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LéON BLOY

BISTÓRIAS
DESAGRADÁVEIS

EDITORIAL ESTAMPA
LÉON BLOV, INDIGENTE E ENRAIVECIDO

1846 -Nasce em Périgaux (o segundo entre sete fi­


lhos de um engenheiro) . Mãe de origem es­
panhola.
(Será um aluno medíocre; tão pouco submisso
que deixará cedo o colégio para fabricar, à
solta, uma cultura heterodoxa que mistura o
latim litCirgico com muito amor a Bizâncio e
a Cristóvão Colombo.
Admitem alguns que Baudelaire tenha sido o
poeta da sua adolescência. Acreditando no
seu diário, ainda criança escreveu tragédias
em verso.
..
Mais do que tudo: pintava.)
1862 -Ano do seu famoso auto-retrato: é a óleo e
mostra um jovem de olhar alucinado (já alu­
cinado era o o lhar dos seus pais, em retratos
que ele também pintou.) , com uma legenda:
Promessas da um belo rosto•!
1863 -'Paris surge-lhe como possibilidade de não
ceder a servidões profissionais. · Para lá arrasta
o seu sonho de glória.
('Qual? Se vai ter de aceitar ocupaÇões medío­
cres enquanto encena, talvez por vingança,
uma revolta ácida. contra Jesus e a Igreja?)
Léon Bloy continua, sobretudo, a pintar: quer
ser pintor.

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18 69- Aos .23 anos de idade, numa livraria, encontra
Barbey d'Au·revilly, admiração antiga a que não
vai saber resistir.
(Vai escutá-lo e segui-lo até sua casa; ser con­
vertido ao catolicismo; ser convencido de que
é escritor, mais do que pintor.)
1870- Alista- se como franco-atirador durante a guerra
contra a Prússia. Cheio de fé, parece um cru­
zado.
1873- N ovamente em ·Paris (depois de um emprego
na sua terra natal que o matou, quase, de
tédio). Será contabilista numa ·companhia de
caminhos de ferro, caixeiro de uma livraria,
ilustrador de manuscritos.
(Ao sabor de ·enormes dificuldades materiais,
Bloy vai mudando de empregos e de quartos.
Frequenta jornalistas do Chat Noir. Dá-se com
Paul Bourget, que mais tarde virá a detestar;
dá-se com Huysmans e Vllliers de l'lsle-Adam.)
1876- Estreia brilhante no jorna lismo, para .se fazer
rapidamente um cronista «insuportável». (Arre­
dado pelos catóUcos, qu e me nio perdoam o
fôlego e a cor, vomitado pelos não-católicos,
que nio podem tragar o meu catolicismo, de
anternio exterminado, sempre, pcwque não
posso aclimatar-me a este mundo, sem ter
fortuna nem recursos, estou ·l·igado a ang6stiaa
cuja real enormidade só pode pesá-la Aquele
que sabe exactamente da nossa caPacidade de
sofrer.)
1877 - Encontro com o padre Tardif de Moidrey, que
virá a se r o grande m estre da sua vida con­
templativa; encontro com Anne•Marie Roulé,
prostituta a quem amará de paixão louca e
cuja alma 1 ele p·r·etenderá «salvar».
(Rapidamente Anne-Marie ultrap assará o seu
mentor ·Parti lhará com ele uma vida que ficará
.

célebre, .nos meios literários de Paris, pela


sua inacreditável miséria material.

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Anne-Marie chegará a convencer ·Bioy de que
está próximo co fim dos tempos», fazendo-o
conhecedor do dia em .que esse fim terá lugar.
Ultrapassada a data sem ter havido qualquer
sinal de Apocalipse, a cólera de ·Bioy sobe até
à blasfémia.)
Tenta duas vezes, sem êxito, que o admitam
na Trapa da Grande Cartuxa.
1882 - Anne"Marie Roulé é i nternada num manicómio
(onde viverá durante 25 anos) e léon ·Bioy
escreve para diversos jornais, «por razões ali­
mentares». (Nestas inomináveis coisas dirá -

ele - há sangue de tigre e lágrimas de cãO


sem dono. Há um coraçã o doente, coraçio mo•
ribundo, coraçio que vai ser enterrad·o a bater
contra as paredes do caixão. Harmonia de to­
dos os demónios numa essencial ausêneia de
harmonia ...)
1884 -·consegue, enfim, publicar le Révélateur du
G lobe, seu primeiro livro, ensaio sobre Cris­
tóvão Colombo (na gaveta desde há 5 anos)
que revela ao pú b lico um Bloy habitado por
dolorosas iniciações.
1886 -Ano de Le D ésespéré, um dos seus livros mais
importantes (1), evocação dos anos com Anne­
-Marie ·Roulé (Vér�nique no romance) inteira ­

mente conforme com a verdade dos factos.


1889- (Sou naturalmente triste, como se é baixinho
ou loilro. Lembro-me de ser criança, crianÇa

muito pequena, e frequentes vezes recusar com

indignação e revolta brincadeiras, prazeres que


s6 dia pensar nefes eu me enchia de alegria.
Julgava mais nobre sofrer, causar em mim
próprio sofrimento pelo acto da ran6ncia • • •

Por instinto eu gostava da infelicid8cfe, queria


ser infeliz.) As circunstâncias materiais, em

que léon Bloy vive, obrigam-no a «fabricar

(1) Tradução portuguesa na Editora Ullsseia, 1974.

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contos1 para jornais. (A necessidade da en­
contrar temas para artigos .que tenham., ao
mesmo tempo, algu ma coisa que ver comigo
e com o Gil Blas, exaspera-me.) (Ahl Como
esta gente do Gil ·Bias ma obriga a ganhar
dUramente a vidal)
1890- Casa com Jeanne Molbeck, dinamarquesa que
partilhará da sua miúria até ao fim. (.Do casa­
mente> vão nascer quatro filhos, dois mortos
nos primeiros tempos de vida - de priva.jõas,
segundo vários biógrafos de Léon Bloy.)
Publica Christophe Colomb Devant les Tau­
reaux.
1892 - Publica Salu t Pour las Juifs, onde Israel surge
destinada a grande papel «nos últimos dias».
(Avanço à frente doa m eu s . pensamentos em
exf.lio, numa grande co luna de silêncio.)
1893- Sueur de Sang, reunião dos contos militares
pub.licados no G il Blas, recordações da guerra
dj! 18 70 transfiguradas, na sua maior parte,
em ficções «negras».
1894- Histoires Désobligeantas (Histórias Desagra­
dáveis}.
1895 - A sua repercussão, como escritor, continua a
não ultrapassar um pequeno circulo de admi­
radores que lhe admiram a violência e a cólera,
os esplendores da linguagem.
(É certo que ando c hei o de ódio, desde a in­
fância, e ninguém amou· as pessoas com .inge­
nuidade maior do que a m inha . Do mundo
abominei coisas, instituiçõas e leis. Tenho an­
d a d o a votar ao mundo um ódio sem fim , e
as experiências que vivi só serviram para
exasperar asta pafxio.)
1897 -Ano de La Femme Pauvre, sua obra-prima (2}.
18 98 - Primeiro volume do seu diário: Le Mendiant
lngrat.

(2) Tradução portuguesa na Editora Ulisseia. sfd.

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1899 -Tio g randes as suas dificuldades materia is,
que resolve emigrar com a famflia para a Di­
namarca, o pars onde vive a famflia de Jeanne,
sua mulher.
·Publica Le F i ls de Louis XVI, onde profetiza
as desgraças do séc. XX, assim: 'Como o uni ­
verso inteiro andará de automóvel ou velocr­
pade, a ocasião de pular de alegria aproveitará
a muito poucos. Os rlli'08 pe6es indigentes
que tiverem escapado a extermJnios anteriores
serão QUldadosamente esmagados e tudo se­
guirá, em f.:iria, para o duplo abismo que a
odiosa mecanizaçlo Invoca: o da imbecitidada
doa homens e o da esterllid8de das mulheres.
As pessoas vio «diVertir-SID em podridio e
·

demência.
Também deste ano Je m'Accuse, violento pan­
fleto contra Zola, o «cretino dos ·PirenéuS».
1900 - Regresso ·cdesiludidoJ da •D i na marca.
1905 - Léon Bloy vive o ano mais ameno da sua vida.
Amigo pouco cómodo, e à margem dos outros
homens, pa rece agora ter arranjado quem lhe
aceite o carácter cdiffciiJ: o pintor Georges
Rouault, o compositor Georges Aurlc, gente das
letras como Jacques e Raissa Maritain. :Aifred
Valette e a sua mulher ftachilde conservam-no
na editora Mercure de ·Franca, apesar do me­
díocre sucesso das suas obras.
1908 - L'lnvend8bre, terceiro volume do seu diário.
1914- A Grande Guerra acorda nele as antigá s pai­
xões de 1870 e a sua impaciência ·capocali­
ptica». Convencido de que vio realizar-se as
ameaças da caparlçioJ de La Salette, e a hu­
manidade será atrozmente castigada, vive na
expectativa de uma catástrofe mundial.
1915 - (Eu podia ter-me feito •nto ou taumaturgo,
e fiz de mim um homem de letras! Nio exe­
cutei,. estou certo, o que Deus pre1endia ci'e
mim. Pelo contrário: de Deua sonhei o que
eu pretendia e aos 68 anos aqufi me têm com

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as mãos cheias, apenas, de papet. [ . . . ] Estou
à espera dos Cossacos e do Espfrito Santo.)
1917- Morre a 3 de Novembro.

Albert ·Béguin: A veemência de Bloy, as


sUas cóleras famosas, o ruxo da sua n ...
guagem, · da sua imaginação, a singutari­
dade das suas invectivas, �a têm de so­

bre-excitação romântica, de esplendor es­


tilfstico gratuito, nem de explosão desor­
denada de um génio infeliz. A v� que se
exprime com um vigor tio contundente é
uma alma profunda, feridapela d'istincia
que lhe separa o desejo, enorme, do am­
biente que. uma época sem desejo lhe ofe­
rece.

A� Histórias Desagradáveis não têm «chave» - afir­


mou Léon Bloy numa carta que o seu diário reproduz.
Por sina l , a lgumas das suas narrativas sã o exacta6.
E meis adiante: Quase sempre se trata de . pequenos­
-burg u eses de q u em fiz t u d o quanto me a peteceu. E m
g era l o q u e p reten.do é d izer, de forma mais ou menos
encoberta , a verdade do meu tempo .
. Noutros lados se encarregou Bloy de trazer à luz a

génese de algumas dessas ficções. Chegar;i a dizer-nos,


POr �emplo, que o casal· Henry .de Groux (ele, como·
é sabido, pintor e aman·tfssimo da mulher com quem.
casou) se transfigura no caso-limite de Os Cativos de
longju meau; que o escritor Catulle Mendes (admita­
mos que un:� casanova, e serôdio) p6de enfiar-se na
pele d'o supermonstriloso marquês da Torra d'e Pisa,
personagem cfe O F i m do D. J u a n . Multo mais tarde,
em Uon •Bioy e as suas «Histórias Oesagra dáveis», tese
universitária de 1961, Ruth Hager contribuiu com a
I

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descoberta de quase. tOdoa os suportes «reais» deste
guinho! sàngrento.
A qu� um século de distância, interessa muito
menoa quem estéve por detrás do banho fu.Jiginoso
onde Léon Bloy mergulhou oa homens e casoa do seu
tempo. Sobra-nos, sim, um «espectáculo»; uma Btitude
titerária de humor ren�id'o aos trac;oa mais ind'esejáveis
da hipocrisia, da avareza, da pobreza; interesSada em
desfear,· até ap insllportável, ine8$108, cegueiras· ou
caridades. E uma outra leitura - mais superficial, sem
dCavida, mas divertida- que vai de par com a clien­
tella das ficções negra s e saboreia cn�eldades, nio fica
indiferente a esta encenação, pesadlssima e perversa,
de um reconhecirvel quotidiano.

A. F.
O VELHO DA CASA

Ah ! Mme. Alexandre bem pod i a d izer que


tinha v i rtud e ! H á três anos suportava o l a m­
bare i ro daq u e l e vel ho, i magi ne-se, um vel ho
i ntrujão das dúz i as que era a desonra da casa.
Não fora seu pai e creio que h á muito estaria
de rota batida para a Ass i stênc i a , essa espe­
l u nca dos i nválidos !
O d i abo é a gente ter de o l har às conve­
n i ê n c i a s . Se não é fi l ha de cão dar amparo aos
nossos autores , sobretudo quando se está . no
·

ramo do comérc i o !
- A famíl i a ! Desgraça das d esgraças . E há
quem fa l e na m isericórd i a de Deus ! Diabo de
c a l acei ro , q u e nunca mais estica o pern i l !
Este monól ogo fi l i al , tão frequente, por des�
graça já perdera a frescura . Mme. Al exandre
gastava-o todos os d i as a l amentar o l ado
cori áceo da sorte que l he cab i a e embora se
comovesse , às vezes, era só por l he parecer
necessário divulgar a sua a l ma aos c l i entes
jovens que entend i a , m pouco a nobreza daqu e l a
choradei ra .
- Qu e b o m é o m e u paizi nho queri d o !
- arrulhava . - Se o papá soubesse como gos-
tamos d e s i ! � como se tivéssemos todas um
coração ú n i co. Como o papá sabe, a profissão

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não conta nada nestas coisas . Podemos ser
postas à margem, ser umas desg raçadas se
o papá quiser, mas l á o coração, esse fal a
sempre. É s ó a gente lembrar-se d a i nfância,
das alegrias da famíli a , tão puras . . . Pal'avra
que até me s i nto em êxtase quando vejo ci ran­
dar na casa este velhote respeitável com a
sua coroa de cabelos brancos que até nos faz
pensar na pátria celesti al , etc . , etc .
A i nconsciência profissional desta doid iva­
nas perm itia-l h e , nem se duvide, fu ncionar
com à-vontade idêntico em qualquer situação .
E o septuagenário do g rande 12, aquele hós­
pede a lternadamente vesti do de glória e d e­
sonra , estagnava à beira da filha - com a
tranqu i li dade ina lterável do seu crepúsculo de
vida - a rmado em maltrapilho de albergue
das margens do g rande colector.

Para ser franco, a h istória d estes dois indi­


víduos não possui nenhuma qua l idade essen­
c i a l do poema épico .
Ferd i nand Bouton e ra u m fu l a n i n ho a quem
chamavam . papá Ferd i nand , ou então o Velho,
traste antigo da Rua de Flandres onde exer­
cera profissões tri nta , a mais confessável cu l­
pad a , a i nda ass i m , de ter posto a sua l iberdade
d iversas vezes em perigo.
MIJ e . Léontine Bouto n , mais tarde Mme . Ale­
xandre, fi cara órfã de mãe pouco depois de
nascer e fora educada por aquele homem d igno
nos princípios da mais rigorosa i m p robidade.
De ten ros anos afeita às práticas m i l i tan­
tes , aos treze já desencantara uma s ituação
rad i osa de v i rgem obl ata n a casa de um m i lio­
nário genovês m u ito famoso em vi rtudes , para
quem ela fo i o • anjo de luz • , m ilionário que a
deixou apodrecer com p l etamente� Aquela es-

t6
treante dois anos bastaram para dar cabo do
calvinistal
Depo is dele, quantos ! Recomendada sobre­
tudo a senhores d iscretos , fez-se a modos que
u m arranj i nho de pais de família e assim p ros­
segu i u , em plena au réol a de indecências , até
aos dezoito anos .
Mu l h e r séria e l a própria , de tanto roçar
pessoàs sérias, largou o crápu la e bebedolas
do pa i cuja frivo l i dade, ociosa agora , lhe re­
voltava o coração.
Du rante q u i nze anos o abandonado empan­
turrou-se de i nfortú nios.
Já sem mão para negócios, sem conseg uir
recuperar a astúcia de outros tempos , parecia
destas moscas ve l has que as a ranhas despre­
zam e até já são incapazes de voa r por c i m a
dos exc rementos .
· Léontine foi mais fel iz e p rosperou. Sem
subir aos ·pr i meiros cargos da Galantaria Pú­
b l i ca - que maneiras incorrigíveis de casca­
-g rossa l he não permitiam ambicionar a d ita­
dura - por entre subalternos empregos mano­
brou com tamanha a rte e tão ambidextras
com placências que se mete u , insta l o u , açapou
com fi rmeza, na boa-va i-e l a . Sem esquecer
nunca que devia encher o copo antes do garra­
fão dar á vo lta , tão bera foi para Deus e os
homens que chegou a desafiar a desgraça.
Desgraça que enfi m su rgiu na chistosa e
fantasmagórica figura do pai quase a afundar­
-se de vez num abismo dos mais i nsondáveis .
O ve l ho pãnqego soubera que a fi l ha , a sua
Titine (agora quase célebre sob o nome de
Mme . Alexandre) com pulso magistra l gover­
nava uma hospedaria onde os príncipes do
Extremo Oriente vinham descarregar o ouro e ,
bichoso, coberto de andrajos i mpuros, «Sem
cheta por dentro e por fora • , u m be l o. d i a foi
ca i r- l h e em casa . Tão favoráveis os fados, po-

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rém , que o a l tanei ro estafermo não teve outro
reméd io e acol heu-o entre as mais ostens ivas
demonstrações de amor, a p esar de enraivado
com a aparição.

No i nstante e m que o pai se lhe jogou nos


braços fo rçando todas as senhas, a má sorte
de Léonti ne q u i s rea l m ente q u e e l a estivesse
em conferência com s enadores rígidos e sem
g rande capacidade para zombar do quarto man­
damento da d ivina l e i . Comovido até às e ntra­
nhas pelo i nc i dente patético, um d e l es nem
consegu i u deixar de oferecer-l h e a sua bên­
ção, predizendo- l h e uma vida i nterm i n áve l .
Depois de u m gol pe ass i m , o papá Ferd i ­
nand tornou-se i ndesalojáve l , i ha rrancáve l para
sempre . E M me. Al exandre vi u-se obrigada a
desencrostá-lo, vesti-lo, i nsta l á- l o , a empan­
tu rrá-lo todos os d i as sob pena de i n correr na
i nd i g nação de gente muito honesta , perder a
frutuosa estima dos mandari n s .
Até a l i d e u m doçura d e m e l , a existência
d e Mme. Al exandre envenenou-se. Aqu e l e pai
fo i-l he o s e n ão do l e ito , o ato l e i ro da a l ma, o
berb i cacho das d i g estões . Ao contrário de
Cal i pso , não consegu i u consolar-se com a
volta d e U l i sses.
Não q u e tropeçassem nele. Desde o pri­
m e i ro d i a fora arrumado na mansarda mais
afastada, ma is i n cómoda e provave l mente mais
i nsalubre. M a l o viam. Pelo seu l ado, e l e obser­
vava com ri gor a regra d e não passarinhar na
casa à hora dos c l ientes, sobretudo nunca pôr
os pés no Salão.
Para d errogar le i tão severa só faltava a fan­
tas i a de um amador estrange i ro de vez em
quando ped i r para ver o velho que todas as
damas referiam num sussu rro de veneração
receosa , como se fa l assem do Máscara de
Ferro. .
Nessas ocas i ões usava m a l ha escarlate à
brandeburguês, uma espécie de capacete ma­
cedón i o que l he dava a r de po· l aco ou húngaro
caído em desg raça , era enfeitado com o títu lo
de conde - Conde Boutonski I - passando por
destroço coberto de glória da mais recente
i n s u rre ição.
C u m u l ativamente l i mpava as latri nas , varria
as escadas , enxugava a bacia das l avagens e
da louça - às vezes com o mesmo esfregão ,
d i z i a com .raiva Mme. Alexandre - fazia com­
pras às pens ion i stas que tinham confiança
nele e lhe davam chorudas gorjetas .
Nas horas de ócio, o fe l iz vel hote metia-se
no quarto e rel ia com afinco as obras de Pau l
d e Koc k ou a s elocubrações human itárias d e
Eugénio Transpira , q u e ass i m chamava e l e a o
autor dos Mistérios de Paris e do Judeu Erran·
te, os dois melhores l ivros do mundo (1).

Como é natura l , a casa pericl itou du rante


a g u e rra . Os c l ientes andavam todos na pro­
víncia ou nas tri ncheiras, e o estado-de-sítio
tornava i mpraticáveis os passeios.
A exasperação de Mme. Alexandre chegou
ao máximo. De manhã à noite exal ava sem
parar a sua i ra contra aquel e vel ho que se
empedern i a , cada vez mais, e ela vomitava.
constantemente pelos ol hos .
No seu del írio chegava a cu l pá-lo de ter
acend i do com as suas manigâncias o confl ito
Internacional e, quando ficou decidido o res·
gate dos c i nco b i l iões, resolveu frustrar-se ,

(1) E m francês Eugene Su•, autor das obras citadas,


6 homófono de Eugénio Sua ou, de outro modo, Trans­
pira. (N. doT.)

19
vociferar que tudo aqu i l o era u m verdade i ro
rom bo no seu comérci o e os safa rdanas dos
ve l hos azarentos deviam ser todos fuz i lados . . .
Quase_ chegava a ser h i d rofobia, o seu es­
tado, e a vida faz i a-se-lhe i mpossível .
De passagem se d i ga que a Com u n a bem
mostrou como era i napta a revi gorar o vaci­
lante negóci o. Não que . estivesse desempre­
gada, a c l i e nte l a . O estabeleci mento nem se­
quer tinha u m m i nuto de vago, pareci a u m a
i g reja .
A c l i ente l a , val h a-me Deus ! , é q u e . . . era u m
bando de bêbados sanguíneos, assassi nos , de
i nfames vad i o l as com g a l ões dos pés à cabeça
a quem elas serviam d e revó lver apontado, e
parti a tudo, tudo teria quei mado se a l guém
mostrasse audácia bastante para l he res isti r.
Agora nem a patroa berrava , imagi ne-se, a
patroa morria s i l en ciosamente de medo à es­
pera que o Altíss i m o ajudasse.
Ajuda que não se fez tardar. Os versal h eses
tinham entrado em Pari s , ficou de repente a
saber-se ! Libertação ! O d i abo de uma sorte
negra , negra de todo, é qUe não l argou Mme .
A l exandre.
Levantaram uma barricada -no f i m da rua .
S ó l h es restava fechar a porta a sete chaves
e procederem todas como se estivessem mor­
tas . O papá Ferd i na n d , esse foi compl etamente
esquecido.·
Tomada a barricada às duas da. tarde, os
federados abandonaram o bai rro a fug i r. Pouco
depois só uma pessoa andava por a l i , u m
ve l h ote franzino cujos passos ressoavam n o
g rande s i l êncio.
·

I m possível não ser reconhecido. O catonto


do ve l ho saíra de manhã, cheio de curios i dade ,
e agora fug ia dos ca l ças vermel has como um
c r i m i noso . Desconfi ados , e l es hes itavam e m
p erseg u i-lo, em ati rar sobre· u m homem tão

20•
idoso, e só quando o viram parado à porta do
grande 12 se aproxi mara m .
- ó tu , v e m cá e mostra essas unhas !
Desva i rado pelo terror, o vel hote deitava a
mão à s i n eta e tocava. _

- Titi ne, sou eu ! M i nha Titi ne, sou eu ! Abre


a porta ao teu ve l ho pai !
Muito espontânea, abri u-se então a janela
da casa d e má-nota e Mme . Al exandre , doida
de a l egri a , apontou o pa i aos sol dados:
- Fuzilem-no, com m i l d iabos fuz i lem-no,
que a i nda agora andava por aí com os outros .
Não passa d e u m rel es comunardo , de u m pe­
tro l i sta que até qu is deitar fogo ao bai rro .
Vivi am-se d i as encantadores em que só i sto
bastava . O papá Ferd i nand ca i u na so l e i ra da
porta crivado de balas . . .

M m e . A l exandre está hoje aposentada dos


negócios e j á não vive no bai rro da Bolsa onde
fo i , d u rante tanto tempo, glóri a . Os seus ren­
d i mentos sobem a tri nta m i l francos , pesa qua­
trocentos q u i l os e l ê , emocionadíss i ma, os ro­
mances de Pau l Bourget! (2)

(2) Nesta série de contos, as a l usões irónicas a P a u l


Bourget devem-se mu ito mais às péssimas relações
entre os dois a uto res (ver Belluaires et Porchers de
L. B l oy) do que à p osição conserva dora d este roma n­
cista q u e encantou a burguesia eu ropeia do final do
séc. XIX; (N. do T.)

21
OS CATIVOS DE LONGJUMEAU

Onte m , o Correio de Longjumeau noti c i ava


o fim deploráve l dos dois Fou rm i . R ecomen­
dada a "j usto títu l o pela abundância e pel a qua­
lidade das suas i nformações , perd i a-se esta
fol ha em conjectu ras sobre as causas m i ste­
riosas do desespero que acaba de precipitar
este cas a l que julga ríamos fel iz no s u i c íd i o .
Casados m u ito jovens, e como se há vi nte
anos.-vivessem o pri m e i ro d i a de núpcias, nem
u m a só vez tinham abandonado a cidade.
A previdência dos seus autores a l ivi ara-os
de toda a preocupação de d i n h e i ro que pudesse
envenenar�l hes a vida conjuga l . Provi dos à
farta de tudo o que suaviza uma u n i ão legíti ma
deste género , mas tão pouco adaptada à ne­
cess idade do revés amoroso que em gera l ró i
os versáteis h umanos , aos o l hos do mundo
rea l izavam o m i l agre da ternura perpétua .
Na b e l a noite de M a i o a segu i r a o d i a d a
queda do Sr. Th i e rs (1), o comboio da grande
c i ntu ra trouxera-os para a l i em companhia dos
pa i s que vinham i nsta l á-los na del iciosa pro­
priedad e , doravante abrigo da sua a l egri a .

(1) ·Politico q u e encarnava co espirito burguês» e


foi demitido dura nte a Comuna (1873) . (N. doT.)

23
E m u ito emocionados, os longjumel ianos de
coração puro v i ram passar aquele casa l i n ho
que o veterinário da terra logo comparou ao
Pau l o e à V i rgín i a
.

Estavam rea l mente belos, nesse d i a , até pa­


rec i a m desses meni nos pál i dos , fi l hos de
grande senhor.
M estre Piéc u , o notário do cantão , t i nha-l hes
c o mprado à entrada da c i dade u m n i nho de
verdu ra que até aos mortos causaria i nvej a
pois o seu jard i m , temos de concordar, l em­
brava m u ito u m cem itério abandonado. Aspecto
que l hes não desagradou , com certeza , uma
vez que o não modifi caram nada, d e i xando os
·
vegetai s crescer a l i na maior l i berdade .
Para m e servi r d a expressão profundamente
origi nal de mestre P i écu, d i rei .que o casal
vivia nas nuvens. Não via quase n i nguém , não
por m a l íc i a ou desespero , mas por ser uma
coi s a que lhe não tinha nunca chegado à ide i a .
Cons iderada a b revi dade • da v i d a , i nterrom­
per horas ou m i nutos um abraço , os êxtases . . .

pa lavra de honra que não e ra coragem possí­


ve l de exigi r a este extraord i nári o casa l .

M estre Jean Tau l e r , u m dos maiores homens


da Idade Méd i a (2), conta a h i stória do sol itá­
rio a quem certo visitante i m portuno veio pe­
d i r um objecto da sua cel a . O sol itário fez o
esforço d e e ntrar em casa. e pr,ocu rá-l o, mas
lá den t ro esqueceu-se de tudo porq u e não con­
seg u i a reter no espírito a i magem das coi sas
exteriores . Voltou a sai r, ped i ndo ao vis i tante
que repetisse o que queri a . Ped i do renovado ,
entrou o sol itário de novo na cela m a s perdeu
a memória antes de . d e i tar a mão ao objecto
em causa . Depo i s de várias tentativas foi obri­
gado a dizer ao i mportuno : - Entre o senhor

(2) Mlsticp alemão a quem .çhamaram o «doutor ilu­


minado». (N. do T.)

24
e procure aqui lo que quer, pois não consigo
conservar em l].'lim a imagem d o que me pede
o tempo sufi c iente para dar satisfação ao seu
ped ido.
M u itas vezes os esposos Fou rmi me l embra­
ram aquel e sol itário . Dar o que l hes ped issem
não custaria, se acaso o retivessem u m i ns­
tante na memóri a .
A s s u a s d i stracções fizeram-se famosas , e
fa lou-se delas até Corbe i l , mas como e l es não
ti nham a r de .q uem sofria ·com i sso parece
i nexp l i cáve l a resol ução · funesta» que pôs fim
àquelas vi das que tanta gente i nvejava .

Uma velha carta deste i nfe l i z Fourmi que


eu já conhecia de solte i ro perm ite-me, no en­
tanto , reconstitu i r pela via da intu i Ção toda a
lamentável h i stória. •

A carta é a que segue e há-de com certeza


ver-se como não era doido nem i mbeci l o meu
amigo.
"' . . . Meu caro, .pela déc i m a ou vigés ima vez
fa ltamos à nossa promessa. M u ito paciente tu
sejas, deves estar farto de nos convidar. Ver­
dade é que m i nha m u l her e eu nunca tivemos
descu l p a , quer na ú ltima, quer nas preceden­
tes vezes . Escrevemos a dizer-te que contas­
ses connosco , porque estávamos l ivres , e
como sempre perdemos o comboi o .
«Desde · h á qui nze anos, p o r mais que a gente
faça perde todos os comboios e todos os
transportes púb l i cos . Coisa i d i ota ao máxi mo,
de u m r i d ícu l o atroz, mas começo a acred itar
que mal sem reméd i o , uma espéc i e de fata l i­
dade r i s íve l de que somos víti mas. Não há que
fazer-l h e . Por exemp l o , já nos aconteceu estar
a pé desde as três da manhã, ou passar mesmo
a noite E;lm c l aro para não perdermos o com­
bo io das oito . Po i s bem, querido amigo, no

25
ú ltimo i nstante pega-se fogo à chami né, a meio
do cami n h o eu faço uma entorse, o vestido da
Ju l i ette rasga-se num matagal qual quer, .a dor­
mecemos no canapé da s a l a de espera da
estação sem o ru ído do comboio ou o cl amor
do empregado nos acordar a tempo , etc ., etc .
Da ú ltima vez esqueci-me da carte i ra .
"Há q u i nze a n o s que esta situação se man­
tém , digo-te m a i s uma vez, e s i nto agora que
o pri ncíp i o da nossa morte está contido n e l a .
C o m o sabes , por sua causa fa l hei em tudo,
pus-me de m a l com todos , passo por u m mons­
tro de egoísmo e a pobre da mi nha J ul i ette
está natu ra l me nte envo l vi d a na mesma repro­
vação . Desde que chegámos a este l ugar mal­
d i to fa lte i a s etenta e quatro enterros , doze
casamentos , tri nta baptizados , u m m i l har de
visitas ou vo ltas que me e ram i nd i spensáve i s .
D e ixei a m i nha sogra morrer s e m vo ltar a vê-la
uma só vez , apesar d e ter estado doente um
·
ano i nte i ro, e por isso fi cámos sem três quar­
tos da hE!rança que e l a nos ti rou raivosamente
acrescentando ao testamento u m cod i c i l o , na
vés pera da morte .
·Desatasse eu a enumerar to l ices e desai­
res ocas ionados por esta c i rcunstân c i a i ncrí­
vel de não termos conseg u i d o s a i r d e Longju­
meau , que nu nca mais acabar i a . Para resumi r
estamos cativos, de ora em d i a nte privados de
esperança , e vemos próximo o momento em
que esta s ituação de galeri anos se va i tornar
i nsuportáve l »
. . .

Suprimo o resto , que o meu a m i go confia­


-me coi sas d e mas iado ínti mas para eu poder
pub l icá-las, mas dou a m i nha palavra de honra
que não foi um homem · bana l , foi digno da
adoração da sua m u l her. Estes dois seres me­
reciam bem m a i s do que termi nar estúpida e
desgraçadamente como term i n a ra m .
Certos pormenores, que peço desc u l pa de
guardar só para mim, fazem pensar que o i n­
fe l i z casal foi vítima de uma maqui nação tene­
brosa do I n i m i go dos Homens , nesse recanto
mal éfico de Longjumeau , e é evidente que
pela mão de, uin notário i nferna l . Nada teria
poder bastante para os arrancar d e l á .
J u l go q u e n ã o pod iam fug i r. A volta da casa
existia u m cordão de tropas i nvisíve i s e bem
seleccionadas para i nvesti r contra eles, tro­
pas que nenhuma energ i a pode ria vencer.

Para m i m , só os Fourmi andarem devorados


p e l a paixão das viagens era s i n a l de i nfl uência
d i abólica . Eles, de sua natu reza uns cativos
essencial mente m i g radores !
Antes de se u n i rem um ao outro já os viam
por Enghien, Choisy-l e-Roi , Meudon , C l amart,
Montretout. Uma vez chegaram a ati n g i r Sai nt­
-Germa i n .
Naquele Longj u meau , q u e l hes pareceu u m a
i l ha d a Ocea n i a , esta raiva de exploraÇões au­
daci osas , aventuras por terra e mar, não fez
mais do que exasperar-se .
Atravancou-se-l hes a casa de g l obos e p l a­
nisférios , atlas i ng l eses e germân i cos. Chegou
a ter um mapa da Lua pub l i cado em Gotha
sob a d i recção do pedante Justus Perthes . (3)
Quando não faziam amor l i am j untos h i stó­
rias de navegadores famosos , que ench i am
tota l mente a sua b i b l i oteca , e não h avia Volta
ao Mundo ou boleti m da Soci edade de Geogra­
fi a que não assi nassem. G u i as dos cam i n hos
de ferro , prospectos de agências maríti mas ,
choviam-lhes em casa sem i ntermitências.
Ta lvez não· se acredite, mas tinham as ma las

(3) Livrei·ro a l emão do séc. XVIII, ra d ica do em


Gotha, paf d o editor d o cél ebre Almanaque. (N. elo T.)

27
sempre fe itas . Viveram sempre de abalada, na
i minência de uma viagem i nterm i n ável a paí­
ses longínquos os ma i s perigosos e i n explo­
rados .
Cerca de quarenta telegramas eu recebi
que anunciavam a sua partida i medi ata para
Borné u , Terra do Fogo, Nova Ze l â n d i a ou
G ronelân d i a .
A partida várias vezes esteve p o r um tri z ,
mas depo i s não partiam , nunca parti am porque
não pod i a m e não deviam parti r. Col i g avam-se
átomos e m o l écu l as para os travar.
U m d i a, há cerca de q u i nze anos , chegaram
porém a j u l gar que a fuga estava próxima.
Contra todas as expectativas , tinham conse­
g u i do entra r numa carruagem de pri me i ra
c l asse que os l evaria a Versal hes . Libertação !
O c írcu l o mág i co i a afi nal romper-se .
Quando o comboi o arranco u , fi caram. Ti­
nham-se metido num e l emento des l i gado do
conju nto que d evia permanecer n a estação .
Era preciso voltar ao pri ncípi o .
Infel i zmente , a ú n i ca vi agem que n ã o per­
de ram-foi esta , que deci d i ram fazer agora . De
espécie tão con hecida que devi am tremer
muito quando se abalançaram a e l a !

28
U MA IDEIA MEDlOCRE

Eram quatro e conheci-os de g i nj e i ra . Se não


vos fizer d i ferença, vamos chamar-l hes Théo­
dore, Théodu l e, Théop h i l e e Théoph raste . (1)
Não eram i rmãos mas vivi am juntos , sem
se i solarem u m momento que fosse. Nen h u m
deles e ra visto sem aparecerem l ogo os três
restantes . .
Natu ra l m ente , o chefe de esquadra era o
Théophraste que citámos no fi m , o homem dos
Caracteres e j u l g o mu ito digno de comandar
os companhei ros pois que a s i próprio sabi a
também comandar-se.
Tinha modos de u m puritano seco , a rreado
de certezas, meticu l oso e· auscu ltador. Exterior­
mente exi b i a , ao mesmo tempo , a l g o de texugo
e do ava l i ador de sucursal de casa de penho­
res em bai rro pobre .
Quando l h e dávamos os bons-d ias pareci a
q u e estava a receber u m a fiança, e a s u a res­
posta l e m b rava sempre uma ava l i açí!lo de pe­
rito .
P o r dentro , a s u a a l m a era u m a estrebari a .

(�.) D iz u m biógrafo de Bloy (J . ·B o l l ery) que o s he­


róis deste conto fora m i nspira dos em três irmãos d o
própiro •Bioy , e n u m cunhado. (N. d o T.)

29
Estrebaria de uma inexorável mu l a , dessas que
na Ingl aterra ou na ci dade de Calvino s e edu­
cam , com tantos cuidados , para transportar
caixões pi ntados de branco.
Não desejava , porém, Théophraste que o
i magi nassem protestante. D iz i a-se católi co até
à ponta dos cabelos e punha ostensivamente
o coração a secar nos tanchões da V i n ha dos
E l e itos .
De seu fundo era casto, e queria sobretudo
pa recê- l o . Casto como um prego, como uma
tesoura de podar, como um arenque fumado !
Os seus acól itos proc lamavam-no i ncorruptí­
ve l , i ndesfo l h áve l , não menos alvo e l actes­
cente do que a obsess iva capa dos anjos .
Olhava para as m u l heres - terei a coragem
d e d i zê-lo ? - como se fossem caca . Incitá-l o
a estro i n i ces teria s i do o cúmulo da demência.
De um modo gera l , desaprovava a aproxi ma­
ção dos sexos e qualquer palavra evocadora
do amor pareci a-l he uma agressão pessoal .
Tão casto era , que até a saia dos zuavos e l e
teria condenado.
A q u i está a fisionomia deste chefe , a traços
l a rgos.

Cons i ntam-me, agora , que vá esboçando os


outros . . .
Théodore era o leão d o g rupo. D e l e tinha o
orgu l h o e o porte ; era quem ia à frente quando
se tratava de d i plomacia ou persuasão, poi s
a Théophraste fa ltava eloquência.
A verdade se d iga, Théodore embriagava-se
para rug i r mel hor em tai s ocas iões, mas saía­
-se a contento gera l .
Era u m l eãozi nho d a Gasconha, por i nfel ici­
dade privado d e juba, que se gabava d e per­
tencer à célebre e hoje quase exti nta famíl i a
dos Théodore de Saint-Anto n i n , e também a o

30
Lexos que possu i margens cobertas de g l ór i a ,
e m Aveyron.
Levar-nos-ia a mal se ignorássemos que as
a rmas , as nobres e o rg u l hosas a rmas dos seus
antepassados , estavam esc u l p i das no pórtico
ou noutro s ítio da catedral de Albi ou de Car­
cassone. A viagem era demasiado cara para
uma verificação: i n úti l , de resto, pois bastava
a sua pal avra de fidalgo.
Decal cadas atentamente na B i b l i oteca N a­
cion a l , sobre papel de seda, tai s armas nunca
me foram mostradas mas a divisa Par la sam­
bleu ! sempre me pareceu tão s i m p l es como
magnífica.
Em poucas pal avras, Théodore fasci nava e
seduzia os am igos cuj a ascendência mai s não
tinha, a i de m i m ! , do que borra-botas. Apesar
d i sso não pod ia ser o cabo daquela esquadra,
pois todo o bri l ho deve ceder ao bom-senso.
O baço mas i mpecáve l Théophraste é que os
reu n i ra num feixe, para não serem quebrados
pelas tempestades da vida. Ele é quem os man­
ti nha ass i m , dia a d i a , ensinando-l hes a v i rtud e ,
a viver, a pensar, e o fervente Aqu i l es acei­
tara com nobreza esta obed i ência ao orac u l a r
Nestor.
Théod u l e e Théoph i le podem ser despacha­
dos em poucas pal avras . De notável o pri m e i ro
só tinha a aparente robustez do boi dóci I, e
cheio de i nconsciência, que poderia ser posto
a l avrar um cemitério . Sentia-se fel i císs i m o
p o r haver q u e m o conduzisse, e quase n ã o pre­
cisava de l uz.
Pel o contrário, se o segundo andava é por­
que tinha medo. Não achava aque l e feixe nem
mu ito espi ritual nem muito d ivertido mas,
como se deixara amarrar por Théophraste , nem
sequer ousava o pensamento de uma deserção
e tremia à ideia de desagradar a um homem
de tal forma receável .

31
Ainda era um rapazinho, quase uma criança,
e ao que j u l go a sua i nte l i gência, a su�;� sensi­
b i l i dade, mereciam mel hor sorte.

Vejamos agora a ideia miserável , o d iacho


de ideia i mbec i l a que foram atre l ados estes
quatro sujeitos. Se a l g u é m achar outra mais
medíocre, estou rea l mente i nteressado em ter
conhec i m e nto dela.
Tinham i magi nado real izar a quatro aquela
m i steriosa assoc i ação dos Treze sonhada por
Balzac (2). Sonho pagão, se algum existe.
Eadem velle, eadem nol le, d i z i a Sal ústio, que
fo i u m dos mais atrozes canal has da Antigui­
dad e .
Ter uma a l ma e u m céreb ro reparti dos por
baixo de quatro epidermes, no fi m de contas
renunciar à personali d ad e , fazer-se número,
quantidade , m o l h o , fracção d e u m ser col ec-
tivo. Que g e n i a l concepção ! .
Excess ivamente capitoso para aquelas po­
bres cabeças, o vinho de Balzaé i ntoxicou-os
e o estado em que fi caram pareceu-l hes divino.
Juntaram-se umas às outras por juramento .
Lestes bem? Por juramento . Sob re q u e evan­
gelho, que a ltar, que re l íq u i as ? Não mo d i sse­
ram e é pena, pois muita curiosidade s i nto
em sabê-lo. Tudo quanto pude descobri r , ou
conjectu rar, é que uti l izando fórm u l as execra­
tórias e o testemunho de todos os abismos ,
votaram-se àquel a vida absurd a que era não
terem um pensamento que não fosse P.e nsa­
mento do g rupo, não amarem nem detestarem

Pl Como .é sabi do, trata-se dos treze homens qu e


d omi nam três nove las de :Ba lzac conhecidas pelo titu l o
gera l d e História d os Treze: Ferragus, o Chefe dos De­
vorantes; A Duquesa de Langeais; A Menina dO. Olhos
de Ouro. ·(N. do T.)

32
nada que · não amassem ou detestassem em
conjunto , · deixa rem de guardar segredos , l e­
·

rem as cartas uns dos outros e viverem para


sempre juntos sem um só dia de separação.
É natu ra l que Théoph raste tenha sido o i ns­
tigador deste acto tão sol ene. Os outros não
teriam chegado tão l onge.
Empregados todos quatro na mesma repar­
tição de u m ministério, foi possível rea l izar
a parte esse ncial do program a . Tiveram a
mesma toca, a mesma mesa, a mesma roupa,
os mesmos credores , os mesmos passe i os , as
mesmas . l eituras, a mesma desconfiança ou
o mesmo horror a tudo o que não fosse aquela
quadri l ha . De igual modo se enganaram sobre
homens e coi sas .
E, para fi car tudo dentro do grupo , largaram
i ndecentemente am igos de l onga data e ben­
fe ito res , �ntre · os quais u m enormíss i mo ar­
tista que uma vez tinham tido a sorte i nacre­
d i tável de fazerem i nteressar-se por eles e
tentara preven i-los contra a tendência de anda­
rem a q uatro patas, como os suínos . (3) . .

Passaram alguns anos ass i m , os mel hores


da vida uma vez que Théoph raste, o mais ve­
l ho , tinha apenas tri nta anos quando a asso­
ciação começo u . Ficaram quase célebres . De
tal forma o ridícu l o andava col ado a eles, que
em várias ocas i ões foram obrigados a mudar
de bai rro .

Como · é natura l , havi a tudo de acabar e m


drama. Um d i a , o combustível Théodore apa i­
xonou-s e .
Quase não t i n h a m rel ações , m a s a l gumas
sem p re t i n ha m , e uma rapariga a quem Deus

Pl Não é arriscado ver aqui uma referência a o pró­


prio autor. (N. do T.)

33
não queria j u l gou proceder bem casando com
o fidalgo cujo brasão até embel ezava a cate­
dral de A l b i ou a de Carcasson e.
Não esto u , fique bem claro , a contar � h i s­
tória i nfi n itamente comp l i cada deste ·c asa­
mento que mod ifi cava , da forma mais rad ical
e profu nda, a exi stência mecâ n i ca dos nossos
herói s .
D i rei apenas q u e à s primeiras i nvestidas do
ma l , Théodore , fi el ao prog rama, abriu o cora­
ção aos três ami gos cuja estupefacção subi u
'
ao mais a l to n íve l . Pri m e i ro, Théoph raste exa-
lou uma i n d i gnação sem l imites e espa l hou do
veneno mais negro , e em termos atrozes , por
todas as m u l heres sem excepção.
Pouco fa ltou para brigarem. Aquela Sai nte­
-Vehme esteve a um passo da d i ssol ução.
Théodule l i quefazi a-se em dorc enquanto
Théoph i l e manti nha um s i l êncio fúnebre, se­
cretame nte esfomeado de i ndependênc i a e fa­
zendo votos para que a revo l u ção rebentasse,
não ousando embora declará-l o .
Depoi s aca l m a ram-se e o equ i l íbrio artificial
fo i restabeleci do; por u m i n stante erg u i d a ,
cada uma daquelas massas voltava a cai r e m
peso no a lvéo l o e o terrível pastor Théo­
phraste , verificando que o rebanho ia afi nal
crescer de uma un idade, cedeu à esperança
de uma domi nação ma is amp l a .
E m b l oco os i nseparáveis foram ped i r , para
Théodore, a mão da i nfortu nada ; e e l a não v i u
o abi smo aonde caía p o r desejo cego de casar
com u m homem que era descendente dos bra­
vos .
Logo no · primei ro dia o i nferno começou.
Ficara comb i nado que a vida em comum pros­
seg u i r i a e, se é verdade os recém-casados
terem conseg u i do que os deixassem sós du­
rante a noite, ta l como dantes todos estavam

34
a pé a horas certas e não bel i scavam em nada
aquel a regra verdadei ramente monástica .
Todas as manhãs Théodore era obrigado a
rel ata r, com precisão, quanto fo ra consumado
nas trevas do quarto conjuga l ; e . a pobre mu­
lher não tardou a descobri r, horrorizada , que
afi nal casara com quatro homens.
No dia seg u i nte ao daquele tri ste casamento
desenrol ou-se perante os seus o l hos o m a i s
terrível futu ro . V i u de frente a ignób i l estupi­
dez do . mei a-ti gela que era o ma rido, a avi l­
tante s ituação de escravatura que resultava
daquela associ ação de i mbec i s .
O od ioso Théophraste a b r i u e l eu e m voz
alta as suas cartas, na sua presença e na dos
outros el ementos do grupo. O b i são passeou
a bosta e a baba impura por confidências de
mu l heres; mães e raparigas .
Aprovada pelo marido , a tira n i a deste abo­
m i náve l pedante exerceu-lhe uma d itadura na
roupa, no porte , no apetite, nas palavras, nos
o l hares , nos menores gestos .
Sufocada , espez i nhada , vergada , desespe­
rada , c a i u no mai s profu ndo s i lêncio e, com
todo o coração , começou a desejar os bem­
-aventu rados que viajavam de carreta fúnebre
e j á não acompanhavam mai s nenhum cortejo.

Nos prime i ros tempos a quadri l h a fechou-a


a sete chaves , quando saía para a repartição ,
pois o Estado não consentia que ela os acom­
panhasse.
G raves i nconveni entes, porém, forçaram a
que este rigor fosse rel axado, e e l a ficou ou
j u l gou-se l ivre de i r e vir à sua vontade, cerca
de oito horas por dia .
N a verdade , ignorava q u e a portei ra (choru­
damente paga) l he fazi a o reg i sto de entradas
e saídas , e espiões de piquete nas ruas vizi-

35
nhas observava m , zelosos , todas as suas an­
danças .
A prisione i ra aproveitou este si mulacro de
l a rgueza para se embriagar de a res d i ferentes
daquel outro que havia no c l austro i nfame onde
nem ousava respi rar.
Fez vis itas aos pais e a ve l has amigas,
passeou no bul evar e ao longo do r i o , mas foi
pun i da com cenas d e u m a violência d i aból i ca
que a tornaram a i nd a mais i nfe l iz : porque às
suas qua l i dades , já d e s i encantadoras , Théo­
dore acrescentava o c i ú m e digno de um Barba
Azu l da Kabíl i a .
Era demai s . E p o r isso aconteceu o que d e­
via acontecer natura l mente, infal ivelmente,
sob u m ta l reg i m e .
Sem desag rado, M m e . Théodore ouvi u a
conversa d e um estranho que . surgia como
homem de g é n i o , se comparado àqu e l es i d i o­
tas . Encontrou-l h e a bel eza de um Deus, por­
que não se parecia -nada com e l es , j u l gou-o
de uma generosidade i nfi n ita , porque l h e fa lava
com ternu ra , e fez-se l ogo sua amante num
transporte de i n d i zível a l egri a .
O que depois sucedeu, vei o há d i as noti­
ciado num jornal .
Disseram-m e , no entanto , que estavam os
quatro homens reun i dos , na noite da queda ,
quando o D i abo l hes apareceu!
CASTIGO TERRIVEL DE U M DENTISTA

� Ora tenha a bondade de d i zer o que de­


sej a .
A personagem a q u e m o tipóg rafo se d i ri g i a
era u m homem bana líssi mo, i g u a l a tantos ou­
tros, destes insign ifi cantes que existem por
todo o lado e parecem estar sempre no plural,
expri m i ndo à maravi l ha o ambi ente , a col ecti­
vidade, a i n d ivisão. Um dos que podem d izer
Nós, como o papa . Até ar de encíc l i ca ti nha !
A sua cara , dessas que existem à s carradas,
era ··da espéc i e inumeráve l dos fal sos bruta­
montes do Mid i que nenh u m cruzamento afi na
e são todos aparênci a , g rosserias i nc l u ídas . . .
Não pôde responder logo, o homem, porque
estava meio azoado e precisamente naque l e
m i n uto fazi a u m a tentativa desesperada p ara
se mostrar a l g u é m . Os o l hos g randes e cheios
de i ncerteza revi ravam-se, quase saltavam das
órbitas ·como bolas de jogo de azar que pa re­
cem hesitantes a esco l her o alvéolo n u merado
onde va i - consumar-se o destino de um i mbeci l
qualquer.
- Co m mil d i a bos ! - acabou por d izer, car­
regando no sotaque de Tou louse. - Ju lga que
venho à sua casa procu rar o quê? Raios o

37
parta m ! C l a ro · que 'venho para o senhor me
fazer cem parti ci pações de casamento !
- Ah s i m ! Po i s aqui tem os nossos mode­
los, pode escol her. Desej a uma ti ragem de
l uxo em bon ito papel vergé, ou em japão i m­
peri a l ?
- De l uxo , com m i l di abos ! A gente não se
casa todos os di a s ! Não me d iga que i a fazer
essa coisa e m papel de l i mpar o rabo ! Como
é evi dente , vai ser no que tiver aí de mai s
imperi a l . E veja l á bem , n ã o me pespegue uma
tarja negra, Deus santíss i m o !
Simplória criatu ra esta, do Vau g i rard ! O ti­
póg rafo até receou que fosse u m destes l ou­
cos que convém não excitar, l i m itando-se a
um protesto fraco pe l a suspe ita de descuido
que e l e l h e den unciava .
Quando chegou o momento de red i g i r o
texto, tremi a tanto a mão do c l i ente que vi u-se
o operário obrigado a escrever o que e l e
ditava:
- «O Senhor Doutor A l c i bi ade Gerbi l l on
tem a honra de parti c i pa r a V . Ex.• o seu
consórc i o com a men i na Anto i n ette Pl anchard .
A ceri mónia rea l i za-se na i g reja paroq u i a l de
Aubervi l l iers . »
- Vau g i rard e Aubervi l l i e rs ? São coisas que
não l i gam nada bem! - pensou o ti póg rafo ,
ao l iquidar o m a i s suavemente possíve l a fac­
tu ra .

De facto , não l i gava m . H á bem q u i nze horas


que o doutor A l c i b i ade Gerb i l l o n , c i rurgião­
-denti sta , errava pelas ruas de Pari s .
Com a ma ior tranqu i l idade , como u m sonâm­
bulo, cumprira todas as forma l i dades do casa­
mento que i ri a rea l izar-se d a l i a d o i s . d i as.
Só esta ú lti ma consegu i ra pertu rbá-lo e veja­
mos porquê: ·

38
Gerb i l lon era um assassino privado de
repouso. Va i expl i cá-l o quem pode. O seu
cri me fora consumado da forma mais cobarde
e mai s ignób i l mas , bruto que era, sem ter
experi mentado nenhuma emoçã() , o remorso
só chegou a atacá-lo quando recebeu a mi ss iva
i mpressa - mi ssiva largamente tarjada de ne­
gro - onde toda uma fam í l i a chorosa l h e
supli cava que ass i stisse à s exéqu i as da s u a
própria víti m a .
Esta obra-prima d e ti pografi a e n l ouqueceu-o ,
persegu i u-o , perdeu-o . Gerb i l lon começou a
arrancar dentes em be l íssimo estado, a auri­
ficar desaje itadamente arnelas desprezíve i s , a
ati rar-se com afinco a gengivas prec iosas , a
aba l a r maxi lares que o tempo respe itara , a
i nfl i g i .r � sua c l i ente l a suplícios de uma total
novidad e .
Pesade l os sombrios apareceram de visita
ao seu covi l odontécn i co e sol itário, fazendo
ranger tudo, mesmo as d entadu ras de borracha
vu lcanizada que e l e próprio construía nas bo­
carras de cidadãos desvai rados que o honra­
vam com a sua confiança.
E a causa de ta l pertu rbação era , e m excl u­
s ivo , a ménsagem tão banal que todos os
contri bui ntes i mportantes da vizinhança ti­
nham aco l h ido de alma tranq u i l a . Adorador do
Mo loch dos I mbec i s , só Alci biade não fora
afi n a l perdoado por aquele I mpresso !
Poderemos rea l mente acred itar que e l e te­
nha assass i nado, assas s i nado por amor?
Façamos a j ustiça de imputar o seu acto
às l e i tu ras de dentista , as ú n i cas que a l i men­
tavam o cérebro deste criminoso.
À fo rça de encontrar nos romances-fol hetins
situações amorosas que se des l i ndavam de
forma trág ica, a pouco e pouco A l c i b iade ce­
dera à tentação de suprimi r de vez u m ven-

39
dedor de guard a-chuvas obstác u l o da sua f i-
c i dade.
J
1
Soberbamente dentado , este jovem co m er­
c iante :não dava azo a devastações na queixada
e estava prestes a casar com Anto i nette, fi l ha
do gordo q u i nq u i l h e i ro Planchard , criança ado­
rável por quem Gerbi l l on se consu m i a , cal ado,
desde a hora em que lograra parti r-l he um
molar tubercu l oso e a tivera em fan i co nos
braços.
Estavam quase a ser pub l i cados os banhos
quando A l c i biade, usando o rápido poder de
decisão que faz tão receávei s os dentista s ,
mag i cou o extermínio do riva l .
N u ma manhã d e bátegas torrenc i a i.s , o ven­
dedor de guarda-chuvas foi encontrado morto
na cama e o rel atório méd i co demonstrou que
u m ce l e rado d a mais peri gosa espécie estran­
g u lara d u rante o sono aque l e i nfel i z .
Diaból ico, sabendo mel hor do que n i nguém
como as coi sas se tinham passado , ass i m
mesmo Gerb i l lon apo iou com audác i a este
j uízo , e até bri l hou de lógica i mp lacável na
prova c i entífica do desacato . As suas precau­
ções tinham s i do bem tomadas e a Justiça ,
depois de u m i nquérito tão meticu l oso como
i n úti l , vi u-se obrigada a des i sti r da descoberta
do cul pado .

O dentista sangui nário salvou-se mas não


i m pu n e , como vamos ver .
Pensando n a s vantagens que o c r i m e l h e
trouxera , mal o vendedor de guarda-chuvas fo i
fazer tijo l o começou u m cerco à sua Antoi­
nette .
A superior atitude que exi b i ra no i nquérito ,
a s l uzes q u e trouxera a o obscuro d rama , o
desve l o respeitoso da sua compaixão por

-4 0
aquela jovem tão cruel mente · ati ng ida faci l i­
taram-l he, enfi m , o cam i n ho do seu coração.
A l i ás coração que em nada se pareci a com
um coração d ifíci l de tomar, uma babi l ó n i a de
coração . A fi l h a do q u i nq u i l he i ro era uma vir­
gem razoável e tão cheia de saúde, que m u i to
pouco m e rg u l hou na dor.
Nada quis com a g l ória i núti l das l amenta­
ções eternas, de forma nenhuma pretendeu
passa r por i n conso l áve l . E o denti sta segre­
dava-lh e :
- N i n guém vive para os mortos . U m marido
perd ido, dez encontrados , etc.
U m pun hado d estas sentenças , extraídas do
mesmo a b i s m o , e l ogo a nobreza do arrancador
s e desvendou tra nscendente .
- O s e u coração é q u e eu gostava d e
a rranca r, m e n i na - pal avras decisivas q u e e l e
u m d i a l h e d i sse.
Al i ás , pal avras encantadoras que a educação
da q u e l a rapariga pod i a saborear e a fi zeram
resolver-se. De resto , Gerb i l lon e ra um m a­
rido « passáve l • . O entend i mento foi fác i t e o
consórc i o . re a l i zou-s e .
Po r que s e envenenou c o m a . recordação do
mo rto uma fe l i cidade tão custosamente con,
q u i stad a ? Não querem l á ver que a parti ci pa­
ção l utuosa, cuj a marca fi cava agora menos
forte, reaparec i a na i magi nação do crimi nos o ?
E e l e s e j u lgou denunci ádo d e u ma forma
tão estúpid a ? Na antevéspera do casamento
a obsessão reg ressara com força e a rrastara-o
à l o u c u ra - há pouco o vimos - fazendo-à
deambu l a r todo o santo d i a como um fug itivo,
nesta Pa ris que não era o l ocal onde e l e
morava , até à hora terrível em q u e recuperou
energ i as para encomendar as parti ci pações
àquele ti pógrafo de Vaugi rard que descob ri ra ,
j u l gava e l e , o s e u cri m e .

41
Va l e ra bem a pena ter sido tão finório , tão
desen rascado ! Ter sabido despistar a Justiça
e conqu i sta r, contra todas as expectativas , a
mão de uma m u l her idolatrad a ! Tudo i sto para
chegar à m i séria de ser atormentado por
a l ucinações !

A em briaguês dos pri m e i ros d i as de casa­


mento não passou de uma trégua. Ai nda os
cornos á gudos daq u e l a l ua-de-mel em quarto
crescente não tinham parado de espi caçar
o céu, e já s e fabricava o germe da tr i b u l ação .
Certa manhã, A l c i b iade descobri u u m retrato
do vendedor de guarda-chuvas . Oh ! Nada mais
do que uma fotografi a q u e Anto i nette ace ita ra
com i nocência, quando se j u l gava em vésperas
de casar com e l e .
Exced ido, poré m , d e fu ror, o d enti sta ras­
gou-a ria cara da m u l her. Uma violência d estas
revo ltou-a , apesar de não te r a re l íq u i a por
mu ito prec iosa , e ao mesmo tempo - já que
nada existe i ndestrutível - a i magem que an­
tes era só pape l ve io fixar-se (como refl exo
de um frag mento da chapa fotog ráfi ca que
n i nguém vê mas envolve o universo) na sua
memória s u b itamente impressionada .
Da l i em d i a nte , Mme . Gerbi llon esteve en­
tregu e à sombra do finado cuja lembrança
quase chegara a ser- l h e i ndife rente ; começou
a vê-l o a todo o i nstante, e só a ele, respi rou-o ,
exalou-o por todos os poros , com os seus
eflúvios saturou o esposo mu ito triste que
passou a su rpreender-se e a desesperar-se com
o encontro assíduo d e um cadáve r, entre e l e
e a m u l her.
Ao fi m d e u m ano nasceu-l hes u m fi l ho
epi l éctico do sexo mascu l i no . Era monstruoso ,

42
com o rosto de um homem de tri nta anos , tão
prod i g i osamente parecido com o assassi nado
que Gerb i l lo n fug i u aos berros . Vad iou três
dias como um i nsensato . E já de volta na noite
seg u i nte , foi-se ao berço e estrangulou a
criança . Numa crise de sol uços.
O LOCUTóRIO DAS TARANTU LAS

Em 1 86 9 , nos tempos da m i nha j uventude


rad iosa, con h eci aqu e l e poeta na casa d e
Barbey d 'Au revi l ly ( 1 ) . I nteressei-me l o g o pelos
cab e l os e pe l o vozei rão que t i n h a .
Os cabelos e ra m d e u m b ranco h i rsuto e
parec i a m desafiar constantemente qualquer
podador. Andasse embora pelos quarenta a nos ,
o g rande tosão cor de neve que sacud i a aos
ventos dava-l he à d i stân c i a um ar de Satu rno
petu l a nte, ou de J ú p iter de panclastite enve­
l hecido por um i ncríve l abuso dos coxins da
vo l úp i a .
Por baixo daq u e l es flocos , a má cara mi­
núscu l a de tijolo moído parecia ai nda em
eb u l i ç ã o m a i o r , e ma i s cozida, de cada vez que
a vía mos .
E l e próprio se espantava com a sua agitação
crón i ca:
- Sou o Locutório das Tarântulasl - gritava
naq u e l a voz de p rometi do ao col ete de forças
que até fazi a , na rua , as operárias humi l des
apressarem o passo .

( ' ) Como é sabido, um dos notáveis escritores fra·n­


ceses do final do séc. XIX, autor, por exemplo, de
A Embruxada, obra inclu lda nesta colecção. (N. do T.)

45
T i n h a sempre um ar d e Sansão a rebentar
cordas ou quaisquer outras peias que os
fi l i steus i ngénuos tivessem pretend i do esten­
der para enfaixá-lo dura nte o sono .
E o i nfe l i z d 'Aurev i l ly, que por s i n a l acabaria
em sucumb i r às tramas de uma a ranha negra
do ocu ltismo languedoc i ano [2), de forma a l ­
guma o d i o u espi caçar a raiva deste metrómano
vu lcânico i n capaz de aceitar deferências, m uito
d isti ntas f-ossem, se acaso não constituíssem
a mais a l ta ou mesmo exc l u s iva deferênci a .
O poeta chamava-se Damascàne Chabrol e
fora méd i co (3) . Mel hor, a i nda era méd ico, que
a med i c i na i mprime cunho tão forte como o
sacerdócio, d i ríamos . Sem necess idade ne­
nhuma de ganhar a vida, depressa se fartou de
purgar ou anal isar secreções de comerc i antes .
E l e próprio vomitara a c l i ente l a - para não
usar uma pa l avra ma i s d u ra que tantas vezes
andava na · sua boca - e com generosidade se
ati rou a uma cu ltu ra de · versos a ma i s i n­
tens iva (4) .
Nessa ocas ião acred itei que Damascàne
não era i nd i g no de todo a fe ri r a l i ra e , se
tenho fiel memória, foram do mesmo j u ízo-
a l gumas autoridades na matér i a .
Sabe Deus q u a l seria hoje a minha opi n ião!
Infe l i zmente , a vida é múito cu rta e de i ncerta
d u ração para eu me atrever a gastar o pre­
cioso tec ido da existência a procurar, debaixo
de uma poe i ra d e vi nte e ci nco anos, as duas
ou três recolhas que deixou publi cadas .

( 2 ) Tra nsparente a l usão a Sllr Pela dan, que infl uen­


ciou d'Aurev i l ly no final da sua vi d a . ( N . do T. )
( ' ) No seu Diário, B l oy afirma q u e o modelo de ·Da­
mascene Chabro l foi o poeta Eugàne V i l l e m i n . ( N. do T. )
( 4 ) De nota r que a pa lavra vers (versos) é, em fran­
cês, exemplarmente homónima da . que si gnifica vermes.
(N. do T. )

46
Vou porém acrescentar que nenhum poema
dos que a sua mão escreveu (ad miti ndo g é n i o
neste fa l e c i do) poderia igualar o i negu a l ável
poema da no ite que passei com ele em sua
casa, na Rua de Fleurus , quatro d i as antes da
ho rríve l morte que teve , noite que não foi ,
não senhor - e n este ponto peço m e acred i­
tem sem quaisquer reservas - no ite de amor.

Três paixões bravias habitavam Damascàne


- as pequenas m u l heres, os g randes versos
e o desejo de g l ória - todas com i negáveis
ca racte res de paroxi smo para eu entender
como subs istiam em conjunto , sobretudo a
pri m e i ra com as ú lti mas .
Este homem, que fazi a l embrar um patri a rca
possesso , ' era de u m arrebatamento bem fú­
nebre p e l as rod i l has e badal hocas que o
fa l e c i do Sainte-Beuve adorava sem tod av i a
ter, a verdade se d i g a , aqu e l e ar patri arcal .
U m benefíc i o que l he trouxe o Segundo I m­
pério foi ter pod ido amortecer, sem escândalos
aborrec idos , a violência das suas fantas i as
súbitas nos b a l d i os c i rcunvizi nhos ou entre
as sebes do Jard i m do Luxemburgo.
No i n t erva l o das crises, à espera que o bode
vo l tasse a crescer dentro dele, ati rava-se à
cóp i a e prec i p i tava-se no remo i n ho dos so­
p ros i nspi radores como u m petre l em p l eno
furacão .
E ra u m a b a l b ú rd i a de visões, semivisões ,
re l â m pagos secos . ecl i pses tota i s , b l asfé m i as
gest i c u ladas contra a i rresponsável abóbada
do fi rmamento , i nvocações fam i l i armente co­
c h ichadas ao ouvido de todos os demón ios ,
até .chegar o momento de rebol a r no tapete
a ranger os dentes , torcido de convu lsões
epi l é pticas.

47
Era d ifíc i l entrar-lhe em cas a . Parecia recear
que a l g uma coisa subti l , i nfi nitamente rara
e preciosa, fug i sse pela porta aberta , des­
cesse a escada, passasse à frente do portei ro
taciturno e fosse profanar-se no me io da ver­
gonha enorme dos cães rafe i ros . . .
A quem batesse não abri a , ou abria a medo,
mantendo a porta afastada só um mi l ímetro
da ombre i ra , com a mão l ivre a desenhar ges­
tos largos e s i l enciários como se na casa
houvesse um qualquer agon izante sub l i me
cujo derradei ro susp i ro não pudesse o equ i l í­
brio dos u n iversos d ispensar.
Se a vis ita tentava prossegu i r , apesar do
b i zarro aco l h i mento , não ficasse assustada
com os o l hos em chama dequele sol itário,
a i nda ass i m não conseg u i a entrar por falta de
rapidez e a porta bater numa rajada, como a
ratoei ra em c i m a do musaranho. M u ito rara
era uma temeridade destas , porém. Posso
afi ançar-vos que bem poucos se atreveram a
tanto.
Nestas ocasiões raras, o temíve l Damas­
càne esfregava as mãos m e i o curvado, com
os dedos para baixo e as palmas j u nto do
queixo, exprimindo à pressa u ma a l egria de
can ibal autênti co.
Du rante uma hora as recri minações · reben­
tavam em fanfarra . Damascàne transformava­
-se numa torrente de l amú rias que ao princípio
não passava de ribombo surdo mas i a subi ndo
com o rumor que chegava das montanhas
azu i s , no horizonte, e depo i s se transformava
em rug ido rouco mai s e ma is c laro , expandido
como se fora uma toa l h a i mensa, por fim em
estrondo forte que ele para a l i traz i a , de arras­
ta mentos , a l u i mentos , confusão de todos os
c l amores .
Tinha o coração a abarrota r daqu i l o ! Ao que
suponho, só a morte i mped i ri a que e l e voei-

48
ferass e de manhã à noite e até durante o sono
contra ed itores , jorna i s , a · Academ i a , sócios
da Coméd i a Francesa, de u m modo geral con­
tra a corja humana que te i mava em não saber
recompensá-l o .

E ta lvez tivesse razão . Repito que nada s e i


n e m quero s a b e r a tal respei to . Embri agado
já ando com as m i nhas próprias i n d i gnações ,
para ter de e m bebedar-me com as dos outros .
Vou . chegar, portanto , ao poema daq u e l a
noite, fa mosa entre todas e que n ã o foi d e
amor.
Excepci o n a l mente , Damascàne Chabrol con­
vidou-me por ca rta a ir a sua casa. Não para
j antar, o q u e até seria saudável e por isso
arq u i bana l , mas ouvi r ler u m dos seus dramas,
o que pareci a peri goso e me assustou m u ito .
Bem mais com i natória do que frate rnal , a
carta não pôde i l ud i r-me quanto à gravi dade
do caso . Exi g i a pontual i dade absol uta , que
ass i m devia ser em nome da justi ça .
Não m e i rritou , poré m , a modal i dade do con­
vite . Vivamente espicaçado, estabel eci u m
acordo ráp i d o entre aque l a justiça e o q u e e u
queri a . Fu i pontu a l . Vede agora o q u e sucede u .
Ao pri m e i ro toq ue a porta abri u-se e fu i
i ntroduzido pelo ritual que aci ma refi ro , em­
bora eu encontrasse Damascàne mais c a l m o
do q u e t e r i a ousado esperar. D i re i m e s m o que
estava tão prod i g i osamente calmo como o
operador ou o carrasco pronto a fu ncionar,
analogia cujo rigor nem de longe eu suspei-
tava . . .

Já tinha dois grogues preparados e, escan­


carado à frente de u ma das duas cad e i ras da
mesa, o tem ív e l manuscrito .
Por sorte estava bom tempo. Com m uito frio
ou calor, com certeza eu teria morrido naqu�Ja

49
noite. Damascêne tomara precauções tão evi­
dentes que perceb i l ogo como seria i n úti l qual­
quer tentativa de i nterrupção da mi n h a parte ,
cu rta e legítima fosse.
- A Filha de Jefte! Drama b íb l i co em c i nco
actos - com eçou e l e , fitando-me com o l ha r
i m p l acáve l .
A o p r i n c íp i o o exercício não me desagrado u .
O l e itor tinha u m a voz Q i zarra de gastrá l g i co
que s u b i a sem esforço, dos baixos profu ndos
às notas i nfantis mais agudas . Falava o seu
d rama, na verdade representava-o , m u l ti p l i­
cando gestos até se ajoe l har numa prece qu an­
do a situação o exi g i a , cu rioso espectácu l o
que fo i capaz de diverti r-me u m a hora , isto é ,
enquanto durou o primei ro acto ; porque o
monstro l evava a sua consciência ao ponto
de repeti r várias vezes as cenas cuja beleza
receasse não ter transm itido i ntei ra , jamais
tranqu i l izado pelos meus protestos admi ra­
tivos .
No segundo acto , poré m , já a m í m i ca per"
dera o encanto do i mprevi sto e comecei rea l ­
me nte a ouvi-lo.
Era l amentáve l . I magi ne-se uma bana l i dade
das mais poei rentas , estafadas, porcal honas
e féti das . Um amál gama assustador de Ra­
c i n e , da boa criatura que é esse Gagne [5), de
Désaug i e rs . Estou a lembrar-me de u m d i s­
cu rso sem f i m que o seu i mposs ível J u i z fazi a
sobre ag ricultura e econom i a soci a l . . .
No f i m do tercei ro acto fing i-me a braços
com uma necess idade súb ita d a espécie ma i s
v u l g a r , m i nha esperança de poder c h e g a r à
porta da escada , mas o homem nocivo foi
atrás de m i m .. .

(5) Poeta e a dvoga d o meio l ouco, contemporâneo


d e B l oy. (N. do T.)

50
Tive de engo l i r tudo até à me ia-noite , sacri­
fício quase tão g rande como o da fi l h a do
Libertador de Is rae l .

Por fim , l ançado j á para o meu chapéu , que


su rpresa não tive ouvi ndo a· Damascàne pa l a­
vras que pareciam ti radas do Apoca l i pse:
- O h ! Não tenha pressa, que ainda não le­
mos nada . Não vou largá-lo antes de me ter
ouvido os sonetos.
Pe l a entoação, um ignorante da l íngua fran­
cesa teria j u l gado que me . oferec iam uma
chávena de chocol ate, embora e l e me anun­
c i asse mil e quinhentos sonetos, mais de
vi nte mi l ve rsos ! E l onge de estar enfraquecida
pelo esfo rço precedente, a sua voz era agora
ma i s c l a ra , fresca , mel hor domi nada, ao que
parec i a capaz de trombonar até à queda , in­
fe l izmente tão adiada, do céu .
Que fazer ? Fi cara bem demonstrado que eu
só poderia sai r por c i ma do cadáver daque l e
enra ivecido, e nessa a ltu ra eu a i nda não t i n h a
adqu i rido o ven i a l costume de merg u l har a s
mãos no sangue !
Voltei a sentar-me e abafei um estertor de
desespero .
Como eu dormi sse profundamente ci nco mi­
nutos mai s tarde, agitou aos meus ouvidos o
mu ito vivo carri l hão de um badalo a l pestre .
-· Ah ! Ah ! Com que então a dormi r ? - dizia
o meu carrasco .
- Santo Deus ! - excl amei . - Durmo , mas
não d u rmo . . . co·n fesso que s i nto algum can­
saço .
- Ah sente ? Estou farto de saber o que
isso é .
Abri ndo uma gaveta ti rou u m revólver, de
·
anorma i s d i mensões ao que me pareceu , car­
regou-o com todo o cui dado e pousou-o na

51
mesa . Sem l argar a coronha, com a mão es­
querda a segurar o manuscrito , acrescentou :
- Vou conti nuar ! . . .
O sup l íc i o durou até ao sol nascer, altu ra em
que o poeta se pôs de pé num movi mento
brusco, fechou a sanfona e declarou que i a
apanhar o combo i o .
- Vou v e r o papá - exp l i cou .

Horas m a i s tarde, em Orl eães, Damascêne


esbofeteava o pai de setenta e ci nco anos · e
deitava-se a u m poço . R eti raram-no da água,
do i do furioso, para ser fechado na enxovi a
o n d e morreu n o d i a segu i nte, presa de g rande
frenes i .
A m i nha su rpresa foi extrema quando m e
soube herdei ro de u m a parte considerável d a
s u a fortuna. G raças a o d i n h e i ro d e l e é que
a l i ás me d iverti tanto dos vi nte e ci nco aos
tri nta , como todos sabe m .

52
A FAVA

Entusiasmados, um bonito rapaz e uma


bonita rapariga casaram-se. Depois da ce­
rimónia, enfim sósl, sentados em confor­
táveis cadeiras li frente um dO outro,
ficaram a olhar-se, calados, e morreram
de pavor.
(Compêndio de História Contemporânea)

O senhor Tertu l l ien acabava de apanhar os


c i nquenta , essa doença , com os cabelos a i nda
pi ntados de u m belo . negro, os negócios a
correrem às m i l maravi l has , d i a a d i a mais
cons i d e rado , ·quando teve a pouca sorte de
perder a m u l her.
Foi u m golpe terrível . Só uma g rande perver­
s i dade saberia imaginar companhe i ra mais
pe rfe ita .
T i n h a menos vi nte anos d o q u e e l e , o rosto
mais apetitoso que i magi l1ar se pode e u m
feitio tão d e l i c i oso q u e ri ã o perd i a nenhuma
ocas i ão de seduzi r.
O magnân i mo Tertu l l ien casara sem namoro
como a maior parte dos .comerciantes a quem
o cel i bato i ncomoda e · não têm vagar para
seduzi r v i rgens d ifíceis . .
·
Casara • entre dois . que ijos » , d •zia e l e com
jovia l i dade, pois era comerci ante · de queijos
por grosso e cometera o acto sério no i nter­
va l o de uma entrega memoráve l de chester
e de uma remessa excepcional de parmesão .
O consórc i o não foi fecundo, tenho o des­
gosto d e d i zê-l o , c i rcunstância que ve io l ançar
uma sombra no gracioso quadro. ·

53
De quem a c u l p a ? Questão g rave e pendente
no meio dos frutei ras e dos merceei ros do
G ros-Ca i l lou . U ma carn i c e i ra h íspida, que o
belo Tertu l l i en desdenhara , acusava-o aberta­
mente de i mpotência sem dar ouvidos às
objecções de urria colchoe i ra verrugosa que a
ta l respeito se d i z i a bem docu mentada.
O fa rmacêutico, esse dec l a rava que era
preciso dar tempo ao tempo antes de emitir
uma opi n i ão ; e, desi nteressada do l itíg i o , a
benevolente massa dos portei ros aprovava a
ci rcunspecção deste pensador.
D i z i a m os porte i ros com i mensa autoridade
que Roma e Pavia se não tinham feito num
d i a , bem estava o que bem acabava , o bu rro
devia a l bardar-se à vontade do dono, etc ., etc . ,
e por consequência haveria a pressupor q u e
m a i s d i a menos d i a o acontecimento favorável
fosse capaz de dar o retoque final na pros­
peri dade ofuscante do queije i ro .
Q u e m ta l ouvi sse até j u l garia que fa l avam
do delfi m de França.

A notíc i a da morte s ú bita que ceifava espe­


ranças tão legítimas desencadeou g rande
emoção.
A menos que Tertu l l i en, rapaz tão rico que
saíra do nada, vo ltasse a casar de i med i ato
( h i pótese que a sua dor não nos permitia acei­
tar um só m i n uto) o futu ro da casa não seria
mais do que a passagem da c l i ente l a i nte i ra
para u m sucessor estranho!
Pe rspectiva negra que devia amargurar s i n­
g u l a rmente as penas daque l e marido e n l utado .
O queij e i ro parec i a mesmo a u m passo d e
saltar em p l eno a b ismo de desespero.
Embora eu não saiba a que ponto e l e se
atormentava no sonho de uma descendênci a
queij e i ra , fu i testemunha aud itiva dos seus

54
mugi dos dolorosos , das notificações extraj u­
d i c i a i s que a si mesmo fez para acompanhar
na morte a sua C l émenti ne, com moratórias
muito próxi mas que, de resto, não fixava .
Do tempo em que estudei a · fundo este ho­
mem s i m pático com quem estive , dez anos ,
de rel ações comerc i a i s atadas , pude confi rmar
um traço do seu carácter, admi rável mas pouco
d ivul gado.
Tertu l l i en sentia u m medo atroz de ser
cornuda . C h i fres todos os seus antepassados
tinham tido, desde há duzentos ou trezentos
anos , e a ternura que sentia pela m u l her era
principal mente a l i mentada na certeza i nque­
brantáve l da i nteg ri dade da testa .
O seu reconhecimento por este facto che­
gava a ter algo de ridículo e tocante . E depois
de reflectir mu ito acabet por achá-l o quase
trág ico e pergu ntar a m i m mesmo, espantado,
se a esteri l i dade escandalosa de C l é menti ne
não se expl icaria com certas e bem estranhas
dúvidas que Tertu l l i en pudesse ter a respeito
da sua própria identidade, pelo sub l i me receio
de pôr cornos a s i próprio - fecundando-a .

Era tudo isto mu ito belo e acima dos que ijos


maroiJ es , bondons ou l ivarots , mas a banal
coisa que i nfa l ivel mente tinha de acontecer,
aconteceu .
Quando C l é menti ne devo l veu a a l m a ao
Criador, o i nfe l i z vi úvo começou por gem i dos
i mpetuosos , soluços que a natu reza aconse l ha
mas , l iqu i dado este primeiro tri buto - para
usar a expressão de que ele tanto gostava ­
e já a ntes dos garantidos empu rrões das exé­
q u i as que o crispavam com anteced�ncia, p re­
tendeu d e ixar em ordem as rel íqu ias da ado·
rada .

55
Ora a í mesmo é que a sorte mad rasta o es­
perava e e l e ficou perante o l ábaro i rrisório
dos Tertu l l iens.
N a gaveta de u m móvel ínti mo, e m i steri osa
ao ponto do mais sombrio marido ser i ncapaz
de loca l i zá-l a , Tertu l l i en descobriu um maço
de cartas tão vol u moso como variado, capaz
de imped i r , u m segundo, que e l e mantivesse
o pé .
Ami gos e conheci dos todos tinham a l i pas­
sado . Eu era a ú n i ca excepção , o que não en­
tra ra no grupo que a sua m u l her amara .
Até o s empregados da casa - chegou a en­
contrar a l g u mas ca rtas escritas por e l es em
pape l cor�de-rosa - tinham . sido s i m u lt�;�nea­
mente g ratifi cados .
Tertu l l i t:m ficou com a certeza defi n itiva de
ter sido noite e dia enganado pel a defunta ,
fizesse que tempo fizesse , em todos os lados.
N a cama, na cave , no sótão, na l oja e até nas
ba rbas do queijo g ruyàre, ao re lento dos ro­
q uefort e dos camembert.
Será i núti l acrescentar que esta correspon­
dência suja poupava-o m u ito pouco. Da pri­
m e i ra à ú ltima l i nha estava-se i ncansave l m ente
nas ti ntas para e l e .
Determ i nado funcionário dos te l é g rafos,
cuja finu ra de espírito era famosa , chegava
numa carta a troÇ ar d e l e da m a i s desag radável
mane i ra , com a l usões ou conselhos i m possí­
ve is de publ icar aqu i .
E , para cu l m i nar, uma coisa . i naudita, exor­
b i tante , fabu l osa , de fazer perder � tino à
constel ação do Capricórn i o :
Àquel e mortificante processo anexava-se
uma i nterm i nável série de pauzi nhos que o
espantaram e cuja presença parecia ao princí­
pio i nexp.l icável . R ecorrendo, poré m , a uma
sagacidade d igna do subti l apache debruçado
sobre u m rasto de guerra , logrou Tertu l l ie n

56
i nundar-se de uma clari dade viva ao perceber
que o n ú mero daqueles objectos era precisa­
mente igual ao dos adoradores que a sua
infi e l encorajara, e todos tinham enta l hes de
can ivete, uma multi dão d e borbul has idênticas
às que o pad e i ro faz na banca para marcar a
conta dos c l i ente s .
P e l o s vistos C l émenti ne e r a pessoa da m a i o r
ordem , preocupada c o m as s u a s contas !
Embor� esmagado de h u m i l hação, o marido
expri m i u o bem natural desejo de ficar a sós
com a morta e esteve fechado com ela d uas
ou três horas a fio, como um homem que pre­
tende chora r à vontade a sua afl i ção.

Semanas mais tarde , no dia dos R e i s , Ter­


tu l l i en oferecia um jantar sumptuoso.
Esco l h i dos a dedo, vi nte convivas do sexo
mascu l i n o privavam ao redor da mesa posta
numa atmosfera de magn ificência sem par.
Requi ntada, cara, abu ndante, i n esperada . . Tal
qual o festi m d e u m príncipe opu l e nto nas
vésperas de abd i car.
Convidados h(>Uve , poré m , que reag i ra m m a l
a o cenário fúnebre . Agora tão sotu rna, a i ma­
g i nação do queij e i ro por certo fora desen­
terrá-lo nas recordações de u m melodrama.
As paredes , o próprio tecto , t i n ham s i do
forrados de negro . A toa l h a era , negra , d a
i l u m i nação encarregavam-se candelabros ne­
gros com ve l as também neg ras . Era tudo ne­
gro .
O fu ncionário dos tel ég rafos q u i s reti rar-s e ,
perturbado ao máximo, m a s u m jovial criador
de porcos reteve-o declarando que era pre c i so
« estar à a ltu ra • e pela parte que l h e tocava
achava aqu i l o mu ito • piadético • .
I ndecisos por u m momento o s restantes ,
acabara m em fazer troça d a morte . Com as

57
garrafas sempre a c i rcular, pouco depois já
a refei ção se transformara- numa autêntica
gargal hada e n a altu ra do champanhe era mais
do que certo o tri unfo dos trocad i l hos . Os pa­
lavrões começavam a rebentar quando um
g i gantesco bolo foi trazido à cena.
- Meus senhores - d isse Tertu l l i e n , de
pé - vamos esvaziar os copos à memória da
nossa querida morta . Vós todos pudestes co­
n hecê-l a , aprec iar-lhe os senti mentos . Decerto
não podere i s esquecer o seu coração amável
e terno. Por i sso eu peço que vos deixe i s pe­
ne.t rar - de um modo bem especial - pela
sua recordação, antes de encetado este bolo­
-rei que ela te ria gostado tanto de parti l har
convosco .
Como não fu i amante da queij e i ra (porque
a não conhec i viva , ta lvez) estive ausente do
jantar e n u nca soube a quem cal hou na sorte
a rea l fava .
Sei , s i m , que a Justiça i n comodou o d i abó­
l i co Tertu l l ien por e l e ter i nserido um coração
no� enormes flancos daquela g u l oseima re­
cheada , o coraçãoz i n ho já apodrec ido da de­
l ic iosa C l émenti ne.

58
ISTO AINDA PEGA FOGO

Naquela noite estávamos em casa de H e n ry


de G roux, o pi ntor dos hom i cidas ( 1 ) , cerca
de uma d ezena de ; candi datos à · etern idade.
Tín hamo-nos esco l h ido cuidadosamente para
entre nós não ficar nenhum destes indivíduos
votados às academ ias, que podem sati sfazer-se
com a risível imorta l idade.
Fora estabelecido nos nossos concel hos ,
e de forma sól ida, que nunca chegaríamos a
admiti r começo ou fim ao que quer que fosse ,
n e m a descer à i magi nação de nos pensarmos
atulhad os de uma qualquer fel i cidade.
Éramos os cónegos do I nfin ito , os protonotá­
rlos do Absol uto, os executores medas d e
toda a opin ião provável e de todo o respeitado
l ugar-co m u m . Ouso afi rmar que o raio caía
entre nós , de tempos a tempos .
Ass i m , naque l a noite, depois de amplas e
fotogé n i cas declarações sobre um sem número

(') Trata-se de u m pintor que provocava escânda l o


c o m a s s u a s obras, n o s fins · d o séc. XIX. Sobre e le,
poderá o l eitor i nforma r-se no capftu l o c O P i ntor lou co»,
Inserido por G i ova nni ·Papi n i em Passad o Remoto, cuja
traduçã o portuguesa ar corre chancelada pela Associa­
çlio Verbo/ RT.P . ( N . do T . )

59
de objectos , sucedeu que u m caçador de l i­
cornes tão opinioso como subti l , cél ebre pelas
suas doutri nas h i rcani anas e pel o seu facies
g l a bro (2) , j u l gou-se obri gado a fal a r :

- Queridos companhei ros , j á reparastes n a


superior facéc i a do . que está convencionado
chamar-se Repressão? Estatísti cas perseve­
ra ntes e jubi l atórias i nformam-nos peri odi ca­
mente sobre o fl uxo e o jusante das transg res­
sões às nossas leis penai s . Dispo mos de catá­
logos s i nópticos que consignam, natural mente
em números árabes , os assassi natos ou as vio­
lações que nos aj udaram a suportar a mono,
ton i a das horas e foram punidos sem i nso­
lência pela mag i stratu ra , de uma determ i n ada
época a outra .
« Suponho que é i núti l contestar o i nteresse
patriótico destes documentos que em geral
fazem tremer, das patoi las à p i n h a , os f i lan­
tropos conscienciosos .
" Também concordare i s , sem por isso ficar­
des pál idos de raiva , que não menos inútil
seria a l g u é m empenhar-se a divulgar o cra­
pul ismo u n iversal das pessoas honestas . Até
os ladrões de estrada e os mais notórios ma­
l andrins haveriam de insurg i r-se contra seme­
l hante rel ato acerca dos ponderadores do equi­
l íbrio soci a l .
« J u l g o , no entanto , q u e vai . agradar.vos a
oferta do poema de uma experiência muito
ban a l em que tive ass inaláve l êxito .
· Passava eu na Rua Sai nt-Honoré , ontem de
manhã , quando vi u m homem respeitável des­
cer a · escada de Sai nt-Roch . Era u m destes
ve l hotes amenos que parecem distri bu i r calor

FI P rovave l mente V i l l iers de l 'lsle-Ada m . ( N . do T. )

60
à sua volta . Só de vê-lo tínhamos a sensação
de estar a comer tutano de vite l a , e as suas
mãos modestas despejavam todas as clemên­
cias d isponíve i s . O passo m i údo dava-lhe u m
aspecto de homenzi n ho de açúcar a desl izar
sobre entranhas de coe l ho. I nterrogava com
ol har afável o céu que era seu amigo, nem se
duvide, camarada da maior i ntim idade. Por
certo, acabava de cumpri r com i ndi scutível
fervor os seus deveres de piedade e d i ri g i a-se
àquelas práticas fraternais que só os m i mos
do céu podem - um pouco tarde, d i ga-se de
passagem - recompensar.
· Do exame concl u í logo que tinha à m i n h a
frente u m a ave rara , e aproxi mei-me.
" M eu caro senhor - d isse · eu numa voz
rápida e surda - tome cuidado , que isto ainda
pega fogo!
« Como sabe m , não é fáci l eu ficar espan­
tado . Poi s bem , meus a m i gos , devo d izer-vos
que o efeito das m i nhas pal avras desconcer­
tou-me durante várias horas , até à i mbec i l i­
dade.
« A personagem fez-se verde, l ançou-me
o l hares doidos e desesperados de negro trin­
cado por u m . crocodi lo , pôs-se a tremer como
uma avenida de choupos e ati rou-se para den­
tro de um carro que desapareceu instantanea­
mente .
• Aq u i está o que tinha para vos dizer. Se
esta experiência for bem feita , estou conven­
cido de que dará, dezanove vezes em vi nte,
um resultado igual . J: só experi mentar. As
consc i ências modernas estão de tal forma
endividadas , que o primeiro audacioso fica
senhor delas desde que surja transformado em
trovão e c i rcu l e , como se fosse uma Górgon a ,
entre as mu ltidões respeitáve i s . •
- Com m i l diabos ! - exclamou o ton itroan­
te Rodolosse . - J: curioso ouvi-lo fal a r dessa

61
mane i ra . Vou l e r-vos uma carta confidencial
q u e há vários dias trago comigo. Não sou
nenhum padre, para guardar segredo das con­
fi ssões , e · a l iás não vou d i zer-vos quem foi
que a ass i no u . As confidências ao autor con­
fi rmam e aj uramentam de ta l modo o �ng ra­
çado paradoxo que acabámos de ouvi r l Não
tenho forças para fu rtar-vos a u m testemunho
tão concl udente .
« A ca rta que aqu i vêem - conti nuou e l e ,
exi b i ndo u m a fol h a de papel - é de u m arti sta
mu ito conhecido e perfeitamente respeitável .
Perfeita e absol utamente res-pei-tá-ve l , estão
a perceber?
" M eu caro senhor: há d i as tive a honra de
ver que notou em mim uma certa tri steza
i m possível de d i s s i par e cuja causa l h e es­
capava . Como i nsisti u em conhecê- l a , deci do­
-me hoje a satisfazê-lo.
« Trata-se de um terríve l e razoave l m ente pe­
ri goso seg redo que a rrasto com igo há q u i nze
anos . Ao que parece , o senhor viu mais fundo,
em m i m , do que os outros homens. Por isso,
talvez não fique espantado . Ta lvez s i nta , mes­
mo, uma résti a de pi edade por u m ind ivíduo
lamentável que o mundo j u l g a fe l iz mas vive
sempre atormentado por remorsos atrozes .
« Não i m porta . Agora vou entregar-me a s i ,
na esperança de s e r a l ivi ado de u m a parte do
fardo que d i a a dia me fica mais pesado.
Acabamos por ser obrigados a confessar-nos
a a l gu�m . e esco l ho-o para não fi car exposto
à tentação de m e abri r ao primeiro po l ícia
que me aparecer à frente , já que não tenho a
coragem de procu rar u m pad re.
• Não serei l ongo, descanse . . .
• Em 187 . tinha eu vi nte e sete anos e
. .

morria de m i séria. Nessa época n i nguém pod ia


fazer-me pressenti r o meu sucesso futu ro e a
consecutiva prosperidade que é hoje i nvejada,

62
sem dúvida , por alguns pobres-d iabos herdei­
ros da m i n h a angústi a . Eu andava devorado
pe l a mais baixa e odiosa i nveja. Cheio como
estava da beleza da m i nha a l m a , e não duvi­
dando do meu génio, acaso poderia to l erar que
banal íssi m a gente - creti nos defi n itivos e
desprezívei s cancros - tivesse i mpunemente
casas , m u l heres , porcos, batatas, enquanto o
maior arti sta do mundo dorm i a num pavi l hão
coberto por estrel as castas ?
« Porque eu andava sem domicíl io, sem d i ­
nhei ro , às vezes até s e m bol sos , e o meu
estômago de adol escente recri m i nava a lei
dura do apetite mais i nsaci ável .
« Esti m u l ado por um trafi cante de carne hu­
mana, comecei a fazer a corretagem dos s�­
g u ros da vida a l heia e, sem conseg u i r desen­
cantar a mais pequena apól ice, i a morrendo
l itera l mente de fome, no campo, e esforçava­
-me por a l cançar Paris com os meus pés l igei­
ros . . . ..

- Meus amigos - d isse o l eitor - neste


ponto , os pormenores e as ci rcunstâncias do
l ugar fazem-se tão precisas, que sou forçado
a salta r mu itas l i nhas . De qualquer modo , já
devem estar todos eluci dados sobre a postura
de a l m a do meu correspondente . Chego, por­
tanto, ao dese n l ace .
« . . . Estava-s·e em Agosto e, durante todo o
d i a , o calor tinha s ido insuportável . Extenuado,
incapaz de andar debaixo daquel e sol feroz,
dorm i ou tentei dorm i r na berma da estrada ,
abrigado por uma i mensa meda de pa l h a , a
última de u m a longa fila que começava no
cel e i ro de uma q u i nta onde me acabavam , b ru­
tal mente , de recusar hospita l i dade.
« Quando acordei já era noite fechada. Uma
del i ciosa noite sem lua. Pareceu-me fác i l ven-

63
cer as quatro ou c i nco léguas que ai nda me
separavam de Paris , mas sentia tanta fome
que não perd i a ocas i ão e chore i .
" Como procurasse maq u i n a l mente nos far­
rapos u m resto de pão, ou de qualquer outra
coisa, dei com um objecto que me parecia uma
ve l ha côdea . Corado de fel i c i dade, l evei-a à
boca .
« Era , poré m , uma caixa de fósforos . . .
« C l a ro que não engo l i essa mald ita caixa ,
essa caixa i nfame cuja presença não pude
expl icar mas era envi ada , sem dúvida, pelos
demón ios .
· « Entretanto , qualquer coisa desceu por m i m
abaixo , qualquer coisa melhor do q u e saciar
os i ntestinos. Satu rei-me , embriaguei-me, . re·
fresquei-me com o d e l e itáve l vinho do ódio
e da vi ngança . Reparei q ue uma brisa l eve
soprava , fug i da dos l ados da q u i nta .
« M eia hora mais tard e , já estava tudo a
·

arder. A casa i nóspita transformara-se num


monte de c i nzas e , ao que me d i ssera m , dentro
dela ficou calci nada uma ve l h a para l ítica . . .

A Justiça, essa n unca çhegou a · encontrar


·

o c u l pado . . . »
la neste ponto o nosso a m i go Rodol osse
quando um escu ltor, cuj.a barba sedosa eu
contemplava , fechou rap idamente o i nterruptor
do candeei ro que nos dava l uz . . .
Pudemos então ouv i r vários homens que
sol uçava m , nas trevas.

64
A BELIDA DO DINHEIRO

- Compaixão para este pobre c l arividente !


H i stó ria das mais vu lgares . Por desg raça a
clarividência ati ngi ra�o como resultado de
uma' catástrofe onde mu ita gente honesta
sucu m b i ra .
A o q u e ju lgo, um descarri lamento de ca­
m i n ho de ferro , a menos que tenha s ido u m
naufrág i o , u m i ncênd io ou um tremor de terra .
Nu nca ficou bem esclarecido. E l e não ti nha o
háb ito de fa lar disto e por norma, quaisquer
que fossem as precauções ou del i cadezas que
tivéssemos , furtava-se à i nsu ltante curiosi dade
das pessoas caridosas.
H e i-de lembra r-me sempre do ar decorativo
de ped i nte que exi bia deba ixo do pórtico basi­
l icar de Santo I s i doro o Traba l hador, onde
ped i a esmo l a . Porque o homem estava tota l­
mente a rru i nado.
Era i m possível res isti rmos à · corrioção res­
peitosa que uma desgraça tão rara , tão nobre­
mente s uportada , provocava . Sentíamos que
esta personagem conhecera outrora, e m e l hor.
do que m u itas outras, as a l egrias preciosas
da ceg u e i ra ; tinha uma educação bri l hante ,
educação que afi nara, com certeza , a fac u ldade

65
i n estimável de nada ver, privi légio de todos
os homen s , quase sem excepção, e critério
decisivo da sua superioridade em rel ação aos
b rutos .
Com emoção adivinhávamos que antes do
acidente seria um destes cegos notávei s cha­
mados a ornamento da pátr i a , e dessa época
restava-lhe a melanco l i a de um príncipe das
trevas exi l ado na l uz.
Poré m , as oferendas não choviam no chapéu
ve l h o estendido a quem passava . Ati n g i do por
uma doença tão extraord i nári a , aquele mend i go
desconcertava a mun ificência dos devotos e
das devotas, fazi a-os apressar o passo mal
o viam no porta l do santuário.
Por i nsti nto desconfi avam de u m necessitado
que via o sol ao meio-d i a , co isa que só um
crime excepcional pod i a expl icar, um qual quer
sacri légio sem nome que ele ass i m expi ava.
Os transeuntes apontavam-no de longe à p ro­
gen itura , como testemunho vivo das tem íveis
sentenças de Deus .
Chegavam a recear o contág io e , por causa
d i sso, o cura da paróquia estivera a ponto de
expu lsá-l o . Por sorte , um g rupo de hon rosos
sábios cuja competência não pod i a ser posta
em causa declarara, o mais peremptoriamente
poss íve l mas não sem acri món i a , que « aqui lo
não se pegava " .

Subs istia p arca mente d e esmolas e do fruto


magro de trabal hos frívol os em que era exímio.
Por exemplo, n i nguém pod ia batê-lo a en­
fiar agul has . Até contas enfi ava , a uma velo­
cidade espantosa.
Eu próprio várias vezes recorri aos seus
présti mos para ele me decifrar obras de um

66
psicólogo famoso a quem deu para escrever
com· p i ncéis de um só cabe lo ( 1 ) .
Ass i m n o s conhecemos e se estreitou a
i nt i m i dade deplorável que u m d i a viria a
sai r-me tão cara.
Deus me l ivre de ser duro para com um
pobre monstro enterrado há tanto tempo, i n ­
fel izmente, m a s aval i e-se como a i nfluência
de uma pessoa que me ensi nou o seg redo
- há tantos séc u l os esquecido - de d i sti n g u i r
o l eão do porco , o H i ma l a i a de um monte d e
esterco, fo i nefasta à m i n h a i magi nação jove m !
C i ência perigosa, q u e é , quase logrou per­
der-me e por pouco me não l evou a parti l h a r
do desti no do m e u preceptor. Eu quase deixara
de tactear, uma pal avra que diz tudo .
G raças ao céu , poré m , a boa estrel a salvou­
-me do abismo! Aos poucos conseg u i afastar-
-me deste ascendente funesto, romper em
defi n itivo o encanto e fazer boa figura entre
as toupei ras e os ceguetas que jogam a cabra­
-cega da vida.
Fu i a tempo, fu i mesmo a tempo. Para m e
operar def i n itivamente da l uz vi-me forçado
a pagar à dextrici dade famosa de um ocu l i sta
de C h i cago com uma parte con s i derável das
m i nhas rendas.

Entretanto , deu-m e para saber que desti no


tivera esse terrível mendigo. Aqu i o têm :
Durante a l g u ns anos ma nteve-se n a ped incha
como c l a rividente, à porta da catedra l . Dizem-.
-me que a doença foi p iorando com a idade.
Quanto mais envel hecia mais claro via, e as
es molas di m i n u íam em proporção .
As vezes , os vigários davam-l he uns tos­
tões para calar a consci ência. E estrangei ros ,

( 1 ) Segundo Jacques Petit · ( u m cespecia l"ista» em


L B loy) trata-se, uma vez mais, de ·Paul ·Bourget. ( N .
do T. )

67
que i gnoravam aqu i lo, ou então seres do mais
baixo povo que mu ito provavel mente possuíam
o mesmo pri ncípio da cl arividência, quando
cal hava l á o socorria m .
O cego da outra porta , homem justo e des­
g raçado que faz ia belas receitas , nos d i as de
g rande carri l hão g ratificava-o com uma ofe­
renda modesta .
Somava tudo muito pouco e a repu l s a que
e l e i nspi rava , maior dia a dia, l evava a crer
que em breve morresse.
Parecia mesmo que ti nha fe ito uma j u ra . Exi­
bia a sua enferm i dade com c i n ismo, tal qual
os estropi ados , os pape i rosos , os u l cerosos,
os manetas ou os raq u íti cos nas festas devo­
tas da provín c i a . Punha-a debaixo do nosso
nariz e forçava-nos , por ass i m dizer, a res�
p i rá-l a .
O nojo e a i n d i g nação públ i cos ati ngiam o
máximo e estava por u m fio a situação do
maland ri m quando sucedeu uma coisa tão
prod i g i osa como i nesperada.
O c l arividente teve uma herança d e u m
sobri n ho-neto da América que se fizera i nso­
lentemente rico a fa lsificar guanos e fora de­
vorado pelos can i b a i s da Araucân i a . . .
O ex-mend i g o não l he recl a mou os restos
mas aproveitou o facto para se meter na
pândeg a . Aq uela i nverosími l e quase mons­
truosa · l u c i dez, que o fizera célebre e ao que
parec i a estivera a u m passo de s e transformar
em galopante, como a tísica que a pouca-ver­
gonha prec i p ita , começou a evo l u i r ao con­
trário.
M eses depois a cura fora rad ical - sem ope­
ração . O ex-mend i go perdera toda a clarivi­
dência e chegou a ficar surdo de todo. Vive
agora para encher a pança . Com a bel ida do
d i n h e i ro conseg u i u l i bertar-se , enfi m , do mun­
do exterior.

éB
A TISANA

Jacques v i u que estava a ser s i mpfesmente


re l es . Que od ioso ficar ass i m no escu ro, como
u m espião sacrílego , enquanto aquela m u l h e r
desconhecida acabava a confi ssão .
M a l o padre com sobrepe l i z e a devota ti­
n ham aparec i d o , ele devia te r saído logo, ou
pe l o menos ter feito baru l ho para ficarem
avisados de que estava perto u m estranho .
Agora já era tarde e a sua i n d i scrição, · tre­
menda, não fazi a mais do que ag ravar-s e .
Ocioso, à procu ra de fresco como uma l a­
garta , naque l e fim de d i a can ic u l a r , J acques
tivera a fantas i a pouco habitu a l entre as suas
fantas ias de entrar numa ve l h a i g reja e sen­
tar-se num reca nto som brio atrás do confes­
s i onário para dar · l a rgas a devaneios, enquanto
via apagar-se a grande rosácea.
Sem saber como nem porquê, m i nutos pas­
sados e ra testemunha m u ito i nvo l u ntária d e
u m a confi.s são .
A verdade se d i g a , chegavam-lhe pouco n í­
tidas as pa l avras . Bem vi stas as coi sas só u m
sussu rro ouvia mas , para o f i m , o colóqu i o
pareceu g a n h a r mais a n i mação.
Uma aq u i , outra a l i , as síl abas destacavam­
-se , emergiam do rio opaco daqu e l a tagare l i ce

69
pen itencial e o rapaz, por m i l ag re o contrár,i o
de um p u l h a , receou i menso su rpreender con­
fidências q u e l he não eram evidentemente
desti nadas .
Previ são que se rea l izou , de repente. Pare­
ceu-l he que um violento remoi n ho se formava ,
ondas i móve is ri bombavam e se d i v i d i a m a
revelar u m monstro . Esmagado de susto , o
aud itor ouvi u pa l avras d i tas n u m tom de i m­
pac i ê n c i a :
- Estou a dizer-lhe, meu padre, que deitei
·

veneno na tisana dele!


Depois· mais nada. A m u l her de rosto i nvi·
s ível levantou-se do genuflexório e desapare­
ceu em s i l êncio no matagal de trevas.
Quanto ao padre , não se mexia mais do que
u m morto e os m i n utos escoaram-se, l entos ,
antes de e l e abrir a porta e sa i r com o passo
pesado do homem submerso em perpl exi da­
des .
Para dec i d i r Jacques a l evantar-se foram
precisas a pers i stente s i n eta das chaves do
sacri stão e a o rdem de saída extensamente
bramada ao longo da nave . Estava atordoado
com pa l avras que a i nda reti n i a m dentro d e l e ,
n u m g rande clamor. ·

Reconh ecera a voz . Era a da sua · mãe !


Não pod i a haver engano a tal respeito. Che­
gara a reconhecer-l he o andar quando o seu
vulto de m u l her, m u ito d i reito , passou a dois
passos del e .
Mas não, que d i sparate , q u e m a l uquei ra , só
se fosse uma p i ada monstruosa !
Jacques vivia soz i nho com a mãe que não
tinha re l ações , quase, e apenas saía de casa
para ir à i g reja . Habitua ra-se a venerá- l a com
toda a sua a l m a , como exemplo ú n i co de rec­
tidão e bondade .

70
Tão l onge quanto pod ia ver no passado dela,
nem u m só acto o b l íquo ou turvo, nenhuma
ruga, nenhum esconderij o . U ma bela estrada
branca a perder de vista , debaixo de um céu
claro. Porque a exi stência da pobre m u l her
fora exemplar e melancó l i ca .
Depois do marido, pessoa de q u e m o rapaz
mal se l embrava, ter morrido em Champigny ,
nu nca deixa ra o l uto e ocupara-se exclus iva­
mente da educação do fi l h o , que nem um só
dia abandonava . Com receio de contactos ,
nu nca se di spusera a mandá-lo à escola e en­
carrega ra-se de i nstru í-lo, constru i ndo- l h e a
a l ma com pedaços da sua . De um reg i m e des­
tes tinha Jacques herdado uma sensi b i l i dade
I n q u i eta e nervos de uma vibração rara que o
expu nham a dores ridícu las - ou mesmo a
verdadei ros perigos .
Entrado na adol escência , as previsíve i s ram­
bó i as que e l a não pôde evitar fizeram-na u m
pouco m a i s tri ste mas não l h e modificaram a
ternura. Não houve recri m i nações nem cenas
feitas e m s i l êncio. Como tantas outras , aque l a
m ã e ace itava o i n evitável .
Toda a gente , enfi m , se l h e referia com res­
peito. Só aquele fi l ho tão querido se esforçava
agora por desprezá-la - desprezá-l a ajoel hado
e de o l hos mol hados como anjos que despre­
zassem Deus por e l e não cumpr i r as promes-
·

sas ! . . .
Na verdade era de pôr qualquer pessoa
doida , fazê-l a dar berros pela rua . A sua mãe
envenenadora ! Que insensata coisa, u m m i l hão
de vezes absurda , i mpossível de todo e ass i m
mesmo certa ! Pois se e l a própria o d i ssera !
Até a rrancava a cabeça se não tinha s ido e l a . . .
Mas envenenar . . . quem ? Santo Deus ! Não
sabia d e homem, ali perto , que tivesse morrido
envenenado . E o seu pai não, que esse apa­
nhara uma dose de metra l ha na barriga. E l e . . .

71
Nunca a sua mãe tenta r i a matá-lo. Além o
m a i s , nunca estivera de cama nem preci sava
)
de tisanas . Como se não soubesse a adoração
que a mãe l h e ti nha . Vi ra-a doente de p reo­
cupação l ogo da pri m e i ra vez que l h e chegara
tarde a casa, por qualquer coisa que ta lvez
não tenha s i do m u i to l i mpa.
E se fosse u m caso anterior ao seu nasci­
mento ? Não. O pai apaixonara-se pela bel eza
d e l a , e casara quando a sua mãe tinha apenas
i
vi nte a nos . H aver i a uma aventu ra dE antes do
casamento que pudesse justifica r · o crime?
Não. Con hecia a l i mpi dez daque l e passado cem
vezes referido. E a testemun há-l o · havia ·gente
da maior confi ança. Que motivo ; afi n a l , para
uma tão horríve l confissão? E por que havia
logo de calhar . . . s i m , por que havia l ogo de
calhar . . . ser ele a ouvi-l a ?
Quando regressou a casa , Jacques parec ia
embriagado de pavor e desespero .

A mãe ve i o dar- l h e u m beij o .


- Tão ta rde , m e u fi l h o ! E como estás pá-
·

l i do? Sentes-te m a l ?
- N ão - respondeu e l e - não estou doen �
te , apenas cansado do ca lor. N e m me àpetece
comer. E a mamã? Não estará por acaso i n­
d i sposta ? N ão s a i u para apan har um pouco de
fresco ? Parece-me que a vi ao l onge, no c a i s .
- De facto s a í , mas n ã o pod ias ver-me n o
cai s . Fui confessar-me , al iás u m a c o i s a q u e
n ã o fazes há mu ito tempo , criatu ra m á !
J acques espantou-se p o r n ã o sufocar, não
ter caído redondo, de costas, como suced i a
n o s bons romances q u e já l era .
Afi nal sempre tinha havido uma confissão !
Era uma abo m i nável catástrofe , de facto , e
não apenas o pesadelo que e l e chegara a su-
por responsáve l por tudo aqu i lo, n u m mo­
mento l ouco .
Não cai u mas empa l i deceu m a i s , ao ponto
de assustar a mãe.
- M e u querido, o que é que tens ? - per­
nu ntou e l a . - Vejo que alguma coisa te faz
sofrer, uma . coisa que escondes à tua mãe.
Devias confi ar numa pessoa qiJe à sua frente
não vê mais n i nguém . . . M as que o l h a r o teu ,
tesouro querido ! . . . O que tens , que até m etes
medo ? . . .
E tomava-o nos braços, apaixonadamente .
- M eu fi l ho , dá-me atenção . . . Não sou ne­
nhuma curiosa, como sabes , e não quero ar­
mar em teu j u i z . Se achas que me não deves
di zer nada , não d i gas, mas ao menos de ixa
que eu trate de tL Deita-te enquanto preparo
uma refe ição l i ge i ra para comeres na cama.
Se dura nte a noite senti res febre , o mel hor
é tomares uma tisana . . .
Desta vez Jacques cai u , rea l mente .
- Até que enfi m ! - suspi rou e l a , estenden­
do a mão mole para a campa i n h a .
É q u e o fi lho tinha u m aneurisma em ú l ti mo
wau e a mãe u m amante sem nenhuma von­
tade d e ser padrasto . Bana l íss i m o d rama con­
sumado há três anos nas vizinhanças de Sai nt­
·Germai n-des-Prês e cujo palco foi uma casa
onde vive , por s i na l , u m empreitei ro de demo­
l i ções. . .(2)

( 2 ) A géne'se d este conto poderá ser bastante curiosa


se atenta rmos em que o «empreiteiro de demoliçõeS»
é , nos textos de B l oy, uma referência a si próprio ( a l iás
uma d a s suas obras cha ma-se Propos d'un Entrepreneur
de Démofitions) e q u e o seu a m igo e pi nto r H enry de
Groux afirmou, mais tarde, ter tido a convicção de que
Léon •B i oy pretendeu , em dada a ltura , envenenar· a sua
f i l ha E li tabeth . (N. do T. )

73
DOIS FANTASMAS

Poucas coi sas têm s ido tão afl itivas como


a ruptu ra daque l a amizade.
Há tri nta i nvernos que M l l e . Cl éopâtre du
Tesson des M i rabel l es de Sai nt-Poth i n-su r-le­
-G i and e miss Pénél ope Elfrida Magpie se ado­
ravam m u ito, ao ponto de chegarem a parecer­
-se u m a com a outra . n
A pri m e i ra pertencia à raça cavalar destes
i nvendáve i s camafeus das l etras , sem perdão,
que nenhum hol ocausto consegue aplacar. Es­
creve ra uma vi ntena de vo l u mes de sociolog i a
ou h istória e , deba ixo d e l a , i g ual número d e
ed itores t i n h a m pateado. N o s c a i s d o Sena não
havia caixas de alfarrabista bastantes para
reco l her os seus tomos que jornai s mori bun­
dos davam aos assi nantes , de bónus, e cujas
capas , encade rnadas sem gosto , se faziam
aptas à recompensa de jovens a l u nos apl i ca­
dos, nas d istribuições de prémios.
F i l ha de u m cori áceo tradutor de Homero,
cuja morte só ela deplorava, e de uma pavo­
rosa senhora defumada pelos sol stícios, com

(1) M I J e Cléopâtre foi insp i rada ao autor pela roman­


cista Gyp e M iss oMagpie por Louise Read, secretária
d e Barbey d 'Au revi l ly. (N. do T. )

75
fama de ter s ido esp i a , esta Corinne dos sar­
cófagos nunca chegou a conso l a r-se de não
ter casado outrora com u m homem célebre
q u e , j u l gava e l a , a i d o l atrara .
Em tempos i dos bonita , ao que d iz i a m vá­
rios pa leógrafo s , res ignara-se a plantar nas
suas próprias ru ínas , tre m u l amente , a árvore
da ' l i berdade fi l osófica.
Sempre vesti d a de negro até à ponta das
unhas, de cabelos armados à n i n ho de cego­
n h a , as raras fatias de s i própria que uma de­
cência toda britâ n i ca l h e perm itia ex i b i r eram
pegajosas pe l o sarro espesso q u e as revestia
e cujos pri m e i ros a l uv i ões remontava m , por
certo , à Revo l u ção de J u l ho .
De rosto lembrava u m a batata frita passada
por queijo ra lado e as suas mãos , para usar
as pa l avras de u m provérbio escandi navo , ti­
nham « desenterrado a b isavó » .
Toda a s u a pessoa, enfi m , chei rava a pata­
mar de sexto piso de um hote l de v i g és i ma
c l asse, o que não i mped i a de ser m u ito admi­
ra da por u m g rupo de i n g l esas jovens e de
i ndependência assegu rada por cri ações de
gado ou pe l o tráfi co i nternacional dos precio­
sos negros que só na ve l h ice branquei a m .
Chegadas dos loca i s m a i s d i versos do R e i no
U n i d o , estas jovens apareciam em casa de
M l l e . Tesson para aprender l iteratura e os
modos d isti ntíssi mos do grande sécu l o , dos
q u a i s seria a ú ltima e mais i l ustre professora ,
Contasse embora M l l e . Tesson que as suas
d i scípu las g raciosas fossem mais a m i gas do
que a l unas. Ta lvez por experiência própri a ,
j u l g à va o coração das raparigas u m a b i s m o d e
i nfâm i as e d e crimes, encorajava-as a ter con­
fi ança n e l a , atenazava-as com questões bizar­
ras , ped i dos sugestivos e corruptores , fazen­
do-se construtora das suas a l ma s .

76
Em troca destas confissões que a desseden­
tavam oferecia-l hes protecção . E, como tinha
fa ma de m u l her mu ito superior, a maioria dos
frangos daq u e l e g a l i n heiro de ixava devassar
por compl eto a sua própria h i stór i a e as h i s­
tóri as, mais 'ou · menos puxavantes , dos pais
e das pessoas d a sua roda .
D izendo-se embora cató l i ca , quanto a rel i­
gião M l l e . Tesson não aprovava a m i ssa e fa­
l ava com entusi asmo vivo das belezas protes- ·

tantes.

M iss Pé nélope, essa vivia em exclus ivo para


garanti r a fel. i c i dade a l heia, Escocesa bem i n­
formada da existência de Deu s , adorava com
fervo r igúal todos os habitantes do p laneta .
A cada passo poderíamos encontrá-l a na
rua, l evando consol o a este e àque l e . Não po­
d i a ouvi r fa l a r de catástrofe , doença ou afl i ção
sem sai r porta fora a espa l h ar por afl i tos ou
arru i nados o d itàme dos seus conselhos, o
e l eituário da sua compaixão .
Teria gostado de estar ao mesmo tempo em
todo o l ado e , à força de ser d i l i gente, che­
gava m ui tas vezes a dar-nos uma i l usão de
u b i quidad e .
A m e s m a hora a encontrávamos na cabe­
ceira de um agon izante , na recepção de u m
i morta l , m i m a escada de editor ou jorna l i sta ,
no salão de um judeu qual que r , na abertura d e
um testamento , ou atrás de u m · morto .
Esguei rava-se , penetrava na vida de u m a
mu lti dão q u e acaba p o r fazê-l a i nd ispensável
a todo um m i.steri oso equ i l íbrio. . \
Chegou a haver quem a j u lgasse anjo, a ver-
dade se d i g a que anjo de cl asse não cata l o­
gada por S . D i n i s , o Aeropag ita , aquarte l ado
a d i stâ n c i a i nfin ita do céu onde eram desco-

77
n hecidos os r i be i ros , as nascentes · e o sabão­
·de-mars e l h a .
S i m , porque era um a n j o pouco l i mpo, que
pena, e chego mesmo a pensar que está aqui
a origem pouco d ivu l gada da atracção que or­
bito u este planeta doido à C l éopâtre fixa e
cons iderada astro sáb i o .
Seria d ifíc i l d izer q u e m l evava a pa lma n a
i mundíc i e . Tratava-se de uma e m u l ação d e suj i­
dade, verdade i ro assalto de côdea , antago­
n i smo de nódoas e sedi mentos i mpuros , com­
petição de pu lveru l ências , confl ito de rasgões
e farrapadas , torneio de exa lações rapos e i ras,
bafios , rel e ntos e e m p i reumas.
Não obstante , as duas criatu ras amavam-se,
i sentas de toda a ceg u e i ra , e constantemente
se j u l gavam com i ndependência extrema.
- Real mente, que grande porcal hona me
s a i u aquela Pénépol e - clarinava a d u Tes­
s o n . - Só u ma d raga poderia l i mpá-l a .
- N ã o posso conceber q u e a nossa querida
C l éopâtre s e des mazel e a tal ponto - .flautava
por sua vez m iss Magpi e . - Até parece que
jurou mete r noj o . Era bem fe ito que o Sanea­
mento l h e mandasse um g rupo de l i mpeza .
Apesar d i sto , as duas passavam i nfin ita­
mente bem e a am izade corria-l hes às m i l ma­
ravi l h a s .

U ma coisa g rave a s divi d i a , poré m . C l éopâ­


tre achava que elas deviam casar-s e , não i nte­
ressava em que a ltar.
- Se não vivermos uma « du p l a vida • - di­
zia - não vivemos de facto . F i s i camente, a
m u l her sem marido só respira pela parte de
cima . . .
Com pac iência e a ltivez de vistas d i fícei s
de igualar, C l éopâtre desenvo lvia à s suas i n­
s u l ares este axioma notável .

78
Pe lo contrário, Pénélope afi rmava que o ca­
same 1P era um estado de ignomínia e a pre­
tensa necessidade de dorm i r com um homem
uma abom i nação i m possfve l de suportar.
As .d uas vi rgens desencrostáve i s d i scutia m
muitas vezes este assunto e a vitória pertencia
sempre à devorante C l éopâtre, que se d i vertia
ao esfa re l a r as objecções da sua adversária .
S ó n u m ponto l h e ced i a , o d a evidente i nfe­
rioridade dos homens, e tanto prazer isto dava
a miss Magpie que a d i scussão chegava ao
te rmo .
Ass i m como ass i m , estava assente qu e a
u n i ão dos sexos não passava de u m a l e i fis io­
l ó g i ca e o horror m u i to l egítimo das m u l h eres
d i sti ntas por este acasal amento fei o , só na
aparência poderia ser u ltrapassado .
- M as há fa lta de m u l heres na l i teratu ra
- conc l u ía a doutora , com energi a - e o casa-
mento é a ú n i ca forma de l á chegarmos . Acon­
teça o que tiver de acontecer! Se aparecerem
homens ao nosso lado, paci ênc i a !
Certo d i a , n a s costas da a m i g a , C l éopâtre
fundou u m a agênc i a matri mon i a l . Era u m a
agênc i a pequen i n a , mu ito d i screta , que s ó
agitava o archote d a s ofertas e procuras e m
jorna i s d e u m a correcção a toda a prova .
U m prospecto anón imo em papel rosado i n­
formava ()S amadores que o Anjo da Guarda
do Lar só faz i a « Casamentos de amor • e re­
cusava meter-se em mani gâncias de d i n h e i ro ,
n ã o ofereci a vi rg i ndades duvidosas, n ã o pu­
nha esparre l as e g i rândolas de m i l hões a c i n­
t i l a r aos o l hos dos aventu rei ros .
Não. O aposto lado exc l usivo d 'O Anjo da
Guarda e ra aproxi mar • corações de primei ra
q u a l idade • qu� não chegariam de outro modo
a conh ecer-se, faci l itar encontros e colóquios
de i nocênci a g a ranti da. Tocava à chamada das
canduras ignoradas , dos l írios na sombra , das

79
a l mas puras e machucadas que o mundo não
sabe compreender. Em defi n i tivo , só se pres­
tava a a l ianças de co mpleta e absol uta i rra­
p reensão .
Esta nobre empresa teve a l g u m sucesso,
Trémulas de esperanças , ve l has purezas jorra­
ram dos seus antros e correram a esvazi a r
econom ias n a s mãos de C l éopâtre .
U ma professora genovesa , mu ito austera , e
u m vel hote condecorado , afável ao máxi m o ,
recebiam as vis itas e red i g i a m a correspon­
dênc i a .
· A fun dadora só i nterv i n ha n o s casos difíceis
em que era p recisa eloquência e dava , nessas
ocasiões, p e l o nome de M m e . Aristid e .
U m belo d i a , corri a a estação • em que todas
as coisas se amam e reproduzem » , Pénél ope ­
s i m , Pénél ope - apresentou-se na agência a
rec lamar o esposo idea l ! . . .
Tenho pena de lá não ter estado , mas parece
que as suas exigências eram excess ivas e
M m e . Aristide fo i chamada a i ntervir.
Que encontro e que cena ! Cl éopâtre , enrai­
vada por ver o seu anoni mato a descoberto,
e Pené lope fu riosa por ser apanhada em fla­
grante del ito de concupiscênci a , puseram as
a l mas ao l é u . E eram verdadei ras a l mas de
megeta, mil vezes mais fedorentas e o d i osas
do que as carcaças onde vivi a m , e cada qual
despejou · a sua na cabeça da outra , como se
fossem bac i os !

80
A RELIGI.AO DO SR. PLEUR

E m geral, oa lndivfduoa que nesta


mundo ma fizeram nojo aram pessoas
florescentes a famosas. .Quanto aos
patifes que au conh eci , a niO foram
poucos, panSOi nelas todos com prazer
a benevolência, sem excepção.

T H O MAS OE •QU I N·CEY

O aspecto do vel hote seria capaz de fecun­


dar toda a b i charada . De ta l forma se l he es­
tampava nas mãos e na face a estru m e i ra da
a l ma , que não era poss íve l imagi nar contacto
mais repugnante . Quando passava nas ruas ,
as mais lodosas va l etas tremiam à ideia de
refl ecti r a sua i magem e pareciam dec i d i das
a regressar à fonte .
A sua fortuna, colossal ao ponto de afi rmar­
-se que os mel hores juízes aval i avam-na a cho­
rar de êxtase, devia estar escondida em fu rio­
sos loca i s , poi s n i nguém ousava uma conjec­
tu ra séria sobre os i nvestimentos finance i ros
de um tal pesadelo.
A sua mão de cadáver , dizia-se , várias vezes
fora entrevi sta em certas man i gâncias de d i ­
nhei ro q u e t i n h a m redundado em derrocadas
sub l i mes , e alguns criadores de rãs supunham
encontrar nelas a sua ass inatura .
Apesar d isto não era j udeu . E quando l h e
chamavam « Ve l ho crápu l a • dava u m a resposta
suave , Deus te retribua! , que na espinha dos
ma i s vel hacos punha a correr um arrepio l eve.
A ú n i ca coi sa que parecia . certa era este
maltrapi l ho ter uma casa de renda a l ta , num
ou noutro dos mel hores bai rros periféricos .

81
Mas não eram conhecidos pormenores. Quem
sabe até se tinha vári as.
Pretendeu a l enda que e l e dorm ia n u m antro
obscuro , debaixo de uma escada de serviço,
entre a cana l ização das l atri nas e o a l oja­
mento do porte i ro i d i otizado por uma tal vizi­
nhança .
D i sseram-me que passava os reci bos de a l u­
guer em pedaços de cartaz rasgado, por eco­
nom i a , e os inqu i l i nos m a i s esperta l haços i a m
vendê-los a col eccionadores astuci osos .
Também se contava a h i stór i a , que ficou
famosa , de uma sopa fantástica s i stemati ca­
mente feita domi ngo à noite , e obrigada a a l i­
mentá-lo pela semana i nte i ra ; e que seis d i as
a fio era uti l izada , fri a , para e l e não gastar
carvão.
Como é natu ra l , à terça-fe i ra esta substân­
c i a a l i mentar tornava-se fétida. E então , com
modos reverentes de cura que abre o taber­
nácu l o , de um pequeno armário chumbado . à
parede, que devia conter papé i s estranhos,
ti rava u m a garrafa de vel h íssi mo rum por certo
reco l h ido em q11alquer naufrág i o .
N u m copo m i núsculo deitava a l g u mas gotas
ra ras e fortifi cava-se, na esperança de as sa­
borea r depoi s de engo l ida a cataplasma. Ter­
m i nada, poré m , a operação :
- Agora que já comeste a sopa - dizia ­
não vais ter o teu copi nho de rum !
E vertia n a garrafa o precioso l íquido, o mais
des leal mente possível . A l i á s , fineza recomen­
dáve l que em tri nta ou quarenta anos sempre
foi coroada de êxito .

Nenhum espectro a l g u m d i a me pareceu tão


destitu ído de esti l o e carácte r. Nos andrajos ,
e com certeza n a l gumas práti cas, bem l he va l i a
l embrar um j udas dos m a i s desprezíve i s , de

82
Budapeste ou Amesterdão ! A mente i mag i na­
tiva de u m Prometeu não chegaria para desen­
canta r, ne l e , o menor l i neamento arcai co .
Decretada p o r i mprecadores suba lternos , a
alcunha de Shylock ( 1 ) revoltava como qual­
quer b l asfé m i a porque este avarento só ex­
p r i m i a chateza ! Só nas c rostas e no fedor de
a n i ma l morto era terrível . Mas, até n i sso, de
u m desencorajante modern i s mo. N ão, a i mun­
dície não lhe garantia as boas-vi ndas em ne­
nhum abismo.
De aspecto , pelo menos , só conseg u i a pare­
cer o B U R G U ÊS, o M edíocre, o · M atador de
Ci snes • no dize·r de V i l l i ers [2) , consu mado e
defi nitivamente termi nado , como deve surg i r
n o final dos finais, quando o s Tremores saírem
do cov i l e a s a l mas sujas s e manifesta rem à
l uz do d i a !
Se o S r . P l e u r pod i a estar i nocente d a pros­
titu i ção das palavras , teríamos ao menos de
compa rá-lo a qualquer profeta horrível que ·

anunciasse os vómitos de Deus .


Às pessoas confortáve i s , enojadas com a sua
presença, parecia d izer:
- Não compreende i s que vos traduzo para
etern idade, i rmãos , e a m i nha carcaça i mpura
vos refl ecte prod i g i osamente ? Quando a ver­
dade for conhecida, descobri rei s · de uma v:ez
por todas que afi nal eu era a vossa verdadei ra
pátri a , e quando eu desaparecer verei s até
que ponto a pers istênc i a dos vossos espíritos
va i lamentar-me. Senti reis nosta l g i a da m i n h a
vizinhança i m u nda � q u e vos dava a sensação

·( 1 ) Como é sa b i do, o judeu d o Mercador de Veneza,


de Shakespeare. ( N . do T. )
( ' ) Trata-se da, ·personagem Tribu lar ·B ohnomet, que
V i l l iers d e l ' l s l e-Adam espa lhou por vá rias ficções suas
e é uma a centu ad fssima caricatu ra do esp frito bur­
guês. ( N . do T.)

83
de estar vivos quando afi nal estáve i s abaixo
dos mortos. ó safardanas h i pócritas , que em
mim detestai s o denunci ante s i l encioso das
vossas infâ m i as ! O horror material que vos
i nspiro dá a medida exacta às abom i nações do
vosso pensamento . Porque afi nal , se estou bi­
choso, a que hei-de atribuí-lo senão a vós mes­
mos, que me fervi l ha i s no fundo do coração?
O o l har deste sujeito era particu l a rmente
i nsuportável às m u l heres elegantes que e l e
pareci a execrar fixando-as , p o r vezes , com u m
c l arão m a i s b ranco do que o fósforo d o s ossuá­
rios , o l hade l a fúnebre e viscosa que fi cava
col ada à carne d e l as como a sal iva dos bru­
cól acos , e elas l evavam cons i g o , a bram i r de
horror.
- ó m i nha querida, vamos ter u m encon­
tro , não vamos ? - j u l gavam ouvi r . - Vou
l eva r-te de vis ita à m i nha l i nda fossa e então
verás que bon ito manto de l esmas e escarave­
l hos te darei para rea lçar a b rancura da tua
d iv i na pe l e . A paixão que por ti s i nto tem tena­
zes de caranguejo, e podes estar ce rta de que
os meus be ijos valem mais do que todos os
d ivó rcios. S i m , porque u m dia também tu hás­
-de chei rar mal , ó ratinha cor-de-rosa, h ás-de
c h e i rar vo l u ptuosamente mal ao meu l ado,
quando não passarmos os dois de u m g rande
p i vete à luz das estrelas . . .

Uma vez mais, e apesar do seu ol har atroz,


teria sido d ifíc i l referenciar no Sr. Pleur um
traço que possamos d izer característi co.
Só a voz , ta lvez - voz de suavidade mal­
dosa que dava a ideia de um sacri stão i mpu­
d i co a coch ichar i g nomínias.
Por exemplo, a forma como pronunciava a
pal avra « prata • abo l i a a noção deste metal , e
mesmo a do seu vá l o r representativo .

B4
Ouvíamos qualquer co.isa como pata ou
pate, conforme os casos . Chegávamos a não
ouvi r nada de nada . A pa lavra evaporava-se .
Era a modos que u m pudor súbito, u m a cor­
tina a c a i r de repente por c i m a de um santuá­
rio, um i nopi nado temor de parecer obsceno
por deixar o ído l o de peito ao l é u .
Se a coisa vos d iverte, i maginai u m escu l­
tor fanático, u m Pi grn aleão sang u i nário e ado­
c i cado a procurar convosco um ponto de vi sta
para a sua G a l ateia e a fazer-nos recuar ma­
n hosam ente até um a l çapão, aberto para vos
engol i r .
Tão fo rte era a s u a pa ixão p e l o D i n h e i ro ,
que mu ita gente se enganava . A este i mpeni­
tente devoto do mea l h e i ro, e do cofre-forte ,
atribu íram-se vi sões horríveis - desconfian­
ças in u ito i njustas mas acred itadas por vários
sábios exegetas da vida privada a l heia que o
tinham su rpreendido com m u l heres e crianças
em m i steriosos co lóqu ios de passeio.
Às vezes , o c u l to expr i m i a-se-lhe por c i r­
c u n l ocuções arrebatadas de uma tal ordem
que a babosa erecção do seu fervor atenuava
de estranha forma aq uela fisionom i a de covei ro
c a l c i nado, e o seu seio exal ava suspi ros deso­
nestos , ao ponto d e · podermos desc u l par os
vasos d e menor e l e i ção onde deixava cai r a
sua pa l avra rara , se acaso eles não sentissem
passar, entre ambos , a h i pocondríaca majes­
tade da Idolatria.

Ao q u e espero , vão dis p ensar-me de revelar


que razões de ordem excepcional determ i nam
u m comérc io de amizade entre mim e esta
personagem s i mpática .
. N essa altura eu era jovem, mesmo m u ito
jove m , e de acesso fáci l ao entusiasmo. E des-

85
n udando-se à m i nha frente , o Sr. Pleur d i ver­
ti u-se a d e i xa r-me bem entus i asmado.
J u l go-me o ú n i co a ter-lhe ouvido confidên­
c i a s . Acrescento que esta recordação me aju­
dou i menso a suportar u m destino m a i s do
que sovina e, apesar da personagem ter mor­
rido há m u ito tempo, a m i n ha consc iência hoje
press iona-me a testemunhar a favor de u m a
pessoa tão mal conhec i d a .
Vários homens da m i nha geração podem
l e mbrar-se do fi m trág i co que ele teve e m uito
ru ído fez nos ú lti mos anos do I m pério.
O assass i n ato , cujos pormenores souberam
as gazetas l evar-me até às reg iões do Cabo
Norte , por certo foi da espéci e mais bana l ; e
os bi ltres que o pe rpetraram , confessemo-lo,
m u i to pouco d i g nos da cel ebridade que os ba­
fejou .
O ve l hote foi s i mpl esmente estrangu l ado no
seu covi l n i doroso , por band idos até então pri­
vados de cel ebridade que afi rmaram não ter
outro móbi l a l é m do roubo. Algumas c i rcuns­
tâncias que apenas diziam respeito ao passado
da víti m a , e continuavam i n expl i cáve i s , em
vão excitara m , e por vários meses , a sagaci­
dade dos seus contemporâneos .
Por f i m , j u l gou-se adivinhar ou compreender
q u e o Sr. P l e u r não fora o que parecia ter sido.
Numa pa l avra , os assassi nos d e má sorte,
que a l i ás se deixara m apanhar com fac i l idade
extrema na toca do avarento , não ti nham con­
seguido descobr i r nenhum tesou ro ; e o Estado ,
apesar de e l e t e r morrido sem testamento e
sem herdei ros natura i s , não pôde deitar a fa­
te ixa a nenhuma propriedade mobi l i ária ou
i mobi l i ária.
F i cou então estabe l ec i do que o defunto não
possuía absol utamente nada . . . a l é m do subsí­
d i o vita l íc i o e de u m a g i gantesca fortu na i na-

86
tacavelmente a l i enada nas mãos de certo
Bispo.
I m possíve l saber no que se tinham trans­
formado as cons iderávei s somas que deviam
ter- l h e passado nas mãos dura nte tantos anos
em que ele próprio passou reci bos a verdadei­
ros esquadrões de i n qu i l i nos .
Nenhum títu l o , nenhum va lor, nada de nada
excepto a famosa garrafa de rum esvaziada
pelos estrangul adores .

Como isto mal chega a ser um conto , assis­


te-me o d i reito de não prometer nenhum fi nal
mais d ramático do que rea l mente tem . Apenas
quis prestar o testemunho muito provavel­
mente ú n ico, vo lto a repeti-lo, que a enfu re­
cida sombra do morto pode esperar .
Seja-me , poi s , consentido resum i r e m pou­
cas U n has as m u ito curiosas pal avras que di­
versas vezes me d i sse · este so l itário, de seu
hábito tão s i l encioso.
Não crei o que alguma vez eu volte a senti r
tão negro a rrepio como o daquele d i a long ín­
quo, sentado ao seu lado num banco do Jard i m
das Pl antas, quando me obrigou a ouv i r i sto :
- A m i nha ava rez� mete medo ? Poi s bem,
meu rapaz ! Con heci u m pródigo, de espéci e
menos rara d o q u e podemos pensar, cuja h is­
tória ta lvez l he dê vontade de dar u m beijo
respeitoso nos meus farrapos , se acaso for
bastante dotado para compreendê-l a ;
• Esse pród igo era - natu ral m e nte - u m
maníaco. � fác i l d izê-lo e o facto d i spensa
qualquer anál ise mais profunda. Se quiser, po­
derei mesmo afirrnar que era um monoma­
níaco . . .

· E a sua ideia fixa ati rar PAO às latrinas !


« Arru i n ava-se nas padarias, com isto . N unca
o encontrávamos sem u m pão deba ixo do

87
braço, to<;lo saltitante, na i m i nência de preci­
pitá-lo nos cagatórios da popu laça.
« Só vivia para dar cumpri mento a este acto ,
e forçoso é acred itar que extraía dele prazeres
furi osos ; a sua a l egria chegava a ser del írio
quando tinha ocas i ão de oferecer o espectá�
culo a pobres-d iabos que morri am de fom e .
« D ispunha de tri nta m i l francos de ·renda,
o tipo , e queixava-se de que o pão estava
caro !
" M edite nesta h i stória verdadeira, q u e até.
parece um apólogo ! ,. .
Real mente , não tive oportu n i dade de beijar
os andrajos do Sr. Pleur, m as a sua narrativa
foi de molde a eu j u l g a r que por baixo d e m i m
gal opava toda a Cavalaria dos abi smos.

E da ú ltima vez que encpntrei este Pl atão


da sov i n i c e :
- Sabe que o D i n h e i ro é D e u s - d isse
e l e - e por isso procuram-no os homens com
tanto a rdor? N ão , com certeza não sabe, por­
que é demasi ado novo para ter pensado n i sso.
Tomar-me-ia por uma espécie de doido sacrí­
l ego se eu l h e dissesse que Ele é i nf i n i ta�
mente bom , i nfin itamente perfe ito , e Senhor
soberano de todas as coi sas ? Que n este m undo
nada se faz sem a Sua ordem ou a Sua per­
m i ssão ? Que, em consequência, fomos criados
com o objectivo ú n i co d e conhecê-1 '0 e ser­
vi-1 '0 , ganhando ·ass i m a Vida Etern a ?
• Vomita r-me-ia em c i m a , com certeza , s e
eu l he fa lasse do m i stério da Sua Encarnação .
Mas não faz mal! Fique a saber que não passo
um dia sem ped i r a vinda do Seu R e i n o e que
o Seu nome seja santifi cado .
• Ao D i nhe i ro , meu redentor, peço também
que me l ivre de todo o rnal , de todo o pecado,
das armad i l has do d i abo, do espírito da forn i-

88
cação , e i m p l o ro-o pelos Seus l angores como
pelas Suas Alegrias e Sua G lória:
« M eu rapaz ! U m d i a há-de compreender
como este Deus se avi l ta por nossa causa.
Lembre-se do outro maníaco ! Vej a a que em­
prego a m a l ícia dos homens O conden a i
" . . . P e l o que me d i z respeito, há tri nta anos
não me atrevo a tocar-Lh e ! . . . S i m , rapaz , há
tri nta anos não me atrevo a pôr as patas sujas
numa moeda de c i nquenta cênti mos ! Quando
os meus i nqu i l i nos me pagam , recebo-l hes o
D i n h e i ro n u m a caixa prec iosa , fe ita de · ma­
de i ra de ol ivei ra que tocou o Túmu l o de Cristo .
Nem u m só d i a fico com E l e .
« Se quer sabê-l o , s o u um penitente d o Di·
nheiro.
« Com i n expri m ívei s conso l ações , por E l e
suporto o facto d e o s homens me des preza­
rem , de até os a n i mais se assustarem com i go
e todos os d ias da m i n h a vida eu ser crucifi·
cado pe l a mais pavorosa das m i sérias . . . ,.
Aprofundei a existência m i steriosa deste
homem para vi s l u mbrar que o seu d i scurso
era todo s i mbó l ico. Confesso, poré m , que as
Pa lavras Santas tão rudemente adaptadas me
assustaram um pouco.
Vi-o l evanta r-se de repente , com os braços
esticados para o céu, a i nda estou a recordá-lo
parecido com uma forca gemi nada de onde
pendessem os andrajos pod res de u m anti go
supl i c i ad o .
- As pessoas fartam-se de d izer que sou
um ayarento terrível - gritou e l e . - Poi s bem !
Um d ia conte-l hes que descob'ri o seguríss i mo
esconderijo de que nenhum avarento se tinha
lembrado antes de m i m :
« Enfio o meu Dinheiro n o Seio dos Pobres! . . .
« Pu b l i q ue i sto, meu rapaz, no d i a em q'ue o
Desprezo e a Dor tiverem fe ito de s i um ho·

89
mem suficientemente grande para ambicionar
a honra suprema de ser i n compreendido.

� que o Sr. Pleur a l i mentava cerca de duzen­


tas famíl i as , entre as quais não pude encon­
trar um pessoa que o não considerasse cana­
l ha - tão re l es ele era !
Mas hoje, ó j ustos céus ! , que será feito da
mu ltidão pá l ida destes indigentes agora assis­
tidos pelo ta l bispo, del egado epi scopa l do
nosso Penitente ?

90
A OLTIMA COZEDURA

O senhor Fi acre Prétextat Laba l barie aban­


donara os negóci os aos sessenta anos a mea­
l hando riquezas cons ideráve is na i ndústri a d e
aplai nador de caixões .
N u nca decepc ionara a c l iente l a . N u m grito
u nân i m e , a aristocracia genebresa que o so­
breca rrega ra tanto tempo com encomendas
chegou a ce lebra r- l h e a exactidão e a leal dade.
Com a chance l a da desconfi ada I n g l aterra ,
a sua mão-de-obra obtivera sufrág i os da Bél­
g ica , do I l l i n o i s e do M ichigan.
Mal as gemebundas fol has i nternacionais
anunciara m que este famoso arti sta deixava
as pompas do bal cão para reservar a sua res­
peitáve l cabe l e i ra branca a estudos preciosos,
fo i u m momento de g rande amargura nos dois
mu ndos .
Fiacre era rea l mente um ve l h ote fel i z, e a
sua vocação fi losófica e human itária só vi era
a dec l a ra r-se quando a fortuna, sem dúvi d a
mu ito m a i s cega e cín i ca d o q u e pode i magi­
ná-lo a presunçosa multidão, o cum u l ou de
favores .
Ao contrári o de tantos outros , não desprezou
o negócio i nfi n itam ente honroso e l ucrativo

91
que soubera eJ evá�lo do quase nada ao p i ná�
c u l o de u m a dezena de m i l hões .
N u m entusi asmo i ngénuo de ve l ho soldado,
contava as gue rras i nterm i návei s que fizera à
concorrência e diverti a-se a re lembrar o ti ro­
teio heróico, por vezes, dos i nventários .
A exemplo de Carlos V, abdi cara do i mpé­
rio da factura para abraçar m u ito s i m p l es­
mente u m a vida superior.
Em suma, com meios de vida e demasi ado
vel h o para ter a vel e i dade de conservar muito
tempo o go l pe de vi sta do homem de negóc ios,
esse qualquer co isa de espontâneo que des­
concerta a praça e arruína as mani gâncias dos
competidores , tivera o senso de aprese·n tar
uma vantajosa demissão do poderio comercial
antes que a estre la da sua patente começasse
·

a fraquejar.

De então para d i a nte dedi cou-se exc l u s iva­


mente às d e l ícias do género h u mano.
Com uma l u c i dez comovedora ava l iou o nada
das deci sões que até à hora tinham sido toma­
das por cabeças oca s , i ndiferentes ao abran­
damento d a m iséria. Por outro l ado, com a ·cer­
teza i naba l ável de que os pobres eram úte i s ,
achou que havia m e l hor sítio para empregar
os recu rsos finance i ros ou i nte l ectu a i s de que
d i spunha .
Por isso d i ri g i u os clarões derradei ros do
seu g é n io à consol ação dos m i l i onários.
- Quem pensa na dor dos ricos ? - d i z i a .
- J u l go que s ó eu e o d i v i n o Bou rget por
qUem a m i nha c l i ente l a anda louca . Os ri cos
vão cumpri ndo a m i ssão que l hes cabe , que é
d iverti rem-se e fazerem andar o comérc i o .
I magi namo-los fe l izes c o m excessiva faci l i­
dade, esquecendo que todos são dotados de
um coração, e há quem tenha o despl a nte de

92
confrontá-los com as grosse i ras tri bu l ações
dos i n d igentes cujo dever, aci m a de tudo , é
sofrer. Como se os andrajos e a falta de co­
mida pudessem comparar-se com a angústi a
da morte ! Porque a l e i é esta : ás pessoas
morrem a sério se possuírem. Para dar a a l m a
a o criador há que ter capita i s , e as pessoas
não querem compreendê-lo. A morte não passa
de uma separação do D i n h e i ro . Quem não tem
D i n h e i ro não tem vida e não sabe, portanto ,
morrer. ,
Cheio de pensamentos destes - mais pro­
fundos do que e l e j u l gava - o aplai nador de
ca ixões trabal hava de a l m a i ntei ra na abo l i ção
da angústia morta l .
Teve a honra d e s e r u m dos pri m e i ros a
fomentar a . concepção generosa do Cremató­
rio. Segundo este pensador, o trad icional
horror à morte é sobretudo ocas i onado pela
pavorosa i magem da decompos ição. Nos comí­
cios dos i nc i neradores , que o t i n ham e l eito
pres idente , pormenorizava as fases dessa de­
compo s i ção desenrolando com a eloquência
do medo toda a quím i ca subterrânea . Por exem­
plo, a i.d e i a de transformar-se em flor revo l­
tava ao máximo a sua i magi nação de guarda­
-l ivros .
- Não quero ser carcaça ! - m u g i a . - Vou
exi g i r que me quei mem logo a seg u i r à morte ,
me ca l c i n e m , reduzam a c i nzas . porque o fogo
purifica tudo , etc .
Fo i p l enamente atendido, como a segu i r ve­
remos .

O excel ente homem tinha u m fi l ho, como é


dever nosso desejar a quantos sabem o preço
do d i n h e i ro .
Peço l i cença para perder o p é du rante a l guns
i n stantes e voar em pleno ditirambo.

93
Atrevo-me a d izer que D i eudonné Labal barie
a i nda era mais admi ráve l do que o pai . Con­
cebido numa hora de insigne triunfo sobre
concorrentes temerários , em pl eno i dea l rea l i­
zava vi rtudes só l i das que as casas de créd ito
m a i s sérias podem descontar .
Aos q u i nze a n o s já a p l i cara todas as suas
econom i as e exi b i a uma figura tão del gada
como u m l ivro . Consultado, poré m , esse l i vro
de contas, e l e nada nos reve l ava de frívol o .
O cúmu l o da i nj ustiça teria s i d o censu rar­
- l h e um m i nuto de entu s i asmo ou um ataque
de te rnura i nsensata , repri m i do fosse, a pro­
pós ito de qualquer co isa, sobre qualquer
assunto .
Quando fa l ava , o fe l iz p a i era obrigado a
apo i a r-se na caixa ou no balcão , mu ito ébrio
d e ter procri ado u m fi l ho ass i m .
U m a ta l bênção de fi l ho a i nda vive e pros­
pera . Em três anos de órfão chegou mesmo
a d up l i car o seu patri món i o e soube fazer-se
adorar por uma riquíss i ma pastora de tarta­
rugas que a i nda há pouco casou com e l e .
M u ita gente i ri a reconhecê-lo, tenho a certeza,
se acaso eu não temesse ofender- l h e os l írios
da modéstia tentando esboçar, aqu i , a - sua
i magem amáve l .
Ad i v i n h e quem puder. Será excessivo eu
dec l a rar que a sua fisionom i a é de belo répti l
e por háb ito faz-se acompanhar de um molosso
monstruosís s i mo em corpu l ê n c i a ?
M as aqu i t ê m a h i stó ria i nfin itamente pouco
d ivu l gada da morte e dos funera i s do pa i . E
ao amador de emoções suaves convido-o já
a i nte rromper a l e itura .

U m a bela manhã, o médico dos mortos ve­


rificou que o g rande Fiacre d eixara de existi r.
Labal ba r i e Fi l ho começou logo a funcionar.

94
Sem ceder a choros i núteis que são puro des­
perd ício, sem gastar o • estofo • precioso da
sua própria vida, quero dizer •O tempo • se­
gundo a expressão nobre de Benjam i n Franc­
k l i n que e l e citava a cada passo , pôs tudo em
ordem, sem perder u m i nstante p reparou tudo .
A s dez e tri nta e ci nco já o s jornais esta­
vam avisados do seu l uto , a dor que sentia
desfo l hava-se em m i l exemplares por toda a
rosa dos ventos - parti ci pações encomenda­
das e j u d i c iosamente executadas com g rande
antecedência.
Observação idêntica quanto à pl aca de már­
more negro desti nada ao Columbarium, na
qual pod ia ver-se uma fén ix de asas abertas ,
entre l aba redas, com a terrífica i nscrição

RENASCEREI

que o defundo exig i ra .

Para retemperar a s fi b ras com u m a enér­


gica tomada de ar, D i eudonné deu um g i ro
de b i c i c l eta , comeu um a l moço copioso , re­
cebeu várias e lacri mosas visitas , foi fazer
as suas devoções à Bolsa, à noiti nha executou
várias cobranças proveitosas e passou o serão
fora de casa para marcar mel hor a extrema
violência do desgosto .
J u ncada de fl ores , acompanhada de u m a
mu ltidão pouco reco l h i da, uma sumptuosa
carreta fúnebre l egou no d i a segui nte ao
Crematório os despojos do finado.
- Ah l Ah l Com que então va is renascer !
- d izia cons i go próprio o afável D i eudonné,
que fi cara na terrível câmara-ardente apenas
com dois homens encarregados de enfornar
o pa i . - A gente verá se voltas a nascer . . .

95
Adm i n i strativa e reg u lamentarmente execu­
tada com tábuas leves , para desaparecer num
ápice àquela atmosfera de setecentos g raus,
o esq u i fe repousava na carreta mecânica cujas
antenas de meta l , ati radas com toda a força,
merg u l ham na forna l h a os mortos e recuam
soltando um g rito , movi mento de sístole e
d íasto l e executado em c i nco segundos .
D i eudonné para a l i estava , no seu reco l h i­
mento d e fi l ho , quando saiu u m ruído da car­
reta .
. .

O h ! Nada mais do que u m ruído surdo e


m u ito vago, posso garanti r-vos, ai nda que
ruído fosse, como se u m fa lso morto tentasse
mexer-se na morta l h a . A carreta ta lvez ten ha
cheg à do a osc i lar . . .
. Manobrada com precisão, poré m , a porta do
forno escancarou-se no mesmo i n stante .
Encarn i çadas por aqu e l a chama atroz , as
três faces o l haram umas para as outras .
- � o corpo a esvaziar-se - afi rmou D i eu­
donné, mu ito ca l m o .
O s d o i s empregados hes itava m .
- Despachem l á isso ! Q u e d i abo ! - berrou
de repente o parri c i da . - Estou a d izer-vos
que é o corpo a esvaziar-se .
E enfiou u m maço de notas na m ã o do mais
próxi mo.
As antenas deram u m salto para d i a nte , ou­
tro para trás • . .

E a porta fechou-se, mas não rápida bas­


tante para poupar a D i eudonné - que estava
bem de frente - a sensação de ver dois bra­
ços estendi dos no brasei ro i nstantâneo do
esquife e o desesperado rosto do pai .

96
.Y AMOS L.( SER RAZO.(VEIS!

--'- Meu pai , por que rião come? - perguntou


Suzanne com os o l hos cheios de lágrimas .
- Há dois d ias que não toca em nada e não
quer ver n i nguém. O pai não está doente ! Se
estivesse, mandava chamar o médico. Tem
qualquer desgosto . que me não queira d izer?
Como sabe, já não sou nenhuma criança. Gos­
tava tanto de poder consolá- l o !
A personagem a q u e m ela d i ri g i a este d i s·
curso e ra o famoso Ambroise Chaumonte l ,
nem mais n e m menos , o que tinha negócios
espal hados por meio mundo, incomparáve l
advogado cuja eloquência saber i a confund i r
os f i l a mentos d o caos , petrificar as trevas .
Chaumontel andava pelos sessenta anos e
não se coi b i a de afi rmá-lo a todos porque a
sua man i a , i nofensiva , era ascender à d i g n i ­
dade d o s patriarcas .
Vene n osos riva i s tinham-no acusado de
pi ntar os cabe los de branco para .f icar mais
augusto quando fazia a defesa de u m órfão ,
m a s e l e p u n h a a a l ma i nfi n itamente ac i m a
d a i nveja e a s flechas só pod iam expi rar n a
s u a base.
A desencorajante reputação que fizera n u m
quarto de sécu lo de barra de tri buna l , a g rande

97
fortuna que ameal hara , o alto bri l ho do nome
que várias e g ritantes gerações i l ustrara m ,
t i n h a m escavado lonjuras i ntransponívei s en­
tre e l e e a m u ltidão v i l oa .
Gozava , enfi m , de u m a consideração i n g l esa
ao máximo, que nada pareci a bel iscar, pas­
sando, decerto com razão , por exemplo exci­
tante (tão precioso, embora ! ) de i nteg ridade
profi ssional .
Vamos ser obri gados a acred itar que uma
preocupação estranha o obcecava , pois não
respondia à fi l ha e , mais lento a i nda do que
era hábito, com g randes ol hos afe itos às
expressões d i g nas fixava u m obj ecto qualquer
que se i m p r i m i a , i núti l de todo, na sua reti na.
A sua mane i ra , Chau monte l adorava aque l a
fi lha tão amável que p o r m i l ag re se fizera
uma l i nda rapariga e cuja mãe fora há dez
anos enterrada , vítima de um fu l m i nante ataque
de pavor. .�

Contava-se que ele tinha s i do u m verdadei ro


S i nai para a m u l her, e a pobre acabará por
morrer.
M a i s fel iz , Suzanne quase logrou ser amada.
Movi mentos i nteriores d ifícei s de entender
ti n ham l evado o fero e pi nacu lar Chaumontel
a i n c l i na r-se para a fi l ha. Na verdade , só ela
l h e amaciava o duro pau do coração e Chau­
monte l l evava a condescendênc i a ao ponto de
suportar as suas carícias, perm iti r-lhe a l g u mas
locuções afectuosas , algumas expressões fa­
m i l iares . . .
Mas naquele d i a , rep ito eu , nada conseguia
demovê-lo. Chaumontel voltara a subi r para
o a lto da sua co luna.
Desistindo do janta r, Suzanne veio rodear-lhe
com um braço o pescoço e supl icar-l he que
fal asse , numa voz que teria amansado ba­
bu ínos �

98
- Não podes compreend�r i sto, m i nha fi­
lha - acabou por declarar o vel ho com a maior
austeridade.
E, co m o u m homem cansado d e carregar o
mundo, l evantou-se da mesa e saiu a passo
lento sem acrescentar uma pal avra que o
traísse .

Ora vejamos o q u e tinha acontecido do is


d i as a ntes .
Chau monte l encontrara Bardache.
Não havia ve l h o estroina que não con he­
cesse Bardache, o esbelto Agénor . Bardache
tão bon ito nos últi mos anos do Segundo I m­
pério, quando fez a sua estre i a .
N essa época que va i l onge, n a Rua Marbeuf
chamavam-lhe a Tranqui l idade dos Pais; G ran­
,

des sucessos al i teve o nosso pândego, ainda


hoje l e m brados por alguns sen i s . Fo i sus­
tentado por gente i l ustre , a ltivos genera i s ,
crestados pelo sol de Africa, tinham-l he ofe­
recido raríss i mas flores .
Depois da Comuna, que e l e ornamentou com
alguns galões, segundo creio, desapareceu
vários anos nas profundezas do nadi r.
Os passeios e os sag rados bosques reen­
contraram-no agora. Mas tão mudado ! Barbud o ,
amare l o , s u j o , pareci a uma árvore nua com
a ramagem exageradamente cresc ida. A face
angulosa, manchada com uma pa l i dez estra­
nha apesar das pi ntu ras e dos cremes , fazi a
lem brar aque las efíg i es do M a l S e m Perdão
que a Idade M é d i a tantas vezes escu l p i u aos
pés dos santos nos esconderijos mais som­
breados das basíl icas.
Para eis imag i n a tivos · era um fantasma de
lama que devia ter as mãos húm i das com o
suor do agon izante e , no s i ngular mundo pseu-

99
doním i co que e l e frequentava , puseram- l h e o
defi n itivo nome de Cadáver.
Particularidade bem s i n istra : ao andar, as
suas arti cul ações esta l avam como as de Pedro
o Crue l , segundo se d i z . . .

Ostens ivo como . um celerado abo m i nável·


pode sê-l o , fazi a-se passar por jorna l i sta de .
assu ntos econó m i cos à procura de casamento
rico.

M u i to sati sfeito cons igo propr10 e com o


facto de ter acabado de apertar honrosas m ãos
no l i m iar do tri buna l , Chau montel preparava-se
para entrar no carro quando aqu e l e come-ca"
dáveres o i nterrompeu tocando fam i l iarmente
o seu ombro.
- O l ha quem e l e é! O Verbo Deponente ( 1 )!
Já não se conhecem os a m i gos ?
Sufocado , o homem de l e i s recuou .
- Mas . . . quem é o senhor? Não o conheço.
- Meu querido, não me con heces ? Devo ter
m udado muito ! O m e l hor é entrarmos para
a tua carreta funerária, que eu quero refres­
car-te a memória.
- Baptiste ! - gritou Chaumonte l . - Traga- ·

-me aqu i um pol íc i a , depressa !


- Toma c u i dado , Deponente do meu coração,
porque vom i to tudo se fazes estardal haçp.
Conto ao com i ssário da pol ícia as farsas que
fizemos d u rante a nossa juventude, fal o da
casa de Marly e do quarto dos suspi ros. fundos
onde nos d iverti mos tanto. Até posso mos­
trar uma fotografia que trago sempre comigo . . .
sabes qual é , aquel a em que apareces como

(1) De nota r que o s verbo s latino s depo n entes têm


a forma da voz passiva e o significado da voz activa,
ambiva lincla que é aproveitada aqui com intenções
muito evidentes. (N. do T. )

1 00
· flor campestre a ser co l h id a » e tiveste a
genti leza de me oferecer averbando-l he uma
ded i catória sugestiva - realmente tinhas man-
·

dado ti rá-la por m i n ha causa. .

A estas palavras o pai de Suzanne empa l i�


deceu m uito , chamou precipitadamente o co­
che i ro e, vendo-se observado, e l e próprio
empurrou para o carro a companhia pavorosa
que o çlesti no lhe enviava . Deu uma ordem
breve e a viatura parti u a trote.
- Pe l os vistos , o senhor quer d i n h e i ro !
- D i n he i ro ! - exclamou o outro . - Por
quem me to ma, senhor Chaumonte l ? Tenho a
honra de ped i r- l h e ·a mão da men i n a sua fi l h a !
- A m ã o da m inha fi l h a ! - berrou o trâns­
fuga de Sodoma a sentir-se mu ito pa i . - A mão
da m i n ha fi l ha ! Quer m i sturar o nome da m i nha
filha às suas porcarias ?
- Vamos , vamos, caro amigo, tenha Um
pouco de ca l m a . Por · favor, vamos lá ser ra·
zoáveis ! Já não somos nenhumas crianças !
O tempo das bon itas loucuras acabo u . Perd i
todas as vantagens que tinha. Conforme os
dias passam vou ficando depenado, aborreço­
·me de morte e quase nem vivo. Quero tor­
nar"me i mportante como o meu caro a m i g o ,
e para i s s o prec iso de d i n h e i ro , sem dúvida,
mas também de m u l her. M u ito natu ral será que
ponha os ol hos em si, pessoa capaz de me
ofe recer u m e outra . . . Suzan ne é s i m p l esmente
d e l i c iosa .
« . . . Escusa de berrar, que não l he va le de

nada . Aqu i tem a i mpress ionante fotografia .


Ta mbém estou d e posse d e algu mas cartas
não menos preciosas que tive noutros tempos
a honra de receber de s i . É toma lá, dá cá .
Não s e i se e ntende . . . Para fecharmos o negó­
cio concedo-lhe u m mês , seis semanas no
máxi m o . Decorrido esse prazo , faço explod i r
tudo. N ã o tenho nada a perder. Agora mande

1 01
o cochei ro parar, que eu pretendo descer
aqui . •
- M a i s u ma pal avra - balbuciou o i nfel iz
Chaumontel que acabava de trambu l har dez
m i l degraus . - Posso matar-me, já reparou?
O outro desatou a ri r e respondeu-l he do
estribo com pa lavras não isentas de profun­
d i dade :
- Que medo posso eu ter? Os porcos nunca
s e mata m .

D o i s meses depois desta conversa , Agénor


Bardache casava com Suzanne na aldeia da
Normandia onde o advogado tinha uma ve lha
mansão.
Não houve convidados e até as partici pa­
ções , deixadas ao cu i dado de Chaumonte l , fo­
ram ati radas à l atri na.
A h i stória que vos conto é substancialmente
exacta e u m d i a hei-de fa l a r da morte deste
casal. Quanto ao pa i , está vivo g raças a Deus.
Ah ! . . . que me esquecia . . . No dia do casa­
mento , depois da ceri món i a , o rad iante Bar­
dache i n c l i nou-se pa ra o sogro e murmurou­
- l h e ao ouvido u mas quantas pal avras amo­
rosas :
- ó meu amigo ! Como ela se parece com
o pai !

1 02
UMA MÁRTIR

- Está mais do que visto , senhor meu


genro, que nenhum arg u mento rel i g ioso sa­
b.e ria actua r na sua a l ma . Vejo mu itíss i mo
bem que o senhor nem espera pelo d i a de
amanhã para fazer as suas pulhices. Não vai
ter nenhuma pi edade desta pobre criança que
até agora eduquei na pu reza dos anjos e · o
senhor va i emporcal har com o seu bafo de
répti l . Meu Deus, faça-se a vossa vontade,
que o vosso santo nome seja abençoado por
todos os séculos dos sécu l os !
- Amen - respondeu Georges , enquanto
acend ia um charuto. - Pode ficar certa do
meu reconheci m ento eterno, querida s ogra.
E conto mu ito com as suas preces . Pode acre­
d itar que não vou esquecer as suas exorta­
ções . Boa noite.
O comboio arrancou. Mme. Durable ficou
no ca i s a o l har .para o rápido que fug i a e
l evava os recém-casados na di recção su l .
Encapel ada ai nda com as emoções d o d i a ,
m a s de ol hos tão secos como o esma lte que
acaba de sair do forno , Mme. Durable batia
o chão nervosamente com a- ponta do guarda­
-ch uva .

1 03
Cheia de raiva , ava l i ando i molações e sacri­
fícios, esta querida a l m a d i z i a consigo própria
que e ra du ríss i mo viver há vi nte a nos para
uma fi l ha tão i ng rata que abandonava a mãe
daquela fo rma, mal casava, para segu i r um
estranho com manifesta fa lta de pudor e que
não tardaria a profaná-la, sem dúvi da, com
carícias lascivas .
- Ah ! Que grande satisfação os nossos fi­
l hos sabem dar-nos ! I ma g i n e - de forma quase
i ncons c i ente ela fa l ava com o subche-Fe da
estação que se aproxi m ara e a exortava , cheio
de civil idade, a desaparecer da l i - i mag i n e que
os trazemos ao mundo com dores tão abomi ná­
veis que o senhor nem pode ava l i á-las, edu­
camo-los no temor de Deus, procuramos que
se pareçam com os anjos para serem d i g no�
de cantar eternamente aos pés do Cord e i ro !
noite e d i a ped i mos p o r e l es sem descanso j
du rante um terço da vida , para bem das sua s
a l mas ternas cumpri mos penitências que s ó
de pensar nelas estremeço, e a recompensa é
esta ! Somos abandonadas , fique o senhor a
saber, largadas como u m farrapo, como l ixo ,
mal aparece u m fi nório qualquer que temos a
estupi dez de receber, porque tem ar de bom
cristão , e logo ali abusa e macu l a u m coração
i nocente , se me perm ite sugere-lhe visões
i m pu ras , faz' uma jovem educada na mais
santa i g norância acreditar que as festinhas
de u m marido de carne vão dar-l he a l egrias
mais vivas do que as efusões de uma ternu ra
de mãe .. . .
• Fique o senhor a saber o que acontece .
Pode mesmo teste m u nhá-lo no d i a do j u ízo
f i n a l ! Estou abandonada, desprezada, tra ída,
soz i n h a no m u ndo, sem consolação nem espe­
rança. Ponha-se no meu l ugar . . . ..
--: A senhora pode acred itar que comparti l ho
do seu desgosto - respondeu e l e - mas é

1 04
meu dever d izer-l he que as ex1 gencias do
serviço não perm item que a de ixe ficar aqui
ma is tempo . Embora contrariado, tenho a obri­
gação de ped i r-lhe que se reti re .
E; com u m a desped ida destas , a mãe do­
lorosa s u m i u-se i mp l orando ao céu, u m a vez
mais, um testemunho para a i mensidade do
seu l uto .

M m e . V i rg i n i e Dura b l e , em solte i ra M ucus ,


era o tipo i nsufi c ientemente adm i rado da
mártir, por s i na l márti r de Lião, o que fazia
dela a rabug enta mais atroz que i magi nar se
pode.
·

Desde criança entregue a crué is carrascos ,


sem nunca ter tido o bálsamo das consolações
humanas , i nformava regu l a rmente o ún iverso
do estado dos seus tormentos .
Há tri nta anos , quando M r. Durabl e , nego­
c i a nte de ostras agora aposentado, casara
com aquele hol ocausto , nem sequer descon­
fiava , pobre homem , que assumia uma assus­
tadora responsabi l idade de torcionári o , mas
não tardou a ficar i ntei rado do facto e, com
o andar dos tempos , caquético.
Por mais que fizesse ou d i ssesse, nem u m a
s ó vez conseguiu deixar de s e r cri m i noso, es­
pezinhar o coração da m u l her, c ravar n e l e
g lád i os ou espi n hos.
V i rg i n i e era Lima destas cri atu ras amávei s
« que t i n ham sofrido i m enso • , d a s quais ne­
n h u m homem é d i g no, que n i nguém percebe
nem conso l a e a quem os braços nunca pare­
cem compri dos o bastante para erguer ao c é u .
De passagem se d i ga que arvorava uma
p i edade subl i me e ridícu l a , se a pretendêsse­
mos admi rar mu ito , com a qual não deixava
ela própria de confund i r�se .

1 05
Res u m i ndo, fo i uma i rrepreensíve l esposa
- Deus meu ! - i ncansável a atra i r bênçãos
das mais raras à ·casa comerc i a l de um i m beci1
malfa zejo que não houve meio de entender
a fel ic idade em que vivia.
Anos passados sobre o casamento , esta
márt i r a i nda jovem e ao que parece muito
apétitcisa , fo i um belo d i a apanhada pela odiosa
personagem em convívio com um cava l h e i ro
por s i na l pouco vestido.
Eram de ta l ordem as c i rcunstâncias que só
u m cego , também surdo como a morte , po­
deria a l i mentar dúvidas .
A austera d evota ench ifrava-o com u m · en­
tus iasmo tão evidentemente parti l hado que,
não tivesse em bora basta ntes l etras para o
nome de N i non l h e assentar bem , tinha outro,
seu, quase tão belo como aque l e .
De peitaça ao vento V i rg i n i e avançou e,
numa voz m u ito suave , numa voz de g ravidade
e doçura profundas , d i sse ao homem estu­
pefacto :
- Meu a m i g o , estou a tratar de negóci os
com o senhor conde. Vá .atender os seus c l i en­
tes , vá l
E fechou a porta .
Fo i o fi m . Duas horas mais ta rde V i rg i n i e
com u n i cava a o marido q u e só voltaria a d i ri g i r­
- l h e a pal avra em caso de u rgênc i a , estava
fa rta de condescender até ao n ível da sua
alma de caixe i ro , na verdade era bem lamen­
táve l ter sacrificado as suas esperanças de
v i rgem m u i to jovem a um casca-grossa sem
ideal e tão i ndel icado , ai nda por c i m a , que
a esp i ava.
Fi l ha de u m bede l , que era, na ocorrência
não esqueceu deixar vincada a superioridade
da sua esti rpe .
De então para d i a nte, a cri stã dos p r i m e i ros
séculos empun hou a pa l m a , e a existênc i a do

1 06
pobre e domado carnudo transformou-se num
I nferno, num lago de amargor mu ito profundo
que o arrastou à bebida e fê-lo i d i ota ao ponto
de terem consegu i do abafá-lo, plausível e
caritativamente , n u m asi lo.

Por sorte i naud ita , a educação de M I J e. Du­


rab l e fora melhor do que poderia a conjuntura
fazer c rer.
É que a vi rtuosa mãe, a todo o momento
empenhada no embruteci mento de M r. Du­
rab l e , e também entregue a obscu ras farsas ,
dela se ocupou muito pouco e em boa hora
a de ixou abandonada à vigi lância mercenária
das re l i g iosas da Escada de P i l atos que, por
m i l agre, se houveram com a m i ssão o mais
consc ienciosamente poss íve l .
Bastante dotada e muitíss i mo • passáve l • ,
a rapariga foi sôfrega a agarrar a pri m e i ra
oportu n i dade de casamento, mal se compe­
netrou do ridícu l o e da execrável m a l ícia da
vel ha sovina que passou a sogra por m i ste­
rioso decreto da tem ível Providência.
A va l entia do noivo causou admi ração e m
todos .
M a l termi nou a cerimón i a , n u ma atitude de
mu ita i ndependência decl arou que tinha a
vontade fi rme de se afastar dal i com a mu­
lher, num comboio rápido, e toda a gente pôde
ver que esta decisão, sem dúvida concertada ,
não afl i g i a nada a jovem esposa indiferente
aos g e m i dos e às censuras maternas .
Arrastada por uma i n d i gnação das mais ge­
nerosas , M m e . D u rable regressou à casa sol i­
tá ria med itando tramadíss i mas vi nganças .
Mas não. Ao caso não convi nha a pal avra
vingança. Tratava-se , apenas , de pun i r .
Esta m ã e u ltra jada tinha o d i reito de punir.
M e l hor, ti nha o dever , ou de outro modo o

1 07
quarto mandamento de Deus não conservaria
a sua força .
Da l i em d i ante todos os meios l h e parece­
ram bons , já que uma i ntenção p i edosa l he
não deixaria de pe rfu mar as manigâncias, ve­
nenosas fossem .
Para dar cumpri mento a u m desíg n i o tão
l ouváve l , a márti r passou a fomentar a deson ra
do genro e da fi l h a com en redos e truques de ·

toda a espéc i e .
O pri m e i ro v i u-se i ncri m i nado de vícios
monstruosos , de hábitos i nfames confi rmados
por abo m i náve i s testemunhas. A segu nda re­
cebeu cartas que bem poderiam ser datadas
de Sodoma.
G rande Pande i ro escrevia a l a m e ntá- l a , Dedo
na Regue ifa fazi a- l h e saber que cc aqu i lo não
ficaria por a l i » . O l eito nupcial dos recém­
-casados fo i submerso por i ntei ro numa tor­
rente de l ixo .
O marido i a sucumbi ndo aos poucos , debaixo
de um número · i nfin ito de mensagens anóni­
mas e pseudóni mas das mais variadas formas,
mas sempre untuosas e satu radas de tri steza
mu ito afáve l que o i nformava m , cheias de
precaução , sobre o passado pouco l i mpo da
sua compa n h e i ra que sou bera apod recer, com
o hál ito , meia centena de rapari gas nos dor­
m itórios do pensi onato , e não l h e teria dado,
senhora de um dote daqueles , mais do que a
ba ixa e rud i mentar v i rg i ndade do corpo.
Nada poderá expri m i r a mal dade d i abó l ica,
a competência i nfernal que mexia os cord é i s
deste ·enredo, s a b i a dosear d iari amente o s
venenos horrorosos do i nfanti cíd io.
A s i tuação d u rou mais de seis meses . Os
desg raçados , que ao pri ncípio só sentiam por
aqu i lo um p rofu ndo desprezo , foram depois
domi nados pelo pavor de uma perseg u i ção
tenaz.

1 08
Vieram a saber que as cartas daquela fonte
Ig norada se espa l hava m , dos patrões à cria­
dagem , por todas as vivendas à volta , e ati n­
giam pessoas i mportantes de cidades e al­
deias q u e e l es passaram a atravessar mu ito
de fug i d a .
Foram atenazados p o r u ma angústi a pân i ca ,
I m parável ; foram arranhados por desconfian­
ças i rreparávei s , d e nada l hes val endo saber
que e ram absu rdas . Por fi m , rebo laram numa
cl oaca de melanco l i a .
De ixaram d e pode r dorm i r e comer, as suas
al mas extravasara m-se nos abi smos pál i dos
onde as espe ranças se d i l uem, e chegou o d i a
e m q u e morreram j untos à mesma hora e no
mesmo l ugar, sem ser possível defi n i r com
muito rigor o modo por que tinham deixado
de sofrer.
A mãe , que os seg u i a como u m tubarão ,
soube exi b i r fartamente aquele sui cíd io para
l hes ti rar o d i reito à sepultu ra cristã . E agora
é márti r , cada vez mais a Márti r , e d i a a d i a
ascende c o m a maior desenvoltura a o terce i ro
céu , d izendo a c rónica da Rua de Constanti­
nopla que a desoras , todas as noites, ela cos­
tu ma rep icar um criado de quarto , robustís­
simo.

1 09
O .fiM DO D. JUAN

� agrad6vtd conversar com u m homem


da uma s6 cabeça.

JULES VALLf:S

- E o m iseráve l morreu como viveu , cheio


de bens . Nem sequer teve a desculpa de ser
um d i s s i pador, u m pród igo; Diz-se que foi o
maior do mundo a empatar capitais · com van­
tagem . Morreu , enfi m , sem nenhuma doença
e no p l eno uso de s i mesmo; apesar de ve­
l h ís s i m o , como um patria rca de antes do
d i l úvio . · Ora i sto parece u m pouco forte . Sem
exig i rmos que «O dedo de Deus • seja tão
assíduo como o J eitinho que os papás dão
aos fi l hos m i mados , ass i m mesmo · e para
honra da Justiça desejaríamos rea l mente saber
m e n o s doce a agonia deste malfeitor.
Isto eram pa l avras de u m homem que ofus­
cava sem m a l íc i a a gló ria i nsol ente do M a r­
quês da Torre de Pisa [ 1 ) , personagem mu ito
con hecida que acabava de expirar. Du rante
muito tempo fora jul gada eterna. Nascida na
I n g l aterra fo lgazona, da altu ra em que a emi­
g ração começara e Luís XVI ai nda tinha a
cabeça nos ombros , segundo rumores públ i cos
mantivera-se verde-gal a nte nas vésperas dos

( 1 ) O s «especia l i staS» em B l oy qu erem ver, nesta


personagem, uma ca ri catu ra do escrit�r Catti l l e M en­
des. ( N . do T. )

1 1 1
noventa anos . M a l verifi cado prodíg i o , todavia,
mas ace ito pelo entusiasmo de alguns d iscí·
pulos que já tinham , também e l es, u ltrapassado
os sessenta .
A verdade se d i g a : o Marquês Hector da
Torre de Pisa i rrad i ava como uma custód ia.
E passava por indiscutível que a l g u mas rai nhas
ti n ha m morrido d e amor • ao entrar-lhe no
quarto • , por sua causa so l u çara todo um povo
de arianas .
M u ito tempo antes do cél ebre Beauvivier
que nos consola , o marquês soubera adjud icar
a sua pessoa e transformá-la e m acções. Daí
a opu lência que exi b i a . Mesmo no fim dos
d i as , famíl i as das mais a ltivas pagaram carís­
s i mo os b i l hetes da sua al cova . . .
Pelo me nos rezava ass i m a lenda, aceita
pelo m undo i ntei ro , sobre este devorador de
corações que tinha alguns botões das cuecas
e ncastoados em bri ncos ai nda agora o l h ados
como i n esti máve is jóias.
- Nada d isso, meu caro senhor - i nterrom·
peu uma parte i ra . - É verdade que não assisti
à morte desse crápu l a , mas nenhum rxi on,
posso garanti r-lho, foi tão cruel mente casti·
gado como e l e . Pode o senhor i magi nar o que
quiser, e a i nda ass i m l h e ga ranto que n u n ca
saberá chegar a u m horror daqueles . · Ora
sente-se aí nesse aborto , que l h e estende os
b raços , e p reste-me atenção, que esta manhã
venho com ve i a narrativa .

- O marquês Hecto r foi u m bon ito homem,


de facto, com todo o ar de g rande senhori a , e
os que sentiam i nveja d e l e nu nca acharam
meio de n egá-l o . Tão diferente ele era da
mu ltidão, que onde estava punha todas as
pessoas a parecerem-se umas com as outras.
• Teria pod ido mostrar-se em públ ico por

112
d i n h e i ro , como u m verdade i ro mestre , mas
l i mitou-se a exi bi ções privadas . por somas
altas que a l iás apl i cava com c u i dado extremo
nos empreend i mentos mais sérios . O faro de
especu l ador que sempre demonstrou no meio
das piores comp l i cações ficou bem conhecido.
« O i nteresse d i sto é medíocre , poré m . Numa
época em que os homens andam todos ao
engate, quase sem excepção, o putanato deste
cava l h e i ro e as suas concomitantes aptidões
fi nance i ras nada têm de i naudito . São coisas
que l igam bem .
· O q u e tenho para l he oferecer é m u ito
mel hor. Prometi um horror difi c i l mente i magi­
nável , não fo i ? Se a sua sede de exp iação não
se aplacar depo i s da m i n ha h i stória, nada será
capaz d e saciá-l a .
• E antes de ma i s : sabe o que tinha e l e a
expiar? Não? O senhor, como os outros , pensa
que ele teve uma existência m a i s ou menos
od iosa de vam p i ro exc l usivamente ocupado
nas suas i nfâ m i a s , durante o período de quase
um sécu l o em que foi correndo como um ·

regato de podridões, sem nunca o l har no rosto


os que pensam e sofrem . � um ponto de vista
tão banal como uma pregação , meu caro
senhor! A .c oisa é mu ito e d i ferentemente su­
perfina . . .
• Faz-me com certeza a justiça de acred itar
que não quero saber para nada do seg redo
profi ss ional , como a l i á� é próprio de toda a
pa rtei ra - de p r i m e i ra classe, entenda-se . Dei­
xa mos isso aos médicos que não têm outra
forma de evitar a prisa, na maior parte dos
casos .
• Po i s bem ! Esse belo Hectar, que casou duas
vezes e pe l o m enos uma das m u l heres matou
sem prec i s a r da mi nha ajuda � porque funcio­
nava sozinho às m i l marav i l has, sem ped i r o
auxí l i o de n i nguém - foi meu cl i ente .

1 1 3
· Oue parvoíce a m i n h a partejar a pri m e i ra,
e dez anos mais tarde a segunda, l á para o fi m
do rei nado de Lu ís Fi l i pe, como se fossem
porte i ras ou m u l heres da vida! Num e noutro
casos o marquês i ns isti ra para não haver n i n­
guém ao pé de nós .
« Da pri m e i ra vez trouxemos a o mundo uma
espécie de caprípede sem ol hos nem boca ,
com uma espécie de membrana m o l e pendu­
rada à g u i sa de nariz, que eu nem quero des­
crever, ó i mpress ionáve l criatu ra . . . Dotado
de um sangue-frio de morto , o Torre de Pisa
de itou as mãos ao aborto , antes de eu poder
opor-me , e ofereceu-o aos beijos da mãe que
duas horas mais tarde morreu de o ter vi sto .
• E o segu ndo fi l ho do marquês , que saiu
com d uas cabeças n u m corpo em fuso, sem
braços nem pernas , foi uma segunda edi ção
'
da mesma i magem.
" Desta vez a partu ri ente nem pôde vê-lo.
Enro l e i a coi s i nha abominável no meu aventa l
e corri para fora do quarto . Perdi a c l i ente l a
d o nobre senhor m a s adivinhei mu itas coi sas
e mais tarde vi m a saber de outras . . . ,.

- O senhor ta lvez tenha fi cado com a im­


pressão de ter ouvido contar o Crime e Cas·
tigo - prosseg u i u a terrível matrona, ba ixando
a voz de um modo estra n ho. - Já estou a ver
a fibra de bronze da sua j ustiça i mpl acável
esticar-se como as cordas de uma guitarra
m ijada por tri nta cães . Ora acontece que o
senhor conti nua mais a l este do que nunca ,
está a ouv i r ?
« N a nossa profissão, a gente está mesmo
à boca do esgoto e vê tais coi sas sair d e l e
que, passado a l g u m tempo, é d ifíc i l espantar­
-se. Po is o l h e , de uma e outra vezes o homem
de quem fa lamos espantou-me até ao pavor.

1 14
" Não fosse aqu i l o que a i nda agora ouvi u ,
n i nguém contestaria que este homem era ape­
nas um canal h a horríve l e mal c hegaria a
merecer que o mencionássemos . Mas a coisa
é outra , volto a repetir, e o casti go que teve
va i fazê-lo tremer, se acaso puder com preen­
dê-lo.
•Já reparou como é estranho que a mesma
Identidade do monstruoso fenómeno se tenha
repetido, a dez anos de i nterva l o , em duas
m u l heres legíti mas com quem ele casou , aqui
para nós, por d i nheiro ? Estou convencida
de que a expe riência daria sempre o mesmo
resu ltado.
« Pa ra fa l a r c laro, o marquês era u m idólatra,
um fervoroso e · rigoroso idól atra de i nterior
configu rado à i magem do seu Deus , cujas ten­
tativas de progenitura só eram capazes de
reproduzir exteriormente esse Deus.
« Em casa, num oratório i l u m i nado com l uz
misteriosa , e l e adorava a parte do seu corpo
que os sacerdotes de C i be l e tinham outrora
em g rande honra . Mandara um hábi l artesão
moldar sobre si próprio o objecto , exposto
numa espéc i e de tabernácu l o e que recebi a
a s preces desse cori bante que o s m undanos
jul garam estroina - tal como os ca l o i ros de
med i c i n a engo l i ram que o bud i sta Charcot era
méd ico . N unca havemos de saber quantas
pessoas são coisa diferente do que parecem ,
aos ol hos dos seus contemporâneos .
.. o seu verdade i ro cri me era éste , meu caro
senhor, e u m supremo atentado a quem mais
fundo sabe e vê. O resto vinha todo daí.
• Agora veja que dez anos de expiação e l e
teve , até à véspera da morte :
· Todas as noites , um vel hote corpul ento e
bel íss i m o , que as mais altan e i ras tinham ama­
do e agora se fizera conhecido das que andam

1 1 5
na vida , e ra i nvariave l mente apanhado na
sombra , à hora dos ú lti mos engates .
• El as conheci am-lhe o gosto e o d i álogo
estabel ecia-se, do l ado da m u l her crapu l oso
ao máxi mo, do l ado dele mu ito h u m i l de porque
estava empenhado no papel de porcal hão con­
s u m i do por inconfessávei s desejos .
.. como é natu ral, ao f i m de alguns m i n utos
medidos n u m i nfal ível cronómetro , acabavam
por entender-se .
« E, encostada à parede, a m u l her estendia­
- l h e então os pés, alternadamente , e o octo­
genário a grun h i r de êxtase e de roj o pelo
·

chão - fizesse o tempo que fizesse - lambia·


-lhe a sola das botinas . ..
Esta fo i a última exigência feita p e l o Deus
daqu e l e campeão que três gerações de i m becis
i g u alaram ao O . Juan.

1 16
SACRILIÉGIO FALHADO

Na ta rde d aq u e l e día santo as camponesas


agachavam-se aqu i e a l é m , à volta do con­
fess ionário. De repente afasta ram-se com o
afã m a i s respe itoso para abri r uma passagem
à vi scondessa Bruni ssende des Egards que
chegava , m u ito enfol harada , ao Tri bunal da
Pen itência.
O confessor era um homem s i mples, m i s­
s i onário da · Cong regação dos Lazari stas en­
vi ado àquela parvó n i a , a i nda re l i g iosa, para
fazer a pregação na época da Quaresma e
aj udar o velho cura nas l ixívias pasca i s .
A bri l h ante viscondessa, · que rei nava e m
toda a reg ião e era o arquéti po das magn ifi­
cências para a pobre gente do feudo , mu ito
rápida e lampe i ra fora ajoel har-se no compar­
ti mento devo l uto das confi ssões reconc i l ia­
tórias .
A o vê� l a , o m i s s ionário apressou-se a absol­
ver uma qualquer tamanqOe i ra que o retinha
no outro a lvéol o e , quase de i mediato , abri u
a porti nhola das · exortações à respeitáve l peni­
tente que o céu l he envi ava .
·
E l a , poré m , n e m lhe deixou a b r i r a boca .
- Senhor pregador - d i sse de chofre -.
j u lgo que o seu tempo é preci oso e desde já

1 17
declaro que eu própria d i sponho de pouquís­
si mos i nstantes. Tenho à espera o meu décimo
séti mo amante, u m i mbec i l adoráve l a quem
resolvi entregar corpo e a l ma dentro de uma
hora ou duas .
· Como sou descrente , o mais possível , faço
tudo o que me agrada . Tenho horror aos po­
bres , abom i no a dor e, como tão bem d i sse um
poeta j udeu que o senhor não · conhece, prefi ro
as más consci ências aos maus dentes .
· Estou-me compl etamente nas ti ntas para o
vosso Deus sangrento e nada tenho com as
absolvi ções que o senhor d i stri bui por esta
gente da a l d e i a . No entanto , o meu marido é
"'
um deputado vi rtuoso e sucede que precisa
da admi ração dos e l eitores . Aqu i na terra o
que não i riam d izer se a viscondessa des
Egards fa ltasse às páscoas ?
• É nosso dever dar o exemplo e aqu i estou
a anunciar-l he que vou ter a a l egria de receber
das suas mãos o pão dos anjos, na m i ssa
solene do próximo domingo.
·E agora , como o tempo normal de uma con­
fissão já term i nou e as a l mas pi edosas que
nos rodeiam já devem estar sufi cientemente
edificadas corri os meus senti mentos cristãos ,
eu não teria qualquer descu l pa se continuasse
a açam barcar o seu m i n i stério. Por isso reti­
ro-me, com a modéstia adequada às pecadoras
que acabam de reconc i l i ar-se com o Sa lvador,
e peço-lhe que nos dê a honra de ir ao caste lo
o mais depressa possível para eu poder retri­
bu i r a atenção da sua santa mesa . •
Prosternada u m m i nuto aos pés do altar, com
certeza para uma oração fervorosa , a castelã
saiu da i g reja como a fragata do porto , lar­
gando uma estei ra de perfumes estranhos que
as a ldeãs respi raram como se fossem a l ecri ns
do paraíso .

1 18
No d i a seg u i nte, mal acabava a m i ssa, o p re­
gador s u b i u aos Egards e ped i u para ser
anunciado à Bru n i ssende.
Os criados bem-pensantes adm i raram nele
o ec l esi ástico de compri mento inus itado, uma
espéc i e de fen icóptero sacerdotal que po­
deríamos ju lgar especialmente moldado para
encontrar ovel has perd idas ou d racmas de
ve l ha prata , d ifíce i s de achar debaixo de mó­
veis sumptuosos , em morad ias ricas onde se
ac l i matou a desordem .
A sua face marcava sessenta anos , como
a esca l a de estiagem marca as g randes cheias
de um r i o , e naquele momento ofereci a , derro­
tado e preocupado por inexpr i m íveis cu idados ,
o espectácu l o de uma bondade de ru m i nante .
O pregador fo i i rltroduzido, mas teve de
espera r mais de uma hora . H oje todos sabemos
como é dever de u m padre aguardar que as
belas damas saiam da cama, se têm vagar e
condescendência de recebê-lo .
.....,.... Ah ! Que surpresa agradável , meu querido
pad re ! - d i sse a vi scondessa quando se d ig­
nou , enfi m , a aparecer. - Apesar de ter sal­
tado da cama para recebê-l o , estou com medo
de tê-lo feito esperar mu ito ! J u ro que não fo i
de propós ito e conto com a sua caridade para
saber descu l par uma mundana incapaz de pre­
ver a g raça deste seu bom-d i a tão mati nal .
- Há c i nco horas que o sol já nasceu , m i ­
n h a senhora . Depois disso vários m i l hões d e
cri stãos já sofreram e mu itos deles agoniza m ,
por s i n a l , desesperados no . m i nuto q u e passa . . .
- respondeu o m i ssionário cheio de aspe­
·
reza . - Pode acreditar que eu não teria vi ndo
Incomodá-la tão cedo , nem sequer mais tarde,
se a honra de Deus não estivesse em causa . . .
· Devo-lhe uma noite crue l , m i nha · senhora,
e esta manhã até parecia que um anjo terrível

1 1 9
m e arrastava pelos cabel os em d i recção à sua
porta . Aqui estou a perg u ntar-lhe se está pre-
·

parada para morre r . •

A formosa m u l her desatou a rir.


- Para morrer? Mas que coisa adm i rável !
Estou com ar de mori bunda , ou toma-me o
senhor por c r i m i nosa que vai ser g u i l hoti nada
ao romper do d i a ? Para d izer i sto é que me
obriga a sai r da .c ama às nove da manhã,
como se eu fosse uma varredora das ruas?
Fo i para usar uma palavra dessas que o senhor
se i ncomodou tanto ? Ah ! Estará o meu padre ·

em pl eno j u ízo ?
- Eu pod ia fazer- l h e a mesma pergunta , se­
nhora, mas com certeza não va leria de nada . . .
Sei bem o que estou a · d izer - acrescentou
e l e , numa voz tão baixa que pareci a causar
a l g u m a i mpressão - sei-o m u itíss i mo · bem.
Já se esqueceu daqu i l o que se passou na
i g reja , entre nós doi s ?
- Lem b ro-me de q u e o m e u padre aceitou
a m i nha confi ssão para o sacramento da peni­
tê nci a . Por outro l ado também sei que o se­
g redo da confissão é i nvioláve l . Só i sto .
Houve um s i l êncio.
- Resta-me ensi nar-lhe o que a senhora não
sabe, ou não quer saber. Poi s seja. O que lá
foi fazer é u m abomi nável desafio a Deus .
N ão satisfeita em profanar tão fe iamente , e
por maldade pura, o sacramento que a i nda
agora se atreveu a nomear, fo i dar-me conhe­
c i mento da d is pos i ção em que está de come­
ter o mais horrível sacri légio . . . Como é na­
tu ra l , a senhora contou com o s i l êncio de um
i nfe l iz padre que está obrigado pelo sagrado
ca rácter do sacramento . . . Talvez eu pudesse
responder- l h e que não sou obri gado a guardar
seg redo de uma confissão que não existiu ,
m a s dá-se o caso destas fórmu las serem tão

1 20
ntmtas que valem tanto fing idas como o ver­
dadei ro a cto Vou calar-me, mas é meu dever
.

nvlsá-la do perigo que corre. Ai nda está a


tempo . Pelo sangue de Cristo que . ai nda
. .

ngora beb i , s up l i co lhe que me não reduza ao


-

Jlapel de seu jlilz.


- Oh I Senhor bebedor de sangue, não se
preocupei Seja meu ju iz quantas vezes q u i ser.
E um a vez que l h e dou ta l l icença, como i sto
aqu i não é bem um Tribunal Revo l ucionário,
pela m i nha parte supl ico-lhe que dê fi m a esta
bri ncad e i ra desagradáve l . Se quer sabê-lo, es­
tou a ficar farta . . .

- Reti ro-me já - d i sse o m i ssi onário . - E a


m i nha ú l tima pa l avra é : desafio por desafio .
I g noro o que fará Peus da s u a a l m a , m a s ass i m
mesmo temo s ó de pensá-lo. Si nto q u e a se­
nhora não vai pode r consumar no próximo
dom i ngo o horroroso acto que me anunciou
do fundo das trevas. O Cri sto G lori oso é o
pão dos pobres . Só na l u z podemos comê-lo .

Concl usão :
No domingo de Páscoa a igrej a estava cheia
e Bru n i ssende, mais ofuscante do que nunca,
sentada no seu banco de sen hora feudal do
cantão.
O pregador insisti ra em d izer a m i ssa solene.
Lera o Evangelho das Essências e da Ressu rrei­
ção , despojara-se dos ornamentos e aparecera
no pú l p ito.
A sua pal i dez era grande e, de sobrepel iz,
parecia aqu e l e anjo vestido de branco que as
santas m u l h e res ti nham vi sto no tú m u l o .
Inso l i tamente, poré m , fa lou sobre o texto
Eden pauperes et saturabuntur, os pobres co­
merão e serão saci ados .
Fa lou mais de uma hora, ta lvez à espera
de que o fô l ego l h é fa ltasse, de tanto fa l a r
a morte l h e chegasse . A pal avra exa ltou-se-lhe

1 21
até e l e ficar qualquer coisa de assustador,
l u m i noso , sobrenatu ra l .
Este homem sem eloquência fói subl i me.
De ta l forma expri m i u a pobreza , que o seu
auditório and rajoso pareceu um congresso de
potentados , a a ltanei ra viscondessa acabou
por exi b i r um a r de desg raçada i mpel i da a
mendigar o seu pão.
No momento da comunhão pascal aconteceu
s i mp l esmente isto :
Bru n issende fo i a pri me i ra a ajoelhar-se.
E quando o rebanho dos h u m i ldes se aproxi mou
do a ltar recuou de repente, como se tivesse
vi sto um m u ro de chamas . O padre , que já
desc ia o ú ltimo deg rau do a ltar para se d i ri·
g i r à santa mesa, d e c i bório em punho, voltou
a subi-lo precipitadamente . . .
Foi preciso, depo i s , purificar o santuário.
E todos os anos, naque l e dia, é l evada a cabo
uma ceri món i a lavatória onde todos põem o
maior escrúpulo.
Quanto à vi scondessa des Egards, parece
que continua viva embora não passe, depois
daqu i lo, de uma reles habitante dos túmu­
los . . .

Esta foi a exp l i cação que me deram para a


derrocada pol ítica de u m dos fantoches mais
e m i nentes da nossa Ordem Mora l !

1 22
O GABINETE DE LEITURA

Nio • pode passar sem a literatura.

- Com um rai o ! Se eu já d isse que está


ocupado !
Orthodoxie Panard , que desde ha i nstantes
tentava forçar a fechadura , desatou a fug i r .
Era a voz temível do s e u t i o paterno.
O g a b i n ete de leitu ra fora tão ridicul amente
concebido que só pod ia uti l i zar-se à vez , e na
casa viviam . dez pessoas .
Havia o pai Panard e a mãe Panard ; os qua­
tro herdei ros Panard : Athanase, H é l i odore,
Démétrius e Orthodoxie ; e ai nda o tio Justi­
n i e n , a tia P lectrude e a tia Roxelane. Por
fi m , a boa ve l ha Pal myre . Faziam dez bem
contados . Era absurdo.
Refi ra-se a i nda que esta gente , Pal myre
I n c l u ída, tinha ou pod ia ter necessidades i n­
te l ectuais de natu reza a mais i m periosa.
Era mais do que certo encontrarmos l á al­
guém, a qualquer hora do dia ou da noite . Por
vezes , as pessoas esbarravam umas com as
outras n a porta .
Havia razões para aque la fam í l i a andar abor­
recida, mas pareci a i mpossível chamar à razão
o sovi n a do Panard , antigo professor de g rego
e membro do I n stituto, se fazem favor, que
nunca l avava as mãos por econom i a e, quando

1 23
l h e fa l ava m . em constru i r um segundo l oca l ,
declamava a s i mprecações de H ecuba no pró­
prio texto de Eu rípedes.
Não que fa ltasse d i n h e i ro a este tradutor de
F i l óstrato , d esde a famosa herança que fizera
d e l e um propri etário i m portante .
A l ite ratura contemporânea, porém - a que
era a l i mento dos Panard, sobretudo os saídos
do seu fl anco - não tinha nenhum i nteresse
para ele e queria que todos se contentassem
com o gab i nete exi stente , fazendo ore l h as
moucas às i n s i nuações optativas dos seus
h e rde i ros.
O mais i nto l erável competidor de Panard
e ra o tio J usti n i e n , coronel da gendarmeria
aposentado que nu nca de l á arrancava .
Consegu i sse entrar, o a n i m a l , e todas as
súpl i cas e ram i n úte i s , todas as l ágri mas . An­
tes de acabar com as suas pape l agens fazi a-os
esperar uma hora .
S e a o menos este botifarras, este gagá mal­
-che i roso q u e não chegava a fazer nada , des­
dentado fornecedor da gu i l hoti na , tivesse mo­
tivos serios para prolongar tanto as s uas esta­
d i a s , para s e atrasar ass i m no g a b i n ete pre­
cioso, três ou q uatro vezes por d i a !
M a s não . Aqu e l a desgraça de veterano,
que o céu se obsti nava a não rachar, n u nca
fora capaz d e l e r outra coisa a l é m da descri ção
dos s i n a i s dos malfe i tores , ou ordens de cap­
tura .
- O que faz vossemecê aí dentro , Deus
sa ntíss i m o ! - g ritava a tia Pl ectrude erguen­
do os braços áridos às estre las , já que era
vu lgar e l e l evantar-s e a meio da noite.
- Estou a pôr a m i nha correspondênci a em
d i a - era a resposta , concentrando nela a
f i n eza de u m gendarme a quem não é poss íve-l
fazer-se o n i nho atrás da ore l h a .

1 24
M a i s do que nenhum outro , O rthodoxi e vivia
desventu rada com a situação-. Era uma rapariga
de graça pouco vu lgar, com rel ações l iterárias
e l i ções de b i c i c l eta .
Nessa altu ra já l ançado em pl eno s i mbo l i s­
mo, o seu i rmão Athanase apresentara-lhe
Aomano-Spada , chefe-de-esco l a cujas raízes
gregas causaram excepcional agrado ao ve l ho
Panard . E o avisado Romano aproveitou este
aco l h i mento para meter no ,c aso o grande Papa­
d i a mantopou los , seu i nseparáve l amigo.
As desconfianças bem l egíti mas do profes­
sor chegaram a ser venci das o bastante para ,
um be l o d i a , não ser poss íve l evitar que o i n i ­
gualáve l , sobre-em i nente Périto i n e, se d i g­
nasse a comparecer sem ceri món i a , com o
maior à-vontade, acompan hado da sua auréol a
d e traba l ho.
Alargada a mesa , foi a vez de aparecerem
vários Klephtes que, por amor a Pi ndo, tiveram
ocas ião de g oza r a hospita l idade de Panard .
A verdade se d i g a : u m aumento tão grande
de convivas a i nda tornava mais i n acessível o
cubícu l o que Justi nien passou a ocupar como
nunca, por maldade, abandonando-o apenas
para fazer à mesa i rremissíveis i nco nve n iên ­
cias.
Volto a repeti r que uma ta l ci rcunstância
carregava o tom do quadro, e Orthodoxie so­
fria . Sofrimento que se e s p a l hava aos seus
recantos mais ínti mos.

VIrgem amável esta, que só pretendia abri r­


-se ! Flor de encanto que apenas um sopro
fazi a desabrochar! Sem a grande forretice do
pai , como l he teria sido fác i l abri r cam inho na
alta , onde tão di gnos mestres não deixa n a m
de patrociná-la com e f ic ác i a !

1 25
Má sorte a sua, poré m , que a obrigava a
romper audaciosamente com u m vel hote cheio
d e preconceitos e a quem esta afl uênc i a de
apósto los i n q u i etava ; que já fal ava em despe­
d i r a Atica e o Peloponeso !
Angusti ada, Orthodoxi e via aproximar-se o
momento em que teria de ficar l i m itada a tra·
ta r, e l a própr i a , da sua cu ltura . . .
Ah ! Se ao menos Panard deixasse que e l es
l essem as bri l hantes produções dos ps icólogos
e dos magos !
Mas nem pensar n i sso era bom . Todas as
obras nova s , que autores ou ed itores envia­
va m ded i cadas ao severo membro do Instituto,
eram exped i das i l l ico pa ra o gab i n ete i rrisório
onde n i nguém era senhor de ficar reco l h ido
u m quarto d e hora .
E será desnecessário d izer q u e não havia
outro recurso. Só a l i as pessoas pod i a m ins­
tru i r-se , mas t i rar de l á uma brochura era coisa
a pôr com p l etamente de parte . Não deixaria
de exp l o d i r , terrível , a raiva do ve l ho prefe ito
que tudo esquadrinhava, se alguém tivesse
a ideia de tira r um l ivro , que fosse, daquela
bibl i oteca privativa e cata logada pel a sua
memória i m p l acáve l . Poss i b i l idade de l ê-los,
só lá.
A verdade , poré m , é que Justi n i en abusava .
As fo l has fi cavam n u m ta l estado depo i s de
ele compulsar estudos sobre costu mes, ou
reco l has poéti cas , que às outras pessoas só
restava renunciar a percorrê-las, entre gemi­
dos. Nem as dedicatórias eram poupadas.
A senti menta l Orthodoxie, .essa perd i a a
cabeça . Privada repenti namente de u m capí­
tulo decis ivo que por certo a teria esclarecido,
não encontrava o fio às h i stórias ; apesar da
sua i n experiência era forçada a construi r epi­
sódios improvávei s , a conjectu rar desen l aces
i m possíve i s .

1'26
A necess i dade é mãe de · todo o engenho,
ao que se diz, e esta h i stória veríd i ca vai
fornecer-nos a prova.
U m d i a , apareceú l á em casa um robusto
moço de fretes carregando com as obras com­
pletas do célebre romancista Borborigmo, que
em boa hora fora traduzido ( 1 ) .
Desde há muito aquela rapariga sonhava
l e r as pág i nas emo l i entes e fi l armóni cas do
rel axado moscovita , mas era de prever que a
s ua m o l e preciosa não escapasse ao vulgar
destino dos papé i s l íricos ou docum entários
que enchiam conti nuamente o gabinete - de
l e itura .
Não havia um m i n uto a perder. Para conj u ra r
a catástrofe , Orthodoxie foi ter com a t i a
Roxe l ane, que também era louca p o r l iteratura
e logo a segu i r a e l a a mais eufó n i ca da fa­
mília.
E a l iás n ã o menos semítica d o q u e Pana rd ,
que a tinha em consi deração atenta pelos
amávei s capit;;�is que ela possu ía e man ipulava
com prudência apreciáve l . Da inquis i ção do
maníaco só e l a escapava ; o seu l i m i a r era·

respeitado .
Em breves i nstantes as duas u rd i ram u m a
conspi ração que fazia o grande homem escapar
às mãos profanadoras do coronel da gendar­
meri a . Corrompida por i l usórias promessas ,
Pa l myre fo i quem arrastou o . fardo para o
qua rto de Roxelane.
Belos d ias se viveram. Tia e sobri nha l e ra m
e chora ram ju ntas . . .
Por desgraça, a vibrante Orthodoxie não
pôde contar o seu . entusiasmo na medida acon­
sel háve l . Por sua cu l pa deixou escapar algu mas

(1) P rovave l m ente Tolsto i , cuja obra ·Léon B l oy de­


testava . ·( N . do T. )

1 27
ideias e metáforas eslavas que, certa manhã,
despertaram a desconfi ança de Panard .
J u l gando que fa l ava de ouro , a i mprudente
articu lara a palavra rublo e e l e l evantara-se da.
mesa , como ati ngido por u m c l a rão súbito , pre- ·
c ! pitando-se para o gabi nete n o momento
exacto em que Justi n i e n de lá saía.
Du ra nte m u ito tempo ouvi ram-no saquear
os arquivos , mas n i nguém teve coragem de
mexe r-se, po i s parec ia próxima a tempestade.
Panard acabou por vo ltar s i multaneamente
pá l ido e verm e l ho, parec ido com um cavaco
m a l apagado quando l h e dá a brisa.
- Onde estão os meus Borborig mos ? - d i s­
se n u m berro .
I nformada da tragéd i a , a tia Pl ectrude ten­
tou desviar para Justi n i e n o c i c lone, mas o
gendarme j u rou pela c ruz e . pelas suas botas
que desconfiavam d e l e i njustamente , não sen­
do poss ível a l guém duvidar da sua veracidade.
Por sua vez Orthodoxie, no cúmulo do susto ,
c u l pou obstinadamente os seus i rmãos Atha­
nase, H é l iodore e Démétri u s , que do assu nto
não sabiam patavina, tendo sido muito fác i l
o l úcido patriarca ti rar a l i mpo a s u a i nocên­
cia.
Como o caso era g rave , o castigo surgia
proporcional ao del ito . Fo i preciso restitui r
o s preciosos a l farráb ios , fazê-los segu i r a
estrada dos antecessores , e o três vezes
odioso tio é que se aproveitou deles quase
em exc l u s ivo, embrenhando-se com tal força
naquela l iteratura que só na hora das refei ções
·

saía do antro .
Orthodoxie teve uma dor lanci nante mas
consegu i u conformar-se. Chegou mesmo a
com preender que era aquele o j u ízo ú ltimo de
todos os papéis h u manos, era vu lgar ler-se
daquele modo · nas famíl i as em que a razão
predo m i na e as tangíveis fel icidades são mais

1 28
esti mávei s do que as e l ucubrações decepcio­
nantes de a l guns sonhadores . . .
Mas , o que estou e u a d izer? Não será ver­
dade que Orthodoxie descobriu a verdade pro­
funda do axioma que uma das nossas poetisas
formu lou e passou a ser, para e l a , um pri ncíp i o
d e luz?
Que antes de falarmos devemos dar à língua
1ete voltas na boca . . . do vizinho?

1 29
JOCASTA NA M Ã . VIDA

Sanctwn nihil est etab inguine tuiU'In •

. JUVENAL, Sálll'lls III

Senhor,
Quando receber esta carta já eu devo ir a
caminho de Africa, onde vou tentar que me
matem de maneira honrosa . E se isto tiver
o nome de . suicídio, julgo ass i m mesmo que
será aceitáve l , até para um cató l ico como ·· o
senhor.
� bem verdade que estou farto de viver;
absol uta e i rremed iavel mente cansado daquilo
a que sabujos e i mbecis chamam a vida.
Dê-me a honra de acred itar, senhor, que
tenho os negócios em ordem . Não devo di­
nhe i ro a n i nguém, não haverá credor que m e
chore. E os poucos rendimentos que uti l izei
de modo pouco nobre, depois de mim i rão
parar a mãos puras .
Não tenho famí l i a ; por outro lado, o grupo
dos meus amigos ou conhecidos mal chega a
va ler u m pensamento . Se exceptuarmos ' um
cão bem hum i lde; n inguém dará pela mi nha
fa lta quando eu desaparecer . .
Mas ante s de desaparecer resolvi confiar­
-lhe um ·segredo de ignomínia e tristeza pavo­
rosas cuja · d ivu l gação acredito que · possa,
ta lvez , aproveitar a alguns.

1 '3 1
Desde já escl areço que tem toda a l i berdade
de pub l i car esta confidência anónima a menos
que, em consciência, j u l gue . mais prático des­
truí- l a .
U m a vez escrita e posta no correio, ser-me-á
tão a l heia como qualquer d rama desconhec i do
que d u rma nos l i mbos da i magi nação de u m
romancista . Além d i sso já tomei med idas su­
ficientemente meditadas para que alguém
possa i dentificar-me .
Proceda, poi s , como entender. E quanto a o
poema, é ass i m :

Quando perd i a m i nha mãe, eu andava pelos


seis anos de idade e recordo-me de ter sofrido
u m desgosto extremo, bem maior do que é
razoável numa criança, e que até foi motivo
para eu apanhar uma i nvulgaríssi m a saraivada
de tabefes.
Não posso esquecer como fiquei de coração
ferido, como fiquei d i lacerado quando vi eram
d izer-me, d e forma tão brutal, que eu não vol­
taria a vê-la . que essa coisa de mãezi nha ti nha
act;:�bado , pois agora e l a estava enfiada na terra,
entre os mortos . . Não havia meio de eu enten­
der o que era isso de estar morto , mas fui
martelado · pelo . terror, tritu rado . em susto ,
e até hoje não fu i capaz de refazer-me .
· N ã o me mostraram o cadáver, pormenor cujo
sentido só m u ito mais tarde v i m a compreen-
der. . . . ·
. Tanto gritei que o meu pai , homem duríssi mo
que me detestava , . nesse mesmo. d i a me man­
dou para o campo, para a orla de um bosque de
pinhe i ros m1,1 ito sombrio , vizinho de um pân­
tano malcheiroso e não · l onge do estabel eci­
mento: de um a batedor de gado _,... lugar s i n i stro
que a inda hoje me parece . esta r a ver.

1 .3 :.1
Dois anos a l i fi q uei privado de cultura, �o
cui dado i n d i ferente de uma camponesa resse­
quida que me a l i mentava o mais sovinamente
possíve l e deixava andar, todo o d i a , na va­
diagem .
E a m i nha querida mamã, que estava entre
os mortos ! .. .

Atraído, arrastado como por urri anzo l , �t�Ui­


tas vezes passeei à volta d a pa l i çada do mata­
douro.
Eu pouco via entre as tábuas , mas pod i a
respi rar o cheiro abom i nável do antro e dava
com ratos enormes a correr à m i nha frente,
uns bicharocos horríve is que deviam sai r do
pântano .
Chegue. i a pensar que tivessem escondido
ali a desapareci da - porque eu já pressenti ra
o mundo à imagem i nfame daquele esta l e i ro
de magarefes para animais que sofrem;
Quando eu me ati rava de encontro à veda­
ção - fi-lo tantas vezes - a sol u çar, a chamar
pe l a m i nha mãe, até Deus não deixaria de
senti r pena de m i m .
M u ito abandonado me achava , pode o se­
nhor acreditar. Só via o meu pai uma tarde d e
três em três meses , n a s altu ras �m que e l e
me reg a l ava com cascudos , exclus ivamente ,
e chamava rapaz i d i ota , • g randessíssimo cre­
tino • , ladrãozinho ( ! ) , não se atrapal h ando nada
a exa l a r o desejo que senti a , e expr i m i a em
.termos adequados, de me ver bater rap ida-
·

mente " a bota ,. .


U m d i a l evou-me de passeio às margens do
pântano. Le mbro-me de que era um l ugar cheio
de lodo e caniços onde eu tinha o hábito d e
parar horas i ntei ras a · ver g i ri nos e salaman­
dras que a l i fervi l hava m . De repente , ordenou­
-me que fosse · apanhar um nenúfa'r que flu­
tuava a a l guns passos . Tentando obedecer
àque l e homem sem pi edade senti , aterrorizado ,
que estava a enfiar-me no lodo. Quando o meu
pai me ti rou de lá, a b l asfemar, já eu estava
merg u l h ado até aos ombros e, não fosse a
presença de uma testemunha atraída pelos
meus gritos , certamente eu teria a l i fi cado,
de ta l modo a sua face era d i aból i ca !

Foi este o vestíb u l o da m i n h a existência,


mas imagino que o senhor já esteja farto dos
meus começos e vou passar em branco os
m iseráve i s anos que vivi depo i s , anos de
i nternato no co légio onde o meu pai me deixou
encafuado por dois lustres .
Acredite se pude r : até aos dezoito anos,
nem u m só dia saí daquela prisão.
Os que a i nfância bafejou com a l g u mas a l e­
grias não podem de todo entender o que nos
fica de uma prisão longa e feroz. Parece-me
que a lei c ivi l consente proced i mentos ass i m ,
se n ã o m e engano próprios da paterni dade
anti ga.
Por mu ita ou pouca sorte , eu era demas i ado
robusto para morrer daqu i l o , embora não possa
ava l i ar quanto mal aquel a estru mei ra fez à
m i nha a l m a : Como o senhor sabe, dez a nos
de contacto com professores e alunos são
capazes de apodrecer um caval o de bronze.
Escritores h á que já o demonstraram à sacie­
dade ; e parece-me i núti l i nsisti r nesse ponto.
De tudo aq u i l o me restou uma coisa ú n i ca
e · preciosa, · uma espéci e de flor muito pura
n u m recanto v i rgem do meu jard i m devastado,
que é a lembrança i nfi n itamente suave da m i- ·

nha mãe.
. Al iás, l e mbrança cheia de d e l ícias, l u m i nosa
e tranqu ilizante ! . Tendo-a perdido tão cedo , ei.J
não conseguia reconstitu i r-lhe os traços mas
imaginava-a encantadora ao máxi mo, i mortal
n a , doçura dos afagos .

. 1 34
Da ú ltima vez que a vi , fi cou-me o ar muito
triste e m e i go dessa mãe querida, tão meigo,
tão profundamente triste que só de pensar
nele me s i nto esvaído de compaixão . . .

Vou preci p itar o desfecho desta h i stória que


me mata e devora, suja para a l ém do que
possa i mag inar-se .
Quando s a í do colég i o , o homem q u e s e
dizia meu p a i enve l h ecera ao ponto de eu quase
o não reconhecer. Segundo me pareci a , a i nda
mais atroz se fizera.
O ódio que eu l he despertava , a l i ás i nexp l i ­
cáve l , d i r-se-ia exasperado até uma espécie
de ra iva cró n i ca e difíci l de pi ntar, que lem­
brava a possessão demon íaca .
Nas pri m e i ras noites tranquei-me no quarto ,
receando que e l e aprove itasse o meu sono
para me esganar. Sem dúvida um medo j uven i l ,
mas tão justifi cáve l pelos ol hares dissi mu­
l ados que me l ançava !
Quanto a pal avras, raras ou nenhumas em­
bora as nossas almas se vissem uma à outra.
Eu tinha a sensação de estarmos frente a
frente e à bei ra de um abismo.
Algu mas ordens secas , alguns monossíla­
bos d u ros e cortantes , mais nada. Não era
preciso ser géni o para entender que eu estava
a l i para sofrer um novo sup l ício, apesar de me
ter feito homem e com experi ência adqui rida
nas tri b u lações do i nternato un iversitári o ,
apesar de ser capaz de enfrentar um l eão
que me d issessem mais armado do que e u .
No entanto, como prever a coisa sem nome,
o horror in igualável. que aquel e monstro me
reservava ?
Como o meu pai era arq u itecto , e ti nha a
seu cargo traba l hos i mportantes , pôs-me à

1 35
ordem de u m amanuense-chefe que devi a i n i- ·

ciar-me na arte da construção .


.
Este i n d ivíduo, que estudei com m u ito cui­
dado e aos poucos fui exper i mentando, j á na
semana anterior à m i n h a partida d e Paris para
o campo era o homem de confi ança do meu
pa i , a sua alma danada . R ecordava-me de
tê-lo vi sto desde sempre l á por casa . Este
homem fez-me traba l ha r de manhã à noite,
embora tenha assu m i do repentinamente um ar
de men i n o bom , passado que foi o pri m e i ro
mês, e ter-me declarado que o seu patrão,
menos cori áceo do que eu j u l gava ; resolvera
g ratificar-me com um belo salário apesar de
eu viver debaixo do seu tecto e não precisar
de d i n h e i ro .
- Toda a gente sabe como o s rapazes são
- acrescentou . - Depois de um longo d i a de
traba l h o têm n ecess idade de prazeres , coisa
que o teu pai compreende muito bem. Por i sso
me encarregou de te entrega r u m a chave da
porta da rua, para poderes entrar à hora que
qui seres quando saíres de noite . Estamos i n­
teressados em fazer-te senti r que não és ne­
nhum prisioneiro .
Como é n atura l , o d i nhei ro q u e este i nter­
mediário me entregou - o meu pri meiro di­
n h e i ro ! - conseg u i u enternecer-me e decid i r­
-me a. não desconfiar. mais d e l e .
Facto , a l i ás , que e l e l ogo aprove itou para
· me i nspirar a maior confiança possível , o que
não era trabal h o de Hércu l es andando eu nos
meus dezoito anos e não tendo a m i gos no
·

mundo.
Mostrando-se bom rapaz , cada vez m a i s , . a
pouco e pouco se transformou no meu i n i c i a­
dor de l i berti nagens , d i gnou-se apanhar bebe­
dei ras .c omigo e deu-me a conhecer locais
: bel íssi mos .

' 1 36
Atamanquemos , porém , o episódio fi na l .
U m a noite , sabendo mu ito bem o que fazia,
o reles daquele homem deu-me o endereço
- não duvido que o tivesse guardado para
o momento oportuno - de uma mulher encan­
tadora , apesar de madura, muito capaz de me
I nundar com todas as del ícias.
E duas horas passadas já eu estava na
cama com a mi nha mãe, que al iás só me
reconheceu no dia seguinte.
Aceite , etc .

1 37
LIVRO 8

I ' U BLICAD OS:


O ARRANCA CORAÇOES/BORIS VIAN
O ELEFANTE/MROZECK
,_ D O ASSASS I N I O COMO U MA DAS BELAS-ARTES/THOMAS DI!
Q U I NCEY
·1 . A CASA DOS M I L ANDARES/dAN WEISS
FABULAS FANTASTI CAS/AMBROSE B I ERCE
11. MANUSCRITO ENCONTRADO EM SARAGOÇA/VAN POTOCKI
I. ALICE D O O UTRO LADO DO ESPELHO/LEWIS CARROLL
11. OS CONTOS CRUISIS/YILLI ERS D E L ' I SLE·ADAII
11. A EMB RUXADA/BARBEY D'AUREVILLY
III. PARAISOS ART I F I C I A I S/CHARLES BAUDELAIRE
11. AS AVENTURAS DE G ORDON PYM/EDGAR ALLAN POE
I'' FRANKENSTEI N/MARY SHELLEY
1:1. SMARRA, OU OS DEMó N I OS DA NOITE/CHARLES NODII!R
1 •1 . O JARD I M DOS SUPLfCI OS/OCTAVE M I RBEAU
l lo . AS FI LHAS DO FOGO/G ISRARD D E NERVAL
I II . O FANTASMA DOS CANTERV I LLE/OSCAR WILDE
I I. OS DEMóNI OS D E RANDOLPH CARTER/H. P. LOVI!CRAPT
I II . O CAPITAO CAP/ALPHONSE ALLAIS
I II. O ELIXI R DA LONGA VI DA/H. DE BALZAC
;•o . AVATAR/GAUTHI ER
;o t . H I STóRIAS DE VAMPIROS
n. AFORISMOS/LICHTENBERQ
n CO NTOS FANTASTICOS/ERNST HOFFMANN
�4. D I C I O NA R I O DAS I D E I AS FEITAS/O. FLAUBERT
�t;. O OUTRO MUNDO OU OS ESTADOS E I MPéRIOS DA LUAr
/CYRANO D E BERGERAC
�6. O COCH E I RO DA MORTE/SELMA LAQERL6F
U. O REI DA MASCARA DE O U RO/MARCEL SCHWOB
�8. O CAVALEI RO DAS TREVAS/PAUL FéVAL
?9. SHE/H. RIDER HAGGARD
ao. O HO RLA E OUTROS CONTOS PANTASTICOS/GUY DE MAU.
PASSANT
:11 . O LOBISOMEM/ALEXANDRE DU MAS
:12. O ALTAR DOS MORTOS/HENRY JAMES
:13. O CAST ELO D E OTRANTO/HORACE WALPOLE
34. VATEK/WI LLIAM BECKFORD
35. O ITALIANO/ANN RADCLIFPE
:16 . CONTOS DA CHUVA E DA LUA/UEDA AKINARI
87. PLANO DE EVASAO/ADOLFO BIOY CASARES
38. CRóNI CAS ITALIANAS/STENDHAL
39. O LIVRO DE AREIA/JORGE LUIS BORG ES
40. A L E N T E DE DIAMANTE/FITZ JAMES O ' B R I EN
41 . V I S.AO DE CARLOS XI. .E OUTROS CONTOS/PROSPI!R
. 118·
.
R I M I!i E
42. H I STóRIAS MAG I CAS/REMY DE GOU RMONT
43. H I STóRIAS DESAG RADAVEIS/LI!iON BLOY
Título: Histórias Desagradáveil
Autor: Léon Bloy
Editor: EcUtorial :Bstimipa, Lda.
Tiragem: · 2700 ex.
Acabou · de iiii.prlmir ein: 26 de Novembro de 1!182
Oficinas: Guide - Artes Gráficas, Leia.
LISBOA -. PORTUGAL
HISTORIAS DESAGRADAVEIS :

I1\\1 \1\1 1 \\\l \1 \1\1 1 \\1\1 \\\I I\\1 1 1\\1 \1 \\\1 1 \\1 \\1 1 1\\1
!11 9 7897 2330 2363 11

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