Rio de Janeiro – RJ
2010
MARINA HENRIQUES COUTINHO
Rio de Janeiro – RJ
2010
Coutinho, Marina Henriques.
C871 A favela como palco e personagem e o desafio da comunidade -
sujeito / Marina Henriques Coutinho, 2010.
247f.
por
Tese de Doutorado
BANCA EXAMINADORA
Ao meu pai,
Pelas boas memórias de minha infância, pela sua história de luta em
benefício da favela.
AGRADECIMENTOS
Às Profas. Dra. Beatriz Resende e Dra. Márcia Pompeo Nogueira, minhas orientadoras, o meu
agradecimento pelo incentivo, apoio e compreensão ao longo da trajetória desta pesquisa; pela
generosidade demonstrada em todas as fases de desenvolvimento do trabalho, pela
disponibilidade à construção de um rico diálogo, sem o qual teria sido impossível a realização
desta tese. Todo o meu afeto e gratidão.
Ao Professor Tim Prentki, o meu especial agradecimento pelo carinho com que me recebeu na
Universidade de Winchester, Inglaterra, durante o período que participei do curso Theatre and
Media for Development, pelo seu entusiasmo e dedicação aos nossos encontros “tutoriais”, os
quais trouxeram para este trabalho preciosa contribuição.
Aos Professores Dra. Ana Maria Bulhões de Carvalho, Dra. Evelyn Furquim Werneck Lima e
Dr. Zeca Ligiéro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio na ocasião
da avaliação de minha candidatura pelo European Union Programme AlBan of High Level
Scholarships for Latin América (Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia
para a América Latina).
Ao professor David Herman, que além de companheiro na vida, é também meu grande
companheiro na arte. Meu especial agradecimento pela revisão de minhas traduções do inglês
dos textos de autores citados neste trabalho. Além de todo o incentivo e encorajamento
durante o período em que vivemos na Inglaterra.
Aos Professores Dra. Ana Tereza Jardim e Dr. Charles Feitosa, da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, pelas observações acertadas na ocasião de minha banca de
qualificação, as quais contribuíram para o aprimoramento deste trabalho.
Aos integrantes do grupo Nós do Morro, especialmente Guti Fraga, Fred Pinheiro, Maria José
da Silva, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Regina Melo; aos integrantes da Cia. Marginal e do
Grupo Código pela confiança que me dedicaram na realização da pesquisa.
Ao Programa AlBan de bolsas de alto nível da União Européia para a América Latina pela
concessão da bolsa que possibilitou a minha estadia na Universidade de Winchester.
Milton Santos
RESUMO
Este trabalho aborda as relações entre teatro e comunidade no âmbito dos projetos artísticos e
sociais desenvolvidos em favelas do Rio de Janeiro. Apresenta o contexto da nova ordem
global e os efeitos da globalização na realidade da favela, espaço geográfico aqui considerado
como o território da luta. O trabalho aponta indícios de que o modelo socioeconômico atual
não caminha em direção ao bem-estar das populações mais pobres do planeta, mas considera a
capacidade de luta de comunidades em busca de soluções criativas para as dificuldades
enfrentadas no seu cotidiano. A argumentação opta por uma perspectiva otimista que enxerga
a possibilidade da emersão de narrativas alternativas capazes de oferecer às comunidades o
direito de voz, indicando o teatro como um dos caminhos possíveis para a construção de um
discurso alternativo. Para refletir sobre as relações entre teatro e comunidade, o trabalho
analisa bibliografia originalmente em língua inglesa, referente ao campo do Teatro Aplicado,
terminologia que vem ganhando força no cenário internacional. O corpo teórico utilizado
permitiu a formulação do conceito de teatro pela comunidade, como resultado do respeito à
ética e a estética da comunidade-sujeito. As noções de teatro pela comunidade e
comunidade-sujeito são postas em diálogo com três estudos de caso: o grupo Nós do Morro
(Vidigal), a Cia. Marginal (Parque União, Complexo da Maré) e Grupo Código (Japeri,
Baixada Fluminense). A situação das iniciativas consideradas pelo trabalho como exemplos
de teatro pela comunidade é, entretanto, problematizada diante do desafio que se impõem aos
projetos sociais/artísticos atualmente: transitar pelas novas redes de sociabilidade,
resguardando os interesses do território da luta. Diante da intricada trama social, econômica,
política e cultural, que envolve a realidade desses projetos hoje, as iniciativas mostram o
potencial do território da luta em fazer emergir no palco comunitário um teatro que
representa a expressão de narrativas alternativas com poder para resistir ao pensamento
único.
This work deals with the relationship between theatre and community within the sphere of
social and artistic projects developed in the favelas of Rio de Janeiro. It describes the new
global order and the effects of globalization as the background to life in the favela, a
geographical space that this work considers a territory of struggle. The work points to
indications that the current socio-economic reality does not lead to an improvement in the
welfare of the poorest communities on this planet. However, it also takes into consideration
the capacity for struggle within these communities in search of creative solutions for the
difficulties of everyday life. The thesis opts for an optimistic point of view which considers
the possibility of the emergence of alternative narratives able to offer the “right to a voice”,
and points to theatre as one of the possible ways in which this alternative discourse may be
constructed.
In order to consider the relationship between theatre and community this work analyzes a
bibliography, originally in English, which refers to the field of “Applied Theatre”; a term
which has been growing in usage internationally. This theoretical basis allowed for the
formulation of the concept “theatre by the community” which results from a respect for the
ethics and aesthetics of the community as active agents. The ideas of theatre by the
community and community as active agents are discussed through three case studies: the
group Nós do Morro (Vidigal), the Cia. Marginal (Parque União, Complexo da Maré) and
Grupo Código (Japeri, Baixada Fluminense). The situation of these initiatives, considered by
their action as examples of theatre by the community is examined with regard to the challenge
which presently confronts social/artistic projects: how to find a way through the paths of the
new networks of sociability while at the same time safeguarding the interests of the territory
of struggle. Faced by the intricate social, economic, political and cultural web which
envelopes the reality of these projects today, these projects demonstrate the potential of
territories of struggle in bringing to the community stage a theatre which represents the
expression of alternative narratives with the power to resist hegemonic thought.
Key words: Theatre and Community – Favela – Slum – Applied Theatre – Pedagogy.
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO p. 1
1 - INTRODUÇÃO
Foi o teatro que me levou até a favela. Era ainda bem menina quando meu pai, médico
pegou pela mão e disse: “Vamos ao teatro”. Para minha surpresa, não era um teatro como
aqueles que eu costumava frequentar. Guardo ainda fresca na memória a imagem de uma
encosta, a subida do morro, a entrada em um galpão lotado de gente muito vibrante, quando
chegamos a peça já havia começado. Em cena, num palco improvisado, apresentavam Flicts,
o clássico de Ziraldo.
encontro, cuja dimensão e importância para mim, somente hoje, consigo compreender com
mais clareza. Foi aquele convite inesperado, que permitiu que a menina, filha da classe média
carioca, começasse a formular outra percepção sobre a favela e também sobre o teatro; ambos
ganharam novos e poderosos significados. Constatei que a favela não era um território tão
distante, estava logo ali, fazia parte da cidade; descobri que o teatro podia acontecer em outros
espaços que não naquelas salas especiais; percebi que lá, naquele galpão, por algum motivo
especial, o diálogo entre palco e platéia trazia tal força e vitalidade que eu não havia sentido
Não lembro bem onde ficava a favela ou o porquê daquele evento. Anos mais tarde,
quando visitei o Vidigal pela primeira vez, tive a impressão de que talvez eu já tivesse subido
aquela ladeira, mas não tenho certeza. A memória da infância guarda também momentos em
que a família se reunia nos almoços de domingo e meus pais falavam sobre suas causas em
benefício das comunidades mais pobres da cidade. Foi assim que eu cresci.
Na hora de escolher uma profissão, resolvi primeiro ser atriz, depois jornalista. Nos anos
Parque União, uma das comunidades que compõem o Complexo da Maré. Um projeto de
teatro de minha autoria foi aprovado por um programa social que naquela década, de plena
expansão do terceiro setor, financiou muitas iniciativas no Rio de Janeiro e também em outras
capitais do país.
A aprovação do projeto foi mais do que uma surpresa, um susto. Eu havia estado na
Maré apenas uma vez para conversar com o presidente da Associação, que apreciou a ideia
trazida pela moça “da Universidade”: criar um projeto de teatro para jovens. Encaminhei a
Parque União. A experiência de dois anos na Maré foi definitiva, descobri um novo sentido
para a minha vida no teatro. Depois dela, participei de outras iniciativas, em diferentes
Vidigal.
espaços e também de suas pessoas, mas, sobretudo, confirmaram as histórias que meus pais
manifestações mais originais da cultura do Rio de Janeiro. A oportunidade de aliar a arte que
pelo entusiasmo com o qual me engajei em todos os projetos; junto com isso, bem aflorada
Não precisou muito tempo para que, além da euforia, eu começasse também a formular
importantes perguntas: qual seria o meu papel ou contribuição ali, inserida naquela realidade,
tão diferente da minha? Haveria uma maneira especial de pessoas como eu, artista/educadora
3
“de fora”, se relacionar com as comunidades? Que fatores teriam contribuído com a
construção de uma imagem que vê a favela como um território à parte da cidade, nicho da
com aquele espaço e com as pessoas de lá? Quais estratégias desenvolveram essas
Estado em garantir às suas populações os bens públicos como educação, saúde, segurança,
lazer? Quis saber por que o contexto sócio, político e econômico da década de 90 favorecia
um verdadeiro boom do chamado terceiro setor e dos projetos promovidos pelas organizações
não governamentais (ONGs), dos quais, eu mesma fazia parte; por que o discurso da
“responsabilidade social” ganhou tanta força nas propagandas das grandes empresas,
tendência que se intensificou ainda mais nos últimos anos. Mas, sobretudo, me indaguei,
muitas vezes, sobre qual deveria ser o papel do teatro ali, qual poderia ser a sua maior
“projeto” promovido em parceria por uma importante ONG da cidade, o Governo do Estado
prática, ou pelo menos para encontrar um lugar no qual eu pudesse sobre elas refletir. Nas
“atende” crianças e jovens das comunidades próximas, ocupando o seu “tempo disponível”
com atividades esportivas e artísticas. Ele é um dos exemplos de iniciativa que justifica a sua
Nesses “projetos”, planejados por organizações do terceiro setor, pela iniciativa privada e por
transformar em opção de vida. Não há como negar que essas iniciativas tragam melhorias
para a qualidade de vida dessas crianças e jovens, despertando o seu interesse para atividades
criativas e saudáveis. Mas é preciso estar atento ao fato de que alguns desses projetos, ao
“vendendo” a idéia de que caso eles não existissem, todos os jovens favelados, se tornariam
bandidos. O slogan de projeto “salva criança da criminalidade” tem sido incorporado por
algumas dessas iniciativas. Ele, além de divulgar a ideia de que moradores de favelas são, em
grande maioria, suscetíveis à cooptação pelo tráfico de drogas, o que não corresponde à
realidade, flagra também um outro equívoco: encarar o morador da favela como alguém que
precisa “ser salvo”, e a favela como um espaço de “ausências”. Ao usar o slogan, essas ações
assumem o papel de os “salvadores”, por que evidentemente, se existem os que devem ser
desacordo com esta perspectiva. De fato, aos poucos comecei a constatar muitas contradições
entre as intenções do “projeto” e as minhas próprias intenções. Discordava do fato de, por
exemplo, em ocasiões como as idas à noite ao teatro, eventos “chiques” para os adolescentes,
promotores da iniciativa.
espaço em suas agendas para conhecer o “projeto” e acenar sorridentes às crianças da favela.
com voz embargada se podiam passar o dia comigo, pois não haveria almoço nem na escola,
nem em casa. Passei a me perguntar sobre os motivos que teriam determinado aquelas
circunstâncias, que teriam permitido que lado a lado convivessem uma escola em estado
miserável e um “projeto” bem patrocinado, tão confortável. Percebi que, por melhores que
modelo de projeto, mais do que instigar a mudança, alimentava a dependência. Levou algum
tempo até que eu finalmente enxergasse que o meu lugar não era ali, e também para entender
que as perguntas que eu fazia não seriam tão fáceis de serem respondidas.
Quando ingressei no Mestrado, o grupo Nós do Morro já era uma referência entre as
práticas artísticas provenientes das comunidades populares da cidade. Na época o grupo, que
nasceu do resultado do diálogo entre alguns artistas de teatro e jovens moradores da favela do
Vidigal, estava perto de completar vinte anos em plena atividade, a maior parte deste tempo
sem contar com um apoio financeiro estável. O fato de o grupo ter surgido espontaneamente
apenas com o apoio comunitário, além da repercussão de suas produções artísticas não só
dentro do Vidigal, mas também fora dele, eram aspectos que me chamavam atenção. A
golpes de marretada, um buraco de pedra num pequeno teatro, que usava latas de leite em pó,
como refletores para iluminar a cena. Um grupo que em meados dos anos 80 começou
de trezentas. O Nós do Morro criou cena e dramaturgia próprias, para falar à sua comunidade
do Nós do Morro, seja a que revelou o Vidigal como sua personagem protagonista, ou a que
e na voz dos atores, a “alma vidigalense.” Os processos de criação desenvolvidos pelo Nós do
Morro favoreceram a emersão de uma cena própria do Vidigal, parida do diálogo estabelecido
Lembro-me das vezes que fiz parte como espectadora da platéia no pequeno Teatro do
Vidigal, e no Casarão, outro espaço que abriga as atividades do grupo, momentos em que a
comunicação entre palco e platéia provocou o que Peter Brook definiu como verdadeiras
Naquele momento, o encontro representou para mim a satisfação de descobrir uma iniciativa
apresentou um vasto leque de publicações em língua inglesa, dedicado aos estudos da área de
pesquisa teatro e comunidade em outras partes do mundo. A ampla literatura já vinha sendo
trazida ao nosso conhecimento por meio dos artigos de Nogueira. Eu estava concluindo a
dissertação, mas percebi que o material poderia servir como um consistente apoio teórico para
1
COUTINHO, Marina Henriques. Nós do Morro: percurso, impacto e transformação. O grupo de teatro da
favela do Vidigal. Orientador: Prof. Dr. Zeca Ligiéro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2005. Na primeira parte do estudo
(capítulo 1), fiz um breve histórico do grupo, avaliando os aspectos que garantiram a continuidade de sua ação
dentro de sua comunidade-mãe, a favela do Vidigal, bem como a sua projeção e reconhecimento fora dela. A
pesquisa de campo, realizada em 2003, permitiu a minha aproximação em relação aos dois campos de atuação do
Nós do Morro: o da sala de aula (ensino do teatro a crianças e adolescentes) e o da companhia profissional de
atores, através do acompanhamento dos ensaios do espetáculo Burro sem Rabo (2003). As visitas ao Nós do
Morro revelaram-se uma fonte riquíssima, tanto de informações, imprescindíveis para a pesquisa, quanto de
entusiasmo para realizar o trabalho. As entrevistas colhidas e o acompanhamento de aulas e ensaios serviram
como ponto de partida para a reflexão dos dois capítulos seguintes da dissertação, nos quais avalio o impacto da
ação do Nós do Morro na vida de alguns integrantes do grupo e investigo os procedimentos teatrais adotados por
ele no processo de montagem do espetáculo Burro sem Rabo.
7
vez o desafio. A dificuldade que senti durante o Mestrado, de encontrar um suporte teórico no
qual pudesse apoiar as minhas argumentações sobre a relação entre teatro e comunidade no
ainda mais perguntas, que somente ao longo do Doutorado, puderam ser investigadas mais
papel como autora dos processos criativos ou a sua autonomia dentro de um “projeto”; que
tipo de política estabelecida entre “agentes externos” e comunidades é capaz de criar uma
relação que garanta à comunidade o seu verdadeiro direito de voz? Ou ainda, que
assegurando à favela/comunidade o seu direito de por meio do teatro nomear o mundo? Essas
particularmente intensificada durante o período em que participei do curso Theatre and media
Inglaterra, sob a supervisão do Professor Tim Prentki. A chance surgiu devido a aprovação de
Programme AlBan of High Level Scholarships for Latin América (Programa AlBan de bolsas
neoliberalismo contribuíram para ampliar a minha compreensão sobre as regras que regem o
8
que Milton Santos define como perversa, na realidade da favela, espaço geográfico que decidi
desenvolvimentistas, que começaram a ser implementadas nos países do Sul do mundo pelos
países do Norte após a Segunda Guerra Mundial, quanto a globalização, baseada nas leis do
mercado, competente para gerar riquezas, porém negligente para cuidar das necessidades
Ao contrário, como afirmam diversos autores aos quais recorro no capítulo, entre eles
Wolfgang Sachs, Oswaldo de Rivero, Noam Chomsky e George Soros, tudo indica que o
modelo socioeconômico global caminha na contramão da garantia a uma realidade mais digna
mundo”, termo utilizado por Mike Davis, é examinado como uma conseqüência da
globalização neoliberal. Mas, a partir da perspectiva mais otimista de Milton Santos em Por
professor Tim Prentki em Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão procuro
único, em favor da chance de que surjam do “território da luta” ações criativas capazes de
Apresento exemplos de um movimento acentuado recentemente que vem trazendo à tona, por
9
afirmarem como narrativas alternativas. Nas letras do rap, na poesia da literatura marginal,
AfroReggae, a Central Única das Favelas – CUFA e o Observatório das Favelas, encabeçam
hoje o movimento que ganhou corpo a partir dos anos 90 e que disseminou projetos
cenário de cidade, que naquele momento começa a se desenhar a partir do surgimento de uma
momento, o dilema que se coloca para essas iniciativas, especialmente para aquelas que
muitas vezes refletem os interesses dos “vetores de cima”, até que ponto a negociação entre
todos os “atores”, ou entre os “vetores de baixo e de cima”, como define Milton Santos,
projeto? Não existiria o risco dela se tornar um mero objeto do interesse de grupos,
representantes dos vetores “de cima”? Finalizo o capítulo 2 formulando aquela que talvez
seja a questão-chave deste trabalho: Será possível aos projetos sociais/artísticos hoje, ainda
que fazendo parte da intricada trama social, política, econômica e cultural, oferecer à arte,
10
especialmente ao teatro, foco desta tese, a chance de assegurar a vez e a voz dos “vetores de
corpo teórico ao qual tive acesso durante o curso na Inglaterra, mas antes descrevo
brevemente o cenário do campo da Pedagogia do Teatro no Brasil, que nos últimos anos
contextos como, o dos projetos realizados nas periferias e favelas das grandes cidades; das
ações na área da educação não formal; dos programas em defesa dos direitos humanos, da
saúde etc. O fato despertou a atenção do meio acadêmico que se antes concentrava as suas
alargou seu campo de reflexão. A variedade de iniciativas que incluem a parceria entre teatro
e educação nesses diversos contextos obrigou uma resposta da academia à nova realidade;
dilatou o foco de seus estudos teóricos, o que vem contribuindo, por exemplo, com a maior
hoje.
surgiram muitas publicações dedicadas a investigar a relação entre teatro e comunidades. Com
de encontrar respostas para as perguntas que levantei, trago neste capítulo as reflexões de
comunitária, teatro para mudança social, teatro popular, teatro de intervenção, teatro para o
práticas num termo abrangente e inclusivo que vem ganhando repercussão internacional –
applied theatre (teatro aplicado). A escolha por um termo mais inclusivo como este indica a
intenção desses estudos em se concentrar em conceitos que regem as práticas no campo, mais
do que se dedicar às nuances entre elas. Portanto, assumo neste momento do trabalho o termo
teatro aplicado, e passo a me dedicar a sua trajetória e conceituação teórica. Parte do desafio
do capítulo foi o estudo da bibliografia em língua inglesa; bem como a tradução de trechos de
autores como Baz Kershaw, Eugene Van Erven, Helen Nicholson, Tim Prentki, Philip Taylor,
Ao longo do capítulo, apresento o percurso do teatro aplicado. Dedico boa parte dele à
discussão das transformações sofridas pela cena ocidental a partir do século XX, que teriam
colaborado com o surgimento do embrião do teatro aplicado. A ruptura com a sala italiana,
recusa gradual à sala tradicional que levou à alforria do teatro; a iniciativa de encenadores em
recuperar o espaço urbano como um ambiente livre para o acontecimento teatral e a vontade
de reencontrar a platéia popular; desejos que iriam se acentuar ao longo daquele século de
fortalecimento da relação entre teatro e política, desde o teatro engajado soviético, até os
partes do mundo durante os anos 60 e 70. Décadas em que grupos teatrais inovadores,
platéias populares, levando o teatro aos mais variados espaços da cidade e até os de áreas não
urbanas.
Neste trecho do capítulo coube uma passagem para o Brasil e a investigação também
aqui dos movimentos de ruptura e transformação que alteraram o curso da história do Teatro
12
Brasileiro. Como a atuação de grupos que, assim como em outras partes do mundo durante as
décadas de 60 e 70, deixaram a sala tradicional em busca de recuperar a ideia do teatro como
chamei de “alicerces teóricos do teatro aplicado” - as obras de Paulo Freire e Augusto Boal. A
rigor, como será possível constatar, além de Brecht, as obras dos dois brasileiros são
A base teórica do teatro aplicado defende que os processos criativos, que envolvem
quase sempre a colaboração entre artistas e grupos comunitários, devam permitir a emersão de
um teatro que responda à comunidade, que exerça uma comunicação e impacto específicos
para os seus participantes e platéias; que os interesses, temas, histórias, e formas estéticas da
comunidade sejam aproveitadas pela cena. Compreender a teoria do teatro aplicado, bem
circunstâncias favoráveis à emersão de um teatro pela comunidade, ou de uma cena que reflita
comunidade-sujeito.
deles, o veterano Nós do Morro. Os outros dois representam iniciativas mais recentes, que já
nasceram inseridas no amplo leque de ações teatrais presentes em comunidades hoje: o Grupo
Código (Japeri, Baixada Fluminense), que é o resultado da extensão das ações do grupo do
Vidigal e a Cia. Marginal (Nova Holanda, Complexo da Maré), uma iniciativa que nasce no
Maré (REDES), uma organização que, assim como o Nós do Morro e o Código, surge a partir
espetáculo Burro sem Rabo, assisti aulas para crianças e adolescentes e fiz entrevistas com os
informações colhidas durante aquele período estão presentes em minha dissertação e também
no presente trabalho.
ensaios de Os Dois Cavalheiros de Verona (2006), espetáculo que tive o prazer de ver
Barbican, por ocasião de minha estadia na Inglaterra. Entre agosto de 2006 e março de 2007,
cursos. Esta aproximação se por um lado foi muito positiva, porque passei a compreender
com olhos de quem está “de dentro” a realidade do grupo, de outro embaraçou o meu trabalho
como pesquisadora. Optei por manter uma razoável distância entre mim e o meu “objeto”.
Foi em 2006, que conheci o Grupo Código, de Japeri, que na época já representava um
orgulho para o Nós do Morro. O Código nasceu do encontro entre integrantes do grupo do
Vidigal e jovens artistas da Baixada Fluminense, história que será melhor contada no capítulo
4. As duas vezes em que estive em Japeri fui levada pela artista facilitadora do Nós do Morro,
montagens. Na primeira visita, em 2006, passei o dia em Japeri e assisti à noite a estreia do
espetáculo Censura Livre; na segunda, em 2007, assisti a montagem de Do lado de cá. Nas
frequentava o espaço cultural criado pelo grupo, também realizei entrevistas com Miwa e os
jovens atores do Código. Percebi que seria importante incluí-lo na pesquisa, primeiro por se
tratar de uma “cria” do Nós do Morro, segundo por ele estar desenvolvendo um processo
constatei que naquele espaço tão atacado pelas privações estruturais, respirava o teatro.
e procurar outras iniciativas de teatro no âmbito dos projetos sociais ofertados naquele
momento. Não tinha certeza o que incluiria na pesquisa, mas comecei a investigar outras
organizações. Visitei o AfroReggae, instituição mais reconhecida por seu trabalho musical, e
conheci o seu grupo de teatro. Na época, a experiência me pareceu ainda principiante. Decidi
então retornar a Maré, agora como pesquisadora, e ver o que acontecia por lá na área teatral.
mas tive a feliz surpresa de encontrar também por lá a Cia. Marginal, que naquele momento
ensaiava o espetáculo Qual é a nossa cara?. Visitei os ensaios do grupo uma vez por semana
entre julho e setembro de 2007, quando estreou a peça na Casa de Cultura da Maré. Durante
este período realizei entrevistas com os atores e também com a sua diretora Isabel Penoni.
O encontro com a Cia. Marginal foi curioso, eu havia acabado de assistir Do lado de cá,
deparava com a mesma escolha. Em Qual é a nossa cara?, a favela de Nova Holanda, uma
iniciativas também tinham em comum o fato de terem surgido a partir do encontro entre
artistas “de fora” e jovens das comunidades. As situações eram bem semelhantes à vivida pelo
Nós do Morro na década de 80 e esses foram, sem dúvida, alguns dos motivos que me
A partir dos três exemplos abordo o conceito do teatro pela comunidade, como
medida em que a realidade dos projetos sociais/artísticos hoje, como falamos antes, desafia os
15
“vetores de baixo” a transitar pelas tramas das “novas redes de sociabilidade”, resguardando
narrativas alternativas ao pensamento único, apresentando ao mundo a sua versão, com a sua
voz, tomando as rédeas de seu destino e assumindo-se como dona de sua história?
encontro entre o palco e a plateia, aquela que eu havia experimentado pela primeira vez ainda
menina. Este trabalho representa mais do que o resultado do curso de Doutorado, a conclusão
de um ciclo de vida. Foi o meu afeto pelo teatro, pelas pessoas que encontrei e com as quais
trabalhei no “território da luta” que me estimularam a seguir em frente e chegar até aqui.
16
Zygmunt Bauman
uma perspectiva mais positiva para o futuro, capaz de garantir a superação do quadro de
otimistas resistem diante de um cenário que anuncia um futuro mais ameaçador do que
a globalização mais prometeram do que cumpriram. A “boa vontade” dos países ricos
continua sendo desafiada a construir um mundo que seja bom para todos. Aos mais pobres
permanece também um mesmo desafio: cultivar um estado de luta capaz de modificar o que
está estabelecido.
decidiram deixar clara esta posição. A posse do Presidente Truman em 1949 marcou o início
preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços
2
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
17
das áreas subdesenvolvidas.” 3 Pela primeira vez, a partir deste discurso histórico, o mundo
Estados Unidos e a Europa ditaram como o resto do planeta devia se organizar econômica,
elevar o nível daquelas áreas consideradas atrasadas, por meio das políticas do
Kubitschek ao poder em 1956, a chamada fase desenvolvimentista ganhou vapor por meio do
Plano de Metas, que se por um lado modernizou a indústria, de outro provocou um forte
endividamento externo.
3
ESTEVA, Gustavo. Desenvolvimento. p. 59-60 In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia
para o conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000.
4
Ibidem, p. 60.
18
(FMI), assim como a presença do Banco Mundial nas economias. Como afirmou Eduardo
Galeano:
Nascido nos Estados Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos
Estados Unidos, o Fundo opera, de fato, como um inspetor internacional.
(...) O FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall
Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda Guerra o dólar
inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. 5
como são hoje bem conhecidas e que têm exercido um crescente papel nas sociedades em
todo o mundo, ganharam força por meio de projetos intervencionistas em países do Sul. As
relações entre Norte e Sul passaram a ser formuladas de acordo com este modelo
nas situações de vida das populações dos países subdesenvolvidos, depois de quatro décadas,
como explica Sachs, ela entrou em declínio. Segundo o autor, a maioria das condições
desenvolvimento afirma Sachs: “Entrou em declínio porque as premissas que lhe serviram de
5
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 29a.edição. p.
239.
6
SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis,
RJ:Vozes, 2000. p. 11. Um bom exemplo desta relação entre Norte e Sul foi a Revolução Verde, cuja proposta
era transferir pessoas da chamada “agricultura de baixa produção” para uma integração com a economia
nacional. De acordo com essas políticas os “experts” do Norte planejaram como mudar rapidamente o Sul
através da imitação das soluções da agricultura, especialmente as dos Estados Unidos. Como explica a
professora Márcia Pompeo Nogueira em Teatro para o Desenvolvimento e sua contribuição (Revista Ouvir e
Ver – no prelo), o modelo imposto não era compatível com o conhecimento e recursos existentes. O
conhecimento das sociedades tradicionais aprendido em anos de vida ligados à terra foi invalidado. Nogueira
explica que o efeito desta política em zonas rurais foi devastador, o sistema de “baixa produção” dos pequenos
produtores, que plantavam para sua família e comunidade fora substituído pela agricultura industrial. Tendo
excluído o pequeno produtor, a conseqüência deste desenvolvimento economicamente orientado foi o aumento
de pobreza. Ao anular a participação das populações ou comunidades nos processos de formulação e
implementação dos projetos, as políticas desenvolvimentistas cavaram, em muitos casos, o seu próprio fracasso.
19
base foram superadas pela história”. 7 O progresso dos países industrializados, principalmente
dos Estados Unidos, não garantiu um futuro melhor, ao contrário, já existe bastante evidência
de que essa corrida levou a um abismo. A difícil situação ecológica que vive o mundo deixa
bastante claro que as sociedades “avançadas” não são modelo que se preze. Também a
garantia aos americanos de “uma visão reconfortante de uma ordem mundial na qual eles
De acordo com Sachs, por mais de quarenta anos o desenvolvimento foi uma arma na
Truman perdeu o vapor; o mundo se tornou cada vez mais policêntrico; hoje, muito mais do
que nas sedes de governo ou nos parlamentos, o destino das economias e culturas globalizadas
é decidido nos mercados financeiros de Nova York, Chicago, Londres, Tóquio, Cingapura,
Se houve algum avanço por parte dos países do Sul, mesmo assim os do Norte sempre
estiveram em grande vantagem. Já em 1960 os países do Norte eram 20 vezes mais ricos que
os do Sul. Em 1980 essa proporção havia aumentado para 46 vezes. De acordo com Sachs, o
desmoronamento:
7
SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis,
RJ:Vozes, 2000. p.13.
8
Ibidem, p.13.
9
Ibidem, p.11.
20
cinquenta anos não atingiram a maior parte das nações. Segundo Rivero, muitos países e
sob o controle de opressores e mafiosos. O autor destaca o caso do Peru, que em 1987
permanecia preso à exportação de bens primários, endividado, cuja população dobrara e cuja
No início do século XXI, o Peru era considerado pelo Banco Mundial um dos países
mais pobres do mundo, com mais de 40% da população vivendo com renda menor que dois
dólares por dia. De acordo com Rivero, a falta de entrosamento na economia global não seria
uma característica exclusiva do Peru. Outros países da América Latina, Caribe, África e Ásia
têm vivido uma gradativa situação de “disfunção e marginalidade mundial”. 12 Até 2020
estima-se que a população dos países pobres terá quase dobrado e será majoritariamente
10
SACHS, Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis,
RJ:Vozes, 2000. p. 12.
11
RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes,
2001.
12
Ibidem, p.10.
13
RIVERO, Oswaldo de. O Mito do desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes,
2001.p. 186.
21
Na América Latina, países como Bolívia, Haiti, Honduras, Guatemala, Nicarágua e Peru
já são os mais afetados pela falta de segurança alimentar. Esses países, onde o abastecimento
de alimentos é ameaçado por altas taxas de expansão da população urbana, explica Rivero:
“Não conseguirão importar cada vez mais alimentos com as reduzidas receitas obtidas com
agrícola mundial deixaram de fora os agricultores do países pobres. De acordo com Rivero:
“Esta situação os levará a depender ainda mais da ajuda alimentar externa.” 15 O destino
A ilha é o cenário perfeito para o quadro descrito por Oswaldo de Rivero. A situação do Haiti,
que permanecia esquecida ou silenciada há muitos anos, veio à tona em janeiro deste ano
devido ao terremoto que atingiu a sua capital, Porto Príncipe, despertando os olhares do
mundo inteiro para uma conjuntura que Fidel Castro definiu como: “Uma vergonha da nossa
época, de um mundo onde prevalecem a exploração e o roubo das riquezas da imensa maioria
dos habitantes do planeta.” 16 O Haiti foi a “menina dos olhos” da colonização francesa, teve
o seu território devastado pela monocultura da cana de acúcar; entre 1915 e 1934 foi invadido
por tropas norteamericanas; foi vítima de ditaduras sangrentas durante 30 anos, acumulou
dívida com o FMI, viveu anos de instabilidade social e política; hoje figura em 146º lugar
entre os 177 medidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. Mais da
metade da população vive com menos de US$ 1 por dia, e 78% com menos de US$ 2.
Desmatadas, apenas 2% das florestas do país estão de pé; com as terras afetadas por anos de
queimas e desmatamento, o país importa a maior parte dos alimentos que consome. A ajuda
14
Ibidem, p.190.
15
Ibidem, p.190.
16
Mesmo afastado da política o líder cubano escreveu carta à imprensa onde consta a declaração. Fonte: Cuba
abre seu espaço aéreo aos EUA. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 16/01/2010. Mundo. P. 28.
22
humanitária que agora trabalha nos escombros de uma tragédia provocada pelo desastre
natural acabou atraindo a atenção também para outro desastre, o provocado por séculos de
A verdade é que enquanto em menos de cem anos a Europa e os Estados Unidos quase
acabaram com a sua pobreza, em vários países ela se tornou hereditária. Contudo, a situação
de atraso tecnológico e pobreza da América Latina ainda é boa se comparada com a de muitos
países da África, Ásia e Oriente Médio. Hoje, alerta o economista Joseph Stiglitz, diante da
menos promissoras, outras mais esperançosas, é importante não esquecer que: “Sucesso
melhoria dos padrões de vida e não apenas no PIB medido.” 17 O autor nos lembra que nem
América Latina, de 1981 a 1993, enquanto o PIB aumentou 25%, a parte da população que
vivia com menos de 2,15 dólares por dia aumentou de 26,9% para 29,5%. O economista
adverte: “Se o crescimento econômico não é compartilhado por toda a sociedade, então o
desenvolvimento fracassou.” 18
O Brasil, que vem sendo considerado por muitos como a caminho de se tornar uma
renda. Em 2007, os mais ricos do país, 1% da população (cerca de 560 mil domicílios)
detinham 12,5% da renda familiar; já os 50% mais pobres, que representam 28 milhões de
17
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117. O
produto interno bruto (PIB) representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais
produzidos numa determinada região, que pode ser um país, durante um período determinado (mês, trimestre,
ano, etc). O PIB é um dos indicadores mais utilizados na macroeconomia com o objetivo de mensurar a atividade
econômica de uma região.
18
Ibidem. p. 118.
23
domicílios, ficavam com apenas um pouco mais: 14,7% do bolo. 19 Recentemente um relatório
apresentado na abertura do 5o. Fórum Urbano Mundial da Organização das Nações Unidas
(ONU), no Rio de Janeiro, revela que cinco cidades brasileiras estão entre as mais desiguais
Dividido também mostra que o Brasil é o país com a maior distância social na América
Latina.
(IBGE) também não revela dados muito positivos. O levantamento intitulado Síntese dos
Indicadores Sociais mostra que quase a metade das crianças e jovens de até 17 anos estava em
início de 2010, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO) divulgou resultados de uma pesquisa que mostrou que, embora programas
governamentais como o Bolsa Família, o Fome Zero e o Brasil Alfabetizado tenham ajudado
a melhorar os índices na área da educação, ainda assim, estes avanços não foram suficientes
para tirar o país de uma posição intermediária no continente. O relatório Educação para
Todos, divulgado pela UNESCO mostra que a baixa qualidade do ensino nas escolas
19
Fonte: ALMEIDA, Cássia; LINS Letícia. Menos pobre, porém tão desigual. Jornal O Globo, Rio de Janeiro
23/08/2009, Economia. P. 29-30. A informações trazidas pela reportagem estão apoiadas no estudo da
pesquisadora, economista Sonia Rocha (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade) com dados dos censos
demográficos de 1970, 1980 e Pnads ( Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) nos anos seguintes;
pesquisas do IBGE e o estudo do pesquisador Marcelo Néri, no Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio
Vargas, com dados do Censo, Pnad e Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.
20
As cinco cidades são: Goiânia (10a.), Belo Horizonte (13a.), Fortaleza (13a.), Brasília(16a.) e Curitiba (17a.)
consideradas pela ONU cidades também com alto índice de desigualdade, o Rio de Janeiro aparece na 28a.
posição e São Paulo na 39a. posição. Na pesquisa nove municípios da África do Sul lideram o ranking. As
capitais da Nigéria, Etiópia, Colômbia, Quênia e Lesoto estão também entre as mais desiguais. No total foram
analisadas 138 cidades de 63 países em desenvolvimento. Fonte: Cidades brasileiras integram a lista das mais
desiguais. Disponível em: <http//www.estadao.com.br> São Paulo, 19 de marco de 2010. Acesso em:
20/03/2010.
21
Pelos critérios da pesquisa, um pobre tem um rendimento domiciliar per capita de até meio salário mínimo por
mês, ao passo que o extremo pobre tem uma renda de até um quarto do mínimo. O salário mínimo em 2008 era
de R$ 415,00. O levantamento apontou que 18,5% dos jovens de até 17 anos residiam em uma casa com renda
per capita de até um quarto do salário mínimo e, 26,2% tinham uma renda por pessoa de até meio salário mínimo
ao mês. Fonte: Quase metade dos jovens do país esta em situação de pobreza, Mostra IBGE. Disponível em:
<http//www.globoonline> Publicada em 09/10/2009. País – indicadores sociais. Acesso em: 10/10/2009.
24
brasileiras ainda deixa milhares de crianças para trás e é diretamente responsável por manter o
país na 88ª posição no Índice de Desenvolvimento Educacional (IDE), atrás de países mais
Juventude e Políticas Sociais no Brasil 23, mais da metade dos jovens entre 15 e 17 anos não
está cursando o ensino médio, etapa de ensino adequada para esta faixa etária, e apenas 13%
dos jovens de 18 a 24 anos freqüentavam o ensino superior em 2007. Os fatores que mais
interferem nas oportunidades de acesso à Educação são o local de moradia, a cor da pele e o
nível de renda.
Mesmo assim, a última lista divulgada pelo Programa das Nações Unidas para o
2007, frente a 2006, tendo conquistado mais pontos no Índice de Desenvolvimento Humano
24
(IDH) . Com o índice de 0, 813, ocupando a 75a. posição, o Brasil se manteve na categoria
22
Fonte: Unesco: Brasil avança na educação, mas segue em posição intermediária. Disponível em:
<http//www.globoonline> Publicada em 20/01/2010. Educação. Acesso em: 20/01/2010. A reportagem revela
que em 2000, mais de 160 países assinaram o compromisso Educação para Todos, que previa o cumprimento de
seis metas incluindo a universalização do ensino fundamental, a redução da taxa de analfabetismo e a melhoria
da qualidade do ensino a serem cumpridas até o ano de 2015. Ao analisar o cumprimento das quatro principais
metas estabelecidas pela UNESCO, constata-se que o Brasil tem um bom desempenho no que se refere à
alfabetização, ao acesso ao ensino fundamental e à igualdade de gênero. Mas tem um baixo desempenho quando
se analisa o percentual de alunos que conseguem passar do 5° ano do ensino fundamental. O relatório aponta que
o Brasil apresenta alta repetência e baixos índices de conclusão da educação básica. Na região da América Latina
e Caribe, a taxa de repetência média para todas as séries do ensino fundamental é de 4,4%. Mas no Brasil, o
índice é de 18,7% - o maior de todos os países da região.
23
Fonte: Mais da metade dos jovens de 15 a 17 anos não esta cursando o ensino médio. Disponível em:
<http//www.globoonline> Publicada em 19/01/2010. Educação. Acesso em: 20/01/2010. A pesquisa traz uma
análise profunda das políticas públicas voltadas para os jovens no Brasil. Foi publicada em livro pelo IPEA em
19/01/2010.
24
O Índice que serve como indicador para o bem-estar humano é calculado anualmente pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O PNUD, instituição da ONU voltada para o
desenvolvimento, calcula o IDH a partir do Produto Interno Bruto per capita, longevidade (expectativa de vida),
e educação (índice de analfabetismo e taxa de matrícula dos estudantes).
25
Uma contagem planetária da pobreza realizada pelo Banco Mundial em 2000 revelava
que o número total de seres humanos vivendo com menos de dois dólares por dia chegava a
2,8 bilhões. Isto sem contar com aqueles que viviam com três ou quatro dólares por dia, o que
São estatísticas que não aparecem com muita freqüência nos veículos da mídia, mais
quebra do Banco Lehman Brothers, e o mundo viu desmoronar, assim como havia
discutir as leis que regem a macroeconomia tornou-se pauta de todo o dia. O abalo nos
Estados Unidos trouxe consequências para todas as economias, uma onda de instabilidade
tomou conta do mundo. Até hoje, o assunto domina diversas esferas, como a das lideranças
crise, como ficou mais popularmente conhecida, ganhou também lugar no vocabulário do dia
a dia das pessoas, na fala da dona de casa, na roda de bar, entre os jovens estudantes. De
repente, começamos a entender que o que acontecia lá, no hemisfério norte, entre os países
a nossa percepção sobre outra face da globalização, não aquela que se refere à circulação de
informação e cultura, da Internet e outras formas de difusão de ideias, mas a outra, em relação
às leis que regem a economia global, e que, naquela data, revelaram às pessoas “comuns” o
seu potencial de interferir nas simples relações de trabalho/emprego, na mesa das famílias, no
25
Dados do Relatório de desenvolvimento do Banco Mundial 2000/2001 apud Oswaldo de Rivero. O Mito do
desenvolvimento. Os países inviáveis do século XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 75. Este mesmo relatório
revelava que o Brasil, atualmente considerado uma das economias mais promissoras do mundo, possuía 28% de
sua população vivendo com menos de dois dólares por dia.
26
das principais capitais mundiais, o valor das moedas, o desafio daquele que iria comandar a
Nós, espectadores, nos perguntávamos quando e de que forma a “crise” chegaria em nosso
país, se estávamos ou não “preparados” para enfrentá-la; quase sem sentir questões, até então
todos nós. Perguntas até então não formuladas passaram a despertar interesse: Como a quebra
de um banco americano pode nos afetar? Qual o controle que exerce a ordem econômica
mundial sobre as nossas vidas? Qual a relação que existe entre o “mercado financeiro
sobre a pobreza calculadas pelos cientistas especializados? Ou ainda, qual a relação entre o
o mundo aprendeu a criar instituições internacionais. A primeira delas foi criada após do
grande primeiro conflito, a Liga das Nações, que fracassou na sua missão de preservar a paz.
entre os países mais industrializados do mundo. O sistema foi o primeiro exemplo, na história
27
mundial, de uma ordem monetária totalmente negociada, tendo como objetivo governar as
Woods, New Hampshire, para a Conferência monetária e financeira das Nações Unidas. Os
depois que um número suficiente de países ratificou o acordo. Segundo o economista Joseph
Stiglitz, na época, boa parte do mundo em desenvolvimento ainda estava colonizada: “Essas
instituições eram clubes dos países ricos, e sua governança refletia esta posição. Eles
ajuste neoliberal), que favoreça a internacionalização das empresas e dos meios de produção;
ocorre uma rápida expansão dos mercados financeiros. Na década de oitenta, com o incentivo
tornou um processo irreversível. A queda do bloco comunista e o fim da Guerra Fria também
governos podiam deixar de lado as batalhas ideológicas para se voltar aos interesses do
capital.
26
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.81.
28
Em 1989, a reunião que ficou conhecida como o Consenso de Washington serviu para
por ele, e que posteriormente viriam a influenciar decisões inclusive do governo brasileiro 27,
Noam Chomsky crítico radical do neoliberalismo, o evento teria defendido a ideia de que os
globalização é a relação entre o papel do Estado (governos) e o dos mercados. Soros, embora
defenda que a globalização é um processo desejável sobre vários aspectos, como a maior
destaca o fato de que muitos países menos desenvolvidos foram atropelados pela globalização
27
No Brasil, o governo Fernando Henrique Cardoso iniciou reformas com base nas decisões do Consenso. As
medidas favoreceram a passagem do controle do Estado para o controle da livre concorrência (livre-mercado).
Foi um período marcado por privatizações de empresas estatais; a desvalorização da moeda nacional, redução da
renda per capita, com o aumento da concentração de renda na mão de poucos.
28
CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006. p. 22.
29
SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 45.
29
sem o amparo de redes sociais de segurança. Segundo o autor a globalização provocou uma
ambiente, a melhoria das condições de trabalho ou a defesa dos direitos humanos. Aspectos
que, não apenas segundo Soros, mas de acordo também com outros autores, estão sendo
seja um defensor da livre circulação de capitais Soros admite que as regras do jogo da
expandiu suas relações monetárias para todas as áreas da esfera pública: educação, saúde e
serviços sociais.
decisor da arena pública para outros lugares: para as pessoas na retórica do poder; para as
30
Ibidem, p. 47.
31
CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006. pg. 144
30
como dar certo 34, Stiglitz propõe uma série de reformas que poderiam garantir à humanidade
um planeta mais democrático, menos desigual e saudável. O autor afirma que a globalização
poderia ter funcionado para os países mais pobres, se os mais ricos tivessem construído um
promover o desenvolvimento nos países pobres, ao contrário de terem criado um regime “de
comércio global que ajudou seus interesses especiais empresariais e financeiros.” 35 Stiglitz,
que: “A globalização tem o potencial de trazer enormes benefícios para as populações tanto
valores materiais acima de outros valores, tais como a preocupação com o meio ambiente e a
própria vida; o modo como a globalização foi administrada tirou grande parte da soberania
32
Ibidem. p.. 36.
33
STIGLITZ, Joseph E. A globalização e seus malefícios. A promessa não cumprida de benefícios globais. São
Paulo: Futura, 2002.
34
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
35
Ibidem, p. 43.
36
Ibidem. p.. 63.
31
O fato que ganha maior destaque nas discussões entre os críticos da globalização é o
número crescente de pessoas vivendo na pobreza. Um estudo chamado Vozes dos pobres 37,
realizado pelo Banco Mundial, enquanto Stiglitz ainda era seu economista-chefe, entrevistou
60 mil pobres em sessenta países diferentes a fim de obter informações sobre como eles
desenvolvidos as garantias dos mercados contra esses riscos são ausentes porque os governos
desenfreado, os governos sempre assumiram um papel central nas finanças: “O sucesso dos
A grande questão que se põe em jogo no caso dos países em desenvolvimento é se eles
possuem poder comparável aos dos governos dos países desenvolvidos. Se eles são fortes o
37
De acordo com Stiglitz, o projeto Vozes dos pobres foi realizado enquanto ele era economista-chefe do Banco
Mundial, como parte da preparação para o relatório decenal sobre pobreza (World Development Report
2000/20001: Attacking Poverty). Ele implicava num esforço de compreender a pobreza do ponto de vista dos
próprios pobres. Os resultados foram publicados em três volumes: Can anyone hear us? (v.1); Crying out for
change (v.2) e From many lands (v.3). (Washington, DC:World bank,2002).
38
STIGLITZ, Joseph E. Globalização como dar certo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 84.
32
cada vez mais limitada também pelos acordos internacionais que interferem
no direito dos Estados soberanos de tomar decisões. 39
Segundo Stiglitz, o Estado-nação que foi o centro do poder político econômico ao longo
dos últimos 150 anos está sendo espremido hoje; de um lado pelas forças da economia global
estreita dos países do mundo – resultou na necessidade de ação mais coletiva, da ação
globalização integrou o mundo, mas ainda não criou instituições globais democráticas o
suficiente para tirar, sobretudo os países mais pobres, das armadilhas que ela mesma
preparou.
pelos governos dos Estados Unidos e pelos países europeus são a prova da necessidade da
sua estabilidade econômica, apelou-se não só para a mão forte do Estado, como também para
a solidariedade entre os governos dos países que mandam no mundo. A crise estremeceu a
dominância econômica dos EUA; em anos que ainda estão por vir, eles terão que lidar com os
sistema financeiro global. A reforma sugerida pelo economista resolveria, segundo ele, um
39
Ibidem, p. 84.
40
Ibidem, p. 85.
41
A crise atual, precipitada por uma bolha no mercado de imóveis, é considerada por George Soros como o
clímax de uma superexpansão (super-boom) ocorrido nos últimos 60 anos. Segundo Soros, os processos de
expansão-contração (boom-bust ) giram ao redor do crédito, e envolvem uma concepção erronea, que consiste na
incapacidade de se reconhecer a conexão circular reflexiva entre o desejo de emprestar e o valor das garantias
colaterais. Crédito fácil cria uma demanda que aumenta o valor das propriedades, o que por sua vez aumenta o
valor do crédito disponível para financiá-las. As bolhas começam quando as pessoas passam a comprar casas na
expectativa de que sua valorização permitirá a elas refinanciar suas hipotecas, com lucros. Isso foi o que
aconteceu nessa última crise.
33
combater a pobreza e propiciar educação e saúde para todos.” 42 Hoje cerca de 80% da
população do planeta vive em países em desenvolvimento, marcados por renda baixa e alta
pobreza, alto desemprego e baixa educação. A abertura das portas ao capital estrangeiro e o
crescimento do PIB não quer necessariamente dizer melhoria na vida da maioria dos
habitantes de um país.
Stiglitz defende como alternativa a retomada do poder mais ativo do Estado, tanto na
Assim como Stiglitz, George Soros também defende maior participação dos governos
Enquanto aguardamos que venham à tona perspectivas mais humanistas e ações que
Hoje o Banco Mundial reconhece que são poucos os países mais pobres que
conseguirão atingir suas metas de redução da pobreza até 2015. Em outras
palavras, os programas de “ajuste estrutural”, consistindo em privatizações,
endividamento e desmontagem dos serviços públicos, empobreceram e
descontentaram uma porcentagem ainda maior da população mundial. Num
mundo pobre e menos desenvolvido, as pessoas percebem que existe um
42
Ibidem, p. 380. Entre as medidas propostas pelo economista estão: perdão da divida externa dos países
miseráveis ate a cobrança de um imposto mundial sobre emissões de carbono e uso de combustíveis fósseis (para
combater o aquecimento global), a limitação do sigilo bancário, e a criação de uma nova moeda internacional de
reserva.
43
Ibidem, p.95.
34
A perspectiva de Pilger tira o fôlego de previsões mais otimistas. Para ele, por baixo da
dos seres humanos nunca telefona e vive com menos de dois dólares por dia, no qual 6.000
crianças morrem diariamente de diarréia por não terem acesso à água potável.” 45 Tudo indica
que o atual modelo socioeconômico global pode estar caminhando, como afirmou Cristóvão
Buarque, para uma “catástrofe ética e social”. 46 As duas promessas já foram desencantadas,
universal e no encolhimento das funções sociais e políticas dos Estados, conseguiram garantir
aos cidadãos mais desfavorecidos do mundo uma realidade mais digna e humana.
É esse o mundo que não deve ficar fora do alcance de nossa visão. A queda do banco
desamparo, podem ter servido para nos despertar para outra realidade: a de que mesmo que a
maioria de nós viva localmente em nossas comunidades, estados ou países, fazemos parte, ao
mesmo tempo, de outra comunidade, a global. Aprender a pensar sobre essa existência é
indispensável para compreender as regras que regem o mundo, de que maneira elas afetam o
nosso dia a dia e até que ponto somos capazes de interferir nelas. Esta tentativa de
compreensão nos deixa mais próximos de possíveis respostas para a pergunta que já fizemos:
afinal que relação pode existir entre o toque no teclado de um investidor da bolsa e a
realidade das favelas da Cidade do México, de Luanda, de Mumbai, Porto Príncipe, Bagdá ou
Rio de Janeiro?
44
PILGER, John. Os novos senhores do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 144.
45
Ibidem, p.12. Dados extraídos pelo autor do Relatório sobre Desenvolvimento das Nações Unidas, publicado
em The Guardian. (22/10/2001).
46
BUARQUE, Cristóvão. Prefácio à edição brasileira. In: SOROS, George. Globalização. Rio de Janeiro:
Campus, 2003.
35
Adquirir uma consciência crítica global é também um passo fundamental na busca por
alternativas capazes de, alguma forma, alterar o rumo de um processo que parece irreversível.
evidentes. Desde 1950, grandes capitais absorveram quase dois terços da explosão
populacional global, a força de trabalho urbana do mundo mais que dobrou desde 1980, e a
população urbana atual, de 3,2 bilhões de pessoas, é maior do que a população total do
mundo em 1960. Na maior parte dessas cidades, o tamanho de suas economias tem pouca
relação com o tamanho de sua população; isto quer dizer, o crescimento do número de
de Mike Davis em Planeta Favela. 47 Nele, o autor faz um diagnóstico mundial sobre o
países da África, América Latina, no Oriente Médio e em parte do sul da Ásia, o fenômeno da
47
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006.
48
Ibidem, p. 24.
36
África, por exemplo, manteve durante as últimas décadas uma taxa de urbanização anual de
nacional arremessaram esses produtores para um mercado global, no qual eles tinham
populações do campo, “colhendo o produto da crise agrária mundial.” 50 Como afirma Mike
não pela oferta de empregos. Essa é apenas uma das várias descidas inesperadas para as quais
a ordem mundial neoliberal vem direcionando o futuro.” 51 Assim como na África, em muitas
para a cidade, que desprotegida pelo Estado “diminuído”, produziu como receita inevitável a
produção em massa das favelas. Segundo Davis, desde 1970 o crescimento das favelas em
49
Ibidem, p. 25.
50
Ibidem, p. 26.
51
Ibidem, p. 26.
37
urbana”. 52 Davis, que utilizou o relatório como fonte para seu estudo, afirma que atualmente
precárias e delineia a sua trajetória global desde a década de sessenta até as “megafavelas”
que marcam as cidades contemporâneas. Segundo Davis: “Os favelados, embora sejam
apenas 6% da população urbana dos países desenvolvidos, constituem espantosos 78,2% dos
habitantes urbanos dos países menos desenvolvidos, isto corresponde a pelo menos um terço
sobre a realidade da favela no Brasil são contestadas por Ermínia Maricato no posfácio do
livro do autor. Segundo ela, Davis teria cometido um erro ao ter atribuído ao país a proporção
de 36,6 % da população urbana (51,7 milhões de pessoas) morando em favelas. Para chegar a
este número o autor teria somado na conta das favelas, locatários informais, cortiços,
moradia classificadas como favelas. A autora corrige Davis utilizando dados do trabalho
52
Ibidem, p. 31.
53
O autor observa que no relatório da UN-Habitat prevalece a definição clássica da favela, adotada oficialmente
numa reunião da ONU em Nairobi, em outubro de 2002. Segundo ela, a favela é caracterizada por: “excesso de
população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e
insegurança de posse na moradia.” p. 33.
54
Ibidem, p. 34.
38
Ministério das Cidades, baseado em dados do Censo IBGE e da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios. Segundo este estudo, a soma dos domicílios improvisados, rústicos,
que se reduzem a cômodos ou que apresentam coabitação familiar perfaz 13,2% do total dos
não tira o mérito do livro, mas afirma que a sua revisão pretende avançar “A leitura a partir
As informações colhidas pelo autor são de tirar o fôlego, e deixam, a princípio, uma
sensação amarga de impotência. Mas, ainda que os números sejam, de fato, assustadores, há
quem acredite que existam possibilidades de mudança. O geógrafo brasileiro Milton Santos é
um deles. Em Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal 57,
ele propõe uma tripla leitura do mundo, segundo a qual precisaríamos observá-lo por meio de
55
Mesmo assim, afirma a autora, há uma classificação de domicílios inadequados em áreas urbanas que exigem
melhorias e que apresentamos seguintes percentuais em relação aos domicílios urbanos: inadequação fundiária,
5,8%; adensamento excessivo, 7,5%; domicilio sem banheiro, 8,6%; e domicilio carente de infra-estrutura (água
de rede publica e/ou rede de esgoto ou fossa e/ou energia elétrica e/ou coleta de lixo), 32,4%.A discussão é
ampla. Para mais informações: MARICATO, Ermínia. Posfácio. In: DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução:
Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 221.
56
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 29.
O autor acrescenta ainda dados sobre o crescimento das favelas na Rússia, principalmente nas antigas “cidades
de empresas socialistas” que dependiam de uma única fábrica, fechada atualmente. Em 1993, dados do
Programa de indicadores urbanos da ONU citou taxas de pobreza de 80% no Azerbaijão e na Armênia. Davis
observa, no entanto, que a população urbana mais pobre talvez esteja em Luanda, em Maputo (Moçambique),
Kinshasa e Cochabamba (Bolivia), onde dois terços ou mais dos moradores ganham menos que o custo da
nutrição mínima necessária por dia. Em Luanda, a mortalidade infantil (crianças com menos de 5 anos) foi de
320 a cada 1000 em 1993, a mais alta do mundo. Esta taxa é quatrocentas vezes maior que a menor taxa de
mortalidade infantil do mundo, em Rennes, na França. p. 35.
57
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2007.
39
três diferentes perspectivas: a da globalização como fábula, como perversidade e por uma
outra globalização. As perspectivas que Santos nomeia de “três diferentes mundos” a rigor
fantasiosa, apresentaria o “mundo tal como nos fazem vê-lo”; a segunda, mais realista, o
“mundo como ele é”; e a terceira mais esperançosa – “por uma outra globalização”.
fazendo crer, por exemplo, em ideias como: “aldeia global” e “uniformidade”; uma
empenhada em nos fazer acreditar que a difusão instantânea de notícias realmente nos
informa, como se o mundo se “houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão”; a outra, nos
fazendo crer que o mercado global homogeneizou, realizou o “sonho de um mundo só”, uniu
o planeta, quando sabemos que na verdade ele está mais dividido do que nunca.
como os demais autores, utiliza um discurso duro, baseado em dados que mais uma vez
assustam: “Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações características do
período atual, a realidade pode ser vista como uma fábrica de perversidade.” 58 O autor
destaca que a fome atinge 800 milhões de pessoas em todos os continentes e que os avanços
na medicina não impedem que 14 milhões de pessoas morram todos os dias, antes do quinto
ano de vida:
Ser pobre é participar de uma situação estrutural, com uma posição relativa
inferior dentro da sociedade como um todo. (...) Vivemos num mundo de
exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo
neoliberal, que é, também, criador de insegurança.” 59
58
Ibidem, p.59.
59
Ibidem, p. 59.
40
pelos interesses apenas de certo grupo de atores globais, alguns Estados e empresas, somada a
61
violência do dinheiro ou ao “fetichismo do dinheiro” representam as bases do pensamento
Mesmo assim, a terceira perspectiva que Santos nos oferece como possibilidade para
uma leitura contemporânea do mundo – por uma outra globalização - é bastante otimista.
Segundo ele, algumas pistas estariam apontando para os limites da evolução da globalização
tal como ela é, perversa, e anunciando um novo período, de uma outra globalização:
Santos destaca a participação dos pobres como fundamental na passagem entre esses
dois períodos. Segundo ele, aos pobres, atores vivos do drama, cuja sobrevivência depende de
uma luta diária, cabe um papel determinante na produção do presente e do futuro: “A pobreza
60
Ibidem, p. 38.
61
Além do termo “fetichismo do dinheiro”, Milton Santos (em trecho que merece ser transcrito) para falar sobre
o papel central do dinheiro na realidade, não só das economias globais como na vida de cada indivíduo, utiliza o
conceito do “dinheiro em estado puro”. Segundo ele, não só as economias, como a vida de cada um de nós são
chamadas a se adaptar a onipresença do dinheiro: “Fundado numa ideologia, esse dinheiro sem medida se torna a
medida geral, reforçando a vocação para considerar a acumulação como uma meta em si mesma. Na realidade, o
resultado dessa busca tanto pode levar à acumulação (para alguns) como ao endividamento (para a maioria).
Nessas condições, firma-se um círculo vicioso dentro do qual o medo e o desamparo se criam mutuamente e a
busca desenfreada do dinheiro tanto é uma causa como uma conseqüência do desamparo e do medo.” p. 56.
62
Ibidem, p.118.
41
é uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a
63
tomada de consciência é possível.” Embora as grandes cidades sejam os espaços nos quais
construir alternativas.
ambiente que favorece o estado de luta, a criação de uma política que pertence aos pobres,
que é o resultado da convivência com a necessidade e com outro. Esta nova política, que
Milton Santos chama de “política dos de baixo”, nada tem a ver com a política institucional,
por todos, pobres e não pobres, e é alimentada pela simples necessidade de continuar
indagação já é de ordem política, e mesmo que nem sempre seja possível para elas um
entendimento dos sistemas que regem o seu lugar e também o mundo, existe uma vontade de
Desta forma, embora seja o espaço vivido da cidade aquele no qual as forças
socioeconômicas hegemônicas operem com grande intensidade, é nele também o lugar onde
se instala a possibilidade do surgimento de uma nova ordem. Para Santos o papel do lugar é
63
Santos diferencia pobres de miseráveis. Segundo ele: “O exame do papel atual dos pobres na produção do
presente e do futuro exige, em primeiro lugar, distinguir entre pobreza e miséria. A miséria acaba por ser a
privação total, com o aniquilamento, ou quase, da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de
luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível. Miseráveis são os que se
confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam.” p. 132.
64
Ibidem, p. 133.
65
Ibidem, p.166.
42
determinante: “Ele não é um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência
sempre renovada, o que permite ao mesmo tempo a reavaliação das heranças e a indagação
sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o
mundo.” 66
movimentos alternativos capazes de modificar o presente estado das coisas. Mas, para
alcançar o que Santos define como “sistema alternativo de idéias e de vida” 67 faz-se
diferença, a compreensão crítica dos indivíduos sobre a sua relação com o lugar e o mundo.
um novo discurso ou de um “novo grande relato” baseado, como destaca Maria da Conceição
Tavares, numa “nova horizontalidade na luta dos oprimidos” 68, irritaria aqueles que acreditam
que, conformados ou coniventes com este pensamento único, taxam a fala dos mais otimistas
Se hoje a história se realiza a partir da dominação dos vetores “de cima”, a perspectiva
vez será dos vetores “de baixo”. As reflexões do geógrafo podem ser vistas por uns como
utópicas, mas por outros como eventos de uma realidade que já pode ter começado a se
concentrada, pode estar produzindo uma dinâmica na qual nem sempre a busca pelo consumo,
66
Ibidem, p. 114.
67
Ibidem, p. 116.
68
TAVARES. Maria da Conceição. Contracapa In: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do
pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007.
43
“visão limitada e unidirecionada” prevalecerá, mas que poderá ser substituída pela busca da
também um tempo em que a cultura popular ganhará mais força e que a mídia deixará de
representar apenas o senso comum imposto pelo pensamento único. É neste momento, que
No artigo, Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão 71, as reflexões do
professor Tim Prentki caminham na mesma direção que as de Milton Santos. Nele, Prentki
conflitos globais do século XX, para argumentar que, ao contrário, esses conflitos deram
corrente: o modelo neoliberal de globalização.” 72 Mesmo que este modelo já esteja dando
sinais de mudança, uma vez que a dominância econômica e a influência política dos EUA, seu
principal patrocinador, estejam abaladas, ainda assim é válido nos referir ao modelo
neoliberal como “a narrativa que controla nossas vidas.” 73 Este controle não está evidente
apenas nos mercados financeiros, mas se manifesta também nas operações das mídias globais,
por meio das quais um pequeno número de atores diz à maioria o que acontece no mundo,
decide o que devemos saber e pensar, como nos comportar, o que devemos consumir ou até
mesmo, sentir. Prentki recorre a Paulo Freire para afirmar que o que está em jogo é a nossa
impossibilidade de “dar nome ao mundo”, uma vez que outros estão fazendo isto por nós.
69
Ibidem. p. 166.
70
Ibidem, p. 21.
71
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.) Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades. Florianópolis: UDESC, 2009.
72
Ibidem, p.1.
73
Ibidem, p.1.
44
essas sim capazes de perturbar a supernarrativa em vigência. Tim Prentki questiona a noção
dominante, “como uma imagem no espelho da resistência” 75, e cuja motivação, assim como a
daquela que lhe deu origem, seria o desejo pelo poder ou a tomada do “poder sobre”. Assim,
Laden, responsável pelo ataque aos EUA no 11 de setembro, teria oferecido grande impulso
De acordo com o autor, nas narrativas alternativas, as relações são construídas na base
da dignidade e não do dinheiro, a noção de poder ganha outro significado, o de “poder para”.
74
Ao se remeter ao pensamento de Paulo Freire, Prentki retoma a noção maior da “educação como prática da
liberdade” que é devolver ao homem a sua responsabilidade histórica - o homem como sujeito que elabora o
mundo, que emerge do lugar de mero objeto para assumir o papel de autor crítico e consciente da história.
75
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009..P. 16.
76
Ibidem, p.16.
77
Está claro, por exemplo, que Bin Laden é um produto desta narrativa dominante, das necessidades do modelo
capitalista neoliberal de ter uma contra-narrativa.
45
formados por relações horizontais e não verticais” 79, construírem novos poderes, permitirem
que se manifeste a voz dos vetores “de baixo”, citando as palavras de Milton Santos. Assim, a
despeito do mundo tal como ele é – perverso - outras narrativas estariam revelando, ainda que
É verdade que as transformações sofridas pelo mundo nas últimas décadas do século XX
e também mais recentemente trouxeram para as pessoas uma onda de conformismo ou mesmo
uma espécie de anestesia que caracteriza o nosso tempo. De acordo com Milton Santos: “É
muito difundida a ideia segundo a qual o processo e forma atuais da globalização seriam
irreversíveis (...) levando a pensar que não há alternativas para o presente estado das
mudança, ainda que não realizadas, já se apresentam como tendências ou como promessa de
realização.
Uma das evidências da eminência do novo período previsto por Milton Santos é a
maneira como se vê revigorada a cultura popular. A vida cultural não escapa da influência que
exerce a globalização sobre a nossa existência. Se por um lado observa-se a ação da cultura de
massas, buscando impor-se sobre a cultura popular, de outro é notório também a reação da
78
HOLLOWAY, John. Como mudar o mundo sem tomar o poder. O significado da revolução hoje. São Paulo:
Viramundo, 2003. Apud PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. p.19. In:
NOGUEIRA, Márcia Pompeo (org.) Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades.
Florianópolis: UDESC, 2009.
79
Na opinião de Prentki, o movimento dos zapatistas representaria um exemplo de narrativa alternativa. O
levante, que começou aos olhos do mundo como a última de uma “longa linha de movimentos revolucionários
românticos e perdedores”, logo deixou claro que não era uma contra-narrativa: “eles estavam no processo
contínuo de criar alternativas de narrativa na luta pela autodeterminação das populações dos Chiapas.” Nascida
de um movimento de resistência às forcas corporativas liberadas pela implantação do Tratado de Livre Comércio
da América do Norte, Exército de Libertação Nacional Zapatista (ELNZ) evitou o roubo de terras indígenas pelo
exército mexicano.
80
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2007. p.160.
46
cultura popular. Essa reação, que Milton Santos chama de “revanche” é evidente, por
exemplo, nas manifestações expressivas próprias das comunidades populares que reinventam
a música, o corpo, a fala. Essas manifestações exercem a sua qualidade de narrativas locais, e
tem colocado em relevo, como observa Santos: “O cotidiano dos pobres, das minorias, dos
excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias.” 81 As deformações do mundo atual
favorecem nos lugares onde elas são mais visíveis, a possibilidade da produção de uma outra
história, cujos narradores não serão os mesmos da super-ideologia. São desses locais, como as
favelas, de onde podem surgir as narrativas alternativas; a cultura e a arte têm se revelado
cada vez mais um caminho pelo qual elas emergem; por meio delas cidadãos artistas cultivam
São fotografias de uma gente simples que vi crescer neste chão árido e
escuro da senzala moderna chamada periferia (...) A beleza fica por conta
de quem vê, não tive tempo para amenidades, a poesia só registrou a
verdade. 83
Sérgio Vaz
Na língua inglesa slum é a palavra que significa favela. 84 Tanto o Português, quanto o
Inglês, não absolvem o sentido de suas palavras de uma imagem, a maior parte das vezes,
muito negativa. Mike Davis nos lembra que a primeira definição para slum de que se tem
81
Ibidem, p. 144.
82
Ibidem, p.161.
83
VAZ, Sérgio. A poesia dos deuses inferiores – a biografia poética da periferia. Taboa da Serra, Edição
Independente, 1988. Apud NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2009. p. 182. Sérgio Vaz é poeta do movimento da Literatura Marginal.
84
O termo favela também pode ser traduzido para o inglês como shantytown, definido como parte pobre de uma
cidade cujas casas são construídas precariamente e sem infraestrutura.
47
linguagem vulgar) de 1812, do escritor condenado à prisão James Hardy Vaux, no qual é
“Nos anos da cólera 1830 e 1840, os pobres já moravam em slums em vez de praticá-los.” 85
principalmente, pela concentração de gente pobre. Davis cita alguns exemplos: em 1895, os
fondaci de Nápoles apareciam num estudo sobre os pobres das grandes cidades como “as
mais apavorantes moradias humanas da face da Terra”; Gorki elegeu o famoso bairro
Calcutá como o “mais vil de todos os esgotos, na cidade da noite assustadora.” 86 Nos Estados
Unidos, em 1894, a primeira pesquisa científica sobre a vida nos cortiços de Baltimore,
Chicago, Nova York e Filadélfia definia slum como: “Uma área de becos e ruelas sujas,
principalmente quando habitada por uma população miserável e criminosa.” 87 De acordo com
Davis:
existissem sem dúvida muitas diferenças, havia pelo menos uma semelhança: o estigma
85
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.32.
86
Ibidem, p.32.
87
Ibidem, p.32.
88
Ibidem, p. 33.
48
Rio de Janeiro, surgia o “Morro da Favella” 89, que teria transmitido o nome às outras
ocupações com as mesmas características. O ano é reconhecido como um marco que situa o
início da ocupação dos morros cariocas. Este período marca também, de acordo com o
professor Jaílson de Souza: “O momento em que essas formas de habitação começam a ser
Para Pierre Bourdieu a compreensão dos diversos aspectos que giram em torno da ideia
de lugar depende de uma análise rigorosa sobre as relações entre as estruturas do espaço
físico e as estruturas do espaço social. O lugar, segundo ele, pode ser definido como o ponto
do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado concretamente “tem lugar,
existe.” Nele, entretanto reside o espaço social, uma espécie de conjunto de idéias ou
social se retraduz no espaço físico, mas sempre “de uma maneira mais ou menos confusa”,
porque se deve levar em consideração “o poder sobre o espaço que a posse do capital
89
O termo "favela" evoca em suas origens o local do sertão baiano onde se concentravam os seguidores de
Antônio Conselheiro, tendo-se difundido no Rio de Janeiro a partir da ocupação dos morros de Santo Antônio e
da Providência pelos soldados que voltavam da guerra de Canudos. Ao chegarem no Rio, os soldados receberam
permissão para instalarem-se nos morros. O Morro da Providência recebeu o nome de "Morro da Favela", como
referência a um arbusto abundante no sertão de Canudos.
90
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 25.
91
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis RJ, Vozes 1997. p. 160.
92
Ibidem, p. 161.
49
sobrepor uns aos outros. A concentração de bens mais raros e de seus proprietários em certos
lugares do espaço físico, como os endereços nobres do Rio de Janeiro se oporiam aos lugares
que agrupam as populações mais pobres, como as favelas cariocas, ou como definiria
portanto, do capital que se possui. De acordo com Bourdieu: “O capital permite manter à
coisas desejáveis.” 94
O caso do Rio de Janeiro é curioso. Diferente das cidades cuja população mais pobre
concentra-se nas periferias, à margem, mantendo-se a distância física e social entre pobres e
ricos, aqui, embora se mantenha a distância social, há uma proximidade espacial entre
algumas favelas e os bairros mais “nobres”. Talvez isso explique, em parte, porque elas têm
sido vistas ao longo de sua existência como um verdadeiro incômodo à urbanidade da cidade,
o estigma territorial é acentuado, porque a anomalia social está bem ao alcance de nossa
vista, basta virar uma esquina do Leblon ou de Ipanema. O aspecto comum entre as favelas
93
Ibidem, p. 161.
94
Ibidem, p. 164.
95
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003. p 108.
50
brasileiras, os slums vitorianos, o bairro russo, as ruelas e becos do mundo todo é, além da
exclusão socioeconômica, o peso simbólico que esses lugares e seus moradores carregam.
No Brasil, o estigma é um problema a ser enfrentado pelos moradores das favelas desde
o início do século XX, quando as populações mais pobres começaram a ocupar os morros da
cidade. 96 Falar da favela é também falar da história do Brasil, mas particularmente da cidade
do Rio de Janeiro, capital federal na virada do século XIX para o XX. No Rio e em São
De acordo com o estudo de Maria Laís Pereira da Silva entre o final do século XIX até as
primeiras décadas do XX, o Estado foi movido pela “prioridade à questão higienista e pela
febre amarela), como cortiços 98 e estalagens; controle e repressão dessas formas de moradia;
operárias 99. Essas ações causaram um impacto na cidade levando as populações pobres dos
96
Em Um século de favela os autores Alba Zaluar e Marcos Alvito fazem uma retrospectiva da história das
favelas cariocas comprovando com documentações datadas do início do século XX, de que maneira as
autoridades policiais e do governo tratavam a ocupação dos morros da cidade pela populações despejadas dos
cortiços e pelos ex-combatentes da Guerra de Canudos. Os autores argumentam como ao longo de sua existência
a favela, no plano das representações, inspirou dos sentimentos humanitários ao imaginário preconceituoso.
97
PEREIRA DA SILVA, Maria Laís. Favelas Cariocas 1930-1964. Rio de Janeiro; Contraponto, 2005. p. 38.
98
Um exemplo marcante de demolição foi a do cortiço Cabeça de Porco, em 1897. Situado no centro da cidade e
considerado o maior cortiço da época, ele fora demolido para a construção da atual Avenida Rio Branco. Uma
parte de seus moradores mudou-se para o Morro da Providência, depois Morro da Favella.
99
De acordo com Maria Laís: “Essa parece ser uma das formas principais de ação estatal, a julgar pelo grande
número de concessões obtidas por empresários do final do século XIX para os anos iniciais do séc.XX. Observa-
se também que muitas dessas concessões caducaram, e poucas moradias operárias foram efetivamente
construídas.” p. 165, nota 55.
51
Jaílson de Souza e Silva observa que a expansão das favelas passa a chamar a atenção
da imprensa e cita como exemplo uma matéria do Correio da Manhã de 2 de junho de 1907.
Diz ele: “Nela, afirmava-se que, para a grande leva de banidos da cidade só restava as
montanhas agasalhadoras... Quase todos os morros que forma a cinta da cidade.” 101 De
acordo com Silva foi a partir do Morro da Favella que se começou a difundir na imprensa a
Para Alba Zaluar e Marcos Alvito, a favela representa no imaginário urbano, desde
“Apesar do que se afirma com freqüência na literatura da favela, esta já começa a ser
despeito desta clara oposição a sua presença na cidade, tenha continuado a crescer sem
interrupção.” 103
Mesmo o ativo Pereira Passos nada fez de concreto em relação à Favella, muito embora
publicada em 1908, destacada por Zaluar e lembrada também por Jaílson de Souza, mostrava
o Dr. Oswaldo Cruz, ostentando no braço um símbolo da saúde e passando um pente gigante
pelos cabelos do “morro” (representado no desenho por um grande rosto mal humorado) e
extraindo deles, como se extraem piolhos de uma cabeça infestada, toda a sua população. A
100
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 25-26.
101
Ibidem, p.27.
102
Alba Zaluar e Marcos Alvito esclarecem que já no início do século XX os morros do Rio eram vistos pela
polícia e alguns setores da população como locais perigosos e refúgios de criminosos. Entretanto, um estudo
realizado por um especialista em história da polícia desmente essa ideia; o estudo de Marcos Bretas afiança que,
nas diversas regiões da capital federal de então:“a distribuição dos tipos de crimes e contravenções é
semelhante.” BRETAS, Marcos. A Guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 1997. p. 74. Apud ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro,
Editora FGV, 2003.P. 10
103
ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003.P. 10
52
legenda dizia: “A Higiene vai limpar o morro da Favella, do lado da estrada de ferro Central”.
Para isso intimou os moradores a se mudarem em 10 dias. 104 Mas a campanha não teve
nenhum resultado.
implementado. Idealizado pelo urbanista francês Alfred Agache, o plano, que ficou
Nele, o capítulo que se referia às favelas propunha a transferência da população ali residente.
A idéia do francês era remover a população das favelas e o operariado para casas e
edifícios coletivos instalados nas zonas industriais, nos subúrbios, isolando desta forma da
área central ou nobre da cidade o lugar dos pobres, seu espaço físico e social. Na opinião de
necessidade não era garantir melhor fluidez ao organismo urbano, mas também proporcionar
uma pedagogia civilizatória por meio das novas delimitações territoriais. Uma bela paisagem
De acordo com Maria Laís Pereira da Silva, durante a década de trinta as favelas
problema a favela passa a ser alvo de proibições, planos e projetos de ordenamento. A ameaça
de remoção, por exemplo, e em alguns casos a sua concretização, foi uma dificuldade
enfrentada por todas as favelas do Rio de Janeiro. No início dos anos quarenta, a solução
encontrada pelo Estado para resolver o “problema”, foi a construção de parques proletários. 106
O resultado da ação, ao contrário de surtir o efeito esperado pelo governo, colaborou com a
104
Ibidem, p.11.
105
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 33.
106
Entre 1941 e 1943, três parques foram construídos na Gávea, no Leblon e no Caju para onde foram
transferidas cerca de 4 mil pessoas, mais tarde expulsas, devido a valorização principalmente dos dois primeiros
bairros.
53
organização das comissões de moradores, que a partir dali, fortaleceram o seu papel como
atores políticos.
Nos anos sessenta, a mobilização das lideranças comunitárias passa a ser determinante
para a vida das comunidades cariocas. Com o golpe militar de 1964, o perigo da remoção fica
ainda maior. A política autoritária do regime adota o remocionismo como alternativa para a
erradicação das favelas do cenário urbano do Rio e passa a investir recursos na construção de
conjuntos habitacionais, para os quais a população deveria ser transferida. O plano, contudo,
enfrentaria uma forte reação dos moradores, é o que afirma o professor Marcelo Burgos:
107
BURGOS, Marcelo. Dos parques proletários ao Favela-Bairro. In Um Século de Favela. Alba Zaluar e
Marcos Alvito, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 36. No texto o autor lembra o episódio de remoção dos
moradores da favela Praia do Pinto, no Leblon. Diante da resistência dos moradores a favela foi incendiada sem
que os bombeiros fossem chamados. As famílias perderam seus pertences e os líderes da resistência passiva
desapareceram. No lugar da favela construiu-se um conjunto de prédios conhecido como a Selva de Pedra, com
apartamentos financiados para militares. A Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara
(FAFEG) foi fundada em 1963, pelas lideranças de moradores das favelas.
108
OLIVEIRA, Jane Souto e MARCIER, Maria Hortense. A palavra é: favela. In: Um Século de Favela. Alba
Zaluar e Marcos Alvito. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.61.
54
As remoções, como ressalta Jaílson de Souza, tiveram um papel central para a expansão
Neste período ocorreu a erradicação das favelas localizadas à margem da Lagoa Rodrigo de
Freitas, como Ilha das Dragas, Praia do Pinto e Catacumba; mais uma vez as ações do Estado
das famílias faveladas. Entre 1962 e 1973 quase 140 mil pessoas foram removidas para
109
O compositor paulista Adoniran Barbosa e o carioca Zé Keti imortalizaram em suas letras o problema da
ameaça de remoção, drama enfrentado pelas populações faveladas em São Paulo e no Rio de Janeiro,
principalmente durante o período do regime militar.
110 SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 46 –47.
111 A Cidade de Deus conhecida fora do Brasil graças ao filme de Fernando Meirelles foi um desses conjuntos
habitacionais construído nos anos 60 para abrigar moradores transferidos de 23 favelas da cidade. Entre elas a da
Praia do Pinto, no Leblon, e a Macedo Sobrinho, no Humaitá. Criado durante a onda de remoções do governo
Carlos Lacerda, o projeto foi tocado com dinheiro da Aliança para o Progresso, financiada pelo governo
americano. O nome foi pensado pelos próprios políticos da época. Não se sabe exatamente o motivo. Talvez para
tentar convencer seus novos habitantes das qualidades da região, então desabitada e sem infra-estrutura da Zona
Oeste carioca. Informações disponíveis no site: <http//www.favelatemmemória.com.br> Na mesma época, o
Governo do Estado construiu outros conjuntos habitacionais pela cidade com verba do governo norte-americano,
principalmente na Zona Oeste. São desta mesma época as vilas Kennedy, Aliança e Esperança.
112
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p. 46 -47
55
De acordo com Jaílson de Souza, a partir do final da década de setenta uma série de
fatores contribuíram com o fim das remoções e a adesão à idéia da urbanização das favelas.
Souza destaca alguns aspectos que teriam colaborado com essa mudança de perspectiva:
Na década de oitenta, os moradores das favelas começam a ser percebidos como atores
regime militar, e também à eleição de Leonel Brizola (1983-86) para o governo do Estado do
Rio e Saturnino Braga, para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, colaboraram com a
como foi o caso, já nos anos noventa, da Rocinha e da Maré. 114 Mas, mesmo que essas ações
tivessem contribuído para uma transformação física no cenário das favelas, a representação
113
Ibidem, P. 51.
114
O Programa Favela-Bairro é o maior exemplo de projeto de urbanização das favelas. Ele foi posto em prática
em algumas comunidades a partir de 1994. Coordenado pela Secretaria Municipal de Habitação e pelo Instituto
Pereira Passos, a proposta do programa é integrar a favela à cidade, oferecendo-a toda a infraestrutura, serviços e
políticas sociais.
56
negativa dele no imaginário da cidade permaneceu hegemônica. Essa representação nos leva
favela impregnou-se um peso simbólico, um ônus do qual ela ainda luta para se livrar.
De acordo com Alba Zaluar e Marcos Alvito, encarar a favela como um fantasma que
assombra a cidade, determinou historicamente uma divisão, uma dualidade, que separa
destacava a vida na favela como: “Um complexo coesivo, extremamente forte em todos os
sociológico retoma a metáfora dualista na década seguinte, quando uma atividade subterrânea
possui longa data e que aprisionou a imagem da favela a um contexto de desordem e à idéia
da carência. O estudo cumpre essa função desmistificadora, na medida em que mostra que os
100 anos de história das favelas cariocas são anos de conquistas; onde a capacidade de luta
115
O termo “asfalto” é utilizado, embora esteja já caindo em desuso, pelas pessoas que moram nas favelas para
denominar os bairros.
116
ALVITO, Marcos; ZALUAR, Alba. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2003. p. 15.
117
Ibidem.p.15.
57
A luta que parece longe de terminar. Atualmente, a favela enfrenta o terror imposto pela
polícia e por traficantes, num conflito que vem rendendo as primeiras páginas dos jornais. Em
Favelas - além dos estereótipos 119, Jaílson de Souza argumenta que em contraponto à idéia da
comunidades populares – “para além das ausências mais visíveis”. Onde possamos enxergar
que nesses espaços as pessoas “desenvolvem formas ativas e criativas para enfrentar as
dificuldades do dia a dia, que estabelecem vínculos sociais na comunidade, que buscam canais
alternativos para o acesso a instituições culturais e educacionais” 120, que enfim enfrentam “os
estereotipada sobre a favela. Assim como aquela famosa caricatura publicada no jornal de
1908, a dos “piolhos” retirados do Morro da Providência, aqui uma representação mais atual
118
Ibidem, p. 22.
119
SILVA, Jailson de Souza. Favelas - além dos estereótipos. Disponível em:
<http://www.observatoriodasfavelas.org.br> Acesso em: julho/2004.
120
Ibidem, p.11.
121
Ibidem, p.10.
122
Ibidem, p. 14.
58
Constatamos com esse breve histórico das favelas no Rio de Janeiro que ao longo de
mais de um século de existência essas comunidades populares têm sido vistas como um lugar
externo à organização da pólis e que, ainda hoje, elas lutam para descolar a sua imagem dos
espectros da carência, do caos, do crime. De fato, essa é a perspectiva crítica que vem sendo
trazida à tona pelos estudos mais recentes sobre a historiografia da favela no Brasil. Da
mesma forma que eles procuram mostrar como essa imagem estigmatizada foi sendo
construída por aqueles que estão “de fora” da favela, eles também apontam algumas
estratégias desenvolvidas pelos “de dentro”, os moradores da favela, tanto para garantir a sua
sobrevivência, quanto para reagir à atitude excludente adotada pelos “de fora”.
É interessante observar que, principalmente a partir dos anos 90, vários autores vêm
optando pelo uso da palavra favela, no lugar da palavra comunidade. 123 O termo comunidade
ainda é bastante utilizado por moradores e não moradores das favelas, como uma definição
preferido o uso da palavra original - favela. Este fato indicaria uma tendência de afirmar o
termo, talvez como um contraponto ao estigma que ele mesmo carrega, uma tentativa de
positivá-lo, de incluí-lo num vocabulário autorizado e aceito pela cidade. É notório também
um crescente interesse pelas “coisas que vem da favela”; ela não só passou a ser mais
estudada pelos “de fora”, como também ela mesma passou a encontrar espaços para falar de
si mesma, para falar com sua própria voz – a favela pela favela.
123
Neste trabalho optei por utilizar a palavra favela e comunidade como sinônimos.
59
Vou nas ruas da cidade encontrar/Onde estou/ Se cale por não ter o que dizer/
Sou do Rio de Janeiro,CDD meu cativeiro/ Então,respeita nóis aqui tem voz /
E hoje eu sei o que você falava pro meu povo não é lei/ Se cale por não ter o que
dizer
Sou do Rio de Janeiro/ Lobo em pele de cordeiro/ Então respeita nóis aqui tem
voz. 124
MV Bill
espera de explodir. Segundo ele, dentro de uma só cidade, a população pode apresentar uma
enorme variedade de reações à privação e à negligência estruturais, que vão desde: “As
revolucionários”. 125 O fato é, que uma enorme quantidade de atos de resistência vem
emergindo de dentro dessas comunidades por todo o mundo, mesmo que eles guardem entre
Davis afirma que: “O futuro da solidariedade humana depende da recusa combativa dos
pobres urbanos a aceitar a sua marginalidade terminal dentro do capitalismo global.” 126 As
recusas vêm ficando cada vez mais evidentes, um grau de insubordinação por parte dos mais
“fracos”, tem sido expresso inclusive por manifestações violentas, motivo de preocupação
Esta recusa pode assumir faces bastante radicais. Uma delas, citada pelo próprio Davis,
seria, por exemplo, o engajamento de jovens pobres dos arredores de Istambul, Cairo,
Casablanca ou Paris ao movimento de Salafia Jihadia. 127 Podemos considerar também como
outra face violenta desta recusa, a adesão de jovens do mundo todo à economia do
narcotráfico, com o qual eles selam um pacto quase sempre de morte; uma “integração
124
Aqui tem voz. Letra do rapista MV Bill. CDD refere-se à Cidade de Deus.
125
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.201.
126
Ibidem.p. 201.
127
Estabelecido em meados dos anos 90, o Salafia Jihadia é uma organização islâmica terrorista com base no
Marrocos.
60
perversa entre a pobreza e o tráfico de drogas,” título de uma das publicações de Alba
Zaluar. 128
Davis chama atenção para o fato de que, como na época vitoriana, a “criminalização
categórica dos pobres urbanos é uma profecia que leva ao seu próprio cumprimento e
configura de modo garantido, um futuro de guerra interminável nas ruas.” 129 Mas, embora a
Janeiro, ao contrário do que imagina o senso comum, são muito poucos os moradores que se
envolvem com a vida no crime. De acordo com Jaílson de Souza, uma parcela muito
pequena, cerca de 1%, dos jovens moradores das favelas no Rio estaria envolvida com o
tráfico. 130
Mas a “recusa combativa” sobre a qual se refere Mike Davis pode também, felizmente,
ganhar feições mais pacíficas. Àquelas expressas, por exemplo, através da criatividade e do
espírito crítico dos artistas populares. No passado, Cartola, Zé Kéti, Nelson Sargento e outros
compositores cantaram a favela com a voz de quem enxerga a sua realidade “de dentro” dela.
128
ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004. No livro,
Zaluar examina com profundidade as teses clássicas que supõem as causas da violência como pobreza,
desemprego, crise na família, escolarização insuficiente, surgimento das gangues do tráfico e a natureza de seus
integrantes. No Rio de Janeiro, de acordo com a pesquisa Crianças combatentes em violência armada
organizada realizada pelo Viva Rio entre dez 2001 e junho de 2002: “Os homicídios por armas de fogo são a
maior causa externa de morte de crianças e adolescentes no Rio. Os níveis dessas mortes de jovens menores de
18 anos cresceram muito desde o fim dos anos 70. O grupo etário entre 15 e 17 anos é o mais afetado pelas
mortes por tiros, em particular nas regiões da cidade onde são mais comuns os conflitos entre facções, refletindo
que o número de menores que trabalham na segurança armada dos territórios das facções é maior nessa faixa
etária. Entre 1990-1999, os níveis de mortalidade de menores na cidade e no estado do Rio de Janeiro foram bem
mais elevados do que nos estados norte-americanos da Califórnia, Washington e Nova York. Além disso, os
índices de mortes de menores por tiro no estado do Rio são piores que em alguns lugares do mundo em estado de
conflito armado tradicionalmente definido. Por exemplo, morreram oito vezes mais menores no Rio, por tiro,
entre 1987 e 2001, do que crianças israelenses e palestinas em conflitos nos territórios ocupados no mesmo
período.” DOWDNEY, Luke. ISER, Viva Rio. Crianças combatentes em violência armada organizada, um
estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas territoriais das facões de drogas no Rio de Janeiro,
2002.
129
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. p.202.
130
PAIVA, Anabela. Doutor da periferia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9/9/2003. Caderno B, Capa. Na
reportagem o professor contesta a atuação de alguns projetos sociais que ao divulgar suas realizações na mídia,
sublinham o perigo da relação juventude/violência, vendendo a idéia de que caso eles não existissem, todos os
jovens favelados se tornariam bandidos em potencial. Fato incompatível com a realidade. Afirma ele: "Dizem
que se o jovem não estivesse participando deste ou daquele projeto, estaria no tráfico. Ora, o tráfico recruta no
máximo 1% dos jovens. Parece até que o jovem é um débil mental que pode ser puxado de um lado para o
outro." A pesquisa Crianças combatentes em violência armada organizada confirma a informação:
“Especialistas em segurança pública estimam que os empregados das facções do tráfico totalizam cerca de 1% da
população das favelas, ou seja, por volta de 10.000 pessoas, a maioria armada.” p.5.
61
Hoje, na mesma perspectiva, o vigor das letras e atitudes dos rapistas, a atuação das rádios
Resende em Literatura brasileira na era da multiplicidade. 131 De acordo com autora, uma
das maiores novidades da produção literária contemporânea é a presença das vozes que
emergem dos espaços “até então afastados do universo literário.” Segundo Resende: “Usando
seu próprio discurso, vem hoje, da periferia das grandes cidades, forte expressão artística que,
tendo iniciado seu percurso pela música, pelo teatro e pela dança, chega agora à literatura.” 132
131
RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira na era da multiplicidade. In: Cultura e Desenvolvimento.
Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. p.148.
132
Ibidem, p.150.
133
Ibidem, p. 171.
134
NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. O objetivo
da pesquisa de Nascimento foi compreender a que se refere a expressão “literatura marginal” por escritores da
periferia de São Paulo, buscando investiga-la a partir de uma dupla perspectiva. Como explica a autora: “(...) de
acordo com os aspectos relacionados aa produção e à circulação de alguns dos seus produtos literários; e
segundo os signos culturais e objetivos amplos, que dizem respeito à construção e divulgação de uma cultura de
periferia e à formação de identidades coletivas.”p. 22.
62
visibilidade a obra de 48 autores, residentes em São Paulo, incluindo 80 textos entre crônicas,
contos, poemas e letras de rap. No estudo, Nascimento enfatiza o discurso de três dos
escritores: Sergio Vaz, Ferréz e Sacolinha (Ademiro Alves). De acordo com a autora, entre
os anos 1990 e 2005 a produção literária contemporânea trouxe à tona a expressão literatura
marginal para:
Como observa Heloisa Buarque de Hollanda, na passagem dos séculos XX para o XXI
a “nova cultura da periferia” se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país:
“Com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Alguns traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da
cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural.” 136
Como parte deste mesmo contexto cultural contemporâneo, que afirma o lugar das
vozes periféricas, ganha força também a atuação das rádios comunitárias. O radialista Tião
Santos é categórico ao afirmar que: “Num país como o nosso, marcado pelo silêncio das
maiorias, desde os processos de colonização até os anos da ditadura militar, era de se esperar
que, ao primeiro sinal de liberdade de expressão, a voz das maiorias se fizesse ouvir nos
quatro cantos deste país.” 137 As quinze mil rádios comunitárias em funcionamento hoje no
Brasil representam uma conquista popular. Elas estão no ar em favelas, pequenos e médios
Santos:
135
Ibidem, P. 112.
136
HOLLANDA, Heloísa Buarque. In: NASCIMENTO, Érica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2009.
137
SANTOS, Tião. Rádios Comunitária: “Balangando o beiço” pelo direito de comunicar! In: Cultura e
Desenvolvimento. Organização: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2004. P. 177.
63
A diferença é que esse novo jeito de comunicar vem ganhando cada vez
mais o gosto popular. Num contraponto a chamada comunicação
globalizada, normalmente pasteurizada em seus conteúdos, as rádios
comunitárias estão resgatando o bom conceito do rádio “amigo íntimo”, que
entende a fala a linguagem do ouvinte, dos seus problemas, dos seus sonhos,
das coisas que fazem parte de seu cotidiano.138
expressões desse movimento de luta diária, onde a existência no espaço da pobreza permite
que se desenvolva um estado de ação/reflexão sobre o seu próprio lugar e o mundo. O que
verificamos com isso é que, na contramão do discurso hegemônico, aquele que estabeleceu
populares, que vêm trazendo à tona narrativas locais, colocando em relevo o cotidiano das
comunidades. Ao contrário de estar sujeita a uma escrita e a uma leitura de “fora para dentro”,
é ela mesma, a favela, quem vem abrindo brechas para apresentar o seu próprio relato - “de
organizações que surgiram a partir da mobilização comunitária como o Grupo Nós do Morro,
o Grupo Cultural AfroReggae, a Central Única das Favelas – CUFA e o Observatório das
Favelas. As quatro organizações, com forte e reconhecida atuação social têm em comum um
poderoso elemento: todas foram criadas por pessoas que moram ou moraram em comunidades
comum é que consideram prioritário fortalecer políticas públicas de emprego de jovens, bem
138
Ibidem, P. 180. No artigo, Tião Santos esclarece que apesar da multiplicação das rádios comunitárias no país
e da aprovação da lei 9.612 (19/02/1998) que regulamenta o funcionamento delas, das estimadas quinze mil
existentes, apenas mil foram autorizadas definitivamente pelo Ministério das Comunicações.
64
como necessário o desenvolvimento local dos espaços populares, favelas e periferias. Como
ironia ao G8, as quatro entidades formaram recentemente o grupo Favela 4 – F4 que pretende
explodiu na década de noventa. Hoje, uma complexa rede social constituída por iniciativas
oriundas de dentro das comunidades e por outras, implementadas por organismos externos a
elas, porém dentro delas, têm ampliado o espaço para diversas formas de expressão artística,
como o teatro, a música, a dança ou o audiovisual. A partir dos anos noventa, quando ocorre
um verdadeiro “boom” do ‘terceiro setor’ 140, fortalecendo a atuação das organizações não
governamentais (ONGs) dentro das comunidades do Rio, o palco ganha um sentido quase
milagroso.
Na área teatral, o pioneiro grupo Nós do Morro tornou-se uma inspiração para diversos
projetos sociais que tem descoberto o teatro como uma atividade sedutora e emocionante para
a vida de crianças e adolescentes. Em quase toda comunidade carioca, difícil é não encontrar
pelo menos um ‘projeto’ de teatro. 141 É fato: longe dos refletores das salas de espetáculo mais
139
O conselho gestor do F4 está constituído por Celso Athayde da CUFA, José Júnior do AfroReggae, Guti
Fraga do Nós do Morro e Jailson de Souza e Silva do Observatório de Favelas. Foi criado como ironia ao G8 -
Grupo dos Sete e a Rússia, uma cúpula internacional que reúne os sete países mais industrializados e
desenvolvidos economicamente do mundo, mais a Rússia. Todos os países se dizem nações democráticas:
Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá (antigo G7), mais a Rússia - esta
última não participando de todas as reuniões do grupo. Durante as reuniões, os dirigentes máximos de cada
Estado membro discutem questões de alcance internacional. Fonte: <http// www.observatoriodasfavelas.org.br>
Acesso em: 14/02/2008.
140
De acordo com Rubem César Fernandes, o "Terceiro Setor" é composto por organizações sem fins
lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não governamental, dando
continuidade às práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para
outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações
na sociedade civil. Disponível em: <http://www.rits.org.br> Redes de informação para o terceiro setor.
141
O crescimento do número de projetos sociais no Brasil que percebem a arte (inclui-se o teatro) como uma
ferramenta poderosa de adesão do jovem que vive em áreas de risco social fica bastante evidente a partir dos
meados da década de 90. Segundo dados do relatório de atividades do Programa Capacitação Solidária , por
exemplo, entre os anos de 1996 e 2000, das 2967 propostas de capacitação aprovadas para financiamento por
instituições, ONG’s, associações e cooperativas, a modalidade “artes e espetáculos” esteve em segundo lugar,
com percentual de 9,13%; perdendo apenas para informática 10,84%. Fonte: Painel Solidário. Capacitação
Solidária, folder de divulgação, 2000. É evidente também o aumento de propostas de financiamento para
projetos que envolvam a arte; exemplos disso são: o Cidadão 21 - Arte do Instituto Ayrton Senna, lançado no
65
sofisticadas da cidade, em quase toda favela do Rio, um grupo de teatro está em plena
atividade.
teatro, e também nas outras artes, como uma alternativa para a melhoria da qualidade de vida
142
de crianças e jovens. O fenômeno é responsável pela disseminação de palcos em muitas
favelas da cidade. Os resultados alcançados por alguns desses projetos, bem como a sua
presente no cotidiano das comunidades. Esses projetos surgem com a preocupação de oferecer
violências destaca iniciativas espalhadas pelo país, direcionadas aos jovens em situação de
risco social e que têm colaborado para o fomento de uma “Cultura de Paz”. O estudo
início de 2002 e o Transformando com Arte, do BNDES, lançado no mesmo ano. Na edição 2006/2007 foi criada
uma nova linha de atuação no Programa Petrobrás Cultural, a de “Formação”, que integrou as Artes e a Cultura à
Educação. A área Formação e Educação para Artes pretende contemplar propostas no campo social, envolvendo
o ensino das artes.
142
A crítica e professora de dança Silvia Soter realizou uma pesquisa entre agosto de 2001 e agosto de 2002,
intitulada: A dança no Rio de Janeiro: uma alternativa contra a exclusão pelo Programa RioArte, 2002. Soter
mapeou 32 experiências que ofereciam atividades de dança (incluindo diversas modalidades) gratuitamente aos
jovens de baixa renda no Rio de Janeiro. A pesquisa constata que o crescimento dos projetos sociais em dança
nas comunidades do Rio de Janeiro é um fenômeno recente. Até 1997, existiam apenas seis dos 32 projetos
localizados, e, o ano de 2001 foi o período de criação do maior número de projetos (dez projetos no total).
143
CASTRO, Mary. Cultivando Vida, desarmando violências. Brasília: UNESCO, Brasil Telecom, Fundação
Kellogg, Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2001. O livro é resultado de uma pesquisa que pretendeu
ampliar a visibilidade social de experiências inovadoras no trabalho com jovens, em particular aqueles em
situação de pobreza no campo da arte, cultura, cidadania e esporte. No livro um capítulo é dedicado ao Nós do
Morro, dentre os trinta projetos mapeados em vários estados do país, o grupo é um dos pioneiros.
144
Ibidem. p.19.
66
Mesmo que algumas dessas instituições, como o Nós do Morro, tenham nascido antes
da década de noventa, quando as favelas ainda não estavam tomadas pelas facções do tráfico
de drogas como estão hoje, o surgimento da maioria desses projetos é consequência do agravo
verifica nas manifestações artísticas provenientes das comunidades. Elas elegem a própria
favela como personagem principal de suas obras. Seja como tema central de peças de teatro,
nas letras de rap, ou nos curtas produzidos pelo cinema de ‘periferia’, o que observamos é a
vontade de falar sobre a favela, uma explosão de vozes que querem, por meio de múltiplas
possibilidades e expressões, contar a sua história, desta vez, com versão própria.
A favela sempre produziu arte, mas nunca com tanta força e diversidade. Não são
poucos os exemplos que podemos citar, com razoável frequência eles aparecem nas páginas
dos jornais. Uma reportagem intitulada O morro pede passagem 145 destacou iniciativas que
integram a “virada cultural” promovida pelas favelas do Rio para “transcender a realidade de
miséria e violência.” Nela ganham destaque o curta premiado Neguinho e Kika, de Luciano
Vidigal, diretor cria do Nós do Morro 146; um curso audiovisual promovido pela CUFA, cujo
patrono é o famoso cineasta Cacá Diegues; o grupo Teatro na Laje, da Vila Cruzeiro no
Complexo do Alemão, que montou Romeu e Julieta adaptado para a realidade de guerras
entre as facções armadas, espetáculo que ganhou destaque na matéria Da laje para a pista 147;
145
CEZIMBRA, Márcia. O morro pede passagem. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro, 4.6.2006. Revista O
Globo. P. 20-26.
146
Neguinho e Kika é o terceiro curta–metragem produzido pelo núcleo de cinema grupo Nós do Morro. O curta
ganhou o prêmio do júri de melhor filme curto no festival Reencontres Cinematographiques, na cidade francesa
de Marselha. Trata-se da história de amor de um casal de adolescentes em que ela tenta salvá-lo do ingresso no
tráfico.
147
CEZIMBRA, Márcia. Da laje para a pista. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Revista O Globo.
P.16-17.
67
No campo da dança, ganharam destaque nos últimos anos a Cia. Étnica de Dança 149 e
as experiências do coreógrafo Ivaldo Bertazzo com o Corpo de Baile da Maré, nas montagens
dos espetáculos Folias Guanabaras (2001) e Dança das Marés (2002). Os espetáculos foram
com o corpo de dança da Maré. 150 A autora explica que Folias guanabaras “apresentou o
Complexo da Maré, uma quase-cidade dentro da cidade, como alegoria para a ação: um
corpo-cidade.” 151 Já em Dança das marés, completa a autora “o zoom de Bertazzo trouxe para
o centro da cena cada jovem do corpo de dança: um corpo-memória.” 152 Na última peça,
leitura que fazem de suas histórias e do ambiente em que vivem.” 153 Comenta a autora:
148
Criado e coordenado pela bailarina Thereza Aguilar o projeto democratizou o acesso das crianças e jovens
cariocas ao balé, além de prepará-los para a prova de admissão da Escola de Dança Maria Olenewa – a única
escola pública de formação de bailarinos do Rio de Janeiro.
149
O projeto foi criado pela bailarina Carmem Luz e é sediado próximo ao Morro do Andaraí.
150
SOTER, Silvia. Cidadãos Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio
de Janeiro: UniverCidade Ed., 2007.
Entre 2000 e 2002, Ivaldo Bertazzo esteve associado ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(CEASM), uma organização não-governamental criada em 1997 por moradores e ex-moradores do Complexo da
Maré. A parceria entre o professor e o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré deu origem a três
espetáculos dirigidos e coreografados por Bertazzo, os quais contaram com a participação de até 66 crianças e
jovens da Maré – que formavam o Corpo de Dança da Maré, além de músicos, atores e bailarinos profissionais:
Mãe gentil (2000), Folias guanabaras (2001) e Dança das marés (2002).
151
Ibidem, p.32.
152
Ibidem, p.32.
153
Ibidem, p.32.
68
não obteve uma sobrevida maior do que a montagem dos espetáculos. Com o término do
Maré. 157
por meio de uma parceria estabelecida entre a companhia de dança da bailarina Lia Rodrigues
contemporânea aos moradores locais. Os olhares curiosos, tímidos, das crianças da Nova
Holanda, observam os ensaios dos bailarinos da companhia através da sempre aberta porta do
galpão; à noite alguns moradores se arriscam na descoberta da linguagem ainda muito pouco
154
Ibidem, p.98-99. A autora esclarece que DrauzioVarella e outros membros da equipe de Bertazzo
percorreram as diferentes comunidades da Maré, acompanhando os jovens em seus trajetos diários, visitando
suas casas, conhecendo aquele lugar a partir de seus olhares e passos. Essas visitas guiadas alimentaram a
criação do espetáculo e deram origem ao livro Maré: vida na favela, assinado por Drauzio Varella, Ivaldo
Bertazzo e Paola Berenstein Jacques.
155
Ibidem, p.106.
156
Ibidem, p.32.
157
Dali em diante o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM em parceria com um grupo de
bailarinas providenciou a continuidade de projetos em dança dentro da comunidade.
158
A Lia Rodrigues Companhia de Danças, companhia de dança contemporânea de abrangência nacional e
internacional, comemora em 2010 vinte anos de atividades de criação. Para comemorar, estreou dia 12 de março
no Centro de Artes a Maré o espetáculo "Pororoca", e até o dia 04 de abril apresentou espetáculos que marcaram
esses anos de trabalho, como "Encarnado", "Formas Breves" e "Aquilo de que somos feitos". A parceria entre a
Redes de Desenvolvimento da Maré com a Lia Rodrigues Companhia de Danças viabilizou a criação do Centro
de Artes da Maré: um lugar de partilha, convivência e de troca de saberes, direcionado para a formação, criação,
difusão e produção das artes. No Centro de Artes da Maré a Companhia desenvolveu sua última criação
"Pororoca", e atualmente realiza ensaios, apresentações e está a frente do projeto «dança para todos» com aulas
gratuitas de consciência corporal, dança contemporânea para jovens e dança criativa para crianças. Informações
disponibilizadas em: <http://www.redesdamare.org.br>
69
Movimento (PEM), idealizado pelo coreógrafo Sylvio Dufrayer em 2001, é assunto do artigo
após o filme de Fernando Meirelles (Cidade de Deus – 2002), setenta crianças se espalham
pelo chão para aprender capoeira, dança folclórica, dança de rua, ginástica olímpica e circo.
160
A reportagem A cidade unificada confere ao trabalho de iniciativas de notoriedade
como o Nós do Morro e o AfroReggae, um movimento que “costura” as fissuras entre o morro
e o asfalto na cidade que foi um dia considerada, fazendo alusão à obra de Zuenir Ventura,
partida. Na matéria, é o próprio Zuenir quem comemora o surgimento nos últimos anos de
visibilidade “não pelos tiros de AR15, mas pelos sons, cores e gestos da arte e da cultura.”
Nas artes plásticas, foi divulgada pela imprensa a maquete Morrinho, resultado da
azulejos quebrados e tijolos, criou um cenário da favela em miniatura com mais de 300
metros quadrados. 161 Nas Artes Cênicas destacam-se também os trabalhos do Instituto
Stimulu Brasil por meio das ações do Galpão Aplauso, e da ONG Spectaculu. 162
159
CALDEIRA, Solange. No palco da Cidade de Deus. In: Teatro e dança como experiência comunitária. Org.
Narciso Telles, Victor Hugo Adler Pereira e Zeca Ligiéro. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.
160
AUTRAN, Paula. A cidade unificada. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Rio. p. 30.
161
A matéria divulgou o feito dos meninos do Pereirão. Parte da maquete viajou para a Bienal da Veneza, virou
documentário e ganhou exposição também no Centro Cultural da Caixa, Rio de Janeiro. MONTEIRO, Karla.
Favela Chique. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 15/07/2007. Revista de O Globo. P. 18-20.
162
A Spectaculu é uma instituição não-governamental sem fins lucrativos que se propõe a complementar a
educação escolar, oferecendo atividades artísticas, culturais e de iniciação profissional, para jovens de 16 a 21
anos, de comunidades da periferia do Grande Rio, em situação de risco. Localiza-se em um Galpão na area
portuária do Rio. O Instituto Stimulu Brasil, organização sem fins lucrativos, foi criado para viabilizar
programas, projetos e ações sociais cujos beneficiados são os jovens de diversas comunidades de baixa
renda do Rio de Janeiro. O Instituto idealizou e desenvolveu os programas Talentos da Vez, Espaço do
Artesão e os Laboratórios de Práticas inclusivas, além de coordenar a Cia. Aplauso, (companhia de teatro) e
o Centro Espacial (centro de artes plásticas), formados por jovens que já passaram pelo Talentos da Vez. O
Instituto participa também do PróJovem, programa do Governo Federal. O Galpão Aplauso localiza-se
perto da Rodoviária Novo Rio.
Informações disponíveis em: < http://www.spectaculu.org.br> e < http://www.aplauso.art.br>
70
Em 2007, uma capa de revista exibia como manchete: A favela se diverte. 163 A convite
que retrataram o tema título da reportagem. Dizia o texto: “Um olhar de dentro para fora, sem
pela Escola de Fotógrafos Populares, criada pelo Observatório das Favelas 164. As fotografias
mostram cenas alegres do cotidiano de crianças e adultos nas favelas, as brincadeiras com
garotada soltando pipa. Também organizado pelo Observatório das Favelas, o Festival de
Audiovisual Visões Periféricas 165 exibiu uma diversidade de vídeos, demonstrando a força do
que vem sendo produzido pelas periferias de todo o Brasil. As produções trouxeram diferentes
visões que a periferia apresenta sobre si mesma, uma variedade de retratos e relatos que a
cada dia se colocam cada vez mais no centro do debate. O editorial do programa do Festival
dizia:
estudantil universitário, realizavam o filme Cinco Vezes Favela. Carlos Diegues, Joaquim
163
Fonte: A favela se diverte. Lá no morro que beleza. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 18/03/2007. Revista O
Globo. p. 20-27.
164
O Observatório de Favelas é uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à
produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. O Observatório
busca afirmar uma agenda de Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no âmbito
das políticas públicas. Criado em 2001, sua sede fica na Maré, no Rio de Janeiro, mas sua atuação é nacional. Foi
fundado e é composto por pesquisadores e profissionais oriundos de espaços populares. Informações
Informações disponíveis em: <http//www.observatoriodefavelas.org.br>
165
O Festival aconteceu em junho de 2007 no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal no Centro do Rio e
contou com o financiamento também da Petrobrás, SESC, Projeto Reperiferia, Prefeituras do Rio e de Nova
Iguaçu. Fonte: Informativo Oficial do Festival (junho de 2007). Festival Audiovisual Visões Periféricas. No ano
seguinte, 2008, uma outra mostra audiovisual incluiu a participação de produções provenientes da periferia.
Promovida pela Light o concurso de vídeos amadores recebeu o nome de Mostre a sua Comunidade.
166
Informativo Oficial do Festival (junho de 2007). Festival Audiovisual Visões Periféricas. P. 2.
71
Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges foram os jovens que
Novo. Passadas quatro décadas, Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos reúne dessa vez
jovens cineastas moradores de favelas do Rio de Janeiro 167, treinados e capacitados a partir de
brasileiro, como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Walter Lima Jr., Daniel Filho,
Walter Salles, Fernando Meirelles, João Moreira Salles e outros. O projeto apresenta cinco
filmes de ficção, de cerca de 20 minutos cada um, sobre diferentes aspectos da vida em suas
comunidades.
Em comum a todos esses eventos e ações, que aos poucos encontram mais lugar nos
veículos de comunicação, está o fato de que todas elas, por meio de diferentes linguagens,
alteram, mesmo que ainda discretamente, a perspectiva hegemônica que aprisiona a imagem
da favela a noções negativas. São vozes que se manifestam e falam por si mesmas, que
procuram tornar a favela mais autora de sua história. Gradualmente, elas vêm forçando uma
mudança no discurso da mídia, que muitas vezes preferiu associar o jovem favelado como um
Amir Haddad, do grupo Tá na Rua, aplaude a explosão de grupos teatrais nas comunidades
que, segundo ele, recupera o teatro como arte pública: “O teatro é uma atividade de todo e
qualquer cidadão. Não se trata de ensinar arte para salvar o favelado da miséria, para que ele
não assalte a minha mãe na esquina, mas para formar cidadãos capazes de interferir no seu
destino.” 168
A favela é o lugar onde a tensão entre os vetores “de cima” e “de baixo” trava uma
batalha diária. Um território atacado pela globalização neoliberal, perversa, cujos disparos
167
São eles: Luciana Bezerra, Cacau Amaral, Rodrigo Felha, Wavá Novaes, Manaíra Carneiro, Cadu Barcellos e
Luciano Vidigal.
168
CEZIMBRA, Márcia. O Morro pede passagem. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2/4/2006. Revista O Globo.
P.22.
72
privam as populações mais pobres do direito aos “bens públicos” como Educação, segurança,
lazer, saúde; mas um espaço de onde emergem ações criativas, movimentos capazes de reagir
à situação de privação. Há mais de um século a favela faz parte do Rio de Janeiro, e durante a
maior parte deste tempo ela tem sido vista como um território à parte. A ampla rede social
organismos da sociedade como um todo tem tentado construir outra perspectiva, que enfrenta
a cultura histórica de exclusão e que procura ver a cidade como menos partida e mais
unificada.
A dinâmica deste novo projeto de cidade permite o encontro entre diferentes grupos
sociais e territoriais, autoriza o trânsito da produção artística e cultural da favela por todos os
favela na telenovela. Mas, diante desta complexa trama de transações sociais, políticas e
fato sujeita, de fato favela pela favela, ou mero objeto do interesse de grupos, representantes
É que a narrativa dominante cria a doença da exclusão, mas ao mesmo tempo prepara
adocicados remédios paliativos. Algumas vezes seus interesses ocultos, objetivos ilusórios,
cultura. Isto não quer dizer que devam ser negadas as “parcerias”, ou que deva ser rejeitada a
“poliglosia da sociabilidade” 169, necessária para que ocorra o diálogo entre os mais variados
169
A expressão “poliglotas da sociabilidade” é de autoria de Rubem César Fernandes. Ao descrever a
necessidade da construção de diálogo entre os mais diversos segmentos sociais, tarefa especialmente importante
73
associações de moradores; mas, que se deva avaliar em que medida a favela/comunidade tem
sido tratada como sujeita de seus desejos ou como objeto de interesses alheios.
negociação entre personagens que guardam entre si diferentes posições de poder. Esta é uma
negociação inevitável, faz parte do convívio com a tensão entre os vetores “de cima” e “de
baixo”. Mas o que está em jogo nessa tensão é a seguinte pergunta: a quem interessa mais o
favela/comunidade o seu verdadeiro direito de, nas palavras de Paulo Freire - nomear o
mundo.
tenha esgarçado redes de parcerias e trocas, dentro do território da luta as pessoas sempre
desenvolvendo ações como resposta às suas próprias necessidades; encontrando meios para se
tornarem mais donas de sua história. É ela mesma, a favela pela favela quem protagoniza a
Sem dúvida, o encontro entre variados atores sociais tem contribuído com, nas palavras
para as organizações do terceiro setor, Fernandes afirma que: “Os ativistas do terceiro setor devem aprender a
arte da tradução, tornar-se poliglotas da sociabilidade, ser capazes de entrar e sair dos vários espaços sociais com
um mínimo de elegância e reconhecimento.” Ela será mais abordada no capítulo 4 deste trabalho. Cf.
FERNANDES, Rubem César. Público porém privado – o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994.
George Yúdice, fazendo alusão a expressão criada por Rubem César, compara a atuação de José Junior,
coordenador do AfroReggae, que se tornou um expert na articulação de parcerias para o grupo de Vigário Geral,
como a de um poliglota da sociabilidade. Cf. YÚDICE, George. A Conveniência da cultura. Usos da cultura na
era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.206-207.
74
espaços populares e também fora deles, o surgimento de ações inovadoras, que buscam: “O
promovendo também a construção afirmativa de uma identidade plural para o Rio.” 170
vetores “de cima”, é ainda dominante, a realização de uma outra história a partir dos vetores
“de baixo” é tornada possível.” 171 A arte tem nesta proposta grande significado. De acordo
estudo mais nos interessa, tem o poder para criar espaços nos quais ganharão voz e
coletivo, o sentimento de pertencimento. O palco da favela pode ser uma arena na qual
cidadãos se redescobrem mais críticos, menos espectadores e mais autores, ou nas palavras de
neoliberal de globalização. Para Tim Prentki: “O teatro desenvolve espaços onde alternativas
170
SILVA, Jaílson de Souza e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Ed.
SENAC Rio:[X] Brasil, 2005. p.109.
171
Ibidem, p. 166.
172
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p. 19.
173
Expressão utilizada por Mike Davis em Planeta favela.
75
podem ser colocadas, onde, através da força da narrativa dramática, os atores podem ser
confiou ao teatro a tarefa de modificar o mundo. É com a mesma confiança, que o palco da
favela pode assumir-se como um agente ativo e transformador; resta refletir sobre em que
174
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p.26.
76
Todo dia o teatro encontra um lugar diferente para acontecer. Um fenômeno constatado
aqui no Brasil e também em outras partes do mundo tem levado esta arte aos mais variados
diversidade de práticas teatrais cruza a fronteira das salas convencionais do teatro comercial,
para alcançar e agir sob outras esferas, como em projetos comunitários realizados nas
periferias e favelas das grandes cidades; em ações na área da educação não formal, fora dos
muros das escolas; em programas em prol dos direitos humanos e da saúde; nas ações
patrocinadas por empresas, pela igreja ou nos projetos das ONGs. Apesar de se tratar de um
universo que se amplia com grande velocidade, a reflexão teórica e crítica sobre este campo,
entre nós, ainda é pouco sistematizada. Muito embora, recentemente, elas tenham começado a
atrair a atenção do meio acadêmico e a despertar reflexões sobre o tema também aqui no
Brasil.
em debater o tema ainda pouco visitado pelas pesquisas acadêmicas. Na apresentação do livro
a professora Márcia Pompeo Nogueira afirma que: “Apesar de muito praticadas, essas
experiências artísticas comunitárias tem pouca visibilidade, pois estão fora dos holofotes do
175
LIGIÉRO, Zeca; PEREIRA, Victor Adler; TELLES, Narciso. (Orgs.) Teatro e dança como experiência
comunitária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.
77
teatro comercial e acontecem em regiões periféricas.” 176 Como sugere a autora, o caráter
abriu espaço para discussão e reflexão sobre trabalho nessa linha.” 177 Até então, muitos
Em Dentro ou fora da escola? 179, a professora Maria Lucia de Barros Pupo reconhece a
multiplicação das iniciativas no campo da educação não formal que têm levado o “fazer e
não atores, como atuantes e espectadores. De acordo com a professora, essas iniciativas estão
inseridas em uma noção ampla de educação “baseada no princípio de que as ações interativas
entre os indivíduos promovem a construção de saberes.” 181 Pupo inclui neste quadro de ações,
por exemplo, as desenvolvidas por alguns grupos teatrais, como o mineiro Galpão que
inaugurou um núcleo pedagógico que oferece cursos de teatro para iniciantes, sejam crianças,
jovens ou adultos interessados em aprender teatro. Também o grupo Oi Nóis aqui Traveiz,
que criou uma escola na periferia de Porto Alegre “também voltada a um trabalho teatral com
176
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Um olhar sobre o teatro e a dança como experiência comunitária. In: Teatro e
dança como experiência comunitária. Organização, Victor Hugo Adler Pereira, Zeca Ligiéro, Narciso Telles –
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. p. 8.
177
Ibidem, p. 8.
178
Como aponta Arão Paranaguá em Teatro e formação de professores, durante os anos 80 e 90 foram
produzidas muitas pesquisas no Brasil sobre teatro na educação escolar. O autor cita, a título de exemplo, as
pesquisas realizadas na ECA-USP por Ingrid Koudela, Maria Lúcia Pupo e Ricardo Japiassu, entre outros. Cf.
SANTANA, Paranaguá Arão. Teatro e formação de professores. São Luís: EDUFMA, 2000. p. 28.
179
PUPO, Maria Lúcia de Barros. Dentro ou fora da escola? In: URDIMENTO - Revista de Estudos em Artes
Cênicas – Especial. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Teatro. – vol. 1,
n.10 (dez, 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. Anual. P. 59.
180
Ibidem, p 59.
181
Ibidem, p. 60.
78
iniciantes, importante eixo da função social almejada pelo grupo.” 182 São exemplos, que
segundo a professora, atestam um quadro singular, no qual coletivos teatrais revelam uma
“notável capacidade de intervenção na vida social. (...) O teatro transborda das margens que
até há pouco pareciam conter o seu percurso.” 183 Por isso, se antes as atenções do meio
acadêmico estiveram mais voltadas para as experiências do teatro dentro da escola, hoje
investigar a relação entre teatro e educação levando em consideração apenas esta perspectiva
já não é mais suficiente. A variedade de iniciativas que incluem a parceria entre teatro e
educação nos diversos contextos citados neste início de capítulo, obrigou uma resposta da
academia à nova realidade; dilatou o foco de seus estudos teóricos, o que vem contribuindo,
por exemplo, com a maior atenção à investigação de práticas artísticas comunitárias, bastante
Pedagogia do Teatro 184, Ingrid Koudela argumenta sobre a questão do uso de terminologias
questão que, como aponta a autora, sempre gerou muitas polêmicas entre os estudiosos da
área. De acordo com Koudela, aqui no Brasil o recente batismo do termo Pedagogia do
182
Ibidem, p. 60.
183
Ibidem, p. 61.
184
KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do IV Congresso Brasileiro de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124.
185
Ibidem, p 124. O termo Pedagogia do Teatro e Teatro na Educação foi mantido no V Congresso Brasileiro de
Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes
Cênicas – ABRACE, realizado em 2008.
79
“espectro profissional desta área teórico-prática na Alemanha.” 187 Nele estão distintas oito
áreas de trabalho nucleares que incluem diversos perfis de iniciativas inseridas no campo da
abordagem, que chega da Alemanha, indica a tendência de incluir dentro de uma mesma
nomenclatura o crescente leque de práticas teatrais em ação nos mais diferentes contextos
daquele país.
apontar a mesma tendência. O seu uso já é bastante freqüente em publicações na área, como
Desgranges e Pedagogia do Teatro e o teatro de rua 189, de Narciso Telles; ou ainda no artigo:
186
KOCH, Gerd e STREISAND, Marianne (Orgs.) Wörterbuch der Theaterpädagogick. Berin; Scribni-Verlag,
2003. Apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de
Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras,
2006. Tema: Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P.
124 - 125.
187
KOUDELA, Ingrid Dormien. Pedagogia do Teatro. In: ANAIS do Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-
graduação em Artes Cênicas. (organização) Maria de Lourdes Rabetti. - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Tema:
Os trabalhos e os dias das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações. P. 124.
188
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Ed.Hucitec, Edições
Mandacaru, 2006.
189
TELLES, Narciso. Pedagogia do Teatro e o teatro de rua. Porto Alegre: Mediação, 2008.
80
Da pedagogia do ator à pedagogia teatral: verdade urgência, movimento 190, de Gilberto Icle.
O termo Pedagogia do Teatro foi também reconhecido em verbete pelo Dicionário do Teatro
Brasileiro 191. Muito embora, sejam também correntes entre nós, outras terminologias como:
teatro em comunidades, teatro na prisão, teatro no hospital e ação cultural. 192 Como
observou Koudela, a “questão da terminologia sempre foi polêmica” 193, por isso, os estudos
abordagens.
Telles nos oferecem a curiosa imagem de um caleidoscópio para ilustrar o universo cada vez
mais plural desta área nomeada como Pedagogia do Teatro. O desafio de compreendê-la
exige do observador a atitude de quem “olha” por meio de um caleidoscópio, que a cada
Estudos publicados em língua inglesa revelam que a tarefa de buscar uma compreensão
pesquisas acadêmicas vêm tentando responder, em alguns casos com maior, em outros, com
Na Inglaterra, por exemplo, a literatura dedicada à área também acolhe diversos termos
e “modalidades teatrais” tais como: performance comunitária, teatro para mudança social,
teatro para solução de conflitos. Embora cada uma delas apresente formulações teóricas
específicas, não é difícil identificar entre elas algumas características comuns: todas
mainstream, ou do teatro comercial 195; são iniciativas que levam o teatro a determinadas
desejos, prioridades e que são motivadas pelo desejo político de transformar, por meio do
veremos mais adiante, essas práticas foram reunidas num termo abrangente e inclusivo que
dedicadas à atuação desses “segmentos” teatrais. As obras de autores como Eugene Van
Erven, Helen Nicholson, Baz Kershaw, Zkes Mda, Kees Epskamp e Tim Prentki contribuem
com importantes reflexões sobre este “universo”. Em títulos como: Community Theatre,
Popular Theatre, Theatre for Development, Applied Drama e Applied Theatre Reader 196, os
autores optam pelo uso de diferentes termos e elaboram suas próprias definições para explicar
as práticas que povoam a área. Em Defining the Territory (Definindo o território), capítulo do
195
No inglês a palavra mainstream recebe as seguintes definições: alguma coisa que pertence a uma área
estabelecida de atividade; uma tendência de opinião ou modo que prevalece, domina. Cf. Shorter Oxford English
Dicionary. O uso da palavra no caso deste trabalho estaria relacionado à noção de um teatro estabelecido,
dominante. Optei por usar mainstream como sinônimo de teatro comercial, ideia que considero mais próxima da
sugerida pela definição da palavra em inglês.
196
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural
intervention. London: Routledge, 1992. MDA, Zakes. When people play people. Development communication
through theatre. London and New Jersey: Zed Books, 1993.NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of
theatre. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2005. PRENTKI,Tim and PRESTON, Sheila. (orgs.) The
Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political
Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London
and New York, 2001.
82
livro Popular Theatre in Political Culture (Teatro Popular na Cultura Política), Tim Prentki
aponta para a necessidade de esclarecer a “linguagem neste campo e clarear o uso de termos.
Embora algumas separações possam ser vistas apenas como diferenças semânticas, um
preciso delineamento entre as atividades teatrais com interesse social parece ser
necessária”. 197
O autor afirma que o território cresce com rapidez e que definições e a utilização
suas intenções, metodologias, processos e uso de formas teatrais. Assim como Prentki,
durante os últimos anos outros estudiosos se dedicaram à tarefa de procurar distinguir cada
autor, cada uma dessas linhas possui hoje, sua própria teoria, debate e prática especializada.
utilizando uma perspectiva mais abrangente e menos segmentária. 198 Além do termo, teatro
aplicado, outro também inclusivo, é encontrado nos estudos britânicos - o drama aplicado.
Esses termos começaram a ser utilizados a partir dos anos noventa, e aceitos
por acadêmicos, práticos do teatro e elaboradores de projetos como uma
espécie de abreviação para descrever formas de atividades dramáticas que
existem prioritariamente fora do mainstream convencional das instituições
teatrais e que estão especificamente destinadas a beneficiar indivíduos,
comunidades e sociedades. 199
197
PRENTKI, Tim. Popular Theatre in Political Culture. Intellect Books, Bristol, UK, 2000. p.13.
198
No livro The Applied Theatre Reader, os editores Tim Prentki e Sheila Preston incluem uma série de
reflexões sobre iniciativas no mundo todo, envolvendo as áreas do teatro na educação, teatro na prisão, teatro de
intervenção, entre outros. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009.
199
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2005. p.2.
Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
83
A autora enfatiza que: “Incluído nesta pasta de drama/teatro aplicado estão práticas
diversas como, por exemplo, o drama na educação e o teatro na educação, teatro e educação
para saúde, teatro para o desenvolvimento, teatro nas prisões, teatro comunidade (...)”. 200
Ainda segundo Nicholson, o drama aplicado seria o teatro que acontece “em lugares sem
muito glamour” 201, como nos asilos para velhos, abrigos para desempregados ou em prisões.
Helen Nicholson explica que práticos do teatro têm trabalhado em áreas da educação, da
terapia e das comunidades por muitos anos, mas a emergência dos termos teatro/drama
aplicado revela um interesse em encontrar uma teoria e uma motivação política comum a
A autora também afirma que por se tratarem de termos relativamente novos ainda não
existe um real consenso sobre como cada um deles deve ser usado. As controvérsias entre o
uso de um ou outro giram em torno, segundo ela, de um debate muito próximo do levantado
entre os anos 70 e 80 na Inglaterra, que distinguia, naquele país, o drama in education – DIE
“DIE estava baseado no ensino de conteúdos do currículo através do teatro e o TIE envolvia
participativa”. 202 O primeiro estaria mais interessado na utilização do teatro como um meio
para abordar outros conteúdos, enquanto que o segundo estaria mais focado nas questões
De fato, a própria autora observa que não há como estabelecer nítidas diferenças entre
200
Ibidem, p.2.
201
Ibidem, p.2.
202
Ibidem, p.4. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
203
A discussão sobre o drama, proveniente da vertente anglo-saxã, vem sendo trazida para o Brasil pela
professora Beatriz Ângela Vieira Cabral. Cf. Drama como método de ensino. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
v. 1.
84
aplicado refere-se ao teatro que acontece em “espaços não tradicionais e que envolve
A autora prossegue nos lembrando a etimologia das palavras drama e teatro. O drama 207
derivado do grego dran guarda o sentido do fazer, enquanto que teatro (theatron) significa
de ação e reflexão que residem nas práticas do drama/teatro aplicado. A autora justifica a
opção pelo termo drama aplicado no título de seu livro Applied Drama, the gift of theatre208
argumentando que a palavra teatro tem sido mais associada com a ideia de prédios
204
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom and United States: Palgrave
Macmillan, 2005. p. 3.
205
Ibidem, p.3. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
206
Ibidem, p.4. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
207
A etimologia da palavra drama vem do verbo grego dran, agir, atuar e da palavra grega drama ação, ato,
feito. Cf. The New Shorter Oxford English Dicitionary. Embora em inglês a palavra drama possa também ser
associada a peças com conteúdo mais sério, em sua acepção mais ampla refere-se a todas as manifestações das
artes dramáticas, por exemplo: drama school (escola de artes dramáticas), drama festival (festival de drama).
Patrice Pavis esclarece que: “No Brasil, de um modo genérico, para um público não especializado, drama
significa o gênero oposto à comedia. E dentro de uma tradição americana adotada por nosso teatro, o drama é
imediatamente associado ao drama psicológico.” Ainda segundo Pavis, em francês o termo é usado apenas para
qualificar um gênero em particular: o drama burguês (sec. XVIII), e posteriormente o drama romântico e o
drama lírico (sec. XIX).Cf. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. GUINBURG J. e PEREIRA, Maria
Lúcia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
208
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. (Drama Aplicado, uma dádiva do teatro). United
Kingdom and United States: Palgrave Macmillan, 2005.
85
aplicado ou teatro aplicado e atenta para o perigo de que um discurso único e homogêneo
possa reduzir a rica diversidade de teorias e práticas artísticas presentes neste universo. Para
ela, mais do que rotular ou estabelecer definições rigorosas, o que mais importa nestes termos
é o significado da palavra aplicado; é levantar questões sobre porque ou “em quem” o teatro
deve ser aplicado, por que razões, com quais intenções. A autora nos chama atenção também
para o fato de que os termos podem ser problemáticos se vistos como oposição ao
drama/teatro como forma artística; quer dizer, se o aplicado for encarado como algo
secundário, com um status inferior, que privilegia o aspecto instrumental e utilitário do teatro
em prejuízo do aspecto artístico e da qualidade estética dos trabalhos neste campo. Nicholson
drama aplicado precisa ser alta, ele não pode se basear em repertório artístico empobrecido ou
limitado”. 209 A assertiva nos provoca a pensar sobre uma perspectiva corrente tanto no meio
verdade, existe um fantasma que assombra as práticas teatrais que acontecem fora dos espaços
tradicionais e que as rotula com frequência como algo que não está à altura do verdadeiro
teatro, uma espécie de teatro “de segunda”. Nos últimos anos, muitas dessas experiências vêm
provando o contrário, que o teatro pode acontecer em sua plenitude em outros espaços,
contextos.
Enquanto Helen Nicholson se divide entre o uso dos termos drama ou teatro aplicado,
Tim Prentki assume de vez o segundo como o mais eficiente para alinhavar as práticas
incluídas no campo. Para ele, o uso do teatro é mais adequado quando se trata de processos
209
Ibidem, p.6. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
86
que resultem em espetáculos a serem apresentados para uma audiência. Já o drama estaria
mais restrito a experiências que envolvem apenas os participantes, sem o resultado final de
uma performance com a presença de platéia. Todavia, o autor esclarece que não existe um
consenso sobre essas abordagens entre os estudiosos da área. 210 De acordo com Prentki teatro
aplicado significa:
criada, e apresentada, tem uma comunicação e impacto específicos para os seus participantes
e platéias. Como observa Prentki, os ativistas do teatro aplicado são motivados pela crença
que esta arte, vivenciada pelos participantes e assistida pelas platéias, pode fazer alguma
diferença na maneira “como as pessoas interagem umas com as outras e com o mundo a sua
volta.” 212 Prentki afirma que: “Existe um desejo político declarado de usar os processos de
teatro a serviço de uma mudança social e comunitária.” 213 Em outros casos, mesmo que a
intenção seja menos evidente (mas potencialmente não menos política no que diz respeito ao
seu efeito) as ações do teatro aplicado estão mais interessadas em revelar as histórias ocultas
de uma comunidade.
A escolha por um termo mais inclusivo como este indica a tendência desses estudos em
210
Informação verbal.
211
PRENTKI,Tim and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge,
2009. p.9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
212
Ibidem, p. 9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
213
Ibidem, P.9. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
87
nuances entre elas. Márcia Pompeo Nogueira contribui com o debate acerca das
Comunidades: questões de terminologia, assim como Prentki, Nogueira assume que não
existe um consenso sobre “a melhor terminologia para se referir a práticas teatrais de cunho
educacional, mas que não são dirigidas para sala de aula.” 214 No mesmo caminho que os
demais autores, ela reconhece que, embora seja vasto o leque de termos e definições, tudo
indica que as práticas inseridas neste “tipo” de teatro possuam aspectos bastante comuns:
A opção de Nogueira pelo termo teatro em comunidades deve-se ao fato de que aqui no
Brasil pairem sobre os termos artes aplicadas, ou teatro aplicado, resquícios dos tempos da
Mesmo assim, a autora admite que não há como ignorar o fato de atualmente o termo
esteja sendo reconhecido em todo o mundo. De acordo com Nogueira: “Trata-se de um termo
Exeter, Inglaterra, por exemplo, que recebia o nome de Pesquisa em Drama e Teatro na
214
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro em comunidades, questoes de terminologia. ANAIS do V Congresso da
ABRACE, 2008. Disponível em: http://www.portalabrace.org/vcongresso/progpedagogia.html (arquivo pdf, p.1)
215
Ibidem, p. 4.
216
Ibidem, p.4.
88
Educação, ganhou agora o nome de Pesquisa em Drama e Teatro aplicado e Performance. 217
O termo ‘Teatro Aplicado’ tem sido usado cada vez mais nos últimos anos.
Intuições de educação superior ao redor do mundo, especialmente na
Austrália, Inglaterra e os Estados Unidos, vêm formulando cursos de
graduação e centros de pesquisa dedicados a investigar a questão: Como é
que o teatro pode ser utilizado em ambientes não teatrais para ajudar
construir comunidades mais fortes? (...) Teatro Aplicado se tornou uma
descrição particularmente útil por que inclui uma gama de trabalhos que os
projetos de teatro foram criando dentro e fora de ambientes educacionais,
principalmente em ambientes não teatrais por motivos diversos –
conscientização, propondo alternativas, tratando feridas ou barreiras
psicológicas, questionando discursos prevalentes, dando voz às opiniões
silenciadas e marginais.218
Por isso, para efeitos deste estudo, apesar de interpretações ou traumas que o termo
possa ter suscitado em nosso passado, no momento em que ele é escolhido como referência
significado.
Para Kees Epskamp existem intersessões entre todas as modalidades teatrais que
povoam o universo do teatro aplicado, e que o que mais importa é identificar um “conceito
denominador comum” capaz de abraçar todas as manifestações na área, como, sugere ele, o de
teatro participativo. 219 De fato, o conceito comum a todas essas práticas, destacado
processo criativo.
217
The Sixth International Exeter Conference. Researching Applied Drama, Theatre and Performance. School of
Arts, Languages and Literature. Department of Drama. University of Exeter, Inglaterra (2/04 a 5/04/2008).
Outro encontro internacional, a ser realizado este ano no Brasil, também utiliza o termo. A programação
acadêmica do próximo Congresso da Associação Internacional de Drama/Teatro e Educacão – IDEA, que será
realizado na cidade de Belém (Pará) em Julho de 2010, já inclui o termo Teatro Aplicado. Informação disponível
em: <http://www.idea2010.art.br>.
218
TAYLOR, Philip. Applied Theatre. Creating transformative encounters in the community. Portsmouth, NH:
Heinemann, 2003. p. xxi. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
219
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p.11. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
89
Esta noção é aplicável aos mais diferentes contextos, seja o da escola, o da prisão, o da
zona de guerra, da comunidade rural ou da favela. O termo teatro aplicado assume, portanto,
que diferentes categorias como teatro na educação, teatro na prisão ou teatro para o
desenvolvimento não são áreas necessariamente separadas, mas um grupo de práticas que se
interconectam, porque comungam os mesmos valores. É certo, porém, que antes de chegar a
esta perspectiva mais unificadora, vários autores contribuíram com debates em torno de cada
uma das categorias em questão. Mas de onde vem o teatro aplicado, qual a sua história? E
qual seria a origem dos princípios comuns às ações que nele se incluem?
conhecimento como o teatro, a educação, a sociologia, a política. Por isto, não seria possível
traçar a sua trajetória, sem realizar uma investigação multidisciplinar capaz de apontar os
principais movimentos dessas vertentes, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.
Quando separadas essas vertentes são como peças esparsas de um quebra-cabeça; mas juntas,
nos permitem compreender melhor o cenário e os fatores que contribuíram com o surgimento
do teatro aplicado.
presenciou uma explosão de práticas artísticas encorajadas pelo ativismo político e o desejo
italiana. De fato, como observa Jean Jacques Roubine, “a sala italiana representa o espelho de
uma hierarquia social.” 220 O autor acrescenta: “A qualidade desigual das localidades, quer se
ela reproduz uma ordem na qual não convém que o pequeno comerciante se beneficie das
mesmas facilidades que o príncipe”. 221 Romain Rolland sugere um caminho que será mais
tarde efetivamente adotado, o de tirar o teatro da sala italiana e instalá-lo em outros lugares:
“Uma única condição me parece necessária para o teatro novo: a de que tanto o palco, como a
perpetuada pela organização da sala. Roubine afirma que: “Os que sonham com uma nova
estética de palco contestam a imposição que a sala italiana impõe ao espectador: uma relação
com o espetáculo, fundamentalmente estática e basicamente passiva”. 223 Ainda de acordo com
o autor, o espectador havia se acostumado durante mais de três séculos à tradição ilusionista;
excepcionais na rotina do teatro ocidental. Um dos raros exemplos é Jean Vilar que em 1947
venceu o desafio de abandonar o teatro italiano e alcançar uma “autêntica repercussão junto
ao público.” 224 Naquele ano, Vilar inaugura o festival de teatro de Avignon 225, como uma
tentativa de resolver vários problemas decorrentes das limitações inerentes a estrutura italiana.
Em primeiro lugar, os diferentes “status” sociais, já que a sala italiana condicionava uma
Além disso, os três séculos de centralização haviam concentrado a base da vida teatral
francesa dentro de alguns bairros parisienses. De acordo com Roubine: “Tratava-se não só de
um teatro da burguesia, mas da burguesia parisiense”. 227 O sonho de Vilar era criar “um teatro
que unisse o público, que abolisse provisoriamente as discriminações sociais”. 228 Embora a
iniciativa de Vilar tivesse mantido a relação frontal com a platéia, ele optou sempre por
caráter de assembléia festiva, evocando o tempo em que o teatro refletia uma festa de
congregação popular, muito distante do ritual burguês parisiense. Não há dúvida que
festivais de verão, “em qualquer lugar onde o ambiente natural propiciasse o encontro, ao ar
Assim, a explosão do teatro para além do espaço convencional durante o século XX,
reencontro com uma população que, ao contrário da classe burguesa, não podia pagar os
ingressos do circuito oficial. Ele colocou em discussão a natureza do evento teatral, que desde
226
ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 94.
227
Ibidem, p 95.
228
Ibidem, p 96.
229
Ibidem, p. 97.
92
o final da Idade Média até a época moderna o havia transformado em uma transação
comercial.
Quatro séculos antes da explosão do espaço, o teatro havia sido confinado nos edifícios
teatrais; o espetáculo se transformara em “produto”, algo a ser consumido por aqueles que por
ele pudessem pagar. Em Londres, no século XVI, o aumento muito grande da população
possibilitou a apresentação de teatro em prédios construídos para esta função específica, além,
é claro, de uma audiência comercialmente viável. Não foi à toa, que o primeiro edifício teatral
londrino ganhou, em 1576, o nome de The Theatre (O Teatro), lugar onde o público primeiro
pagava, para depois assistir ao espetáculo. Até então, aquela cidade, e outras européias,
acolhiam como expressão popular e espontânea os Mistérios 230 medievais, que apoiados em
histórias bíblicas aconteciam diante das catedrais e agrupavam todas as classes da sociedade
Naquele momento, concretizava-se a ideia da cidade como teatro, já que, de acordo com
o autor, “os limites físicos entre a cena teatral e a cena cotidiana eram muito tênues.” Como
estavam livres para ocorrer em praças públicas, nas salas dos palácios, no interior de um
convento ou nos pátios das igrejas. Durante o século XVI, o espaço teatral foi deixando de
230
Esses eventos ofereciam para todas as classes da população o ensinamento da história sagrada, sob a forma da
linguagem teatral.
231
CARDOSO, Ricardo Brugger. Relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim
Werneck. (org) Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras FAPERJ,
2008. p.81. No artigo Brugger analisa a ideia da cidade como palco. No texto o autor reconhece que, ao mesmo
tempo em que houve um expressivo desenvolvimento técnico no edifício teatral, observa-se também que houve
certo interesse pela realização de espetáculos cênicos em espaços não especializados, e, portanto, a noção de que
as ações do espetáculo não dependem necessariamente de uma estrutura arquitetônica.
93
ocupar o espaço comunitário das cidades, das praças públicas e da feira popular, para residir
nos salões ducais e depois nos edifícios construídos para este fim específico.
A Feira do dia de São Bartolomeu, 232 critica a perda do aspecto de festa popular do teatro em
função de sua formalização. Johnson, apesar de ele mesmo ter feito parte daquele teatro, foi
capaz de enxergar as perdas e contradições daquela nova realidade, que confinava o teatro
dentro dos teatros e o submetia a critérios de rentabilidade e ao gosto das classes que por ele
podiam pagar.
espetáculo a partir do início do século XX, que refletiu mudanças em relação a vários
Adolphe Appia e Gordon Craig previam possibilidades mais variadas para o futuro do teatro.
Uma necessidade me surgiu: o teatro deve ser um espaço vazio com apenas
um telhado, com um piso e paredes, no interior desse espaço é preciso erguer
para cada novo tipo de peça, um novo tipo de palco e de auditório
temporário. Descobriremos assim novos teatros, por que cada tipo de drama
exige um tipo especial de lugar cênico.233
232
A Feira do Dia de São Bartolomeu (1614) é uma comédia de Ben Jonhson, a enorme vitalidade da feira e não
o enredo é o foco de atenção da obra. Nesta barulhenta e animada peça, puritanos e prostitutas, rústicos e
batedores de carteiras, vendedores, trapaceiros, galãs e caridosos se esbarram e por vezes se enfrentam. Entre os
muitos incidentes, um juiz reformador, porém desajeitado se encrenca e acaba preso; um tolo jovem perde sua
noiva pela própria tolice; e um monge evangélico perde um debate com um fantoche sobre a imoralidade do
teatro. A exuberância da peça dá a ela lugar entre as melhores de Jonhson. Cf. BENÈT, William Rose. The
Reader´s Encyclopedia. New York: Thomas Y. Crowell Company, 1965.
233
Estas anotações foram feitas por Craig na margem de um catálogo da Exposição Internacional de Teatro de
Amsterdã, da qual ele participou. Cf. BABLET, Denis. Lê lieu théâtral dans la societé moderne. Paris: Éditions
du CNRS, 1988. p. 23. (Collection Arts do Spetacle. Spectacles, histoire, société) apud BRUGGER, Ricardo
Cardoso. Relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: Espaço e Teatro, do edifício teatral à cidade como
palco. Org. Evelyn Furquim Werneck Lima, 7 Letras FAPERJ: Rio de Janeiro, 2008.p.85.
94
Também Max Reinhardt 234 defendia mais flexibilidade. Nas décadas de 1920 e 1930,
Reinhardt realizou experimentações inovadoras levando suas montagens teatrais para praças
públicas, igrejas, bosques e ruas. A partir da segunda metade do século XX, muitos diretores
começam a explorar as possibilidades de espaços não convencionais. O teatro pôde ser revisto
nas ruas, e avenidas, praças, parques, fábricas, em diversos tipos de edifícios. Ou seja, ele
voltou a interagir com o espaço público comunitário, resgatando a ideia do teatro como um
influenciadas também pelas teses artaudianas. Roubine destaca: “As tentativas do Living
Theatre nos Estados Unidos e, a seguir, na Europa, as buscas de Peter Brook na Inglaterra e
A partir dessas mudanças o teatro ganhou alforria, estava livre para acontecer em
qualquer lugar. Durante os anos 60 e 70 espalham-se pelas cidades européias uma série de
também mudanças na condição do espectador, que agora, diante das novas possibilidades é
instigado também a adotar uma atitude menos passiva e mais ativa em relação ao espetáculo.
A ruptura com o espaço convencional do teatro colocou em xeque a perspectiva que via o
234
Reinhardt viveu o momento em que o teatro moderno desenvolvia novas ideias. O elemento chave de seu
trabalho era o expressionismo, ele recorreu a inovações como o palco giratório ou desmembrado em vários
níveis, projeção de slides, rampas laterais ou plataformas colocadas no meio da platéia.
235
ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 100.
Roubine esclarece entretanto que as propostas de Artaud, por terem permanecido muito tempo no campo da
teoria, só viriam a ter uma efetiva influência sobre a evolução do espetáculo anos mais tarde. Artaud faleceu em
1948.
95
experimentação cênica, colaborativos, participativos. O fazer teatral passou a ser visto por
alguns artistas como uma tarefa que poderia se estender e alcançar também os espectadores,
transformando-os em atores. Assim, além de livre para acontecer em qualquer lugar, o teatro
estava livre também para ser feito por qualquer pessoa, fatos que nos indicam as pistas do
artistas do chamado teatro político. A rua passou ser vista como símbolo de liberdade política,
enquanto que o edifício teatral como um símbolo do poder dominante. O período presenciou
uma explosão de práticas artísticas criadas para encorajar a intervenção política através da
eventos nas capitais e em todo o país. Patrocinado pelo Partido Central, o seu objetivo era
Meyerhold havia se separado do mestre Stanislavski para fundar a Sociedade do Drama Novo
236
De acordo com Margot Berthold: “Uma das mais imponentes realizações de massa do período foi A Tomada
do Palácio de Inverno, encenado em Petrogrado, em 7 de novembro de 1920, como uma celebração dramática e
teatral dos eventos históricos da Revolução em seu terceiro aniversario. Houve salvas de canhão, fanfarras e
holofotes. Exibia-se a estrela soviética grande e vermelha e toda a assembléia cantava a Internacional.” Cf.
História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, p. 493.
96
estilo próprio de vanguarda, por meio das técnicas para atores, a biomecânica, e de recursos
como projeções de filmes, inovadoras maquinarias e estruturas cenográficas. Nos anos que se
seguiram a Revolução de 1917, Meyerhold, que a princípio apoiou o regime, montou peças
que falavam também sobre problemas de interesse imediato para o espectador soviético como
intelectuais também fora da Rússia. Em 1919, Erwin Piscator, em seu manifesto endereçado
era usar o teatro como meio de propaganda política em salas e locais de reunião de
trabalhadores, nos bairros de periferia. Inspirado pelas idéias de Marx, o teatro de Piscator
por meio de uma argumentação política, social e econômica. Sua proposta pedagógica
De fato, como afirma Gerd Bornhein, Piscator foi o primeiro mestre importante que
Brecht teve no aprendizado da teoria marxista, aprendizado significativo “já porque ele se
fazia vinculado sempre à prática do teatro – queria-se um marxismo posto em cena”. 240 A
ideia do uso do teatro em serviço da mudança social é a essência da teoria e prática de Bertolt
237
Na montagem de Terra Revolta, de Sergei Tretyakov , Meyerhold fez uma reprodução da Revolução no
palco. Em determinada cena os soldados vermelhos tomavam de assalto o palco, o auditório e o foyer, sacudiam
as bandeiras vermelhas e entoavam a Internacional. Embora tivesse apoiado e recebido o apoio do regime
comunista soviético, em 1930, a arte e o posicionamento de Meyerhold passaram a ser considerados
incompatíveis pelo governo. Seu teatro foi fechado em 1938, o encenador preso e executado em um campo de
concentração (1940).
238
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo:Perspectiva, 2000. p. 499.
239
BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 122. De acordo com Gerd
Bornhein, o ponto de partida do pensamento de Piscator encontra-se em expressões como: teatro proletário (foi
a primeira denominação utilizada por ele), teatro popular, teatro de tendência e teatro político. A primeira
expressão foi logo esquecida, observa Bornhein, mas as outras duas se tornaram frequentes na linguagem de
Piscator.
240
Ibidem, p.131.
97
Brecht. Brecht adaptou o pensamento de Marx nas Teses sobre Feuerbath, “a filosofia apenas
interpretou o mundo, a meta é modificá-lo” e aplicou isso à prática do teatro. 241 A influência
Capital, de Marx, compreendi as minhas peças.” 242 Tim Prentki destaca a influência do teatro
afirma que:
Para Brecht, o público não deveria entrar no teatro para esquecer a vida ou esquecer o
mundo “exterior”. As peças didáticas são exercícios de dialética, nos quais o texto é
ativo e imediato no dilema das personagens. Como explicou o próprio Brecht: “A peça
Para Gerd Bornhein, o projeto das peças didáticas de Brecht abandonava a ideia do
teatro como “diversão perdulária”, e optava pela “seriedade do pedagógico, com o exercício
ascético da racionalidade”. 245 O fato de as peças didáticas terem sido consideradas por muitos
especialistas como obras pertencentes a uma fase “menos madura” do teatro brechtiano, à
241
As Teses sobre Feuerbach (em alemão: "Thesen über Feuerbach") são onze curtas notas filosóficas escritas
por Karl Marx (provavelmente) em 1845. Eles explicitam a crítica de Marx sobre seu colega filósofo jovem
hegeliano, Ludwig Feuerbach. As “Teses” identificam a ação política como a única forma verdadeira de
filosofia, concluindo que: “Filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que
importa é transformá-lo”.
242
Como sabemos, Marx definiu a doutrina marxista em O Capital (1867) baseando-se em uma explicação
materialista dos fatos econômicos e históricos. O filósofo e economista alemão considerava que o sistema
capitalista, na medida em que concentrava a riqueza em poucas mãos, não poderia resistir à ação dos
trabalhadores agrupados. Ele acreditava que tais trabalhadores, se organizados, poderiam tornar-se senhores,
numa sociedade coletivista. Marx considerava que a revolução que tornaria os trabalhadores donos dos meios de
produção dependia de uma ação organizada e coletiva. Cf. BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio
de Janeiro: Graal, 1992. p. 145.
243
PRENTKI, Tim and PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge,
2009. p.12. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
244
BRECHT, Bertolt. Para um teoria da peça didática. Apud KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de
aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p.16.
245
BORNHEIM, Gerd. Brecht - A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 182.
98
contestada por Ingrid Koudela em Brecht: um jogo de aprendizagem. 246 De acordo com
educador. Um texto escrito pelo dramaturgo em 1930, Teoria da Pedagogia, reflete o seu
objetivo de estabelecer “um procedimento que reunisse teatro, política e aprendizagem.” 247
No texto, Brecht deixa explícita a proposta de “educar os jovens através do jogo teatral” o que
significa “fazer com que sejam ao mesmo tempo atuantes e observadores”. A radicalidade das
de seres passivos a ativos, contribui com a perspectiva que vê a vivência teatral, o ato artístico
coletivo, como uma experiência capaz de gerar atitude crítica e comportamento político.
A Decisão e a Exceção e a Regra, ambas de 1930, encerram o ciclo das peças didáticas.
Mas, o fato é que a partir delas todo o teatro de Brecht, até a escrita do Pequeno Organon
para o Teatro (1948), considerado o coroamento de todas as idéias teóricas do autor, assume
uma dimensão pedagógica, empenhada em “ensinar o homem a ver o mundo em que vive”.
Nos textos do Organon, Brecht concilia os dois tópicos que em sua opinião constituem o
teatro: o prazer e o conhecimento. A relação entre estas duas noções é um dos pilares da obra
prazer, no Pequeno Organon ele revê essa posição. Nesta obra, ele afirma que:
Embora o teatro não deva ser incomodado com uma série de matérias de
conhecimento que não lhe confiram o caráter recreativo, ele ainda é livre
para se recrear com ensino e investigação. Constrói suas representações
sociais de forma válida e capaz de influenciar a sociedade, com uma grande
diversão. 248
246
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. p 1- 2.
247
Ibidem. p.15.
248
BRECHT, Bertolt. Pequeno Organon para o teatro. In: Teatro Dialético. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967. p. 192.
99
De acordo com Brecht, a síntese entre as noções estaria em fazer da “crítica, isto é, do
grande método da produtividade, um prazer”. 249 Não se trata, portanto, afirma o professor
Gerd Bornhein, “do divertimento pelo divertimento, mas sim de uma forma bem determinada
de divertimento: o supérfluo prazer que sentia Galileu quando espiava os astros”. 250 O
Organon esclarece também o que seria para Brecht a razão de ser do teatro, e que estaria fora
do teatro. O importante está em tornar o espectador “produtivo, que vá além da simples visão
passiva”. 251 Para Brecht, o teatro deveria estar empenhado em provocar na platéia o impulso
espectador de uma atitude confortável e passiva, instigando-o a adotar uma perspectiva mais
Para Brecht, o teatro deveria provocar no espectador uma atitude de investigativa diante
do mundo, incitando-o a estender “tal atitude ao mundo social”. 253 Thelma Lopes destaca a
Diante das representações do mundo dos homens levadas ao palco, ele adota
a mesma atitude que diante da natureza, como homem do nosso século. O
teatro também o acolhe como transformador, aquele que é capaz de intervir
249
BRECHT, Pequeno Organon (VII,22-3) apud BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de
Janeiro: Graal, 1992. p. 371.
250
BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 371.
251
BRECHT, Pequeno Organon (VII,57) apud BORNHEIM, Gerd. Brecht A Estética do Teatro. Rio de
Janeiro: Graal, 1992. p. 373.
252
CARLOS, Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três
Versões Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado- Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. p.58.
253
Ibidem, p. 58.
100
Para Tim Prentki, a grande contribuição de Bertolt Brecht à poética do teatro aplicado
representou um impulso no percurso do teatro aplicado. Durante aqueles anos, grupos teatrais
mainstream para levar o teatro a diversos lugares, proporcionando um encontro desta arte com
Em 1968, Peter Brook escreve O Teatro e seu espaço, obra que reflete o momento pelo
qual passava o teatro ocidental. O texto de Brook representa a voz dos artistas cansados das
obras “mortas” do teatro comercial. No livro, o diretor analisa quatro tipos de teatro: o Morto,
254
BRECHT, Bertolt. O Teatro Dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 138. Apud CARLOS,
Thelma Lopes. O Palco de Brecht e o Céu de Galileu: Tudo se Move. Teatro e Ciência nas três Versões
Dramáticas de "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht. Dissertação de Mestrado- Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, UNIRIO, Brasil. P.58-59.
255
PRENTKI, Tim, PRESTON, Sheila. The Applied Theatre reader. London and New York: Routledge, 2009. p.
20-21.Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
256
Ibidem, p.21. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
257
Entre eles podemos destacar: nos Estados Unidos o Bread and Puppet, Welfare State, Squat Theatre e Living
Theatre; Teatro-Laboratório de Grotowski, na Polônia; Armand Gatti e Teatro de Soleil, na França, entre outros.
101
o Sagrado, o Rústico e o Imediato. O primeiro, segundo ele, estaria “diretamente ligado ao tão
desprezado e atacado teatro comercial” 258, já o Rústico, que aqui mais nos interessa, estaria
associado às experiências distantes das salas tradicionais e mais próximas das platéias
É sempre o Teatro Popular que vem salvar a situação. Através dos tempos
ele tem tomado muitas formas e todas com um só traço em comum – uma
aspereza. Sal, suor, barulho, cheiro: o teatro que não está dentro de um teatro
(...) Teatro em quartos de fundo, quartos de sótão, em celeiros; espetáculos
de uma noite só, o lençol rasgado pendurado na entrada, o biombo gasto para
esconder as rápidas mudanças de roupa – e assim: um único termo genérico,
teatro, compreende tudo isto além dos lustres cintilantes dos teatros ricos. Já
tive muitas discussões abortivas com arquitetos empenhados na construção
de novos teatros, tentando, em vão, encontrar palavras para comunicar a
minha convicção de que não é uma questão de construções boas ou más: um
lugar lindo talvez nunca provoque explosões de vida, enquanto que um salão
qualquer pode ser um lugar muito vivo. 259
vivas e isentas dos critérios de qualidade impostos pelo teatro burguês, somada à fermentação
política, própria dos movimentos sociais da época, motivaram inúmeros artistas pelo mundo.
A trajetória da companhia 7:84, do Reino Unido, é um bom exemplo disso; ela exerceu
grande influência nas práticas do teatro comunitário e político por lá. Esta companhia,
258
BROOK. Peter. O Teatro e seu Espaço. Petrópolis: Vozes Ltda., 1970. p.2.
259
Ibidem, p. 65.
260
Ibidem, p.67-69.
102
fundada pelo escritor, diretor e produtor, John McGrath, recebeu este nome curioso depois
que uma estatística nos anos 70 revelou que 7% da população acumulavam 84% das riquezas
do Reino Unido.
O objetivo do 7:84 era levar o teatro político popular aos lugares rejeitados pelas
companhias oficiais nacionais e regionais. A Escócia foi o seu campo de atuação principal e
também assunto preferido de MacGrath em sua dramaturgia. Ele escreveu 60 peças de teatro,
mas a sua obra mais famosa é The Cheviot, The Stag And The Black, Black Oil (O Carneiro, o
veado e o óleo negro) (1973), baseada numa festa popular, contando a história da exploração
do país desde as remoções nos Highlands pelos proprietários aristocratas, até o boom do
petróleo na região. A produção viajou muito e também recebeu uma adaptação bem sucedida
pela BBC TV. O 7:84 atuou na Inglaterra e na Escócia. Mas a companhia inglesa encerrou
suas atividades em 1984, quando o Conselho Nacional de Arte retirou o patrocínio do grupo
por motivos políticos. Em 1988, McGrath se retirou do grupo escocês em protesto contra
O 7:84 foi um dos grupos que integrou o movimento que ficou conhecido no Reino
Unido como popular political theatre. Desde os anos 60, muitos artistas começaram a sentir a
necessidade de criar companhias fora do teatro comercial. Entre 1968 e 1969, grupos à
partir daquele momento companhias teatrais descobriram que não precisavam de um teatro
Nós queríamos viajar com espetáculos que tivessem uma conexão forte,
imediata e atual, que levantasse uma perspectiva socialista dos eventos
contemporâneos, que entretece as pessoas da working class (classe operária)
e tivesse apelo a esta classe, e aos aliados da classe operária, como
estudantes e intelectuais, que tinham um pé na classe média e outro nos
movimentos liberais. Nós queríamos apresentar essas peças no intuito de
agitação, de intervenção nas comunidades. 261
261
MCGRATH, John. Naked Thoughts that roam about. London: NHB, 2002. p.48. Trecho livremente traduzido
por mim, com revisão de David Herman.
103
O 7:84 desejava atrair uma platéia não acostumada a ir ao teatro, e para conseguir isto,
McGrath concluiu primeiramente, que a solução seria deixar o ambiente tradicional do teatro
como fonte e temas as histórias locais, lutas, atitudes e comportamento das comunidades. Os
espetáculos precisavam estabelecer um diálogo com as platéias, por isso o 7:84 optou pela
caricatura. 262 Na opinião de Baz Kershaw, era fundamental para John McGrath identificar as
cultural:
De acordo com Kershaw, o diretor acreditava que o “localismo” é crucial para o impacto
e acontecimentos com sabor local.” 264 O processo de criação das peças incluía o diálogo com
Obviamente, como autor, eu tinha uma ideia clara e exata de como eu queria
o espetáculo. Eu sabia para quem ele era, e eu sabia o que queria dizer. Mas
262
Em A Good Night Out (Um bom programa a noite) este assunto, a comunicação plena com a audiência, é
particularmente desenvolvido por McGrath. No livro, o autor descreve as características da audiência da working
class e aponta aspectos, que segundo ele, seriam necessários para o engajamento dessas platéias populares.
Segundo ele, os elementos da comédia, música, emoção, efeitos, imediatismo, localismo (assuntos próprios da
localidade) seriam importantes para o estabelecimento de uma comunicação mais imediata com este público. Em
The Cheviot, por exemplo, cantos, músicas e danças do folclore Escocês foram incorporados ao espetáculo,
inclusive letras cantadas em “gaélico,” língua original da Escócia, que ao longo dos anos fora substituída pelo
inglês. A good night out. Popular theatre: audience, class and form. London and New York: Methuen, 1981.
263
KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London: Routledge,
1992. p.153. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
264
Ibidem, p. 154. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
104
Mais adiante o autor comenta sobre a interação entre o espetáculo e a platéia de uma
comunidade em Glasgow, na Escócia:
envolveu artistas que decidiram cruzar a fronteira do mainstream e ir à busca de outra platéia,
como a das comunidades remotas do Highlands da Escócia ou das vilas de operários do País
montagem de The Cheviot, uma contribuição determinante para o movimento que explodiu
no Reino Unido:
Em meados dos anos 70, o movimento havia proliferado no Reino Unido e originado
dezenas de grupos com perfis variados. De acordo com Baz Kershaw: “No final da década,
265
MCGRATH, John. Naked Thoughts that roam about. London: NHB, 2002. p. 62. Trecho livremente
traduzido por mim, com revisão de David Herman.
266
Ibidem, P.67. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
267
KERSHAW, Baz. The politics of performance. Radical Theatre as cultural intervention. London:
Routledge, 1992. p.166. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
105
(companhias de teatro comunitário), cuja meta era tornar o teatro acessível a comunidades
vínculos mais estreitos com as comunidades, ficar cada vez mais “perto” delas “para que os
projetos fossem criados e determinados pela comunidade, como parte do processo de seu
Kershaw explica que todas essas companhias definiam seu público alvo a partir da
localização geográfica, que podia variar entre áreas urbanas de baixa renda, vilas rurais,
cidades industriais e até condados. Algumas preferiam visitar diferentes espaços dentro de
uma mesma comunidade, como escolas, centros comunitários, clubes de jovens, hospitais,
pubs, asilos, ruas e creches; outras preferiam alvos mais específicos, optando apenas por
escolas e centros comunitários. O tipo de contato com as platéias podia variar, desde a
estética mais direta, sem a participação do público, até processos complexos de engajamento
dos espectadores; a programação também era diversa, podendo partir de peças criadas pela
ocidental ao logo de todo o século influenciaram a trajetória do teatro aplicado, mas foi
durante aquelas duas décadas que se fortaleceram as condições para o seu surgimento. Aqui
268
Ibidem. p. 139. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
269
Ibidem, p. 141. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
106
em nosso país não foi diferente. O período de grande ebulição na vida política e também
teatral que antecedeu o golpe militar de 1964 preparou o terreno para as sementes do teatro
aplicado no Brasil.
mobilização em torno de grandes temas de interesse para o país como a conquista da posse de
João Goulart, a euforia nacionalista da luta pelas reformas de base, principalmente pela
criação do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT. No campo da cultura, como observa
par com a sua cada vez mais radical politização.” 272 No Nordeste, movimentos de cultura
catequização política das populações interioranas.” 273 Em Recife, o governo de Miguel Arraes
promove, como afirma Silvana Garcia, “uma experiência pedagógica integrada de base
270
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 99.
271
Ibidem, p. 100.
272
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.
15.
273
Ibidem, p. 15.
107
Paulo Freire e voltado para um programa de educação popular, o MCP ampliou a sua atuação
para a esfera da produção cultural popular “promovendo festivais de cinema, teatro e música,
Na área teatral, o MCP cria os Clubes de Teatro, organizados nos Centros Educativos e
sindicatos, os Clubes eram grupos de teatro formados por operários que se apresentavam em
bairros do Recife e também no interior do Estado. 276 Diversos grupos se reuniram em torno
do Teatro de Cultura Popular do MCP, que tinha como frentes de ação: promover espetáculos
esquetes para as conferências de Paulo Freire nos Centros e Praças de Cultura; a formação de
período grande influência no Nordeste, mas atraiu atenção também no sul do país. O encontro
dos artistas do Teatro de Arena paulista com os nordestinos teria, segundo a autora, inspirado
Nacional dos Estudantes - UNE. 277 O grupo, composto em sua maioria por estudantes
universitários, artistas e intelectuais, atuou entre 1961 e 1964 e tinha como objetivo a
conscientização de massa. O discurso proferido pelos jovens, quase todos filiados ao Partido
274
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 100.
275
Ibidem, p. 100.
276
Que é o MCP? Arte em Revista. São Paulo 2(3):71,mar.1980. apud GARCIA, Silvana. Teatro da Militância.
A intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 100
277
O CPC foi fundado em 1961, vinculado a União Nacional dos Estudantes (UNE), órgão combativo do
movimento estudantil brasileiro desde 1937. O grupo adquiriu um estatuto jurídico em 8 de marco de 1962,
onde consta no segundo artigo as suas finalidades: “promover atividades culturais nos setores teatrais,
cinematográficos, musicais, das artes plásticas e outras e elevar o nível de conscientização das massas
populares.” De acordo com Fernando Peixoto é impossível resumir as atividades do CPC da UNE: conferências,
debates, seminários, espetáculos, musicais, teatro em comícios, teatro na rua, em caminhões, universidades e
sindicatos. “movimento essencialmente multiplicador, passou pelo CPC uma geração de artistas e intelectuais.”
Cf. PEIXOTO, Fernando. O melhor teatro do CPC da UNE. São Paulo: Global, 1989. p.14.
108
Comunista, pretendia levar ao povo idéias revolucionárias. Como afirma Garcia, foi com o
CPC que o teatro de agitprop ganhou força de permanência e alcance no Brasil. A história
deste grupo militante, entretanto, começa um pouco antes, de dentro do Teatro de Arena, em
Fundado em 1955 por ex-alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo – EAD 278, o
Teatro de Arena, em sua primeira fase, visava montar espetáculos com o mesmo apuro do
Teatro Brasileiro de Comédia – TBC 279, adotando, porém, uma forma de produção mais
Teatro Brasileiro 280, o grupo inicia uma colaboração com o Teatro Paulista do Estudante, um
Augusto Boal, como diretor, vai resultar um novo programa artístico para a companhia.
O palco em arena passa a ser compreendido como um instrumento para acolher o teatro
protagonizado pelas classes populares, igualmente a disposição circular dos espectadores, por
inspiradas por esta ideologia. Em 1958, estreia Eles não usam black-tie, peça ainda moldada
sob o estilo realista, mas entremeada por uma canção que prenuncia os recursos do teatro
278
Escola de Arte Dramática é uma unidade complementar da USP, ligada à Escola de Comunicações e Artes
(ECA). Popularmente conhecida como EAD, foi fundada em 1948 sob a coordenação de Alfredo Mesquita e
passou, ao longo de mais de meio século de existência, por incontáveis reestruturações e reformulações. Numa
destas surgiu o Departamento de Artes Cênicas da ECA. A EAD é uma escola pública (gratuita) e uma das mais
importantes escolas de formação de atores do Brasil, sendo que muitos de seus ex-alunos são figuras
nacionalmente conhecidas, no teatro, cinema e televisão.
279
Teatro Brasileiro de Comédia –TBC foi fundado em 1948, pelo industrial italiano Franco Zampari,em São
Paulo. Durante as várias fases por que passou e durante os anos em que existiu como companhia estável, de 1948
a 1964, o palco do TBC chegou a ter melhor elenco do país, em que se distinguiam: Cacilda Becker, Tônia
Carrero, Fernanda Montenegro, Cleyde Yáconis, Nydia Lícia, Nathalia Timberg, Tereza Rachel, Paulo Autran,
Sérgio Cardoso, Jardel Filho, Walmor Chagas, Ítalo Rossi e muitos outros. A encenação estava confiada a
europeus e, em certos momentos, até quatro deles se alternavam nas montagens: Adolfo Celi, Luciano Salce,
Ruggero Jacobbi, Ziembinski, Flaminio Bollini Cerri, Maurice Vaneau, Alberto D'Aversa e Gianni
Ratto..Acusado de certo conservadorismo, tanto na encenação quanto na escolha de seus textos, além de certo
privilégio a uma cultura oficial que mantinha laços com a burguesia dominante, o TBC entrou em sua última
fase, alterando suas diretrizes. Passou a confiar as encenações aos brasileiros Flávio Rangel e Antunes Filho,
além do belga Maurice Vaneau, e o repertório privilegiou os dramaturgos nacionais Dias Gomes, Jorge Andrade
e Gianfrancesco Guarnieri.
280
Dicionário do Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. J. Guinsburg, João Roberto Faria, Mariângela
Alves de Lima (orgs.) – São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006.
109
épico. Em 1960, com Revolução da América do Sul, sob a direção de Boal, o Arena inova a
brechtiana.
contrapartida acentuar a função instrutiva.” 281 Após o golpe militar em 1964, os vinte anos de
de grupos por todo o país, que produziram peças em palco de formato circular, muitas vezes
nosso teatro. Esta nacionalização consistia em não mais tentar montar peças estrangeiras de
acordo com as normas do gosto europeu, mas revelar através da dramaturgia e das
O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes - CPC surge a partir do
281
Ibidem, p.38.
282
Ibidem, p. 38.
110
das massas populares num teatro de cento 50 lugares. O Arena não atingia o público popular
e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para seu
trabalho.” 283 Para Vianninha existia uma contradição entre o público que o Arena atingia,
povo brasileiro.
escala. Assim, em 1960, quando se encerra a temporada carioca do Arena, Vianninha e Chico
de Assis decidem ficar na cidade para montar um espetáculo, o tema da peça seria a “mais-
valia”. 284 O CPC criou e produziu dezenas de peças, como explica Julian Boal “algumas feitas
assembléias estudantis, em plena rua, em qualquer lugar onde fosse possível reunir
espectadores.” 285
O grupo teve uma produção bastante fértil e diversificada. Em dois anos e meio de vida,
além de cursos e do trabalho com o teatro, produziram um longa metragem, Cinco Vezes
favela, gravaram os discos O Povo Canta e Cantigas da Eleição, produziram a coleção Violão
de Rua para a série Cadernos do Povo Brasileiro, editados pela Civilização Brasileira, além
283
BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 19.
284
A primeira peça do CPC é intitulada Mais-Valia vai acabar, Seu Edgar. Foi apresentada durante seis meses
na Faculdade de Arquitetura, Urca. A peça contava com músicas de Carlos Lyra e com a utilização de técnicas
inspiradas em Piscator.
285
BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p.14.
286
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 104.
287
Ibidem, p. 104.
111
Entretanto, como assumiu o próprio Vianninha, o discurso do grupo não chegou com o
impacto esperado à platéia popular. Isto porque, o seu modo de intervenção talvez tivesse
A trajetória do CPC foi interrompida e destruída pelo golpe militar em 1964. 290 Talvez
tivesse sido possível para o grupo ter adotado práticas que buscassem uma maior interação
com as platéias ou mesmo um trabalho mais contínuo nas comunidades que buscaram atingir.
Em As Imagens de um Teatro Popular, Julian Boal, aponta qual teria sido o maior equívoco
do CPC: uma ação verticalista, que pretendia ensinar ao povo, ou levar a ele a “verdade capaz
291
de libertá-lo.” Sobre a atuação do grupo, o autor afirma que:
288
Os termos dialógica e depositária, de autoria de Paulo Freire, serão mais adiante esclarecidos.
289
O. VIANNA FILHO, "A Última entrevista", Revista de Teatro, Rio, SBAT, jul-ago 1974, transcrito do
Jornal do Brasil de 17.07.1974. In: PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2001. p.100.
290
De acordo com Yan Michalski, em março de 64, quando as tropas militares desceram de Minas para o Rio “o
CPC se achava na reta final das obras através das quais o precário auditório da UNE estava sendo transformado
numa moderna sala de espetáculos. (...) No 1o. de abril, o prédio da UNE ardia em chamas, que destruiu
completamente o que seria o teatro. O incêndio não se limitava a transformar o auditório num monte de
escombros: nas suas chamas morria também o CPC, imediatamente colocado como a UNE, fora da lei. E morria
todo o projeto de um teatro engajado ao qual muitos dos melhores artistas do país se vinham dedicando nos
últimos anos.” Cf. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. p. 16.
291
BOAL, Julián. As Imagens de um Teatro Popular. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 123
112
Julian Boal sugere como antídoto contra esta ação “de cima para baixo” o método que
poucos anos depois começaria a ser desenvolvido por seu pai, Augusto Boal, e que resultaria
na publicação de o Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas (1975). Para Julian Boal,
no Teatro do Oprimido a “ação verticalista” é abolida “visto que somente as pessoas que
sofrem igualmente da mesma opressão sentida pela plateia e pelos personagens serão aceitas
Diferente do CPC, que encerrou suas atividades em 64, o Teatro de Arena, sob a
liderança de Boal, conseguiu sobreviver à pressão do regime autoritário até 1971. Naquele
ano, além da montagem de A resistível ascensão de Arturo Ui, de Bertolt Brecht, o diretor
inicia sua pesquisa em torno do teatro que ele nomeou de Teatro Jornal, cuja proposta era
mostrar “que qualquer pessoa, mesmo que não seja artista, pode fazer do teatro um meio de
Oprimido. Infelizmente, no mesmo ano, desfez-se o Arena 294; Boal foi preso e exilado. Já
fora do Brasil escreveu o Teatro do Oprimido, obra fortemente influenciada pela Pedagogia
do Oprimido (1970), de Paulo Freire. Como veremos mais adiante, o pensamento desses dois
construíram muros divisórios, separando atores de espectadores: gente que faz e gente que
292
Ibidem, p. 124.
293
Ibidem, p.125.
294
A última montagem do grupo foi Arturo Ui, com a fraca repercussão do espetáculo, os problemas com a
censura e o agravamento da crise econômica do grupo, bem como a prisão de Boal, o Arena entra em colapso.
113
observa” 295; clama pela “libertação do povo oprimido”, a derrubada dos muros dos edifícios
Oprimido e outras poéticas políticas, obra que lhe daria o reconhecimento internacional,
alternativos, envolvendo grupos de não atores; uma tendência que, apesar do golpe militar em
Mesmo que durante os anos que se sucederam ao golpe, os meios intelectuais e artísticos
tivessem sofrido com a repressão e o exílio de nomes importantes, no teatro, como nos lembra
social onde se manteve um laivo de consciência.” 296 Alguns teatros se tornaram redutos de
resistência como foram os casos do Teatro São Pedro e Ruth Escobar, em São Paulo, e Teatro
Ipanema no Rio. Como explica Yan Michalski, apesar de rotulado pelo regime como um
destacado papel na sociedade de seu tempo.” 297 Em Teatro sob pressão, Michalski destaca a
nos palcos profissionais. 298 Além disso, dezenas de grupos e palcos alternativos proliferaram.
No capítulo Teatro Popular de Periferia dos anos 70, Silvana Garcia destaca que:
295
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a.
edição. P. 135.
296
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intencao do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 122.
297
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 7.
298
De acordo com o crítico, no circuito profissional tiveram destaque, entre outros, as montagens: Os Pequenos
Burgueses, de Gorki (Teatro Oficina, SP,1964), A Ópera dos três vinténs, de Brecht (Teatro Ruth Escobar,
SP,1964), Arena conta Zumbi, de Guarnieri, Boal e Edu Lobo, direção de Paulo José (RJ,1965); Morte e Vida
Severina, de João Cabral de Mello Neto (TUCA paulista, 1965); Dois perdidos numa noite suja, de Plínio
Marcos (SP e RJ, 1966).
114
Como esclarece a autora, esses grupos guardavam entre si muitas semelhanças, o que
permite indicar um perfil básico para todos eles. Há a mesma intenção de não atuar no
mercado profissional do centro, o que se deve por um lado à insatisfação com o alcance do
“teatrão” junto às camadas mais populares, de outro o fato de discordarem com teatro
produzido no centro afinado com os setores das classes média e alta. De acordo com Silvana
Garcia:
movimento do teatro popular de periferia dos anos 70. Segundo ela, a “tônica” do
movimento era: a produção coletiva; a atuação fora do âmbito profissional; o desejo de levar o
solidariedade com o espectador e sua realidade. Outra característica levantada pela autora diz
respeito à composição heterogênea dos grupos. Como observa Garcia, na formação inicial
eventualmente, a itinerância podia também promover nos bairros a formação de novos grupos.
299
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p. 122.
300
Ibidem, p.124.
115
decisão de deixar o aspecto “mambembe” para encontrar uma sede, um espaço físico
O projeto de sede traz, em geral, atrelada a ideia de uma casa de cultura que
o grupo pretende colocar à disposição de uma comunidade. A intenção é a de
suprir a carência de espaços culturais e de lazer da periferia, ao mesmo
tempo em que se pretende estimular os artistas locais.301
Garcia escolhe para objeto de análise a trajetória de sete grupos paulistas: Núcleo
Expressão de Osasco; Teatro-Circo Alegria dos Pobres; Teatro União e Olho Vivo; Núcleo
Independente e Truques, Traquejos e Teatro; Galo de Briga e Forja. Não cabe neste estudo
aprofundar as conclusões da autora sobre a trajetória dos grupos, mas destacar informações
Como observa Garcia, no eixo central dos projetos desses grupos está uma dupla
proposta a “intenção de ser popular e a motivação política”. De acordo com a autora: “Na sua
periféricas, utilizando o teatro como instrumento de uma ação politizadora.” 302 O modo
coletivo de produção é também destacado por Garcia como um aspecto comum ao trabalho
dos grupos. Em relação à leitura e à influência de teóricos do teatro no trabalho dos grupos,
entrevistas realizadas com seus integrantes, revelam que os parâmetros mais frequentes são
Brecht e Boal. A autora aponta também como característica comum à atuação dos grupos, a
discussão após os espetáculos, revela o traço marcante da atuação dos grupos, o desejo de
espetáculos. Como observa Silvana Garcia, alguns dos grupos entendiam que o debate é
301
Ibidem, p. 125.
302
Ibidem, p. 144.
116
também um momento chave para a realização de uma reflexão coletiva sobre a realidade
sociopolítica; muitas vezes esses fóruns eram direcionados à discussão de temas locais,
próprios das comunidades envolvidas. Mas, apesar das semelhanças, os grupos estudados pela
autora guardavam também diferenças. Segundo ela, os “pontos nevrálgicos”, assuntos que
Apesar das divergências e das nuances presentes neste conjunto de grupos, é certo que eles
surgiram como uma resposta em uníssono àquele determinado contexto político e que, como
confirma a autora:
que aconteceram em outras partes do mundo. O teatro também descobriu a porta de saída do
socialização do fazer teatral. O teatro popular de periferia dos anos 70, como um exemplo
desse movimento, herdou, por vias diversas e indiretas, aspectos do agitprop “cepetista”,
estudou Brecht e Boal, encenou no meio do espaço público. Ao longo dessas duas décadas a
relação entre artistas de teatro e o universo das comunidades sofreu nítidas transformações.
mais horizontais. A ação verticalista do CPC e as práticas inspiradas pela poética do oprimido
303
Ibidem, p.189.
304
Ibidem, p. 202.
117
de Boal, que elaborou um teatro em que “o espectador liberado se lança na ação” 305, ilustram
bem o percurso de modelos adotados pela relação entre teatro e comunidade. Como explica
Pode-se dizer que esses modelos partem de práticas decididas de cima para
baixo, para práticas cujo objetivo e métodos são decididos pelas pessoas que
participam dos projetos teatrais. Entretanto este percurso não é único, pois
todas essas etapas podem ser encontradas ainda hoje.306
A relação entre teatro e comunidade pode assumir, portanto, diferentes feições, desde as
menos participativas, como as “peças de mensagem” até as mais dialógicas – quando o teatro,
criação teatral.” 307 O movimento de irradiação do teatro e a sede política pelo reencontro com
contextos nos quais os processos de criação cênica podem acontecer e o acesso às populações
Entre os artistas, o movimento levantou uma questão chave, que é, ainda hoje, objeto de
debate no campo do teatro aplicado; ela é bem observada por Silvana Garcia: “O trabalho
artístico-cultural das populações periféricas passa, por sua vez, pela organização própria da
comunidade e nada impede que os artistas contribuam para esta mobilização, mas sem
alimentar a pretensão de se tornarem os seus promotores.” 308 É neste ponto que ganham força
305
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a.
edição. P. 139.
306
NOGUEIRA. Márcia Pompeo. Teatro e Comunidade. In: Cartografias do ensino do teatro. FLORENTINO,
Adilson e TELLES, Narciso. (orgs.) Uberlândia: EDUFU,2009. p. 177- 183.
307
Ibidem, p 177.
308
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. A intenção do popular no engajamento político. São Paulo:
Perspectiva, 1990. p.208.
118
fato, como veremos a seguir, são muito frequentes as citações à obra de Paulo Freire nos
estudos internacionais neste campo de pesquisa. Em meados dos anos 70, a Pedagogia do
Oprimido começa a ser traduzida para línguas estrangeiras, o pensamento de Freire a ser
difundido e adotado em outros países. No Reino Unido, por exemplo, algumas vertentes da
educação já procuravam uma pedagogia que estivesse mais voltada para o conceito do aluno
“no centro do processo”, e encontraram apoio na obra de Freire, que defendia um tipo de
diálogo verdadeiro entre aluno e professor, no qual as duas partes assumem ambos os papéis -
estabelecidas fora das comunidades, o que ele chamou de educação “bancária”. Segundo ele,
a educação bancária baseia-se na ideia de que apenas um lado possui o conhecimento, e que o
outro é passivo, mero recipiente de depósitos; dele não se espera nenhuma contribuição.
Freire critica aqueles que, “de fora”, consideram os membros das comunidades apenas como
309
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 52
310
Boal faleceu em 2 de maio de 2009. Um mês antes, foi nomeado embaixador mundial do teatro pela
UNESCO, em Paris. A citação é parte do trecho final de sua mensagem, que reafirmava a sua crença no poder
transformador do teatro.
119
objetos; para ele, o processo educativo deve estar baseado num diálogo entre sujeitos, o
A educação como prática da liberdade de Paulo Freire está baseada na confiança e crença
nos saberes dos educandos e comunidades. Para ele, a alfabetização de adultos significa
garantir a estes o direito de voz na sociedade. Em sua proposta, o ato de conhecimento tem
como pressuposto fundamental a cultura do educando; não para cristalizá-la, mas como “ponto
de partida” para que ele avance na leitura do mundo, compreendendo-se como sujeito da
história. É por meio da relação dialógica que se consolida a educação como prática da
liberdade.
processo pedagógico. Isto é, estabelecer uma prática de intercâmbio, de troca entre os saberes
entre um lado e o outro. De acordo com Freire, para que esta dialogicidade exista é necessário
que:
311
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, ed. 2002. p.59.
312
Ibidem, p.53.
120
Esta noção foi incorporada aos processos do teatro aplicado. Embora o método de
progressista de prática educativa, tenha sido concebido como recurso para a alfabetização,
seus conceitos, aliados àqueles desenvolvidos posteriormente por Augusto Boal, começaram a
uma pedagogia na qual o aluno assumisse o seu papel de sujeito no processo ensino-
Kees Epskamp, por exemplo, defende a obra dos brasileiros como verdadeiros alicerces para a
Dois pioneiros devem ser vistos como em primeiro plano neste contexto
devido ao empenho deles em desenvolver e sistematizar alguns princípios
didáticos durante os anos 60 e 70: Paulo Freire, o brasileiro educador e
filósofo e o diretor teatral Augusto Boal. Durante os anos 1960 Freire
experimentou no Brasil um inovador método participativo no contexto da
alfabetização de adultos. Durante a década seguinte aquelas idéias
inspiraram o seu conterrâneo Boal a aplicá-las ao drama, estimulando a ativa
participação dos membros da platéia na cena, contribuindo com um processo
de conscientização e solução de problemas. 315
313
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5a.
edição. p 138.
314
Ibidem, p. 138.
315
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p.9
Em sua primeira experiência, em 1963, Freire ensinou 300 adultos a ler e escrever em 45 dias. Esse método foi
adotado em Pernambuco, um estado produtor de cana-de-açúcar. O trabalho de Freire com os pobres,
internacionalmente aclamado, teve início no final da década de 40 e continuou de forma ininterrupta até 1964.
121
Assim como Epskamp, outros autores também destacam a contribuição de Freire e Boal
na trajetória do teatro aplicado. O fato é comprovado também por Márcia Pompeo Nogueira
Helen Nicholson afirma que: “Existem duas vertentes da pedagogia que influenciaram o
teatro aplicado: uma deriva do educador marxista brasileiro Paulo Freire e a outra de modelos
europeus de educação progressista.” 317 Sobre Boal a autora acrescenta: “Freire esteve
Augusto Boal, que se tornou uma figura poderosa e uma forte presença no drama
aplicado.” 318 Para Tim Prentki, Boal transportou a essência da teoria Freireana para a arena do
teatro, tendo se transformado “num guru do teatro aplicado, reconhecido por todo o
mundo.” 319
Em 1964, com o golpe militar que derrubou o governo do Presidente João Goulart, eleito democraticamente,
Freire foi acusado de pregar o comunismo, sendo detido. A obra de Freire fica mais conhecida pelo mundo
devido ao seu exílio, em 1964. Os 16 anos de exílio foram períodos tumultuados e produtivos: uma estadia de
cinco anos no Chile como consultor da UNESCO no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma
Agrária; uma nomeação, em 1969, para trabalhar no Centro para Estudos de Desenvolvimento e Mudança Social
da Universidade de Harvard; uma mudança para Genebra, na Suíça, em 1970, para trabalhar como consultor do
Escritório de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a
Tanzânia e Guiné Bissau, que se concentravam na reafricanização de seus países; o desenvolvimento de
programas de alfabetização em algumas ex-colônias portuguesas pós-revolucionárias como Angola e
Moçambique; ajuda ao governo do Peru e da Nicarágua em suas campanhas de alfabetização.
316
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. A opção pelo Teatro em Comunidades: alternativas de pesquisa. In:
Urdimento – Programa de Pós-Graduação em Teatro., Revista de Estudos em Artes Cênicas. Universidade do
Estado de Santa Catarina. Vol 1,no.10 (dez 2008) – Florianópolis: UDESC/CEART. p. 137.
317
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of theatre. United Kingdom and United States: Palgrave
Macmillan, 2005. p.9.
318
Ibidem, p. 9.
319
Tim Prentki, assim como Helen Nicholson, reconhecem além das influências de Freire e Boal na teoria e
prática do teatro aplicado, também a de outras vertentes como das metodologias baseadas no aprendizado ativo,
desenvolvidas pelo Teatro na Educação (TIE) na Inglaterra durante os anos 60, e compartilhadas por outros
países. Não caberia neste trabalho um aprofundamento sobre este assunto, entretanto, podemos apontar alguns
autores que são referência dentro deste movimento: Dorothy Heathcote, Gavin Bolton, Jonathan Neelands e John
O'Toole.
122
baixo”, aos poucos começaram a ceder algum espaço para aquelas mais “de baixo para cima”.
No palco, as comunidades ganharam mais vez; se antes apareciam como personagens da cena,
representadas por agentes “de fora”, com o tempo elas passam a atuar nele, como atores. Em
muitos lugares do mundo espalharam-se iniciativas que descobriram o teatro como uma
A rigor, a presença de Freire e Boal na história do teatro aplicado é marcante por ter
colaborado para a mudança de abordagem daqueles que são “de fora” em relação às
comunidades alvo de suas atuações. Tanto nas ações pedagógicas, como nas ações teatrais, o
que os dois pensadores defendem é uma atitude política que inclui as noções de diálogo, troca
As idéias apresentadas ao mundo por Paulo Freire e Augusto Boal serviram como uma
espécie de antídoto contra os projetos “de cima para baixo.” É curioso observar este aspecto
da evolução do teatro aplicado a partir, por exemplo, de uma de suas subáreas, a do Theatre
for Development – TFD (Teatro para o Desenvolvimento). A história do TFD revela com
nitidez a maneira gradativa com que as noções de diálogo e participação foram incorporadas
em suas práticas.
123
principalmente após a independência dos países africanos. De acordo Tim Prentki, o TFD
começou a ser aplicado durante os anos 70 como “estratégia para educação de adultos na
Como explica Márcia Pompeo Nogueira, o TFD teria passado por diferentes fases,
artigo Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento 321, a autora propõe um debate acerca da
evolução do TFD entre a sua etapa mais “de cima para baixo” até a mais “de baixo para
dialogando com autores como Ross Kidd que em From People´s Theatre for Revolution for
Popular Theatre for Reconstruction: Diary of a Zimbabwean Workshop 322 (Do Teatro
Zimbábue) identifica as transformações sofridas pelo TFD ao longo das décadas. Nogueira
observa que:
320
PRENTKI, Tim. Prefácio. In: EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. London: Zed Books, 2006. p.xiv.
Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
321
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Entendendo o teatro para o Desenvolvimento (artigo inédito). Cf. Towards a
Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de
Doutorado)
322
KIDD, Ross. From People's Theatre for Revolution to Popular Theatre for Reconstruction: Diary of a
Zimbabwean Workshop. The Hague: CESO, 1984. P. 5. Apud NOGUEIRA Márcia Pompeo. Entendendo o
Teatro para o Desenvolvimento (artigo inédito) Cf. Towards a Poetically Correct Theatre for Development: a
dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de Doutorado)
323
Ibidem, P.14.
124
A autora observa que a partir dos anos 70 surge uma outra perspectiva para o Teatro
para o Desenvolvimento: “No lugar de fazer turnês de espetáculos prontos, a nova abordagem
de TFD nos anos 1970 optou por um formato mais participativo.” 324 Em When people play
325
people (Quando as pessoas representam as pessoas), Zkes Mda apresenta a mesma
discussão. Também segundo ele, o Teatro para o Desenvolvimento nem sempre teria utilizado
ou por agências do desenvolvimento, onde peças eram escritas para serem apresentadas às
pessoas ou pelo rádio, o objetivo teria sido, afirma ele, o de “disseminar mensagens e
Mda defende a adoção de critérios como: diálogo com a comunidade, a criação coletiva,
projetos de teatro para o desenvolvimento. O autor é critico daqueles projetos que entregavam
e criada entre as comunidades rurais, que são a maioria das populações dos países africanos.
Isto dará a população acesso não somente a mensagens produzidas pelos outros, mas os meios
ideias defendidas por Mda foram com o tempo aproveitadas. Epskamp em Theatre for
Development (Teatro para o Desenvolvimento), livro em que faz ampla citação às obras de
Freire e Boal, afirma que o TFD é usado “para encorajar comunidades a expressar suas
324
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Entendendo o Teatro para o Desenvolvimento. (artigo inédito) Cf. Towards a
Poetically Correct Theatre for Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002. (Tese de
Doutorado)
325
MDA, Zakes. When people play people. Development communication through theatre. London and New
Jersey: Zed Books, 1993.
326
Ibidem, p.49. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
327
Ibidem, p.1. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
125
preocupações e a refletir sobre possíveis causas e soluções para os problemas.” 328 A evolução
Em Buscando uma interação poética e dialógica com comunidades 329 a autora explica
como as obras de Freire e Boal foram sendo difundidas pelo mundo e aproveitadas em
interação com comunidades através do teatro começou a acontecer com mais freqüência em
outros países do terceiro mundo do que no Brasil, principalmente na África, a partir dos anos
dialógica do teatro:
muito freqüentes nos anos oitenta principalmente no continente Africano”. 331 No artigo,
Márcia Pompeo, utilizando como exemplo dois workshops que aconteceram na década de 80,
328
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p. 3. Tradução própria com revisão de David Herman.Atualmente o uso do
TFD é freqüente em projetos promovidos por ONGs internacionais voltados para a prevenção da AIDS e para a
resolução de conflitos.
329
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades.
Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. p.70. Os trabalhos citados pela autora no artigo foram estudados em sua
pesquisa de doutorado, cujo resultado é a tese inédita intitulada: Towards a Poetically Correct Theatre for
Development: a dialogical Approach. Exeter: Exeter University, 2002.
330
Ibidem, p. 70.
331
Ibidem, p. 70.
126
facilitadores deve encorajar os indivíduos a colocar suas idéias em prática, deve assumir a
atitude de quem vai “coordenar um processo aberto para as contribuições dos membros da
comunidade.” 332 Nesses primeiros momentos, o objetivo deve ser, de maneira gradual,
Os passos seguintes são a pesquisa dos problemas vividos pela população, até a escolha
cena, possíveis soluções. Nas experiências citadas no artigo pela professora, as etapas de
comunidades. De fato, uma das mais conhecidas formas de encarar o teatro como
comunidades são as técnicas do Teatro do Oprimido 333, especialmente as do teatro fórum, que
idéias de parceria, “de baixo para cima”, diálogo, comunidades no centro do processo,
coletivo etc.) como mais eficiente para atingir suas metas do que as abordagens
convencionais (“de cima para baixo”, centradas em objetivos planejados por agentes externos
cavaram, em muitos casos, o seu próprio fracasso. Nos anos 70, tanto doadores como os
332
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades.
Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89. p. 71.
333
Durante o exílio, Boal viajou pelo mundo levando suas idéias, suas técnicas estão hoje amplamente difundidas
pelo mundo em práticas teatrais que buscam a interação com comunidades.
127
governos dos países beneficiários perceberam que bilhões haviam sido gastos com projetos,
sem que estes tivessem obtido os resultados esperados. A palavra participação ganhou então
participação passou a ser prioridade para elas. O teatro passou a ser considerado como um
importante aliado dentro deste contexto. Muitos projetos, crentes na eficiência desta arte
passaram a financiar projetos teatrais participativos. Como já foi visto, primeiro eles adotaram
Depois, gradualmente, devido à divulgação dos métodos de Paulo Freire e Augusto Boal,
devido à crescente desconfiança das comunidades em serem tratadas como objeto de decisões
participativos.
internacionais atuantes nos países “em desenvolvimento” e que “haviam embarcado neste
334
trem com a esperança de poder ajudar os oprimidos” ao perceber as deficiências dos
334
RAHNEMA, Majid. Participação. In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o
conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 191.
128
participativos, utilizando estratégias de ação planejadas que não fossem impostas. Chegou-se
à conclusão de que quando as populações locais eram incluídas, sendo ouvidas suas
Rahnema afirma:
livremente como sujeitos de seu próprio destino ou, como ironicamente afirma Rahnema:
“Envolver os pacientes em sua própria cura.” 336 O autor explica que em princípio os métodos
inspirados pela abordagem participatória, entre eles o teatro, fizeram renascer a esperança
entre aqueles que trabalhavam nas bases comunitárias. Segundo Rahnema, a corrida para a
criação de um “saber popular” capaz de dar “fim ao paradigma dominante foi um incentivo
tradicionais.” 337 Embora o autor concorde com esta noção de “poderes à população” e que
acredite que as intenções dos pioneiros da participação fossem puras e nobres, ele questiona a
lógica que está por trás desta ideia. De acordo com ele: “Quando A considera essencial dar
poderes a B, A presume não só que B não tem poder – ou não tem um tipo de poder
apropriado – mas também que A tem uma fórmula secreta de um poder no qual B terá que ser
335
Ibidem, p. 192.
336
Ibidem, p.198.
337
Ibidem, p.198.
129
iniciado”. 338 O autor questiona também o papel dos “agentes de transformação” e das ONGs,
que foram, segundo ele, considerados os instrumentos com as qualificações necessárias para
Sobre as ONGs, o autor comenta que sendo organizações não governamentais foram
implementação de projetos, mas, depois, passaram a ser vistas pelos “doadores” como boas
aliadas em qualquer tipo de projeto que pudesse gerar fins publicitários. Rahnema é
categórico ao afirmar que, de modo geral, nem as promessas dos agentes de transformação,
nem das ONGs, conseguiram de fato envolver os pacientes em sua própria cura, salvo
algumas exceções, devido às qualidades pessoais dos mediadores. Do ponto de vista dos
próprio autor afirma, essas são questões difíceis de serem respondidas. É fato, porém, que
338
Ibidem, p.199.
339
Ibidem, p. 200.
340
Ibidem, p. 201.
130
capazes de ouvir o que têm a dizer os membros das comunidades. Para ele, a obra de Paulo
elaborada por Freire afirma que os oprimidos só poderão contribuir para a pedagogia
teme a liberdade, enquanto não se sente capaz de correr o risco de assumi-la; ele vive um
Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre
expulsarem ou não o opressor de dentro de si. Entre se desalienarem ou se
manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre
serem espectadores ou atores. 341
como um mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de
imersão das consciências. Para vencer isto só a práxis, a ação e reflexão dos homens sobre o
uma falsa percepção da realidade. Segundo o autor, Freire não leva em consideração a
contaminados e absorvidos pelos valores dominantes. Isto poderia, segundo ele, explicar os
341
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 35.
131
desenvolvimentistas, mas, em muitos casos, serviu mais como um discurso conveniente; bem
longe da práxis eficiente, na qual acreditava Paulo Freire. De fato, alcançar o ideal
Augusto Boal, não é tarefa fácil. Mas Rahnema finaliza seu artigo com uma perspectiva um
pouco mais otimista. Por meio de duas perguntas ele restabelece a fé no ideal:
Hoje, mesmo que a noção de participação seja em geral uma condição sine qua non na
área do teatro aplicado, isto não quer dizer que as metas de Freire e Boal estejam em todas as
slogan politicamente bastante atraente. A efetiva presença da política defendida pelos dois
brasileiros depende das intenções do “projeto”. E elas podem variar: algumas comprometidas
de mudança; outras fruto de agendas mais ocultas, servindo como instrumento para objetivos
342
RAHNEMA, Majid. Participação. In: SACHS,Wolfgang. Dicionário do Desenvolvimento. Guia para o
conhecimento como poder. Petrópolis, RJ:Vozes, 2000. p. 207.
132
Ao longo dos anos, o percurso do teatro aplicado trouxe à cena ações cada vez mais
inúmeras maneiras de construir a relação entre o teatro e a comunidade. Mas, em geral, o grau
medida de sua autoria, ou até que ponto ela pode ser considerada a “dona” do evento; se, de
fato, o projeto representa uma resposta às suas necessidades e aos seus desejos, ou se foi
preparado por um outro grupo, cujos interesses nem sempre são compatíveis com os seus. A
busca pela legítima participação das comunidades como sujeitas dos processos teatrais é um
assunto que ganhou lugar de destaque nos debates que hoje fazem parte do campo do teatro
aplicado.
semelhantes que agrupam a diversidade das relações entre teatro e comunidade em três
“de fora para dentro” ou “de cima para baixo” quando, por exemplo, um grupo teatral leva às
temas, com o intuito de promover uma mudança de comportamento. Como esclarece Márcia
Pompeo: “Este modelo inclui o teatro feito por artistas para comunidades periféricas,
“transação”, teatro pela/por comunidade todo ou quase todo o processo é comandado pela
343
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro e Comunidade. In: Cartografias do ensino do teatro. (orgs.)
FLORENTINO, Adilson. TELLES, Narciso – Uberlândia: EDUFU, 2009. P. 173-182. P. 177.
133
própria comunidade, mesmo que contando com a presença de um artista facilitador 344. De
Nos critérios estabelecidos pelos autores, o uso das preposições (para, com, pela/por)
dos integrantes dos grupos nos processos teatrais. Como vimos, as influências de Freire e
Boal foram decisivas para que o conceito de participação fosse incorporado ao discurso e
flutuaria entre as iniciativas mais “de cima para baixo” (para a comunidade) até as mais “de
O teatro pela inclui iniciativas nas quais o grau de participação comunitária é grande,
comunidade, o processo teatral promove a emersão de um teatro que pertence e diz respeito
baixo para cima”. Experiências como essas envolvem as pessoas em todo o processo de
criação, buscando por meio do teatro, criar um espaço no qual a sua cultura, voz e expressão
teatro para, identificadas por projetos que levam peças prontas às comunidades abordando
344
O termo “artista facilitador” é utilizado com frequência na literatura do teatro aplicado (applied theatre) para
designar os indivíduos que penetram nas comunidades para coordenar processos teatrais.
345
PRENTKI, Tim, PRESTON, Sheila. (orgs.) The Applied Theatre reader. London and New York:Routledge,
2009. p 10. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
134
conteúdos pré-determinados, a maioria das vezes decididos por organizações externas às elas,
do teatro pela comunidade. Seus exemplos vêm crescendo em grande número e em várias
partes do mundo a partir da ação de membros dos próprios grupos comunitários, ou por meio
pelo teatro, encorajando um processo que será liderado não por ele, mas por ela própria. Em
346
Para ilustrar esta transição do o teatro para e o teatro pela, Prentki conta, por exemplo, que estudantes
universitários na África, especialmente na Nigéria durante os anos 70 e 80, preparavam peças para serem levadas
prontas às comunidades. Depois perceberam que aquelas peças não faziam muito sentido para a platéia que
buscavam, não causavam impacto algum porque tratavam de assuntos sem significado para ela. Mais tarde
passaram a visitar as comunidades e a pesquisar os temas de seu interesse, voltavam para universidade e lá
escreviam as peças. Num terceiro estágio, mais próximo do teatro pela, as peças passaram a ser criadas junto
com as comunidades, através de processos criativos, incluindo seus membros como atores, na cena. (informação
verbal)
347
VAN ERVEN, Eugene. Community Theatre. Routledge: London and New York, 2001. p. 2-3.
348
Ibidem, p. 2-3.
135
349
expressar.” Além do envolvimento da comunidade como sujeita do processo criativo, o
experiências que apostam menos na “discussão de problemas” e mais na ideia de que o fazer
teatral pode representar, em si, a afirmação da voz e do corpo das comunidades, explorando o
espaço teatral como um lugar onde podem se manifestar as suas formas artísticas, os valores
Helen Nicholson está de acordo com Erven quando comenta que: “O community theatre
tende a enfatizar o potencial dramático das histórias da comunidade local ou de suas pessoas.”
350
Nicholson também esclarece que ele vem sendo caracterizado pela participação de
especial ressonância para as suas comunidades. Kees Epskamp também concorda com os
demais autores quando afirma que são “iniciativas teatrais desenvolvidas pela própria
351
comunidade, muito baseadas em formas artísticas locais.”
Em geral, são práticas que permitem que as comunidades não apenas participem, mas se
tornem autônomas nos processos criativos, isto porque, mesmo que ocorra a colaboração de
No Brasil, a relação entre teatro e comunidade vem sendo batizada com diversos nomes.
Além de teatro de comunidade aparecem outras versões como: teatro e, teatro na, teatro em
comunidade ou, simplesmente, teatro comunidade. Para evitar entrar num labirinto de
349
Ibidem, p. 2-3. Nesta obra, Van Erven, que é um dos principais experts em teatro político asiático, organizou
o primeiro estudo comparativo dos trabalhos e tradições metodológicas que têm se desenvolvido no campo do
teatro comunitário pelo mundo. Trata-se de um estudo abrangente baseado em suas próprias experiências com
grupos de teatro comunitário em seis países diferentes. O community theatre é considerado pelo autor como um
instrumento importante por meio do qual as comunidades podem compartilhar histórias coletivamente, participar
de um diálogo político e desconstruir a crescente exclusão e marginalidade de grupos de cidadãos. É praticado
em todas as partes do mundo por um número crescente de pessoas.
350
NICHOLSON, Helen. Applied Drama, the gift of the theatre. Palgrave Macmillan, 2005, UK, p. 10.
351
EPSKAMP, Kees. Theatre for Development. An introduction to context, applications and training. London
and New York: Zed Books, 2006. p. 11. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
136
discussões terminológicas, para efeito deste estudo, acreditamos que optar pelo uso do
conceito do teatro pela comunidade seja mais pertinente. Ele é preciso, reflete a dinâmica de
um teatro que surge a partir da comunidade, que emerge dela e a ela pertence. Ele nos será útil
para dialogar não só com os exemplos a seguir, como também com os que serão investigados
no capítulo seguinte.
A transição de um teatro que é levado às pessoas para um teatro que é feito pelas
pessoas, premissa do teatro pela comunidade, tem como exemplo marcante a experiência do
escritor Ngugi wa Thiong`o 353 descreve a sua vivência enquanto coordenador de um grupo de
teatro naquela comunidade em 1976. Thiong`o foi procurado por uma moradora do local que
centro comunitário, um barraco com quatro salas e paredes de barro, era utilizado para
acomodava.
A peça Nagaahika Ndeenda (Me caso quando quiser), escrita por Thiong`o, em
falava sobre a história de luta pela terra e pela liberdade do povo queniano. A escolha da
352
WA THIONG’O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London:
James Currey.1986. p.44 -45. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
353
Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em 1938 no Quênia. A partir da experiência em passou a escrever, além de em
língua inglesa, também em Gĩkũyũ. Seu trabalho inclui romances, pecas, contos, ensaios, artigos eruditos,
críticas e literatura infantil. Ele é fundador e editor do jornal Gikuyu-language, Mutiiri. Foi exilado quando saiu
da prisão em 1977. Vivendo nos Estados Unidos lecionou por alguns anos na Yale University e desde então é
professor de duas cadeiras na New York University, Literatura Comparada e Estudos da performance; leciona
também na University of Califórnia.
137
língua local para a escrita e representação da peça foi um desafio para o autor. Educado em
qual os interesses britânicos predominavam a uma neo-colônia com as portas abertas aos
O espetáculo foi apresentado durante nove meses em ensaios abertos assistidos por cerca
de trezentas pessoas. A dança e o canto, elementos fortes da cultura local, foram incorporados
ao espetáculo. Thiong`o afirma que: “O teatro voltou a ser o que ele havia sido um dia - um
festival coletivo.” 355 O sucesso da peça, que atraiu público também de outras regiões,
assustou o governo que agiu com violência. Em novembro de 1977, o governo do Quênia
proibiu as apresentações de Ngaahika Ndeenda; Thiong`o foi preso no mesmo ano e banido
354
WA THIONG`O, Ngugi. Decolonising the mind - the politics of language in African Literature. London:
James Currey.1986. p.45. Trecho livremente traduzido por mim, com revisão de David Herman.
355
Ibidem, p.57.
138
impacto no teatro queniano. Cresceu um movimento teatral que defendia o uso das línguas
africanas no palco; o próprio Thiong`o passou, a partir daquela experiência, a militar pelo
Escritores quenianos não tem outra alternativa a não ser retornar às raízes,
retornar às fontes de seu ser, nos ritmos da vida, da fala e das linguagens das
massas quenianas para que elas possam estar à altura do grande desafio de
recriar em seus poemas, peças e romances a grandeza épica de sua
história. 357
africanos. Aqui no Brasil, também existem registros do teatro pela comunidade. Exemplo
disso é a pesquisa realizada por Zeca Ligiéro no final da década de 70, intitulada Teatro e
comunidade - uma experiência. 358 O estudo relata a vivência do professor com um grupo
amador de teatro em São Gonçalo. Ligiéro foi convidado pelo Departamento de Cultura do
Estado do Rio de Janeiro para realizar um “curso de teatro” na região. O primeiro contato do
professor com o teatro realizado na região foi por meio de um festival de teatro amador.
Ele se surpreendeu ao constatar que os grupos locais optavam, quase sempre, por um
repertório motivado por imitações de espetáculos do teatro profissional que haviam visitado
São Gonçalo. De acordo com Ligiéro: “Eles pareciam ignorar o que é fazer teatro para a sua
própria comunidade.” 359 Por este motivo, o professor estabeleceu como metas para o “curso”
instigar os integrantes a descobrir a sua maneira própria de fazer teatro, provocar uma
reflexão sobre a sua realidade e recriá-la através da cena. Para ele, o teatro deveria surgir a
356
Ibidem, p.61.
357
Ibidem, p.73.
358
LIGIÉRO, Zeca. Teatro e comunidade: uma experiência. Uberlândia: Universidade de Uberlândia,1983. A
reflexão sobre esta experiência é desenvolvida por Ligiéro em publicação mais recente. Cf. LIGIÉRO, Zeca.
Teatro a partir da comunidade. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2003.
359
Ibidem, P.3.
139
Outro registro, um pouco mais recente, vem de Santa Catarina. Entre 1991 e 1998, a
apenas a apresentar cópias de programas de humor da televisão. A partir dali uma parceria
entre a universidade e o grupo se firmou 360; coordenado por Nogueira o objetivo da parceria
cultura de Ratones. Juntos eles criaram três peças, que resultaram de processos de um ano e
meio cada: País dos Urubus, História do Não sei e A Outra História do boi.
do grupo de Ratones. A primeira peça abordava a história de um país muito corrupto, onde
tudo acontecia ao contrário de como deveria acontecer, como por exemplo, o objetivo do
ministro da educação que era ensinar as crianças a não tomar banho e falar palavrão. O tema
foi levantado pelo grupo de adolescentes e aproveitado pela equipe da universidade como
tema da peça.
facilitadores pelas suas possibilidades simbólicas. Não sei era um personagem em busca de
sua identidade de gênero, a história surgiu a partir de dúvidas dos adolescentes sobre as
mudanças ocorridas em seus corpos naquela etapa da vida. A terceira peça criada em Ratones,
A Outra História do boi, tinha como tema uma manifestação cultural do Boi mamão, própria
360
O projeto tornou-se um campo de estágio para alunos da Universidade do Estado de Santa Catarina –
UDESC.
140
daquela região, este espetáculo serviu como um resgate da memória cultural da comunidade.
Márcia Pompeo explica que: “Nós não chegamos a Ratones com uma peça teatral pré-
Ao descrever os três espetáculos, Nogueira destaca o fato de que aquele projeto de teatro
não fora criado para funcionar como um fórum para identificar e resolver os problemas da
comunidade. “O trabalho em Ratones tinha seu foco na prática teatral a ser desenvolvida por
realidade, mas não era uma simples cópia de aspectos da vida quotidiana. Era uma abordagem
Paulo Freire, defende a idéia de que é possível para uma comunidade desvelar e transformar a
361
NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Buscando uma interação teatral poética e dialógica com comunidades.
Revista Urdimento 4/2002. p. 70 - 89.
362
Ibidem, p.84.
363
Uma das etapas do "Método de Paulo Freire", expressão universalizada como referência de uma concepção
democrática, radical e progressista de prática educativa, é a codificação. Trata-se de uma representação ou a
ilustração (desenho ou fotografia) de um aspecto da realidade, de uma situação existencial construída pelos
educandos em interação com seus elementos. O mecanismo proporciona uma percepção distanciada da realidade
pelos indivíduos, ela passa a ser observada, analisada. Freire admitiu também a eficácia da dramatização como
codificação: "Funcionaria a dramatização como codificação, como situação problematizadora, a que se
seguiria a discussão de seu conteúdo." In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. p. 118.
364
Ibidem, p. 87.
141
escolha por levantar temas locais por meio de uma abordagem mais “fantástica”, investigando
comunidade, diferencia, e muito, este projeto, daqueles que, como vimos anteriormente,
efetiva participação comunitária a emersão de formas mais artísticas e menos áridas de contar
abordagens instrumentais e incolores. Atualmente, embora não possamos afirmar que projetos
mundo todo, além de adotar métodos mais participativos têm explorado as possibilidades do
palco como um espaço que vai além de uma arena para a discussão de problemas locais, mas
como um lugar onde a cultura, as memórias, lutas e conquistas de uma comunidade podem ser
A explosão deste leque de estilos e formas de expressão próprias das comunidades não
pode ser explicada somente a partir do ponto de vista dos que aplicam o teatro, e que teriam
gradualmente percebido que a natureza de sua relação com os grupos comunitários deveria
oferecer, ou ceder, mais espaço a voz dos “excluídos.” Esta transição acontece em razão
eliminar a mediação dos que vem “de fora” e seguir em busca da construção de uma narrativa
própria - alternativa.
Aplicar significa sobrepor, apor, empregar em alguém; aplicado quer dizer que se
aplicou, que foi sobreposto. 365 Como uma injeção que se aplica em alguém, passivo, paciente.
365
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Miniaurélio: o mini dicionário da língua portuguesa. Curitiba:
Ed. Positivo, 2008. p.130.
142
Helen Nicholson oferece relevante observação quando atenta para a questão de que no campo
do teatro aplicado é importante levantar o porquê, com que intenções ou em quem o teatro é
empregado. Curioso é o fato de que o termo teatro aplicado nos traga a imagem de uma
prática que é posta sob alguém, enquanto que a sua própria teoria, caminhe em direção
contrária, defendendo a ideia de um teatro que surge de alguém. É neste ponto que cabe a
agentes da “cura”.
descobrindo a cada dia novos contextos para o acontecimento teatral, refletir sobre o porquê,
para quem acredita que deva ser garantido à comunidade o seu verdadeiro protagonismo.
Mais uma vez o que está em jogo aqui é a tensão entre o poder da narrativa dominante e
dependência dos “vetores de baixo”; e as iniciativas que colaboram com a realização de outra
história, ações imunes a vícios perigosos como aquele alimentado pela noção de que alguém,
atrasado, precisa ser assistido ou atendido por outro alguém, supostamente mais evoluído. As
ações do teatro aplicado podem incidir sobre a estrutura social como forma de mantê-la como
O palco é um espaço que hoje faz parte da realidade de muitas favelas do Rio de Janeiro.
corpo dos moradores dessas comunidades populares. Diversas iniciativas, promovidas por
atores sociais “de dentro” das comunidades, por grupos ou organismos externos a elas, “de
fora”, têm criado a oportunidade da favela contar a sua própria história. Em contraponto ao
práticas e produções artísticas oriundas do seu território abrem brechas para que um novo
discurso, uma narrativa alternativa ganhe vez. Como vimos no segundo capítulo, essa
produção cultural, com muita freqüência elege a própria favela como o personagem
protagonista de suas obras. Nas letras do rap, nos versos da literatura marginal, ou em peças
Também no capítulo 2 abordamos que este novo cenário de cidade, e de país, porque o
fenômeno não se restringe ao Rio de Janeiro, que alarga o diálogo entre diferentes segmentos
da sociedade criando novas redes de sociabilidade, começa se desenhar com mais força nos
anos 90, quando ocorre a explosão do terceiro setor e dos projetos que apostam na arte como
atividades artísticas assumem um papel quase que de “curandeiras” das feridas abertas pelos
problemas estruturais provocados pelo abandono do Estado e pela privação dos bens públicos.
tônica do discurso de muitos desses projetos que conquistaram destaque na mídia. No lugar
apenas das más notícias sobre o crescente poder das facções armadas do tráfico de drogas que
144
dominam o espaço da favela, as páginas dos jornais passam a divulgar os bons resultados de
Com grande velocidade, novas redes de sociabilidade criaram tramas que envolvem a
seus múltiplos parceiros. A trama, ao mesmo tempo em que favorece o surgimento de ações
criativas com o potencial de trazer à tona a voz dos vetores “de baixo”, obriga a negociação
entre os interesses de seus diversos atores, entre eles, aqueles que representam os vetores “de
cima.” Diante desta intricada transação, social, econômica, política e cultural, parece
comunidade/favela é de fato autora, de fato favela pela favela, ou mero objeto do interesse de
grupos, representantes dos vetores “de cima”? Ou ainda, no que diz respeito ao foco deste
um teatro que responda a dinâmica do pela comunidade, como acabamos de ver no terceiro
capítulo?
exemplos de três grupos teatrais. O primeiro deles, o grupo Nós do Morro é uma referência
entre as práticas teatrais desenvolvidas com moradores das comunidades faveladas no Brasil.
dentro da favela do Vidigal, e também fora dela, reserva ao grupo um lugar de destaque neste
trabalho. Mas a sua trajetória não é um exemplo raro apenas no campo do teatro comunitário,
representa também uma experiência única na História do Teatro Brasileiro. É o que afirma a
Uma história de grupo que é uma exceção, sem paralelo qualquer no passado
recente de nossa cena. (...) Não há registro de qualquer grupo proveniente de
uma realidade comunitária que tenha conquistado projeção inquestionável
em nosso teatro, como é o caso do Nós do Morro. (...) É essencial, portanto,
reconhecer como, em cerca de vinte anos, a paisagem teatral e humana do
Rio de Janeiro foi alterada por obra e graça de um pequeno grupo que
acreditou em si e resolveu apostar no seu desejo de fazer acontecer. O grupo
Nós do Morro se inscreveu no tempo, mudou a História do Teatro
Brasileiro. 365
De acordo com Brandão, ao longo dos hoje mais de vinte anos de vida, “não foram
poucas as realizações – O Nós do Morro tem uma folha de serviços impressionante, um ritmo
de trabalho invejável.” 366 Durante as últimas duas décadas, tempo em que o grupo construiu
passo a passo a sua história “em etapas progressivas de muita luta, mas consolidadas” 367, não
como também em instâncias mais amplas nos aproximará de uma compreensão sobre, por
aplicado atualmente em atividade no território da luta. Entre elas, as que surgiram depois do
Nós do Morro e que nos servirão como exemplos mais recentes, incluídos no vasto leque de
ações teatrais presentes em âmbitos comunitários hoje: o Grupo Código (Japeri, Baixada
Fluminense), que é o resultado da extensão das ações do grupo do Vidigal e a Cia. Marginal
(Nova Holanda, Complexo da Maré), uma iniciativa que nasce no Centro de Estudos e Ações
organização que, assim como o Nós do Morro e o Código, surge a partir da mobilização de
365
BRANDÃO, Tânia. Paisagens de luz e outras histórias. In: PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos.
Coordenação editorial e edição. Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009. p.131.
366
Ibidem, p. 132.
367
Ibidem, p. 131.
146
comunidade-mãe. 368 Mesmo que este capítulo se dedique principalmente ao estudo do Nós do
Morro, trazer esses outros dois exemplos é importante. Primeiro porque um deles reflete o
impacto da ação do Nós do Morro também em outra comunidade, Nova Belém, Japeri;
segundo porque são iniciativas mais recentes, que já nascem inseridas no contexto atual das
novas redes de sociabilidade; terceiro porque, enquanto práticas do teatro aplicado, elas
compartilham com o Nós do Morro, uma mesma intenção original: criar, a partir da parceria
entre a comunidade e os artistas, processos criativos cuja meta é estabelecer um diálogo com
Como veremos a seguir, a história do veterano Nós do Morro mostra que para selar a
relação entre palco e platéia, e fazer acontecer o teatro dentro do Vidigal, o grupo descobriu
que precisava “contar” a sua própria comunidade. Para consolidar o palco no Vidigal, foi
preciso tornar a própria favela, a sua personagem central. Hoje, a sua história já ultrapassa
geografia do morro, e deixa a sua protagonista falar também em outros lugares. Se por um
lado, alargar o horizonte de atuação, passando a dialogar não apenas com novas platéias, mas
também com outros atores sociais como patrocinadores, veículos da comunicação, mídia,
critica especializada, empresas, mercado, marketing, traz muitos benefícios, de outro, pode
também oferecer riscos. O principal deles sendo o de ter que conviver com o assédio de
vetores, com interesses nem sempre de acordo com os valores de uma organização, cuja
Diante desta contradição, que a realidade contemporânea impõe, caberá às iniciativas como as
368
Em 2006, após um intenso trabalho de campo no Nós do Morro que começara em 2003, quando iniciei a
pesquisa direcionada ao Mestrado, senti a necessidade de me aproximar de outras ações teatrais no âmbito das
favelas do Rio. A minha intenção era encontrar pontos de afinidade entre a experiência do grupo e outras mais
atuais, principalmente no que diz respeito ao uso da abordagem dialógica e a transformação da
favela/comunidade como personagem da cena. Desde 2006 venho acompanhando a trajetória do Grupo Código,
em Japeri. A sede do Código está situada na comunidade de Nova Belém, Japeri. Embora a área não seja
considerada favela, as suas características de extrema pobreza nos deixam considerá-la também como território
da luta. Em 2007, conheci a Cia. Marginal, cuja sede está na favela de Nova Holanda, Complexo da Maré.
147
destacadas por este trabalho e que serão mais profundamente analisadas a seguir, o desafio de
transitar pelas tramas das novas redes de sociabilidade, defendendo os seus interesses, que a
ebulição do teatro político das décadas anteriores e motivados pelo desejo de vivenciar
experiências teatrais mais próximas das camadas populares, decide apostar na criação de um
núcleo de teatro dentro da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro. Em 1986, nasce o grupo Nós
do Morro, fundado pelo ator e diretor Guti Fraga, em parceria com Fred Pinheiro, Fernando
Mello da Costa, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Maria José da Silva. Naquele ano, o grupo
teatro, que apenas havia visitado o morro em curioso episódio a ser contado mais adiante,
ganhou naquela favela outro papel, não se tratava mais de um visitante representado por
atores do asfalto; ele ganhou voz e corpo na expressão dos próprios vidigalenses. Naquela
favela, longe das salas sofisticadas da cena carioca, o teatro foi aplicado.
Nos primeiros anos de sua existência, o Nós do Morro selou uma forte comunhão com a
comunidade vidigalense, uma relação que seria responsável pelo crescimento do número de
participantes no grupo, pela duração e originalidade do projeto. Ali, eles consolidaram outro
palco, um espaço no qual se revelou o teatro pela comunidade, que elegeu o Vidigal como
personagem protagonista.
A trajetória do Nós do Morro faz parte de um contexto maior que é a história de sua
pelo grupo foi assegurada, ao longo dos anos, pelo engajamento e participação dos moradores
décadas de 50, 60 e 70. Situado numa das áreas mais valorizadas da cidade do Rio de
Janeiro, a encosta do Morro Dois Irmãos, entre os bairros do Leblon e São Conrado, o Vidigal
luxo.369
das favelas cariocas. A política remocionista foi uma das batalhas enfrentadas pela AMV.
Prefeito do Rio, que alegava perigo de deslizamento das encostas do morro. Na realidade,
procurava ele defender os interesses de uma grande empresa imobiliária, que pretendia utilizar
comunidade contou com a participação também da Igreja Católica. O apoio do Cardeal Dom
Eugênio Salles e a atuação da Pastoral das Favelas 370 exerceram grande pressão junto ao
369
Também a existência de uma pequena praia na parte baixa da encosta tornava a região um convite irresistível
à construção de hotéis. A história da praia do Vidigal sempre esteve diretamente ligada à da favela. Os
moradores do Vidigal freqüentam a praia desde 1940, quando os primeiros barracos começaram a se instalar na
região. Desde 1967, existe no local o Hotel Sheraton, que fora construído no lugar do antigo Hotel Colonial. De
acordo com o relato de moradores antigos da favela, o Colonial teria dividido a praia com uma colônia de
pescadores. Esses pescadores teriam sido os primeiros moradores do morro. A origem do nome Vidigal, também
nos remete à história da localidade; trata-se do sobrenome de um de seus antigos donos. Em 1820, as terras na
encosta do pico do Morro Dois Irmãos, se tornaram propriedade do Major de Milícias Miguel Nunes Vidigal,
autoridade maior na cidade durante o Primeiro Império (1822-31). Vidigal passou a denominar a praia e no
século seguinte, também a favela.
370
A Pastoral das Favelas foi criada em 1977 pela Arquidiocese do Rio de Janeiro para oferecer apoio aos
moradores das favelas, fornecendo inclusive assistência jurídica. A relação com a Igreja é responsável por uma
famosa passagem na vida do Vidigal. Não poderíamos deixar de lembrar a visita do Papa João Paulo II à favela,
em 1980. Segundo o relato de um agente de pastoral de favelas registrado no estudo O Papa e o povo370, o
Vidigal havia sido selecionado entre todas as demais comunidades para a visita do Pontífice, devido ao espírito
de luta de seus moradores. Acontece que o que seria, na ótica do povo, um verdadeiro encontro com a santidade,
149
governo e à opinião pública. Uma letra de música, escrita pelo cantor Sérgio Ricardo,
inspirada pela resistência dos moradores do morro, ilustra bem aquele momento: “No Vidigal
/Tem uma turminha de bamba/ Que não se assusta com as ameaças do rei/ Se vem o mal toda
a favela se levanta/ Tuas tramóias já sei/ Não se brinca com o poder/ Que poder do povo é
371
bem maior.” Com a vitória, a comunidade revigora a sua força política e passa a integrar o
quadro de movimentos associativos, que a partir do final dos anos setenta e início dos oitenta
Os versos do compositor registram também o espírito que tomou conta das favelas
cariocas durante o período da ditadura militar, quando nelas ganharam força, principalmente a
partir dos anos 70, as noções de: trabalho comunitário e movimento social. Como a
comunicação com os canais do Estado superior foi totalmente rompida durante o regime,
surgiu à necessidade de se fomentar ações que buscassem soluções para problemas num plano
mais local, por isso as pessoas começaram a se organizar para criar estratégias de
sobrevivência em suas próprias comunidades. Como nos lembra Renato Boschi, dizia-se que a
favela era “um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação
época.
marcou cenas de total desapontamento. Patrulhas policiais bloquearam a entrada do morro, a multidão se
aglomerou por trás do cordão de isolamento e mal conseguiu vislumbrar a figura do Papa, tal foi a rapidez que o
carro pontifício passou. O trajeto percorrido por João Paulo II, havia sofrido várias melhorias, embora um grupo
de moradores tivesse ido à Prefeitura solicitar que nenhum tipo de “embelezamento” fosse feito na área, para que
a santidade tivesse uma “visão real da favela”. A história é até hoje lembrada por moradores da comunidade. Na
ocasião da visita do Papa, o decreto de desapropriação do terreno do Vidigal para fins sociais já havia sido
assinado.
Após o enfrentamento de setenta e sete, uma disputa judicial foi travada mobilizando moradores e advogados da
Pastoral, até que em 1978, o decreto foi assinado pelo então governador Chagas Freitas.
371
Trecho de música extraído da reportagem de Marcelo Monteiro intitulada: Paraíso cobiçado, publicada em
07/05/2004 no site <http://www.vivario.org.br>
372
BOSCHI, Renato. População favelada do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro, dados, 1970. apud
ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba.(orgs) Um século de favela. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.
15.
373
ALVITO, Marcos e ZALUAR, Alba.(orgs) Um século de favela. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
p. 15.
150
como afirma Rubem César Fernandes, foi durante o período autoritário que a expressão
comunidade ganhou maior peso, atraindo não só no Brasil, como em outros países da América
Latina “um sem-número de agentes sociais.” 374 Isto num momento em que as cidades
inflavam de gente e que, como consequência disso, aumentavam os problemas urbanos. Neste
período a demanda por bens públicos cresceu geometricamente, problemas como espaço para
Rubem César, “foi nestas condições que a palavra comunidade brilhou na imaginação.” 375
escapar dos controles e se alastrar mesmo sob os regimes mais violentos como o de Pinochet,
no Chile. A comunidade iluminou-se com uma “aura positiva”, passou a ser discutida em
“reuniões”, nas quais sentavam num mesmo círculo de cadeiras, lideranças comunitárias,
origens.
374
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
relume Dumará, 1994. p. 34.
375
Ibidem, p. 44.
376
Ibidem, p. 34.
377
A Teologia da Libertação é uma corrente teológica que engloba diversas teologias cristãs desenvolvidas no
Terceiro Mundo ou nas periferias pobres do Primeiro Mundo a partir dos anos 70, baseadas na opção pelos
pobres contra a pobreza e pela sua libertação. Desenvolveu-se inicialmente na América Latina. Estas teologias
utilizam como ponto de partida de sua reflexão a situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã. Esta
151
organizações autônomas, formadas pelos próprios moradores para discutir e levantar soluções
para as questões de suas comunidades. Foi o período também em que a Igreja Católica ganhou
fazer por si só, com as próprias mãos; situadas em espaços abandonados pelo Estado
apresentaram, como afirma o Rubem César um “suporte civil para o aprendizado de uma
pequena cultura de ação não governamental que se formava pelas bases a despeito dos
“rapaziada” jovem da favela e, juntos, imbuídos pelo espírito comunitário e mobilizados pela
núcleo de teatro no morro, batizado, primeiramente, como Projeto Teatro Comunidade 379.
Nos anos 80, o Brasil se preparava para retomada da democracia. O Vidigal, assim
na conjuntura do país, adquiriu mais espaço como ator político, ampliando lutas em benefício
de sua população. Este contexto aumentou a disposição dos artistas do Vidigal em criar, com
situação é interpretada como produto de estruturas econômicas e sociais injustas, influenciada pela visão das
ciências sociais, sobretudo a Teoria da Dependência na América Latina, que possui inspiração marxista.
378
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 46.
379
Cf. PORTO, Marta. Nós do Morro 20 anos. (Ed.) Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009. p. 35.
152
criatividade surgia o embrião do projeto, que passou a pulsar como o coração do Vidigal, a
alma da comunidade-sujeito.
O teatro, por sua vez, começava a se livrar das restrições impostas pela censura dos
militares. O alívio, entretanto, na opinião do crítico Yan Michalski, não impediu que os palcos
“um nítido retrocesso em relação à efervescência que reinava nos anos anteriores, nos piores
momentos de pressão.” 380 Para Michalski, a crise econômica que se abateu sobre o país com o
fim da utopia do “milagre brasileiro” atingiu em cheio o teatro, obrigando-o a optar por
O crítico observa que a década é um momento onde os produtores adotam uma atitude
de prudência, optando por um cartaz que conta com a presença de uma estrela consagrada ou
ainda pela escolha de um texto estrangeiro, aprovado pelas platéias do exterior. Neste
Por um lado, não existe, em geral, uma idéia suficientemente clara, seja no
plano ideológico existencial ou estético, para dar ao empreendimento uma
base de continuidade; por outro, os individualismos exacerbados e a falta de
um real espírito coletivo – frutos em parte, da educação e formação que
prevaleceram nos anos do autoritarismo – tornam problemático o convívio
grupal; e as dificuldades econômicas, aliadas ao quase total insucesso de
público ao qual essas iniciativas são condenadas, acabam por impossibilitá-
las de desenvolver e aprofundar uma proposta definida de trabalho. 381
(grifos nossos)
Em contraponto a este cenário descrito por Michalski, nasce o Nós do Morro, uma
iniciativa que, naquele momento, ainda que embrionária e bem distante do circuito
380
MICHALSKI, Yan. O Teatro sob pressão – uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.
87.
381
Ibidem, p. 89-90.
153
profissional, desafiava a tendência dos anos oitenta, e prometia surpresas nos seguintes. Guti
Fraga abandonava uma carreira individual para acreditar na idéia de um teatro de grupo.
Mas, embora a década de 80 tenha sido identificada pelo crítico como um retrocesso em
relação à verdadeira “trincheira teatral” instaurada contra o regime militar nas décadas
anteriores, que rendeu à cena e à dramaturgia brasileiras talvez o momento mais fecundo de
sua história, os anos oitenta marcam também um tempo em que alguns artistas, como os do
Nós do Morro, persistiram na ideia de cruzar a fronteira do circuito oficial para levar o teatro
Foi o que aconteceu no contexto urbano do Rio de Janeiro durante aquela década.
Cardoso, o diretor Amir Haddad reivindicou um espaço “livre público da cidade como o mais
382
importante local para as suas encenações e manifestações artísticas.” O grupo de Haddad,
municipais da época e realizou no período, explica Cardoso: “Uma extensa incursão teatral
em vários locais da cidade, na busca de um espaço livre, aberto, que não poderia ser
Tá na Rua revelam um curiosa história, que guarda significativa relação com a origem do Nós
do Morro. Ricardo Cardoso Brugger destaca uma entrevista concedida por Haddad ao
arquiteto e urbanista Ítalo Campofiorito, que explica o episódio. Na entrevista Amir Haddad
382
CARDOSO, Ricardo Brugger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn
Furquim Werneck. (org). Espaço e Teatro. Do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2008. p. 90.
383
Ibidem, p. 90.
154
experiências no espaço aberto da cidade. A investida dos dois diretores no teatro ao ar livre
época pela Fundação Rio (depois Rioarte). Como explica Brugger, as inter-relações entre
teatro e cidade, como aquelas que naquele momento se manifestaram, têm o potencial para
entre os diversos segmentos da sociedade.” 385 De fato, como veremos a seguir, a incursão do
Tá na Rua no Vidigal é narrada como um episódio marcante na vida de Luiz Paulo Corrêa e
Castro, jovem morador da favela, que naquela época, motivado pela visita do Tá na Rua e
influenciado pelos artistas que moravam no local, agarrou de vez o destino do Nós do Morro.
384
HADDAD apud CAMPOFIORITO, Italo. Enquete Tendenciosa. In: Revista do IPHAN, no. 23 1994. p.243-
244. apud CARDOSO, José Ricardo Brugger. Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA,
Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7
Letras,2008. p. 91.
385
Ibidem, p. 92.
159
De acordo com Corrêa e Castro, nos anos oitenta, o morro era uma espécie de província
chamado Bar-raco era um dos pontos altos desse encontro. Lá se misturavam no bate-papo,
usando as palavras de Paulo, a “galera cabeluda doidona dos prédios, cabeça anos 70” e a
cabeluda”, e Paulo, da “rapaziada do morro.” A interação entre essas duas “tribos” gerou o
“cabeludos”; esses por sua vez dispostos a compartilhar o saber com a “rapaziada”. 386
Segundo Fraga, o núcleo seria a oportunidade de provocar uma interação entre os grupos que
ocupavam o Vidigal e, sobretudo, oferecer o acesso à arte aos moradores menos favorecidos:
Para Luiz Paulo Corrêa e Castro, o Paulo Tatata, que havia até aquele momento tido
pouco contato com o teatro resolveu apoiar a ideia dos “artistas ripongas”:
Eu me lembro que a primeira peça que eu assisti foi o Guti que me levou,
Adorável Júlia, com a Marília Pêra. A gente não tinha acesso, mas eu acho
que era mais por preguiça. Uma coisa que me marcou muito também foi uma
vez que o Guti conseguiu levar o Tá na Rua no Vidigal. A verdade é que o
teatro não estava na nossa pauta, a gente queria era jogar bola. Mas os
artistas abriam caminhos, lá tinha pintor, escultor, era outra realidade. Eles
indicavam peças, emprestavam livros, era um convívio mesmo, uma troca de
informações, além disso, a vida liberada deles, os ripongas, a cabeça anos
70, era tudo novidade. 388
386
Guti Fraga já trabalhava como ator num grupo de teatro amador no Mato-Grosso do Sul, quando resolveu vir
para o Rio de Janeiro se profissionalizar na Escola de Teatro Martins Penna e ingressar na faculdade de
jornalismo; Fernando Mello da Costa havia chegado do Rio Grande do Sul e abandonado a carreira de ator para
trabalhar como artesão e cenógrafo. Os dois se encontram no Vidigal no final da década de setenta, quando
Fraga, para sobreviver no Rio, começou a trabalhar confeccionando bolsas no ateliê de Mello, instalado no
Vidigal. Entre uma bolsa e outra, surgiu a idéia de criar no morro um núcleo de teatro.
387
O depoimento de Fraga esclarece a distinção entre as classes que ocupavam o Vidigal na época: a favela
(moradores pobres, residindo em barracos) e a não favela (moradores dos prédios e casas da parte inferior do
morro).
388
Em entrevista pessoal 14/08/2003.
160
A parceria rendeu frutos. Corrêa e Castro firmou ao longo dos anos o seu posto como
chegaria em 1986, quando Fraga fora convidado para realizar um projeto no Centro Cultural
Corrêa e Castro conta que na época andavam pelo Vidigal diversos tipos de
“personagens”. Os que moravam nos prédios, parte inferior da encosta do morro, era o pessoal
da classe artística, por lá passaram pintores, escultores, atores e cantores, alguns bem
conhecidos. Os casarões eram ocupados por famílias mais abastadas e tradicionais; subindo a
391
encosta, crescia a favela. Os moradores mais pobres ocupavam barracos nas partes médias
e altas do morro. O grupo surge a partir do diálogo estabelecido entre alguns artistas
Luiz Paulo Corrêa e Castro. Guti Fraga, Fernando Mello e Fred Pinheiro 392 trocam a “praça”
profissional dos teatros do “asfalto” carioca, pelo projeto de difundir e democratizar o teatro
no Vidigal.
389
O Centro Cultural Padre Leeb foi fundado pelo padre austríaco Humberto Leeb e por Joana Batista Costa. O
Padre Leeb, sacerdote da Congregação dos Oblatas de São Francisco de Sales, chegou ao Brasil em 1976, e
fundou um centro social em Porto do Mato comunidade carente no Sergipe. Após essa primeira experiência o
padre veio para o Rio de Janeiro, onde implantou na favela do Vidigal um Centro de Encontros e Ajuda Social e
Cultural. O Centro pertencia a uma escola de missionários alemães. Em 1995, assustados com a violência
encerram as atividades no Vidigal.
390
Texto escrito por Guti Fraga no programa da primeira peça montada pelo grupo: Encontros (1987). O
programa foi escrito à mão, reproduzido e distribuído aos espectadores.
391
Os moradores das classes média e alta dividiam a região com os moradores pobres; este forte contraste entre
classes é, até hoje, uma característica marcante no local, apesar de a violência gerada pelo avanço do tráfico de
drogas ter ao longo dos anos espantado aqueles moradores mais favorecidos.
392
Na época, os três artistas já atuavam no mercado profissional. Fraga como ator, Mello da Costa como
cenógrafo e Fred Pinheiro como iluminador.
161
entre os anos de 1986 e 1991. O Centro se tornou, no período, uma referência de lazer e
Peter Brook, verdadeiras explosões de vida. De fato, as primeiras produções do Nós do Morro
tinham que ser cheias de vida e vibrantes. Isto por que, o grupo de artistas fundadores junto
com alguns jovens da favela, interessados em aprender teatro, tinha pela frente o desafio de
conquistar uma platéia cuja maioria dos indivíduos sequer havia colocado os pés em um
desenvolver performances que falassem com humor e irreverência sobre o universo da favela.
vidigalense. O movimento que começa com a interação entre os artistas, que absorveram e
conteúdos artísticos trazidos pelos artistas, transforma-se aos poucos num movimento próprio
da comunidade/favela, por que passa a ser produzido por ela e para ela – teatro pela
comunidade. Isso nos permite afirmar que o teatro do Nós do Morro reflete com legitimidade
platéia. De fato, os depoimentos, fotos e vídeos documentados pelo próprio grupo 394
393
Em depoimento ao Jornal O GLOBO (11/06/88) Guti Fraga, principal idealizador do Nós do Morro, conta
que noventa por cento do público da favela havia ido ao teatro pela primeira vez para assistir uma peça do Nós
do Morro. Disse ele: “Eles deliram, aplaudem em cena aberta, riem e comentam, tem uma espontaneidade e um
entusiasmo muito grandes. É emocionante.”
394
Por ocasião da realização de minha pesquisa de mestrado tive acesso a uma série de documentos que me
foram cedidos pelo grupo Nós do Morro.
162
retratada no palco, sob uma perspectiva artística. Naqueles instantes, pouco importava o
espaço físico precário do salão, ou mesmo certa desordem provocada pela excitação do
momento; o mais importante é que pulsava o “centro dinâmico”, como escreveu Etienne
palpitante”. O autor rompe com os limites da sala tradicional de espetáculos, que obedecem
segundo sua inventiva analogia à imagem de um cubo aberto em um dos lados, explodindo as
possibilidades do evento teatral para um espaço livre, sem limites, onde vibra a relação atores
e espectadores, como que envoltos em uma esfera. Neste sentido, podemos dizer que a
Nós do Morro estaria de acordo com o princípio esférico pensado por Souriau. Segundo ele:
395
SORIAU, Etienne. O cubo e a esfera. In: O Teatro e sua estética, Redondo Júnior. 2o. volume. Arcádia
Lisboa, s/data. p.35-36.
163
Por tudo isso, podemos ampliar o nosso entendimento sobre a implementação do palco
formava uma platéia curiosa, que acompanharia suas realizações em espaços variados dentro
que passou a se deslocar por diversos lugares dentro da favela. É essa esfera que, com seus
dificuldades enfrentadas pelo Nós do Morro. Em 1991, suas atividades são transferidas do
Centro Cultural Padre Leeb para ao auditório da Escola Municipal Djalma Maranhão. O
padre havia firmado um convênio com a Secretaria Municipal de Culturas, que passou a
Avenida Niemeyer, entrada do morro do Vidigal. Nessa escola, durante alguns meses o Nós
do Morro funcionou, mas devido à total falta de infra-estrutura uma nova mudança foi feita
salas durante o período da noite, depois, um espaço vago nos pilotis da escola.
num pequeno teatro, como revela o depoimento de Fernando Mello da Costa: “Isso aqui era
tudo pedra, tinha só um buraco ali. Um dia o Guti perguntou: Será que a gente consegue
quebrar aquela pedra? E a gente quebrou. Depois com sobras de material da minha
396
Em entrevista pessoal 9/12/2003.
164
A renda obtida pelo evento Show das Sete 397, colaborações de comerciantes da
acomodação para oitenta espectadores. Somente em 1998, o grupo consolida uma sede
própria e consegue recurso suficiente para equipar o seu pequeno teatro. Atualmente, suas
atividades se dividem entre o Casarão 398, onde acontecem aulas para suas turmas regulares, e
tanto no que diz respeito à integração de membros para o grupo, quanto à formação de uma
seu palco, deixando de lado a platéia, por que de fato, foi esse pacto selado entre um e outro, o
pilar fundamental de sua vivência dentro do Vidigal. A experiência teatral, quando vivida em
espaços populares, como uma favela carioca, nos deixa pensar sobre a essência do Teatro, e a
sua mais forte vocação que é comunicar, emocionar, mobilizar uma platéia. Lá reside a força
A ousadia dos artistas inventores do Nós do Morro reside no fato deles terem rompido
com o teatro eleito como “legítimo” e apostado na idéia de criar outro teatro, num outro lugar.
O impulso criativo de Guti Fraga, Mello da Costa e Fred Pinheiro ganha força primeiro
397
Em 1990, o Nós do Morro inventa o Show das Cinco, um espetáculo de variedades que ganha a comunidade,
principalmente as crianças; elas passam a se enfileirar na porta do Centro Cultural Padre Leeb. O Show era
comandado por Guti Fraga e as atrações eram os jovens talentos do Vidigal. Simulando um programa de
auditório, aos domingos, o show incluía números de dança, humor, dublagens, música e sketches de teatro. A
partir de 1992 o evento passa a se chamar Show das Sete.
398
O Casarão Branco, antigo ateliê do pintor Giuseppe Irlandini, havia sido herdado pela esposa do artista. Guti
Fraga negociou com a proprietária, que acabou cedendo a casa para as atividades em troca do pagamento do
IPTU, luz e água. Mais tarde o imóvel foi doado ao grupo após a compra pela organização não-governamental
IBISS – Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social. A mansão de três andares comporta escritórios da
administração, um amplo salão para aulas e ensaios, uma cozinha, duas salas para aulas (uma o antigo porão),
uma biblioteca, uma sala de vídeo e banheiros. A área externa é bastante ampla, arborizada e possui vista para o
mar.
165
cultura local.
anterior, uma troca de influências entre aqueles que traziam o conhecimento teatral e aqueles
apresentava aos artistas a sua cultura, a sua linguagem, o seu universo. Nos espetáculos
Encontros (1987) e Biroska (1989), por exemplo, o Nós do Morro escolhe colocar em cena o
momentos, foram fundamentais para que o grupo ganhasse, como já vimos, a adesão de um
uma postura que previa antes de tudo o reconhecimento e valorização dos elementos da
cultura local. Tomando como parceiros os próprios moradores da favela, eles interpretaram
aquela cultura, não exatamente com um propósito etnográfico, mas com a intenção de
realidade.
Vidigal, àquela vivida por Hélio Oiticica no Morro da Mangueira, na década de sessenta.
Impregnado também por uma atitude dialógica, Oiticica se redescobre como artista plástico ao
166
mergulhar no universo daquela favela. Lá ele descobre o corpo, o samba, o ritmo e a pulsação
da Mangueira.
artista utiliza panos, fragmentos de tecidos, plásticos, materiais semelhantes àqueles usados
pelos favelados na construção de seus barracos e cria espécies de capas, bandeiras, estandartes
Em A Estética da Ginga, Paola Berenstein Jacques afirma que Oiticica não imitou os
favelados ou simplesmente ilustrou a favela em sua arte: “Ele, viveu na Mangueira, na sua
trabalho de artista sua experiência no morro.” 399 Assim como ele, Guti Fraga, Mello da Costa
aqueles espaços. Iniciativas como a dos artistas do Nós do Morro, bem como a de Hélio
Oiticica representam uma ação favorável para a reversão da imagem negativa sobre a favela,
já que através da arte elas contribuem com o fortalecimento dos valores e tradições dessas
comunidades em seu próprio âmbito, como também divulgam positivamente a sua cultura
inserção dos artistas na comunidade esteve de acordo com a atitude dialógica, ela permitiu
que se estabelecesse um forte elo entre eles e os primeiros integrantes do grupo, moradores da
favela; num segundo momento, após firmada esta primeira aliança, o pacto se estendeu
Mas todo esse movimento, importante observar, tem como ponto de partida o desejo de
criar uma síntese cultural, ao contrário de uma invasão cultural. A síntese cultural, conceito
399
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga. A Arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. p.36.
167
desenvolvido por Paulo Freire, acontece quando o processo de aproximação com uma dada
educador: “Os investigadores ainda que cheguem de outro mundo chegam para conhecê-lo
com o povo e não para ensinar ou transmitir, ou entregar nada ao povo.” 400 Constatamos,
desenvolvidos pelo grupo naqueles primeiros anos de vida são compatíveis com as idéias
autoria de Freire, que passaram a ser adotadas por experiências do teatro aplicado. A atuação
seus integrantes o talento para a dramaturgia. Luiz Paulo Corrêa e Castro, nascido e criado no
Vidigal, é um dos primeiros jovens da favela a se interessar pelas novidades que traziam
aqueles artistas de teatro para a sua comunidade. Paulo Tatata, como é mais conhecido, inicia
Encontros (1987) foi o primeiro espetáculo montado pelo Nós do Morro. Baseado em
improvisações criadas pelos atores, Tatata e Tino Costa, escrevem um texto inspirado no
cotidiano da favela. O espetáculo era composto por esquetes que apresentavam um panorama
péssima qualidade da merenda oferecida na escola, a menina que conta às amigas sobre a
400
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 32ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.180.
168
preocupação de estar grávida, o grupo de jovens na praia sonhando com o dia em que ficariam
ricas. Com a peça, o grupo inicia um currículo de montagens que alternam a encenação de
O próximo passo do autor seria a peça Biroska (1989), que fortalece a relação do grupo
marco no fortalecimento do elo entre o grupo e a comunidade. Não apenas pelo assunto da
peça, mas também pela estética da encenação. O texto, escrito por Luiz Paulo Corrêa e Castro
morro, que acreditando ter ganhado no “jogo do bicho” paga cerveja para todos os
companheiros de bar, ignorando o fato de que tudo não passava de um engano, posteriormente
descoberto pelo protagonista. O enredo brinca com a possibilidade remota que o jogo pode
proporcionar ao brasileiro pobre: a de “ficar rico da noite para o dia”. Na peça, ao contrário de
utilizar um tom dramático para falar sobre a pobreza e a difícil realidade de vida do morador
do morro, o grupo trata a situação de Neguinho com humor. Esse será um ingrediente
favela.
O cenário para a trama reproduzia com exatidão uma biroska conhecida do Vidigal (um
pequeno estabelecimento com terra no chão, paredes de ripas de madeira e telhado de zinco),
iluminação para o espetáculo foi improvisada com latas de leite adaptadas como refletores, e o
401
O trabalho de Luiz Paulo Corrêa e Castro enquadra-se nas definições dos termos: dramaturgo (autor de
dramas) e dramaturg (que colabora na criação coletiva de textos, que executa a adaptação de textos já escritos,
que é uma figura presente e com voz ativa nos ensaios, um colaborador do diretor, uma espécie de conselheiro
literário do grupo). Optei pelo termo dramaturgo, porque sua obra tornou-se ao longo dos anos, cada vez mais
autoral. A sua primeira peça, Encontros (1987), em parceria com Tino Costa, organiza no papel situações
surgidas em improvisações criadas pelos atores. Já a partir de Biroska (1989), suas próprias idéias, sugestões de
situações e conflitos começam a predominar, em parceria com as direções de Guti Fraga e Mello da Costa. Em
todos os processos de criação do grupo, mesmo naqueles em que o autor entregou um texto pré-concebido (É
proibido brincar, Abalou- um musical funk e Noites do Vidigal) foi aproveitado o material proveniente de
improvisações.
169
preço do ingresso equivalia ao valor simbólico de uma cerveja. 402 O elemento musical
da comunidade. Foram incorporados ritmos musicais próprios da cultura dos morros do Rio
elementos visuais, cenário, figurinos e adereços próximos da realidade de uma birosca real da
favela. Além disso, a representação dos atores levava para a cena um comportamento
descontraído, um humor popular, o espírito próprio do morador da favela, que apesar das
dificuldades da vida, não se deixa abater, ri, canta e dança. Um fato curioso é, por exemplo, o
programa da peça. Desenhado a mão, na capa ele trazia o cenário da birosca numa ruela da
favela, um negro apoiado no balcão tomando cerveja e segurando um pandeiro. Com todos
esses recursos o Nós do Morro arrebata a comunidade, tomando-a a partir dali como parceira
fiel. A mágica dessa parceria entre palco e platéia desenvolve no grupo a habilidade de
402
O Nós do Morro adotou como prática a cobrança de um valor simbólico para o ingresso em seus espetáculos.
A partir de Biroska este valor esteve sempre baseado no preço de uma cerveja.
172
Corrêa e Castro assina todos os textos encenados pelo grupo, onde protagonizam o
403
morro e a comunidade. E, embora o Nós do Morro tenha ao longo dos anos montado
carreira são aqueles que encenam a dramaturgia do autor Corrêa e Castro. A criatividade de
seus enredos é surpreendente, sua irreverência e humor são, em grande parte, responsáveis
pela comunicação plena com a platéia vidigalense. Ao contrário de retratar com aridez a
realidade da favela, ele a transforma num cenário fantástico onde até fantasmas podem
personagens inspirados em figuras do Vidigal das décadas de 50, 60 e 70, observa a juventude
nos bailes funks do morro. No início da peça, cena três, Eládio e Waldemar, os espectros mais
velhos, reclamam da “zoeira dos seiscentos diabos”, Ricardo o mais jovem explica que a
"barulheira" vem de um baile funk. Os outros dois curiosos aceitam dar uma "descidinha"
para ver o que está acontecendo lá em baixo. Os três observam o mundo dos vivos, e
nostálgicos, resgatam coisas do passado. Entre os mortais, a trama principal gira em torno de
Maestro e Tininha. Ela tentando conquistá-lo, ele querendo fazer sucesso como MC. Além
disso, tipos curiosos perambulam pelo enredo, como é o caso de Esther e Cleuzéia, irmãs
evangélicas que freqüentam o baile escondidas da mãe. Um final feliz para Maestro e Tininha
Vidigal. A peça resgata a atmosfera dos anos oitenta, quando apesar da incipiente violência
403
Nas duas primeiras experiências cênicas do grupo, Encontros e Biroska, Luiz Paulo Corrêa e Castro fica
responsável por transcrever as improvisações criadas pelos atores. Com isso, ele desenvolve a habilidade para a
dramaturgia. Atualmente ele é o dramaturgo do grupo, foi reconhecido pela crítica especializada no Brasil
principalmente com os textos de Noites do Vidigal (2002) e Burro sem Rabo (2004). De acordo com Corrêa e
Castro não existe um registro dos textos de Encontros e Biroska. As informações sobre os espetáculos estão
baseadas em entrevistas com o autor.
173
ainda havia muita festa e boêmia na favela. Neste texto, mais uma vez o morro aparece não
apenas como um cenário, mas como um personagem vivo, povoado por personalidades e pela
tradição da comunidade. Assim como Abalou, Noites leva para a cena, o passado, o presente,
cenógrafo Fernando Mello da Costa, que dividiu a direção da peça com Guti Fraga, ele recria
as vielas do morro, rampas e desníveis. Uma favela cenográfica, por onde circulavam os
Em Noites do Vidigal, a vida na favela, suas práticas e hábitos estão presentes o tempo
todo no texto de Corrêa e Castro. Das palavras do autor se descola a própria imagem da
favela. Essa imagem se concretiza em cenários que sugerem tanto o espaço geográfico, quanto
alguns ambientes: uma birosca, uma quadra da escola de samba, a casa de Dona Feliciana (um
professor Luís Eduardo Franco do Amaral analisa a obra de Corrêa e Castro e observa o fato
de que no Vidigal construído pelo autor, “os becos e os cantos dizem respeito à arquitetura
peculiar da favela”:
público. Quando introduz uma birosca, ele territorializa seu texto, referência
inequivocamente a favela e seu espaço. 404
De acordo com Amaral “o texto de Luiz Paulo é movido pela necessidade de contar a
favela, de torná-la relato.” 405 O que podemos constatar é que, de fato, na dramaturgia de
relação palco e platéia, e fazer acontecer o fenômeno teatral dentro do Vidigal, o Nós do
Morro descobriu que precisava “contar” a sua própria comunidade, criar uma narrativa
própria. A necessidade de criar uma linguagem que se comunicasse com a platéia vidigalense,
o grupo descobriu também uma estética própria. Para consolidar o palco no Vidigal, foi
preciso tornar a própria favela - a sua personagem central. Envolvendo seus integrantes em
Vidigal, criando um espaço no qual a sua cultura, voz e expressão pudessem se manifestar.
Durante a maior parte do seu tempo de vida, até 2001, quando chega o patrocínio da
Petrobrás, o Nós do Morro sobreviveu sem qualquer suporte financeiro permanente, durante
quinze anos contou muito pouco com apoios externos. 406 A sua sobrevivência dependeu,
instância da própria favela, da contribuição dos comerciantes locais, das famílias dos jovens
404
AMARAL, Luís Eduardo Franco. Vozes da Favela - representações da favela em Carolina de Jesus, Paulo
Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Letras do
Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC, 2003.p.96. A dramaturgia
de Corrêa e Castro é assunto da dissertação de mestrado de Luís Eduardo Franco Amaral, que procura mapear
através das manifestações artísticas das favelas, a cultura da favela e desenvolver o conceito de literatura da
favela.
405
Ibidem, p.99.
406
As primeiras montagens do grupo (até 1988), no Centro Cultural Padre Leeb, receberam, em virtude da rede
de conhecimentos do padre alemão, o apoio da Câmara de Comércio Brasil-Alemanha e de algumas empresas
alemães, que contribuíram com pequenas quantias para a produção de material impresso: folders, cartazes,
programas.
Já em 1996, a renda obtida em suas apresentações, somada colaboração de comerciantes da comunidade e do
Conselho Britânico ajudaram a construção do Teatro do Vidigal. Também a produção do filme Testemunho Nós
do Morro, de Rosane Svartman e Vinícius Reis, colaborou destinando uma porcentagem do orçamento para o
grupo.
175
cobrança do ingresso “simbólico”. Assim, eles conseguiram manter o projeto vivo, afirmando
Mas, embora a experiência tenha tido como ponto de partida a atuação dentro de sua
comunidade, agora a ação do Nós do Morro não está circunscrita apenas ao âmbito do
Vidigal, ela expandiu os seus limites. O percurso que começa bastante enraizado na
comunidade, com foco na formação da platéia comunitária e com um diálogo discreto com o
asfalto, com o passar dos anos ganha repercussão, passa a receber a visita de indivíduos do
asfalto, que sobem o morro para assistir aos seus espetáculos, conquista o acesso ao circuito
profissional do teatro carioca, recebe prêmios, é consagrado pela crítica especializada, ganha
Hoje, todos que se interessam pelo teatro, por experiências artísticas com origem
projeção no âmbito nacional e também internacional. O filho bem criado desgarrou-se de sua
brincar (1998), marcaram o início da carreira do Nós do Morro fora do Vidigal. Em 1998, as
três peças, que haviam estreado no Teatro do Vidigal, ganham uma temporada Casa de
Cultura Laura Alvim. 407 Na época, o grupo já havia recebido dois prêmios: IX Prêmio Shell
de Teatro (1996) na categoria especial por Machadiando e pelo mérito de seus trabalhos junto
à comunidade do Vidigal, e o Prêmio Coca Cola de Teatro Jovem (1997), categoria especial
sucesso de Noites do Vidigal, que rendeu boas críticas, com aprovação inclusive da por
muitos temida Bárbara Heliodora, e à estréia de Cidade de Deus, cujo elenco incluía muitos
atores do Nós do Morro. A partir dali, o grupo cruza de vez a fronteira entre morro e asfalto,
Noites do Vidigal, o grupo estreia Burro sem Rabo (2003), com dramaturgia de Corrêa de
Castro e direção de Fernando Mello da Costa, no Teatro Maria Clara Machado; no ano
407
Na época a Casa de Cultura Laura Alvim, situada na Av. Delfim Moreira, em Ipanema, convidava grupos
para fazerem temporada em repertório. De acordo com o relato de integrantes do Nós do Morro, a repercussão de
seus espetáculos na imprensa e a conquista de espectadores do asfalto, que subiam o Vidigal para assistir
Abalou, foram fatos que motivaram o convite para a temporada na Casa de Cultura.
408
Também merece destaque entre esses fatores, o desenvolvimento do Núcleo Audiovisual do Nós do Morro.
Em 1996, após a realização do filme Testemunho Nós do Morro, os diretores Rosane Svartman e Vinícius Reis
passaram a oferecer oficinas de iluminação, cenografia, atuação, roteiro e direção aos integrantes do grupo. O
grupo ganha autonomia no mercado cinematográfico e produz o seu primeiro curta-metragem O jeito brasileiro
de ser português (2001), escrito e dirigido por Gustavo Mello, ex-aluno das oficinas promovidas por Svartman e
Reis. A equipe também fora formada, quase toda, por moradores do Vidigal. O roteiro ganhou o concurso
Riofilme de curta-metragens, o que viabilizou a sua produção. Em 2002, os atores do Nós do Morro participaram
de uma oficina de preparação para o filme Cidade de Deus , de Fernando Meirelles e Kátia Lund. Os jovens
atores Jonathan Haagensen e Roberta Rodrigues conseguem personagens e participam do elenco do filme. Esses
eventos contribuíram para a visibilidade do grupo. Neste trabalho optei por não aprofundar o estudo sobre esta
vertente de ação cinematográfica do grupo.
180
seguinte, Sonho de uma Noite de Verão, uma intromissão do Nós do Morro no mundo de
Hoje, as produções do grupo têm um alcance ainda maior, viajam por outras cidades do
na Inglaterra. 409 Em 2008, foi a vez de Londres receber a produção do Vidigal. 410 Ao longo
exemplo, a performance dos dezesseis jovens atores do grupo emprestava à primeira comédia
romântica do bardo inglês uma pulsação impregnada de brasilidade. Como novidade, foram
introduzidos trechos escritos por Corrêa e Castro, musicados pelo elenco em ritmos como
repente, samba, rap e reggae. O resultado era um Shakespeare vibrante, que cantava, dançava,
criado pelo e para o Vidigal, e alcança o status de grupo famoso, preparando e inserindo
negociações agora não são mais firmados apenas com a comunidade vidigalense, mas também
409
O espetáculo fez parte do Festival das Obras Completas (Complete Works Festival), que reuniu em Stratford
companhias de teatro do mundo inteiro, cada uma delas representando uma peça de Shakespeare. O convite
partiu da diretora de voz da RSC, Cicely Berry, que mantém, há alguns anos, uma relação de amizade com o Nós
do Morro. Em 2008, à convite do professor e diretor inglês de Paul Heritage, o espetáculo esteve em cartaz no
Barbican Centre, em Londres, participando das comemorações dos 10 anos do festival “Bite”. O Barbican é o
maior centro de multi-arte da Europa e o festival desenvolve há oito anos um programa de caráter único pela
multiplicidade de produções abrangendo teatro, música, artes visuais, dança e comédia, sempre com novas idéias
e propostas artísticas. A parceria com personalidades do teatro britânico começou em 1995, quando Berry visitou
a sede do grupo e ofereceu uma oficina aos seus atores. Na ocasião da visita de Berry, a reportagem O teatro
inglês sobe o Morro (O GLOBO - Segundo Caderno - 18/07/95) destacou o encantamento dos britânicos com o
grupo.
410
Merecem destaque também as montagens de Carmem de tal..., texto e livre adaptação de Corrêa e Castro a
partir da obra de Mérrimée e Georges Bizet, no Teatro Villa Lobos em 2007 e em 2008 Machado a 3 X 4, texto e
livre adaptação de Corrêa e Castro para a obra O Alienista de Machado de Assis.
181
mercado, um movimento natural de quem alargou o horizonte, passando a dialogar com uma
optavam por outras atividades como, por exemplo, música e artes plásticas. Com a mudança,
o aluno passou a cursar todas as atividades, agora com um perfil de disciplinas obrigatórias. O
Nós do Morro deixa de ser um núcleo de livre experimentação teatral e ganha o caráter de
reviravolta vem no momento em que ganha maior visibilidade e pode refletir uma
outro perfil, além de incluir alguns jovens multiplicadores 412 formados pelo grupo, incorporou
mercado e firmar a inserção profissional dos artistas do morro.” 413 De fato, uma mostra de
teatro estudantil realizada anualmente pelo Centro Cultural Banco do Brasil reconhece o
grupo como escola de formação profissional. Na lista das “instituições que se dedicam ao
ensino da arte da interpretação” 414 constavam escolas públicas e particulares, como a Martins
Penna e a Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), além da Escola de Teatro da Universidade
411
Atualmente a estrutura do grupo dividi-se em Jogos Cênicos - Iniciação às Artes Cênicas (8 a 13 anos);
Formação de Ator (14 anos em diante).
412
Jovem ator veterano do grupo que trabalha como educador no grupo, multiplicando os conhecimentos
adquiridos ao longo de sua vivência no grupo. O trabalho não é voluntário, mas remunerado.
413
Nós do Morro 20 anos. PORTO, Marta. Coordenação editorial e edição. Rio de Janeiro: [X] Brasil, 2009.p.
65.
414
Informações extraídas do programa impresso da II Mostra Estudantil de Teatro CCBB. 15 de março a 1º. De
abril de 2007. Neste evento o Nós do Morro apresentou o espetáculo Gota D’Água, com direção de Miwa
Yanagizawa.
182
Para facilitar o acesso dos atores formados pelo grupo aos veículos de audiovisual foi
responsável pelo casting dos atores. Nele, produtores de cinema e televisão podem acorrer e
encontrar atores com o perfil desejado para suas produções.” 415 Hoje as vagas do grupo são
como de outras comunidades do Rio. No início de 2009, foram 600 candidatos a passar pelo
A fusão sóciocultural, fenômeno assim definido por Guti Fraga, mistura no Casarão do
Vidigal, jovens de várias favelas do Rio e até gente que vem de fora do Estado. Embora Guti
Fraga alerte os alunos sobre o “deslumbramento” e avise aos pais: “Se pensa que o Nós do
Morro é para levar alguém para a TV, tire o seu filho” 417, não há como duvidar do fato de que
a estampa dos rostos do Vidigal em novelas da Rede Globo, capas de revistas e jornais, não
tenha colaborado com o aumento da procura por oportunidades dentro do grupo. Mesmo que
Fraga revele a sua preocupação em alertar aos alunos e responsáveis sobre a importância de
“deixar o pé no chão”, o fato é que, pertencer a um grupo que “está na mídia” acaba
São inúmeras as matérias jornalísticas realizadas por diversos veículos sobre as suas
página inteira, anunciava em grande manchete: “A gente até abaixa a cabeça pra você, mas só
se for para receber aplauso depois.” Em seguida destacava que as peças encenadas pelo grupo:
415
De acordo com informações do site do grupo, o departamento funciona desde 2001 e foi o responsável pela
seleção dos atores que integraram os elencos de produções como Cidade de Deus, Tropa de Elite, O Diabo a
Quatro, Xuxa -Gêmeas, O Redentor, O maior amor do mundo, Do outro lado da rua, O passageiro, Anjos do sol,
entre outros filmes de projeção nacional e internacional.
416
Curiosamente observou-se um fenômeno. Entre os candidatos existiam jovens do Vidigal, de outras
comunidades, até de fora do Rio, jovens de outros segmentos da sociedade, inclusive, atores formados por outras
escolas de teatro. Em 2010, como forma de contornar a forte procura por parte de não moradores do Vidigal, o
grupo decidiu oferecer vagas apenas para residentes de sua comunidade.
417
Em entrevista a Mauro Ventura. Duas caipirinhas e a conta... Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 26/08/2007.
Revista O Globo. P. 6.
183
“Mudaram a vida não só de quem assistiu, mas, principalmente, de quem atuou. Porque subir
no palco, para muita gente, foi apenas o primeiro passo para subir na vida.” 418
importantes mudanças ocorridas também nos contextos maiores, da favela, da cidade, do país.
Tudo mudou, e não podia ser diferente. Sem dúvida, ao ultrapassar o limite do Vidigal, o
grupo acumula muitos ganhos, mas de outro lado, passa a conviver com um dilema: até que
específico, de novo cabe perguntar, a quem interessa mais o “projeto”? Qual é a participação e
autonomia da comunidade nele? Encontrar respostas para essas perguntas, não é uma tarefa
fácil. Para tentar escapar de uma análise simplista é necessário olhar novamente para um
nova marca na geografia da cidade e, junto com isso, desbrava caminhos que levam à criação
de novas parcerias e alianças, estabelecidas com diferentes atores sociais. Os meados dos anos
noventa, momento em que tem início a saga do grupo, favorecia a criação de novas redes de
Com a chegada da democracia, que engatinhava no início dos anos 90 após a primeira
eleição presidencial pós-regime militar em 1989, o Brasil afunda numa crise econômica
acompanhada por inflação, dívida externa, deteorização dos serviços públicos e, conseqüente
418
Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 25-01-2007. Rio.
184
aumento da miséria. Como explica Rubem César Fernandes: “A democratização trouxe mais
do que uma “abertura”. Trouxe também uma confusão. Como se não bastassem às
dificuldades econômicas.” 419 Ao mesmo tempo em que se difunde pela sociedade inteira a
contexto das comunidades pobres das grandes cidades crescem, como observa Rubem César,
“os circuitos paralelos e marginais, embalados pelos negócios da droga, que desconheceram a
depressão.” 420 Nas favelas, as quadrilhas do tráfico de cocaína passam a se armar para
garantir o comércio que movimenta o resto da cidade e do país. O cenário é uma herança
Como vimos no início do capítulo, o período autoritário, por haver cortado os laços de
comunicação com o Estado maior, acabou estimulando uma pequena cultura da ação não-
buscar a melhoria da qualidade de vida das comunidades. Rubem César observa que enquanto
democracia “abriu novos horizontes para a presença participativa dos indivíduos-cidadãos.” 421
Dali por diante, mesmo que tivessem permanecido as noções anteriores, a abertura
democrática pôs a mostra e estimulou inúmeros outros tipos de formas associativas, menos
definiu Fernandes - dispersivo. É neste contexto que frutificou o conceito de sociedade civil
419
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 92-93.
420
Ibidem,. p. 94.
421
Ibidem, p. 90.
185
Ocorre uma pulverização de iniciativas que passam a se articular com liberdade por
diversas instâncias do organismo social permitindo o diálogo entre os seus mais variados
Iniciativas privadas que não visam ao lucro; iniciativas na esfera pública que
não são feitas pelo Estado. Nem empresa, nem governo, mas sim cidadãos
participando, de modo espontâneo e voluntário, em um sem-número de
ações que visam o interesse comum. (...) Em contraponto à lógica do poder
que prevalece nas relações entre Estados e à lógica do lucro que orienta a
ação das empresas no mercado, iniciativas empreendidas por cidadãos
afirmam o valor da solidariedade. Um terceiro setor – não lucrativo e não
governamental coexiste hoje no interior de cada sociedade, com o setor
público estatal e com o setor privado empresarial. 423
enxerga uma tendência que se fortaleceu ao longo dos anos 90, estabelecendo-se
civis, e formas tradicionais de filantropia e ajuda que ganharam ainda mais impulso no
período. As ONGs avançaram com força total, mesmo que a sua existência já fosse um caso
Aliás, desde os anos 70, em toda a América Latina, elas já trabalhavam por meio de
projetos subsidiados pela Igreja e por agências estrangeiras. Segundo Rubem César
422
Ibidem, p. 94.
423
OLIVEIRA, Miguel Darcy. Prefácio. In: FERNANDES, Rúbem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro
setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p.11.
186
promoção social.” 424 Esta área abrangente incluía ações no campo da educação popular,
formação qualificada, saúde, direitos das minorias (índios, negros, mulheres), meio ambiente,
visto que as relações com o Estado e com empresas privadas, durante os regimes militares em
surgiram no sul do continente americano as ONGs - parceiras da ajuda que vinha de fora, e
Fernandes, elas surgiram com um caráter emergencial, como uma solução para falta de opção,
que se imaginava ser conjuntural no sistema institucional existente – “centros de pesquisa que
sociais.” 425
O que não se imaginava é que essas iniciativas fossem ter uma longa duração. Afinal,
pesquisas deveriam ser feitas dentro das Universidades, educação, dentro das escolas públicas
e a saúde teria que ser um direito de todos. O advento do Estado democrático decepcionou, e
essas premissas foram paulatinamente deixadas de lado. O que parecia ser uma situação de
garantir aos cidadãos os bens públicos essenciais, e pela ascensão da lógica do mercado.
das ONGs, sobretudo nas áreas urbanas da região Sudeste. Se antes elas contavam mais com a
424
FERNANDES, Rubem Cesar. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 72.
425
Ibidem, p. 66.
187
afirma Rubem César, as características das ONGs “resumem-se com nitidez na ideia do
privado com funções públicas.” 426 Elas são as principais integrantes do time de ações do
terceiro setor, um terceiro personagem que surge no mundo para negociar com outros dois
sobretudo, na realidade de vida de grande parte das comunidades populares dos centros
urbanos brasileiros, onde o desmaio do Estado se tornou cada vez mais evidente, e os disparos
Desde a explosão da década de 90 até agora, parece evidente que por mais positivas que
fossem, ou que sejam, as intenções das ONGs, é difícil escaparem ilesas dos interesses do
capital, que penetram, “de fininho”, nas entranhas de suas ações, mesmo das mais
verdadeiramente solidárias. Ao selar alianças inevitáveis, para não dizer irrecusáveis, com o
segundo setor, elas acabam tendo que se adequar também às demandas das corporações
financiadoras. No início daquela década, quando Rubem César registrava as primeiras páginas
dessa história, ainda era incipiente um tipo de atitude empresarial que o sociólogo chamou de
“ambiente natural e urbanístico”, apenas começava a florescer. Crescia a opinião de que não
era mais suficiente pagar impostos e esperar pelo governo, porque ele já não estava “dando
426
Ibidem, p. 65.
427
Ibidem, p. 98.
188
conta”; surgem as fundações privadas e ganha espaço na retórica das empresas o termo
responsabilidade social.
Os slogans “nós fazemos a nossa parte” ou “somos uma empresa cidadã” se destacam
violência urbana envenena o dia a dia das elites, forçando-as a se indagarem sobre o que pode
ser feito.” 428 A responsabilidade social torna-se assim uma atitude bastante conveniente:
recebe o mérito de “fazer a sua parte”, se sobrepõe ao poder do Estado, muitas vezes
assumindo funções que não são suas e, além do mais, esconde a face nociva da atuação das
corporações, que baseada nas leis do capital são, a rigor, as maiores vilãs da história. Seria
injusto, é claro, não reconhecer que a responsabilidade social se manifesta também por meio
de intenções positivas, genuínas, e que muitas empresas, à medida que obtém mais poder
“responsáveis sociais.”
sendo, aplicados. Muitas vezes, eles não representam uma resposta a um desejo que foi
gerado pelas comunidades a serem “atendidas”, são criados por aqueles que, sentados nos
De acordo com esta lógica, o poder de decisão permanece nas mãos daqueles cuja ética
raras vezes escapa de valores pouco humanos. De um lado eles alimentam o sistema, de outro
providenciam uns “paninhos quentes.” Afinal, depois de lucrar bastante, por que não doar um
pouco às ONGs, para que elas façam suas benfeitorias? A articulação que se instalou entre
428
Ibidem, p. 98.
189
público e o privado na proposta do terceiro setor está fatalmente atrelada aos interesses do
Submetidas à ética do mercado, as ações sociais propostas pelo terceiro setor correm o
risco de assumir apenas o caráter de negócio, obedecendo a leis que são, a priori, do universo
obediência a quem detém o poder, e este é, por sua vez, o sujeito da história. No que diz
respeito ao primeiro setor, o Estado, o pacto com os outros dois, parece também ter vindo em
boa hora. Como indagou George Yúdice: “Será que a efervescência das ONGs não será uma
“faca de dois gumes”, ajudando a escorar um setor público abandonado pelo Estado, ao
mesmo tempo, possibilitando ao Estado se abster de algo que já foi visto como sua
responsabilidade?” 430
429
Ibidem, p. 24.
430
YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006. p. 153.
190
política que agora é feita no mercado: “Agora fala-se muito num terceiro setor, em que as
público.” 431 De acordo com Santos, ao assumir as funções do Estado, as empresas escolhem à
conveniência de seus cálculos quais beneficiários devem ou não receber a sua assistência,
privilegiando apenas uma fração do território e da sociedade, enquanto a maior parte fica de
fora: “Essa política das empresas equivale à decretação de morte da Política.” 432 Santos
argumenta que a política, por definição, é sempre ampla e supõe uma visão de conjunto,
Todavia, seria precipitado “satanizar” por completo a existência desses organismos que
estão, afinal, estabelecidos na vigência da nova ordem global. Se por um lado este complexo
tecido social, político e econômico favorece mecanismos que alimentam dependências e que
contribuem para que os vetores de cima permaneçam no poder; de outro, ele também é capaz
de estabelecer diálogos entre as suas diversas instâncias, criando situações nas quais os
vetores de baixo podem falar aos de cima como esses devem aplicar a sua “responsabilidade
papel de meros objetos para assumir, ao contrário, o de sujeitos do jogo. Este é o desafio que
se impõem a grupos como o Nós do Morro que, embora tenha surgido em momento um pouco
431
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2007. P.67.
432
Ibidem, p.67.
433
Ibidem, p.67.
191
anterior ao “boom” do terceiro setor, hoje encontra-se inserido na realidade dos projetos
encarada apenas pelo grupo, mas por muitas outras iniciativas, atuantes no contexto das
adiante abordado. A estrutura da rede adotada por estes grupos é, na opinião de George
Yúdice:
Ainda que seja arriscado afirmar que o discurso dos grupos seja “amplamente
influenciado” pela sua rede de colaboradores, como diz Yúdice, não há dúvida de que ao
capaz de garantir o seu direito de voz. De fato, os “atores de diferentes posições sociais”
aparecem nos sites do AfroReggae, da REDES ou do Nós do Morro. Neles a área parcerias
eletrônico da REDES, por exemplo, constam parcerias estabelecidas com o Canal Futura,
Petrobrás, Ashoka, Banco do Brasil, Instituto Ayrton Senna, WorldFund entre outros. No site
Banco Santander e Governo do Estado do Rio; o Nós do Morro conta atualmente com os
434
Ibidem, p. 20.
192
financiamentos dos Programas Petrobrás Social e Cultural, BNDES, SESC Rio, da Empresa
Em 1987, o Nós do Morro já se constituía como uma Associação Cultural sem fins
Lucrativos, apta a receber apoios externos, mesmo assim, sobreviveu por quinze anos sem
chamavam bastante atenção, veio o patrocínio da Petrobrás Social, que como explica um
da Empresa. Com ele, a Petrobrás evolui de patrocinadora financeira de projetos para agente
das ações.”
com organizações sociais. Se por um lado os patrocínios são bem-vindos, mesmo que no caso
do Nós do Morro tenha chegado bem tarde, de outro, as empresas, ao se colocarem como “co-
comunidade-objeto.
receber recursos e a negociar com as mais diversas instâncias da sociedade, o Nós do Morro
vive um processo que George Yúdice, ao analisar semelhante situação experimentada pelo
dominante, uma vez que essas alianças poderiam ser caracterizadas como uma “absorção
O autor afirma que ao operar dentro dessas redes de trabalho, negociando com os
diversos atores que dela fazem parte, é preciso que os grupos comunitários mantenham “uma
posição face à cooptação” 436. Se por um lado as parcerias institucionais sejam indispensáveis
para a sobrevivência e expansão das atividades desses grupos hoje, de outro o conselho de
De acordo com o autor, diante do diálogo que se pretende estabelecer “com uma gama
diversas agendas (...) um governo local, uma ONG nacional ou regional e junto às fundações
poliglosia é destacada pelo autor como um talento exercitado com destreza por José Júnior,
diretor do AfroReggae.
terceiro setor devem aprender “a arte da tradução, tornar-se poliglotas da sociabilidade, ser
capazes de entrar e sair dos vários espaços sociais com um mínimo de elegância e
comunicação e troca entre variados segmentos, substituindo relações verticais por horizontais,
nas quais os grupos, por eles representados, ganharão o direito de voz. Para conseguir isso o
435
Ibidem, p. 215.
436
Ibidem, p. 215.
437
Ibidem, p. 215
438
FERNANDES, Rubem César. Privado, porém público. O Terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994. p. 139.
194
queimado.” 439
Como observou Yúdice a negociação requer que se mantenha uma posição face à
cooptação; de fato, para enfrentar o demônio é necessário antes de tudo exorcizá-lo de dentro
de si. A tarefa não é fácil e obriga um questionamento permanente por parte dos poliglotas,
como Júnior, Guti Fraga e tantos outros, sobre em que medida estão sendo satisfeitos os seus
comunidades, afinal é em nome delas que eles trabalham e tomam decisões. Por isso, ainda
para dentro. A realidade obriga aos poliglotas da sociabilidade o desafio de conviver com a
dialética da comunidade sujeito/objeto. O seu grau de discernimento e lucidez sobre ela é que
alternativas.
439
DJ do AfroReggae, nome não citado. apud YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura. Usos da cultura
na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 214.
199
Em outros pontos do Rio de Janeiro, bem mais jovens do que o Nós do Morro, porém
com o mesmo desafio, nasceram recentemente dois grupos: a Cia. Marginal (Nova Holanda,
primeiras experiências artísticas dos dois grupos estão fortemente enraizadas no seio de suas
pela comunidade. A Cia. Marginal é composta por um grupo de atores, a maioria deles
moradores da Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. Em
2007, o grupo montou o espetáculo Qual é a nossa cara? que esteve em cartaz na Casa de
Cia. Marginal optou por falar de sua própria história, seus moradores, suas conquistas e
tragédias, num processo de criação coletiva e autoral. O espetáculo tratou de temas como a
440
O CEASM foi fundado em 1997 por 11 moradores de diferentes comunidades do Complexo da Maré. Apesar
de suas trajetórias serem distintas, os fundadores do CEASM tinham em comum pelo menos três características:
haviam nascido ou morado por muito tempo em alguma das 16 comunidades do Complexo da Maré, possuíam
longa história de atuação em movimentos coletivos locais e, sobretudo, tinham conseguido chegar à
universidade. Naquele ano, eles inauguram um curso pré-vestibular aberto aos jovens da Maré, o Pré-Vestibular
Comunitário da Maré, que iniciou suas atividades em 1998. O CEASM construiu sua primeira sede no Morro do
Timbau entre 1999 e 2000. Em 2002, uma nova sede foi inaugurada na comunidade de Nova Holanda. Em 2003,
um comerciante local doa ao CEASM um grande galpão, onde a hoje se situa a Casa de Cultura da Maré e o
Museu da Maré. Ao longo dos anos, as atividades do CEASM se ampliaram, passando a oferecer diversos outros
cursos, como de informática, línguas estrangeiras, linguagens artistico-culturais e reforço escolar para crianças,
biblioteca e projetos voltados para a saúde.
No ano de 2007, o Centro foi dissolvido, dando origem a uma outra instituição: A Redes de Desenvolvimento da
Maré – REDES, que incluiu ativistas que antes participavam do CEASM. A REDES é uma Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) dedicada a articular pessoas e instituições para realizar projetos de
desenvolvimento para a Maré, um dos maiores bairros populares do Rio de Janeiro. A título de curiosidade, o
Museu da Maré foi inaugurado com a presença do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em 8 de maio de 2006,
destaca-se por ser o primeiro museu, do país, localizado dentro de uma favela. O seu acervo é constituído por
objetos de uso cotidiano e relatos de origem da comunidade local, além sugestões que forem sendo fornecidas ao
longo do tempo pelos moradores, dentro do Projeto Memória Viva, que atua na comunidade desde 1997. A
exposição permanente é dividida em doze tempos não-cronológicos, onde, por exemplo, uma sala conta a
história dos migrantes, outra refere-se à infância dos moradores, outra ainda recorda episódios da resistência
social das comunidades.
200
comunidade; a casa lotada todas as noites era a prova da plena comunicação atingida entre o
orientação da atriz Isabel Penoni, um trabalho de seis anos. Juntos eles embarcaram num
espetáculo que contava a própria comunidade - a Nova Holanda como palco e personagem.
pelo seu mentor, o Nós do Morro. A partir de 2004, por meio de uma parceria estabelecida
com o Serviço Social do Comércio – SESC-RIO, o Nós do Morro promoveu oficinas teatrais
Nós do Morro acontece em Nova Iguaçu. As Oficinas Culturais do Nós do Morro em Nova
cidade. Dez lonas culturais instaladas em escolas da rede municipal de ensino de Nova Iguaçu
projeto. 441
O encontro entre o Nós do Morro e os jovens atores que hoje integram o grupo Código
aconteceu durante as oficinas teatrais promovidas pelo SESC em parceria com o grupo do
441
Para efeitos deste estudo optei por recortar a experiência do grupo Código, devido à consistência do trabalho
realizado, e à dificuldade de deslocamento para os outros locais. Além disso, a experiência do Nós do Morro
com as escolas em Nova Iguaçu é muito vasta, demandando além de muitas visitas, um outro segmento para este
trabalho.
201
Vidigal num centro cultural em Nilópolis. A decisão de formar um núcleo teatral permanente
em sua comunidade, Japeri, veio depois. Lá eles alugaram o espaço de uma creche
grupo, dirigido pela ‘facilitadora’ do Nós do Morro Miwa Yanagizawa, escolheu colocar em
cena, no palco de Japeri, a sua comunidade como protagonista - Japeri como palco e
personagem.
Assim como o veterano Nós do Morro, ou como a Cia. Marginal, o Grupo Código vem,
por meio do teatro, abrindo espaços para a voz de sua comunidade. Uma espécie de relato
teatral que ganha variadas formas, influenciadas não só pelos elementos da cultura local,
sempre incorporados à cena, mas também pela colaboração daqueles profissionais “de fora”,
que entram nas comunidades para aplicar o teatro. O estabelecimento de uma relação de troca
e intercâmbio de influências entre as partes envolvidas nessas iniciativas permite, mais uma
vez, a emersão de temas e formas artísticas próprias das comunidades (favela como
personagem) e colabora com a consolidação da ação cultural (favela como palco), dentro das
mesmas.
A Nova Holanda
É um pedaço de terra que fica situado à beira mar
Tem um segredo de bamba,
onde impera o samba, nosso lema é cantar
Eu sinto um orgulho em viver, na Nova Holanda,
Para mim é um prazer
Eu vejo a alegria estampada no rosto da rapaziada
Eu sinto um orgulho em viver, na Nova Holanda,
Para mim é um prazer. 442
442
Samba cantado no espetáculo.
202
O encontro dos jovens atores que compõem a Cia. Marginal com a atriz Isabel Penoni
época, o projeto Viver com Arte, uma parceria entre a organização comunitária e o Instituto
Ayrton Senna oferecia aos jovens da comunidade oficinas de música, teatro e artes plásticas.
Além dele, outro projeto o Adolescentro 444, financiado pela Prefeitura do Rio, visava à
DST, gravidez na adolescência; neste segundo projeto, o teatro entrou como um recurso para
desinibir os jovens agentes, que teriam como tarefa falar sobre esses assuntos a juventude de
outras comunidades. Isabel Penoni 445 era uma das responsáveis pelas oficinas teatrais nos dois
projetos. O embrião da Cia. Marginal surge quando um seleto grupo de adolescentes 446,
contagiado pelas experiências que o teatro havia lhes proporcionado nos projetos do CEASM,
decidiu se manter unido para, junto com Isabel, desenvolver um trabalho de pesquisa teatral
mais duradouro.
Em 2005, a companhia, que na época ainda não havia sido batizada, criou a performance
Você faz parte desta guerra, com ela o grupo realizou um circuito de apresentações durante o
primeiro semestre de 2006 que incluiu as dezesseis comunidades que compõem o Complexo
443
Originalmente incorporada às atividades do CEASM, hoje a Cia. Marginal faz parte dos projetos
desenvolvidos pela Redes de Desenvolvimento da Maré – REDES.
444
Adolescentro foi um projeto constituído por noventa agentes comunitários de saúde, todos jovens que
desenvolvem atividades no campo da promoção de saúde nas comunidades. O projeto incluía também uma
equipe técnica de 32 profissionais das áreas de pediatria, ginecologia, odontologia, psicologia, serviço social e
atividades desportivas e culturais, que atendem adolescentes, aos sábados, em dois postos de saúde.
445
Em entrevista pessoal, realizada em 18/12/2007, Isabel falou sobre a sua história com o teatro, que começou
ainda quando estudante, no Colégio Aplicação da UFRJ. Mais tarde participou de grupos de teatro de rua, se
envolveu com atividades circenses até ingressar no curso profissionalizante de atores da Casa das Artes de
Laranjeiras. Participou das companhias Ensaio Aberto e Mistérios, depois dos Grupos Moitara e Umbu. Seu
trabalho com atriz está muito baseado no teatro físico. Isabel trabalhou durante dois anos com o diretor iraniano
Massoud Saidpour, cuja pesquisa cênica segue em linha direta com o teatro de Grotowski. O trabalho na Maré
surgiu a convite de uma amiga que havia integrado o projeto de dança desenvolvido por Ivaldo Bertazzo. Com o
término do projeto alguns jovens demonstraram o interesse em fazer teatro. Isabel aceitou o convite de orientar o
grupo, e durante algum tempo, sem qualquer apoio financeiro trabalhou com os jovens. A coordenação do
CEASM, percebendo o envolvimento deles com a atividade, incorporou o teatro nos projetos Viver com Arte e
Adolescentro.
446
Em 2007, quando conheci a Cia. Marginal e acompanhei alguns ensaios de Qual é a nossa cara? o grupo era
dirigido por Isabel Penoni e integrado pelos jovens Priscilla Andrade, Geandra Nobre, Jaqueline Andrade,
Wallace Lino, Tatiane Charlene e David Santana. Todos os jovens permanecem na companhia, com exceção de
David Santana.
203
da Maré 447. A performance já indicava um tipo de linguagem que nos anos seguintes o grupo
fortaleceu o grupo, que, em 2007, foi contemplado com o Prêmio FUNARTE Myriam
para a sua criação foram entrevistas com personagens chave da favela de Nova Holanda,
pessoas que tinham histórias para contar sobre o local, comunidade que eles decidiram,
naquele trabalho, homenagear. Histórias pessoais e coletivas foram exploradas por meio de
improvisações e mais tarde incluídas na peça. O espetáculo é composto por diversos planos de
ação. Em alguns momentos os próprios atores revelam diretamente à platéia suas memórias
pessoais, em outros estão caracterizados por figuras emblemáticas da Nova Holanda como o
Jorge Negão, o lendário chefe do tráfico na favela dos anos 80, ou o senhor Joaquim Severino,
Holanda são levadas ao palco por meio de imagens ‘fantásticas’ construídas através de formas
447
O Complexo da Maré é um bairro formado por 16 comunidades situadas à margem da Baía de Guanabara,
entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha, duas das principais vias de acesso à cidade do Rio de Janeiro. O
Complexo é visto por aqueles que desembarcam no Rio de Janeiro pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim,
conhecido como Aeroporto do Galeão, no trajeto em direção aos demais bairros da cidade. A Maré possui cerca
de 132 mil habitantes distribuídos em aproximadamente 38 mil domicílios. Esse bairro possui, portanto, um
número de habitantes superior ao de importantes cidades do estado, como Cabo Frio, Araruama, Angra dos Reis,
Resende, Queimados e Itaguaí. No que se refere à infra-estrutura educacional, estão instaladas na Maré 15
escolas públicas – entre elas sete CIEPs –, sete creches comunitárias, além de várias escolas privadas voltadas
para a educação infantil e para o ensino fundamental. A Maré e os seus arredores contam com apenas duas
escolas de ensino médio, número insuficiente para atender a demanda da região. Cf. SOTER, Silvia. Cidadãos
Dançantes: a experiência de Ivaldo Bertazzo com o corpo de dança da Maré. Rio de Janeiro:UniverCidade
Ed., 2007. p. 35-36.
448
O Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz foi criado para incentivar a produção e a montagem de peças das
mais variadas modalidades e gêneros (teatro para crianças, para adultos, teatro de bonecos, teatro de rua, etc.) e
para apoiar grupos e companhias teatrais envolvidas em projetos de pesquisa teórica, de experimentação de
linguagem, de arte-educação, entre outras atividades. Realizado pela primeira vez em 2006 o Prêmio, que tem
patrocínio da Petrobrás, se consolidou como uma das principais ações de estímulo à produção teatral do país.
204
Nova Holanda, posta em cena não a partir de uma estrutura realista, mas por meio de um jogo
cênico corporal, no qual a fisicalidade dos atores desenha, esgarçando toda a sua
um momento invade o outro, num fluxo contínuo que não deixa para o espectador pistas do
que acontecerá adiante. Assim, um terreiro de candomblé, com mães de santo dançando ao
movimentos frenéticos, grita: “Aleluia senhor!” Uma luta coreográfica é travada entre as duas
próximo momento é costurada por um dos atores que fala à platéia sobre a personalidade de
Jorge, o ‘dono’ da favela, que inspirava ao mesmo tempo medo e admiração nos moradores da
linear da ação ou da contação de uma fábula, mas diferente, baseia-se num repertório de
situações. A escritura cênica criada pelos atores e pela diretora, a partir de um processo
teatro pós-dramático, caracterizado por sua “intensidade, força e pulsões de presença” 449,
atravessar uma linha de fronteira. A figura, que não fala, apenas age, brinca com a expectativa
da platéia. O tom bem humorado do momento é ajudado pela música, percebemos que a linha
imaginada pelo mascarado é um limite, mas ainda não sabemos o porquê. Em seguida uma
449
LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro pós-dramático. Apud FERNANDES, Sílvia. Teatros pós-dramáticos. In:
O pós-dramático. GUINSBURG, J. e FERNANDES, Silvia. (orgs.) São Paulo: Perspectiva, 2008.
205
das atrizes entra em cena e desenha um mapa, explica um determinado evento ocorrido na
favela. Ela rabisca no papel ruas da Nova Holanda e revela o episódio histórico, um pacto
entre ‘Jorge Negão’ e os ‘Irmãos Metralha’, duas facções do crime nos anos 80, que
resolveram colocar as armas no chão e selar um acordo de paz. A narrativa deixa a cena e
outros mascarados, segurando armas de brinquedo, entram para ilustrar o episódio. São
figuras engraçadas e o público ri. O momento foi criado para ser engraçado.
Assim como este, outro trecho do espetáculo é bastante divertido, quando um grupo de
ponto na platéia, as personagens tecem comentários sobre a cena trágica, que ganha no
figuras se intensificam até a chegada dos bombeiros, que é saudada por todos com aplausos
entusiasmados. Momentos como este, também sedem espaço para outros mais íntimos,
serenos, como o que uma das atrizes abre uma caixa de memórias e expõe para a platéia
pedaços de sua história pessoal. A caixa de segredos de Priscilla foi levada por ela mesma a
um dos ensaios da companhia. Isabel pediu que ela contasse ao grupo sobre as memórias que
estavam ali guardadas. Mais tarde, este momento, vivido na intimidade do grupo, virou cena
do espetáculo.
Nela, Priscilla, com delicadeza, remexia o seu passado, mostrava e comentava para a
platéia os seus “cacarecos”. O ticket da primeira ida ao teatro, um livro adquirido no Fórum
Social Mundial; um quarto de dormir desenhado depois de um estudo sobre o quarto de Gogol
capricho, Priscilla explicava que aquele era o quarto de seu sonho, já que “quarto de verdade
mesmo”, ela não tinha. A moça também comentava sobre outras memórias como: cartões de
inscrição para o vestibular em diversas universidades, tentativas frustradas por quatro anos
consecutivos, além de um texto de sua autoria publicado no Jornal da Maré, O Cidadão. Nele,
206
ela se pergunta: Maré, porque não? A caixinha da Priscilla representa a memória não apenas
de uma, mas de muitas jovens da Maré: os mesmos sonhos, as mesmas frustrações, a mesma
grupo de jovens é abordado por uma câmera de TV. Eles vestem camisetas coloridas, fazendo
referência às que são oferecidas aos jovens pelos patrocinadores de ‘projetos’. A câmera pede
que eles façam “um pedacinho da peça”, bem como fazem os repórteres de televisão quando
visitam projetos na favela. Os jovens obedecem, um sussurra para o outro: “diz que seu pai é
traficante” ou “diz que o projeto tá te salvando”. Um dos jovens é empurrado pelo grupo, ele é
pressionado pelo corpo dos atores, como uma ameaça. Uma espécie de ‘monstro opressor’
ganha forma na corporeidade do grupo, que luta com o jovem; ele parece enfrentar o conflito
É um dos momentos do espetáculo onde fica mais evidente uma atitude de crítica por
parte do elenco sobre a sua realidade social. Mais do que procurar retratar eventos ou histórias
locais, o grupo imprimiu em todas as situações colocadas em cena uma perspectiva crítica,
opinião. Isto foi possível porque o processo foi orientado de forma que favoreceu um debate,
um desvelamento daquele contexto por parte de todo o elenco e também da facilitadora, Isabel
Penoni. De fato, os atores são unânimes ao afirmar que o teatro os alertou para a importância
Geandra Nobre revela o que sentiu quando descobriu que no teatro ela podia pensar:
No começo eu não gostava não. Odiava. Tinha que pensar! Eu não tinha o
hábito de fazer isso. Ninguém nunca me pediu para pensar. Em todos os
espaços, o familiar, o da escola, dos projetos, ninguém nunca me disse que
eu tinha que pensar. Aqui eu encontrei um lugar. A Isabel disse: “aqui eu
não mando, nós construímos o espaço”. Porra, ninguém nunca disse isso
207
para mim! Mas depois eu descobri que é bom pensar. Que é gostoso. É
fascinante descobrir que você pode ir além do que você imagina. 450
Assim, o passado e o presente da Nova Holanda, foram remexidos pelo grupo por meio
de um processo crítico-reflexivo num espaço muito particular, o do palco. Isabel tem uma
Eu sou uma pessoa muito apaixonada pelo teatro. E acho que muitos deles se
apaixonaram também. Daí vem a transformação. Acho que tem uma coisa de
um teatro mais engajado, de reflexão, de questionamento, que faz as pessoas
se depararem com questões pessoais e públicas, questões silenciosas,
sufocadas, na medida em que você vai colocando para fora, aquela prática
vai se tornando vital por que você se sente mais forte, vai criando um vício,
de se conhecer mais, de poder expandir seus limites.451
Qual é a nossa cara? esteve em cartaz por dois fins de semana na Casa de Cultura da
Maré. O espaço, lotado todas as noites, indicava o acerto do grupo na comunicação com a sua
platéia, que retornava nas noites seguintes para, junto com os atores, dizer as falas da peça.
Muitos rostos atentos, assim como os do Vidigal, repetiam na Maré um espetáculo à parte – o
teatral dizia respeito a ele. Naquelas noites da Maré, ocorreu uma rara sintonia entre o palco e
a platéia. O depoimento de Márcio Libar, fundador do Teatro de Anônimo 453, resume bem a
450
Em entrevista pessoal (25/08/2007).
451
Em entrevista pessoal (18/12/2007).
452
A primeira sede do CEASM, hoje REDES, está localizada no Morro do Timbau. Em 2002, uma outra sede foi
inaugurada na comunidade de Nova Holanda. A criação de um novo espaço respondia à necessidade de ampliar
o atendimento aos moradores das diversas comunidades, já que sua livre circulação era restrita pela guerra entre
organizações criminosas. É interessante observar que a Casa de Cultura da Maré está situada mais próxima ao
Timbau, mas nas noites de espetáculo a platéia da Nova Holanda não deixou de comparecer.
453
O Teatro de Anônimo foi fundado em 1986 e dedica-se à pesquisa técnica e artística no que define de Teatro
Popular Circense, com enfoque principal na arte da comicidade, nas técnicas de números aéreos e no universo
teatral das festas populares.
208
jovens inseridos naquela realidade. (...) Mas a bela surpresa ficou mesmo por
conta do trabalho dos atores, que aparentavam uma tranqüilidade e uma
segurança na comunicação que só emerge na cena quando aqueles que a
defendem, sabem exatamente o que estão fazendo e o que querem dizer.
Durante àquela hora, esqueci por completo que estava diante de mais um
“Projeto Social”, e me senti tocado por uma obra de arte, tamanho o grau de
maturidade, profissionalismo e sensibilidade daquele elenco. Por fim, saí
com uma sensação de que este espetáculo deveria ser visto pelo maior
número de pessoas possíveis em todo o Brasil, principalmente na cidade do
Rio de Janeiro, (...) para poder nos inundar de esperança de que ainda há
vida inteligente no teatro carioca. 454
momento deixa para o público a impressão de que da caixinha de Priscilla saltaram muito
mais histórias do que as dela mesma; parece que nela cabiam as memórias da comunidade
inteira. Depois de Qual é a nossa cara? a Cia. Marginal consolidou o seu espaço dentro da
REDES. Desde então, a Cia. Marginal vem ampliando cada vez mais o seu diálogo com
pessoas, como uma das atividades previstas pelo Território Cultural 2008, evento realizado
civil.
No mesmo ano, a Companhia foi uma das vencedoras dos Editais de Cultura 2008 da
2009, patrocínio para a manutenção de suas atividades de formação. 455 Mais recentemente a
454
Disponível em: <http://www.ciamarginalmare.blogspot.com>
455
Concretamente, o patrocínio possibilitou aos atores trabalharem com bolsa durante todo o ano e, além disso,
foram oferecidas ao grupo três oficinas, todas elas ministradas por profissionais do teatro que atuaram ou atuam
em colaboração com a Cia. Marginal há cerca de cinco anos. A partir de 2009 o grupo inicia uma série de
apresentações de FRAGMENTOS, onde são costuradas algumas cenas de trabalhos passados, entre elas cenas do
Qual é a nossa cara?. Entre os eventos estão: o Primeiro Encontro pela Vida e Por Outra Política de Segurança
Pública (UFRJ - 08/08/2009); 15º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC - 13/11/2009), V
Seminário de Psicologia e Direitos Humanos (CRP – 05/11/2009); I Seminário de Educação da Maré (UFRJ –
07/11/2009).
209
MINC para a remontagem de Qual é a nossa cara?. Com isso, realizará uma nova temporada,
Centro de Artes da Maré 456, e a segunda, em um teatro da Zona Sul carioca. Assim como o
456
Um novo pólo de produção artística próximo da Maré, criado a partir da parceria entre a bailarina Lia
Rodrigues e a REDES.
215
faz parte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro conhecida como Baixada Fluminense. A
área é considerada uma das mais pobres do Estado do Rio, obtendo os piores resultados nos
campos da educação e saúde. 457 Desde 2005, em uma rua discreta de Nova Belém, chão de
terra e precário saneamento, funciona a sede do Grupo Código. A ideia de criar um núcleo de
artes em Japeri surgiu depois que um grupo de jovens da comunidade participou do projeto
Tempo Livre, promovido pelo Serviço Social do Comércio SESC, no Centro Cultural de
Nilópolis, município próximo a Japeri. Neste projeto, do qual participaram cerca de trinta
jovens de diversas comunidades da Baixada Fluminense, entre elas Nilópolis, Nova Iguaçu,
teatrais. 458 Nessas oficinas os jovens tiveram contato com multiplicadores do grupo do
Vidigal, inclusive com seus fundadores, Fred Pinheiro, Luiz Paulo Corrêa e Castro e Guti
Fraga. Os artistas deixaram a Zona Sul do Rio em direção à Baixada para incentivar a ideia de
457
De acordo com as Estimativas da população para 1º de julho de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (29 de agosto de 2008), a população de Japeri, era de 100.055 habitantes, menor do que a do
Complexo da Maré. Uma matéria publicada em O Globo (<http://www.globonline.com.br>, 23/08/2009),
destaca o acelerado nível de desenvolvimento de alguns municípios do Estado do Rio. No ranking do IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano) Japeri obteve os piores resultados nas áreas de educação e saúde, ficando
atrás de outras regiões pobres do Estado como Belford Roxo e Duque de Caxias. O levantamento foi realizado
pela Firjan (IFDM – Índice de Desenvolvimento Municipal). Para se ter uma ideia da realidade da Educação em
Japeri, uma outra reportagem de O Globo (<http://www.globonline.com.br>, publicada em: 12/05/2008) revelou
que em 2008 dois mil alunos de 5a. a 8a. série estudavam em sistema de “rodízio” na Escola Municipal
Bernardino de Melo. Das quinze turmas da escola, todo dia, três ficavam em casa. O motivo era a falta de
carteiras para todos os estudantes.
458
O Serviço Social do Comércio - SESC, mantido por empresários do comércio de bens e serviços, é uma
entidade que atua nas áreas da Educação, Saúde, Lazer, Cultura e Assistência. Em 2004, o SESC-RIO promoveu
o Projeto Tempo Livre, uma iniciativa que visava a construção de quadras esportivas em municípios do interior
do Estado do Rio, além de oferecer oficinas artísticas aos jovens das comunidades. O Nós do Morro orientou as
atividades teatrais, o Afroreggae, as musicais, e a Cia. Étnica de Dança, as de dança. O projeto tinha também a
meta de estimular a atuação de artistas/agentes que já desenvolvessem atividades dentro de suas comunidades.
As oficinas com o Nós do Morro em 2005 aconteceram no Centro Cultural de Nilópolis, onde jovens dos
municípios próximos se encontraram. As atividades aconteceram entre Maio e Novembro, quinzenalmente, nos
fins de semana. Começavam sexta-feira à noite e terminavam domingo à tarde. No mesmo ano os jovens de
Japeri se organizaram para criar a sua própria sede. Receberam o apoio do SESC e do Nós do Morro até 2007.
Durante este período a atriz Miwa Yanagizawa, facilitadora do Nós do Morro, acompanhou o grupo, dirigindo os
seus espetáculos.
216
disseminar núcleos teatrais naquela região. Guti Fraga aceitou o convite do SESC, mas
defendeu a ideia de que o projeto Tempo Livre, não se restringisse apenas a um contato
temporário dos jovens com o teatro, mas que servisse como um estímulo para que eles se
Mobilizados por esta ideia, após o término do projeto, os vinte e três jovens, a maioria
deles moradores de Japeri se uniu para fundar um grupo. A primeira iniciativa foi conseguir
um local para a sua sede. Eles alugaram uma casa em Japeri, lugar de uma antiga creche
abandonada. 459 O espaço foi adaptado com o recurso dos próprios integrantes, com a ajuda de
familiares e doações de comerciantes da comunidade. Uma área externa e coberta da casa foi
dividida em dois espaços, um para o palco, outro para a platéia. No telhado de zinco, latas de
platéia cadeiras simples organizadas em algumas fileiras. Uma pequena área destinada à uma
camarins. No seu muro externo, o nome do grupo pintado à mão. Na rua, que ainda não
ganhou asfalto, um valão a céu aberto. Quem passa em frente ao muro da casa se surpreende
quando descobre que lá dentro um grupo de teatro se prepara para entrar em cena.
típicas do trem suburbano, que fazia uma crítica bem-humorada sobre os problemas
deslocar. A viagem tinha início na estação de Japeri e a cada nova parada, outras personagens
foram transportados para a cena. Personagens curiosas, como o pastor evangélico que “prega”
como cantor de rap ou a falsa mendiga que engana os desavisados, compunham um painel de
459
O aluguel da casa era pago com o recurso dos próprios jovens que dividiam o valor de 300,00 reais.
217
tipos populares e situações caóticas vividas por aqueles que deixam as regiões mais afastadas
sede, conquistou de vez a freqüência dos moradores ao espaço. Desde então, além da
Com a parceria deles, o grupo conseguiu ampliar a sua oferta de atividades. Além das
bimestral que oferece o espaço do palco para a expressão artística de membros da comunidade
e convidados. Uma biblioteca também foi organizada no local. Em 2009, o grupo foi
Flávio Rangel, texto que marcou a história do teatro brasileiro por ter sido um dos maiores
sucessos do teatro de protesto, com forte crítica à repressão imposta pelo golpe militar de
1964, foi adaptado e dirigido por Miwa Yanagizawa. 461 A peça, cuja versão original estreou
época, ganhou em Japeri uma abordagem mais atual, repleta de ironia e sarcasmo.
460
O projeto de cinema do Grupo Código exibe filmes gratuitamente em um telão improvisado e possibilita a
discussão dos temas apresentados na película.
461
O SESC-RIO, devido ao desejo do grupo de dar continuidade às suas atividades em Japeri, continuou
financiando as visitas de Miwa Yanagizawa ao grupo. Para a montagem de Censura Livre (2006), bem como de
Do lado de cá (2007), Miwa, visitou o grupo durante os fins de semana, quinzenalmente. Nos outros dias da
semana os próprios jovens se organizavam para os ensaios. Assim, podemos dizer que embora sob a orientação
de Miwa, o grupo trabalhou com bastante autonomia nos processos de criação dos dois espetáculos.
218
Entretanto, o tom de protesto presente na obra de Millor e Rangel não perdeu o seu
lugar, os jovens atores da Baixada queriam, desde o início do projeto realizar um teatro
engajado, comprometido com a crítica social e com o bom humor. Os números musicais e as
letras, compostas por integrantes do grupo, eram os pontos altos do espetáculo que
sacudiam panos vermelhos e cantavam ironizando sobre possíveis soluções para problemas do
Em outro momento, uma empregada doméstica, a Maria do Céu, dirigia-se à platéia para
que é a liberdade, e debochava afirmando que “liberdade de verdade” ela só conhecia aquela
da estátua nos Estados Unidos. A opção pelo elemento do humor crítico, pela música e
também por tipos populares como Maria do Céu arrebatou o público de Japeri. A iniciativa
ganhou força na região que até então não possuía nenhum tipo de opção cultural ou de lazer.
disponibilizaram materiais para os cenários. Mesmo sem um apoio financeiro, uma rede de
Hoje a ação é mais uma prova de que mesmo abandonadas pelo poder público, comunidades
como Japeri sabem se organizar e descobrir estratégias criativas para desenvolver seus
projetos.
A terceira produção do grupo, Do lado de cá, também foi dirigida por Miwa
Yanagizawa. Assim como em Censura Livre, eles optaram pelo uso do humor e da música,
mas desta vez, ao invés de basear-se num texto já pronto, decidiram criar, a partir de
improvisações inspiradas por temas do cotidiano de Japeri, um texto próprio. O título da peça
Do lado de cá já revela a intenção do grupo: mostrar com versão própria as diversas faces de
sua comunidade. O processo de criação do espetáculo, orientado por Miwa, teve como ponto
de partida o desejo dos jovens de falar sobre Japeri de uma maneira crítica, mas engraçada.
Miwa perguntou ao grupo: “E agora, sobre o que é que nós vamos falar?” A resposta foi:
A temática das improvisações partiu de situações do dia a dia de Japeri, brigas entre
vizinhos, tipos muito próximos das personalidades da vida real de Nova Belém, o
trama principal gira em torno de uma aposta na mega-sena. Reunidos como de costume para
um churrasco de fim de semana, momento da peça em que todos os conflitos do grupo vêm à
462
Em entrevista pessoal em 23/03/2008.
220
homens, ciúmes entre casais etc, o grupo subitamente recebe a visita de uma vidente. Na cena,
sena. Um dos vizinhos anota o palpite e todos resolvem fazer um “bolão”. As personagens
estão certas de que vão ganhar o prêmio e na semana seguinte, um novo encontro é
organizado. Desta vez, Beth elegantemente vestida, a anfitriã do quintal onde acontecem os
mostra num vídeo que projeta o depoimento de alguns moradores de Japeri contando o que
Charles, o vizinho que havia ficado responsável por fazer a aposta na casa lotérica, havia
alinhavado por Luiz Paulo Corrêa e Castro, o dramaturgo do Nós do Morro. A “tecnologia”
Do lado de cá, obteve grande sucesso junto a comunidade de Nova Belém, lá, mais uma
vez, assim como no Vidigal e na Maré, a comunicação entre palco e platéia era imediata, o
público se reconhecia em cena e percebia que aquele teatro falava sobre eles e para eles. Até
então, distante do espaço onde são maiores as possibilidades para a criação de novas redes de
troca, a soluções encontradas pelo grupo para sobreviver se agarravam quase sempre nas
mãos de quem estava ao lado, a própria comunidade. Como observou Miwa Yanagizawa:
“Em Japeri o senso de comunidade está muito presente. Eles sentem na pele todos os
abandonos. É um lugar muito prejudicado. A preocupação com o coletivo vigora muito. Eles
221
463
são muito preocupados com as necessidades de sua comunidade.” Em 2008, a iniciativa
ganhou o nome de Grupo Sóciocultural Código, associação sem fins lucrativos, a partir dali,
para ampliar recursos e expandir as suas atividades o grupo conquistou novas parcerias.
que capta recursos nos EUA para investir em organizações sociais brasileiras. 464 Para 2010, o
Código acontecerão, sem dúvida, com mais conforto; mas, ainda que eles sejam suspensos,
continuem garantindo a sua sobrevivência. Entretanto, a sua realidade hoje não foge da regra,
se por um lado a ameaça de que os interesses de sua comunidade-mãe não sejam atendidos
pareça possibilidade remota, de outro, é certo que ao encontrar novos parceiros ele também
463
Em entrevista pessoal em 23/03/2008.
464
A BrazilFoundation possibilita que pessoas físicas e jurídicas nos Estados Unidos possam doar a iniciativas
sociais no Brasil e deduzir o valor das doações do Imposto de Renda Americano. De acordo com informações
fornecidas pelo site da ONG, a captação é realizada através de “campanhas de mobilização, objetivando não só a
geração de recursos, como também o desenvolvimento de uma comunidade doadora qualificada e cada vez mais
consciente de seu papel para a construção de um Brasil melhor e mais justo.”As informações são do site
http://brazilfoundation.org. Em 2009, a organização doou ao grupo de Japeri o valor de 30 mil reais.
465
O Programa Mais Educação é direcionado às crianças, adolescentes e jovens da rede pública de ensino
básico e tem como objetivo otimizar as ações e os investimentos, já existentes no país, para que complementem a
formação escolar com uma visão integradora do ensino. Quatro ministérios irão atuar conjuntamente na
formulação das políticas públicas do Programa - Educação (MEC), Cultura (MINC), Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS) e Esporte (ME). As informações são do site: http://www.cultura.gov.br.
226
mesmo ponto. Suas intenções originais estavam voltadas para a criação de um teatro que
transformados em obra artística, por meio da parceria estabelecida entre os ativistas do teatro
comunidades.
Nos três grupos, o tipo de parceria estabelecida entre os artistas, que compartilharam
comunidades como autoras dos processos teatrais. O papel dos artistas assume neste processo
reflete o diálogo estabelecido entre Isabel, a atriz, e o grupo de atores da favela. De um lado a
facilitadora, sua história, cultura e formação teatral; de outro o corpo, a voz, a cultura, a
história dos jovens da Nova Holanda. O palco promove o encontro, nele se apresenta uma
estética particular que sintetiza na cena, na expressão, o diálogo entre os dois universos. Cabe
ao artista facilitador utilizar uma “mão delicada”, que não exclui o seu conhecimento, mas
que o põe a serviço de alguém cuja vez deve-se entender como prioritária.
Nas ações do Vidigal, Nova Holanda e Japeri, o tipo de abordagem escolhida pelos artistas
encorajou nos grupos comunitários, a expressão de narrativas locais. Isto não teria sido
possível se a relação entre os artistas e os grupos não tivesse sido moldada pela ética da
comunidade-sujeito.
227
homem a adotar uma atitude semelhante a do cientista diante da natureza: “O teatro também o
acolhe [o homem] como transformador, aquele que é capaz de intervir nos processos da
natureza e nos da sociedade, que não encara o mundo apenas como é, mas que se faz senhor
dele.” 466 Este tipo de perspectiva investigativa, sobre o qual argumentou Brecht, é na opinião
é uma atitude indispensável para os participantes do teatro aplicado; instigá-la nos grupos
comunitários é uma das principais tarefas do facilitador. Segundo Prentki, “tornar estranho o
mundo familiar, encontrando diferentes maneiras de olhá-lo” possibilita o embarque “em uma
jornada em direção à auto-definição que não é a delimitada pelo discurso dominante.” 468 A
“auto-definição” mencionada por Prentki se associa aos processos que engajaram os três
Para criar um discurso próprio, que “contasse” as suas comunidades com a própria voz,
o Nós do Morro, a Cia. Marginal e o Código precisaram adotar a atitude recomendada por
Brecht. Em busca de sua narrativa alternativa, a dramaturgia do Nós do Morro escreveu com
humor até as dificuldades da vida na favela, o grupo da Nova Holanda perguntou “Qual é a
466
BRECHT, Bertolt. O Teatro Dialético. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 138.
467
PRENTKI, Tim. Contra-narrativa, ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo
(org.). Teatro na Comunidade: Interações, Dilemas e Possibilidades Florianópolis: UDESC, 2009.p.32.
468
Ibidem, P.32.
228
nossa cara?” e os jovens de Japeri mostraram no palco como é a vida do lado de “lá”. As
intenções dos artistas na “aplicação” do teatro na realidade dessas comunidades, pelo menos
narrativas alternativas.
Neste sentido, o início do percurso dos três grupos guardou a devida distância de um
perigo que ronda os projetos do teatro aplicado. Como afirmou Tim Prentki: “O pressuposto
que eles vivem são capazes de transformação.” 469 Todavia, como o próprio Prentki observa, a
busca por essa “missão transformadora” pode implicar em armadilhas. Ao artista facilitador
Cabe aos artistas facilitadores, a linha de frente das ações do teatro aplicado, uma
avaliação permanente sobre as armadilhas apontadas por Prentki. No caso dos três grupos em
questão, diferente do que acontece hoje em projetos atuantes no contexto das favelas cariocas,
que são criados por pessoas sentadas nos escritórios da “responsabilidade social” e
endereçados às comunidades por vezes sem que elas tenham participado das decisões, as
demonstraram um vínculo forte com os seus interesses. Mesmo que a princípio a ideia tenha
469
Ibidem, p.29.
470
Ibidem, p.30.
229
partido dos artistas “de fora”, a relação por eles estabelecida com os grupos garantiu a efetiva
atuação da comunidade-sujeito.
No momento em que essas iniciativas passam a dialogar com a complexa rede que se
formou em torno de seus projetos, e inclui em sua pauta de conversas os mais diferentes
essas negociações estão garantindo o espaço para a voz de suas comunidades. Esta avaliação,
também tarefa dos artistas facilitadores do Vidigal, da Nova Holanda e de Japeri, que
Hoje, a participação na ampla rede social traz para essas ações não só a chance de
agregar novos parceiros, como também a de falar para outras e diferentes plateias. No caso
do Nós do Morro, em especial, o teatro pela comunidade já circula por outros territórios.
Inaugura-se uma nova operação em que uma iniciativa do teatro aplicado, por definição mais
Se por um lado colocar o “pé lá fora” possa aumentar o risco de que se afrouxem os
mais amplos, dialogando com outras audiências, pode suscitar novas e mais positivas
E este é um ganho significativo. Mas é claro que esses novos encontros podem influenciar
mudanças no teatro que foi originalmente produzido pela e para a comunidade; tornar-se um
produto apto a ser consumido em teatros comerciais, pode significar a obrigação de que sejam
seus consumidores. Para participar da trama da narrativa dominante o Nós do Morro se arrisca
num jogo delicado. A ousadia é valida desde que não haja o prejuízo da integridade do corpo
originais do projeto é uma tarefa que grupos como o Nós do Morro, e outros mais jovens
como a Cia. Marginal e o Código terão que aprender, refletindo sobre as suas escolhas,
avaliando perdas e ganhos, mas, sobretudo, se perguntando, sempre, sobre que lugar ocupa o
permanente sobre as suas próprias opções poderá afastar a ameaça de que a qualquer
momento seja perdida a autenticidade de sua voz. Assim, retomando as palavras de Milton
Santos, ainda que a realização da história, a partir dos vetores de cima, seja dominante, o
teatro aplicado terá possibilitado ao território da luta a chance da realização de outra história
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Pedagogia da Autonomia Paulo Freire nos alerta sobre o perigo de uma ideologia
fatalista e imobilizante que, animada pelo discurso neoliberal, anda solta pelo mundo
convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural,
passa a ser ou a virar quase natural.” 471 De fato, o mundo globalizado, baseado nas tiranias
convencer de que nada pode ser feito diante da realidade que se apresenta, de que somos
competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e
poucos se interessam em ajudar-nos”. 472 Ainda assim, a teimosia de muitas ações criativas,
global, que estimula as sensações de incerteza, insegurança, solidão, medo do futuro, é posta a
prova quando nos deparamos com iniciativas como as do Vidigal, da Nova Holanda, de Japeri
e tantas outras.
mudança. O teatro abre a oportunidade para que se realize uma ideia hoje quase fora de nosso
471
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996. p.19.
472
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.p.8.
232
alcance a de comunidade. Mesmo nos espaços onde a ação da globalização perversa ganha
contornos mais violentos, como nas favelas dominadas pelas facções armadas do tráfico de
encontramos grupos mobilizados por projetos que resgatam o espírito comunitário, a noção de
comunidade.
O Rio de Janeiro é hoje o palco de ações articuladas por meio do diálogo entre inúmeros
das mais diversas origens, artistas facilitadores, jovens integrantes provenientes de diversas
comunidades, gente de todas as idades, de todos os lugares; nas platéias do Teatro do Vidigal
desprezo do Estado pelo território da luta, a omissão diante da tarefa de prover os bens
desobediência à atitude fatalista que deixou os artistas “vidigalenses” escreverem uma história
que rompe barreiras e dilui fronteiras no instante efêmero da cena. Em Nova Belém, Japeri, o
grupo Código, “cria” do Nós do Morro, também atrai espectadores “de fora” mesmo que o
lugar guarde bastante distância em relação ao centro do Rio. Em Vigário Geral, o AfroReggae
pesquisadores, artistas, empresários, todo tipo de gente. De outro lado, as bandas musicais do
Não são poucos os exemplos que demonstram o trânsito deste heterogêneo “elenco da
cidade” por seus diversos espaços e até por espaços distantes. A favela como palco e
personagem com suas produções artísticas, tem favorecido o tráfego, a fluência pelo Rio de
Janeiro de seus diversos atores, por seus diversos territórios; um movimento que parece
costurar os fragmentos de uma cidade, transformando ela mesma numa obra de arte, tecida
Nos últimos anos, a divulgação das realizações artísticas dos grupos provenientes das
favelas pelos canais de informação parece criar em nós uma sensação mais confortável de
cidade unificada. Os mesmos canais nos sensibilizam a fazer contribuições para campanhas
do terceiro setor, quase sempre estampando o rosto sorridente de uma criança negra, também
Não há como negar que todas essas ações agem sobre o imaginário coletivo e acabam de
alguma forma conduzindo à construção de outro olhar sobre a favela, menos baseado no
estigma da ovelha negra da cidade, expressão de autoria de Jaílson de Souza. Mesmo assim,
não podemos nos enganar de que muitas vezes os canais da informação animam uma falsa
ideia de mudança social, porque, como afirmou Souza, a verdade é que a visão negativa sobre
Diante da recusa de muitos atores sociais, especialmente dos próprios moradores das
comunidades e dos artistas facilitadores, atuantes em grande número em projetos sociais nos
espaços das favelas do Rio, em aceitar a realidade social, histórica e cultural, como um fato,
como observou Freire, quase natural, e das reflexões apresentadas ao longo deste trabalho,
cabe perguntar, e estimular que esses atores perguntem para si próprios: em que projetos
Que valores regem determinados projetos e porque participar deles? Até que ponto
Não resta dúvida que parte da tarefa de todos os indivíduos, sejam eles os membros
examinadas aqui, e em todas as ofertadas pela cidade hoje, é desenvolver um estado de alerta
crítico permanente sobre o seu papel dentro dos “projetos”. Um questionamento diário sobre
o intuito de sua “missão transformadora” e as armadilhas que nela possam estar escondidas.
O impulso solidário, corajoso, e até heróico, que muitas vezes motiva a participação
estruturas que sustentam a existência desses projetos, se não se procura discernir entre as
ações que incidem na estrutura social com o intuito de transformá-la e aquelas cujas agendas
estão mais preocupadas em docilizar o território da luta. Não há receita para se escapar do
equívoco, mas é provável que este estudo tenha contribuído para ampliar a reflexão acerca do
fenômeno, que por ser tão recente, desafia uma percepção crítica e distanciada.
O dilema de articular uma negociação entre os vetores “de baixo” e os “de cima” sem
dúvida indica na trajetória dos exemplos analisados por este trabalho, muitos acertos, mas
também fragilidades, inevitáveis diante da difícil tarefa de conviver à força com esta tensão.
O grande mérito de todos eles, entretanto, está não apenas na reação inconformada diante da
realidade que se apresenta como quase natural, mas no compromisso com a ética e a estética
a possibilidade de se tornarem cidadãos mais críticos, mais autores de sua história, capazes de
interferir em seus destinos e nomear o mundo. Do território da luta surgiu um teatro que se
235
único.
No mundo em que vivemos hoje não seria esta talvez a maior contribuição do teatro?
Não seria talvez este o seu maior desafio? Permitir que os canais da palavra, da imagem, do
som falem com independência, por si próprios, livres da “castração estética” promovida pela
narrativa dominante que, como nos lembra Augusto Boal, vulnerabiliza a cidadania
indispensável papel do teatro permitir que se revelem histórias escondidas, que ainda não
tiveram a chance de serem contadas com a palavra e no corpo de seus verdadeiros sujeitos,
Acreditamos que este estudo deixe questões úteis para aqueles que já estão engajados
em projetos do teatro aplicado, ou para os que ainda pretendem se engajar, somando-se como
atores na trama das novas redes de sociabilidade. Mesmo que permaneçam as perguntas, resta
pelo menos uma certeza: a de que o teatro, ainda que diante do mundo “implacável” em que
vivemos, guarda o potencial para provocar mudança, a força para travar uma luta contra a
473
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e
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MONTEIRO, Karla. Maré Alta. Cia. de dança abre espaço para balé, aulas e pecas num dos
maiores complexos de favelas do Rio. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 21/02/2010. Revista O
Globo, p. 12.
DALE, Joana. A novela sobre o morro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/04/2010. Revista da
TV. Capa. p. 12-14.
Críticas (espetáculos do grupo Nós do Morro, organizadas em ordem crescente por ano de
publicação):
BRANDÃO, Tânia. Teatro do crioulo doido. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11/06/88. Segundo
Caderno.
FISCHER, Lionel. Grupo Nós do Morro comemora 15 anos com ótimo espetáculo. Jornal
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30/05/2002. Teatro/crítica.
HELIODORA, Bárbara. Uma festa com muito humor e alegria. Jornal O Globo, Rio de Janeiro,
24/05/2002. Segundo Caderno.
..........................................Com talento, garra e pouco dinheiro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro,
03/12/03. Segundo Caderno.
...........................................Mesmo irregular montagem tem seus encantos. Jornal O Globo, Rio
de Janeiro,23/04/2004. Segundo Caderno.
............................................Os Dois Cavalheiros de Verona. Um Shakespeare com alegria e
seriedade. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 29/10/2006. Segundo Caderno.
LUIZ, Macksen. O entusiasmo do Nós do Morro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro 04/12/03.
Caderno B.
............................Sonho de uma noite de verão ganha ótica popular. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro,19/04/04. Caderno B.
............................Uma excelente montagem do grupo Nós do Morro. Os Dois Cavalheiros de
Verona. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5/11/2006. Caderno B.
Sites pesquisados:
<http://www.favelatemmemória.com.br>
<http:// www.observatoriodasfavelas.org.br>
<http://www.vivario.org.br>
246
<http://www.vivafavela.com.br>
<http://www.nosdomorro.com.br>
<http://www.afroreggae.org.br>
<http://www.rits.org.br>
<http://www.redesdamare.org.br>
<http://grupocodigo.blogspot.com>
<http://www.ciamarginalmare.blogspot.com>
< http://www.spectaculu.org.br>
< http://www.aplauso.art.br>
<http://seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline>
Entrevistas:
Diretores:
Fernando Mello da Costa em 09/12/2003.
Guti Fraga e Fred Pinheiro em 23/12/2003.
Luiz Paulo Correa e Castro em 14/08/2003 e 16/12/2004.
Maria José da Silva em 04/04/2004.
Atores:
Luciano Vidigal em 16/07/03.
Cristiano Lima dos Santos 22/09/2003.
Roberta Santiago 02/10/2003.
Rosana Rego Barros 02/10/2003 e 09/12/2003.
Cintia Rodrigues Martins Rosa 13/10/2003.
André Luís Alves da Cunha 21/10/2003 e 09/12/2003.
Roberta Rodrigues da Silva em 13/11/2003.
Fotos