Introdução
1
O tema abordado neste texto foi trabalhado parcialmente na Tese de Doutorado “O Horizonte da Província: a República Rio-
Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845)”, defendida e aprovada no Curso de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1998.
2
CESAR AUGUSTO BARCELLOS GUAZZELLI. Professor doutor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3
FIGUEIREDO, Joana Bosak de. O Rio Grande de São Pedro entre o Império do Brasil e o Prata: a Identidade Regional e o
Estado Nacional (1851 - 1865). Porto Alegre: UFRGS, 2000, p.75-103. Dissertação de Mestrado (mimeo).
brasileira teve como seu maior destaque João Simões Lopes Neto, até hoje o nosso mais
consagrado autor gauchesco. Na produção historiográfica, o grande nome foi Alfredo
Varela, autor de duas alentadas obras em que atribui à Revolução Farroupilha uma
filiação direta aos movimentos revolucionários que se seguiram ao 25 de Maio de 1810
no Prata4, inaugurando o que Ieda Gutfreind chamou de “matriz platina” de
interpretação da realidade regional, com ênfase na “influência da área platina no Rio
Grande do Sul e a pretensão separatista da Província”5.
A partir dos anos 30 – não era mera coincidência o alinhamento com o projeto de
afirmação do Estado nacional desencadeado por Getúlio Vargas – predominaram, no
entanto, os autores identificados com uma “matriz lusitana”: Aurélio Porto, Souza
Docca, Othelo Rosa, Walter Spalding, Moysés Vellinho, entre tantos, salientavam as
diferenças entre os gaúchos rio-grandenses e os platinos, estabelecendo a “brasilidade”
sempre presente entre os sulinos e o seu papel de sentinelas que garantiram no passado a
preservação da unidade nacional. Aqui, as influências do Rio da Prata apareceram como
efêmeras e recebidas com desconfianças pelos continentinos d’ antanho; a Revolução
Farroupilha não tinha sido uma manifestação de repúdio ao Império, mas uma
antecipação de pautas políticas avant la lettre pelos liberais rio-grandenses submetidos
ao conservadorismo centralista da Corte.
Na minha tese de doutorado, “O Horizonte da Província: a República Rio-
Grandense e os Caudilhos do Rio da Prata (1835-1845)”, procurei demonstrar três
hipóteses: a incompreensão de uma unidade política que se sobrepusesse àquela da
“região-província” por parte dos caudilhos rio-grandenses; a capacidade que esses
chefes guerreiros tinham em formar milícias pessoais, oriunda das relações sociais
estabelecidas nas estâncias de criação de gado; e a importância incontestável das
alianças estabelecidas com os caudilhos da Banda Oriental e da Confederação Argentina
na sobrevivência da secessão farroupilha por quase dez anos. Em relação às duas
últimas apareceu a questão dos libertos que formaram nas fileiras da República Rio-
Grandense.
No que diz respeito à segunda hipótese, pode-se constatar que, ao contrário dos
peões campeiros, para os quais seguir os patrões-comandantes era quase uma
continuidade das atividades cotidianas, os escravos alforriados pagavam com o serviço
4
VARELA, Alfredo. Revoluções Cisplatinas. A República Riograndense. Porto: Livraria Chardron, 1915 (2 v.). VARELA, Alfredo.
História da Grande Revolução. O Ciclo Farroupilha no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1933 (6 v.).
5
GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992.
2
militar a liberdade do cativeiro. Outra diferença dizia respeito ao lugar ocupado no
exército rebelde: os peões livres eram destinados à cavalaria, a arma por excelência das
guerras platinas; aos escravos – salvo aqueles que já detinham o estatuto de “campeiros”
– destinava-se o serviço na infantaria, onde os riscos eram mais acentuados.
Em relação à terceira, foi possível demonstrar que a presença de libertos no
exército farroupilha imbricou-se com as questões platinas em pelo menos três situações:
a transferência de escravos para o Estado Oriental como uma estratégia de preservação
da propriedade, quando a República solicitava aos seus cidadãos a cessão de cativos
para suas hostes; o Tratado de San Fructuoso, que disponibilizou libertos para as tropas
de Rivera, que preparava sua investida contra Rosas invadindo a província litoraleña de
Entre Ríos; a pacificação e reintegração da província rebelde ao Império, com as
temíveis conseqüências de uma eventual manutenção da liberdade dos cativos que
haviam lutado pela causa republicana.
São poucos os trabalhos sobre a participação dos escravos na Revolução
Farroupilha6. Por outro lado, não há referências à importância que os libertos
representaram para as relações externas estabelecidas entre os republicanos e seus
vizinhos do Rio da Prata, nem quanto a sua presença perturbou as diplomacias do
Império e da Confederação. Contribuir para uma melhor compreensão desta questão é o
objetivo deste texto.
6
Destacamos, por exemplo: BAKOS, Margaret Marchiori. A escravidão e os farroupilhas. In: VÁRIOS. Revolução Farroupilha:
História e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
3
abundantissimo voluntariado; os corpos das outras armas preenchiam os
claros com levas do recrutamento selvagem, por todo o norte do paiz,
quando não pelas Suburras da capital do Imperio.”7
Mesmo que sejam exageradas algumas apreciações sobre uma certa frouxidão
disciplinar dos chefes cavalarianos, e de que “os repentes de severidade que eram
communs nos officiaes das outras armas, pouco ou nunca se verificavam na
cavallaria”, sendo rotineiro o dito proverbial “para uma bofetada uma punhalada”9,
isso parece mais uma repetição do cotidiano da estância de criação, da qual o peão
armado e a cavalo podia facilmente reverter a uma vida de delinqüência. O estancieiro
transformado em caudilho precisava manter as mesmas condições que garantiam a
adesão dos peões agora seus milicianos.
Uma das primeiras medidas da República foi uma simplificação na hierarquia
militar, reduzindo todos os altos postos do Exército – marechal, brigadeiro etc – em
generalato, pelo decreto de novembro de 183610. Esta patente só foi concedida para João
Manuel de Lima e Silva, Souza Netto, Bento Gonçalves, Bento Manuel, David
Canabarro e João Antônio; com a notável exceção do primeiro, os demais se haviam
afirmado como comandantes de “guerrilhas” nas disputas fronteiriças, sendo pouco
habituados às práticas castrenses mais formais. Sobre tal assunto, um inconformado
Alencastre opinava sobre o aspecto pouco marcial dos chefes farroupilhas:
7
VARELA, 1915, op. cit., p.991.
8
STEWART VARGAS, Guillermo. Oribe y su significacion frente a Rozas y Rivera. Buenos Aires: Pellegrini Impressores, 1958.,
p.241.
9
VARELA, 1915, op. cit., p.991.
10
PORTO, Aurélio. Notas ao Processo dos Farrapos. In: PUBLICAÇÕES do Arquivo Nacional XXIX. Rio de Janeiro: Oficinas
4
“O governo deve ordenar aos generais que usem dos uniformes que
lhes competem (...) Um general que sempre se apresenta de poncho, às
vezes até de jaqueta de brim e um chapéu de abas largas, que influência
poderá excitar? Lembra-me um dito do Coronel Damasceno; dizia: ‘oiem
que repúbrica que os generais andão de ponche de toaia’, referindo ao
General Neto, que usava uns ponchos brancos.”11
5
suas casas pessoa alguma que não tenha emprego ou ocupação sem que
logo participem ao Juiz de Paz respectivo (...)”14
14
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1980, v. 4, CV-2386, p.235.
15
Ibid., v. 2, CV-369, p.282.
16
Ibid., v. 3, CV-785/A, p.229.
17
AHRGS, Lata 68, Maço 40, CV-6249.
18
AHRGS. Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves da Silva. Porto Alegre: Comissão Executiva do Sesquicentenário da
6
Mas se as atenções estavam voltadas para os paisanos comuns, tão suspeitos de
delitos quanto os gaudérios d’antanho , para aqueles enrolados nas forças republicanas
também recaiam os cuidados do Estado. No decreto de 20 de abril de 1838, o Secretário
dos Negócios da Guerra instrui os deveres do Comandante do Depósito Geral dos
Recrutas, que deveria em relação aos novos soldados,
7
A infantaria possível na República: os escravos libertos
A maior parte dos libertos era no entanto destinada para a infantaria, arma que os
homens livres desprezavam da mesma forma que os trabalhos no eito, conforme
explicitou Bento Gonçalves em 4 de julho de 1841 em documento onde exortava aos
seus partidários que cedessem escravos para as forças:
23
AHRGS,Coletânea..., op. cit., CV-8471, p.186.
24
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1978, v. 3, CV-1736, p.471. e CV-2016, p.550. Arquivo Nacional (AN),
Repartição dos Negócios Estrangeiros, Anexo G, Reclamações Estrangeiras, Lei de Corrientes.
25
AHRGS, Coletânea..., op. cit., CV-8347, p.187.
8
“(...) lanceis mão de toda a escravatura dos dissidentes da causa
da República (...) bem assim se pedirá aos mais cidadãos da República,
inda que patriotas sejam, um escravo ao que tiver três varões, e dois, a
seis, e sobre a mesma base os que tiverem mais, passando-lhes
documentos para oportunamente serem pagos (...)”26
“1o Todo o escravo que for prezo e tiver feito parte das forças
rebeldes, será ahí, ou no lugar mais próximo que possa ter lugar,
correccionalmente punido, com duzentos, a mil açoites, por ordem da
Authoridade Militar ou Civil, independente de processos. (...)
2o Os escravos que ao tempo da publicaçaó desta providencia
fizerem parte da força armada dos rebeldes, e que abandonando o seu
partido, se apresentarem ao General ou ás Authoridades que este
designar, ficaó amnistiados e isentos de todo serviço forçado, e ser-lhes-
há passada a carta de alforria (...)”27
26
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, 1984, v. 8, CV-4876, p.379.
27
MUSEU E ARCHIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos Interessantes para o Estudo da Grande
Revolução de 1835-1845. 1º volume. O Povo (Edição fac-simile da colecção completa). Porto Alegre: Livraria do Globo, 1930, O
Povo nº 65, p.273.
28
Ibid., p.274.
9
então – e Piratini29. A liberdade era uma recompensa do Estado aos que prestassem
serviço militar, como fica claro no decreto de 16 de maio de 1839:
29
Id., nº 122, p.518.
30
Id., nº 67, p.285.
31
Id., nº 58, p.241.
32
ANAIS do AHRGS, v. 2, op. cit., CV-209, p.184., CV-221, p.192., CV-222, p.193., CV-225, p.195. e CV-231, p.199. ANAIS do
10
Para muitos rio-grandenses a Banda Oriental parecia um lugar mais seguro para
seus patrimônios, aqui incluídos os escravos, do que os domínios da República, sempre
gravando os “cidadãos” com requisições de gados e cativos. Apesar daquelas medidas
que o Estado tomou contra os que migravam para fugir aos compromissos, alguns deles
procuraram criar sólidas posições econômicas em terras uruguaias, inclusive
aproveitando o acentuado tráfego de tropas que do Rio Grande saiam para Montevideo.
Um dos mais notáveis era também um dos principais organizadores do Estado
republicano, o ministro Domingos José de Almeida, e sua trajetória pessoal neste
sentido é exemplar.
De humildes origens em Minas Gerais, Almeida veio para o extremo sul
interessado no ainda lucrativo comércio de mulas, e em pouco tempo se ligara pelo
casamento a uma tradicional família de estancieiros33. Estabelecido com importantes
charqueadas em Pelotas, foi também pioneiro na navegação comercial a vapor pela
Lagoa dos Patos, a única ligação que o Rio Grande tinha com o Atlântico. A Guerra dos
Farrapos, à cuja causa aderira precocemente, comprometia muito sua situação
econômica, visto que os imperiais em breve teriam o controle dos principais centros
ribeirinhos da Lagoa dos Patos, como Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande e São José do
Norte.
Muito célere foi Almeida em transferir seus negócios para o Estado Oriental
evitando prejuízos econômicos de vulto. Numa relação que elaborou, Almeida afirmava
a propriedade de 84 escravos antes do 20 de setembro, dos quais 24 carneadores, 15
graxeiros, 6 salgadores e 5 tripeiros, todos estes diretamente ligados à fabricação do
charque; a eles somavam-se 4 campeiros, 7 responsáveis pelo transporte de cargas e 6
artífices para as reparações necessárias a uma charqueada34. Em fevereiro de 1836
escrevia à esposa que “aí nossa fortuna jamais pode avançar um pequeno passo, pelo
desvio que até aos gados me querem dar de costeio”, motivo pelo qual pedia que Dona
Bernardina se retirasse de Pelotas “trazendo em tua companhia tudo quanto puder,
fretando os iates precisos, e deixando na chácara um escravo somente”35. No ano
seguinte, já ministro da República, recomendava que a esposa providenciasse
11
“(...) para levar a Montevidéu todos os escravos da lista junta,
caso não precises de algum ou alguns deles, porque então deixarás ficar
os que te forem necessários; e pela carreta manda vir de Montevidéu sal,
farinha, arroz, açucar, vinho e vinagre e tudo mais para ti e nossos filhos,
pois eu não trabalho para ninguém mais (...)”36
36
Ibid., CV-209, p.184.
37
Ibid., CV-221, p.192.
38
Ibid., CV-222, p.193.
39
Ibid., CV-253, p.213.
40
Ibid., v. 3, op. cit., CV-2056, p.563.
41
Ibid., v. 2, op. cit., CV-464, p.358.
12
dias depois que ela fizera bem em solicitar “a Victorica o dinheiro de que fazes
menção; repete tais pedidos a Truebas, para não sofreres necessidades”42.
Em seus contatos com outros chefes farroupilhas, no entanto, Domingos José de
Almeida usualmente reclamava de sacrifícios pessoais feitos pela República. Para
Canabarro, apesar de salientar que “dos melhores escravos que possuía quando
arrebentou a revolução, reservei 17 que aluguei em Montevidéu para, com seus jornais
manter minha família”, Almeida acrescentou:
42
Ibid., CV-472, p.362.
43
Ibid., v. 3, op. cit., CV-652, p.112.
44
Ibid., v. 2, op. cit., CV-377, p.292.
45
Id., ibid.
13
novidade, que lhe privaria da fonte de renda que mantinha na Banda Oriental, Almeida
solicitou ao comerciante Juan Pedro Ramirez:
46
Ibid., CV-1571, p.421.
47
Ibid., CV-1575, p.423.
48
Ibid., CV-1576, p.424.
49
Ibid., CV-652, p.112.
14
Almeida já está em Pelotas anistiado, e já requerendo ao governo dez contos de réis de
um iate que outrora lhe arrendaram. Que homem safado!”50
Não há outros casos tão documentados quanto o de Domingos José de Almeida.
De qualquer forma, neste caso o Estado acobertou as ações do seu ministro, ao contrário
de outros “cidadãos” com os quais o próprio Almeida tanto se mostrou preocupado por
salvaguardarem suas propriedades e bens no Estado Oriental. Bento Manuel, por
exemplo, após sua última defecção do exército farroupilha teve seus bens confiscados
pela República, além de perder o gado que tinha invernado no território oriental de
Bella Unión. O Estado não pesava igualmente para todos, especialmente se os interesses
econômicos tinham agora como principal endereço o comércio na Banda Oriental.
O ano de 1839 foi marcado por uma oscilação na política externa da República
Rio-Grandense, que procurou aproximar-se de Rosas através do entrerriano Echagüe.
Apesar disto, a Banda Oriental era citada como um exemplo de província convertida em
Estado independente. A guerra externa que ameaçava permanentemente a autonomia
uruguaia era comparada com aquela que o Império movia contra os farroupilhas, como
fica explícito na edição de “O Povo” de 5 de junho:
50
FONTOURA, Antônio Vicente da. Diário. Porto Alegre: EDUCS/Sulina/Martins, 1984, p.106.
51
MUSEU E ARCHIVO..., op. cit., O Povo nº 72, p.307.
52
O Tratado de Cangüé, de 8 de agosto de 1838, foi o primeiro firmado entre Bento Gonçalves e Rivera, garantindo mútuo
reconhecimento entre a República Rio-Grandense e o Estado Oriental, ajuda econômica e militar. AHRGS, Lata 77, Maço 66,
Diversos.
15
hostilidade de alguns farroupilhas, tendo inquirido diretamente a Domingos José de
Almeida em 18 de setembro sobre uma notícia dando conta que “el S Coronel Juan
Antonio , y el Coronel Dabid, debian por estes tres dias pasados, reunirse en Alegrete,
con una fuerza es 600 hombres: que por todo el pais no se decia otra cosa sino que lo
objecto hera batirme” 53.
Em 1840 os farroupilhas ainda tinham queixas de Rivera, fundamentalmente por
permitir reuniões de legalistas em território oriental, apesar de Montevideo continuar
sendo o principal centro de comercialização da produção dos proprietários
republicanos. E Don Fructo, apesar de ainda contar com a sustentação dos franceses,
pedia à combalida República Rio-Grandense, que precisava dos seus préstimos em
cavalhadas e petrechos de guerra, “fazer o obzequio, emprestar alguns patacoens, alem
dos mais que sou a Vª. Exª devidos”54. O ministro Almeida preocupava-se mais com os
imperiais emigrados, insistindo na aplicação pelos comandantes militares do decreto de
4 de fevereiro de 1839 que ordenava a aplicação de “pena de morte contra todos
aqueles indivíduos que moradores os asilados no Estado Oriental passarem a este com
o fim de hostilizá-lo, e assim prolongarem a guerra que contra nós sustenta o governo
do Brasil” 55.
Os negócios com gado prosperavam na Banda Oriental, com participação ativa
de Rivera a julgar pela recomendação de Almeida em 28 de janeiro de 1841 para o
comerciante De la Rocha para que “dirija a Fructo a que lhe enderecei por V. Sª. e
diga-lhe a quem deve mandar entregar o restante da importância da tropa”56. Datada
do mesmo dia, chegava comunicação de Don Frutos interessado em “una idea que
debia neutralisar las maquinaciones de los enemigos del progreso de estos estados”,
interesse este que havia sido despertado pela missão farroupilha, na qual “D. Pablo
Fontoura me ha echo conocer la verdadera cituacion politica de ese Estado, y que con
el objeto de ser util a la causa de eses Paiz, tomo la micion de ir a esplicar a el
Gobierno mi pensamento”, salientando que as questões platinas passavam “por la
Republica Argentina y cuanto se premedita”57.
53
AHRGS, Lata 71, Maço 50, CV-7878.
54
Ibid., CV-7880.
55
ANAIS do AHRGS, v. 2, op. cit., CV-410, p.323.
56
Ibid., v. 3, op. cit., CV-1365, p.349.
57
AHRGS, Lata 71, Maço 50, CV-7881.
16
Um mês depois, escrevia Bento Gonçalves para Rivera sobre a missão de Paulo e
Antonio Vicente da Fontoura, confiando em próximos acertos com o Estado Oriental58.
Ou seja, “com Fructo estamos em muito boa inteligência e firmes a cultivaremos”,
opinava o ministro Almeida em 1º de abril de 184159. Para o presidente Bento
Gonçalves, a opção por Rivera era absolutamente lógica, desde que as notícias de um
“novo bloqueio a Buenos Aires, bem como os progressos de Lavalle, muito influirá isto
para conseguirmos mais pronto nossa independência”60. Além disto, como escrevia o
mesmo Bento Gonçalves para João Antônio, partidas de legalistas de Silva Tavares
atacavam comandantes orientais “fazendo roubar quanto encontraram no campo; que
este procedimento tem exasperado os colorados”61, situação que tinha como favorável
para os republicanos.
As aproximações progrediam ao longo de 1841, com a ratificação por parte de
Rivera numa convenção secreta em 5 de julho que previa a devolução para a República
de desertores refugiados na Banda Oriental, ao que parece contando com a efetiva
colaboração de Don Frutos62. Tudo indicava a assinatura de um novo tratado entre o
Estado Oriental e a República, ainda mais que Rivera, perdido o apoio dos franceses,
voltava-se para os eventuais aliados do litoral, tratando de manter “ese nivel
insignificante de sus alianzas; y mismo, reincidió en él, al suscribir el Tratado de
alianza ofensiva y defensiva con la provincia de Corrientes”63.
Com os farroupilhas seria firmado em 28 de dezembro o Tratado de San
Fructuoso, de texto muito mais enxuto que o de Cangüé, visando as necessidades
prementes da República Rio-Grandense por cavalhadas e o esforço do caudilho oriental
em reunir efetivos para uma possível operação na província de Entre Ríos. Assim
acordaram as “altas partes”:
58
AHRGS, Coletânea..., op. cit., CV-8448, p.172.
59
ANAIS do AHRGS, v. 3, op. cit., CV-1436, p.373.
60
AHRGS, Coletânea..., op. cit., CV-8458, p.178.
61
Id., CV-8465, p.182.
62
ANAIS do AHRGS, v. 3, op. cit., CV-1736, p.471, e CV-2016, p.550.
63
STEWART VARGAS, op. cit., p.296.
17
durante a campanha, às ordens de S. Exª. o sr. presidente da mencionada
República Oriental do Uruguai. (...)
3º. – Será da obrigação de S. Exª. o sr. presidente da República
Oriental do Uruguai auxiliar de pronto com 2.000 cavalos a S. Exª. o sr.
presidente da República Rio-grandense, para o serviço do seu exército.”64
Para ficar “à testa daquela divisão que marcha”, Bento Gonçalves designara
Antônio de Souza Netto, um dos mais ilustres campeões farroupilhas, confiando na
“boa fé dos nossos tratados, bem assim dos que com bem fundadas razões espera
conseguir com os Estados de Corrientes, Entre Rios e Santa Fé, contamos o infalível
triunfo da causa sagrada da liberdade, firmando em sólidas bases a independência do
Rio Grande”65. Esta convenção, apesar da sua simplicidade, repercutiria amplamente
pelo Rio da Prata, significando a desistência definitiva dos republicanos de alguma
aliança com a Confederação Argentina, transferindo-se definitivamente as opções dos
rebeldes do Rio Grande por Rivera e pelos dissidentes do litoral, como manifestou o
enviado Tomás Guido para o ministro Oliveira Coutinho em 19 de janeiro de 1842:
64
SPALDING, Walter. A Revolução Farroupilha. São Paulo: Cia. Editora Nacional/ UnB, 1982, p.192.
65
Ibid., p.193.
66
Arquivo do Itamarati, Correspondência, Representações Diplomáticas Estrangeiras no Brasil, Legação da Confederação
Argentina, 280-4-9.
18
Guerra Grande que se avizinhava, assim como nas tratativas de paz entre o Império e os
rebeldes da estremadura.
67
AN, Repartição dos Negócios Estrangeiros, Anexo G – Reclamações de Estrangeiros.
19
“Assim como me communicava, que hum de seus planos éra ir
tomar Martin-Garcia; mas que para esse attaque não tinha bastante
infantaria, e assim lembrava-se pedir a Bento Gonçalves lhe désse a sua,
que he toda de Escravos, e que chegará a 400, porque com esse numero
elle conseguiria seu attaque; porem que queria ouvir o meu parecer, que
não fosse este passo traser-lhe para o futuro dificuldades com o Imperio.
Que no caso de pacificar a Provincia, e assim convir, elle ficaria com
aquelles Pretos como Colonos, estipulando-se a quantia que divia dar a
cada hum dos Senhores; e no caso contrario os restituiria a Bento
Gonçalves.
Eu lhe respondi que nenhum conselho podia dar em negocio tão
milindroso, pois que desse passo podião resultar dois males ao Império, o
primeiro éra, que no caso não pacificada a Provincia, Bento Gonçalves se
acharia no direito a exigir huma retribuição; e o segundo serião as
reclamações de Rosas, por terem Brasileiros, ainda que degenerados,
tomado parte nas suas desavenças.”68
68
PUBLICAÇÕES do AN XXXII. Correspondência para a Corte dos Encarregados de Negócios em Montevideo. Rio de Janeiro:
Oficinas Graphicas do Archivo Nacional, 1937 (Códice 10, volume 4, do Arquivo Nacional), p.280.
20
convicção da necessidade de uma intervenção militar no Uruguai após uma eventual
vitória definitiva sobre os farroupilhas. Nestas circunstâncias, propunha que o Conselho
de Estado fosse ouvido sobre dois quesitos:
Parece claro, na forma como foram apresentados os quesitos, que José Clemente
Pereira optava pela primeira hipótese. O inimigo a temer aqui não seria Rivera, mas
Rosas, que por certo não estaria de acordo com uma proposta de “recisplatinização” da
Banda Oriental, estando ele tão interessado na reincorporação da mesma. De toda a
sorte, já andavam encaminhadas as negociações com Tomás Guido, que desejava o
apoio do Império para liquidarem, em conjunto, as forças de Don Frutos e da República
Rio-Grandense71. Já o exemplo de escravos libertos, justamente por terem pegado em
armas contra o Império, podia ser muito perigoso num período em que não se haviam
ainda apagado todas as manifestações de rebeldia nacional.
Os conselheiros todos responderam favoravelmente a uma intervenção militar no
Estado Oriental, negando peremptoriamente a possibilidade de manter em liberdade os
escravos que militavam no exército republicano72, e esta questão permaneceria em
aberto até o final da Guerra dos Farrapos, mais de dois anos depois. Afinal, os efetivos
imperiais não eram assim tão poderosos quanto propalara Clemente Pereira, tampouco
69
AN , Códice 603, Movimentos Políticos, Rio Grande do Sul, Folha 401.
70
Ibid.
71
O Império do Brasil e a Confederação Argentina assinariam, em 24 de março de 1843, um tratado de aliança defensiva e ofensiva
que visava a liquidação de Rivera e dos farrapos. Rosas, no entanto, viria a recusar os termos propostos pelo seu enviado Tomás
Guido, confiando que o cerco de Montevideo seria breve, evitando compromissos com o Império. Biblioteca Nacional, II-32,3,6 nº
13
21
havia disponibilidade de tão elevado número de cavalos. Reação maior tiveram os
legalistas residentes na Banda Oriental com a abolição decretada por Don Frutos,
informando Ribeiro Barreto para João Antônio que “Oribe anda em apatia e só os
brasileiros hostilizam Rivera pela fronteira por causa dos escravos”73.
A situação dos escravos também dividia os farroupilhas. José Mariano de
Mattos, na Assembléia Constituinte reunida em fins de 1842, apresentou um projeto de
abolição “que ampliaria a base social e militar do movimento, mas foi derrotado pela
firme oposição de Fontoura”74. O “maldito mulato”, como o chamavam os opositores
ao grupo de Bento Gonçalves, era considerado um dos mais radicalizados membros do
governo, mas é muito mais provável que estivesse mais interessado na reposição do
alquebrado exército republicano. Havia sempre, entretanto, nas tratativas que se faziam
para a pacificação, a insistência dos chefes farroupilhas para que fosse assegurada a
liberdade dos ex-cativos.
O problema teria uma solução pragmática em 14 de novembro de 1844, no
último combate travado entre legalistas e republicanos. Na batalha de Porongos, houve
uma “surpresa” de Chico Pedro no acampamento de David Canabarro, ocasião em que
foram exterminados muitos dos negros que compunham as hostes farroupilhas. O artigo
quarto do futuro tratado de paz de Ponche Verde – “São livres, e como tal
reconhecidos todos os cativos que serviram a revolução”75 – seria mais facilmente
aceito pelo Império quanto menor fosse o número de libertos indultados.
Aparentemente tinha havido a conivência de David Canabarro e Lucas de
Oliveira em relação a esse último encontro bélico, que deu o golpe mortal à rebelião rio-
grandense. Há uma carta de Caxias para Chico Pedro, de 9 de novembro, onde o Barão
orienta o ataque a Porongos recomendando que o coronel fizesse a aproximação
“inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso afiançar-lhe que Canabarro e
Lucas ajustaram ter suas observações sobre o lado oposto”. Acrescentava o general:
“poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da
Província ou índios, pois bem sabe que esta pobre gente ainda pode ser útil no
72
Ibid., Folhas 406-437.
73
ANAIS do AHRGS, v.4, op. cit., CV-2522, p.333.
74
FACHEL, José Plínio Guimarães. As Cisões Políticas entre os Farroupilhas durante A Guerra de 1835 A 1845 no Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1994. Dissertação de Mestrado (mimeo).
75
ANAIS do AHRGS. Porto Alegre: IEL/DAC/SEC, v.7, CV-3731, p.31.
22
futuro”76. Outras versões, no entanto, afirmam que o documento de Caxias tinha o
intuito de disseminar cizânias entre os republicanos.
Bento Gonçalves – marginalizado nestes últimos meses da campanha farroupilha
– partilhava da opinião de que Canabarro havia realmente facilitado este combate final,
com o objetivo de acelerar as negociações de uma rendição que agora tornava-se
inevitável, e que servira muito bem para atenuar a questão dos cativos. Escrevia o antigo
líder máximo da República em 27 de novembro:
Conclusão
76
Ibid., CV-3730, p.30.
77
AHRGS. Coletânea..., op. cit., Arquivo Particular, p.256.
23
conservação de bens que estavam ameaçados pelos rumos que tomava a guerra na
estremadura. Transferir reses e escravos para o vizinho país poderia ser uma garantia,
não apenas contra os ataques dos imperiais, como também em relação ao assédio da
República, sempre sequiosa de gado para trocar por petrechos bélicos e de homens para
sua combalida infantaria. Os rumos inesperados que redundaram na ocupação da
campanha oriental pelas tropas oribistas durante a Guerra Grande inverteram esta
perspectiva, e o santuário se converteu no comprometimento definitivo do patrimônio
representado pelos escravos.
O Tratado de San Fructuoso, assinado quando ainda parecia alvissareiro o futuro
de Rivera e dos farroupilhas no teatro de lutas do Prata, evidenciou a capacidade dos
caudilhos rio-grandenses em formarem alianças e acordos de ocasião, propiciando um
nível elevado de resistência contra as forças incomparavelmente maiores do Império.
Aqui, por primeira vez, manifestava-se a indignação da mais alta autoridade da
Confederação Argentina, o governador de Buenos Aires Juan Manuel de Rosas,
tratando de ganhar para seu lado a causa da Corte do Rio de Janeiro. Difícil se tornava a
manutenção da “neutralidade” diplomática nos conflitos platinos na medida em que os
assuntos de Don Fructo mesclavam-se tão intimamente com os dos rebeldes sulinos.
Assim sendo, a pacificação com os dissidentes teria necessariamente que passar
pelo cuidadoso exame da questão servil, onde se colocava um perigoso dilema: permitir
a liberdade daqueles que duas vezes tinham infringido a lei – abandono dos seus
senhores e luta armada contra o exército imperial – ou praticamente coagi-los ao
ingresso nas hostes de Rivera, o que valeria aumentar as tensões contra a Confederação
Argentina. Até um impensável tratado militar com Rosas foi aceito pela Corte como
única forma de resolver o impasse, em que pese o risco que significaria o controle da
Banda Oriental pelo principal aliado e comandante militar de Rosas, Manuel Oribe.
A não ratificação do tratado significou a necessidade de aceitação dos termos
dos rebeldes para o retorno da província desgarrada ao Império, e o desastre de
Porongos – tenha sido combinado ou não – propiciou uma condição mais aceitável para
a liberdade dos soldados negros, agora em número menos ameaçador.
Os “senhores da guerra” do Rio Grande não se aquietaram com a Paz de Ponche
Verde: estiveram fustigando os blancos de Oribe nas “califórnias” de Chico Pedro,
participaram da intervenção imperial contra Oribe e Rosas, e novamente voltaram ao
teatro da Banda Oriental em apoio ao colorado Venancio Flores contra Berro e Aguirre,
o que veio a ser uma das causas da Guerra da Tríplice Aliança.
24
As “intromissões” das autoridades uruguaias, que não mais reconheciam a
escravidão, nos assuntos dos rio-grandenses, que mantinham escravos em suas estâncias
no Estado Oriental, foram usadas como motivo para as ações bélicas dos homens da
fronteira. Não seria de estranhar que nessas peripécias estivessem presentes soldados
negros, como ocorreu na Revolução Farroupilha. Isso, no entanto, só poderá ser
desvelado por conta de novas pesquisas.
Bibliografia
8 FIGUEIREDO, Joana Bosak de. O Rio Grande de São Pedro entre o Império do
Brasil e o Prata: a Identidade Regional e o Estado Nacional (1851 - 1865).
Porto Alegre: UFRGS, 2000. Dissertação de Mestrado (mimeo).
25
10 ____________. O Rio Grande do Sul na Contracorrente da História. História e
Ficção. Vydia 24. Santa Maria: Ano 14, jul/dez 1995, p.131-154.
20 SILVA, José Luiz Werneck da. As Duas Faces da Moeda: a Política Externa do
Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Universidade Aberta, 1990.
26
23 VARELA, Alfredo. Revoluções Cisplatinas. A República Riograndense. Porto:
Livraria Chardron, 1915 (2 v.).
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