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II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”

A REPÚBLICA RIO-GRANDENSE E O RIO DA PRATA:

A QUESTÃO DOS ESCRAVOS LIBERTOS1

CESAR AUGUSTO BARCELLOS GUAZZELLI2

Introdução

A Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha, tem sido o tema mais


recorrente da produção historiográfica rio-grandense. Muitos intelectuais, desde o
século passado, construíram-na como o evento fundador de uma forte identidade
regional, que muitas vezes se contrapôs à própria construção do Estado nacional3. Com
a proclamação da República no Brasil, o poder provincial foi ocupado por uma fração
da elite rio-grandense que não se confundia com a oligarquia pecuarista e charqueadora
que dominara a economia e a política ao longo do século XIX, e que, por isso mesmo,
tratou de consolidar o seu poder em novos termos. Desapareceria paulatinamente o
domínio local dos caudilhos da campanha rio-grandense, e criar-se-iam pautas
legitimadoras do governo republicano capazes de empolgar novos grupos sociais que se
desenvolviam na estremadura. Neste sentido, foi fundamental associar os novos líderes
ao passado farroupilha, papel que foi cumprido pelos intelectuais orgânicos da
província, entre eles os historiadores.
Aqui, bem de acordo com a autonomia que gozavam as províncias na República
Velha, predominaram aquelas interpretações que faziam do espaço sul-rio-grandense
um caso muito peculiar, apontando para as diferenças em relação ao restante do Brasil e
enfatizando as influências recebidas desde os vizinhos platinos, em especial aqui a
construção mítica do gaúcho; não por acaso o movimento regionalista na literatura

1
O tema abordado neste texto foi trabalhado parcialmente na Tese de Doutorado “O Horizonte da Província: a República Rio-
Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845)”, defendida e aprovada no Curso de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1998.
2
CESAR AUGUSTO BARCELLOS GUAZZELLI. Professor doutor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3
FIGUEIREDO, Joana Bosak de. O Rio Grande de São Pedro entre o Império do Brasil e o Prata: a Identidade Regional e o
Estado Nacional (1851 - 1865). Porto Alegre: UFRGS, 2000, p.75-103. Dissertação de Mestrado (mimeo).
brasileira teve como seu maior destaque João Simões Lopes Neto, até hoje o nosso mais
consagrado autor gauchesco. Na produção historiográfica, o grande nome foi Alfredo
Varela, autor de duas alentadas obras em que atribui à Revolução Farroupilha uma
filiação direta aos movimentos revolucionários que se seguiram ao 25 de Maio de 1810
no Prata4, inaugurando o que Ieda Gutfreind chamou de “matriz platina” de
interpretação da realidade regional, com ênfase na “influência da área platina no Rio
Grande do Sul e a pretensão separatista da Província”5.
A partir dos anos 30 – não era mera coincidência o alinhamento com o projeto de
afirmação do Estado nacional desencadeado por Getúlio Vargas – predominaram, no
entanto, os autores identificados com uma “matriz lusitana”: Aurélio Porto, Souza
Docca, Othelo Rosa, Walter Spalding, Moysés Vellinho, entre tantos, salientavam as
diferenças entre os gaúchos rio-grandenses e os platinos, estabelecendo a “brasilidade”
sempre presente entre os sulinos e o seu papel de sentinelas que garantiram no passado a
preservação da unidade nacional. Aqui, as influências do Rio da Prata apareceram como
efêmeras e recebidas com desconfianças pelos continentinos d’ antanho; a Revolução
Farroupilha não tinha sido uma manifestação de repúdio ao Império, mas uma
antecipação de pautas políticas avant la lettre pelos liberais rio-grandenses submetidos
ao conservadorismo centralista da Corte.
Na minha tese de doutorado, “O Horizonte da Província: a República Rio-
Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845)”, procurei demonstrar três
hipóteses: a incompreensão de uma unidade política que se sobrepusesse àquela da
“região-província” por parte dos caudilhos rio-grandenses; a capacidade que esses
chefes guerreiros tinham em formar milícias pessoais, oriunda das relações sociais
estabelecidas nas estâncias de criação de gado; e a importância incontestável das
alianças estabelecidas com os caudilhos da Banda Oriental e da Confederação Argentina
na sobrevivência da secessão farroupilha por quase dez anos. Em relação às duas
últimas apareceu a questão dos libertos que formaram nas fileiras da República Rio-
Grandense.
No que diz respeito à segunda hipótese, pode-se constatar que, ao contrário dos
peões campeiros, para os quais seguir os patrões-comandantes era quase uma
continuidade das atividades cotidianas, os escravos alforriados pagavam com o serviço

4
VARELA, Alfredo. Revoluções Cisplatinas. A República Riograndense. Porto: Livraria Chardron, 1915 (2 v.). VARELA, Alfredo.
História da Grande Revolução. O Ciclo Farroupilha no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1933 (6 v.).
5
GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992.

2
militar a liberdade do cativeiro. Outra diferença dizia respeito ao lugar ocupado no
exército rebelde: os peões livres eram destinados à cavalaria, a arma por excelência das
guerras platinas; aos escravos – salvo aqueles que já detinham o estatuto de “campeiros”
– destinava-se o serviço na infantaria, onde os riscos eram mais acentuados.
Em relação à terceira, foi possível demonstrar que a presença de libertos no
exército farroupilha imbricou-se com as questões platinas em pelo menos três situações:
a transferência de escravos para o Estado Oriental como uma estratégia de preservação
da propriedade, quando a República solicitava aos seus cidadãos a cessão de cativos
para suas hostes; o Tratado de San Fructuoso, que disponibilizou libertos para as tropas
de Rivera, que preparava sua investida contra Rosas invadindo a província litoraleña de
Entre Ríos; a pacificação e reintegração da província rebelde ao Império, com as
temíveis conseqüências de uma eventual manutenção da liberdade dos cativos que
haviam lutado pela causa republicana.
São poucos os trabalhos sobre a participação dos escravos na Revolução
Farroupilha6. Por outro lado, não há referências à importância que os libertos
representaram para as relações externas estabelecidas entre os republicanos e seus
vizinhos do Rio da Prata, nem quanto a sua presença perturbou as diplomacias do
Império e da Confederação. Contribuir para uma melhor compreensão desta questão é o
objetivo deste texto.

A cavalaria dos homens livres: os peões campeiros

Os caudilhos do Prata costumeiramente faziam dos trabalhadores do campo os


seus soldados, e a este padrão não fugiram os senhores guerreiros do Rio Grande. Aqui
somava-se um expressivo número de escravos libertos, que preferentemente eram
utilizados na Infantaria, uma arma de menor prestígio e onde os riscos aumentavam,
mas uma parte deles formou também em esquadrões de cavalaria. O arrolamento destas
praças, diferindo do recrutamento habitual das formações militares convencionais,
ensejou a idéia de que os soldados farroupilhas eram “voluntários”, como escreveu
Varela:

“Convem notar uma circumstancia de valor para o estudo de tal


assumpto: o pessoal da cavallaria riograndense era composto de

6
Destacamos, por exemplo: BAKOS, Margaret Marchiori. A escravidão e os farroupilhas. In: VÁRIOS. Revolução Farroupilha:
História e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

3
abundantissimo voluntariado; os corpos das outras armas preenchiam os
claros com levas do recrutamento selvagem, por todo o norte do paiz,
quando não pelas Suburras da capital do Imperio.”7

Esta ênfase no caráter “democrático” das montoneras platinas contraposto à


hierarquia e rigidez dos exércitos nacionais, dirigidos por oficiais de academia, é uma
das tônicas da historiografia do Rio da Prata, até para salientar a “desordem” que trazia
a guerra promovida pelos caudilhos e seus soldados irregulares. Citando Magariños de
Mello, assim descreve Stewart Vargas o comportamento das tropas de Rivera:

“(...) compuesto, no sólo de gentes voluntarias, acostumbradas a la


vagancia y a la comodidad de tomar, sin responsabilidad, el caballo y la
vaca del hacendado, sino que, por su carácter de invasores tenían
necesidad de conservarse bajo la bandera del caudillo, se movía a sus
anchas, bajo la autoridad de los jefes menores, de los cuales era señor de
vidas y haciendas”.8

Mesmo que sejam exageradas algumas apreciações sobre uma certa frouxidão
disciplinar dos chefes cavalarianos, e de que “os repentes de severidade que eram
communs nos officiaes das outras armas, pouco ou nunca se verificavam na
cavallaria”, sendo rotineiro o dito proverbial “para uma bofetada uma punhalada”9,
isso parece mais uma repetição do cotidiano da estância de criação, da qual o peão
armado e a cavalo podia facilmente reverter a uma vida de delinqüência. O estancieiro
transformado em caudilho precisava manter as mesmas condições que garantiam a
adesão dos peões agora seus milicianos.
Uma das primeiras medidas da República foi uma simplificação na hierarquia
militar, reduzindo todos os altos postos do Exército – marechal, brigadeiro etc – em
generalato, pelo decreto de novembro de 183610. Esta patente só foi concedida para João
Manuel de Lima e Silva, Souza Netto, Bento Gonçalves, Bento Manuel, David
Canabarro e João Antônio; com a notável exceção do primeiro, os demais se haviam
afirmado como comandantes de “guerrilhas” nas disputas fronteiriças, sendo pouco
habituados às práticas castrenses mais formais. Sobre tal assunto, um inconformado
Alencastre opinava sobre o aspecto pouco marcial dos chefes farroupilhas:

7
VARELA, 1915, op. cit., p.991.

8
STEWART VARGAS, Guillermo. Oribe y su significacion frente a Rozas y Rivera. Buenos Aires: Pellegrini Impressores, 1958.,
p.241.
9
VARELA, 1915, op. cit., p.991.
10
PORTO, Aurélio. Notas ao Processo dos Farrapos. In: PUBLICAÇÕES do Arquivo Nacional XXIX. Rio de Janeiro: Oficinas

4
“O governo deve ordenar aos generais que usem dos uniformes que
lhes competem (...) Um general que sempre se apresenta de poncho, às
vezes até de jaqueta de brim e um chapéu de abas largas, que influência
poderá excitar? Lembra-me um dito do Coronel Damasceno; dizia: ‘oiem
que repúbrica que os generais andão de ponche de toaia’, referindo ao
General Neto, que usava uns ponchos brancos.”11

O próprio Caxias se surpreendera com certas usanças dos continentinos, a julgar


pelas ordens do dia de 1 e de 12 de setembro de 1843, nas quais solicitava vigilância
para que os cavalarianos não se afastassem dos acampamentos para visitarem suas
famílias nem carneassem as reses encontradas nos campos por onde passavam12. Esta
informalidade dos comandantes guerreiros persistiria no Rio Grande, caracterizando
mais tarde Osório, Gumercindo Saraiva, Honório Lemes, entre outros; como em todo o
Prata, fazia parte de um conjunto de práticas que atenuavam as diferenças entre
dominantes e dominados, fundamental para a capacidade de formar milícias, uma
condição antiga dos homens da fronteira, como já manifestara o então comandante das
armas na província pouco antes do 20 de setembro13.
Apesar desta aparente liberalidade, havia, no entanto, a preocupação dos líderes
rio-grandenses na manutenção de um controle mais efetivo da circulação de pessoas em
seu território. Em 17 de dezembro de 1835, a Assembléia Legislativa Provincial recebeu
um projeto de lei, assinado pelo próprio Bento Gonçalves, que decretava:

“Art. I. Ninguém poderá viajar na Província do Rio Grande do Sul


sem passaporte. (...)
Art. III. O passaporte deve conter o nome, naturalidade, idade,
profissão, estatura e os sinais físicos da pessoa que o pedir, com a
declaração de que não tem crime nem obrigação de fiança (...)
Art. VII. O que for encontrado sem passaporte, além da multa (...),
será conduzido à presença do Juiz de Paz respectivo que o interrogará
(...)
Art. VIII. Se o Juiz pelas respostas não for convencido de estar o
interrogado livre de crime, o mandará conservar debaixo de custódia até
que ele prove que não tem crime algum (...)
Art. IX. Os estancieiros, fazendeiros, chacareiros, proprietários,
seus agregados e capatazes, não consentirão por mais de três dias em

Gráficas do Arquivo Nacional, 1933, p.499.


11
ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1978, v. 2, CV-159, p.131.
12
ANAIS da Biblioteca Nacional (BN), Separata do V. LXIII. Guerra dos Farrapos – Ordens do Dia do Barão de Caxias, 1842-
1845. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, Ordem do Dia nº 63, p.122. e nº 78, p.141.
13
AHRGS, Lata 70, Maço 47, CV-7359.

5
suas casas pessoa alguma que não tenha emprego ou ocupação sem que
logo participem ao Juiz de Paz respectivo (...)”14

O documento proposto lembra muito a papeleta de conchabado, de ampla


circulação por todo o Prata, e que visava reforçar o enquadramento ao trabalho,
identificando na vagancia um comportamento suspeito. Anos depois, em fevereiro de
1840, o ministro Domingos José de Almeida publicou uma circular que obrigava o uso
de passaportes, alegadamente

“(...) para cortar a continuação dos males que tem reportado à


República o trânsito livre dos nossos inimigos, houve por bem ordenar que
de 12 de abril próximo vindouro, à exceção dos indivíduos do exército,
ninguém mais a percorra sem passaportes impressos.”15

Esta versão atualizada do passaporte também descrevia as características físicas


do portador, sua naturalidade, profissão e residência, tendo sua validade limitada para
30 dias16. É pouco provável que tais medidas tenham impedido a circulação de
“vagabundos”, visto que persistiam as ordens dos comandantes para persegui-los, como
na carta de Souza Netto de agosto de 1841 onde recomenda a um subordinado “que
deve mandar prender todos os homens vagos (...) para sentarem praça na Infantaria”17.
O próprio Bento Gonçalves escreveu nesta mesma época para João Antônio com o
mesmo intuito: “Os vadios e todos os que fogem do serviço da República serão
compreendidos no recrutamento e da mesma forma os desertores do inimigo, mui
principalmente os da arma de Infantaria.”18
Ausentes nos quadros da República os oficiais com formação acadêmica, eram
os chefes sem exceção cavalarianos, e as tropas de infantaria que formavam se
submetiam a comandos da cavalaria. Destinada a infantaria para os piores momentos e
situações de combate – resistir ao primeiro impacto dos adversários, guardar posições
enquanto os cavalarianos manobravam – para esta arma eram destinados os
indesejáveis, não apenas como castigo para as infrações cometidas ou presumidas, mas
também porque as fugas eram mais difíceis a pé num meio em que predominavam
gentes montadas.

14
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1980, v. 4, CV-2386, p.235.
15
Ibid., v. 2, CV-369, p.282.
16
Ibid., v. 3, CV-785/A, p.229.
17
AHRGS, Lata 68, Maço 40, CV-6249.
18
AHRGS. Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves da Silva. Porto Alegre: Comissão Executiva do Sesquicentenário da

6
Mas se as atenções estavam voltadas para os paisanos comuns, tão suspeitos de
delitos quanto os gaudérios d’antanho , para aqueles enrolados nas forças republicanas
também recaiam os cuidados do Estado. No decreto de 20 de abril de 1838, o Secretário
dos Negócios da Guerra instrui os deveres do Comandante do Depósito Geral dos
Recrutas, que deveria em relação aos novos soldados,

“(...) encher-lhe o peito de esperanças mostrando-lhe, com


exemplos tirados da nossa História e das estranhas, que na estrada da
honra e na da glória achará ele o meio único de fazer-se uma brilhante
fortuna ou de obter um honesto e vantajoso retorno ao teto paternal. A
História do Rio Grande está cheia destes prodígios que lhe podem ser
utilmente lembrados.”19

Neste sentido, eram fundamentais as escolas que a República pretendia


disseminar, onde a cada cinco dias seriam visitadas pelo Comandante dos Recrutas,
“fazendo observar nelas, em toda a sua extensão e vigor, as ordenanças militares”20. O
procedimento que devia ter na recepção dos recrutas o referido comandante, previsto no
decreto, permite que se tenha uma idéia das prioridades que ditava o modelo de “guerra
de movimento”:

“Fará dentre os recrutados apurada escolha dos indivíduos de


melhor classe por cores, educação, bens e agilidade para o serviço da
Cavalaria e Artilharia de Linha, preferindo para esta os que souberem ler
e escrever (...)
Fará igual escolha dentre os índios e pretos libertos, fazendo
seleção dos mais ágeis e capazes para o Corpo de Lanceiros de 1.a Linha,
destinando os outros para os Corpos de Infantaria e Caçadores.”21

Os poucos alfabetizados, provavelmente não tão habituados às lides campeiras,


destinavam-se àquela arma que era a mais deficiente no exército rebelde. Por outro lado,
havendo uma presença não desprezível de escravos campeiros22, estes podiam ser
arrolados como soldados de cavalaria, como o famoso batalhão de lanceiros comandado
por Teixeira Nunes.

Revolução Farroupilha, 1985, CV-8473, p.187.


19
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre, IEL/DAC/SEC, 1981, v. 5, CV-2831, p.53.
20
Ibid., p.54.
21
Ibid., p.59.
22
ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno: as Transformações no Rio Grande do Sul no Século XIX. Niterói: UFF, 1994,
p.147. Tese de Doutoramento (mimeo).

7
A infantaria possível na República: os escravos libertos

A maior parte dos libertos era no entanto destinada para a infantaria, arma que os
homens livres desprezavam da mesma forma que os trabalhos no eito, conforme
explicitou Bento Gonçalves em 4 de julho de 1841 em documento onde exortava aos
seus partidários que cedessem escravos para as forças:

“Urgindo o bem da Nação Rio-Grandense que seja assaz


aumentada a Força de Infantaria do Exército Republicano, única arma
cuja falta visivelmente se faz sentir, o general-em-chefe está disposto a
lançar mão de todos os meios lícitos (...) para alcançar este desejado fim
(...) e sendo certo que os continentistas, quase todos excelentes cavaleiros,
repugnam por este motivo servir nesta arma, o general-em-chefe em seu
nome e em nome da Pátria se dirige a todos os republicanos convidando-
os a que queiram subscrever com o maior número de escravos que
puderem dispensar para sentarem praça e servirem na referida arma.”23

Os proprietários seriam compensados destas perdas assim que as condições


financeiras o permitissem, era a promessa do governo. A liberdade que o Estado
comprava aos particulares era o preço pago para a adesão dos negros à República, além
de fomentar as fugas dos escravos pertencentes aos legalistas. Pesava também a
vizinhança da Banda Oriental, onde Rivera, mesmo mantendo acordos que previam
prisão e deportação de desertores, estava sempre interessado no concurso de cativos
para formarem na sua infantaria; e havia ainda Corrientes, apesar do governador Pedro
Ferré também ter assinado um lei em 1838 que assegurava a devolução de escravos
fugidos24.
A forma alternativa para o engajamento de negros era a expropriação dos
proprietários leais ao Império. Em 5 de julho de 1841 Bento Gonçalves determinava
para João Antônio “promover o recrutamento para os Corpos de Linha, e com
particularidade para o Batalhão de Caçadores, devendo V. Exa. Mandar capturar
todos os escravos dos dissidentes”25. A requisição dos escravos dos inimigos e o
recrutamento daqueles que pertenciam a partidários ainda era uma preocupação do
governo na comunicação do ministro Vicente da Fontoura para o comandante Netto:

23
AHRGS,Coletânea..., op. cit., CV-8471, p.186.
24
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1978, v. 3, CV-1736, p.471. e CV-2016, p.550. Arquivo Nacional (AN),
Repartição dos Negócios Estrangeiros, Anexo G, Reclamações Estrangeiras, Lei de Corrientes.
25
AHRGS, Coletânea..., op. cit., CV-8347, p.187.

8
“(...) lanceis mão de toda a escravatura dos dissidentes da causa
da República (...) bem assim se pedirá aos mais cidadãos da República,
inda que patriotas sejam, um escravo ao que tiver três varões, e dois, a
seis, e sobre a mesma base os que tiverem mais, passando-lhes
documentos para oportunamente serem pagos (...)”26

O Império preocupou-se com a questão dos escravos formando nas filas


farroupilhas, e tentou reprimir exemplarmente aqueles que fossem tomados como
prisioneiros. Na edição de 11 de maio de 1839, o periódico farroupilha “O Povo”
reproduzia um decreto da Regência de novembro do ano anterior que ordenava:

“1o Todo o escravo que for prezo e tiver feito parte das forças
rebeldes, será ahí, ou no lugar mais próximo que possa ter lugar,
correccionalmente punido, com duzentos, a mil açoites, por ordem da
Authoridade Militar ou Civil, independente de processos. (...)
2o Os escravos que ao tempo da publicaçaó desta providencia
fizerem parte da força armada dos rebeldes, e que abandonando o seu
partido, se apresentarem ao General ou ás Authoridades que este
designar, ficaó amnistiados e isentos de todo serviço forçado, e ser-lhes-
há passada a carta de alforria (...)”27

A resposta ao “Tyranico Governo do Brasil” vinha dada na mesma publicação,


ameaçando em seu artigo único com uma retaliação contra os eventuais prisioneiros de
guerra que a República mantivesse:

“Desde o momento em que houver noticia certa de ter sido


açoitado hum homem de côr a soldo da Republica pelas authoridades do
Governo do Brasil, o General Commandante em Chefe do Exército, ou
Commandantes das diversas Divisóes do mesmo, tira á sorte aos Officiaes
de qualquer grau que sejaó das Tropas Imperiaes nossos Prisioneiros e
fara passar pelas armas áquelle que a mesma sorte designar.”28

Na documentação examinada não há referências sobre o cumprimento desta


medida, mas é significativa a importância que os rebeldes davam para a presença de
libertos nas suas forças. Isso não quer dizer, entretanto, que a República tivesse
pioneiramente abolido a escravidão: no mesmo “O Povo” de 27 de novembro de 1839
foram publicados anúncios de fugas de escravos em Caçapava – a capital farroupilha de

26
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1984, v. 8, CV-4876, p.379.
27
MUSEU E ARCHIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos Interessantes para o Estudo da Grande
Revolução de 1835-1845. 1º volume. O Povo (Edição fac-simile da colecção completa). Porto Alegre: Livraria do Globo, 1930, O
Povo nº 65, p.273.
28
Ibid., p.274.

9
então – e Piratini29. A liberdade era uma recompensa do Estado aos que prestassem
serviço militar, como fica claro no decreto de 16 de maio de 1839:

“Todo o homem de côr ao soldo da Republica e por ella livre que


fugar para o inimigo, volverá á condiçaó de escravo, sempre que cahir
prisioneiro das Forças Republicanas; pois que tendo sido liberto da
escravidaó com a condiçaó tacita de servi-la justo he que fique rescindido
aquelle Trato condicional (...)”30

O engajamento de escravos no exército republicano, mesmo com as promessas


de pagamentos no futuro, por certo não entusiasmava a muitos dos “patriotas”. A
transferência dos cativos e outros bens para o Estado Oriental, quando não dos mesmos
proprietários, foi uma alternativa que mereceu os cuidados do presidente rio-grandense,
que publicou decreto no qual previa pena de perda da cidadania com todas suas
conseqüências legais31. A esta oportunidade não fugiu sequer o ministro Domingos José
de Almeida, que transferiu seus escravos para terras que adquirira no Uruguai,
alegadamente para conseguir saldar compromissos financeiros que tinha em função dos
serviços à República32. A Banda Oriental, assim como era refúgio para escravos
fugidos, também o era para senhores de escravos ameaçados de perder seus bens em
prol de uma república de duvidoso futuro.

Cidadãos republicanos e seus escravos: o santuário da Banda Oriental

Com o desenvolvimento das atividades comerciais e dos saladeros em


Montevideo e suas cercanias, aumentava a utilização de mão-de-obra livre em
contrapartida a uma diminuição acentuada na utilização de escravos. A abolição
aconteceria apenas às vésperas da Guerra Grande, quando Rivera dramaticamente
necessitou de libertos para preencher suas fileiras. No início de sua primeira
presidência, o próprio Rivera patrocinara uma venda de escravos em Montevideo,
distribuindo entre as principais famílias os remanescentes do grande massacre que
efetuara nas tolderías charruas, o que indica a inexistência de problemas de natureza
ético-moral em relação ao estatuto da escravidão. Assim como no Rio Grande, a
liberdade dos cativos dependia do engajamento na famigerada infantaria.

29
Id., nº 122, p.518.
30
Id., nº 67, p.285.
31
Id., nº 58, p.241.
32
ANAIS do AHRGS, v. 2, op. cit., CV-209, p.184., CV-221, p.192., CV-222, p.193., CV-225, p.195. e CV-231, p.199. ANAIS do

10
Para muitos rio-grandenses a Banda Oriental parecia um lugar mais seguro para
seus patrimônios, aqui incluídos os escravos, do que os domínios da República, sempre
gravando os “cidadãos” com requisições de gados e cativos. Apesar daquelas medidas
que o Estado tomou contra os que migravam para fugir aos compromissos, alguns deles
procuraram criar sólidas posições econômicas em terras uruguaias, inclusive
aproveitando o acentuado tráfego de tropas que do Rio Grande saiam para Montevideo.
Um dos mais notáveis era também um dos principais organizadores do Estado
republicano, o ministro Domingos José de Almeida, e sua trajetória pessoal neste
sentido é exemplar.
De humildes origens em Minas Gerais, Almeida veio para o extremo sul
interessado no ainda lucrativo comércio de mulas, e em pouco tempo se ligara pelo
casamento a uma tradicional família de estancieiros33. Estabelecido com importantes
charqueadas em Pelotas, foi também pioneiro na navegação comercial a vapor pela
Lagoa dos Patos, a única ligação que o Rio Grande tinha com o Atlântico. A Guerra dos
Farrapos, à cuja causa aderira precocemente, comprometia muito sua situação
econômica, visto que os imperiais em breve teriam o controle dos principais centros
ribeirinhos da Lagoa dos Patos, como Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande e São José do
Norte.
Muito célere foi Almeida em transferir seus negócios para o Estado Oriental
evitando prejuízos econômicos de vulto. Numa relação que elaborou, Almeida afirmava
a propriedade de 84 escravos antes do 20 de setembro, dos quais 24 carneadores, 15
graxeiros, 6 salgadores e 5 tripeiros, todos estes diretamente ligados à fabricação do
charque; a eles somavam-se 4 campeiros, 7 responsáveis pelo transporte de cargas e 6
artífices para as reparações necessárias a uma charqueada34. Em fevereiro de 1836
escrevia à esposa que “aí nossa fortuna jamais pode avançar um pequeno passo, pelo
desvio que até aos gados me querem dar de costeio”, motivo pelo qual pedia que Dona
Bernardina se retirasse de Pelotas “trazendo em tua companhia tudo quanto puder,
fretando os iates precisos, e deixando na chácara um escravo somente”35. No ano
seguinte, já ministro da República, recomendava que a esposa providenciasse

AHRGS, v. 3, op. cit., CV-2047, p.115.


33
LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.158.
34
ANAIS do AHRGS, v. 3, op. cit., CV-629/5, p.66.
35
Ibid., v. 2, op. cit., CV-189, p.160.

11
“(...) para levar a Montevidéu todos os escravos da lista junta,
caso não precises de algum ou alguns deles, porque então deixarás ficar
os que te forem necessários; e pela carreta manda vir de Montevidéu sal,
farinha, arroz, açucar, vinho e vinagre e tudo mais para ti e nossos filhos,
pois eu não trabalho para ninguém mais (...)”36

Em agosto de 1837 informava a seu antigo sócio em Pelotas, Antônio Gonçalves


Chaves, de que os escravos que recebera pertenciam agora ao seu cunhado João
Rodrigues Barcelos, residente em Montevideo e que aí funcionava como seu agente37.
Poucos dias depois, sendo noticiado do naufrágio e desaparecimento do referido sócio
quando rumava para Montevideo, recomendou para Dona Bernardina que repassasse
escravos para o comerciante oriental Victorica “para irem ganhando para nossas
despesas”38. No final do ano novamente comunicou-se com a esposa informando que,
em virtude da campanha que Rivera movia contra Oribe, era insegura a transferência
definitiva da família para a capital oriental, mudança esta que nunca aconteceria.
O plano de Domingos José de Almeida de construir uma charqueada em
Montevideo dependia das compras de gado que o cunhado Barcelos efetuasse na
campanha, preferentemente de reses rio-grandenses, o qual “diz que tem ganho muito
dinheiro no fornecimento a Fructo”39; a posição que Almeida ocupava no governo
republicano, avalizava as relações privilegiadas do cunhado com Fructuoso Rivera.
Enquanto aguardava a concretização desses palnos, mantinha os seus escravos em
Montevideo como fonte de renda, conforme ele mesmo declarou: “Com estas relações
havia eu cedido ao Sr. Victorica porção de escravos de minha propriedade por
aluguel”40. Este oriental Juan José Victorica era, aliás, um dos principais credores da
República Rio-Grandense.
Suas relações com este e outros comerciantes eram tão estreitas que Almeida
orientava a esposa Bernardina para, na falta de dinheiro, pedir “algum a Dom Francisco
de Truebas, e mesmo a Victorica se estiver em Cerro Largo”41, confirmando alguns

36
Ibid., CV-209, p.184.
37
Ibid., CV-221, p.192.
38
Ibid., CV-222, p.193.
39
Ibid., CV-253, p.213.
40
Ibid., v. 3, op. cit., CV-2056, p.563.
41
Ibid., v. 2, op. cit., CV-464, p.358.

12
dias depois que ela fizera bem em solicitar “a Victorica o dinheiro de que fazes
menção; repete tais pedidos a Truebas, para não sofreres necessidades”42.
Em seus contatos com outros chefes farroupilhas, no entanto, Domingos José de
Almeida usualmente reclamava de sacrifícios pessoais feitos pela República. Para
Canabarro, apesar de salientar que “dos melhores escravos que possuía quando
arrebentou a revolução, reservei 17 que aluguei em Montevidéu para, com seus jornais
manter minha família”, Almeida acrescentou:

“Prevendo os resultados da retirada de 4 de janeiro de 1837 se


nossos companheiros não fossem de pronto socorridos de cavalgaduras,
roupa, fumo e erva, nesse mesmo dia despachei 35 escravos, que de minha
propriedade tinha já no Departamento de Cerro Largo com Vicente José
Pinto, para serem vendidos em Montevidéu e seu produto aplicar a esse
importante fim.”43

Nesta mesma missiva, Almeida demonstra o quanto os negócios da República


estavam misturados com os seus próprios. Em maio de 1840, encaminhou uma
meticulosa prestação de contas que seria, ao seu ver, uma prova cabal dos “esforços
sobre-humanos que desenvolvi no Estado Oriental em prol da causa rio-grandense”44.
Quando seu desafeto Antônio Vicente da Fontoura assumiu a pasta da Fazenda,
denunciou pretensas irregularidades e anulou contratos firmados com o referido
comerciante Victorica; Domingos José de Almeida reclamou, então, que o comerciante
teria sido compensado com os seus escravos de ganho que estavam no Estado Oriental:

“Tendo em 1837 afiançado para com João Pedro Ramirez, e o


mesmo para Victorica porção de gêneros para municiar e vestir o exército
(...) mandei dar ao dito Victorica porção de gado de criar; mas anulando
o Sr. Fontoura essa ordem, ficaram a porção de escravos alugados
garantindo o restante da dívida do governo, e o resto daqueles que eu
ainda possuía hipotecados (...) e me proporcionaram a perda de doze dos
melhores escravos que eu tinha em Montevidéu (...)”45

Em março de 1841 tornara-se pública em Montevideo a notícia de uma provável


abolição da escravatura, na esteira dos planos que Rivera tinha para iniciar uma ofensiva
contra Rosas, invadindo a fronteiriça província de Entre Ríos. Alarmado com esta

42
Ibid., CV-472, p.362.
43
Ibid., v. 3, op. cit., CV-652, p.112.
44
Ibid., v. 2, op. cit., CV-377, p.292.
45
Id., ibid.

13
novidade, que lhe privaria da fonte de renda que mantinha na Banda Oriental, Almeida
solicitou ao comerciante Juan Pedro Ramirez:

“(...) apressadamente lhe dirijo esta a rogar-lhe o obséquio de


entregar ao Sr. Napoleoni Castellini os escravos que, de conta do meu
cunhado João Rodrigues Barcelos, aluguei ao Sr. D. Juan José Victorica
para V. Sª., como da escritura em mão que transmito de pública forma ao
dito Castellini para este me enviar os escravos pelo portador que esta
conduz.”46

Na mesma ocasião escrevera para Castellini encarregando-o da remessa dos


escravos para Dona Bernardina em Bagé, pedindo-lhe prestação de contas dos dias
trabalhados pelos mesmos, tendo adicionado à relação dos cativos a “pública-forma
onde se acham designados os dias em que foram alugados os referidos escravos”47.
Não satisfeito com os contatos estabelecidos com os comerciantes em questão, dirigiu
correspondência ao próprio presidente Rivera sobre a questão dos escravos:

“(...) dizendo-se que V.Exª. pretendia de pronto tomar a salutar e


filantrópica medida de mandar sair deste estado todos aqueles de
propriedade estrangeira e libertar os dos nacionais, ora mando retirar
para esta os referidos escravos; e rogo a V.Exª. toda a sua proteção e
favor para que os mesmos me venham em segurança.”48

Almeida acabaria perdendo seus escravos, não devolvidos por Victorica em


razão das dívidas contraídas. Em 1842, no início da guerra de Rivera contra Rosas,
“apareceu a invasão do Estado Oriental, e seu governo lançou mão dos referidos
escravos para defender-se dos seus inimigos”49. Os negócios de Domingos José de
Almeida acabaram fracassando numa Banda Oriental que se tornaria um campo de
batalhas por quase dez anos. O próspero charqueador por muitos anos teria queixas
contra seus adversários políticos da República, e terminaria pedindo anistia aos
legalistas no último ano da insurreição farroupilha. Sobre seus problemas econômicos
opinou Vicente da Fontoura em 15 de julho de 1844: “O perverso Domingos José de

46
Ibid., CV-1571, p.421.
47
Ibid., CV-1575, p.423.
48
Ibid., CV-1576, p.424.
49
Ibid., CV-652, p.112.

14
Almeida já está em Pelotas anistiado, e já requerendo ao governo dez contos de réis de
um iate que outrora lhe arrendaram. Que homem safado!”50
Não há outros casos tão documentados quanto o de Domingos José de Almeida.
De qualquer forma, neste caso o Estado acobertou as ações do seu ministro, ao contrário
de outros “cidadãos” com os quais o próprio Almeida tanto se mostrou preocupado por
salvaguardarem suas propriedades e bens no Estado Oriental. Bento Manuel, por
exemplo, após sua última defecção do exército farroupilha teve seus bens confiscados
pela República, além de perder o gado que tinha invernado no território oriental de
Bella Unión. O Estado não pesava igualmente para todos, especialmente se os interesses
econômicos tinham agora como principal endereço o comércio na Banda Oriental.

Trocam-se libertos por cavalos: o Tratado de San Fructuoso

O ano de 1839 foi marcado por uma oscilação na política externa da República
Rio-Grandense, que procurou aproximar-se de Rosas através do entrerriano Echagüe.
Apesar disto, a Banda Oriental era citada como um exemplo de província convertida em
Estado independente. A guerra externa que ameaçava permanentemente a autonomia
uruguaia era comparada com aquela que o Império movia contra os farroupilhas, como
fica explícito na edição de “O Povo” de 5 de junho:

“Se o Governo do Rio de Janeiro fosse capaz de alliar se por hum


momento ao bom senso, veria no exemplo que offerece a independencia da
Cisplatina o quanto saò infundadas suas esperanças de subjugar-nos.
Desconhece que a guerra sacrilega que nos faz servirá apenas para
extinguir totalmente no animo dos Rio-Grandenses algumas reliquias de
Brasileirismo de que outr’ora fomos taó possuidos, e que, consequencia
dessa mesma guerra, tem cedido o lugar a outros sentimentos mais
conformes aos interesses e amor proprio dos Rio-Grandenses.”51

Don Frcuto, apesar de não se empenhar no cumprimento das cláusulas firmadas


às margens do Cangüé52, mantinha comunicações com o Estado farroupilha, procurando
aparar as arestas que se criavam. Também estava consciente dos prejuizos de uma
eventual ruptura com os republicanos, que lhe abriria um flanco inconveniente para seu
projeto de uma Patria Grande na qual nuclearia toda a “mesopotâmia” platina. Sabia da

50
FONTOURA, Antônio Vicente da. Diário. Porto Alegre: EDUCS/Sulina/Martins, 1984, p.106.
51
MUSEU E ARCHIVO..., op. cit., O Povo nº 72, p.307.
52
O Tratado de Cangüé, de 8 de agosto de 1838, foi o primeiro firmado entre Bento Gonçalves e Rivera, garantindo mútuo
reconhecimento entre a República Rio-Grandense e o Estado Oriental, ajuda econômica e militar. AHRGS, Lata 77, Maço 66,
Diversos.

15
hostilidade de alguns farroupilhas, tendo inquirido diretamente a Domingos José de
Almeida em 18 de setembro sobre uma notícia dando conta que “el S Coronel Juan
Antonio , y el Coronel Dabid, debian por estes tres dias pasados, reunirse en Alegrete,
con una fuerza es 600 hombres: que por todo el pais no se decia otra cosa sino que lo
objecto hera batirme” 53.
Em 1840 os farroupilhas ainda tinham queixas de Rivera, fundamentalmente por
permitir reuniões de legalistas em território oriental, apesar de Montevideo continuar
sendo o principal centro de comercialização da produção dos proprietários
republicanos. E Don Fructo, apesar de ainda contar com a sustentação dos franceses,
pedia à combalida República Rio-Grandense, que precisava dos seus préstimos em
cavalhadas e petrechos de guerra, “fazer o obzequio, emprestar alguns patacoens, alem
dos mais que sou a Vª. Exª devidos”54. O ministro Almeida preocupava-se mais com os
imperiais emigrados, insistindo na aplicação pelos comandantes militares do decreto de
4 de fevereiro de 1839 que ordenava a aplicação de “pena de morte contra todos
aqueles indivíduos que moradores os asilados no Estado Oriental passarem a este com
o fim de hostilizá-lo, e assim prolongarem a guerra que contra nós sustenta o governo
do Brasil” 55.
Os negócios com gado prosperavam na Banda Oriental, com participação ativa
de Rivera a julgar pela recomendação de Almeida em 28 de janeiro de 1841 para o
comerciante De la Rocha para que “dirija a Fructo a que lhe enderecei por V. Sª. e
diga-lhe a quem deve mandar entregar o restante da importância da tropa”56. Datada
do mesmo dia, chegava comunicação de Don Frutos interessado em “una idea que
debia neutralisar las maquinaciones de los enemigos del progreso de estos estados”,
interesse este que havia sido despertado pela missão farroupilha, na qual “D. Pablo
Fontoura me ha echo conocer la verdadera cituacion politica de ese Estado, y que con
el objeto de ser util a la causa de eses Paiz, tomo la micion de ir a esplicar a el
Gobierno mi pensamento”, salientando que as questões platinas passavam “por la
Republica Argentina y cuanto se premedita”57.

53
AHRGS, Lata 71, Maço 50, CV-7878.
54
Ibid., CV-7880.
55
ANAIS do AHRGS, v. 2, op. cit., CV-410, p.323.
56
Ibid., v. 3, op. cit., CV-1365, p.349.
57
AHRGS, Lata 71, Maço 50, CV-7881.

16
Um mês depois, escrevia Bento Gonçalves para Rivera sobre a missão de Paulo e
Antonio Vicente da Fontoura, confiando em próximos acertos com o Estado Oriental58.
Ou seja, “com Fructo estamos em muito boa inteligência e firmes a cultivaremos”,
opinava o ministro Almeida em 1º de abril de 184159. Para o presidente Bento
Gonçalves, a opção por Rivera era absolutamente lógica, desde que as notícias de um
“novo bloqueio a Buenos Aires, bem como os progressos de Lavalle, muito influirá isto
para conseguirmos mais pronto nossa independência”60. Além disto, como escrevia o
mesmo Bento Gonçalves para João Antônio, partidas de legalistas de Silva Tavares
atacavam comandantes orientais “fazendo roubar quanto encontraram no campo; que
este procedimento tem exasperado os colorados”61, situação que tinha como favorável
para os republicanos.
As aproximações progrediam ao longo de 1841, com a ratificação por parte de
Rivera numa convenção secreta em 5 de julho que previa a devolução para a República
de desertores refugiados na Banda Oriental, ao que parece contando com a efetiva
colaboração de Don Frutos62. Tudo indicava a assinatura de um novo tratado entre o
Estado Oriental e a República, ainda mais que Rivera, perdido o apoio dos franceses,
voltava-se para os eventuais aliados do litoral, tratando de manter “ese nivel
insignificante de sus alianzas; y mismo, reincidió en él, al suscribir el Tratado de
alianza ofensiva y defensiva con la provincia de Corrientes”63.
Com os farroupilhas seria firmado em 28 de dezembro o Tratado de San
Fructuoso, de texto muito mais enxuto que o de Cangüé, visando as necessidades
prementes da República Rio-Grandense por cavalhadas e o esforço do caudilho oriental
em reunir efetivos para uma possível operação na província de Entre Ríos. Assim
acordaram as “altas partes”:

“1º. – S. Exª. o sr. presidente da República Rio-grandense prestará


a S. Exª. o sr. presidente da República Oriental do Uruguai um auxílio de
500 homens de infantaria e 200 de cavalaria, todos de linha, para
invadirem e ocuparem a província de Entre Rios, depondo sua atual
ominosa administração, cujas tropas armadas e equipadas obedecerão,

58
AHRGS, Coletânea..., op. cit., CV-8448, p.172.
59
ANAIS do AHRGS, v. 3, op. cit., CV-1436, p.373.
60
AHRGS, Coletânea..., op. cit., CV-8458, p.178.
61
Id., CV-8465, p.182.
62
ANAIS do AHRGS, v. 3, op. cit., CV-1736, p.471, e CV-2016, p.550.
63
STEWART VARGAS, op. cit., p.296.

17
durante a campanha, às ordens de S. Exª. o sr. presidente da mencionada
República Oriental do Uruguai. (...)
3º. – Será da obrigação de S. Exª. o sr. presidente da República
Oriental do Uruguai auxiliar de pronto com 2.000 cavalos a S. Exª. o sr.
presidente da República Rio-grandense, para o serviço do seu exército.”64

Para ficar “à testa daquela divisão que marcha”, Bento Gonçalves designara
Antônio de Souza Netto, um dos mais ilustres campeões farroupilhas, confiando na
“boa fé dos nossos tratados, bem assim dos que com bem fundadas razões espera
conseguir com os Estados de Corrientes, Entre Rios e Santa Fé, contamos o infalível
triunfo da causa sagrada da liberdade, firmando em sólidas bases a independência do
Rio Grande”65. Esta convenção, apesar da sua simplicidade, repercutiria amplamente
pelo Rio da Prata, significando a desistência definitiva dos republicanos de alguma
aliança com a Confederação Argentina, transferindo-se definitivamente as opções dos
rebeldes do Rio Grande por Rivera e pelos dissidentes do litoral, como manifestou o
enviado Tomás Guido para o ministro Oliveira Coutinho em 19 de janeiro de 1842:

“El infrascripto sabe por ultimos avisos de su Gobierno que el


caudillo rebelde de la Banda Oriental Fructuoso Rivera, habiendo
contratado con el General Bentos Gonzalves, de 500 a 700 negros, por el
valor de trescientos pesos cada uno para emplearlos en infantería y
caballería en la injusta guerra que sostiene contra la Confederación,
debian ser pagados aquellos con vestuario y artículos militares para los
discidentes, de los cuales una parte habia sido ya remitida al Rio
Grande.”66

Procuravam os diplomatas da Confederação provar a “escandalosa protecion


que Frutos prestaba a los rebeldes”, para tirar o Império da sua posição de
“neutralidade” em relação aos assuntos platinos. O Brasil, porém, não tinha ainda
condições para definir claramente sua política de alianças, e seguia negociando com
Rivera na Banda Oriental, mesmo que houvesse consciência da independência do
caudilho na sua luta pela sobrevivência dentro do seu estilo.
Os libertos da República Rio-Grandense, moeda de troca na obtenção das
cavalhadas de que necessitavam os farrapos, ingressavam assim na órbita de interesses
do sagaz Don Fructo, e teriam importância fundamental para suas possibilidades na

64
SPALDING, Walter. A Revolução Farroupilha. São Paulo: Cia. Editora Nacional/ UnB, 1982, p.192.

65
Ibid., p.193.
66
Arquivo do Itamarati, Correspondência, Representações Diplomáticas Estrangeiras no Brasil, Legação da Confederação
Argentina, 280-4-9.

18
Guerra Grande que se avizinhava, assim como nas tratativas de paz entre o Império e os
rebeldes da estremadura.

Paz nos pampas: o destino dos libertos

Tanto a República Rio-Grandense quanto o Estado Oriental não haviam abolido


a escravidão de africanos: no caso rio-grandense a libertação era concedida para aqueles
cativos que participassem das forças armadas, fossem eles cedidos pelos simpatizantes
ou confiscados aos legalistas. Na Banda Oriental, era já reduzido o número de escravos
pertencentes aos uruguaios, desde que a quase ininterrupta guerra desde 1811 havia
recrutado boa parte deles para os contingentes que se formavam, e os saladeros
próximos a Montevideo utilizavam mão-de-obra livre. Mas para alguns proprietários
rio-grandenses, farroupilhas e legalistas, transferir seus cativos para o Estado Oriental
era uma forma de preservação da propriedade.
Na Confederação a escravidão tinha sido extinta desde 1815, quando da
formação do Exército Libertador que San Martín constituiu para atacar os realistas no
Chile, estimando-se que dele uma terça parte fosse representada por libertos.
Preservavam-se, entretanto, os direitos dos proprietários de escravos do Brasil, como no
caso da Lei de Corrientes assinada por Pedro Ferré em 4 de julho de 1838:

“Art. 1.º A Provincia de Corrientes reconhece em favor dos


habitantes do Estado vizinho do Brasil os direitos de propriedade e
dominio que lhes compitão sobre os negros escravos que d’ali tenhão
fugido para este territorio em tempo de paz.
Art. 2.º Seus respectivos senhores, assim considerados, poderão
aliená-los livremente nesta provincia de accordo com as leis vigentes, ou
leva-los à sua com o previo conhecimento e licença do governo
superior.”67

A aproximação do confronto de Rosas e Oribe contra Rivera e a aliança do


litoral presumia um risco para os proprietários de escravos no Estado Oriental, como
manifestavam os funcionários da legação de Montevideo. Na carta de Cruz Lima para a
Corte, em 19 de outubro de 1841 – antes, portanto, da assinatura do Tratado de San
Fructuoso com os rebeldes – o encarregado noticiava o interesse de Don Frutos em
recrutar escravos para seu exército:

67
AN, Repartição dos Negócios Estrangeiros, Anexo G – Reclamações de Estrangeiros.

19
“Assim como me communicava, que hum de seus planos éra ir
tomar Martin-Garcia; mas que para esse attaque não tinha bastante
infantaria, e assim lembrava-se pedir a Bento Gonçalves lhe désse a sua,
que he toda de Escravos, e que chegará a 400, porque com esse numero
elle conseguiria seu attaque; porem que queria ouvir o meu parecer, que
não fosse este passo traser-lhe para o futuro dificuldades com o Imperio.
Que no caso de pacificar a Provincia, e assim convir, elle ficaria com
aquelles Pretos como Colonos, estipulando-se a quantia que divia dar a
cada hum dos Senhores; e no caso contrario os restituiria a Bento
Gonçalves.
Eu lhe respondi que nenhum conselho podia dar em negocio tão
milindroso, pois que desse passo podião resultar dois males ao Império, o
primeiro éra, que no caso não pacificada a Provincia, Bento Gonçalves se
acharia no direito a exigir huma retribuição; e o segundo serião as
reclamações de Rosas, por terem Brasileiros, ainda que degenerados,
tomado parte nas suas desavenças.”68

Acertadas eram as previsões do representante brasileiro: Bento Gonçalves, pelo


tratado de 28 de dezembro de 1841, receberia dois mil cavalos, e a diplomacia da
Confederação faria amargas queixas com relação ao emprego de escravos no exército de
Rivera. Mas no ano seguinte, o problema que debatiam as autoridades imperiais em
relação aos escravos era qual a atitude a tomar quanto aos libertos das forças
farroupilhas caso a rebelião rio-grandense fosse dominada.
Na Conferência do Conselho de Estado de 17 de setembro de 1842, José
Clemente Pereira iniciava a sua exposição informando que “hum exercito de dez mil
homens de todas as armas, com doze mil cavallos, vai abrir a campanha do Rio Grande
do Sul no principio do proximo mez de Dezembro”, com boas possibilidades de vitória
já que tinham “os rebeldes apenas dous ou tres mil homens”. Ressaltava, entretanto,
que “tão lisonjeira esperança he enlutada com bem fundado receio de huma guerra
possivel com o Estado Oriental”, porque era muito provável que “pelo menos os
escravos armados, procurem reunir-se ao General Rivera”; se Don Frutos se recusasse
a devolvê-los, exigia “o decoro da Corôa Imperial, a honra e dignidade Nacional, e até
a segurança e interesses materiaes do Império, que seja immediatamente compellido
pela força”69.
Como a conduta de Rivera era duvidosa – “por sua escandalosa protecção dos
rebeldes, e injustas perseguições dos Brasileiros residentes no Estado Oriental” – e
sua posição periclitante ante a poderosa Confederação, Clemente Pereira tinha muita

68
PUBLICAÇÕES do AN XXXII. Correspondência para a Corte dos Encarregados de Negócios em Montevideo. Rio de Janeiro:
Oficinas Graphicas do Archivo Nacional, 1937 (Códice 10, volume 4, do Arquivo Nacional), p.280.

20
convicção da necessidade de uma intervenção militar no Uruguai após uma eventual
vitória definitiva sobre os farroupilhas. Nestas circunstâncias, propunha que o Conselho
de Estado fosse ouvido sobre dois quesitos:

“1º. Verificando-se o caso possível de que os rebeldes do Rio


Grande se retirem para o Estado Oriental, se o governo desta os acolher,
e, sendo requerido, não os desarmar, ou recusar fazer a entrega dos
escravos, deverá o Governo de Sua Magestade o Imperador empregar os
meios da força, mandando entrar o Exercito Imperial no territorio vizinho,
ainda que este procedimento possa ocasionar uma declaração de guerra
em caso extremo?
2º. Dous corpos de escravos, hum de Cavalleria e outro de
Infantaria, ambos regularmente organizados e aguerridos, em numero de
mil, segundo as melhores informações, constituem actualmente a parte
mais consideravel da força dos rebeldes, e são elles os que provavelmente
hirão procurar protecção no General Rivera. Será conveniente que o
Governo intente os meios particaveis de os induzir a depor as armas, até
mesmo de libertal-os, estabelecendo por esta forma um terrivel precedente
de premiar com a liberdade o crime de insurreição, com o fim de evitar
uma guerra estrangeira, possível mas não certa?”70

Parece claro, na forma como foram apresentados os quesitos, que José Clemente
Pereira optava pela primeira hipótese. O inimigo a temer aqui não seria Rivera, mas
Rosas, que por certo não estaria de acordo com uma proposta de “recisplatinização” da
Banda Oriental, estando ele tão interessado na reincorporação da mesma. De toda a
sorte, já andavam encaminhadas as negociações com Tomás Guido, que desejava o
apoio do Império para liquidarem, em conjunto, as forças de Don Frutos e da República
Rio-Grandense71. Já o exemplo de escravos libertos, justamente por terem pegado em
armas contra o Império, podia ser muito perigoso num período em que não se haviam
ainda apagado todas as manifestações de rebeldia nacional.
Os conselheiros todos responderam favoravelmente a uma intervenção militar no
Estado Oriental, negando peremptoriamente a possibilidade de manter em liberdade os
escravos que militavam no exército republicano72, e esta questão permaneceria em
aberto até o final da Guerra dos Farrapos, mais de dois anos depois. Afinal, os efetivos
imperiais não eram assim tão poderosos quanto propalara Clemente Pereira, tampouco

69
AN , Códice 603, Movimentos Políticos, Rio Grande do Sul, Folha 401.
70
Ibid.
71
O Império do Brasil e a Confederação Argentina assinariam, em 24 de março de 1843, um tratado de aliança defensiva e ofensiva
que visava a liquidação de Rivera e dos farrapos. Rosas, no entanto, viria a recusar os termos propostos pelo seu enviado Tomás
Guido, confiando que o cerco de Montevideo seria breve, evitando compromissos com o Império. Biblioteca Nacional, II-32,3,6 nº
13

21
havia disponibilidade de tão elevado número de cavalos. Reação maior tiveram os
legalistas residentes na Banda Oriental com a abolição decretada por Don Frutos,
informando Ribeiro Barreto para João Antônio que “Oribe anda em apatia e só os
brasileiros hostilizam Rivera pela fronteira por causa dos escravos”73.
A situação dos escravos também dividia os farroupilhas. José Mariano de
Mattos, na Assembléia Constituinte reunida em fins de 1842, apresentou um projeto de
abolição “que ampliaria a base social e militar do movimento, mas foi derrotado pela
firme oposição de Fontoura”74. O “maldito mulato”, como o chamavam os opositores
ao grupo de Bento Gonçalves, era considerado um dos mais radicalizados membros do
governo, mas é muito mais provável que estivesse mais interessado na reposição do
alquebrado exército republicano. Havia sempre, entretanto, nas tratativas que se faziam
para a pacificação, a insistência dos chefes farroupilhas para que fosse assegurada a
liberdade dos ex-cativos.
O problema teria uma solução pragmática em 14 de novembro de 1844, no
último combate travado entre legalistas e republicanos. Na batalha de Porongos, houve
uma “surpresa” de Chico Pedro no acampamento de David Canabarro, ocasião em que
foram exterminados muitos dos negros que compunham as hostes farroupilhas. O artigo
quarto do futuro tratado de paz de Ponche Verde – “São livres, e como tal
reconhecidos todos os cativos que serviram a revolução”75 – seria mais facilmente
aceito pelo Império quanto menor fosse o número de libertos indultados.
Aparentemente tinha havido a conivência de David Canabarro e Lucas de
Oliveira em relação a esse último encontro bélico, que deu o golpe mortal à rebelião rio-
grandense. Há uma carta de Caxias para Chico Pedro, de 9 de novembro, onde o Barão
orienta o ataque a Porongos recomendando que o coronel fizesse a aproximação
“inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso afiançar-lhe que Canabarro e
Lucas ajustaram ter suas observações sobre o lado oposto”. Acrescentava o general:
“poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da
Província ou índios, pois bem sabe que esta pobre gente ainda pode ser útil no

72
Ibid., Folhas 406-437.
73
ANAIS do AHRGS, v.4, op. cit., CV-2522, p.333.
74
FACHEL, José Plínio Guimarães. As Cisões Políticas entre os Farroupilhas durante A Guerra de 1835 A 1845 no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1994. Dissertação de Mestrado (mimeo).
75
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, v.7, CV-3731, p.31.

22
futuro”76. Outras versões, no entanto, afirmam que o documento de Caxias tinha o
intuito de disseminar cizânias entre os republicanos.
Bento Gonçalves – marginalizado nestes últimos meses da campanha farroupilha
– partilhava da opinião de que Canabarro havia realmente facilitado este combate final,
com o objetivo de acelerar as negociações de uma rendição que agora tornava-se
inevitável, e que servira muito bem para atenuar a questão dos cativos. Escrevia o antigo
líder máximo da República em 27 de novembro:

“Perder batalhas é dos capitães, e ninguém pode estar livre disso;


mas dirigir uma massa e prepará-la para sofrer uma surpresa semelhante
e ser desfeita sem a menor resistência, é só da incapacidade, da inaptidão
e covardia do homem que assim se conduz.”77

O destino dos escravos que sobreviveram a Porongos e receberam indulto é


incerto. Alguns deles optaram pela adesão aos chefes orientais envolvidos na Guerra
Grande; outros teriam sido novamente reduzidos ao cativeiro e remetidos ao centro do
país. Mais que nunca a fronteira “porosa” do Rio Grande com a Banda Oriental e
Corrientes configurava-se como um espaço privilegiado para as fugas, o que tem sido
objeto de pesquisas muito recentes ainda não concluídas.

Conclusão

Para os republicanos rio-grandenses o espaço fronteiriço foi uma condição


fundamental na preservação do simulacro de Estado que tentavam articular contra as
pressões econômicas e militares do poderoso Império do Brasil. Os negócios pelas
imprecisas divisas com o Estado Oriental permitiram a sobrevivência de algum grau de
atividade produtiva, tornando-se Montevideo a praça comercial dos “cidadãos” e da
própria República. Também do exterior provinham os recursos de que tanto
necessitavam os farroupillhas para o enfrentamento com os legalistas, e um grande
número de comerciantes sediados na capital uruguaia – Castellini, Nascimbembe,
Truebas, Victorica, entre tantos – tornaram-se credores da República Rio-Grandense e
de seus líderes, que não raro confundiam os negócios públicos com os privados.
Neste sentido, não é admirável que algumas vezes – como foi o caso exemplar
de Domingos José de Almeida – a Banda Oriental servisse como refúgio para a

76
Ibid., CV-3730, p.30.
77
AHRGS. Coletânea..., op. cit., Arquivo Particular, p.256.

23
conservação de bens que estavam ameaçados pelos rumos que tomava a guerra na
estremadura. Transferir reses e escravos para o vizinho país poderia ser uma garantia,
não apenas contra os ataques dos imperiais, como também em relação ao assédio da
República, sempre sequiosa de gado para trocar por petrechos bélicos e de homens para
sua combalida infantaria. Os rumos inesperados que redundaram na ocupação da
campanha oriental pelas tropas oribistas durante a Guerra Grande inverteram esta
perspectiva, e o santuário se converteu no comprometimento definitivo do patrimônio
representado pelos escravos.
O Tratado de San Fructuoso, assinado quando ainda parecia alvissareiro o futuro
de Rivera e dos farroupilhas no teatro de lutas do Prata, evidenciou a capacidade dos
caudilhos rio-grandenses em formarem alianças e acordos de ocasião, propiciando um
nível elevado de resistência contra as forças incomparavelmente maiores do Império.
Aqui, por primeira vez, manifestava-se a indignação da mais alta autoridade da
Confederação Argentina, o governador de Buenos Aires Juan Manuel de Rosas,
tratando de ganhar para seu lado a causa da Corte do Rio de Janeiro. Difícil se tornava a
manutenção da “neutralidade” diplomática nos conflitos platinos na medida em que os
assuntos de Don Fructo mesclavam-se tão intimamente com os dos rebeldes sulinos.
Assim sendo, a pacificação com os dissidentes teria necessariamente que passar
pelo cuidadoso exame da questão servil, onde se colocava um perigoso dilema: permitir
a liberdade daqueles que duas vezes tinham infringido a lei – abandono dos seus
senhores e luta armada contra o exército imperial – ou praticamente coagi-los ao
ingresso nas hostes de Rivera, o que valeria aumentar as tensões contra a Confederação
Argentina. Até um impensável tratado militar com Rosas foi aceito pela Corte como
única forma de resolver o impasse, em que pese o risco que significaria o controle da
Banda Oriental pelo principal aliado e comandante militar de Rosas, Manuel Oribe.
A não ratificação do tratado significou a necessidade de aceitação dos termos
dos rebeldes para o retorno da província desgarrada ao Império, e o desastre de
Porongos – tenha sido combinado ou não – propiciou uma condição mais aceitável para
a liberdade dos soldados negros, agora em número menos ameaçador.
Os “senhores da guerra” do Rio Grande não se aquietaram com a Paz de Ponche
Verde: estiveram fustigando os blancos de Oribe nas “califórnias” de Chico Pedro,
participaram da intervenção imperial contra Oribe e Rosas, e novamente voltaram ao
teatro da Banda Oriental em apoio ao colorado Venancio Flores contra Berro e Aguirre,
o que veio a ser uma das causas da Guerra da Tríplice Aliança.

24
As “intromissões” das autoridades uruguaias, que não mais reconheciam a
escravidão, nos assuntos dos rio-grandenses, que mantinham escravos em suas estâncias
no Estado Oriental, foram usadas como motivo para as ações bélicas dos homens da
fronteira. Não seria de estranhar que nessas peripécias estivessem presentes soldados
negros, como ocorreu na Revolução Farroupilha. Isso, no entanto, só poderá ser
desvelado por conta de novas pesquisas.

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