Que vem a ser uma sociedade? Que significa a palavra "social"? Por que se
diz que determinadas atividades apresentam uma "dimensao social"? Como
alguem pode demonstrar a presen~a de "fatores sociais" operando? Quando
0 estudo da soeiedade ou de outro agregado social se revela profícuo? De
que modo o rumo de uma sociedade pode ser alterado? Para responder a
estas perguntas, duas abardagens muito diferentes foram adotadas. Só uma
delas se tornou senso comum - a outra é objeto do presente livro. P. 19
Essa posição padrão tornou-se senso comum não apenas para os cientistas
sociais, mas tambem para quem atua em jornais, educaçao superior,
partidos políticos, conversas de bar, historias de amor, revistas de moda
etc.' As ciencias sociais disseminaram sua definiçao de sociedade com a
mesma eficiência com a qual as empresas de utilidade publica prestam seus
serviços de eletricidade e telefone. Comentar a inevitável "dimensão social"
daquilo que nos e os outros fazemos "em sociedade" tornou-se tão
corriqueiro quanto usar um celular, pedir uma cerveja ou discorrer sobre o
complexo de Édipo - pelo menos no mundo desenvolvido. P. 21
Ao longo da obra. aprenderemos a distinguir a sociologia padrao
do social de uma sllbfamiJia mais radical que chamarei de sociologia erEti
ca.' Este llitimo ramo sera definido pelos tres tra,os seguintes: ele nao so
se limita ao social como slIbstitui lim objeto de estudo por outro. feito de
reia~oes sociais; alega que essa substitlliC;iio Ii inviavel para os atores sociais
que preeisam iludir-se supondo a existencia, ai, de algo "mais" que 0 social;
e julga que as obje,oes dos atores as suas explica~oes sociais fornecem a
melhor prova de que estas sao corretas p. 27
ele sim. desprezado. Se eu tivesse fazer uma Iista das caracteristicas que
deve ter uma boa deseri<;ao ANT - e isso representari a urn bom indicador
de qua lidade -, perguntaria: os conceilos dos atores figurariam como mais
Jortes que 0 do analista? Ou 0 proprio analista monopoli zaria 0 discurso?
No que toca aos relatos escritos. e1es exigem um julga mento preciso. mas
difk il : 0 texto que comenta diversas cita<;oes e documentos emais. menos
ou tao interessante quanto as expressoes e atitudes dos atores? Se e f;\cit
para voce passa r por estas provas, entao a ANT nao lhe diz respeito. 53
Um illtermediario, em meu lexico, e aquilo que transporta significado ou for~a sem transforma-
Ios: definir 0 que entra ja define 0
que sai . Para todos os propositos praticos, um intermediario pode ser
con s iderado nao apenas como lllna caixa-preta, mas Ull1 a caixa-pre ta
que funciona como uma unidade, embora internamente seja feita de
varias par tes. Os mediadores, por seu turno, nao podem ser contados
como apenas um, eles podem valer por um, pOI' nenhuma, par varias
au uma infinidade. 0 que entra neles nunca define exatamente 0 que
sai; sua especificidade precisa ser levada em conta todas as vezes. 31 Os
mediadol'es transformam, traduzem, distorcem e modificam 0 significado ou os elementos que
supostarnente veiculam. Nao importa quao
comp/icado scja um intermedia rio, ele deve, para todas os propositos
pn\ticos, ser considerado como ullla unidade - ou nada, pOis e Eacil
esquece-Io. Um mod iador, apesar de sua aparencia simples, pode se
revelar complexo e a rr astar-110S em muitas direyoes que I'nod ifi caraa
os relatos contraditorios atribufdos a seu papel. Um computador em
perfeito funcionamento e oti mo exemplo de um intermediario com -
plieado, enquanto um a conversa~ao banal pode se transformar numa
cadeia terrivelmente complexa de mediadores onde paixoes, opinioes
e atitudes se bifurcam a cada i nstante. No entanto, quando quebra,
o computador se tor na um med iador pavorosamente complexo, ao
passo que uma sofisticada discussao em uma lIlesa redonda em um
encontro academico as vezes se transform " num intermed iario to- talmente prev isivel e
monotono, repetindo l1ma decisao tomada em
outra parte." Como iremos descobrindo aos poucos, e essa constante
incerteza quanta a natureza intima das entidades - elas se comportam como intermediarios
au mediadores' - a Fonte de tadas as outras
incertezas que decidimos acompanhar. P. 65-66
Tudo se torna mais dificil quando llln peregrino declara: "Yim a este
mosteiro atendendo ao apelo da Yirgem Maria". Por quanto tempo
conteremos 0 riso, substituindo imediatamente a intercessao da Yirgem pda
desilusao "6bvia" de urn ator que «encontra pretexto" num kone
religioso para "ocultar" sua decisao pessoaI? Os soci6Iogos criticos
respondem:
"E falta de polidez escarnecer de um informante". ja 0 soci610go de
associa~oes pode dizer: "Nao se deve perder a chance oferecida pelo
peregrino de avaliar a diversidade de motivos que atuam ao mesmo tempo
neste
mundo". Se fosse possivel constatar hoje que a "Yirgem" pode mesmo
induzir peregrinos a embarcar num trem contrariando todos os escrupulos
que os seguranl elll casa, teriamos at sem dllvida. um milagre.4~ p. 78
Em primeiro lugar, as al'oes aparecern sernpre num relata como respOl1stiveis par um feito,
au seja, como alga que afeta um estado de coisas,
transformando As em Bs pela prova dos CS.53 Sem relatos, sem tentativas,
sem diferen,as, sem transforrna,ao num estado de coisas, nenhum argu -
menta significativo pode ser aventado em relal'ao a determinada al'ao,
nenhum quadro de referencia pode ser percebido. Uma al'aO invisfvel,
que nao fa,a diferen,a, nao gere transforma,ao, nao deixe tra,os e nao
entre num relata nao e uma a,ao. Ponto final. Ou faz alguma coisa au
nao faz nada. Se voce mencionar uma a,ao. tera de apresentar urn relata
sobre ela e, para tanto) precisanl tornar mnis ou menos explicito quais
provas deixaram tais e tais tra,os observaveis. Isso nao significa. e claro.
que deved falar a seu respeito. pois a fala es6 mais um dos muitos com- portamentos capazes
de engendrar um relato - e nao 0 mais frequente. 54
Issa parece suficientemente 6bvio, mas convem apanta-Io aqueles que se
intoxicaranl com lun excesso de foryas socia is invisiveis e inexpiicaveis.
Na ANT, naa se pade dizer: "Ninguem mencionou tal fato. Nao lenho
pravas, mas sei que hi um ator invisivel trabalhanda nos bastidores".
o que lemas af eteoria da conspira~.ao. nao teoria social. A presen,a do
social tem de ser repetidamente demonstrada e nao simplesmente postulada. Se naa dispuser de
um veiculo para viajar. nao se movera um
centimetro, nao deixara lUll unjco trac;o, nao sent registrada eln nenhum
tipo de documento. Ate para descobrir PolOn io atn;s da tape,aria que se
tornOll sua Inort.alha, Hamlet, 0 Principe da Dinalnarca) precisou olIvir
a guincho de urn rata. 84-85