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HEMPEL, Carl G. & Paul Oppenheim, "The Logic of Explanation"'.

In: Her-
bert Feigl & May Brodbeck, op. cit., p. 319-352.
HORKHEIMER, Max & Theodor W. Adorno - Dialéctica dei Iluminismo ,
Buenos Aires, Editorial Sur, 1970.
LACAN, J. - Escritos 1, México, Siglo Veinteuno Editores, 1977.
NAGEL, Ernest - The Structure of Science, London, Rowtledge & Kegar
Paul, 1961.
PIN~KY, Jaime - O modo de produção feudal, São Paulo, Brasiliense, 1979.
POPPER, Karl R . - The Logic of Scientific Discovery , New York, 1959.
REICH, Wilhelm- The Murder of Christ, New York, Simon & Schuster, 1953.
SHAH, Idries- Th e Sufis, Garden City, N . Y . Anchor Books, 197!.
SHAH, ldries, E/ Comiiío de/ Sufi, Bueno<; Aires. Editorial Paido\, 1974 SOBRE A NEUTRALIDADE
DAS CIÊNCIAS,,

Eduardo Diatay B. de Menezes

INTRODUÇÃO

Houve um tempo, quando comecei a ensinar Teoria e


Métodos de Investigação Social e, particularmente, logo após
ter .feito um ano intensivo de estudos sobre pesquisa na Uni-
versidade de São Paulo, onde alguns professores pregavam
uma concepção bastante positivista de ciência, houve um
certo tempo, repito, em que acalentei esse ideal de ciência
como algo que atinge o maior grau de rigor e precisão, de
objetividade e neutralidade, e somente isso. Eu imaginava,
por exemplo, que as Ciências Sociais eram menos científi-
cas porque ainda não tinham conseguido ser mais precisas,
mais rigorosas, mais neutras. Posteriormente, ao estudar
melhor a questão, ao refletir melhor sobre isso e à medida
que tinha de insistir nesses aspectos no âmbito de meu en-
sino de metodologia, comecei a me dar conta de sua dimen-
são ideológica; comecei a desconfiar de que o positivismo
(tanto na sua versão clássica, quanto na sua formulação mais
rigorosa e mais recente) não era apenas uma postura episte-
mológica nem se esgotava apenas uma lógica da investigação:
(*) O pre~ente texto se ongma de uma entrevi&ta que concedi aos alunos do
Estágio de Pe<;qui s<t em Sociologia, do Bacharelado de Ciências Sociai5,
do Departamento de Ciências ~·xi ais e Filosofia ( U FC). Procun:i des-
pojá-lo do tom excessivamente caloquial e espontâneo de uma conversa-
ção que se fez sem aviso e sem plano prévios. Embora mantendo no geral
o texto primitivo, acrescentei algumas refle\Õe\ novas c uma amo'>tra de
textos, '>eguida de uma bibliografia, no final. Talvez i~'>u tenha tornado o
meu argumento parcialmente redundante e pouco ordenado. Fica a~ ~ im
mesmo como minha contribuição pessoal a um velho dehare.
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REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N.0 s 1 e 2 PÁG. 15-40 1978
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no íundo, constituía uma ideologia de ciência, visto que nem sas funções está certamente em assegurar a reprodução do
os eonhecimentos se produziam exatamente como afirrr1a o sistema social a que servem ou pelo menos em garantir a
seu modelo nem essa atividade se reduzia à mera fabricação sua sobrevivência. Daí podermos afirmar que isso que cos-
de uma linguagem. Mas não pretendo entrar nesses deta- tumam chamar de "ciência pura" é como água destilada,
lhes porque a sua discussão me levaria muito longe. C0111o que é pura mas ninguém bebe. A idéia de ciência como ati-
quer que seja, alguns de seus aspectos serão inevitavelmen- vidade neutra é, portanto, contraditória em si mesma, pois
que significa atribuir-lhe o valor de neutralidade como uma
te conbiderados aqui. atitude de preferência a outras possíveis. Desse modo, sus-
Poi::, bem, essa desconfiança se apoderava cada vez mai:::
de mim e eu comecei a me perguntar honestamente: srrá tentar a "neutralidade da ciência" representa de fato uma
que é correto divulgar isso para os alunos? Será que ex:ste forma de ocultação ideológica de seu caráter histórico e de
mesmo uma ciência que é neutral, objetiva, rigorosa, preci- seu compromisso com interesses sociais dominantes. Este
sa, universal e positiva? Não sei. Hoje nutro enormes dúvi- argumento será melhor explicitado mais adiante.
das em relação a isso e chegaria mesmo a fazer a afirmação A fim de introduzir um caráter mais sistemático nesta
dis~ussão, proponho agora uma distinção que me partce
contrária: não existe ciência neutral porque o homem, seu operatória e cômoda, embora possa constituir uma armadi-
produtor, não é neutral e, na medida em que ele é um ani- lha: comar a ciência como algo que se institui num plano
mal axiológico mergulhado num mundo de valores sociais interno e noutro externo. Trata-se obviamente de um pro-
e históricos, tudo o que ele faz comporta valores e é feito cedimento meramente analítico já que na sua realização
a partir de valores, dentro dos seus desidemta. Ora, como exis- concreta a atividade científica é uma totalidade que integra
te uma relação dialética entre meios e fins determinando organicamente esses dois planos. Por outro lado, em ambos
que cada um desses pólos da ação participe da natureza do os planos é possível ainda visualizar outra distinção: a ciên-
outro, aquela condição humana é inevitável. Assim, com cia como processo e a ciência como produto.
maior ou menor rigor e com ideologias evidentes ou dissi- Encarar a ciência em seu plano interno significaria efe-
muladas, pouco adianta o artifício analítico do neopositi- tuar uma leitura textual, ou seja, uma leitura que põe a
vismo ao considerar a ciência apenas como um discurso . ciência entre parênteses e se realiza ao nível de análise da
as práticas lingüísticas implicam a sua produção e preen- lógica, da metodologia e da epistemologia. Noutras palavras,
chem funções sociais e políticas. trata-se do exame da ciência como estratégia racional ou
Estou consciente do risco de parecer reacionário com as estilo cognitivo e enquanto "discours normé par sa rectifi-
reflexões que estarei a desenvolver em torno dessa entidade cation critique" (1). No seu plano externo - implicado já
hipostasiada, a que chamam a Ciência, em cujo altar as vo- no anterior-, comportaria uma leitura contextual, a saber,
zes unânimes de gerações sucessivas nestes últimos séculos a leitura que é feita sobretudo por meio da história e da so-
depositam as oferendas de uma retórica apologética. Mas ciologia das ciências. Aqui, as ciências são tomadas comú
acredito ter direito de emitir minhas dúvidas e desconfian- um processo social de produção de conhecimentos, mergu-
ças quando sei que tais vozes saem tanto dos setores mais lhado portanto numa condição histórica concreta que en-
conservadores quanto daqueltõs que se pretendem os mais voh·e interesses conflitantes, antagonismos de classes e ideo-
rcvol u cionários . logias; noutros termos: uma ação coletiva mediante a qual
.:)eixo claro desde logo o meu ponto de partida: a ati- certas camadas sociais mais especificamente treinadas pro-
vidade científica, como qualquer outra prática social e en- duzem um tipo de conhecimento considerado científico em
quanto uma das formas da cultura, é inseparável do con- sua época. Esta segunda leitura me parece mais fecunda
junto da sociedade em que se exerce. Entretanto, as ciências para os objetivos desta discussão.
não são propriamente morais ou extramorais em seus con- A despeito de sua evidente simplificação e de seu quase
teúdos lógicos e epistêmicos, mas sobretudo nalgumas de suas inevitável reducionismo (pois exclui aspectos que deveriam
funções, nas tarefas que cumprem dentro de determinadas
circunstâncias e segundo certos fins propostos pela socieda- (1) Cf.: Georges CANGUILHEM: Idéologie et Rationa/ité dans l'Histoire des
de. 01a, como no caso de outras práticas sociais, uma des- Sciences de la Vie. Paris: J. Vrin, 1977, p. 21.

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no íundo, constituía uma ideologia de ciência, visto que nem sas funções está certamente em assegurar a reprodução do
os conhecimentos se produziam exatamente como afirrr1a o sistema social a que servem ou pelo menos em garantir a
seu modelo nem essa atividade se reduzia à mera fabricação sua sobrevivência. Daí podermos afirmar que isso que cos-
de uma linguagem. Mas não pretendo entrar nesses deta- tumam chamar de "ciência pura" é como água destilada,
lhes porque a sua discussão me levaria muito longe. Corno que é pura mas ninguém bebe. A idéia de ciência como ati-
quer que seja, alguns de seus aspectos serão inevitavelmen- vidade neutra é, portanto, contraditória em si mesma, pois
que significa atribuir-lhe o valor de neutralidade como uma
te com.iderados aqui. atitude de preferência a outras possíveis. Desse modo, sus-
Poi5 bem, essa desconfiança se apoderava cada vez mais
de mim e eu comecei a me perguntar honestamente: srrá tentar a "neutralidade da ciência" represent a de fato uma
que é correto divulgar isso para os alunos? Será que ex:.ste forma de ocultação ideológica de seu caráter histórico e de
mesmo uma ciência que é neutral, objetiva, rigorosa, pl·eci- seu compromisso com interesses sociais dominantes. Este
sa, universal e positiva? Não sei. Hoje nutro enormes dúvi- argumento será melhor explicitado mais adiante.
das em relação a isso e chegaria mesmo a fazer a afirmação A fim de introduzir um caráter mais sistemático nesta
contrária: não existe ciência neutral porque o homem, seu discussão, proponho agora uma distinção que me parçce
operatória e cômoda, embora possa constituir uma armadi-
produtor, não é neutral e, na medida em que ele é um ani- lha: tomar a ciência como algo que se institui num plano
mal axiológico mergulhado num mundo de valores sociais
interno e noutro externo. Trata-se obviamente de um pro-
e históricos, tudo o que ele faz comporta valores e é feito cedimento meramente analítico já que na sua realização
a partir de valores, dentro dos seus desiderata. Ora, como exis- concreta a atividade científica é uma totalidade que integra
t e uma relação dialética ent re meios e fins determinando organicamente esses dois planos. Por outro lado, em ambos
que cada um desses pólos da ação participe da n atureza do os planos é possível ainda visualizar outra distinção: a ciên-
outro, aquela condição h uman a é inevit ável. Assim, com cia como processo e a ciência como produto.
maior ou menor rigor e com ideologias evidentes ou dissi- Encarar a ciência em seu plano interno significaria efe-
muladas, pouco adianta o a rtifício analítico do neopositi- tuar uma leitura textual, ou seja, uma leitura que põe a
vismo ao considerar a ciência apen as como um discurso . ciência entre parênteses e se realiza ao nível de análise da
as prá ticas lingüísticas implicam a sua produção e preen- lógica, da metodologia e da epistemologia. Noutras palavras,
chem funções sociais e políticas. trata-se do exame da ciência como estratégia racional ou
Estou consciente do risco de parecer reacionário com as estilo cognitivo e enquanto "discours normé par sa rectifi-
reflexões que estarei a desenvolver em torno dessa entidade cation critique" (1). No seu plano externo - implicado já
hipostasiada, a que chamam a Ciência, em cujo altar as vo- no anterior -, comportaria uma leitura contextual, a saber,
zes unânimes de gerações sucessivas nestes últimos séculos a leitura que é feita sobretudo por meio da história e da so-
depositam as oferendas de uma retórica apologética. Mas ciologia das ciências. Aqui, as ciências são tomadas como
acredito ter direito de emitir minhas dúvidas e desconfian- um processo social de produção de conhecimentos, mergu-
ças quando sei que tais vozes saem tanto dos setores mais lhado portanto numa condição histórica concreta que en-
conservadores quanto daquel es que se pretendem os mais vol re interesses conflit antes, antagonismos de classes e ideo-
revolucionários. logias; noutros termos: uma ação coletiva mediante a qual
]) eixo claro desde logo o meu ponto de partida : a ati- certas camadas sociais mais especificamente treinadas pro-
vidade científica, como qualquer outra prática social e en - duzem um tipo de conhecimento considerado científico em
quanto uma das form as da cultura, é inseparável do con- sua época. E-sta segunda leitura me parece mais fecunda
junto da sociedade em que se exerce. Entretanto, as ciências para os objetivos desta discussão .
não são propriamente morais ou extramorais em seus con- A despeito de sua evidente simplificação e de seu quase
teúdos lógicos e epistêmicos, mas sobretudo n algumas de suas inevitável reducionismo (pois exclui aspectos que deveriam
fun ções, nas t a refas que cumprem dentro de determinadas
circunstâncias e segundo certos fins propostos pela socieda- (1) Cf. : Georges CANGUILHEM : Jdéologie et R ationalité dans l'Histoire des
de. Ora, como n o caso de outras prát icas sociais, uma des- Sciences de la Vie. Paris: J. Vrin, 1977, p. 21.

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ser também considerados numa análise mais completa e pro-
funda), acredito que as distinções aqui propostas são úteis
e poderão prestar auxílio no exame das posições envolvidas ~
na questão de que me ocupo. O esquema na página seguinte
facilitará, segundo creio, a sua apreensão: ~
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Gostaria de insistir no fato de que são duas leituras pos- 11:: < 11:: ~
síveis e distintas, porém complementares e interdependen- ~~ ~ri!
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vidades em ciências do real (ou factuais) e ciências formais.
As primeiras lidariam com objetos do mundo real, enquanto o o
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cem seus próprios critérios de validade. Já as ciências fac-
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ser também considerados numa análise mais completa e pro-
funda), acredito que as distinções aqui propostas são úteis
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na questão de que me ocupo. O esquema na página seguinte
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18 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978 19
to ao rigor do raciocínio empregado, mas seus enunciados temática em que estabeleço definições, regras de construção
têm de ser contrastados com o real, ou com os fatos tais co- (ou leis de composição), axiomas e postulados, e a partir dai
mo são construídos conceptualmente pela investigação. retiro rigorosamente por dedução as suas conseqi.'(ênciast,
Em relação às primeiras, é possível falar-se num grau etc.; mesmo aí se põe um problema de valores e a neutrali-
de rigor cada vez mais exigente, um grau de precisão cada dade não pode ser absoluta. Desde logo, uma proposição é
vez maior. Contudo, elas próprias sofrem transformações his- verdadeira apenas dentro das fronteiras da teoria conside-
tóricas, visto que não são criações eternas de um espírito rada. Além disso, quando eu defino, estabeleço limites. Quan-
absoluto. São respostas efetivas a necessidades concretas dos do estabeleço limites, faço opções. E se faço opções, isso im-
homens, ainda que com muita freqüência tenham sido his- plica em rejeitar outras alternativas possíveis. Ora, onde há
toricamente antecipadas: boa pa,rte das especulações for- escolhas, nesse momento introduz-se a questão dos valores.
mais que os homens têm elaborado é constituída de criações Entretanto, tais construções, que se fazem segundo um certo
lógico-matemáticas sem aplicações imediatamente visíveis e formalismo, comportam claramente maior grau de neutrali-
sem vínculo direto com a realidade social em que se origina- dade, pelo menos no seu plano interno.
ram. Nessas ciências, repito, é possível falar-se de uma re-
lativa neutralidade já que elas não se ocupam de valores. Posso imaginar agora um continuum do qual uma das
Contudo, parece estranho falar-se de objetividade neste ca- extremidades seria ocupada pelas ciências formais; antes do
so, pois que isso diz respeito a objetos. Tratar-se-ia então de meio, estariam as ciências físicas; mais adiante e já na segun-
uma objetividade subjetiva ou de uma subjetividade objeti- da metade, ficariam as ciências biológicas que já comportam
va, o que tem a aparência de um paradoxo. Estou insistin- a presença do homem; enfim, no outro extremo, aparecem
do nisso de propósito, a fim de mostrar como mesmo aí a as ciências humanas e sociais, que se ocupam do homem em
situação é contraditória. O problema, pois, é como sair des- seu relacionamento histórico, dentro de .formações sociais
sas contradições, como superá-las. concretas. Estas últimas mergulham totalmente num mun-
do de valores, num mundo de opções e decisões, políticas e
Na medida em que as disciplinas formais não lidam com outras. As ciências no seu conjunto são assim o produto de
o!Jjetos do mundo ex'cerior, objetos como, por exemplo, um ações humanas efetivas sobre o real ou de ações interiori-
ser biológico ou um fato psicológico (uma emoção, por exem- zadas (v.g.: operações lógico-matemáticas); como tais, elas
plo), ou seres sociológicos como uma instituição ou uma clas- comportam necessariamente uma dimensão axiológica. Por-
se social, nessa mesma medida elas seriam subjetivas. Se- tanto, essa atividade produz simultaneamente conhecimen-
riam elas então menos rigorosas porque não-objetivas? Na tos científicos particulares e uma certa visão do mundo ou
verdade, essE~. contradição entre subjetividade e objetividade de parte dele.
e gerada por uma distinção que faz parte da tradição cultu-
ral do Ocidente: a dicotomia entre sujeito e objeto. Ora, se Parece ter ficado claro que é maior a dificuldade de
apanharmos a coisa dialeticamente de modo a perceber que, manter o ideal de neutralidade quando o objeto de estudo
provavelmente, as disciplinas formais têm algo a ver tam- é o próprio homem, porque nenhum de nós consegue ser
bém com o real (pelo menos no plano das ações do sujeito neuho diante dessa realidade e, querer sê-lo, já é tomar par-
que as cria), e a compreender que nas ciências factuais a tido. Não há, portanto, como sair desse círculo de implica-
objetividade só é possível com a subjetividade, porque é um ções? Acredito ser possível encarar algumas saídas parciais.
sujeito que se constrói e constrói o real atuando sobre este Uma delas evidentemente - sempre ao nível da leitura tex-
e sofrendo as suas influências, e que assim pensa o mundo tual- está em usar os instrumentos formais que o espírito
e se pensa, veremos enfim ser esse sujeito que produz enun- humano tem criado coletivamente. Com efeito, quanto mais
ciados sobre os objetos no meio dos quais ele se inclui. rigorusos e refinados forem esses instrumentos, maior será
Portanto, mesmo no interior das ciências formais sur- a margem de segurança na construção de conhecimentos ci-
gem dificuldades em relação à neutralidade, à objetividade entíficús de um determinado tipo. Mas essas criações pade-
e ao rigor. Mesmo se me mantenho no plano da leitura tex- cem as contingências e limitações que derivam da condição
tual. Por exemplo, uma teoria lógica ou uma estrutura ma- essencial de seu criador: um espírito datado e situado.

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to ao rigor do raciocínio empregado, mas seus enunciados temática em que estabeleço definições, regras de construção
têm de ser contrastados com o real, ou com os fatos tais co- (ou leis de composição), axiomas e postulados, e a partir daí
mo são construídos conceptualmente pela investigação. retiro rigorosamente por dedução as sUJas conseqi.'~ências.
Em relação às primeiras, é possível falar-se num grau etc.; mesmo aí se põe um problema de valores e a neutrali-
de rigor cada vez mais exigente, um grau de precisão cada dade não pode ser absoluta. Desde logo, uma proposição é
vez maior. Contudo, elas próprias sofrem transformações his- verdadeira apenas dentro das fronteiras da teoria conside-
tóricas, visto que não são criações eternas de um espírito rada. Além disso, quando eu defino, estabeleço limites. Quan-
absoluto. São respostas efetivas a necessidades concretas dos do estabeleço limites, faço opções. E se faço opções, isso im-
homens, ainda que com muita freqüência tenham sido his- plica em rejeitar outras alternativas possíveis. Ora, onde há
toricamente antecipadas: boa pa,rte das especulações for- escolhas, nesse momento introduz-se a questão dos valores.
mais que os homens têm elaborado é constituída de criações Entretanto, tais construções, que se fazem segundo um certo
lógico-matemáticas sem aplicações imediatamente visíveis e formalismo, comportam claramente maior grau de neutrali-
sem vínculo direto com a realidade social em que se origina- dade, pelo menos no seu plano interno.
ram. Nessas ciências, repito, é possível falar-se de uma re-
lativa neutralidade já que elas não se ocupam de valores. Posso imaginar agora um continuum do qual uma das
Contudo, parece estranho falar-se de objetividade neste ca- extremidades seria ocupada pelas ciências formais; antes do
so, pois que isso diz respeito a objetos. Tratar-se-ia então de meio, estariam as ciências físicas; mais adiante e já na segun-
uma objetividade subjetiva ou de uma subjetividade objeti- da metade, ficariam as ciências biológicas que já comportam
va, o que tem a aparência de um paradoxo. Estou insistin- a presença do homem; enfim, no outro extremo, aparecem
do nisso de propósito, a fim de mostrar como mesmo aí a as ciências humanas e sociais, que se ocupam do homem em
situação é contraditória. O problema, pois, é como sair des- seu relacionamento histórico, dentro de •formações sociais
sas contradições, como superá-las. concretas. Estas últimas mergulham totalmente num mun-
do de valores, num mundo de opções e decisões, políticas e
Na medida em que as disciplinas formais não lidam com outras. As ciências no seu conjunto são assim o produto de
olJjetos do mundo ex~erior, objetos como, por exemplo, um ações humanas efetivas sobre o real ou de ações interiori-
ser biológico ou um fato psicológico (uma emoção, por exem- zadas (v.g.: operações lógico-matemáticas); como tais, elas
plo), ou seres sociológicos como uma instituição ou uma clas- comportam necessariamente uma dimensão axiológica. Por-
se social, nessa mesma medida elas seriam subjetivas. Se- tanto, essa atividade produz simultaneamente conhecimen-
riam elas então menos rigorosas porque não-objetivas? Na tos científicos particulares e uma certa visão do mundo ou
verdade, ess8. contradição entre subjetividade e objetividade de parte dele.
é gerada por uma distinção que faz parte da tradição cultu-
ral do Ocidente : a dicotomia entre sujeito e objeto. Ora, se Parece ter ficado claro que é maior a dificuldade de
apanharmos a coisa dialeticamente de modo a perceber que, manter o ideal de neutralidade quando o objeto de estudo
provavelmente, as disciplinas formais têm algo a ver tam- é o próprio homem, porque nenhum de nós consegue ser
bém com o real (pelo menos no plano das ações do sujeito neutw diante dessa realidade e, querer sê-lo, já é tomar par-
que as cria), e a compreender que nas ciências factuais a tido. Não há, portanto, como sair desse círculo de implica-
objetividade só é possível com a subjetividade, porque é um ções? Acredito -ser possível encarar algumas saídas parciais.
sujeito que se constrói e constrói o real atuando sobre este Uma delas evidentemente - sempre ao nível da leitura tex-
e sofrendo as suas influências, e que assim pensa o mundo tual- está em usar os instrumentos formais que o espírito
e se pensa, veremos enfim ser esse sujeito que produz enun- humano tem criado coletivamente. Com efeito, quanto mais
ciados sobre os objetos no meio dos quais ele se inclui. rigor0sos e refinados forem esses instrumentos, maior será
Portanto, mesmo no interior das ciências formais sur- a margem de segurança na construção de conhecimentos ci-
gem dificuldades em relação à neutralidade, à objetividade entíficús de um determinado tipo. Mas essas criações pade-
e ao rigor. Mesmo se me mantenho no plano da leitura tex- cem as contingências e limitações que derivam da condição
tual. Por exemplo, uma teoria lógica ou uma estrutura ma- essencial de seu criador: um espírito datado e situado.
REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 15-40 1978 21
20 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 15-40 1978
Aliás, é esse o velho sonho da elaboração de uma lingua- ob3ervados; na sua escala de observação corrente, há uma
gem unívoca e rigorosa que está contido na tendência das como troca de influências; e na escala das macro-estruturas
ciências modernas a adotarem o modelo de formalização e do universo, o observador é arrastado pelos sistemas que es-
de axiomatização mediante o uso de formulações lógico-ma- tuda. Era certamente esse fato que fazia o físico suíço, Char-
temáticas e de algoritmos; bem como está presente aí a ilu- les Eugene GUYE, afirmar: "c'est le niveau de l'observation
são concomitante de que tal linguagem forneceria uma cor- qui crée le phénomene."
respondência perfeita com o real, retendo assim a verdade Se eu quisesse falar em linguagem poética, eu utilizaria
e eliminando os erros. Em plano diverso, não foi outro o de- o espanto de Cecília Meireles quando constata:
sejo ào sábio Confúcio quando indagado sobre qual seria
sua primeira lei se fosse imperador da China: "Minha pri- "Como as palavras se torcem
meira lei obrigaria meus súditos a definir o sentido das pa- conforme o interesse e o tempo!" (3)
lavras". Este desejo e aquele sonho trazem implícita a in-
clinação a impor às realidades mutantes uma estrutura per- Com efeito, não existe significação absoluta das pala-
manente e uma ordem exclusiva (noutras palavras: o con- vras. Estas têm a significação que as condições objetivas per-
trole da natureza e da sociedade). No entanto, tudo leva a mitem atribuir mediante as práticas lingüísticas. E é fácil
crer que as possibilidades e condições da descoberta, da in- verificar que nos movemos aqui dentro de um mundo mui
venção e da explicação residem, ao menos em parte, no ca- sutil.
ráter plurívoco e polissêmico de nossas linguagens. Portan- Uma outra saída é comumente apontada: a explicita-
to, a construção e a imposição de uma linguagem unívoca ção de nossos pontos de partida e de nossas opções ideológi-
como modelo exclusivo parecem tender a decretar, parado- cas. (O que constitui tarefa assaz ingrata). Quanto a estas
xalmente, a morte da prática criativa e do pensamento crí- últimas, a não ser no caso de posturas ideológicas já codi-
tico (2). ficadas num pensamento sist.emático, quase sempre esses
Eu diria, pois, que neutralidade e objetividade são me- componentes de nossa atividade racional acham-se inextrin-
tas ideais, são estados-limite jamais atingidos e para os quais cavelmente misturados com as astúcias de nosso psiquismo,
tendem o pensamento e ..t ação racional em seu afã de apa- sobretudo em sua dimensão afetiva. Se o problema da neu-
nhar o reai com suas malhas conceptuais cada vez mais aper- tralidade das ciências se restringisse a uma questão de maior
feiçoadas, segundo se crê, na direção de um isomorfismo ou menor objetividade e se esta se resolvesse no fato de eu
crescente. Contudo, isso supõe a intersubjetividade, ou seja, ser mais rigoroso comigo mesmo, de eu me livrar, por uma
a comunidade da crítica aos fundamentos daquilo que é pro.. tomada de consciência, de minhas preferências, de nJ.inhas
duzido e como o é. Portauto, as verdades que pretendemos emoções, de meus vc.Jores, isso seria solucionado coa1 certa
enunciar estão sempre relacionadas com os limites do sis- facilidade recorrenC:c t1 psicanálise, para citar .1 :-.c. p:-ocedi-
tema teórico adotado e com os limites do real que consegui- mento mais ou menos racional. Então, na medida em que
mos recortar com nosso aparato. Mesmo no campo da Fí- eu me conhecesse com muito rigor, com muita clareza e lu-
sica contemporânea, onde as proposições são formuladas com cidez, eu seria um üomem de ciência tanto mai. s perfeito e
maior rigor, seu grau de validade sofre também as duas li- capaz de perceber os fatos - e aqui estou pensanri..1 sobrc-
mitações polares que acabo de mencionar. Nessa mesma ar- ~u~o. na realidade social - com mais argúcia, com mais ob-
dera fenomenal, em sua escala microfísica, é bastante conhe- Jetividade e, por conseguinte, com mais neutralidad<:. Por-
cida a interferência que o observador exerce nos sistemas tm:to, no limite, o melhor trabalhador científico, nessa área,
sena um robô.
(2) Caberia acrescentar aqui o seguinte comentário: "como Albert Einstein Imaginemos agora esse observador ativo, sem emoções,
observou repetidamente, as hipóteses que constituem as modernas teorias sem p~·eferências, sem aspirações, sem valores, enfim, sem
da Física são "livres criações da mente", cuja invenção e elaboração re- empatia: que imagem construiria ele da vida social dos 110-
querem dotes imaginativos análogos aos que permitem a criação artística."
{Cf.: Binest NAGEL et alii: Filosofia da Ciência, São Paulo, Cultrix, 1967, (3) Cf.: "Romanceiro da Inconfidência", Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova
p. 21). Aguilar, 1977, p. 439.

22 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 15·40 1978 23
Aliás, é esse o velho sonho da elaboração de uma lingua- ob.3ervados; na sua escala de observação corrente, há uma
gem unívoca e rigorosa que está contido na tendência das como troca de influências; e na escala das macro-estruturas
ciências modernas a adotarem o modelo de formalização e do universo, o observador é arrastado pelos sistemas que es-
de axiomatização mediante o uso de formulações lógico-ma- tuda. Era certamente esse fato que fazia o físico suiço, Char-
temáticas e de algoritmos; bem como está presente aí a ilu- les Eugêne GUYE, afirmar: "c'est le niveau de l'observation
são concomitante de que tal linguagem forneceria uma cor- qui crée le phénomêne."
respondência perfeita com o real, retendo assim a verdade Se eu quisesse falar em linguagem poética, eu utilizaria
e eliminando os erros. Em plano diverso, não foi outro o de- o espanto de Cecília Meireles quando constata:
sejo ào sábio Confúcio quando indagado sobre qual seria
sua primeira lei se fosse imperador da China: "Minha pri- "Como as palavras se torcem
meira lei obrigaria meus súditos a definir o sentido das pa- conforme o interesse e o tempo!" (3)
lavras". Este desejo e aquele sonho trazem implícita a in-
clinação a impor às realidades mutantes uma estrutura per- Com efeito, não existe significação absoluta das pala-
manente e uma ordem exclusiva (noutras palavras: o con- vras. Estas têm a significação que as condições objetivas per-
trole da natureza e da sociedade). No entanto, tudo leva a mitem atribuir mediante as práticas lingüísticas. E é fácil
crer que as possibilidades e condições da descoberta, da in- verificar que nos movemos aqui dentro de um mundo mui
venção e da explicação residem, ao menos em parte, no ca- sutil.
ráter plurívoco e polissêmico de nossas linguagens. Portan- Uma outra saída é comumente apontada : a explicita-
to, a construção e a imposição de uma linguagem unívoca ção de nossos pontos de partida e de nossas opções ideológi-
como modelo exclusivo parecem tender a decretar, parado- cas. (O que constitui tarefa assaz ingrata). Quanto a estas
xalmente, a morte da prática criativa e do pensamento crí- últimas, a não ser no caso de posturas ideológicas já codi-
tico (2). ficadas num pensamento sist.emático, quase sempre esses
Eu diria, pois, que neutralidade e objetividade sã.o me- componentes de nossa atividade racional acham-se inextrin-
tas ideais, são estados-limite jamais atingidos e para os quais cavelmente misturados com as astúcias de nosso psiquismo,
tendem o pensamento e a ação racional em seu afã de apa- sobretudo em sua dimensão afetiva. Se o problema da neu-
nhar o reai com suas malhas conceptuais cada vez mais aper- tralidade das ciências se restringisse a uma questão de maior
feiçoadas, segundo se crê, na direção de um isomorfismo ou menor objetividade e se esta se resolvesse no fato de eu
crescente. Contudo, isso supõe a intersubjetividade, ou seja, ser mais rigoroso comigo mesmo, de eu me livrar, por uma
a comunidade da crítica aus fundamentos daquilo que é pro·· tomada de consciência, de minhas preferências, de nJ.inhas
duzido e como o é. Portauto, as verdades que pretendemos emoções, de meus vc:Iores, isso seria solucionado cca1 certa
enunciar estão sempre relacionadas com os limites do sis- facilidade recorrenC:.c t1 psicanálise, para citar ü. :-.c. p:-ocedi-
tema teórico adotado e com os limites do real que consegui- mento mais ou menos racional. Então, na medida em que
mos recortar com nosso aparato. Mesmo no campo da Fí- eu me conhecesse com muito rigor, com muita clareza e lu-
sica contemporânea, onde as proposições são formuladas com cidez, eu seria um üomem de ciência tanto ma\'5 perfeito e
maior rigor, seu grau de validade sofre também as duas li- capaz de perceber os fatos - e aqui estou pensan:i,) sobrc-
mitações polares que acabo de mencionar. Nessa mesma ar- ~u~o. na rE'alidade social - com mais argúcia, com mais ob-
dera fenomenal, em sua escala microfísica, é bastante conhe- Jetividade e, por conseguinte, com mais neutralidad~ . Por-
cida a interferência que o observador exerce nos sistemas tanto, no limite, o melhor trabalhador científico n essa área.
seria um robô. '
(2) Caberia acrescentar aqui o seguinte comentário : "como Albert Einstein Imaginemos agora esse observador ativo, sem emoções,
observou repetidamente, as hipóteses que constituem as modernas teorias sem preferências, sem aspirações sem valores enfim sem
da Física são "livres criações da mente", cuja invenção e elaboração re·
.
empat 1a: que imagem construiria ' ele da vida social
' ' ho-
dos
querem dotes imaginativos análogos aos que permitem a criação artística."
(Cf.: Binest NAGEL et alii: Filosofia da Ciência, São Paulo, Cultrix, 1967, (3) Cf.: "Romanceiro da Inconfidência", Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova
p. 21). Aguilar, 1977, p. 439 .

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mens? Não é difícil notar que estamos caindo outra vez nun: Ciência como mera contemplação da realidade que levou a
contra-senso: estamos a imaginar um observador sem sub- imaginar a sua neutralidade. Ora, a atividade científica não
jetividade, que é uma das condições da objetividade. E esta- se esgota no plano das constatações; ela é sobretudo produ-
mos partindo do pressuposto, cuja validade é por demais ção e transformação do sujeito e do real; portanto, a preten-
~uvidosa, de que um instrumento chamado 'psicanálise' -
sa neutralidade das ciências - das Ciências Sociais em par-
gE:rado historicamente e por um sujeito enraizado nas con- ticular - constitui, na verdade, a cortina de fumaça com
tradições de sua sociedade - seria capaz de nos fornecer que se procurava velar as condições reais em que tais prá-
tal lucidez paradoxal . ticas sociais elaboram os seus produtos. Viria muito a pro-
Qual seria, pois, a saída? Evidentemente, não há res- pósito lembrar aqui o comentário sarcástico de HOBBES:
posta definitiva para essa questão. Uma solução aproxima- se o teorema de Pitágoras afetasse de algum modo os inte-
da e sempre provisória estaria em multiplicar as instâncias resses de uma classe no poder, certamente iá teria surgido
da discussão, ampliar os horizontes possíveis, intensificar o alguém para refutá-lo.
confronto crítico, manter o esforço permanente de explici-
tação de suas próprias crenças, aspirações e ideologias. Nu-
ma palavra, o exercício incessante daquilo que BACHELARD O PLANO EXTERNO
chamava de vigilância epistemológica, a qual, em sua con-
cepção, ultrapassava as fronteiras analíticas da leitura tex- Com isso, evidencia-se a urgente necessidade de intro-
tual. duzir o que chamei de leitura contextual, a fim de romper
A questão não se reduz tampouco ao nível do ethos da c círculo artificial da discusão mantida dentro do que foi
ciência. Noutros termos, não se trata de mera probidade in- identificado como plano interno das ciências.
telectual. Diante de um mesmo fato, um Karl Marx, um Mesmo correndo o risco de parecer repetitivo, terei de
Durkheim, um Max Weber, um Pareto, cada um deles for- recorrer agora a variações dos mesmos argumentos a fim
neceria uma interpretação diferente. E isso não dependeria de sublinhar a importância deste segundo nível de análise
do esforço que fizessem eles para ser objetivos e honestos. e mostrar a sua articulação com o primeiro.
Isso se deve muito mais aos seus pontos de partida diversos. De uma coisa estou certo: o homem de ciência não é
O consenso que talvez se estabelecesse entre eles, se fosse um puro espírito, inteiramente racional e consciente, cujos
possível colocar esses indivíduos - que tomo aqui como mo- atos e propósitos seriam totalmente objetivos, cujos pressu-
delares - em torno de uma mesa, derivaria da medida em postos seriam todos perfeitamente conhecidos e explicitados,
que explicitassem seus pontos de partida e fossem capazes cujos métodos e instrumentos lhe forneceriam uma transpa-
de tomar consciência dos limites e do alcance de suas for- rência da realidade e seriam imunes a toda influência per-
~ulações teóricas. Eles poderiam chegar a um certo acordo turbadora (4). Isso constitui o mito ou a ilusão de que o pes-
pela interfecundação de suas perspectivas. Parece óbvio, no quisador rigoroso seria capaz de partir do grau zero; o que
entanto, que as possibilidades reais dessa hipótese são mui- vale dizer: um ser humano não-histórico. Ora, por maior que
to remotas, já que existem dimensões do problema que não seja o seu esforço ou desejo de objetividade e de neutralida-
estão sendo contempladas aqui. Como quer que seja, sem de, não poderá ele jamais livrar-se definitivamnte de todas
sair dos limites auto-impostos por esse nível de análise, to- as pré-noções e crenças, de todos os hábitos mentais e ima-
da a história das ciênciãs apresenta-se como um imenso es- gens que constituem o legado da sociedade em que sua inte-
forço para realizar aquilo que PIAGET identifica como as ligência e sua imaginação se desenvolvem e atuam.
descentrações do pensamento. _ Desse modo, os que defendem uma ciência neutra! su-
Finalmente, talvez fosse possível dizer que MARX vis- poe~ uma separação absoluta entre o contexto da justifi-
lumbrou, com profundidade e muita lucidez, o fulcro da caçao e o contexto da descoberta (ou em outras palavras: o
questão, na undécima tese contra FEUERBACH. Pode ser
que eu não me esteja situando exatamente no sentido de sua (4) Que eu saiba, só existe um sujeito no universo capaz de realizar a proeza
dessa transcendência absoluta: é um cidadão chamado 'Deus' mas este
afirmação, mas quero crer que foi a tendência a conceber a nunca nos falou dessas coisas ...

24 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978 REV. DE C. SOCIALS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 15-40 1978
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mens? Não é difícil notar que estamos caindo outra vez nun:. Ciência como mera contemplação da realidade que levou a
contra-senso: estamos a imaginar um observador sem sub- imaginar a sua neutralidade. Ora, a atividade científica não
jetividade, que é uma das condições da objetividade. E esta- se esgota no plano das constatações; ela é sobretudo produ-
mos partindo do pressuposto, cuja validade é por demais ção e transformação do sujeito e do real; portanto, a preten-
~uvidosa, de que um instrumento chamado 'psicanálise' -
sa neutralidade das ciências - das Ciências Sociais em par-
gc;rado historicamente e por um sujeito enraizado nas con- ticular - constitui, na verdade, a cortina de fumaça com
tradições de sua sociedade - seria capaz de nos fornecer que se procurava velar as condições reais em que tais prá-
tal lucidez paradoxal. ticas sociais elaboram os seus produtos. Viria muito a pro-
Qual seria, pois, a saída? Evidentemente, não há res- pósito lembrar aqui o comentário sarcástico de HOBBES:
posta definitiva para essa questão. Uma solução aproxima- se o teorema de Pitágoras afetasse de algum modo os inte-
da e sempre provisória estaria em multiplicar as instâncias resses de uma classe no poder, certamente iá teria surgido
da discussão, ampliar os horizontes possíveis, intensificar o alguém para refutá-lo.
confronto crítico, manter o esforço permanente de explici-
tação de suas próprias crenças, aspirações e ideologias. Nu-
ma palavra, o exercício incessante daquilo que BACHELARD O PLANO EXTERNO
chamava de vigilância epistemológica, a qual, em sua con-
cepção, ultrapassava as fronteiras analíticas da leitura tex- Com isso, evidencia-se a urgente necessidade de intro-
tual. duzir o que chamei de leitura contextual, a fim de romper
A questão não se reduz tampouco ao nível do ethos da c círculo artificial da discusão mantida dentro do que foi
ciência. Noutros termos, não se trata de mera probidade in- identificado como plano interno das ciências.
telectual. Diante de um mesmo fato, um Karl Marx, um Mesmo correndo o risco de parecer repetitivo, terei de
Durkheim, um Max Weber, um Pareto, cada um deles for- recorrer agora a variações dos mesmos argumentos a fim
neceria uma interpretação diferente. E isso não dependeria de sublinhar a importância deste segundo nível de análise
do esforço que fizessem eles para ser objetivos e honestos. e mostrar a sua articulação com o primeiro.
Isso se deve muito mais aos seus nontos de nartida diversos. De uma coisa estou certo: o homem de ciência não é
O consenso que talvez se estabelecesse entre eles, se fosse um puro espírito, inteiramente racional e consciente, cujos
possível colocar esses indivíduos - que tomo aqui como mo- atos e propósitos seriam totalmente objetivos, cujos pressu-
delares - em torno de uma mesa, derivaria da medida em postos seriam todos perfeitamente conhecidos e explicitados,
que explicitassem seus pontos de partida e fossem capazes cujQs métodos e instrumentos lhe forneceriam uma transpa-
de tomar consciência dos limites e do alcance de suas for- rên cia da realidade e seriam imunes a toda influência per-
~ulações teóricas. Eles poderiam chegar a um certo acordo turbadora (4). Isso constitui o mito ou a ilusão de que o pes-
pela interfecundação de suas perspectivas. Parece óbvio, no quisador rigoroso seria capaz de partir do grau zero; o que
entanto, que as possibilidades reais dessa hipótese são mui- vale dizer: um ser humano não-histórico. Ora, por maior que
to remotas, já que existem dimensões do problema que não sej a o seu esforço ou desejo de objetividade e de neutralida-
estão sendo contempladas aqui. Como quer que seja, sem de, n ão poderá ele jamais livrar-se definitivamnte de todas
sair dos limites auto-impostos por esse nível de análise, to- as pré-noções e crenças, de todos os hábitos mentais e ima-
da a história das ciências apresenta-se como um imenso es- gens que constituem o legado da sociedade em que sua inte-
forço para realizar aquilo que PIAGET identifica como as ligência e sua imaginação se desenvolvem e atuam.
descentrações do pensamento. _ Desse modo, os que defendem uma ciência neutra! su-
Finalmente, talvez fosse possível dizer que MARX vis- poem uma separação absoluta entre o contexto da justifi-
lumbrou, com profundidade e muita lucidez, o fulcro da cação e o contexto da descoberta (ou em outras palavras: o
questão, na undécima tese contra FEUERBACH. Pode ser
C4) Que eu saiba, só existe um sujeito no universo capaz de realizar a proeza
que eu não me esteja situando exatamente no sentido de sua dessa transcendência absoluta: é um cidadão chamado 'Deus' mas este
afirmação, mas quero crer que foi a tendência a conceber a nunca nos falou dessas coisas ...

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25
contexto da produção). O primeiro seria apanhado por um
tratamento lógico rigoroso; o s€gundo seria deixado aos cui- Em seu belo ensaio, intitulado "Qu'est-ce qu'une idéo-
logie scientifique?", Georges CANGUILHEM sustenta um
dados de psicólogos, sociólogos e historiadores. Ora, a partir ponto de vista a esse respeito com o qual não concordo in-
dessa distinção é fácil dar mais um passo e acreditar que a teiramente, sobretudo quando afirma (e aqui está o núcleo
Ciência está hermeticamente protegida por o Método contra de sua concepção) :
as contaminações e contingências. Daí por que o tipo ideal
desse padrão de cientista seria o computador, cujo modelo "Uma ideologia científica não é uma falsa
seria o de uma linguagem unívoca que operasse conforme consciência como é o caso de uma ideologia políti-
uma correspondência perfeita entre empiria e teoria; ou, em ca de classe. Não é tampouco uma falsa ciência.
outros termos, realizasse a captação de "dados puros" de É próprio de uma falsa ciência jamais encontrar
que as teorias seriam o reflexo objetivo. Essa é inegavelmen- o falso, não ter que renunciar a nada, jamais ter
te uma imagem simplista que elimina como por um passe de que mudar de linguagem. ( ... ) O discurso de uma
mágica as dimensões históricas, políticas, econômicas, cul- falsa ciência não pode receber desmentido. Em su-
turais, ideoJJógicas, religiosas, etc., intrínsecas a qualquer ma, a falsa ciência não tem história. Uma ideolo-
prática social ou produção coletiva dos homens. gia científica possui uma história, por exemplo o
É verdade que a prática social de produção de conheci- atomismo. . . Uma ideologia científica se acaba,
mentos científicos constitui o esforço no sentido de uma pro- quando o lugar que ela ocupava na enciclopédia
gressiva tomada de consciência e de uma progressiva críti- do saber acha-se investido por uma disciplina que
ca de seus fundamentos, de modo a permitir uma constru- faz a prova, operativamente, da validade de suas
ção cada vez mais justa do sujeito e do objeto. E esse esfor- normas de cientificidade. Nesse momento, um cer-
ço inclui necessariamente opções valorativas tanto ao nível to domínio de não-ciência é determinado por ex-
teórico (o da chamada ciência "pura") quanto ao nível da clusão. ( ... ) numa ideologia científica há uma
ação (o da chamada ciência aplicada ou tecnologia). Entre- ambição explícita de ser ciência, à imitação de
tanto, mesmo reconhecendo a sua especificidade e a sua re- algum modelo de ciência já constituída. ( ... ) A
lativa autonomia, é preciso não esquecer que o lugar das ci- existência de ideologias científicas implica a exis-
ências é o das forças produtivas mas também o da ideologia. tência paralela e prévia de discursos científicos e,
Conceitos como 'objetividade', 'neutralidade', 'raciona- por conseguinte, a separação já operada entre ciên-
lidade', 'rigor', etc., quando tomados como absolutos, reme- cia e religião. ( ... ) A ideologia científica é evi-
tem a produção de conhecimentos científicos à atividade de dentemente o desconhecimento das exigências me-
um ser desencarnado. Ora, como tenho insistido, o homem todológicas e das possibilidade operatórias da ciên-
de ciência não é em momento algum um espírito absoluto, cia no setor da experiência que ela busca investir,
mas um ser histórico e concreto, cujos instrumentos epistê- mas ela não é ignorância, ou o desprezo ou a re-
micos - sua consciência reflexiva, sua inteligência e sua cusa da função da ciência" (S).
imaginação - foram fabricados num determinado contexto
social, econômico e cultural, que deita as suas raízes num , N_o meu entender, não é propriamente nesse nível que se
passado, o qual explica em grande parte a gênese e a estru- da a Ideologia da ciência. Isso que Georges CANGUILHEM
tura das ciências. A esperança de opor ciência e ideologia, ~hama de 'ideologia científica' constitui, na verdade, uma
ou o desejo de reduzir ou evacuar as ideologias pelas ciên- Ima~em do real que se poderia dizer pré-científica e isso na
cias, pode constituir um nobre intento, mas tem sido uma medida em que aceitemos os critérios de cientificidade e de
vã empresa no plano da realidade. Toda a história das ciên- d_<:_ma_rcação supostos na sua concepção. Ora, a ideologia das
Cias está a demonstrar que elas se nutrem sem exceção - c~en~I~, con:_o prefiro dizer para evitar certa ambigüidade
no seu conteúdo mesmo, na sua modalidade de produção e semantiCa, nao está aí. Ela reside na imposição de uma ra-
no lugar social de sua realização - de concepções filosófi- (5) Cf.: _ld,!ologie et Rationalité, op. cit., p. 39. (O ensaio referido constitui
cas, religiosas, políticas, econômicas, etc. o pnmeuo capítulo, p. 3 3-45).

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contexto da produção) . O primeiro seria apanhado por um
tratamento lógico rigoroso; o s€gundo seria deixado aos cui- Em seu belo ensaio, intitulado "Qu'est-ce qu'une idéo-
logie scientifique?", Georges CANGUILHEM sustenta um
dados de psicólogos, sociólogos e historiadores. Ora, a partir
ponto de vista a esse respeito com o qual não concordo in-
dessa distinção é fácil dar mais um passo e acreditar que a teiramente, sobretudo quando afirma (e aqui está o núcleo
Ciência está hermeticamente protegida por o Método contra de sua concepção) :
as contaminações e contingências . Daí por que o tipo ideal
desse padrão de cientista seria o computador, cujo modelo "Uma ideologia científica não é uma falsa
seria o de uma linguagem unívoca que operasse conforme consciência como é o caso de uma ideologia políti-
uma correspondência perfeita entre empiria e teoria; ou, em ca de classe. Não é tampouco uma falsa ciência.
outros termos, realizasse a captação de "dados puros" de É próprio de uma falsa ciência jamais encontrar
que as teorias seriam o reflexo objetivo. Essa é inegavelmen- o falso, não ter que renunciar a nada, jamais ter
te uma imagem simplista que elimina como por um passe de que mudar de linguagem. ( ... ) O discurso de uma
mágica as dimensões históricas, políticas, econômicas, cul- falsa ciência não pode receber desmentido. Em su-
turais, ideo]ógicas, religiosas, etc., intrínsecas a 'qualquer ma, a falsa ciência não tem história. Uma ideolo-
prática social ou produção coletiva dos homens. gia científica possui uma história, por exemplo o
É verdade que a prática social de produção de conheci- atomismo ... Uma ideologia científica se acaba,
mentos científicos constitui o esforço no sentido de uma pro- quando o lugar que ela ocupava na enciclopédia
gressiva tomada de consciência e de uma progressiva críti- do saber acha-se investido por uma disciplina que
ca de seus fundamentos, de modo a permitir uma constru- faz a prova, operativamente, da validade de suas
ção cada vez mais justa do sujeito e do objeto. E esse esfor- normas de cientificidade. Nesse momento, um cer-
ço inclui necessariamente opções valorativas tanto ao nível to domínio de não-ciência é determinado por ex-
teórico (o da chamada ciência "pura") quanto ao nível da clusão. ( ... ) numa ideologia científica há uma
ação (o da chamada ciência aplicada ou tecnologia). Entre- ambição explícita de ser ciência, à imitação de
tanto, mesmo reconhecendo a sua especificidade e a sua re- algum modelo de ciência já constituída. ( ... ) A
lativa autonomia, é preciso não esquecer que o lugar das ci- existência de ideologias científicas implica a exis-
ências é o das forças produtivas mas também o da ideologia. tência paralela e prévia de discursos científicos e,
Conceitos como 'objetividade', 'neutra,lidade', 'raciona- por conseguinte, a separação já operada entre ciên-
lidade', 'rigor', etc., quando tomados como absolutos, reme- cia e religião. ( ... ) A ideologia científica é evi-
tem a produção de conhecimentos científicos à atividade de dentemente o desconhecimento das exigências me-
um ser desencarnado. Ora, como tenho insistido, o homem todológicas e das possibilidade operatórias da ciên-
de ciência não é em momento algum um espírito absoluto, cia no setor da experiência que ela busca investir,
mas um ser histórico e concreto, cujos instrumentos epistê- mas ela não é ignorância, ou o desprezo ou a re-
micos - sua consciência reflexiva, sua inteligência e sua cusa da função da ciência" (S).
imaginação - foram fabricados num determinado contexto
social, econômico e cultural, que deita as suas raízes num , No meu entender, não é propriamente nesse nível que se
passado, o qual explica em grande parte a gênese e a estru- da a ideologia da ciência. Isso que Georges CANGUILHEM
tura das ciências. A esperança de opor ciência e ideologia, ?hama de 'ideologia científica' constitui, na verdade, uma
ou o desejo de reduzir ou evacuar as ideologias pelas ciên- Ima!?em do real que se poderia dizer pré-científica e isso na
cias, pode constituir um nobre intento, mas tem sido uma medida em que aceitemos os critérios de cientificidade e .de
vã empresa no plano da realidade. Toda a história das ciên- d.~ma.rcação supostos na sua concepção. Ora, a ideologia das
Cias está a demonstrar que elas se nutrem sem exceção - CI_en:Ia~, con:_o prefiro dizer para evitar certa ambigüidade
no seu conteúdo mesmo, na sua modalidade de produção e semantica, nao está aí. Ela reside na imposição de uma ra-
no lugar social de sua realização - de concepções filosófi-
<5> Cf.: _Id,!otogie et Rationalité, op. cit., p. 39. (O ensaio referido constitui
cas, religiosas, políticas, econômicas, etc. o pnme1ro capítulo, p. 33-45).

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cionalidade como exclusiva e dominante; uma forma de cons- tirados de outros empreendimentos possíveis e, provavelmen-
ciência aue HABERMAS chamaria de consciência tecnocrá- te mais prioritários. Ora, as escolhas inerentes a todos esses
tica e po-sitivista. Portanto, é a forma de consciência que as si~temas não são neutras. Portanto, não pode ser neutra a
ciências fabricam e as funções que elas cumprem ao nível do atividade científica e o produto que daí decorrem.
sistema de dominação de uma sociedade que instituem as Mas em geral as investigações quotidianas de cientistas
ciências como ideologia. A prática científica gera um para- individualmente considerados, mesmo no terreno da chama-
digma e se faz dentro dele. É, pois, esse paradigma que cons- da ciência "pura", lidam com questões de detalhe; daí ser
titui a sua ideologia. E o espaço social que ele ocupa é nesse difícil atribuirmos um valor qualquer, numa escala de maior
sentido bastante revelador. ou menor neutralidade, às respostas parciais que elas for-
Além disso, na fase atual do capitalismo, mediante are- necem . É, porém, ao nível das questões que elas formulam
gulação da vida social e econômica pela intervenção do Es- e do quadro dentro do qual operam que elas não são neutras.
tado, produz-se uma despolitização das massas e a praxis é De fato, da infinidade de questões que os homens podem
posta entre parênteses, uma vez que as questões dessa ordem propor a respeito das realidades do universo eles escolhem
passam a ser encaradas como possuindo um caráter técnico umas e excluem outras em consonância com o paradigma
e se arroga para elas um tratamento científico, dentro de segundo o qual atuam e que se molda aos horizontes ideo-
paradigma dominante. É nesse sentido que MARCUSE pôde lógicos da formação social em que se origina.
afirmar o fato de que as ciências e a tecnologia assumiram O exemplo da biologia fundamental é, nesse sentido, bas-
também o papel de uma ideologia, pois são elas que legitimam tante ilustrativo. Vejamos: no quadro imposto à biologia evo-
a forma de dominação política, social e econômica, que se lucionista pela revolução daruiniana do século XIX, suas me-
convencionou chamar de tecnocracia (6) . táforas (ou conceitos?) centrais, tomadas de empréstimo
Se tomarmos isoladamente um microexemplo de enun- à sociedade, referiam-se à concorrência entre as espécies, à
ciado científico - como: 'se a série produto de duas séries luta pela existência, à sobrevivência do mais apto, ao nicho
convergentes é também convergente, -sua soma é o produto ecológico, etc. Ora, elas traduziam fielmente as normas e
das somas de ambas as séries' ou 'a molécula de água é com- valores da sociedade em que foram elaboradas e contribuíam
posta de 2 átomos de hidrogênio e 1 átomo de oxigênio' - , para o ulterior desenvolvimento de sua ideologia fornecen-
talvez seja possível falarmos de neutralidade científica ou do-lhe um fundamento biológico aparentemente "inevitá-
de ausência de elementos ideológicos. No entanto, tais enun- vel". A história da Biologia nos mostra que tais metáforas
ciados são organicamente solidários com a coerência de uma substituíram outras mais antigas que articulavam intima-
racionalidade que é proposta ou imposta como exclusiva: mente essa disciplina com uma cosmogonia em que Deus era
única visão verdadeira e válida da realidade e que deve orien- o criador do universo. Atualmente, o discurso da Biologia
tar a prática social dos homens todos. Se passarmos, contu- utiliza outras metáforas que não são, evidentemente, neu-
do, para o amplo conjunto das atividades científicas, aquilo tras: regulação, comunidade, comunicação, feedback, inte-
que se passou a denominar a "big science" que, hoje, se pro- ração, etc.; elas são indubitavelmente mais adequadas à so-
duz com o indispensável suporte dos Estados modernos, aí ciedade hipercontrolada em que vivemos (1).
as coisas parecerão mais evidentes. Com efeito, os conheci- Entretanto, os filósofos da ciência, a partir do isolamen-
mentos científicos e tecnológicos, a energia e os recursos ne- to artificial que a análise efetua desse tipo de atividade, ten-
·cessários, por exemplo, para enviar o homem à Lua são re- dem freqüentemente a propiciar uma concepção de ciência
COJ?O algo "puro", que se distingue claramente da ideologia
(6) Uma das melhores análises desse tema está em Jorgen HABERMAS, no pms que deriva de critérios estritamente racionais e univer-
seu ensaio : La Tecnique et la Science comme "Idéo/ogie" (Paris: Galli- salmente válidos. Ora, quando nos colocamos na perspecti-
mard, 1973) , que por sua vez se fund amenta explicitamente nas análises
anteriores: realizadas por Herbert MARCUSE ( Cf. : sobretudo o ensaio va do que chamei de leitura contextual, não é difícil perce-
"Industrialización y Capi talismo en la obra de Max Weber", incluído em
seu livro : Cultura v Sociedad. Buenos Aires: Sur, 1967; e sua obra tra- (7) Retirei esse exemplo do excelente arti go de Stevén RO~·E é Hilary ROSE :
duzida no Brasil : -Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, "Le mythe de la neutralité de la science", Impact: Science et Société
Zahar, 1968). (UNESCO). Paris, 21 (2) : 169-170, 1971.

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I.

cionaiidade como exclusiva e dominante; uma forma de cons- tirados de outros empreendimentos possíveis e, provavelmen-
ciência aue HABERMAS chamaria de consciência tecnocrá- te mais prioritários. Ora, as escolhas inerentes a todos esses
tica e pÔsitivista. Portanto, é a forma de consciência que as si~temas não são neutras. Portanto, não pode ser neutra a
ciências fabricam e as funções que elas cumprem ao nível do atividade científica e o produto que daí decorrem.
sistema de dominação de uma sociedade que instituem as Mas em geral as investigações quotidianas de cientistas
ciências como ideologia. A prática científica gera um para- in dividualmente considerados, mesmo no terreno da chama-
digma e se faz dentro dele. É, pois, esse paradigma que cons- da ciência "pura", lidam com questões de detalhe; daí ser
titui a sua ideologia. E o espaço social que ele ocupa é nesse difícil atribuirmos um valor qualquer, numa escala de maior
sentido bastante revelador. ou menor neutralidade, às respostas parciais que elas for-
Além disso, na fase atual do capitalismo, mediante a re- n ecem. É, porém, ao nível das questões que elas formulam
gulação da vida social e econômica pela intervenção do Es- e do quadro dentro do qual operam que elas não são neutras.
tado, produz-se uma despolitização das massas e a praxis é De fato, da infinidade de questões que os homens podem
posta entre parênteses, uma vez que as questões dessa ordem propor a respeito das realidades do universo eles escolhem
passam a ser encaradas como possuindo um caráter técnico umas e excluem outras em consonância com o paradigma
e se arroga para elas um tratamento científico, dentro de segundo o qual atuam e que se molda aos horizontes ideo-
paradigma dominante. É nesse sentido que MARCUSE pôde lógicos da formação social em que se origina.
afirmar o fato de que as ciências e a tecnologia assumiram O exemplo da biologia fundamental é, nesse sentido, bas-
também o papel de uma ideologia, pois são elas que legitimam tante ilustrativo. Vejamos: no quadro imposto à biologia evo-
a forma de dominação política, social e econômica, que se lucionista pela revolução daruiniana do século XIX, suas me-
convencionou chamar de tecnocracia (6). táforas (ou conceitos?) centrais, tomadas de empréstimo
Se tomarmos isoladamente um microexemplo de enun- à sociedade, referiam-se à concorrência entre as espécies, à
ciado científico - como: 'se a série produto de duas séries luta pela existência, à sobrevivência do mais apto, ao nicho
convergentes é também convergente,-sua soma é o produto ecológico, etc. Ora, elas traduziam fielmente as normas e
das somas de ambas as séries' ou 'a molécula de água é com- valores da sociedade em que foram elaboradas e contribuíam
posta de 2 átomos de hidrogênio e 1 átomo de oxigênio' -, para o ulterior desenvolvimento de sua ideologia fornecen-
talvez seja possível falarmos de neutralidade científica ou do-lhe um fundamento biológico aparentemente "inevitá-
de ausência de elementos ideológicos. No entanto, tais enun- vel" . A história da Biologia nos mostra que tais metáforas
ciados são organicamente solidários com a coerência de uma substituíram outras mais antigas que articulavam intima-
racionalidade que é proposta ou imposta como exclusiva: mente essa disciplina com uma cosmogonia em que Deus era
única visão verdadeira e válida da realidade e que deve orien- o criador do universo. Atualmente, o discurso da Biologia
tar a prática social dos homens todos. Se passarmos, contu- utiliza outras metáforas que não são, evidentemente, neu-
do, para o amplo conjunto das atividades científicas, aquilo tras : regulação, comunidade, comunicação, jeedback, inte-
que se passou a denominar a "big science" que, hoje, se pro- ração, etc.; elas são indubitavelmente mais adequadas à so-
duz com o indispensável suporte dos Estados modernos, aí ciedade hipercontrolada em que vivemos (1).
as coisas parecerão mais evidentes. Com efeito, os conheci- Entretanto, os filósofos da ciência, a partir do isolamen-
mentos científicos e tecnológicos, a energia e os recursos ne- to artificial que a análise efetua desse tipo de atividade, ten-
·cessários, por exemplo, para enviar o homem à Lua são re- dem freqüentemente a propiciar uma concepção de ciência
COJ?O algo "puro", que se distingue claramente da ideologia
(6) Uma das melhores análises desse tema está em Jorgen HABERMAS, no pms que deriva de critérios estritamente racionais e univer-
seu ensaio: La Tecnique et la Science comme "Idéologie" (Paris: Galli- salmente válidos. Ora, quando nos colocamos na perspecti-
mard, 1973) , que por sua vez se fundam enta explicitamente nas análises
anteriores: re alizadas por Herbert MARCUSE (Cf.: sobretudo o ensaio va do que chamei de leitura contextual, não é difícil perce-
u,
"Industrialización y Capitalismo en la obra de Max Weber", incluído em
seu livro: Cultura -v Sociedad. Buenos Aires : Sur, 1967; e sua obra tra· (7) Retirei esse exemplo do excelente artigo de Stevén ROSE é Hilary ROSE:
duzida no Brasil: ·Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, "Le mythe de Ia neutralité de Ia science", Impact : Science et Société
Zahar, 1968). (UNESCO), Paris, 21 (2): 169-170, 1971.

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ber que: primeiro, as ciências não estão absolutamente iso- ou em suas classificações é simplesmente categorizado como
ladas das demais instâncias e práticas sociais, e, segundo, excepcional ou patológico, ou então é evacuado ou margina-
a sua produção não é feita por um puro espírito trabalhan- lizado, perdendo. o direito d ee:cistênc.ia o.u d~ .c~dadan.ia em
do no vazio e isento da determinação de outros critérios e seu território. Eis por que a Ideologia cientlficista (que se
valores diferentes daqueles fornecidos, de um lado, pela coe- apresenta sob várias formas conforme a situação: "raciona-
rência lógica do discurso científico, pelas regras operatórias, lidade instrumental", "ideologia da competência", "ideologia
etc., e, de outro, pelo grau de eficácia das aplicações técni- da eficácia", etc.) é fundamentalmente conservadora. Ela
cas do conhecimento alcançado. Muito pelo contrário, a pro- tenta dissimular, sob a roupagem pretensamente universal,
dução social das ciências só se faz possível dentro do contex- intemporal, verdadeira e neutra da linguagem matemática
to dos problemas reais de sua sociedade, com seu arsenal _ que é, na realidade, uma vasta normalização do pensa-
de conceitos e teorias acumulado historicamente, e essa pro- mento e da expressão segundo um modelo dicotômico -,
dução está orientada na direção dos quadros ideológicos do- as contradições reais dentro das quais as ciências são pro-
minantes. Existe, pois, um lugar social de fabricação dos ob- duzidas. Quando só o "normal" ou o "regular" são conside-
jetos científicos e, na medida em que essa base social e o seu rados racionais, é fácil perceber as conseqüências políticas
quadro ideológico sofrem mudanças, o modo de produção que daí podem ser intrinsecamente derivadas. Todo saber
desses objetos se transforma também. E isso é tanto mais se funda assim num ato de poder. Portanto, uma sociedade
verdadeiro quanto mais tais práticas se derem no campo que pretender instituir-se pelas ciências, segundo o paradig-
das Ciências do Homem. ma aqui comentado, secretará necessariamente a violência.
Portanto, a emergência de certos temas como objeto de Encerro esses apontamentos com uma convicção que se
conhecimento, e pelos quais a chamada comunidade cientí- torna cada vez mais sólida para mim. Um dos efeitos mais
fica manifesta interesses, está relacionada com as condições profundos e mais arraigados da ideologia cientificista é a ilu-
materiais de sua produção - e ninguém ignora, por exem- são iluminista segundo a qual a Ciência é tomada como a
plo, quão importante é hoje a proporção das investigações realização suprema e definitiva do espírito humano, e é con-
científicas que se realizam a partir de demandas provenien- traposta a outros saberes tidos como menores, falsos, mági-
tes das áreas militares - e com os horizontes ideológicos cos e ineficazes, os quais mantiveram, em épocas anteriores,
sob os quais e dentro dos quais se dá a prática social cria- a mente humana no obscurantismo de crenças e supersti-
dora desse tipo de saber parmi d'autres. ções alienantes. No entanto, parece legítimo reconhecer que
As ciências, na sua versão positivista dominante, cons- a nossa sabedoria sempre se antecipou ao saber científico e
tituem uma das formulações mais sofisticadas que produz a o superou mediante a ficção e a poesia, o mito e a utopia,
nova corporação de escribas a serviço do poder nas socieda- que constituem talvez as formas de expressão mais altas
do espírito humano. -
des ditas avançadas. Daí a sua obsessão de rigor e da neu-
tralidade, expressa numa racionalidade instrumental e que
se pretende única. Fecha-se assim a fivela, como diria SAR-
TRE. Seria bom, no entanto, não esquecer a reflexão de Max ANEXOS
WEBER a esse respeito: a racionalidade científica exige o
1
desencantamento do mundo, mas exige também procedimen- Nota - Reproduzo a seguir alguns textos de apoio à discus-
tos cada vez mais racionais de controle e de repressão. são do tema aqui considerado. Quando não encon-
11 Enfim, as regras e os critérios, segundo os quais a de- trei a fonte em vernáculo, fiz eu mesmo a tradução.
terminadas ;práticas sociais de produção de conhecimento
é imputado um estatuto de cientificidade, seguem o mesmo I
processo de excludência pelo qual as classes no poder se re-
produzem e garantem a continuidade das formas de domi- . "Ao invés de procurar adequar aos fenômenos seus raciocí-
nação. É assim que só existe ciência daquilo que é "regular": n~os e suas explicações pelas causas, eles constrangem os fe-
o que não cabe em seus quadros conceptuais normalizadores nomenos a entrar no quadro de certos raciocínios e de cer-
REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978
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ber que: primeiro, as ciências não estão absolutamente iso- ou em suas classificações é simplesmente categorizado como
ladas das demais instâncias e práticas sociais, e, segundo, excepcional ou patológico, ou então é evacuado ou margina-
a sua produção não é feita por um puro espírito trabalhan- lizado, perdendo. o direito d ee.xistênc_ia o_u d~. c~dadania em
do no vazio e isento da determinação de outros critérios e seu território. Eis por que a Ideologia cientlficista (que se
valores diferentes daqueles fornecidos, de um lado, pela coe- apresenta sob várias formas conforme a situação: "raciona-
rência lógica do discurso científico, pelas regras operatórias, lidade instrumental", "ideologia da competência", "ideologia
etc., e, de outro, pelo grau de eficácia das aplicações técni- da eficácia", etc.) é fundamentalmente conservadora. Ela
cas do conhecimento alcançado. Muito pelo contrário, a pro- t en ta dissimular, sob a roupagem pretensamente universal,
dução social das ciências só se faz possível dentro do contex- intemporal, verdadeira e neutra da linguagem matemática
to dos problemas reais de sua sociedade, com seu arsenal _ que é, na realidade, uma vasta normalização do pensa-
de conceitos e teorias acumulado historicamente, e essa pro- mento e da expressão segundo um modelo dicotômico -,
dução está orientada na direção dos quadros ideológicos do- as contradições reais dentro das quais as ciências são pro-
minantes. Existe, pois, um lugar social de fabricação dos ob- duzidas. Quando só o "normal" ou o "regular" são conside-
jetos científicos e, na medida em que essa base social e o seu rados racionais, é fácii perceber as conseqüências políticas
quadro ideológico sofrem mudanças, o modo de produção que daí podem ser intrinsecamente derivadas. Todo saber
desses objetos se transforma também. E isso é tanto mais se funda assim num ato de poder. Portanto, uma sociedade
verdadeiro quanto mais tais práticas se derem no campo que pret ender instituir-se pelas ciências, segundo o paradig-
das Ciências do Homem. ma aqui comentado, secretará necessariamente a violência.
Portanto, a emergência de certos temas como objeto de Encerro esses apontamentos com uma convicção que se
conhecimento, e pelos quais a chamada comunidade cientí- torna cada vez mais sólida para mim. Um dos efeitos mais
fica manifesta interesses, está relacionada com as condições profundos e mais arraigados da ideologia cientificista é a ilu-
materiais de sua produção - e ninguém ignora, por exem- são iluminista segundo a qual a Ciência é tomada como a
plo, quão importante é hoje a proporção das investigações realização suprema e definitiva do espírito humano, e é con-
científicas que se realizam a partir de demandas provenien- traposta a outros saberes tidos como menores, falsos, mági-
tes das áreas militares - e com os horizontes ideológicos cos e ineficazes, os quais mantiveram, em épocas anteriores,
sob os quais e dentro dos quais se dá a prática social cria- a mente h umana no obscurantismo de crenças e supersti-
dora desse tipo de saber parmi d'autres. ções alienantes. No entanto, parece legítimo reconhecer que
As ciências, na sua versão positivista dominante, cons- a nossa sabedoria sempre se antecipou ao saber científico e
tituem uma das formulações mais sofisticadas que produz a o superou mediante a ficção e a poesia, o mito e a utopia,
nova corporação de escribas a serviço do poder nas socieda- que constituem talvez as formas de expressão mais altas
do espírito humano. -
des ditas avançadas. Daí a sua obsessão de rigor e da neu-
tralidade, expressa numa racionalidade instrumental e que
se pretende única. Fecha-se assim a fivela, como diria SAR-
TRE. Seria bom, no entanto, não esquecer a reflexão de Max ANEXOS
WEBER a esse respeito: a racionalidade científica exige o
desencantamento do mundo, mas exige também procedimen- Nota - Reproduzo a seguir alguns textos de apoio à discus-
tos cada vez mais racionais de controle e de repressão. são do tema aqui considerado. Quando não encon-
Enfim, as regras e os critérios, segundo os quais a de- t rei a fonte em vernáculo, fiz eu mesmo a tradução.
terminadas ;práticas sociais de produção de conhecimento
é imputado um estatuto de cientificidade, seguem o mesmo I
processo de excludência pelo qual as classes no poder se re-
produzem e garantem a continuidade das formas de domi- . "Ao invés de procurar adequar aos fenômenos seus raciocí-
nação. É assim que só existe ciência daquilo que é "regular": n:_os e suas explicações pelas causas, eles constrangem os fe-
o que não cabe em seus quadros conceptuais normalizadores nomenos a entrar no quadro de certos raciocínios e de cer-
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tas opiniões aceitas aos quais eles se esforçam por fazer cor- Alguns cientistas, que podem ser chamados de "positi-
responder sua organização do mundo." vistas", pretendem apenas descrever os fenômenos e suas re-
lações, graças a enunciados teóricos que dão conta deles de
ARISTóTELES maneira eficaz e cômoda, mas sem querer desvelar verdadei-
Traité du Ciel, II, 13. Paris: ramente os "segredos" da realidade. Outros, ao contrário,
Les Belles Lettres, p. 85. possuem uma concepção "realista": eles estimam que exis-
te uma realidade objetiva, regida por leis também objetivas,
II e que a ciência deve e pode revelá-las. Os newtonianos, por
exemplo, acreditavam firmemente que sua física exprimia
"Os homens de ciência crêem libertar-se da filosofia ig- uma verdade absoluta. Ao contráriÕ, Mach pensava que a
norando-a ou vituperando-a. Mas como, sem pensamento, noção de molécula não passava de uma "imagem sem valor".
eles não avançam um passo e como, para pensar, necessi- A microfísica contemporânea coloca problemas análogos.
tam de categorias lógicas, do mesmo modo que, por outro Tais maneiras de ver correspondem a tradições bastan-
lado, tomam essas categorias, sem fazer-lhes a crítica, quer te antigas e a conflitos ideológicos importantes."
na consciência comum das pessoas ditas cultas, consciência
que é dominada por restos de filosofia há muito caduca, quer Pierre THUILLIER
nas migalhas de filosofia colhidas nos cursos obrigatórios da Jeux et Enjeuex de la Science
Universidade (o que representa não apenas pontos de vista - essais d'épistémologie criti-
fragmentários, mas também uma confusão de opiniões de in- que. Paris: R. Laffont, 1972,
divíduos pertencentes às mais diversas escolas e na maioria p. 61.
dos casos as piores delas), quer ainda na leitura desordena- IV
da e sem crítica de produções filosóficas de toda espécie, nem
por isso estão eles fora do jugo da filosofia e, infelizmente, na "O verdadeiro problema que o ensino rias matemáticas
maioria das vezes, da pior delas. . . ( ... ) A questão está ape- tem de enfrentar não é o problema do rigor, mas o problema
nas em saber se eles d~sejam ser dominados por alguma má tla construção do "sentido", da "justificação ontológica" dos
filosofia na moda, ou se preferem deixar-se guiar por uma objetos matemáticos."
forma de pensamento teórico que repousa sobre o conhecimen- Isso me leva a tratar do grande cavalo de batalha dos
to da história do pensamento e de suas aquisições." modernistas (na Europa continental): o rigor e a axiomática.
Sabe-se que a esperança de ãar às matemáticas um funda-
F. ENGELS mento rigorosamente formal foi irremediavelmente arruina-
Dialectique de la N ature. Pa- da pelo teorema de Godel. Não parece entretanto que os ma-
temáticos, em sua atividade profissional, sofram muito com
ris: E di tions Sociales, p. 211. essa situação. Por quê? Porque na prática o pensamento do ma..
temático jamais é um pensamento formalizado. O matemático
III fornece um sentido a toda proposição, o que lhe permite es-
"Por "TT.aicr que seja seu desejo de não cair na filosofw, quecer a expressão dessa proposição no interior de toda for-
os cientistas não podem evitar de ter uma concepção de "ci- malização da teoria, se é que existe uma (o sentido confere
ência". Pode ocorrer-lhes de não formular claramente ess8. à proposição um estatuto ontológico independente de toda
concepção ou podem imaginar que ela é neutra. É sem dú- formalização). Pode-se, creio eu, afirmar com toda sereni-
vida uma ilusão, pois não existe definição universal e evi- dade que os únicos procedimentos formais em matemática
dente daquilo que deve ser a ciência, daquilo que lhe é per- são c& cálculos, numérico e algébrico. Ora, será que se pode
mitido e daquilo que lhe é proibido. . . Qual é a finalidade reduzir a matemática ao cálculo? Certamente que não, pois
das pesquisas científicas? Num ponto aparentemente tão mesmo numa situação inteiramente calculatória, o processo
simples, o acordo está longe de ser alcançado. mesmo do cálculo deve ser escolhido em meio a um grande

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tas opiniões aceitas aos quais eles se esforçam oor fazer cor- Alguns cientistas, que podem ser chamados de "positi-
vistas", pretendem apenas descrever os fenômenos e suas re-
responder sua organização do mundo." lações, graças a enunciados teóricos que dão conta deles de
ARISTóTELES maneira eficaz e cômoda, mas sem querer desvelar verdadei-
Traité du Ciel, II, 13. Paris: ramente os "segredos" da realidade. Outros, ao contrário,
Les Belles Lettres, p. 85. possuem uma concepção "realista": eles estimam que exis-
te uma realidade objetiva, regida por leis também objetivas,
II e que a ciência deve e pode revelá-las. Os newtonianos, por
exemplo, acreditavam firmemente que sua física exprimia
"Os homens de ciência crêem libertar-se da filosofia ig- uma verdade absoluta. Ao contrário, Mach pensava que a
norando-a vu vituperando-a. Mas como, sem pensamento, noção de molécula não passava de uma "imagem sem valor".
eles não avançam um passo e como, para pensar, necessi- A microfísica contemporânea coloca problemas análogos.
tam de categorias lógicas, do mesmo modo que, por outro Tais maneiras de ver correspondem a tradições bastan-
lado, tomam essas categorias, sem fazer-lhes a crítica, quer te antigas e a conflitos ideológicos importantes."
na consciência comum das pessoas ditas cultas, consciência Pierre THUILLIER
que é dominada por restos de filosofia há muito caduca, quer
nas migalhas de filosofia colhidas nos cursos obrigatórios da Jeux et Enjeuex de la Science
Universidade (o que representa não apenas pontos de vista - essais d' épistémologie criti-
fragmentários, mas também uma confusão de opiniões de in- que. Paris: R. Laffont, 1972,
divíduos pertencentes às mais diversas escolas e na maioria p. 61.
dos casos as piores delas), quer ainda na leitura desordena- IV
da e sem crítica de produções filosóficas de toda espécie, nem
por isso estão eles fora do jugo da filosofia e, infelizmente, na "O verdadeiro problema que o ensino rias matemáticas
maioria das vezes, da pior delas. . . ( ... ) A questão está ape- tem de enfrentar não é o problema do rigor, mas o problema
nas em saber se eles desejam ser dominados por alguma má da construção do "sentido", da "justificação ontoZógica" dos
filosofia na moda, ou se preferem deixar-se guiar por uma objetos matemáticos."
forma de pensamento teórlco que repousa sobre o conhecimen- Isso me leva a tratar do grande cavalo de batalha dos
to da história do pensamento e de suas aquisições." modernistas (na Europa continental): o rigor e a axiomática.
Sabe-se que a esperança de ãar às matemáticas um funda-
F. ENGELS mento rigorosamente formal foi irremediavelmente arruina-
da pelo teorema de Godel. Não parece entretanto que os ma-
Dialectique de la Nature. Pa-
temáticos, em sua atividade profissional, sofram muito com
ris: Editions Sociales, p. 211. essa situação. Por quê? Porque na prática o pensamento do ma··
temático jamais é um pensamento formalizado. O matemático
III fornece um sentido a toda proposição, o que lhe permite es-
"Por >naicr que seja seu desejo de não cair na filosofw, quecer a expressão dessa proposição no interior de toda for-
os cientistas não podem evitar de ter uma concepção de "ci- malização da teoria, se é que existe uma (o sentido confere
ência" . Pode ocorrer-lhes de não formular claramente ess8, à proposição um estatuto ontológico independente de toda
concepção ou podem imaginar que ela é neuLra. É sem dú- formalização). Pode-se, creio eu, afirmar com toda sereni-
vida uma ilusão, pois não existe definição universal e evi- dade que os únicos procedimentos formais em matemática
dente daquilo que deve ser a ciência, daquilo que lhe é per- são c& cálculos, numérico e algébrico. Ora, será qu.e se pode
mitido e daquilo que lhe é proibido. . . Qual é a finalidade reduzir a matemática ao cálculo? Certamente que não, pois
das pesquisas científicas? Num ponto aparentemente tão mesmo numa situação inteiramente calculatória, o processo
simples, o acordo está longe de ser alcançado. mesmo do cálculo deve ser escolhido em meio a um grande

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número de possibilidades. E só a interpretação intuitiva das energias, porque isso corresponderia a "níveis cada vez mais
quantidades manipuladas permite orientar essa escolha. As- profundos" da realidade. Seria preciso ir ver cada vez mais
sim, o acento posto pelos modernistas na axiomática é uma longe aquilo que se passa no infinitamente grande e no infi-
aberração, não apenas pedagógica (o que é bastante eviden- nitamente pequeno, devendo o conhecimento ser perseguido
te), mas também propriamente matemática. em direções opostas, determinadas aparentemente desde to-
Não se tirou, acredito, da axiomática hilbertiana a ver- da a eternidade . Mas, na verdade, as coisas não se passam
dadeira lição que dela se destaca e que é esta: só se chega assim. ( ... ) Gostaria de mencionar um último elemen-
ao rigor absoluto eliminando a significação; o rigor absolu- to ( ... ): o problema do conteúdo da ciência. Uma vez es-
to só é possível na e pela insignificância. Mas se for neces- colhida a direção da pesquisa e tendo como aceita a organi-
sário escolher entre rigor e sentido, eu escolherei sem hesi- zação do trabalho nesse domínio, a maneira segundo a qual
tação o sentido. Tem sido essa a escolha que sempre se fez fazemos pesquisa seria modulada pela ideologia? A saber, se-
em matemática, onde praticamente sempre se opera numa rá que os teoremas demonstrados pelos matemáticos depen-
situação semi-formalizada, com uma metalinguagem que é dem da ideologia dominante ou não? Apresentada dessa for-
a linguagem ordinária, não-formalizada. E a profissão intei- ma caricatura!, a resposta é evidentemente "não". ( ... ) Sa-
ra se contenta com essa situação impura e não exige outra be-se que, em França, a escola matemática foi dominada du-
melhor." rante aproximadamente três décadas pela corrente dita
René THOM Bourbakista. Tal corrente se apresentou a si mesma, em seus
livros, na massa de artigos de vulgarização ou de apologia
"Mathématiques modernes eL que a envolve, como o Futuro com F maiúsculo, como a cor-
mathématiques de toujours", rente dominante das matemáticas modernas- como se não
in: A. GROTHENDIECK et al. : houvesse outras vias, como se, com toda a evidência, as ma-
Pourquoi la Methématique?, temáticas modernas tivessem entrado num período de abs-
coll. 10/ 18. Paris: UGE, 1974, tração totalitária e de axiomatização inelutáveis. Creio que
pp. 48-49. avaliando simplesmente a realidade, perceberemos que é fal-
so. Os matemáticos americanos, por exemplo, compreendem
v seu trabalho iiE' maneira mui diversa e, contt-.do, trata-se das
" ... em que a ideologia intervém no funcionamento da mesmas matemáticas e dos mesmos teoremas. Eu estava, há
ciência? Poder-se-ia perguntar no final das contas o que vem três anos, numa escola de verão, onde eram dados cursos
fazer a ideologia aí dentro: os cientistas examinam o real, de matemáticas para físicos. Dois matemáticos apresenta-
a matéria, que são o que são e que não se pode modificar, ram lá sensivelmente o mesmo curso sobre um objeto ma-
e os cientistas o fazem com seus métodos próprios - cien- ~emático - que se chama "álgebras estelares", mas pouco
tíficos! A ideologia, pode-se pensar, não tem -nada a ver aqui; lJ?porta aqui-; o conteúdo aparente era o mesmo, no sen-
no máximo, poderia intervir depois, quando os filósofos se ti.do de que eram os mesmos teoremas? Portanto, em princí-
preocupam com os resultados científicos e tentam explorá- PIO, as mesmas demonstrações. Ora, no fundo, tais cursos
-los, ou quando os ideólogos tentam deles se servir. De fato, eram completamente opostos e revelavam duas concepções
um dos enunciados da ideologia dominante - enunciado do mundo totalmente diferentes, duas ideologias da prática
matemática."
jamais explicitado mas subjacente na maioria dos comentá-
rios sobre a ciência - afirma que a ciência teria um desen-
volvimento inelutável e linear, por razões internas à prática Jean-Marc LEVY-LEBLOND
científica. Noutros termos, os problemas científicos se su-
cederiam necessariamente uns aos outros de tal modo, por In: Michel PATY et al.: "Sci-
exemplo, que no fim do século XIX era preciso fazer eletro- ense et Idéologie en Débat",
magnetismo, depois, física quântica no início do século XX, Fundamenta Scientiae, Stras·
e que agora seria preciso fazer física das partículas de altas bourg, 1974, pp. 8-11.

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número de possibilidades. E só a interpretação intuitiva das energias, porque isso corresponderia a "níveis cada vez mais
quantidades manipuladas permite orientar essa escolha. As- profundos" da realidade. Seria preciso ir ver cada vez mais
sim, o acento posto pelos modernistas na axiomática é uma longe aquilo que se passa no infinitamente grande e no infi-
aberração, não apenas pedagógica (o que é bastante eviden- nitamente pequeno, devendo o conhecimento ser perseguido
te), mas também propriamente matemática. em direções opostas, determinadas aparentemente desde to-
Não se tirou, acredito, da axiomática hilbertiana a ver- da a eternidade. Mas, na verdade, as coisas não se passam
dadeira lição que dela se destaca e que é esta: só se chega assim. ( ... ) Gostaria de mencionar um último elemen-
1. 1 ao rigor absoluto eliminando a significação; o rigor absolu- to ( ... ): o problema do conteúdo da ciência. Uma vez es-
to só é possível na e pela insignificância. Mas se for neces- colhida a direção da pesquisa e tendo como aceita a organi-
sário escolher entre rigor e sentido, eu escolherei sem hesi- zação do trabalho nesse domínio, a maneira segundo a qual
tação o sentido. Tem sido essa a escolha que sempre se fez fazemos pesquisa seria modulada pela ideologia? A saber, se-
em matemática, onde praticamente sempre se opera numa rá que os teoremas demonstrados pelos matemáticos depen-
situação semi-formalizada, com uma metalinguagem que é dem da ideologia dominante ou não? Apresentada dessa for-
a linguagem ordinária, não-formalizada. E a profissão intei- ma caricatura!, a resposta é evidentemente "não". ( ... ) Sa-
ra se contenta com essa situação impura e não exige outra be-se que, em França, a escola matemática foi dominada du-
melhor.'' rante aproximadamente três décadas pela corrente dita
René THOM Bourbakista. Tal corrente se apresentou a si mesma, em seus
livros, na massa de artigos de vulgarização ou de apologia
"Mathématiques modernes eL que a envolve, como o Futuro com F maiúsculo, como a cor-
mathématiques de toujours", rente dominante das matemáticas modernas- como se não
in: A. GROTHENDIECK et al.: houvesse outras vias, como se, com toda a evidência, as ma-
Pourquoi la Methématique?, temáticas modernas tivessem entrado num período de abs-
coll. 10/ 18. Paris: UGE, 1974, tração totalitária e de axiomatização inelutáveis. Creio que
pp. 48-49. ava1iando simplesmente a realidade, perceberemos que é fal-
so. Os matemáticos americanos, por exemplo, compreendem
v seu trabalho ile maneira mui diversa e, contLLdo, trata-se das
" ... em que a ideologia intervém no funcionamento da mesmas matemáticas e dos mesmos teoremas. Eu estava, há
ciência? Poder-se-ia perguntar no final das contas o que vem três anos, numa escola de verão, onde eram dados cursos
fazer a ideologia aí dentro: os cientistas examinam o real, de matemáticas para físicos. Dois matemáticos apresenta-
a matéria, que são o que são e que não se pode modificar, ram lá sensivelmente o mesmo curso sobre um objeto ma-
e os cientistas o fazem com seus métodos próprios - cien- ~emático - que se chama "álgebras estelares", mas pouco
tíficos! A ideologia, pode-se pensar, não tem -nada a ver aqui; u:nporta aqui -; o conteúdo aparente era o mesmo, no sen-
no máximo, poderia intervir depois, quando os filósofos se ti.do de que eram os mesmos teoremas? Portanto, em princí-
preocupam com os resultados científicos e tentam explorá- PIO, as mesmas demonstrações. Ora, no fundo, tais cursos
-los, ou quando os ideólogos tentam deles se servir. De fato, eram completamente opostos e revelavam duas concepções
um dos enunciados da ideologia dominante - enunciado do mundo totalmente diferentes, duas ideologias da prática
matemática."
jamais explicitado mas subjacente na maioria dos comentá-
rios sobre a ciência - afirma que a ciência teria um desen-
volvimento inelutável e linear, por razões internas à prática Jean-Marc LEVY-LEBLOND
científica. Noutros termos, os problemas científicos se su-
cederiam necessariamente uns aos outros de tal modo, por In: Michel PATY et al.: "Sci-
exemplo, que no fim do século XIX era preciso fazer eletro- ense et Idéologie en Débat",
magnetismo, depois, física quântica no início do século XX, Fundamenta Scientiae, Stras·
e que agora seria preciso fazer física das partículas de altas bourg, 1974, pp. 8-11.

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lijl
VI
aparelho técnico de produção e de destruição que assegura
"A ciência da natureza se desenvolve sob o a priori tec- e facilita a vida dos indivíduos, ao mesmo tempo que os su-
n ológico que projeta a n atureza como instrumento poten- bordina aos senhores do aparelho. Assim, a hierarquia ra-
cial, material de controle e organização. ( ... ) O a pri ori tec- cional se funde com a social. Se esse for o caso, então uma
nológico é um a pri ori político considerando-se que a t rans- mudança na direção do progresso, que rompesse essa liga-
formação da natureza compreende a do nomcm, e que as ção fatal, também afetaria a própria estrutura da ciência -
"criações de autoria do homem " partem de um conjunto so- 0 projeto científico. Sem perder seu caráter racional, suas
cial e reingressam nele. Poder-se-á ainda insistir em que a hipóteses se desenvolveriam num contexto experimental es-
maquinaria do universo tecnológico é, "como tal", indife- sencialmente diferente (o de um mundo pacificado) ; conse-
rente aos fins políticos -pode revolucionar ou retardar uma qüentemente, a ciência chegaria a conceitos da n atureza es-
sociedade. Um computador eletrônico pode servir ao mesmo sencialmente diferentes e estaria em condições de estabele-
tempo a uma administração capitalista ou socialista; um ci- cer fatos essencialmente diferentes. A sociedade racional sub-
verte a idéia de Razão."
clótron pode ser uma ferramenta igualmente eficiente para
um grupo bélico ou um grupo pacifista. Essa neutralidade Herbert MARCUSE
é contest ada na discutida declaração de Marx de que "o
moinho manual vos dará a sociedade com o suzerano; o moi- Ideologia da Sociedade Indus-
nho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial" (A trial. Rio: Zahar, 1967, pp.
Miséria da Filosofia, cap. II, "Segunda Observação"). E es- 150, 154, 160.
sa declaração é mais tarde modificada pela própria teoria
marxista: o modo social de produção, e não a técnica, é o VII
fator histórico básico. Contudo, quando a técnica se torna
a forma universal de produção material, circunscreve t oda "Mas, à medida que a grande indústria se desenvolve,
uma cultura; projeta uma totalidade histórica - um a cria~ão da verdadeira riqueza depende menos do tcmoo e
li "mundo" . ( ... ) da quantidade de trabalho empregados do que da ação dos
O método científico que levou à dominação da nature- fatores postos em movimento no curso do trabalho, cuja po·
za, cada vez mais eficaz, forneceu assim tanto os conceitos derosa eficácia é sem medida comum com o tempo de tra-
purcs como os instrumentos para a dominação cada vez balho imediato que a produção custa; ela depende muito
111
maior do homem pelo homem mediante a dominação da n a- mais do estado geral da ciência e do progresso tecnológico,
tureza. A razão teórica, permanecendo pura e neutra, entrou aplicação dessa ciência à produção. (O desenvolvimento des-
para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica sa ciência, o das ciências naturais em particular e, graças
para ambas. Hoje, a dominação se perpetua e se estende n [;.c a estas, de todas as outras, está por sua vez ligado ao desen-
apenas por meio da tecnologia, mas como tecnologia, e esta volvimento da produção material.) ( ... ) A natureza não
garante a grande legitimação do crescente poder político que constrói locomotivas, nem ferrovias, nem telégrafos elétricos,
absorve todas as esferas da cultura. ( . .. ) A racionalidade téc- ne>m máquinas automáticas, etc. São produtos da indústria hu-
nológica protege assim, ao invés de questionar, a legitimidade mana, materiais naturais transformados em órgãos da von-
da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre t.ade humana para dominar a natureza ou para nela se rea-
sobre uma sociedade racionalmente totalitária . ( ... ) lJzar. São órgãos do cérebro humano criados pela mão elo
O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em homem; é a potência materializada do saber. O desenvolvi-
vir tude de seu própri o m étodo e de seus conceitos, projetou mento . do capital fixo mostra a que ponto o conjunto dos
c?nh~cirnentos (knowledge) se tornou uma potência produ-
e promoveu um universo no qual a dominação da nature~a
permaneceu ligada à dominação do homem - uma ligaçao hv~ I:Uediata, a que ponto as condições do processo vital da
que tende a ser fatal para esse universo em seu todo. A na- SC'Cleaade estão submetidas a seu controle e transformadas
tureza, científica compreendida e dominada, reaparece no seg'.J.ndo su_as normas, a que ponto as forças produtivas as-
sunurarn nao apenas um aspecto científico, mas se tornaram
36 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG . 15-40 1978
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aparelho técnico de produção e de destruição que assegura
"A ciência da natureza se desenvolve sob o a priori tec- e facilita a vida dos indivíduos, ao mesmo tempo que os su-
n ológico que projeta a n atureza como instrumento poten- bordina aos senhores do aparelho. Assim, a hierarquia ra-
cial, material de controle e organização. ( . . . ) O a pri ori tec- cional se funde com a social. Se esse for o caso, então uma
nológico é um a priori político considerando-se que a t ran s- mudança na direção do progresso, que rompesse essa liga-
formação da natureza compreende a do nomcm, e que as ção fatal, também afetaria a própria estrutura da ciência -
"criações de autoria do homem " partem de um conjunto so- 0 projeto científico. Sem perder seu caráter racional, suas
cial e reingressam nele. Poder-se-á ainda insistir em que a hipóteses se desenvolveriam num context o experimental es-
maquinaria do universo tecnológico é, "como tal", indife- sencialmente diferente (o de um mundo pacificado) ; conse-
rente aos fins políticos -pode revolucionar ou retardar uma qüentemente, a ciência chegaria a conceitos da n at ureza es-
sociedade. Um computador eletrônico pode servir ao mesmo sencialmente diferentes e estaria em condições de estabele-
tempo a uma administração capitalista ou socialista; um ci- cer fatos essencialmente diferentes. A sociedade racional sub-
verte a idéia de Razão."
clótron pode ser uma ferramenta igualmente eficiente para
um grupo bélico ou um grupo pacifista. Essa neutralidade Herbert MARCUSE
é contestada na discutida declaração de Marx de que "o
moinho manual vos dará a sociedade com o suzerano; o moi- Ideologia da Sociedade Indus-
nho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial" (A trial. Rio: Zahar, 1967, pp.
Miséria da F i losofia, cap. II, "Segunda Observação") . E es- 150, 154, 160.
sa declaração é mais tarde modificada pela própria teoria
marxista: o modo social de produção, e não a técnica, é o VII
fator histórico básico. Contudo, quando a técnica se torna
a forma universal de produção material, circunscreve t oda "Mas, à medida que a grande indústria se desenvolve,
uma cultura; projeta uma totalidade histórica - um a criaç_ão da verdadeira riqueza depende menos do temno e
"mundo" . ( ... ) da quantidade de trabalho empregados do que da ação dos
O método científico que levou à dominação da nature- fatores postos em movimento no curso do trabalho, cuja po ·
za, cada vez mais eficaz, forneceu assim tanto os conceitos derosa eficácia é sem medida comum com o tempo de tra-
111 purcs como os instrumentos para a dominação cada vez balho imediato que a produção custa; ela depende muito
maior do homem pelo homem mediante a dominação da na- mais do estado geral da ciência e do progresso tecnológico,
tureza. A razão teórica, permanecendo pura e neutra, ent rot; aplicação dessa ciência à produção. (O desenvolvimento des-
para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica sa ciência, o das ciências naturais em particular e, graças
para ambas. Hoje, a dominação se perpetua e se estende n&.c a estas, de todas as outras, está por sua vez ligado ao desen-
apenas por meio da tecnologia, mas como tecnrn ogia, e esta volvimento da produção material.) ( .. . ) A natureza não
garante a grande legitimação do crescente poder político que constrói locomotivas, nem ferrovias, nem telégrafos elétricos,
absorve todas as esferas da cultura. ( .. . ) A racionalidade téc- nPm máquinas automáticas, etc. São produtos da indústria hu-
nológica protege assim, ao invés de questionar, a legitimidade mana, materiais naturais transformados em órgãos da von-
da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre t.ade humana para dominar a natureza ou para nela se rea-
sobre uma sociedade racionalmente totalitária. ( ... ) lJzar. São órgãos do cérebro humano criados pela mão elo
O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em homem; é a potência materializada do saber. O desenvolvi-
mento . do capital fixo mostra a que ponto o conjunto dos
vir tude de seu própri o m étodo e de seus conceitos, projetou
c?nh~c1rnentos (knowledge) se tornou uma potência produ-
e promoveu um universo no qual a dominação da nature~a
permaneceu ligada à dominação do homem - uma ligaçao tlv~ l!llediata, a que ponto as condições do processo vital da
que tende a ser fatal para esse universo em seu todo. A na- SC'Cleaade estão submetidas a seu controle e tran sformadas
tureza, científica compreendida e dominada, reaparece no seg'.J.ndo su_as normas, a que ponto as forças produtivas as-
sunnram nao apenas um aspecto científico, mas se t ornaram
36 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG . 15-40 1978
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órgãos diretos da prática social e do processo real da exis- IX
tência."
"Ciência e Tecnologia nos são apresentadas como "ver-
Karl MARX dades absolutas", acima das paixões e ideologias políticas, e
como se sua aplicação aos problemas da sociedade, em virtu-
Princípios de Uma Crítica da de de sua racionalidade e amoralidade, pudesse fornecer so-
Economia Política (Grundris- luções em benefício de todos. A praxis, todavia, não parece
se), in: OEUVRES, Économie, conferir muita substância ao argumento da neutralidade des-
t. !I, "Bibliothêque de la tituída de juízos de valores, mesmo ao tratar-se de ciências
Pléiade" Paris: Gallimard, exatas. Na vida real, limitar a avaliação de determinadas in-
1968, pp. 305 e 307. venções científico-técnicas a critérios puramente "racionais"
significa abrir o caminho para que homens se transformem
VIII em cretinos morais, no desempenho de seus papéis técnicos.
Na medida em que nossa sociedade cria papéis sociais para
"A ideologia evolucionista funciona como auto-justifi- técnicos, cientistas e profissionais, em cujo desempenho são
cação dos interesses de um tipo de sociedade, a sociedade in- obrigados a ignorar tudo que está além das implicações téc-
dustrial em conflito com a sociedade tradicional, de um la- nicas ou instrumentais de seu trabalho, ela gera personalida-
do; com a reivindicação social, de outro. Por um ladl), ideo- des psicopatas e torna toda a estrutura social patogênica."
logia anti-teológica e, por outro, anti-socialista. Reencon- Henrique RATTNER
tramos aqui o conceito marxista de ideologia, como sendo a
representação da realidade natural ou social cuja verdade "Prefácio" ao livro de Vanya
não reside naquilo que ela diz mas naquilo que ela cala. Bem M. SANT'ANNA: Ciência e So-
entendido, o evolucionismo do século XIX não se resume na ciedade no Brasil. São Paulo:
ideologia spenceriana Tal ideologia, contudo, tem colorido Ed. Símbolo, 1978, p. 13.
mais ou menos de modo duradouro as pesquisas de lingüís-
tas e etnólogos; ela carregou de um sentido duradouro o con- X
ceito de primitivo; forneceu boa consciência aos povos colo-
nizadores. Alguns de seus restos ainda podem ser encontra- "As ciências têm duas extremidades que se tocam. A pri-
dos agindo na conduta das sociedades avançadas para com meira é a ignorância natural em que se acham todos os ho-
as sociedades ditas "em vias de desenvolvimento", mesmo mens ao nascer. A outra é a extremidade a que chegam as
depois que a antropologia culturalista, ao reconhecer a plu- grandes almas, as quais, tendo percorrido tudo e que os ho-
ralidade das culturas, parecia poder interditar a qualquer mens podem saber, verificam que não sabem nada e se des-
uma dentre elas de se erigir em norma de apreciação e em cobrem nessa mesma ignorância de que partiram; mas é uma
medida do ;;r<m de realização das outras. Ao liquidar suas ignorância sábia, que se conhece. Aqueles que ficam entre as
origens evolucionistas, a lingüística, a etnologia e a sociolo- duas e que, saindo da ignorância natural, não puderam al-
gia contemporâneas apresentavam uma espécie de prova do cançar a outra, têm alguma tintura dessa ciência pretencio-
fato de que uma ideologia desaperece quando suas condições sa e fazem-se de entendidos. Esses perturbam o mundo e jul-
gam a respeito de tudo pior do que os outros."
de possibilidades históricas mudaram."
PASCAL
Georges CANGUILHEM
"Pensées", 308 (327), Oeuvres
Idéologie et Rationalité dans Completes, "Bibliothêque de la
l'Hist.oire des Sciences de la Vie. Pléiade". Paris: Gallimard,
Paris: J. Vrin, 1977, p. 43. 1954, p. U66.

REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 15-40 1978 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978 39
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órgãos diretos da prática social e do processo real da exis- IX
tência. "
"Ciência e Tecnologia nos são apresentadas como "ver-
Karl MARX dades absolutas", acima das paixões e ideologias políticas, e
como se sua aplicação aos problemas da sociedade, em virtu-
Princípios de Uma Crítica da de de sua racionalidade e amoralidade, pudesse fornecer so-
Economia Política (Grundris- luções em benefício de todos. A praxis, todavia, não parece
se), in: OEUVRES, Économie, conferir muita substância ao argumento da neutralidade des-
t. II, "Bibliothêque de la tituída de juízos de valores, mesmo ao tratar-se de ciências
Pléiade" Paris: Gallimard, exatas. Na vida real, limitar a avaliação de determinadas in-
1968, pp. 305 e 307. venções científico-técnicas a critérios puramente "racionais"
significa abrir o caminho para que homens se transformem
VIII em cretinos morais, no desempenho de seus papéis técnicos.
Na medida em que nossa sociedade cria papéis sociais para
"A ideologia evolucionista funciona como auto-justifi- técnicos, cientistas e profissionais, em cujo desempenho são
cação dos interesses de um tipo de sociedade, a sociedade in- obrigados a ignorar tudo que está além das implicações téc-
dustrial em conflito com a sociedade tradicional, de um la- nicas ou instrumentais de seu trabalho, ela gera personalida-
do; com a reivindicação social, de outro. Por um ladl), ideo- des psicopatas e torna toda a estrutura social patogênica."
logia anti-teológica e, por outro, anti-socialista. Reencon- Henrique RATTNER
tramos aqui o conceito marxista de ideologia, como sendo a
representação da realidade natural ou social cuja verdade "Prefácio" ao livro de Vanya
não reside naquilo que ela diz mas naquilo que ela cala. Bem M. SANT'ANNA: Ciência e So-
entendido, o evolucionismo do século XIX não se resume na ciedade no Brasil. São Paulo:
ideologia spenceriana Tal ideologia, contudo, tem colorido Ed. Símbolo, 1978, p. 13.
mais ou menos de modo duradouro as pesquisas de lingüís-
tas e etnólogos; ela carregou de um sentido duradouro o con- X
ceito de primitivo; forneceu boa consciência aos povos colo-
nizadores. Alguns de seus restos ainda podem ser encontra- "As ciências têm duas extremidades que se tocam. A pri-
dos agindo na conduta das sociedades avançadas para com meira é a ignorância natural em que se acham todos os ho-
as sociedades ditas "em vias de desenvolvimento", mesmo mens ao nascer. A outra é a extremidade a que chegam as
depois que a antropologia culturalista, ao reconhecer a plu- grandes almas, as quais, tendo percorrido tudo e que os ho-
ralidade das culturas, parecia poder interditar a qualquer mens podem saber, verificam que não sabem nada e se des-
uma dentre elas de se erigir em norma de apreciação e em cobrem nessa mesma ignorância de que partiram; mas é uma
medida do ;r<m de realização das outras. Ao liquidar suas ignorância sábia, que se conhece. Aqueles que ficam entre as
origens evolucionistas, a lingüística, a etnologia e a sociolo- duas e que, saindo da ignorância natural, não puderam al-
gia contemporâneas apresentavam uma espécie de prova do cançar a outra, têm alguma tintura dessa ciência pretencio-
fato de que uma ideologia desaperece quando suas condições sa e fazem-se de entendidos. Esses perturbam o mundo e jul-
de possibilidades históricas mudaram." gam a respeito de tudo pior do que os outros."
PASCAL
Georges CANGUILHEM
"Pensées", 308 (327), Oeuvres
Idéologie et Rationalité dans Completes, "Bibliothêque de la
l'Histoire des Sciences de la Vie. Pléiade". Paris : Gallimard,
Paris: J . Vrin, 1977, p. 43. 1954, p. U66 .

REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 15-40 1978 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N.0 s 1 e 2 PAG . 15-40 1978 39
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BACHELARD, Gaston - La Formation de l'Esprit scientifique - contribu-


tion à une psychanalyse de la connaissance objective. Paris, J. Vrin, 1970.
BENZO, Miguel - et alü. Once ensayos sobre la ciencia. Madrid, Fund. Juan
March, 1973.
BORN, Max - La responsabilidad dei científico. Barcelona, Labor, 1968.
BUNGE, Mario - Etica y ciencia. Buenos Aires, Siglo Veinte, 1972.
CANGUILHEM, Georges - Idéologia et rationalité dans l'histoire de sciences NOTAS SOBRE O ESTADO
de la Vie. Paris, J. Vrin, 1977. E A ORGANIZAÇÃO DA CIJ!:NCIA (*)
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SUR LES FONDEMENTS DES SCIENCES (organisé par H. Barreau,
J. Leite, Lopes, G. Monsonego, M. Paty) Strasbourg, Univ. Louis Pasteur,
197 4. (Co!. Fundamenta scientiae). Maria Valéria Junho Pena
DURKHEIM, Emile - Juízes de valor e juízes de realidade. In: Sociologie
et philosophie. Paris, F. Alcan, 1924, cap. 4.
FOUREZ, Gérard - La scicnce par1isane - essai sur les significations des
desmarches scientifiques. Gembloux (Bélgica), Duculot, 1974. I - Introdução
GROTHENDIECK, A. - et alii. Pourquoi la mathématique? Paris, UGE,
1974, (co!. 10/18).
HABERMAS, Jurgen - La technique et la science comme "ideologie". Paris,
Gallimard, 1973. O texto que se segue tem por principal objetivo especi-
Connaissance et interet. Paris, Gallimard, 1976. (Col. Biblio- ficar o domínio da ciência em contraposição ao da tecnolo-
theque philosophique). gia, adicionando algumas hipóteses sobre o padrão de rela-
JAPIASSU, Hilton - O Mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro, cionamento entre o primeiro e o Estado.
!mago., 1975. Para tanto foi imprescindível uma incursão à literatu-
JAUBERT, Alain, Levy-Leblond, et J. M. - (Auto) critique de la science.
Paris, Ed. du Seuil, 1973, (col. Science Ouverte). ra que se preocupa com a temática da organização da ciên-
KOYRÉ, Alexandre - Études d'histoire de la pensée scientifique. Paris, cia, tanto de seu modo interno de constituição e produção,
Gallimard, 1973. (Bibliothéque des Idées). quanto de suas interações com a estrutura social mais am-
MARCU~·E, Herbert - Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, pla. Em grande medida, essa incursão produziu esse texto.
Zahar, 1968.
ROCHA E SILVA, Maurício - Ciência pura, ciência aplicada - ensaios so-
Em resumo, a idéia que se procurou desenvolver é que
bre a explicação na ciência. São Paulo, Hucitec, 1976. a ciência e a tecnologia são fenômenos que se produzem a
ROSE, Hilary & ROSE, Steven - Science and society. Harmondsworth, Pen- níveis distintos da estrutura social e que, conseqüentemen-
guin Books, 1970. te, organizam-se segundo regras distintas: os dois fenôme-
Le mythe de la neutralité de la science. lmpact: science et so- nos referem-se a qualidades discretas e, portanto, suas re-
cieté. Paris, Unesco, 2 (21): 159-173, 1971.
Ideologia delle scienze natura/i. Milano, Feltrinelli, 1977. lações não são imediatas. Desta forma, o primeiro ponto
SCHWARTZMAN, Evry - Science et societé. Paris, Robert Laffont, 1971. enfatizado está relacionado com o "modo de produção" da
THUILLIER, Pierre - leux et enjeux de la science - essais d'épistémoligie ciência, seus princípios organizadores e legitimadores. Se-
critique. Paris, Robert Laffont, 1972. cundariamente buscou-se apontar algumas das transforma-
VARSA VSKY, Oscar - Por uma política científica nacional. Rio de Janeiro, ções que o desenvolvimento do Estado moderno operou quan-
Paz e Terra, 1976.
VAZ, Htnrique C. de Lima - O Ethos da atividade científica. R. Eclesiástica
to ao papel das atividades científicas, com algumas poucas
Brasileira (REB) 34: 45-73, 1974. referências ao caso brasileiro; nesse sentido os pontos sali-
WEBER, Max - Essais sur la théorie de la science. Paris, Plon. (Especial-
mente "L'objectivité de la connaissance dans les sciences et la politique (*) Esse trabalho foi produzido como parte de minhas atividades na Co-
sociales" e "Essai sur le sens de la 'neutralité axiologique' dans les sciences ordenação de Estudos da Superintendência de Planejamento do CNPq;
sociologiques et économiques"). 1965. contudo, a posição sobre o tema em questão é inteiramente pessoal. Agra-
WEIZSACKER, C. F. Von - La importancia de la ciencia. Barcelona, La- deço as críticas e sugestões de Elisa Reis, J acqueline Romani, José Ta-
bor, 1968. vares de Araújo, Mário Machado, Tânia Salem e Vera Maria Pereira.

REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PAG. 15-40 1978 REV. DE C. SOCIAIS, VOL. IX, N. 0 s 1 e 2 PÁG. 41-56 1978 41
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