Alfredo Bosi
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MONTEIRO, Pedro Meira. Um O pano de fundo ideológico
moralista nos trópicos. São Paulo: Se a passagem se interrompesse nesse ponto, o nosso desfiador
Boitempo: Fapesp, 2004.
ideológico só poderia puxar uma linha, a que atravessa o contexto
2
MATTOS, Ilmar Rohlf de. O ainda extremamente conservador da burguesia dominante antes e
tempo Saquarema. São Paulo: depois de 1822, data explicitada no episódio de Marcela, e que coin-
Hucitec, 1987; LOSURDO, Dome-
cide com os dezessete anos de idade de Brás. É o momento forte
nico. Contra-história do liberalis-
da instalação de um aparelho de Estado baseado em eleições censi-
mo. Aparecida: Idéias & Letras,
2006. O liberalismo conservador tárias, logo excludente, e de uma economia nacional pesadamente
da Restauração e da Monarquia apoiada no latifúndio, no agrocomércio exportador e no trabalho
de Julho foi analisado em profun- escravo. Brás é filho de um proprietário abastado cujos ascendentes
didade por Pierre Rosenvallon, enriqueceram no tempo da colônia. Ele mesmo, nascido em 1805,
em Le moment Guizot (Paris:
conheceu os últimos anos do antigo regime.
Gallimard, 1985).
Sobre essa ideologia, que se poderia denominar liberalismo ex-
cludente, há uma vasta bibliografia nacional e internacional. Basta
aqui acenar para a obra ao mesmo tempo inovadora e conservadora
do Visconde de Cairu, tão agudamente interpretada por Pedro Mei-
ra Monteiro,1 bem como os discursos liberal-escravistas de Araújo
Lima, Bernardo de Vasconcelos e de Paulino de Sousa, corifeus do
regressismo. A nossa historiografia universitária conta com um es-
tudo modelar desse período, O tempo saquarema, de Ilmar Rohlf de
Mattos. Em âmbito maior, há a recente Contra-história do liberalis-
mo, de Domenico Losurdo.2
Trata-se de uma formação ideológica de notória força e consis-
tência, que vingou em todas as grandes áreas de plantagem, como
o Nordeste e o Vale do Paraíba, as Antilhas francesas, inglesas e
espanholas (Guiana, Martinica, Guadelupe, Jamaica, Cuba), o Sul
profundo algodoeiro dos Estados Unidos.
A singularidade desses complexos agrocomerciais e escravistas
está em que vigoraram simultaneamente com as constituições liberais
promulgadas nas metrópoles européias: a França das Cartas da Res-
tauração e da Monarquia de Julho; a Inglaterra do começo do século
XIX, regida por um robusto parlamentarismo burguês; a Espanha
das cortes liberales; e, em nosso caso, o Brasil recém-independente,
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Ver: DUHAMEL, Olivier. Histoi- tabelecendo um regime de monarquia constitucional cujos eleitores
re constitucionnelle de la France. seriam tão-somente cidadãos-proprietários.4
Paris: Seuil, 1994. As restrições ao
Um dos pilares políticos e ideológicos da monarquia parlamen-
direito de voto eram severíssimas
tar orleanista (1830-1848), Guizot, celebrizou-se por ter dito estas
tanto nos regimes constitucionais
europeus como nas ex-colônias duas frases aos deputados da Assembléia francesa: “Enriquecei-
latino-americanas. vos” – conselho que valia por uma síntese do pensamento burguês
em ascensão; e “O tempo do sufrágio universal não virá jamais”,
profecia que a República iria desmentir, e era expressão por exce-
lência do liberalismo antidemocrático. Não por acaso, Guizot será
citado no programa que Brás Cubas redigiu para dar lustro ao seu
jornal bravamente oposicionista (cap. “O programa”).
Ambas as dimensões dessa ideologia pós-revolucionária e anti-
revolucionária, concebidas inicialmente na Europa, foram ajusta-
das à realidade pós-colonial brasileira e latino-americana, mediante
legislações que asseguraram o poder das oligarquias, assim como
na França a Carta de 1814 e a monarquia de 30 asseguraram o do-
mínio da burguesia. O Código Civil Napoleônico, sacralizando o
direito de propriedade, o jus utendi et abutendi, e escamoteando a
realidade vexatória da escravidão e das várias formas de trabalho
compulsório, serviu de paradigma ao direito patrimonial das me-
trópoles européias e da América Latina em todos os novos regimes
ditos constitucionais.
O Brasil de Brás não vivia fora dessa órbita ocidental; ao con-
trário, com a abertura dos portos em 1808 e o processo de indepen-
dência estimulado pela Inglaterra, a nação entrava definitivamente
no circuito do capitalismo internacional como país agroexportador,
conservando estruturalmente, e não aleatoriamente, o instituto da
escravidão.
O cativeiro nas colônias francesas só foi abolido, mediante inde-
nização, em 1848; Brás contava então 43 anos de idade.
No Sul algodoeiro dos Estados Unidos a escravidão só foi abo-
lida, de fato, depois da Guerra da Secessão (1865), quando Brás já
chegara aos 60 anos de idade. Cá e lá...
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Para o estudo dos programas primeiros republicanos fluminenses pernambucanos e gaúchos; en-
e das iniciativas dos liberais dos fim, o liberalismo crítico da geração de 70.5
anos 60, ver: CHACON, Vamireh. Essa contra-ideologia, que marcaria o seu primeiro tento na ba-
História dos partidos políticos
talha da Lei do Ventre Livre (1871), aborrece os costumes e as ra-
brasileiros. 3. ed. Brasília: Ed. da
UnB, 1998. O Manifesto do Centro
cionalizações dos liberais excludentes, defensores contumazes das
Liberal, proclamado em 1869, assimetrias sociais e coniventes com a escravidão, enquanto seus
citava as medidas implantadas desfrutadores diretos ou indiretos. E, o que nos interessa de perto,
pelo Partido Liberal da Bélgica o Machado de 1880 pôde pôr na boca do defunto-autor de 1869 a
em 1848 e as reformas eleitorais sátira ao clima mental e moral do Brás Cubas de 1822. Duas menta-
inglesas apoiadas por Gladsto-
lidades, portanto, ostentando, por motivos diversos, o mesmo nome,
ne. Propunha eleição direta na
Corte, capitais de província e
então respeitado, de liberalismo. Cada fio ideológico está no seu lu-
cidades maiores, mas conserva- gar, e é o seu entrelaçamento que dá o nó.
va a base de renda exigida pela As práticas conservadoras e a sua contestação esgotariam o nosso
Constituição. Incluía a liberdade projeto de contextualização ideológica, se nos detivéssemos nesse
dos nascituros filhos de escravos Machado democratizante, tão veemente nas suas passagens pela
e a alforria gradual dos escravos
imprensa oposicionista entre 60 e 67. O sólido livro de Jean-Michel
remanescentes. A melhor análise
do liberalismo de 60 encontra-se
Massa, A juventude de Machado de Assis, acompanha, ano a ano, mês
em: CARVALHO, José Murilo de. A a mês, as fogosas diatribes do Machadinho cronista que atacava de
construção da ordem: a elite polí- rijo a fortaleza saquarema que, nesse mesmo decênio de 60, tenta-
tica imperial. Rio: Campus, 1980. va engessar a política imperial e resistir a toda e qualquer medida
6
MASSA, Jean-Michel. A juven- progressista.6
tude de Machado de Assis. Rio de Mas... depois de ter caracterizado a “imoralidade”, isto é, o ci-
Janeiro: Civilização Brasileira, nismo da sua observação sobre a venalidade das mulheres amadas e
1971. A obra clássica que nos faz amantes, o defunto autor, como faria tanto tempo depois o Conse-
entender a passagem do velho ao
lheiro Aires, se põe a trabalhar de novo, mas já agora em outro mol-
novo liberalismo é a biografia po-
lítica de Tomás Nabuco de Araújo
de, o seu julgamento: encobre o que descobrira e passa à constatação
escrita por seu filho, Joaquim desenganadamente “realista” de tudo o que os moralistes já tinham
Nabuco: Um estadista do Impé- acusado como culto das aparências brilhantes e universal vaidade
rio. Imprescindível é a leitura de do homem. Em vez de deter-se na condenação pura e simples da-
Os donos do poder, de Raymun- quela “reflexão imoral”, veja-se para onde vai a auto-explicação do
do Faoro (5. ed. Porto Alegre:
memorialista:
Globo, 1979), também autor de
Machado de Assis: a pirâmide e o
O que eu queria dizer é que a mais bela testa do mundo não
trapézio (São Paulo: Companhia fica menos bela, se a cingir um diadema de pedras finas;
Editora Nacional, 1974), ensaio nem menos bela, nem menos amada (cap. 16).
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Aquele fio de crítica idealista lançado à conduta do mocinho le- que examinei em “Raymundo Fa-
viano como que se desdobra e dá lugar a um terceiro fio, mais fino, oro, leitor de Machado”, em Brás
mas não menos resistente. A reflexão de Brás, havia pouco quali- Cubas em três versões (São Paulo:
Companhia das Letras, 2006).
ficada de imoral, segundo um critério ético rigoroso, que rejeitava
toda venalidade e toda entrega ao luxo cintilante das jóias, agora é
reelaborada em termos que supõem uma atitude concessiva, cuja
forma lembra o estilo diplomático de quem morde mas sopra. O
brilho das pedras raras pode, afinal, muito bem casar-se com a bele-
za da mulher e com o amor que lhe dedica o seu amante. Primeiro,
descobrir; depois, encobrir. Primeiro acusar, depois atenuar. A boca
da sátira primeiro mordeu, mas o hálito gélido soprado pelo defun-
to autor procurou abrandar a dor da ferida. O terceiro fio aí reponta,
e será completamente desenrolado em outras situações.
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CARPEAUX, Otto Maria. Uma Leopardi, a concepção da natureza madrasta, invertendo o tópos
fonte da filosofia de Machado de consolador da natureza-mãe que Rousseau e os românticos haviam
Assis. In: ______. Reflexo e re-
figurado.11
alidade. Rio de Janeiro: Fontana,
Também em Machado, a mulher, posto que enigmática, consen-
1978. p. 215-218.
te em dialogar com Brás em delírio. A sua mensagem é fundamen-
12
LEOPARDI, Giacomo. Dialogo
talmente a mesma que sai da boca da natura leopardiana. Nem be-
della natura e di islandese. In:
nigna nem maligna, ela abandona à sorte as criaturas que engendra
______. Tutte le opere di Giaco-
mo Leopardi. A cura di Francesco e continuará engendrando pelos séculos dos séculos. Em resposta
Flora. 4. ed. Milão: Mondadori, aos lamentos indignados do pobre islandês, que se revolta com a
1951. p. 888. O diálogo consta indiferença daquela que todos consideram mãe e fonte de vida, a
das Operette morali, e teria sido natureza só tem estas palavras:
redigido, segundo Flora, em maio
de 1824. Machado leu-o no origi-
Tu mostras não compreender que a vida deste universo é
nal italiano.
um perpétuo circuito de produção e destruição, ligadas am-
bas entre si de maneira que cada uma serve continuamente
à outra e à conservação do mundo; o qual, desde que cessas-
se ou uma ou outra, chegaria igualmente à dissolução.12
Responde-lhe a Natureza:
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MANNHEIM, Karl. Ideologia e O primeiro deriva da Ideologia alemã de Marx e Engels: por ide-
utopia. Trad. brasileira. Rio de Ja- ologia entende-se um pensamento que legitima o poder da classe
neiro: Zahar, 1972. 1. ed. 1929. dominante e justifica como naturais e universais as diferenças entre
15
Diz Lukács: “Na medida em as classes socioeconômicas e os estratos políticos. Ideologia, neste
que um pensamento continua caso, é basicamente manipulação, distorção, ocultação.
sendo simplesmente o produto A segunda acepção foi construída pelo historicismo e pela socio-
ou a expressão ideal de um indi-
logia do saber, tendo por inspirador Dilthey e continuadores, entre
víduo, por maior que seja o valor
ou o desvalor que possa conter,
si bastante diversos, Max Weber, Scheler e o próprio Mannheim.
não pode ser considerado uma Ideologia seria sinônimo de visão-de-mundo, concepção do homem
ideologia. Nem mesmo uma di- e da História, estilo de época; em suma, complexo de representações
fusão social mais ampla é capaz e valores peculiar a um determinado país ou a uma determinada
de transformar um complexo de cultura.14
pensamentos diretamente em
Em princípio, esta segunda acepção parece ajustar-se melhor ao
ideologia. Para que isso ocorra,
é necessária uma função social
moralismo seis-setecentista e a todo estilo de pensamento que de-
bem determinada, que Marx semboca em afirmações desenganadas sobre os móveis do compor-
descreve distinguindo com pre- tamento humano, reduzindo-os ao amor-próprio e ao interesse que
cisão as perturbações materiais dobram a seu talante a consciência moral, forjando racionalizações
das condições econômicas e as as mais variadas.
‘formas jurídicas, políticas, reli-
Entretanto, cumpre historicizar essa mesma tendência, aliás re-
giosas, artísticas ou filosóficas,
ou seja, as formas ideológicas
mota nas suas formulações universalizantes, considerando que já
que permitem aos homens con- estava presente no Eclesiastes, não por acaso várias vezes citado na
ceber esse conflito e combatê-lo’ obra de Machado de Assis. Seria preciso verificar, em cada uma de
”. (Ontologia dell’essere sociale. suas ocorrências, se esse pensamento vem expresso por intelectuais,
Tradução de Alberto Scarponi. no caso, moralistas, isolados, cujo raio de ação é limitado, não repre-
Roma: Riuniti, 1981. v. 2, p. 445).
sentando tendências sociais marcadas pela sua vigência efetiva nos
respectivos contextos. Ao repensar o conceito de ideologia, Lukács
nega que possa convir a um indivíduo e insiste na necessidade de
relacioná-lo sistematicamente com os interesses objetivos e as mo-
tivações de classes efetivamente empenhadas na luta defensiva ou
agressiva pela manutenção de posições hegemônicas no seu contex-
to social.15
Não se deveria, se aceitarmos a restrição de Lukács, falar de uma
“ideologia machadiana”: mas, na medida em que o moralismo de-
senganado tem por fim a denúncia da ideologia dominante, tornan-
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Examinei algumas dessas crô- entre 60 e 67, exemplifica à saciedade. E há um corpus bastante ho-
nicas em “O teatro político nas mogêneo de crônicas da maturidade que pendem para o desengano
crônicas de Machado de Assis”, profundo não só dos políticos brasileiros como também da política,
inserido em Brás Cubas em três
em geral.16
versões.
Embora sem levar ao extremo divisões cronológicas cortantes,
quer-me parecer que se possam reconhecer ao menos duas tendên-
cias (a rigor contra-ideológicas) ao longo da carreira intelectual de
Machado: o liberalismo democrático da sua juventude, cujo ponto
alto são as suas manifestações abolicionistas, e o moralismo pessi-
mista, que o distingue nitidamente das correntes contemporâneas, o
republicanismo jacobino, o positivismo e o evolucionismo.
Depois de puxados os fios existenciais e ideológicos enovelados
na fatura das Memórias póstumas, o melhor talvez seria atá-los de
novo e deixar que formem o nó, como fez com eles Machado de
Assis.
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