstrar de que maneira nós, que o ouvimos, nós pró­
prios, lhe estamos assujeitados, que o queiramos ou não - e mesmo, de preferên­
cia, contra nossa vontade. Assim o fazendo, não é mais ao sujeito suposto saber
que o perverso se dirige na transfer6encia. E isso, por uma boa razão: é que, a

98
Serge André

partir de então, ele próprio ocupa essa posição de sujeito suposto saber. É exa­
tamente o que se produz na segunda fase da análise que eu lhes relatei, quan­
do nela, após a retirada do sintoma, meu analisante se torna arrogante e come­
ça a me mostrar que meu desejo só pode ser estruturado como um desejo feti­
chista - e, mesmo, que o próprio saber analítico só pode celebrar o fetichismo
do falo. Ele se apresenta então como o detentor de um saber do qual ele quer
me convencer de que sou somente o servidor e, diferente dele, sem o saber.
Ele se sente encarregado, desde então, a me iniciar na realidade de meu
desejo de psicanalista, e não CaJ?.Sa de me lembrar que foi o estudo da perver­
são que ensinou a Freud o que é o desejo. Ele então não mais me demanda
amá-lo - o que ele me demanda, é reconhecer que eu gozo, e, mais especifica­
mente, que eu gozo com sua presença de analisante, o que me coloca em posi­
ção de sujeito suposto gozar.
Pois, para ele, bem entendido - e é também um traço de estrutura da per­
versão - , só há desejo que conduza ao gozo. Nenhum lugar, então, para um de­
sejo insatisfeito - o que constitui, como nos ensina a histérica, a definição radi­
cal do desejo. É exatamente af que se situa o desconhecimento próprio à lógi­
ca perversa: não que o perverso reduza o desejo somente à consciência de tê­
lo, ou acreditar tê-lo, mas ele erige como uma necessidade absoluta o fato de
satisfazê-lo - o gozo torna-se um dever decorrente da lei absoluta do desejo - ,
um dever, do qual ele faz questão de que o parceiro, o Outro, seja persuadido,
também. É o que Lacan formula quando define o desejo perverso como "vonta­
de de gozo". Sendo o gozo obrigatório, "exigido pela Natureza", como diz SA­
DE, não há mais, evidentemente, lugar para a culpa, exceto a de se esquivar
ou de não estar à altura de seus preceitos. Solução prática para a culpabilida­
de, sem dúvida. De onde uma certa euforia - que não evita, entretanto, ao per-
. verso sentir penosamente a injunção superegóica de sua lei.
Que ele esteja prestes a gozar, não é uma sinecura; mais do que tudo, é
a prisão que tem no horizonte um deus que, por não ser enganador - sabe-se
o que ele quer - , é mais exigente, a ponto ,do sujeito acabar por se oferecer a
ele em holocausto para não ser devorado. E então que, no caso evocado, o ta­
tuador vem ocupar um lugar, lugar que o analista só pode deixar para outros:
o de instrumento desse deus obscuro.

Publicado em Acres de /'École de la Cause Freudienne; Transferi el lnterprétation dans les névroses et
les psychoses. Angers, vol. VI, Junho de 1984, p. 15.
Revisão de Sara Fux

99
Genevieve Morei

UM FETICHISMO MALOGRADO

Tradução de Norma Werneck

Esse título me foi inspirado por uma observação de Freud, que nota, no
"O Fetichismo", que este "poupa ... ao fetichista tornar-se homossexual, ao pres­
tar à mulher este caráter pelo qual ela se torna suportável, enquanto objeto se­
xual". Este não é sempre o caso. Assim, para Gide, o fetiche que constitui sua
correspondência com Madeleine não lhe permitiu nem desejá-la, nem evitar a
homossexualidade. Nem a Heitor, cujo nome eu escolhi, devido à excitação in­
controlável que o dominou diante de uma tal "academia de homem" de Davi,
onde Heitor deitou-se nu no chão, tendo só o sexo velado por um vermelho de
um modo tão ambíguo que se poderia pensar em um ferimento.
Heitor, que, por profissão, é expert em imitação, especialista em laços so­
ciais, cuja divisa seria "a de levar a harmonia às partes divididas", grande enga­
nador do Outro, que ele consegue quase sempre tapear, evoca, pela sua infân­
cia, o sujeito descrito por Freud em sua Jchspaltung de 38. Ele se lembra, com
efeito, de uma fobia de serpente, o que obrigava sua mãe a verificar o conteú­
do de cada armário, e a embrulhá-lo num lençol ao dormir.
Contra o pesadelo assustador que lhe trazia todas as noites a imagem de
um "homem de metralhadora", ele tinha, como consolo, o travesseiro da mãe,
chinelos de sola entrançada, e de conservar consigo a palmatória de sua mãe,
cujos fios ele tinha trançado uma de suas lembranças mais antigas.
Esta série de objetos, ditos contrafóbicos, anunciavam o fetiche com o
qual ele se garantirá contra a castração materna.
É, com efeito, no início de tratamento, um sonho - "das serpentes verdes
escarlates" evocando-lhe, conjuntamente, o verde do travesseiro do divã e o es­
carlate da ereção que lhe lembravam, além de sua fobia de serpente, esse tra­
vesseiro materno cuja presença ele buscava e que avançava em sonho para sufocá-lo.
O "homem da metralhadora" é, evidentemente o pai, e o pai, para ele, se
reduziu à essa encarnação pura da angústia de castração, não tendo, sequer, re­
cebido o disfarce que lhe assinala a metáfora da fobia. Nas na rrativas desse re­
sistente que teria matado muitos alemães, Heitor percebia um gosto pelo assas­
sinato. Na Alemanha após a guerra, ele teria conquistado as mulheres. Mas,
no entanto, desde antes do nascimento de seu filho, esse homem viril, matador
e trepador, tinha entregue as armas diante da mãe de sua mu lher, Marcelle.
Esta, "única a encarnar a legitimidade da família", dirá Heitor, descendia de
uma linhagem de mulheres alfaiates desde a Revolução (i.e., confeccionavam
calças para homens). Quando da morte de seu pai, o pai de Heitor havia rene­
gado sua mãe que não tinha querido enterrar seu marido. Ele, então, havia se
deixado adotar por Marcelle como o filho que ela, jamais, tivera. Assim, toda
a família se encontrava sob o corte de Marcelle, que dirigia o atelier, e que foi,
para Heitor, criado nesse ambiente feminino, um nome-do-pai.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan·dez 1989 p.l00-103
Um fetichismo malogrado

O momento de virada de sua infância se situa quando, aos sete anos, ele
emerge de uma grave doença apanhada no jardim de Marcelle, da qual sua mãe
o salvou ao dedicar-se, inteiramente, a ele.
É , aliás, ao sair de uma doença que deu à sua mãe pretexto para cuidá­
lo de novo, que Heitor, não suportando mais ser "envolvido pelo amor mater­
no", demandou uma análise. Apenas curado, ele se lança em duas atividades,
cuidadosamente distinguidas por ele, mas cuja comunhão de estrutura não lhe
escapará.
- Um travestismo, tendo aprendido a costurar desde cedo, Heitor confecciona
trajes femininos, que ele veste sob os olhares cúmplices de sua mãe e espanta­
dos de seu pai, que, no entanto, não -dirá nada. Os dois mais belos teriam sido
um vestido de noiva e o traje de Maria Antonieta com crinolina.
- A premissa de sua homossexualidade: em seguida, ele arma uma tenda no jar­
dim de Marcelle e convida os meninos, que ali se despem em troca de bombons.
Ele descreve, então, a excitação ligada ao olhar possível de Marcelle rodando
em torno Q,a tenda, como um "E" a mais. Assim, um pênis atrás de um véu so­
bre o qual paira um olhar: tal é a estrutura comum desses dois traços de perversão.
Mas, a diferença entre o, •1ois, que o tempo não desmentirá, é que o pri­
meiro sustenta uma idealização, faz existir a mulher como toda fálica atrás de
seu véu, mas exclui toda excitação sexual, enquanto que o segundo causa a ere­
. ção. Do lado do travestismo, encontra-se "a elisão do pênis como vivo", escrita
por J.-A. Miller, unida, nós veremos, ao ideal do eu materno I.
Do lado da homossexualidade, a excitação é devida à presença positiva
do pênis, rp, sobre a imagem narcísica i(a).
Aos quinze anos, Heitor, instigado por sua mãe, entra como dançarino
em um grupo folclórico. Lá, a clivagem das duas atividades, extremamente mo­
dificadas, continua. A dança será, agora, associada ao travestismo. Heitor dan­
ça como homem, mas, se fantasia de mulher em casa, diante do espelho e sem­
pre sob o olhar, agora fantasmado, do Outro. No grupo folclórico, ele se torna
rapidamente mestre de ballet, e, apaixonado por adereços femininos torna-se
especialista na touca do Poitou, a qual requer uma técnica particular: pregar a
renda em dobras. Cada dançarina terá sua touca alta, amorosamente costura­
da por Heitor, versão sublimada do travesseiro-serpente - falo materno. Em ca­
sa, de acordo com as sessões costumeiras, sempre diante do espelho, mas não
ao mesmo tempo, ele se contempla nu em ereção, se fotografa e se masturba.
A homossexualidade virá a seguir, em continuidade, o parceiro sendo esco­
lhido como duplo narcísico.
Mas, de fato, ele, onde está?
Um "set" de quatro figuras, onde se distribui o suj eito, ordena sua relação
ao gozo; a balconista, o homem da metralhadora, o bicho papão, e o filho.
Heitor está dividido em "uma oposição de duas básculas identificatórias",
para retomar Lacan falando de Gide, duas identificações à sua mãe, a balconis­
ta e o bicho-papão. A balconista é a mãe virgem de antes do casamento, o bi­
cho-papão é a mãe envolvendo seu filho de amor e sufocando-o - o que não é
sem evocar o pesadelo gidiano "o abrigo me devora". É preciso saber que a mãe
renunciou à dança, quando de sua gravidez.
Assim, a primeira figura é aquela, fálica, da mãe intacta virgem e dançari­
na. Heitor é a sua representação extraída de um filme do casamento de seus
pais: a mãe está aí, velada de branco, e ela repele o pai que a olha com cupidez.
Esta cena dá a matriz fantasmática do pênis velado, sob o olhar. É em tem­
pos que, identificado à virgem dançarina à balconista segundo suas palavras -,

101
Genevieve Morei

que Heitor deseja e se mascara, mentalmente, se coloca "em uma pele de mu­
lher" para encontrar um homem.
Mentalmente, porque, jamais, ele se travestiu, realmente, em um contex­
to homossexual, o que implica para ele a virilidade. Um sonho, durante o trata­
mento, mostrou que o olhar do pai como figura da lei era essencial para criar
o efeito balconista. Mas a visão ideal pode se fender, a fantasia mostrando, en­
tão, sua função de encobrimento do real. O ponto de horror é atingido quan­
do a mulher, de olhada, mas, intacta, se torna possuída pelo "homem de metra­
lhadora".
Heitor o evita, de hábito, identificando-se ao "bicho-papão" - nós o vere­
mos - desde que ele tem uma relação sexual efetiva com um homem. Mas isso,
dá a chave do medo que o toma diante de seu chefe, quando, tendo mentido
muito sobre suas capacidades, por ocasião de uma mudança de emprego, ele
se via a um passo de ser desmascarado.
Tomado de pânico, ele ia vagar em torno dos "camionistas brutais" à saí­
da do trabalho, com a idéia insuportável de se fazer maltratar, sexualmente,
por eles. O conteúdo desvelado, "ser amado pelo pai", que significa a castraçao
materna, suscita, entao, nele, uma aspiração obscura de que uma lembrança
obscura dá a pista, mas, que encontra seu limite em uma violenta angústia de
castração diante do pai, imodificada desde o pesadelo do "homem da metralhadora".
A segunda identificação ao "bicho-papão" coloca em cena a mãe, agora
completada falicamente pelo filho. O que é escamoteado, no salto de uma iden­
tificaçao à outra, é a castração materna, equivalente à perda da virgindade.
Heitor narra essa história edificante: a mãe não queria filhos para conti­
nuar a dançar. Ela não perdoará, então, a seu marido por sua gravidez e, grávi­
da, fêz uma depressão severa, desejando, apesar de tudo, uma filha.
Quando da pergunta tradicional sobre o sexo no nascimento, a resposta
veio do bebê, que lançou um jato de urina sobre o olho de seu pai.
Este se felicitou pela virilidade de seu filho e a mãe, subitamente restabe­
lecida, se pós a cuidar da criança. Assim, o bicho-papão é a mãe preenchida pe­
lo filho, marcada, no entanto, pela castração sofrida pela balconista.
Heitor, então, se ele não deseja . senão como "balconista", não goza de
seus parceiros, senão como "bicho-papão", imitando o amor materno em seu la­
do colante, envolvente, marcado por aquilo que ele chama sua "neurose tátil",
uma tendência a tocá-los sem parar, a manipulá-los, sem o seu consentimento.
Por outro lado, ele se vê conduzido a violar sua intimidade, a levantar o
véu, como ele diz, literalmente, vasculhando por toda parte, colocando-os num
catálogo com fotos tomadas sem seu conhecimento, gravando sua voz no telefo­
ne em cassetes, para seus "arquivos". Mas, essa violação da intimidade, é, fre­
qüentemente, mais moral, como mostra o exemplo seguinte, tirado de um gran­
de número de anedotas semelhantes. Ele encontra um jovem, a cada vez, com
o estado de espírito da costureira: é talvez o encontro - ele não é bobo, dizen­
do, aliás, que ele, jamais, amou um homem. Ele recebe, pouco depois, uma cor­
respondência do jovem lhe anunciando que ele se enganara, que ele quer for­
mar uma família, que ele se arrepende dessa única aventura homossexual.
Heitor, imediatamente, corre para consolá-lo, o aprova, louva seus proje­
tos matrimoniais. Ao mesmo tempo, ele se aproxima dele, fisicamente, causa
sua ereção, o faz gozar, o que produz a confusão do outro, assim dividido ente
seus ideais e seu gozo. Isso obtido, ele cessa de interessar a Heitor, que o dei­
xa, instantaneamente. Onde se vê que ele não se faz instrumento do gozo do
Outro, que ele só vem completá-lo para fazer surgir, ao mesmo tempo, sua divisão.

102
Um fetichismo malogrado

Outras anedotas, com mulheres, sobretudo, mostram essa coalescência


nele: visar o Outro ao nível mais íntimo do ser, tapar sua falta pela oferta do
objeto mais-gozar, e, por essa operação mesma, fazer surgir, em outra parte,
sua divisão. Mas, esse segundo par da mãe-bicho papao e de seu filho, masca­
ra, sempre, o mesmo ponto de horror: se Heitor não chega a dobrar o Outro à
sua demanda, ele pode se sentir rejeitado da figura narcísica do filho para aque­
la outra, aterradora, do "homem da metralhadora". Ele poderá, então, lançar­
se numa orgia brutal e anônima, oferecendo-se em sacrifício ao Deus obscuro
- o que ele comentará, dizendo que acabou de "fazer amor com a morte".
Assim, essas duas identificações com a mulher não são equivalentes, mas
situam em sua báscula a Verleugnung da castração pelo sujeito. A primeira sus­
tenta o desejo como idealizado, e, pelo véu que desmente a castração materna,
permite o amor cortês por uma mulher "toda" (há sempre pelo menos uma na
vida de Heitor) enfim, está na base da sublimação artística (a dança, a fantasia,
a touca.).
Seus maternas são rp e /. O Outro preenche a castração materna que, en­
tão, foi alguma vez reconhecida - pelo filho e se acompanha de um funciona­
mento possível do órgão. Seus maternas são i(a) e rp. Que o véu se torne trans­
parente, que a máscara caia diante do pai, que a mãe -"bicho-papão" se torne
por demais opressora e torne, assim, manifesta a sua castração, então, surge o
"homem da metralhadora".
Terminemos com uma palavra sobre a análise e a transferência, problemá­
tica na perversão. O que me tocou nesse caso é que o sujeito foi levado, ineluta­
velmente, ao mesmo ponto pela análise, que merece bem, aqui, seu nome de
"operação verdade" - para pesar dele e, logo, para júbilo meu. A saber, o encon­
tro com a castração materna. Isso se percebia no início com a evocação do tra­
vesseiro sufocante, ao mesmo tempo em que ele construía a analista como uma
figura fetichizada e ideal. Em um sonho pouco a seguir, ele encontrava sua mãe
com o sexo mutilado e se refugiava, salvando o pai, em um grupo de jovens dan­
çarinas. Onde se verifica que a "costureira" é para ele a identificação privilegia­
da para a Verleugnung, pela oferta direta do fetiche face à castração. O incons­
ciente transmitia, através dos sonhos, aquilo que o amor de transferência vela­
va. Infelizmente, uma mudança foi a ocasião onde a analista basculou de sua
posição de mulher idealizada àquela de mulher castrada, possivelmente "bicho
papão". Então, Heitor foi tomado por uma depressão súbita, anunciando-me
que eu, agora, habitava em um lugar pobre perto de uma má zona de homosse­
xuais. Um acting out o levou a uma de suas orgias mortais. Ele sonhou que eu
quebrava um salto, levando-o na minha queda, depois que, com um ar perturba­
do, eu lhe indicava com o dedo um homem que estava se despindo ao lado de
meu consultório. Ele me disse ter pensado, até então, que eu não tinha um ho­
mem, e qualificou minha mudança de quase-traição. Desde então, ele tenta fu­
gir da análise, que o levou a um mau encontro atrás do véu.

Revisão: Sara Fux

103
Angelina Harari

UM HOMOSSEXUAL CASA-SE

O tratamento de pacientes homossexuais suscita questões ao analista. Es­


te, ao recebê-los, pergunta-se a respeito dos seus próprios preconceitos. Por exem­
plo, acredita poder levar o homossexual ao encontro do sexo oposto? Ou seja,
deve no lugar do sujeito, assumir a heterossexualidade como ideal de cura?
É necessário ao analista, mais ainda neste caso, avaliar seus preconceitos,
interrogar-se, privilegiar o desejo do analista em vez de favorecer qualquer con­
tra-transferência. De fato a contra-transferência é um obstáculo ao surgimento
do essencial de uma cura e o desejo do analista se opõe à contra-transferência.
No momento de acolher uma demanda, o analista deve referenciar-se no
desejo do analista, que é, como diz Lacan: "um desejo de obter a diferença ab­
soluta, aquela que intervém quando confrontado com o significante primordial,
o sujeito vem, pela primeira vez, em posição de se sujeitar a ele" ( 1).
Do lugar de analista, Freud coloca que a psicanálise não é chamada a solu­
cionar o problema do homossexualismo. Que, de fato, não lhe compete. Deve
contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determi­
nação da escolha de objeto e remontar as vias que conduzem às montagens pul­
sionais (2).
Compete à psicanálise revela'r os mecanismos psíquicos determinantes da
escolha de objeto, que expressa o caráter de impasse nas relações homem/mu­
lher. É uma escolha determinada, forçada, ou seja, o sujeito nao é o agente na
escolha. Pode-se seguir as vias que conduzem às montagens pulsionais, melhor
dizendo, aos meios de produção de uma satisfação. Supõe-se um sujeito satisfei­
'
to, entendendo-se sujeito, esse pulsional em termos de uma subjetivação acéfala.
A satisfação ocupando o lugar da inexistência do ato sexual (3).
A escolha de objeto, a remoçao do homossexualismo, é difícil mudar. Não
podemos contudo caracterizar a homossexualidade a partir do tipo de escolha
de objeto. Para Freud, a literatura tendenciosa obscureceu a nossa vista permi­
tindo a rejeiçao de dois fatos fundamentais revelados pela investigaçao psicana­
lftica. Primeiro, homens homossexuais experimentam uma fixação especialmen­
te forte na mãe; segundo, uma certa medida considerável de homossexualismo
latente ou inconsciente pode ser detectada em todas as pessoas. Cai, portanto,
por terra, a suposição de um "terceiro sexo"(4).
A sexualidade depende de uma restrição na escolha de objeto, melhor di­
zendo ela é sempre vista pelos desfiladeiros do significante. Não podemos igua­
lar homossexualidade e perversão, pois esta é uma forma diferenciada e aque­
la expressa apenas a escolha de objeto. As "condições do amor" são determinan­
tes na escolha.
A psicanálise pode funcionar a partir de uma posição subj etiva em relação
ao desejo.
Frcud distinguiu de outras a ética da psicanálise centrando-a no desejo.
Distinguir uma ética foi possível justamente a partir da dimensao do desejo do
analista que, em última instância, opera na psicanálise.
Deter-nos-emos especificando na clínica o tratamento de um homossexual.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.104-106
Um homossexual casa-se

Este tratamento divide-se em dois tempos, dois momentos cronológicos diver­


sos. No "tempo um" apresenta-se um jovem rapaz com a demanda de separar­
se do companheiro, a queixa é dirigida à sua relação homossexual. Com a ida­
de de 15 anos, nas suas primeiras experiências sexuais, ele procurava situações
para ter contatos sexuais fortuitos com homens desconhecidos. A primeira vez
foi com um homem que o seguia. Depois disso praticou uma atividade homosse­
xual oral: sentia satisfação em chupar, em preencher a boca e proporcionar go­
zo ao parceiro. É obcecado pelo pênis. Ao interrogar-se, ele transforma a com­
pulsão numa questão subjetiva, num enigma.
Com as mulheres mantinha relações de amizade. Uma vez apenas, havia
chegado, não sem dificuldades, a um ato sexual sem gozo.
TendO Jhegado, como queria, à separação do companheiro, não sabe que
fazer, ao mesmo tempo ele dá um passo em direção à transferência; de fato ele
supõe que o analista pode ajudá-lo a saber quem deve escolher como compa­
nheiro: homem ou mulher? Podemos observar que antes de ter acesso à esta
questão, ele havia escolhido para analista uma mulher, buscava uma via de aces­
so ao lado mulher. Quer aproximar-se de uma mulher, mas o corpo dela não é
objeto para ele. Procura depreender as razões pelas quais a mulher não é obje­
to para ele: a mulher é castrada, ela não tem. Ora, do analista também não re­
cebe nada: o grande Outro não tem, é ele, o sujeito, quem dá e precisa dar sem­
pre mais.
No "tempo dois" apresenta-se como um sujeito analisável. Uma passagem
se faz, a saber, o ato sexual com a mulher torna-se possível, ele tem acesso à
mulher, isto é, com a mulher ele pode gozar. Casa-se. A passagem à mulher re­
produz o que antes havia sucedido com o analista.
Ganha confiança e concede mais à análise; aborda temas dos quais ele
não póde falar ainda. Abcessos produzidos por uma forte excitação anal dos
15 aos 18 anos, impuseram-lhe cirurgias que se tornavam sempre mais arrisca­
das, chegando ao ponto de enrijecer o reto.
Os abcessos formam uma sanção somática a que vem se acrescentar uma
outra, a AIDS.
Jovem, o sujeito já procurava o acesso ao lado mulher, mas uma satisfa­
ção compulsiva se lhe impunha. O que o conduzia a esta compulsão era precisa­
mente um olhar e depois um gesto; gesto típico dos homens, diz ele, "de segu­
rar o pau". Para os outros é um gesto desapercebido. No cinema, na escuridão
é um olhar, um gesto que ele reencontra. Na sessão seguinte à essas revelações,
não vem, vai ao cinema mas não encontra ninguém. Espera; cansado de esperar,
vai-se embora.
A compulsão que se lhe impõe sempre, é esta mesma compulsão que ele
busca apaziguar.
A partir deste fragmento de análise podemos perguntar-nos: qual a posi­
ção em que o sujeito colocou o analista? Se buscava uma via de acesso à mu­
lher, foi nessa posição que colocou a escolha de uma analista mulher. Com is­
so não estamos dando uma regra geral para homens homossexuais. Retorne­
mos à questão da demanda de análise desse sujeito.
Como vimos, em sua demanda ele buscava a mulher e portanto essa bus­
ca já se fazia presente desde a escolha da analista. Para Lacan é a ausência do
pênis que torna a mulher falo. Foi no que chamamos "tempo um" do tratamen­
to, que se depreenderam as razões pelas quais apesar de buscar a mulher, não
havia encontrado um acesso à mesma. Ela não se tornava objeto, isto é, ele não
identificava o corpo da mulher como tal. Esse depreender de razões, não lhe

105
Angelina Harari

veio pela via da "aprendizagem" ou da "compreensão". Foi via transferência.


Do analista ele recebeu nada, pois o grande Outro não tem. Nessa medida dize­
mos que ele reproduziu na vida o que havia sucedido com a analista.
Pensando ter demonstrado, temos convicção de que não foi o simples fa­
to do analista ser mulher que possibilitou ao analisando fazer esta passagem.
O cuidado na explanação dos elementos do caso teve a intenção de afastar con­
clusões reducionalistas e precipitadas.
Não vamos generalizar a partir desta cura uma regra prática qualquer.
Estamos alertas do que em certa época na psicanálise tornou-se praxe perscre­
ver analistas mulheres a pacientes homossexuais masculinos, isto é, toda a im­
portância era dada ao sexo do analista.
Podemos considerar que a prescrição conforme o sexo do analista pOe
em evidência os preconceitos dos quais falávamos no início do trabalho. Precon­
ceitos que vão de encontro ao que Lacan conceituou em torno do desejo do analista.
A castração da mulher suscitava-lhe angústia, provocando-lhe uma inibi­
ção, um freio. Um limite para ele da presença intolerável do gozo. O pênis teria
função de proteção diante do desejo do grande Outro?
Tal resposta efetivamente só se pode articular desde uma análise estrutu­
ral da questão do sujeito na neurose, na perversão.
As posições subjetivas nas diversas estruturas não são igualáveis, correlati-.
vamente a função do objeto tem valor significante diferenciado na neurose, na
psicose e na perversão.

BIBLIOGRAFIA GERAL

LACAN, Jacques. Écrits. Du "Trieb" de Freud et du désir du psychanalyste. Paris, Seuil, 1966.
MILLER, J.-Alain. Notas pessoais das conferências no 11 Encontro Brasileiro do Campo Freudia­
no. São Paulo, 1989.
MI LLER, J.-Alain: Cours 1989. "Les divins détails". Paris.
SOUER, Colette. "Anticipations de la fin" In: Actes de l'École de la Cause Freudienne. MarseiUe,
1989, p. 68.

REFE�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. LACAN, Jacques. Le Seminaire; livre XI; Jes quatre concepts fondamentau de la psychanalyse.
Paris, Seuil, 24 j uin 1964, p. 247.
2. FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In:_. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. v. XVIII. Rio de Janeiro, !mago, 1974, p. 211.
3. LACAN, Jacques. D'un autre a l'Autre (inédito) Séminaire 1968-69, 5 mars 1969. (tradução livre).
4. FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. op. cit p. 211.

106
João Batista

TRAÇOS E TROCAS

É no texto intitulado "Bate-se em uma criança", propondo uma contribui­


ção ao estudo da origem das perversões sexuais, que Freud fala de "Traço pri­
mário de perversão".
Ele fala de uma fantasia de espancamento, a qual tem sentimentos de pra­
zer relacionados com ela e, por isso é .reproduzida inumeráveis vezes, conten­
do um clímax da situação imaginária, na maioria das vezes uma satisfação mas­
turbatória. A vergonha e o sentimento de culpa poderiam ser atribuídos a essa
fantasia.
As constatações de Freud lançam uma luz especial sobre o problema do
masoquismo, ao tempo em que ele examina muito profundamente a questão
dos motivos que levam ao recalcamento.
É na apreciação do desenvolvimento de um dos componentes da função
sexual que ele explica a estrutura, se o componente sexual desencadeado prema­
turamente for o sádico pode-se esperar que do recalcamento subsequente resul­
te uma predisposição à neurose obsessiva. Por outro lado, a análise mostra o
desenvolvimento histérico destas fantasias de espancamento, envolvendo trans­
formações tanto na relação entre a fantasia e o seu autor, quanto ao que se re­
fere seu objeto, entre conteúdo e significância.
Na primeira fase da fantasia entre as meninas, a criança que apanha nun­
ca é a autora da fantasia, podendo ser um irmão ou uma irmã; mas, sempre é
um adulto que está batendo na criança. A primeira fase é representada pela fra­
se: "Meu pai está espancando a criança". A segunda, considerada por Freud a
mais importante, pode ser definida por: "Estou sendo espancada por meu pai".
Finalmente a terceira fase que envolve uma fantasia com uma excitação sexual
intensa, fornecendo um meio para satisfação masturbatória. Nesta fase, quem
apanha é um menino. A pessoa que bate é o pai ou seu substituto.
Na tentativa de ilustração, falaremos de um caso de uma jovem senhora
que nos chegou para entrevista com história de nervosismo, insonia, tonturas e
dores no estômago, apresentando ainda, quando se aborrecia, crises asmatiformes.
Aconselhada a fazer testes com uma psicóloga, resultou-lhe um diagnósti­
co de suspeiçlío: esquizofrenia e surtos paranóicos. Este resultado ela me exibe.
As entrevistas prosseguem e a Srl! Z diz que nas entrevistas com a psicólo­
ga nlío lhe contou uma coisa interessante. Trata-se de uma paixão pela médica
que tratava da sua alergia, tendo declarado isso numa carta endereçada a ela.
Lembranças da infância lhe afloram e ela me conta suas brincadeiras de
sexo com a sua irmã mais nova. Ela é a quarta e a irmlí a quinta. Com a douto­
ra não teve nada, faz questlío de me dizer.
A Sr" Z me fala também do medo que tinha do seu pai, só pensava que
ele lhe agarraria para manter relações sexuais e justifica o medo dizendo que
seu pai teria estuprado sua prima. Relata ainda que, em troca de um pouco de
coalhada, mantinha relações sexuais com um irmão.
A morte do pai é lembrada e, a partir daí além do medo, a Srl! Z pass a a
ter visóes.
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1989 p. J07- I I O
João Batista

Via vultos, não conseguia dormir com medo que seu pai viesse lhe pegar. Co­
menta que ele nunca lhe fez carinho, nunca lhe botou no colo, mas bater, batia.
Por ser a mais velha tinha que ser a responsável por tudo. Ela era acusada pe­
la irmã de ter concorrido para a morte do pai, em virtude de ter namorado
um homem que ele não queria.
A Sr" Z. comenta seus sonhos, ou melhor, seus pesadelos onde aparece
frequentemente a figura do "lobisomem". Fala que seu pai teria sido mordido
por um cão. Volta a falar do seu medo de ser estuprada pelo pai e, traz outra
versão .do "estupro" da sua prima. Segundo sua irmã, teria sido uma surra que
seu pai teria dado em sua prima. Ele teria feito isso por perversidade, diz ela.
Outras lembranças da infância surgem e com elas, sua raiva de bonecas.
Só brincava com homens e talvez por isso, essa coisa tivesse ficado em sua cabe­
ça. Sonha frequentemente com a doutora, pretende procurá-la, fala do desejo
de se separar do marido e, se isso acontecer, não vai mais querer viver com ho­
mem nenhum, pois, eles não sabem tratar bem uma mulher. Desculpa-se e per­
gunta se sou casado. Sr" Z fala de sua passagem pelo Convento, da amizade
que tinha com uma freira louca e, ao falar o nome da freira, comete um ato fa­
lho, troca pelo nome da doutora.
Tentaremos agora um comentário sobre a fantasia da Sr" Z.
"Meu pai estuprou minha prima", faríamos correspoder à primeira fase:
"meu pai está espancando uma criança" e, o que ele fez com ela, vai fazer comi­
go. Passaríamos aí, a segunda fase, a fase masoquista: "Estou sendo espancada
por meu pai".
Como pensar a terceira fase?
Freud nos diz que a terceira fase envolve a fantasia com uma excitação
sexual intensa, fornecendo um meio para satisfação masturbatória mas, a Sr"
Z não me fala em masturbação, o que não afasta a possibilidade disso ocorrer.
Ela me fala de uma paixão pela doutora, um ódio, fala da sua raiva pela bone­
ca, de não querer viver mais com homem nenhum. Não poderíamos pensar em
um "Traço de perversão na histeria?":
No intuito de um estudo comparativo, apresentar-lhes-ei um outro caso
da nossa clínica. Trata-se de uma pessoa do sexo feminino, com 38 anos de ida­
de, exercendo a profissão de Trocadora ou Cobradora.
A morte de uma sobrinha querida, levou R.B. à internação em um hospi­
tal psiquiátrico. Este fato ocorreu há mais ou menos oito anos. R.B. é peremp­
tória na afirmação de não gostar de meninos, não suportar choro de menino.
Essa é a questão a que leva a procurar um psiquiatra, do qual se queixa de não
tê-la ouvido direito e encaminhado para psicoterapia. A agressividade aflora.
O segundo internamento de R.B., se deu há mais ou menos oito meses,
quando agrediu uma passageira, por problemas de "troco". Daí para cá, ela vem
sendo acompanhada por psiquiatras, sendo agora encaminhada à psicoterapia,
o que a aborreceu muito, em virtude de ter que se apresentar na Perícia Médi­
ca do INPS e só ter a receita de um medicamento. O que será que eles vão di­
zer? Questiona-me mais ainda: "Você é analista?"
R.B. coloca em dúvida a necessidade de terapia no seu caso, fala da ques­
tão sexual se dizendo lésbica. Conta-me que já teve mais de 70 mulheres, viveu
com uma mais de 12 anos e ultimamente está com outra há dois anos. Esta tem
uma filha com a qual disputa o seu amor.
A menina é um impecilho na vida do casal, tem sete anos de idade e ciu­
ma muito da mãe, o que fez com que R.B. forçasse a sua ida para a casa da avó.
R.B. é a sétima filha e, antes dela, nasceram seis homens. Ela diz que foi

1 08
Traços e trocas

uma filha desejada pois, se fosse homem teria que ser batizado pelo irmão mais
velho. - Existe uma crendice que o sétimo filho homem, se não batizado pelo
irmão mais velho, viraria "lobisomem".
Sua famflia, segundo ela, é de pretos burgueses, só ela e um irmão que é
motorista, são "ferrados". Este significante ela usa frequentemente para se dizer
pobre, sem nada, diferente dos outros, pois, os outros cinco são formados.
Ela atribui à morte de sua mãe a desagregação da família, tinha 16 para
17 anos quando assumiu seu lesbianismo. Antes desse fato, R.B. teve alguns na­
morados e com dois deles namorou na porta. Eles ficavam na porta e ela corren­
do na rua, jogando bola, brincando com os meninos pois, não suportava o conta­
to corporal e já no segundo beijo os enjoava.
Sobre o pai, ela o considera muito desligado, o oposto dela. Apesar de
dizerem que ela se parece muito com ele, até o jeitão.
É como homem que R.B. ama as outras mulheres e isso fica claro no seu
jeitão. Ela se identifica com o pai, é ferrada como o irmão, não leva desaforo
para casa, dá o "troco".
O jeitão desligado do pai teria desapontado R.B., daí sua consequente
transformação em homem, tomando a mãe como objeto de amor, em lugar de
pai. É com a morte da mãe que ela assume seu lesbianismo e parte à busca de
uma mãe substituta, uma metonímia louca.
O pai de R.B. é por ela julgado impotente, incapaz de oferecer-lhe o reco­
nhecimento de seu pertencimento fálico, daí fazer-se homem, assegurar a lei,
pertencendo a uma ordem que supostamente escaparia a castração. Ocupando
o lugar do pai real ela tornaria mais honrosa a representação do pai imaginá­
rio. Ela tinha todas as mulheres, uma horda. Haveria disposição de pagar o pre­
ço de se fazer objeto oferecido no mercado das trocas?
O que teria levado R.B. a ocupar o lugar do mestre e se fazer homem?
Provavelmente a organização da subjetividade fantasística semelhante à do me­
nino teria sucedido à castração. Um investimento da fase fálica com recusa do
gozo proposto no lugar Outro. É sabido que uma mulher pode na sua intrepi­
dez frente a castração de se fazer o signo do "homem verdadeiro"; ora sabe-se
também que o ideal histérico aponta a substituição levando esta faculdade as
suas últimas consequências, sofrendo porém um corte no momento da sua reali­
zação. É como homem que R.B. seduz uma mulher, um homem comparado
ao pai pelo jeitão, um rival para ela.
· R.B. goza em ser o que não tem. Ela faz um revezamento de objeto pelo
fatG cie não aceitar que o mesmo assuma seu sexo senão ao preço da castração.
Ela me disse ter sido uma filha desejada e por isso, o que ela desejava era o
que lhe faltava, ser o desejo da mãe, ser o falo, o que está em outro lugar.
Ela não podia ouvir o choro de menino, se refere a filha da sua compa­
nheira como impecilho na vida do casal e provoca a separação mãe/filha. Isso
me faz pensar na equação (menino/falo).
O fato de ter colocado em dúvida a necessidade. de uma terapia no seu
caso e de ter falado da sua satisfação quanto a escolha objetai, fizeram-me ques­
tionar sobre a disposição da entrevistanda em pagar o preço da "troca". Um no­
vo tipo de escolha objetai face ao reconhecimento da natureza do seu desejo.
Outra forma de amor para ela seria insuportável.

1 09
João Batista
REFE� NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I. FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In:___. Edição


standard brasileira das obras psicológicas completas. V. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, 1 974. p. 181
2. FREUD, Sigmund. "Uma criança é espancada". Uma contribuição ao estudo da origem das perver-
sões sexuais. In:___. Edição standard brasileira das obras psicológicas. V. XVII. Rio de Janei-
rp, !mago, 1974. p. 221 ,
3. LACAN, Jacques. Propos directifs pour um Congres sur la sexualité féminine. In:__. Ecrits. Pa-
ris, Senil, 1 966. p. 734 (tradução livre)
4. id. ibid. p. 735
5. ___. le séminaire; livre IV; "la relacion d'objet". V. 1. 1956-57. chap. 6. 9 janvier 1957. p. 94-6
6. FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. op. cit. p. 208
7. id. ibid. p. 197
8. LACAN, Jacques. "la rclacion d'objet". op. cit. chap. 7. le janvier 1957. p. 1 1 2-5
9. FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada ... op. cit. p. 225 e 228
10. MILLER, Jacques-Aiain. Dos dimensiones clínicas: sintoma y fantasma. (J.-A. Miller, D.S. Rabi-
novich.) Buenos Aires, Manantial, 1986. p. 19-20 .
1 1. LACAN, Jacques. lc séminaire; livre XI; les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse.
Paris, Senil, 1973. p. 168
12. V. Autores - Perversão - Estrutura e Traço - Trabalho dos membros da Clínica freudiana para o
VI encontro do Campo Freudiano - Paris - 1990.

110
Jean-Jacques Gorog

TRAÇOS DE PERVERSÃO, PERVERSÃO TRANSITÓRIA

Tradução de Nora Gonçalves

Se o traço de perversão é verdadeiro, como diz Collete Soler na Lettre


Mensuelle n!? 90, necessariamente presentea para todo sujeito, "pois, ele disfar­
ça a ausência da relação sexual." - a libido, fundamentalmente masculina, não
tem simétrico feminino que possa garantir esta relação - então, podemos nos
perguntar qual será sua transformação na cura, e em que o traço ocupa uma
posição que seria distinta da perversão "estrutural" para o sujeito.
Uma outra posição poderia ser dada como operatória, aquela entre a per­
versão transitória e a perversão definitiva, se sua pertinência não fosse, ela mes­
ma, recolocada em questão por Lacan, p. 609 dos Écrits, onde se vê como um
erro de concepção na direção da cura pode induzir, para mais além da perver­
são transitória, a irredutibilidade da posição subjetiva, sem que, para tanto, se­
ja invocada uma outra estrutura clínica além daquela de início, no càso concer­
nente, de neurose obsessiva. Retornaremos sobre o erro em causa aqui.
É preciso, agora, distinguir um traço de perversão, produzido por esses
encontros, e a perversão transitória, que volta múltiplas vezes no ensino de La­
can? Seguramente, esse é o objeto dessa intervenção.
Primeiro, no que concerne ao momento, a perversão transitória é um mo­
mento da cura cuja responsabilidade pesa sobre o analista, aí onde o traço pode­
ria ser considerado como uma modalidade de gozo posta em questão na cura.
Um exemplo: Uma jovem mulher se apresenta à análise com uma queixa
de um tipo um pouco particular: ela só pode gozar se é espancada. Verifica-se,
aqui, que isso não é a título de um excesso de gozo, mas, de uma falta: em rea­
lidade, ela se queixa de frigidez, quando o traço perverso, aqui masoquista, não
a TP
está aí para assegurar seu gozo, segundo a fórmula de Collete Soler: .
!f,..
No lugar do traço surge uma falta. Porque esta exigência nova surge, é preciso
que à falta seja substituída outra coisa, uma outra modalidade de gozo que não
implica o traço? Porque ela está apaixonada e, mais precisamente, porque ela
quer uma criança.
Até aí, podia se contentar de vagabundear, em um homem a outro, em
razão dessa modalidade de gozo, modalidade cuja violência interditava uma rela­
ção mais regular, especialmente, por causa da vergonha que não deixava de sur­
gir a cada vez.
Ela não quer uma criança produzida nessas condiçOes e se trata, para nós,
de precisar as razOes disso. O masoquismo e seu gozo se revelam imcompatf­
veis com o amor. Entretanto, ela não renuncia ao gozo. Convém ser prudente
à oposição do desejo e do gozo, como aquela do amor e do gozo. E, se, na cu­
ra, a elucidação da posição do sujeito pela relação ao desejo supOe renunciar a
um gozo, ainda é preciso saber qual. O gozo perverso se apresenta como separado
fALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1 989 p. 1 1 1 - 1 1 4
1. -Jacques Gorog

do amor, e o amor, é isso que Lacan nos ensina no exame da transferência, im­
plica, pela sua emergência, o conjunto da cadeia significante do sujeito, ou se­
ja, o que o sujeito é como desejante. O perverso coloca de lado esta dimensão
por se agarrar à divisão subjetiva do outro, aos significantes do Outro, de quem
sua provocação suscita a mobilização, o amor ou o ódio do outro, que ele vive­
rá por procuração. A operação de masoquista, de sse ponto de vista, é mais com­
plexa que aquela do sádico, na medida em que seu corpo parece marcar a divi­
são infligida pelo instrumento de tortura. Mas, se trata, apenas, de um transpor­
te que mascara isso que é visado no outro, a divisão do outro, provocada pelo
gozo doloroso do sujeito. A punição antecipa a culpabilidade e daí a este qua­
dro o aspecto enganoso de uma subjetivação do desejo. O gozo, aí, é bem real
e a castração, no lugar do Outro. O amor colocado ao abrigo é uma preocupa­
ção de rigor ético, que terá lugar de moldura do objeto esperado no gozo, co­
mo se sabe, desde a "Filosofia na Alcova" e seu comentário, por Lacan, em
"Kant com Sade".
Para nossa paciente, a preocupação se manifesta de outra maneira: o pe­
dido de criança exige o amor e a parte de gozo levantada sobre aquela que o
incesto e sua lei interditava. Isto quer dizer que ela não pode se contentar do
desejo do homem, fosse ele carregado de todo o peso dos significantes de sua
história desde quando esse desejo é tomado numa operação que desconhece
sua própria dimensão desejante, seu amor, para tudo dizer, em proveito do re­
al de um gozo desarrumado.
Ela exige que, então, a criança a vir encontre seu lugar na série de gera­
ções da qual ela é o produto. É nisso que sua demanda de análise merece ser
entendida e permitirá que o traço de perversao aí encontre sua significaçao, pa­
ra retomar o título de um artigo de Lacan que é tão-somente um outro nome
da Direçao da Cura, numa subversão do sujeito e na dialética de seu desejo.
Esta significação, pode-se adivinhar sem dificuldade, resolve-se na reorientação
do desejo, segundo um vetar que restitue ao traço de perversão seu avesso, a
saber, a fantasia bem conhecida desde o artigo de Freud: "Bate-se numa crian­
ça". Nesse caso, se verifica que, do traço à fantasia, aquela, contrariamente, ao
.. traço restitui o desejo que restou errático na sua dimensão de privaçao quanto
ao exercício fático do pai, do traço à fantasia, há um intermediário obrigatório
que é a falta de gozo fático, um sintoma constituído, a frigidez alegada, logo
que falta a marca sobre o corpo que a escondia e que cobria seu pudor, até af.
Pode-se, naturalmente, considerar que se trata, aí, de uma perversão tran­
sitória, porque a sequência demonstrou, com efeito, o caráter transitório desta
perversão.
É verdade que a dimensão ética apresentada no início fornecia o augúrio
de uma saída, de preferência, feliz. Mas, parece-me que é outra coisa que La­
can toma em consideração com a perversao transitória. É o efeito obtido de
uma cura mal orientada sobre a escola do desejo. Outros efeitos são possíveis
desde o actíng-out do homem dos miolos frescos, abundantemente comentado
por Lacan, até a psicose que ele evoca igualmente em relação a essa questão
em L 'Ethíque (p.348).
Os exemplos são numerosos onde são causados pelo desconhecimento da
função do "desejo do analista", evocado sobre esse ponto desde a Escritos, mas,
não ainda formalizado antes do seminário XI, e não figuram, portanto, no tex-
to correspondente dos Écrits. ,
Pode·se fazer o catálogo dos erros dos analistas não-tolos? E ao que La­
can se empenha a precisar, os diversos tipos de desvios atestados no movimen-

112
Traços de perversão, perversão transitória

to analítico no exame dos resultados obtidos. Portanto, apesar das diferenças


teóricas entre cada desvio, desde a interpretação da superfície em direção à pro­
funda saída da egopsychology conduzem o paciente de Kris a lhe indicar que ele
se engana, já que ele se queixa de ser plagiário e a relação de objeto com seu
projeto de passar do pré-genital ao genital, até a identificação ao analista ou
sua introjeção, parece bem que o erro participa sempre do mesmo desconheci­
mento da função do simbólico. É, por isso, que a ênfase será colocada sobre
uma só dessas variações particularmente demonstrativa disso oferecer um sem­
blante elaborado, que ele conhece particularmepte bem de que se trata de seus
colegas do grupo francês, Bouvet, af, sendo o teórico, e onde ele pôde verificar
os efeitos, notadamente numa análise retomada segundamente. O caso de Ruth
Lebovici, de perversão transitória num fóbico está no mesmo registro, Lacan
atribuindo a seu supervisor, Bouvet, provavelmente, a responsabilidade da der­
rapagem constatada.
Gostaria de insistir, ag ui, sobre a dimensão ética deste erro, aquele que,
no seminário consagrado à Etica, precisamente, conduzem Lacan a formular co­
mo que: "não ceder sobre o desejo", onde o herói se oferece em modelo disso
que deveria ser a posição do analista no lugar de seu paciente, quer dizer, tam­
bém, aquela do analisante no fim da cura. A deriva perversa é o efeito de uma
falta ética, que não necessita nenhuma perversão, somente, um defeito quanto
à referenciação simbólica - nos Escritos, Lacan diz: "o terceiro da relação por
demais negligenciado".
A perversão, transitória ou fixada, permanece, então, como um declive
normal do sujeito neurótico, que permitiria ao sujeito fazer a economia de sua
responsabilidade ao lugar do desejo. Desde Freud, sabe-se que ela inverte a fan­
tasia do neurótico, a qual fornece o quadro do desejo. Em que o acesso a esse
gozo dito perverso constitui, não uma realização da fantasia tal como ela impli­
ca a construção e a travessia da fantasia, mas, de preferência, seu avesso?
Este ponto merece ser ainda precisado, tanto mais que Lacan insiste so­
bre a perversão ligada, necessariamente, à função macho. O exemplo de Sade
permite captar esta separação, entre a fantasia sádica desenvolvida no rigor de
sua obra e o gozo masoquista atuado na lógica de sua vida. Quanto à fantasia
de Sade, pode-se deduzi-la, não de sua obra, porém, mais de sua vida, como
nisso onde ela é resgatada, pela oferta de seu corpo de vivo e pelo cuidado que
colocou para fazer desaparecer, até, o traço de sua sepultura, em proveito de
sua obra.
Fantasia masoquista, sem dúvida, mas, mascarada e que fez retorno no
real de um gozo que deixa fora de campo as coordenadas simbólicas de sua his­
tória. Tal não é o caso de Édipo em Colona que, ao contrário, realiza o apaga­
mento de seu túmulo como a necessidade assumida, desde o fim de Édipo Rei,
da maldição da qual ele havia sido o em jogo até aí.
Esta assunção implica um saber sobre a maldição, da qual se pode dizer
que a obra de Sade dela fornece o logro.
Voltemos um instante sobre nossa distinção, traço de perversão, perver­
são transitória, do que isso implica, não, quanto à fenomenologia, mas, quanto
ao lugar ocupado pelo psicanalista e a função de interpretação. Se o traço tem
o valor de acting-out, cuja interpretação tem por efeito a colocação em jogo
do sintoma completado pelo analista, a perversão pode tão bem ser descrita co­
mo um acting-out provocado por- um defeito na interpretação, que quer dizer,
para Lacan, uma interpretação que perde sua dimensão de equívoco para se
acantonar no registro da sugestão. O traço de perversão, -a perversão como tal,

113
J. -Jacques Gorog

não é parte integrante da cura, é, por definição, uma parte não integrável, por
assim dizer, visto que o gozo como tal não pode fazer sintoma. Para que a en­
trada em análise seja efetiva, é preciso que o traço desvele sua função, ou seja,
aquela de suprir o defeito do gozo ao qual o desejo imprime s_ua marca.
Que nao tenha sentido fazer de sua vida um covarde (Ecrits p. 782) res­
ponde à aposta da psicanálise. É porque o homem, perverso disso que ele detém
o órgao, experimenta algumas dificuldades e se sustenta de uma mulher, e da
coragem que nela vem disso que ela não tem a perder (louca, quer dizer, não
louca de todo) para poder orientar seu desejo em função do interdito que a per­
versão a mais assegurada nao pode transgredir. É isso que indica Sade ao fim
da Filosofia da Alcova e que r_ � " " "' retoma em conclusao de seu seminário so­
bre a Ética: "Noli Tangere Matrem".

Revisão de Sonia Magalhães e Sara Fux

114
Marie Hélene Brousse

AUTO-EROTISMO E TRAÇO DE PERVERSÃO

Tradução de Sonia Magalhães

A idéia de interrogar a relação entre o traço de perversão e o auto-erotis­


mo me veio da leitura do texto dos Escritos "Juventude de Gide", trabalhado
no seminário de Jacques-Alain Miller, e de um caso que remetia a outro texto
fundamental de Lacan sobre a posição perversa: "Kant com Sade". Sabe-se que,
nos dois textos, Lacan trabalha não apenas a questão do traço de perversão,
mas articula, de forma decisiva, sua relação com a lei moral e o Outro do dever,
a título de condição de possibilidade de um traço de perversão. Nesse texto,
de fato, vocês sabem que Lacan, baseando-se na psicobiografia escrita por Je­
an Delay sobre os anos de infância e juventude de André Gide, constrói a fór­
mula da posição subjetiva de Gide. Ele põe em evidência a particularidade de
sua escolha erótica. Qual é ela? Na infância, ela se caracteriza por um auto-ero­
tismo masturbatório que nenhuma ameaça consegue limitar. Quando ele tinha
sete anos, havia sido mandado embora de sua escola porque, surpreendido ao
se masturbar, confessou o que fazia, sem dificuldades, ao instrutor de ensino,
quando este lhe indaga a respeito do que estava a fazer. Enviado por seus pais
a um grande médico da época, que proferirá a habitual ameaça de castração,
mostrando-lhe espadas e lanças na parede do consultório, ele diz lembrar-se
de não ter sentido angústia alguma e de não ter dado crédito a essas palavras.
Ele foi emudecido, apenas, pelos sinais de grande dor que pudera ler no rosto
de sua mãe. Essa prática o acompanhou durante toda sua vida, e deu o tom à
sua relação com a homossexualidade, que foi para ele, tão-somente, uma mas­
turbação recíproca com seus jovens parceiros, com exclusão de toda sodomia,
cujo horror sublinha em suas lembranças. Lacan, numa expressão surpreenden­
te, evoca "o menino Gide entre a morte e o erotismo masturbatório". Para des­
dobrar o sentido disto, é preciso se referir a uma outra formulação do mesmo
texto, "As duas mães", no qual ele mostra a dissociação, em Gide, da mãe do
desejo e da mãe do amor. Sabe-se que o papel decisivo jogado pelo desejo da
mãe na metáfora paterna, isto é, o nó que ele produz entre o Nome-do-Pai e
a significação fálica. No caso Gide, Lacan aponta a disjunção, no Outro mater­
no, entre o desejo, ausente, e o amor todo poderoso, origem "de uma palavra
que protege e que interdita", mas, "não humaniza o desejo". Disto resulta, por­
tanto, um desdobramento entre a mãe do amor c do dever ou da lei moral, sem
dialetização do pai pelo desejo, e a mãe de um desejo fora da lei, encarnada,
na sua história, por sua tia, mãe dessa prima que ele, por volta de seus treze
anos, torna o Anjo, a única mulher amada, ro preço de não ser jamais deseja­
da sexualmente abordada. Essa particularidad� da !'órmula de Gide traz, portan­
to, um investimento fálico da imagem do órgão nã'l tomado na castraçao mas,
como escreve Lacan na "Subversão do sujeito e dialética do desejo", ao querer
ultrapassar a interdição do gozo contido no significante fálico, o que se pode é ser
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1 989 p. 1 1 5 - J 1 8
Maria Hélene Brousse

levado à brevidade do auto-erotismo; para Gide, o órgao erétil simboliza o lu­


gar do gozo, desde quando nao falte à imagem desejada; é, precisamente, por
nao estar negativizado que se pode transformar, apenas, em gozo de idiota.
Mas, por outro lado, reaparece a negativizaçao que deveria colocar sobre o fa­
lo, o que somente poderia permitir a colocaçao em jogo do desejo da mae, dan­
do significaçao fálica a seu ser vivente. Ao contrário, aqui, eua negatívizaçao
visa o sujeito Gide, ele mesmo, como testemunham os pesadelos que o perse­
guiram por toda vida, numa forma de mulher que se revela sob seu véu, apenas,
como um buraco negro, ou, ainda, a angústia pela qual é tomado, segundo seu
depoimento, por três vezes, produzindo-lhe um sentimento de desrealízaçao,
excluindo-o da relaçao com o semelhante. Como diz Lacan, a morte faz entra­
da muito cedo na cena gideana e se liga às fantasias de destruiçao, de fracasso,
de dissoluçao, das quais se sustenta o gozo primário do qual sua masturbaçao
se fará o eco.
Seguindo Lacan, nao faremos de suas práticas pederásticas o índice de
perversao em Gide, já que elas se enraízam nessa nao negatlvlzaçao do falo que
as assimila às práticas auto-eróticas em companhia de objetos eleitos sobre o
modelo de uma escolha de objeto narcísico: a criança que ele próprio foi um
dia, sob um olhar desejante de sua tia. Por outro lado, sabe-se, Lacan faz da re­
laçao estabelecida por Gide com as letras a se tomar aí no sentido amplo de

homem de letras e no sentido estrito das cartas escritas à sua prima e mulher
Madeleine - um fetichismo cujo traço de perversao se estende a todos os seus
pequenos papéis, nem sempre constando no endereço o destinatário. As cartas
a Madeleine sao, com efeito, um fetiche, no sentido em que, por elas estarem
no lugar de seu próprio ser, sem que delas ele tirasse cópia, ele pensava poder
completar o Outro - que aqui é igualmente o Outro sexo que Madeleine encar­
na - e assim poder assegurar o gozo. Esse gozo ele o inscreve, ao contrário da
brevidade que caracteriza suas práticas sexuais, no registro da posteridade, tal­
vez da eternidade. No que se vê que, aí, se situa uma denegaçao da morte co­
mo de toda castraçao do Outro.
Essa colocaçao, a nu, da posiçao subjetiva de Gide, que Lacan opera, is­
to é, a colocaçao enquanto fórmula da relaçao particularizada de um sujeito
com a castraçao e significante fálico, de uma lado, e com o objeto, de outro, é
um verdadeiro modelo de aproximaçao clínica. Ela se revela, por essa razao, ex­
tremamente preciosa para a abordagem clfnica de certos casos.
Acontece que, de fato, fui levada a receber três sujeitos cujas práticas se­
xuais se reduziam às auto-eróticas. Atingindo os trinta anos, esses sujeitos se ti­
nham resguardado, sempre, de toda relaçao com o outro sexo e apresentavam,
portanto, como um sintoma, essa virgindade da qual se queixavam por faze-los
sofrer, mais pelo distanciamento entre eles e o que se lhes impunha sob a for­
ma de um imperativo social, do que pela falta de gozo, que de modo algum ex­
perimentavam. De fato, "seus maus hábitos", para retomar a expressao, de um
deles, lhe trazem um gozo que, por ser solitário, nao é a menos e, sim, a mais,
satisfatório. É conveniente que o sexo masculino ou feminino desses sujeitos
nao se constitui uma variável diferencial, sem dúvida porque, do ponto de vis­
ta da lógica da sexuaçao, esses dois homens e essa mulher se situam, no que diz
respeito a seus .sintomas, do lado masculino. Nao dispondo de tempo para de­
senvolver os três casos, deles lembrarei, essencialmente de um, se bem que um
certo número de traços sejam comuns aos três. Assim, todos se caracterizam,
na lógica de suas existências, pelo que chamarei "uma muito grande normalida­
de." Pontuais e eficazes em seus trabalhos, sem expansOes, sem expansões em

116
Auto-erotismo e traço de perversão

público, extremamente respeitosos da legalidade das regras e das convenções


sociais, eles se descrevem, pois como perfeitos sujeitos da lei moral, constante­
mente submetidos ao imperativo do dever kantiano. Disso resulta, para eles,
uma solidão subjetiva, total, não necessariamente objetiva: um dentre eles culti­
va certa solidão de maneira sistemática. Não tem amigos nem atividades de la­
zer, o que o levaria a encontros pontuais. Evita, portanto, toda ocasião de diri­
gir a palavra a seus semelhantes que não decorra de outra coisa, senão, a neces­
sidade. Não bebe, não fuma, nem beija, fala o menos possível e suprimiu as oca­
siões de falar até em famflia. Aliás, na sua família, aquilo que ele considera co­
mo um sintoma se declarou: ele deixou de se dirigir a seus pais chamando-os
de papai e mamãe, jamais pronunciando, diante deles, essas duas palavras. Ele
tenta regular sua existência sobre o imperativo Kantiano e zela por ser fiel à
exigência de universalidade e de reciprocidade contidas na lei moral, com um
cuidado, de, em todos os instantes, em todas as ocasiões de sua vida social, que
se reduz à utilização de transporte em comum e a compras em comerciantes.
Ele zela para que a máxima de sua ação possa valer como máxima universal.
Esse homem de puro dever, que luta contra todas as ocorrências do patológico,
se escandaliza por não encontrar, ao redor de si, nenhuma ação moral. Suas prá­
ticas masturbatórias são inscritas por ele na sua luta contra o patológico; ele
pretende operar, af, a redução da sexualidade à necessidade, numa ascese filosó­
fica que é, no seu caso, menos clfnica que estóica. Sua intenção se revela como
tentativa de separar o gozo sexual de todo significante da falta: é nesse sentido
que se encontra o recurso a uma imagem não negativizada, um +�. Ele também
se masturba diante de um espelho, evitando em qualquer cenário que reintrodu­
za uma significação no horizonte do significante.
Ele se prende a puras imagens de órgãos sexuais destacados de todo cor­
po de mulher ou de homem.
Mas, o que lhe faz enigma é a angústia que o invade de modo inexplicá­
vel quando - logo ele, que é tão respeitoso da lei - encontra uma figura qual­
quer de autoridade; essa angústia que o faz corar, transpirar, se embaraçar, dian­
te, por exemplo, de tal fiscal do metrô. Sua própria culpabilidade, inexplicavel­
mente, lhe faz retorno como um enigma. nos instantes em que é tomado pela
angústia. Toda figura de autoridade vem reanimar a função de interdição do
gozo: o fatà de ter relegado o gozo à brevidade do auto-erotismo não basta pa­
ra permitir ultrapassar os limites traçados ao gozo pelo princípio de sacrifício
que é a função da castração. Ele imagina como possível ser acusado de crimes
que não cometeu, por causa de sua solidão e de sua marginalidade social. Tam­
bém sonhos vêm lhe falar de morte, sob a forma de ondas arrebentando sobre
vestígios de sepultura.
Essas variações sobre + e -, para retomar a expressão de Jacques-Alain
Miller concernente a Gide, explicitam a relação que esse sujeito mantém com
a castração e a falta e indicam uma posição de desmentido, que implica um tra­
ço de perversão. Mas, o órgão não é para ser tomado aqui como fetiche, no sen­
tido que Freud indica no seu artigo sobre o fetichismo. Dito de outra forma, o
auto-erotismo masturbatório não é, senão, uma resposta, como no caso de Gi­
de, segundo Lacan, à ausência de uma palavra paterna humanizando o desejo,
isto é, produzindo a articulação do sexo em termos de significação fálica com a
ordem simbólica fundada sobre o Nome-do-Pai. Na história desse sujeito, po­
de-se, de fato, mostrar que, face a um pai silencioso e preocupado em não en­
gendrar monstro, o desejo foi sempre resvalado ao biológico por uma mãe to­
da amor, cuja depressão, depois da morte de seus próprios pais, tomou uma fci-

117
Maria Hélene Brousse

ção espetacular: o sujeito se lembra de escutar seus gritos de sofrimento quan­


do, em lágrimas, se jogava sobre seu leito. Aliás, a esses gritos e soluços corres­
ponde um sintoma do sujeito. Diz ele que é afligido por uma extrema sensibili­
dade auditiva. Ele se descreve como atraído pelo menor som de voz humana,
literalmente aspirado ou fascinado, ao ponto de não poder desviar sua atençao
dos discursos dos outros, de não poder prosseguir uma leitura, por exemplo,
quando pessoas falam perto dele. Essa extrema sensibilidade auditiva explica,
segundo ele, uma paixão pela música, que descobriu em si. Ele será levado a
lembrar como certos trechos de ópera lhe produzem um verdadeiro gozo que,
por não estar localizado no seu órgão, nem, por isso, é menos intenso e durá­
veL Ele foi levado, assim, a constituir para si um saber musical, uma biblioteca
e uma discoteca. Dirá, então, que, curiosamente, aconteceu, um dia, de jogar
fora todos os seus livros concernentes aos músicos, sem que pudesse explicar
porque. Reencontra-se, aqui, se bem em um outro nível, uma posição compará­
vel à de Gide em relação à letra, mas, dizendo respeito, dessa vez, ao som e à
voz articulada ao gozo do Outro.
Como escreve Lacan no Seminário 1 1, o auto-erotismo não tem o senti­
do de um desinteresse em relação aos objetos, mas, "tudo o que é definido a
nível do eu, do ich, só toma valor sexual em função de sua tomada por uma das
pulsOes parciais". É, portan to, a partir do Outro e do seu gozo, como figura da
falta, que se define o traço de perversão, o que explica que esta apareça em to­
da fantasia, já que esta é uma tentativa de resposta à questão da falta no Outro.
Nos dois outros casos que evoquei no início, o auto-erotismo masturbatório é
mais claramente ligado à fantasia e, portanto, à uma definição neurótica do ob­
jeto da Demanda do Outro. Mas, em todos os casos, o auto-erotismo, mesmo
quando é a única atividade sexual do sujeito, implica (contrariamente ao voto
explfcito do sujeito) uma relação ao desejo do Outro e à falta, ou seja A No
caso ao qual me referi com algumas palavras, o sujeito, adotando a posição Kan­
tiana, tenta regular sua posição subjetiva por uma vontade de separar o sujeito
do patológico e, apoiando-se na imagem do órgão, relega a sexualidade a uma
atividade higiência que não o divide. Mas, essa aparência de passa-passa que
escamoteia o Outro e a castração não pode evitar que a voz da consciência, que
guia em tudo esse cidadão solitário e modelo fora das veredas da divisão, não
ressurja como objeto que o divide na escuta de uma voz que o arrebata, literal­
mente. A considerar na perspectiva de uma definição freudiana da perversão,
o auto-erotismo masturbatório, como recusa da castração do Outro, pode, por­
tanto, aparecer como solução perversa na linha do fetichismo. Mas, ele se re­
duz ao traço se, com Lacan, se é mais exigente e que à perspectiva do falo se
articule a do objeto. A perversão consiste, então, em encarnar esse objeto pa­
ra se fazer o instrumento de gozo do Outro. Nesse sentido, como Lacan não si­
tua a perversão de Gide na sua pederastia, nem mesmo a redução da atividade
sexual à masturbação solitária, se ela implica o Outro não implica, de maneira
alguma, uma posição de instrumento em relação a esse Outro. Entretanto, o
que a exclusividade escolhida de tais práticas implica, sempre, é que o desejo
fica confinado ao clandestino, quando o objeto se coloca atrás do vazio produzi­
do pela exigência da universalidade da lei moraL

Uc•·isão de Nora Gonçah•es e Sara Fux

118
Yasmine Grasser

O ÁLIBI DO AMOR NA PER VERSÃO

Tradução de Gilberto Rudeck da Fonseca

O amor é cego e tem os olhos para não ver. O álibi serve de defesa ao su­
jeito que quer escapar de um perigo. O sujeito que toma o amor por álibi gela
o desejo do Outro para se preservar dele. A este respeito, se ele é neurótico,
usará do amor como uma defesa a fim de continuar a não querer saber nada
do desejo no sentido do recalcamento. Se ele é perverso, o amor servirá de co­
bertura à sua vontade de gozo, a fim de desmentir a hiância do desejo. Ainda
mais, frente à perda do objeto do amor, af onde o neurótico reage pelo afeto
da angústia, o perverso invocará o amor, não como uma significação, mas, co­
mo um vel que joga sobre a ausência insuportável.
J ohn, que será questão no momento, tem 17 anos. Ainda bebê foi fiXado
ao "não ver" do Outro do amor, e, em consequência, teve que erguer seu ser
vivo sobre uma ausência de luto de criança que ele encontrou em sua mãe, de­
pois, sucessivamente, em duas mães adotivas. Isto se soube, quando ele tem
15 anos, de sua segunda mãe adotiva, que fez ressurgir sob meus olhos a fun­
ção de um olhar cego pelo amor. Foi entre eles um amor à primeira vista ( 1).
Para esta mulher, este amor comporta um desejo de criança; para John, vai ser
a condiçao de sua escolha de objeto homossexual. Nesta ocasião, ela evoca sua
primeira infância, passada numa primeira família adotiva, onde o amor, e não
o desejo, o inclina à fidelidade a uma mulher em impasse com a maternidade.
Ela o veste de menina e ele exibe para ela uma feminilidade que ele tem, mas,
que ele dá em forma de amor, visando o esposo. Atualmente, ele já tentou reto­
mar a vestimenta feminina da infância e se ofereceu aos homens.
Nossos caminhos se cruzaram numa instituição de educação, após a mor­
te de sua primeira mãe adotiva. Neste lugar aonde o conduziu seu destino, ela
cairá estarrecido diante da posição do analista. Depois de dois anos de evitamen­
to, ele suspenderá seu funcionamento para vir me falar. Há para ele um real
de possibilidade de entrar no trabalho de transferência? Nós tentaremos esbo­
çar uma resposta.
John dá a idéia de que foi uma criança desejada, mas, um guri indesejá­
vel. Isto se deduz de diferentes figuras de abandono que estruturaram seu desejo:
11.' - Ele é esquecido por seus jovens pais, de 16 anos, num hospital. Eles nun­
ca retornaram para procurá-lo no serviço de pediatria onde foi hospitalizado
por um estado de mal formação (dedo supranumerário, hérnia inguinal). Eles
desapareceram com uma menina recém-nascida. Ele tem 16 meses.
21.' - Ele é cedido pelo pediatra a uma mulher que passava, diariamente, sob as
janelas do serviço com um carrinho de bebê vazio. Ela foi sua primeira mae adotiva.
31.' - Ele é abandonado por esta mãe adotiva, que morre de câncer. Ele tem 1 1 anos.
41.' - Ele é deixado, entre 1 1 e 13 anos, aos cuidados deste pai adotivo, que o
acusa da morte de sua mulher, mas que lhe pede, também, para consolá-lo.

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan·dcz 1 989 p. l l 9 1 2:1


Yasmine Grasser

511 - Ele é retirado e permanece numa instituição durante dois anos, dos 13 aos
15 anos.
611 - Enfim, ele encontra sua segundas mae adotiva. Ele tem 15 anos. Ele a cha­
ma de mamae. Ela diz a seu propósito: "Nós nos adotamos".
Assim, embora esquecido no hospital devido à sua pequena irma, cedido
a um casal que o veste de menina, largado aos caprichos de um homem que lhe
pediu para valorizar seu ser no feminino, sob pena de castigos, J ohn é sempre
reconhecido pelo Outro do amor. A chave de seu desejo se interroga como se
segue: um menino nao é para ver, mas, que dá ele a ver quando se apresenta
vestido de menina?
Durante nossa primeira entrevista, ele abre diante de seu peito um cartaz
de Michael Jackson. Sua cabeça ultrapassa. Ele nada diz. Ele me olha. Procura
ele me dividir? Mas, eu recebo a questão muda: sob a vestimenta de Michael
· Jackson, aliás, ele mesmo, que dá a ver? Ao mesmo tempo, sua segunda mãe
adotiva, que o acompanha, me explica que ela lhe fez passar o gosto de urinar
à noite ao lado de seu leito. Eu deduzi que, no banheiro, ela não via se ele uri­
na em pé como um guri ou sentado como uma menina. Ele não confunde a
mãe do amor, cujo lugar ela ocupa, com o Outro do desejo.

A infância de John

John sofreu abandono, mas, não foi deixado caído como Schreber, mas,
sim, como o menino Gide, cuja solidão foi envolvida de um misterioso amor
maternal. Com Gide, este amor ficou separado da carne, tendo sido disjunto
do desejo da tia para o pequenino menino que ele tinha sido entre seus braços
(É crits, p. 756). Com John, existe, igualmente, separação entre amor e gozo,
mas, à diferença de Gide, ele foi desejado, não por uma mulher, mas, pelo pri­
meiro pai adotivo como menino vestido de mulher. Deste fato, um desejo de
gozo feminino se fixou à sua carne e ele o retoma por sua conta aos 16 anos,
quando se oferece como mulher aos rapazes de seu bairro. Esta disjunção, reto­
mada da infância, é colocada em ato pelo olhar cego da janela de sua segunda
mãe adotiva, que nao podia nem vê-lo nem crer em seus ouvidos quando um
vizinho lhe conta.
John pede a todas as mulheres o amor cego, condição de seu gozo. Para
se assegurar, ele inventa um manejo: chegando sem ser visto por trás de uma
mulher, ele se apossa de sua mão, de surpresa, e fala, com convicção e rapida­
mente: "bom dia, minha senhora". Uma cobiça furtiva tinge sua carícia clandes­
tina, abusa da mão que se deixou pegar, e a torna, de repente, cúmplice de
uma vontade de gozo feita para dividir. O "bom dia, minha senhora", que cobre
a cena, é feito para prevenir toda objeção e chamar a solicitude da senhora que,
tocada em seu coração, responde, sempre, com uma voz rosnenta, mas, gentil,
confirmando por aí que nada foi visto. Imediatamente com um giro da bacia,
John encosta seus genitais sobre a mesa para se consagrar ao que não é para
se ver, ou seja, ser o reflexo do Outro feminino, a fim de fazê-lo existir.
Este gosto por mãos de mulheres provém do desejo de um pai por uma
pequena mão de criança vestida, de menina. Est? nova versão de pai produz
no imaginário de John a mudança de uma criança nasculina em menina seduzi­
da. No curso desta substituição, ele recupera um rtsto de gozo masoquista. As­
sim, no seu caso, a incidência de um desejo perverso proíbe o gozo fático ao
nível do órgão e dá forma ao ideal feminino, que ele faz existir com seu mane­
jo do qual ele é, somente, o instrumento.

120
O álibi do amor na perversão

O luto desmentido

Quando sua primeira mãe adotiva morre, John tem 1 1 anos e ele fica só
com seu pai adotivo. Entre eles, nao há mais a mediação cega do amor donde
surgia o charme do ideal feminino. Não há, senão, a morte muito real e o ódio
que ele cria. A criança será retirada.
Lacan, a propósito do luto, nos adverte sobre sua função. Na !içao de
3 1/01/63, não é suficiente, ele diz, falar nem ver onde está o sujeito no momen­
to da perda do objeto de amor. O luto é, para Lacan, outra coisa que uma iden­
tificaçao ao objeto perdido, como o diz Freud ao fim de "Inibiçao, Sintoma e
Angústia": estar de luto implica ser a falta do Outro. Em consequência, já que
o amor é dar o que não se tem, no momento de um luto, a falta faz retorno so­
bre o sujeito e lhe revela no que ele faltou para o Outro, e, daf, resulta uma
dor de existir para o sujeito.
Na perversão, do fato de um desmentido que faz existir o Outro, a dor é
deixada ao encargo do Outro.
Se o pai adotivo de John é neurótico, mas ele o é, ele fará aparecer um
substituto no lugar aonde faltou à sua esposa. Por um efeito de encontro, eu
tive o conhecimento do curioso fantasma que subjugou este homem. Ele infor­
mou, ao serviço social, que se ocupava de John, que ele seguia os passos de seu
pai judeu, sobre seus lugares de trabalho. Quanto a John, ele só produziu, de­
pois do falecimento, cenas de cemitério. Sobretudo, ele releva deste momento
um sinal, aquele da cruz, a partir do qual ele vai exibir as séries macabras de
objetos fabricados, de desenhos, de redações. De maneira concomitante, ele se
envolve numa produção sonora, ritmada e descontínua, evocando o apito de
uma locomotiva. No luto, estes dois seres reorganizam suas vidas a partir disto
que faz ou não retorno da falta a representar no que eles faltaram ao Outro.
O trabalho de um mostra que se trata da falta a ser pai. A atividade do outro
desvenda a estrutura de um desmentido. John se ocupa, com efeito, somente
de fabricar cruzes, que fazem sinal de significante, e de produzir os sons, que
são, somente, o índice de um gozo Outro, com o objetivo de fazer tela à ausên­
cia real da mãe. Os sinais da cruz têm por função tampar o que do buraco da
morte faz objeção à existência sonorizada do Outro. Nenhum afeto de luto vem
assinar a implicação subjetiva de John nesta perda, que se revela ser, não cau­
sa de um trabalho, mas, ocasiões de funcionamento de um sujeito dividido en­
tre os sinais imaginários e os sons bem reais, segundo uma estrutura que des­
mente a ausência. É uma maneira de suprir a falência do Outro.

Qual a metáfora paterna para John?

A metáfora paterna permite colocar junto o amor e o desejo, o ideal e o


gozo. Do ponto de vista do Édipo, ela significa a relação do phallus ao Nome­
do-Pai. O corpo de John é o lugar onde se produz esta relação em disjunção.
Para sua primeira mãe adotiva, John é o phallus que lhe falta. Quando
ele morre, a metáfora do amor desvanece provocando a mudança em menina
de um menino sob a incidência negativa de seu esposo (-). Ele subsiste, desde
então, somente, como uma pura negatividade de destruição separado do phal­
lus ( tp ) liberado pela morte. De fato, John, acusado de ter contribuído para a
morte desta mulher, é, antes de tudo, culpado de ter deixado escapar o phal/us
que seu pai adotivo não carrega.
Este phallus passeador, John saberá encontrá-lo nas suas relações homos-

121
Yasmine Grasser

sexuais.

G DM
DM (-) (rp)
(Escritura da metáfora paterna de John)

Na neurose, a significaçao fática implica a convergência do amor e do de­


sejo. No caso de John, há uma deformaçao ao nível do Nome-do-Pai e clivagem
de objeto entre condiçao de amor e escolha de objeto.
Se, no momento do falecimento, John nao tinha, senao, a escolha de se
identificar à mulher desaparecida, é que, de uma parte, ele nao deve perder seu
ser falicisado e que, de outra parte, ele deve sobreviver perto de um pai que
se tornou violento. Esta necessidade reativa a ausência da condiçao do amor e
torna cruciàl a fixaçao da escolha de objeto.
John está, entao, pronto para encontrar sua segunda mae adotiva. Esta
nao vê que ele está numa posiçao feminina, seu amor está cego, ela nao pode
acreditar que ele tenha sob suas janelas relaçOes homossexuais. Decepcionada
quando ela o pega, ela se vira para seu marido e faz uma criança que ela nao
quer, mas que a completa. John ou o phallus aparecem para ela sobre a cena.
Resumamos: John, na sua confrontaçao à primeira mae e ao Pballus, fof
objeto esquecido no mundo, sem valor. Proibido do órgao, ele tornou-se o refle­
xo travestido do Outro feminino, na sua primeira famflia adotiva. A separaçao,
com a morte, o coloca à procura de um valor negativo constituinte para ligar
de novo à condiçao de amor de uma mae. Enfim, o amor à primeira vista com
usa segunda mae adotiva restabelece sua metáfora paterna e fixa seu gozo.

Exibicionismo, masoquismo, travestismo

A partir do amor à primeira vista, 3 tempos vao escandir a colocaçao n o


·

lugar d e sua escclba d o gozo masoquista:


- quando ele toma a mao das mulheres, exibe uma feminilidade que ele nao tem;
- quando se exibe aos moleques e se oferece como parceiro feminino;
- quando se exibe a um parceiro paranóide, no qual provoca o empuxo à mu-
lher. Nesta relaçao, ele cultiva um gozo narcísico, que lhe permite fazer existir
A mulher, no limite da loucura.
Seu exibicionismo ftxa seu gozo masoquista quanto ao homem, que o vê
menina, e quanto à mulher como reflexo. Mas, ele nao é, senao, o dejeto des­
te gozo feminino, que ele tenta fazer existir.
Ele retornará, provavelmente, à maquiagem e às indumentárias femininas
pelas quais se manifestou, muitas vezes, um gosto pronunciado.

A posição do analista

Toda esta construçao me foi dada durante dois anos, no período em que
ocupei o lugar de morto para este menino e os serviços sociais e públicos, que
tiveram por tarefa a de se ocupar dele, a partir da posiçao da mae de amor. Se
o todo de amor tem por resultado o clandestino de um gozo fora da lei, o nem
tudo do princípio fálico desfaz o envolvimento do amor e libera a causa do dese­
jo. Eu fui, entao, para John, o ao-menos-uma que nao se deixou pegar a mao
por ele, para poder, pois, recolocar em jogo o (-1) do desejo.

122
O álibi do amor na perversão

Esta estratégia permite compreender todos os golpes. Ela permite a cons­


trução do caso. A política do sujeito suposto saber é imposta nesta escolha em
silêncio. A aposta da partida consiste em colocar o Outro que gela o desejo.
Assim, esperar, na posição cadaverizada do analista, faz surgir um lugar da lin­
guagem que pode tornar-se endereço de um amor que tomou peso de significa­
çao. Esta posiçílo se acompanhou de uma anulaçao do "nílo ver" no campo vi­
sual. Esta estrutura testemunha o esquema L de Lacan que alia Édipo e narci­
sismo, ou seja, estabelece uma proporção entre a lei de um desejo e a relação
de amor.
Recentemente, quando acompanhava uma jovem autista, eu reencontro,
no corredor da instituiçílo, John que, emocionado, pára e me ftxa, petrificado,
silencioso. Pela primeira vez, neste instante, cessa para ele sua vontade de go­
zo. Eu o deixo me preceder, ele caminha recuando. O que ele viu? Ele viu o
que nao pode ser visto, ou seja, a imagem de uma completude mae-filha que o
ameaça de um esquecimento. Vê ele o que não é, a saber uma menina: ou se­
ja, a diferença de sua identificação com seu objeto de amor? Ou, em posição
especular com relação à pequena menina, se pergunta se ele é homem ou mu­
lher, como o sujeito histérico? Se pergunta o que é a feminilidade? A materni­
dade? Duvida ele da realidade do órgão feminino? Todas estas questOes consti­
tuem o preliminar a uma análise. Aí, elas surgem entre nós pela primeira vez.
Na atemporalidade deste instante de ver, reemergem, entílo, todas as figuras
de abandono que ele tem a ver no presente, sem ser enganado do que ele é co­
mo neurótico. Talvez, para ele, poderá se abrir o tempo de compreender.
Em resposta a isto, alguns dias mais tarde, eu o chamei e o encarreguei
de me dizer o que tinha para me dizer. Ele me anuncia que sua mãe espera
um bebê. Ele encontra, por acaso, na peça um significante da transferência:
um brinquedo musical que, como ele, espera uma criança. Ele mesmo, à espe­
ra de um significante, me diz que retornará.
John parou diante da lei que distingue as geraçoes. Para ele, a mãe é proi­
bida, como para Sade, também esperará ele, além do Outro do amor, que o de­
sejo do analista, ligado à lei, faça ataque ao gozo perverso de um pai para sim­
bolizá-lo.

Revisão de Sara Fux

1 . coup de foudrc (nr).

123
Conexões

Slavoj Zizek

TRAÇOS DE PERVERSÃO NAS ESTRUTURAS POLÍTICAS

Tradução de Maria Elisa Arreguy Maia1

Será legítimo, do ponto de vista da teoria psicanalítica, falar da posição


subjetiva perversa no discurso político? A primeira associação que vem ao espí­
rito é, naturalmete, aquela do partido comunista stalinista como fetiche: sabe­
se que o fetichismo é a perversão por excelência, e por outro lado, é um lugar
comum acusar os comunistas (aqueles, os "puros e duros", dos anos 30 e 40, ra­
ça atualmente em vias de extinção e já objeto de uma fascinação nostálgica)
de u ma relação "fetichista" ao Partido. Haverá nesta aparição da mesma palavra
mais que uma homofonia sem qualquer pertinência teórica? Ou dito de outra
forma, pode-se falar de "fetiche do Partido", utilizando-se o termo fetiche de
um modo pertinente do ponto de vista da teoria psicanalítica?
O principal perigo a ser aqui evitado é de mergulhar o stalinismo na uni­
versalidade do totalitarismo, onde todos os gatos são pardos. Comecemos pois
pela diferença entre o "stalinismo" ("totalitarismo de esquerda") e o fascismo
("totalitarismo de direita"); mais precisamente por sua atitude divergente quan­
to à luta de classes, aqui concebida como a diferença "impossível", a ruptura
que impede o campo social de se totalizar, de se completar numa estrutura fechada.
No fascismo, é o "judeu" que funciona como fetiche - ele mascara a luta
de classes e ao mesmo tempo nela perticipa - isto é, o fascismo se bate contra
o capitalismo, o liberalismo, etc, que se supõe destroem, corrompem a harmo­
nia da sociedade como "todo orgânico", onde os estados particulares têm a fun­
ção de "membros", quer dizer, onde cada um tem seu lugar determinado, natu­
ral (a "cabeça" e as "mãos", etc); o fascismo tenta, então, restabelecer entre as
classes a relação harmônica no quadro de um todo orgânico, e o "judeu" encar­
na aí o elemento que introduz "de fora" a discórdia, o excedente que perturba
a cooperação harmoniosa da "cabeça" e das "mãos" do capital e trabalho. O "ju­
deu" convém a isso de múltiplas formas por sua "conotação" histórica: ele é co­
mo u ma "condensação" dos traços negativos dos dois pólos da escala social; de
um lado, ele encarna a ação exorbitante, não-harmônica da classe dominante
(o especulador financeiro que "esgota" os trabalhadores) e, de outro lado, a "su­
jeira" das camadas baixas; ele aparece, por acréscimo, como personificação do
capital mercantil, que é - segundo a representação ideológica espontânea - a
verdadeira sede da exploração, e com isso reforça a ficção ideológica dos capita­
listas e trabalhadores "honestos", das camadas "produtivas" exploradas pelo "co­
merciante judeu". Resumindo, o "judeu", no papel do elemento perturbador, in­
troduzindo de fora o excedente da luta de classes, é cabalmente o desconheci­
mento "positivizado" da luta de classes, do fato de que "não há relação de clas­
ses". Eis aqui a razão porque o fascismo, diferentemente ào stalinismo, não é um

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dcz 1989 p. l 25-130


Slavoj Zizek

discurso sui generis, um laço social glogal, determinante de todo o edifício so­
cial. Poder-se-ia dizer que o fascismo, com sua ideologia corporativista, do re­
torno ao mestre pré-burguês, parasita de certo modo o discurso capitalista sem
mudar sua natureza fundamental - a prova está precisamente nesta figura do
"judeu" como inimigo.
Para entendê-lo deve-se partir do corte decisivo, nas relaçoes de dominação,
que se produz com a passagem da sociedade pré-burguesa à sociedade burgue­
sa. Na ordem pré-burguesa, a sociedade civil ainda não se libertou dos laços "or­
gânicos", quer dizer, trata"se de relaçoes imediatas de dominação e de servidão"
(Marx). A relação do senhor a seu servo(*) é uma ligação "interpessoal", de
um assujeitamento direto, cuidado paternal por parte do senhor e veneração
por parte do servo ... Com o surgimento da sociedade burguesa, esta rede, rica
de relações afetivas e orgânicas entre o amo e seus súditos, se encontra rompi­
da. O servo se liberta da tutela e se coloca como sujeito autônomo, racional;
ora, a lição fundamental de Marx é que o trabalhador permanece, entretanto,
assujeitado a um certo senhor, que o lugar do senhoe está somente deslocado.
O fetichismo do amo personificado cede lugar ao fetichismo da mercadoria. A
vontade da pessoa do amo é substituída pelo poder anônimo do mercado, aque­
la famosa "mão invisível" (Adam Smith) que decide o destino dos indivíduos
f!Or detrás de suas costas...
E neste quadro que deve se situar a aposta fundamental do fascismo: ao mes­
mo tempo que preserva a relação fundamental do capitalismo (aquela entre o
"capital" e o "trabalho"), ele quer abolir seu caráter anorgânico, anônimo, selva­
gem, quer dizer, convertê-la de novo numa relação orgânica de dominação pa­
triarcal entre a "cabeça" e as "mãos", entre o chefe e seus "seguidores" e substi­
tuir, novamente, a mão invisível anônima pela vontade do senhor. Ora, enquan­
to se permanece no quadro fundamental do capitalismo, esta operação não fun­
ciona. Há sempre um excedente da mão invisível que contraria o desígnio do
senhor; é a única maneira de dar conta deste excedente, é - para o fascismo, cu­
jo campo "epistêmico" é aquele do senhor - personalizar novamente a mão invisível.
Imagina-se, então, um outro senhor, um senhor oculto, que segura em verda­
de todos os fios entre suas mãos, cuja atividade clandestina é o verdadeiro se­
gredo detrás daquela mão invisível anônima do mercado: o "judeu".
Quanto ao stalinismo, deve-se concebê-lo mais como paradoxo da sociedade
de classes com uma só classe; esta é a questão: o "socialismo real" é uina socie­
dade de classes ou não? A chamada "burocracia dominante" não é simplesmen­
te a nova classe, ela está no lugar, ela faz as vezes da classe dominante. Isto de­
ve ser tomado literalmente e não numa perspectiva evolucionista - teleológica
(esta perspectiva diria que ela já tem alguns traços da classe dominante, e o fu­
turo mostrará se ela vai se consolidar em classe dominante propriamente dita),
quer dizer, que este "no lugar" não é de forma alguma concebido como marca
de um caráter inacabado, de um "a meio do caminho". No socialismo real, a bu­
rocracia dominante se encontra no lugar da classe dominante, a qual não exis­
te, ela ocupa seu lugar vazio; dito de outra forma, o socialismo real seria este
ponto paradoxal onde a diferença de classes torna-se verdadeiramente diferen­
cial: não se trata mais de uma diferença entre duas entidades positivas, mas de
uma diferença entre a classe ausente e a classe presente, entre a classe faltante
(dominante) e a classe existente (trabalhadora). Esta classe faltante pode, aliás, .
ser a classe trabalhadora mesma, enquanto oposta aos trabalhadores "empíri­
cos"; deste modo, a diferença de classes coincide com a diferença entre o uni­
versal (a classe trabalhadora) e o particular (a classe trabalhadora "empírica").

126
Traços de perversão nas estruturas políticas

A burocracia dominante encarnaria, neste caso - frente à classe trabalhadora


"empírica" -, sua própria universalidade. É esta cisão entre a classe como univer­
sal e sua própria existência perticular - empírica que explicita uma contradição
aparente do texto stalinista: cf. esta história do Partido Comunista (1) que ter­
mina por uma longa citação de Stalin contra a "camada de burocratismo" e que
nos revela o "segredo da invencibilidade da direção bolchevique":
"Penso que os bolcheviques nos lembram o herói da mitologia grega Anteo. Assim
como Anteo, eles são fortes porque estão ligados à sua mãe, às massas que lhes
deram origem, os nutriram e os educaram. E enquanto eles permanecem ligados
à sua mãe, ao povo, eles têm todas as chances de permanecer invencfveis".
A mesma alusão a Anteo se encontra no início do 18 Brumário de Marx, mas
como a metáfora do inimigo de classe frente às revoluções proletárias "que jo­
gam seu adversário por terra somente para que ele af recolha novas forças e
surja ainda maior diante deles". Deve-se ler estas linhas relacionando-as com o
começo do famoso juramento do Partido bolchevique a seu chefe Lênin: "Nós
somos, nós comunistas, gente de uma outra envergadura. Nós somos talhados
num estofo à parte".
À primeira vista estas duas passagens perecem se contradizer: por um lado se
trata da fusão dos bolcheviques com as massas como fonte de sua força, por
outro eles sao pessoas talhadas à parte. Pode-se resolver este paradoxo (como
o laço privilegiado com as massas os separa das outras pessoas, justamente das
"massas"?) se levarmos em conta a diferença indicada entre a classe (as massas
trabalhadoras) como todo e a massa enquanto não-toda, coleção empírica. Os
bolcheviques (o Partido) são o único representante empírico, a única encarna­
ção da "verdadeira massa", da classe como todo.
A partir daí, não é mais difícil determinar o lugar do Partido na economia do
discurso stalinista. Esta "força de combate da classe trabalhadora", compostn
de gente de outra envergadura e, ao mesmo tempo, intimamente ligada à sua
mãe, às massas, ocupa propriamente o lugar do falo materno, do fetiche que
desmente o real da diferença de classe, da luta, da não-relação entre o todo da
classe e seu próprio não-todo. Enquanto no discurso fascista, o papel do fetiche
é desempenhado pelo "judeu", isto é, pelo inimigo, o fetiche stalinista é o pró­
prio Partido. Este aparece como a encarnação imediata da universalidade das
massas ou da classe trabalhadora. O Partido se coloca imediatamente como to­
do, "linha geral", e suas espécies, das quais ele é a interseção, tornam-se os des­
vios (seja de direita ou de esquerda) da linha geral:

desvio de I desvio de
esquerda I direita
\

Neste curto-circuito entre o universal (a massa, a classe) e o particular


(o Partido), a relação entre o Partido e a massa não é dialetizada. Assim, se
há um conflito entre o Partido e o resto da classe trabalhadora, isto não signifi­
ca que o Partido se alienou da classe trabalhadora, mas, ao contrário, que os
elementos da própria classe trabalhadora se tornaram "estranhos" à sua própria

127
Slavoj Zizek

universalidade ("os verdadeiros interesses da classe trabalhadora") encarnada


no Partido. Por causa desse caráter-fetiche do Partido não há, para o stalinista,
nenhuma contradição entre a demanda de que o Partido esteja aberto às mas­
sas, fundido com as massas, e o Partido em posição de exceção, Partido autori­
tário, concentrando em si todo o poder. Tomemos, por exemplo, esta passagem
das Questões do leninismo (2):
"Falando das dificuldades de estocagem de grãos, os comunistas fazem re­
cair geralmente, a responsabilidade sobre os camponeses pretendendo que estes
sejam culpados de tudo. Mas isso é totalmente falso e absolutamente injusto. Os
camponeses não são por nada responsáveis. Se é questão de responsabilidade e
de culpabilidade, a responsabilidade cabe inteiramente aos comunistas; e os culpa­
dos nisso tudo somos nós, os comunistas, e somente nós.
"Não existe e jamais existiu no mundo um poder tão vigoroso e nem tão gran­
de autoridade quanto a nossa, o poder dos Sovietes. Não existe e não existiu ja­
mais no mundo um partido tão poderoso e nem uma tão grande autoridade quan­
to a nossa, o Partido comunista. Nada nos impede e nem pode nos impedir de
conduzir os Kolkhoz como o exigem seus interesses, os interesses do Estado. "
O caráter autoritário do Partido é aqui diretamente acentuado. Stalin in­
siste de modo explícito sobre o fato de que todo o poder está, sem divisão algu­
ma, entre as mãos do Partido, que as pessoas, o povo comum não têm nada com
isso, não têm nenhuma culpabilidade nem responsabilidade. Entretanto, este
poder exclusivo e autoritário do Partido está colocado imediatamente como
um poder verdadeiramente democrático, como um poder efetivo do povo. Daí,
segue-se uma certa ingenuidade das críticas dissidentes: o campo discursivo sta­
linista é organizado de tal modo que a crítica erra seu alvo. Reconhece-se de
antemão o que a crítica se dá o trabalho de demonstrar (o caráter autoritário
do poder, etc.), dando a este fato um alcance muito distinto ao tomá-lo precisa­
mente pela prova do poder efetivo do povo.
Está af em plena perversão, no sentido em que Lacan, no O Seminário,
livro XX (3), determina o misticismo masculino como u ma posição subjetiva per­
versa; ele a define a partir do curto-circuito entre o olhar do sujeito e aquele
do Outro; o olhar, por meio do qual o homem contempla Deus, coincide ime­
diatamente com o olhar por meio do qual Deus se contempla a si mesmo: "...con­
fundir seu olho cujo Deus o olha, isso deve bem, por força, fazer parte do go­
zo perverso".
E é também um curto-circuito semelhante o que define a posição subjeti­
va do comunismo-stalinista: o olhar do Partido sobre a história coincide_ imedia­
tamente com o olhar da história sobre si mesma. Noutros termos, recorrendo
ao velho jargão stalinista, íloje em dia quase esquecido, os comunistas agem
imediatamente em nome das "leis objetivas do progresso histórico"; através de
suas bocas, é a própria história, sua necessidade, que fala. Eis porque a fórmu­
la elementar da perversão sádica, proposta por Lacan em seu "Kant com Sade"
(4), seja tão adequada para designar a posição subjetiva do comunismo stalinista.
O sujeito sádico tenta evitar sua divisao constitutiva transportando-a so­
bre seu outro (a vítima) e identificando-se ele ao próprio objeto, isto é, ocupan­
do a posição do objeto-instrumento da vontade de gozar, que não é sua vonta­
de, mas sim a vontade do grande Outro, que é revestido com a forma do "Ser
supremo em Maldade".
Af está em que Lacan rompe com a noção usual do sadismo, segundo a
qual o perverso sádico ocupa a posição de um sujeito, reivindicando o direito
de dispor sem nenhuma restrição do corpo do outro, reduzindo-o assim a um

128
Traços de perversão nas estruturas políticas

objeto-instrumento para a satisfação de sua vontade de gozar; para Lacan, ao


contrário, é o próprio sádico quem ocupa a posição de objeto-instrumento, exe­
cutor de uma vontade radicalmente heterogênea, enquanto a divisão do sujeito
é imputada ao outro (a vftima). A posição subjetiva do perverso é forçosamen­
te marcada por uma tal instrumentalização radical de sua atividade: ele perse­
gue sua atividade, não para o próprio prazer, mas para o gozo do Outro. Seu
próprio gozo lhe é proporcionado, precisamente, por esta instrumentalização,
pela sua certeza de não ser senão uma ferramenta de gozo a serviço do Outro.
A diferença é aqui clara com o obsessivo e o psicótico.
O perverso age com a certeza simples e direta de que sua atividade serve
ao gozo do Outro, diferentemente do obsessivo - para quem o motor da ativida­
de frenética repousa sobre a ameaça de que por falta desta atividade uma catás­
trofe terrível possa acontecer, isto é, que a inconsistência do Outro possa vir à
tona. O perverso não age para evitar a catástrofe, o elemento de dúvida e de
oscilação que caracteriza o obsessivo é totalmente ausente nele.
O psicótico se toma diretamente pelo objeto do gozo do Outro, isto é, pe­
lo objeto do qual o Outro goza, pelo gozar do Outro encarnado, por seu parcei­
ro e seu complemento, bem diferente o perverso que se reduz ao instrumento,
a uma ferramenta neutra, vazia de gozo, que trabalha pelo gozo.
É por isso que o materna lacaniano da perversão se escreve com a inver­
são do materna do fantasma: a <> $ . Este materna designa perfeitamente a po­
sição subjetiva do comunista stalinista: o comunista tortura ao infinito sua vfti­
ma (as massas, o povo comum, os não-quadros), mas ele o faz enquanto instru­
mento do grande Outro da História (as "leis objetivas da história", da "necessida­
de do progresso histórico"), por trás do que não é diffcil reconhecer a figura
do Ser supremo em Maldade. O caso do stalinismo exemplifica claramente o
modo como, na perversão, o outro (a vítima) é dividido: o stalinista tortura o
povo mas ele o faz como servidor fiel do povo, em nome do povo, na condição
de executor de sua vontade (de seu interesse objetivo e verdadeiro).
Este curto-circuito perverso parece muito mais distinguir o totalitarismo
stalinista, enquanto o totalitarismo de direita é mais caracterizado por um outro
curto-circuito: aquele entre a significação ideológica, produzida pelo código sim­
bólico (o grande Outro), e os fantasmas por cuja mediação o grande Outro ide­
ológico encobre suas inconsistências, seus buracos. Em outros termos, para se
referir ao grafo do desejo de Lacan, se trata do curto-circuito entre s(A) e
S <> a (5).
Tomemos agora o neo-conservadorismo. No nível do significado, s(A),
a ideologia neo-conservadora nos oferece um campo de significações estru­
turado em torno da oposição entre o liberalismo igualitário e o permissivo
e os valores da law and arder, da família, da responsabilidade de cada um
pela sua sorte; nesta perspectiva, a liberdade não só é ameaçada pelo peri­
go comunista mas também, e mesmo sobretudo, pela degenerescência inter­
na das sociedades ocidentais, por sua lassidão moral, pelo crescimento do
Estado-providência, que mina nosso senso de responsabilidade. Tudo isso,
naturalmente, são os lugares comuns do discurso da direita moderna, "pós­
permissiva", que investe contra o "narcisismo do homem moderno", vftima
da sociedade do consumo. O ponto crucial aqui é que existe numa tal ideo­
logia reativa toda uma série de fantasmas que dão conta de sua eficácia -
isto é, no modo como ele fisga os sujeitos -, fantasma que, em ú ltima ins­
tância, coloca em cena, todos eles, a relação entre o gozo e o outro (o ou­
tro: o judeu, o negro, o árabe, a mulher); e este ou tro se supõe ter acesso

1 29
Slavoj Zizek

a um gozo especial, excessivo, ou bem em vias de nos privar de nosso teso u ­


ro mais precioso, o cerne de nosso gozo, c o m o paradoxo b e m conhecido
de que este gozo é, de u ma só vez, inacessível ao outro e ameaçado por ele.
O neo-consevadorismo por inteiro vive, literalmente, desta separação
entre os dois níveis. Ele se apóia sobre os fantasmas, cuja condição d e eficá­
cia é que eles permaneçam não-ditos, não-integrados no campo da significa­
ção ideológica. E ultrapassamos o limiar que separa o neo-conservadoris­
mo do totalitarismo de direita logo que os fantasmas invadem, diretamen­
te, o campo de significação, e que se refira diretamente a eles, por exemplo,
no nazismo que articula em público - isto é, integrando no campo de sua
significação ideológica a textura inteira dos fantasmas nos quais se apóia
o antisemitismo. Os judeus são então descritos, abertamente, como pesso­
as de um gozar perverso, excessivo, pessoas que conhecem e dominam nos­
so desejo, ao invés de deixar a seu destinatário o cuidado de decifrá-lo a
partir do que o discurso diz "entre linhas".
Eis o grão de verdade da sabedoria comum, segundo a qual a diferen­
ça entre a direita moderna e a direita radical consiste simplesmente nisto,
que a segunda diz abertamente aquilo que a primeira pensa sem ousar dizê-lo.
A diferença entre o totalitarismo de direita e o de esquerda se liga
precisamente ao fato de que, no caso do primeiro, o fetiche se encontra
do lado do ou tro, do lado do "inimigo", enquanto no segundo caso, o feti­
che é nossa própria posição. Dito de outro m odo, a identificação do pró­
prio sujeito ao objeto-fetiche produz o curto-circuito entre seu olhar e o
olhar do Outro, enquanto a localização do fetiche em u m objeto "externo"
abre de certo modo o canal pelo qual o campo de significação e o domínio
do fantasma possam entrar diretamente em contato.

Contribuição d a Sociedade para a Psicanálise teórica na Yugoslávia, com Slavoj Zizek (rela·
tor), i n Traits de perversion dons les structures cliniques, Navarin É diteur, Paris, julho de 1990.

Revisão de Célio Garcia

(*) Neste pa rágrafo o autor mantém somente os termos "/e maitre et ses sujets", optamos por jo·
gar com as relações de oposição· senhor/servo e amo/súdito para por em relevo as várias for­
mas que o discurso do mestre ganha na his·tória.

NOTAS

L Histoire du Parti Commun iste bolchévik de l 'U.R.S.S., Paris, 1971; p. 402.


2. STALINE, I., Questions du léninisme, Pékin, 1977; pp. 659-660.
3. LACAN, J., Le Seminaire, l ivre XX: ENCORE, Paris, Seuil; p. 70.
4. LACAN, J., "Kant avec Sade" in Écrits, Paris, Seuil, 1966; p. 775-778.
5. LACAN, J., "Subversion du sujet et dia letique du désir" in Écrits, p. 815.

130
Mirta Zbrun

VERDADE, GOZO E PERVERSÃO


Num conto de Drummond de Andrade *

O trabalho que ora apresentamos é uma reflexão sobre a perversão retra­


tada numa pequena obra-prima da literatura brasileira. Trata-se de uma narrati­
va de ficção em prosa, escrita por um dos maiores poetas da língua portuguesa,
Carlos Drummond de Andrade. O conto intitulado "O Gerente", aparece nu­
ma coletânea de escritos em prosa chamada de "Contos de Aprendiz" ( 1). A pri­
meira frase da narrativa já introduz o personagem: "Era um homem que comia
dedos de !)enhoras: e não de senhoritas". Em toda a sua estranheza o persona­
gem diante de senhoras de fino trato praticava um ato abrupto e insólito que
as feria profundamente: simplesmente devorava parte de seus dedos.
A arte toda da narrativa está em mostrar a perfeita sincronia desses atos
que abalavam as vítimas sem que alterassem o personagem. Samuel, o "geren­
te", que comete esses atos "loucos" jamais os reconhece. Colocado diante da lei,
da autoridade policial e do patrão, nem por um momento vacila em negar que
os tenha cometido. Trata-se sempre para ele de alguma coisa de ordem do ab­
surdo que de nenhum modo o incrimina. Na única vez em que testemunhas o
denunciam, a própria vítima o inocenta. E aí, então, se desvela o final do con­
to, que nos expõe de modo luminoso o efeito cegante da obra de ficção que re­
vela em toda a sua dimensão o traço de perversão. "Era um homem que comia
dedos de senhoras; não de senhoritas." Partamos da premissa de que o perver­
so se mantém como sujeito durante sua operação ainda quando venha a ocupar
o lugar de objeto. O personagem beija a mão da dama com uma elegância per­
feita, o impulso de beijar provém da excitação que determinadas mulheres lhe
causam. O narrador assim o descreve: "Foi dito que Samuel tinha maneiras dis­
cretas, mas seriam suaves ... Sim, fazia tudo suavemente. Samuel pisava em Ia,
ele próprio tinha pés de lã. As pernas moviam-se calmas e leves: o tronco deslo­
cava-se com espontânea leveza; os braços não comprometiam esse movimento.
Para saudar uma senhora, o.antebraço estender-se, a cabeça inclinar-se levemen­
te, o sorriso levemente esboçar-se ... O certo é que Samuel beija - está beijan­
do a mão enluvada. Embora infringindo a etiqueta, beija a mão da dama com
uma elegância perfeita. E a boca recua, como avançara: sem pressa, a cabeça
volta à sua posição, a dobra imperceptível na gravata se desfaz, e eis outra vez
Samuel no centro da sala". Vemos que, tal como um mágico no centro da sala,
Samuel, à vista de todos, faz um gesto de prestidigitação que a todos cega; to­
dos olham, mas não vêem. O gozo perverso precisa de uma certa cumplicidade
da vítima para se expor ao olhar necessário do outro. Sem oferecer barreira ao
gozo, o desejo do perverso abre o caminho para a vontade de gozo. A vítima
não se apresenta como desejável na sua totalidade, senão por uma parte do seu
corpo - incidente fortuito na resolução do complexo de castração que faz de tal
sujeito perverso uma estrutura neurótica atípica. Como fetiche, o dedo preen­
che o vazio da castração sempre desmentida e a mulher não pode ser vista mais
que como um pequeno detalhe de sua anatomia. A Verleugmmg opera como mcca-

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.Bl -134
Mirta Zbrun

nismo entre ter e não ter é possível.


O relato continua: "Mas sucede uma coisa desagradável, que aborrece
muito Samuel; o rosto da senhora, que também sorria, contrai-se num instante,
seus dentes se apertam. Ela abaixa os olhos enquanto sua mão enluvada se er­
gue. O tecido rendado súbito se tinge em um dos dedos. A senhora olha atôni­
ta para a mancha que se alastra. Instintivamente a mão se fecha, procurando
ocultar o dedo indiscreto, que escolheu para sangrar logo este momento, à vis­
ta de todos. Samuel a princípio não compreende, mas a realidade se lhe ofere­
ce, evidente." No desmentido à castração feminina vemos surgir o traço perver­
so que subverte a lei, fazendo deslocar a função fálica. Negando o quantifica­
do negado-não-todo ( V x Cf>x) (2) o perverso permite a existência de um conjun­
to fechado do lado feminino das fórmulas da sexuação, ao tomar parte do go­
zo não-fálico, inscrevendo-se assim como a exceção ( 3 xef>x ).
Na sequência da narrativa, novas vítimas aparecem: "Um domingo mais
tarde, assistia às corridas do Jockey Club, ao lado de seu amigo Tancredo, corre­
tor de títulos, e a senhora deste, D. Guiomar. No atropelo da saída, ao se despe­
direm, quando Samuel se inclinava para beijar a mão da futura comadre, pas­
sou por eles, em velocidade de navalha, um rapaz de roupa xadrez, sem chapéu,
com um papel na mão. Houve um esbarro. A mão de Samuel recuou, a de D.
Guiomar também; mas essa última, num movimento convulsivo, ao mesmo tem­
po que um grito de espanto, mais que de dor, escapou dos lábios da jovem se­
nhora. O indicador gotejava. Faltava a ponta do dedo."
A multiplicidade das vítimas que oferecem sempre a mesma face ao per­
verso revela a natureza da própria cadeia como uma combinatória de elemen­
tos permutáveis, como na relação do sujeito com o significante. Daf a seqüência
de senhoras e de seus dedos cortados. No seu diário o personagem registrou
suas vítimas na sucessão dos fatos, tratando elas como pura letra ou puro res­
to. "Tive o pesar de ver Madame S. - que tinha linadas mãos, ferir-se em um
dedo com um alfinete, a mulher de Tancredo foi vítima de um atentado inexpli­
cável na saída do Jóquei. Receio que o dedo fique aleijado, sem ponta." Elas
provocam o inquérito da lei; o argumento pelo absurdo prevalece. "Que absur­
do!" A lei não pode regular esse gozo que se furta tanto quanto o objeto - a
máxima de direito ao gozo sem que nenhum limite o detenha se fundamenta
no que para ele é a sua verdade. De seu gozo ele sabe. Segundo J.-A. Miller
(3) é preciso pensar a foraclusão de um gozo oral, foraclusão denominada gene­
ralizada a partir da foraclusão restrita do Nome-do-Pai, foraclusão picótica. Pe­
la existência desta última se pode generalizar para as formas da neurose e da
perversão: todas caem sob a lei da foraclusão do gozo oral.
Quando o protagonista é interpelado pela autoridade: "Não, não posso
ser acusado. Tudo se passou à minha frente, diante de meus olhos, sem que
eu pudesse intervir a tempo, eis af. Não posso atinar com a razão desses... acidentes."
A posição subjetiva na perversão é, assim, uma das formas variáveis da
combinatória significante e se fundamenta na divisão do sujeito pela castração.
A leitura que Lacan (4) faz dos textos freudianos do "Fetichismo" e do texto
"A clivagem do eu" permite situar a lei da cisão do sujeito com a interdição do
gozo a todo ser falante, ou seja, foraclusão do gozo. Na posição perversa, o su­
jeito revelará uma dupla afirmação contraditória: ausência de pênis na mulher
e o seu desmentido pela criação de um fetiche. Confrontado com a lei, que cri­
minaliza o ato resultante de seu apego ao fetiche, não se reconhece como autor.
Diante do delegado, ele diz: "Desculpe, doutor, eu não sou um criminoso. Sou
o gerente de um banco. Tenho o direito a um pouco de consideração, respeito

132·
Verdade, gozo e perversão

as autoridades de meu país, e acho que elas também precisam me respeitar."


A forma verdade tem essa estrutura de ficção (persona ficta) em que o sujeito
enumera seus deveres, suas obrigações, que são entidades fictícias, pois vêm
da linguagem mesma e não de uma pretensa lei natural, "onde não se espera
nada fora da boa fé do outro". O personagem da história diante do delegado -
representante do Estado - uma das formas de representação da verdade no sen­
tido jurídico - toma a posição de sujeito de direito não como ficção, senão co­
mo domínio da realidade efetiva. Parte do princípio de que se cumpre a lei, não
pode ser criminoso; mais ainda, que ele cumpria a lei integralmente, a lei da in­
terdição. O beijo à dama acontecia no momento de seu reconhecimento munda­
no, e é af que sente uma estranha compulsão a efetivá-lo. No ato do cumpri­
mento social há algo que desencadeia o impulso ao ato perverso. Com as mulhe­
res ele não tinha relações íntimas, nunca ia mais além do que um cumprimen­
to respeitoso, na forma da lei. Então, espera do delegado que o aceite como su­
jeito; o apego formal à lei é tudo para ele: a lei formal, a lei moral, a lei do go­
zo. Totalmente submetido a respeitar a lei até o seu limite, é nesse limite que
aparece o gozo na sua forma louca. O "imperativo do gozo", (5) em que há in­
junção de todas as formas da legalidade, na vida pública e privada, o transfor­
ma em fanático da formalidade. Na estritura neurótico-obsessiva, submete-se à
lei do reconhecimento pelo outro até o limite de se desvanecer como sujeito
do desejo.
Nosso personagem realiza seus atos no silêncio de um pequeno encontro
com o real, certa luminosidade os acompanham. Como todo ato é uma ruptu­
ra, permanecem fora da dialética significante, fora da transferência e mostram
uma recusa de saber. O sujeito perverso não acredita no saber do inconsciente,
motivo pelo qual não inibe seus impulsos e faz atos. No lugar do objeto indizí­
vel, uma ato se realiza. Esses pequenos atos fugazes imperceptíveis aos olhos
de todos. São índices desse objeto inefável. A ação como disjunção entre saber
e verdade, ou entre sujeito e seu saber "sinal de retorno no real do "foraclufdo"
do simbólico". Na série de mulheres de "dedos cortados", Dona Deolinda é
mais uma, porém, nela o estrago é maior. "Assim como estava o braço esquer­
do enlaçado no pescoço do amigo, a coisa imcompleta se oferecia ao olhar". O
mais-de-gozar excedente dessa série é um gozo à deriva que sela o destino da
degradação do sujeito.
Concluindo a reflexão sobre a perversão diremos que a obra de arte é
um objeto real que como ficção produz uma "fixação" de gozo, (6) não há sobre
ela uma suposição de saber e sim um sujeito que goza: caminhando nas profun­
didades do gosto esse objeto torna-se, quando agrada ao outro, um "fic-xação".
Mais uma vez vemos como a experiência universal do artista se aproxima da ex­
periência no ato de forçar a linguagem. Um ato em que, por amar o inconscien­
te, o artista tende a dar um "sentido mais puro às palavras, enquanto o analis­
ta dá lugar a um impossível saber.

• Membro do Corte Freudiano Assoçiação Psicanalítica Rua Pio Correa, 127!1 02 CEP: 22464 - Jardim
Botânico RJ.
-

Trabalho apresentado ao "Sixieme Reencontre intemationale du Champ freudien. Paris, 6-9 julho
1990. Traits de Perversion dans les structures cliniques.

133
Mirta Zbrun
NOTAS E REF�NCIAS BIBUOGRÁFICAS

1. Carlos Drummond de Andrade, "Poesia completa e prosa". Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar,
1977. 1315 p.
2. Jacques Lacan, Le Séminaire, Livre XX, p. 73.
3. J. A. Miller, Falo 2, p. 148-149.
4. Jacques Lacan, Écrits, p. 842
5. Jacques Lacan, "Kant avec Sade" in Écrits.
6. Collete Soler, "A clínica do Real" Seminário do Campo Freudiano do Brasil.

I. É necessário levar a vacilação própria da neurose ao seu limite para produzir uma forma outra que
é a perversão. No limite, radicalizando essa forma neurótica, esta ganha um traço perverso. O des­
mentido do personagem - não admite ter cometido tais atos - coloca-o na estrutura neurótica com
o que constitue seu traço. Lacan está interessado na produção desse efeito especial da cadeia signi­
ficante que é "ser sujeito", havendo duas formas estruturais combinatórias compondo dita cadeia:
a neurose e a psicose. O traço de perversão surge com a ruptura do sujeito como efeito da cadeia.
No sujeito da perversão o traço se constitui num ponto da cadeia em que a castração se divide, Spal­
tung separando o objeto, manifesta uma dupla posição: de um lado, como todo sujeito submetido
à lei da interdição; do outro, ele no desmentido como uma forma original-própria de construção
do "real" na perversão. Portanto nesse ponto da estrutura ele não está submetido a nenhuma proibi­
ção, e o ato dito perverso se confina com a aparição do objeto pequeno a em sua especificidade
de coisa real-impossível, constitutiva de toda fantasia ( S <> a ) onde opera como causa. Nesse
ato o desejo se desregula da lei e o gozo não fálico se apresenta como gozo do Outro. Estamos dian­
te de um sujeito que não teve acesso à lei, que traz em sua ação a verdade do gozo, a chave de seu
saber particular com o que dominará sua vítima. O objeto em sua vertente real - pequeno a, mais­
de-gozar - é interrogado no outro.

11. O outro exerce um efeito de estrutura no universo simbólico do sujeito onde funciona como JlÚ­
cleo não simbolizável, traumatizante. No encontro com a mulher - Dona Deolinda, a vítima - ela
exerce sobre ele um efeito de exposição do trauma. O que ele pode negar perante a lei, já não é
possível. Quando ele vê a mutilação, não pode mais negar a presença do objeto traumático, do re­
al insuportável. Ela faz uma espécie de "análise selvagem" com a exposição desse real não simboli­
zável e traumático. Se o traço de perversão é aquela forma da não foraclusão do gozo oral, esse
momento coloca ele diante da violência traumática da falta-a-ser recoberta até então pelos signos
de uma seqdência de atos "irrazoáveis" do sujeito.

FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke: S. Fischer Verlag. Frankfurt an Main, 1972 17, Band. "Die lch­
spaltung im Abwehrvorgang".

LACAN, Jacques. Écrits. Editores du Seuil, Paris. 1966. Le Champ Freudien. "Kant avec Sade". Le
Séminaire. Éditiones du Seuil, Paris. Volume 111, VII, XI.

MILLER, J.-Alain. Matemos I e li. Manantial. Buenos Aires, 1987. Los Ensayos.

SLAVOJ Zizek, e outros. Lacan-Hitchock. Navarin Éditeur, Paris. 1988.

FALO. Revista Brasileira do Campo Freudiano. N2 2 Fator, Editora, Brasil, 1988.

134
Bernard Baas

O DESEJO PURO
- a propósitç de "Kant com Sade" de Lacan - •

Tradução de Sérgio Laia

"Pareceria difícil, mesmo impossível, chegar a alguma coisa de


mais ardente; entretanto um último foguete vem traçar um sulco
mais· branco sobre o branco quem lhe serve de fundo. Será, se
quiseres, o grito supremo da alma levada a seu paroxismo"
BAUDELAIRE (Carta a Richard Wagner)

"Desejo puro" é uma expressão que não nos surpreenderia ler num diálo­
go de Platão. Pelo menos sob esta forma literal, no que é de meu conhecimen­
to, ela não se encontra af. Em compensação, Platão fala do "prazer puro" - e é
nesta ocasião que ele se defronta mais proximamente com a questão do desejo
- no Filebo, um dos últimos diálogos, consagrado à determinação do lugar do
prazer no que Platão chama de "a vida boa". A parte central e a mais importan­
te (1) do Filebo assenta-se sobre o estatuto ético do prazer. Resumamos breve­
mente: Platão distingue estado de prazer, estado de dor e estado neutro (2).
Este estado neutro é também chamado "harmonia", de modo que a dor caracte­
riza a dissolução da harmonia e que o prazer acompanha o movimento que ten­
de à reconstituição desta harmonia. O estado do homem que não experimenta­
ria nem dor nem prazer, que, então, conheceria apenas o estado neutro, a har­
monia, seria tal que poderíamos dizer que "sua vida é a mais divina de todas" (3).
Entretanto, este homem divino, isto é, aquele cuja vida é absolutamente
boa - em uma palavra (para Platão): o sábio, o filósofo - não poderia permane­
cer estranho a qualquer prazer, tanto que é verdadeiro que, para os gregos, não
poderíamos separar o Bem e a felicidade. O sábio conhece, então, os prazeres
que lhe são próprios: os prazeres puros, isto é, os prazeres que não são precedi­
dos de nenhum sofrimento, de nenhuma falta dolorosa. Mas isso não significa
que eles não seriam precedidos de nenhum desejo. Pois a alma do filósofo dese­
ja o bem, o saber e a verdade. Af estaria, então, o "desejo puro" enquanto mo­
vimento da alma não acompanhado desta dor, desta falta que caracteriza os ou­
tros de.sejos e que faz os prazeres impuros.

"Acrescentemos a esses prazeres aqueles que procuram as ciên­


cias, se nós não encontramos incluídas aí uma voracidade de apre­
ender e, com esta fome de ciências, uma dor original. ( . ) Esses . .

prazeres do conhecimento não são misturados com nenhuma dor e,

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, �.4/5, jan-dez 1989 p.135-162


Bemard Baas

longe de pertencerem à massa dos homens, eles são o quinhão


de apenas um pequeno número ( ...). Eis aí então separados os
prazeres puros e aqueles que se poderia com alguma razão cha­
mar de impuros" (4).

Assim, ao prazer puro corresponderia um desejo puro. Platão o chamaria


de "desejo verdadeiro" e nós, certamente, devemos entendê-lo como "desejo
do verdadeiro".
Poderíamos nos manter aí e qualificar de puros apenas os prazeres do co­
nhecimento, de modo que só eles seriam admissíveis no "misto" que constitui a
"vida boa". Mas Platão percebe a insuficiência desta determinação, e é por isso
que ele vai se esforçar para fornecer um exemplo de prazer puro sensível. Este
será o prazer que podemos - parece - expei:imentar ao distinguirmos o branco
puro em relação a qualquer outra cor (5). Com a simples exposição deste exem­
plo singular, Platão declara resolvida a dificuldade (6) e deixa sem resposta a
questão de saber o que seria o desejo verdadeiro ou o desejo puro da pura bran­
cura. Entretanto, a dificuldade subsiste, e ela só pode subsistir porque Platão
tenta pensar o. puro na ordem empírica. Formulando mais ingenuamente: toda
a dificuldade advém porque Platão nao é Kant.
Pois para Kant - o sabemos - o puro (o puro da razão pura) e o empíri­
co sao radicalmente heterogêneos; é justamente essa heterogeneidade que cons­
titui o puro enquanto tal, isto é, o "puro de toda experiência". Desde então, fa­
lar de "desejo puro" no quadro da filosofia kantiana não é somente uma dificul­
dade, mas uma impossibilidade. Segundo Kant, com efeito, o desejo concerne
ao movimento do sujeito em direção aos objetos empíricos, enquanto esse mo­
vimento se relaciona ao bem-estar do sujeito em suas sensações ou em seus sen­
timentos. Dito de outra maneira: o desejo sobrevem sempre da inclinação ou
do amor de. si. Ele nao poderia, então, ser puro.
Para Kant, só há pureza na razão, isto é da faculdade do universal a prio­
ri. Determinar esta pureza da razão é o que está declaradamente em jogo na
filosofia transcendental. Lembremos que Kant chama de "transcendental" a ques­
tão que se assenta sobre as condições de possibilidade a priori da razão, seja
na ordem do conhecimento, seja na ordem da ação. É então transcendentãl a
filosofia da razão pura no seu uso teórico e/ou no seu uso prático.
Falar de "desejo puro" equivale, por conseguinte, a colocar - de uma cer­
ta maneira contra Kant, mas também "com Kant" (expressao cuja ocorrência
nos exige percebê-la em toda sua ressonância) - a questão transcendental com
relação ao tema (I) do desejo. De maneira homóloga a Kant, que distingue o
objeto conhecido e a faculdade de conhecer (que é a priori), tratar-se-ia de dis­
tinguir, no desejo, entre o objeto do desejo e a faculdade de desejar (7). Seria
a priori a faculdade de desejar, de modo que o desejo seria certamente ocasio­
nado pelo objeto - entendido aqui como objeto sensível dado na experiência -
mas não causado por ele. Forjemos, neste contexto, a palavra "epitúmeno" (8),
análoga para o desejo ao que o fenômeno é para o conhecimento. Haveria en­
tão, antes de todo objeto de desejo, antes de todo epitúmeno, uma faculdade
de desejar: eis aí o que eu designo aqui como desejo puro.
Colocar uma tal questão conjugaria o que Kant rigorosamente separou:
o a priori e o desejo. Ela se ligaria a uma teoria transcendental do desejo e, de
alguma maneira, indicaria que haveria uma "crítica do desejo puro" por se fazer.
Então, ela também cruzaria a filosofia transcendental e a psicanálise.
Esse cruzamento ou, muito mais, este encontro, Freud certamente deixou

136
O desejo puro

de conhecê-lo. De fato, podemos ler, no artigo "O inconsciente" da Metapsicolo­


gia: "do mesmo modo que Kant nos advertiu de não nos esquecermos que nos­
sa percepção tem condições subjetivas e de não a mantermos como idêntica com
o percebido incognoscfvel, a psicanálise nos leva a não colocar a percepção cons­
ciente no lugar do processo psíquico inconsciente que é seu objeto" (9). Mas
este tipo de otimismo teórico, que tão frequentemente caracteriza Freud, lhe
faz deixar a agudeza desta referência a Kant, que ele reduz, então, à questão
da percepção:

"assim como o físico, o psíquico não é necessariamente na realida­


de tal como ele nos aparece. Todavia, nós logo aprenderemos com
satisfação que a correção da percepção interna não oferece uma
dificuldade tão grande como aquela da percepção externa, que o
objeto interior é menos incognoscível que o mundo exterior" ( 10).

Essa passagem não constitui a única referência de Freud a Kant. A oca­


sião mais frequente desta referência é exatamente aquela da qual nos ocupa­
mos aqui: a questão ética. Freud faz apelo à conceituação kantiana para caracte­
rizar a consciência moral em sua articulação com o complexo de Edipo e com
o supereu: "o supereu, a consciência moral que se elabora nele, pode então se
mostrar dura, cruel, inexorável quanto ao eu que ele tem sob sua guarda. O im­
perativo categórico de Kant é assim o herdeiro direto do complexo de Édipo" ( 11 ).
Podemos ler notas totalmente análogas em O eu e o isso, onde Freud fa­
la do imperativo categórico a propósito da crueldade do supereu, tal como ela
se manifesta no sentimento de culpabilidade. Eu retomarei mais adiante essas
referências de Freud a Kant. Por ora, elas nos permitem pelo menos compreen­
der que a articulação da filosofia transcendental com a questão do desejo po­
de ser examinada apenas sobre o terreno em que Kant precisamente as sepa­
rou: aquele da razão pura prática, mais precisamente no ponto do que nomea­
mos de lei moral.
É exatamente o que visa Lacan, como ele o indica no livro XI do Seminá­
rio, logo após ter evocado a célebre fórmula de Spinoza ("o desejo é a essência
do homem"):

"A experiência nos mostra que Kant é mais verdadeiro, e eu pro­


vei que sua teoria da consciência, como ele escreve da razão práti­
ca, não se sustenta senão por dar uma especificação da lei moral
que, ao examinarmos de mais perto, não é nada além de O DESE­
JO NO ESTADO PURO, aquele mesmo que termina no sacrifício,
para falar propriamente, de tudo o que é o objeto do amor em
sua ternura humana - eu digo não somente por recusa do objeto
patológico, mas também por seu sacrifício e seu assassinato. É
por isso que escrevi KANT COM SADE" ( 12).

Resta-nos, por conseguinte, "examinar de perto" o que se dá aqui não so­


mente como conjunção, mas mesmo como identificação da "lei moral" e do "de­
sejo no estado puro". Que tenha sido importante para Lacan, só depois ( 13) e
nesses termos, voltar a seu texto, basta, por ora, para indicar oque visam o títu­
lo e o subtítulo de meu propósito: O desejo puro (a propósito de "Kant com
Sade") - "a propósito" e não "sobre". Pois não se trata aqui de estudar detalha­
damente esse texto, mas de estar suficientemente atento a ele para conseguir

137
Bemard Baas

determinar a relação entre Lacan e Kant, que é, igualmente, aquele entre a psi­
canálise e a filosofia, Lacan não elaborando somente um comentário de Kant,
mas talvez também um cometimento (II). Daí porque não poderíamos entrar
no estudo desse texto sem passar pelo umbral que o próprio Lacan nos ordena
transpor: a filosofia moral de Kant. Desta, eu lembrarei suscintamente os ele­
mentos essenciais o que nos interessa aqui.

**

Numa nota do prefácio da Crítica da razão prática, Kant responde à obje­


ção que poderíamos lhe fazer de não ter começado seu propósito por uma defi­
nição da faculdade de desejar. Ele escreve então:

"Viver é o poder que um ser tem de agir segundo as leis da facul­


dade de desejar. A faculdade de desejar é o poder que ele tem
de ser, pelas suas representações, causa da realidade dos objetos
dessas representações. O prazer é a representação da concordân­
cia do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, is­
to é, com o poder de causalidade de uma representação relativo
à realidade de seu objeto" ( 15).

Desse ponto de vista, a faculdade de desejar se relaciona com o bem-es­


tar (Wohl) do sujeito. Ora, se apenas a experiência sensível pode decidir pelo
prazer, não há nenhuma possibilidade de uma determinação a priori. Ou seja,
a faculdade de desejar provém, então, do imperativo hipotético que pode ser
resumido assim: se, por hipótese, o resultado da ação deve contribuir para o
bem-estar, então os meios utilizados poderão ser ditos bons. Insinua-se aqui a
máxima: "o fim justifica os meios", isto é, o princípio mesmo da imoralidade,
posto que este fim é sempre relacionado, de um modo ou de outro, ao bem-es­
tar, esse Wohl, não é somente o prazer bruto; é também o sentimento de simpa­
tia pelo outro, o que Kant chama, nos "Fundamentos da metaffsica . dos costu­
mes", de "amor patológico" ( 16) (entendido certamente num sentido etimológi­
co e não num sentido clfnico), que reside numa disposição da seru;ibilidade e
que advém sempre de uma "compaixão mole" ( 17). Dito de outro modo, agir
em vista do bem estar do outro, por simpatia pelo outro já é agir em vista de
seu próprio bem-estar consigo, o que toma a ação PATOLOGICAMENTE de­
terminada e, então, estranha à moralidade. É o que resume a segunda proposi­
ção dos "Fundamentos da metafísica dos costumes": "uma ação realizada pelo
dever tira seu valor moral NÃO DO OBJETO que deve ser atingido por ela,
mas da máxima segundo a qual ela é decidida; ela nã9 depende, então, da reali­
dade do objeto da ação, mas u nicamente do PRINCIPIO DO QUERER segun­
do o qual a ação é produzida sem relação alguma com os objetos da faculdade
de desejar" ( 18). É por isso que a razão prática não poderia depender de ne­
nhum objeto empírico. O conceito de um tal objeto é o Bem, das Gute, toma­
do segundo a distinção que o opõe ao bem-estar, das Wohl. É porque a razao
prática é também razão pura que"o conceito de Bem não deve ser determina­
do antes da lei moral, mas somente após essa lei e por ela" ( 19). É a lei, então,
que faz a ação moralmente boa e não o fim empírico que serve ou que se su­
pOe servir esta ação. Tal é o sentido do que Kant chama de "vontade boa" (e

138
O desejo puro

que é - lembramos - exatamente o contrário do que nós entendemos habitual­


mente em português por "boa vontade"): é a vontade que age por dever e so­
mente por dever. Seu imperativo não é hipotético, mas categórico (isto é, a prio­
ri), o que significa que a razão pura em seu uso prático, enquanto ela é pura,
só pode se reportar a ela mesma. É por isso que a vontade razoável é autôno­
ma, e não heterônoma como a vontade submetida à ordem sensível, isto é, ao
desejo (21).
Contudo, é . necessário também .que esta vontade razoável se reporte à
ação empírica e realize, na ordem prática, a síntese do a priori e do empírico.
É o que está em jogo na típica razão pura prática: a máxima da ação, para ser
moral, deve ter como "TIPO" a lei da natureza - não quanto ao seu conteúdo,
mas somente quanto à sua forma, que é precisamente racional. É o que enun­
cia o imperativo categórico: "aja como se a máxima de sua ação devesse ser eri­
gida por tua vontade em lei universal da natureza" (22).
A moralidade da ação não depende então, de forma alguma, do princípio
subjetivo do desejo, que advém sempre do "patológico"; ela depende apenas
da vontade que afirma sua autonomia ao legislar para ela mesma, segundo o
princípio formal da universalidade a priori da lei. Esse princípio formal é a não
contradição, de modo que uma vontade razoável não pode querer a contradição:
é absolutamente boa a vontade que não pode ser má, cuja máxima, por conse­
guinte, quando 'é convertida em lei universal, não pode jamais se contradizer
a si mesma" (23).
Isso ilustra o apólogo do depositário aludido por Lacan (24): enquanto
depositário, eu posso certamente DESEJAR dispôr para mim mesmo do bem
que me foi confiado; mas eu não posso QUERER isso, pois erigir como lei uni­
versal a máxima de uma tal ação significaria que todo mundo está fundamenta­
do para negar o depósito que lhe é confiado, de modo que não haveria mais
depósito e, por conseguinte, tampouco depositário. Em resumo: eu não posso
querer que haja mais depositário no momento mesmo em que pretendo apro­
veitar da minha qualidade de depositário.
Tal é, por conseguinte, o fundamento racional puro da moralidade. Só é
dita moral a ação feita por dever, isto é, que está em relação unicamente com
o imperativo categórico. E Kant sobre o fato de que uma ação pode muito bem
estar conforme ao dever sem ser feita por dever. Para que ela seja verdadeira­
mente moral, a ação deve ser motivada exclusivamente pela lei moral. Basta
que eu aspire ao meu bem-estar, ao meu desejo, às minhas inclinações, basta
que minha decisão seja movida pelo menor móbil "patológico" para que minha
ação seja mais moral. Para agir moralmente, é necessário, então, que eu recu­
se todo ''pathos": "a apatia é uma condição indispensável da virtude" (25). E é
bem por isso que nenhum exemplo de moralidade pode ser seguramente apre­
sentado na experiência, pois nenhuma prova sensível poderia ser dada pela apa­
tia do sujeito da ação. Toda a análise de Kant é assim fundada sobre a identifi­
cação do sujeito à lei sobre sua "apatia", que Lacan chama de "rejeição radical
do patológico" (26). Rejeitando todo sentimento, o sujeito escapa à toda lógica
do interesse sensível e pode se identificar à lei se afirmando legislador desta lei
à qual ele se submete.
Hannah Arendt mostrou, em seu Relato sobre a banalidade do mal (27),
o que a filosofia moral de Kant tornou possível, sem ser responsável por isso.
Bastou aos ideólogos nazistas substituírem a "razao prática" de Kant pela "vonta­
de do Fubrer" para surgir esta formulação do imperativo categórico no III Rcich:
"aja de tal modo que o Fuhrer, se ele tivesse conhecimento de teus atos, os apro-

139
Bemard Baas

varia" (28). É certo que esse desvelamento do pensamento de Kant implica um


enorme contrasenso. Mas ele conserva do pensamento kantiano esta idéia intei­
ramente formal que "respeitar a lei (e então fazer seu dever) significa não so­
mente obedecer à lei, mas também agir como se fosse o legislador da lei à qual
se obedece" (29). É esta idéia que, nos processos do após-Guerra, vários nazis­
tas e, notadamente, Eicbmann evocaram para sua defesa: tratou-se apenas de
"fazer seu dever", o que implicava calar todo sentimento, toda piedade - Kant
teria dito: toda "compaixão amolecedora". Em uma palavra: é necessário ser "a­
pático", isto é, se assujeitar à lei se intitulando a si mesmo como legislador desta lei.

**

"Apatia" é precisamente o conceito asseverado por Sade, principalmente


em A filosofia na alcova (texto ao qual o "Kant com Sade" de Lacan devia ser­
vir de prefácio numa edição moderna), onde, e de maneira pelo menos exterior­
mente análoga a Kant, a máxima do libertino sádico toma a lei natural como
TIPO da máxima de sua ação:

"Dolmancé: ( ... ) A destruição sendo uma das primeiras leis da na­


tureza, nada daquilo que destrói poderia ser um crime. Como
uma ação que serve tão bem à natureza poderia ultrajá-la? Esta
destruição, da qual o homem se lisonjeia, é, aliás, apenas uma
quimera; o assassinato não é de forma alguma uma destruição;
aquele que o comete apenas varia as formas, se ele dá a nature­
za os elementos dos quais a mão desta natureza hábil rapidamen­
te se serve para recompesar outros seres; ora, como as criações
podem ser apenas gozos para aquele que se livra delas, o assassi­
no prepara, por conseguinte, um gozo para a natureza; ele lhe for­
nece os materiais que ela emprega imediatamente, e a ação que
os tolos tiveram a loucura de censurar se torna, aos olhos deste
A GENTE UNWERSAL, muito mais um mérito" (30).

O libertino nao age, por conseguinte, visando seu próprio prazer sensível,
mas o gozo da natureza. Nesse sentido, a apatia deve ser oposta à sensibilida­
de. O mesmo Dolmancé diz, mais adiante: "os prazeres que nascem da apatia
valem maisque aqueles que a sensibilidade vos dá" (3 1). Certamente Sade em­
prega aqui, ainda, o termo prazer. Mas essa sentença indica sem ambiguidade
que mais além do prazer sensível, é outra coisa que o sujeito apático encontra.
Todos os comentadores modernos (M. Reine, Bataille, Klossowski, Blan­
chot, Barthes) marcam o lugar determinante que ocupa o conceito de apatia
na obra de Sade. E é também aproximado o texto de Sade e aquele de Kant
que Adorno e Horkheimer construíram sua tese segundo a qual a formalização
da razão, junto com a apatia, leva a instrumentalizar todo objeto empírico e,
então, a tratar os outros como simpes coisas submetidas à legislação de uma
pura lei (32). Tal seria, segundo Horkheimer e Adorno, o sentido do que a filo­
sofia, de Kant até Nietzsche inclusive, tem escrito e que "só um realizou nos
menores detalhes; a obra do Marquês de Sade mostra o entendimento não diri­
gido por um outro, isto é o sujeito burguês liberado de toda tutela" (33). Isso
exigiria muitos comentários, pois são numerosos e pesados os pressupostos des,-

140
O desejo puro

te modo de compreensão totalisante do pensamento moderno. Mas, para o que


nos ocupa aqui, digamos simplesmente que uma tal interpretação não reconhe­
ce a divisao que instaura, no próprio sujeito (e não simplesmente no corpo so­
cial), a su bmissão consentida e apática à lei.
Deste ponto de vista, a leitura de Sade por Blanchot - da qual um dos
méritos é seguir as contradições que atravessam a obra de Sade - é mais próxi­
ma da tese de Lacan e lhe é estritamente contemporânea (34). Blanchot mostra
que, para Sade, o princípio da negação constitui no homem o princípio mesmo
da potência, de modo que o herói sadiano segue esta lógica da negação até à
negação da negação. Poderíamos quase dizer que Blanchot nos propõe um "He­
gel com Sade". Mas ele mostra assim que a apatia como negação da sensibilida­
de conduz, mais além dos prazeres, mais além DO prazer, ao que ele chama
de "gozo soberano":

"todos esses grandes libertinos que vivem apenas para o prazer,


apenas são grandes porque anularam neles toda capacidade de
prazer. É por isso que eles passam à horrorosas anomalias, senâo
lhes bastaria a mediocridade das volúpias normais. Mas eles se fa­
zem insensíveis: eles pretendem gozar de sua insensibilidade, des­
sa sensibilidade negada, e eles se tornam ferozes. A crueldade é
apenas a negação de si levada tâo longe que ela se transforma
em uma explosão destruidora; a insensibilidade se faz estremecen­
do todo o ser, diz Sade: 'a alma passa por uma espécie de apatia
que logo se metamorfoseia em prazeres mil e uma vezes mais divi­
nos que aqueles que lhes conduziriam as fraquezas'. ( ... ) Se, nes­
te estado de anulamento em que ele (o libertino) experimenta pe­
los piores excessos apenas uma repugnância sem gosto, ele encon­
tra um último acréscimo de força para aumentar esta insensibilida­
de inventando novos excessos que lhe repugnam ainda mais, então
ele passará do anulamento à onipotência, do endurecimento à von­
tade mais extrema e, 'revirado em todas as partes', ele gozará so­
beranamente de si mais além de todos os limies" (35).

É precisamente esse conceito (se todavia se trata de um conceito) de go­


zo, enquanto que este gozo é radicalmente distinto do prazer, que Lacan toca
no coração do fantasma sadiano.

**

Lacan estabelece uma correspondência entre o imperativo kantiano - im­


perativo categórico - e o imperativo sadiano, enquanto este comanda (segundo
uma lógica que eu vou tentar desenvolver) o gozo. O gozo e não o prazer. Ob­
servemos que a máxima sadiana é elaborada por Lacan; não a encontramos lite­
ralmente formulada no texto de Sade. Esta é a máxima, este é o "imperativo sa­
diano": "eu tenho o direito de gozar de teu corpo, pode me dizer qualquer um,
e esse direito eu o exercerei sem que nenhum limite me detenha no capricho
das exações que eu tenha o gosto de saciar" (36). De imediato, notemos que o
direito que está aqui em questão, direito de qualquer um ao gozo de meu cor­
po, nâo é limitado pelo meu próprio direito. A lógica desse direito nâo é, por

1 41
Bemard Baas

conseguinte, identificável àquela dos direitos do homem, direitos que implicam


.&empre a reciprocidade (37). Se a máxima sadiana, como nos diz Lacan, não ex­
clui a condição de que se pague na mesma moeda, exclui, todavia, a reciprocida­
de. Ela se opõe, por conseguinte, diretamente às definições kantianas do casa­
mento ("união de duas pessoas de sexos diferentes para a posse recíproca, e pa­
ra toda a vida, de suas propriedades sexuais") e do comércio sexual ("uso recí­
proco que um ser humano faz dos órgãos e dos poderes sexuais de um outro")
(38). E é por isso que só atingiríamos a república sadiana (aquela que ele des­
creve em "Franceses, ainda um esforço...") com a condição de, justamente, fa­
zermos o esforço de renunciarmos à toda lógica da propriedade e do comércio
em matéria de desejo. Que esse direito ao gozo não seja limitado por aquele
cujo corpo é o objeto do gozo implica, então, que o exercício desse direito igno­
ra toda piedade e toda compaixão; em outros termos: esse direito implica a apa­
tia como sua própria condição. Esse direito é, por conseguinte, inteiramente a
afirmação de um dever que exclui qualquer outra motivação fora daquela que
implica sua própria injunção. Ele tem, então, todas as características que Kant
reconhece no imperativo categórico: tanto a rejeição do patológico, quanto a
pura forma da lei. É por isso que Lacan julga que é necessário reconhecer no
imperativo sadiano o "caráter de uma regra concebível como universal": "é ne­
cessário evidentemente lhe reconhecer esse caráter pela simples razão que ape­
nas seu anúncio (seu querigma) tem a virtude de instaurar tanto esta rejeição
radical do patológico de todo ponto de vista tomado como um bem, uma paixão,
mesmo uma compaixão - isto é, a rejeição pela qual Kant libera o campo da lei
moral - quanto à forma desta lei, que é também sua única substância, enquan­
to a vontade se obriga apenas de repelir de sua prática toda razão que não se­
ja de sua própria máxima" (39). O imperativo sadiano seria, assim, exatamente
homólogo ao imperativo kantiano. Mas, detenhamo-nos logo nesta diferença: a
lógica kantiana da teoria moral como teoria da liberdade transcendental concer­
ne ao sujeito e apenas ao sujeito. Enquanto ser razoável, o sujeito kantiano é
o A UTOR da lei moral; enquanto livre, isto é autônomo, ele é o EXECUTOR
da lei pela qual ele se confronta ao imperativo categórico; e, enquanto dotado
de uma vontade boa, ele SE ASSUJEITA por si mesmo à lei. O sujeito é, então,
concomitantemente, . autor e lei, executor da lei e assujeitado à lei.
Ora, é precisamente a distinção desses três "papéis" - se podemos dizer
assim - que Sade torna manifesta em seu texto: a regra geral de todas as cenas
descritas por Sade é de presentificar a vítima (que é assujeitada à lei), o algoz
(que executa a lei) e um terceiro (que diz:"faça teu dever", isto é, que prescre­
ve a lei). Que me seja permitido tentar, de minha parte, um pequeno jogo -
muito estimado pelos comentadores - sobre os nomes dos heróis de Sade. Em
"A filosofia na alcova", Madame de Saint-Ange é a organizadora da transação
toda; é ela que prescreve a lei. Dolmancé é o executor da lei. Desde a primei­
ra "postura" (como diz Sade), ele toma Eugénie como vítima. O que essas ini­
ciais manifestam é bem o estilhaçamento da unidade do sujeito "Sade" numa
partiçao trinitária da seguinte ordem: SA-D-E.
Mesmo se Lacan não articula as coisas desta maneira, é entretanto a par­
tir daí que podemos compreender sua tese da inscrição da divisão subjetiva no
fantasma sadiano. Esta divisão se lê na "bipolaridade" (40) onde se instaura a
lei, a lei moral, tanto sob a espécie do imperativo sadiano quanto so b aquela
do imperativo kantiano. Um desses dois "palas" é o sujeito enquanto ele se re­
duz aqui a ser apenas o agente-executor da lei. O outro pala é - precisamente
- aquele do Outro que é tanto o autor (fonte) da lei, como assujeitado à lei.

1 42
O desejo puro

Retornaremos Jogo a esta função do Outro em sua relação com a lei. De início,
o que deve ser precisado é que o sujeito, aqui, se esvanece e se reduz, enquan­
to agente-executor, agente-tormentador, ao que Lacan chama de "objeto a".
Deste objeto a, eu não darei, de imediato, nenhuma definição. Guardemos so­
mente - e Lacan não exige mais - seu lugar na estrutura, seu lugar de agente,
sua função simples e exclusivamente mediadora para a execução da lei, enfim,
sua função de agente-executor.
Mas o agente, justamente, é apenas o agente. Ele é apenas o mediador
que torna a ligar, rejeitando-os numa mesma entidade, o autor da lei e aquele
que é assujeitado à lei, isto é - no duplo sentido dessa palavra - o SUJEITO
mesmo da lei. Desse sujeito (como fonte da lei), o agente recebe a injunção
de realizar seu dever e, quanto ao sujeito (como sujeição à lei), ele o submete
aos efeitos desse dever. Para esse sujeito assujeitado, não está em questão ne­
nhum prazer om nenhum bem-estar (Wohl): há apenas a dor, dor patente da
vítima no cerimonial sadiano, dor da humilhação, reconhecida por Kant como
o preço que se paga sempre pela submissão à lei (42). Para o agente executor
da lei, a regra, então, é a apatia, isto é, a desaparição do prazer. No imperati­
vo kantiano, o prazer é (segundo os termos de Lacan) o "rival estimulante" o
"cúmplice desfalecido" da vontade da qual a lei lhe advém (43). Enquanto ele
é apático, enquanto "sua presença se resume a ser apenas o instrumento" da lei
(44), o agente executor realiza um ato rigorosa e perfeitamente moral, no mes­
mo sentido em que Kant define a ação moral.
Qual é, esta vontade que comanda a realização apática da lei? É , diz La­
can, a vontade do Outro ( 45), enquanto ela não é vontade de prazer, mas vonta­
de de gozo. Para não confundir as perspectivas, é necessário repetir aqui o im­
perativo sadiano e captar tudo o que implica sua formulação por Lacan: "eu te­
nho o direito de gozar do seu corpo, pode ME dizer qualque um ( ... ) . Nesse im­
"

perativo, o "eu" que enuncia seu direito ao gozo não é o "me" que enuncia o im­
perativo, de modo que este imperativo sadiano implica e manifesta a divisão
subjetiva como divisão entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação: ( . .. )
"

a bipolaridade onde a lei moral se instaura não é outra que não esta refenda
do sujeito que se opera a partir de toda intervenção do significante, principal­
mente entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. A lei moral não tem
outro princípio·' (46). No imperativo sadiano, o "me" do "pode me dizer", o
"me" ao qual o imperativo se impõe, é o sujeito da enunciação, isto é, tanto o
autor como a vítima da lei, ou ainda, o Outro. O imperativo se impõe a esse
"me"; assim, Lacan pode dizer que aqui o imperativo é imposto a nós "como
AO Outro" ( 47). O "eu" que diz "eu tenho o direito", o sujeito do enunciado,
se reduz a ser apenas o agente da lei que ele impõe ao Outro. Esta divisão, es­
ta "refenda" do sujeito é, precisamente, segundo Lacan, o que o imperativo kan­
tiano escamoteia ("Aja de tal modo que ... "), escamoteamento que implica esse
logro de que a lei vem "DO Outro" ( 48), enquanto que, de fato, ela procede
da divisão subjetiva. É por isso que Lacan diz que a máxima sadiana é mais ho­
nesta (49), pois ela indica que o Outro é o sujeito da enunciação, enquanto que
a máxima kantiana, para mascarar a divisão subjetiva, se apresenta como ema­
nando de uma voz interior.
Observemos incidentemente que Lacan oferece aqui a Kant uma metáfo­
ra que não se encontra em seu texto, mas pertence mais propriamente à retóri­
ca de Rousseau (50). Esta confusão não é insignificante considerando o que
nos interessa neste estudo, a saber, o engajamento (efetivo, ainda que impensa­
do ou, pelo menos, não explícito), via Lacan, do questionamento transcenden-

143
Bemard Baas

tal à teoria do desejo. Ao não perceber a que deve a Kant (e não somente nes­
te escritQ, como nós veremos mais adiante), Lacan lhe oferece um motivo que
lhe é tanto mais estranho quanto ele não poderia estar de acordo com a pers­
pectiva transcendental, visto que ele advém da consciência empírica e do senti­
mento�interior, e mesmo do amor de si.
Mas o essencial aqui é o convite lacaniano de reconhecer que Sade é mais
verdadeiro que Kant, no que ele manifesta a divisão subjetiva, o desvanecimen­
to ou a AFANISE do sujeito (5 1). Para não ter de suportar sua divisão e a dor
cruel que ela implica, o sujeito sadiano, mas também o sujeito sádico, incide so­
bre o Outro o efeito cruel da lei que ele invoca no Outro e, desvanecendo, ele
se reduz a ser apenas o agente apático desta lei, ou seja, objeto a.
É por isso que Lacan diz que "A filosofia na alcova" "dá a verdade" da
Crítica da razão prática (52). O imperativo kantiano, assim como o imperativo
sadiano, procede da vontade do Outro. Mais além do prazer que parece visar
o desejo, há o gozo que exige o desvanecimento do prazer. Mais além do bem­
estar, do Wohl, que parece motivar toda ação, há o contentamento de si, a
Selbstzufriedenheit da qual Kant fala (e que Lacan não evoca - nós retornare­
mos a isso), que implica fazer o sacrifício de seu Wohl, de seu bem-estar. O de­
sejo seria, então, apenas "o avesso" da lei moral e a lei moral o avesso do desejo (53).
É necessário, aqui, marcar um tempo e medir o que está em jogo nesta
conclusão de Lacan, na qual frequentemente se detêm os leitores de "Kant com
Sade", pois ela recupera, precisamente, a interpretação freudiana da lei moral:
o imperativo categórico como imperativo do supereu. Reportemo-nos aos tex­
tos de Freud citados acima e, mais particularmente, ao ensaio intitulado O eu
e o isso, onde Freud descreve e explica o contentamento que o sujeito experi­
menta, na experiência moral, ao se submeter ao imperativo do supereu que, en­
tretanto, o faz sofrer. E Freud prossegue com esta nota espantosa:

"Podemos ir mais longe e lançar a hipótese de que, no estado nor­


mal, o sentimento de culpabilidade deve, em grande parte, perma­
necer inconsciente; o que chamamos de escrúpulos de consciência
está intimamente ligado ao COMPLEXO DE ÉDIPO, que faz par­
te do inconsciente. Se fosse encontrado alguém para emitir esse
paradoxo de que o homem normal não é somente mais imoral
do que ele crê, mas também mais moral do que ele duvida, a psi­
canálise, cujos dados servem de base à primeira parte desta propo­
sição, não teria nenhuma objeção a levantar contra a segunda".

Uma nota é acrescentada com relação a isso: "esta proposição, aliás, só é


paradoxal aparentemente; ela enuncia apenas que tanto no bem, quanto no
mal, o homem pode muito mais do que ele crê, ou seja, que ele ultrapassa o
que seu eu, graças às suas percepções conscientes, sabe sobre esse assunto"
(54). Em outros termos: é necessário escolher entre o desejo e a lei, mesmo se
a escolha é, nos dois casos, aquela do que perde. Pois, se ele prossegue em seu
desejo, seu bem-estar, seu Wohl, o sujeito é culpado por ter falhado do ponto
de vista da lei. Se, ao contrário, ele opta pela lei, não lhe resta mais do que fa­
zer o luto de seu desejo. Situação de aparência trágica e que parece justificar
o apelo que Lacao faz af à figura de Aotfgona (retornaremos mais adiante quan­
to a esta referência). Ora, é precisamente logo após ter evocado Aotfgona que
Lacan afirma: "o desejo, o que se chama de desejo, basta para fazer com que
a vida não tenha sentido algum em fazer um covarde (III) . E quando a lei está

144
O desejo puro

verdadeiramente _?f, o desej9 não se mantém, mas porque A LEI E O DESEJO


RECALCADO SAO UMA UNICA E MESMA COISA, é isso mesmo que Freud
descobriu. Nós marcamos o ponto no primeiro tempo, professor" (55).
E, posto que é necessário - parece - tomá-lo assim, passemos ao segundo
tempo. Eu não sei quem marcará os pontos, nem mesmo se marcá-los estará
ainda en questão. Pois os jogadores poderiam muito bem acabar por fazer as
cores sob as quais eles avançam se confundirem... Mas, sejamos esportivos e jo­
guemos este segundo tempo.

**

Eu darei o lance inicial com esta nota: "Kant com Sade" é atravessado por
uma diferença que se deixa captar apenas em sua tipografia: "lei" está escrito
tanto com um "!" minúsculo, quanto um "L" maiúsculo. Não poderia ser um sim­
ples acaso. Quais são, então, essas duas leis ou, pelo menos, essas duas ocorrên­
cias da lei?
Na passagem que precede imediatamente a última citação, Lacan evoca
o apólogo kantiano da forca (56): um indivíduo, diz Kant em suma, preferiria
muito mais renunciar ao seu desejo luxurioso do que ter de realizá-lo ao preço
de ser enforcado (57). Certamente, é patente que muitos dos heróis de Sade
encontrariam nesta ameaça de potência um motivo suplementar para o cumpri­
mento do desejo, isto é, para o cumprimento de seu dever de agentes-executo­
res e apáticos. É por isso que Lacan precisa: "a forca não é a Lei", com um "L"
maiúsculo. "A Lei - acrescenta ele - é outra coisa, como o sabemos desde Antí­
gona" (58). Que "outra coisa"? E por que Antígona? Retornaremos a isso. Por
ora, observemos que se a forca não é a Lei, é que, por conseguinte, ela é ape­
nas a lei. Ora, é também com uma minúscula que Lacan escreve "lei" quando
ele diz, um pouco mais adiante, que "lei e desejo recalcado são uma única c
mesma coisa". O que é esta lei? Algumas linhas atrás, nós tínhamos já compre­
endido: trata-se do imperativo do supereu, a lei do supereu cuja lógica é estrita­
mente freudiana. Segundo essa lógica, o supereu é - se podemos dizer - a con­
cretização, ou ainda, o efeito do Complexo de Édipo. Ora, sabemos, pelo me­
nos desde Lacan, que esse complexo de Édipo é um mito. É o próprio mito de
Freud (outros diriam, seu sintoma). A substância desse mito freudiano consis­
te em colocar a mãe como experiência de satisfação originária. Mas, se trata-se
de um mito, a questão é então - mais além do mito - de saber onde o desejo
se origina. Essa é a questão que Lacan não pretende esquecer jamais. Ela nos
leva mais além do supereu, mais além da lei (do supereu); ela é a retomada la­
caniana da questão freudiana do mais além do princípio do prazer.
Esta questão que Lacan apresenta como a questão ética por excelência,
atravessa e anima todo o livro VII de seu Seminário, Ética da psicanálise que
antecede apenas dois anos a redação de "Kant com Sade" e que se constitui -
poderíamos mostrá-lo facilmente - como sua preparação. Toda a pesquisa de
Lacan, nesse Seminário, gira em torno do que le chama de "a Coisa" (das Ding),
conceito (mas, nesse caso, mais ainda que qualquer outro, não sabemos se pode­
mos verdadeiramente falar de "conceito") que ele retoma de Freud, mais preci­
samente do Freud do Projeto (60), e que ele pretende infletir num sentido
mais ou menos heideggeriano. Mais além do desejo enquanto desejo articula­
do a um objeto desejado (ou seja, ao que chamo de epitúmeno), há a Coisa,

1 45
Bemard Baas

das Ding. Precisemos: enquanto objeto perdido, das Ding nos remete ao concei­
to freudiano de "experiência de satisfação", entendido certamente como experi­
ência originária. Mas é justamente esta originalidade que faz problema aqui.
Para Freud, há, Gertamente, uma experiência originária, cujos traços mnésicos
constituem um tipo de imagem dissolvida do objeto de satisfação pela qual ela
determina a elaboração do desejo do sujeito e o leva a reencontrar o que foi
perdido, segundo uma lógica da identidade (identidade de percepções e/ou iden­
tidade de pensamentos). Trata-se, por conseguinte, de uma originalidade empí­
rica, de um VIVIDO, como se diz. Sabemos o quanto a tradição kleiniana se en­
gajou nesta via de explicação da atividade desejante do sujeito fazendo de to­
dos os mecanismos psíquicos meios mais ou menos diretos, mais ou menos des­
viados, de reencontrar o objeto que, na origem, era o único capaz de apaziguar
o estado de desolação, a Hilflosigkeit: o corpo da mãe. Eis af a chave das aspira­
ções e a chave do mistério. Ela abre, nos é assegurado, todas as portas do labi­
rinto do inconsciente. Percorram em todos os sentidos o dedal das representa­
ções, os nós associativos, os fantasmas e os devaneios, vocês reencontrarão sem­
pre o corpo da mãe. Eis aí, segundo esta tradição, o que daria sentido a esta
"coisa perdida", eis aí o que daria corpo a das Ding.
Assim, das Ding seria o sentido - talvez mesmo a verdade - originário, cu­
ja perda irremediável comandaria então, no inconsciente, os jogos de significan­
tes, produzindo fantasmas e sintomas e, mais particularmente - sob a forma es­
tranha desta "libido dessexualizada" da qual falam Freud e Melanie Klein - a su­
blimação como tentativa de reconstruir essa imagem mnésica quebrada, dissolvi­
da, decomposta, do corpo da mãe. Ha aí uma antropologia da desolação, da
desrelição que se sustenta pela fábula que, aqui como alhures, a constitui: aque­
la da perda originária de um bem precioso, de uma origem designada, mais ain­
da, figurada, imajada. Lacan não se engana, ao falar a esse propósito de um
"mito kleiniano" (61) - mais ele pertencia também a Freud.
A função desse mito enquanto logro é evitar o que deveria, ao contrário,
nos interpelar: como é que alguma coisa tão preciosa como essa experiência ori­
ginária, alguma coisa tão insubstituível como este tipo de soberano bem do
qual certificamos a realidade empírica inicial, pode ser obliterado assim, até que
a perda afete não somente o seu vivido, mas a sua própria imagem? Mais sim­
plesmente: o que é que, no sujeito, torna possível a perda de onde procede o
desejo? Eis af precisamente a pergunta que uma teoria transcendental do dese­
jo deve fazer. E é ela que Lacan faz. .
Ou, melhor, que ele nao faz, mas a qual, no entanto, ele responde. Lacan
emprega essa palavra - "a Coisa", das Ding precisamente porque das Ding não
é dizfvel, menos ainda figurável, porque dar um conteúdo a esta Coisa é já en­
trar no jogo dos significantes, é já confundf-la com o objeto desejado, reduzi­
la a um epitúmeno. Ora, a Coisa está mais além do jogo significante pelo qual
se trama a função desejante do sujeito, mesmo se ou, muito mais, porque ela
é a sua condição de possibilidade. Ela é, diz Lacan, o "fora-de-significado" (62).
Isso leva Lacan a dizer que, se a Coisa "não fosse no fundo VELADA, nós não
estabeleceríamos com ela esse tipo de relação que nos obriga - assim como a
todo psiquismo - a circundá-la, mesmo a CONTORNÁ-LA, para concebê-la" (63).
Trata-se, com efeito, de CONTORNAR senão de DESVELAR, pois como
desvelar o que advém da categoria da falta ou, melhor, constitui a falta como
categoria? Nós empregamos aqui, de propósito, o termo kantiano de "catego­
ria", mas não se trata de completar a tábua kantiana dos conceitos puros do en­
tendimento - tanto menos porque mal veríamos a qual "julgamento" do entendi-

146
O desejo puro
menta faríamos corresponder a categoria da falta, no sentido em que a empre­
gamos aqui. Entretanto, esta categoria certamente se relaciona a um julgamen­
to, mas este não advérn do entendimento. Ele advém da faculdade de desejar,
é simplesmente o julgamento do sujeito desejante quando ele diz: "este objeto
é desejável". E, no discurso de Lacan, mesmo se ele se interdita uma tal formu­
lação - mas, justamente, esta reserva é em si um problema sobre o qual retorna­
remos -, trata-se mais de determinar as condições a priori desse julgamento,
ou seja, de elaborar uma lógica transcendental do desejo.
A coisa, das Ding, tal como Lacan a nomeia, não é o significado originário
que constituíram o contínuo de todas as derivas significantes. Esse processo de
deriva, esses mecanismos de substituição concernem apenas ao desejo concebi­
do como desejo de um objeto desejado, como um desejo epitumenaL Ora, das
Ding está mais além do desejo epitumenal, isto é, mais além da lei do supereu.
Com das Ding, trata-se apenas do seguinte: a perda é anterior ao que está per­
dido. Se bá desejo, e se o desejo emprega todos os desvios do processo substitu­
tivo, da metonímia significante, não é em virtude da perda de uma origem qual­
quer, mas justamente porque a perda é, ela mesma a origem. No "paraíso per­
dido" que se trate da mãe de qualquer coisa que se queira), o "paraíso" advém
do mito, só o "perdido"advém do reaL Trata-se do "real" no sentido em que La­
can o entende, isto é, não o "mundo exterior" da fenomenologia, mas o não-·
mundo, o "imundo" (64). Nilo bá o nada anterior a das Ding enquanto a perda
mesma, salvo quando somos logrados pelas aparências do fantasma ou do mito.
É por isso que o objeto do desejo, o objeto desejado é sempre objeto re­
encontrado. Este objeto, todavia, enquanto epitúmeno, jamais foi previamente
perdido: "o objeto é por sua natureza um objeto reencontrado. Que ele tenha
sido perdido, é a consequência disso, mas só-depois" (65). A lei, do supereu, es­
tá articulada a este objeto desejado - mais exataente, ao desejo deste objeto.
Já a Lei, está do lado da Coisa, enquanto a Coisa é a perda mesma, a falta fun­
damental e originária, pura falta que constitui o sujeito enquanto dividido. E é
por isso que "a forca não é a Lei", que ela é apenas a lei que ameaça de puni­
ção e que, no fundo, se endereça ainda ao bem estar, ao Wohl, ao pathos do su­
jeito: "pois a forca não é a Lei, nem pode ser veiculada por ela. Furgao, há ape­
nas o da polícia, que pode até ser o Estado, como se diz do lado de HegeL Mas
a Lei, como sabemos desde Antígona, é outra coisa (66).
É, de fato, o que Hegel não sabe, pois, na tragédia de Sófocles, vê apenas
o conflito entre a moralidade familiar e o direito da cidade (67). Por fim, e de
maneira geral, a relação de Hegel com Kant é sempre de transgressão de um
ultrapassamento pelo qual Hegel pretende dar conteúdo e consistência ao que
eera apenas formal no pensamento kantiano - principalmente ultrapassamento
dos impasses da "moralidade subjetiva" na "moralidade objetiva", isto é, a cons­
tituição do Estado (69). Deste ponto de vista, é notável que o trabalho de La­
can tenha sido, de certo modo, regressivo, posto que, após a referência inicial
e massiva a Hegel - cuja problemática do reconhecimento lhe permitia dar con­
teúdo e consistência ao desejo - ele preferiu a reflexão kantiana, que o levava
a pensar o desejo na perspectiva formal - a priori, isto é, como questão transcen­
dental. A lógica desta regressao implicava em abandonar a consistência do dese­
jo para reconhecer, antes de todo conteúdo empírico, a pura forma da Lei.
Pois não há consistência do lado da Coisa, do lado da Lei. A Coisa só con­
cerne à Lei do desejo enquanto ela é a instância de onde procede a faculdade
de desejar, no que esta faculdade se dá um objeto de desejo. Dito de outra ma­
neira, a Coisa é o ponto de articulação da Lei porque, de um ponto de vista es-

147
Bemard Baas

trutural, ela ocupa o lugar exato do que Kant chama de "incondicionado absolu­
to", termo que Lacan não renegaria (70). Expiquemos esta nota muito simples­
mente, por um tipo de paralelo homólogo.
Na ordem do conhecimento, tal como a Crítica da razão pura o analisa,
o entendimento aplica aos fenômenos a categoria da causalidade; desde então,
podemos conceber os fenômenos numa série causal onde cada um deles, enquan­
to causa de um efeito, é a condição mesma deste efeito. É por isso que Kant fa­
la da "série das condições". Mas, se nos remontamos a esta série das condições,
,
nos arriscamos a jamais podermos nos deter. E por isso, explica Kant, sobre o
entendimento que fornece o CONCEITO PURO da clfusalidade, há a razão,
que leva a este entendimento a IDÉIA do incondicionado absoluto (que será,
na ocasião, Deus como causa primeira e causa de si). Nisso consiste a função
reguladora, e somente reguladora, desta idéia do incondicionado.

I INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus)
I
Faculdade de conhecer
= entendimento puro
(a priori)

I Fênomeno I
Na ordem do desejo, tal como Lacan o analisa, a faculdade de desejar se
aplica aos objetos de desejo. É em relação a esses objetos do desejo, esses epitú­
menos que a cadeia substitutiva ou cadeia metonímica do desejo se mobiliza.
Se buscamos a origem desta cadeia - o que se chama, na terminologia clínica
da psicanálise, de regressão -, arriscamos bastante não chegarmos a parte algu­
ma (exceto a construir o mito do corpo da mãe ou num outro grito primai). É
por isso que, explica Lacan, (pelo menos segundo a leitura que me parece se im­
por), sobre a faculdade de desejar, que faz do objeto sensível um objeto deseja­
do (que se remete ao epitúmeno), há a Coisa - isto é, a pura falta, que não é o
substituto, nem a metonímia de nada antes dela - há o incondicionado.

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)

Faculdade de desejar
(a priori)

epitumeno

148
O desejo puro
A conjunção desses dois diagramas - que manifesta de maneira patente
este encontro dos discursos filosóficos e psicanalítico que eu havia anunciado -
autoriza três notas que são decisivas para a compreensão não apenas da teoria
lacaniana do desejo, mas também - e sobretudo - da correlação, afirmada por
Lacan, entre a questão do desejo e a problemática ética (isto é, a questão da Lei).
1) Toda a crítica kantiana da metafísica, na "Dialética transcendental", con­
siste em estabelecer a ilegitimidade de toda pretensão do entendimento de co­
nhecer o incondicionado. Kant diz, em suma, que o incondicionado não é cog­
noscfvel, mas somente pensável. A faculdade de conhecer procede da idéia do
incondicionado absoluto, de modo que ela não poderia constituir esta idéia en­
quanto o objeto de conhecimento. A função reguladora - e somente regulado­
ra - da idéia do incondicionado é dirigir o entendimento para um certo alvo, on­
de, num ponto, as linhas diretrizes de todas as suas regras se convergem e, ain­
da que se trate apenas de uma idéia (jocus imaginarius) - isto é, um ponto de
onde os conceitos do entendimento não partem realmente, posto que ele está
colocado inteiramente fora dos limites da experiência possível - ela serve para
lhe dar maior unidade com a maior extensão" (71 ). Kant acrescenta que esse
"foco imaginário" das regras do conhecimento pode dar a "ilusão" de ser ele
mesmo um obJeto. Mas esta ilusão não deve nos enganar: o incondicionado não
é um OBJE;TO que podemos conhecer; é somente uma IDÉIA que podemos
PENSAR. E por isso que, com a exclusão do uso CONSTITUTIVO, o uso RE­
GULADOR é o único legítimo. A regulação exclui a constituição.

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus)
(regulação)
'
Faculdade de conhecer
e entendimento puro
(a priori)

De maneira perfeitamente homóloga, Lacan diz que a Coisa é articulada


no desejo, mas que ela não é articulável nele (72). O paradoxo aqui é apenas
aparente; ele significa que, se o desejo é suportado pela Coisa, ele não tem co­
mo objeto a Coisa. O desejo, cuja função é ter como objeto os objetos sensíveis,
os epitúmenos enquanto objetos figuráveis (incluídos no sonho e no fantasma),
não tem vocação, não é fundado para tomar a Coisa como objeto, porque a
Coisa é "fora-de-significado". A Coisa - poderíamos dizer - é o focus imagina­
nus do desejo, de modo que não seria squestão de constituir a Coisa como epi­
túmeno. Transgredir este interdito, derrubar a ordem da Lei de onde procede
o desejo, só pode ser feito elaborando-se um mito (o equivalente da "ilusão"
da qual Kant fala a propósito da "subrepção transcendental" (73), que vem dar
uma figura necessariamente ilusória a esta Coisa estritamente infigurável.
De toda maneira, o mito jamais deixa de se revelar pelo que é. Neste con­
texto, Sade ratifica a verdade dos defensores desse mito do "corpo da mãe".
Pois a mãe da jovem Eugénie é condenada, no final deste tipo de sessão sado­
pedagógica que se desenrola na alcova, ao pior suplício: a costura de seu sexo.
Ora, se na estrutura do fantasma sadiano, a vítima é o Outro, a costura feita

1 49
Bemard Baas

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
(Lei)
'

neste Outro é, por conseguinte, a confissão de que este Outro deve ser e perma­
necer não barrado. O Outro como figura do acesso ao gozo é também, nesta
figuração mesma, figura da inacessibilidade essencial deste gozo. Lacan não se
engana ao escrever na conclusão de seu texto: "Dolmancé, Sade o viu, fecha à
questão por um No/i tangere matrem. V ... ada e costurada, a mãe permanece in­
terditada. Nosso veredito sobre a submissão de Sade à Lei está confirmado"
(74). Desta vez, é "Lei" que Lacan escreve, aquela que interdita fazer da Coisa
ium objeto do desejo. A Lei interdita o logro que instituiria o mito.
2) Minha segunda nota necessita o acréscimo de um novo diagrama aos
dois precedentes. Ele concerne, desta vez, a estrutura kantiana da razão no seu
uso prático. A vontade livre e autônoma se reporta à ação empírica exigindo
que a máxima desta ação seja universalizável. Ora, como vimos, esta universali­
zação, enquanto ela é a con?ição mesma da moralidade, supõe a rejeição de to­
do elemento "pat,plógico". E por isso que, na Dialética da razão pura prática",
Kaot dirá que o sujeito, enquanto ele age moralmente, pode - não DEVE, mas
PODE - postular a imortalidade de sua alma e a existência de Deus, de modo
que a felicidade (impossível aqui em baixo por causa do próprio desejo) seria
dada à sua alma que, existindo eternamente, poderia, então, chegar à perfeição
moral na qual ela não pôde chegar na existência sensível (75). Esses são os "pos­
tulados" da razão prática. Mas, logicamente, Kant insiste que a liberdade da von­
tade está ligada ao caráter hipotético dos postulados. Pois, se nós fazemos dos
postulados da razão PRÁTICA um conhecimento certo para a razão TEÓRI­
CA, não se trataria mais propriamente, para nós, de agir por dever (segundo a
exigência de autonomia), mas somente por medo ou por esperança, o que é pró­
prio de uma vontade heterônoma, isto é, submetida ao "patológico" (76). É por
isso que Kant diz (com uma insistência que lhe valeu alguns aborrecimentos)
que a fé não poderia, de forma alguma, preceder a moralidade para lhe servir
de móbil,pois isso nos obrigaria· a considerar a religião como advinda, ela mes­
ma, do mal radical (77).
"Admitir a exist6encia de Deus não é um dever", diz Kant (78). Os postu­
lados da razão prática não constituem a condição prévia para a moralidade. Se
é necessário crer em Deus e na imortalidade da alma (necessidade subjetiva e
não objetiva) para que apareça "a ESPERANÇA de participar um dia da felicida­
de na medida em que nós tivermos o cuidado de não sermos indignos dela"
(79), não é todavia necessário crer nisso para agir moralmente, nem mesmo pa­
ra experimentar a satisfação que acompanha o cumprimento de uma ação mo­
raL De fato, Kant estabelece a realidade desta satisfação antes dela ser questão
nos postulados da razão prática. Esta satisfa(,ião não advém do bem-estar. Ela
não procede nem da esperança de uma recompensa, nem do medo de um casti­
go. Ela não é, então, "patológica", mas diz Kant, somente "satisfação negativa":

"Não dispomos, todavia, de um termo que designe não um

150
O desejo puro
INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus - imortalidade da alma)

gozo, como a palavra felicidade, mas uma satisfação vinculada à


existência, um análogo da felicidade que deve necessariamente
acompanhar a consciência da virtude? Como não! Esse termo é
o contentamento consigo mesmo (Se/bstzufriedenheit) que, em seu
sentido exato, sempre significa apenas uma satisfação negativa li­
gada à existência, através da qual temos consciência de não ter­
mos necessidade de nada. ( . ) . Dessa maneira, isto é, indiretamen­
..

te, a própria liberdade se torna capaz de um gozo que não pode


ser chamado de felicidade porque ele não depende da intervenção
positiva de um sentimento, nem de beatitude, se queremos falar
com precisão, porque ela não implica uma independência total
quanto às inclinações e às necessidades - mesmo quando ele se
aproxima da beatitude pelo menos no que a determinação da von­
tade pode se libertar dessas influências - sendo, assim, análogo,
pelo menos quanto à sua origem, a esse sentimento de insuficiên­
cia em relação a si mesmo que podemos atribuir apenas ao Ser
supremo" (80).

Esta Selbstzufriedenheit se relaciona, por conseguinte à Lei. Mas, contra­


riamente ao que leva Lacan a pensar (no rastro de Freud), não pode se tratar
aqui da lei do supereu que rege o desejo do sujeito pelo sentimento de culpabi­
lidade, dito de outro modo, pela ameaça de uma puniçao. Pois a lei moral, em
Kant, diz "faça teu dever!", e não "faça teu dever, senão será punido". Seria
mais contraditório ainda que a lei se endereçasse então ao sujeito enquanto "pa­
tológico", pois aí a lei não seria mais moral, mas somente a lei hegeliana da pu­
nição, a lei da forca. A lei moral de Kant não pode, então, ser reduzida a esta
lei; ela, é, apesar do que Lacan sugere, a Lei.
E por isso que eu proponho inscrever em meu diagrama o índice desta sa­
tisfação negativa, deste contentamento de si pela letra S (Selbstzufriedenheit),
no lugar exato onde a Lei é significada no que ela interdita transformar os pos­
tulados da razão prática em móbil da ação.

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus - imortalidade da alma)

151
Bemard Baas
Poderíamos, entao, indagar aos psicanalistas se não seria oportuno inscre­
ver a letra J, como índice do Gozo (IV) - não, certamente, do gozo que o sujei­
to sadiano visa em seu fantasma (gozo ilusório de uma "satisfação positiva"),
mas deste gozo muito particular, sobre o qual Lacan nos assegura de que algu­
ma coisa dele pode ser atingida no tratamento - no lúgar exato em que a Lei é
significada, ao interditar o acesso do desejo à Coisa.

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
(Lei)

A quem s� indagasse sobre o que convém inscrever, como equivalente


desta espécie de benefício da Lei, no diagrama da razão pura teórica, lembraría­
mos o que Kant diz sobre a relação legítima do entendimento com as idéias
da razão enquanto idéias do incondicionado absoluto: a regulação, com a condi­
ção de não se inverter em constituição deconhecimentos, leva à faculdade de
conhecer a unidade sistemática que ela necessita e sem a qual ela ficaria falha.
Podemos então completar com o índice U, de unidade sistemática, o diagrama
da razão teórica.

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Deus)
u (cons � ão)

Faculdade de conhecer
= entendimento puro
(a priori)

3) Em cada uma das três estruturas assim expostas (razão teórica, razão
prática, desejo puro), está manifestada claramente a distinção entre, de uma
parte, uma faculdade a priori (ou seja, respectivamente: o entendimento, a von­
tade, a faculdade de desejar) e, de outra parte, os elementos empíricos, isto é,
a posteriori, aos quais se aplica esta faculdade (ou seja, respectivamente: o fenô­
meno, a ação empírica, o epitúmeno). Ora, para cada vez (no conhecimeno, na
ação moral e no desejo), trata-se de realizar a unidade do elemento a priori e
do elemento empírico, isto é, de realizar a unidade de dois elementos heterogê­
neos por natureza. Em que condição uma tal unidade, aparentemente impossí­
vel e entretanto necessária, é realizável? Como alguma coisa a priori pode se
associar, se unir a alguma coisa de empírico? Como reconduzir à unidade o que
não é da mesma natureza? Tal é o problema que Kant chama de problema da
síntese, problema que manifesta, em cada um dos três diagramas propostos, o
lugar por ora deixado vazio entre a faculdade a priori e o elemento a posteriori

152
O desejo puro

ao qual esta faculdade se reporta.


Sabemos que, na ordem do conhecimento (ou seja, para o caso da razão pura
em seu uso t.eórico) Kant resolve esse problema da síntese pela teoria do esque­
matismo. Sem retomar aqui tudo detalhadamente, lembremos simplesmente
que o esquema, enquanto ele é, não a imagem, mas a representação de um pro- ·
cedimento geral da imaginação produtora, é, por um lado homogêneo, à catego­
ria que fornece o entendimento puro e, de outro, homogêneo à fenomenalida­
de sensível: "esta representação intermediária deve ser pura e, entretanto, é ne­
cessário que ela seja por um lado intelectual e por outro sensível. Tal é o esque-
··

ma transcendental" (81).
Na Çrítica da razão prática, Kant reencontra igualmente esse problema da sínte­
se: como uma ação necessariamente empírica poderia proceder ao mesmo tem­
po da vontade autônoma, isto é, da liberdade transcendental do sujeito? Aqui
- como foi lembrado acima - Kant resolve o problema da síntese pela "típica"
do julgamento prático puro: a máxima da ação empírica, para ser moral deve
poder "sustentar a prova da forma de uma lei universal" (82), da qual a lei natu­
ral em geral é o tipo.
Podemos então completar os dois diagramas (da razão teórica e da razão práti­
ca) inscrevendo respectivamente o esquema e o tipo no lugar em que deve ser
realizada a síntese.

Faculdade de conhecer Vontade livre autônoma


=entendimento puro
(a priori) (a priori)

Síntese transcendental Universalização


ESQUEMA TIPO

'

I fenômeno ação empírica

Retornemos agora à lógica transcendental do desejo, tal como nós tenta­


mos segui-la no discurso de Lacan. A mesma questão da síntese se deixa ler aí:
qual será o elemento mediador que permite efetuar a síntese entre a faculda­
de a priori de desejar e o objeto de desejo? Para parafrasear Kant, eu diria que,
de um lado, é necessário que este elemento mediador seja homogêneo à facul­
dade de desejar a priori, enquanto esta faculdade procede do incondicionado
da Coisa; por outro lado, é necessário que ele seja homogêneo ao objeto que
se apresenta na sensibilidade, ou seja, ao que chamei aqui de epitúmeno. Mais
precisamente, este elemento mediador tem como função tornar desejável o obje­
to sensível, de modo que, em sua ausência, o objeto não seria pesejável, o dese­
jo seria sem objeto (estrutura exatamente equivalente àquela que Kant sugere:
intuição cega - pensamento vazio (83)). Enquanto ele articula o desejo a um
objeto para fazer deste objeto um epitúmeno, este elemento mediador pode ser
dito "causa do desejo". É necessário, então, distinguir o objeto desejado e o "ob­
jeto causa de desejo?"; esse último, sempre qualificado nesses termos por Lacan,

153
Bemard Baas
é simplesmente o objeto a.
O objeto a ocupa, assim, na estrutura do desejo, o lugar homólogo àquele
do esquema na estrutura do conhecimento. Assim como o esquema não está
de forma alguma NO objeto do conhecimento, mas constitui (isto é, causa) es­
te conhecimento, o objeto a nao pertence ao objeto desejado (epitúmeno), mas
constitui ("causa") o desejo deste objeto. E poderíamos aqui avocar tudo o que
na clínica psicanalítica apoia esta tese: o objeto a é sempre designado como ob­
jeto separado, desvinculado, seja a propósito do seio, das fezes, da voz ou do
olhar: "(... ) é entre o seio e a mae que passa o plano de separaçao que faz, do
seio, o objeto perdido em causa no desejo" (84).
Mas, se ele nao é redutível ao objeto desejado, o objeto a não é tampou­
co identificável ao sujeito do desejo. Ele só está articulado ao sujeito do dese­
jo no que esse sujeito é dividido. Esta divisão advém ao sujeito porque seu dese­
jo não procede de nada consistente, mas somente da pura falta da Coisa. É a
falta da Coisa que o barra, s (sujeito barrado do desejo), tal como ele se articu­
la (é articulado) ao objeto a no fantasma: s <> a (85). "Como lemos até aqui,
sabemos que o desejo, mais exatamente, se sustenta num fantasma do qual pe­
lo menos um pé está no Outro, e justamente aquele que conta, mesmo e sobre­
tudo se ele chega a mancar" (86).
Pois o pé manco (isto é, edipiano) do desejo não é movido simplesmente
pelo objeto empírico desejado, mas, de início e fundamentalmente, pela faculda­
de a priori de desejar, enquanto ela procede da falta absoluta da Coisa. É no
fantasma que o sujeito dividido reencontra, sem que ele o saiba, a causa de seu
desejo, ou seja, o objeto a. É por isso que Lacan prossegue: "o objeto (isto é,
o objeto a), nós mostramos na experiência freudiana que o objeto do desejo,
af onde ele apareceu nu, é apenas a escória de um fantasma onde o sujeito nao
volta de sua síncope" (87).
O fantasma torna possível a síntese da faculdade a priori de desejar e do
objeto empírico, síntese operada pelo objeto a, na sua articulação com o sujei­
to barrado do desejo. Trata-se, exatamente, do mesmo dispositivo do qual a sín­
tese transcendental na teoria kantiana do conhecimento procede. De fato, o es­
quema opera a síntese transcendental por intermédio de uma determinação a
priori do tempo, que é homogênea em relação à categoria e ao fenômeno (88).
Ora, o tempo, como "forma do sentido interno, isto é da instituição de nós mes­
mos" (89) constitui - se podemos dizer - a única realidade permanente do sujei­
to através da diversidade de suas representações. Mas, trata-se aí apenas de
uma realidade empírica a não ser como fenômeno: "mas todas essas questões
de ordem transcendental que ultrapassam a natureza não poderão jamais serem
resolvidas, mesmo quando a natureza nos fosse inteiramente desvelada, posto
que nao nos é dado observar nosso próprio espírito com uma outra intuiçao
que nao seja aquela de nosso próprio sentido íntimo. De fato, ( . ..) nós nao co­
nhecemos a nós mesmos a não ser pelo sentido íntimo, isto é, como fenômenos" (90).
Nós podetpos situar a necessidade de um sujeito transcendental,, nós pode­
mos até PENSA-LO como substância (isto é, a alma, o puro eu-penso), mas
nós nao podemos pretender CONHECE-LO, pqsto que a idéia de um substra­
to de todas as representações é apenas uma IDE/A, incognoscfvel enquanto tal.
O sujeito em sua pureza de sujeito (ou seja, como sujeito transcendental) nao
poderia se tomar a si mesmo como objeto de conhecimento. Eis o que estaría­
mos fundamentados a designar como a "refenda" kantiana do sujeito do conhe­
cimento. É a esse sujeito, sujeito dividido, sincopado que se articula o esque­
ma na síntese transcendental.

154
O desejo puro
Na ordem do conhecimento e na ordem do desejo, a unidade necessária
do a priori e do empírico é realizada pela articulação entre o sujeito dividido e
o objeto transcendental; respectivamente: ESQUEMA da síntese, objeto a do
fantasma.

INCONDICIONADO ABSOLUTO
(Coisa)
(Lei)

epitumeno

Kant dizia: "se todo nosso conhecimento começa COM a experiência, não
resulta daí que ele derive todo DA experiência" (91). De maneira homóloga,
nós podemos dizer agora: se é certo que não há desejo sem objeto desejado,
nao resulta daí que o desejo deriva do objeto desejado. O que torna possível
esse desejo, o que permite à faculdade de desejar se exercer, o que então "cau­
sa" verdadeiramente o desejo, é o objeto a, entendido estritamente como obje­
to transcendental. O objeto a é esquema do desejo.
Ele é o esquema muito mais do que tipo. Pois devemos notar aqui que,
com o objeto a, Lacan resolve talvez o que fazia problema para o julgamento
prático puro. Eu lhes reenvio aqui ao segundo parágrafo da "T(pica do julgamen­
to prático puro", onde Kant estabelece a impossibilidade de u m esquema da lei
para a vontade livre e, portanto, a necessidade do "tipo" desta lei (92). Ora, es­
ta necessidade da típica advém porque Kant não concebe outra liberdade além
daquela da vontade transcendental, com a exclusão do desejo sempre determina­
do empiricamente. A partir do momento em que, como sugere a meu ver a lei­
tura de Lacan, u ma faculdade de desejar a priori é concebida, então é possível
pensar a mediação (pela qual o desejo a priori se aplica ao objeto sensível) se­
gundo um procedimento não somente análogo, mas mesmo homólogo àquele
do esquematismo.
Constatamos simplesmente, para confirmar esta homologia entre o esque­
ma e o objeto a, que Lacan declara "incaptável" (93) o objeto a como causa
do desejo exatamente como Kant faz com o esquema enquanto transcendental
que, mesmo estando engajado necessariamente na relação do sujeito cognoscen­
te com a experiência, não é entretanto apresentável nesta experiência. O obje­
to a não é apresentável, ele não é figurável, a não ser no fantasma, e notada­
mente no fantasma sadiano (mas, justamente, trata-se do fantasma e não da ex­
periência) onde ele é o agente executor da Lei, o algoz insensível e apático, ou,

155
Bernard Baas
dito de outro modo (como vimos), o sujeito se esvanecendo ao não ser mais
que o agente.

QUADRO RECAPITULATIVO

KANT KANT
Critica da razão pura teórica Critica da razão pura prática

I INCONDICIONADO ABSOLUTO INCONDICIONADO ABSOLUTO


(Deus - imortalidade da alma)
L_ (Deus)
'---
- - -----,- ·

(regulação) j u (postulados) l S :Sm)tt)


Faculdade de conhecer vontade livre autônoma
= entendimento puro
(a prion) (a priori)

+
unive�Iização
tipo
]

LACAN
crítica do desejo puro

INCONDICIONADO ABSOL �
(Coisa)
_j

__

(Lei) J - (�o)

faculdade de desejar
(a prion)

***

O objeto a é o esquema do desejo. Poderíamos até reverter a fórmula: o


esquema é o objeto a do conhecimento. Uma tal reversão significaria que tudo,

156
O desejo puro
no sujeito, deve ser reportado ao desejo como processo de universalização. Que
se trate do conhecimento fenomênico (desejo de saber), da vontade autônoma
(desejo de bem fazer) ou do desejo epitumênico (desejo de objeto), o movimen­
to procede sempre de uma faculdade a priori ela própria regulada pela Lei do
incondicionado absoluto e aplicável à experiência apenas por intermédio de
um objeto transcendental (esquema, tipo, objeto a). Poderíamos até dizer (mas
isso exigiria seguramente um exame mais aprofundado) que não há outra facul­
dade a priorig além da faculdade de desejar. É por não ter reconhecido isso que
Kant teria sido a separar a razão teórica e razão prática. A teoria transcenden­
tal do desejo realizaria, assim, a unidade da crítica em torno do objeto a.
Af está uma observação que só podemos sustentar a título de sugestão
de pesquisa. Ela, aqui, está argumentada de maneira insuficiente. Mas ela auto­
riza pelo menos a hipótese que esta designação enigmáticade objeto a viria pa­
ra Lacan de seu encontro com Kant: objeto a... priori. A queda do priori, que
deixa apenas o a, não seria inexplicável. Pois, como concebemos agora, talvez,
é certo que Lacan acabou não escrevendo sua Crítica do desejo puro. Mas ele
não o fez. Como se (e segundo a própria lógica elaborada por Lacan) nesse cru­
zamento, nessa interseção, nesse recobrimento parcial do discurso psicanalítico
e do discurso filosófico, alguma coisa devesse cair: o próprio Kant, o filósofo
como tal, como questionamento transcendental. É igualmente notável que, em
parte alguma, Lacan, emprega essas expressões - "questionamento transcenden­
tal", "faculdade a priori de desejar" - , enquanto que sua pesquisa procede inti­
mamente disso. Ou muito mais, segundo a palavra do próprio Lacan, "ertima­
mente", de modo que poderíamos dizer, forçando um pouco as coisas, que Kant
é o objeto a do discurso de Lacan. Pois em toda esta lógica do desejo, é certa­
mente o trabalho inestimável de Lacan (94) que nós lemos; mas em todas as
etapas e, como diria ainda Lacan, nos "intervalos" de seu discurso, podemos
pontuar o questionamento transcendental. Lacan, certamente, mas, também, Kant.
Eu não o digo somente à guisa de "boutade". Pois me parece que alguém
poderia escrever um "Lacan com Kant".
Haveria, de fato, ainda muito a dizer, e notadamente do lado da estética.
É no Seminário sobre a Ética da psicanálise que Lacan aborda a questão do be­
lo e da sublimação. Da sublimação, conceito bastante confuso na obra de Freud,
Lacan dá essa definição na forma de um Witz soberbo: "a sublimação eleva o
objeto à dignidade de Coisa" (95).
Entendamos: à Ding-dade, à coisidade da Coisa, isto é, ao incondiciona­
do (este incondicionado do qual Kant diz que, postulando-p, nos é permitido
esperar que nos tornemos DIGNOS da felicidade). Reportemo-nos ao meu qua­
dro recapitulativo e compreenderemos facilmente o sentido desta definição: a
sublimação apresenta no sensível o índice doque é absolutamente inapresentá­
vel, absolutamente fora de figuração, isto é, a Coisa. É o "Deus sem figura", co­
mo diz Lacan (96), para fazer paralelo com a concepção kantiana do sublime
como apresentação daquilo mesmo que há de inapresentável, isto, justamente,
as idéias da razão. Nos dois casos, a sublimação - o sublime - indica a presença
sensível do incondicionado, isto é, do absolutamente inapresentável.
Mas o que é belo, o que é simplesmente belo e não sublime, tem precisa­
mente como efeito nos preservar da insustentável presença do inapresentável.
No Seminário sobre a Ética da psicanálise, evocando a ligação entre a ética e a
estética (ligação precedentemente estabelecida por Kant na Critica da faculda­
de de julgar), Lacan fala da beleza do objeto desejado como do que mantem o
sujeito desejante à distância da Coisa: "a verdadeira barreira que detém o sujei-

157
Bemard Baas

to diante do campo ioomioável do desejo radical ( ... ) é, para falar propriamen­


te, o fenômeno estético no que ele é identificável à experiência do belo - o be­
lo em sua radiação resplandecente, esse belo do qual se diz que é o esplendor
do verdadeiro. E evidentemente porque o verdadeiro não é muito agradável
de ver que o belo é, senão seu esplendor, pelo menos sua cobertura" (97). Di­
to de outro modo, a beleza nos mantém do lado da lei, isto é, do desejo articu­
lado ao objeto desejado (epitúmeno). Para apoiar sua demonstração, Lacan evo­
ca então a beleza de Antígona, lembrada assim em "Kant com Sade": ( ... ) o que
nós demonstramos na tragédia, da função da beleza: barreira extrema que inter­
dita o acesso a um horror fundamental. Que se evoque a Antígona de Sófocles,
no momento em que aí resplandece o ... (98). É provável que Lacan confunda
aqui a Antfgona da tragédia de Sófocles, isto é, a Antfgona filha de Édipo, com
uma outra Antfgona, irmã de Priã, cuja enorme beleza é justamente o que es­
tá em jogo em sua lenda. Mas isso não tem grande importância, posto que de
fato, na tragédia de Sófocles, Antígona é, de uma parte, confrontada à lei, na
ocasião figurada por Creonte, a lei da forca; a lei que pronuncia a culpabilida­
de e o castigo; em outro termos, a lei do supereu. Mas, desprezando a autorida­
de de Creonte, "não cedendo de seu desejo" (99), é à outra Lei, à Lei da Coisa
que tende o desejo de Antígona, à esta Lei cuja injunção a faz consentir com
seu destino: "viva entre os mortos e morta entre os vivos".
Na tragédia de Sófocles, no terceiro Estásimo, logo após o pronunciamen­
to da sentença de Creonte, o coro invoca Eros. É, aliás, a passagem a qual La­
can faz alusão no extrato citado acima. O canto do coro louva Eros, o desejo,
como o sedutor vitorioso de quem quer que sofra seu poder. Mas, alguns ver­
sos mais adiante, aparece o termo himéros (100), que os tradutores dão habitual­
mente como "desejo". Ora, "desejo" em grego se diz épithumia (é a palavra que
Platão usa). No texto de Sófocles, himéros não é o desejo que anima o sujeito
desejaote, mas ele designa o que emana, se destacando, dos olhos e das pálpe­
bras, da jovem desejada. O que os tradutores dão como "o desejo nascido dos
olhos da virgem prometida" ( 101), ou "a atração que irradia dos olhos da jovem
noiva" ( 102), ou ainda (na versão de Holderio tr�duzida por Lacoue-Labarthe):
"a súplica toda-poderosa das pálpebras da jovem noiva" (103). Essas nuances
de tradução bastam para que compreendamos que himéros que o coro sofocle­
-

siano diz então que está entre o número das grandes leis que reinam sobre o
mundo e que presidem toda aliança (poderíamos dizer, a toda síntese) - é o
olhar já destacado do objeto desejado, e que vem causar o desejo do sujeito de­
sejante. Himéros é o olhar como objeto a.
Mas Antígona - figura "apática" por excelência (isso não é de forma algu­
ma paradoxal: evoquemos tudo que opõe o caráter de Ismênia àquele de Antf­
gona! E comparemos o par sofoclesiano das duas irmãs, uma tristemente afeta­
da, a outra tragicamente voluntária, com aquele que Sade dá a versão de sua
crueza: Justine e J�liette! ) - precisamente porque mais nada poderia afetá-la
"patologicamente" para fazê-la retornar de sua decisão trágica, não se preocu­
pa mais em prestar a menor atenção ao canto do coro, nem aos lamentos do
corifeu. I;:la já está mais além desta lei pela qual o desejo acaba por nascer no
mundo. E à outra Lei que ela se destina, ao desejo sem objeto, ao desejo fora­
do-mundo que a consagra ao imundo. Ao querer, contar a lei mas também se­
gundo a Lei, se apropriar de seu desejo, ao querer se apropriar da origem mes­
ma de seu desejo, ao querer se apropriar do Mesmo do qual seu desejo proce­
de e que resta entretanto interdito a esse desejo, Antfgooa se condena a não
ser mais que sujeito petrificado, rochedo frio de onde brotam como nascentes,

158
O desejo puro
suas lágrimas, última figura do himéros agora caído e separado: ''ANTÍGONA
- já me contaram o deplorável fim da estrangeira de Frígia, da filha de Tântalo
que, sobre o cume do Sípilo, bruscamente sentiu sobre ela, tão tenaz como a
hera, a rocha subir e escravizá-la, tanto que agora, dissolvendo-se sob a água
do céu, tal como nos é relatado, ela se vê coberta de uma neve eterna e, desde
então, são os rochedos que as lágrimas de seus olhs inundam. Eis aí aquela com
quem mais me fez parecer o destino que me abate" (104).
Curiosa comparação, posto que Antígona já sabe que ela está condenada
a ser enclausurada viva. Mas é verdade que, em face da Coisa que vai surgir, e
na ausência de todo objeto desejado, não há mais necessidade de se preocupar
com qualquer adequação. Nada mais resta, a não ser figurar o objeto profunda­
mente faltante do desejo, ou, melhor, figurar a falta mesma do objeto, isto 'é,
o Mesmo como falta: nada mais resta, a não ser figurar a Coisa. E Antígona es­
colhe (escolhe?) esta figura de nuvem cuja brancura certamente pode imajar a
ausência de toda culpabilidade; mas esta imagem é ainda símbolo inspirado pe­
la lei que, aqui, não é mais colocada. Pois a nuvem, a nuvem eterna que o dese­
jo sem objeto de Antfgona aspira, é esta nuvem cuja brancura é a brancura
mesma do Iençoi.Ora, é também a brancura que designa Madam�" de Saint-An­
ge, desde o primeiro diálogo de A filosofia na alcova, brancura o e Eugénie, fu­
turo objeto desejado, mas neste momento ausente, faltante: "sua tez é de u ma
brancura deslumbrante... seus olhos de um negro de ébano e de um ardor!...
Oh! meu amigo, não é possível manter esses olhos lá" (105). Mas, quando Eugé­
nie foi instituída, ininterruptamente, como objeto desejado, sua brancura não
estará mais em questão. Ela não será mais figura do insustentável, mas posição
manipulada.
Certamente, a aproximação desses dois textos, aquele de Sófocles e o de
Sade, pode surpreender. Mas sua agudeza aparecerá, talvez, se nós pensarmos
no curioso exemplo de Platão: o desejo puro do prazer puro da pura brancura.
O que é esta pura brancura. O que é esta pura brancura, esta brancura - como
diz Platão - no ponto mais extremo do branco? É o branco sobre o qual nada
aparece, nenhum traço, nenhuma atração, nenhuma figura. É a brancura, para
falar propriamente, sublime (sub-limes_, log ' abaixo do limite mais além do
qual nada mais é figurável. A brancura sublime é a figuração do que há de infi­
gurável; e o desejo puro é o desejo desta brancura sublime.
O desejo puro é o desejo branco.

NOTAS

* Texto publicado originalmente em: ORNICAR? Revue du Champ Freudien, n2 43, outubro/dezembro,
1987, pp.56-91. As notas que se seguem foram divididas entre NOTAS DO TRADUTOR (NT) em al­
garismos romanos ou entrecolchetes) e NOTAS DO AUTOR Revisão de Sara Fux.

a) NOTAS DO TRADUTOR

I. Baas emprega, aqui, a palavra sujet, que admite, em francês, tanto o sentido de •sujeito", como aque­
le de "tema". Considerando que Lacan prefere falar de "sujeito ao inconsciente" do que de "sujei­
to do desejo" e que todo o esforço de Baas aqui é de sustentar uma "teoria transcendental do dese­
jo" que se construiria nas entrelinhas do texto lacaniano, preferi traduzir - neste momento apenas
- o termo sujei por "tema".

11. No original: "(... ) Lacan n'y faisant pas seulement office .de commentaÍeur de Kant, mais peut-être

159
Bernard Bass
auni de commetant" (p.59). Para manter o jogo de palavras do original entre commenlateur e com­
metant, preferi modificar um pouco a frase, ressaltando que Lacan não faz apenas um comentário
em relação a Kant, mas algo da ordem de um cometimento. A meu ver, com este jogo de palavras,
Baas nos indica que Lacan toma o texto não só para comentá-lo, mas também para realizar - atra­
vés dele e nele mesmo - um cometimento, um empreendimento de grande e de alto risco, uma lei­
tura diferente e muito particular do texto kantiano.

III. Em frnncês, lâche. Este termo, em Lacan, recebe uma conotação bastante especial, relacionada
tanto com "ne lâche pas le signifiant" ("não largue o significante"), como com o "covarde", aquele
que, se desapegando dos significantes que lhe representam, se furta ao desejo em nome de uma
vida que é muito mais uma sobrevivência, no sentido da expressão popular: "ele não vive, ele so­
brevive". Assim, ao lâche podemos contrnpor o corajoso, aquele que - como Antígona .- não se cur­
va aos limites que a sobrevivência impõe ao desejo e à própria vida concebida mais além do cir­
cuito dos bens.

IV. letra "J" é a inict ouissance, "gozo". Preferi manter a inicial francesa à nossa (G) devido ao
:Í dl{j
aspecto formal e mesmo matêmico que, a meu ver, esses esquemas de Baas têm.

b) NOTAS DO AUTOR

1. Philebe, de 31 b à 55c. Seguimos a tradução de A. Dies, Belles-Lettres.


2. lbid., 31b-33c.
3. Ibid., 33b.
4. Ibid., 52a-c.
5. Ibid,, 53a-b.
6. lbid., 53b: "Necessitamos de outro? Pois é certo que nós não temos necessidade de muitos exem­
plos deste tipo para nossa discussão sobre o tema do prazer: basta este. •
7. próprio Kant emprega esta expressão: "a faculdade de desejar" (nós retomaremos a isso em bre­
O
ve); mas a finalidade ética do empreendimento critico lhe faz reservar unicamente à vontade razoá­
vel a capacidade de uma determinação a priori.
8. É esse termo que Platão usa (Philebe, 35d); o desejo, epilhumia, se reporta a um objeto desejado,
epithumoumen011, que eu reduzo, para somplificar, em "epitúmeno" (arriscando o jogo de palavras
que alguns não deixarão escapar).
9. Metapsycho/ogie, trad. Laplanche e Pontalis, Gallimard, "Idées", p. 74.

10. lbid.
1 1 . "O problema econômico do mascqui•mo", Névrose, Psychose el Perversion, trad. Laplanche, PUF, p.295.
12. Le séminaire, livre XI, Senil, p. 247 (grifos nossos).
13. A citação precedente foi extraída da sessão �c 24 de junho de 1964; a redação de "Kant com Sa­
de" data de setembro de 1962. Cf. J. Lacan, Ecrits, Senil, p. 765-790. Daqui em diante, escrevere­
mos KS e acrescentaremos - para uma precisão maior - o número do parágrafo.
14. KS, p. 768, parg. 4.
15. Critique de la pratique (daqui em diante: C.RPtque), Prefácio (nota I do parg. 10), trnd. Gibelin,
Vriu, p.20-21. Cf. também: "Anlhropologie d'un point de vue pragmatique, primeira parte, livro Ill,
"Da faculdade de desejar", trad. M. Foucault, Vriu, p. 109: "o desejo é a autodeterminação do po­
der de um sujeito pela representação de um fato futuro, que seria o efeito desse poder".
16. F011dements de la Métaphysique des moeurs (Daqui em diante: FM.M.), primeira seção, trad. Del-
bos, Delagrave, p.98.
17. lbid., p. 99.
18. lbid.
19. C.RPtque, primeirn parte, livro I, capítulo 2, p. 76.
20. Cf. F.MM., p. 93-97.
21. lbid., p. 157-158. Cf. também, in C.RPtque, primeira parte, livro I, capítulo I (p.46), o teorema
IV, onde Kant caracteriza a autonomia da vontade pela "independência em relação a toda matéria
da lei (isto é, de todo objeto desejado)".
22. F.M.M., p. 137.
23. lbid., p. 165.
24. KS, p. 767, parg. 5. Cf. C.RPtque, primeira parte, livro I, capítulo I, escólio do teorema III, p. 40.
25. Métaphysique des moeurs (Doctrine de la Vertu), Introdução, parágrafo XVII, trad. Philonenko,
Vriu, p. 81. O texto precisa: "esta apatia moral consiste em que os sentimentos nascidos das impres­
sões sensíveis perdem sua influência sobre o sentimento moral à medida em que o respeito pela
lei toma-se mais potente que todos eles". Cf. também: Anlhopologie. p. 1 1 1 : "a apatia, quando a
natureza gratifica com ela uma alma suficientemente foréte, é uma fleuma bem-aventurada (no

1 60
O desejo purv
sentido moral). Não se exatament' por isso um sabio; mas da natureza se sustenta este favor de
poder tomá-lo mais facilmente do que qualquer outro".
26. KS, p. 770, parg. 4.
27. H. Arendt, EicJunann à Jerusalém (Rapport sur la banalité du mal), cap. VIII, Gallimard, p. 152-155.
28. Hans Frank: Die Technik des Staates, 1942, p. 15-16, citado por H. Arendt, op. cit, p. 153.
29. H. Arendt, op. cit., 154.
30. Sade, La philosophie dans le boudoir, Gallimard, "Folio", p. 107-108 (grifos nossos).
31. Ibid., p.257.
32. M. Horkheimer e Th. Adorno, La dialectique de la raison (publicado em 1947). trad. Kaufhoz,
Gallimard, "Te!", p. 92-127.
33. Ibid., p.97.
34. Maurice Blanchot, "La raison de Sade", Lautréamont et Sade, Minuit (1963), p. 1549.
35. Ibid., p. 45 e 46.
36. KS, p. 768-769.
37. KS, p. 770, parg. 2.
38. Cf. Kant, Metaphysique des moeurs (Doctrine du Droit), parágrafo 24, citado por Walter Benjamin,
"AS AFINIDADES ELETIVAS de Goethe", trad. M. de Gandillac, Essais I, Denoel-Gonthier, p.
28 e 29.
39. KS, p. 770, parg. 4.
40. Ibid., parg. 7.
41. Cf. KS, p. 773, parg. 3 e p. 774, parg. 5 e 6.
42. Cf. C.R.Ptque, primeira .parte, livro I, cap. 3, p. 91 -92: "a humilhação do lado sensível é uma e:ral-
tação da estima moral do lado intelectual".
43. KS, p. 773, parg. 9.
44. Ibid., parg. 4.
45. Não poderíamos determinar univocamente o que Lacan, nesta ocasião, chama de "o Outro". Aqui,
o Outro não se reduz ao "tesouro de significantes, pois ele designa também a alteralidade de uma
instância que, para não ser sujeito, mantém, todavia lugar de sujeito para esse "mesmo" diante do
qual ele surge como "Outro". Por conseguinte, não se trata simplesmente desse "outro em nós" do
qual Valéry fala a propósito da linguagem. Não é exatamente, tampouco, o Outro sob a espécie
do próximo (do Nebenmensch do qual Freud fala). Mas o Outro é pelo menos um substituto-de­
sujeito susceptível de se investir num outro. Sobre esta questão do Outro em Lacan, cf. nosso estu­
do: "A comissura do sei", Descanes et les fondements de la psychanalyse, a ser publicado em breve
por Osiris-Navarin. [N.T.: Tal estudo já está publicado: BAAS, B. e ZALOSZYC, A. Descanes et
les fondements de la psychanalyse. Paris, 1988].
46. KS, p. 770, parg. 7-8.
47. Ibid., parg. 5.
48. Ibid., parg. 6.
49. Ibid., parg. 9.
50. Não encontramos, no texto de Kant, nenhuma retórica da "consciência m<!ral" (caso contrário, te­
ríamos em alemão Gewissen e não Bewusstsein), nem da "voz do dever". E na "Profissão de fé do
vigário saboiano" que retine o famoso: "Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal e celes­
te voz!" (Rousseau, LÉmile, Gamier-Flammarion, p. 378). Em Kant, nada disso. Mesmo seu liris­
mo ocasional permanece estritamente coerente com o frio rigor da Analítica: "Oh dever! Grande
e sublime nome, não compreendes em ti nada que agrade, nada que se insinue pela lisonja, mas
exiges a submissão". C.R.Ptque, p. 98.
51. Cf. KS, p. 774, parg. 3.
52. Cf. KS, p. 765-766.
53. KS, p. 787, parg. 9.
54. Freud, "O eu e o isso", cap. V, Essais de psychanalyse, trad. Jankélévich, Payot, p. 225.
55. KS, p. 787 parg. 6 (grifos nossos).
56. KS, p. 781, parg. 4.
57. Cf. C.R.Ptque, primeira parte, livro I, cap. I, p. 43-44.
58. KS, p. 782, parg. 3.
59. Lacan, Le séminaire, livro VII, L 'élhique de la psychanalyse, 1959-1960, Se ui!, 1986.
60. Freud, "projeto de uma psicologia científica", trad. Berman, La naissance de la psychanalyse, PUF,
p. 315-369.
61. Le séminaire, livro VII, p. 128.
62. Ibid. , p. 67.
63. Ibid., p. 142 (grifos nossos).
64. Cf. A Juranville: Lacan et la philosophie. PUF, p. 39.
65. Le séminaire, livro VII, p. 143.
66. KS, p. 782, parg. 3.
67. Cf. Hegel, Phénomenologie de l'esprit, trad. Hyppolite, Aubier, tomo 11, p. 30 e ss. Cf. também Esthé-

1 61
Bemard Bass
tique, "A poesia", 111 C, Aubier, p. 406-407.
68. Cf., principalmente, Phénomenologie, tomo I, p. 343 e ss. ("A razão legisladora") e p. 348 e ss. ("A
razio examinando as leis").
69. C!. Principes de la philosophie du ároi1, principalmente parg. 135.
70. La:can, aliás, emprega essa expressio em "A significação do falo", Écrils, p. 685 e ss.
71. Cf. Cririque de la rison pure (daqui em diante, C.R.Pure), "Apêndice à dialética transcendental:
douso regulador das idéias da razão pura", trad Bami, Gamier-Fiammarion, p. 505.
72. KS, p. 774, parg. 1 .
73. Cf. C.R.Pure, "dialética transcendental", livro I , capítulo 3, 2 ! seção: "Do ideal transcendental (pro-
tótipo transcendental)", p. 463 e ss.
74. KS, p. 790, parg. 7.
75. C.R.Prque, primeira parte, livro 11, cap. 2, p. 136 e ss.
76. lbid. . p. 14,.3.
77. Cf. La religion dans les limites de la simple rnison.
78. C.R.Prque, p. 139-140.
79. /bid. , p. 143 (grifos nossos).
80. lbid., p. 132 e 133.
81. C.R.Pure, "Analítica dos princípios", cap. I, "Do esquematismo dos conceitos puros do entendimen­
to", p. 188.
82. C.R.Prque, primeira parte, livro I, cap. 2, "Típica do julgamento prático puro", p. 83.
83. C.R.Pure, "Introdução à lógica transcendental", p. 110: "sem a sensibilidade, nenhum objeto nos
seria dado; sem o entendimento, nenhum seria.11ensado. Os pensamentos sem matéria são vazios;
as intuições sem conceitos são cegas. É tão necessário tomar os conceitos sensíveis (isto é, acres­
centar aí o objeto dado na intuição), quanto tomar as intuições inteligíveis (isto é, submetê-las
aos conceitos). Essas duas faculdades ou capacidades não poderiam tampouco trocar suas funções.
O entendimento não pode ter intuição de nada, nem os sentidos podem pensar algo. O conheci­
mep.to só pode resultar da união delas".
84. "Posição do inconsciente", Écrirs, p. 848.
85. Cf. p. 774, parg. 5-7 - C!. também, no "Nota sobre o relato de Daniel Lagache", Écrirs, p. 656:
"por conseguinte, ainda que seja necessário que o eu-objeto se esforce para afastar o eu-objeto
para se fazer TRANSCENDENTE, verdadeiro, senão o bom sujeito, o sujeito do desejo, tanto na
iluminação do fantasma, como na sua morada não-ciente, não é outro que a Coisa, que é, com ele
mesmo, o mais próximo e o que mais lhe escapa".
86. KS, p. 780, parg. 7.
87. lbid., parg.. 8. Cf. também as observações sobre a divisão do sl!jeito na sua relação com o agalnuz
como objeto a, "Subversão do sujeito na dialética do desejo", Ecrils, p. 825.
88. Cf. C.R.Pure, "Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento", p. 188.
89. C.R.Pure, "Estética transcendental", 2! seção, parg. 6B, p. 91.
90. C.R.Pure, "Nota sobre a anfibologia dos conceitos da reflexão", p. 291.
91. C.R.Pure, Introdução, p. 57.
92. C!. C.R.Prque, p. 82
93. KS, p. 780, parg. 10.
94. Trabalho, de fato, inestimável Mas também frequentemente não estimado. De início, por muitos
daqueles que reclamam disso abertamente. Entretanto, poderíamos dizer da teoria lacaniana do
desejo exatamente a mesma coisa que o que Kant diz a propósito da típica: ela nos preserva, ou
pelo menos deveria nos preservar, do misticismo e do empirismo (Cf. C.R.Prque, "Típica do julga­
mento prático puro", p. 83-84). Pois a psicanálise também tem os seus místicos e seus empiristas.
Lacan faz, aí, as vezes de "cúmulo", posto que ele só é evocado para cumular o vazio teórico de
um discurso que se ompraz no mito da origem ou na experiência clínica. De fato, é o cúmulo!
95. Le séminaire, livre VII, p. 133.
96. KS, p. 773, parg. 1 .
97. Cf. L e séminaire, livre VII, p . 256 (cf. também p . 342-345).
98. KS, p. 775-776.
99. Le séminaire, livro VII, p. 370 - Cf., sobre esse ponto preciso, o comentário de A Zaloszyc: "Infer­
no do desejo", Lenre m=elle de I'ECF, n9 44, pp. 1 1 -13. Eu fui pré-convidado e incitado a reali­
zar este estudo, que apresentei no seu seminário, em 5 de junho de 1986.
100. Sófocles, Anligone, verso 798.
101. Tradução P. Mazon, Gallimard, "Folio", p. 121.
102 Tradução R. Pignarre, ed. Garnier-Flammarion, p. 88.
103. Holderlin, L 'Anligone de Sophocle, trad. Ph. Lacoue-Labarthe, Ch. Bourgeois, p. 95.
104. Versos 823-832, trad Mazon, op. cir. , p. 122-123.
105. Sade, op. ciL , p. 47.

1 62
Jo Attie

TRAÇO PER VERSO E SUBLIMAÇÃO

Tradução de Maria Luiza Motta Miranda

Um verdadeiro monstro mítico: muito freqüentemente, este qualificativo


veio designar o termo sublimação que devemos a Freud. Não é este o lugar de
assinalar as acepções que lhe foram dadas. Não obstante, observo o fato de que,
em 1979, a Revista Francesa de Psicanálise consagrou um número especial so­
bre a sublimação. Esta tentativa de um reajustamento preciso é aberta por uma
questão embaraçosa: "A sublimação é um conceito?" pergunta-se Jean Gilbert,
que introduz este número ao qual ele responde, "certamente que não", e Diatki­
ne ao propor abandonar o termo. Dentre os impasses gerais quanto a este pro­
cesso, apenas os kleinianos lhe deram uma grande importância. Hanna Sega!
ostenta mesmo a ambição, graças à contribuição de Melanie Klein, de ir mais
longe que Freud na elucidação do mistério da criação. Sua tese volta a susten­
tar que a sublimação é um trabalho de luto, a visada sendo desejo de reparação
e recriaçao do corpo da mãe e do eu, estando uma tal visada fundada no con­
ceito de posição depressiva ( 1).
A confusão que reinou ao redor deste termo é, em parte, fundada sobre
uma lenda: a do ensaio que Freud teria escrito sobre a sublimação e que fazia
parte dos 12 escritos de metapsicologia de 1915. Freud havia destruído 6 desses
12 escritos, entre esses aquele da sublimação. E, de repente, a verdadeira tese
de Freud sobre a sublimação nos faltaria para sempre. É o que eu qualifico de
lenda porque, na origem, era uma hipótese de Strachey que, absolutamente,
não se sustentou. A correspondência de Freud com Putnam vem confirmar que
a sublimação não fazia, de modo algum, parte das preocupações de Freud, no
verão de 1915.
Isto posto, todo leitor de Freud sabe muito bem que a referência à subli­
mação é um fato constante em toda a sua obra. E isto desde a redação do ca­
so Dora, em torno de 190 1 , até o Esboço de Psicanálise de 1938. Desde então,
é o que basta para resgatar sua tese sobre a sublimação. Ora, isso se apresenta,
à primeira vista, sob duas facetas: de um lado, ela ressalta da clínica sob a for­
ma afixada por Freud de "formação reativa". Assim, o pudor, o desgosto, a ter­
nura, e, mesmo, a moral são sublimações, isto é, defesas contra a pulsão. Por
outro lado, a sublimação realça uma constatação de Freud, é um fato de civiliza­
ção. Dela, os produtos e valores mais elevados ressaltam da sublimação. Mais
precisamente, acrescenta Freud em 1915, esses produtos constituem um dos
quatro destinos da pulsão - formulação absolutamente capital.
Portanto, de um lado, a sublimação é uma defesa contra a pulsão; do ou­
tro , é um produto da pulsão. O que nos leva a dizer que, de um lado, temos
um sintoma, do outro, uma obra de arte. Aquilo com que se joga entre um e
outro caso é que, diremos com Lacan, se trata do estudo do sujeito, ou seja,
do modo de satisfação da pulsão. É este laço intrínseco à pÍllsão que justifica que
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.I63-166
lo Attie
se faça da sublimação um conceito. Porque, ocorre, af, alguma coisa absoluta­
mente particular. O particular na ocorrência é que um ser humano não queira
fazer outra coisa, ao longo de sua vida, do que escurecer folhas brancas ou bor­
rar telas, por exemplo. E a qestão colocada é saber como e porque isto se tor­
na possível.
O artista, nos diz Freud, não pode se acomodar em renunciar à satisfação
que exige, de início, a realidade. Em lugar, então, de embaraçar-se na sua rela­
ção com a realidade, como o faz o neurótico , simplesmente, se desvia disso. E
este desvio lhe é possível porque ele pode dar "forma às suas fantasias para fa­
zê-Ias real.iêades de um novo tipo, que acompanham os homens bem de perto
como imagens muito preciosas da realidade" (2).
Temos aí uma tese de conseqüências infinitas.
Em um primeiro tempo, Lacan vai retomá-la a partir do objeto e da coi­
sa. O objeto da fantasia, que é um objeto da pulsão, o artista sabe elevá-lo à
dignidade da coisa. Mas, a coisa, das Ding, imediatamente Lacan o precisa, é o
lugar da Trieb, da pulsao.
Em um segundo tempo, avançado no Seminário XI em suas primeiras ela­
borações sobre a teoria da pulsão, Lacan se detém sobre uma particularidade
da mesma. Quando ocorre a sublimação, a pulsão encontra sua satisfação, ain­
da que ela seja inibida quanto ao alvo. E isto se produz - este é um ponto abso­
lutamente fundamental - sem recalque.
Estas considerações introdutórias, que eu não poderia deixar de retomar,
nos dão os meios de articular alguma coisa sobre a sublimação neste Encontro
consagrado aos traços de perversão. Na neurose, a pulsão encontra, também,
uma satisfação significante. Ela a encontra no sintoma, o que custa muito caro
ao sujeito, por causa do recalque. Sobre o que recai o recalque? Qualquer que
seja o trauma sexual do início, qual�uer que seja a neurose, a condição primei­
ra do recalque recai sobre uma significação do falo, o estatuto do Nome-do-Pai.
Então, o que isso pode querer dizer é que, na sublimação, a pulsao encon­
tra sua satisfação sem recalque?
Uma primeira coisa muito importante de realçar é que o sujeito da subli­
mação não tem que passar pela significação fálica. Seu desejo, para funcionar
de uma maneira mais ou menos equilibrada, não tem que encontrar sua força
do lado do falo.
Isto quer dizer que estamos diante de um perverso ou de um psicótico?
O que não é de todo obrigado. A única coisa que Freud nos diz que é o ponto
de partida da atividade do artista é a sua fantasia, o que opõe, inteiramente,
ao neurótico. Aquele que está antes embaraçado, quando não inibido ou parali­
sado pelo sintoma. Para tirá-lo disso, é preciso transformar seu sintoma em sin­
toma analftico. Quer dizer, é necessário complementá-lo por um sujeito supos­
to saber. De onde, talvez, se as coisas se passam bem, ele poderia ordenar so­
bre sua fantasia - o que não é, de forma alguma, o caso do artista que, mesmo
quando tem a necessidade de recorrer ao analista, jamais precisa, pela sua ativi­
dade
- artística, de um sujeito suposto saber, no sentido analítico do termo.
O que permite, então, ao artista poder preceder a partir de sua fantasia?
Eu tinha ressaltado u ma primeira condição para isso: a ausência do recal­
que e a referência à sifgnificação fálica. A segunda condição, também ela funda­
mental, e intrinsecamente ligada à primeira, é uma certa experiência do real.
"Não há, aliás, outro entrada para o sujeito no real, senão a fantasia". (3)
A experiência do real faz, em geral, trauma para o neurótico. Para o psicó­
tico, ela é, sob a forma de alucinações, momento de desencadeamento. Para o

1 64
Traço perverso e sublimação
perverso, ela assinala uma estrutura: é u m desmentido quanto à castração da
mãe e a fixação do sujeito ao seu gozo - vontade de gozo, dirá Lacan.
A experiência do real do sujeito da sublimação lhe traz uma outra certe­
za. Uma certeza, fundada em sua fantasia, de uma visão do mundo, quer dizer,
de u ma verdade que ele deve transmitir pela sua arte. Um exemplo paradigmá­
tico de uma tal experiência do real nós encontramos nas epifanias de Joyce. Jac­
ques Aubert, em sua introdução à obra de Joyce na Pleiade, justamente com
Catherine Millot em "Joyce com Lacan", a explicitam muito bem. As condições
não se prestam aqui a longas demonstrações, mas, posso assegurar-lhes que de
tais experiências encontramos o testemunho em toda sublimação exitosa.
Eu não acrescentaria, senão, um único exemplo às epifanias de Joyce. É
aquele de Kandinsk descobrindo a abstração na pintura. Voltando num fim de
tarde, ao crepúsculo, a seu atelier, ele fica sob o "charme de uma visão inesperada".
"Vejo, subitamente, um quadro de uma beleza indescritível, impregnado
de um grande ardor interior. De início, eu fiquei muito espantado, dirigindo­
me, rapidamente, em seguida, na direção deste quadro misterioso sobre o qual
eu não via, senão, formas e cores e cujo tema era incompreensível. Mas, de lo­
go, encontrei a palavra do enigma: era um dos meus meus quadros que estava
apoiado no muro, de lado ( ... ) agora, eu estava fixado, o objeto prejudicava os
meus quadros. Um abismo terrível, uma profusão de questões de todas as sor­
tes, em que uma responsabilidade em jogo se apresentava a mim. E a mais im­
portante: o que é que deve substituir o objeto faltante?" (4)
Tal é a experiência inicial, na qual Kandinsky reencontrou, no exterior, a
pintura que ele já trazia consigo. E ei-lo aí, lançado em uma revolução radical
quanto à tradição pictórica.
A que remete esta experiência, este toque de real, como digo em meu ar­
gumento?
Bem, o sujeito faz a experiência da face real do significante promovido à
condição de objeto com o que isso implica de gozo, donde, a certeza que se se­
gue. E se, aqui, o artista disto pode fazer alguma coisa, é que o significante não
o reenvia mais uma vez a uma significação fálica. O significante, ou o objeto vis­
to, tratam aqui, distintamente, de seu valor fálico.
Assim, a sublimação aparece como uma resposta do real, resposta do su­
jeito ao real da fantasia.
Dentro dessa ótica, o neurótico é o menos dotado da sublimação. O per­
verso, devido à sua liberdade de ação quanto à sua fantasia, pode jogar melhor
com os significantes e seu deslocamento. A foraclusão do Nome-do-Pai e da sig­
nificação fálica obriga o psicótico a elaborar um delírio, ou a criar uma obra,
demonstrando-nos, por aí, em qual lugar vem essa criação. Quer dizer, no lugar
do objeto do fenômeno elementar, que se manifesta por causa da foraclusão
da significação fálica.
Neste encontro consagrado aos traços de perversão, podemos dizer que
toda obra contém em si uma fantasia, ou seja, um traço perverso. Todavia, ler
a obra nesta ótica não parece ser o interesse de Lacan. Tomá-la como um sinto­
ma parece-lhe, de outro modo, mais consequente. Mas, não é mais o mesmo
sintoma que habita na formação reativa. Antes, há, af, um sintoma em sua es­
sência de sintoma, na medida em que ele não é interpretado. Ele é tomado co­
mo sendo a resposta do sujeito à sua fantasia. Resposta em que as coordenadas
imaginárias, simbólicas e reais de uma existência são, mais ou menos, mistura­
das ou, mais ou menos, ordenadas. Esta resposta pode levar alguns ao psicanalis­
ta, outros em direção a uma produção de objetos socialmente valorizados, nos

1 65
Jo Attie
diz Freud.
Uma tal perspectiva dada à sublimação permite sublinhar todo o alcance
da formulação de Freud: é um destino particular da pulsao. É o funcionamen­
to propriamente dito da pulsao. Ela nao se destaca nem do recalcamento, nem
do desmentido perverso, nem da foraclusao. Ela deixa, de uma só vez, a parte
desigual a cada um de poder aí recorrer.
Três observações para concluir:
Primeira - De início, o único critério que podemos reter é a resposta do
sujeito a seu real, através de um objeto, qualquer que seja o valor do objeto
produzido. Do lado dos artistas, Lacan nao desdenha, de modo algum, todos
"artesãos, fabricantes de vestidos ou de chapéus, os criadores de formas imagi­
nárias" (5).
Segunda - O homem de ciência, por excelência, nao está atravancado pe­
lo estatuto do sujeito e da significação fálica. Ele é, antes, o mais obcecado e
convencido pela idéia da existência de um saber no real. Acontece-lhe escrever
as bordas deste real, do mesmo modo que as sublimações, que sempre proce- ·

dem do real da fantasia.


Terceira - Restam os psicanalistas. O que é a obra de Freud senao uma
sublimação que vem se inscrever no quadro da ciência?
Em que consiste a transferência de trabalho de Lacan ao texto de Freud,
senao em sublimação?
Nao sao mais do que dois grandes exemplos para nós, portanto, a cada
analista, na medida em que ele alcance exito em positivar essa significação fáli­
ca, na medida de sua referenciaçao em relaçao ao objeto, em produzir o saber
que ele pode elaborar.
Do mesmo modo, as sublimações possíveis. Tarefa de cada um de nós: sa­
ber af responder.

Revisão de Sara Fux:

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Sega!, Hanna Psychanalyseet esthélique - 1952, Repris dans Revue Française de Psychanalyse S -6, 1 979.

2. Freud, S. . Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mentaL Standard Ed. voL Xll pg. 284.
3. Lacan, J. Compte rentlu de Logique du fantasma - Ornicar 29.4. Kandinsky Regards sur le passé -
· -

p. 109-110. Hermann Editeurs.


S. Lacan, J. - Seminário 7 - A ética da psicanálise - pg. 126.

166
A lexandre Stevens

UMA CARTA

Tradução de Manoel B. da Motta

Partirei hoje de u m pequeno fragmento clínico. Trata-se de u m caso céle­


bre: O do Marquês de Sade. É portanto um caso de literatura. Já foi no entan­
to elevado à dignidade de caso clfnico pelo estudo que dele fez Lacan no seu
Kant com Sade.
Os textos de Sade nao dão apenas à perversão suas cartas de nobreza,
mas por sua grande precisao clínica permitem desdobrar em todos os seus tra­
ços a estrutura perversa. Seu interesse não se limita ao estabelecimento de uma
lista das perversões - sabe-se a fonte que constitui "Os 120 dias" por Havelock
Ellis. Sua precisao clfnica deve-se principalmente ao rigor com o qual Sade sus­
tenta a máxima que Lacan enuncia no estilo de Kant: Tenho o direito de gozar
de teu corpo, pode me dizer alguém, e este direito, eu o exercerei, sem que ne­
nhum limite me detenha no capricho das exações que eu tenha o gosto de nele
satisfazer.
É este rigor que eu gostaria de fazê-los ver hoje a partir de um fragmen­
to de uma carta a Madame de Sade. Esta carta foi escrita em 1783 e Sade está
então há seis anos internado por uma lettre de cachet (1) no torreao de Vincennes.
É necessário supor que ele acaba de receber de sua mulher a proposição
de se ocupar de sua roupa. Transcrevo primeiro inteiramente a passagem da
carta de Sade. Vocês encontrarão o texto completo no volume das Cartas publi­
cadas em 1940 por Gilbert Lely com o tftulo: L 'Aigle, Mademoiselle. Trata-se
af da carta nQ XIX:
"Encantadora criatura, você quer minha roupa suja, minha velha roupa.
Você sabe que é uma delicadeza acabada? Você vê como eu sinto o valor das
coisas. Escuta, meu anjo, tenho toda a vontade do mundo de satisfazê-la quan­
to a isto, porque você sabe que eu respeito os gostos, as fantasias: por mais bar­
rocas que sejam, eu as acho todas respeitáveis, e porque não somos seus senho­
res, e porque a mais singular e a mais bizarra de todas, bem analisada, remon­
ta sempre a um princípio de delicadeza. Eu me encarrego de prová-lo quando
se quiser: você sabe que ninguém analisa as coisas como eu. Tenho portanto,
meu xuxuzinho, toda a vontade do mundo de satisfazê-la; no entanto eu acredi­
taria fazer uma vilania em não dar minha velha roupa ao homem que serve.
Eu o fiz e o farei sempre; mas você pode se dirigir a ele; já lhe disse uma pala­
vra, discretamente, como você presume. Ele me entendeu, e prometeu-me reco­
lhê-la para você.
Assim, meu peitinho, você se dirigirá a e le , e você será satisfeita."
Examinemos passo a passo como a máxima sadiana, tal como Lacan a de­
duziu, está em operação neste fragmento.
"Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode me dizer alguém - eis o co­
meço da máxima. Na Carta, este corpo do qual pode gozar alguém se reduz a
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, nA/5, j an-dez 1989 p. 1 67-170
Alexandre Stevens
m objeto, a roupa suja, que se pode situar na série metonímica dos dejetos do corpo.
É necessário notar logo a posição de Sade: ele se põe no lugar deste obje­
to e propOe seu corpo sob a forma da roupa suja - "Encantadora criatura, você
quer minha roupa suja". Notaremos esta posição na qual ele se pOe com a aju­
da do termo de Lacan: a.
O Marquês anuncia a máxima que dá direito a Madame de Sade dele se
prevalecer em benefício do gozo. Estrutural, a máxima divide assim o sujeito
numa relação simétrica com o parceiro - A frase que se segue imediatamente
a passagem que eu citei propõe a condição de pagar com a mesma moeda - que
não é reciprocidade: "Ah! justo céu se, por um caminho tão curto tão fácil, fos­
se-me possfvel obter uma grande quantidade de coisas suas. ( ... )".
Sade, portanto, põe-se no lugar deste objeto. É necessário no presente
ressaltar a configuração desta posição. Ele põe-se aí para sustentar, ou mais exa­
tamente para pôr-se a serviço do que ele considera como uma lei universal. É
o que ele designa nesta passagem sob o termo "princípio de delicadeza", ao
qual se remete "os gostos" e "as fantasias" - eu cito "(...). você sabe que eu res­
peito os gostos, as fantasias: por mais barrocas que sejam, eu as acho todas res­
peitáveis ( ... ) ". Poder-se-ia acrescentar aqui as "fantasias", as perversões, os feti­
chismos ... ". E �le dá duas razões a este respeito. A primeira é: porque não se é
seu senhor, pequena frase onde se conota sua colocação a serviço da lei dos "gos­
tos" e das "fantasias". A segunda razão quanto a ela apela para um princípio
que dá razão destes gostos: "porque a mais singular e a mais bizarra de todas,
bem analisada, remonta sempre a um princípio de delicadeza não é nada mais
do que a Lei da Natureza, deus obscuro da obra sadiana.
Sade se propõe portanto como objeto, prestes a satisfazer Madame, res­
peitando o princípio dos gostos e das fantasias. A demanda, não está tomada
no enigma do desejo, mas ela é imaginarizada como Vontade de Gozo. Sade
está em posição de objeto que se coloca de u�na vontade de gozo suposta ao
parceiro (outro) mas também logicamente deduzida deste outro absoluto, prin­
cípio de delicadeza, exigência da natureza. Esta vontade, que notamos ''V" é
chamada aliás por Sade em "A Filosofia da Alcova" notadamente, a "h�i da natu­
reza". Lacan nos maternas conclui no seu Escrito "Kant com Sade", nota isto
da maneira seguinte: a - V
Poder-se-ia seguramente objetar que há um tom de chiste nesta carta. É
verdade. De qualquer maneira fica que ela é um pequeno materna da perversão.
A graça é acentuada pela imaginarização furiosa, mas transforma-se logo no
que não é mais de maneira alguma engraçada. Basta considerar a lista dos pe­
quenos nomes que ornam esta carta ("meu anjo", meu xuxuzinho, e outros bem
mais originais) para se aperceber quão estreita é a margem entre os nomes ter­
nos e a obscenidade, e mesmo a injúria: por vezes "minha rainha", "alma de mi­
nha alma", "imagem da divindade", a outros meu pequeno totó "minha filhinha",
ela se torna mesmo "porco fresco de meus pensamentos". É necessário notar
também, presente nesta carta, seu delírio das cifras, que não nos parece absolu­
tamente divertido.
O que visa a manobra perversa? Se ela submete a ser o objeto de uma
Vontade de Gozo no Outro, ela não deixa de ser aqui a de Sade e não de Mada­
me. Qual é o efeito desta manobra. Pois bem pdemos deduzf-la perfeitamente
desta passagem:
1 - Ele fez de Madame sua cúmplice na perversão ("você também não é!") pro­
pondo se, ele como cúmplice da sua, pela inversão dos sujeitos. Ele a fez per­
versa ("você quer minha roupa"). Fazer dela sua cúmplice, é de fato fazer dela

1 68
Uma carta
um sujeito de desejo, cujo desejo está preso na sua armadilha;
2 - Mas mais ainda pode-se pensar que Madame de Sade, com � leitura desta

carta, deve ter alguma vacilaçao subjetiva. Ele nao apenas lhe diz - "você é per­
versa", mas ainda "eu desejo satisfazê-la mas nao posso sem faltar a honra (com
o que ele pOe a honra de seu lado"), mas no entanto disse quanto a isso uma
palavra a meu testa de ferro que, portanto, conhece seu gosto pela coisa e vai
satisfazê-la em meu lugar." A vacilaçao subjetiva, o malestar, e mesmo a angús­
tia que deve ter experimentado Madame de Sade (suponhamo-lo ao menos),
eis o que pode-se escrever: S, sujeito dividido, incerto de suas inscrições para
o Outro. Tem-se portanto:
v

a
/\ �
Esta fórmula escreve que o perverso se faz objeto a para uma Vontade de Go­
zo a fim de provocar no Outro a emergência (a prova) de uma divisao do sujei­
to. Isto indica ao mesmo tempo que a castraçao foi de fato marcada pelo per­
verso. O outro é castrado e dividido.
Mas é necessário ainda completar a fórmula:

a �

Com efeito, se se trata de fazer vacilar Madame, de fazer aparecer sua divisao,
é ao menos com a idéia de que para além deste sujeito dividido um pur!l sujei­
to do prazer seria alcançável em "S, sujeito bruto do prazer" (Lacan, Ecrits p.
775). Eis o materna da perversao, que se pode escrever de maneira mais curta
a - $ . Precisemos o lado do objeto.
Notem que situei a com o objeto sob o qual se propõe o perverso. E eu disse
que este objeto é aqui o corpo de Sade proposto ao Outro sob a forma do obje­
to. De fato digamos de imediato que isto só é exato pelo estilo cômico que ele
dá a sua carta e pelo fantasia masoquista que a sustenta.
Mas há um segundo objeto em jogo aqui, o da pulsao invocante em jogo
no fantasia sádica. Quem nao ouve nesta carta a voz obscena que profere: mas
goze minha cara! É a voz do testa de ferro no próximo encontro de Madame
de Sade. Há uma Ordem de Gozar, um imperativo, vindo do Outro da máxi­
ma; esta ordem subsume uma voz. O materna permanece portanto tal mas a
quadrilha se completa localizando esta voz do testa de ferro em "V".
Que constatamos aliás do lado do Sujeito quer dizer do lado do Outro, a
vítima ou a cúmplice, aqui Madame de Sade? O perverso faz aparecer a divisao
do parceiro ($) quer dizer sua submissao à castraçao. Mas ao mesmo tempo ele
nao reconhece esta castraçao. Ele leva o cenário além, mais longe, algumas ve­
zes até o limite da morte sempre com a idéia de encontrar um sujeito bruto
do prazer, um sujeito fora da castraçao (S, não barrado).
O perverso vê a castraçao, ele sabe dela, mas nao a reconhece. Ele é lo­
go imaginariamente velada. Esta maneira particular de se relacionar com a cas­
traçao é o que Freud designou com o termo Verleugnung. ·

1 69
Alexandre Stevens
O que nos ensina Freud com efeito? O fetichista, confrontado com a au­
sência do pênis materno viu a castração mas não a reconhece, ele se detém so­
bre o último véu que se torna fetiche. Portanto, o fetiche mostra e ao mesmo
tempo anula a castração - nao haveria necessidade do véu se nao fosse necessá­
rio velar esta ausência. Esta Verleugnung termo que Lacan traduz por "desmen­
tido" deve ser situada no materna da perversão ao nível da flecha $ - S
que põe em jogo ao mesmo tempo a falta ($) e um prazer referido ao falo en­
quanto ele não falta (S).

1 70
Sérgio Laia

AIDS E SUAS METONÍMIAS

A sexualidade, nos ensina Foucault (1), é um produto muito recente pa­


ra nós, companheiro, poderíamos acrescentar, da própria noção de homem e,
talvez, condenado ao mesmo fim deste: desvanecer "como, na orla do mar, um
rosto de areia" (2). É por isso que, nos convidando a esquecer Foucault, - a
meu ver, como uma forma de nunca deixarmos de nos lembrar dele - Baudril­
lard nos diz que a proliferação da sexualidade que caracteriza a modernidade
é muito mais uma agonia do sexo que sua ascenção, assim como a fase em que
Deus "estava em toda parte precedeu de perto a sua morte" (3). Penso que es­
se dois pensadores franceses, juntamente com Lacan, nos ajudaria a lançar lu­
zes sobre um movimento discursivo ainda imerso em trevas e em sombras. Es­
te campo tem se expandido sob o comando de um significante - AIDS - e tem
recebido, pelo menos no que tenho conhecimento, muito pouca atenção dos
psicanalistas (4), apesar da riqueza das questões que ele nos coloca.
Proponho, então, "AIDS e suas metonímias", num contraponto ao instigan­
te "AIDS e suas metáforas", onde Sontang (5) vai destrinchando as diversas subs­
tituições significantes que são feitas para se explicar o que é a AIDS (recorrên­
cia, por exemplo, ao vocabulário militar), bem como as diversas substituições
que são derivadas, a partir dessa síndrome, para se apreender outros eventos,
tais como o "fim do mundo", o ''vírus" de computador etc. "AIDS e suas metoní­
mias" se moveria, diferentemente, num universo despovoado de signos e de sen­
tido, repleto de sem-sentido e de questões.
De início, há de se demonstrar como a AIDS pode ser captada enquanto
um significante que vem se acrescentar e incrementar ainda mais o que Fou­
cault (6) chamou de "dispositivo de sexualidade". Tal d.ispositivo é um conjun­
to multilinear produzido desde o século XVII, que, através das mais diversas·
práticas, dos mais variados procedime�tos e saberes tem intensificado a "coloca­
ção do sexo em discurso". Trata-se de uma noção que Foucault deriva de vários
acontecimentos para fazer frente à hipótese que teríamos vivido um tempo em
que nossa sexualidade foi severamente reprimida. Assim, por exemplo, das or­
gias que lemos em Satiricon ou que povoam o imaginário que fazemos da Gré­
cia, das delícias que nos são oferecidas pelos quadros de um Bosch, do pavone­
amento dos corpos que encontramos no século XVII, das libertinagens que nos
prescreveram Sade, Mirabeau, Laclos, La Bretonne, entre outros, só teria resta­
do à sexualidade - com a Era Vitoriana - um único lugar, "solitário e fecundo:
o quarto dos pais" (7). No mesmo viés aberto por esta hipótese, se fala ainda
que o advento da psicanálise constituiria aí uma exceção, mas muito tímida,
pois só com os anos 60, no nosso século, teríamos b início de uma "verdadeira
liberação sexual". A meu ver, é essa mesma hipótese que dá sustentação às teo­
rias de que, com a AIDS, recairíamos numa nova fase repressiva.
Com Foucault, acabamos estranhando e mesmo rindo dessa hipótese.
Um riso perturbador e desconcertante, como aquele que a borgeana enciclopé­
dia chinesa já lhe despertara, uma vez. Ele nos convida � pensar de outra ma­
neira, introduzindo, no campo onde tal hipótese se produz, uma tensão. Assim,
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1 989 p.l71-177
Sérgio Laia

diferentemente, o que vivemos desde a Era Vitoriana é muito mais u ma intensi­


ficação da sexualidade, uma proliferação dos discursos sobre o sexo.
Trata-se de um movimento que se esboça, entretanto, desde o século
XVII, ancorado inicialmente na pastoral cristã e no sistema jurídico expandido,
depois, cada vez mais, com a medicina, a psicologia, a psicanálise, a sexologia,
a pedagogia e a própria "hipótese repressiva", por campos antes inimagináveis.
Em outros termos, se o sexo é situado numa dimensão de silêncio, há mais de
um século nossa civilização "fala prolixamente de seu próprio silêncio" (8), con­
denando o sexo não a permanecer na obscuridade, mas valorizando-o como "o"
segredo. É o que vemos, por exemplo, nessas entrevistas em que um profissio­
nal é indagado sobre o sexo: a sexualidade é ao mesmo tempo exposta na televi­
são, nos jornais etc e restringida a um saber que apenas alguns - no caso, o en­
trevistado - têm. É essa colocação do sexo em discurso que nos induz a si�uar
nossa verdade na sexualidade e desenvolver, então, uma série de tecnologias
que visam extrair do sexo o que somos, nos produzindo, então, como "sujeitos
de desejo" (9).
No âmbito desse "dispositivo de sexualidade", há um movimento que nos
interessa muito especialmente, tendo em vista a produção, via discurso da ciên­
cia, de um significante - AIDS - que vem nomear, como nota Sontang, não uma
doença, mas um estado clínico difuso "que tem como consequência todo um es­
pectro de doenças" (10) e, a meu ver, vem impulsionar uma série de linhas de
força que podem ser, em grande parte, já detectáveis no que Foucault chama­
va de "implantação perversa" ( 1 1).
É que desde o século que nos antecede, presenciamos uma multiplicação
e uma dispersão da sexualidade implementando as mais diversas heterogeneida­
des sexuais. Assim, onde os oitocentistas viam libertinagem, sodomia, transgres­
são das leis da aliança, reincidências, os vitorianos nos ensinaram a ler perver­
são, homossexualidade, transgressão da natureza, histórias de vida. Como antes,
a monogamia heterossexual continua como a regra interna das práticas e dos
prazeres, mas linhas infinitas são abertas em outras direções, nos fazendo essa
compulsão de interrogar a sexualidade das crianças, dos loucos, dos criminosos,
das mulheres, das populações. Repressão dos desvios? - poder-se-ia indagar.
Contudo, logo percebemos que se trata muito mais de proliferação de sexualida­
des periféricas e de estabelecimento de toda uma catalogação digna, eu diria,
de ser invejada por esse enciclopedista das perversões que foi Sade, caso ela
não estivesse imersa em tanta assepsia, em tanto distanciamento subjetivo e
em tão pretensa objetividade. Das páginas da "Scientia sexualis", saltam, então,
esses personagens que aprendemos a entomologizar, estranha e familiarmente,
como "zoófilos", "pedófilos", "necrófilos", "onanistas", "invertidos", "fetichistas",
"voyeurs", "exibicionistas", "perversos polimorfos", "perversos circunstanciais"...
A lista é infindável e nos indica que, talvez, o Ocidente pode não ter "sido ca­
paz de inventar novos prazeres e, sem dúvida, não descobriu vícios inéditos,
mas definiu novas regras no jogo dos poderes e dos prazeres: nele se configurou
a fisionomia rígida das perversões" (12).
No que se refere ao significante AIDS, penso que um de seus efeitos
mais patentes é a aceleração da "vontade de saber" que impulsiona o "dispositi­
vo de sexualidade". "AIDS", quanto mais você conhece, mais pode evitar", é o
título do Programa de Educação da População elaborado pelo SUDS /SP (13).
"Quem vê cara não vê AIDS", alerta a propaganda veiculada no Brasil pelo Mi­
nistério da Saúde, em 1988 (14).
Algo da ordem de uma "implantação perversa" se encadeia, também, a

1 72
Aids e suas metonfmias
meu ver, a partir desse significante AIDS. Não sem ironia. Pois, por u m lado,
ele tem sido associado muito mais a um controle dos corpos e das práticas, a
um investimento intenso do casal heterossexual e monogâmico como uma das
raras possibilidades de se evitar o contágio. Entretanto, por outro lado, uma sé­
rie do que Foucault chama de "sexualidades periféricas" são desencadeadas por
esse significante. Assim, por exemplo, o "Manual de Aconselhamento/AIDS",
distribuído pelo Ministério da Saúde, lista como alto risco, num contato sexual,
de sermos infectados por alguém já portador do HIV, se esse alguém for "pros­
tituto(a)", "usuário de drogas injetáveis (ou seus parceiros sexuais)", se o núme­
ro de parceiros sexuais for muito grande e/ou se os tipos de contatos sexuais fo­
rem, principalmente, '"passivo' em relação anal" e/ou '"passivo' em relação vagi­
nal" ( 15). Entretanto, nessa mesma direção, mas já apontando para a "implanta­
ção perversa", esse manual prescreve o "sexo oral (pênis, vagina, ânus)" cumo
baixo risco de contágio, nos diz que "o contato sexual é seguro se o sangue, es­
perma ou secreção vaginal/servical não são partilhados" e cita como exemplo
do contato seguro as carícias e os abraços ( 1 6). Ainda nesta última direção, nos
deparamos, através da mídia e de outros manuais de prevenção da AIDS, com
toda aceleração e dispersão do receituário de "como se fazer sexo, sem o sexo",
de como ser reconhecido através deste outro significante - "sexo seguro" - que
ressurge dos tempos pré-penicelfnecos e pré-anticoncepcionais, se deslocando,
agora, mais intensamente, a partir do significante AIDS. Nesse deslocamento,
outros significantes são articulados, produzindo outros deslocamentos, nomean­
do as mais diversas práticas periféricas - "filmes e teatros pornôs", "transas tele­
fônicas", "masturbações-a-dois", "bonecos infláveis" ... evocações contundentes,
acrescentaria, do que a psicanálise situou sob a égide do parcial: o olhar, a voz,
o dejeto, o fetiche ... o objeto, enfim. É desde af que eu gostaria de retomar La­
can, mas passando, antes, por Baudrillard.
Se, como vimos, no universo foucaultiano, sexo, sexualidae, "sujeito de
desejo" estão inseridos na produção desenfreada do "dispositivo de sexualidade",
com Baudrillard somos levados a concluir que toda essa aceleração acaba por
se efetivar - o feitiço virando contra o feiticeiro - como uma estratégia de simu­
lação que, ao invés de produzir o sexual, o faz desaparecer. A proliferação des­
se dispositivo, esse verdadeiro êxtase sexual que temos presenciado há alguns
séculos e que se intensifica, a meu ver, com o significante AIDS, acabaria, en­
tão, segundo esta outra perspectiva, nos precipitando vertiginosamente num va­
zio, nos distanciando da cena e da ilusão - referências que o "dispositivo de se­
xualidade" nos proporcionava. É que esse excesso de produção sexual acaba por
nos fazer tomar o sexo como algo transparente, invertendo, então, a estratégia
do dispositivo que é de situá-lo como "o" segredo. Em outras palavras: trata-se
de um segredo que se falou tanto dele que, de tão comunicado, deixou de ser
segredo, tornou-se transparente a todos.
Esse excesso de exibição do corpo, essa excrescência na qual o sexo se
transformou pela sua própria aceleração produtiva, não nos diz mais da sexuali­
dade. Assim, como o trem-bala japonês e o Concorde francês, pela velocidade
que nos proporcionam, fazem desaparecer a paisagem e o Atlântico, reduzindo
a viagem a um puro deslocamento. Nessa cultura da velocidade, de exasperação
do visível, do "show", do "look" até ao êxtase, o sexo implode e a obscenidade
irrompe. O obsceno, então, "é o mais verdadeiro que o verdadeiro, é o pleno
de sexo, o êxtase do sexo, é a forma, é a forma pura e vazia, a forma verdadeira­
mente tautológica da sexualidade ( .. ), o sexo elevado a potência sexual, ( ... ), a
.

escalada de verdade que conduz à vertigem fria da pornografia" ( 17).

1 73
Sérgio Laia
A partir da lógica baudrillardiana, diria que, num campo onde tudo tor­
na-se passível de ser captado como sexual e/ou como possível de produzir uma
satisfação dessa ordem, num mundo em que o significante AIDS acelera a im­
plosão de "sexualidades periféricas" que vão da estimulação da pornografia à
evocação do prazer que se pode ter saboreando uma boa comida ( 18), nada é
sexual. Vale lembrar, então, a citação que Baudrillard ( 19) faz de Barthes que,
contrapondo o Japão aos Estados Unidos, dizia que no primeiro a sexualidade
está no sexo e em nenhum outro lugar, mas no segundo, ela está em toda par­
te, menos no sexo. Talvez o que tenhamos hoje, e cada vez mais, seja uma ex­
pansão dessa maneira americana de lidar com o sexo. Daí, quem sabe, esse dife­
renciamento, esse vazio, essa pouca ou nenhuma representabilidade que inun­
da tudo aquilo que aprendemos a situar como o político, o social, o sexual... É
que se a cultura sempre se pautou pelo modo de produção que implica a partilha
coletiva dos simulacros, das ilusões, das cenas e dos segredos, em nossos dias,
com a irrupção do obsceno, vivemos muito mais "o modo de aparição do real" (20).
Em toda parte, menos no sexo - não é bem esse, me pergunto, o estrata­
gema que o significante AIDS acelera? Não é algo dessa ordem que encontra­
mos nessa busca alucinada de "como fazer sexo"? Mais ainda: será essa outra
forma de apreender o título que Célio Garcia nos sugeriu para o trabalho cole­
tivo do $ impósio no VI Encontro Internacional do Campo Freudiano (21 ) ?
Não será essa dimensão do obsceno que encontramos n a escansão lacaniana
de perversion como "versão do pai" (22) especialmente se considerarmos a de­
núncia que alguns psicóticos nos fazem, com todo rigor, de que o pai - em sua
promessa de dar o que não tem, de nomear o inominável - é sempre um impostor?
Aparecimento e desaparecimento, supremacia do objeto sobre o sujeito,
fixação do objeto e dispersão infinitizante do sujeito - a meu ver, são também
esses mesmos termos que podemos ler na montagem que Lacan nos faz do fan ­
tasma sadiano (23). Se articularmos isso à concepção freudiana d e que todo fan ­
tasma é perverso e o nosso último anteparo d o vazio d a desolação primordial
que desde sempre nos rodeia, o que virá nos surpreender é, por um lado, o obs­
ceno, por outro, a proliferação do parcial. É que o obsceno, desde sua própria
etimologia (diante da cena), nos faz passar a um campo outro que o representa­
cional. Em outras palavras: invasão do real, evasão do sujeito, domínio do objeto.
Na obra de Sade, se a lemos com Lacan, o libertino sempre pensa que -
movido pela apatia, submetido ao desejo como vontade de gozo (V) , como se
fosse um objeto (a) - ele pode escapar da evanescência que a Natureza faz, a
todo instante, insidir sobre ele, os outros, e as coisas. Ou, ainda, que ele pode
escapar da própria morte, pois, através do movimento acima, ele visa aceder
ao próprio "Ser-supremo-em-maldade". Contudo, ele é surpreendido quando
vê reaparecer, na figura patológica (de PATHOS, paixão) da vítima (.8) a eva­
nescência da qual se tenta furtar. Desde aí, uma outra volta deve ser realizada,
para sustentar o desmentido de que o libertino não desvanece: a vítima é infini­
tizada (S) nos jogos incessantes do prazer na proliferação dos sacrifícios, na eter­
nização infernal do castigo, como se ela não já tivesse sido marcada pelo desapa­
recimento. Daí, esclarece Lacan, essa repetição infindável de cenas e, ao mes­
mo tempo, essa fixidez e frieza que caracteriza a obra sadiana.
Nessa leitura lacaniana de Sade, encontro um último referencial que sus­
tenta minha tese de que o significante AIDS tem funcionado como um aciona­
dor/acelerador tanto do obsceno, quanto da proliferação perversa. É que AIDS,
como alguns outros significantes que se deslocam na obra sadiana, é da ordem
de SCWARMEREIEN (24). Esta palavra, Lacan a retira de Kant e significa, na

1 74
Aids e suas metonfmias

v s

d --- •
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a <>

"Crítica da Razão Prática (25) fanatismo, toda presunção e arrogância dos ho­
mens quando se acham capazes de realizar a perfeição sem um combate - contí­
nuo, paciente, e mesmo impossível de alcançar vitória nesta vida - do mal que
lhes constitui. Num outro contexto, penso que poderia dizer que AIDS tem se
presentificado como um significante que se articula, muitas vezes, por oposição,
a ideais como "a sexualidade sadia", "o sexo normal" etc, e a verdadeiros fanatis­
mos, como o de a atribuir a peste aos "gays", o de imaginarizar as mais bizarras
formas de contágio como uso de toalhas de banho, banheiros, copos, etc.
Mas Lacan acaba, num deslocamento, traduzindo SCHAR 11EREIEN por
essains que significa enxame, mas também, em francês, é homófono de si. Tal
passagem ganha ainda mais importância para nosso propósito, se a articulamos
a leitura que Cottet (26) nos faz do grafo acima, situando o objeto a no cam­
po do significante mestre (S 1 ), assim chamado por ser aquele que sustenta a
cadeia significante em seu desenrolar metonfmico, por ser aquele que vem re­
presentar um sujeito para um outro significante. No texto de Lacan isso se ex­
plicita quando ele nos permite situar nesse grafo o imperativo sadiano do direi­
to ao gozo, isto é, a versão sadiana da lei moral. Esta, nos ensina o psicanalista
francês, Kant, aparece no momento em que o sujeito moral "não tem mais dian­
te dele nenhum objeto, em que ele encontra uma lei que não tem outro fenôme­
no que alguma coisa de já significante, que se obtém de uma voz da consciência
que, ao se articular em máxima, propOe a ordem de uma razão puramente prá­
tica ou vontade" (27). Se a razão desde Freud é a razão do inconsciente, pode­
mos, então, a2roximar lei e gozo através dessa instância paradoxal, herdeira do
complexo de Edipo: o supereu.
Assim, da mesma forma que, em Sade, alguns significantes ordenam a en­
cenação de toda uma série de orgias, de toda uma exibição de corpos dispersos,
de toda uma proliferação do parcial, o significante AIDS tem ordenado tam­
bém, uma exasperaçao do sexo, uma busca frenética de novos vícios, uma preci­
pitação dos corpos. Mas já pude observar, com Baudrillard, que esse excesso
de sexualidade nos aponta também para o desaparecimento do responsável, pa­
ra irrupção do real. No caso do significante AIDS, o real se presentificaria, por
exemplo, na figura derradeira e inexorável da morte.
Desde af, duas últimas questOes devem ser colocadas. A meu ver, elas
abrem entre nós um campo de discussão que, certamente, não se esgota neste
escrito. É que, de um lado, encontramos nos perversos uma estratégia similar
àquela dos libertinos sadianos: ao fixar um objeto de satisfação (um fetiche,
por exemplo), eles tentam desmentir a castração da qual, como todo ser falan­
te, eles são vítimas. É por se posicionarem assim - como sabedores de seu go­
zo e de sua vontade, por não terem no seu desejo uma questão, mas uma res­
posta - que eles são raros ou, quando muito, temporários nos consultórios dos
analistas: satisfeitos, eles jamais perguntam e, por conseguinte, nunca deman­
dam. Contudo, de outro lado, mas ressaltando que a AIDS não é, de forma ai-

1 75
Sérgio Laia
guma, específica dessa estrutura clínica que é a perversão, será que esse novo
significante (AIDS), ao presentificar essa castração real que é a morte, não po­
derá conduzir alguns perversos à análise? Nesse viés, e no que a sexualidade é
sempre perversa, será que o silêncio dos analistas quanto a esse significante não
implica num recuo diante da perversão?

Texto apresentado - com algums pequenas alterações - na IX Jomada de Trabalhos do $impósio do Cam­
po Freudiano. Belo Horizonte, 01-02 de junho de 1990.

REFE�NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. FOUCAULT, M. História da sexualidade:a vontade de saber (1976). Rio de Janeiro, Graal, vol. I,
1985, 5� ed.
2 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas (1964). São Paulo , Martins Fontes, 1987, 4! ed., p. 404.
Para essa aproximação entre as noções de homem e de sexualidade, ver o belíssimo trabalho de Mil­
ler: MILLER, J.-A. Michel Foucault et la psychanalyse. In: Michel Foucault philosophe - Rencontre
internationale. Paris, Des travaux,!Seuil, 1989, pp. 77-86.
3. BAUDRILLARD, J. Esquecer Foucau/t (1977). Rio de Janeiro, Rocco, 1984, pp. 92-93.
4. Entre nós, já assisti um debate, no colóquio "História da sexualidade", em Belo Horizonte, 1987,
com Chaim Samuel Katz, sobre o tema "AIDS: é possível prevenir sem moralismos?" Há também,
um artigo de Maria Rita Khel (A psicanálise e o domínio das paixões), que foi sua conferência
no Seminário da FUNARTE sobre a paixão, em 1987, posteriormente publicado pela Companhia
das Letras (Os sentidos da paixão). Soube, também, mas desconheço o estágio no qual esse traba­
lho se encontra, que Jurandir Freire Costa estava pesquisando esse tema. Do exterior, posso citar,
publicados nos volumes IVN da revista VECTORES, em 1988, os artigos "La opinion, la prensa y
el SIDA" e "E/ SIDA. un fenomeno psicossomático?", respectivamente de Gérard Miller e M. Amou­
retti; na revista "ORNICAR?", n2 45, François Leguil também reflete sobre a AIDS.
5. SONTANG, S. AIDS e suas metáforas (1988). São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
6. FOUCAULT, M. Op. cit. , 1976, pp. 73-123.
7. FOUCAULT, M. Op. cit., 1976, p. 09.
8. FOUCAULT, M. Op. cir. , 1976, p. 14.
9. São essas tecnologias, "tecnologias de si", que atraíram a atenção de Foucault em seus últimos tra­
balhos. Para elucidá-Ias, esse filósofo modifica o seu plano inicial de uma História da Sexualida­
de situada a partir da Idade Clássica e nos faz retomar à civilização greco-romana e à patrística
cristã, onde elas teriam surgido e de onde elas teriam se transmutado até nós através de uma passa­
gem de uma "arte da existência" (TECHNEÉ TOU BIOU), que tem sua grande expressão nos gre­
gos, para uma "hermenêutica do desejo", que recebe grande impulso a partir do século XIX com a
sustentação, por parte de todas as técnicas de radical "psi", de uma "scientia sexualis".
Ver: FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité: l'usage des plaisirs. Paris, Gallimard, v. III, 1984.
FOUCAULT, M. Le soici de soi. Paris, Gallimard, v. III, 1984.
10. SONTANG, S. Op. cit., 1988, p. 21.
12. FOUCAULT, M. Op. cit., 1976, p. 48.
13. Ver: "AIDS, quanto mais você conhece, mais você pode evitar" (Programa de educação da popula­
ção elaborado pelo SUDS/SP, 1987).
14. Essa relação AIDS/"vontade de saber" e a que trabalharei mais longamente (AIDS!"implantação
perversa") foram analisadas com grande precisão por Maria da Conceição Rodrigues num excelen­
te trabalho: "Doenças sexualmente transmissíveis - discurso em silêncio" (Monografia do Curso
de Especialiação em Saúde Mental, Escola de Saúde de Minas Gerais, 1990.
15. Ver: "Manual de aconselhamentos/AIDS" (Ministério da Saúde, Divisão nacional DST/AIDS, 1989,
p. 16.
16. Idem.
17. BAUDRILLARD, J. Les stratégies fatales. Paris, Grasset, 1983, p. 76.
18. Ver, para este último ponto: Como evitar as DST. Ministério da Saúde. Divisão nacional DST/AIDS.
Tradução O.P.S., 1989, p. 16.
19. BAUDRILLARD, J. Op. cit., 1 977, pp. 22-23.
20. BAUDRILLARD, J. Op. cit., 1983, p. 71.
21. O título do trabalho é: "A obscenidade está por toda parte?".
22. LACAN, J. Le sinthome (Seminário inédito, 1974, que tem algumas conferências publicadas na re-

1 76
Aids e suas nutonfmias
vilta "'RNICAR?"
23. LACAN, J. K.aat avec Sacie (1962). la: iam. Paria, Seail, 1966, pp. 76S-790.
24. LACAN, J. Op. c#., p. m.
:ZS. JCANT, E. cntiqu• ti. 14 ,.._, prv,;qu.. Paria, QUADRIAOE/PUF, 198S.
26. CO'ITJIT, S. O JHI1YUÚllrO do gozo. Salvador, Fator, 1989, p. 43.
27. LACAN, J. Op. cil., p. 767.

1 77
História da psicanálise

Seção Belga da ECF

P. Malengreau, A. Stevens-Lysy et alii

A HOMOSSEXUALIDADE FEMININA

Tradução de Antonia Alves dos Reis

SEGUNDO FREUD
O artigo de 1920 "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade
feminina", constitui a mais importante contribuição de Freud à questão. Reto­
ma no citado artigo, algumas de suas prévias elaborações e deixa suspenso, al­
guns pontos que serão tratados ulteriormente.

Antes de 1920
Freud destaca a presença da homossexualidade feminina, em particular
nas estruturas clínicas diferentes: reprimida na neurose, manifesta-se em outros
casos que todavia não são explicitamente "perversos", e por último sob a forma
de uma figura persecutória no delírio de uma paranóica. Em Tres ensayos...
(1905), o problema da inversão, remete a todo aquele que no ser humano é de
modo intrínseco, discordante entre a pulsão de seu objeto. A homossexualida­
de como eleição de objeto não é uma transformação do processo de "decisão
do comportamento sexual". Se entende que possa ser transclínica, quanto à seu
estatuto em cada estrutura clínica, poderia se determinar um critério diferen­
cial, sobretudo na função de sua forma: reprimida, atuada ou delirante.

Em 1920
Em "Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina", a história
libidinal do caso equivale à história edípica.
Nesta. época Freud define a posição edípica normal da menina pelo desejo
inconsciente de ter um filho do pai. A eleição homossexual da jovem se inscre­
ve como resposta à decepção desse desejo edfpico " ..."não é ela que tem o filho,
sim a competidora, a quem em seu inconsciente ela odeia: a mãe" (pág. 256).
"Indignada e amargurada", abandona "o amor ao homem e o papel feminino"
se converte em homem e toma a mãe como objeto de amor no lugar do pai"
(págs. 256-257). Esta mudança de posição libidinal, foi para ela o modo de vin­
gar-se de seu pai: para "desafiar a seu pai" permaneceu homossexual, sua vene­
ração ostentosa de Dama de duvidosa reputação não teve outro efeito que ati­
çar o enfurecimento deste.
Assim, o texto nos apresenta a eleição homossexual como uma transforma­
ção do complexo de Édipo e por sua vez como renovação de uma "fixação infan- •

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.178-185


A homossexualidade feminina
til à mae" (pág. 267). Para Freud o elemento determinante é edípico, todavia
quando esta posiçao edfpica assinale uma posiçao primordial no referido ao go­
zo (fixaçao).

Depois de 1920
No seu artigo "Algumas consequências psíquicas da diferença anatOmica
entre os seltos (1925), Freud introduz uma assimetria essencial entre o menino
e a menina quanto à articulaçao de Édipo e a da castraçao. Retomando seus
avanços de 1923, declara: Enquanto o complexo de Édipo do menino sucumbe
pelo efeito do amplexo de castraçao, o da menina se faz possível e é introduzi­
do pelo complexo de castraçao" (pág. 130).
Enquanto o menino, perante a falta do órgao da menina, começa por ne­
gar sua própria percepçao, que só tomará sentido mais tarde, no a posteliori
de uma ameaça de castraçao, a menina parte de sua própria falta: De entrada,
julgou e decidiu. "Viu, sabe que nao o tem e quer possuí-lo (pág. 127). Desen­
volve uma inveja do pênis cujas numerosas consequências psíquicas Freud assi­
nala. O que a conduz ao Édipo é o complexo de castraçao. Se afasta de sua
mae, "renuncia ao desejo do pênis para substituí-lo pelo desejo de um filho, e
com este desígnio, toma ao pai como objeto de amor" (pág. 130).
A inveja do pênis, que constitui a pré-história do complexo de Édipo, en­
contra um de seus destinos edípicos no complexo de masculinidade. Nos artigos
de 1925, 1931 e 1932, Freud elabora a problemática da sexualidade feminina,
até entao menos teorizada e refere-se à homossexualidade feminina, ao comple­
xo de masculinidade, de que é um "efeito extremo" (1932, pág. 174).
Este llltimo, é uma das três atitudes possíveis perante a castraçao, sendo
as outras duas a inibiçao sexual e ... o Édipo (1931) o da "feminilidade normal"
( 1932).
Formaçao reativa frente à Penisneid, o descreve como um exagero da mas­
culinidade ameaçada. A homossexualidade manifesta-se resultante, será portan­
to nao edípica? Freud dissipa o mal entendido em duas ocasiOes: Ela nao está
em continuidade direta com a "masculinidade infantil", porém sempre estará
marcada pela dialética edfpica.

SEGUNDO OS PÓS-FREUDIANOS

A abordagem da homossexualidae feminina por parte dos pós-freudianos,


responde à posiçao destes quanto à sexualidade fe minina enm geral e mais pre­
cisamente quanto à fase fálica da menina. Se integra portanto no debate sobre
a fase fálica, que se abre com os artigos de Freud de 1923 · onde a primazia do
pênis é introduzida explicitamente na teoria da sexualidade. No fundamental,
o debate estimulado pela impugnaçao elevada por Karen Horney contra Freud,
lmpugnaçao digamos "feminista" do falocentrismo freudiano e prosseguirá até
a conclusAo de Jones de 1935, que deixará o debate - disse Lacan - "varado" "nu­
ma tácita indivisao ao capricho das interpretaçoes de cada um" (Écrits, págs.
703 e 727; Escritos 2, págs. 682 e 706). As opiniOes divergem porém nao se fez
a distribuiçao, pese a separaçao indicada entao por Jones entre a Escola de Vie­
na por uma lado, que defende um instinto sexual originariamente masculino,
tanto para a menina quanto para o varao e pelo outro a escola de Londres, que
sustenta a hipótese de uma feminilidade primária da menina, quanto ao desejo
e quanto ao gozo. No interior desta divisao, contudo, cujo caminho podem-se

1 79
A. Stevens-Lysy et alii
seguir na força de artigos simultaneamente publicados nolnternazionale Zeitschrift
[ar Psychoanalysis e em inglês no International Journal of Psycho-Analysis, a
unanimidade está distante de concretizar-se; em rigor, cada qual coloca sua pró­
pria "aplicação do saber". Por conseguinte, neste debate a questão da homosse­
xualidade feminina será considerada em função dos grandes temas da teoria freu­
diana em discussão, a do pênis e a da castração, segundo o quadro seguinte:

Primeiro Tema: A eleição do objeto de amor


1 2 3
Pré-édipo Complexo de Castração Édipo
F .... M F .... M F .... P
4
(filie, menina, filha mulher).
Decepção
F 1- p

Homossexualidade:
1. Conservação da posição pré-edípica (detenção)
2. Regressão à posição pré-edípica, consecutiva à decepção quanto ao pai. Esco­
lhe substitutos da mãe.
3. Identificação com o pai, identificando-se ao objeto (o pai) abandonado co­
mo objeto de amor.

Segundo tema: Posição quanto ao pênis e a castração


1 2
Fase Fática Castração

Penisneid primário: As mulheres não o possuem, a mãe


a menina o viu, sabe que não o também não.
possui e quer possuí-lo. A mãe não
está castrada.

Complexo de Castração (três saídas):

1. Recalque da sexualidade, inibição.


2. Renegação da castração, Penisneid, homossexualidade.
3. Repressão da castração: filho/pênis Édipo.
=

Homossexualidade: 4. saída do complexo de castração.


5. Regressão à fase fática.
6. Apoio do componente pulsional da bissexualidade originária (não tendo a
pulsão pré-constituída).

Observemos que este quadro não desenvolve exaustivamente a posição


de Freud com respeito à homossexualidade feminina: Freud menciona por exem­
plo, a posição de desafio da jovem homossexual com respeito à seu pai, e não
interpreta detalhadamente o assunto, coisa que os pós-freudianos não fazem.

180
A homossexualidade feminina

Um terceiro tema freudiano, que aborda a homossexualidade como acting out


e como teoria do amor, seria inútil para o debate pós-freudiano, pois estes auto­
res não tomam em conta este ângulo de visão.
Em Londres, Karen Horney, em nome da igualdade entre os sexos, reti­
ra com decisão o carro da resimetrização edípica; o deixará para trás inclusive,
invertindo a primazia do pênis na suposição de uma Muuerschaftsneid (1926),
desejo de maternidade primária tanto para o varão quanto para a menina, à ser­
viço do qual se porá a Penisneid, secundária como desejo de ser penetrada pe­
lo pai. Ernest Jones seguiu deperto à Karen Horney, abandonará esta maneira
de agir, rigorosa em demasia pela locomotor Kleiniana que permite-lhe conser­
var a simetria: "A princípio ...Ele os criou macho e fêmea" (1932). Com efeito,
a Penisneid jonesiana não é nem a Penisneid horneyriana e nem a freudiana (di­
xit Jones) da "inveja narcisista do pênis", sim um desejo feminino, vaginal, de
incorporar o pênis do pai. No mesmo trem, Joan Riviere (é uma lástima que
não tenha sustentado com mais firmeza sua intuição da feminilidade como mas­
carada), e Josine Müler, que com suas investigações sobre as excitações vagi­
nais precoces das meninas pequenas, da verdade destas teorias: a feminilidade
primária reduz, no fim das contas o inconsciente ao biológico, como denuncia
Freud em 1935.
Se Karen Horney pode ser considerada como a musa da impugnação da
fase fálica, Jones é pelo contrário, o líder do debate no que concerne à homos­
sexualidade feminina, em virtude de uma "experiência excepcional da homosse­
xualidade nas mulheres". Em efeito, Jones faz valer em 1927 cinco curas contem­
porâneas de mulheres homossexuais. Por desgraça não fará conhecer o mate­
rial clínico. As teorias londinenses sobre a homossexualidade feminina não po­
dem ser captadas no quadro traçado anteriormente. Em efeito, se para estes
autores, a menina é originariamente feminina, uma posição homossexual, enten­
dida como posição masculina do sujeito (não é forçado interpretar assim a ho­
mossexualidade), será sempre uma identificação secundária com o pai, destina­
da a reprimir às inclinações de desejo edípico até o pai. Se presume que estas
inclinações são bastante poderosas, já que se são robustecidas por causa das in­
clinações pré-edípicas dirigidas a tirar da mãe o pênis do pai, que ela teria es­
condido. A repressão de tais inclinações edípicas se fizeram indispensáveis:
- seja para evitar a rivalidade com a mãe, excessivamente poderosa pois
oculta tanto o peito e os bebês como o órgão do pai (Jones, Klein, Riviere),
- seja para evitar a angústia de violação pelo órgão do pai (substitui a an­
gústia de castração) (K. Horney).
Não obstante, esta identificação com o pai, sendo ainda um destino de
Édipo feminino, não se pode explicar especificamente a homossexualidae, toda
vez que explica às diversas manifestações do "Complexo de masculinidade"; esco­
lha de uma profissão, mascarada feminina, etc. É aí que Jones se vê obrigado
a supor, na base da homossexualidade feminina, uma intensidade peculiar das
pulsões sádico-orais, que considera inatas. É necessário um substrato biológico,
o mesmo que se necessitou para sustentar as pulsões femininas originárias.
Quanto a esta escola que Jones chamou "de Viena", diremos que para os
outros psicanalistas, aqueles que seguiram a Freud na questão da primazia do
pênis, as posições são ainda mais diversas. No início do debate, mais ortodoxo
que seu professor, Abraham universaliza o pênis: não deixa nenhum vestígio,
toda sexualidade feminina é compreendida com a ajuda da Penisneid e do com­
plexo de castração, à partir do "Tabu da virgindade" considerada como castra­
ção da menina. (Só Freud outorgará à castração materna _uma função determi-

181
A. Stevens-Lysy et alii
nante.) A homossexualidade constitui uma das saídas anormais do complexo
de castração feminino, como vingança pela castração feminina atribuída ao pai,
por identificação com o pai, tomando apoio na bissexualidade originária. Esta
saída é neurótica ou perversa segundo fique reprimida ou não (Hipótese 3,4,5,6
do quadro).
Dentro desta mesma tendência universalizante citemos a Sachs, Bousfield,
van Ophuijsen e os fantasmas dos desejos homossexuais masculinos ativos ("eu
possuo um pênis", (Hipótese 5); Stekel e a fuga até o mesmo sexo para evitar
o sadismo masculino, favorecida pela bissexualidade primitiva (Hipótese 6); Sad­
ger, é quem apresenta o interessante caso de uma mulher que escolhe a homos­
sexualidade inteirando-se de que seu pai tinha uma amante, porém não tira dis­
to nenhum ensinamento quanto à alguma teoria sobre o amor (Hipótese 2,3);
Ferenczi, que o toma por posição quanto à homossexualidade feminina antes
de seu "Diário Clínico", apoiando sobre as teses freudianas, e de Saussure, que
vê na homossexualidade algo como uma tentativa de escapar aos desejos edípi­
cos (Hipótese 3), um desdobramento narcisista onde o sujeito se reflete em si
mesmo no qual projetou bem sua feminilidade, ou bem sua agressividade para
com os homens. Por este caminho, o destino da feminilidade se deixa captar es­
sencialmente nos términos de identificação com a mãe, ou no desvio constituí­
do pela homossexualidade com o pai, onde os componentes bissexuais originá­
rios prestam sua colaboração.
Ficam então as "analistas mulheres, que tinham em conta a primazia do
pênis e as que Freud pedia-lhes que elaborassem um conhecimento sobre a fe­
minilidade. A contribuição de Jeanne Lampl de Groot na matéria é considerá­
vel, porque ela formula em 1927, sua concepção de uma relação pré-edípica
da menina com sua mãe, assim como as três saídas possíveis do complexo de
castração feminino (inibição, Penisneid, Édipo) que Freud fará suas quatro
anos depois. Sua teoria da homossexualidade feminina em 1927 e 1933, pode
confundir-se com o quadro. Não obstante, Lampl de Groot acabará universali­
zando o binômio atividade-passividade na matéria da diferença sexual. Ruth
Mack Brunswick, também bem perto nesta fase da teoria freudiana contribui
no debate com sua publicação em 1928, de um caso que mostra uma fiXação
pré-edípica homossexual à irmã maior, "perversa", substituta da mãe morta, na
origem de uma paranóica (delírio de zelos), onde a situação edípica não chegou
a instalar-se (Hipótese 1). Rutb Mack Brunswick confirmará sua tese em 1940
num artigo inspirado em seus debates com Freud, tomando nota do importan­
te número de mulheres que apresentam "ausência total de Édipo normal" e fi­
cam fiXadas à sua mãe. Descobrirá um desejo primário de filho na origem da
Penisneid. Marie Bonaparte, que formula as três saídas do complexo de castra­
ção sob o modo das "renunciadoras, reivindicadoras e aceitadoras", insiste por
que diz respeito às Homossexuais-reivindicadoras na insistência ao gozo fático,
na negativa a renunciar ao erotismo clitoriano, causada por uma bissexualida­
de constitucional excessiva (Hipótese 5,6). Marie Bonaparte desejará com ânsia
erradicar o clitóris, cujo gozo viril, se supõe que constitui um obstáculo para o
gozo feminino, vaginal; Bonaparte fixa a bissexualidade num fundamento orgâ­
nico. A insistência de Helen Deutsch sobre a relação pré-edípica com a mãe, a
levará definir por um lado da feminilidade como maternidade, onde a vagina
um "paõo dei yo", a semelhança do pênis para o varão, e pelo outro a homosse­
xualidade na relação mãe-filho, descuidando portanto da relação com o pai: subs­
titui portanto o binômio homem-mulher pelo binômio filho-mãe, onde é o filho
que faz o homem (ativo) e a mãe representa o polo feminino, masoquista. A

182
A homossexualidade feminina
homossexual escolhe "partenaires" que apresentam características "m4e-fllho"
(podendo ser vários, o bem alternando os papéis), para opor-ie aoa laços bastao­
te poderosos, e foge assim do perigo de uma identificaçao masoquista com a
mae (Hipótese 1 ). Portanto, onde Freud evidencia uma prudência notável e fala
de "repressão particularmente inexorável" do "enigma da feminilidade", o atrati­
vo da "resimetrização" ou para ser mais exatos da positivizaç4o da feminilidade
que os autores acabaram constatando.
Podemos constatar, que as teorias sobre a homossexualidade feminina
nos pós-freudianos não puderam desprender-se do debate sobre a sexualidade
feminina e sobre o pênis. Seu interesse na época deste debate, que oferece sem
dúvida um interesse primordial para a questao do pênis quanto à homossexuali­
dade, rebaixa a questão: estes autores, efetivamente apesar da apresentaçao de
casos interessantes (Sadger, Deutsch, Ruth Mack Bruoswick), não há rastros
de uma teoria da homossexualidade que se emancipe deste debate e a conside­
re dese um ângulo mais clínico. Assim as agudas particularidades de Freud a
propósito da jovem homossexual foram despretensiosamente varridas.

SEGUNDO LACAN
A reconsideração da homossexualidade feminina por parte de Lacao, des­
de os anos 50, pode ordenar-se em torno de duas interrogações: Convém ou
não incluir na perversão o caso da homossexualidade relatada por Freud? e o
que dizer das reservas pronunciadas por Freud quanto ao êxito de tratamento
da homossexualidade feminina?

Consideração do caso da jovem homossexual


O comentário de Lacao no caso da jovem homossexual apresenta no de­
correr de seu ensino, certas constantes: a relação com o pênis por um lado e
pelo outro a posição homossexual como demonstração, dirigida ao pai, do que
seria um verdadeiro amor. Ao contrário, encontramos algumas divergências, so­
bretudo no que diz respeito à estrutura clínica: histeria ou perversão.
Nos primeiros seminários o caso da jovem homossexual é abordado des­
de o ângulo da perversão e comparado com o caso Dora. Estas primeiras refe­
rências devem ser situadas na linha de elaboração teórica da perversão como
passagem do plano simbólico ao imaginário (Seminário IV) ou como modo par­
ticular de identificação (Seminário VI). Assim, no caso de Freud, aparecem
em série com casos de perversão denominados "reativos". Lacao menciona assim,
um caso de exibição que M. Schmideberg nos apresenta como uma perversão,
que segundo Lacan não é. Se trata de um caso "no que a violação do real mo­
ve o sujeito a expressar mediante seu acting-out, isto é, no plano imaginário,
que estava simbolicamente latente na situação" (30. 1.58).
Esta referência ao acting-out e à passagem do ato reaparece no seminário
sobre a angustia. Já não se estabelece uma posição entre a jovem homossexual
e Dora, sim que as coloca em paralelo. Lacan articula aqui acting-out e passa­
gem ao ato na alfnea de sua elaboração do objeto a, enquanto se constitui na
relação do sujeito com o Outro como resto. A aventura com a Dama na jovem
homossexual e o comportamento paradoxo de Dora, a respeito do Sr. e da Sr!!
K, são definidos como acting-out por orientar-se até ao Outro; algo do sujeito
se mostra sobre a cena. A passagem ao ato é por sua parte, a safda da cena, iden­
tificação com o objeto a como resto; desta fndole sao a tentativa de suicídio

183
A. Stevens-Lysy et alii
da jovem homossexual e a bofetada de Dora.
No seminário XI, estes dois casos ilustram a fórmula de desejo da histéri­
ca (pág. 187): "o desejo do homem é o desejo do Outro". Estas duas mulheres
sustentam o desejo do pai, desafiando-o, e "Dora por procuração".

A cura da homossexual
Estas diferentes observações sobre o caso relatado por Freud, colocam
de entrada, a questão do tratamento psicanalftico da homossexualidade feminina.
É particularmente valioso para nós a releitura proposta por Lacan em
1971, do que escreveu em seu texto sobre a sexualidade feminina. As dificulda­
des que surgem na cura da homossexualidade, recebem assim nova luz, a ser
articulada com a sexualidade feminina e particularmente com a maneira em que
se situa uma mulher com respeito à função fálica.
Em 1960, Lacan utiliza como referência os estudos de Jones, que toma
as coisas num "medium" que talvez faria melhor em sustentar, "medium" que
Lacan levará a sério até o ponto de subverter seu alcance. Jones bifurca o dese­
jo do sujeito na escolha que impõe entre ele e seu objeto incestuoso, aqui o
pai, e seu próprio sexo. Segundo Jones, a menina deve escolher entre seu ape­
go erótico ao pai e sua feminilidade. Ou ao pai ou a vagina. Se renuncia ao pai,
desenvolverá na idade adulta "uma atitude vaginal positiva com respeito ao coi­
to". Se não renuncia ao pai, a relação de objeto se converte em identificação: a
menina se identifica com o pai-pênis e renuncia ao mesmo tempo ao seu sexo.
Lacan qualifica de excessivamente cômodo, este recurso à identificação, na me­
dida em que se torne perante a questão que Jones expõe em primeiro plano.
O que se trata é uma elevação do objeto: poderia dizer de um desafio realçado.
Esta expressão condensa a maneira com que Lacan aborda a homossexua­
lidade feminina. O objeto de que se trata é o denominado objeto "incestuoso",
ou seja o que apresenta, no caso de Freud, sob a figura do pai. Contrariamen­
te a Dora, cujo desejo histérico é sustentar o desejo do pai procurando-o, a jo­
vem homossexual de Freud desafia o pai: intima-o a sustentar seu desejo de ho­
mem com respeito a uma mulher. Este ponto de partida no amor desprezado
no real. Assim, Freud não deixou de insistir na origem da posição homossexual
em que havia uma decepção procedente do pai. Tal decepção não explica tudo,
pois esta mulher poderia reagir possuindo um amante. Não é este o caminho
que escolhe, e sim de dar à este amor desprezado a aparência de uma amor cor­
tês. Coloca em primeiro plano, uma peculiar forma de amor, que se destaca
por dar o que não tem, quer dizer a falta. Daí, a idéia que o discurso sexual sus­
tentaria para a homossexual., "com a máxima segurança. A homossexual sabe
de sua incapacidade para aceitar que o objeto incestuoso "não assegura seu se­
xo a não ser ao preço da castração. O que não aceita é passar pela maneira
em que o pênis determina para cada ser sexuado.
Em 1971 Lacan torna precisa a especificidade da posição da homossexua­
lidade neste ponto. A homossexual sustenta o discurso sexual com a máxima se­
gurança porque não se arrisca a "tomar o pênis por um significante". Este enun­
ciado situa a problemática da homossexualidade ao lado do sujeito e de suas
identificações.
O argumento de Lacan gira em torno da forma em que geralmente abor­
damos a "pequena diferença" entre meninas e varões. O que os distingue não é
o natural, mas algo que retoma consistente ao natural, algo que Lacan chama
"um erro". O juízo de reconhecimento dos adultos ao redor, apoia-se um erro

184
A homossexualidade feminina
no que consiste em não reconhecê-los mas em função de critérios sob a depen­
dência à linguagem." As meninas e os varões não se distinguem em função do
natural, o da anatomia; o que os distingue são os ditos dos pais. Enquanto não
prossegue, retificamos d�endo, por exemplo: "é um varão falido". Para ser mais
preciso: o "erro" consiste em fazer passar enganosamente para o Real, a peque­
na diferença por mediação do órgão. Consiste em postular a pequena diferen­
ça em função do órgão, tomando não como tal mas pelo que é, quer dizer, um
instrumento, um significante. O erro comum e necessário, consiste em tomar o
pênis por um significante mais que o significado; o significante é o gozo". Este
enunciado problematiza, à partir da homossexualidade feminina, a função do
pênis, ao tempo que dá conta de um fato clínico perfeitamente observável, a sa­
ber: a impotência do Pênis para possibilitar que o neurótico sustente o discur­
so sexual com a máxima segurança. Este "erro" é aquele em que o transexual e
a homossexual não aceitam. A paixão do transexual consiste em querer liberar­
se deste erro, porém se equivoca numa só coisa: em forçar o discurso sexual
por meio da cirurgia. A homossexual chega ao mesmo por outro caminho. Tra­
ta o pênis à maneira das "Preciosas", que seguem um modelo para nós. Distan­
te de tomar o pênis por um significante, se propõe partí-lo por sua própria von­
tade. Isto é o que significa: Portanto. Desse modo, ao romper o pênis por sua
própria vontade acabam com esse erro comum e necessário.
Esta abordagem específica do pênis, não deixa de ter consequência na cu­
ra e coloca a questão de saber o que, para a homossexual é acessível ao discur­
so psicanalítico. A questão merece ser colocada, já que tratar ao pênis como
uma letra é só o que resulta pelo lado do amor cortês, situá-la "numa cegueira
total sobre o que corresponde ao gozo feminino". Aludindo uma obra de Apolli­
naire, Lacan recorda-nos que "a mulher não sabe gozar mais que numa ausên­
cia". É preciso que seja em certo modo, excêntrica com relação a si mesma.
Pelo contrário, "a homossexual não está na ausência absoluta no que lhe
resta de gozo". Está bastante presente na demonstração do que uma mulher
não tem. Contrariamente a histérica, que converte a castração imaginária no
seu risco identificatório, a homossexual imagina como elemento da realidade o
pênis. Poderíamos dizer, um excesso de presença consistente no feito de sua
paixão, a semelhança do transexual é querer liberar-se do erro - digamos "neces­
sário" - de tomar o pênis como um significante.
Isso faz cômodo o discurso do amor, porem está claro que exclui do dis­
curso psicanalítico. Em consequência, se esta cegueira é cabalmente o que faz
cômodo o discurso do amor, está claro que oferece-lhe uma entrada possível
no discurso analítico. No lugar da abordagem do pênis, tem o efeito de ampu­
tá-lo, no sentido de que a homossexual chega a produzir na cura, um discurso
sobre o amor cortês, que termina excluíndo-a do discurso analítico.
Este ponto de tropeço coincide com as reservas emitidas por Freud, porem
constitui também um convite a renovar o debate, e o inanalizável deve situar­
se aqui, no campo, que por obra da estrutura, determina a sexuação.

185
Ângela Batista e Nelisa Pinheiro

MASOQUISMO FEMININO

O que pensar do masoquismo feminino como uma questao central nos


textos pós-freudianos de algumas autoras que o identificavam como masoquis­
mo da mulher?
Será a partir do texto freudiano e nos equívocos de sua interpretaçao que
se situará a produçao da noçao de masoquismo feminino nestas autoras. Dirá
Lacan, depois, que, além dos equívocos da interpretaçao, deveria haver intrínse­
ca à estrutura do gozo para que esta noçao fosse mantida, tal como um véu,
que encobre e sugere uma outra lógica do gozo, que nao a fática.
Nos perguntamos que motivos mantém esta mesma noçao, até hoje, refe­
rida à mulher, como se a mulher fosse estruturalmente masoquista ou como se
não lhe restasse outro destino enquanto mulher, se nao o de tornar-se masoquista.

I - Masoquismo feminino em Freud


Retomando o artigo "0 Problema Econômico do Masoquismo" (1) encon­
tramos aí a descriçao mais completa que Freud nos dá ao masoquismo. Postu­
la o masoquismo primário ou erógeno, de onde sao derivados os dois outros:
masoquismo feminino e masoquismo moral. É onde apresenta o masoquismo
sobre três formas - como moçao imposta à excitaçao sexual, como expressao
do ser da mulher, e como de comportamento na existência (behavior) Restrin­ .

ge suas observaçOes relativas ao masoquismo feminino aos homc;ns, por ser es­
se o material de que dispOe quanto ao conteúdo manifesto das fantasias em ques­
tão: ser amordaçado, amarrado, espancado, sujado e aviltado (2). O masoquis­
mo deseja ser tratado como uma criança pequena, desamparada, e mais particu­
larmente como uma criança travessa; o que vai indicar uma posiçao caracteristi­
camente feminina significando ser castrado ou ser copulado ou dar à luz a um
bebê. Ainda no texto, aponta (3) para uma equivalência entre o infantil e o feminino.
. No artigo sobre "Sexualidade Feminina" (4), Freud se refere ao masculi­
no e ao feminino como conceitos que descrevem modos de expressao da libido.
Há uma única libido, e o que vai importar é o destino da pulsao.
Cita af algumas analistas mulheres, tais como Jeanne Lampl de Groot e
Helen Deutsch, como tendo sido capazes de perceber mais facilmente a expres­
sao desse tipo de masoquismo, ao lidarem com pacientes mulberes que se acha­
vam em tratamento com elas e que sustentavam, pela transferência, uma substi­
tuta materna adequada (5).

li - Masoquismo da mulher e um equfvoco na psicandlise

Situaremos nos textos pós-freudianos a contribuiçao de algumas mulheres,


com o objetivo de sublinhar os equívocos relativos à compreensAo da fantasia
masoquista. Vejamos:
Em Marie Bonaparte, observa-se todo um imagináio corporal marcado
por uma anatomia fantástica que não ultrapassa a biologia. O corpo aparente-
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiu.o, L4/S, ja•-dcz 1989 p.186-191
Masoquismo feminino
mente orgânico recusa o simbólico. O real tinha de se inscrever, assim como
os dois gozos da mulher, tinham de ser conseguidos e demonstrados.
Durante sua análise com Freud, teria tocado a questão da construção da
cena primária sádica, como a que encontraremos em seu artigo "Passividade,
Masoquismo e Feminilidade", que comentaremos a seguir. Foi um trabalho li­
do no 13Q Congresso de Psicanálise em Lucerna (1934). Tal cena primária apa­
rece aí como central na determinação de uma posição masoquista, que contra­
cenaria com a posição sádica, e seria igualada à posição de ser agressivamente
penetrada. Pessa vertente masoquista da cena primária, sairia o erotismo femi­
nino e a possibilidade ou não de erotização da vagina, e de transformação do
masoquismo em passividade. Sendo o pênis associado à destrutividade, deveria
haver uma dissociação do coito como prazeroso, em relação às outras funções
desprazerosas das mulheres: defloramento, menstruação, gravidez e parto.
Toma o mac;oquismo feminino no sentido das dor da mulher. Coloca-se
ao lado de Helen Deutsch quanto ao masoquismo constante no desenvolvimen­
to da mulher, para quem a sexualidade se associaria a uma dose de dor.
Haveria um instinto biológico de auto-conservação responsável pela rea­
ção da mulher à penetração; uma bissexualidade biológica às duas zonas eróge­
nas (clitóris e vagina) e um complexo biológico de castração, associado a uma
humilhação narcísica (6).
Em 1953, com o trabalho "Sexualidade Feminina", esboça uma teoria bio­
lógica da bissexualidade - há aí um capítulo sobre masoquismo feminino, marca­
do pela discordância em relação à Helen Deutsch, quanto ao caráter primor­
dial da bissexualidade no erotismo da mulher.
Um Édipo positivo, passivo e masoquista, pode gerar a recusa através do
protesto masculino, ou a frigidez numa aceitação temerosa, ou a negação de
qualquer sexualidade.
Em Helen Deutsch, a colocação da constituição da mulher como passiva
e masoquista contraria a posição freudiana. A teoria pulsional indica que a pul­
sao é, por natureza ativa, e os conceitos de masculino e feminino não podem
fazer referência a um ou a outro sexo. Aqui parece importante sublinhar o equí­
voco quanto ao que foi denominado de masoquismo feminino. Para Helen
Deutsch, a anatomia é o destino desde o início, contradizendo a posição subjeti­
va do masoquista na fantasia como uma posição de feminilidade. Ao condenar
a mulher como masoquista na sua constituição, equivoca-se quanto à posição
subjetiva, que não é determinada unicamente pelo sexo biológico.
Assim é que o sujeito, na posição masoquista, manifesta algo da ordem
da posição feminina e não um embricamento da dor no prazer. Será no cenário
perverso do masoquismo que Freud vai situar uma expressão do ser da mulher.
Em "Bate-se numa Criança", é a fantasia perversa que está em questão.
Resumindo, para se levar em conta os caminhos da sexualidade feminina,
segundo Helen Deutsch (7), deve-se conjugar passividade, inibição e masoquis­
mo, desde os laços com o primeiro objeto de amor até a maternidade.
Convém sinalizar, como apontamos no início, que o equívoco se mantém
presente na compreensão de toda uma linha de pensamento pós-freudiana. A
confusão parece residir no ponto manifesto das atitudes femininas, referidas à
sua incompletude constitucional, desprezando o conteúdo da fantasia fundamen­
tal. As mulheres não são masoquistas, mas o masoquista arremeda, na posição
de objeto de gozo do Outro, a suposição de um gozo feminino.
Em Jeapne Lampl de Groot (8), a fantasia masoquista é enunciada a par­
tir da percepção da diferença sexual, que se dá juntamente com o período mas-

187
Ângela Batista e Nelisa Pinheiro

turbatório. A fase da fantasia é: um dia, tive um pênis, mas me tiraram como ,


castigo à masturbação. No texto, coloca que a menina vai buscar um prazer, cu­
ja representação é masoquista, com o objetivo de compensar o dano narcfsico.
A ferida narcfsica produz raiva e fúria, e a agressão não enviada para o exterior
volta-se para o interior, produzindo prazer masoquista. A autora retoma o tex­
to freudiano "Bate-se numa Criança", cujo tempo "sou batida por meu pai" apon­
ta para o conteúdo de gozo - "me ama", sobrepondo-o à frase "tiraram meu pê­
nis como castigo à masturbação". Sinaliza diferentes tempos na fantasia: um
da fase pré-edipiana, e outro da fase edipiana, sendo que o primeiro tempo não
traz inscrição de culpabilidade (responsabiliza a mãe pela perda do pênis e a re­
presentação disto prepara a menina para a entrada no Édipo). A passagem pa­
ra o segundo tempo se faz com a presença de uma representação masoquista:
"como castigo à masturbação, me castraram".
Jeanne L. de Groot faz uma observação interessante quando diz que a fan­
tasia masoquista proveniente do Édipo seria mais fácil de trabalhar analitica­
mente. Ao passo que a fantasia constituída para evitar a ferida narcfsica é íJXa,
e resistente à análise. Na sua contribuição, percebe-se uma diferença em rela­
ção às outras analistas de sua época: a questão do paio constitucional-biológi­
co para a ordem simbólica - o masoquismo é visto como uma fantasia femini­
na que revela a mulher como não - toda e aponta para a fixidez da fantasia fun­
damental.

III - Masoquismo Feminino: Uma Fantasia do Homem


Em 1958, Lacan escrevia seus "Propos directifs pour un Congres sur la se­
xualité féminine" (1), preparando a temática do que viria a ser trabalhado em
1960, no Colóquio Internacional de Psicanálise em Amsterdam. Segundo ele, a
dita "fase fálica" na mulher (Freud: 1927-35) teria dado origem a deslizamentos
conceituais e aquilo que permanecia sobre o gozo feminino havia suscitado mi­
rabolantes explicações (como as que vimos anteriormente em M. Bonaparte e
H. Deutsch), e nem mesmo as analistas mulheres conseguiram dizer senão metá­
foras sobre o assunto. Nesse artigo, Lacan retoma uma posição conceitual bási­
ca (freudiana ainda) que situa tal impasse teórico na impossibilidade de aborda­
gem do real, e define a sexualidade como metáfora do desejo, o phallus simboli­
zando a falta-a-ser. A demanda engendra uma falta-a-ter que o clitóris viria pre­
encher até sucumbir na competição - af, o desejo precipita novos objetos na di­
reção da metáfora sexual.
Quando se pergunta se a medição fálica drenaria todo o pulsional na mu­
lher, Lacan lembra o problema do masoquismo feminino, dizendo que não po­
de ser só o hormônio de passividade porque já é metafórico. O assim chamado
"masoquismo feminino" apontaria para algo além da mediação fálica e para al­
go além do par masculino-feminino como ponto de partida.
A castração supõe a subjetividade do Outro enquanto lugar de sua lei, e
a alteridade homem-mulher funciona de modo a que a mulher se torne o gran­
de Outro para si mesma e para o homem. O Masoquismo Feminino é posto
na fantasia do homem, como em Freud, e Lacan formula a questão: se a perver­
são masoquista se deve à invenção masculina, pode-se concluir que o masoquis­
mo da mulher é uma fantasia do desejo do homem?
A representação da mulher como vítima exclusiva da castração serviria tão
somente para mascarar uma duplicidade do sujeito. A barra colocada sobre $
faz surgir uma falta e o desejo de (preservar) um phallus: a sexualidade femini-

188
Masoquismo feminino

na vem evidenciar um esforço de gozo na sua contingência de tentar dar o que


não tem (Lacan toma aícomo exemplo o amor ideal e a homossexualidade feminina).
No seminário da Angústia ( 10), Lacan enuncia sua primeira f6rmula quan­
do tematiza sobre o objeto a: reconhecer-se como objeto de seu desejo é sem­
pre masoquista. O masoquista se encarna como objeto na cena e no contato
com seu parceiro. Além do masoquismo estruturante e da perversão masoquis­
ta, Freud também apontou a fantasia masoquista e falou de três masoquismos:
erógeno, moral e feminino, equiparados por Lacan a "il y a ce ve"e, il y a la
-

foi chrétienne, et il y a la baisse de Wall Street".


Homem: ser sexuado, amarrado por um nó à função fálica e à limitação
da castração.
Mulher: o Outro sexo, onde o nó é mais frouxo porque a confrontação é
com o desejo do grande Outro, e apenas secundariamente com o papel que aí
tem o objeto fálico.
Para o homem, a mulher é feita desta costela de Adão que foi uma par­
te sua, um objeto perdido cuja perda tem de ser ocultada e obturada pela mu­
lher. Sobre isto, Lacan diz que o Masoquismo Feminino .toma um sentido irôni�
co: a ocultação do gozo deste Outro que tr�z em si uma· angústia incontestável.
Ainda neste seminário da Angústia, Lacan recoloca o masoquismo femini­
no comum uma fantasia masculina - É por procuração, em relação a esta estru­
tura imaginária sobre a mulher, que o homem faz sustentar seu gozo.

IV - Masoquismo Feminino: um véu sobre a verdade


Vamos falar então da tÇipeação, ou do véu como às vezes prefere Lacan.
Ele nos adverte no Seminário 1 1 , sobre os quatro conceitos fundamentais ( 1 1 ),
que é no domínio do amor que a tapeação pode ter algum sucesso, inclusive
no amor de transferência, e o analista que se cuide para não ser enganado - des­
conhecendo que algo lhe falta, numa ilusão imaginária de que tem justamente
o que falta ao analisando. Seria como um A sem barra, fonte de um saber com­
pleto e acabado.
As mulheres analistas mantiveram esse véu naquilo que escreveram sobre
o masoquismo feminino. Ao recolocá-la também nesse Seminário 1 1 como fan­
tasia masculina, Lacan comenta:

" ... af há algum consentimento das mulheres, o que não quer


dizer nada - nos limitaremos, mais legitimamente, nós outros ana-
. listas, às mulheres que fazem parte do nosso grupo. É notável ver
que as representantes desse sexo no círculo analítico são especial­
mente dispostas a entreterem o crédito basal ao masoquismo fe­
minino. Sem dúvida que aí talvez haja um véu que convém não
levantar depressa demais concernente aos interesses do sexo".

Na formulação freudiana dos opostos masculino-feminino, quanto à sexua­


lidade, faltaria a representação do A como um 3!1 termo. Termo relativo ao sim­
bólico, precisamente aquele que propicia o surgimento do significante indicador
do sujeito: evocado no campo do A, o sujeito surge como resultante do movi­
mento de retorno da pulsão, é um significante em relação a outro significante,
destacado do real. Sujeito dividido, vivo que vai morrer, parte de um ciclo repro­
dutivo.

189
Ângela Batista e Nelisa Pinheiro
"É somente af que a relação dos sexos é representada no nfvel
do inconsciente.
Para o resto, a relação sexual fica entregue ao aleatório do cam­
po do A Fica entregue às explicações que se lhes dêem".

Esse 3Q termo, lembra Lacan, Joan Riviêre introduzira ao rotular a atitu­


de sexual feminina de "mascarada" ...

"A me vê, na forma em que me agrada ser visto"

Não há dois sexos: há um sexo fálico, e há o Outro sexo; há um gozo se­


xual e um gozo do Outro - Há um gozo atrelado ao significante, metafórico; e
um gozo que desliza de significante em significante, metonfmico. O primeiro é
atribuído ao homem e o segundo à mulher, enquanto duas posiçOes face a uma
impossibilidade do ser: uma posição que mostra um simulacro do ser, e outra
que aponta um véu revestindo a impossibilidade ( 12).
Para o homem: o objeto pequeno a, onde se situa uma mulher desejada,
aquela que -propicia um gozo fálico, sexual, do órgão. Para a mulher: um gozo
suplementar, do corpo todo, do ser, de Deus (ser supremo), além do pequeno
gozo do falo.

"Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada.
Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada
a não ser que o experimenta - isto ela sabe".

" ... há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos.
Eu falava da última vez as psicanalistas mulheres - que tentam
nos dizer, pois bem, nem uma palavra! "

Podemos concluir, então, por uma conjunção que o "Masoquismo Femini­


no" realizaria entre o que é do gozo e o que é da mulher. O aparelho do gozo
comanda por um imperativo, vindo do Outro. Do lado do homem, esse Outro
vira um outro ou uma mulherzinha qualquer. Do lado de uma mulher, na fanta­
sia do homem, ela é um objeto servil ao seu gozo fálico - masoquista feminino.
Mas, Lacan avança e pensa sobre o interesse das próprias mulheres em ficarem
acomodadas oeste lugar; desconfia da produção das analistas:

"Nossos colegas, as damas analistas, sobre a sexualidade femini­


na, ela nos dizem algo, mas ... não tudo. É absolutamente contun­
dente. Elas não fizeram avançar de um dedo a questão da sexuali­
dade feminina. Deve haver uma razão interna para isto, ligada
ao aparelho do gozo".

Temos do lado de uma mulher, no esquema da sexualização, um gozo


do falo na posição de /Ir., em busca do que lhe falta. Essa barra sobre A aponta
para o que não se pode dizer, algo barrado que não se articula ao significante.
Mas uma mulher goza também de um significante que indica o fi.; pode mistica­
mente gozar de Deus, de um significante do ser que supoe um outro ser em fal­
ta, ou um furo no saber sobre o ser.
É especificamente o saber analítico que tem a função de apontar esse não
saber. O conceito de Inconsciente deixa isso evidente. E, não podendo falar no

190
Masoquismo feminino
que nao se inscreve como linguagem, tentamos falar da relaçao sexual no que
ela tem de contingente e de impossibilidade.
Tirésias ao ser argüido sobre a verdade do gozo responde que o gozo amo­
roso se compunha de 10 partes, a mulher dele obtinha nove e o homem apenas
uma. Ou seja, Tirésias revela a mulher como sendo a portadora de um gozo a
mais, e de um deslizamento do gozo por "nove partes". O que nos faz pensar
nas razOes de ocultaçao deste gozo a mais, presentes na noçao de masoquismo
feminino, na produçao psicanalítica que analisamos.

Véu · Proteção de um gozo, para cobrir um hCNTor. Horror do feminino-castrado. HCNTor do de.rcq­
nhecido, do inominável e do morte.

REFEIU!NCIAS BIBUOGRÁFICAS

1. FREUD, SIGMUND., "O Problema econômico do masoquismo", Ed. Standard Brasileira, vol. XIX,
pág. 297. 1924.
2. Freud, S. op. cit., pág. 202
3. Freud, S. op. cit., pág. 203.
4. Freud, S. "Sexualidode Feminina" Ed. Standard Brasileira, vol. XXI., pág. 261.

5. Freud, S. op. cit., parte IV.


6. Bonaparte, M. "Prazer Erótico na Mulher" - Itens 11 e IV.
7. Deutsch, H. "Psicologül de la Mujer" · Masoquismo Feminino · Passividade Feminina.
8. Lampl-de-Groot, J. SOUFFRA]II CE et JOUISSANCE " - Masochisme et Narcissisme" - 1936.
9. LACAN, J. Écrits págs. 725, 729/30, 732
-

10. LACAN, J. Séminaire 62/63 - "L'Angoisse."


1 1. LACAN, J. - Seminário Livro 11 - "Os 4 Conceitos Fundamentais da Psicanálise" - Pág. 182, 188, 253.

12. LACAN, J. - Seminário Livro 20 - "Mais, ainda" - pág. 12, 79, 100-101,105.

191
11 - O problema da Escola hoj e

Jacques Lacan

ATO DE FUNDAÇÃO
DA ESCOLA FREUDIANA DE PARIS
21 de junho de 1 964

Tradução de Ari Roitman

Fundo - tão só como sempre estive rá para que tudo o que façam de valio­
na minha relação com a causa psicana­ so tenha a repercussão que mereça
lftica - a Escola Francesa de Psicanáli­ no lugar que lhe convenha.
se, da qual assegurarei, para os próxi­ Para a execução do trabalho ado­
mos quatro anos, pelos quais no pre­ taremos o princípio de uma elabora­
sente nada me impede de responder, ção baseada num pequeno grupo; ca­
pessoalmente a direção. da um deles (e temos um nome para
Este título, em minha intenção, designar esses grupos) será composto
representa o organismo onde deve cum­ por três pessoas, no mínimo, e de cin­
prir-se um trabalho - que, no campo co no máximo - quatro é a medida cer­
aberto por Freud, restaura a lâmina ta. MAIS UMA, encarregada da sele­
cortante de sua verdade - que traz a ção, da discussão e do destino reserva­
praxis original que ele instituiu, sob o do ao trabalho de cada um.
nome de psicanálise, no dever que re­ Após um certo tempo de funcio­
torna a ele no nosso mundo - que, por namento se proporá aos elementos
uma crítica assídua, denuncie os des­ de um grupo sua permutação para ou­
vios e os compromissos que amortecem tro.
seu progresso, degradando sua utiliza­ O cargo de direção não consti­
ção. tuirá um caciquismo cujo serviço pres­
Tal objetivo de trabalho é indis­ tado se capitalizaria pelo acesso a um
solúvel de uma formação a ser realiza­ grau superior, e ninguém deverá sen­
da nesse movimento de reconquista. tir-se rebaixado por entrar no nível
Quer dizer, sao habilitados aí com ple­ de um trabalho de base.
nos direitos aqueles que eu mesmo for­ Pela razão de que todo empreen­
mei, e estão convidados todos aqueles dimento pessoal levará seu autor às
aue possam contribuir dando a essa condições de crftica e de controle em
formação a legitimidade da prova. que todo trabalho a ser desenvolvido
Aqueles que vieram a esta Esco­ será submetido à Escola.
la se comprometerão a realizar uma Isto não implica de modo algum
tarefa submetida a um controle inter­ uma hierarquia de cabeça para baixo,
no e externo. Será a eles assegurado, mas uma organização circular cujo fun­
em contrapartida, que nada se poupa- cionamento, fácil de programar, se afir-
FALO, Revista Brasileira do ·eampo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989, p.l93-201
lacques Lacan
mará na experiência. mo rompo com standards afirmados
Constituiremos três seções, cujo funcio­ na prática didática, assim como os efei­
namento assegurarei com dois colabo­ tos imputados a meu ensino no curso
radores auxiliando-me em cada uma das minhas análises, quando ocorre
delas. que meus analisados o assistam a títu­
lo de alunos. Serão aí incluídos, se for
1) SEÇÃO DE PSICANÁLISE PURA, preciso, os únicos impasses a conser­
o u seja, praxis e doutrina d a psicanáli­ var de minha posição em tal Escola,
se propriamente dita, que nada mais ou seja, aqueles que a indução mes­
é - o que será estabelecido em seu lu­ ma que meu ensino visa engendraria
gar - senao a psicanálise didática. em seu trabalho.
Os problemas urgentes a serem levan­ Tais estudos, cujo ponto culminante
tados sobre todas as saídas da didáti­ -é o questionamento da rotina estabele­
ca verao aqui abrir-se o caminho pa­ cida, serão recolhidos pelo diretório
ra uma confronta- da seção que cuida­
çao entre pessoas rá das vias mais pro­
que tenham experi- pícias para susten­
ência da didática e tar os efeitos de
candidatos em for- sua solicitação.
maçao. Sua razao Três sub-seções:
de ser está funda- - doutrina da psica­
da sobre o que nao Um psicana lista é nálise pura;
deve ser velado: a - crítica interna de
saber, a necessida­ dida ta a partir da sua praxis como for­
de que resulta das realização de uma mação;
exigências profissio­ - controle dos psica­
nais cada vez que ou mazs nalistas em forma­
levam o analisado psicanálises que ção;
em formaçao a as­ Proponho, enfim,
sumir uma respon­ se rev elarem como princípio de
sabilidade, por me­ didáticas doutrina, que esta
nos analítica que seção, a primeira,
seja ela. como t ambém
É no interior deste aquela _da qual di­
problema, e como rei no título 3Q o
caso particular que destino, nao se limi­
deve situar-se a en­ te em seu recruta­
trada em supervi- mento à qualifica-
sao. Prelúdio para definir este caso se­ ção médica, pois a psicanálise pura,
gundo critérios diferentes da impres­ em si mesma, não é uma técnica tera­
sao de todos e do preconceito de ca­ pêutica.
da um. Pois sabe-se que é atualmen­
te sua única lei, quando a violação da 2) SEÇÃO DE PSICANÁLISE APU­
regra implicada na observância de CADA, o que quer dizer: de terapêuti­
suas formas é permanente. ca e de clínica médica.
Desde o começo, e em todos os casos, Nela serao admitidos grupos médicos,
será neste contexto assegurado um con­ sejam ou não compostos pos sujeitos
trole qualificado ao praticante em for­ psicanalisados, ainda que contribuam
mação na nossa Escola. em pequena medida à experiência psi
Serão propostos ao estudo assim ins­ canalftica; pela crítica de suas indica­
taurado os traços pelos quais eu mes- ções nos seus resultados, - pela experi-

I94
Ato de fundação da EFP

mentação dos termos categóricos e da, sem a qual a ordem das afinidades
das estruturas que aí introduzi como que as ciências que chamamos conjetu­
sustentáculos da urdidura da praxis freu­rais desenham ficará à mercê dessa
diana, - isto no exame clfnico, nas defi­deriva polftica que cresce com a ilusão
nições nosográficas, na própria posição de um condicionamento universal.
dos projetos terapêuticos. Então, mais três ·sub-seções:
Aqui, mais três sub-seções: : · comentário contínuo do movimento
- doutrina da cura e de suas variações; psicanalítico;
- casuística; - articulação com as ciências afins;
- informação psiquiátrica e prospecção - ética da psicanálise, que é a praxis
médica. de sua teoria.
Um diretório para autentificar cada O fundo financeiro constituído primei­
trabalho como sendo da Escola, tal ro pela contribuição dos membros da
que sua composição Escola, pelas sub­
exclua todo confor- venções que obti­
mismo preconcebi- ver eventualmente,
do. além dos serviços
que prestará en­
3) SEç.f.O DE IN­ Uma psicanálise quanto Escola, se­
VENTARIO DO rá inteiramente re­
CAMPO FRE U­ se constitui como servado ao seu es­
DIANO. Assegura­ didá tica pelo forço de publicação.
rá primeiro a expo­ Em primeiro lugar,
sição e a censura querer do sujeito um anuário reuni­
crítica de tudo o e esse querer deve rá os títulos e o re­
que oferecem nes­ sumo dos trabalhos
se campo as publi­ ser questionado da Escola, onde
cações que nele se na medida em que quer que tenham
pretendem autori­ sido p u blicados,
zadas. se aproxime do no qual figurarão,
E mpreenderá a desejo guardado por simples solicita­
atu alização dos ção, todos os que
princípios dos quais em segredo nela terão estado
a praxis analftica em função.
deve receber seu A adesão à Escola
estatuto na ciência. se dará mediante
Estatuto que, tão a apresentação em
particular quanto se deva enfim reco­ um grupo de trabalho constituído co­
nhecê-lo, não poderia ser o de uma mo já dissemos.
experiência inefável. A admisão será decidida a princípio
Convocará, enfim, tanto a instruir nos­ por mim mesmo, sem que eu leve em
sa experiência como a informá-la do conta as posições tomadas por qual­
que, instaurado pelo estruturalismo quer pessoa no passado em relação a
em certas ciências, possa esclarescer mim, certo como estou de que os que
aquilo cuja função demonstrei na nos­ me deixaram terão sempre rancor de
sa - e, em sentido inverso, o que, de mim por não poder retornar, pois não
nossa subjetivação, essas mesmas ciên­ seu eu quem os odeia.
cias puderem receber como inspiração Minha resposta ao restante só cocerne­
complementar. rá ao que eu poderia presumir ou cons­
No limite, uma praxis da teoria é exigi- tatar sobre o valor do grupo e do lu-

195
Jacques Lacan
gar que pretenda ocupar primeiramen­ tido a introdução recente do que se
te. chama "a lista", já que uma sociedade
A organização sa Escola segundo o pôde utilizá-la com fins que desconhe­
princípio de circulação que indiquei ciam da maneira mais clara as próprias
será fixada pelos cuidados de uma co­ condições tanto da análise a ser empre­
missão, aprovada por uma primeira endida como da análise em curso.
assembléia plenária, e se manterá por Condições onde o essencial é
um ano. Essa comissão a elaborará, a que o analisado seja livre paraescolher
partir da experiência percorrida, no fi­ seu analista.
nal do segundo ano, quando uma se­
gunda assembléia haverá de aprová-la. 2 - DA CANDIDATURA À ESCOLA
Não é necessário que as adesões cu­ Uma coisa é a candidatura a
bram o conjunto deste plano para que uma Escola, outra coisa a qualificação
funcione. Não preciso de uma lista nu­
de uma psicanálise didática.
merosa, mas de tra- A candidatu­
balhadores decidi-
· ra à Escola exige
dos, como sei des- uma seleção, regu­
de agora. lada segundo seus
objetivos de traba­
lho.
NOTA ANEXA O cargo será
sustentado, a princí­
Este ato de Uma coisa é a pio, por um simples
fundação conside­ comitê de recepção
ra nulos os simples candidatura a uma chamado Cardo,
hábitos. Parecem, Escola, outra coisa ou seja, dobradiça
no entanto, abertas em latim, o que in­
certas questões a qualificação de dica seu espírito.
àqueles que ainda uma psicanálise Lembremo­
se regem por esses nos d e que a psica­
hábitos. didática nálise didática só é
Um guia do exigida para a pri­
usuário, com sete meira seção da Es­
títulos, dá aqui as cola, embora seja
respostas mais soli­ desejável para to­
citadas, - de onde das.
se presumirá as
questões que elas 3 - DA PSICANÁ-
dissipam. USE DIDÁTICA
A qualificação de uma psicanáli­
1 - DO D1DATA se como didática foi feita, até o mo­
Um psicanalista é didata a partir mento, por meio de uma seleção da
da realizaçao de uma ou mais psicaná­ qual, para julgá-la, é suficiente consta­
lises que se revelarem didáticas. tar que desde que existe não permitiu
É um preconceito, de fato, que articular nenhum de seus princípios.
se passou sempre assim nos fatos, não Ninguém tem mais chance de
dependendo de nada além de um anuá­ se afastar no futuro, salvo rompendo
rio que confirme os fatos, sem que se primeiro com um hábito que se pres­
possa pretendê-lo exaustivo. ta ao desdém. O único princípio cer­
A utilização do consenso dos pa­ to a ser proposto, principalmente por
res tornou-se caduca por haver permi- ter sido desconhecido, é o de que a

196
Ato de fundação da EFP

psicanálise se constitui como didática do ele é um praticante: a de assumir


pelo querer do sujeito, e este deve ser seus riscos.
advertido de que a análise questiona­ Fingir ignorar este fato é a incrí­
rá esse querer na mesma medida em vel função que se conserva na prática
que se aproxime do desejo que guar­ da análise didática: supõe-se que o su­
da em segredo. jeito não pratica, ou se considera que
viola uma regra de prudência e até
4 - DA PSICANÁLISE DIDÁTICA de honestidade. Que observando esta
NA PARTICIPAÇÃO NA ESCOLA regra o sujeito chegue a faltar à sua
Aqueles que empreendem uma função não está fora dos limites do
psicanálise didática o fazem por inicia­ que se passa, já o sabemos, por outro
tiva e escolha próprias. O título 1 des­ lado.
ta nota impica inclusive que eles po­ A Escola não poderia abstrair­
dem estar em posi- se desse desastro­
ção de autorizar so estado de coisas
seu psicanalista co- em razão do pró­
mo didata. prio trabalho para
Mas a admis- cuja garantia ela é
são na Escola lhes feita.
impõe a condição É por isso,
de que se saiba que que ela assegurará
eles engajaram no os controles que
empreendimento, convenham à situa­
onde e quando. A Escola é a base ção de cada um,
Pois a Esco­ de operação contra encarando uma re­
la, no momento alidade da qual faz
em que o sujeito o mal-estar na parte a concordân­
entra em análise, civiliza ç_ão cia do analista.
deve pesar esse fa­ Inversamen­
to com a responsa- te, uma solução in­
bilidade de que não satisfatória poderá
pode declinar de motivar para ela
suas consequências. uma ruptura de
É constante contrato.
que a psicanálise
tenha efeitos sobre 5 - DO ENGAJA­
toda prática do su- MENTO NA ES-
jeito que nela se engaja. Quando essa COLA
prática procede, por poucos que sejam O engajamento na Escola se dá
os efeitos psicanalfticos, acaba engen­ agora por dois acessos.
drando-os no lugar onde os deve reco­ 1 - O grupo constituído por esco­
nhecer. lha mútua segundo a Ata de Fundação,
Como não ver que o controle e que se chamará cartel, se apresenta
se impõe desde o momento em que à minha aprovação com o título do tra­
aparecem esses efeitos, e em primei­ balho que cada um pretende desenvol-
ro lugar para proteger deles aquele ver.
que vem na posição de paciente? 2 - Os indivíduos que queiram
Alguma coisa está aqui em jogo fazer-se conhecer por qualquer proje­
com relação a uma responsabilidade to encontrarão o caminho útil junto a
que a realidade impõe ao sujeito quan- um membro do Cardo: os nomes dos-

197
Jacques Lacan
primeiros a aceitarem o cargo segun- balho.
do minha demanda serão publicados O "seminários", inclusive o nos-
antes de 20 de julho. Eu mesmo enca- so curso na Hautes Études, nada funda-
minharei a ·um deles, que me faria a rão caso não reenviem a essa transfe-
demanda. rência.
Nenhum aparato doutrinário, e
6 DO ESTA TUTO DA ESCOLA
- especialmente o nosso, tão propício
Minha direção pessoal é provisó­ quanto possa ser à direção do trabalho,
ria, embora prometida por quatro pode prejulgar as conclusões que se­
anos, os quais nos parecem necessá­ rão seu. resto.
rios para colocar a Escola em ação.
Embora seu estatuto seja desde
agora o da associação declarada na lei PREÂMBULO
de 190 1, achamos que se deve primei­
ro fazer passar no Pode -se le­
seu movimento o vantar a questão,
estatuto interno em primeiro lugar,
que será, num pra- da relação desta
zo fixado, propos- fundação com o en­
to ao consenso de sino, que não dei­
todos. xa sem garantia a
Lem bremo­ decisão de seu ato.
nos de que a pior Ficará esta­
objeção que se po­ belecido que, por
de fazer às Socieda­ Se é admitido na mais qualificados
des da forma exis­ que sejam os que
tente é o esgota­ Escola pelo Cartel estiverem capacita­
mento do trabalho, ou pelo Cardo dos para discutir
manifesto até na esse ensino, a Esco-
qualidade, que elas la não dependerá
causam em seus dele e nem mesmo
melhores partici- o. ministra, já que
pantes. prossegue lá fora.
O sucesso da Se para esse
Escola se medirá ensino, com efeito,
pelo surgimento a existência de uma
de trabalhos recebí­ audiência que ain­
veis em seu lugar. da não tomou sua
dimensão foi revelada no mesmo movi­
7 DA ESCOLA COMO EXPERIÊN­ mento que impôs a Escola, é ainda
-

CIA INAUGURAL mais importante marcar o que os separa.


Este aspecto se impõe bastante, Escola Freudiana de Paris - es­
pensamos, na Ata de Fundação, e dei­ te título, reservado na Ata de Funda­
xamos a cada um descobrir suas pro­ ção, anuncia as intenções de onde pro­
messas e seus obstáculos. cede e com quem se relacionam seus
Àqueles que possam perguntar­ termos.
se sobre o que nos guia, desvendare­ Passemos pelo lugar do qual re­
mos sua razão. tc;namos - com a insígnia de origem,
O ensino da psicanálise só pode não sem títulos para fazê-lo, o desafio
ser transmitido de um sujeito a outro que implica, já saudado por Freud: a
pelas vias de uma transferência de tra- Escola se afirma, antes de mais na-

198
Ato de fundação da EFP

da, como freudiana, pelo fato - se é to para enfrentar-se com o nome de


uma verdade, que sem dúvida se sus­ Marx, suspeita nao dissipada, embora
tenta numa presença paciente a reite­ seja patente que o abismo é impossí­
rá-Ia, mas que por esse efeito tornou­ vel de colmatar; que na via entreaber­
se consciência como sendo da área fran­ ta por Freud poderia perceber-se a ra­
cesa - de que a mensagem freudiana zão pela qual o marxismo fracassa ao
ultrapassa em muito, na sua radicalida­ explicar um poder cada vez mais des­
de, o uso que fazem os praticantes de mesurado e mais louco quanto ao polf­
obediência anglófona. tico, se é que não tem ainda um efei­
Mesmo se se dá uma mão, na to de relançamento de sua contradição.
França e em outros lugares, a uma prá­ Que os psicanalistas sejam inca­
tica mitigada pela irrupção de uma psi­ pazes de julgar os males onde se ba­
coterapia associada às necessidades nham - mas se sintam af em falta - é
de higiene social, suficiente para ex­
este é um fato ao plicar que respon­
qual nenhum prati- dam com um en­
cante deixa de mos- quistamento do
trar seu mal-estar pensamento. De-
ou sua aversão, e missão que abre o
até mesmo desdém caminho para uma
ou horror, na medi­ A psicanálisepura, falsa complascên­
. .

da em que se ofere­ ou seJa, praxls e cia, portadora pa­


cem ocasiOes em ra o beneficiário
que se deve imergir doutrina da dos mesmos efeitos
no lugar aberto on­ psicanálise que teria uma ver­
de a prática aqui dadeira; nesse ca­
denu nciada toma propriamente dita, so, a etiqueta que
forma imperialista: nada mais é senão eles degradam com
conformismo do al­ termos que têm sob
vo, barbarismo da a psicanálise sua guarda para o
doutrina, regressão didática empreendimento
culminada num pu­ que não é em si,
ro e simples psicolo- de forma alguma,
gismo - tudo isso a mola-mestra da
mal compensado economia reinante,
pela promoção de mas é cOmodo o
um clericato fácil acondicionamento
de caricaturar, mas que na sua constri­ daqueles que emprega, mesmo nos al­
ção é claramente o resto que testemu­ tos esca!Oes: a orientação psicológica
nha a formação pela qual a psicanáli­ e seus diversos ofícios.
se não se dissolve naquilo que propaga. Assim, a psicanálise está demasia­
Discordância cuja imagem se tem damente à espera e os psicanalistas
na evidência que surge ao interrogar demasiadamente fora de prumo para
se não é verdade que, em nossa épo­ que possam desatar o suspense em ou­
ca, a psicanálise está em toda parte � tro lugar que não seja o próprio pon­
e os psicanalistas em outro lugar. to do qual se afastaram: a saber, na
Pois não é em vão que possa­ formação de psicanalista.
mos surpreender-nos com que o sim­ Não é que a Escola não dispo­
ples nome de Freud, pela esperança nha daquilo que lhe assegura não rom­
de verdade que ele conduz, tenha vul- per nenhuma continuidade: a saber,

199
Jacques Lacan
psicanalistas irrepreeosíveis sob qual­ do de duvidosa verdade, têm aspecto
quer ponto de vista, já que lhes teria mais digno do que as flutuaçOes da
bastado, assim como para o resto dos moda ou as premissas cegas nas quais
sujeitos formados por Lacao, renegar se fiam tantas terapêuticas no domínio
seu ensino para serem reconhecidos em que a medicina não terminou de
por uma certa "Internacional", e é no­ se delimitar quanto aos seus critérios
tório que só se deve à sua escolha e (os da recuperação social são isomor­
ao seu discernimento o fato de terem fos aos da cura?), e parece até atrasa­
renunciado a esse reconhecimento. da quanto à nosografia: dizemos a psi­
É a Escola que volta a questio­ quiatria numa questão para todos.
nar os princípios de uma habilitação É até muito curioso ver como a
patente e do consentimento daqueles psicanálise serve aqui de pára-raios.
que notoriamente a receberam. Como, sem ela, se levaria a sério aqui­
No que se afirma ainda freudia­ lo que se orgulha de opor-se-lhe? Daí
na, o termo Escola um statu-quo no
vem agora a nosso qual o psicanalista
exame. fica à vontade mes­
Deve . ser to­ mo que se saiba
mado no sentido de sua insuficiência.
de que nos tempos A psicanálise
antigos queria dizer se distingue primei­
certos lugares de A psicaná lise ro, no entanto, por
refúgio, e até bases permitir um aces­
de operação contra a tualmente não so à noção de cura
o que já podia cha­ tem nada mais em seu domínio,
mar-se de mal-estar ou seja: devolver
na civilização. seguro para seus sentidos aos
Se DOS limi­ va lorizar seu a tivo sintomas, dar lugar
tarmos ao mal-es­ ao desejo que eles
tar da psicanálise, do que a produção mascaram, retificar
a Escola pretende de psicana listas de modo exemplar
dar seu campo so­ a apreensão de
mente a um traba- uma relação privile­
lho de crítica: à giada - ainda tería­
abertura do funda- mos que ilustrar
mento da experiên- distinçOes de estru­
cia, ao questiona- tura que as formas
mento do estilo de de enfermidade exi-
vida no qual ela desemboca. gem, reconhecê-las nas relaçoes do ser
Os que se engajam aqui sentem­ que demanda e que se identifica com
se o bastante sólidos para enunciar o essa demanda e com essa identificação.
estado de coisas manifesto: que a psi­ Ainda seria necessário que o de­
canálise atualmente não tem nada sejo e a transferência que as animam
mais seguro para valorizar seu ativo tivessem revoltado aqueles que têm a
do que a produção de psicanalistas - experiência disso, até se tornar intole­
deixando esse balanço bastante a dese­ ráveis os conceitos que perpetuam
jar. uma construção do homem e de Deus
Não se trata de estarmos deixan­ onde entend.imento e vontade se distin­
do-nos levar por alguma auto-acusação. guem de uma pretensa passividade
Estamos conscientes de que os resulta­ do primeiro modo, à arbitrária ativida­
dos da psicanálise, mesmo em seu esta- de que se atribui ao segundo. A revi-

200
Ato de fundação da EFP
asao que do pensamento chama as co­ exige o encontro do que há de mais
nexões ao desejo, que Freud impOe valioso numa experiência pessoal com
aos psicanalistas, parece estar além aqueles que o intimarão a confessar­
de seus meios. Sem dúvida, estes se se, considerando-a um bem comum.
eclipsam pelos cuidados que os redu­ As próprias autoridades científi­
zem à debilidade daqueles que sao so­ cas são aqui reféns de um pacto de ca­
corridos por ele. rência que faz com que não seja de fo­
Há um ponto, todavia, em que ra que se deva esperar uma exigência
o problema do desejo não pode ser de controle, que estaria na ordem do
eludido: é quando se trata do próprio dia em todos os lugares, alhures.
psicanalista. Este é um assunto unicamente
E nada é mais típico da tagareli­ daqueles que - psicanalistas ou não -
ce do que aquilo que dá validade a es­ se interessam pela psicanálise em ato.
ta proposta: é isso que condiciona a É a eles que se abre a Escola,
segurança de sua intervenção. para que ponham à prova seu interes­
Perseguir nos álibis o desconhe­ se - não lhes estando interdito a sua
cimento que se abriga em papéis falsos lógica.

201
Jacques-Alain Miller

ACIER L'OUVERT *

Tradução de Iésus Santiago

1 portam pouco, sob a ótica de sua lógi­


Existe a psicanálise, diz Lacan, ca. Do ponto onde nos encontramos,
'e existe a Escola"Subentendido: isto percebe-se que esta crise era fatal,
faz dois'. quer dizer: inscrita desde a origem de­
Ele acrescenta: "o que põe em seu programa genético transmitida da
causa a proposição de 9 de outubro Escola n!? 1 à Escola n!? 2.
de 1967, é saber se a psicanálise é fei­ Eu o demonstro.
ta para a Escola ou a Escola para a
psicanálise". 4
Estou de acordo. A Escola, ela Entramos na Escola por Lacan.
é um meio. Se a ferramenta é boa, Permanecemos lá sem Lacan.
nós a preservamos. Se ela é má, nós Eis a matriz da crise.
a jogamos fora - ou a consertamos.
5
2 Entro no detalhe.
A crise vai se germinando na Es­ Entramos na Escola penso so­
...

cola da Causa. bretudo naqueles que pediram sua en­


Pode-se tratá-la com o silêncio trada quando Lacan ainda vivia.
tamponando-a; o que degenera em ...por Lacan: Lacan mesmo deu
mal-estar fazendo instaurar a crise. esta significação à Escola - "a Escola
Esta Escola, porém, não se fêz daqueles que ainda me amam" - ; o
para o mal-estar, suas delícias, o vene­ Conselho sancionou-a, estabelecendo
no que as bruxas destilam gota a gota, uma diferença entre os pedidos dos
"a vida de grupo". Ela foi pensada pa­ antigos membros da Escola Freudia­
ra colocar o ensino de Lacan em práti­ na de Paris, segundo aqueles que ha­
ca, assegurar sua transmissão, funcio­ viam sido formulados antes ou depois
nar a serviço da psicanálise. da morte de Lacan.
A crise, por outro lado, lhe cai Permanecemos lá. . : sim, poucos
.

bem. Nascida na crise, ela se realimen­ se demitiram.


tará na crise. É minha aposta. . ..sem Lacan: Lacan, a quem
A crise de 1990, eu gostaria que eles pediram para entrar, desapareceu
ela tivesse sido fria, clara, sem acrimô­ antes mesmo deles entrarem (as pri­
nia. É por isso que faço dela quase­ meiras adesões só aconteceram no iní­
materna. cio de 1982).
Assim, abre-se decididamente a
caixa de Pandora. 6
É na junção do por e do sem que
3 se inscreve o com inserido pelo pri­
-

A crise da escola é uma crise meiro Conselho no artigo 2 dos estatu­


de seus fundamentos. tos - "aqueles que querem, no campo
As peripécias que a aceleram im- aberto por Freud, prosseguir com La-
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.202-205
Acier L 'Ouvert

can". de seus estatutos, a ludibriar suas ins­


É aqui onde tudo se passa. So­ tâncias e a denegrir seus colegas.
bre esta questão: que significação tem
para cada um o desejo de prosseguir 9
com Lacan. Desenvolvo aqui a dialética da
Falo do Lacan que está morto. segunda, em três tempos:
Lacan-o-significante. 1. Opõe-se Lacan e a Escola.
Esta não se assemelha a aquela. Outro­
7 ra, o gigante; hoje, os anões. Outrora
As interpretações dadas na Esco­ surpresa cada semana; hoje "nada de
la da Causa do sintagma "prosseguir­ novo". Outrora, paixões, gritos, explen­
com-Lacan" dividem-se em duas classes: dores, aventuras; hoje, triste rotina.
- segundo umas, a Escola adqui­ Outrora, Rei-Sol; hoje, grisalho. Outro­
riu a marca de Lacan; "A Escola da­ ra, verdade; hoje, saber.
queles que ainda me amam" tornou­ 2. Inversão: como escaparia La­
se ela mesma um objeto de amor; o can à censura? Não o quis esta Esco­
trabalho de transferência se sublimou la de miséria? E se isto fosse ... o famo­
em transferência de trabalho. so genro? Eis aqui, pois, que deste
- segundo outras, existe Lacan por Lacan, contra a Escola, passa-se
e existe a Escola. A Escola está sem a contra Lacan, (o último Lacan, po­
Lacan. Onde está ele? Porque ele nun­ rém, quando Lacan começou a conver­
ca vem à escola? Porque ele não nos ter-se no último Lacan?) e contra a
diz mais nada? Certamente, ele não Escola (a Escola presente).
está de acordo. Há três anos, uma se­ 3. Finalmente, chegamos ao con­
nhora veio me ver: ela achava que La­ tra Lacan e pela Escola - porém, uma
can se escondia em algum lugar; pois Escola que seria a nossa e não aquela
ela o encontrara em um trem. da Usurpação.
Estas interpretações; umas co­ A estrutura dos fundamentos
mo as outras, são feitas por aqueles acaba de se desfazer.
que ainda amam Lacan, que o metafo­
rizam pela Escola ou que sonham com 10
sua vida eterna. Talvez não haja nin­ Esta dedução torna lisíveis os fe­
guém na ECF que não esteja aqui divi­ nômenos que se produziram de manei­
dido como sujeito. ra contingente desde os inícios da Es­
Outros souberam mais cedo do cola, e que, particularmente, se multi­
que nós acerca da morte de Lacan; plicam ao longo de 1989.
certamente, a desejl:!vam; o viram mor­
to ainda quando vivia. 11
Eu nomeei alguns colegas (2).
8 É isto que implica a apresentação à
A "posição" de todos - um a um céu aberto. Porque, nesta Escola, eu
- da ECF remete a estas duas classes. seria o único a ser nomeado quando
Tudo está na proporção. as coisas não funcionam?
Portanto, cada uma, considera­ É necessário lembrar aos prati­
da enquanto tal, sem mistura, traz con­ cantes da análise: que o dito traz con­
sequências bem diferentes, inclusive �equências; que não se pode denegrir
opostas. A primeira conduz a amar a ao longo do tempo, zombar, colocar
Escola da Causa, respeitar seus estatu­ em dúvida, aviltar, tornar ridículo, (mes­
tos, aceitar suas instâncias, ser bom mo tornando-se ridículo a si mesmo);
camarada (1). A segunda, a zombar pois ao fazê-lo, se produz numa comu-

203
Jacques-Alain Miller
nidade como a nossa ainda que sem 14
intenção, efeitos de mal-estar e de des­ Chegou o momento da Escola
locação? Eu só os nomeio para convi­ da Causa Freudiana "dar a volta sobre
dar-lhes a fazer isso que P. Martin, si mesma". Não há necessidade d e
um dia, chamava "dar uma volta sobre uma dissolução formal para que o pac­
si mesmo" (que não seja uma pirue­ to que nos liga a ela se verifique neces­
ta). Aliás, muitos o têm feito. sário a ser renovado.
Questionar seus fundamentos
12 tornados opacos. Reconstituí-los e tor­
Tenho falado durante esses dez ná-los transparentes.
largos anos em tom impessoal (dizer Em uma palavra é necessário
se, e me apliquei a desaparecer na as­ fundar a Escola da Causa Freudiana
sinatura coletiva das instâncias na Es­ com novo vigor. Que chegue a ser ela
cola, a dar aos seus textos esse tom im­ mesma a fim de permanecer a mes­
pessoal e estando seguro que ali se fa­ ma ali onde se fizer necessária.
lava uma vontade eeral.
Foi em vão. E de "Jacques-Alain, 15
Miller de sobrenome" que se reclama. À dialética do ponto 9, oponho
Acantoado, acossado, desbancado com o seguinte:
cócegas, com estocadas, a tiro de ca­ 1. Ter escrito a Lacan em 1 980,
nhão e lança chamas. de novo em 1981, ter sido admitido
Bem. Vocês ganharam. Eis me em 1982 na Escola que ele havia adota­
aqui. De agora em diante, eu digo eu do, não é ter estabelecido com ele
na Escola. Vejamos se vocês ganharam um vínculo místico, em nome do qual
com a mudança. pisotear a Escola de 1990 (ver Assem­
bléia do 02 de dezembro).
Sua invenção transferencial é
13
própria de cada um; não julgo; só di­
São vocês que me fazem sair de go que ela pode ser incompatível com
minha reserva. o grupo.
Não, é Ela. A Besta. A Hidra 2. Inversamente, ter sido adota­
de Efepe. da por Lacan e presidida por ele, con­
Eu já havia me entendido com tar com uma centena de membros nQ
ela freqüentemente desde os meus vin­ 1, ter a adesão de uma filha de Lacan
te anos. Eu acreditava tê-la vencido, e do redator de seu Seminário não as­
e que suas cabeças estando separadas, segura a escola da Causa Freudiana
o animal não existia mais - e eis que nenhuma legitimidade. Eu recuso a
súbito, eu a vi erguer-se diante de mim palavra - e não é de hoje (3). A legiti­
na Escola, bem viva semelhante a si midade na França é o nome por excelên­
mesma com todas as suas patas e to­ cia da causa perdida, aquela que uma
das as suas cabeças, chiando, fazendo nobreza encontrou para suportar seu
caretas, uivando, tentando atirar sobre narcisismo, de derrota (ver Chateau­
mim uma infame túnica de Neso ... briand).
Mas, basta de "forma épica". Tra­ 3. Finalmente, "o último Lacan"
ta-se de colocar a estrutura a nu. é inseparável do destino de uma esco­
Existe a escola n!l 1 e existe a la que foi criada para fazer-lhe corte­
Escola n!l 2. Não façamos confusão so­ jo. Aqueles que o recusavam se foram
bre isso. A segunda é a contra-experi­ por eles mesmos. Se alguém desta Es­
ência da primeira. A EFP não poderia cola pensa atualmente ter feito um er­
renascer na ECF, exceto com a condi­ ro de juventude, e se as confidências
ção de fazê-la desaparecer. de algum outro lhe deixou ressabiado

204
Acier L 'Ouvert

ou desconfiado, que este parta por sua 18


vez. Peço agora que me respondem.
Em resumo: Lacan está morto; Não com reservas. E, contrariamente
privilégio da ECF está caduco; resta a minha maneira de proceder nestes
o trabalho. últimos dez anos, eu nao terei reser­
vas com ninguém, nem comigo mesmo.
16 Que me completem, que me pro­
Quando suas irmãs, filhas da dis­ longuem, que me questionem, que
solução se definham, se enrugam, se me façam objeções, que m� refutem
amargam, dão à língua pelas costas, a - servirá.
que Escola n!l 2 deve seu "sucesso"? Isto nao se dirige simplesmente
A sua legitimidade? A seu talento? A aos antigos da Efepe. Eu não esque­
sua indústria? A Providência? Não: a ço os outros que têm sua palavra a di­
uma potente transferência de trabalho. zer. E pense, primeiramente, nos futu­
Enquanto suas irmãs avarentas ros da ECF - a lhes transmitir outra
se debatiam para saber quem melhor coisa que os tormentos e os impasses
responderia à questão de quando La­ de seus irmaos mais velhos.
can deixou de ser Lacan (em 1964?
em 1974? em 1979? 80? 81 ?), a peque­ 19
na Escola n!l 2, Cinderela da história, "É aqui, diz Lacan na sua últi­
estabelecia de saída, ao ensino de La­ ma carta, que se provará o núcleo on­
can, uma relação operatória, simples de meu ensino possa subsistir."
e franca.
Nós, nós retomamos tudo: o jo­ 09 e 1 1 de dezembro de 1 989.
vem Lacan, e o velho Lacan, Lacan
do conceito e Lacan do materna, La­
can do gráfico e Lacan do pó, Lacan
do passe e Lacan da garantia, Lacan Publicado em Sig - Correio do
teórico e Lacan prático, Lacan institu­ Simpósio - Ano IV n!l 15 - Novem­
-

cional e Lacan-a-lei e Lacan-apesar­ bro/90


da-lei, ... Sem triagem. Dissemos sim.
E, eu fiz para nós o plano da casa, en­ A tradução literal deste título em português - "A­
quanto os outros batiam a cabeça con­ ço o aberto", impediria sua homofonia com a expres­
são de Lacan - "A ciel ouvert".
tra os muros.
Esta relação existe. Ela se verifi­
ca. Está no fundamento do trabalho
da Escola e do Campo Freudiano. Ain­ NOTAS
da mais precioso que em nenhuma ins­
tituição. Agalma. I. Cf. J. Lacan, "UIU! procédure pour la passe•,
Omicar?. n� 37 (avril-juin 1987), p. 10: •...naus
17 voulons des camarades qui redent service.. .
2. J'ai nommé ici des collegues; cela esl aujourd
Lacan é um bloco. 'hui dépassé, je supprime ces naminations. J. -A.M.
Deve ser tomado como tal. . 12/03/90.
É a única maneira de apreender 3. Cf. Omicar? n� 28 (janvier-mars 1984), p. 6; et
o que foi para ele Grande S de Gran­ la La Lettre mensuelle, ne 75, {janvier 1989),
p. 33. (tradução de Jésus Santiago)
de A barrado.

205
Jacques-Alain Miller

ENTREVISTA SOBRE A CAUSA ANALÍTICA

Tradução de Maria Anita C. R. Lima Silva

- Como você explica este grande tumul­ estender esta exigência consumista ao
to do meio psicanalítico? terapeuta? Quer se saber de que é
que ele é feito ... Portanto, Leclaire re­
J.-A.M. - Por um efeito de aniversário. torna, e é como se soasse a hora de
Nós estamos aos dez anos anos da dis­ botar seus assuntos... em Ordem. A
solução, é hora para cada um de fazer nebulosa que se seguiu à dissolução
suas contas. No grupo do qual eu fa­ se sente doente, fica com medo; don­
ço parte, a Escola de Causa freudia­ de arrumações, reaproximações, peti­
na, estava programado a partir de 1982... ções, e, ao mesmo tempo, um ressenti­
mento vivo contra o grupo que apare­
- Mas e os outros? ce como o mais poderoso, a Escola
da Causa, cujo mal é ser o único ca­
J.-A.M. - Os outros também estão pro­ paz de fazer figura, fazer frente à IPA.
gramados, mas sem o saber.
- E a IPA?
- Como é isto?
J.-A.M. - Lá também o prazo dos dez
J .-A.M. - Comecemos pelo franco-ati­ anos tem o seu papel. Esperava-se des­
rador do meio. Desde a dissolução, te lado que, morto Lacan, seu "movi­
Serge Leclaire circula. Ora no palco, mento" desapareceria com ele, e que
na televisão, ora nos bastidores, de se poderia recuperar com calma bons
um alto funcionário a outro. pedaços de seu ensino. Mas não é o
Bem. Após dez anos, era tem­ caso: a audiência de Lacan se expan­
po para ele de reencontrar um porto. diu incrivelmente entre os praticantes,
Ei-lo, portanto, de volta e naturalmen­ enquanto que a ideologia ipefsta se
te como porta voz do Zeitgeist, o espí­ curva e fracassa na sua velha interpre­
rito do tempo. Também, ao tomar o tação neurobiológica da metapsicolo­
público por testemunha, ele interpela gia freudiana. É um enorme contra­
seus cplegas sobre eles próprios, sobre senso planetário. A IPA faz atualmen­
a desordem de seus negócios. E... te o luto difícil de uma ambição qua­
se secular: se ver reconhecida como
APOCALIPSE detentora do monopólio da psicanálise.

- Por que você diz ''porta-voz do espfri­ - E a Escola da Causa freudiana?


to do tempo"?
i. ·-A.M. - Esta Escola que não parou
J.-A.M. - Você sabe bem que noje não de se consolidar e se estender a partir
se quer mais consumir um suco de fru­ de sua criação em 1981 e é ao mes­
ta, nem um iogurte, nem um medica­ mo tempo um colosso de pés de barro ...
mento, sem que se conheça seus ingre­
dientes: o que seria mais lógico do que - É um panorama apocalfptico!
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.206-217
Entrevista sobre a causa anaHtica

J.-A.M. - É que ce fato a prática da - O senhor se coloca "acima da confu­


psicanálise se estende no mundo e que são"?
o discurso psicanalftico, por assim di­
zer, estilhaça as formas de organização J.-A.M. - Este não é na verdade o meu
em que os analistas acreditaram que gênero. Queria apenas reportar os fe­
o poderiam captar e conter. Lacan con­ nômenos de superfície à estrutura que
siderava que a IPA não era mais que os determina. A história da psicanáli­
uma sociedade "de assistência mútua se, aquela dos grupos e das . opiniões
contra o discurso analítico." Foi em psicanalíticas, torna-se muito mais inte­
Berlim, em 1920, que o grupo analfti­ ressante se se acredita no inconscien­
co encontrou sua forma clássica, com te. Todos estes fenômenos se interpre­
duas cabeças, sociedade e Instituto, tam como recalcamentos, defesas con­
que atingiu seu zênite nos Estados tra as consequências da descoberta
Unidos nos anos cinquenta e foi im­ do inconsciente freudianos e da práti­
portada para a França em 1953. Esta ca que põe a trabalhar o sujeito do in­
forma está cada vez mais fora de mo­ consciente. E isto não poupa nem mes-
da. Lacan antecipou is- mo o próprio Freud.
to · desde 1964, crian­
do uma forma nova - É um paradoxo!
que ele chamava "Esco­
la". J.-A.M. - Nos primei­
ros tempos, "acreditar
- Isto foi há vinte e cin­ no inconsciente" basta­
co anos. Depois houve va a Freud para que
a dissolução de 1980, ele o considerasse de
a maioria dos ex-mem­ sua "escola" - ele escre­
bros da Escola freudia­ veu isto a seu discípu­
na renunciaram à no­ lo Karl Abraham. Por
ção de Escola, e a pró­ que nao? Tanto que a
pria Escola da Causa, psicanálise não se es­
a se crer em você, está tendia muito mais além
ameaçada. Isto é mais dos quarteirões de Vie­
brilhante que a IPA? na - e isto nao dizia
quem é analista. Ao
J.-A.M. - Não é nada brilhante. Não mesmo tempo que Freud internaciona­
creia que eu queira estigmatizar a qual­ lizou a psicanálise - e foi necessário
quer preço os "ortodoxos", que são para isto que ele superasse a resistên­
além do mais "revisionistas" e incensar cia encarnecida de seus primeiros com­
os "lacanianos" que querem ser os ver­ panheiros - ele acrescentou que era
dadeiros "freudianos". De jeito nenhum. necessário, para ser analista, ter feito
Nós não estamos mais em 1 964, quan­ a prova do analista - estar convencido,
do a IPA apareceria carregada de to­ de algum modo às suas próprias cus­
dos os pecados de uma já longa histó­ tas, de. que existe o inconsciente. Ora,
ria, enquanto que a experiência institu­ é espantoso que ninguém tenba então
cional de Laean estava ainda por vir. pensado que a qualificação do analis­
Vinte e cinco anos depois, as coisas ta pudesse ser constatada em decorrên­
sao mais complexas. cia de sua própria análise. Ao contrá­
rio, a idéia se impôs que um analista
não podia ser reconhecido senão por
OSANALISTAS CONTRA A ANÁLISE já o ter sido, por já haver praticado a

207
Jacques-Alain Miller
análise. foi vencido no plano institucional pe­
la IPA, e que deixou passar. Não se
- Isto não me parece desarrazoado! assuste de eu voltar à raiz do proble­
ma. Como definir o psicanalista? A
J.-A.M. - Com efeito. Mas espere que resposta, aquela que sempre foi dada
eu lhe faça ver as consequências ime­ pelo senso comum dos psicanalistas é:
diatas. Em primeiro lugar, isto reme­ o psicanalista é um praticante da psica­
te automaticamente a psicanálise às nálise. Ora, é esta resposta mesma que
mãos de uma gerontocracia. Em segun­ deve ser interrogada, colocada em dú­
do lugar, isto valoriza indevidamente vida, contestada e mesmo recusada.
um auto-proclamado "saber lidar com Pelo menos na orientação de Lacan.
o inconsciente", onde a dimensão de E de acordo com o desejo de Freud,
repetição que comporta a prática ana­ que não reduzia de modo nenhum a
lítica apaga o elemento da surpresa, a psicanálise à terapêu tica.
propriedade de imprevisibilidade que
não é eliminável do inconsciente. O in­ - Não compreendo mais. O psicanalis­
consciente "é sempre a mesma coisa", ta não é um praticante da psicanálise?
salvo que suas manifes-
tações, suas formações, J.-A.M. - Eu não digo
nunca são semelhantes. isto. Eu digo que o psi­
A via gerontocrática canalista, enquanto tal,
engendra o culto do Por que um nao é um praticante,
padrão: na instituição, analista hav eria nem tao pouco um teó­
ditadura conformista; rico da análise. Definir
na cura, privilégio da­ de se preocupar o psicanalista como
do ao paciente obsessi­ com a transmissão um praticante é se con­
vo, sendo o sujeito his­ denar a reconhecê-lo
térico desconhecido, da psicanálise? no "só-depois", de fac­
rejeitado, classificado Por que não girar to, pelo fato de que ele
de "borderline", empur­ fu nci ona como tal.
rado para a "psicotera­ apenas a manivela Ora, trata-se de saber
pia", a não ser que fos­ da prá tica ? se o psicanalista pode
se "obsessionalizado". ser reconhecido en­
Disto resultou a forma- quanto tal antes que
ção de um tipo ideal ele pratique a psicaná-
de Analista: o praticante que envelhe­ lise.
ceu na luta, experimentado mas tam­
bém sabendo de tudo, tipo de sábio - Desculpe-me, mas isto é aberrante!
moderno, cético, apagado, exceto quan­
do acredita que alguém o prejudicou, J.-A.M. - É ao contrário, é o direito
pois é também hipersucetível. comum. Tome um médico. Para exer­
cer a medicina é necessário antes ser
JOVENS E VETERANOS médico. Imagine você um tipo bancan­
do o cirurgião durante dez anos, re­
- Mas isto é inevitável? talhando daqui e dali, e depois alguém
dizer: "Ah, sim, aquele ali, ele não se
J.-A.M. - Foi necessário. Freud rapida­ saiu tão mal, pode-se nomeá-lo cirur­
mente se encontrou em guerra com gião" : Trata-se de saber se a qualifica­
sua própria criação. Ele não pôde im­ ção analítica não pode, ela também,
pedir os americanos de impor o mono­ ser reconhecida enquanto tal antes,
pólio médico. Pode-se dizer que ele ou independentemente, de função.

208
Entrevista sobre a causa ana/(tica

Quer dizer, de jure, de direito enao zido um "analista de Escola", bem, ele
apenas de fato, só-depois. recebe igualmente este título. Mas en­
fim, o jogo seria conseguir delimitar
- Mas como? E como definir este psica­ "ser-um-analista" fora da funçao. Vo­
nalista? cê compreende em que a idéia de uma
"ordem de psicanalistas" se ela pode
J.-A.M. - Da maneira mais simples: o se referendar em Freud, que a desejou,
psicanalista é que resulta de uma psica­ e depois deixou por conta da IPA, vai
nálise. Nao é mais do que levar a sério na direçao oposta à tentativa de Lacan.
a condiçao sine qua non do psicanalis­ Isto seria colocar no posto de coman­
ta: que ele fez uma análise. do os velhos que, não contentes de se­
rem notórios, desejariam ainda um cer­
- E por que Freud não teve esta idéia? tificado do Estado, e o direito de con­
ceder. Isto seria IPA para todos. Ora,
J .-A.M. - Freud foi impedido de ter envelhecer na prática não é na psicaná­
esta idéia pelo fato de que ele pensa­ lise garantia de nada.
va que uma análise
comportava um ele­ -A Ordem é uma opera­
mento irredutível, dem­ ção anti-jovens?
bocava num impasse,
e portanto tinha um J.-A.M. - Lacan bem
horizonte infinito. La­ dizia que a responsabi­
can pensou que deste lidade da Escola era
mesmo elemento irre­ de fazer avançar a aná­
dutível se poderia fa­ lise, nao de constituir
zer o princípio do pas­ uma casa de repouso
se terminal de uma aná­ para os veteranos.
lise, como processo fi­
nito. Sua hipótese é - Portanto, você não
de que este momento quer ouvirfalar de uma
pudesse ser autentica­ Ordem?
do por uma transmis­
são feita pelo sujeito, J.-A.M. - A IPA não
em condições especiais, quer ouvir falar disto
a outros analisandos que nele reconhe­ por que ela pensa que é a Ordem. Os
ceriam o atravessamento que ele havia grupúsculos da nebulosa lacaniana não
feito, uma vez que eles ainda estariam a desejam porque sabem que não são
com a tarefa de dar este salto, mas já muito apresentáveis, que são quase to­
teriam as primícias deste além. dos pequenos baronatos que evacua­
ram o questionamento sobre o psicana­
- Então são sobretudo os jovens? lista que o "passe" comporta, e que
quando funciona é se remetendo ao
J.-A.M. - Sim! Os que Lacan propu­ charme de um discreto veterano. Os
nha instalar como "analistas da Esco­ membros da Escola da Causa freudia­
la" não eram os veteranos, mas os jo­ na não querem porque estão ligados
vens. Por outro lado, compreenda, a ao "passe", por razOes essenciais, mes­
Escola deveria igualmente reconhecer mo que sua prática efetiva tenha deixa­
os praticantes de facto. Tendo feito do a desejar.
suas provas na direção da cura, e sem
excluir o caso em que um tenha produ- - Em que?

209
Jacques-Alain Miller
J.-AM. - De que se trata no passe? J.-AM. - Sem dúvida. Há vinte e cio-
De aprender porque vias, sempre im- co anos. Isto m� ajudou muito.
previsíveis, um sujeito em análise veio
a se dizer que ele tinha a capacidade - Como assim?
de interpretar o inconsciente e de assu­
mir o lugar de analista e que ele esta­ J.-AM. - Fizeram de meu nome uma
va à altura de querer o que um analis­ linha divisória. Contra minha vontade,
ta deve querer. Isto supõe que não se mas é assim. E isto coligou em tomo
creia saber, de um saber pré-concebi­ de mim amigos muito fiéis e muito nu­
do, o que é um analista, e que se dei­ merosos. A IPA mantém um olho em
xe ensinar pelo candidato. E se ele efe­ mim: eu não posso ir a Londres sem
tivamente lhe ensinou, você o nomeia que seu Presidente alerte suas redes
de "analista da Escola", ou seja, o equi­ sobre meu desejo de "conquistar a In­
valente renovado do que Freud chama­ glaterra" - Textual. Os lacanóides me
va de "analista didata", aquele que é detestam, por ver em mim sua Nêmesis.
capaz de ensinar. Ora, é difícil, quan­
do se é membro de um juri, conservar - E por haver sido distinguido pelo Pai,
durante muito tempo por Lacan, como Lau­
esta posição de igno­ rent Fabius por Mitter­
rância metódica. Ten­ rand...
de-se naturalmente a
uma posição inversa. J.-AM. - Exageraram
O que falseia a experi­ muito.
ência.
- Você é o genro dele...
- Foi o que aconteceu
na Escola da Causa? J .-AM. - Nisto eu te­
nho a franqueza de
J .-AM. - Eu não digo
acreditar que fui distin­
isto. Aconteceu, sem
guido por minha milher.
dúvida, na Escola freu­
diana de Paris. Pode
acontecer conosco.
- Voltemos à Escola.
Eu debaterei com meus
Por que assumir o ris­
colegas da Escola. co de declarar a crise?
- Por que você colocou esta Escola J.-AM. - O risco era o d e não o fazer,
em crise? de deixar se instalar e se alastrar u m
mal-estar que pouco a pouco a teria
J.-A.M. - Ah, eu creio ter apenas trans­
minado, paralisado. Eu sempre pensei
formado um mal-estar em crise, para
que o momento do despertar viria.
que nós estivéssemos à altura de tra­
Esta Escola foi, afinal, feita para La­
tá-lá. Porque esta Escola é a principal
can, para responder ao que era sua
instituição de orientação lacaniana que
4emanda, sua exigência, no naufrágio
existe no mundo. Ela tem um papel
central no Campo freudiano, que es­ da dissolução. Ela foi ao mesmo tem­
po a tábua de salvação onde subiram
tá presente em quase quarenta países.
O futuro da psicanálise passa por ela; uma centena de membros da Escola
Ela merece que se lhe dê atenção. E freudiana, enquanto que outros esta­
o que explica aliás que ela seja um alvo. vam ao mar e improvisavam algumas
jangadas com os escombros de navios,
- Você especialmente... ou seguiram sozinhos, a nado. Nós

210
Entrevista sobre a causa analftica

não repensamos a Escola. Nós não ti­ garantido, selado.


vemos tempo. Muito mais, nós aperfei­
çoamos seu funcionamento - permuta­ LACANIANOS ENTRE ASPAS
ção, transparência, regularidade - e co­
locamos a pesquisa clínica na ordem - Isto funciona?
do dia de nossas pesquisas. O balan­
ço de dez anos é inesperado. Apenas J.-AM. É claro que não. O analista
-

chegou o momento de nos interrogar­ aspira como todo mundo a gozar agra­
mos sobre o que queremos fazer jun­ davelmente de sua competência profis­
tos nos próximos dez anos que vêm. sional. O colega "analista entre si" as­
pira incessantemente a se aposentar.
- O que é que você entende por "repen- Aquele que não tem a garantia da Es-
sar a Escola"? cola sofre e reivindica. Portanto, não
funciona, range. Ou bloqueia. Ou se
J.-AM. - Reinventá-la. Eu não creio desarticula. Assim, sem pensar que
que a novidade introduzida por Lacan existe u m "bom sistema", é necessário
tenha sido compreendi- reorganizar, relançar
da até hoje, que se te- a experiência. Não é
nha captado que o con- para fazer funcionar
ceito de Escola é u m mas antes para impe­
conceito essencial da dir, impedir que se aco-
psicanálise. Qual é a Não é um Wisstrieb mode. Eu compreen­
diferença entre o con­ do bem estes pratican­
ceito de Sociedade de que sustenta a tes que uma vez que
psicanálise e o da Esco­ cura, mas este é acreditam ter adquiri­
la? Uma sociedade é do uma competência
estabelecida sobre a susceptível de e sobretudo que se as­
crença, ou axioma, de surgir ao término segura de um estabele­
que se sabe o que é o cimento profissional,
Analista. Que ninguém da experiência deixam o grupo analíti-
entre aqui se não for co com alívio. Mas es­
analista! A Escola é ta solução de desespe­
estabelecida sobre um ro não assume a trans-
dado totalmente con- missão concreta da psi­
trário: que não se sabe isto, mas que canálise. Evidentemente, pode-se colo­
se pode aprender, caso por caso. É o car a questão: por que um analista ha­
lugar por excelência onde se coloca a veria de se preocupar com a transmis­
questão do que é ser analista, onde são da psicanálise? Por que não girar
esta questão é aberta, dá lugar a um apenas a manivela da prática?
trabalho, onde as respostas são postas
à prova. O passe tem uma ligação es­ - Bem, sim Por que não?
sencial com o conceito -de Escola. A
Escola não é "os analistas em si", é o J.-AM. - Os psicanalistas têm bastan­
contrário. A presença do praticante te dificuldade de se situar com relação
não garantido, ou do não-analista, é à psicanálise. Numa certa medida, exis­
um componente ineliminável, de tal te a psicanálise e não apenas uma que
forma que a questão: "E você, em que outra cura? A psicanálise é uma abstra­
é que você está autorizado a se fazer ção? Defendê-la e expandi-la no mun­
de analista?" permanece insistente pa­ do não será um ideal, já que uma psi­
ra cada um, inclusive para o analista canálise deveria terminar por um cre-

211
Jacques-Alain Miller
púsculo dos ídolos, uma liquidação tas com relação à psicanálise e a sua
da transferência, uma queda das iden- transmissão.
tificações, uma travessia da fantasia?
Para dizer a verdade, esta dificuldade J.-AM. - Sim, eu falo daqueles que
não é aguda na IPA que é protegida se referem a Lacan. É um fato agora
por sua função de defesa profissional. confirmado, e ao qual deve se dar ra­
Ela o é para os "lacanianos" entre as­ zão mais do que censurar, que para
pas, dos quais muitos vivem em gru­ muitos, sua relação à causa analftica
pos bem pequenos, o que não é defei­ tornou-se problemática. Eles perderam
to, mas é sem perspectiva histórica. o senso de suas responsabilidades, eu
não digo nas curas, mas a respeito da
- O que é que isto quer dizer, os "laca­ psicanálise enquanto tal.
nianos" entre asas?
- A causa analftica? O que é isto?
J.-AM. - A Internacional, por causa
do monopólio médico que ela preconi­ J..-AM. - Eu já chego lá. A experiência
zou em vários países, a despeito da psicanalítica, a da associação livre, in­
oposição de Freud, duz o sujeito a recolo­
criou ela própria, ao car em causa, de for­
longo dos anos, um vas- ma generalizada, suas
to espaço exterior, po- escolhas, suas idéias,
pulado por analisados seus valores, ela faz "va-
que ela se recusava a cilar os faz-de-contas",
reconhecer como ana­ Os psicanalistas dizia Lacan. Donde
listas porque eram de todas as há uma saída possível
não-médicos. A estes da experiência analfti­
se juntaram aqueles tendências são os ca que levaria o sujei­
que por princípio, ou "enfants gatés " de to a uma posição que
por espírito libertário, Lacan designava co­
recusavam o padrão Lacan mo a dos "esperta­
rígido. Terminou sen- lhões". E "os esperta-
do muita gente. E em lhões erram... " E aliás
todos os países latinos, o título de um seminá­
esta gente seachou pro- rio, homofônico com
*
gressivamente imanta- "Os Nomes-do-Pai" .
da por Lacan, que dava legitimidade O espertalhão pode ser alguém muito
a sua recusa, que lhes permitia positi­ bem, alguém como o cínico, que no
vá-la. Isto é claro na América Latina. final de sua acese tenha chegado ao
Mas alguma coisa desta ordem se pas­ saber de que o discurso universal, de
sou também na França, de tal forma que o Outro do discurso universal, os
que para a Escola freudiana afluiu valores da civilização, tudo isto não e
uma multidão que se colocava sob a mais que um faz de conta, não existe,
égide e a proteção de Lacan. Daí a se que só o gozo é real, e que este gozo
render à disciplina, muito exigente, não e o sozo do Outro, mas o gozo
de seu ensino, havia uma margem e do Um. E o que ilustra, ao seu modo,
mesmo um abismo. a nobre figura de Diógenes, reprova­
da pela moral das famílias. O proble­
LACAN E DIÓGENES ma não escapou a Lacan, ele o situou
em seu lugar, ele nomeou este esperta­
- Voltemos à questão que você próprio lhão e ele mostrou bastante bem que
colocou: a dificuldade dos psicanalis- esta saída da experiência não era a

212
Entrevista sobre a causa analítica

que fazia o analista. Müs visivelmente, uma Escola, onde uma multidão a ele
isto nao impediu que estes "esperta­ se juntará. E é ainda a esta causa que
lhOes" proliferassem em torno dele, ele se refere para dissolver e relançar
com o resultado lamentável que nós a exJ:?eriência. Ora, o que é esta cau­
vemos, nisto que eu chamava de N ebu­ sa? E o contrário do que Freud cha­
losa. mou de "a castração". Para Freud, a
castração era a causa deste "horror
- Lacan não é um pouco responsável de saber" que é o recalque. Bem, a ex­
por isto? periência da associação livre, tal co­
mo dirigida por um analista, vai contra
J.-A.M. Ah, plenamente, na medida
- o recalque, porque ela vai no sentido
em que a experiência analítica compor­ de circunscrever no sujeito a causa
ta de fato, para o sujeito, um "beneff­ de seu horror de saber. É disto que
cio clínico", quer dizer, o estabeleci­ se trata, é da queda desta causa, uma
mento com seu gozo de uma relação vez circunscrita, e da emergência em
emancipada daquilo que Freud chama­ seu lugar, da causa de um "desejo de
va de "o Supereu", que saber". É neste senti­
constrange o sujeito a do que Lacan pode sus­
renunciar a seu gozo tentar que não é um
para empanturrá-lo, Wisstrieb que sustenta
se bem que seja este a cura, mas que este
gozo renunciado que é suceptfvel de surgir
reapareça sob a másca­ ao término da experiên­
ra da consciência mo­ cia.
ral, tanto mais exigen­ Bem, eu tentei mostrar
te quanto mais se te­ isto no meu curso des­
nha cedido. Mas esta te ano do Departamen­
mais-valia cínica, se ela to de Psicanálise, a cau­
se constata, não é de sa analftica não é se­
todo suficiente para não a causa deste Wiss­
autenticar a produção trieb propriamente ana­
de um analista ao final lítico que Lacan desig-
de uma análise. Não é nou com o desejo do
porque Diógenes mise- analista.
rável está em seu barril que ele está A causa analítica não é uma Grande
fora de todo laço social. Causa nem uma Causa Justa, ela é o
que o sujeito encontra numa modalida­
- Como se introduziu aí a "causa analí­ de que lhe é toda particular, em decor­
tica"? rência de sua análise, e com a qual ele
pode operar, se ele desejar, como pra­
J .-A.M. - Repare que havia para Freud ticante.
uma evid6encia da causa analftica. É
uma referência constante de sua cor­ DE SPINOZA A STENDHAL
respondência com seus discípulos. E
Lacan não deixa de chamar a atenção - Mas se esta causa é particular a ca­
para isto no momento da criação da da um, eu não vejo como ela permita
Escola freudiana em 1964. Ele sempre reunir...
esteve só, diz ele, na "sua relação com
a causa analítica", e é precisamente J.-A.M. - A causa do horror de saber
disto que ele se autoriza para fundar é própria a cada um, a causa do dese-

213
Jacques-Alain Miller
jo de 1111hcr será também? Ou pode ela como saber da castração quer dizer
ser colocada em denominador comum? que eles são imcomparáveis. Aliás, ve­
n u aposta ds Escola: que há um dese­ ja na Ética de Spinoza, onde a compa­
j o de saber de um tipo especial, que ração é proscrita do conhecimento,
merece ser designado como o desejo não há relação sexual... E isto nos per­
do analista; correlativamente, este de­ mite im;entar um amor de um tipo iné­
sejo, que não é o desejo próprio a tal dito. Na análise, se trataria também
sujeito que pratica a análise, mas o de inventar um ...
desejo de alguma forma ligado ao dis­
positivo da análise, que este desejo tem - Inventar um amor?
uma causa que é, ela também, de es­
trutura e que merece ser chamada a J.-A.M. - Spinoza inventa um, Sten­
causa analítica; que os analistas, e dhal inventa um ... Eu associo os dois
não somente eles, são suceptfveis de porque eu reli um na tradução nova
trabalhar em função desta causa; é o de Robert Misrahi, e porque eu li a
que define seu pertencimento a uma biografia do outro por Michel Crouzet
Escola. A dificuldade para eles é que ( 1 ) L 'Amor inte/lectualis Dei, mais Do
eles só podem ser ali Amor, não seria uma
membros ativos, en- má fórmula para um
quanto analisandos, fim de análise... No fim
analisandos da causa da análise não se tra-
analítica. É o que se ta somente de saber
vê quando os pratican­ se o sujeito se aliviou
tes da análise se aventu­ do que atrapalhava a
ram a aparecer fora sua relação com o go­
de seus consultórios, zo, mas se a causa ana­
nos grupos permanen­ lítica tomou consistên­
tes ou transitórios (con­ cia para ele. E verificar
ferências, colóquios, a emergência do dese­
etc.): seus colegas os jo do analista, tal é o
mandam de volta ao objetivo do procedi­
divã! mento do passe.

- Você diz "desejo de O DESEJO X


saber". Saber o que?
- Aí, é necessário que eu lhe peça para
J.-A.M. - De fato, não é qalquer saber. definir este desejo. Eu não sei se você
É aquele da identificação primordial pode fazê-lo em algumas palavras...
do sujeito e da orientação original de
sua relação com o gozo. Tudo sobre J.-A.M. - Vamos tentar. Se se deixa
o fundo da inexistência da relação se­ de lado a linguagem dita personaliza­
xual: o sujeito não é, como tal, de da, que é certamente formalizada,
um dado sexo e destinado a gozar do mas que não permite a função da pala­
outro, do outro sexo. vra, não há enunciado que não seja in­
terpretável, quer dizer, que não se pos­
- Eu reconheço aí uma tese de Lacan: sa perguntar sobre o que o locutor
não há relação sexual. quer dizer. Ora, o enunciado interpre­
tativo do analista é caracterizado pela
J.-A.M. - Sim, a raiz freudiana da cas­ indeterminação deste "querer dizer".
tração é a comparação: os sexos se com­ Digamos que ao nível do significado
param. O "não existe relação sexual" há um X. O desejo deste analista é es-

214
Entrevista sobre a causa analftica

te X, é ele que faz de um enunciado, que a de Deus quer o bem de vocês,


uma interpretação. E é no lugar vazio mas não do que a de que Deus lhes
deste X que o sujeito vem, ao longo deseja o maL A última palavra de Freud
da experiência, alojar seu desejo, ins­ não foi a Beatitude, mas a pulsAo de
crever as significações deste desejo e morte. Depois de tudo, entre Spinoza
que estas tomam pouco a pouco con­ e Stendhal, há Sade ... A verdade é sem
sistência e, se posso dizer, se objetivam. dúvida que Deus não sabe o que faz.
É assim que este X tornado objeto to­ É o que faz S pinoza crer que Deus
ma finalmente um valor determinado, não quer nada, logo que de fato Deus
mas que, de golpe, sofre, se posso pas­ é inconsciente. (2).
sar do sentido lógico ao sentido mer­ A idade da ciência não deixa lugar pa­
cantil, uma deflação. ra uma sabedoria, mesmo que ela se­
O resultado desta operação é que es­ ja acósmica, nem tão pouco para o hu­
te objeto se desliga, que o sujeito aca­ manismo. Neste vazio há precisamen­
ba com o que o fazia palpitar e que te a psicanálise.
sua relação com o "significante" se Eu não consegui ser claro. Eu resumi
acha, de algum modo, muitas coisas.
livre do que a sobrecar-
regava. Donde a possi- - Creio que o leitor de
bilidade dele de fato L 'Ane pode suportar
manejar, por sua vez, Tra ta-se de saber não compreender tudo!
o X do analista de for-
ma autêntica. se o psicanalista J.-AM. - É que eu gos­
Eu disse "manejar", pode ser to de ser claro...
porque o desejo do
analista se exerce em reconhecido - Não se pode dizer que
um sentido que não é enquanto tal antes Lacan o seja sempre!
qualquer um: num sen­
tido contrário à identi­ que ele pratique a J.-AM. - Ele tomou a
ficação, no sentido de psicanálise noite, me restava o dia!
separar o sujeito dos
"significantes" que o OS DÂNDIS DO DE­
identificaram, "assujei- POIS DE MIM O DI­
taram" no Outro, e is- L ÚVIO**
to até se realizar, ele, sujeito, como
efeito de uma combinatória sem finali­ - Gostaria de descer da eternidade à
dade. É, sem dúvida, este ponto onde atualidade, se isto não lhe incomoda.
Spinoza quer elevar o espírito, em que
o sujeito pode se considerar "sub spe­ J.-AM. - Mas tudo isto é perfeitamen­
cie aetemitatis". Mas isto não é Spino­ te atuaL
za até o final, pois o sujeito não é so­
mente "o efeito do significante", ele é - Falo, por exemplo, do que se lê na im­
também uma resposta ao gozo do Ou­ prensa sobre a psicanálise, a partir de
tro, como o testemunha a função da janeiro.
sedução do Outro na história da histé­
rica. A ética da psicanálise não é a de J.-AM. - O que se lê sobre a psicanáli­
Spinoza. É pena! A combinatória, por se se caracteriza pelo que? Por um
serem finalidade, ela come um peda­ desgaste constante: degrada-se seus
ço de você. A idéia de que Deus não recursos, deforma-se seus métodos,
quer nada é certamente mais justa do desvaloriza-se seus resultados, e é ne-

215
Jacques-Alain Miller
cessário constatar que não são tanto se trata de Freud e Lacan. Mas em se­
os jornalistas e sim os psicanalistas, gundo lugar, é necessário animar este
eles próprios que animam esta cabala saber com um sopro novo, fazê-lo avan­
maldosa, e que os "lacanianos" não to­ çar e isto pede trabalhadores decidi­
mam nisto uma parte menor do que dos, uma Escola, Escolas que sejam
os "ortodoxos"! dignas deste nome. Em terceiro lugar,
digo aos lacanianos sem Escola: quan­
- Isto o inquieta? to tempo vocês vão bancar as almas
penadas? os dândis do "depois de mim
J.-AM. - Eu vejo nisto um sinal dos o dilúvio"? os bandidos de Carnaval?
tempos. Enquanto o estruturalismo Não já é tempo de vocês se unirem e
era moda, por volta de 1966, o tom fazerem a sua própria Escola e parar
não era tão mesquinho. Nos dias de de se obsecarem com a Escola da cau­
hoje, se acredita crescer injuriando sa e comigo? Muitos dentre vocês os
Lacan para propósitos inconfessáveis; convocam à unidade: federação, confe­
a ira do colega leva a descrer da pró­ deração, conferência, convenção, re­
pria psicanálise. O que se passa? Vou de, pouco importa o nome, eu sou a
lhe dizer: os psicanalis- favor. Em quarto lugar,
tas, de todas as tendên­ eu não vejo porque
cias, são os "enfants ga­ não me endereçar tam­
tés" de Lacan, eles vi­ bém à Sociedade Psica­
vem do crédito, da con­ nalítica de Paris para
sideração que seu tra­ dizer a seus membros:
balho valeu, na Fran­ já que um de seus anti­
ça, para a psicanálise, gos presidentes se lan­
e este crédito eles o ça periodicamente con­
dilapidam alegremen­ tra os "lacanianos" e
te. Continuem assim, Lacan em monólogos
meus amigos! Comam incoerentes que ocu­
seus pães! pam a grande impren­
sa, vocês acreditam
- Qual é a sua estraté­ que isto serve à Socie­
gia? dade de vocês? E à cau­
sa analftica? Falo-lhes
J.-AM. - Ela é muito desta causa porque,
simples. Em primeiro lugar, é a estraté­ diferentemente de outros, vocês não
gia de Guilherme de Orange: "Eu con­ perderam o juízo, creio, mesmo que
servarei". Eu conservarei uma alta vocês a compreendam de modo dife­
idéia da psicanálise, que foi a de Freud rente de nós. Há debate entre nós, e
e de Lacan, segundo a qual a psicaná­ até mesmo polêmica; será necessário
lise é um momento essencial da aventu­ que este debate e esta polêmica sejam
ra do espírito, como se dizia nos anos levados de forma tão vil, tão grossei­
30. Ela não esgotou suas virtualidades ra? Não é um debate, nem uma polê­
em um século de existência. Fazer mica o que vocês querem, mas sim
uma psicanálise permanece uma via um anátema? Que seja, mas então,
subjetiva essencial na idade da ciência por favor, encontrem para lancá-lo al­
enquanto remaneja o mundo prepara guém que o faça em grande estilo!
todos os dias a cama da análise, e se­
rá assim enquanto o saber psicanalíti­
co não valer nada no mercado dos sa­ - E a Ordem dos Psicanalistas? Uma
beres, o que é ainda o caso quando última palavra?

216
Entrevista sobre a causa analftica
J -�AM. - Nao haverá Ordem dos Psica- o inconsciente? E entao sobre a psica­
nàlistas, mas poderá haver outra coi- nálise? Mas vao tentar afogá-la na psi­
sa: normas européias relativas ao exer- coterapia, isto é certo.
cício da psicoterapia. Uma vez que ha­
ja liberdade de estabelecimento para 22 de março de 1990.
os participantes da Comunidade euro­
péia, a questao estará necessariamen­
te aberta. Os países que já regulamen­ NOTAS
tam, Alemanha, Países-Baixos, vao im­
1. Spinoza, A Ética, Tradução nova de Robert
por sobre seus territórios sua manei­ Mishari, PUF, 1990.
ra de agir: tratamentos reembolsados, Michel Crouzet, Stendhal ou o Sr. Eu-Mamo,
de duraçao pré-determinada. Que fa­ Flammarion, 1990.
rao os outros? A Itália já escolheu pu­ 2 François Regnault, Deus é Inconsciente, Nava­
rin, 1988.
blicar a lista de seus psicoterapêutas Post-scriptum: Sugiro que se remetam à Nota
reconhecidos; a comissao encarrega­ italiana de Jacques Lacan, publicada em 1982
da de instalar seus institutos de forma­ na Omicar n2 25 (Navarin).

çao começa a se reunir. Ora, a psicote­


rapia à moda alema, à batava, é a ne­ • "Les Noms du Pere (o sem inário Os Nomes­
gaçao pura e simples da psicanálise, é do-Pai) em francês é homófono a "les non-du­
uma terapêutica integrada ao sistema pes errent" (os espertalhões erram).
de saúde a título de uma prática incer­ O jogo de palavras é intraduzfvel (Nota da
Tradução).
ta e custosa. Leclaire deseja que os
analistas franceses se unam contra a •• No original "Les Dandys d'Aprés-moi-Ie-Délu­
norma européia de psicoterapia? Ou ge", que podia ser traduzido como "os dândis
ele é o emissário dos altos funcioná­ do Por-m im-que-se-<lanem". A tradução op­
tou por manter a alusão à célebre frase de
rios que preparam sua introdução na Luís XIV "Apres mo� Ie Déluge", com todo
França? Eis o que nao está claro. E o peso histórico que tem (Nota da Tradução).
portanto é af que está a questao. Nao
se tocará a psicanálise, bem entendi-
Revisão de Manoel Barros da Moua
do, pois quem ousará legiferar sobre

21 7
Jacques-Alain Miller

ESBOÇO DAS OPÇÕES FUNDAMENTAIS


DA ESCOLA DA CAUSA FREUDIANA

Tradução de Jairo Gerbase

Ao considerá-la desde o exterior, 9 de setembro de 1981, a escolha da


quer não se acredite nela ou a incen­ ECF, tão ligada à sua pessoa, deman­
se, ninguém duvida que a ECF seja dava ser confirmada, na medida em
única em seu gênero. Pelo contrário, que o processo estatutário, relança­
elucidar as opções que lhe dão seu es­ do por ele no Foro, ainda não estava
tilo e sua orientação, não é um exercí­ concluído, e que a Escola s6 contava,
cio fácil quando se faz parte dela. do ponto de vista legal, com seis mem­
Este esboço é portanto apresen­ bros, nem um a mais.
tado a tftulo de introdução a um deba­ Esta escolha foi confirmada.
te, a fim de ser ulteriormente corrigi­ Em primeiro l ugar, pelo Conse­
do em função do que fará aparecer. lho, que se formou para redigir o tex­
to definitivo dos estatutos, e o decla­
1 rou a partir de 28 de setembro.
Em seguida, por aqueles que
Não se pode enumerar as op­ aderiram a Esta Escola na base destes
ções fundamentais da Escola sem vol­ estatutos.
tar a sua opção inicial, a que lhe deu Esta opção foi a de confiança -
nascimento. confiança de modo algum feita a uma
A ECF foi o significante sob o pessoa, nem mesmo a uma equipe,
qual se reuniram em janeiro de 1 981 mas confiança de que uma comunida­
áqueles que se propuseram oferecer de de trabalho, sabendo-se doravante
ao seu mestre, no momento em que privada de um docente sem igual, ma­
acabava de se concluir um Seminário nifesta-se a si mesma, encontrando
prosseguido sem interrupção durante af sua consistência.
trinta anos, o testemunho de sua soli­
dariedade, o suporte de sua afeição 3
("aqueles que ainda se amam") e o re­
lé de seu trabalho. Entretanto, esta comunidade
A opção inicial da Escola foi, não foi levada a formar-se a si mes­
portanto, a da fidelidade, isto é, a da ma como seu próprio fim.
transferência e ao memo tempo da . Seu próprio nome indica: se a
transferência de trabalho. É que, sem Escola é "da Causa freudiana", nao é
dúvida, estávamos persuadidos de que porque ensine esta causa, é porque
o porvir de um ensino tão necessário ela é disso um meio e um efeito. Ela
à psicanálise não podia passar pela re­ é "para a psicanálise".
jeição, difamação e traição do docen­ Esta opção implica que os inte­
te (enseigneur). resses do grupo estejam subordinados
a uma finalidade superior, que se con­
2 funde com a psicanálise; que entre
nós a vida do grupo é, senão, proscri­
A morte de Lacan, sucedida a ta, pelo menos pouco estimada, que
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, 11.4/5, jan-dez 1989 p.218-222
Esboço das opções fundamentais da ECF

ela é mantida por u m obstáculo em e que demanda necessariamente ser


relação ao objetivo que nos reúne; contido, frustrado.
que o grupo não pretende qualquer
monopólio,. nem quanto à prática da 5
psicanálise nem quanto à leitura e a
interpretanção do ensino de Lacan. O que foi dito no parágrafo pre­
Foi assim que asa membros da cedente, e que diz respeito a instância
Escola deram prova de interesse, de da teoria na instituição, não deve ser
abertura, às vezes até de generosida­ confundido com a manutenção das con­
de, diante de nossos colegas do Cam­ dições práticas necessárias à existência
po freudiano. Ainda recentemente vi­ de um laço associativo como tal.
mos, quando do último Encontro inter­ Não resta dúvida de que, no pró­
nacional, e ver-se-á com a nova Esco­ prio fato de se associar para a realiza­
la Européia de Psicanálise. ção de uma finalidade comum, a op­
ção seguinte está incluída: a de man­
4 ter entre nós o entendimento mínimo
necessário ao bom fun­
Chegamos assim cionamento, e inclusi­
a uma opção da Esco- ve à existência, da asso-
la que é tão fundamen­ ciação.
tal que se torna invisí­ A opção inicial Esta opção não
vel e que não se pen­ está inspirada em ne­
sa em interrogar-se so­ da Escola foi a nhum angelismo; ela
bre ela, o que faz com da fidelidade, se impõe logicamente
que se desenvolva silen­ a partir das premissas.
ciosamente seus para­ isto é, Desconhecê-la é que­
doxos. simultaneamente rer a dissolução do vín­
Não é notável culo associativo. A
que a opção teórica da transferência e questão foi evocada o
da Escola, feita uma da transferência ano passado. A respos­
vez por todas, perma­ ta foi dada sem equívo­
neça intocável? Trata­ de trabalho co: uma comoção, um
se do fundamento freu- assombro, prova mais
diano de nossa prática, que qualquer voto.
renovado por Lacan. Como ficaria sem
consequência a instalação de semelhan­ 6
te noli tangere no seio de uma institui­
ção. Isto ainda não foi examinado. A permutação regular das instân­
Todavia, tudo é feito na Escola cias, elevada à categoria de princípio
para que esta opção prejudicial não de funcionamento, é uma opção que
vire para o standard: recusa de um en­ contribui para dar à ECF seu estilo
sino autorizado ("quem ensina, faz por de contra-experiência da EFP. Do mes­
seus próprios riscos" dizem os estatu­ mo modo, a transparência da gestão,
tos) e ausência de censura teórica. da qual testemunham por exemplo a
O que não impede que se for­ extensão e a precisao das comunica­
me necessariamente num grupo co­ �1'\es regularmente feitas aos membros.
mo o nosso um fenômeno de "algara­ Pode-se achar que a permutação
via", que é preciso reconhecer pelo é ainda insuficiente, que a transparên­
que é, uma resistência, uma "assistên­ cia não é total. Contudo, se se calcu­
cia mútua contra o discurso analftico", la o número de membros que nestes
_

219
Jacques-Alain Miller
nove anos exerceram responsabilida­ ca grupos sem hierarquia, digamos
des nas instâncias, se verifica que a que a hierarquia traduz o fato de estru­
proporção é considerável. Quanto à tura de que o significante se ordena
transparência, é sem dúvida levada tão em sequências de subordinação, na
longe quanto permite o caráter a miú­ qual o mínimo é o par ordenado do
do confidencial das informações que significante-mestre e do saber, S l -S2.
chegam das diferentes instâncias res­ A função de que a hierarquia é inelutá­
ponsáveis de uma Escola de psicanálise. vel em um grupo como o nosso tem a
A permutação e a transparência caução de Lacan. "De qualquer for­
são menores no Conselho da Escola. ma, lembrava a sua Escola no momen­
O Conselho é, com efeito, estatu­ to em que a convidava a se pronunciar
tariamente como uma Presidência cole­ sobre a Proposição de outubro, será
tiva, que se renova lentamente, e dá preciso que passem pela atribuição
base a associação. Esta instância se tem de funções diretivas a alguns, para ob­
mantido há muito tempo na discrição ter uma distribuição prudente de vos­
que sua missão de regulação geral exi­ sa responsabilidade coletiva."
gia; porisso se suspeitou que adorme­ 2) O grau. É a ordem ascenden­
cera; ano passado se te que instaura em sua
pôde ver que não era dimensão própria o sig­
o caso. nificante S2. Os sujei­
Quanto ao que tos se distribuem na
se agita com toda liber­ Não se é admitido escala de um grau em
dade nas reuniões do função de um saber,
Conselho, o conteúdo na Escola a título suposto ou explícito,
se tem levado regular­ de psicanalista, iniciático tanto quan­
mente ao conhecimen­ to universitário, do pa­
to de todos cada vez porém como thema ao materna.
que se chega a um acor­ "trabalhador 3) A indistin)ãO
do entre seus mem­ hierarquia-graus. E o
bros. Desvelá-lo pre­ decidido" do poder em nome do sa­
maturamente seria Campo freudiano ber. Exemplos: a "Re­
um fator de confusão, pública" de Platão, a
que entorpeceria a re- Burocracia celeste, o
flexão de um órgão com discurso universitário,
encargos a longo pra- as Sociedades da IPA
zo, que só deveria atuar em função 4) A distinção hierarquia-graus.
de finalidades superiores. Traduz o fato de que S2 não é S l , que
o saber constitui uma ordem sui gene­
7 ris, diferente da do poder. É, por exem­
plo, o fundamento do privilégio que
Se a opção da permuta data de está na origem da Universidade.
1980 (lembremos que seu Diretor ha­ Que quer dizer a distinção hie­
via deixado a Diretoria da EFP sem rarquia-graus quando se trata do que
qualquer mudança durante dez anos), chamamos uma Escola?
a distinção hierarquia-grau foi explici­ Podemos observar em primeirís­
tada por Lacan desde 1967 e apresen­ simo lugar que todos os membros têm
tada por ele como solução do proble­ voz igual na Assembléia, que todos
ma da sociedade analítica. Vale a pe­ os membros e membros associados têm
na comentá-la: voz igual no Congresso; nenhuma fun­
1) A hierarquia. Deixando de la­ ção administrativa está estatutariamen­
do a questão de saber se há em políti- te reservada a uma categoria de mem-

220
Esboço das opções fundamentais da ECF

bro; estas distinções só aparecem no saber exposto.


nível da gestão do grau; e no próprio
seio da comissão de passe podem es­ 8
tar me mbros associados, inclusive
não-membros. O ponto precedente já tratou
Mas a pertinência analítica da de nossa opção acerca da seleção dos
distinção introduzida por Lacan, não analistas e que foi a de adotar os prin­
está aqui. O essencial é que ela disjun­ cípios da f7:oposição de outubro.
ta a função do AME, necessária "em Eles comportam:
relação ao corpo social" e o AE cuja - primeiramente, que há garantia a ser
necessidade é interna à experiência. dada, portanto seleção a ser feita. Não
Com efeito, nas sociedades tradicio­ se é admitido na Escola a título de psi­
nais, há superioridade hierárquica do canalista, porém como "trabalhador
titular sobre o associado; na Escola, decidido" no Campo freudiano; u ma
não há relação hierárquica entre do vez que tenha feito sua provas neste
AE e o AME. Estes títulos respondem registro, é Ucito a cada um se declarar
a duas ordens.de neces- analista praticante; en­
sidades que têm cada fim, entre estes, se faz
qual sua própria dimen- a escolha dos AME;
são, e se inscrevem mas amplamente ain­
em duas lógicas distin­ da, já que ultrapassa
tas.Compreende-se en­ as fronteiras da associa­
tão o efeito perverso A desavença, a ção, se faz a escolha
que teve a modificação diferença, a divisão dos AE.
introduzida por Lacan - em segundo lugar,
em outubro de 1980, são o elemento estas escolhas quem
quando deu ao título mesmo de nossa as faz'! AProposição
AE um carácter transi­ não as confia ao sufrá­
tório. Se esta inovação prática gio da comunidade de
tem o mérito de impe­ iguais, a dos AME, a
dir nos' AE o fenôme- dos AE, porém a ór­
no chamado "de casta", gãos especializados, ju­
tem o demérito de su- rados ern 1967, conver­
primir do AME um tidos em comissões
contrapeso institucional permanente em 1980).
e de confortá-lo na suficiência de seu Trata-se aqui de opções funda­
saber-fazer, ali onde se trataria ao con­ mentais da Escola?
trário de colocar esse saber-fazer em Parece-me diffcil contestá-lo
questão, o que extingue do paradoxo quanto o primeiro ponto: a escolha
do discurso, o que engendra de "amné­ acompanha o próprio conceito de Esco­
sia" do ato analítico. la, e é concebida como produto do tra­
Como impedir isso? A questão balho desta. Isto é menos seguro quan­
está aberta. Há uma solução perfeita? to ao segundo ponto, contudo não po­
Pode-se duvidar disso, ao menos por demos sustentá-lo, na medida em que
duas razOes: a escolha por órgãos diferenciados im­
- o grau reveza sempre na ordem do pede que AME e AE se constituam
saber a fatalidade hierárquica que se em duas classes diferenciadas no seio
inscreve pelo significante mestre; da Escola. Porém não se conclui dis­
- em psicanálise, o exercício do saber to que as modalidades dos procediemn­
suposto excede sempre a amostra do tos de seleção sejam ne varietur. Elas

221
Jacques-Alain Miller
não podem ser aperfeiçoadas? Esta Escola, menos sweet home, eu a
A questão foi colocada para o procedi­ aceito, de minha parte, sem reserva,
mento de nomeação dos AE; poderia tal qual, tal qual se tornou. Pois ela
também sê-lo para os AME. não é outra coisa que a consequência
de nossa ação, que vai não mais-além
9 do bem e do mal, mas mais-além do
princípio do prazer e que aposta sem­
A comunidade de trabalho que pre do pai ao pior. .
é a nossa na Escola se quer e se sen­ Uma Escola de orientação Iaca­
te una. Diana não poderia ser um casulo nem
Esta opção de unidade determi­ tampouco um monolito. Lacan é um
nou para a Escola a escolha de uma bloco, uma Escola não é um bloco. A
estrutura nacional e não inter-regional; desavença, a diferença, a divisão são
condicionou seu estilo de direção e o elemento mesmo de nossa prática.
de animação, resultado de uma busca Não sabemos trilhar nosso caminho
constante de consenso; comportava entre o lnconsistante, o Inconciliável,
também algumas consequências mais o Insolúvel, que são como Alector,
distantes que ficaram desapercebidas Tisífone e Megera, as Erinies da rela­
durante muito tempo, como a criação ção que não existe, a relação sexual,
de outras Escolas. cuja ausência condiciona todas as or­
A crise do ano passado, sem pre­ dens do discurso? Não sabemos quan­
judicar a mínima parte das pessoas do se trata do sujeito, que o impasse
no funcionamento graças à perseveran­ não é fatal? Que um passe é possível,
ça de nosso Diretório e de seus secre­ ou melhor, contingente?
tariados de cidades, marcou os limites Sim, em toda análise, o passe
do consenso e dissipou as miragens não é mais que contingente, como o
que podiam engendrar sua busca a próprio amor que chamamos transfe­
qualquer preço. rência.
Este período terminou. A Esco­ Certamente, a opção do ódio es­
la da Causa freudiana, tal como nós a tá sempre aberta. Mas esta opção ja­
concebemos, tal como nós a temos fei­ mais esteve, desde sua criação, entre
to e amado há 9 anos, vive. A Escola as opções fundamentais da Escola da
da Causa freudiana segunda época se­ Causa freudiana.
rá sem dúvida atravessada por tensões
que poderão tomar mais rangente seu
funcionamento tão bem azeitado. Paris, 15 de outubro de 1 990.

222
Jacques-Alain Miller

AOS GRUPOS MEMBROS


DA FUNDAÇÃO DO CAMPO FREUDIANO

Tradução de Mirta Zbrun

Paris, 2 1 de setembro de 1990 Num segundo momento se fez


evidente para nós que era necessário
outras escolas assemelhadas a E.C.F.
Caros colegas: para assegurar a qualificação dos ana­
listas, garantindo-a e também pondo-a
em questão. Os argumentos são conhe­
Nesta. carta se me dirijo não a cidos e não o retomarei.
alguns mas a todos vocês é porque acre­ Enquanto nossos colegas argenti­
dito que se trata do interesse de todos. nos dão a esta evidência algumas con­
Trata-se das Escolas no Campo seqüências que não acabaram de de­
freudiano. Não das que existem - a !'E­ senvolver, na Europa e singularmente
cole de la Cause freudienne e a Escue­ na Espanha e na Itália, que se endere­
la dei Campo freudiano de Caracas - çaram à Fundaçao convite mais pre­
mas sim das que não existem. mentes para intervir em contextos on­
Recordem que ao morrer Jac­ de a evolução institucional marcava
ques Lacan, a Escola que ele havia fun­ passo. Pode-se consultar sobre isto o
dado nao existia; enquanto isso na Fran­ texto de Judith Miller publicado na re­
ça e alhures se formavam uma multi­ vista "La Lettre Mensuelle da l'ECF."
dão de grupos alternativos que se auto­ Posto assim o problema, do
rizavam dele, ao tempo que cultivavam qual me fiz encarregado com consenti­
diferenças por vezes obscuras. mento de todos, de conduzir os deba­
Nesta conjuntura, a nossa estra­ tes ao longo do ano passado com inó­
tégia se desenvolveu segundo três eixos: meros colegas, pude amadurecer as
- Na Fundation reunindo, sem vias de uma solução.
apriorismos, grupos os mais diversos Neste início de setembro concluí
por pouco que tenham manisfestado isto que vou dizer.
inequívoco engajamento em prol da A ECF é senão francesa exclusi­
orientação lacaniana; desse modo crian­ vamente (uma vez que comporta uma
do um vasto foro internacional, cujos seção belga), pelo menos francófona.
efeitos de estimulação não se faz ne­ Sua organização é centralizada de acor­
cessário demonstrar; do com a tradição nacional, para que
- a partir da "Seção clfnica" e um membro estrangeiro seja admiti­
de acordo com as demandas implantar do, não basta que se forme como mem­
o ensino de Lacan através do mundo; bro da Escola, é preciso ainda que par­
- por fim construir a Escola res­ ticipe desta comunidade de trabalho
guardando assim o que Lacan chamou que se quer una.
em março de 1981 "o núcleo a partir Este modelo que inspirou nossos
do qual meu ensino persiste", l'Ecole colegas venezuelanos de nenhum mo­
de la Cause freudienne. do pode ser imitado na Europa.
Na Espanha, por exemplo, há

inúmeros colegas cuja competência
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/S, jan-dez 1989 p.223-224
Jacques-Alain Miller

não perde em nada para os da Escola A solução tendo sido encontra­


da Causa freudiana, mas não existe da, há razão para que a realização se­
na Espanha u ma comunidade de traba­ ja diferida? Respondo que não.
lho única. Há várias separadas, que O conjunto a ser criado é tão
por hora se comunicam as mais das complexo, tão diferenciado, que espe­
vezes via Paris. Ocorre o mesmo com rar para comecá-lo quando estiver fixa­
a Itália, onde o conjunto de nossos do em seu pormenor é condenar-se a
amigos não constitui um grupo que te­ não fazer nada.
nha unidade por si mesmo. Na Euro­ Convém aqui distinguir, como
pa, aliás, estamos no começo, que pre­ fez Lacan em 1964 o estatuto jurídi­
cisa ser sustentado. co da associação de seu estatuto interno.
Em suma: Um texto mínimo que responde
1) sendo dado que as Escolas à lei francesa sobre associações com
nacionais não teriam consistência e se­ fins não lucrativos (lei de 1901) basta­
ria mera imitação; rá para dar a Escola uma personalida­
2) que a Escola da Causa freu­ de legal, enquanto que seu estatuto in­
diana não poderia acolher os colegas terno deverá ser progressivamente ela­
europeus sem modificar totalmente borado e posto à prova antes de encon­
sua estrutura; trar sua forma acabada.
3) o que concluir? Que é neces­ A organização das seções deve­
sário, ao lado da ECF, mas distinta, rá ser objeto de consultas externas com
uma Escola Européia de Psicanálise. os interessados, região por região.

* *

Esta deve ser inventada. Para os nossos colegas europeus,


Ela deverá: o essencial agora é dar impulso ao que
- ser translinguística, comunican­ tem sido seu esforço de dez anos no
do-se em francês, espanhol, italiano, Campo freudiano.
inglês e amanhã em alemão, polonês Ao terminar esta não posso es­
ou russo; quecer a questão que será sucitada en­
- combinar comunidades de tra­ tre nossos amigos da América Latina:
balho distintas numa base inter-regio­ poderíamos entre nós estender ou trans­
nal respeitando o tempo particular de por esse processo, para começar na
cada uma; Argentina?
- distribuir em vários níveis suas Por meu lado não o penso. Pare­
funções, a garantia a nível europeu, a ce-me que o caminho por mim reco­
gestão nas Seções criadas (a primeira mendado em julho de 1989, e que foi
sendo a de Catalufia cujo estatuto es­ tomado pela Saba poderia inspirar ou­
tá em fase de acabamento); tros grupos, cada um em seu estilo
- abster-se de dispensar qual­ particular. Se fosse o caso poder-se-ia
quer formação psicanalítica na Fran­ imaginar entre essas "sociedades analí­
ça e na Bélgica para que ela seja com­ ticas", alguma confederação que as as­
plementar e não uma rival da E.C.F. sociaria em alguns domínios. Não ve­
Com o tempo pode-se pensar jo como ir mais longe.
que as Escolas nacionais se separarão Peço caros colegas que aceitem
desse conjunto. Mas não quero prejul­ a certeza de toda minha amizade e con­
gar disso. sideração.

224
Colette Soler

APRESENTAÇÃO DA
ESCOLA EUROPÉIA DE PSICANÁLISE

Tradução de Jairo Gerbase

Gostaria de dizer-lhes o que é porém as apostas envolvidas na existên­


que dá sentido, na minha opinião, à cia de uma Escola transcendem estas
criação da recém-nascida Escola Euro­ diferenças. Daí necessitarmos de uma
péia de Psicanálise. Escola que alojasse essas diferenças
Antes de mais nada está a opção sem reduzí-las, e que respondesse às
fundamental que compartimos, que finalidades comuns do discurso analíti­
formulo da seguinte maneira: é neces­ co.
sário uma Escola para o psicanalista. Em segundo lugar está o contex­
Esta opção está vinculada com a pró­ to da Europa. Coloca-se a questão de
pria psicanálise. A psicanálise é uma saber se a psicanálise chegará a fazer
resposta aos impasses de nossa civiliza­ valer sua especificidade suficientemen­
ção, sabemos disso, porém esta respos­ te para que sejam facilitadas as condi­
ta é precária, está sempre ameaçada çoes pragmáticas de seu exercício. Sa­
e resulta problemática mesmo para bemos que na maioria dos países da
aqueles que a toleram, isto é, os psica­ Europa a regulamentação das psicote­
nalistas. Surge daí a necessidade des­ rapias em seu conjunto faz um traço
ses lugares de Escola nos quais a rela­ no próprio espaço da psicanálise. A
ção dos psicanalistas com sua discipli­ Escola Européia de Psicanálise será
na possa ser questionada sem que este­ precisamente convocada para ser o in­
jam encobertos seus paradoxos, e pa­ terlocutor com os poderes públicos
ra que a formação dos psicanalistas, num momento em que o estatuto pú­
tenha alguma chance de ser avaliada blico da psicanálise está ameaçado.
seriamente. Vocês vêem que a parti­ Parece-me, então que esta Esco­
da é grande. Trata-se de assegurar as la está fundada com razão na medida
questOes para que a psicanálise exista, em que é adequada para responder
para que se mantenha a consistência às necessidades da conjuntura.
de sua prática, como também a coerên­ Acrescentarei no entanto um
cia de sua teoria. ponto. A Escola Européia de Psicanáli­
Estas necessidades não flutuam se será chamada a reagrupar em suas
de acordo com as particularidades lo­ diferentes seções os analistas das diver­
cais. Elas são válidas mais aquém assim sas regiões da Espanha e dos diversos
como mais além dos Pirineus, sem le­ países da Europa que trabalham em
var em conta as fronteiras. Sem dúvi­ relação ao Campo freudiano. Isto não
da existem naçOes diferentes e profun­ é uma decisão administrativa, e põe
das diferenças entre os grupos que se em ato uma realidade já presente. Des­
inscrevem no Campo Freudiano. Dife­ de 1981 uns e outros viajamos, e nos
rença de números - vai da centena a encontramos regularmente, para reali­
alguns - , de língua, de cultura, etc., zar um trabalho em comum nos car­
que, certamente, implicam um real, téis, seminários é outros lugares. De
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989 p.225-226
Colette Soler

agora em diante, desde esse 22 de se­ Publicado in Uno por Uno Boletim de
tembro de 1 990, seremos colegas da la Escuela Europea de Psicoanalisis
mesma Escola. De minha parte ale­ editado em Barcelona. Nfl 14/15, No­
gro-me com isto. É um ponto de bas­ viembre 1990.
ta, uma consequência lógica e uma jus­
ta sançao do trabalho destes dez últi­
mos anos. Barcelona, 22 de setembro de 1990.

226
Eric Laurent

ENTREVISTA SOBRE A
ESCOLA EUROPÉIA DE PSICANÁLISE

Tradução de Jairo Gerbase

O que é a Escola Européia de redobramento da "E", o fato de que


Psicanálise, como está previsto seu fun­ "Europa" é um significante que circu­
cionamento e de que maneira respon­ la. Este novo significante transforma
de a atualidade européia? as expectativas que existiam antes de
sua produção, e influi sobre uma situa­
A Escola Européia de Psicanáli­ ção que não é ex-nihilo mas o resulta­
se do Campo freudiano quer ser, co­ do de um longo percurso. Por exemplo,
mo seu título indica, uma Escola de em Barcelona se esperava uma Esco­
Psicanálise, isto é, uma base de opera­ la Espanhola de Psicanálise, e em seu
ção contra o mal-estar na cultura den­ lugar surgiu a Escola Européia que é
tro da Europa, um lugar de elabora­ mais adequada a estas expectativas,
ção do saber transmissível da experiên­ porque permite pensar dentro desta
cia analftica tanto do ponto de vista comunidade de trabalho uma comuni­
clínico como do ponto de vista da psi­ dade-una, mais além das diferenças
canálise pura, de um saber sobre o de lfnguas e das diferenças nacionais.
que é o analista, um por um. Esta esco­ Esta Escola-Una leva em conta
la é um projeto que surge depois de o fato de que na Europa existe uma
10 anos de trabalho amplo, que teve comunidade trabalho extensa que supe­
início no começo dos anos 80, e que ra as línguas, as fronteiras, as distân­
continuou ao longo de todos estes cias, graças a uma interconexão mui­
anos, especialmente em Barcelona - to geral. Jacques-Alain Miller já subli­
porém também no resto da Espanha nhou isso. É certo o que Brande! des­
- , graças aos esforços de difusão na taca em sua história das cidades-mun­
lfngua espanhola primeiramente por do, economias-mundo, quando enfati­
parte de Oscar Masotta e em seguida za que o fator fundamental para a ci­
dos alunos que deixou. Na Itália, na dade de Veneza era a velocidade de
década de 70, o próprio Lacan tentou transmissão de um cartão de crédito
organizar algo entre seus alunos. A que se emitia lá.
peculiaridade da situação italiana pro­ Na Europa existe este tipo de in­
duziu uma situação de impossibilida­ terconexão devido aos deslocamentos
de que durou até uma crise, e que ago­ e aos efeitos do discurso científico que
ra descobre uma nova possibilidade, permitem integrar uma ampla comuni­
articulada a uma série de iniciativas, dade. Porém esta extensão não permi­
que produziram o "Instituto Freudia­ te deixar de lado o fato de que existem
no para a clfnica, a terapia e a ciência" comunidades de trabalho vivas que es­
em Roma, uma seção clínica e um se­ tão numa região, numa cidade, num
minário, graças ao empuxo organizati­ lugar, na cidade-mundo que têm sua
vo de Antonio Di Ciaccia. consistência dentro da análise, e que
A Escola Européia é um signifi­ reorde_na, por exemplo, o problema
cante novo. Inclusive tem as proprieda­ das fronteiras de uma nova maneira.
des formais deste tipo de significante: Em toda Europa· se vê uma consistên-
FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/5, jan-dez 1989, p.227-230
Eric Laurent
cia das regiões - mais além da psicaná­ que os estatutos das seções devem cum­
lise -, que dá lugar 14 U!!lil uova apre­ prir. Quando as discussões sobre os
sentação da atualidade da problemáti­ estatutos tiverem produzido seus fru­
ca nao tanto local como regional. Des­ tos essenciais, eles serao estabelecidos
se modo, a Escola Européia de Psica­ e começarao a funcionar. As duas pri­
nálise é Una, mas se pode também meiras seções que vão existir, antes
adaptar às consistências destas comu­ de falar da de Madri, são as de Catalu­
nidades de trabalho. Não é, no entan­ nia e a franco-belga. Por outro lado,
to, uma Escola étnica, isto é, nao há existem diversas comissões de base: a
um culto especial da essência do regio­ de admissão e a dos cartéis. A comis­
nal. Isto deve ser levado em conta, de­ sao de admissao da Seçao de Catalu­
ve ser ordenado. Porém, o ponto cru­ nia da Escola Européia já está em fun­
cial é a efetiva comunidade de trabalho. cionamento. Em seguida existirão co­
A região na E.E.P. tem um sentido missões de admissão em outros luga­
preciso que é o da comunidade de tra­ res. Por seu turno, a comissão de car­
balho analítico, o que permite ser leva­ téis trata de desenvolver a problemáti­
do em conta no que dentro da Escola ca do que será um cartel dentro des-
Européia se chama as ta Escola Européia.
"seções". Alguém po- Algumas comissões
de ser mem bro d a existem, outras deve­
E.E.P . , desta Escola- mos fazê-las existir e
Una, se se inscreve den­ outras comissões de­
tro da ampla comunida­ Não é, no entanto, vem propor-se à discus­
de de trabalho que exis­ são. Assim, por exem­
te na Europa dentro uma Escola étnica, plo, se deve fazer exis­
do Campo freudiano, isto é, não há um tir uma comissão de
construída ao longo elucidação das práticas
destes 10 anos (e mais culto especial da de regulamentação na
além, se se leva em con­ essência do Europa. "Europa" é
ta tanto a história pré­ um significante dentro
via da Espanha como regional do discurso do Mestre
a da Itália), porém de­ que introduz recortes.
pois é referido a uma Em toda Europa exis­
seção desta Escola de tem projetos de regula­
acordo com o efetivo mentaçao das práticas
trabalho ou pela efetiva comunidade de "psicoterapias", entre as quais o dis­
de trabalho na qual está comprometido. curso do Mestre quer incluir a psicaná­
Esta Escola tem uma história, tem lise, mesmo se os analistas estão em
um projeto e tem um presente. Este desacordo com isso. Temos de cons­
presente é que agora existe uma aco­ truir uma comissão que se ocupe dis­
lhida entusiástica deste projeto. Tan­ to: centralizar, recolher todas as infor­
to em Barcelona, onde foi anunciado mações úteis para preparar-se para en­
pela primeira vez, na Espanha em ge­ frentar-se com isto (o que se tem de
ral, como na Itália, as primeiras res­ aceitar, o que se deve recusar), com
postas foram entusiásticas. É um proje­ o futuro que nos está previsto dentro
to amplo que responde às expectativas da Europa no discurso do Mestre. Es­
frente à tarefa que nos cabe levar a ta comissão não apenas deve incluir a
cabo nos anos 90. informação acerca da Europa, como
Por outro lado já existem certos dispo­ também a situação atual nos Estados
sitivos. Estamos redigindo um regimen­ Unidos, onde há desenvolvimentos
to geral sobre as condições mínimas muito interessantes que se devem se-

228
Escola Européia de Psicanálise

guir. Não seria mal prnpor a formaçãodos psicanalistas. Como em muitas ou­
de uma comissao de história desta Es­tras coisas, na França esta questão fun­
cola Européia, que pode dar muito ciona a nfvel do debate da fazenda,
bem a cada um a idéia acerca da histó­
no qual se colocam problemas em tor­
ria de onde surge este sifgnificante no­
no disto que diz respeito unicamente
vo, o qual é a história que este signifi­
ao fato de se os analistas devem ou
cante vem reordenar. Pode-se também nao devem pagar o I.V.A. O tema es­
constituir uma comissão das bibliotecas.
tá · vigente em todos os pafses, o que
O futuro é chegar a ter um ponto de constitui outra razao para formar uma
basta logo que os estatutos estejam comissao de elucidação das práticas
estabelecidos e a partir do qual se pre­
de regulamentaçao e prever respostas
parará a primeira Assembléia desta tanto a nfvel nacional como a nível eu­
Escola com todos aqueles que consti­ ropeu.
tuam o primeiro interior deste signifi­
Gostaria de acrescentar que se o pro­
cante. blema se coloca nos Estados Unidos ­
isto está muito ligado ao fator cultural
Poderia dizer-nos algo -, será a nfvel de pro­
mais a respeito da atua­ cessos por mal exercí­
lidade européia? cio da profissao. Ali a
Desse modo, a regulamentaçao da psi­
A atualidade européia Escola Européia coterapia é a tendência
é a dialética da regula­ a passar pelos tribunais.
mentação/des-regula­ de Psicanálise é
mentaçao destas práti­ Una; mas se pode Esta nova Escola tra­
cas de psicoterapias. duz um certo desinteres­
Em todos os pafses da também adaptar se pelo que acontece
Europa, da velha Euro­ às consistências na América Latina, so­
pa, isto é, da Europa bretudo pelo que acon­
do Norte, sem os paf­ destas tece na Argentina?
ses do Leste que só comunidades de
há pouco aderiram à Suponho que não. Nao
essa problemática, exis­ traba lho vejo nenhuma possibili­
te uma regulamentação dade de pensar de que
mutio precisa destas maneira dentro da co­
práticas. A Itália é o primeiro pafs lati­ munidade de trabalho do Campo Freu-
no onde existe na atualidade uma legis­ diano poderia existir um certo desinte­
laçao. Somente Bélgica, França e Espa­ resse pela América Latina. Esta união
nha não têm este tipo de legislação. entre as comunidades de trabalho da
Sabemos que na Espanha existe algo Argentina e França, na Venezuela de­
em preparaçao, porém nossos amigos sencadeou um movimento que não
pensam que têm suficientes contatos deixa de produzir efeitos. Os efeitos
com a representação nacional para acal­ que agora estão se produzindo na Ar­
mar as intenções de regulamentaçao gentina têm uma vigência peculiar
sobre este ponto. Anuncia-se então em relação ao tema da Escola, que se
um debate público. Na Bélgica já exis­ desenvolveu com a constituição de
te uma regulamentaçao das psicotera­ uma sociedade analítica em Buenos
pias praticadas por médicos, não ve­ Aires, a SABA.
mos nenhuma razão para que os psicó­ Amanhã em Buenos Aires, o grupo
logos escapem disso e por aproxima­ do Simpósio discute sua refundação
ção se acercarão ao núcleo central, como sociedade analftica e simultane-

229
Entrevista sobre a Escola Européia de Psicanálise
amente existem também outros proje- péia não parece muito adequado ago-
tos em direçao a uma Escola. Ocorrem ra para a América Latina. Outra coi-
discussOes, tudo isso tem uma atualida- sa irá existir que terá todo seu interes-
de muito precisa, que seguimos com se: Isto seguirá construindo-se numa
muito interesse. Mas as distâncias nao dialética que nao cessa.
sao as mesmas. Os 6.000 kilômetros,
mesmo com o fax, nao permitem via­ 15 de outubro de 1 990.
gem e intercâmbios tão frequentes co­
mo os que �xistem na Europa. Deve-
mos respeitar isto, e levar em conta o
fator distância, o fator "d". O tema Publicado in Uno por Uno Boletim
da Escola se introduz numa dialética de la Escuela Europea de Psicoanalisis
entre Europa e América Latina. O editado en Barcelona. N2 14/15, No­
modelo de integraçao da Escola Euro- viembre 1990.

230
Boletim

Célio Garcia

O RADICAL FREUD

"0 mal radical em Freud" do pensamento contemporâneo. A pul­


L.A. Garcia-Roza · são, entre o psíquico e o somático, não
Jorge Zahar Editor se deixava facilmente localizar.
Rio de Janeiro, 1990 Já vai Luiz Alfredo marcando e
se deixando marcar pelo texto de Freud
quando este termina por dizer que a
Luiz Alfredo não se contenta teoria das pulsOes que ele mesmo ela­
em ser apenas o testemunho de sua borou a ser "nossa mitologia". Luiz
época; ele escreve. Assim, acaba de Alfredo numa elegante inversão vai
dar a público mais um livro, desta vez dizer ao final do primeiro capítulo que
intitulado "O mal radical em Freud". "não é a teoria das pulsOes que é a
Reescrevo o título, pois pretendo di­ nossa mitologia (como diz Freud) mas
zer sobre que escreve o filósofo Luiz a teoria da natureza". Assim um mun­
Alfredo Garcia Roza. Ele escreve so­ do natural e ordenado, independente
bre aquilo que não se deixa facilmen­ da linguagem, passa a ser fictício; o
te inscrever; quase diria que ele inscre­ mundo, poderia dizer Luiz Alfredo, é
ve no seu livro (nos seus livros, diria múltiplo, multifário, prolffico, sem ne­
melhor) o que o seu dia a dia de traba­ nhuma destinação. Destinação nós a
lhador intelectual vai deixando como encontraremos quando alguns elemen-
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traço. Vai deixando nele filósofo, lei­ t m
tor de Freud e Lacan, marcado por t o t d ina :
essa tensão onde se produziu a partir Repito o "destino" para marcar que a
de Freud um curioso trabalho, traba­ partir de um certo momento, tudo en­
lho este nem inteiramente voltado pa­ tra num ritmo pulsional que se dispOe
ra a Filosofia (vale dizer aqui, Herme­ a uma leitura. O fato de o mundo es­
nêutica) nem inteiramente comprome­ tá povoado de significantes não signifi­
tido com o saber positivo (vale dizer, ca que podemos lê-los; faz-se necessá­
a Psicanálise como Ciência Natural, rio o acionamento de um procedimen­
"Natturwissenschaft" como queria ele to de literalização. E foi o que fez Ga­
mesmo Freud). Desde seu último livro lileu ao ler o mundo a partir da Mate­
"Acaso e repetição em Psicanálise - mática o mais aperfeiçoado procedi­
uma introdução à teoria das pulsOes", mento de literalização. E foi o que fez
nosso Luiz Alfredo atravessa a teoria Lacan com seus maternas.
das pulsOes. Escolheu Luiz Alfredo
um tema que já foi objeto de cogita­ O caos
ção para outros filósofos; devo dizer
que este tema foi mesmo um obstácu­ Para não deixar o estatuto a ser
lo para que a Psicanálise e Filosofia atribuído à natureza reduzido a uma
viessem a encontrar finalmente um ficção, Luiz Alfredo examina em dois
modus vivendi. Não foi a tentativa de capítulos esta questão deixada sem con­
Ricoeur que veio pacificar esta região clusão ao final do primeiro capítulo.

FALO, Revista Brasileira do Campo freudiano, n.4/S, jan-dez 1989, p.231 -234
Célio Garcia
De início vai aos gregos - Platão, Aris­ dade. A observação de Deleuze pode
tóteles. Até os gregos "não houve ca­ mesmo ser considerada como algo que
os anterior ao cosmos". Será em Lucré­ reúne Freud, Lacan, Deleuze, Lyotard
cio que Luiz Alfredo vai encontrar a e até Derrida. Algo que nos teria trazi­
radicalidade de um acaso original; a do a pós-modernidade (se este termo
natureza não é necessidade, mas pu­ não estivesse já tão desgastado... e
ro acaso. Registrada esta pista, Luiz em tão pouco tempo!)
Alfredo está em condições de passar Minha leitura leva a uma conclu­
até a discussão recente do tema já ao são provisória: aqui estaria o radicalis­
nível do discurso científico. Monod mo (mal radical?) da Psicanálise quan­
de início, depois Prigogine vão ser tra­ do desde Freud e graças a leitura de
zidos à baila. Lacan ficamos sabendo que o mal ra­
Ainda no capítulo três quando trata­ dical não estava aó nível das pulsOes,
va da "ordem e acaso", o filósofo Luiz nem da pulsão de morte, muito menos
Alfredo se pergunta - Não seria uma numa maldade original do ser huma­
característica comum à Filosofia e à no -(por falta ou por princípio, pouco
Ciência o repúdio ao acaso? importa); o radical está em pensar a
"Na verdade, acrescenta, a própria his­ dispersão do real (Lacan), ou mesmo
tória da Filosofia já implica um com­ como Freud que jamais concordou com
promisso com a ordem. Ambas, a Filo­ uma síntese em se tratando de Psicaná­
sofia e a Ciência, são amantes da or­ lise. O mal radical que dá título ao li­
dem, e frente aparente do mundo pro­ vro teria que ser trazido a um plano
duzirem a inteligibilidade ao bem es­ onde não tivéssemos como horizonte
tar comum". Para terminar o parágra­ a natureza moral do homem.
fo, Luiz Alfredo, leitor incansável da Nem tão pouco bastaria discutir
vasta cogitação sobre o tema, conce­ a questão da destrutividade ou a "pos­
de: "à Literatura coube produzir o dis­ sibilidade de uma ação ter como me­
curso do trágico, lugar do acaso e do ta a destruição sistemática" (p. 151
mistério". LAGR) com interlocutor que poderia
Pretendo desdobrar esta demar­ ser biólogo. Logo seríamos denuncia­
cação, esta divisão de trabalho entre dos como defendendo uma contradi­
Filosofia, Ciências e Literatura. ção lógica. Esta discussão tem sido te­
Retomo no entanto, o capítulo ma de mesa-redonda entre cibernéti­
de Luiz Alfredo para assinalar a men­ cos, biólogos, de um lado e psicanalis­
ção à Deleuze ainda no capítulo dois tas de outro. Não há a menor chance
"o fundamental em Lucrécio é a afir­ de um entendimento. E, no entanto,
mação da natureza como princípio do sabemos, nós psicanalistas, que há má­
diverso e de sua produção". quinas desreguladas (seres humanos
Não contente desta marcação que, uma vez no mundo, correm para
do texto de Lucrécio, Deleuze conclui sua própria destruição) que funcionam
- "A natureza é uma soma infinita que a partir desta regulagem! A tentação
não totaliza seus elementos". Esta cita­ de síntese continua a inspirar a leitu­
ção de Deleuze está à página 32 de ra do texto e Freud. Seja em se tratan­
Luiz Alfredo. De fato esta multiplicida­ do da Biologia que busca na identida­
de inconsciente é de tal sorte a "me­ de através das respostas ou da história
lhor concepção que se preste aos nos­ do ser vivo algo garantidor da própria
sos propósitos" (LAGR) que ela pode­ existência ou organização.
ria ser o que marca nossa contempora­ A radicalidade do inconsciente
neidade e com ela a Psicanálise seria está pois nesse "caos determinista" (va­
este lugar para pensar uma ética e mos dizer uma palavrinha sobre este
uma teoria que dê forma à multiplici- termo proveniente da Física do acaso),

232
O radical Freud

a radicalidade está nesse título de Fran­ condições de pensar os efeitos da Ciên­


çois Regnault "Dieu est Inconscient". cia à medida em que eles se fazem sentir.
Deus é inconsciente já que não E não se pense que estamos no
é capaz de dizer o que ele vai querer, reino da gratuidade, ou do arbitrário
ou que ele pretende, já que é incons­ (indizível ou inefável). Existe uma ma­
ciente, múltiplo. temática capaz de dar conta do "caos
determinista"; os processos não-linea­
O caos determinista res são devidamente abordados conser­
vando-se as propriedades do sistema.
À página 52, Luiz Alfredo assina­ A principal propriedade a qual faze­
la a "transformação sofrida pela idéia mos alusão seria o não comprometi­
de desorganização". Foi possivelmen­ mento quanto ao que deverá ser predi­
te um dos eixos através do qual Luiz to em se tratando da evolução do siste­
Alfredo terá trabalhado neste livro ma. Voltamos ao livro de Luiz Alfre­
"0 mal radical em Freud". Curioso do para ler com ele a "função do filóso­
pensar que este tema subjaz à discus­ fo" (cap. 7).
são situada ao nível da natureza mo­ Qual seria a função do filósofo
ral do homem. Terá a Filosofia que neste fim de século, nesta época de
ser desconstrufda, tal como o preten­ desconstrução da Filosofia?
de a pós-modernidade, para que faça Se nos valemos da leitura de
irrupção o tema da "desorganização", Freud, diria que a função do filósofo
do "caos determinista", trazendo à to­ pode muito bem ser esta cumprida
na o que foi o pensamento freudiano? por Luiz Alfredo entre nós. Quero di­
É o que pensamos. Assim, Luiz zer criar condições de possibilidade
Alfredo já havia indagado por uma cer­ para que a Filosofia abra espaço para
ta repartição de tarefas entre Filosofia, acolher os efeitos da Ciência, ou de
Ciência e Literatura (pag. 37). Tería­ outras produções. Não cabe à Filoso­
mos que dizer que mesmo esta divsão fia se antecipar, nem ditar as condi­
de trabalho parece ser fadada a revisão. ções acima mencionadas. Terá si�o a
A idéia de uma ordem que se Psicanálise o que nos foi legado pela
segue à desordem, de uma "ordem modernidade para pensar os proble­
por flutuação" pode envolver tanto o mas que marcaram Luiz Alfredo no
trabalho ao nível da Física dos proces­ seu trabalho diuturno, na sua ativida­
sos irreversíveis (Prigigine, citado por de incansável de universitário, escre­
Luiz Alfredo), quanto o processo lite­ vendo e inscrevendo o que foram as
rário considerado em seu movimento marcas deixadas por essa repetição
de auto-geração (auto-poiesis, disseram da insistência (são os signos que se re­
os biólogos imunologistas sensíveis a petem) e não forçosamente pelo eter­
este tipo de modelo). Quanto à Filoso­ no retorno.
fia resta saber se ela se dispõe a criar

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Boletim
Ili ENCONTRO BRASILEIRO págs.
DO CAMPO FREUDIANO Consiste num conjunto de trabalhos
O que pode um analista? apresentados nas Jornadas de Outo-
- funçao na cura - formação teórica no de 1989 da École de ta Cause freu­
- futuro i'lstituicional dienne, sob o tftulo "La sexualité dans
les desfilés du signifiant". O livro, co- .
14 a 18 de Julho de 1991 mo o tftulo sugere, enfoca a questão
Hotel Meridien Salvador Bahia da sexualidade - em Freud e Lacan,
entre a ciência e o mito - convergin-
MILLER NA BAHIA do para a perspectiva clfnica, na dire­
A Cf e o Campo freudiano têm a hon­ çao de uma clfnica da sexualidade.
ra de receber pela primeira vez na Ba­
hia o psica,nalista J.-A. MILLER O Tivemos a alegria de contar com Anto­
aluno da Eco/e Norma/e Supérieure, nio Di Ciaccia, psicanalista italiano,
discfpulo de Althusser, Derrida, Fou­ que desenvolveu para nós deforma ope­
cault, conhece LACAN e a partir de en­ rativa, o conceito freudiano de transfe­
tão se toma seu principal interlocutor. rência; Di Ciaccia participou de nossa
MILLER desenvolverá em três seminá­ reunião clfnica e proferiu conferência
rios o tema: "Introdução ao desejo de sobre a Escola de Lacan nos tumultua­
Lacan: suas incidências na psicanálise", dos dias de hoje. A TRANSCRIÇÃO
pretlmbulo ao Encontro de Paris 1991, da Cf, nfl7 será dedicada ao Seminário
que comemorará 1 O anos da morte de de Di Ciaccia. Di Ciaccia é Analista
Jacques LACAN. Membro da Escola da Causa freudia­
na, Membro da Escola Européia de Psi­
1. S OLER, Colette - Artigos Clínicos . canálise, Diretor da Revista do Campo
Trad. Elena Lopes Cólb. Editora FA­ freudiano na Itália, LA PSICOANALI­
TOR, S alvador. 1991, 159 págs. SI, Presidente do Instituto freudiano
Trata-se de uma coletânea de artigos na Itália. Tem vários artigos publica­
de Colette S oler, que derivam de con­ dos, alguns dos quais encontram-se na
ferências e publicaçOes em periódicos Biblioteca da Cf.
franceses , com revisão de traduçao
feita por membros da Cf. Aborda os • IH Jornadas Nacionais do Campo
temas da Transferência, Interpretaçao freudiano na Argentina, que contará
e Psicose. Quanto à transferência, a com a participaçao de Jacques -Aiain
autora viualiza a questao sob o ângu­ Miller e que ainda nao tem local fixa­
lo da cura, relacionando-a à interpre­ do. O tema da convocatória é "0 que
tação, ao acting-out, à angústia e ao cura o analista?" e acontecerá- no mes
ato analítico. De referência ao tema de novembro de 1991.
da interpretação, Soler discute a natu­
reza e as regras desta, referenciando­ • VII Encontro Internacional do Cam­
se em obras de Lacan, principalmen­ po freudiano realizar-se-á durante a
te L'Etourdit. A psicose é situada en­ segunda quinzena do mês de julho de
quanto problemática, pela via da au­ 1992, na cidade de Caracas, Venezu­
sência de um sgnificante, o Nome-do­ ela. Tema "As estratégias da Transfe­
Pai, cuj a ênfase é dada em artigo espe­ rência em Psicanáli&e" e a inscrição
cffico. para os pafses da América (Sul, Cen­
tral e Norte), deverao ser encaminha­
2. QUEHACER DEL PSICOANALI­ das para Vll Encuentro dei Campo
SIS. La sexualidad en los desfiladeros Freudiano, Ateneo de Caracas, 311 Pi­
dei significante. Ediciones Manantial, so, Apartado 662, Caracas 1010 A,
Buenos Aires, Argentina, 1991, 157 Venezuela.

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Diagramação, composição em fonte Times, arte-final e
fotolito em filme de poliéster produzido no sistema
de editoração eletrônica da Editora FATOR Ltda
Rua Rio Amazonas 23 - Matatu, 40260, Salvador, Bahia,
te!.: (071 )2336284!2345696.
Impresso em off-set nas oficinas da Jotadáblio Gráfica e
Editora Ltda, Av. Suburbana 2715 - Lobato 40150,
Salvador, Bahia, te1.:(071)3928495/3922780,
em julho de 1991.
MLO 4/5
REVISTA BRASILEIRA DO CAMPO FREUDIANO

A Escola de Lacan

Ato de fundação da

Escola Freudiana de Paris

Acier l'ouvert

A causa analítica

Opções fundamentais da ECF

Carta aos grupos

do Campo freudiano

Escola Européia de Psicanálise

ISSN 0103-121X

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