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REVISTA

Numismática e Medalhística
N.º 0 · 2017
FICHA TÉCNICA
Revista M
Número 0 · 2017

Âmbito e objetivos
A Revista M é a revista digital do Museu Casa da Moeda. De periodicidade anual, nela se publi-
cam textos que representam contributos relevantes para os estudos de Numismática, Medalhís-
tica e outras ciências afins. Admitem-se textos para publicação nas línguas portuguesa e inglesa
e acolhem-se propostas para números monográficos dedicados a temáticas específicas.

Diretor

REVISTA M · Nº 0 · 2017
Mário de Gouveia (INCM/MCM)

Conselho Editorial
Alberto Canto García (UAM, Madrid)
Maria João Gaiato (INCM, Lisboa)
Maria Rosa Figueiredo (FCG, Lisboa)
Mário Barroca (FLUP, Porto)
Rita Martins de Sousa (ISEG, Lisboa)
Rui Centeno (FLUP, Porto)
Ruth Pliego Vázquez (IEA, Paris)

Coordenador Científico do Número


Mário de Gouveia (INCM/MCM)

Propriedade
Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda
Avenida António José de Almeida
Edifício Casa da Moeda
1000-042 Lisboa (Portugal)
museucasadamoeda@incm.pt
www.museucasadamoeda.pt

Design
Vivóeusébio

Paginação
Imprensa Nacional-Casa da Moeda

Copyright © 2017 Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda.

ii

www.museucasadamoeda.pt
ÍNDICE
Nota de convite à
editorial apresentação apresentação
02 04 de artigos
112

• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • ARTIGOS • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

As duas faces As moedas da Algumas observações


da Moeda em Antiguidade sobre a circulação da
revistas digitais: enquanto moeda na Lusitânia

REVISTA M · Nº 0 · 2017
conhecimento e lazer microrrepresentações do século III
ISABEL MANSO RIBEIRO de diferentes modelos José Ruivo
artísticos: da Grécia
Clássica à formação
06 dos modelos 50
bizantinos
Mário BRUNO PASTOR

25
Notas sobre um O retrato e as
tesouro monetário representações
da época islâmica ornamentais
encontrado em Moedas da primeira nas armas reais
Silves (INCM/MCM dinastia provenientes portuguesas em
22990-23079) do Castelo dos amoedações de ouro
Mário de Gouveia Mouros (Sintra): cunhadas entre
notícia preliminar 1722 e 1878
das escavações Mário BRUNO PASTOR
63 arqueológicas de
2009-2011
Mário de Gouveia, 80
Maria João de Sousa

73
EDITORIAL
Revista M: Money, Medal, Mint, Museum, Modernity

É com muito gosto que vemos nascer em 2017 a Revista M, um projeto


editorial do Museu Casa da Moeda publicado pela Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda. Este projeto representa um importante desafio para
o futuro, numa época em que as novas tecnologias se afirmam como
meios privilegiados para a criação e a divulgação de ciência.
A Revista M é uma revista digital, de acesso aberto e periodicidade

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anual, que nasce com um conceito novo. Digital porque procura res-
ponder às exigências de um público interessado em aceder à investi-
gação de topo através da rede global. Novo porque se apresenta como
a única publicação periódica no país, dedicada à Numismática e à Me-
dalhística, a incorporar toda a gama de potencialidades do mundo em
rede.
Num tempo em que a internet é um dos mais rápidos motores da
criação de novas formas de interação humana, a Revista M nasce com
o propósito de se transformar numa plataforma de diálogo científico,
regulada por elevados padrões de exigência e capaz de levar a todos o
que de melhor se faz naqueles domínios. Os autores que com ela cola-
boram e os artigos que nela se publicam convergem para a constatação
de um facto que é, para nós, inquestionável: a ciência só se faz com
base na interseção permanente entre passado, presente e futuro.
A Revista M publica textos que promovam novas abordagens ao
estudo da moeda e da medalha numa perspetiva interdisciplinar. Os
textos podem apresentar-se sob a forma de artigos, recensões e notí-
cias, sendo, em qualquer caso, reveladores da importância que subjaz
à liberdade de expressão e à pluralidade de opinião.
Com a publicação deste número, estamos convictos de que a Revis-
ta M se afirmará no panorama editorial como uma revista de referên-
cia. Convidamos, por isso, os interessados a enviar-nos as suas colabo-
rações, na expetativa de que a Revista M se transforme também num

2
espaço de comunicação com o público. O contributo de todos aqueles
que são capazes de pensar a ciência é indispensável para que este pro-
jeto cresça ao longo dos anos que se seguem.

• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • O Diretor do Museu Casa da Moeda


Duarte Azinheira

O Diretor da Revista M
Mário de Gouveia

REVISTA M · Nº 0 · 2017

3
NOTA DE
APRESENTAÇÃO
O presente número da Revista M é constituído por um total de seis
artigos escritos por cinco investigadores portugueses, representando
diversos caminhos possíveis no estudo da Numismática como ciência
de foro próprio. Assinados por Isabel Ribeiro, Mário Bruno Pastor, José
Ruivo, Mário de Gouveia e Maria João de Sousa, estes artigos têm em
comum o facto de partirem da consideração da moeda como objeto
que pode ser estudado nas suas várias componentes, permitindo até
enquadramentos científicos e metodológicos mais amplos, como os

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relativos à função social da cultura e à articulação entre as noções de
património e memória.
Os artigos publicados resultam de investigações originais, que fo-
ram desenvolvidas no âmbito de trabalhos sistemáticos conducentes
à realização de teses de doutoramento e dissertações de mestrado, de
estudos sobre problemáticas historiográficas e museográficas e de re-
latórios de escavações arqueológicas levadas a cabo em sítios de in-
teresse patrimonial. Estes artigos resultam da aplicação de métodos
empíricos concretos e devem entender-se também como pontos de
partida para futuras reflexões teóricas sobre os temas explanados.
A proposta de abordagem que cada artigo preconiza é de caráter
monográfico, estando todos eles organizados, ao longo das páginas
da revista, numa sequência cronológica que se inicia com o estudo
da moeda antiga e termina com o estudo da moeda contemporânea.
Neles se abordam temas muito variados, que abrangem, por um lado,
a função desempenhada pela comunicação digital na sociedade me-
diatizada, e, por outro, alguns problemas tipológicos e metrológicos
suscitados pelo estudo de moedas e tesouros monetários.
Isabel Ribeiro propõe uma série de reflexões sobre a importância
das revistas digitais como meio privilegiado para a fruição do conhe-
cimento e o lazer. Mário Bruno Pastor visita o universo das moedas
gregas, romanas e bizantinas através da observação dos modelos ico-
nográficos e suas leituras simbólicas. José Ruivo equaciona a proble-

4
mática da crise por que o Império Romano terá passado no século III
através da análise das moedas e tesouros encontrados na Lusitânia.
Mário de Gouveia propõe algumas notas acerca de um tesouro forma-
do por moedas islâmicas e escondido em Silves por ocasião da con-
quista da cidade no século XII. Mário de Gouveia e Maria João de Sou-
sa dão notícia das moedas encontradas em escavações arqueológicas
na necrópole do adro da igreja de São Pedro de Canaferrim, junto ao
Castelo dos Mouros, em Sintra, datáveis da primeira dinastia. Num se-
gundo artigo, Mário Bruno Pastor tece considerações sobre o retrato e
as armas reais a partir da análise de moedas de ouro portuguesas dos
séculos XVIII e XIX.

• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • O Coordenador Científico do Número


Mário de Gouveia

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ISABEL MANSO RIBEIRO
Instituto de Educação da Universidade de Lisboa
ribeiro3@campus.ul.pt

As duas faces da
Moeda em revistas
digitais: conhecimento
e lazer

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Resumo

A informação divulgada neste artigo e alicerçada num âmbito predominantemente teórico


beneficiou de uma investigação mais ampla, na qual se efetuou, paralelamente à revisão da
literatura, todo um trabalho no campo empírico realizado junto da população do setor ban-
cário português. No estudo em referência foi analisada a comunicação digital e o contributo
que as revistas digitais representam no acesso ao conhecimento. As evidências encontradas
e fundamentadas numa diversificada bibliografia sobre literacia digital, práticas de leitura
digital, hábitos e motivação da leitura no ecrã, dispositivos móveis e seus aplicativos, inclusão
digital, permitiram clarificar e encontrar resposta às questões que serviram de guia à reflexão
aqui retratada. Ao longo destas páginas far-se-á uma introdução à comunicação digital insis-
tindo-se na importância das competências em literacia digital, suporte principal para que a
pesquisa, a análise e a divulgação de conteúdo, se façam de uma forma consciente e de acordo
com os princípios de cidadania. As revistas digitais pelas suas caraterísticas e potencialidades
podem estabelecer uma acentuada participação na mediação entre o conhecimento e os in-

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divíduos da sociedade dos ecrãs, sendo, também, um incentivo à leitura em ambiente digital.

Palavras chave: revistas digitais; comunicação digital; leitura digital.

Abstract

The information spread in this article, based on a predominantly theoretical framework,


has taken advantage from a broader research, in which, in parallel with the literature review,
all the work in the empirical field was carried out among the population of the Portuguese
banking sector. In the study mentioned, it was analyzed not only the digital communication
but also the role that the digital magazines play on the access to knowledge. The evidences
found and based on diversified bibliographic data about digital literacy, digital reading
practices, reading habits and motivation for reading on the screen, mobile devices and their
applications, and digital inclusion, allowed clarifying and finding answers to the questions that
guided the reflection presented here. Throughout these pages, it will be made an introduction
to digital communication, giving special importance to digital literacy skills, which is a
main support so that the research, analysis and dissemination of subjects can be done in a
conscious way and in accordance with the principles of citizenship. Digital magazines due
to their characteristics and potentiality can establish an important engagement between the
knowledge and the individuals of the screen society; they also provide a stimulus to reading
in a digital environment.

Keywords: digital magazines; digital communication; digital reading.


AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

Introdução paradigma de questões torna-se especifi-


camente pertinente na medida em que,
Na sociedade do conhecimento e da in- de forma instantânea e ilimitada, são in-
formação tornou-se um lugar-comum seridos na Web, em permanência, dados
afirmar que a comunicação ultrapassa o que permitem a transmissão da comuni-
espaço físico estabelecendo e ganhando cação, mas que, nem sempre, traduzem
cada vez mais expressão no espaço vir- a propriedade e a ética exigidas à divul-
tual1. É comum a declaração de que com gação de um conhecimento consciente e
a Web acedemos a conteúdos muito ra- de acordo com os princípios da liberda-
pidamente assim como a constatação de de de expressão.
que as dinâmicas relacionais que se esta- É com base neste panorama que se
belecem em torno dos Media sociais e a redige a presente reflexão sobre a comu-
proliferação de tecnologias móveis e suas nicação digital e mais particularmente
aplicações têm potenciado o acesso ao sobre as revistas digitais, encarando-as
saber de uma forma exponencial e diver- como uma feliz Moeda de duas faces, em
sificada2. Questionamo-nos, deste modo, que uma traduz o conhecimento e a ou-

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sobre qual a orientação da comunicação tra o divertimento. Pela sua versatilidade
digital? E a enunciação da resposta fa- as revistas digitais são publicações que
vorece, à semelhança da serendipity in- se posicionam, privilegiadamente, como
vestigada por Kop3, uma proliferação de um elemento de intercessão na gestão e
outras inquietações. Algumas com um organização de conteúdos.
enquadramento abrangente e a implicar Pelo descrito reafirma-se que a quan-
um pensamento profundo mas célere, ci- tidade de informação disponível em
tando exemplos: que competências em acesso aberto, e em diversos casos sem
literacia digital se devem deter para per- revisão de conteúdo4, implica a emer-
manecer em pleno no espaço comuni- gência de novos mediadores na comu-
cativo digital? Como promover junto da nicação de conhecimentos. Arrisca-se a
população essas competências digitais? audácia de, pelas suas propriedades, se
Que cidadania se deseja na cibercultura? situar as revistas digitais como um ex-
Como gerir a qualidade e a quantidade celente interveniente nesta intermedia-
dos recursos de acesso aberto? Outras, ção. Exemplos de revistas votadas a este
com um enquadramento mais específi- papel de curadoria são bem visíveis nas
co: qual o papel das revistas digitais no pesquisas online, pesquisas que passarão
atual contexto digital? Existe espaço a incluir a recente Revista M. Com a sua
para mais revistas digitais num domínio inauguração no espaço digital a Revis-
já por si tão repleto de informação? Este ta M, tenciona oferecer aos leitores, tal

1. Castells 2005; Griswold 2013.


2. Kop 2012; Newman & Levy 2013.
3. Kop 2012.
4. Boyd 2010.

8
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

como se pode ler na nota de divulgação, contram ao seu dispor, o que pressupõe
temas como a Numismática, a Medalhís- um entendimento acerca das tendências
tica, a Arqueologia, a História, a História da comunicação digital adequadas a
da Arte e outras ciências afins, posicio- uma determinada conjuntura7. Contudo,
nando-se, desta forma, na sociedade do para que a comunicação seja produtiva é
conhecimento digital. necessário um raciocínio cuidadoso ma-
A estrutura deste artigo está organi- terializado em recursos ajustados às ne-
zada em quatro tópicos. No primeiro te- cessidades do leitor digital, o que implica
cem-se algumas considerações teóricas saber: quais as práticas de leitura digital?
sobre a comunicação digital com relevo Inerente a esta pergunta deparamo-nos
para a importância da detenção de com- com outra: em que tipo de leitores digi-
petências em literacia digital. O segundo tais nos estamos a tornar? E ainda, quem
assunto debruça-se sobre a leitura digital são os leitores de revistas especializadas?
como processo intrínseco à comunica- As respostas a estas questões passam
ção e aquisição de saber no espaço digital. inevitavelmente por uma observação à
No terceiro tema apresenta-se o concei- literacia digital da população e pela im-

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to de revista digital, enumeram-se cara- plementação das competências identi-
terísticas deste Media assim como algumas ficadas nessa pesquisa. Se analisarmos
potencialidades. No último tópico faz-se o estudo de Lee, Lau, Carbo & Gendina
uma sugestão da narrativa a ser utilizada sobre a literacia digital e a sociedade do
nas revistas digitais e, por fim, redigem- conhecimento certificamos que:
-se as considerações finais.
The 21st century is an era of change. The
1. Comunicação Digital globe is under the influence of three
major world trends: the revolutionary
Os ambientes digitais com a integração development of information and
de múltiplos Medias num único dispo- communication technologies, the
sitivo estão a alterar a forma como co- transition to a knowledge society and the
municamos e nos relacionamos. A Web new learning mode of the Net Generation.
abriu aos cidadãos a possibilidade de te- These trends have generated a shift in the
rem um papel ativo na comunicação5. De educational paradigm, giving rise to the
divulgarem e partilharem conhecimento need to cultivate new competencies for
a qualquer hora e em qualquer lugar. De citizens in knowledge societies.8
adquirirem informação e participarem
em comunidades virtuais6. De fazerem Os autores deste relatório assinalam que
um uso consciente dos recursos que en- as tecnologias digitais irão acentuar a

5. Perrin 2015.
6. Duggan 2015.
7. Scolari 2012.
8. Lee, Lau, Carbo & Gendina 2013: 4.

9
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

Web semântica, Big Data, computação saber julgar a relevância e o propósito


em nuvem, dispositivos móveis e aplica- da informação disponível; (ii) Comuni-
tivos, a Internet das coisas, inteligência cação, que envolve; interagir com outras
artificial e vários gadgets, ou seja, tecno- pessoas ou instituições através das tec-
logias da comunicação e da informação nologias da informação e comunicação,
baseadas na sociedade e para a socieda- assim como partilhar recursos, informa-
de. Este cenário digital já está acessível ção e conteúdos digitais; colaborar atra-
mas implica uma apropriação de compe- vés de meios digitais; conhecer normas
tências essenciais para um outro modelo de conduta e cidadania em ambientes
de sociedade. Os indivíduos devem estar virtuais, além de saber lidar com a pró-
aptos a construir novos conhecimentos e pria identidade digital; (iii) Produção de
lógicas de comunicação num novo con- conteúdo; criar e editar novos conteúdos
texto social. Competências em pesquisar, numa ampla gama de ferramentas e pla-
analisar, avaliar, resumir, interpretar e taformas digitais, bem como identificar
comunicar a informação. Construir no- e reconhecer conteúdo sob proteção e
vos conhecimentos e lógicas de comuni- as licenças de uso relativas aos diversos

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cação em outros panoramas. conteúdos digitais; (iv) Segurança; pro-
Avaliar esta realidade é fundamental teção dos dados pessoais; a proteção
na medida em que a comunicação que de aparelhos e dispositivos conetados
se produz através dos ecrãs9 implica que à Internet; a proteção da saúde e a pro-
os sujeitos participantes detenham novas teção do ambiente; (v) Resolução de
aptidões. Estas capacidades têm sido ampla- problemas, identificar a necessidade da
mente debatidas pelos organismos institu- utilização de recursos digitais; decidir
cionais, entre os quais se destaca a Comissão conscientemente qual a ferramenta di-
Europeia. Atualmente, assume-se uma esta- gital mais apropriada para determinada
bilização em torno dos seus princípios base. tarefa ou determinado objetivo; utilizar
Princípios estes declarados na proposta do criativamente as tecnologias da infor-
quadro de referência das competências mação e comunicação para a resolução
digitais de Vuorikari, Punie, Carretero de problemas; identificar e resolver pro-
Gomez & Van den Brande10, da DigComp. blemas inerentes aos ambientes digitais;
Segundo este referencial, as competên- reconhecer a necessidade de atualização
cias digitais estão distribuídas em cinco das suas próprias competências digitais.
áreas: (i) Informação, que implica; locali- É elementar saber pesquisar a infor-
zar, identificar, analisar, guardar e organi- mação, analisá-la e utilizá-la de forma
zar informação obtida ou disponível nos adequada, Como destacam Cordón &
meios digitais, bem como reconhecer e Lopes11 e Cardoso12, a multiplicação de

9. Cardoso 2013.
10. Vuorikari, Punie, Carretero Gomez & Van den Brande 2016.
11. Cordón & Lopes 2011.
12. Cardoso 2013.

10
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

ecrãs está a mudar a nossa relação com ald19 refletem esta tendência. A ideia que
a leitura, quer do ponto de vista dos con-
tem sobressaído sobre o perfil de leitor
teúdos quer no modo como lemos. Os digital tipifica-o como sendo: (i) disper-
Media oferecem-nos quadros comuni- so, “salta” de conteúdo em conteúdo; (ii)
cacionais que podem ser aplicados a di- curioso, tem muita informação disponí-
versas práticas de aquisição de informa- vel; (iii) insatisfeito, pode aceder sempre
ção. A Web é amplamente utilizada para a mais assuntos. O leitor digital dispõe
pesquisar informação e os Media digitais de um tempo e de um espaço virtual. O
são usados como fonte de difusão da ecrã do dispositivo é simultaneamente
informação. Todo este enfoque de troca instrumento de trabalho, meio de comu-
delineia uma aprendizagem informal13 e nicação, recurso de informação e porta
apela à disponibilização de recursos ade-de entrada ao conhecimento. A leitura
quados a este ambiente, como por exem- no ecrã ganha novos adeptos e as vanta-
plo, e na perspetiva de Tavares14, Natan-gens são amplamente mencionadas.
sohn15, Leslie16 ou Hogarth17, as revistas Os leitores destacam a quantida-
digitais. de de informação e a rapidez de acesso,

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Estamos perante abordagens comu- como fatores impulsionadores de se ler
nicacionais que requerem novos mode- mais e mais rapidamente. Num artigo
los de disseminação de conteúdos. As publicado em 2015 concluíram Leu, For-
revistas digitais enquadram-se nesta zani, Rhoads, Maykel, Kennedy & Tim-
tipologia de recursos que aceleram a di- brell que estamos perante um novo tipo
luição das fronteiras entre o formal e o de leitores que tendem a executar três
informal traduzindo-se numa forma efi- tarefas quando leem no ecrã. Começam
caz de promover a transmissão do saber, por colocar uma pergunta de partida
de organizar e apresentar a informação que permite avançar na pesquisa, pros-
numa narrativa multimédia que permite seguem com a avaliação e síntese da
interatividade, proporcionando siner- informação e, por fim, comunicam essa
gias entre autor e leitor. informação. Os leitores digitais são leito-
res que, por norma, gostam de partilhar
2. Leitura Digital ideias através do envio de hiperligações,
posts de blogues, redes sociais, mensa-
É visível a sequência de estudos orien- gens instantâneas ou comunidades de
tados para a prática da leitura efetuada aprendizagem. Mas como é interpretada
no ecrã. Os trabalhos de Carr18 e McDon- a leitura digital?

13. Cross 2007.


14. Tavares 2011.
15. Natansohn 2013.
16. Leslie 2014.
17. Hogarth 2014.
18. Carr 2012.
19. McDonald 2015.

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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

A leitura digital é por vezes encarada McDonald, com base numa revisão
como “um conceito vago e multidimen- sistemática da literatura, de 150 autores,
sional”, expressões que se encontram na que estudaram a leitura em suporte di-
análise a um inquérito realizado à popu- gital, divulga conclusões que sugerem
lação portuguesa e coordenado por Car- que os nossos cérebros reagem de forma
doso20. De acordo com este projeto, sob diferente à leitura digital e à leitura em
esta designação estamos a agrupar exis- papel:
tências extraordinariamente díspares:
estamos a falar de livros e jornais, mas Neuroscience has made enormous strides
também de pequenos textos escritos e in the past decade and is now one of
partilhados nas redes sociais, de mensa- the most exciting fields in the natural
gens no Twitter, de e-mails e outros con- sciences. Though the field is still young
teúdos textuais que são publicados na and there is an emerging body of work
Internet onde os utilizadores são simul- emanating from it that is helping to
taneamente consumidores e produtores. highlight differences in the ways that our
Outra ideia importante, confirmada nes- brains respond to information presented

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te inquérito, é a de que os mais novos e on paper compared to information
a população com maior nível de escola- presented screens. In conjunction, with
ridade são os que tendem a ler mais em studies using more traditional behavioral
formato digital. O inquérito identificou tools, including surveys, eye-tracking,
ainda que os leitores assíduos nos su- question and answer testing, this
portes digitais são, tipicamente, leitores literature suggests that: Reading on paper
frequentes de formatos impressos. Já o is slower and deeper, while reading on
inverso não é verdade: os que leem mui- screen is faster and more in “scan” mode;
to em papel não são necessariamente Paper-based reading benefits from more
desmedidos leitores digitais. focused attention, less distraction, less
Do ponto de vista da sua linguagem o anxiety related to interruption, multi-
idioma digital rege-se segundo uma gra- tasking and cognitive load; Paper-based
mática hipermédia em que os textos, os reading is widely associated with better
sons e as imagens, se encontram ligados transfer to longterm memory and clearer
entre si por hiperligações. Perante estas comprehension…21
ilações questionamo-nos sobre se existe
algum benefício na leitura digital relati- Em estudos individuais encontramos di-
vamente à leitura em papel? A resposta versos relatos acerca dos diferentes for-
continua a ser muito controversa e os es- matos de leitura. A tendência permane-
tudos sobre esta temática multiplicam- ce a mesma, duas linhas de pensamento
-se sem que se chegue a um consenso. com cientistas a utilizarem argumentos
Debrucemo-nos sobre alguns pareceres. a favor da leitura em papel e outros a

20. Cardoso 2015.


21. McDonald 2015: 15.

12
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

justificarem os benefícios da leitura no melhorar a nossa eficiência e produtivi-


ecrã. “Há já mais de uma década que dade. Quando prestamos atenção par-
ando a passar muito tempo online, a fa- cial continuamente colocamos o nosso
zer pesquisas, e, a navegar, e, por vezes cérebro num estágio mais elevado de
a acrescentar conteúdo às grandes bases stress. Ficamos sem tempo para refletir.
de dados da internet. Para mim, como Autores do artigo, Your Brain on Google:
escritor, a Web foi uma dádiva divina.” Patterns of Cerebral Activation during
(p. 18). Esta afirmação é de Carr22, autor Internet Searching aperceberam-se, no
muito crítico da leitura digital. Leitor estudo em referência, que a internet
insaciável, como o próprio se carateriza, provoca alterações no cérebro ativando
percebeu que já não era capaz de se con- algumas das suas zonas. Para estes cien-
centrar na leitura como antes. O impulso tistas a internet mudou não somente a
de estar na internet era quase incontrolá- forma como as pessoas produzem, criam,
vel. A leitura profunda, diz Carr, tinha-se comunicam e se divertem mas também
modificado: “Costumava ser fácil mer- o funcionamento do cérebro. Esta con-
gulhar num livro ou num artigo longo. A clusão é o resultado de um estudo cuja

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minha mente ficava agarrada às voltas da pesquisa foi realizada a voluntários com
narrativa e às reviravoltas do argumento, idade compreendida entre os 55 e os 76
e eu passava horas a deambular através anos. Enquanto pesquisavam na Web fo-
de longos trechos de prosa. Agora, isso ram submetidos a testes com ressonân-
raramente acontece. A minha concentra- cia magnética funcional. Os investigado-
ção começa a andar à deriva após uma res perceberam que a exposição à rede
ou duas páginas”23. Afirma ainda que a fortalecia alguns circuitos neuronais. A
superficialidade da leitura e a distração internet pode, na ótica destes cientistas,
fazem parte dos leitores digitais: “Quan- ser uma fonte de exercícios para a mente,
to mais usam a Web, mais têm de lutar atenuando a degradação provocada pela
para se manterem focados em textos idade. Realçam que este aspeto benéfico
longos”24. Outros investigadores como, para o cérebro só ocorre com o uso mo-
Small, Moody, Siddarth & Bookheimer25 derado da Web. A superexposição tem,
referem que a leitura digital proporciona pelo contrário, efeitos nocivos. O impac-
um estado de contínua atenção parcial. to negativo potencial da nova tecnologia
Estamos permanentemente ocupados. no cérebro depende muito do conteúdo,
Não nos focamos em nada. A atenção da duração e do contexto dessa exposi-
parcial contínua é diferente da multita- ção. As mudanças visualizadas, através
refa na qual temos um propósito para de ressonâncias magnéticas, dependem
cada uma das ações paralelas e tentamos da frequência com que acedemos à rede

22. Carr 2012.


23. Carr 2012: 17-18.
24. Carr 2012: 19.
25. Small, Moody, Siddarth & Bookheimer 2009.

13
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

e fazemos pesquisas. Acerca das leituras «El bombardeo diario de información»,


digitais, transmite ainda esta equipa de dice Born, «causa en el cerebro un des-
investigadores que sacrificamos a pro- equilibrio peligroso a no ser que existan
fundidade pela amplitude. Como tende- pausas que le permitan recuperarse. Esa
mos a procurar constantemente infor- oportunidad la utiliza para reconstruir y
mações na Web o nosso cérebro navega reorganizar su red neuronal construida a
de site em site. A tecnologia incita-nos base de células nerviosas, para ordenar y
a continuar a pesquisar em vez de nos organizar lo aprendido».27
fazer parar para refletir. Desenvolvemos
uma espécie de procura permanente na Não é a leitura digital que afeta as fun-
forma de pensar e resolver problemas. A ções neurológicas mas a quantidade de
linguagem hipermédia distrai mais do informação disponível e a dispersão da
que uma leitura em modelo impresso e leitura. Nass, Ophir e Wagner da univer-
resume-se em muitos casos à leitura de sidade de Stanford realizaram uma expe-
textos curtos. riência onde concluíram que é impossí-
Similarmente, Rodríguez-López vel realizar várias leituras em simultâneo

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menciona as experiências desenvolvidas e ter uma compreensão idêntica em to-
por dois neurologistas, Marcus Raichle e das elas. Nos testes de controlo realiza-
Jan Born, os quais terão concluído que: dos compararam dois grupos de leitores:
um submetido a multitarefas relaciona-
El modo offline o desconectado del cere- das com a comunicação digital e outro
bro (cuando duerme pero, también, cuan- submetido a uma só tarefa de cada vez.
do descansa y deja de estar sometido a las O grupo de multitarefas não foi capaz de
incitaciones digitales o a las premuras de reter informações relevantes e organi-
la agenda), es simplemente imprescin- zá-las de forma adequada. Os níveis de
dible para adquirir una conciencia cabal desempenho foram consideravelmente
de nuestra propia identidad, para rumiar mais baixos comparativamente ao grupo
nuestros problemas y para aportar solu- que realizou uma tarefa de cada vez.
ciones o ideas innovadoras fruto de esa
digestión pausada.26 The present research suggests that
individuals who frequently use multiple
O resultado desta investigação não é media approach fundamental information
novidade à prática da leitura digital, a processing activities differently than
situação descrita aplica-se a todos os do those who consume multiple media
procedimentos vivenciais. O cérebro ne- streams much less frequently: their
cessita de descansar para absorver mais breadth-biased media consumption
informação. Porém, fica o reforço de que: behavior is indeed mirrored by breadth-
biased cognitive control. HMMs have

26. Rodríguez-López 2011: 220.


27. Rodríguez-López 2011: 220.

14
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

greater difficulty filtering out irrelevant leva a que se leia mais. A socióloga con-
stimuli from their environment (as sidera que os utilizadores que passam
seen in the filter task and AX-CPT with mais tempo na Internet são os que leem
distractors), they are less likely to ignore mais. Ler é, aliás, segundo a autora, uma
irrelevant representations in memory (two- condição absolutamente necessária para
and three-back tasks), and they are less se navegar e participar na Web. Como
effective in suppressing the activation of destacam Arévalo & Córdon, o contexto
irrelevant task sets (task-switching).This digital:
last result is particularly striking given the
central role attributed to taskswitching in … traerá nuevas prácticas de aprendizage
multitasking. 28 cada vez más alejadas de la lectura lineal
y más próximas a narrativas reticulares
Quanto mais intensamente a multitarefa proporcionadas por las capacidades de la
é praticada menos capacidade têm para integración entre hipertextualidad, multi-
selecionar a memória em funcionamen- media, y realidade aumentada que abren
to e maior é a distração. Perdem sistema- nuevos escenarios para la adquisición de

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
ticamente a capacidade de diferenciar conocimientos, en dispositivos, que con
entre o que é importante e o irrelevan- un solo toque de pantalla, facilitan la in-
te. Reagem a qualquer informação que teracción, la exploración y la investigación
atrai a sua atenção, levando-os a perder en profundidad.30
a capacidade de avaliação. Em síntese,
segundo esta equipa de investigadores, a O neurologista António Damásio31 en-
concentração e a qualidade da avaliação contra-se entre o grupo de cientistas que
da informação dos que praticavam ta- considera que a tecnologia não prejudica
refas em simultâneo e de forma assídua a capacidade de concentração. O cérebro
descia gradualmente. consegue adaptar-se sem perder capaci-
Os resultados das investigações aqui dade de aprendizagem. Um ambiente
destacadas em nada contrariam a impor- estimulante como o da Web aumenta a
tância da leitura digital, apenas alertam possibilidade de a inteligência se desen-
para a necessidade de um maior esforço volver.
na concentração, organização e sentido E estará a população disposta a con-
crítico. Como a realidade virtual é um sumir leitura digital? A resposta a esta
mundo de contrariedades examinemos pergunta, baseada nos estudos de diver-
alguns estudos que apontam outro tipo sos investigadores que se dedicam a este
de considerações para a leitura digital. tema32, é a de que os cidadãos estão na
Wendy Griswold29 sugere que a Web sua generalidade dispostos ao consumo

28. Nass, Ophir & Wagner 2009: 15585.


29. Griswold 2013.
30. Arévalo & Córdon 2013: 17.
31. Damásio 2014.
32. Córdon & Lopes 2011; Cardoso 2013; Ackerman & Goldsmith 2011; Duggan 2015; Newman 2016.

15
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

de leituras digitais. O formato editorial quer esteja em causa um suporte impres-


digital é um formato em forte expansão so ou digital. Contudo, repensar o papel
o que faz prever o seu sucesso e a sua das revistas no ecossistema mediático é
aplicação nas leituras quotidianas. No- essencial apesar de a sua função perma-
vas práticas de literacia estão cada vez necer a de sempre: a de contar histórias, a
mais implementadas na sociedade. É co- de informar e a de divertir. A forma como
mummente aceite na investigação sobre se conta a história e se informa ganha no-
a literacia mediática que os leitores estão vas potencialidades enriquecida com a
a mudar as suas práticas de leitura. As es- tecnologia. A narrativa aglomera mais re-
tratégias de aquisição de conhecimento cursos e entra no campo da multimédia,
requerem produtos com narrativas ade- todavia o conceito de revista permanece
quadas ao meio. Pelo exposto, as revistas o mesmo. Examinemos, de acordo com
digitais podem ser um recurso de grande o indicado por Ribeiro34, como têm sido
utilidade, nomeadamente, na organi- analisadas as revistas digitais.
zação da informação, na quantidade de O conceito de revista digital está in-
conteúdo e na diversidade de linguagens timamente ligado à posição dos autores

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
utilizadas. que escrevem sobre esta temática. Hol-
mes & Nice35, Scalzo36, Leslie37, Hogart38,
3. Revistas Digitais, o Conceito Dourado39 são algumas das referências
na delimitação terminológica deste ter-
Como salienta Ribeiro33, olhar para uma mo. Se é certo que os peritos destacam
revista é quase irresistível. O impacto características comuns a este Media
visual é instantâneo. O design desper- também é comum ver o conceito asso-
ta-nos o desejo para a leitura dos con- ciado a diversos formatos de publicação,
teúdos. Os leitores estabelecem um elo por exemplo, réplicas da versão impres-
emocional com este objeto. A mensagem sa, revistas multimédia, revista interativa,
é lida sem grande complexidade. só para mencionar algumas das atribui-
Juízo “agradável” e sustentado na ções. Como explica Leslie, no contexto
revisão da literatura. As revistas têm, ao contemporâneo a revista continua a
longo do seu percurso histórico, desem- ser uma forma de comunicação “that
penhado uma função central na capta- can avoid the template-driven urgency
ção de leitores. Diz-nos a bibliografia que of the newspaper or website, while
este Media continua a fascinar o público not demanding the timeless reflection

33. Ribeiro 2017.


34. Ribeiro 2017.
35. Holmes & Nice 2012.
36. Scalzo 2014.
37. Leslie 2014.
38. Hogart 2014.
39. Dourado 2014.

16
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

expected of the book or TV documentary.” Nice45 na qual indicam cinco caracterís-


40
Na mesma linha de pensamento, con- ticas essenciais para formar uma Teoria
tudo adicionando mais elementos, Scal- Geral de Revistas:
zo afirma que “Uma revista é um veículo
de comunicação, um produto, um negó- (1) Magazines always target a precisely
cio, uma marca, um objeto, um conjunto defined group of readers; (2) Magazines
de serviços, uma mistura de jornalismo base their content on the expressed and
e de entretenimento (...) Quem define o perceived needs, desires, hopes and fears of
que é revista, antes de tudo, é o seu lei- that defined group; (3) Magazines develop
tor.”41 Também Dourado afirma “que o ar- a bond of trust with their readerships;
gumento mais sólido e que dá luz ao con- (4) magazines foster community-like
ceito de revista, no jornalismo, reside na interactions between themselves and
especialização e em seus desdobramen- their readers, and among readers; (5)
tos, como a tematização, que é basica- Magazines can respond quickly and
mente abordar os fatos/acontecimentos flexibly to changes in the readership and
por temas, em vez de por fatos isolados.”42 changes in the wider society.

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
Para Hogarth as revistas oferecem con-
teúdos de informação e de lazer o que Com base nas aceções examinadas, as-
justifica o seu sucesso, “This formula has sume-se que uma revista digital é uma
always been – and continues to be – the publicação periódica concebida e forma-
key to successful publishing”43. Revela tada para ser lida no ecrã. Carateriza-se
ainda duas boas práticas para o sucesso por conter recursos interativos e hiper-
das publicações, que são: conhecer o lei- textuais, o que permite novas experiên-
tor e a especialização temática. Hogarth cias narrativas. Normalmente é concebi-
declara que no conceito as edições digi- da para ser lida em dispositivos móveis.
tais são muito similares às versões im- A portabilidade, acessibilidade, e funcio-
pressas, contudo: “digital versions allow nalidades, são categorias associadas a
far more possibilities such as embedding este formato de comunicação.
video or links into the pages thus enhan-
cing the user`s experience and enabling 3.1. Categorização das Revistas Digitais
the reader to build a library of issues wi-
thout the bulk of print versions.”44 Como Cada revista tem a sua identidade pró-
os leitores são o principal foco na con- pria mas todas elas têm caraterísticas em
ceção e desenvolvimento deste Media comum e, por isso mesmo, e indepen-
acrescenta-se a reflexão de Holmes & dentemente do suporte de publicação,

40. Leslie 2014: 6.


41. Scalzo 2014: 12.
42. Dourado 2014: 111.
43. Hogarth 2014: 2.
44. Hogarth 2014: 91.
45. Holmes & Nice 2012: 7.

17
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

do formato e da natureza do conteúdo, nage47 destacam, a segmentação, a por-


fazem parte do mesmo género narrativo. tabilidade e a identidade gráfica, como
A revista é um meio de comunicação componentes herdados das publicações
e é assim que é encarada neste artigo. impressas. Como elementos vindos dos
Uma das suas distinções em relação aos meios digitais destacam a leitura mul-
outros Media é o facto de ser mais espa- timedia, a interatividade e o hipertexto.
çada no tempo permitindo um ciclo de Como constituintes exclusivos das re-
produção mais lento e cuidadoso. Como vistas digitais para Tablets identificam a
afirma McLoughlin46, a sua periodicida- orientação dupla e a profundidade. Mais
de proporciona a qualidade nas temáti- recentemente, e porque a tecnologia está
cas transmitidas e o design gráfico con- em permanente evolução, acrescenta-se
fere-lhe uma certa aura de sofisticação à organização dos autores mencionados
e glamour que a distingue dos outros a designação de dispositivos móveis.
Media. É de evidenciar que a versão on- A revisão da literatura mostra que a
line, que em muitos casos disponibiliza classificação atribuída às revistas digitais
informação diariamente, é uma ligação não é unânime. As diferentes teorias que

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
do leitor às versões periódicas e não uma resultam da elaboração de estudos sobre
alternativa ao conteúdo impresso ou di- esta temática apontam para classifica-
gitalizado para dispositivos móveis. ções distintas de acordo com o meio, o
Uma revista digital implica um traba- formato da publicação e a natureza do
lho em equipa. Um corpo editorial, uma conteúdo. Alguns autores, como Dou-
redação, fotografias e ilustrações, design rado48 admitem que as revistas digitais
gráfico. Implica plataformas e softwares podem ser distribuídas em três formatos:
adequados. Os artigos são concebidos na Web, em Smartphone e em Tablet. No
com narrativa multimédia. A fórmula estudo realizado por esta investigadora
editorial assinala a personalidade de é possível identificar seis modelos de
uma revista. O tipo de conteúdo, a for- revistas digitais: Sites de Revistas, Webzi-
ma como é apresentado, a imagem que nes, Revistas Portáteis, Revistas Expandi-
sustenta o texto ou que funciona como o das, Revistas Nativas Digitais e Revistas
próprio conteúdo, aliado a toda uma es- Sociais. Em relação aos Sites de Revistas
tratégia de posicionamento junto do lei- refere que praticamente todas as revis-
tor contribuem para a imagem de marca tas impressas têm Sites de Revistas que
de uma determinada publicação. funcionam com objetivos distintos, no-
As revistas digitais resultam de uma meadamente, a fidelização do cliente ao
mistura de caraterísticas herdadas das produto impresso, ou como canal para
publicações impressas a que se juntaram aprofundar os assuntos tratados, ou pro-
particularidades digitais. Horie & Pluvi- porcionando ao cliente recursos multi-

46. McLoughlin 2000.


47. Horie & Pluvinage 2013.
48. Dourado 2014.

18
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

mediáticos nas narrativas, com áudio, vista é, justamente, apresentar o conteú-


vídeo, infográfico interativo ou galeria de do de forma inovadora e inédita, a partir
fotos. O Site pode ainda proporcionar a do uso da tecnologia, buscando não re-
participação do público ou de produção petir formatos típicos de outros medium,
de conteúdo colaborativo. As Webzines, inclusive, da própria revista impressa.”50.
segundo modelo, são publicações fecha- Neste tipo de modelo o leitor pode ser in-
das distribuídas num meio digital. Per- cluído na construção do conteúdo. O sex-
mitem a inserção de narrativa multimé- to modelo identificado por Dourado re-
dia enriquecendo o conteúdo. Sobre as fere-se às Revistas Sociais. “Este conjunto
Revistas Portáteis refere que o surgimen- abarca os produtos autodenominados
to dos aplicativos de revistas que podem revistas que são visualizados através de
ser adquiridos em lojas virtuais, de modo softwares que rodam em sistemas ope-
gratuito ou pago, deslocaram o consumo racionais de tablets. Estes programas são
para os pequenos aparelhos móveis. Em convertidos em produtos a partir do uso
relação às Revistas Expandidas, quarto continuado do usuário, que configura
modelo, salienta que as revistas que do- perfis de redes sociais para receber infor-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
minam o mercado com vendas e anún- mações noticiosas ou da esfera privada.”
cios afirmam a presença editorial tam- As informações são organizadas funcio-
bém nos dispositivos móveis, suporte em nando como agregadores de conteúdo.
que são disponibilizadas as publicações “A prática destes produtos, intitulados re-
deste paradigma. Tais revistas utilizam a vistas, tem relação direta com a cultura
versão impressa na íntegra e adicionam vigente no ciberespaço, principalmente
novos elementos de conteúdo multimé- em termos de autonomia de produção e
dia em níveis de aplicações diversas. Por de distribuição de conteúdos”51. A autora
serem uma extensão potencializada da salienta que os quatro modelos iniciais
versão impressa, Dourado49 optou por de- têm muitas semelhanças com as carac-
signá-las Revistas Expandidas. As Revis- terísticas das revistas impressas, “tendo
tas Nativas Digitais constituem o quinto a capa como principal representação
modelo. São publicações desenvolvidas simbólica e identitária da revista, e com
exclusivamente para Tablet e têm cres- conteúdo disponibilizado de modo se-
cido no mercado editorial. “Pelo caráter quencial, algumas com simulação do
exclusivo, pensadas e desenvolvidas com folheio, como as Webzines, que são pen-
foco na plataforma, a expectativa é que sadas para leitura em computador, note
as produções sejam interativas e expe- ou netbook. O folheio é adaptado – não
rimentais, propondo uma linguagem simulado – nas Revistas Expandidas e
inovadora, condizente com as caracterís- Nativas Digitais, ambas consumidas em
ticas do suporte Tablet. A proposta da re- tablets, com navegação por conteúdo e

49. Dourado 2014.


50. Dourado 2014: 120.
51. Dourado 2014: 121.

19
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

orientação de leitura dinâmica, aspectos desenvolvido especificamente para ecrãs


previstos na especificidade tecnológica táteis e que possibilita uma grande inte-
do aparelho”52. ração com o utilizador.
Numa outra perspetiva, Burke53 classifi-
ca as publicações digitais de duas formas 4. As Revistas Digitais e suas Narrativas
distintas. A primeira debruça-se sobre o
formato da publicação, a segunda sobre A tecnologia que usamos para ler muda
o tipo de conteúdo divulgado de forma a nossa relação com a narrativa? Se re-
digital. Como alguns tipos de publica- metermos a resposta para o estudo de
ção podem ser desenvolvidos em mais Burke54 constatamos que os dispositivos
do que um formato, Burke relacionou os de leitura possuem caraterísticas pró-
tipos de publicação e os formatos mais prias que determinam a capacidade de
adequados a cada um deles. O conteú- leitura de cada indivíduo em relação às
do digital pode ser divulgado através publicações digitais. Na mesma linha de
de diversos dispositivos de leitura que investigação, também Mitchell & Page55
determinam a capacidade para a lei- consideram que os leitores digitais prefe-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
tura de cada tipo de publicação digital. rem ler revistas digitais em dispositivos
Burke classifica-os em quatro classes: móveis em detrimento de um ecrã de
computadores, smartphones, ereaders e computador. Tal opção deve-se às capa-
tablets. Destaca ainda diversos tipos de cidades que a narrativa multimédia ofe-
publicação digital em relação aos seus rece nestes dispositivos.
formatos, dos quais destacamos: o Pdf, As revistas digitais56 oferecem uma
a réplica digital e a revista interativa. O narrativa que combina elementos está-
Pdf foi, e continua a ser para algumas ticos, como texto, com elementos dinâ-
publicações, o formato privilegiado para micos, como áudio, vídeo, infográficos,
a distribuição das publicações digitais. gráficos dinâmicos. Esta conjugação
Possui alguma interatividade através de entre os elementos comunicacionais
hiperlinks e é possível a sua leitura em proporciona uma experiência multisen-
quase todos os dispositivos. A réplica di- sorial em que é usada a visão, a audição
gital é, como o próprio nome indica, uma e o tato. Permite experiências de leitura
cópia da versão da revista impressa e sensíveis ao toque e a obtenção de infor-
permite a introdução de hiperlinks, com mação mais completa.
texto, audio e vídeo. A revista interativa A narrativa para uma revista digital
nasceu, segundo a classificação proposta é uma narrativa multimédia e, esta está
por Burke, com o ipad e apresenta uma associada à migração das revistas para o
interatividade acentuada. É um formato ambiente digital. As potencialidades do

52. Dourado 2014: 123.


53. Burke 2013.
54. Burke 2013.
55. Mitchell & Page 2015.
56. Pluvinage & Horie 2013.

20
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

meio são, deste modo, os canais promo- história das revistas e nas suas narrativas.
tores do conteúdo. Como se processou As revistas utilizam uma linguagem
esta evolução? Anthony Quinn57 identi- que agrada, os temas proporcionam re-
fica sete fases na migração das revistas flexão, concentração e experiências de
para o ambiente digital. Começa por leitura diversificada. A revista digital é
descrever a produção digital com início na sua essência interativa. Os conteúdos
em 1980; seguindo-se a revista em CD- são formatados para serem lidos no ecrã.
-Rom em meados de 1990; prosseguindo Têm um tratamento estético atraente
com os Websites também em meados de sendo um fator motivador para a leitura.
1990; ainda as revistas digitais online em
meados de 1990; a Extensão da marca em Considerações Finais
início de 2000, as revistas digitais, em
formato exclusivamente online em mea- Os estudos comentados neste artigo
dos de 2000 e, por fim, a partir de 2010 revelam que nos estamos a tornar em
as revistas digitais exclusivamente para leitores mais frequentes, motivados em
leitura em dispositivos móveis, com uma grande parte pelo uso da tecnologia di-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
narrativa multimédia. Acrescentando gital. O desenvolvimento das tecnologias
alguns elementos a esta perspetiva his- da informação e comunicação e o acesso
tórica diz-nos Freire58, que para Anthony aberto ao conhecimento contribuíram
Quinn a primeira fase é anterior ao iní- para alterar positivamente o número de
cio da Internet. As revistas circulavam leitores na sua generalidade. No caso
por e-mail ou em serviços de teletexto. A concreto de revistas digitais é possível
segunda fase é a da produção digital con- observar um aumento no acesso atra-
solidada com a utilização de programas vés dos números divulgados em estatís-
de edição eletrónica. As revistas em CD- ticas nacionais, como os da Associação
-Rom consistiam em publicações grava- Portuguesa para o Controlo de Tiragem
das exclusivamente para este dispositivo. (APCT, 2017) e em estatísticas interna-
A terceira fase, carateriza-se pela criação cionais, como The Magazine Publishers
de Websites destinados à divulgação das of American (MPA, 2017). Sublinhe-se,
revistas. As versões eram reproduções porém, que os estudos não revelam um
em pdf, a que Quinn atribui a denomi- acréscimo da leitura digital em profun-
nação de digital facsimiles. A extensão didade mas evidenciam um aumento
da marca inclui a introdução de redes no número de horas dedicados à leitu-
sociais e canais no Youtube. A partir de ra. Estamos em permanência ligados ao
2006 encontram-se criadas condições e-mail, aos tweets, às conversas nas redes
para a publicação de edições exclusiva- sociais, às SMS, às notícias. Existem exce-
mente online. Em 2010, com o lançamen- ções à leitura digital? Claro que sim, po-
to do ipad, dá-se um importante salto na rém é cada vez mais difícil abstermo-nos

57. Quinn 2017.


58. Freire 2016.

21
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

da leitura nos ecrãs. A economia digital


alterou o perfil de leitor e implicou o de-
senvolvimento de competências digitais.
É evidente que a leitura digital requer
novas aptidões e cria outras necessida-
des de pesquisa, seleção e comunicação
de conteúdo. Muitos autores apresentam
o leitor digital como um leitor intenso
que transita com grande naturalidade
do analógico para o digital, e vice-versa.
A socialização da experiência da leitura
é outra das particularidades que sobres-
sai da sociedade em rede. A informação
deixou de ser escassa confrontando-se
os leitores com novas preocupações, no-
meadamente, a abundância da informa-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 06 - 24
ção e novas competências para a gerir.
Novidades nos recursos mediáticos pro-
porcionam outras formas de acesso ao
conhecimento, sendo um desses recur-
sos as revistas digitais que se afiguram
como um elemento para estabelecer o
diálogo entre os leitores e o conhecimen-
to. Reconsidera-se o conceito de revista
digital como um produto que motiva a
leitura, que através dos diferentes géne-
ros de escrita permite a pluralidade e a
diversidade de perspetivas, que apresen-
ta saberes relevantes para a vida, e que,
ao fazê-lo em pequenas unidades, com
narrativa multimédia, permite a gestão
do tempo de cidadãos ativos e a criati-
vidade na aplicação do conhecimento à
prática. As revistas digitais são uma via
de leitura desejável e acessível à popu-
lação, as narrativas empregues estão em
consonância com a sociedade digital, ta-
manho do texto, diversidade de Medias,
design atrativo, e formatadas para leitura
numa pluralidade de plataformas, com
destaque para os dispositivos móveis.

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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER

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24
MÁRIO BRUNO PASTOR
CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologias das Artes
Universidade Católica Portuguesa – Escola das Artes
mbrunopastor@gmail.com

As moedas da
Antiguidade enquanto
microrrepresentações
de diferentes modelos

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
artísticos: da Grécia
Clássica à formação
dos modelos bizantinos
Resumo

Para além da sua função de ferramenta económica, ou veículo de afirmação de propagan-


da política, as moedas, nomeadamente as da Antiguidade Clássica, encerram em si outras
valências. Podem ser lidas como modelos e paradigmas de tendências estéticas que não só
representam as linguagens iconográficas em voga no seu tempo, como também, dada a sua
natureza circulatória e, até certo ponto, democrática, podem ser consideradas como agentes
difusores dos modelos estéticos de vanguarda preconizados na sua época.

Palavras chave: Numismática; Antiguidade Clássica; Grécia; Roma; estética.

Abstract

In addition to its function as an economic tool, or as a mean of political propaganda, coins,


especially Greek and Roman specimens, contain other informative values in themselves.

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They can be read as paradigms of aesthetic tendencies that not only represent the
iconographic languages of their era, but also, given their democratic nature, as currency, can
be considered as diffusing agents, among the common people, of the avant-garde aesthetic
models advocated in their time.

Keywords: Numismatics; Classical Antiquity; Greece; Rome; aesthetics.


AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

Introdução é normalmente objeto exclusivo da


Arqueologia, ou das ciências auxilia-
No contexto de definição e seleção de res descritivas, como a Epigrafia ou a
fontes para a História da Arte, o obje- Numismática. Concretamente no último
to artístico per se é, naturalmente, a caso, a produção monetária só muito
fonte primária principal para o estudo excecionalmente é considerada nos
dos vários movimentos, tendências e trabalhos de História da Arte, pelo que
modelos de paradigmas conceptuais e se destaca, neste sentido, um breve sub-
estilísticos. Tradicionalmente, o objeto capítulo de Horst e Anthony Janson3 de
artístico de natureza gráfica é definido reflexão sobre a produção monetária do
em categorias básicas: pintura, desenho, período helenístico.
escultura e arquitetura1. Dentro desta O caráter utilitário, massificado4 e
taxonomia simplificada, a definição de vernacular das moedas tem-nas circuns-
objeto artístico costuma estar restrita a crito à abordagem técnica e descritiva
obras individualizadas, com atribuição ou à utilização enquanto fonte (sobretu-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
clara de autoria, ou não, mas subenten- do cronológica) arqueológica. Por outro
didas sempre como trabalho de autor, lado, as características miniaturiais das
ou de oficina de autor2. Como tal, a obra moedas também poderão ter afastado
de arte enquanto fonte acaba por ficar um pouco as atenções dos historiado-
reduzida à peça única. Os objetos de res da arte sobre esta temática: “the
produção mecanizada e em série não art-history of coinage has been to some
são, normalmente, alvo de particular extent neglected in the past while that
atenção por parte do historiador da arte, of painting or sculpture or architecture
ou, quando o são, trata-se de objetos de has thrived, a reason is possibly to be
produção contemporânea, e a sua inscri- found in the very small scale of the coins
ção no universo analítico da História da themselves.” 5
Arte é feita num contexto de reflexão de Assim, o que propomos explanar é
crítica artística e até sociológica. uma leitura diacrónica dos elementos
Deste modo, o objeto do quotidia- de valorização artística e a sua corres-
no, o fragmento utilitário do passado pondente contextualização conceptual,

1. Referimo-nos à categorização clássica das belas-artes, no entanto, consideramos que as novas formas de
representação artística de natureza gráfica, como a fotografia, o cinema e a banda desenhada, ainda que
não representativas para o presente trabalho (por estarem fora do âmbito cronológico de estudo), são, de
certa forma, herdeiras da mesma metodologia das artes tradicionais.
2. No caso de produções artísticas da Pré-História, ou de natureza antropológica ou etnográfica, a questão
da autoria, ou do contexto autoral, é definida seguindo mais ou menos os mesmos critérios tipológicos,
através da inserção das obras em correntes ou estilos de produção
3. Janson & Janson 2004: 164.
4. A produção monetária, mesmo a clássica e a medieval, de cunhagem a martelo, segue padrões de organiza-
ção e produção do trabalho claramente proto-industriais, de modo distintivo em relação a qualquer outro
tipo de produção massificada anterior à Revolução Industrial.
5. Grant 1995: 108.

27
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

presentes em modelos monetários de citação, ao corpus do Roman Imperial


exemplificativos das moedas cunhadas Coinage ou do Late Roman Bronze
no mundo greco-latino, sensivelmente Coinage8, basilares, é certo, mas já um
entre o século VI a.C. até à reformulação pouco fora do alcance da leitura inter-
dos modelos clássicos protagonizada pretativa que pretendemos desenvolver
pelo advento do Império Bizantino, na aqui: a abordagem estilística das moedas,
transição do século IV para o século V. com especial ênfase na retratística.
A organização que adotamos segue
a tradicional, ainda que redutora e 1. Atenas Clássica: o belo em si e a som-
questionável, segmentação histórica por bra reminiscente
períodos: Grécia Clássica – Helenismo –
República e Império Romano – Mundo – E então os que são capazes de se elevarem
Tardorromano ou Antiguidade Tardia. até ao Belo em si e de o contemplarem na
Optamos por esta divisão por uma sua essência, não serão raros?
questão de simplificação do modelo – São-no, e muito.

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
de sistematização de momentos-
-chave de conceptualização da Arte. Platão, República, 476c
As reproduções são todas apresenta- (tradução de Maria Helena da Rocha Pereira)
das numa escala superior às dimensões
das peças, com a exceção do Camafeu Quando são referidos os modelos con-
de Paris (figura 15)6, que é representa- ceptuais estéticos coevos para o mundo
do em tamanho próximo do natural. clássico grego, normalmente é invocado
Ainda em termos metodológicos, o pensamento socrático-platónico sobre
optamos por não sobrecarregar o texto a arte e a beleza. Com efeito, a definição
e legendagem com as referências nu- platónica de beleza é sobretudo um mo-
mismáticas tradicionais de catálogo, delo abstrato9 e não representativo (ou
bastante pesadas e iniciáticas, nomeada- não-figurativo) da realidade, visto que
mente as descrições de eixos, orientação essa representação seria sempre imita-
da legenda ou mesmo a leitura completa tiva (mimesis), e, como tal, redutora e
das legendas imperiais romanas7. Assim, medíocre do conceito mais puro e ver-
não recorremos, pelo menos em termos dadeiro de beleza. O belo sensível ficaria

6. Boardman 2008: 58.


7. Nos casos particulares em que a legenda é exemplificativa de um estilo, seja pela tipologia das próprias
letras, seja pelo conteúdo mais ou menos significativo de um momento de transição (como a legendagem
das tetradracmas helenísticas dos diádocos, por exemplo), as leituras são descritas.
8. A caracterização artística das moedas romanas no RIC não é normalmente contemplada, contudo, é inte-
ressante referir uma passagem curiosa, no tomo I, volume V, p. 19 (1927), a propósito das características das
amoedações secessionistas do Império Gálico-Romano (c. 260-274): a adjetivação usada para caracterizar
o retrato – “pleasant and homely, with cheerful expressions” – não é comum na descrição numismática e
foi recorrida apenas para integrar determinada amoedação num estilo pessoal de um hipotético moedeiro
isolado.
9. Eco 2004: 38-41.

28
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

sempre atrás de um conceito superior de a longevidade das circulações da


belo não-sensível, imaterial. Nesta pers- Antiguidade, poderão ter sido conheci-
petiva, a verdadeira beleza só se encon- das (ou mesmo circulado, mas com um
traria através das formas geométricas valor mais reduzido) durante os séculos
harmoniosas e proporcionais, bem como V e IV a.C., eram pequenos exemplos de
da cor e da abstração da música. A arte abstrações artísticas geométricas, um
figurativa, nomeadamente a escultura e pouco à imagem do que Platão viria a
a pintura, seriam sempre cópias, mime- indicar como modelo de harmonia e
sis sem interesse e grosseira da realidade. proporção das formas geométricas11.
Contudo, o modelo conceptual de Estas didracmas ancestrais são moe-
Platão, como todos os modelos teóricos das circulares anepígrafas, com uma
em geral, não só são reações ao que seria roda incusa quartelada numa das faces
a envolvente cultural do seu tempo. São e um quadrado plintoforme12, também
também reflexos dessa mesma envol- incuso, com duas linhas cruzadas13.
vente, nomeadamente, da envolvente
quotidiana mais ordinária. Isto é, os

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
autores não serão imunes às impressões
do dia a dia e ao que elas poderão esti-
mular, mesmo a nível subconsciente, em
termos de estruturação de pensamento
e de definição de ideias. As moedas são
um pequeno espelho do seu tempo10. Figura 1 – Didracma ateniense em prata,
Neste sentido, é interessante refletir um cerca de 545-510 a.C. Platão, em Timeu, sec-
pouco sobre o dinheiro que circulava ção 56e, refere a composição de triângulos
diariamente na Atenas de Sócrates e de no quadrado equilateral como exemplo de
Platão (na viragem do século V para o estabilidade.
século IV a.C.). As moedas, sendo deriva-
ções miniaturizadas da arte escultórica,
Em contrapartida, a dracma ateniense
seriam, à primeira vista, sempre ele-
dos séculos V e IV a.C. (figura 2), a famo-
mentos miméticos da Natureza, peças
sa dracma da coruja, foi efetivamente a
conceptualmente menores dentro das
principal moeda que circulou nos tem-
premissas platónicas. No entanto, vale
pos de Platão. O modelo base utilizado é
a pena observar e refletir um pouco
já de natureza figurativa e mimética: no
sobre as primeiras moedas atenienses.
anverso apresenta a cabeça, ainda que
As didracmas (figura 1) ainda do sé-
estilizada e de feição um pouco arcaica,
culo VI a.C., anteriores, portanto, ao
de Atena, com capacete ático. O reverso
nascimento de Platão, mas que, dada
preserva uma memória, poderíamos

10. Rebuffat 1996: 171.


11. Eco 2004: 49-51.
12. De plinthos, tijolo, por analogia, forma paralelepípeda ou cúbica.
13. Rebuffat 1996: 169.

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

dizer uma reminiscência de uma nature- Para Aristóteles, a arte, nomeadamente


za ancestral equilátera, inserida no disco as artes visuais, é vista como expressão
monetário. Contudo, introduz já uma técnica de reprodução/imitação do
representação de uma coruja e um ramo real. A beleza é, por seu turno, a pró-
de oliveira e a legenda AΘE (abreviatura pria Natureza. Parafraseando o próprio
de AΘENAIΩN, “dos atenienses”). Aristóteles, nada do que é natural não
poderá ser belo, desde a mecânica até à
graça animal14. A própria continuidade
e perenidade do que é natural faz parte
do conceito de beleza, e, nesse sentido, a
mimese, tão mal considerada por Platão,
ganha uma valorização positiva, não só
na sua dimensão estética, mas até nou-
Figura 2 – Dracma ateniense em prata, cerca tros planos dimensionais, como o plano
de 454-404 a.C. O modelo definido em meados didático.

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do século V a.C. tornou-se o padrão para a dra- A modelação imitativa da Natureza
cma até meados do século III a.C. Contrapondo e a sua contemplação, seja de caráter
a dracma clássica com o modelo arcaico da fi- estético, científico ou simplesmente
gura 1, podemos verificar uma alteração de um por prazer, passou a fazer parte do pa-
modelo abstrato conceptual para um modelo radigma artístico helénico, o chamado
figurativo mimético. Em termos platónicos, naturalismo.
seria um bom exemplo da representação mi- Do ponto de vista monetário, a tetra-
mética menor de um conceito original de ideal dracma macedónica foi a grande moeda
de belo. do período helenístico, e a sua evolução,
desde os primeiros exemplares cunha-
2. O Helenismo: imitação, proporção e dos por Filipe II (ou pelo filho, em seu
expressão nome) até sensivelmente meados do
século II a.C., revela não só a evolução
(...) imitar é uma qualidade congénita nos do conceito de retrato, de um princípio
homens, desde a infância (e nisto diferem ainda um pouco idealista, passando pelo
dos outros animais, em serem mais dados naturalismo mais conseguido, até a uma
à imitação e em adquirirem, por meio dela, degeneração formalista, já muito acade-
os seus primeiros conhecimentos); (...) mizada, do chamado Nouveau Style ou
todos apreciam as imitações. Novo Estilo15.

Aristóteles, Poética, 1448b


(tradução de Maria Helena da Rocha Pereira)

14. Eco 1968: 84.


15. Rebuffat 1996: 169.

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

não apresenta grande expressão, po-


dendo ser visto como mais próximo do
modelo idealista do que da nova ten-
dência naturalista (o mesmo se poderia
dizer da tradicional representação de
Zeus, no reverso). Contudo, a escola
naturalista helenística acabaria por se
Figura 3 – Tetradracma de prata cunhada em consolidar, ainda no século IV a.C., com
Tarso, por Alexandre III. Cerca de 336-323 a.C. os sucessores de Alexandre, os diádo-
O anverso apresenta uma representação de cos, nomeadamente Ptolemeu I, do
Héracles, de perfil, voltado à direita, envergan- Egito, Seleuco, rei da Pártia, Lisímaco,
do a pele de leão; no reverso, Zeus, à esquerda, rei da Trácia e Macedónia. Outros
sentado com uma águia e cetro. A legenda monarcas de dinastias mais obscuras,
AΛEΞANΔPOY (Alexandrou, “de Alexandre”). como Antímaco da Báctria, já bem pos-
terior, imitaram o estilo alexandrino.

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
Plínio, na sua História natural (VII 37), O refinamento do retrato, bem como
refere que Alexandre confinou a re- das temáticas dos reversos16 nas te-
presentação da sua imagem a apenas tradracmas helenísticas, vai-se de-
três autores: Apeles, na pintura; Lisipo senvolvendo ao longo dos séculos IV
de Sícion (possivelmente da escola e III a.C., para ganhar, nos inícios do
de Policleto), enquanto escultor, e século II a.C., o que consideramos o
Pirgoteles, como abridor dos sinetes máximo de expressividade, nomeada-
reais com a sua efígie. Enquanto abri- mente com os retratos de Antímaco17.
dor, Pirgoteles poderá ser o inspirador Ao mesmo tempo, a continuação da
dos modelos do retrato numismático representação de Alexandre (que ultra-
de Alexandre. Contudo, é de referir que, passou até o período helenístico, sendo
em vida de Alexandre, as efígies nas pontualmente recuperada durante o
suas moedas são sempre identificadas próprio Império Romano) revelou não
com Héracles, e não com a personalida- só o programa político de legitimação
de viva. Na verdade, os únicos retratos das autoridades, mas também a evolu-
monetários claramente identificados ção da retratística de Alexandre, possi-
com uma personalidade real são as re- velmente inspirada em outras obras de
presentações póstumas de Filipe II, em arte, como estatuária, pintura e cama-
alguns estáteres e tetradracmas cunha- feus que, entretanto, se perderam18.
dos já no tempo de Alexandre.
Nesta primeira fase, o retrato ainda

16. Neste tipo de cunhagem, o reverso é normalmente ocupado por representações deísticas, nomeadamente
dos deuses protetores de cada cidade ou da personalidade emissora.
17. Janson & Janson 2004: 164.
18. Dahmen 2007: 58.

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

Figura 4 – Tetradracma de prata cunhada Figura 6 – Tetradracma de prata cunha-


em Alexandria, cerca de 323-305 a.C. por da em Pérgamo, cerca de 297-282 a.C. por
Ptolemeu I. No anverso, efígie de Alexandre, à Lisímaco. No anverso a efígie, à direita, de
direita, envergando uma égide, com diadema Alexandre, portando os chifres de Zeus
e coberto com um escalpe de elefante; no re- Amon; no reverso Atena sentada, com escu-
verso, Atena em pé, com escudo e lança, sob os do, lança e Nike na mão. Legenda BAΣIΛEΩΣ
seus pés, uma águia com um feixe de relâmpa- ΛYΣIMAXOY (Basileos Lusimachou, “do rei
gos. Legenda AΛEΞANΔPOY (Alexandrou, “de Lisímaco”). Cunhada trinta anos após a morte

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
Alexandre”). de Alexandre, o acabamento do retrato, bem
como a sua expressão forte e a dinâmica pro-
porcional e delicada da imagem de Atena, no
reverso, refletem de forma exímia a alteração
do paradigma artístico na transição do século
IV para o III a.C.

Figura 5 – Tetradracma de prata cunhada Figura 7 – Tetradracma de prata cunhada por


em Susa, na Pártia, cerca de 312-281 a.C. por Antímaco, rei da Báctria, cerca de 185-165 a.C.
Seleuco I Nicátor. Cabeça heróica de Seleuco, No anverso o retrato de Antímaco, à direita,
ou Alexandre, à direita, envergando uma pele portando chapéu macedónico. No reverso,
de pantera e um capacete; no reverso, Nike Posídon em pé, com palma e tridente. Legenda
coroa um troféu militar com os louros da vitó- BAΣIΛEΩΣ ΘΕΟΥ ΑΝΤΙΜΑΧΟΥ (Basileos
ria. A legenda BAΣIΛEΩΣ ΣEΛEYKOY (Basileos Theou Antimachou, “do rei-deus Antímaco”).
Seleukou, “do rei Seleuco”). Ainda que não Considerado um dos pontos mais elevados da
inteiramente expressivo, o retrato aponta para expressividade do retrato helenístico, esta re-
um princípio naturalista já bastante distante presentação de Antímaco mistura a novidade
da tetradracma coeva de Alexandre (figura 3). de atribuição de uma categoria divina a um go-
vernante vivo com uma expressividade huma-
na até então desconhecida na efígie monetária.

32
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

3. Novo Estilo e cânone: do fim do


Helenismo para o advento de Roma

A incisão cuida que seja feita com perícia.


Expressão séria e majestosa.
O diadema é se calhar melhor estreito;
não gosto daqueles largos dos partos.
A inscrição, como de costume, em grego; Figura 8 – Tetradracma ateniense em prata,
não exagerada, não pomposa – cunhada em nome de vários magistrados,
para que o não entenda mal o procônsul cerca de 133-132 a.C. Atena, virada à direita,
que não para de farejar e participar a com capacete ático, no anverso; reverso, coruja
Roma – ateniense sobre ânfora; âncora e estrela à es-
querda. Apesar de todo o apuramento técnico,
Konstandinos Kavafis, Fileleno a falta de expressividade de Atena, bem como
(tradução de Joaquim Manuel Magalhães) a profusão rebuscada de vários elementos de-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
corativos em ambas as faces da moeda, retira-
O chamado Novo Estilo é um conceito -lhe criatividade e surpresa, remetendo-a para
usado para caracterizar as novas emis- um estilo mais académico e formalista.
sões do Mundo Grego. São moedas
cunhadas a partir de meados do século
II a.C., como forma de recuperar algu-
ma confiança económica, resultado da
conquista romana, efetivada em 146 a.C.
Uma das estratégias para recuperar a
boa moeda (entretanto depreciada) foi
precisamente o recurso à temática clás- Figura 9 – Denário romano em prata, emissão
sica ateniense: busto de Atena e coruja. de 211-207 a.C. (Sear 99). Cabeça de Roma, à
Contudo, o novo modelo, de um hele- direita, com capacete alado e marquilha X,
nismo já muito tecnicista, denuncia um indicadora do valor facial; reverso, gémeos
estilo muito canónico, próximo do que Dióscuros, Castor e Pólux, a cavalgar sobre-
Plínio (História natural XXXIV 83) atri- postos, à direita. Legenda do exergo ROMA. De
bui à escola de Xenócrates (também na- influência claramente helenística, os primei-
tural de Sídon, como Policleto e Lisipo)19. ros denários romanos (originalmente valiam
Terá sido este modelo formal e ca- dez asses, depois foram revalorizados para
nónico que os romanos terão importado dezasseis asses ou quatro sestércios) procuram
para a sua República, ainda durante o reproduzir a expressividade e dinâmica das
século II a.C. amoedações helenísticas anteriores ao Novo
Estilo.

19. Eco 2004: 75.

33
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

a personificação da cidade de Roma)


e, muito excecionalmente, represen-
tações póstumas de individualidades,
eram toleradas. Todavia, em meados do
século I a.C., os modelos políticos altera-
ram-se. Em 44 a.C., nas vésperas do seu
assassinato, Júlio César recebeu explici-
Figura 10 – Denário romano em prata, emis- tamente do Senado o direito de cunhar
são de 115-114 a.C. (Sear 152). Cabeça de Roma, a sua efígie nas moedas20; Pompeio, já
à direita, com capacete coríntio alado e colar depois da vitória sobre César, em cerca
de pérolas no pescoço. Marquilha X e legenda de 42 a.C., também se fez representar,
ROMA; reverso, Roma sentada sobre vários es- ainda que à margem do Senado, nos
cudos, com cetro, aos seus pés a loba amamen- denários que cunhou em Marselha e
tando Rómulo e Remo, dois pássaros voam na Sicília. Esta tradição proto-imperial,
nos quadrantes laterais do campo da moeda. de representação de um governante

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
A procura de alguma leveza, tanto na efígie (ou pretendente) vivo na amoedação
do anverso, como na cena bucólica do rever- romana, foi mantida até ao final do
so, condiciona um pouco a expressividade da século, quando Octávio, por fim, se fez
gravação, imprimindo-lhe pouco movimento nomear Augusto, em 27 a.C., iniciando
e uma plasticidade convencional muito bidi- formalmente o título imperial e a pri-
mensional, possivelmente imitativa do modelo meira dinastia, a Dinastia Júlio-Cláudia.
canónico do Novo Estilo ou de temáticas deco- Em termos estilísticos, o retrato pro-
rativas de outras artes visuais, como a pintura. to-imperial e dos primeiros tempos do
império pode ser considerado como
Não só as Guerras Púnicas, mas sobretu- algo rígido, mas já com tendência
do as Guerras Civis romanas do século para a expressão realista. A tradição
I a.C. também se manifestaram, inevi- é de imobilidade e de alguma sageza,
tavelmente, na produção monetária e, acentuada pela inclusão das rugas e
mais concretamente, na retratística. A de expressões cerradas dos retratados.
tradição republicana de não repre- Suetónio, em As Vidas dos Doze Césares
sentar personalidades vivas, a aversão (II 50) refere que os sinetes que Augusto
romana ao conceito de rex, de tirano usava para selar a sua documentação
ou qualquer poder autocrático era per- começaram por ostentar uma esfinge
manentemente zelada pelo Senado. O (provavelmente de influência egípcia),
reflexo desse programa de organização depois o retrato de Alexandre e, final-
política é patente nas representações mente, a sua própria efígie. Suetónio
dos anversos da amoedação republicana atribui a Dioscórides a autoria deste
romana (figuras 9 e 10) em que apenas último sinete que, aliás, terá sido usado
alegorias ou divindades (normalmente também pelos sucessores do imperador.

20. Rebuffat 1996: 181.

34
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

Das poucas peças que se conhecem Quinto Nasídio, entre 44-43 a. C. (Sear 343). O
de Dioscórides, destaca-se o Camafeu retrato do anverso é de Pompeio Magno (pai
de Paris (figura 15), propriedade da de Sexto), portanto, já póstumo. Manifesta,
Bibliothèque Nationale de France, com contudo, uma tradição realista, mas um pouco
a efígie de Augusto. A comparação do mais expressiva do que a das amoedações
camafeu com o retrato oficial das moe- de César, em Roma; no reverso, uma galé em
das imperiais de Augusto leva-nos a crer movimento, representativa do domínio medi-
que o modelo de Dioscórides terá sido terrânico de Pompeio.
o modelo oficial para referência dos
moedeiros, o que, ao contrário das moe-
das pré-imperiais, parece ter aberto um
momento excecional de retrato idealista
romano.

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Figura 13 – Denário em prata de Octávio,
presumível emissão de Roma, c. de 31-30 a.C.
(Sear 464). Retrato descoberto, à esquerda; re-
verso, Vitória em pé, sobre um globo, estenden-
do uma coroa de louros, legenda evocativa do
Figura 11 – Denário em prata de Júlio César, divino César. O retrato de Octávio, aqui com
emissão de Roma, pelo moedeiro Sepúlio cerca de 32 anos, manifesta uma expressão
Macro, janeiro-fevereiro de 44 a.C. (Sear neutra e oficial, contudo, os traços são realistas,
359). No anverso, o retrato laureado de César, nomeadamente no tratamento da forma do
à direita, com uma estrela (planeta Vénus) à nariz.
esquerda; reverso, a deusa Vénus em pé, com
uma vitória e lança. O retrato é rígido, de
feição mais realista do que naturalista, com
acentuação das rugas de César, por exemplo.
Por seu turno, Vénus, no reverso, é harmoniosa
e até bastante dinâmica, com alguma expressi-
vidade de movimento.
Figura 14 – Áureo de Augusto e Tibério, Roma,
c. do ano 13-14 (Sear 520). Efígie laureada de
Augusto, à direita, no anverso; reverso, Tibério,
de cabeça descoberta, também à direita.
Cunhado nos últimos meses de vida de Octávio
César Augusto, este áureo serviu de apresenta-
ção pública do seu sucessor, Tibério. É curiosa
Figura 12 – Denário em prata de Sexto a disposição dos dois retratos: Augusto, na al-
Pompeio, cunhado na Sicília, pelo moedeiro tura com setenta e cinco anos, e Tibério, com

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

cinquenta e cinco anos. Na verdade, Augusto é ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco
representado de forma idealizada, como eter- Aurélio, um momento único em que só exis-
no jovem, num modelo corrigido da imagem tiu o homem.
mais aguda e aquilina da sua verdadeira juven- Marguerite Yourcenar,
tude (figura 13). A expressão do imperador é Apontamentos sobre As memórias de Adriano
serena e pouco expressiva. Ao mesmo tempo, (tradução de Maria Lamas)
Tibério, no reverso, é representado de forma
mais realista, anacronicamente mais velho, A tendência do retrato romano, ainda
ainda que igualmente pouco expressivo. que ligeiramente interrompida na
transição do século I a.C. para o século
seguinte, seguiu, como vimos, o cami-
nho de acentuação do realismo, ainda
que inicialmente apenas tenuamente
expressivo, da efígie monetária imperial.
Deste modo, sobretudo após a morte

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de Augusto, no ano 14, o vinco realista
intensificou-se, chegando, em alguns
momentos, como no final do século I e
no início do século II, a atingir o hiper-
-realismo quase caricatural.
Durante o chamado Século de Ouro,
mais especificamente durante os princi-
Figura 15 – Camafeu da Biblioteca de Paris, ou pados de Trajano e de Adriano a Marco
Camafeu Augustano, atribuído a Dioscórides, Aurélio, a tendência estilística parece
cerca de 25-20 a.C. em sardónica e marfim, ter recuperado um pouco o naturalis-
com montagem do século XIV em prata dou- mo21 expressivo do retrato helenístico.
rada, com safiras, cristais vermelhos e pérolas. O próprio Cómodo fez-se representar
O modelo estático e idealizado de Augusto várias vezes como Hércules22, não só
parece ter servido de base para a retratística manifestando uma afirmação política de
monetária do imperador, um pouco ao arrepio confronto com a tradição do principado
da tendência para o realismo na gravação mo- dos imperadores adotivos que o prece-
netária romana. deram (nomeadamente o próprio pai,
Marco Aurélio), mas também para exibir
4. Realismo e hiper-realismo romano: uma afirmação visual de aproximação
a proporção única do Homem identitária com a memória de Alexandre
(figura 24).
Não existindo já os deuses e não existindo Com os Severos, já nos primeiros

21. Utilizamos o termo naturalismo no sentido simplesmente semântico, como inspirado pela Natureza, à ma-
neira mimética do conceito aristotélico de arte, sem confusão, portanto, com o movimento naturalista da
História da Arte, que é do século XIX.
22. Rebuffat 1996: 182.

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

anos do século III, mas ainda num módulos de 25 a 33 mm), são o material
momento de forte afirmação da raiz numismático privilegiado para aprecia-
cultural tradicional romana, nomeada- ção do retrato.
mente do realismo, o retrato retoma a
expressividade anterior. Aliás, o peso e a
cerimónia do retrato imperial acentua-
ram-se sobremaneira logo no início da
Dinastia Severiana, com o incremento
de uma maior ritualização da cerimónia
de colocação do busto dos imperadores
e família imperial nos templos23. Na se-
quência da tradição do retrato realista
recuperado pelos Severos, os imperado- Figura 16 – Sestércio em bronze de Nero,
res da chamada Anarquia Militar, que cunhado em Roma no ano 65 (Sear 682).
dilacerou Roma a partir do ano 23524, Cabeça laureada de Nero, à direita, no anver-
ainda preservaram um pouco a tradição

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so; reverso, Roma sentada com uma vitória na
realista, mas, em meados do século, um mão. Legenda S-C (Senatus Consulto) e ROMA,
novo paradigma estilístico viria a afir- no exergo. O estilo forte, próprio do realismo
mar-se. Depois da década de 250, ainda romano, mostra-nos Nero, com vinte e oito
em plena anarquia, curiosamente pou- anos, enquanto indivíduo pesado, possivel-
cos anos após a chegada e instalação de mente para exprimir força física, quase brutali-
Plotino em Roma25, o filósofo que viria a dade. O olhar acentua uma expressão dura. Por
recuperar a originalidade grega do pla- seu turno, Roma, no reverso, segue o cânone
tonismo26, o modelo realista romano co- perfeito de harmonia e proporção.
meça a ser paulatinamente abandonado.
Neste período, que vai do século I até
meados do século III, as grandes peças
de bronze, como os sestércios (com

23. Rebuffat 1996: 181.


24. Só no ano 238 houve seis imperadores: Maximino, que morreu nesse ano, Gordiano I e Gordiano II, pai e
filho, proclamados e assassinados no mesmo ano, no dia 12 de abril; Balbino e Pupieno, igualmente assas-
sinados em conjunto, a 29 de julho e, finalmente, o jovem Gordiano III, filho de Gordiano I, proclamado no
mesmo dia com apenas treze anos de idade. Gordiano III viria a morrer em Zaitha (próximo de Circesium,
Síria) em circunstâncias mal conhecidas, durante a campanha contra os persas, tendo apenas dezanove
anos de idade. Segundo algumas fontes, como Sexto Aurélio Victor (século IV), o prefeito do pretório, Filipe,
terá instigado o assassinato de Gordiano III (Gibbon 2010: 122).
25. O’meara 2010: 149-150.
26. Plotino acompanhou a expedição militar de Gordiano III à Pérsia, em 242-243; após o assassinato do im-
perador, em 244, viajou para Roma e aí se instalou, ganhando reputação nos círculos filosóficos e políticos.
O novo imperador, Filipe I, o Árabe, referido na nota anterior, era originário da Síria ou Suria Romana.
Não há indicações de haver qualquer relação entre a chegada de Filipe I a Roma e a de Plotino. Sabemos
apenas que, dez anos depois (O’meara 2010: 11), o filósofo era protegido dos novos imperadores, Galieno e
Salonina.

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

Figura 17 – Sestércio em bronze de Galba, ano Figura 19 – Sestércio em bronze de Nerva,


68, emissão de Roma. Efígie togada e laureada emissão de Roma, ano 97 (Sear 962). Cabeça
de Galba, à direita, no anverso; no reverso, a laureada de Nerva, à direita, no anverso.
deusa Ceres sentada com ramo de oliveira e Reverso, uma parelha de equídeos com a le-
caduceu. O retrato de Galba, com cerca de ses- genda VEHICVLATIONE ITALIAE REMISSA
senta e cinco anos de idade, procura acentuar (abolição da taxa de transportes – estafetas –
o caráter de maturidade, mas também de dure- em Itália). Seguindo a tendência hiper-realista,
za do cônsul e antigo governador da Hispânia. o retrato de Nerva, aqui com sessenta e cinco

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anos, é sobretudo caracterizado pelo nariz
aquilino que viria a servir de imagem caricatu-
ral para o nariz romano. A expressão nervosa
confere-lhe um aspeto de estadista mais buro-
crático do que protetor.

Figura 18 – Sestércio em bronze de Figura 20 – Áureo de Adriano, emissão de


Vespasiano, emissão de Roma do ano 71 (Sear Roma, cerca de 134-138. Anverso, cabeça
790). Cabeça laureada de Vespasiano, à direita, barbada e descoberta de Adriano, à direita;
e, no reverso, Marte nu, apenas com capacete, reverso, Vitória à esquerda, com palma e águia
avança portando um troféu e uma lança. Com nas mãos. Este retrato pertence à última série
sessenta e dois anos de idade, Vespasiano é re- de Adriano (viria a morrer em 138), represen-
tratado como um velho general autoritário; os ta o imperador com cerca de sessenta anos,
traços enrugados do rosto e fronte, bem como ligeiramente inclinado para a sua esquerda e
o duplo queixo, acentuam o cariz hiper-realis- expressão melancólica. Mais do que realista,
ta do retrato, conferindo-lhe uma imagem pro- o retrato recupera o modelo helenístico, com
tetora e paternalista. No reverso, a imagem de maior ênfase na expressão e na humanidade
Marte em movimento acentua o cariz de força do retrato. Não descurável é o facto de o impe-
e autoridade militar. rador se representar sem coroa, de cabeça nua.
A Vitória, no reverso, não tem a monotonia das

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

representação canónicas anteriores, apresenta segurar uma balança. Com cerca de sessenta e
mais expressão do que movimento, fazendo cinco anos, este retrato revela-nos um impera-
lembrar a estatuária fúnebre. dor sem coroa de louros, com traços de alguma
calvície e de olhar expressivo, algo desassom-
brado. A figura da Igualdade (bastante signifi-
cativa na escolha do primus inter pares) segue
a linhagem académica, bastante diferente da
Vitória da figura 20.

Figura 21 – A famosa Gema de Marlborough, Figura 23 – Áureo de Marco Aurélio, emissão

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século II. O camafeu, em sardónica negra, com de Roma, agosto-dezembro de 165. Busto
revestimento dourado muito posterior (já bi- laureado e couraçado de Marco Aurélio, à
zantino), representa Antínoo, togado, voltado direita, no anverso; Felicidade (Felicitas) em
à esquerda. Junto à orla direita da peça, veem- pé, à esquerda, com cornucópia e caduceu,
-se os vestígios de uma assinatura, por vezes pisando um globo, no reverso. Marco Aurélio,
associada a Antoniano de Afrodísias, o escul- com cerca de quarenta e quatro anos, é retra-
tor grego. A imagem, que Yourcenar especula tado com traços realistas, nomeadamente no
poder ter pertencido ao próprio imperador trabalho do cabelo e da famosa barba estóica,
Adriano, é um excelente exemplo do reviva- mas também com uma expressividade muito
lismo helenístico que caracterizou os meados vincada no olhar, como quem está a sonhar
do século II. Antínoo, de fronte inclinada, tem acordado. No reverso, a figura da Felicitas, mais
uma expressão serena que invoca alguns retra- do que canónica, parece começar a estilizar-se
tos de Alexandre (figuras 4 e 6), de uma beleza um pouco. De notar ainda uma ligeira grada-
natural bastante distante do modelo de realis- ção dos elementos volumétricos das letras das
mo forte romano. legendas.

Figura 22 – Áureo de Antonino Pio, emissão Figura 24 – Sestércio de Cómodo, emissão de


de Roma, 150-151. Anverso, busto de Antonino, Roma, de 192. No anverso, cabeça de Cómodo,
à direita, com drapeado sobre o ombro esquer- à direita, envergando pele de leão. No reverso,
do; reverso, Igualdade (Aequitas), à esquerda, a uma maça. A pele do Leão de Nemeia, tal como

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MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

a maça, são atributos de Hércules, mas tam- Geta também como Augusto, preparando uma
bém, por associação, de Alexandre, o Grande sucessão conjunta, contudo, em menos de um
(figura 3). Nesta representação, do ano da sua ano após a morte de Septímio, em 211, Caracala
morte, Cómodo, com trinta e um anos, pro- mandou assassinar o irmão.
cura associar-se à imagem dos heróis gregos.
O estilo, um pouco grosseiro, é de invocação
do naturalismo anterior, muito próximo das
amoedações de seu pai (figura 23), mas sem
grande conteúdo expressivo. O reverso, por seu
turno, apresenta uma composição muito mais
gráfica do que figurativa, onde se realçam a
organização e a avolumação da ornamentação Figura 26 – Áureo de Caracala, emissão de
dos carateres, nomeadamente nas serifas, ten- Roma, de 213. Anverso, efígie laureada e coura-
dência que viria a ser recuperada em meados çada de Caracala, à direita; no reverso, a Vitória
do século III. avançando à direita, com troféu e coroa de

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louros. Contrastando com a figura anterior, o
retrato apresenta agora os traços vincados do
realismo romano. Caracala, de fronte franzida
e enrugada, barba militar e cabelo ralo, ma-
nifesta uma expressão dura, implacável. No
reverso, a Vitória, ainda que harmoniosa e pro-
porcional, tem também uma expressão deter-
Figura 25 – Áureo de Marco Aurélio Antonino, minada e belicista, impressa pela dinâmica um
dito Caracala, batido em seu nome, como pouco agressiva do movimento. É interessante
Augusto, e em nome do irmão Geta, este contrastar esta Vitória com a da figura 20.
como César. Emissão de Roma do ano 202.
No anverso, efígie pueril laureada de Caracala,
à direita, com toga; no reverso, o seu irmão,
sem os louros imperiais. Apesar da cunhagem
ser de 202 (quando Caracala e Geta tinham
catorze e treze anos, respetivamente) a natu-
reza infantil das efígies leva-nos a considerar
que terão sido gravados em 198, aquando da Figura 27 – Denário em prata de Gordiano
ascensão de Caracala ao título imperial e de II, Roma, março-abril de 238. No anverso, efí-
Geta ao título de jovem César. Nessa altura, gie de Gordiano, à direita, com couraça, toga
os irmãos tinham dez e nove anos apenas. O e coroa de louros; no reverso, a Providência
estilo acentuadamente helenístico denota (Providentia) de frente, encostada numa colu-
uma forte influência grega. A expressão de na e olhando à esquerda, com uma cornucópia
ambos conjuga inocência e uma serenidade e vareta que aponta para um globo. Ainda que
que se revelaria efémera. Em 209, Septímio seja uma moeda cunhada num período difícil
Severo, o imperador e pai de ambos, nomeou de anarquia (nota 24), o conjunto estético

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

do anverso e reverso é de bom estilo realista. e Hispânia29 foram convulsões que


Gordiano, com quarenta e seis anos (viria a ser acabaram por conduzir à organização
assassinado em abril desse ano) é representa- tetrárquica do poder, levada a cabo por
do com barba rala e cabelo curto, sobressaindo Diocleciano, a partir de 293, e ao prin-
a sua já proeminente calva. cípio do sistema de dominato (os impe-
radores começaram, a partir de então, a
5. Abstração e estilização: do fim do adotar a fórmula D.N. – Dominus Noster
realismo ao ícone bizantino – no protocolo de titulatura imperial).
Do ponto de vista cultural e da história
Mas onde a Forma Ideal terá entrado, terá das mentalidades, as transformações
organizado e coordenado o que de uma do século III foram – simbioticamente,
diversidade de partes se tornará uno; enquanto causa e reflexo – igualmente
reagrupará a confusão em cooperação: marcantes. Em termos gerais, assistimos
fará da soma uma coerência harmoniosa: a um retorno do platonismo, o neoplato-
porque a Ideia é uma unidade, e o que ela nismo que, em certa medida, pretendeu
repensar o princípio unificador, mas de-

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moldar tornar-se-á una, até aonde a multi-
plicidade existir. salentado, da continuidade entre a maté-
ria e a consciência que o estoicismo, tão
Plotino, Enéada VI 6 [1] 2 presente no Século de Ouro30, propagava.
Com efeito, o neoplatonismo procu-
A segunda metade do século III foi ca- rou recuperar o conceito de Ideia pri-
racterizada por inúmeras mudanças po- mordial e de alma eterna, incorpórea,
líticas, económicas e culturais que, em não sujeita, portanto, à desagregação e
grande medida, abriram caminho para integração (no sentido estóico do termo)
uma profunda transformação dos mo- no todo que é o Cosmos31. Nesse sentido,
delos tradicionais do Império Romano. o corpo, ainda que igualmente secunda-
A nível político, a anarquia gerada pelas rizado, como no pensamento estóico32,
lutas militares constantes pelo poder, é apenas um recetáculo provisório, não
a captura e humilhação de Valeriano27, só da alma, mas também da própria
por Sapor, na Pérsia, em 26028, a fratu- consciência.
ra do império nas províncias da Gália Plotino, em meados do século III,

27. Valeriano, já com sessenta anos, liderou pessoalmente uma expedição contra os partos e viria a ser captura-
do. Terá morrido em cativeiro, esfolado vivo, segundo algumas fontes, ou por ter sido forçado a ingerir ouro
derretido, de acordo com outros autores clássicos. O seu corpo terá sido empalhado e exposto no salão dos
embaixadores, no palácio de Sapor.
28. Gibbon 2010: 151-152.
29. O Império Secessionista da Gália só viria a terminar após a conquista de Aureliano, em 274.
30. Basta referir Adriano e, claro, Marco Aurélio: “O que é, em suma, a perpetuidade da alma? O vácuo, apenas.”
(Pensamentos IV 33).
31. O'meara 2010: 32
32. A alma, no estoicismo clássico, não é considerada exatamente como imaterial, de certa forma, é entendida
como substância que integra e se funde, após a morte, no Cosmos. No fundo, é uma premissa que está

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foi o grande difusor e pensador do mo- do seu mestre e os reorganizou num


vimento neoplatónico. As suas palestras complexo organigrama matemático
em Roma, assistidas sobretudo pelas de seis grupos organizados em nove
elites intelectuais e políticas, nomea- partes cada, as Enneades34. Foi esta
damente pelo imperador Galieno e a edição, complexa e, diríamos, algo
imperatriz Salonina, seus protetores, mística, que serviu de difusão do pen-
terão influenciado uma nova corrente de samento plotiniano, sobretudo a partir
pensamento agnóstico que, lentamente, do século IV, quando o crescimento da
começou a ter efeitos sobre a conceção influência da doutrina cristã no seio do
tradicional romana do mundo: o mundo Império Romano veio, pela via erudita
tangível, o mundo material, tão ime- dos pensadores cristãos, apropriar-
diato e tão caro aos romanos, daí tão -se, adaptando, o sentido de Uno total
mimetizado, passou a ser lentamente de Plotino e da sua manifestação na
entendido como uma representação alma e no intelecto do Homem, como
redutora de um universo superior que sendo o espírito de Deus, ou a Luz divina.
é a Forma; a via para a alma alcançar Para todos os efeitos, é importante

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essa Forma seria o intelecto, através de ressalvá-lo, não foi só o universo cristão
uma gradação de impressões que, em a integrar o unimismo plotiniano, as
conjunto, se harmonizariam num Uno religiões mitrais também se identifica-
universal. O modelo de aproximação ram com estes princípios. Em meados
ao Uno é, de certo modo, teorizado do século IV, o imperador Juliano II,
através de um princípio geométrico: chamado o Apóstata, quando tentou
ponto – linha – superfície – e, finalmen- recuperar o paganismo clássico, não
te, o sólido33 –, sendo este a represen- o fez, como tão apressadamente se
tação da unidade, do todo universal. possa pensar, no sentido de recuperar
Após a morte de Plotino, em Roma, a simples religião cívica e cerimonial
no ano 270, a difusão do seu pensa- romana: fê-lo com o sentido de remora-
mento foi sobretudo empreendida por lizar o império e banir os excessos dos
um dos seus discípulos, Porfírio, que epicuristas e da hipocrisia das elites
recolheu os cinquenta e quatro tratados cristãs35, na sua missão, foi fortemente

próxima do princípio atómico da matéria que, desagregando-se continuamente, continua a ser a mesma
matéria desde o Big Bang, ainda que em contínua reorganização: “Considera de contínuo que o mundo é
como um ser único, contendo uma substância única e uma única alma.” (Marco Aurélio, Pensamentos IV
40).
33. O'meara 2010: 58-59.
34. As Enéadas, assim propostas por Porfírio, dividem-se em torno da cifra considerada perfeita que é o 6 (1 + 2
+ 3 ou 1 x 2 x 3), o somatório desconstruído da cifra é o 9 (Ἐννεάς), último número primo até ao 10 e símbolo
da totalidade (O'meara 2010: 15-16). A questão fulcral é que a organização de Porfírio torna a obra bastante
mais complexa e circular, os tratados originais seguem temáticas mais contínuas. Contudo, Porfírio enten-
deu aplicar aos textos de Plotino o próprio princípio de agregação das partes até à unidade absoluta, que
seria o conhecimento.
35. Benoist-Méchin 2006: 213.

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influenciado pelo neoplatonismo, no- estilização, a redução dos elementos


meadamente de Plotino36. O seu próprio às suas formas mais simbólicas. Um
projeto administrativo – a unificação dos momentos de grande aproximação
entre o ocidente e o oriente, sob o signo com a doutrina de Plotino é, no nosso
de Sol Invictus, molda-se vagamente entender, as amoedações da Tetrarquia
no conceito de unidade plotiniana. (figuras 29-32): as várias partes que com-
Do ponto de vista artístico, o neopla- põem o corpo do governo (no caso, dois
tonismo recupera o conceito de abs- imperadores, Augustos, e dois auxiliares,
tração: para Plotino, a cor e a luz são Césares) acabam por ser representadas
as abstrações mais exemplificativas. quase de forma simbólica, para que cada
A noção de belo seria uma reação do um deles não se sobreponha ao outro
intelecto a um estímulo exterior que o e sejam percecionados como um todo.
fizesse recordar, como reminiscência, Posteriormente, o retrato na Dinastia
uma contemplação que a alma houvera Constantina foi apurando a noção de
tido anteriormente no mundo imaterial estilização, ensaiando uma nova expres-
da Forma37; a diferença de reações de sividade onde a carga simbólica (cristã,

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cada indivíduo ao belo seria apenas maioritariamente, mas também pagã,
aparente, pois, numa progressão de durante a exceção de Juliano) acaba
conhecimento, todas as almas redes- por substituir quase totalmente os an-
cobririam a essência da beleza que as tigos elementos realistas e miméticos.
conduzirá ao fim último, que é o Uno. Ainda no século IV, nas vésperas
Deste modo, o reconhecimento da be- do saque de Roma por Alarico, Santo
leza é um processo também de gradação Agostinho, nas Confissões (X 34), refletia
geométrica: ponto – linha – superfície e lamentava que “as belezas que passam
– sólido; a sintetização do belo poderia da alma para as mãos do artista, proce-
ser, pois, o processo inverso: do sólido dem daquela Beleza que está acima das
geométrico (representação conceptual nossas almas e pela qual a minha alma
do Uno) para a parte mais ínfima, o suspira de dia e de noite. Mas os artis-
ponto, sendo que o ponto é, na verda- tas e amadores destas belezas externas
de, o símbolo que desperta a sugestão tiram desta suma Beleza apenas o cri-
de belo. Pode ser uma abstração (como tério para as apreciarem”. O caminho
uma forma geométrica ou a música), depois dele seria precisamente o de
mas também pode ser uma estiliza- estilização ainda maior, o trilho bizanti-
ção, um modelo não mimético do belo no para levar o artista a indicar apenas
total, com tendência, aliás, para a bidi- a Beleza que está acima da alma, para
mensionalidade: a linha e a superfície. que a alma, e não o critério, a reconheça.
A expressão artística numismática, a A partir daí, a tendência crescente,
partir de meados do século III, inicia, dentro do cristianismo, para a abstração,
precisamente, uma tendência para a a representação do conceito e não da

36. Benoist-Méchin 2006: 44-45.


37. O'meara 2010: 106.

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realidade (da Cidade de Deus e já não Efígie raiada e couraçada de Cláudio, à direita;
a Cidade dos Homens), acentuar-se-á no reverso, Vitória em pé, à esquerda, com
ainda mais profundamente, abrindo ca- uma coroa de louros. Cunhada no ano da
minho para a estilização bidimensional morte de Cláudio, com cinquenta e cinco anos,
e iconográfica, do mundo bizantino. mas também do filósofo Plotino. Esta série de
Em meados do século VI, a propó- antoninianos (dois denários) anuncia já um
sito da contramarcha justiniana38, o novo movimento estilístico: o retrato procura
Império Bizantino, a partir da iniciativa preservar a tradição romana do realismo, mas
de Justiniano, que reconquistou parte o reverso caminha já para a estilização do
da África romana e restaurou, já em tema; se bem que a roupagem ainda revele os
território italiano, o centro cultural de drapeados, a figura é representada em linhas
Ravena e com ele a redignificação do muito simples e inacabadas; as asas, por exem-
latim como língua culta, em prejuízo plo, são mais sugeridas que definidas.
do grego, a numária bizantina retoma a
legenda em latim, tentando recuperar o
conceito de Império Romano que vigo-

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rou antes do saque de Odoacro a Roma,
em 476. Contudo, apesar do recurso ao
latim (figura 38) a conceção estética da
numária bizantina já pertence, absolu-
tamente, ao novo paradigma. Mesmo a
recuperação estilística (não da legenda,
mas do tipo monetário) de Constantino Figura 29 – Argenteu de prata, cunhado em
IV, já na segunda metade do século VII, 294, em Roma, por Diocleciano.
não passou de uma ideia, um pouco imi-
tativa (figura 39) do numerário romano
do início do século V39.

Figura 28 – Antoniniano de Cláudio II, o Figura 30 – Argenteu de prata, cunhado em


Gótico, emissão de Roma, de 270 (Sear 3222). 295, em Ticinium (Pavia) por Galério.

38. Banniard 1989: 22-23.


39. A propósito do recrudescimento do modelo latino, proposto por Constantino IV (668-685), é interessante
referir que o seu pai havia visitado Roma em 663 (foi aliás, o último imperador bizantino a fazê-lo) e lá sa-
queou diversas antiguidades arqueológicas que levou para Constantinopla (BANNIARD 1989: 229); trinta
e cinco anos depois, em 698, Cartago cairia nas mãos dos muçulmanos e o Império Bizantino nunca mais
recuperaria a sua última vertente ocidental latina.

44
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

contrário, a representação acaba por re-


criar mais uma ideia, um conceito geral
de imperador (ou auxiliar), propondo
a sugestão, através das mãos e olhos do
povo – os que usam o dinheiro – que
cada um dos tetrarcas é igual ao outro,
não havendo distinção significativa
Figura 31 – Argenteu de prata, cunha- entre cada um. Trata-se, naturalmente,
do em 294-295, em Nicomédia, por de um programa político da Tetrarquia,
Maximiano. contudo, o substrato estético conceptual
que subjaz a esta opção é o do princípio
plotiniano de representação sugestiva/
simbólica do Belo, de iluminação sobre
cada uma das partes que permita a per-
ceção reminiscente do universo superior

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da Forma.

Figura 32 – Argenteu de prata, cunhado em


294-295, em Antioquia, por Constâncio Cloro.

Toda a série de argenteus acima exposta,


ressalvando a identidade dos emissores
(Diocleciano Augusto e Galério César e Figura 33 – Áureo de Licínio, emissão de
Maximiano Augusto e Constâncio César), Nicomédia, de 321-322. No anverso, retrato
apresenta, no anverso, a cabeça laureada frontal do imperador, envergando couraça e
e barbada de cada tetrarca, virada à di- capa drapejada; no reverso, uma representa-
reita, e, no reverso, os quatro, em frente à ção, também frontal, de Júpiter, com cetro e
porta de uma cidade muralhada, num ri- vitória e uma águia com coroa de louros aos
tual sacrificial conjunto, sobre um trípo- pés, sobre uma cartela com a inscrição STC.X./
de, que celebra, no caso de Diocleciano, SIT.X. (Sicut quinquennalibus/Sicut decenna-
a virtude militar (VIRTVS MILITVM) e, libus, “assim por cinco anos, como por dez
nos restantes, a vitória sobre os sárma- anos”). A representação frontal do retrato, bem
tas (VICTORIAE SARMATICAE). Toda como do tema do reverso, é uma inovação do
a imagética e retratística é, além de es- século IV. Num primeiro momento, não teve
tilizada, padronizada. Sem a leitura da grande continuidade, porém, a partir do sécu-
legenda do anverso, não seria possível lo V e, sobretudo, no universo bizantino, tor-
(salvo ligeiras nuances estilísticas) dis- nou-se o padrão da representação retratística.
tinguir uma personalidade da outra. Isto
é, o que está representado não são os
governantes, enquanto indivíduos. Pelo
45
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

ou trineto de Cláudio II e neto de Constâncio


Cloro, um dos tetrarcas (figura 32), procurou
restaurar o paganismo clássico, a partir de
um princípio filosófico muito influenciado
pelo neoplatonismo e pelo culto de Mitra, no
campo ritualístico. Neste retrato, Juliano é re-
presentado com a barba filosófica, invocativa
Figura 34 – Fólis em bronze de Constantino de Marco Aurélio (figura 23), mas também em
I, emissão de Constantinopla, de 327. Anverso, estilo estilizado com tendência bidimensional.
cabeça de Constantino laureada, à direita; no O tema do reverso é o touro de Mitra, com dois
reverso, o lábaro, com cristograma ou crismão, astros sobrepostos, o Sol (símbolo mitral) e tal-
espetado sobre uma serpente. A representação vez o planeta Vénus, como referência ao prin-
do retrato, já pouco ou nada realista, é bastan- cípio de união e perpetuidade entre a noite e
te estilizada (de realçar as linhas verticais pa- o dia.
ralelas das fitas das láureas e do pescoço, bem

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como o contorno da base da cabeça e as linhas
do cabelo). O tema do reverso, já de natureza
cristã, representa a luta contra o mal (será a
heresia), numa composição, onde se inclui a
legenda SPES PVBLIC/A, de simbolismo mais
gráfico que descritivo. A volumetria das letras
denota uma acentuação grande das serifas, o Figura 36 – Síliqua em prata de Teodósio I, o
próprio X, de MAX (Maximus) foi aberto em Grande. Emissão de Constantinopla, 379-383.
forma de suástica, revelando a intenção simbó- No anverso, efígie, à direita, do imperador
lica e representativa das letras, mais do que o togado e com diadema de rosetas. No reverso
seu imediato valor fonético. a inscrição votiva VOT X/MVLT XX (Votis de-
cennalibus multis vicennalibus, “votos pelos
dez anos [de governo] e pela renovação até
aos vinte”) dentro de uma coroa de louros.
Moeda cunhada no final do século IV, num
momento em que tanto São Jerónimo como
Santo Ambrósio (já bispo de Milão) eram re-
ferências vivas e culturais no mundo cristão. O
Figura 35 – Grande bronze (provavelmente próprio Santo Agostinho, ainda antes da con-
um múltiplo de maiorina) de Juliano II, o versão, escrevera o, agora perdido, Do belo e do
Apóstata. Emissão de Constantinopla, cunha- conveniente, em 380 (Confissões IV 13). Apesar
do entre 361-363. No anverso, efígie barbada e do traço estilizado, nota-se algum recrudesci-
togada de Juliano, com diadema de pérolas; no mento tecnicista na abordagem do retrato, não
reverso, um touro, à direita, com duas estrelas só pelo tratamento dado às roupagens, mas
sobrepostas (Vénus e o Sol?). Juliano, bisneto mesmo em termos de representação da face

46
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

do imperador. Seria este o dinheiro que circu- relançar a tradição cultural latina no seio do
lava quando Agostinho escreveu o seu comen- Império Bizantino. Exemplo disso foi a adoção,
tário sobre a passagem da Beleza suprema para em latim, da titulatura tradicional do domi-
as mãos dos artistas tecnicistas. nato, visível na legenda do anverso da moeda:
DN IVSTINI-ANVS PP AVG (o correto seria PF
AVG – pius et felix Augustus – figuras 35-37),
contudo, e é sintomático no erro da legenda
da moeda, bem como no estilo inseguro das
letras, o universo latino já não era familiar aos
moedeiros de Constantinopla. O resultado da
composição parece, pois, pouco consciente de
si e algo artificial. No reverso, a composição
Figura 37 – Sólido de Teodósio II, emissão ANNO XV (décimo quinto ano do reinado de
de Constantinopla, 420-422. No anverso, em Justiniano), na vertical, e as marcas da casa da
posição quase frontal (há uma ligeira rotação moeda A (primeira) e CON(stantinopolis) no

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para a direita), o imperador equipado com exergo são forçadamente em carateres latinos,
couraça, lança, escudo e capacete perolado na mas revelam que o traço habitual seria o grego.
cabeça; no reverso, a Vitória segurando uma A letra M é o numeral grego 40, valor pelo qual
cruz encastrada de pedraria. Um século depois circulava a moeda.
dos primeiros ensaios do retrato frontal (figura
33), esta disposição passou a ser a norma para
as moedas de ouro e pontualmente usada no
bronze. Seria este modelo gráfico, agora mais
profusamente decorado, o padrão que viria a
inspirar a cunhagem bizantina.

Figura 39 – Sólido de Constantino IV, emissão


de Constantinopla, 674-681. No anverso, o im-
perador de frente, com barba, couraça, escudo,
lança e capacete; no reverso, os seus irmãos
Heráclito e Tibério em pé, junto a uma cruz e
portando cada um globo crucífero. O estilo re-
Figura 38 – Grande fólis de Justiniano I, emis- vivalista da moeda pretende invocar os sólidos
são de Constantinopla, 541-542. Anverso, efígie do século V (figura 37), mas a representação é
frontal de Justiniano com capacete e couraça, inteiramente sugestiva, já sem procurar qual-
segurando um globo crucífero na mão direita; quer tipo de elemento técnico clássico.
reverso, composição da legenda em torno da
letra M, encimada por uma cruz. Depois de
recuperar Cartago dos visigodos e a Lombardia
e Ravena dos ostrogodos, Justiniano pretendeu

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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

Conclusão e escolas artísticas locais que imporiam


a este trabalho uma dimensão que ele
Em aproximadamente mil e cem anos não pode ter.
de amoedação, procuramos traçar linhas Por outro lado, sentimos também a
de continuidade e de rutura estilística lacuna na análise do retrato feminino,
que marcaram aquilo que genericamen- sobretudo na moeda romana. Com efei-
te se designa por Antiguidade Clássica. to, além dos imperadores, ou herdeiros
O resultado, ainda que evidentemente diretos à púrpura imperial, foi comum,
incompleto e necessariamente redutor, durante praticamente todo o império, o
permitiu-nos, ainda assim, perceber retrato de outros membros da família,
que as transformações estilísticas, os nomeadamente as imperatrizes. O retra-
modelos conceptuais inerentes a cada to imperial feminino, se bem que cingido
tendência e o próprio substrato político pelas mesmas premissas estilísticas da
de cada época são suficientemente dife- época dos retratos masculinos, apresen-
renciadores para que possamos afirmar, ta algumas nuances e particularidades

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como Vagi40, que houve uma longa con- interpretativas que mereceriam, de igual
tinuidade das características da moeda, modo, uma reflexão, nomeadamente no
até mesmo dentro do Império Romano. campo da inscrição de elementos simbó-
A haver continuidade, é meramente em licos (como o crescente lunar, a introdu-
termos de produção e de organização do ção de alguns animais, como os pavões, o
sistema, mas em termos estilísticos as tipo de toucado ou de véu, etc.) e mesmo
ruturas são bem visíveis. elementos textuais, como a inscrição de
Por outro lado, um dos pontos que adjetivação de virtuosismo nas legendas
mereceria ainda ser tratado, como forma das moedas, por exemplo.
de melhor compreender as mutações Em todo o caso, cremos que, de
estilísticas, bem como as respetivas in- um modo muito sintetizado, podemos
fluências conceptuais, seria uma análise traçar uma correspondência simples
de diferenciação dos estilos monetários entre os princípios e correntes artís-
um pouco pelas províncias. Isto é, o es- ticos que moldaram as grandes obras
tilo da mesma série monetária cunhada da Antiguidade e a sua manifestação
em Alexandria não é necessariamente nas moedas. Correspondência esta que
igual ao da produção de Lugdunum, por poderá permitir, em abordagens futu-
exemplo. Contudo, as diferenças perce- ras, uma inclusão mais consistente de
tíveis estariam, no nosso entender, mais material numismático nos estudos de
relacionadas com a qualidade dos artífi- representações estilísticas no contexto
ces do que propriamente com diferenças da História da Arte.
de modelos subjacentes. Uma análise
dessa natureza levar-nos-ia para a refle-
xão e descrição de técnicas de produção

40. Vagi 1999: 18.

48
AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS

Bibliografia Introduzione alle Enneadi. Bari: Edizioni di


Pagina.
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L’Antiquité. Paris: Picard.
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REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 25 - 49
Estudos

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(2004). History of art. The Western tradition.
Londres: Pearson Education.
O’meara, Dominic J. (2010). Plotino,

49
JOSÉ RUIVO
Museu Monográfico de Conimbriga
joseruivo@mmconimbriga.dgpc.pt

Algumas observações
sobre a circulação da
moeda na Lusitânia
do século III

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 50 - 62
Resumo

Apresenta-se neste estudo um conjunto de reflexões acerca da circulação da moeda na


província da Lusitânia durante o século III, decorrentes das conclusões sustentadas pelo
signatário no âmbito da sua tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto.

Palavras chave: Século III; Lusitânia; circulação monetária.

Abstract

In this essay one presents a set of reflections concerning monetary circulation in the
province of Lusitania during the 3rd century, related to the main conclusions achieved
by the author in the mark of his doctoral thesis presented to the Faculdade de Letras da

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Universidade do Porto.

Keywords: 3rd century; Lusitania; monetary circulation.


ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

O século III é geralmente referido pela bronze, em particular do sestércio. Uma


historiografia como um século de crise parte importante da massa monetária
(crise do Estado, crise económica e fi- circulante continuou a ser ainda preen-
nanceira, crise social), tendo como pano chida pelos espécimes batidos sob os An-
de fundo um quadro de instabilidade, toninos, situação que os parcos depósitos
ameaças e invasões1. Globalmente consi- lusitanos bem conhecidos, terminando
derado, no decurso do século III o Impé- com moedas da primeira metade da cen-
rio Romano parece ter alternado longos túria, atestam, não obstante a renovação
momentos de estabilidade (com uma que se percebe com nitidez a partir de
inflação moderada até cerca de 260 d.C.) Severo Alexandre e que os achados isola-
com crises brutais, nomedamente a par- dos tão bem ilustram (cf. quadro 1).
tir de Galieno e na última década da cen-
túria, culminando no Édito de Máximo2.
Denários Sestércios Totais Moedas/Ano
No que respeita às províncias hispâ-
nicas, e particularmente à Lusitânia, esta Sev. Alexandre
8
(10,26%)
46
(58,97%)
54
(69,23%)
4,15
visão merece contudo ser reequacionada Maximino
1 22 23
7,67

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à luz dos contínuos progressos efetuados (1,28%) (28,21%) (29,49%)
- 1 1
pela arqueologia3, uma vez que as mar- Balbino/Pupieno
- (1,28%) (1,28%)
1

cas aqui impressas pela passagem desta Total


9
(11,54%)
69
(88,46%)
78
(100%)
4,88

centúria não foram decerto similares às


deixadas nas Gálias, na Germânia, nos
territórios do Danúbio, no Oriente ou Quadro 1 – Moedas dos anos 222-238 recolhi-
em África, refletindo as especificidades e das em 36 sítios lusitanos.
as divergências de protagonismo de cada
uma destas regiões no contexto das pro- Todavia, os dados arqueológicos presen-
fundas mutações que afetaram o Impé- temente disponíveis para a época seve-
rio durante o período em questão. riana apontam para uma desaceleração
Do ponto de vista do uso da moeda, da atividade económica, relativamente à
como já foi há muito posto em relevo época antonina, notória nas dificuldades
por diversos investigadores, até cerca de experimentadas pela indústria conser-
meados do século III continuou em vigor veira dos estuários do Tejo e do Sado4 ou
na Hispânia o antigo regime monetá- na fraca importação de sigillata clara A
rio, baseado na circulação da moeda de em Conimbriga5 e em Augusta Emerita6.
Contudo, no litoral argarvio o panorama

1. Veja-se, a este propósito, a forma como o tema da crise tem sido abordado pela historiografia espanhola
contemporânea (Peña Cervantes 2000: 469-492).
2. Callu 1969: 401-402; Corbier 1985: 105; Hollard 1995: 1066 ss.
3. No mesmo sentido: Cepas Palanca 1997: 249-253.
4. Fabião 2004: 404; Mayet & Silva 1998a: 113-123; Lagostena Barrios 2001: 308 ss.
5. Alarcão et alii 1975: 251. Contudo, na Casa dos Repuxos, o período dos Severos é o mais rico no que
respeita à execução da decoração musiva (Lancha 2004: 80).
6. Vázquez de la Cueva 1985: 31-37.

52
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

0 5 10 15 20 25 30
afigura-se francamente mais animador7,
transmitindo a imagem dinâmica de Ammaia

uma região que, nas palavras de Carlos Balsa

Fabião, ultrapassa crises e invasões até à Mirobriga

época muçulmana8. Tróia

A maior parte dos entesouramentos Conim-


briga

lusitanos deste período, à exceção do T. Palma

tesouro da Borralheira9, é constituída


por pequenas quantidades de moeda de
S. Cucu-
fate

bronze e, no contexto atual, temos sérias


C. Vila

dificuldades em associá-los a qualquer


Milreu

circunstância concreta, não obstante Almoça-


geme

uma série de especulações decorrentes Penedo

de uma eventual passagem da província V. Car-


díçio

para o controlo do usurpador Póstumo.


Paralelamente, nos achados isolados,

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apesar de trabalharmos quase sempre Gráfico 1 – Representação gráfica das permi-
com exemplares estratigraficamente lagens de 12 sítios lusitanos (I: 222-238 d.C.; II:
descontextualizados, percebe-se algu- 238-260 d.C.; III: 260-274 d.C.; IV: 274-294 d.C.;
ma renovação do numerário de bronze, V: 294-305 d.C.).
acompanhado pelo denário até 240 e,
depois, por um número crescente de an- Até aí, como bem demonstra o depósito
toninianos, à medida que vai decaindo de Valhascos I10, a moeda radiada con-
a emissão do bronze e o teor de fino da tinuará sob a mira dos aforradores e as
moeda radiada. No entanto, a circulação moedas perdidas tenderão a ser com
massiva desta nova espécie só terá lugar frequência recuperadas pelos antigos
após a sua desvalorização em larga esca- proprietários ou por terceiros. É muito
la, o que não sucederá verdadeiramente possível que a injeção deste numerá-
antes de 266. rio nos circuitos locais esteja associda à
atividade comercial ou a investimentos
públicos realizados pelo Estado, bem do-
cumentados durante a primeira metade
do século III, nomeadamente em infraes-
truturas viárias. Entre 192 e 253 foram
contabilizados 164 miliários na Hispânia,
15 dos quais na província lusitana, osten-

7. Delgado 1968: 41-66; Coutinho 1997: 24.


8. Fabião 1997a: 379.
9. Heleno 1953: 213-226.
10. Ruivo 2008: I 36-92.

53
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

tando muitos deles formas verbais como em desvalorizar fortemente o denário,


fecit e restituit11. Outro indicador de que reduzindo-lhe o teor de fino para cerca
a situação económica, apesar de algum de 500‰16 e induzirá Caracala à cria-
retrocesso, continua a não ser dramáti- ção de uma nova moeda, o antoniniano.
ca é a manutenção, quase sem alterações, Com estas medidas, o Estado sobrevalo-
da atividade evergética12, nomedamente rizava a moeda de prata: com a mesma
nas cidades do litoral algarvio, conforme quantidade de metal precioso disponível
atesta o testemunho do balsense Annius passava a ser capaz de emitir um maior
Primitivus, que, em honra do seu sexvira- número de moedas ao tempo que lhes
to, brindou os seus concidadãos com um mantinha o valor nominal – ou inclusi-
donativo em dinheiro, um combate de vamente o aumentava, como no caso da
barcas e outro de pugilistas13. Talvez um nova moeda radiada – relativamente às
pouco antes, um seu conterrâneo, Gaius espécies anteriores.
Licinius Badius, ofereceu a expensas suas Após 238, os imperadores viram-se
cem pés do pódio do circo da cidade14. obrigados a retirar dos circuitos a massa
Em 245, Olisipo erige uma dedicatória de denários ainda em circulação, para

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a Filipe I, talvez em retribuição de uma os transformarem em emissões cada
qualquer liberalidade de que as fontes vez mais volumosas de antoninianos,
são omissas (CIL II 188) num momento sucessivamente cerceados no peso e no
em que a cidade parece gozar de um cer- teor de fino, a fim de financiarem as in-
to prestígio no contexto peninsular15. A termináveis campanhas militares nas
crise monetária agudizar-se-á verdadei- províncias orientais e danubianas17. Em
ramente a partir de meados do século paralelo, o Estado sofre a concorrência
III, sobretudo a partir do principado de dos aforradores privados, como bem
Valeriano e com especial incidência en- mostra o depósito de Valhascos I, que
tre Galieno e Cláudio II. A redução dos imobilizam temporariamente uma parte
stocks de metal precioso à disposição do stock de metal precioso cunhado. K.
do Estado, embora iniciada na segunda W. Harl nota que grandes quantidades
metade do século II, vai agravar-se a par- de metal precioso (ouro e prata) abando-
tir de Septímio Severo, que não hesitará naram definitivamente as fronteiras do

11. Solana Sáinz & Hernández Guerra 2002: 27.


12. Pérez Centeno 1997: 378.
13. Encarnação 1984: 124-125, n.º 73.
14. Encarnação 1984: 129-131, n.º 77. Javier Andreu Pintado interpreta estes atos evergéticos como um pos-
sível reflexo da riqueza obtida pelo comércio do garum, responsável pelo desenvolvimento das cidades do
litoral (Andreu Pintado 2004: 185-186).
15. Mantas 1993a: 172. Opinião diferente tem Ramón Járrega Domínguez, para quem as dedicatórias impe-
riais do período da Anarquia Militar não refletem a prosperidade e a normalidade da vida urbana mas
sim o desejo de, num contexto de sucessivas usurpações, as elites urbanas declararem a sua adesão ao
imperador considerado legítimo (Járrega Domínguez 2008: 107-108 e 112).
16. Guey 1962: 72-140.
17. Uma análise sobre o impacto da redução da quantidade de metal precioso à disposição do Estado e a sua
repercussão na crise do século III pode ver-se em Depeyrot & Hollard 1987: 58-85, e, mais recentemente,
em Christol 2003: 109-124.

54
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

Império, em consequência dos pesados pelo elevado número de tesouros oculta-


tributos com que Roma foi comprando a dos por todo o Império durante esta fase
paz com as tribos germânicas e com os e pelas constantes notícias de conflitos
persas. Em 244, Filipe I pagou ao sassâni- armados e insurreições, esta década terá
da Shapur a soma de 500 mil aurei (mais sido a responsável pela criação daquilo a
de três toneladas de ouro!), que os persas que poderíamos chamar o mito da crise
transformaram em dinares e os usurpa- do século III. Não sabemos, por enquan-
dores gauleses pagaram em moeda de to, qual o seu impacto na Lusitânia, em-
ouro aos mercenários turingenses que, bora do ponto de vista numismático se
no regresso, levaram as moedas e se fi- consigam vislumbrar sinais de alguma
zeram sepulturar com elas na sua região perturbação, mas os dados arqueológi-
natal, entre o Weser e o Vístula. Grandes cos são ainda demasiado fragmentários
depósitos de antoniniani recém-cunha- para podermos usufruir de uma visão
dos nunca chegaram a ser recuperados de conjunto. Existem ténues indícios de
pelos legionários que tombaram nas uma curta adesão da província ao Impe-
campanhas do Baixo Danúbio, logo nos rium Galliarum, mas não há provas ar-

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inícios da segunda metade do século III queológicas de que os supostos raides de
(nomedamente os que pereceram em francos (e alamanos, como pretenderam
Abrittus com Trajano Décio). A rendição alguns investigadores) ao tempo de Ga-
e captura de Valeriano em 260 colocou lieno tenham afetado a província19. Os
na mão dos persas centenas de milhares numerosos depósitos lusitanos recensea-
de antoninianos, que estes rapidamente dos para o terceiro quartel do século III,
recunharam em dirhams18. que surge aqui como o grande momento
Em consequência, o Tesouro depa- crítico em termos de ritmo de entesou-
rou-se com um stock de metais preciosos ramento (cf. mapa 1), poderão sugerir a
cada vez mais reduzido, ao mesmo tem- existência de focos de instabilidade, mas
po que era pressionado por necessidades o facto de serem constituídos essencial-
crescentes. O ponto mais agudo da crise mente pelo bilhão desvalorizado de Ga-
financeira do Estado romano tem lugar lieno e Cláudio permite interpretá-los
entre cerca de 260 e cerca de 274, em es- também como um sinal da forte insta-
pecial a partir de 266, quando as casas bilidade monetária reinante, um sinal
da moeda começam a emitir, em quan- de desconfiança dos utilizadores face às
tidades sem precedentes, moeda radiada contínuas manipulações de que a moeda
de valor intrínseco quase nulo (com um era alvo por parte do Estado20.
teor de fino a rondar os 20‰). A julgar

18. Harl 1996: 128-129.


19. A bibliografia sobre o tema é vastíssima. Não pretendendo entrar na discussão desta problemática, limita-
mo-nos a indicar, segundo um critério cronológico, alguns dos principais trabalhos publicados: Taracena
1952: 37-45; Tarradel 1955: 95-110; Balil 1957: 97-143; Arce 1978: 257-269; Campo & Gurt 1980: 129-140;
Sagredo San Eustaquio 1981-1985: 89-104; Santos Yanguas 1986: 151-175; González Prats & Abáscal
Palazón 1987: 183-196; López Melero 1990: 43-60; Cepas Palanca 1997: 15-27; Pérez Centeno 1998: 343-
360; Peña Cervantes 2000: 469-492; Gozalbes 2005: 125-139; Járrega Domínguez 2008: 105-139.
20. No mesmo sentido, ainda que relativamente aos tesouros gauleses do século III, vai Roland Delmaire
(1995: 21-26).
55
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 50 - 62
Mapa 1 – Localização dos depósitos monetários lusitanos do século III.

1 – Casa do Anfiteatro 12 – São Marcos da Serra 23 – Valhascos I


2 – Terreno da antiga Campsa 13 – Mirobriga 24 – Valhascos II
3 – El Gordo 14 – Porto Carro 25 – Maiorga
4 – Sampão 15 – Sepultura 36 da Caldeira 26 – Conimbriga B
5 – Borba 16 – Região de Lisboa 27 – Conimbriga D
6 – Évora 17 – Freiria II 28 – Conimbriga G
7 – São Cucufate I 18 – Freiria III 29 – Serra do Condão
8 – São Cucufate II 19 – Sintra 30 – Aldeia das Dez
9 – Monte do Cavaleiro 20 – Arruda dos Vinhos 31 – Palvarinho
10 – Quinta da Torre de Ares 21 – São Miguel 32 – Barroca da Laje
11 – Foz do rio Arade 22 – Região de Torres Vedras 33 – Numão
34 – Sepultura 3 de Valbeirô

56
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

Nalguns casos, chega mesmo a ser lícito segunda metade da centúria, em parti-
questionarmo-nos sobre as reais inten- cular a partir do último terço, apesar de
ções dos seus proprietários no respei- eventuais problemas surgidos entre a
tante a uma futura recuperação. É isso morte de Tácito e o reconhecimento de
que nos recorda o depósito de Freiria II21, Probo e de a Hispânia poder ter sido afe-
que se encontrava acompanhado por tada pelas rebeliões de Próculo e Bonoso.
uma série de fragmentos inutilizados de Para tal contamos com uma série de in-
objetos que se poderiam destinar à fun- dicadores positivos que têm vindo a ser
dição. Verifica-se também que a esmaga- postos em evidência pela arqueologia,
dora maioria das moedas achadas isola- apesar de a sua valorização não deixar
damente nos sítios lusitanos é atribuível de encerrar alguma subjetividade inter-
precisamente ao período 260-270/274 (cf. pretativa. Entre estes conta-se o restau-
gráfico 1), ao qual há que acrescentar uma ro da rede viária lusitana a partir de 275,
impressionante massa de radiados da sé- elemento essencial para a circulação de
rie Divo Claudio de fabrico irregular, que pessoas e bens, assinalado por abundan-

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 50 - 62
cremos passível de abandono progressi- tes miliários de Tácito, Probo, Numeria-
vo ao longo do último quartel do século no, Constâncio Cloro e Galério, incidin-
III e de inícios do seguinte, à medida que do particularmente na área ocidental da
o numerário das reformas de Aureliano e província, nas vias Olisipo-Bracara, Olisi-
da Tetrarquia vai entrando nos circuitos, po-Scallabis-Emerita e Emerita-Bracara22,
embora aparentemente com reduzido não obstante o caráter frequentemente
sucesso, segundo nos é dado perceber propagandístico de muitos destes ele-
pelas moedas descobertas isoladamen- mentos da paisagem viária.
te nos sítios lusitanos. É bem possível Em simultâneo nota-se um incre-
que muito deste bilhão desvalorizado mento das importações de cerâmicas de
se mantenha em circulação até à época prestígio, nomedamente sigillata africa-
constantiniana, vista a incapacidade do na clara C, cuja chegada continuada co-
aurelianus e do nummus em substituí-lo, meça a impor-se na segunda metade da
devido à sua rápida imobilização pelos centúria, em especial as formas Hayes
aforradores, o que força estas moedas 45A e Hayes 50A, datadas respetivamen-
de baixo valor intrínseco a manterem-se te de c. 230/240-320 e c. 240-320/330, e
nas pequenas trocas quotidianas. Não que marcam presença significativa em
obstante, a situação económica lusitana vários locais da província, de que temos
parece conhecer melhoras sensíveis na exemplos em Augusta Emerita23, Conim-

21. Ruivo 2008: II 170-172.


22. Solana Sáinz & Sagredo San Eustaquio 1998: 11-37; Solana Sáinz & Hernández Guerra 2002: 83-84 e
91-92; Cepas Palanca 1997: 68-69; Étienne et alii 1976: 118-119.
23. Vázquez de la Cueva 1985: 38-55.

57
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

briga24, São Cucufate25 e no Montinho principado de Aureliano29. Apesar de se


das Laranjeiras26. ter realizado um estudo prévio das cerâ-
Detetam-se também sinais não des- micas de importação recolhidas durante
prezíveis de uma importante ativida- esta intervenção, não dispomos dos seus
de edilícia em alguns centros urbanos, resultados para procedermos ao cotejo
como Conimbriga, onde se realizaram dos dados. As moedas e outros materiais
importantes remodelações em diversas mais tardios da Casa dos Repuxos são em
moradias privadas, nomeadamente no quantidades demasiado reduzidas para
setor situado a sul da via, numa área lhes atribuirmos importância significa-
que futuramente será abandonada com tiva. Outra domus imponente, a Casa de
a construção da muralha tardorromana. Cantaber, pode ter sofrido uma profunda
Na Casa dos Repuxos são refeitos alguns remodelação em data avançada do sécu-
pavimentos na ala oeste do peristilo e é lo III – ou eventualmente nos inícios do
executado todo o complexo musivo da IV30 – com a maior parte dos seus pavi-
Casa da Cruz Suástica27. Muito seme- mentos a serem datados dos séculos II-
lhante deverá ser a cronologia dos mo- -III31.

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saicos da Casa dita dos Esqueletos, que Em Torre de Palma, os riquíssimos
aquela autora atribui aos séculos III-IV, pavimentos musivos da villa foram re-
embora a data terminal nos pareça tal- centemente datados de finais do século
vez excessivamente tardia, uma vez que III-inícios do IV32, tendo sido realizados
tudo parece apontar para a demolição provavelmente por uma oficina africana.
destes edifícios nas últimas décadas da A vinda de pessoal especializado do nor-
terceira centúria ou inícios da seguin- te de África para a Lusitânia implicaria,
te28. A boa conservação da maior parte decerto, um clima de tranquilidade, ne-
dos mosaicos sugere que o abandono cessário à laboração e deslocação pela
destes complexos habitacionais se pro- região dado o caráter frequentemente
cessou pouco depois da execução dos itinerante destes ateliers.
pavimentos e a cronologia das moedas Os elevados níveis de prosperidade
provenientes dos achados isolados e do de algumas elites durante as últimas dé-
tesouro (Tesouro G), recolhidos nas es- cadas da centúria podem igualmente ser
cavações realizadas por Jorge de Alarcão aferidos pela importação de produtos
nos edifícios comerciais contíguos ao de luxo destinados a realçar o prestígio
decumanus da cidade, não ultrapassa o económico e social dos encomendan-

24. Alarcão et alii 1975: 255-256.


25. Alarcão et alii 1990: 250.
26. Coutinho 1997: 24.
27. Oliveira 2005: 12 e 31-41.
28. Correia 1997: 40; De Man 2006: 17-23.
29. Alarcão 2010: 22-23.
30. Correia 2001: 123.
31. Oliveira 2005: 49-53.
32. Lancha & André 2000: 143 e 306.

58
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

tes detetáveis, por exemplo, na tampa rados de peixe, algumas das quais, como
do Sarcófago dos Filósofos e das Musas, o Porto dos Cacos, nunca interromperam
peça descoberta em Chelas e importa- a produção37. Na zona de Tróia/Caetobri-
da provavelmente de Roma33. Wegner e ga a segunda metade do século III mar-
García y Bellido atribuíram-na, respe- ca uma nova fase de prosperidade38. Na
tivamente, ao terceiro quartel e ao últi- costa algarvia, os fornos do Martinhal
mo terço do século III34. Outro exemplo produziram ânforas Almagro 50, 51a-b e
de importação de luxo é o Sarcófago da 51c. Na Quinta do Lago fabricaram-se ân-
Vindima, procedente de Castanheira do foras Almagro 50 e, sobretudo, Almagro
Ribatejo, talvez executado no Mediterrâ- 51c. Em São João da Venda estão presen-
neo Oriental e tradicionalmente datado tes as formas Almagro 51a e 51b, em Torre
de meados do século III35. de Ares, as Almagro 51c e, em Cacela, as
Um outro indicador de que o século Almagro 5039, só para citar alguns locais
III não pode ser visto globalmente como algarvios. Ainda que o auge da produção
um período de crise permanente é-nos de algumas destas formas possa atribuir-
fornecido pela indústria conserveira lu- -se ao século IV, o início da sua fabrico

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 50 - 62
sitana, atividade económica basilar nos remontará, em muitos casos, aos finais
estuários do Tejo e do Sado, num ou nou- da terceira centúria. Ao mesmo tempo,
tro ponto da costa alentejana e na costa assiste-se a uma diversificação das rotas
algarvia36, e na qual assenta grande par- destes produtos; para além do comércio
te do dinamismo da província durante marítimo, realizado à distância, para Ós-
esta fase. Neste momento a investigação tia e Roma ou para o limes germânico,
é coincidente no facto de o setor ter ex- intensifica-se a difusão regional destes
perimentado algumas dificuldades na produtos: em São Cucufate abundam os
primeira metade do século III, em espe- contentores de fabrico lusitano Almagro
cial na época dos Severos. Porém, à me- 50 e 51c40, o mesmo sucedendo na Quinta
dida que vamos entrando pela segunda das Longas41 ou em Conimbriga.
metade da centúria, nota-se uma pro- Este renascimento da atividade eco-
gressiva reativação da atividade produ- nómica na Lusitânia de finais do século
tiva, também detectada nas olarias que III, nomedamente associado à indústria
fabricavam os contentores necessários conserveira42, é bem visível em termos
ao envasamento e transporte dos prepa- monetários na facilidade com que alguns

33. Souza 1990: 72.


34. Apud Matos 1995: 104-107, n.º 47.
35. Matos 1995: 100-101, n.º 45; Souza 1990: 72, n.º 140.
36. Fabião 2004: 379-410.
37. Raposo 1990: 117-151; Raposo & Duarte 1996: 249-266.
38. Étienne et alii 1994: 165-166; Mayet & Silva 1998: 141 ss.; Fabião 2004: 404.
39. Fabião 1994: 248-250.
40. Alarcão et alii 1990: 251-252.
41. Almeida & Carvalho 1998: 145-146.
42. Lagostena Barrios 2001: 317.

59
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

aforradores parecem aceder à moeda re- pelo aparente sucesso do neoantoninia-


formada (aurelianus), decerto a moeda nus, que marca presença importante em
de troca acordada com frequência para quase todos os sítios lusitanos objeto de
as transações entre os negotiatores liga- estudo e em quase todas as coleções mu-
dos aos centros portuários béticos e ita- seológicas, talvez por ser a moeda que,
lianos e os produtores locais. É também quer em termos de valor nominal, quer
possível que a entrada de numerário em termos físicos, melhor se ajustava à
fresco esteja associada aos abastecimen- integração ou à substituição das velhas
tos de tipo institucional, nomeadamente denominações radiadas ainda em circu-
por intermédio da Annona, consideran- lação e cuja eliminação, a título definitivo,
do que, em finais do século III-inícios só terá lugar, estamos convictos, em ple-
do IV, os centros produtores lusitanos na era constantiniana.
seriam, senão os maiores, dos maiores Finalmente, o cotejo entre achados
abastecedores de conservas e prepara- isolados de moedas efetuados em áreas
dos de peixe do ocidente romano. urbanas e em estabelecimentos rurais
Esta relação preferencial com a Itá- dá-nos a indicação de que, apesar de

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 50 - 62
lia central é responsável pelo facto de os nem todos os períodos se encontrarem
poucos depósitos lusitanos conhecidos uniformemente representados na tota-
da época diárquica tenderem a indivi- lidade dos sítios estudados, o padrão de
dualizar-se dos depósitos ocidentais seus distribuição das moedas perdidas não
contemporâneos, como se nota na fase sofre grandes variações de local para lo-
terminal do depósito de Sampão e, em cal, refletindo a omnipresença da moeda
particular, no de Porto Carro, em termos enquanto instrumento de troca na Lusi-
percentuais o depósito que atualmen- tânia do século III.
te mais aureliani da moeda romana dos
anos 285-294 fornece e o segundo em
termos numéricos – a seguir a La Venè-
ra –, mas com a vantagem de possuir um
espetro cronológico amplamente mais
vasto, o que transforma o achado lusita-
no num dos mais importantes até agora
descobertos para este período43.
A partir da reforma de 294 os acha-
dos isolados traduzem uma notória re-
novação das espécies monetárias, não
tanto ao nível do nummus – escasso não
só na circulação corrente como entre os
aforradores, apesar do papel de reserva
de valor que estes lhe conferem –, mas

43. Ruivo 2008-2013: 21-265.

60
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III

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62
MÁRIO DE GOUVEIA
Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda (INCM/MCM)
Instituto de Estudos Medievais (IEM, NOVA FCSH)
mario.gouveia@incm.pt

Notas sobre um
tesouro monetário da
época islâmica
encontrado em Silves

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 63 - 72
(INCM/MCM
22990-23079)
Resumo

Apresenta-se neste artigo um conjunto de reflexões acerca de um tesouro monetário


da época islâmica encontrado em Silves, formado por noventa darāhim almóadas da-
táveis da época da primeira conquista cristã da cidade (1189), pertencente à coleção
da Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda.

Palavras chave: Silves; época islâmica (século XII); tesouro monetário; dirham almóada.

Abstract

In this essay one presents a set of reflections concerning a monetary treasure of the
Islamic period found in Silves, formed by ninety Almohad darāhim datable to the first
Christian conquest of the city (1189), belonging to the collection of the Portuguese

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 63 - 72
Mint and Official Printing Office/Portuguese Mint Museum.

Keywords: Silves; Islamic period (12th century); monetary treasure; Almohad dirham.
NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

Do Gabinete Numismático do Palácio com a justificação de se tratar de um edi-


da Ajuda ao Museu Numismático Por- fício de localização central e maior se-
tuguês gurança, no qual veio a formar um con-
junto especial. A inauguração do Museu
A coleção de moedas que integra o acer- Numismático Português por Manuel Tei-
vo do Museu Casa da Moeda, atualmente xeira Gomes, a 14 de junho de 1924, fez
em depósito no edifício-sede da Impren- com que a coleção regressasse à fruição
sa Nacional-Casa da Moeda, em Lisboa, pública e despertasse a atenção de al-
é formada por um conjunto de peças guns eminentes nomes da numismática
representativas de diferentes contextos portuguesa. A criação do lugar de con-
históricos, do século VII/VI a.C. ao século servador do Museu Numismático Portu-
XXI. Entre estas destaca-se, pela sua im- guês, ao abrigo do decreto n.º 21448, de 4
portância, o núcleo de moedas datável de julho, e a nomeação de Pedro Batalha
da época islâmica, de que fazem parte Reis para ocupar este lugar foram passos
várias dezenas de peças batidas em ouro, decisivos na consolidação do museu e na

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prata e cobre pelas principais dinastias divulgação do acervo nele patente.
que governaram al-Andalus entre os sé- Por diligência de Pedro Batalha Reis,
culos VIII e XV. o Museu Numismático Português foi
A parte mais significativa deste nú- criado como museu nacional em 1933,
cleo de moedas começou a constituir-se ao abrigo do decreto n.º 22682, de 14 de
e a organizar-se nas últimas décadas do junho, incorporando, nesta data, quatro
século XIX, época coincidente com o rei- núcleos principais: a coleção de D. Luís,
nado de D. Luís, monarca que se dedicou a coleção da Casa da Moeda, parte do
com especial afinco à prática do colecio- Gabinete Numismático da Biblioteca Na-
nismo numismático e criou o Gabinete cional e a coleção de medalhas da Acade-
Numismático do Palácio da Ajuda. Após mia das Ciências. Estes núcleos começa-
a morte deste rei, a coleção transitou ram a ser alvo de inventário sistemático a
para a posse de D. Carlos, primeiro, e de partir de 1937, data em que Damião Peres
D. Manuel II, depois. Com a implantação deu início ao registo em livro do acervo
da república, a 5 de outubro de 1910, e o do museu, identificando a Coleção D.
consequente encerramento do Palácio Luís no Livro 1.º de Inventário, e o Fundo
da Ajuda, a coleção de moedas passou a Geral no Livro 2.º de Inventário.
estar em situação de arrolamento sob a Entre 1938 e 1941 teve lugar o proces-
dependência de um funcionário superior so de transferência de todos os serviços
da Direção-Geral da Fazenda Pública. da Casa da Moeda da rua de São Paulo
Na sequência da alteração do estatu- para o edifício de traça modernista onde
to do Palácio da Ajuda, a coleção do Ga- atualmente se encontra, na avenida An-
binete Numismático foi transferida para tónio José de Almeida. Este processo,
a Casa da Moeda, na rua de São Paulo, ao apenas concluído com a entrega da tota-
abrigo do decreto n.º 9730, de 26 de maio, lidade das moedas que haviam pertenci-

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

do a D. Luís, motivou a continuação do descrição das moedas árabes do Museu


registo de inventário das peças ainda por Numismático Português”1 diligenciados
classificar, e que tinham sido adquiridas por José da Cruz Azevedo, engenheiro-
pelo Museu Numismático Português, no -administrador da Casa da Moeda, e An-
Livro 3.º de Inventário. Em 1944 o Museu tónio Bebiano, administrador da Impren-
Numismático passou a funcionar anexo sa Nacional, recebeu a designação de
ao novo edifício da Casa da Moeda, ao Moedas árabes. Inventário e descrição e
abrigo do Decreto n.º 34001, de 4 de ou- foi publicado em duas partes: a primeira
tubro, que definiu também as suas atri- em 1949, com o título Da criação do emi-
buições, e, dois anos mais tarde, foi rei- rado espanhol à conquista de Granada
naugurado nas novas instalações. (711-1492), e a segunda em 1959, com o tí-
tulo Da conquista de Granada aos nossos
Joaquim Figanier e o inventário da cole- dias, com um apêndice. Esta divisão pre-
ção de moedas da época islâmica tendia ser um reflexo de circunstâncias
históricas que o próprio Joaquim Figa-

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A coleção de moedas da época islâmica nier justificaria no prefácio do catálogo,
que tinha integrado o acervo em expo- separando, de um lado, a época da “for-
sição no Palácio da Ajuda e na Casa da mação e desmembramento do Império
Moeda da rua de São Paulo passou, a Muçulmano”, e, do outro, a dos “Estados
partir de 1946, a estar patente na Casa Muçulmanos das Idades Moderna e Con-
da Moeda da avenida António José de temporânea”2. De uma forma geral, esta
Almeida. Numa altura em que o Museu obra continha um prefácio sobre a histó-
Numismático Português dispunha já do ria da presença árabe, berbere e islâmica
registo de inventário das peças que in- na Península Ibérica entre os séculos VIII
tegravam o respetivo acervo, Joaquim e XV, no qual se falava também acerca da
Figanier (1898-1962), investigador da forma como se encontrava organizada a
época árabe e islâmica, interessou-se por coleção de moedas da instituição, reu-
aquela coleção e dedicou-se ao estudo nida na sequência da incorporação das
das peças em depósito na instituição. Os séries pertencentes à Coleção Real ou da
resultados do trabalho que este investi- Ajuda e ao Fundo Geral.
gador desenvolveu foram apresentados Na altura em que Joaquim Figanier
ao público entre 1949 e 1959, data da deu início ao inventário das moedas da
publicação, com a chancela da Casa da época islâmica, nomeadamente das que
Moeda/Museu Numismático Português, integravam a Coleção Real ou da Ajuda,
do único catálogo das moedas islâmicas uma parte destas encontrava-se já suma-
editado até à data. riamente descrita em pequenos papéis
Este catálogo, resultante dos traba- com notas escritas em castelhano, ante-
lhos de “inventariação, classificação e riormente utilizados para acondicionar

1. Figanier 1949: xi.


2. Figanier 1949: x.

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

as peças do acervo. O trabalho que este blicado o catálogo da autoria de Joaquim


investigador desenvolveu consistiu pri- Figanier, deu entrada na coleção do Mu-
meiramente na identificação das moe- seu Numismático Português um tesouro
das já descritas, e, só depois, das que constituído por um conjunto de moedas
ainda se encontravam por descrever, as de prata da época islâmica, presumivel-
quais foram identificadas com base na mente encontrado em Silves no ano de
consulta da obra de Antonio Vives y Es- 1955. No Livro 3.º de Inventário desta ins-
cudero (1893). Para cada uma das peças tituição, as peças foram registadas, numa
circulantes na Península Ibérica entre os única ementa, como um tesouro de
séculos VIII e XV, Figanier criou uma fi- moedas da época “árabe”, tendo-lhe sido
cha-padrão que continha vários descrito- atribuídos na altura do registo os núme-
res numismáticos: coleção museológica, ros de inventário 22990-23079: “Árabes /
contexto histórico, denominação, centro 22.990/23.079 – 90 diremes”4.
de emissão, data, metal, anverso, rever- A partir deste registo, as moedas per-
so, observações, número de inventário. maneceram sempre com o mesmo nú-

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Nestas fichas, as epígrafes árabes foram mero de inventário nas coleções do Mu-
transcritas e traduzidas para português. seu Numismático Português e do Museu
Algumas moedas mais representativas Casa da Moeda. Atualmente encontram-
foram fotografadas e organizadas em -se reunidas no interior de uma caixa de
estampas. À data da conclusão dos tra- cartão azul, com uma etiqueta branca
balhos de inventário da coleção islâmica, na tampa com anotação referente ao nú-
Joaquim Figanier tinha conseguido iden- mero de inventário, acompanhadas por
tificar, para a Coleção Real ou da Ajuda, um pequeno bilhete em papel, de 115 x
duzentas e oitenta moedas (82,59%), e, 90 mm de dimensão, escrito em ambas
para o Fundo Geral, cinquenta e nove as faces com tinta castanha e paleogra-
(17,40%), perfazendo um total de trezen- fia uniforme, contendo notas redigidas
tas e trinta e nove peças. A Coleção Real em português, no anverso, e em francês
ou da Ajuda era constituída por vinte e e árabe, no reverso. À semelhança das
sete moedas de ouro (9,64%), duzentas outras peças pertencentes à coleção do
e vinte e sete de prata (81,07%) e vinte e museu, a caixa encontra-se hoje em de-
seis de cobre (9,28%); o Fundo Geral, por pósito no edifício-sede da Imprensa Na-
treze moedas de ouro (22,03%) e quaren- cional-Casa da Moeda, em Lisboa.
ta e seis de prata (77,96%)3. A face primária do bilhete contém o
seguinte texto (figura 1):
INCM/MCM 22990-23079: um tesouro
monetário da época islâmica “Moedas arabes do tempo / da conquista de
Silves 1189 / as moedas devem ter sido cu-/
Na altura em que se encontrava a ser pu- nhadas nos principios do / seculo 12”.

3. Figanier 1949: xii.


4. INCM, Arquivo Histórico, Moedas. Livro III, fl. 344.

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

Figura 2 – Face do bilhete identificativo do


tesouro monetário com transcrição epigráfi-
ca e respetiva tradução (INCM/MCM 22990-
23079).

Embora este bilhete não seja muito elu-


cidativo acerca das circunstâncias exatas
do achado do tesouro, a leitura de uma
das suas faces não deixa margem para
dúvidas quanto ao facto de as moedas
estarem relacionadas com a cidade de
Figura 1 – Face do bilhete identificativo do Silves. É lícito considerar-se a hipóte-
tesouro monetário com indicação sobre o se de este achado ter resultado de uma
respetivo contexto histórico (INCM/MCM descoberta fortuita na cidade, apesar
22990-23079). de não se poder avançar com nenhuma

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informação concreta acerca da área em
A face secundária do bilhete contém o que se terá procedido à descoberta – al-
seguinte texto (figura 2): cáçova, almedina ou arrabalde – ou até
da eventualidade de esta ter tido lugar
À esquerda: “[transcrição epigráfica árabe] não propriamente na cidade, mas sim
/ Dieu est notre maitre. / Mahomet notre / nas suas imediações. Para além desta
prophète. / Le Mahdi notre / Pontif.”. informação de caráter mais objetivo, o
À direita: “[transcrição epigráfica árabe] anotador do bilhete procurou integrar
/ Il n’y a de Dieu que / Dieu. / Toutes les o achado no contexto histórico que lhe
affaires sont / confiées à Dieu. / Il n’y a de pareceu ser mais plausível, relacionan-
force qu’en / Dieu.” do-o com a conquista de Silves pelo rei D.
Sancho I, ocorrida, com o auxílio da ter-
ceira cruzada, em 11895, e considerando a
possibilidade de a sua cunhagem ter tido
lugar em data situada em torno dos prin-
cípios do século XII. Embora aquele não
tenha justificado a relação que procurou
estabelecer entre o tesouro monetário e
a conquista cristã, não se pode descar-
tar a hipótese de o achado ter sido feito
paralelamente ao de outros materiais
suscetíveis de permitir idêntica aferição
cronológica, como tem sido registado a

5. David 1939; Pereira 2003: 109-141; Branco 2006; Pereira 2010; Azevedo 2012: 73-77, 149-162.

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

propósito das intervenções arqueológi- anónimas, traduzindo a epígrafe para


cas levadas a cabo em diferentes áreas francês. Se não é claro se esta epígrafe foi
do núcleo urbano6 ou até de achados de lida diretamente a partir de uma moeda
moedas que nem sempre permitem ca- ou se resulta da consulta da bibliografia
racterização arqueológica precisa7. da especialidade, como o sugere o facto
Com efeito, uma das problemáticas de a leitura árabe vir acompanhada de
que se levantam a propósito deste te- tradução francesa, parece pelo menos
souro de moedas está relacionada com evidente que, para o anotador do bilhe-
a datação das peças que o integram. No te, ela terá servido de apoio à contextua-
bilhete que acompanha o tesouro men- lização do achado e à interpretação do
ciona-se a hipótese de este conjunto de tesouro. Se considerarmos que a dispo-
moedas ter sido cunhado nos princípios sição da leitura no bilhete reflete uma
do século XII. Esta hipótese é avançada diferenciação entre as faces primária e
com base na conjetura que sugere que o secundária da moeda cuja epígrafe se
tesouro teria sido escondido por ocasião transcreveu, parece igualmente evidente

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 63 - 72
da conquista de Silves por D. Sancho I. Se que, para o seu anotador, a face primária
esta hipótese parece sugerir o terminus continha a referência à missão profética
ante quem para a data de formação do te- de Muḥammad e à intermediação do
souro e respetiva ocultação, deixa, contu- Mahdī, e a face secundária, a referência
do, por esclarecer o terminus a quo para à unicidade de Allāh.
a data de emissão das moedas. Em nossa
opinião, este silêncio pode ser explicado
com base em dois fatores: em primeiro
lugar, a inexistência de outras informa-
ções arqueológicas que permitam afinar
a cronologia proposta, e, em segundo, a
impossibilidade de se extrairem dados
adicionais a partir da tipologia das moe-
das, constituída por epígrafes caracterís-
ticas de séries anónimas.
O anotador do bilhete procedeu tam-
bém à leitura da epígrafe árabe represen-
tada nas faces de uma moeda que não
se pode identificar com rigor, mas que Figura 3 – Fotografia de conjunto do tesouro
se pode relacionar com a tipologia mais monetário (INCM/MCM 22990-23079).
comum do dirham almóada de séries

6. Gomes 2002; Gomes 2003; Gomes 2006; Gomes 2011.


7. A título geral, Marinho 1984; Marinho 1991; Marinho 1998. A bibliografia específica sobre achados de
moedas em Silves ou sobre moedas batidas nesta cidade na época islâmica é relativamente abundante,
conforme se depreende da leitura de Miles 1960; Marinho 1968; Marinho 1985; Marinho 1986; Marinho
1991-1992 (a título de complemento, Marinho 1969a; Marinho 1969b).

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
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De uma forma geral, as moedas que inte- tesouro monetário. Numa das faces da
gram este tesouro (figura 3) encontram- moeda encontra-se a fórmula caracterís-
-se em condições que permitem fácil lei- tica da época almóada: Allāhu rabbunā
tura. As moedas apresentam a tipologia / wa-Muḥammad rasūlunā / wa’l-Mah-
mais característica do dirham almóada dī imāmunā (“Allāh é o nosso Senhor,
de séries anónimas, contendo, em am- Muḥammad é o nosso profeta, o Mahdī é
bas as faces, epígrafe inscrita em gráfila o nosso guia”). Na outra face encontra-se
quadrada semelhante à que se encontra a fórmula indicativa de alguns princípios
transcrita no bilhete. O caráter exclusiva- de fé da religião islâmica.
mente religioso da epígrafe não permite Muito comuns na moeda identifica-
retirar quaisquer informações cronológi- da com o dirham8, estas fórmulas dão tes-
cas sobre a data de emissão das moedas, temunho do papel central atribuído a Ibn
apesar de um número reduzido de peças Tūmart como impulsionador da reforma
mostrar epígrafe indicativa da ceca de unitarista, subjacente ao surgimento do
Fez (Fās). As moedas de maior módulo califado almóada durante o século XII, e

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medem 15 x 15 mm, embora várias outras sublinham dois aspetos basilares da reli-
apresentem módulo de menores dimen- gião islâmica: a crença na unicidade de
sões com indícios de cerceio. O peso das Allāh (tawḥīd) e a confiança do homem
moedas varia entre 1,49 g e 1,68 g, oscilan- em Allāh (tawakkul). Na religião islâmica,
do entre os seguintes valores numéricos: a proclamação da unicidade divina cor-
1,55 g (dezassete exs.), 1,54 g (onze exs.), respondia à primeira parte da profissão
1,60 g (dez exs.), 1,59 g (sete exs.), 1,57 g de fé e traduzia a crença na existência de
(sete exs.), 1,58 g (seis exs.), 1,53 g (seis um Deus único dotado de uma série de
exs.), 1,62 g (quatro exs.), 1,61 g (quatro atributos divinos, que reforçavam a Sua
exs.), 1,56 g (quatro exs.), 1,52 g (quatro absoluta transcendência. A confiança
exs.), 1,67 g (dois exs.), 1,63 g (dois exs.), em Deus derivava diretamente da crença
1,51 g (dois exs.), 1,68 g (um ex.), 1,66 g na unicidade divina e compreendia, en-
(um ex.), 1,64 g (um ex.), 1,49 g (um ex.). tre outros aspetos, a submissão do mu-
Ainda que o tesouro seja constituí- çulmano aos desígnios de Deus, numa
do por noventa moedas, o anotador do atitude de entrega confiante capaz até
bilhete optou por transcrever apenas de proporcionar, em última instância, a
uma epígrafe de apoio à leitura de todas união mística.
as moedas que o integram. Esta opção
parece ter sido justificada pelo facto de
as moedas apresentarem características
metrotipológicas muito semelhantes,
que apontam não só para a hipótese
de sincronicidade de circulação, mas
também para a sua interpretação como

8. Vega Martín, Peña Martín & Feria García 2002.

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)

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lecimiento Tipográfico de Fortanet.

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 63 - 72

72
MÁRIO DE GOUVEIA
Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda (INCM/MCM)
Instituto de Estudos Medievais (IEM, NOVA FCSH)
mario.gouveia@incm.pt

MARIA JOÃO DE SOUSA


Parques de Sintra – Monte da Lua (PSML)
maria.sousa@parquesdesintra.pt

Moedas da primeira
dinastia

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 73 - 79
provenientes
do Castelo dos
Mouros (Sintra):
notícia preliminar
das escavações
arqueológicas
de 2009-2011
Resumo

Apresenta-se neste artigo uma notícia preliminar acerca do conjunto de moedas, datáveis
da primeira dinastia portuguesa (séculos XII-XIV), encontrado no decurso de escavações ar-
queológicas na necrópole da igreja de São Pedro de Canaferrim (Castelo dos Mouros, Sintra),
entre 2009 e 2011.

Palavras chave: Idade Média; sepulturas; moedas; economia simbólica.

Abstract

The aim of this essay is to present a preliminary note concerning the first Portuguese dinasty
(12th-14th centuries) monetary set found in the archaeological excavations of the necropolis
of the church of São Pedro de Canaferrim (Castelo dos Mouros, Sintra), between 2009 and
2011.

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 73 - 79
Keywords: Middle Ages; graves; coins; symbolic economy.
MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011

O contexto arqueológico foi alvo no século XIX, com D. Fernan-


do II, e já no século XX, com a DGEMN,
O Castelo dos Mouros, construído no vieram acentuar essas perturbações. Os
topo de um dos cumes rochosos mais al- primeiros vestígios a ser identificados
tos da Serra de Sintra, localiza-se no inte- correspondem à área de necrópole da
rior da Paisagem Cultural de Sintra, clas- igreja de São Pedro de Canaferrim, local
sificada pela UNESCO como Património onde foram escavadas trinta e quatro se-
Mundial desde 1995, e foi desde sempre pulturas, contendo cada uma delas, na
um dos locais mais visitados da zona de maioria dos casos registados, mais do
Lisboa devido à sua relação com o passa- que um indivíduo, entre adultos, adoles-
do histórico da região e ao próprio sítio, centes e crianças. No conjunto dos níveis
suscetível de proporcionar uma espeta- revolvidos identificaram-se numerosos
cular vista panorâmica da costa, da vila materiais arqueológicos de diversos pe-
de Sintra até Mafra. Os trabalhos arqueo- ríodos de ocupação, desde o neolítico à
lógicos promovidos no local entre 2009 e atualidade, entre eles um conjunto de
2012 pela Parques de Sintra – Monte da moedas cuja identificação preliminar se

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 73 - 79
Lua, S.A., a quem a gestão do castelo está apresenta neste estudo.
entregue, incidiram fundamentalmente
nas zonas onde se pretendiam implantar O conjunto monetário
novos equipamentos de apoio ao visitan- Entre 2009 e 2011 foi possível proceder-
te, mas acabaram por abranger outras -se à recolha de um conjunto de moedas
áreas de modo a alargar, integrar e apro- no exterior do perímetro de muralhas
fundar estudos anteriores, dando desta do Castelo dos Mouros, em Sintra, no
forma a conhecer, de modo mais objeti- local onde foi escavada uma necrópole
vo, as ocupações humanas do castelo, as de inumação datável da época medie-
suas fases construtivas e os espaços da val cristã associada à igreja de São Pedro
vida quotidiana. de Canaferrim. Os trabalhos de campo
Os trabalhos arqueológicos realiza- foram conduzidos sob a direção de um
dos nos vários setores de investigação, dos signatários (MJS), e, na sequência da
na zona da necrópole cristã e nas áreas intervenção arqueológica, este conjunto
dentro da fortificação, como as antigas de moedas foi depositado no Palácio de
cavalariças e a praça de armas, revela- Monserrate e daí transferido tempora-
ram estratigrafias bastante perturbadas, riamente para as instalações do antigo
devido às diversas intervenções que ti- Museu do Banco de Portugal, em Lisboa,
veram lugar no castelo ao longo dos úl- onde se procedeu ao respetivo estudo
timos séculos. Se, por um lado, a própria (MG).
construção da fortificação, em época A análise preliminar do conjunto
medieval, a fundação da igreja de São de moedas ali identificado, formado
Pedro de Canaferrim e a respetiva ne- por cerca de cinco dezenas de moedas
crópole afetaram os níveis arqueológicos encontradas avulsas numa zona carac-
anteriores, as reformas de que o castelo terizada pela presença de mais de trin-
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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011

ta sepulturas, permitiu-nos identificar aferir com rigor. As moedas portuguesas


praticamente todas as espécies como encontradas no local, batidas em bo-
sendo de cunhagem portuguesa, bem lhão, podem ser enquadradas em séries
como atribuí-las, com representativi- tipológicas que permitem a sua segura
dade estatística variável, à prática de identificação como dinheiro, mealha,
cunhagem monetária que teve lugar em pilarte, meio-tornês de escudo ou barbu-
Portugal durante a primeira dinastia, de da, apesar de se registar um claro predo-
D. Afonso I (1128-1185) a D. Fernando I mínio para os dois primeiros títulos. Os
(1367-1383). A maioria das moedas iden- dinheiros e as mealhas conservam-se
tificadas pode datar-se dos reinados de inteiros ou fracionados, ostentando ca-
D. Afonso III (1248-1279) e D. Dinis (1279- racterísticas muito comuns na prática de
1325), facto que se compreende tendo em amoedação de baixo valor nos séculos
conta que foi durante estes reinados que XII e XIII, como letreiros em latim padro-
tiveram lugar as obras de construção ou nizados alusivos ao nome do rei em fun-
beneficiação do recinto fortificado que ção e ao título que o identifica como rei
veio a envolver o primitivo povoado, dei- de Portugal ou, mais tardiamente, como

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 73 - 79
xando extra muros a igreja de São Pedro rei de Portugal e do Algarve. O pilarte, o
de Canaferrim e a necrópole adjacente. meio-tornês de escudo e a barbuda, es-
Durante a intervenção arqueológica foi pécies associadas à reforma do sistema
ainda possível identificar-se um con- monetário que teve lugar no país duran-
junto de outras moedas de emissão his- te o século XIV, conservam-se inteiros e
pânica, provenientes do reino de Leão e ostentam características mais facilmente
Castela, como um pepión de Fernando IV individualizáveis no conjunto das peças
(1295-1312), um noven de Afonso XI (1312- encontradas, dados os elementos gráfi-
1350) e um cornado de João I (1379-1390), cos e epigráficos que surgem claramente
perdidos em Sintra muito possivelmente representados nas respetivas faces.
na sequência da morte do rei D. Fernan- No tocante aos tipos das diferentes
do I e das guerras que se seguiram pela espécies monetárias identificadas, re-
tomada de Lisboa contra D. João, mestre gista-se o predomínio dos de simbologia
de Avis, nomeado regente e defensor do política e eclesiástica: para além dos que
reino no quadro da crise dinástica de se identificam como símbolos nacionais
1383-1385. – como os escudetes brasonados com
Na sua generalidade, as moedas re- besantes em número variável, dispostos
colhidas são de difícil caracterização em cruz ou em aspa, os bustos régios de
metrotipológica, facto que se deve às perfil e as coroas –, encontram-se ainda
condições em que atualmente se encon- o báculo e, muito particularmente, no
tram, resultantes não só de um manuseio caso do dinheiro e da mealha, a cruz de
excessivo, como de um contexto deposi- formas e dimensões muito variáveis –
cional pouco favorável à sua preserva- como a cruz simples inscrita em círculo
ção, tornando-as de difícil legibilidade central, a cruz de hastes longas extrava-
e de cronologia nem sempre fácil de se sando o círculo central, a cruz cantona-

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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011

da por crescentes e pontos, a cruz can- ter sido possível identificar-se a presença,
tonada por crescentes e estrelas, a cruz na maior parte das estruturas escavadas,
cantonada por castelos ou ainda a cruz de restos pertencentes a mais do que um
cantonada por castelos com escudete ao indivíduo, entre adultos, adolescentes e
centro –, para além de outros motivos fi- crianças. Estas sepulturas faziam parte
tomórficos e geométricos geralmente co- de uma necrópole que terá funcionado
nhecidos como signos ocultos. A barbuda como espaço de inumação associado à
do reinado de D. Fernando I é a única igreja que se situava nas suas imediações,
peça deste conjunto que contém um si- ainda hoje conhecida localmente como
nal braquigráfico indicativo do respetivo igreja de São Pedro de Canaferrim. As ca-
local de cunho: a cidade do Porto. racterísticas das sepulturas e a sua asso-
ciação a esta igreja permitem-nos datar
Problemáticas histórico-arqueológicas com segurança esta necrópole da época
medieval cristã, facto corroborado pelo
O conjunto de moedas identificado en- conjunto de moedas nela encontrado.
tre 2009 e 2011 durante a intervenção A maior parte das moedas encon-

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arqueológica que teve lugar no Castelo tradas pode datar-se dos reinados de D.
dos Mouros, em Sintra, pode datar-se Afonso III e D. Dinis, sendo, por este mo-
genericamente dos séculos XII a XIV, não tivo, atribuíveis a um arco cronológico
se registando outras espécies que ultra- genericamente situado entre as últimas
passem este espetro cronológico com décadas do século XIII e as primeiras dé-
ampla representação diacrónica. Embo- cadas do século XIV, apesar de ter sido
ra a ausência de contexto arqueológico possível a exumação de outras espécies
não nos tenha permitido retirar ilações não só anteriores como também poste-
significativas sobre as circunstâncias que riores a estes dois reinados. É de se des-
terão envolvido a utilização destas moe- tacar o aparecimento de uma mealha
das, o facto de estas terem sido encontra- atribuível ao reinado de D. Afonso I, bem
das avulsas em sepulturas de inumação como de um pilarte, um meio-tornês de
datáveis da época medieval cristã, asso- escudo e uma barbuda datáveis já do rei-
ciadas a uma igreja, deixa-nos entrever a nado de D. Fernando I. As peças atribuí-
hipótese de as moedas terem sido utiliza- veis a estes dois reinados podem consi-
das com um objetivo fundamentalmente derar-se como termini a quo e ad quem
simbólico, ligado à tradição que, desde a para a cronologia de ocupação da necró-
época antiga, se convencionou designar pole. A aferição da cronologia das peças
como óbolo de Caronte ou viático. encontradas permite-nos dizer que esta
As sepulturas identificadas no decur- esteve ativa durante cerca de duzentos
so dos trabalhos arqueológicos encon- anos, servindo seguramente como local
travam-se profundamente revolvidas e de inumação da população que residia
continham numerosos materiais arqueo- no primitivo povoado ou já no interior
lógicos reveladores de diferentes crono- do recinto que veio a ser delimitado por
logias de ocupação do espaço, apesar de muralhas em épocas um pouco mais tar-

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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011

dias. dispendiosas, embora envolvendo redu-


Embora as moedas encontradas zidos montantes. O estado de fraciona-
não sejam suficientes para se poder re- mento em que algumas destas moedas se
tirar delas qualquer conclusão de or- encontram aponta para uma clara neces-
dem estatística, as suas características sidade de moeda divisionária, agravada
metrotipológicas dão-nos indicação de pelo facto de o suporte metálico predo-
alguns traços fundamentais da fisiono- minante, o bolhão, indicar à partida um
mia económica das populações que as uso algo limitado e de fraco alcance.
utilizaram ou com as quais estas estão No seu conjunto, as moedas iden-
arqueologicamente associadas. O supor- tificadas sugerem a existência de uma
te baixo em que foram batidas, isto é, o economia monetária pobre, acentuada
bolhão, aponta para a existência de uma pela utilização das espécies circulantes
população provida de um certo índice em contextos simbólicos ligados à de-
de monetarização, apesar de as moedas posição intencional em sepulturas de
sugerirem contextos originários, anterio- inumação. Esta prática está largamente
res à sua deposição nas sepulturas, ca- atestada em várias outras necrópoles

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racterizados por fraco poder fiduciário e escavadas de norte a sul do país, com
reduzido praticamente às espécies mais idêntica cronologia, facto que nos per-
utilizadas no quadro do quotidiano de mite dizer que a prática registada na
populações dotadas de fracos recursos necrópole da igreja de São Pedro de Ca-
económicos. naferrim se deve entender apenas como
De uma forma geral, é possível di- uma nova evidência arqueológica de um
zer-se que as moedas encontradas terão tipo de comportamento muito comum,
sido utilizadas como complemento de ligado a rituais religiosos indicadores da
atividades económicas tradicionais, liga- pervivência de práticas pagãs em con-
das à subsistência em regime de auto-su- textos cristãos. À semelhança do que se
ficiência, como a agricultura e a pecuária, encontra atestado noutras necrópoles da
características de paisagens dominadas época, é possível que estas peças tenham
pela presença da montanha. Se é lícito sido depostas sobre os olhos, na boca,
pensar-se na hipótese de este conjunto nas mãos ou nos pés dos indivíduos se-
de moedas ter estado em circulação em pultados de forma a se garantir o paga-
data anterior à sua deposição em contex- mento do viático, tradição popular que
to de necrópole, o número relativamen- preconizava o sustento da passagem do
te pequeno de peças encontradas, bem falecido à vida após a morte através de
como o estado em que estas chegaram uma moeda capaz de evitar o seu retor-
até aos nossos dias, sugerindo elevado no. Neste contexto, a prática registada
grau de manuseio, parece apontar para arqueologicamente nesta igreja deve en-
um quadro económico ainda caracteri- tender-se numa dimensão simbólica, as-
zado pelo predomínio das trocas diretas sente sobre pressupostos fundamentais
e em que a moeda era apenas ocasio- do culto dos mortos próprios de comu-
nalmente utilizada em transações mais nidades enraizadas em velhas tradições.

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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011

Conclusões
aos confrontos travados entre as forças
As escavações arqueológicas levadas a portuguesas e castelhanas a propósito da
cabo no Castelo dos Mouros, em Sintra, tomada de Lisboa no quadro da crise di-
entre 2009 e 2011, permitiram a recolha nástica de 1383-1385.
de um conjunto de moedas datáveis da A maior quantidade de informações
época medieval cristã cuja notícia preli- disponíveis para este período da ocupa-
minar procurámos efetuar ao longo das ção do espaço corrobora a hipótese de as
páginas precedentes. Apesar de muito muralhas erguidas neste local, com o ob-
deteriorado pelo uso ou pelo contexto jetivo de abrigar o primitivo povoado, te-
deposicional pouco favorável à preserva- rem sido construídas várias décadas após
ção das suas características originárias, o a tomada do castelo de Sintra pelos exér-
conjunto de moedas encontrado na ne- citos cristãos, apesar de se poder tomar
crópole adjacente à igreja de São Pedro por certa a informação de que a necrópo-
de Canaferrim pode atribuir-se à primei- le e a igreja de São Pedro de Canaferrim
ra dinastia, sendo, por este motivo, gene- lhe são muito anteriores. Para além de
ricamente enquadrável numa diacronia nos facultarem informações sobre a cro-

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que se estende da segunda metade do sé- nologia de construção desta estrutura, as
culo XII à segunda metade do século XIV. moedas encontradas podem ser conside-
Este conjunto de moedas integra radas como indicadores seguros da exis-
cerca de cinco dezenas de peças encon- tência de uma população dotada de um
tradas avulsas, mostrando característi- certo grau de monetarização mas que
cas metrotipológicas que permitem a possivelmente viveria num estado de au-
sua fácil identificação com diferentes tarcia económica, próprio de uma comu-
espécies monetárias, entre as quais o nidade de fracos recursos económicos. O
dinheiro, a mealha, o pilarte, o meio-tor- contexto arqueológico das peças indica
nês de escudo e a barbuda. A mais antiga que, não obstante esta função originária,
pode atribuir-se ao reinado de D. Afonso as moedas encontradas foram também
I, e a mais recente, ao de D. Fernando I, canalizadas para a satisfação de neces-
apesar de se registar um predomínio de sidades simbólicas específicas, ligadas a
espécies cunhadas sob D. Afonso III e pressupostos fundamentais do culto dos
D. Dinis, isto é, datáveis da transição do mortos, característicos da época medie-
século XIII para o século XIV. Comple- val, como o pagamento do viático.
mentarmente, foi possível proceder-se à
identificação de três moedas de origem
hispânica, entre as quais um pepión de
Fernando IV, um noven de Afonso XI e
um cornado de João I, todos datáveis do
século XIV e possivelmente associados

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MÁRIO BRUNO PASTOR
CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologias das Artes
Universidade Católica Portuguesa – Escola das Artes
mbrunopastor@gmail.com

O retrato e as
representações
ornamentais nas armas
reais portuguesas em

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amoedações de ouro
cunhadas entre 1722
e 1878
Resumo

A partir de 1721, D. João V procurou relançar a amoedação portuguesa como ferramenta de


afirmação internacional. As reformas, expressas sobretudo na cunhagem de ouro, lançaram
uma tradição de qualidade estilística e artística, tanto no retrato, como na representação das
armas nacionais, que se foi desenvolvendo ao longo de todos os reinados seguintes em Por-
tugal.

Palavras chave: Casa da Moeda; ouro; abridores; estilos artísticos.

Abstract

From 1721, king John V of Portugal tried to modernize the Portuguese coinage. The main
objective was to use the coins as a new sophisticated tool for international affirmation. The
reforms, expressed mainly in the golden coinage, launched a tradition of stylistic and artistic

REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 80 - 111


quality, both in the portrait and in the representation of the national shield of arms, which
was developed throughout all subsequent reigns in Portugal.

Keywords: Portuguese Mint; gold coinage; engravers; art styles.


O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Introdução outro lado, são também as amoedações


auríferas aquelas com maior expressão
As moedas, enquanto microrrepresenta- em termos de comércio internacional,
ções artísticas dos modelos escolhidos isto é, foi através do ouro que a moeda
pelos poderes do seu tempo, são veículos portuguesa manteve uma projeção inter-
portáteis de difusão de mensagens e de nacional de muito considerável alcance,
conteúdos estéticos. Além disso, a di- servindo naturalmente como elemento-
mensão material mais imediata da moe- -chave para os pagamentos comerciais,
da, enquanto produção material em si, é mas também como elemento de afirma-
um manifesto documental do enquadra- ção e projeção diplomática internacio-
mento cultural do seu tempo. nal. Esta afirmação diplomática, longe
Assim, procurando um diferente de ser uma consequência secundária
ângulo de interpretação numismática, inerente ao papel económico do dinhei-
procuramos realizar neste estudo uma ro, foi sempre tida em conta e, por assim
leitura de integração estética da repre- dizer, exponenciada pelos soberanos

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sentação das armas reais nos modelos portugueses de modo a causar profunda
monetários portugueses, exclusivamen- impressão em todas as restantes nações
te em ouro, dos séculos XVIII e XIX. Ao do mundo. Os meios de atingir os objeti-
mesmo tempo, não dissociamos as moe- vos diplomáticos estão longe de se redu-
das em si dos seus artífices, analisando, zirem ao controlo do peso e aferição da
de igual modo, as relações humanas, de qualidade do ouro amoedado português:
formação técnica e artística, dos mestres a definição, escolha e execução artística
moedeiros que laboraram na Casa da das moedas, do seu cunho e tema foram,
Moeda de Lisboa no período em análise. desde sempre, elementos muito bem
Deste modo, um dos nossos objetivos é pensados dentro das estratégias de rela-
precisamente o de relembrar, respeitar ções internacionais da Coroa portuguesa.
e homenagear a memória dos artífices Por fim, no que concerne à circuns-
da Casa da Moeda, primeiros e basilares crição cronológica das amoedações de
responsáveis pelo nosso tão valioso pa- ouro proposta para este pequeno ensaio
trimónio numismático. – 1722 a 1878 –, esta corresponde ao iní-
No estudo em apreço, consideramos cio das reformas monetárias de D. João V,
apenas as cunhagens em ouro. Não só consequência do arranque de laboração
porque foram estas as mais diversifica- de uma nova Casa da Moeda em Lisboa,
das e apuradas entre todos os outros me- bem como a introdução do escudo de
tais, mas também porque não raras vezes ouro, até à cunhagem dos últimos espé-
foi a partir dos modelos aprovados para cimes de ouro nacionais, no final do rei-
o ouro que se definiram as tendências nado de D. Luís I, em 18891, nas vésperas
estéticas para as outras amoedações. Por da grande crise económica internacional

1. As últimas emissões (não considerando os ensaios posteriores) de ouro portuguesas são, de facto, dos pri-
meiros meses de 1889, contudo, o último modelo de cunho usado era ainda o das coroas de 10$000 réis, de

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

de 1890-1891 e consequente saída de Por- dispostos em aspa. Cerca de 30 anos de-


tugal do padrão-ouro2. pois, D. João II viria, mediante reforma
heráldica, definir a matriz tradicional
1. Linhas gerais sobre o sistema monetá- das armas reais que viriam a servir de
rio português na Idade Moderna modelo posterior até ao escudo atual
da República Portuguesa (naturalmente
Introduzido ainda no final da Idade Mé- sem a coroa): escudo com bordadura de
dia por D. Fernando, o real branco aca- sete castelos, campo interior com cinco
bou por se definir, sobretudo a partir do quinas dispostas em cruz, todas dispos-
reinado de D. Duarte, como a unidade tas verticalmente e com cinco besantes
monetária portuguesa que vigorou até em aspa cada uma4.
1910. Foi este o novo escudo singelo, isto é,
Os primeiros reais, ainda do século sem qualquer tipo de suporte, que se tor-
XIV e primeiras décadas do século XV, nou o elemento basilar dos anversos das
apresentavam já os elementos figurati- moedas portuguesas do final do século

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vos nacionais tradicionais, as quinas e XV em diante. O reverso, ainda que por
os castelos, contudo, não apresentavam vezes variado, cristalizou-se na represen-
ainda a sua sistematização organizada tação de uma cruz equilátera, normal-
no interior de um escudo ou cartela bem mente a cruz da Ordem de Cristo, cerca-
definida. da pela legenda IN HOC SIGNO VINCES.
Seria apenas no reinado de D. Afonso
V, com a introdução do escudo de ouro3
e, sobretudo, com a introdução do cruza-
do de ouro de 400 reais, em 1457, que o
modelo base das amoedações portugue-
sas se viria a definir: as armas nacionais
coroadas no anverso, já com a bordadura
de castelos (originalmente ainda em nú-
mero irregular e intercalada pelas flores-
-de-lis) e os cinco escudetes dispostos Figura 1 – Cruzado de ouro de D. João III (400
em cruz (os escudetes laterais ainda na reais), primeiro tipo, lei de 1549, emissão de
posição horizontal) no campo interior, Lisboa.
pontuados por também cinco besantes

1878.
2. Santos 2001: 199-201
3. Trata-se de um escudo primitivo, de 253 reais, sem filiação direta com os escudos do século XVIII que
abordaremos posteriormente.
4. A reforma das armas nacionais levada a cabo por D. João II, bem referida tanto por Rui de Pina, como
por Garcia de Resende, nem sempre tem sido datada com facilidade. Aceitamos, contudo, a datação mais
consensual que é da reunião do conselho real em Beja, em 25 de março de 1485, quando o rei adota o título
de Senhor da Guiné (Seixas 2010: 47).

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Não obstante este modelo mais ou me- nas amoedações portuguesas, nem tam-
nos definitivo para as moedas portu- pouco modificações assinaláveis no sis-
guesas dos séculos XVI e XVII, podemos tema monetário. Contudo, do ponto de
assinalar alguns momentos de excecio- vista tecnológico, o regente D. Pedro in-
nalidade, como a cunhagem dos São troduziu uma alteração radical: a cunha-
Vicentes e Meios São Vicentes de ouro gem mecanizada, primeiro em Lisboa,
(1000 e 500 reais, respetivamente), em em 1677, e logo depois no Porto, em 1688.
1555, com os cunhos abertos por Antó- Os tipos monetários cunhados ma-
nio de Holanda e pelo filho, Francisco de nualmente e os cunhados por balancé
Holanda. De facto, apenas abridores de mecânico diferem em termos estilísticos
exceção como os dois Holanda poderiam uns dos outros apenas nos acabamentos
marcar a diferença nas amoedações por- técnicos, os elementos de composição
tuguesas do século XVI com os referidos preservaram-se inalterados na fórmula
São Vicentes, moedas de ouro que osten- tradicional: armas reais coroadas no an-
tam a representação oficial singela das verso e cruz de Cristo (por vezes, nas fra-

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armas reais no anverso e a efígie, em pé, ções menores, cruz equilátera simples)
de São Vicente no reverso. no reverso.

Figura 2 – São Vicente (1000 reais), emissão Figura 3 – Dez cruzados de ouro (moeda) de
de Lisboa, lei de 10 de Junho de 1555, gravu- 1664, batida em nome de D. Afonso VI, em Lis-
ra de Francisco de Holanda. Os São Vicentes boa, mediante método de cunhagem ainda
foram cunhados apenas até 1560, já durante a manual, a martelo.
menoridade de D. Sebastião.

Durante a União Ibérica, e por disposi-


ção das próprias Cortes de Tomar, o sis-
tema monetário foi preservado e a moe-
da nacional portuguesa continuou a ser
cunhada com as suas características tra-
dicionais, mudando apenas, como sem-
pre acontecera, o nome do monarca na
face principal. Situação que prosseguiu Figura 4 – Dez cruzados de ouro (moeda) de
depois da Restauração, ou seja, depois 1703, emissão de D. Pedro II, de Lisboa, produ-
de 1640 não houve alterações tipológicas ção mecânica.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Desta forma, chegados ao início da dé- remodelação interna. É neste contexto


cada de 1720, o sistema monetário portu- que entendemos a determinação de 11
guês continuava a apresentar os mesmos de março de 1720 para a deslocação da
modelos tradicionais definidos cerca de Casa da Moeda de Lisboa para um novo
250 anos antes. complexo de edifícios, na Rua de São
Paulo6, que entrou em funcionamento
2. Gizar projetos, afirmar vontades – logo a 16 de setembro do mesmo ano.
nas vésperas da reforma de 1722 Esta mudança representou não só uma
modernização tecnológica da Casa da
A afluência à metrópole de cada vez mais Moeda, mas também uma centralização
ouro do Brasil, o espírito reformador e total das oficinas emissoras. Com efeito,
centralizador de D. João V, a sua política na metrópole, funcionava ainda em 1720
diplomática (diríamos até algo assober- a Casa da Moeda do Porto, no complexo
bada) e, de certo modo, toda a conjuntu- da Ribeira do Douro, onde se instalavam
ra global e o paradigma cultural da Euro- também a Alfândega e a Contadoria, que

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pa do início de Setecentos contribuíram encerrou após a abertura da nova oficina
para que concorresse na administração de Lisboa.
nacional um desejo de mudança e de afir- A par da modernização do equipa-
mação internacional, que transportasse mento e inovações tecnológicas – de
o reino para o nível dos seus congéneres referir, aliás, que foram causando gran-
europeus, nomeadamente a França. de impacto na Europa, nomeadamente
Numa primeira fase do reinado do em Espanha, levando Filipe V a pedir a
Magnânimo, a ação de afirmação polí- D. João V, por intermédio da embaixada,
tica internacional fez-se mais no plano um modelo completo da maquinaria da
bélico do que na representação exclusi- Casa da Moeda, em 17297 –, as novas re-
vamente diplomática5. Como exemplo, formas implicariam uma remodelação
temos a intervenção na Guerra de Suces- do próprio corpo laboral, mais concreta-
são no reino vizinho, ou as campanhas mente através da contratação de mestres
navais mediterrânicas contra a ameaça artistas estrangeiros.
otomana. Contudo, após a Paz  de  Utre- Deste modo, em 1721, foram con-
que, em 1715, a política joanina parece tratados dois mestres franceses para a
começar a direcionar-se mais para a Casa da Moeda de Lisboa, Antoine Men-

5. A separação entre intervenção militar e intervenção diplomática é, para nós, algo tão bem definido e dis-
tinto como a paz da guerra; contudo, convém relembrar que, no Antigo Regime, estas fronteiras não eram
assim tão claras. Uma incursão militar terrestre ou uma armada naval revestiam-se de todo um cerimonial
de aparato cénico, quase operático, cujos objetivos passavam também por causar um impacto de delegação
internacional ou de afirmação diplomática.
6. Não obstante a sua localização bem próxima da Ribeira das Naus, a Casa da Moeda não foi particularmente
afetada em 1755; em dezembro desse mesmo ano estava já a laborar novamente, a refundir, branquear e
recunhar dinheiro retirado dos escombros, e a servir de depósito dos cofres da Fazenda Real, que havia sido
no Paço (Aragão 1964: II 100-101).
7. Aragão 1964: I 65.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

gin e François Marteau, a 26 de maio e 29 Mengin poderá não ser a única pela qual
de outubro, respetivamente8. O primeiro pesquisar o nome do abridor, na verda-
como abridor de cunhos e o segundo de, o apelido Mangin é a fórmula que se
como abridor de medalhas. vê na gravura que reproduz a medalha
Antes de analisarmos o trabalho de invocativa da Batalha do Cabo Matapão
Mengin, cabe aqui abrir uma reserva (1717)12. Com efeito, a medalha hoje desa-
para esclarecer um pequeno ponto que parecida13 aparece reproduzida no tomo
poderá ser útil para um posterior estudo IV da Historia genealogica14, lendo-se cla-
sobre o trabalho e a vida de Mengin em ramente sob o busto de D. João V a assi-
Portugal. A primeira referência bibliográ- natura A(ntoine). MANGIN F(ecit).
fica a Mengin que encontramos surgiu
pela mão de Cyrillo, em 1823, na sua Col-
lecção de memorias, contudo, o abridor é
identificado como Mangem9.
A próxima referência a Mengin é

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do próprio Teixeira de Aragão, de 1875,
aquando da publicação da sua monu-
mental obra numismática (trabalho que
mereceu, inclusivamente, nota de obser-
vação positiva por parte do próprio Her- Figura 5 – Estampa representando a medalha
culano). No seu catálogo dos moedeiros, de Matapão, no original de 1738 do tomo IV
abridores e oficiais administrativos da da Historia genealogica, do padre D. António
Casa da Moeda, Aragão introduz o nome Caetano de Sousa; sob a efígie do rei vê-se a
do abridor francês como António  Men- assinatura Mangen. O ano no reverso, 1717, é
gin, indicando-nos alguns dados biográ- indicativo da batalha, não na produção do
ficos, como as datas de nascimento e cunho, que terá sido posterior à chegada de
falecimento (1690-1772). De Aragão em Mengin a Lisboa, em 1721. Em 1722, o Marquês
diante, toda a escassa bibliografia que de Abrantes, na Collecçam dos documentos e
cita ou refere o mestre artífice, como Ar- memorias da Academia Real da Historia (sem
tur Lamas10 ou Luís Camilo de Oliveira numeração de página, mas imediatamente an-
Neto11, refere-no como Mengin, contu- tes das notícias da Conferência de 5 de novem-
do, somos levados a admitir que a forma bro de 1722), refere já a medalha.

8. Aragão 1964: I 76-77.


9. Machado 1922: 222.
10. Lamas 1907: 61-62.
11. Neto 1940: 87.
12. A vitória sobre o Império Otomano da Armada Real Portuguesa e da Armada dos Estados Pontifícios em 19
de julho de 1717 foi assinalada em várias medalhas comemorativas, em França, Roma e Portugal.
13. D. António Caetano de Sousa refere apenas a existência de um exemplar, em prata, e que foi oferecido ao
rei (Sousa 1947: 323). Não conhecendo mais nenhuma representação da medalha posterior a 1738, acredi-
tamos que a original se perdeu após essa data, possivelmente no próprio terramoto.
14. Sousa 1947: fol. GG.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Além da gravura de 1738, que identifica o da História Portuguesa ofereceu, em 1722,


autor como Mangin, e da deturpela Man- a D. João V e que serviu como sua em-
gem que Cyrillo Machado transmite, é de presa até 1776, lendo-se nela a assinatura
referir ainda, pelo que podemos verificar do abridor. Lamas faz a leitura A. MEN-
numa consulta rápida ao catálogo do Ar- GIN16:
quivo Nacional da Torre do Tombo, uma
interessante referência nos alvarás de 26
de março e de 3 de abril de 1789, incor-
porados no Registo Geral de Mercês de D.
Maria I (liv. 24, f. 18v. – ANTT PT/TT/RG-
M/E/0000/90331), a atribuição de tenças
às senhoras Dona Maria Vicência Man-
gin, Dona Filipa Leonor Mangin e Dona
Januária Teresa Mangin, apresentadas
como tendo filiação de um António Man-

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gin. A particularidade do apelido, pouco Figura 6 – Estampa de O archeologo portugues
comum em Portugal, a proximidade cro- com a medalha da Academia Real da História,
nológica (em termos geracionais, pode- atribuída a Mengin. O tema do reverso, D. João
remos estar em presença das filhas ido- V estendendo a mão direita para reerguer uma
sas do abridor) e o facto de o documento personificação feminina da História, foi inspi-
ser de atribuição de tenças, reservadas a rado em esboços de Vieira Lusitano (figura 7).
prestadores (ou seus familiares) de altos
serviços à Coroa, poder-nos-ão indicar
que se poderá tratar de Mengin e que, ou
por deturpação fonética, ou por ser efeti-
vamente o apelido Mangin e não Mengin,
a pesquisa documental pelo abridor de-
verá ter em consideração a possibilidade
dessa variante15.
Apenas para concluir este breve
aparte, é interessante registar que, em
1907, numa das primeiras representações
fotográficas de material numismático
em publicações portuguesas, neste caso
em O archeologo portugues, Artur Lamas Figura 7 – Esboço de Vieira Lusitano, da Bi-
publica a medalha que a Academia Real blioteca de Évora, para um ensaio da medalha

15. Sabemos, evidentemente, que essas variantes de nome são muito comuns, o próprio Marteau, referido an-
teriormente, também surge como Marto. Contudo, pareceu-nos pertinente debater um pouco esta questão,
sobretudo como nota de sugestão para futuros eventuais estudos.
16. Lamas 1907: 59.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

da Academia, publicado por Artur Lamas em representar nas moedas. O primeiro em


O archeologo portugues. efígie gótica, de perfil, muito estilizada,
na série dos torneses de busto, e em pé,
A chegada a Lisboa dos novos abridores de frente, nas dobras de ouro; o segundo,
franceses, Mengin e Marteau, em 1721, nos justos, também de ouro, fazendo-se
faz parte do projeto que D. João V tinha figurar de frente e entronado.
definido para as suas novas amoedações, À parte estas exceções, o dinheiro
que, como referimos, começara no ano português ostentava apenas os símbo-
anterior, com a abertura de uma nova e los e as armas ligadas ao Estado e à Fé
moderna Casa da Moeda. (figuras 1 a 4). No entanto, essa não era
Antes de nos debruçarmos sobre a a tradição das restantes potências euro-
reforma monetária propriamente dita e peias, sobretudo do século XVI em dian-
a respetiva análise tipológica dos novos te, mas com especial aprumo a partir da
espécimes, é importante referir que, a segunda metade do século XVII (a tradi-
partir de uma passagem da lei de 4 de ção austríaca, por exemplo, tornou-se o
abril de 1722, D. João V parece ter procu-

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modelo por excelência do retrato barro-
rado muito deliberadamente introduzir co). Ao procurar reformar a moeda por-
em Portugal a tradição de representar a tuguesa, a sua produção e o seu traço, ao
efígie real nas amoedações: chamar a Lisboa abridores estrangeiros
de grande talento, D.  João  V terá procu-
“Todas estas moedas da nova fabrica te- rado introduzir em Portugal a arte do
raõ de huma parte o meu retrato, e nome, retrato numismático, especificamente
como usaraõ alguns dos Reys antigos des- no ouro. No contexto das novas amoeda-
tes Reynos, e praticaõ presentemente qua- ções, os retratos reais, ainda que abertos
si todos os Principes da Europa (...).”17 por Mengin, foram desenhados por Viei-
ra Lusitano20.
Na verdade, como referimos anterior-
mente, e não obstante o que a lei nos diz
sobre o uso dos reis antigos destes rei-
nos, a tradição monetária portuguesa era
quase exclusivamente anicónica18. Ape-
nas19 D. Fernando (muito pontualmente),
e D. João II, por uma única vez, se fizeram

17. Apud Sousa 1947: 270-271.


18. A perceção de D. João V sobre o uso do retrato nas moedas dos reis antigos de Portugal é seguramente
mistificada, possivelmente por influência do Marquês de Abrantes, o incansável fomentador e dinami-
zador da Academia Real da História, mas que era também um medalhista (tal como o Padre D. António
Caetano de Sousa) que recolheu e registou em gravura de água-forte algumas medalhas antigas do tempo
da Restauração, com as efígies de D. João IV e D. Afonso VI.
19. Não englobamos aqui, por uma questão de reserva, o chamado dinheiro de Coimbra de D. Afonso
Henriques, em que nos surge um busto do primeiro monarca.
20. Aragão 1964: II 83.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Figura 8 – Medalha de ouro da coroação da Figura 11 – Medalha de cobre do sacro impe-


rainha Ana, Londres, 1702. Esta peça foi produ- rador Carlos VI, Viena, 1717, gravação de Otto
zida durante o longo período em que Sir Isaac Hamerani. Carlos VI, irmão e sucessor de José I,
Newton dirigiu a Royal Mint enquanto Alcaide era também cunhado de D. João V.
da Moeda. Foi sobre a sua sobrevisão que os re-
tratos de Guilherme III, da rainha Ana e Jorge I 3. A reforma de 1722
foram abertos. A reforma monetária de 4 de abril de
1722 está integrada no grande projeto

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reformador de D. João V. Efetivamente,
o rei mandou criar um novo sistema de
amoedação do ouro, com a introdução
de um novo espécime, o escudo de 1$600
réis, como unidade base do novo sistema
que, bem entendido, deveria correr em
simultâneo com a velha série da moeda
Figura 9 – Medalha de cobre do sacro-impe- de 4800 réis. Para além de as novas moe-
rador José I, Viena, 1705, gravação de Philipp das incluírem o retrato do rei, tal como
Heinrich Müller. José I era irmão da rainha foi referido anteriormente, o objetivo de-
Maria Ana, cunhado de D. João V. clarado da reforma, e citando de novo o
texto da lei, era:

“dar remedio ao grande incommodo, que


padecem meus Vassallos pela difficulda-
de, que lhes resulta da falta de trocos na
Moeda corrente de meus Reynos para o
commercio vulgar (...).”

Figura 10 – Luís de ouro de Luís XIV, Paris, 1714, No que concerne aos reversos, a lei tam-
gravação de Joseph Roettier. O abridor labo- bém é descritiva:
rou também em Londres como John Roettier.
“(...) e da outra parte as Armas Reaes com a
letra: IN HOC SIGNO VINCES; este reverso
se poderá mudar na conformidade do que
eu mandar declarar ao Conselho de minha

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Fazenda, sem que para isso se necessite de armas reais (tabela da figura 21). No en-
publicar nova Ley” tanto, inusitadamente, o primeiro tipo
apresentado por Vaz corresponde a uma
Relação de valores da nova série dos moeda falsa, produzida muito provavel-
escudos de ouro de 1722 mente já no século XX.
– Dobra de 24 escudos (38$000 réis) Não obstante, utilizaremos, neste pe-
– Dobra de 16 escudos (25$600 réis) queno catálogo de amostragem, a siste-
– Dobra de 8 escudos (12$800 réis) matização proposta por Vaz.
– Peça de 4 escudos (6$400 réis)
– Meia peça de 2 escudos (3$200 réis)
– Escudo (1$600 réis)
– Meios escudo (800 réis)
– Cruzadinho (400 réis)

As novas moedas começaram a ser la-

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vradas logo em 1722, indicando-nos que Figura 12 – Dobra falsa com data de 1717
o primeiro cunho, com a legenda do re- (como tal, inadvertidamente anterior à refor-
verso IN HOC SIGNO VINCES, foi pron- ma de 1722). Tipo I, a excluir.
tamente aprovada sem considerações de
maior, como, aliás, estava no texto da lei.
A procura de variações estilísticas
na decoração das armas reais nas moe-
das joaninas foi uma prática corrente na
Casa da Moeda. Entre 1722 e 1732 (quan-
do se estabilizou o modelo decorativo
para ornamentação das armas reais e se
manteve até 1750) assinalamos vinte e Figura 13 – Peça de 4 escudos, Lisboa (L), 1722.
cinco estilos e linguagens ornamentais Tipo II, efetivamente a primeira da série. As
distintas, não só organizadas por anos, armas reais surgem pela primeira vez dentro
mas mesmo com as diferenças dentro de de um escudo circular coroado, suportado por
cada fração monetária da mesma série duas volutas simétricas e elementos fitados,
anual. também simétricos. O estilo, pouco orgânico
Em 1875, Teixeira de Aragão ainda e simétrico, transporta ainda uma carga barro-
não conseguira sistematizar o número ca, mas, apesar de ser um modelo ainda muito
de diferenças de “variedade no feitio e estático, parece sugerir uma certa leveza típica
ornamentação das armas do Reino”21, do estilo da regência francesa.
contudo, cem anos depois, em 1972, Fer-
raro Vaz compilou um quadro com vinte No ano seguinte, em 1723, aquando da
e seis tipos ornamentais distintos para as preparação da segunda emissão, foi fi-

21. Aragão 1964: II 86.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

nalmente notado o despropósito que dinâmica, rematada por elementos fitados, tí-
era a legenda IN HOC SIGNO VINCES a picos do joanino.
ladear as armas reais. A célebre legenda
invocativa de Ourique22, emblemática A partir de 1723 foi esta a tendência prin-
da fundação da monarquia portuguesa cipal para a decoração das armas reais:
e recorrente nos reversos monetários de uma dinâmica de moldura simétrica
cruz, pois é esse o signo, manteve-se nas muito sugestiva, os elementos fitados
amoedações do sistema e feitio antigo, ondulantes e uma paulatina introdução
mas foi prontamente retirada das novas de elementos orgânicos nos remates de-
moedas a 26 de abril de 172323. corativos.
Mantendo-se os mesmos punções Em 1727 chegaram aos Brasil, nomea-
do retrato, a emissão de 1723 introduziu damente à Baía, Rio de Janeiro e Minas
uma dinâmica um pouco diferente no re- Gerais, os cunhos, sempre produzidos
verso. Em termos formais propriamente em Lisboa, da nova série monetária para
ditos (i.e. não decorativos) o escudo das as cunhagens na colónia25.

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armas já aponta para uma ornamenta-
ção própria, e não somente para a orna-
mentação exterior, o que, entendemos, é
uma tendência rococó24.

Figura 15 – Dobra de 8 escudos, 1727, Rio de


Janeiro (R), tipo XXIII. Ainda que retomando
o escudo circular estático, o escudo aparece la-
deado por volutas que enquadram elementos
Figura 14 – Meia peça de 1723, emissão de Lis- conchiformes com nervuras que sugerem já
boa, tipo IV. As armas reais, apresentadas agora uma dimensão orgânica semelhante a rocailles.
em escudo de tipo italiano surgem integradas Presença de alguma assimetria nos elementos
numa cartela, ainda que simétrica, muito mais fitomórficos que pendem nas extremidades.

22. Por sua vez, já ela própria uma recriação da legenda constantiniana da Batalha da Ponte Múlvia, no ano
312: hoc signo victor eris.
23. Aragão 1964: II 83.
24. Carlos 2012: 89.
25. Dizemos na colónia e não coloniais ou provinciais porque, ao contrário do que por vezes é pretendido, a
série dos escudos de ouro não era uma moeda do padrão colonial. As produções no Brasil destas moedas
eram feitas para a metrópole (Amaral 1984: II 338). O padrão monetário brasileiro era a moeda de 4$000
réis, introduzida por D. Pedro II e que se manteve até 1822, ela própria sem curso na metrópole. A série dos
escudos de retrato (onde se enquadra a peça de 6$400, a que viria a ser mais popular na segunda metade
do século XVIII e no início do século XIX) tinha circulação condicionada no Brasil por imposição de taxas
de conversão cambial prejudiciais ao mercado colonial. É pois incorreto integrar a série dos escudos de
retrato no numerário colonial brasileiro.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

reais ou no próprio equipamento militar do rei,


como é o caso do bacinete com uma quimera
de dragão com que D. Afonso V é representa-
do no Grande armorial equestre de la Tíson d’or
(Biblioteca Nacional de França), representação,
aliás, que se pode ver na escultura do átrio da
atual Casa da Moeda. Durante a União Ibérica,
Figura 16 – Dobra de oito escudos, de 1731, Rio o dragão também surge nas representações do
de Janeiro (R), tipo XXII. O escudo recupera brasão português.
o modelo italiano, com curvaturas ondulantes
em todo o seu perímetro. A cartela apresenta
igualmente os elementos recurvos, com volu-
tas simétricas, pontuadas por temas fitomór-
ficos, como as folhas de acanto. A disposição
geral, sobretudo com as cabeças das volutas

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superiores apontadas para o escudo, sugere, de
forma estilizada, a presença heráldica tradicio-
nal do suporte de dragões protetores das armas
reais portuguesas. Figura 18 – Dobra de 8 escudos de 1733, Minas
Gerais (M), tipo XXV. Apesar de o exemplo ser
da emissão de 1733, o modelo decorativo das
armas é o mesmo introduzido nas Minas em
1727 (1733 corresponde à última emissão). O
escudo preserva o modelo italiano. A cartela,
exatamente simétrica, não tem nenhum tipo
de elemento orgânico (vegetalista ou animal),
são elementos decorativos em forma de corni-
ja, umas pequenas volutas, nas extremidades e
elementos fitados esvoaçantes. Tanto as corni-
jas laterais, como as volutas sobre elas, revelam
uma plasticidade sugestiva de instrumentos
Figura 17 – Representação das armas reais de musicais, como caixas acústicas de cravo, ou
Portugal na Encyclopédie, prancha XV (entra- caixilhos de arpas, nas cornijas, remates dos
da Art Heraldique), 1756. Os dragões proteto- braços de instrumentos de corda nas volutas e
res, neste caso com a forma de serpe (i.e., sem bocas de trompete nas extremidades das mes-
membros), muitas vezes associados à Casa mas volutas.
de Bragança, são mais antigos. Possivelmente
com raízes bem mais remotas, surgem recor-
rentemente como timbre nas armas dos prín-
cipes e infantes de Avis, por vezes até nos selos

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Figura 19 – Peça de 4 escudos, Lisboa, 1742,


tipo XXVI. Trata-se do modelo definitivo in-
troduzido em 1732 e que foi batido até ao final Figura 21 – Sistematização de 26 tipos de de-
do reinado, em 1750. Totalmente simétrico, o coração e de cartelas nas armas reais joaninas,
programa decorativo acentua-se no próprio entre 171726 e 173227.
escudo que, sendo de tipologia base italiana,
apresenta um abatimento pouco convencional 4. Espreitar a oficina – a relação dos ho-
e uma ondulação muito recurva, chegando as mens

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pontas esquerda e direita do chefe a ser proje-
tadas para trás, como uma peça de couraça. A Pela leitura do texto da lei de 4 de abril
cartela mantem as cornijas laterais rematadas de 1722 e pela análise deste pequeno
por volutas, mas pontuadas por elementos flo- catálogo de amostragem que apresenta-
rais, como cardos) e pedúnculos campanifor- mos aqui, podemos inferir que o progra-
mes. O suporte da coroa aparenta algum gosto ma de diversificação da amoedação foi
rocaille. não só definido muito intencionalmente,
como terá sido também acompanhado
de perto pelo próprio monarca. Ao mes-
mo tempo, para além do enquadramen-
to diretivo em torno do programa, é-nos
possível perceber que, para que tal proje-
to possa ter sido efetivado, foi necessária
uma mão de obra altamente qualificada,
mas também diversificada.
Para além de Mengin, despachado
como abridor geral a 1 de abril de 172728
Figura 20 – Oficina monetária, segundo a En-
e, de modo mais anónimo, Marteau, se-
cyclopédie, prancha I (entrada Monnoyage),
gundo abridor em 172229, cabe aqui fazer
1756.

26. Como referido anteriormente, o espécime da dobra de 1717, utilizado aqui como modelo para o tipo I de
desenho de armas, dificilmente se poderá considerar verdadeiro, foi, aliás, incluído na categoria de falsi-
ficação por Alberto Gomes (Gomes 1996: 683) pelo que uma taxionomia mais rigorosa deverá excluí-lo,
integrando apenas vinte e cinco tipos, a contar a partir de 1722 e até 1732.
27. Vaz 1987: 380-381.
28. Aragão, 1964: I 76.
29. Aragão: I 77.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
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referência a outros abridores da Casa da orientação de Mengin.


Moeda que laboraram sob a orientação A relação entre Mengin e Bernardo
de Mengin e, possivelmente, de Marteau. Jorge, pelo que nos é dado a entender,
Trata-se de Bernardo Jorge, despachado era difícil. Em 1732, o provedor da Casa
ajudante de abridor a 7 de janeiro de 1721 da Moeda refere que dado o talento de
(quase quatro meses antes de Mengin ser Bernardo Jorge, Mengin se mostrava para
nomeado para Lisboa) e de João Baptista com ele “mui avaro de ensino”31. Efetiva-
Gomes, nomeado abridor em 172430. mente, não seria a primeira nem a última
Ambos os subalternos portugueses vez que Mengin revelava dificuldades de
de Mengin, Bernardo Jorge e João Baptis- relacionamento com os seus aprendizes,
ta, poderiam ser, per se, temas centrais de nomeadamente Bernardo Jorge e João
um trabalho biográfico empolgante, não Baptista Gomes, tendo sido, inclusiva-
só merecido pela qualidade artística e mente, ameaçado com pena de multa e
técnica dos seus trabalhos, seguramente prisão se não ensinasse, como lhe com-
presente em algumas das soluções de- petia o ofício32.

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corativas das armas reais, mas também Ao mesmo tempo, recolhemos outros
pelas próprias vicissitudes dos seus cara- indicadores que podem ajudar a traçar
teres e percursos de vida. um perfil de Bernardo Jorge um sendo
Bernardo Jorge começou a laborar ele próprio uma pessoa com característi-
na nova Casa da Moeda como discípulo cas comportamentais que entrariam em
de Roque Francisco (um velho ensaiador conflito com as exigências de Mengin. O
que laborava na Casa da Moeda desde próprio velho Roque Francisco33 referiu,
1681) e de Domingos Amaral Quaresma, sobre Bernardo Jorge, em 1730, “que por
também um veterano abridor da antiga viver isento de pae se destraiu de sorte
Casa da Moeda, responsável por todas as que está com muitos achaques incura-
cunhagens anteriores à introdução dos veis... e esperanças de pouco serviço”34,
novos escudos de ouro, com a efígie do o que além de nos indicar que o abridor
rei. O próprio Bernardo compôs cunhos teria uma condição de saúde aparente-
do modelo antigo e, pelo menos até 1726, mente delicada, sugere também algo no
era essa a sua função exclusiva. A partir seu comportamento, pela cosmopolita
desse ano, começou a laborar nos retra- Lisboa ante terramoto, que poderá ter
tos do rei para as moedas novas, sob a causado algumas reservas a Mengin. Efe-

30. Aragão: I 75, 78.


31. Apud Aragão, 1964: I 76.
32. Aragão: I 77.
33. Roque Francisco entrou ao serviço da Moeda de Lisboa ainda no tempo de D. Pedro II, a 17 de julho de
1681. Em 1740 o provedor procurou aposentá-lo, dada a sua avançada idade. Francisco contestou a reforma
compulsiva, alegando “achar-se com a necessaria suffeciencia nas mãos, cabeça e vista, supposto á força
o quererem fazer falto d’ella” (apud Aragão 1964: I 74). Para todos os efeitos, a aposentação viria em 1742,
três anos antes do seu desaparecimento, em 1745.
34. Apud Aragão: I 76.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

tivamente, ainda em 1723, por ocasião contudo, o filho de Mengin, Paulo Aure-
da prestação de provas35 para admissão liano Mengin, nomeado terceiro abridor
na Casa da Moeda de Francisco Pimen- em 176140.
tal, ourives da prata, foi registado “Que A par do Mestre Mengin e de Ber-
só o mestre francez assistia ao trabalho, nardo Jorge, um outro importante abri-
como devia, e que os outros dois abrido- dor laborou na Casa da Moeda entre as
res poucas vezes ali compareciam”36. A décadas de 1720 e 1730, primeiro como
referência ao absentismo dos outros dois aprendiz, mas logo em 1724 como abri-
abridores, que seriam, sem dúvida, Ber- dor. Trata-se do já referido João Baptista
nardo Jorge e François Marteau37 parece- Gomes, sem dúvida um dos responsáveis
-nos ser reveladora de um certo sentido pela grande diversidade e riqueza dos
crítico face à falha das obrigações por cunhos de reverso da série dos escudos
parte dos abridores e ao cumprimento de ouro de D. João V. Bernardo Jorge é um
por parte de Mengin. dos poucos abridores, ou executante de
Ainda assim, Bernardo Jorge con- gravura em ôcco41 enumerado por Cyril-

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tinuou a laborar e a amadurecer na lo Volker Machado, na sua Collecçam, de
Casa da Moeda, tendo aberto, juntamen- 1823. Pouco se sabe dos primeiros anos
te com Mengin (este com exclusividade de trabalho de Baptista Gomes, tendo
no tratamento do retrato, no anverso das em conta que a idade média com que os
moedas) os cunhos das novas peças para aprendizes entravam ao serviço da Moe-
D. José I, que começaram a ser cunhadas da era de 13-14 anos. Baptista Gomes terá
logo no início de 1751. nascido algures entre 1705 e 1710 e entra-
No final de 1760 era já falecido Ber- do ao serviço por alturas da abertura da
nardo Jorge38, tendo deixado alguns nova Casa da Moeda, em 1721. Sabemos
aprendizes da Casa  da  Moeda, como que auferia, em 1724, um salário anual
Joaquim Valério de Abreu e Manuel José igual ao de Bernardo Jorge, 30$000 réis
da Silva, que entretanto foi nomeado (Mengin, como mestre, auferia 100$000
ensaiador por não se ter revelado gran- réis). Em virtude da qualidade do seu
de abridor. Em 1760, Mengin ainda se trabalho, em 1734 o Conselho da Fazenda
mantinha em funções, possivelmente duplicou o vencimento de Baptista Go-
com trabalho condicionado, dada a sua mes, para 60$000 réis anuais – que acu-
idade39. O sucessor de Bernardo Jorge foi,

35. As provas de Francisco Pimental decorreram durante um mês, entre fevereiro e março de 1723.
36. Apud Aragão: I 78.
37. Em 1723 não poderia ser ainda João Baptista, que só seria admitido em novembro de 1724.
38. Aragão: I 76.
39. Como classe regimentada, os moedeiros preservavam ainda os privilégios típicos dos ofícios do Antigo
Regime, um desses privilégios era o vencimento vitalício. Mengin, em 1753, pedira dispensa por não con-
seguir executar os vinte e quatro punções com o retrato de D. José que lhe foram pedidos para fornecer as
casas da moeda do Brasil, mas sabe-se que continuou a laborar durante os anos seguintes.
40. Aragão: I 81.
41. Machado 1922: 221.
95
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

mulava com as suas funções de professor Janeiro45, o que nos indicia, numa pri-
de desenho42 – uma quantia muito consi- meira análise, que o talento e as mais-va-
derável e generosa, reflexo, seguramente, lias artísticas que João Baptista Gomes
mais da qualidade do seu trabalho, do representaria na colónia superavam a
que do seu zelo profissional. De facto, tal desconfiança e o melindre que o seu cri-
como sucedia com Bernardo Jorge, João me em Lisboa possa ter levantado. Por
Baptista Gomes também não era reputa- outro lado, tendo-lhe sido atribuído um
do por ser assíduo ao serviço, mantendo, cargo de responsabilidade financeira e
inclusivamente, as mesmas más relações de contacto direto com o vil metal, en-
com Mengin, que se recusava a instruí-lo, quanto abridor de cunhos na Casa da
fosse por melindre de caráter (como tem Moeda do Rio de Janeiro, também somos
sido tantas vezes apontado), fosse por di- inclinados a sugerir que o abuso de con-
ficuldade de relacionamento com os seus fiança de João Baptista não terá sido de
discípulos aparentemente tão agitados. natureza financeira, ou de furto. Poderá
Sem que se saiba exatamente o que ter sido, sim, de natureza de sangue ou

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sucedeu, algures no início da segunda passional.
metade da década de 1730, possivelmen- A data da morte de João Baptista
te em 1735-173643, João Baptista viu-se é atribuída por Cyrillo e Aragão a 1754,
obrigado a fugir para o Brasil, Rio de contudo, ainda em 1940, Luís Camilo de
Janeiro, sob o pseudónimo de Thomaz Oliveira Neto publicou um interessante
Xavier de Andrade44. O próprio Cyrillo estudo, no Rio  de  Janeiro, em que reve-
refere-nos que esta fuga se deveu a um la documentação vária em que o nome
abuso de confiança, que fez com que João de João Baptista Gomes (por vezes João
Baptista se achasse criminoso, informa- Gomes Baptista) é referido como abridor
ção que, aliás, Aragão repete. nomeado por Gomes Freire de Andra-
Na verdade, não sabemos o que per- de, nomeadamente na fundição de Vila
petrou João Baptista e que o tenha im- Rica46 (atual Ouro Preto), em 1751. Daí em
pelido a fugir, sabemos é que, em 1739, diante, continua a ser referida recorren-
Gomes Freire de Andrade, governador temente a presença de um João Baptista
do Rio de Janeiro e futuro conde de Bo- Gomes, abridor, nas folhas de vencimen-
badela, reconhecendo o artista (ou pelo to e despesa da fundição de Vila Rica em
menos o seu talento), nomeou-o abridor 1753, 1758, 1762, 1768, 1772 e em 178147. Por
de cunhos na Casa da Moeda do Rio de fim, num assento de óbito de Vila Rica,

42. Luís Camilo de Oliveira Neto refere que João Baptista Gomes poderá ter muito provavelmente sido discípu-
lo de Vieira Lusitano, em Lisboa (Neto 1940: 87-88).
43. Neto 1940: 90.
44. Machado 1922: 222.
45. Tanto Cyrillo Volkmar Machado, como Teixeira de Aragão, que o cita, colocam João Baptista como abridor
de cunhos na fundição de Vila Rica, em 1739.
46. A fundição abriu em 1751, João Baptista foi aí colocado, transferido da Casa da Moeda do Rio de Janeiro,
pelo próprio governador.
47. Neto 1940: 90-110.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

da Véspera de Natal de 1788, o padre José superior à peça de 6$400 réis49. Tanto o
da Encarnação, daquela paróquia, assen- retrato como o programa decorativo do
tava: reverso das armas se mantiveram iguais
até ao final do reinado, em 1777. A peça
“Aos vinte e coatro de dezembro de mil de 6$400 réis foi cunhada ainda em 1750
setecentos e oitenta e oito nesta freguesia e a sua emissão foi ininterrupta, durante
fallece, digo, falleceu com todos os sacra- todos os anos, até 1777, inclusive em 1755.
mentos e solemne testamento João  Go- Os cunhos usados no Rio de Janeiro,
mes Baptista solteiro, Abridor dos Cunhos em Minas Gerais e na Baía continuaram
da Real Intendencia, natural da cidade de a ser produzidos em Lisboa e não dife-
Lisboa (...)”48 rem uns dos outros, exceto na marca mo-
netária distintiva de cada casa da moeda:
Será, ao que tudo indica, o mesmo João R (Rio de Janeiro), B (Baía) e M (Minas
Baptista Gomes, discípulo de Mengin e Gerais).
que, por vicissitudes ainda mal conheci- Se por um lado o sistema monetário

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das do destino, se viu forçado a escapar se manteve inalterado, o programa deco-
para o Brasil, ainda que, aparentemen- rativo, da responsabilidade de Bernardo
te, como revelamos neste trabalho, terá Jorge, mas aprovado pelo conselho do
mantido o seu ofício e falecido idoso em- rei e pelo próprio monarca, introduz
Vila Rica. alterações estilísticas muito significati-
vas, indicadoras de uma nova tendência
5. Herança e testemunho – amoedações estética que revelam uma afirmação de
do Rococó modernidade.
Como referimos, os modelos dos
Como referimos anteriormente, a cunha- cunhos e punções mantiveram-se inalte-
gem da série dos escudos de ouro de rados até 1777, pelo que o trabalho conti-
D. João V manteve-se inalterada a partir nuou a ser produzido pelas mãos do pró-
de 1732, tendo o modelo das armas reais, prio Mengin, mas também pelos novos
bem como a sua decoração, se preserva- discípulos de Bernardo: Amaro Marques,
do inalterado até 1750. Com a subida ao elevado a segundo abridor em 1771, Joa-
trono do novo monarca, novos cunhos e quim Valério de Abreu, Pedro António
punções foram abertos na Casa da Moe- Mengin, que se manteve como ajudan-
da. Bernardo Jorge foi o responsável pela te de abridor apenas, e Paulo Aureliano
modelação das novas peças de ouro. Mengin, terceiro abridor em 1761.
D. José manteve a cunhagem da série É ainda no final do reinado de D. José
dos escudos de ouro, mas sem ter auto- que Antoine Mengin se retira definitiva-
rizado emissões de moedas com valor mente do serviço, acabando por falecer

48. Apud Neto 1940: 110.


49. Cunharam-se, portanto, apenas os meios escudos (800 réis), os escudos (1$600 réis), as meias peças
(3$200 réis) e as peças de quatro escudos (6$400 réis).

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

em 1772. No ano seguinte, por alvará de 4


de setembro, um novo abridor entrava ao
serviço da Casa da Moeda, José Gaspard,
flamengo, nascido em 172750.

Figura 23 – Peça de 6$400 réis de 1774, emis-


são de Lisboa. A traça do desenho é a mesma
da moeda anterior, contudo, gostaríamos de
destacar a qualidade da gravação, mais ligeira,
mais apurada e delicada. Pela datação (1774) do
cunho, sugerimos que possa já ter sido aberto
Figura 22 – Peça de 6$400 réis de 1767, Rio
por José Gaspard.
de Janeiro (R). Os cunhos abertos em Lisboa
revelam o novo programa iniciado em 1750. O

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primeiro ponto a notar é a gramática absolu- Após a morte de D. José, em fevereiro de
tamente contemporizada com o Rococó. O 1777, e a aclamação da rainha, a 13 de maio,
escudo, de tipo italiano, preserva-se com uma começaram a ser tomadas as providên-
dinâmica pouco acentuada, bastante formal, cias para as novas emissões monetárias.
contudo, a cartela, assimétrica em toda a sua Para o efeito, foi pedido à Casa da Moe-
dimensão, é impositiva: no lado esquerdo, duas da que cada um dos três abridores em
cornijas ondeantes sobrelevam-se e rematam funções – Amaro Marques, José Gaspard
numa voluta que aponta para a coroa. A base e Paulo Aureliano Mengin – apresentas-
da cartela é uma dinâmica rocaille apontada se um ensaio para a peça de 6$400 réis,
para fora, enquanto do lado esquerdo, uma ca- com o retrato dos novos monarcas e com
beça de dragão surge, sobre uma cornija drape- o novo programa para as armas.
jada e rematada com um elemento conchifor- Os três protótipos foram entregues
me. O dragão lança, pela boca, um encordoado à rainha a 14 de julho e, a 29 do mesmo
fitomórfico. As fitas e as folhas de palma esvoa- mês, o marquês de Angeja, presidente do
çantes no topo da cartela acentuam a dinâmica
Real Erário, apresentava à Casa da Moe-
assimétrica da decoração.
da o sobrescrito com o ensaio escolhido
por D. Maria I:

“No dia 29 de julho, em cumprimento do


Avizo supra, e retro Registado, foi aberta
por elle Des.or Provedor, nesta menza pe-
rante os Officiaes da caza e os tres Mestres
Abridores, o embrulho lacrado com as
Armas Reaes, e rubicado pelo Ill.mo e Ex.mo

50. Aragão 1964: I 83.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Marquez Presidente do Real Erario; e tira- facilmente poderia decair em linhas grosseiras
da a moeda de seis mil e quatro centos reis e excessivas.
encerrada no mesmo embrulho, Se achou
ser a que se havia cunhado nos Cunhos Tal como anteriormente havia feito o seu
pai, D.  Maria I só determinou cunhar o
abertos pelo Ponçaõ feito pelo Abridor Ge-
ral Joseph Gaspar (...)”51 ouro até às peças de 6$400 réis. O de-
senho das armas manteve-se inalterado
Ainda que o documento não seja total- até à substituição do numerário pelo da
mente esclarecedor, pois refere-se aos regência de D.  João, mesmo quando o
cunhos de Gaspard, na realidade trata- cunho do retrato do anverso foi alterado,
-se apenas do cunho do reverso52, o que por perecimento de D. Pedro III, em 1786.
destacamos aqui é que podemos verifi-
car que cerca de quatro anos depois de
ter sido contratado pela Casa da Moeda,
José Gaspard era já o abridor geral e o seu

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cunho foi escolhido para as novas moe-
das.

Figura 25 – Peça de 1792, emissão de Lisboa.


Apesar da alteração do anverso para o da efígie
da rainha viúva, o punção do reverso manteve-
-se idêntico ao de 1777.

6. Neoclassicismo – o apelo inglês


Figura 24 – Peça de 6$400 réis de 1781, emissão
do Rio de Janeiro (R). As efígies de D. Maria I e Ainda durante o início da regência de
de D. Pedro III são da responsabilidade de João D.  João, em 1799, o abridor geral da
de Figueiredo, contudo, o trabalho do reverso Casa  da  Moeda continuava a ser José
é de Gaspard. Mantendo o escudo italiano, as Gaspard53, contudo, outros nomes e,
armas reais são ornamentadas por uma cartela consequentemente, outros estilos come-
simétrica rococó, com elementos conchifor- çavam a manifestar-se. Aragão refere que
mes e vegetalistas integrados entre si nas cor- José António do Vale, que estudara em
nijas laterais das armas. De notar sobretudo o Roma, abriu, em 1800, uns cunhos em
exímio trabalho de gravação, as linhas finas e aço para umas medalhas54, mas não che-
ondulantes, soprando ligeireza num tema que ga, contudo, a indicar quais sãos as peças.

51. Apud Aragão 1964: II 370.


52. Os punções com os retratos de D. Maria I e de D. Pedro III foram abertos por João de Figueiredo (Aragão
1964: I 81), o mesmo artista que, aliás, abriu os punções para os camafeus de porcelana com a efígie da
rainha e os retratos dos reis para a medalha da Academia Real das Ciências, em 1783 (Machado 1922: 223).
53. Gaspard viria a morrer em 1812, com oitenta e cinco anos de idade.
54. Aragão 1964: I 86.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

Sabemos que António do Vale foi nomea- sugerir, dada a excecionalidade do traba-
do para a Casa da Moeda, como abridor lho, sobretudo em termos de retrato, tão
de cunhos e medalhas, em 1802, e que diferente da escola de Mengin, Bernardo
nesse ano, em conjunto com o próprio Jorge, João de Figueiredo ou do próprio
Gaspard, Xavier de Figueiredo e Simão Gaspard58 (muito aproximada da grande
Francisco55 gravaram os punções para o linha europeia, do retrato de Maria Tere-
retrato de D. João, seguindo o desenho sa, ou mesmo de Catarina II), que o seu
de Domingos António de Sequeira. autor poderá ser efetivamente José Antó-
Apesar de ter entrado ao serviço em nio do Vale, transportando para Portugal
1802, António do Vale não era chamado as suas recentes influências italianas. No
para a abertura dos cunhos e, como tal, entanto, há um problema cronológico
não podia praticar o seu ofício. Ao lon- que poderá inviabilizar um pouco esta
go de décadas foi tentando, através de tese: dos três ensaios conhecidos, dois
vários ofícios, que a sua nomeação fosse são datados, o primeiro é de 1797, data
cumprida: “José Antonio do Valle tem anterior, portanto, à referida por Aragão

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requerido para entrar no serviço da casa para a abertura de cunhos de aço por do
da moeda e vencer os obstaculos, que o Vale, que é 1800. O terceiro ensaio, ainda
interesse particular tem apresentado (ha que não datado, tem o punção de anver-
tanto tempo) á sua entrada n’esta casa”56. so igual ao de 1800, e no reverso, no lado
Aparentemente, José António do Vale das armas, uma variação mais apurada
teve imensas dificuldades em não só im- do mesmo ensaio de 1800. A possibilida-
por o seu talento, como mesmo em fazer de de António do Vale ter feito punções
com que fosse cumprida a sua nomeação. em 1797 não seria de grande estranheza,
O próprio Cyrillo refere-o apenas, muito aliás, faria mais sentido nessa data do
vagamente, na entrada dedicada a Bruno que em 1800, quando se trabalhava já
José do Vale, seu irmão57, e na passagem nos novos retratos para D. João. Contudo,
sobre a abertura do punção com o retra- só um estudo biográfico mais apurado
to do príncipe D. João. Prova das dificul- poderia confirmar, ou não, a presença da
dades de afirmação de António José do mão de José António do Vale nos ensaios
Vale é que somente em 1830 viria a ocu- atípicos que foram, entretanto, rejeita-
par o exercício efetivo do seu cargo. dos, possivelmente antes de terem che-
Existem, porém, três raros ensaios, gado às mãos da própria rainha.
em cobre e em prata, para as peças de
ouro de D.  Maria I que, não tendo atri-
buição identificada, somos levados a

55. Machado 1922: 225.


56. Apud Aragão 1964: I 86.
57. Machado 1922: 99.
58. Gaspard continuava a exercer funções de abridor geral, Amaro Marques morrera em 1797 e foi sucedido
no lugar de segundo abridor por Francisco Xavier de Figueiredo. O estilo dos ensaios parece-nos, contudo,
diferente da traça deste último abridor.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

armas, o equilíbrio simétrico sem efei-


tos dinâmicos preenchedores, aponta
para um gosto neoclássico, de feição
mais próxima do estilo regência inglesa.
Independentemente das razões que
levaram à rejeição dos ensaios, um dos
motivos mais visíveis foi a assunção do
Figura 26 – Ensaio para peça de D. Maria I, governo por parte de D.  João e a conse-
autoria anónima, 1800. Ainda que sem conse- quente necessidade de alteração dos
guirmos, para já, filiar esta peça, percebemos, cunhos monetários.
não só pela excecionalidade do retrato, que
a influência é distinta da tradição anterior, Tal como referimos, logo em 1802
nomeadamente nas armas, que surgem pela foram abertos os novos retratos para as
primeira vez em escudo ovoide, sem acompa- moedas e escolhido o novo reverso das
nhamento decorativo, a apontar para um gosto armas reais:

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neoclássico.
“Aos seis dias do mez de novembro de mil
oitocentos e dous annos nesta Meza da
Caza da Moeda em resulta(do) do Avizo
antecedente, foi aberta pelo Provedor da
mesma caza Antonio Silverio de Miranda,
perante os officiaes da dita Meza abaixo
assignados, a bolsa de setim carmezim
fechada e lacrada, que continha dentro as
Figura 27 – Ensaio anónimo, não datado. O amostras do cunho mencionado no refe-
punção do retrato e legendas do anverso são rido Avizo; e tiradas as ditas amostras se
iguais ao anterior, datado de 1800. O tema do acharaõ ser as que se haviaõ cunhado no
reverso é uma variação mais sofisticada da pro- cunho aberto pelo Ponçaõ feito pelo Abri-
posta anterior. As armas nacionais, com traça dor desta caza Francisco Xavier de Figuei-
oval simples e fina, são acolhidas por um man- redo.”59
to real suspenso por cordaduras, com pontas
De referir que no assentamento da aber-
borladas. Sob o escudo, pende a Grande Ordem
tura do modelo escolhido, o único abri-
da Cruz de Cristo. Todo o perímetro do listel é
decorado com um friso de folhas. dor presente era o próprio Francisco
Xavier Figueiredo. José Gaspard não apa-
Independentemente do autor, os en- rece no auto, nem, previsivelmente, José
saios analisados acima são já de natu- António do Vale.
reza estilística distinta da linguagem O cunho escolhido, dada a novidade
barroca. A simplicidade decorativa das do desenho e a sua particularidade orna-

59. Apud Aragão 1964: II 137.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

mental, tornou-se célebre com o nome vido que V. M.ee passe ordem, a José Gas-
de peça de jarra. pard, Abridor geral da Caza da Moeda, que
este cunhe huma da nova fabricaçaõ, para
que esta junta á que fabricar Cyprino da
Silva Moreira venhaõ ambas á Prezença do
Mesmo Senhor.”61

Os novos cunhos, que começaram a ser


produzidos efetivamente a partir de se-
tembro, preservam a efígie realizada a
Figura 28 – Peça de 6$400 réis de 1802, Lisboa, partir dos desenhos de Domingos Se-
autoria de Francisco Xavier Figueiredo (a queira, contudo, o programa decorativo
partir de retrato de Domingos Sequeira). Foi para as armas reais é bastante diferente
a primeira peça a entrar em circulação com da jarra, ainda que assuma as novas gra-
o escudo oval e a nova estética neoclássica. O máticas estilísticas em voga.

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escudo é ladeado por um enquadramento geo-
métrico simétrico (em forma de asas de jarra,
daí o seu nome popular), sugestivo de um friso
com motivo grego. Apesar da sua popularida-
de, o modelo da peça de jarra não voltou a usar
utilizado.

Em 1804, por motivos que desconhece-


mos, um aviso régio, de 18 de junho, or- Figura 29 – Peça de 6$400 réis de 1809, Rio
denou que se cunhassem peças de 6$400 de Janeiro (R). A nova peça, batida com o
réis com novos punções. O aviso foi sus- modelo de 1804, de José Gaspard (e Cipriano
penso em 3 de agosto desse ano e os abri- da Silva Moreira) preserva a tendência do es-
dores, José Gaspard e Cipriano da Silva cudo ovóide das experiências anteriores. O pro-
Moreira60, foram chamados à presença grama decorativo, que revela a matriz autoral
do Príncipe Regente para apresentarem de Gaspard (a linha fina, a simetria leve, mas
novos punções (para serem utilizados profusamente decorada) deve ser enquadrada
em Lisboa e no Brasil), Francisco Xavier no movimento neoclássico (admitiríamos até
Figueiredo não é mencionado, pelo que a influência da regência inglesa, com os temas
se depreende que não estava presente: vegetalistas de traça fina, pendentes em todo
o enquadramento). As duas volutas laterais,
“O Principe Regente Nosso Senhor He ser- pontuadas por folhas de acanto, não têm a pro-

60. Cipriano da Silva Moreira, nascido em 1755, entrou ao serviço em agosto de 1804, como abridor da Casa
da Moeda. A 19 de agosto desse ano, contudo, o seu nome é já referido no aviso de 3 de agosto, pelo que
suspeitamos que os novos punções tivessem funcionado como exame do trabalho do próprio Cipriano. Em
1826, ano da sua morte, Cipriano da Silva Moreira é referido como segundo abridor (Aragão 1964: I 85).
61. Apud Aragão 1964: II 379.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

de D. João VI conduziram à lei de 13 de


fusão (e volumetria) dos excessos rococós, sem
maio de 1816, que determinava um novo
traços rocaille, ou mineralistas e animalistas.
modelo para as armas reais, representa-
Os difíceis acontecimentos dos primei- tivas agora do Reino  Unido, efeitos que
ros anos do século XIX, sobretudo a par- começaram a ser efetivados na Casa da
tir da Primeira Invasão Francesa e conse- Moeda, em 1818.
quente deslocação da Família Real para
o Rio de Janeiro, tal como os resultados
pouco satisfatórios para o reino da vitó-
ria anglo-portuguesa, que redundou na
condição de Portugal a um protetorado
de facto, inglês, resultaram em alterações
profundas nas dinâmicas sociais, polí-
ticas e geoestratégicas na Europa (e do
mundo colonial), às quais Portugal não Figura 30 – Peça de 6$400 réis de 1821, emis-
só não esteve alheio, como fez parte de são de Lisboa. O retrato de D. João, agora como

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um dos principais vetores de mudança. rei de Portugal, Brasil e Algarves mantém-se o
Efetivamente, em termos de política mesmo do tempo da regência, contudo, as ar-
monetária, um dos primeiros reflexos mas reais, agora transformadas em escudo do
das invasões e do isolamento face ao Bra- Reino Unido, surgem sobrepostas a uma esfera
sil foi a redução da chegada de ouro ao armilar que, ainda que tendo um efeito deco-
reino. Em 1810, ainda durante a Terceira rativo, reflete uma diretiva política muito de-
Invasão e pleno isolamento da capital, finida, sem espaço, portanto, para o recurso à
o Senado da Câmara de Lisboa alertava criatividade dos gravadores que víamos desde
para a carência de metal precioso. Em 31 1722. O escudo, em si, é de tipologia francesa,
de outubro de 1811, um edital do mesmo retilíneo, estabelecendo o cânone para o escu-
Senado sublinhava a proibição da expor- do de armas reais português contemporâneo. O
tação de ouro e prata, tanto em moeda, campo do reverso é decorado por uma coroa
como em barra62. Em 1814, o Conselho da de folhas de loureiro e de carvalho, entrelaça-
Regência em Lisboa determina a explo- das na base por uma fita. Ainda que não iden-
ração de ouro em Portugal, mandando tificado, o modelo poderá ter sido aberto por
reabrir as minas de Adiça (entre Almada Simão Francisco dos Santos, abridor em 1818. O
e Sesimbra) para retomar as amoedações modelo do Reino Unido foi cunhado no Rio de
nacionais. Janeiro até 1822, e em Lisboa até 1824. Em 1825,
Em 1815, a proclamação, no Rio de o Provedor da Casa da Moeda, Luís Mouzinho
Janeiro, do Reino Unido de Portugal, Bra- de Albuquerque (avô do tenente-coronel e go-
sil e Algarves condicionou ainda mais a vernador Joaquim Augusto Mouzinho de Albu-
dependência da metrópole face à antiga querque) determinou que o modelo das armas
colónia, elevada agora à categoria de rei- com a esfera armilar fosse retirado do escudo
no. A morte de D. Maria I e a aclamação real.

62. Aragão 1964: II 139.

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O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

A Revolução de 1820 e a nova ordem li- A morte de D.  João VI, em plena con-
beral determinaram também alterações vulsão política, fez com que D.  Pedro,
profundas no panorama das amoeda- imperador do Brasil, fosse aclamado rei
ções portuguesas. A primeira grande re- de Portugal, no seio de grande contenda
forma do Governo Constitucional foi a política, entre a herança absolutista, pro-
subida do preço da peça de quatro es- tagonizada por D. Miguel, e a afirmação
cudos para 7$500 réis, contemporizan- liberal, que vinha dos homens do 24 de
do assim o dinheiro em ouro português agosto e das Cortes Constituintes. Para a
com o guinéu inglês de fábrica antiga63. elaboração dos novos cunhos, o governo
Ao mesmo tempo, o governo liberal recorreu aos restantes moedeiros da es-
também se empenhou na extinção dos cola antiga, que ainda se encontravam ao
privilégios dos moedeiros, pela lei de 3 serviço em 1826, Simão António dos San-
de agosto de 1824: tos, que executou o retrato de D. Pedro IV
e Cipriano da Silva Moreira, para execu-
“Tendo cessado com o andar dos annos tar a gravação das armas reais, segundo

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os motivos,por que os Meus Augustos os modelos anteriores a 181665.
Predecessores concedêrão muitos e mui A polémica subida ao trono de D. Pe-
consideraveis privilegios a certo número dro  IV e a catadupa de acontecimentos
de homens, que sem despeza da Minha que se lhe sucederam, acabaram por
Real Fazenda servião nos Laboratorios, projetar D.  Miguel  I, em 1828, como o
Officinas, e outros mesteres da Casa da novo rei de Portugal, acentuando a di-
Moeda, o que presentemente se executa á visão política e social do reino, ao ponto
custa da mesma Fazenda, tornando-se por de irromper uma guerra civil. As altera-
isso perfeitamente inuteis os denomina- ções administrativas e estatutárias da
dos Moedeiros ; e Querendo Eu alliviar os Casa  da  Moeda e dos seus moedeiros,
Meus fieis Vassallos de hum vexame, que bem como o desaparecimento dos anti-
ha tanto tempo os tem opprimido : Hei por gos mestres abridores, condicionaram, e
bem derogar, e supprimir, como se nunca muito, a abertura dos novos cunhos para
tivessem existido, tanto os referidos privi- D. Miguel. De facto, a abertura do retrato
legios de Moedeiros, como o seu privativo do novo rei ficou interrompida pela mor-
Juizo, ou Conservatoria, ficando por tanto te do abridor Simão Francisco dos Santos
inhibidos os Provedores da mesma Casa e o trabalho foi entregue a Domingos
de passarem Cartas de Moedeiros a pessoa, José da Silva, seu irmão. Simultanea-
ou individuo algum.”64 mente, José Augusto do Vale, reentrado

63. Com esta elevação de preço, o escudo de ouro português passou a ter um valor de 1$875 réis. Cada guinéu
inglês correspondia, com esta reavaliação, a 4$355 réis. O velho guinéu de ouro inglês, cotado a 21 xelins de
prata (a libra de ouro cotava-se a 20 xelins) foi paulatinamente sido abandonado em favor da libra a partir
da reforma monetária inglesa de 1816, introduzida sob a influência de David Ricardo.
64. Collecção de todas as leis, alvarás e decretos, etc. (folheto III) (1845). Lisboa: Imprensa Nacional, 8.
65. Simão António dos Santos viria a morrer em 1829, e Cipriano da Silva Moreira falecera no próprio ano de
1826.

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AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

na Casa da Moeda, também apresentou


provas para a nova moeda, não sendo,
contudo, aceite66.
As dificuldades para efetivar a nova
amoedação foram de tal ordem que, já
sob a soberania de D. Miguel, o governo
optou por utilizar, até ao final de 1828, os
cunhos antigos com as armas e a efígie Figura 32 – Peça de 7$500 réis de D. Miguel I,
de D. Pedro IV. Lisboa, 1830. O retrato, de fina feição naturalis-
Em 1830, o governo decidiu-se, final- ta, tal como o escudo de armas, é da autoria de
mente, por aceitar o modelo do abridor Jean Dubois. O escudo, reevocando a tipologia
francês, Jean Joseph Dubois, ironicamen- francesa, aparece elegantemente ornamenta-
te, era o mesmo autor da peça de 7$500 do por duas palmas entrelaçadas, pontuadas
réis de D. Pedro IV e da própria medalha por cordões fitomórficos. O estilo claro e geo-
de celebração da Carta Constitucional métrico viria a dar o mote para as restantes

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de 1826. amoedações até ao final da monarquia.

A partir de 1832, com o desembarque


do Exército Liberal, o país entrou efe-
tivamente em guerra civil, dividindo-se
entre os apoiantes da causa absolu-
tista, sediada em Lisboa, com contro-
lo, portanto, da Casa da Moeda, e os
apoiantes da causa liberal, lutando por
D. Pedro, em nome da rainha D. Maria
Figura 31 – Meia peça de 3$750 réis de 1827, II, controlando inicialmente apenas
Lisboa. O retrato do novo monarca, D. Pedro a Ilha Terceira, nos Açores, e a cidade
IV, é da responsabilidade de Simão António do Porto. Para financiamento da causa,
dos Santos, discípulo de Gaspard. As armas os Voluntários da Rainha recorriam a
reais, retomando o modelo anterior à lei de 13 amoedações produzidas em Londres
de maio de 1816, foram executadas por Cipria- (em réis portugueses), alguma produ-
no da Silva Moreira. O programa é o simples, o ção monetária, muito má, obtida por
escudo oval anterior a 1816 ladeado por uma fundição em Angra do Heroísmo e, du-
coroa de ramos de loureiro e carvalho. As peças rante o Cerco, por moedas cunhadas
de 7$500 réis, do mesmo modelo, foram aber- no Porto, no Convento dos Loios. Em
tas por Jean Dubois. qualquer dos casos, até meados de 1833,
as forças liberais não contaram com
cunhagens próprias de ouro. Apenas
nesse ano, com a tomada de Lisboa a 24

66. Aragão 1964: II 169.

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AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

de julho, a Casa da Moeda passaria para


as mãos liberais e começariam a ser bati-
das moedas de ouro em nome da rainha
D. Maria II.
Os anos da guerra, o fim dos privilé-
gios dos moedeiros, o desaparecimento
de antigos mestres67 que haviam permi-
tido, durante séculos, a transmissão do Figura 33 – Peça de 7$500 réis de 1833, cunha-
ofício em condições mesteirais apropria- da em Lisboa em nome de D. Maria  II. O re-
das para uma preparação de autênticas trato, aberto muito provavelmente por António
dinastias de grandes abridores, hipote- do Vale, em que figura a cabeça solta da rainha,
caram a continuidade de uma escola de com um pouco feliz penteado que lhe expõe a
abridores nacionais de grande qualidade. orelha, não agradou a D. Maria (na altura com
Assim, em 1833, o primeiro abridor em catorze anos de idade). Dada a apresentação
Lisboa era José António do Vale, com da cabeça da monarca, a peça ficou conhecida

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quase setenta anos de idade e com uma como A Degolada. As armas, em escudo francês,
experiência inconstante na Casa da Moe- mantêm a decoração simples, ainda que fina,
da, muito provavelmente, segundo até as dos ramos de loureiro e carvalho entrelaçados
suas próprias palavras, por questões de na base por uma fita.
ordem de relacionamento interpessoal,
mas também, podemos admitir, por al-
guma impreparação (não obstante o ta-
lento artístico em geral) para o muito es-
pecífico trabalho de abridor de cunhos68.
Não obstante, cremos ser de José Antó-
nio do Vale, segundo desenhos de João
Baptista Ribeiro69, as peças de 7$500 réis
abertas em 1833, em Lisboa, em nome de Figura 34 – Em 2013, a INCM, num programa
D. Maria II70. intitulado Tesouros Numismáticos Portugue-
ses, emitiu uma moeda comemorativa de 5
euros invocativa da peça de 7$500 réis de
D. Maria II, A Degolada.

67. Não nos foi possível aferir, por enquanto, o momento em que Jean Dubois desapareceu da Casa da Moeda
de Lisboa. Ao que tudo indica, terá sido nos primeiros anos da guerra civil, talvez em 1832.
68. O próprio Aragão sugere essa hipótese. Devemos relembrar que do Vale estudou em Itália técnicas de
abertura a fino em pedra, que é a xilografia, arte complexa, sem dúvida, mas diferente da abertura de
cunhos.
69. Aragão 1964: II 178.
70. José António do Vale encontrava-se como primeiro abridor da Casa  da  Moeda em 24 de julho de 1833,
aquando da entrega da cidade ao duque da Terceira. Logo no dia 30 do mesmo mês, o lugar de António do
Vale era confirmado pelo gabinete da rainha.

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AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

– Meia coroa (2$500 réis)73


– Um quinto de coroa (1$000 réis)

Relação de valores da nova série de-


cimal – prata
– Dez tostões (1$000 réis)
– Cinco tostões (500 réis)
Figura 35 – Peça de 7$500 réis de 1834, emis- – Dois tostões (200 réis)
são de Lisboa, em nome de D. Maria II. Dado – Tostão (100 réis)
o desagrado provocado e efetivo efeito pouco
conseguido da peça de 1833, foi aberto um novo Relação de valores da nova série de-
punção de retrato da monarca para a emissão cimal – bronze
de 1834, por Borja Freire. Na nova moeda, a ra- – Vinte réis
inha surge em efígie de busto completo, com – Dez réis
diadema e caracóis dos cabelos ondulados, so- – Cinco réis

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bre o rosto um pouco ensombrado. O cunho do – Três réis74
reverso preserva a traça da peça de 1833.
O novo programa administrativo e logís-
Em 1835, por lei de 24 de abril, foi de- tico para efetuar a nova produção incluiu
cretado um novo sistema monetário em a compra e instalação de uma máquina
Portugal de feição decimal. O velho siste- de cunhagem a vapor, de fabrico inglês,
ma dos escudos de ouro (reduzidos ago- na Casa da Moeda. Contudo, para além
ra às peças de 7$500 réis) que havia sido da máquina, era necessário reformar
lançado em 1722 era posto de lado, para (e formar) os abridores. José António
dar lugar a um princípio de contagem do Vale, muito idoso, não estaria mui-
mais simples, integrado na tendência in- to ativo75, o novo abridor, Francisco de
ternacional do padrão-ouro71 e com uma Borja Freire, que havia obtido alguma
relação monetária não oscilante entre o experiência com Francisco Xavier de
ouro e a prata72. Figueiredo, mas que em termos práti-
cos passara os últimos anos a abrir cha-
Relação de valores da nova série de- pas para as emissões de papel-moeda
cimal – ouro do Banco  de  Lisboa, sem contacto com
– Coroa (5$000 réis) a abertura de cunhos propriamente di-
tos, precisava de adquirir mais técnica e

71. Portugal haveria de integrar o padrão-ouro internacional em 1854.


72. A relação bimetálica anterior, sujeita às variações de mercado dos preços independentes da prata e do
ouro, tornavam a relação entre as moedas de prata e ouro de muito difícil manutenção. Ironicamente, foi
esse princípio de instabilidade do bimetalismo, que haveria de destruir o padrão-ouro, depois de 1891.
73. Uma coroa mais meia coroa corresponderiam a 7$500 réis, o valor e peso das velhas peças.
74. Para o mercado colonial em Moçambique, foram cunhadas ainda as moedas de dois réis e um real em
bronze.
75. José António do Vale viria a falecer em 1842 com setenta e sete anos.

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AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

experiência. O modelo da peça de 1834,


mais equilibrado do que a peça de 1833,
ainda deixava muito a desejar. Assim, em
1836, Borja Freire foi enviado para Lon-
dres para estudar com William Wyon, fa-
moso abridor da Royal Mint, responsável
pelas efígies das novas libras de ouro de
Guilherme IV. Figura 37 – Libra ou soberano de ouro de Gui-
lherme IV de Inglaterra, cunhado em Londres
Em 1837, regressado de Londres com em 1836. No pescoço, sob a base do retrato,
novos saberes e com os cunhos abertos veem-se as iniciais de William Wyon (W.W.)
por W. Wyon (com data de 1836, note- semelhante à das coroas portuguesas de D. Ma-
-se) começaram a ser cunhadas as novas ria II.
moedas, na nova máquina a vapor.
Curiosamente, as novas efígies de
D. Maria II, mandadas abrir em Londres
por Wyon, precedem, em termos estilísti-

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cos óbvios76, o que viria a ser o primeiro
retrato oficial da rainha Vitória, também
de Wyon, de 1838.
Figura 38 – Libra ou soberano em ouro da
rainha Vitória, emissão de Londres, 1838. O
retrato surge assinado por W.W., tal como nas
coroas portuguesas da mesma época. De notar
a proximidade estilística no acabamento do re-
trato de Vitória com o de D. Maria II.

Figura 36 – Coroa de 5$000 réis de D. Maria 7. Cristalização e ecos estilísticos


II, de 1836. Cunhada em Lisboa em 1837, com
os punções abertos por W. Wyon. O busto da O novo sistema monetário decimal, pro-
rainha, de composição equilibrada e solene, posto a partir de 1835 para as amoedações
apresenta a monarca com um diadema perola-
do. Na base do pescoço veem-se as iniciais W.W.
portuguesas, manteve-se até ao final da
No reverso, as armas reais em escudo francês, monarquia, tendo, inclusivamente, servi-
de traça retilínea bem apurada, apresentam-se do de base para a promulgação do escu-
envoltas no manto real, disposto em pavilhão do, em maio de 191177, já não com base na
coroado, com elegantes drapejamentos sus- coroa de ouro, mas sim nos 1$000 réis de
pensos por cordões com borlas na ponta. O prata.
escudo é rematado por uma base em folhas de As amoedações em ouro dos monar-
acanto.

76. Santos 1954: 192.


77. O escudo de prata foi cotado com equivalência aos 1$000 réis de prata, sendo o centavo o equivalente a 10
réis antigos e os 10 centavos equivalentes a 100 réis, um tostão.

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AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

cas que sucederam a D. Maria II, os filhos


D. Pedro e D. Luís (como referimos logo
no início, a crise de 1891 afastou Portugal
do padrão-ouro, pelo que D. Carlos já não
chegou a cunhar este metal) mantiveram
o mesmo esquema decorativo das armas
reais: modelo de escudo francês em pa-
vilhão, ou circundados por coroa de fo- Figura 39 – Coroa de 5$000 réis de D. Pedro V,
lhas de loureiro e carvalho entrelaçadas, Lisboa, 1860. Retrato de Borja Freire. O escu-
cristalizando o modelo num estilo oficial do preserva a composição oficial, em pavilhão
comum a outras representações do Esta- coroado.
do (edifícios públicos, selos e chancelas
oficiais, tal como à própria bandeira).
No final da monarquia, ainda no rei-
nado de D. Carlos, foi emitida uma série

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de pequenas moedas de bronze insulares,
com destino ao mercado açoriano, que
reproduz de modo revivalista uma certa
inspiração rococó invocativa do reinado
de D. Maria I e do trabalho de Gaspard. Figura 40 – Coroa de 5$000 réis de D. Luís I,
Esse modelo acabou por se impor em 1862, I Série, Lisboa. Retrato de Borges Freire.
1908 e 1909 nas moedas de 500 réis (cin- As armas reais regressam ao escudo francês sin-
co tostões) de D. Manuel II, como um eco gelo, envolto em palmas e coroa de ramos de
revivalista de uma outra época pré-revo- loureiro e carvalho.
lucionária muito afastada daquele início
de século XX tão agitado.
Não havendo grande margem criati-
va para as representações ornamentais
das armas reais portuguesas na segunda
metade do século XIX, a evolução apu-
rou-se no retrato e no aprumo técnico da
abertura dos cunhos. Francisco de Borja
Freire abriu os cunhos para os retratos Figura 41 – Coroa de 5$000 réis, 1867, II Sé-
de D.  Pedro  V e Francisco Augusto de rie, Lisboa. Retrato de Francisco Augusto de
Campos viria a ser o responsável pelos Campos (F.A.C.). As armas reais voltaram a ser
retratos de D. Luís e de D. Carlos. representadas com pavilhão coroado, seguindo
o modelo antigo proposto em 1836 por Wyon.

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às últimas emissões em ouro portugue-


sas, já do sistema monetário decimal, em
1889, nas vésperas da Crise de 1891, tenta-
mos traçar uma panorâmica daquilo que
foram, no nosso entender, os momentos
mais significativos da amoedação aurífe-
ra portuguesa. Procuramos articular as
Figura 42 – Coroa de 10$000 réis de 1878, III novas correntes, modelos e até sensibili-
Série, Lisboa. Foi o último cunho para as amoe- dades individuais naquilo que foi o teci-
dações portuguesas, tendo a última emissão do geral onde se foi fiando a história do
sido produzida em 1889. O retrato, único aspe- nosso país, enquadrado com o resto do
to alterado, é de Francisco Augusto de Campos. seu mundo: muito concretamente a Eu-
O modelo das armas reais, escudo francês em ropa e o Brasil.
pavilhão com o manto coroado é do mesmo Ao mesmo tempo, tentamos esque-
tipo dos anteriores. matizar um pouco a relação dos vários

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abridores que atuaram na Casa da Moe-
da no decurso de tantas décadas, procu-
rando identificar-lhes o estilo individual,
mas também dignificar-lhes a memória,
tantas vezes esquecida entre os investi-
gadores numismáticos.
Dada a dimensão delimitada do tra-
Figura 43 – Cinco tostões de 1908, D. Manuel balho, que se estenderia por mais uma
II, Lisboa. Não sendo já em ouro, trata-se con- dezena de páginas, optamos por não de-
tudo de uma das últimas representações das senvolver um dos pontos que tínhamos
armas reais em amoedações portuguesas. O previsto, que era o tratamento das técni-
escudo, de estilo italiano, é invocativo de todo cas de abertura de cunhos e cunhagem
o século XVIII português, as ornamentações ro- em geral, bem como a sua evolução ao
caille (ainda que envoltas na coroa de ramos de longo dos séculos XVIII e XIX.
loureiro e carvalho) são revivalistas das moe- Em todo o caso, enquanto artigo de
das produzidas sob a orientação de Mengin, de síntese, esperamos que possa ser útil para
Bernardo Jorge ou de Gaspard. sistematizar alguns aspetos estilísticos e
artísticos da cunhagem portuguesa, bem
Conclusão como servir de base para um aprofunda-
mento futuro, mais estruturado, sobre os
Nos mais de cento e cinquenta anos que artistas, as técnicas, impactos e conjun-
aqui procuramos sintetizar, desde a aber- turas globais que envolvem as cunha-
tura da nova Casa da Moeda em Lisboa e gens de ouro portuguesas do Antigo Re-
a contratação de Mengin, em 1721, bem gime e do início da Contemporaneidade.
como a introdução da série dos escudos
de ouro de D. João V, no ano seguinte, até

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AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878

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