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REVISTA DE JORNALISMO CI ENTÍ FICO E CULTURAL DA UN IVERSI DADE DE BRASÍ LIA Nº 05 · NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2010 !

A CIÊNCIA
O TRÁFICO
ENFRENTA

Pesquisador da UnB cria método para conter


o contrabando de diamantes

DOSSIÊ: UM NOVO RETRATO DA ESCRAVIDÃO


ISSN 2176-638X
2
CARTA DOS EDITORES

Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência

D
JORNALISTAS E CIENTISTAS, O CASAMENTO NECESSÁRIO
ARCY chega ao quinto número com três boas novas. Ainda são poucos, entretanto, os cientistas que rompem a timidez
A primeira razão para comemorações é editorial. Nossa e divulgam suas descobertas. Alguns acham que seu trabalho não tem
redação atravessou o fechamento com uma deliciosa dúvi- interesse jornalístico, outros que a pesquisa ainda não está concluída
da: que matéria iria para a capa? Pela primeira vez, tínhamos e muitos temem que nós, jornalistas, transformemos anos de estudos
duas ótimas reportagens que mereceriam ocupar o espaço. São duas em manchetes sensacionalistas.
histórias nascidas em pesquisas da universidade, uma sobre diamantes Para vencer esses obstáculos, estamos lançando uma campanha
e outra sobre escravidão; uma realizada por um jovem cientista e outra que nos aproxime de nossas as fontes de informação. Estão todos con-
gerada pela experiência de um pesquisador sênior. vidados a sugerir “pautas” e temas para as futuras edições. Basta es-
A reportagem dos diamantes trata dos estudos realizados por um crever uma mensagem para revistadarcy@unb.br com um breve resu-
mestrando da Geologia. Marcos Paulo Borges criou um método inédi- mo sobre o trabalho. Nossa equipe entrará em contato e desde já nos
to para conter o comércio ilegal de pedras preciosas. Perito da Polícia comprometemos a equilibrar a voracidade natural do repórter com o
Federal, o geólogo identificou uma espécie de DNA do minério, recebeu rigor cobrado pelos cientistas.
nota máxima pela dissertação e conquistou a direção da PF para apli- Precisamos conversar mais, visitar os laboratórios com mais frequ-
car a técnica no combate o tráfico. ência, sermos lembrados todas as vezes que um Departamento discutir
A outra candidata à capa ocupa seis das 14 páginas do dossiê e um projeto. Com a melhoria da comunicação entre alunos, professores
revela as mais recentes descobertas de Flávio Versiani. Professor de e jornalistas das áreas científica e cultural quem ganha é um terceiro
Economia desde 1971, ele se debruçou sobre quatro mil documentos personagem: o leitor.
do século XIX e concluiu que a história da escravidão brasileira não é DARCY é feita para leitores de dentro e de fora da universidade. É
exatamente como aprendemos nos livros. para ele que fazemos a revista, orgulhosos da missão da testemunhar
Os diamantes conquistaram a capa. Menos por critérios noticiosos a rotina de trabalho de uma universidade conectada com o futuro desde
e mais pelo dedicado talento de Miguel Vilela, 22 anos, autor da impac- a sua inauguração há 50 anos e que agora refunda-se em cada sala de
tante solução gráfica que apresenta a revista. Miguel é nossa segunda aula, em cada bancada, em cada novo prédio, como o Beijódromo.
boa nova. Está no sexto semestre de Publicidade e bateu às portas da Inaugurado na tarde de seis de dezembro com o nome de Memorial
redação porque queria aprender a fazer uma revista. Em menos de cin- Darcy Ribeiro, o lugar que parece mistura de peteca com maloca nas-
co meses, o aprendiz já tem lição para contar. ceu do trabalho de velhos mestres da UnB: o arquiteto Lélé Filgueiras e
A terceira novidade combina com a primeira. Adoramos a sensação o antropólogo Darcy Ribeiro. Darcy queria um prédio para abrigar seus
de escolher entre ótimas concorrentes e concluímos que nosso cardá- documentos, imaginava um ambiente onde os estudantes lessem muito
pio pode aumentar. Para isso, precisamos melhorar a relação com os e namorassem um pouco. Entregou o edifício-utopia às mãos de Lelé. O
pesquisadores. Diariamente, professores, alunos e funcionários procu- resultado ficou quase tão bom quanto os beijos da juventude.
ram a Secretaria de Comunicação da UnB para divulgar eventos. São Boa Leitura!
mesas-redondas, palestras, seminários, conferências, debates, lança-
mentos de livros. Ana Beatriz Magno, Érica Montenegro e José Negreiros

Comentários para os editores: biamagno@unb.br, ericam@unb.br 3


DARCY 03 CARTA DOS EDITORES 12 GEOLOGIA
Ciência e Jornalismo, Um método científico para combater
REVISTA DE JORNALISMO
CI E NTÍ FICO E CULTURAL
DA UN IVER SI DADE DE BR ASÍ LIA uma aliança necessária o contrabando de diamantes

06 18
Universidade de Brasília

Reitor DIÁLOGOS FRONTEIRAS DA CIÊNCIA


José Geraldo e Isaac Roitman Luiz Gonzaga Motta defende
José Geraldo de Sousa Junior

Vice-Reitor
João Batista de Sousa
dissertam sobre o direito a transdisciplinaridade

08 20
Conselho Editorial
Presidente do Conselho Editorial
Isaac Roitman CARA DARCY FÍSICA
Professor do Departamento de Biologia Celular
Ex-Decano de Pesquisa e Pós-graduação
Leitores se encantam com matéria Jogamos luz sobre o mistério
sobre educação da energia escura
Coordenador do Conselho Editorial

10 24
Luiz Gonzaga Motta
Professor da Faculdade de Comunicação

Ana Beatriz Magno ARQUEOLOGIA DE UMA IDEIA O QUE EU CRIEI PARA VOCÊ
Editora-chefe da Revista Darcy Saiba como o microscópio Laboratório tira estudantes da
Antônio Teixeira
Professor da Faculdade de Medicina revolucionou o mundo realidade para ensinar
David Renault
Diretor da Faculdade de Comunicação
Denise Bomtempo Birche de Carvalho
Decana de Pesquisa e Pós-graduação
Elimar Pinheiro do Nascimento
Diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB
Estevão C. de Rezende Martins
Diretor do Instituto de Ciências Humanas
Gustavo Lins Ribeiro
Diretor do Instituto de Ciências Sociais
Leonardo Echeverria
Chefe da Reportagem da UnB Agência
Luís Afonso Bermúdez
Diretor do Centro de Apoio ao Desenvolvimento
Tecnológico da UnB
Marco A. Amato
Professor do Instituto de Física
Noraí Romeu Rocco
Professor do Departamento de Matemática

EXPEDIENTE

Editores
Ana Beatriz Magno, Érica Montenegro e José Negreiros

Reportagem
Ana Beatriz Magno, Cecília Lopes, Érica Montenegro,
Francisco Brasileiro, João Campos; Carolyne Cardoso
e João Paulo Vicente (estagiários)

Colaboradores
Isaac Roitman, José Geraldo de Sousa Junior,
José Otávio Nogueira Guimarães, Carolina Pettro,
Luiz Gonzaga Motta (texto), Daiane Souza e Luana
Lleras (foto), Carmen Santhiago e Francisco Bronze
(Ilustração)

Editor de Arte
Apoena Pinheiro

Design
Ana Rita Grilo, Apoena Pinheiro, Helena Lamenza,

53
Marcelo Jatobá, Miguel Vilela e Virgínia Soares

Fotografia
Alexandra Martins, Luiz Filipe Barcelos, Saulo Tomé

Relações Públicas
Iêda Campos
Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência
Revisão
Marina Mattioni Schardong

Revista Darcy
Telefones: 61 3307-2588
E-mail: revistadarcy@unb.br
www.revistadarcy.unb.br

ENSAIO FOTOGÁFICO
Campus Universitário Darcy Ribeiro
Secretaria de Comunicação
Prédio da Reitoria, 2º andar, sala B2-21

Registros da construção
70910-900 Brasília-DF Brasil

do Beijódromo
Impressão: Teixeira Gráfica e Editora
Tiragem: 20 mil exemplares

4
39
26 REPORTAGEM
Wanessa conta o pesadelo do
tráfico de pessoas

32 HISTÓRIAS DA HISTÓRIA
José Otávio Nogueira fala sobre

DOSSIÊ
lembrar e esquecer

34 CIDADANIA Pesquisadores estão


Funcionário da UnB leva livros
ao Cariri
reescrevendo a história
do século XIX
66 DE DISCÍPULO PARA MESTRE
Professor da Educação reverencia
as lições de Nilza Bertoni

60
Cedoc/UnB Detalhe da pintura Botica, de Jean-Baptiste Debret

40 A escravidão como ainda 46 Como era Brasília antes


não a conhecíamos de virar capital

UnB 50 ANOS
Faculdade de Direito: 44 Flávio Versiani propõe 50 O mundo no tempo de...
uma história interrompida novo olhar sobre o escravismo Jean-Baptiste Debret

5
DIÁLOGOS

O DIREITO E A CIDADANIA

O
José Geraldo de Sousa Júnior *

lançamento deste número da DARCY da Assessoria Técnica da Presidência da


coincide com a inauguração, aqui República, responsável pelos assuntos aca-
na Universidade de Brasília, do dêmicos e institucionais na Casa Civil.
Memorial Darcy Ribeiro. Bela peça Segundo o projeto, o que se procu-
arquitetônica projetada por João Filgueiras rou foi “criar uma estrutura moderna
Lima, o Lelé, para realizar o último legado de de ensino jurídico, tanto mais que a
Darcy para a sua amada UnB. Universidade que se pretende criar
O Memorial representa um espaço vivo para na capital terá um papel importante
que o conhecimento possa haurir de seu acu- na vinculação do sistema universi-
mulado universal o seu máximo alcance civili- tário ao processo de desenvolvi-
zatório, mas que venha a se afirmar, tal como mento que o país empreende”.
orientava o homenageado, o seu compromisso Victor Nunes, tal como nos re-
social como condição para afrontar os proble- corda em seu discurso ao receber
mas postos pela sociedade e para incluir os o título de Professor Emérito da
novos sujeitos que emergem das lutas demo- UnB, acentua este tempo pionei-
cráticas para aspirar justiça e liberdade. ro, época em que “a Universidade
O Memorial é um espaço projetado para olhar começou a funcionar em locais
o futuro. Mas com uma mirada que não descon- improvisados, para evitar que se
sidere o passado da própria Universidade. Em criassem fatos consumados contra a
seu número anterior, a Revista DARCY cuidou de sua implantação”.
acentuar perspectivas de observação do futuro O autor do clássico Coronelismo, enxada
acadêmico da UnB, desde os lugares e contex- e voto alude ao clima “de liberdade criativa e
tos históricos que demarcaram tais possibilida- de vigor juvenil”, e até de um certo romantis-
des de observação. mo que não pôde resistir aos assaltos do obs-
Na última edição, a matéria sobre o ICA, o curantismo quando eclodiu o golpe de estado.
Instituto Central de Artes, recuperou o experi- Voltando à Universidade para paranin-
mento do modelo original de organização do far a turma de bacharéis em Direito pela
conhecimento e de seu ensino no projeto da Universidade de Brasília, em sua oração pro-
UnB e a sua configuração, até a crise que en- nunciada no salão do Plenário da Câmara
sejou a diáspora dos mestres fundadores, após dos Deputados a 8/12/1967 — Curso de Teoria
o golpe de 1964. Ali, o ICA não era só a expres- Geral do Direito – última lição: sobre a justiça
são desse modelo, mas a tradução de um pro- — Machado Neto rememora os anos difíceis,
cesso criativo que deu à UnB a condição de para resgatar do projeto do curso de Direito
síntese do próprio processo de criação artísti- da UnB a tarefa positiva de indagar acerca da
ca que trouxe identidade cultural à cidade. verdadeira justiça, com a convicção de que
Neste número, é a vez do Direito. O Direito é ela “consistirá de uma criação de igualações
o curso inicial da UnB. Deu ao Instituto Central de liberdade, como pontos de partida suces-
de Ciências Humanas dois de seus mais des- sivamente renovados”.
tacados coordenadores: Antônio Luís Machado Não é por acaso, assim, que em Roberto
Neto e Roberto Lyra Filho. O curso teve tam- Lyra Filho, o mais formidável pensamento
bém Victor Nunes Leal, o professor que minis- que se instalou na Faculdade de Direito, ele
trou a aula inaugural da Universidade. que, segundo Victor Nunes Leal, pode ser tido
Seu projeto/programa foi concebido ain- como “culminância do ensino do direito”, ve-
da antes da instalação da Universidade. Dele nha a se configurar a expressão teórica que
se incumbiu o acadêmico Alberto Venâncio mais caracteriza o modo de estudar Direito
Filho, num trabalho de 1961 — Organização da a partir da UnB, percebido, assim, “como a
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília enunciação dos princípios de uma legítima
— quando ocupava a função de Coordenador organização social da liberdade”.

* Doutor em Ciências do Direito, professor e reitor da Universidade de Brasília

6
Ilustração: Carmen Santhiago

O DIREITO À EDUCAÇÃO

E
Isaac Roitman *

m 1948, as Nações Unidas aprovaram Recentemente ocorreram avanços impor-


a Declaração Universal dos Direitos tantes na educação. A obrigatoriedade de en-
Humanos. Diz o artigo 26: “Todo o sino dos 4 aos 17 anos, a desvinculação da re-
homem tem direito à instrução”. No ceita da união (DRU) e a criação do Fundo da
Brasil, a educação, como dever do Estado, não Educação Básica (Fundeb) são avanços estru-
foge ao controle do Direito. turantes fundamentais.
Segundo a Constituição Federal de 1988, Contudo, a principal prioridade é repre-
ela é direito de todos, dever do Estado e da sentada pela figura do professor. O ensino
família, com a tríplice função de garantir a de qualidade que almejamos depende que o
realização plena do ser humano, inseri-lo no mestre tenha uma formação sólida e contem-
contexto do estado democrático e qualificá-lo porânea, boas condições de trabalho e remu-
para o mundo do trabalho. neração digna.
A um só tempo, a educação represen- No dia em que o salário do professor da es-
ta tanto o mecanismo de desenvolvimento cola pública estiver na faixa das melhores re-
pessoal, como da própria sociedade em munerações do servidor público, as melhores
que se insere. A Lei n. 9.394 de 1966, inteligências serão atraídas para o magistério
conhecida como Lei de Diretrizes e e assim resolveremos o principal pré-requisito
Bases da Educação Nacional, em para a conquista da qualidade na educação.
seu artigo 2°, define os princí- Os conteúdos e os processos pedagógicos
pios e fins da educação brasi- deverão ser revistos levando-se em conta os
leira: “A educação, dever da fa- avanços científicos e tecnológicos e a forma-
mília e do Estado, inspirada nos ção solidária e ética do futuro cidadão.
princípios de liberdade e nos As melhorias da infraestrutura escolar de-
ideais de solidariedade humana, vem ser feitas de forma adequada e, as esco-
tem por finalidade o pleno de- las equipadas com os recursos de informação
senvolvimento do educando, seu e comunicação contemporâneos. A gestão es-
preparo para o exercício da ci- colar e a avaliação em todos os níveis deverão
dadania e sua qualificação ser aperfeiçoadas.
para o trabalho”. O desafio de conquistar uma educação de
No entanto, exis- qualidade era uma das bandeiras de Darcy
te uma grande di- Ribeiro: “É indispensável para o Brasil, como o
ferença entre o foi para todos os povos que deram certo, em-
que está escrito preender um grande esforço nacional no sen-
e a realidade no tido de alcançar algumas metas mínimas no
que diz respei- campo da educação”.
to à qualidade da Só assim o nosso sistema educacional de-
educação brasileira. sempenhará uma das suas principais metas,
Segundo o relatório de 2010, que segundo o filósofo francês Edgar Morin,
da Organização das Nações Unidas para a “é a de instruir o espírito a viver e a enfrentar
Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a qua- as dificuldades do mundo”.
lidade da educação no Brasil é baixa, princi- É também oportuno lembrar o pensamento
palmente, no ensino básico. de nosso grande educador Paulo Freire: “Não
O índice de repetência no ensino funda- é possível refazer este país, democratizá-lo,
mental brasileiro (18,7%) é o mais elevado humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes
da América Latina. O alto índice de abando- brincando de matar gente, ofendendo a vida,
no da escola nos primeiros anos da educação destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a
(13,8%) também revela a fragilidade do siste- educação sozinha não transformar a socieda-
ma educacional brasileiro. de, sem ela tampouco a sociedade muda”.

* Membro titular da Academia Brasileira de Ciências e presidente do Conselho Editorial da DARCY

7
CARA DARCY

Prezado leitor,
Como estão as coisas? Por aqui, temos novidades.
Inauguramos nosso perfil no twitter (@revistadarcy)
e a coluna Erramos, que vai corrigir nossas falhas e
imprecisões. As duas iniciativas procuram aumentar
nossa comunicação com você. Também com esse intuito,
em 24 de setembro, realizamos a 4ª Oficina DARCY para
professores das escolas públicas do DF. Nosso encontro
com os mestres aconteceu na sede da Escola de
Aperfeiçoamento dos Profissionais de Educação (EAPE)
Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência

e foi conduzido pelas professoras Patrícia Pederiva


e Maria Lídia Bueno, da Faculdade de Educação. A
elas e aos professores que compareceram, os nossos
agradecimentos. DARCY é distribuída gratuitamente para
os professores de ensino médio do DF. Encontrá-los é
sempre um prazer para nós.

Fale conosco Campus Universitário Darcy Ribeiro


Secretaria de Comunicação
Telefone: 61 3307-2588 Prédio da Reitoria, 2° andar, sala B2 – 21
E-mail: revistadarcy@unb.br 70910-900 Brasília-DF Brasil

CIÊNCIA E CIDADANIA ESCOLA DE QUALIDADE


Parabenizo a equipe da Revista DARCY pela A matéria O desencanto mora na sala de aula,
excelente publicação. A matéria de capa da publicada na última edição, faz com que
Edição número 4 (A chaga de um cientista), nós, mães e pais que optamos por matricular
nos faz lembrar que neste ano comemoramos nossos filhos na escola pública, nos sintamos
100 anos do nascimento de Carlos Chagas e cada vez mais “encantados” pelo desafio de
110 anos da Fundação Oswaldo Cruz. Desejo participar da construção de uma educação
muito sucesso à revista; que seja sempre um pública de qualidade no Brasil. Parabéns
veículo para democratizar o acesso à ciência DARCY pela matéria!
e fortalecer a cidadania brasileira. Mirian Falkenberg, funcionária pública, Brasília
Carlos Matos, diretor da Fiocruz, Brasília
SUPORTE PEDAGÓGICO
Foi com enorme satisfação que lemos a
PESQUISA NACIONAL última edição da revista DARCY. Chama-nos
Gostaria de parabenizá-los por mais um atenção o formato, o projeto gráfico e a
número da Revista DARCY. Excelente a seleção de temas ressaltando o importante
reportagem sobre a pesquisa envolvendo trabalho dos pesquisadores da UnB. Nessa
a Doença de Chagas realizada por um perspectiva, consideramos um excelente
pesquisador brasileiro. Conheci a revista suporte em sala de aula nas nossas práticas
DARCY por conta do site da UnB que sempre pedagógicas. Toda equipe da revista merece
visito. Longa vida às boas ideias. parabéns pela qualidade das reportagens.
Alexandre Medeiros, funcionário público, Brasília Maria Inês Vieira Mendes, coordenadora educacional do
colégio Cor Jesu, Brasília.

EBULIÇÃO CULTURAL
O dossiê da 4ª edição ficou realmente VIDA INTELIGENTE
emocionante.A DARCY é uma revista de Parabéns para todos nós que recebemos a
jornalismo científico e cultural que pode DARCY. Ainda há vida inteligente em terras
proporcionar questões importantíssimas para brasilienses. Longa vida e parabéns a toda
o meio acadêmico, que precisa e está sempre equipe.
em plena ebulição ideológica, política, Simone Metzker de Aguilar, professora universitária
educacional e humana. aposentada, Brasília

Zizi Antunes, atriz do grupo Teatro Concreto, Brasília

8
EU CONHEÇO A DARCY
Aluna de jornalismo, Ludmilla Alves, 23 anos, conheceu a DARCY em agosto, durante a roda
de choro de lançamento da 4ª edição, no Ceubinho. E foi justamente a reportagem sobre
o chorinho que conquistou a leitora. “Achei legal o fato do estilo musical ter virado objeto
de pesquisa.” Para ela, o universo do conhecimento deve ter diversas aplicações, como na
música e na literatura. Outra reportagem que chamou atenção da estudante foi o dossiê sobre

Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência


a criação do Instituto de Artes da UnB. “Fiquei sabendo mais sobre a história da UnB.” Ludmilla
conta que, apesar de estar no 8º semestre de Comunicação Social, tem pouca informação
sobre as pesquisas realizadas pelos outros departamentos e institutos e, por isso, julga
importante a missão de divulgação científica da revista. “A tentativa de vasculhar os temas
que estão sendo pesquisados e aproximá-los dos estudantes é fundamental”, avalia a leitora.

BRAVA LUTA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA


Aluno de Economia, entre 1964 e 1968, vi, vivi e sofri Parabéns pela fluência textual e qualidade gráfica do
as barbaridades intentadas contra o país e a UnB. projeto da Revista DARCY, cujo exemplar de agosto e
Crueldade na História, mas História. Destaco algumas setembro de 2010 me chegou às mãos. Certamente terá
matérias da 4º edição: O campus da criação, O mundo lugar entre as principais revistas de divulgação científica
antes dos mapas virtuais e A capital que chora. Revista do Brasil, suprindo uma ausência, quanto à divulgação
de jornalismo científico e cultural, DARCY apresenta o da produção acadêmica da UnB, muito sentida em
significado da ciência e da cultura de forma leve, sem ser meus tempos de aluno de graduação em Administração,
superficial; de forma ampla, sem ser abstrata! encerrados em 2009.
Marco Aurelio Vivas Albanazi, ex-aluno da UnB Augusto Miranda, empresário, Brasília

DEPOIMENTO DA PESQUISADORA PARABÉNS ESPECIAL


Parabéns pelo excelente texto (O desencanto mora na sala Sou funcionário antigo do MEC e vi no saguão o estande
de aula) que conferiu propriedade na condução do tema da UnB com a Revista DARCY. Gostei imensamente da
e também despertou o interesse dos leitores. Fiquei muito homenagem e do conteúdo da publicação.
contente por ver tão interessante artigo ter sido construído Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Assessor Especial do Ministro da
com base nos resultados evidenciados em minha pesquisa Educação, Brasília

de mestrado. Assim, a partir da Revista DARCY espero alcan-


çar um enorme número de leitores que se apropriem dos LEITOR ATENTO
resultados da pesquisa, reflitam e promovam mudanças. Sou coordenador intermediário da DRE – Recanto das
Mônica Pinheiro, autora da tese que deu origem à matéria O desencanto Emas e admirador da Revista DARCY. Na edição número
mora na sala de aula, Brasília 4, percebi dois erros na reportagem O parasita que
invade o DNA:
PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO 1) Na parte superior da revista, há a afirmação de que
A Revista DARCY permite que conheçamos um pouco mais o Trypanossoma cruzi é transmitido por meio de um
da história e da grande produção de conhecimento na mosquito. Na realidade, é transmitido por um percevejo
UnB. Sugiro matérias sobre estudos da UnB voltados para conhecido como barbeiro.
a Amazônia. Sucesso para toda a equipe. 2) Na página 28, no quarto parágrafo, há a afirmação de
Valdir Suzin, jornalista, Brasília que genes virais ficam dispersos no citoplasma. Contudo,
os vírus são organismos acelulares e, portanto, não
DARCY NO TWITTER apresentam núcleo e citoplasma.
Caros, gostaria de sugerir a criação de um perfil da Renato Sato, coordenador intermediário da Diretoria Regional de Ensino do
Revista DARCY no Twitter. Ademais, parabéns por essa Recanto das Emas, Brasília

maravilhosa ideia de criar a revista. Resposta: Renato, obrigada pela colaboração. Inaugu-
Edielton Paulo, assistente administrativo da Faculdade de Comunicação da ramos a seção “Erramos” para corrigir os nossos deslizes.
UnB, Brasília

Resposta: Atendendo à sua sugestão, criamos o perfil


@revistadarcy
ERRAMOS
MÉRITO E CRÍTICA Além do erro e da imprecisão apontados pelo professor Renato,
O mérito editorial da UnB ao publicar a DARCY é inegável. também identificamos incorretamente as fotos na reportagem
No entanto, o título da chamada de capa de sua última A academia vai ao sertão. As fotos das alunas Jéssica Rezende e
edição, A chaga de um cientista, para a matéria sobre o Bárbara Alencar estão trocadas.
pesquisador Antônio Teixeira e suas relevantes contribui- Diferentemente do que está publicado na reportagem A capital
ções para o estudo da doença de Chagas, faz uso de um que chora, o nome do pai do instrumentista Hamilton de Holanda é
jogo vocabular óbvio. José Américo.
Alfredo Schechtman, funcionário do Ministério da Saúde, Brasília

9
ARQUEOLOGIA DE UMA IDEIA

1 Os holandeses Hans Jansen e


Zacharias Jansen (pai e filho) inventa-
ram, em 1595, um aparelho que permitia
ver os objetos de maneira ampliada. O
sucesso do instrumento entre a realeza
europeia foi instantâneo. Mas, a princípio,
o microscópio era usado apenas como
brinquedo. O poder de ampliação, de cerca
de trinta vezes, não permitia que coisas novas
fossem observadas.

QUE REVOLUCIONOU
O BRINQUEDINHO

A CIÊNCIA
O microscópio permitiu que a curiosidade
humana desvendasse a vida celular. Criado
no século XVI, até hoje ele é um clássico em
laboratórios do mundo inteiro

Érica Montenegro
Repórter · Revista DARCY

2 O microscópio entrou para a história


da ciência em 1663, quando o filósofo
inglês Robert Hooke começou a
promover demonstrações com o
aparelho na então recém-criada
Royal Society. Nos encontros, Hooke
mostrava a constituição de objetos e
insetos – pulgas e piolhos, entre eles.
Em 1665, publicou o livro Micrografia
e nele cunhou, pela primeira vez, o
termo célula.

10
3 Antony van Leeuwenhoek leu o
Micrografia. Funcionário público,
o holandês tinha curiosidade de
cientista e voluntarismo de engenheiro.
Aproveitou as dicas para construir seu
próprio microscópio e, combinando
diferentes tipos de lente, chegou a
um modelo com poder de ampliação
de até 200 vezes. Por volta de 1670,
Leeuwenhoek investigou plantas,
bactérias e protozoários.

4 Os microscópios se populariza- 5 Em 1840, uma dupla de alemães


ram ainda mais no século XVIII. – Ernest Karl Abbe e Carl Zeiss –
Eram usados nas principais ins- iniciou uma prolífica colaboração
tituições de ensino e pesquisa e para melhorar os microscópios.
anunciados em publicações cien- Físico e professor da Universidade
tíficas de todo o mundo. Neste de Jena, Ernest Karl Abbe criou
período, os aparelhos também uma equação matemática que
sofisticaram-se, com melhorias descrevia os limites técnicos de
na qualidade das lentes, maior resolução dos micróscopios. Zeiss
estabilidade e precisão no foco. cuidava da fabricação das lentes.
Mas as dificuldades continuavam A companhia deles (Carl Zeiss AG)
sendo as aberrações cromáticas tornou-se uma das mais importan-
e as distorções resultantes. tes do ramo da microscopia.

6 O microscópio eletrônico foi


inventado no início dos anos
30 pelo alemão Ernest Ruska
(prêmio Nobel de Física em 1986).
Os microscópios eletrônicos
utilizam feixes de elétrons e
lentes eletromagnéticas no lugar
da luz e das lentes de vidro. Esses
materiais permitem ampliações
de até um milhão de vezes. Há
3 tipos básicos de microscópio
eletrônico: transmissão (para
observação de cortes ultrafinos),
varredura (para observação de
superfícies) e tunelamento (para SAIBA MAIS
visualização de átomos). www.infopedia.pt/$historia-da-microscopia
História da microscopia na Infopédia

www.wired.com/wiredscience/2007/04/amazing_microsc/
Página eletrônica da revista Wired com imagens microscópicas
Ilustrações: Apoena Pinheiro/UnB Agência
www.invivo.fiocruz.br/celula/historia_01.htm
Dossiê sobre os microscópios no site da Fiocruz

11
GEOLOGIA

Saulo Tomé/UnB Agência

12
DE NASCIMENTO
DIAMANTE COM CERTIDÃO

Estudo da UnB traça características das gemas

D
retiradas da terra índigena dos Cinta Larga. Método
pode conter tráfico internacional de pedras preciosas
João Paulo Vicente
Repórter · Revista DARCY

urante um ano e meio, Marcos Paulo Apesar das boas intenções, Kimberley apre- ca. Hoje, o território da etnia, dividido em qua-
Borges, perito da Polícia Federal, senta falhas. Os contrabandistas “esquentam tro áreas, ocupa 2,7 milhões de hectares, qua-
trabalhou quinze horas por dia as pedras”. Levam os diamantes para lugares se do tamanho do estado de Alagoas.
no Laboratório de Microssonda onde a extração é regularizada e, depois, os Rica em recursos naturais, a região sempre
Eletrônica, no subsolo do Instituto de vendem com certificados falsos, conseguidos despertou a cobiça dos chamados homens ci-
Geociências da Universidade de Brasília. Longe ilegalmente. Ou seja, volta-se ao ponto inicial, vilizados. Isso fez com que a história desses
de festas glamourosas, nas quais enfeitam cor- de enredo criminoso. índios fosse marcada, ao longo do século XX,
pos femininos, e sem o ar mítico que ganham No final de 2006, quando morava em por conflitos com seringueiros e madeireiros.
nas salas blindadas dos museus, 660 diaman- Rondônia, Marcos Paulo decidiu traçar as Em 2000, quando os primeiros diamantes fo-
tes brutos foram submetidos por Marcos a uma características dos diamantes retirados do ram encontrados, chegaram também os garim-
espécie de microscópio. O policial não estava Igarapé Lajes em busca de dados que permi- peiros e novos problemas.
ali a serviço da poderosa PF, e sim como aluno tissem identificar a procedência das gemas. O A exemplo do que acontece em todas as
do mestrado de Geologia da UnB. garimpo fica numa floresta enorme, território terras indígenas, a retirada de diamantes no
Investigava material precioso, retirado ile- dos Cinta Larga, no sul de Rondônia. “A extra- Igarapé Lajes é ilegal. Para entrar clandesti-
galmente do Igarapé Lajes, na Terra Indígena ção é feita ao longo do rio Roosevelt, um bura- namente na reserva, os garimpeiros depen-
Roosevelt, Rondônia. O objetivo era estabele- co comprido, com 10 km de extensão por 3 km dem da conivência dos Cinta Larga. “Só exis-
cer um sistema de certificação de pedras, que de largura”, conta Marcos. te extração de minério com a participação dos
inviabilizasse o contrabando. A maneira de O rio é chamado assim porque em 1914 índios, mas nem todos eles estão envolvidos
fazer isso, até aqui, é por meio do Protocolo por ali passou o ex-presidente americano nisso”, conta o delegado da Polícia Federal
Kimberley, um acordo instituído em 2003, nas Theodore Roosevelt em companhia do mare- Mauro Mamede, chefe da base da Operação
Nações Unidas, entre organizações não-gover- chal Cândido Rondon. Existem registros de Roosevelt, instalada pela PF no local para coi-
namentais e empresas diamantíferas. que os índios já habitavam o lugar nessa épo- bir o tráfico.

POR TRÁS DO BRILHO


g-BG?K?LRCŊSKKGLCP?JAMLQRGRSřBMCVAJSQGT?KCLRCBCA?P@MLM g.?P?AFCˆ?PĽQSNCPDřAGC
NCˆ?A?PML?CKIGK@CPJGRMQ

rochas magmáticas que explodem ao atingir o solo.
g,MPK?JKCLRCDMPK? QCCLRPCIKCIK?@?GVMBMQMJM +SGRM
resistente, só é arranhado por outros diamantes. g1S?CVRP?ņłMNMBCQCPDCGR?LMQNPŪNPGMQIGK@CPJGRMQ
(exploração primária) ou dos rios pelos quais são levados,
g#LAMLRP?BMCKPCˆGűCQAF?K?B?QAPĹRMLQ
 caso de Roosevelt (exploração secundária).
áreas geológicas com bilhões de anos de
idade. gNCL?Q?OSCJCQAMKNMSA?QGKNCPDCGņűCQTGP?KHMG?Q 
150~200 km maioria é usada como lâmina para corte em indústrias.
g1S?DMPK?ņłMBCNCLBCBC?JR?Q
condições de temperatura e pressão. Em g/S?RPMD?RMPCQBCDGLCKMT?JMPBCA?B?APGQR?JAMPRCcut),
geral, a temperatura fica entre 900ºC forma de lapidação; claridade (clarity), transparência no
e 1200ºC e a pressão chega até 50 mil interior de cada pedra; quilate (carat), peso – cada quilate
vezes a atmosférica. equivale a 0,2 gramas – e cor (color).
900ºC~1200ºC

13
Marcos Paulo Borges

“DNA DO DIAMANTE” de muito mais violenta e perigosa por causa


O método desenvolvido pelo perito e pes- dos forasteiros.”
quisador Marcos Paulo no laboratório da UnB é A metodologia exposta na dissertação de
um antídoto para esse tipo de pirataria. A par- Marcos Paulo preserva o território Cinta Larga
tir da análise de aspectos morfológicos, óticos, e assegura a paz. Também passou no teste
da superfície e do interior das pedras, o geólo- ao ser comparada com material colhido na re-
go chegou a 50 parâmetros para as gemas do gião diamantífera de Juína, Mato Grosso, uma
Igarapé Lajes (veja quadro abaixo). Os parâme- das áreas mais produtivas do Brasil, ao lado
tros são a frequência com que cada caracterís- de Coromandel e São Roque de Minas, em
tica ocorre nas amostras. Em outras palavras, Minas Gerais. Em estudo anterior, a professo-
um parâmetro mostra o quanto uma caracte- ra Débora Passos havia descrito as gemas de
rística é encontrada em um lote de pedras da Juína. A forma tetraxehaedróide, de 24 faces, é
área. “Para certificar a origem, basta checar se registrada em apenas 5% das pedras preciosas
a porcentagem da presença das característi- retiradas de Juína. No lote da Terra Indígena
cas em determinado grupo de pedras bate com Roosevelt, a mesma forma foi vista em 72% dos
os parâmetros”, explica Débora Passos, profes- diamantes, ocorrência quase 15 vezes maior.
sora do Instituto de Geociências da UnB.
Entusiasta da tese de Marcos Paulo, o dire- ESCALADA DOS CONFLITOS
tor técnico-científico da Polícia Federal, Paulo Em abril de 2004, a disputa pelos diaman-
Roberto Fagundes, saudou seu efeito no con- tes de Roosevelt assustou o mundo. Nessa
trole do tráfico: “Marcos estabeleceu o ‘DNA’ ocasião, ocorreu o massacre de 29 garimpei-
do diamante. Vamos mapear as característi- ros por índios Cinta Larga. O crime nunca foi
cas de cada província diamantífera do país”. bem esclarecido e a região ganhou a atenção
Com isso, acredita ele, será possível determi- da mídia. Reportagens afirmaram que a Terra
nar a origem verdadeira de cada lote de dia- Indígena Roosevelt tinha potencial para ser
mantes, as pedras terão uma espécie de cer- uma das maiores produtoras de diamantes do
tidão de nascimento. mundo. “Não se pode afirmar isso, não existe
Antes de Marcos Paulo chegar ao “DNA do nenhum estudo específico sobre as reservas
diamante”, a solução para impedir o contra- diamantíferas locais”, pondera a professora
bando defendida pelo mercado era regulamen- Débora Passos. “Mas os diamantes de lá são
tar a exploração nas reservas indígenas por de muito boa qualidade, sem dúvida”.
meio de emenda à Constituição Federal. Isso “Eu já tive nas mãos um diamante de
implica aprovação por parte do Congresso, Roosevelt que valia mais ou menos 100 mil
consenso entre os índios e acordo a respeito dólares. Tinha 24 quilates”, lembra Marcos
dos royalties que a empresa vencedora da lici- Paulo, o autor da pesquisa. O geólogo do
tação repassaria aos Cinta Larga. Departamento Nacional de Produção Mineral
A regulamentação não é vista com bons (DNPM), Sebastião Oliveira, vai além. Ele é
olhos pelos indigenistas. Segundo eles, tra- um dos responsáveis por analisar o valor de
ria danos ambientais e sociais para as terras pedras apreendidas pela Polícia Federal, que
dos índios e as pequenas cidades que as cir- depois são leiloadas pelo DNPM. “Em 2005, vi
cundam, como Espigão d’Oeste, com menos uma pedra de Roosevelt que tinha entre 25 e
de 30 mil habitantes. “O trânsito de pesso- 29 quilates. Foi leiloada por 700 mil dólares,
as atraídas pelo garimpo traz um passivo so- era um diamante muito bonito”.
cial muito grande”, justifica Marcelo Lucian, A última apreensão de pedras contrabande-
chefe de monitoramento territorial da Funai adas na região aconteceu em 20 de julho pas-
de Cacoal (RO). “Espigão, hoje, é uma cida- sado. Uma denúncia anônima levou os po

COMO FOI FEITO O geólogo Marcos Paulo Borges fez uma análise

O ESTUDO
das características (aspectos morfológicos,
óticos e da superfície exterior e do interior)
de 660 pedras originárias do Igarapé Lajes e
estabeleceu 50 parâmetros. O parâmetro registra
a frequência com que cada característica aparece
nas amostras colhidas em uma determinada
região. Para certificar a origem de um lote
de pedras, basta observar se a porcentagem
das características bate com o parâmetro.

No Setor Técnico e Científico da PF, em


Rondônia, usando uma lupa com capacidade
de aumento entre 10 e 50 vezes, o geólogo
descreveu detalhes como coloração, brilho,
forma e tamanho de cada um dos diamantes.
Detalhes morfológicos captados com lupa trinocular

14
Cobiça e destruição:
o garimpo ilegal no Igarapé
Lajes, Rondônia, sangra a
floresta amazônica

Infográfico: Apoena Pinheiro/UnB Agência

Para confirmar os traços observados,


Marcos examinou 40 pedras da
amostra em um aparelho que
multiplica ainda mais o tamanho
das imagens, permitindo aprofundar
a visão dos detalhes. Esse
equipamento se chama microscópio Por último, as 86 pedras estudadas na UnB
eletrônico de varredura e é utilizado passaram pelo Departamento de Física
pelo Laboratório de Balística da UFMG, onde uma espécie de raio X
Forense do Instituo Nacional de revelou a quantidade de nitrogênio existente
Criminalística da PF, em Brasília. em cada pedra. O dado é importante
para conhecer a história mineral.
Depois, o pesquisador trouxe
86 pedras para o Laboratório Essas etapas reforçaram os parâmetros
de Microssonda Eletrônica, que haviam sido descritos com a lupa.
localizado no subsolo do ICC, Ou seja, pode-se chegar a 90% de
na UnB. Ali, foram obtidas precisão na análise da procedência
imagens de catodoluminescência feita em campo com o uso da lupa.
das pedras (fotografias das
emissões de radiação que os Os mesmos detalhes captados com microscópio eletrônico de varredura
diamantes apresentam quando
bombardeados por elétrons). 15
Marcos Paulo Borges Agência Estado

Em busca de fortuna: Disputa sangrenta:


homens assoreiam o leito do corpos de garimpeiros
rio para encontrar o minério mortos por índios em 2004

liciais até uma pousada próxima ao muni- to até o local onde guardava as pedras, che-
cípio de Cacoal, localizado nas vizinhanças guei até a ir com escolta para a UnB”, lembra.
da reserva. Lá, foram encontrados 161 quilates O primeiro estudo foi feito usando lupas
de diamantes em posse de dois homens. Eles com capacidade de aumento de até 50 vezes,
também carregavam treze mil reais em dinhei- ainda em Rondônia. Após essa fase inicial, ele
ro e declararam que traziam a mercadoria da utilizou o laboratório de microssonda eletrôni-
Guiana Francesa. ca na UnB e equipamentos do Departamento
A repetição desse noticiário de natureza de Física da UFMG e do Instituto Nacional de
policial foi um dos motivos que deu origem a Criminalística (INC) da PF, em Brasília.
Kimberley. Antes do protocolo, as grandes in-
dústrias lapidadoras tinham altos lucros com US$ 20 MILHÕES DE CONTRABANDO
a venda de gemas retiradas de áreas de confli- No ano passado, a produção oficial de dia-
to, principalmente na África. O dinheiro prove- mantes brutos do Brasil, que adota o certifica-
niente bancava guerras civis em países como do de Kimberley, chegou a pouco mais de US$
Serra Leoa e Angola. A população local (in- 830 mil. Consequência da crise econômica
clusive crianças) era obrigada a trabalhar nas mundial, o número é reduzido em relação aos

A MINA MAIS
minas, sob pena de amputações e morte para anos de 2007 e 2008, equivalentes, respecti-

PRODUTIVA DO
quem se recusasse a cooperar. vamente, a US$ 17 milhões e US$ 12 milhões.
Diante da pressão social contra a esca- Os valores são ínfimos se comparados a

MUNDO É ARGYLE,
lada de violência que cercava os garimpos e uma estimativa feita pela Polícia Federal jun-

NA REGIÃO DE
do fracasso do sistema Kimberley, o trabalho to com a Agência Brasileira de Inteligência: so-
“Mineralogia dos Diamantes da Terra Indígena mente de Roosevelt saíram todos os meses,

KIMBERLEY,
de Roosevelt-RO”, de Marcos Paulo, revelou-se durante 2001 e 2002, até US$ 20 milhões.

AUSTRÁLIA. EM 2009
uma excelente arma para dificultar a vida dos Na prática, o estudo de Marcos pode conter
ladrões de diamante. esta sangria. O garimpo nas terras dos Cinta

SUA PRODUÇÃO
A amostra usada na tese foi um conjunto de Larga está fechado desde junho. Depois de

TOTAL FOI DE
660 pedras apreendidas no Igarapé Lajes em acordos e convênios feitos com o governo fe-
2006. Por baixo, essas pedrinhas valem R$ 300 deral, os caciques decidiram pela saída dos

10,5 MILHÕES DE
mil. Por trabalhar na PF, Marcos não teve pro- garimpeiros da região. “Eles estavam can-

QUILATES
blemas para consegui-las, mas se resguardou sados do descaso dos garimpeiros”, conta
quanto à segurança da pequena fortuna que Marcelo Lucian, da Funai.
levava no bolso. “Eu era escoltado do aeropor- Os indigenistas temem que essa paz seja

16
FolhaPress

Luta pela sobrevivência:


o garimpo traz ameaças
para as aldeias e tradições

OS DONOS DA TERRA

apenas temporária. “A ausência de continui- Os Cinta Larga habitam a região fronteiriça


dade de políticas para os índios da região entre Rondônia e Mato Grosso. Nessa

Arquivo pessoal
abre espaço para que os grupos de garimpei- nomenclatura, foram agrupadas diversas
ros voltem”, ressalta a indigenista Maria Inês. tribos indígenas que tinham por tradição o
“De certo modo, a violência causada pelos dia- uso de um grande cinturão feito da casca do
mantes em Rondônia é até mais crítica do que tauari, árvore nativa da região. EU FAÇO CIÊNCIA
na África, pois não existem mais do que dois Quem é o pesquisador: o geólogo
mil Cinta Larga”, completa. Eles dividem-se em três grandes grupos. São Marcos Paulo Borges formou-se na UnB
em 2004. É perito criminal na Polícia
Baseado no método que desenvolveu, os Mãms (castanha), Kakin (variedade de Federal e trabalhou em Rondônia entre
Marcos trabalha agora para implementar um cipó) e Kabãn (fruto). A indigenista Maria Inês 2004 e 2009, quando concluiu seu
programa de controle de origem dos diaman- Hargreaves estima que existam, atualmente, mestrado na UnB. Atualmente, mora em
Campinas.
tes na Polícia Federal. “O estudo do Marcos número próximo a 2.500 Cinta Larga.
é pioneiro. Define parâmetros que poderemos Título da dissertação: Mineralogia
aplicar em outras regiões”, afirma uma das O território Cinta Larga compreende quatro dos diamantes da terra indígena de
Roosevelt-RO
parceiras do geólogo no projeto, Sara Rahal, terras indígenas: Roosevelt, Parque Aripuanã,
chefe do serviço de balística da PF. Apesar de Aripuanã e Serra Morena. Dentro dessa área, Onde foi defendida: Instituto de
ter utilizado a tecnologia dos laboratórios da cerca de 2,7 milhões de hectares, estão Geociências

UnB, ICN e UFMG, Marcos diz que com o uso localizadas 34 aldeias. Orientador: Márcia Abrahão Moura
de lupas é possível chegar a resultado bastan-
te significativo ainda em campo. SAIBA MAIS
Na reunião mundial do Processo Kimberley http://pib.socioambiental.org/
de 2008, ocorrida na Índia, enviados da Polícia files/file/PIB_verbetes/cinta_larga/
diamantes_e_os_conflitos.pdf
Federal apresentaram os resultados prévios da Cronologia de conflitos com Cinta Larga
pesquisa da UnB em um dos grupos de estu-
do. Países como Bélgica, Canadá e Angola in- O Rio da Dúvida – A sombria viagem
de Theodore Roosevelt e Rondon
teressaram-se pela aplicação de técnicas se- pela Amazônia
melhantes no controle das suas reservas. Com de Candice Millard. Companhia das
o tempo, é possível que o método desenvolvi- Letras, 2007

do no Minhocão da UnB ajude a garantir que Diamante de Sangue


os diamantes, com sua beleza quase perfeita, Filme dirigido por Edward Zwick, 2006
deixem no passado qualquer relação com uma
Comentários para o repórter:
origem sangrenta. pjompa@unb.br

17
FRONTEIRAS DA CIÊNCIA

CONTRADIÇÕES SOCIAIS E A
NECESSÁRIA TRANSDISCIPLINARIDADE

H
Luiz Gonzaga Motta *

á décadas a transdisciplinaridade É inegável a necessidade de um conheci-


entrou na agenda pública como res- mento científico mais voltado para a totalidade
posta à crise da hiperespecialização. de sistemas vivos complexos. É inegável a ur-
A proliferação excessiva de discipli- gência de se reverter os processos de hiperes-
nas autônomas gerou uma fragmentação de pecialização. Sistemas interdependentes como
conhecimentos cada vez mais especializados, o corpo humano, o meio ambiente e o universo,
desarticulados e cegos a respeito da comple- entre outros, demandam dos meios acadêmi-
xidade de sistemas interdependentes, como o cos abordagens menos mecanicistas.
corpo humano, o universo ou o ecossistema. A Essa reversão não significa desqualificar
aposta na transdisciplinaridade veio como res- o conhecimento produzido por disciplinas es-
posta à excessiva especialização, em nome de pecializadas. O conhecimento unidisciplinar é
um conhecimento mais integral e sensível. responsável pelo estrondoso progresso cientí-
A transdisciplinaridade transformou-se, en- fico e tecnológico das últimas décadas e pro-
tretanto, numa panaceia. Em seu nome ocorre porcionou à humanidade enormes benefícios
hoje um vale-tudo no campo da ciência. Das físicos e sociais. Não há antagonismo entre o
propostas mais ingênuas às mais esotéricas, conhecimento disciplinar e o transdisciplinar.
todas a incluem. Além disso, ela se tornou A transdisciplinaridade passa necessariamen-
numa ideia eternamente adiada em nome de te pelo conhecimento unidisciplinar, depende
um porvir que não se realiza nunca, de um fu- e alimenta-se dele. O que não se pode fazer é
turo permanentemente protelado. Outras ve- tomar a disciplina autônoma como um fim em
zes a ideia da transdisciplinaridade remete pe- si mesmo, mas sim como razão entre a unida-
rigosamente a uma ênfase na realização do de e a universalidade do conhecimento.
indivíduo isolado, desconectado da realidade Agora, é necessário traduzir propostas
histórica e da coletividade. transdisciplinares genéricas em parâmetros

*Luiz Gonzaga Motta é jornalista, professor titular da Faculdade de


Comunicação UnB e membro do Conselho Editorial da revista Darcy.

18
orientadores das mudanças epistemológicas. cial. A produção de conhecimento em nosso
Abandonar o sentimento de impotência imo- país precisa necessariamente passar por essa
bilizador que a consciência da crise trouxe no complexidade histórica: a contradição entre o
pós “fim das utopias”, tomando como referên- nosso pujante crescimento econômico e o nos-
cia o processo histórico de globalização plane- so vergonhoso desenvolvimento humano. Para
tária em curso e toda a complexidade e contra- que serve afinal nosso conhecimento científico
dição que ele acarreta para a humanidade. e tecnológico, e quem ele irá beneficiar?
Para nós, brasileiros, é urgente modificar A meu ver, o eixo transversal orientador do
nossa contraditória inserção nesse processo ensino e pesquisa transdisciplinar em nosso
de globalização. Somos hoje a oitava econo- país deve ser o paradigma dos direitos huma-
mia do mundo caminhando para nos tornarmos nos e seu corolário, o desenvolvimento social.
em breve a quinta potência econômica mun- As declarações universais servem como refe-
dial. Contraditoriamente, entretanto, ocupa- rências temporárias justamente porque sua
mos o 73ª lugar no Índice de Desenvolvimento universalidade perpassa governos e ideologias.
Humano (IDH), e caímos para a 88ª posição Mas nenhum documento a respeito do desen-
se considerarmos apenas os indicadores de volvimento social e sustentável é parâmetro de-
concentração de renda. Apesar do crescimen- finitivo para um conhecimento transdisciplinar.
to econômico e do progresso científico e tec- A radicalidade do prefixo trans está justamen-
nológico das últimas décadas, continuamos te no seu poder de transformar novos conheci-
carregando a vergonha da perversa exclusão mentos em novos objetos e interrogações. Ele
econômica e social. garante, entretanto, a permanente consciência
A contradição entre o país que somos e a sobre o sentido de nossa ciência, que nunca
Ilustração: Francisco Bronze/Grande Circular

nação que pretendemos ser no cenário mun- pode ser negligenciado em nome do desenvol-
dial fornece a nossa complexidade referen- vimento das necessárias especializações.

19
*+,/3#

Imagens: Nasa

UNIVERSO
ILUMINANDO O

Até aqui os conceitos formulados pelos cientistas dão conta de


explicar apenas 4% do Universo. Entenda por que a matéria e a
energia escura são os grandes mistérios da física

Carolina Pettro
Especial para a Revista DARCY

I
magine que você está no seu quarto. A cebeu que a mudança para o vermelho esta-
cama, o armário e a escrivaninha estão va cada vez mais rápida. A gente sabia que
lá, onde sempre estiveram. De repente, o Universo expandia-se, mas não da forma
a luz acaba e, quando volta a acender, como as supernovas nos mostravam”, con-
tudo está diferente. A cama não se parece ta o professor Marcos Maia, do Instituto de
com a sua, tampouco os outros móveis. Você Física da Universidade de Brasília (UnB).
procura a saída e descobre que até mesmo Isso contrariou tudo que a ciência acredita-
a porta mudou de lugar. A única coisa que va ser seguro. A teoria do Big Bang, proposta
você reconhece é a maçaneta. Parece assus- em 1927, afirma que uma explosão inicial de
tador? Pois algo como isso aconteceu com partículas bem condensadas teria dado ori-
os físicos em 1998. Naquele ano, os cientis- gem ao espaço. Aquele ponto inicial estaria
tas perceberam que não têm a menor ideia em expansão há 14 bilhões de anos (que é a
do que há em 73% do Universo. idade aproximada do Universo), a uma veloci-
Em 1998, dois grupos de pesquisadores dade bem acelerada no começo e menor com o
dos Estados Unidos observavam estrelas re- passar do tempo. Como, então, aquelas super-
cém-nascidas há trilhões de anos-luz, quando novas poderiam apresentar aquele comporta-
perceberam que esses corpos celestes esta- mento, afastando-se de forma tão rápida?
vam afastando-se de uma forma muito mais “Algum tipo de pressão negativa está es-
rápida do que o esperado. Ou seja, havia ali ticando a geometria do espaço mais rapida-
algo que ninguém vê e que estava provocan- mente do que a velocidade da luz, carregando
do a aceleração, como se fosse uma gravida- as galáxias consigo. Aumentando ainda mais
de ao contrário. Na falta de mais informações o mistério, a aceleração parece ter começado
sobre o assunto, batizaram essa força com o em torno de 5 bilhões de anos atrás, quando
misterioso nome de energia escura. o Sol e a Terra estavam para nascer”, escre-
Eles conseguiram perceber o fenômeno ve o físico Marcelo Gleiser no livro Criação
por meio da observação da cor das estrelas. Imperfeita, em um capítulo convenientemen-
Explosão estelar: fotografia As chamadas supernovas têm uma variação te intitulado O Domínio da Escuridão.
feita pelo telescópio Hubble de brilho entre o azul e o vermelho – quan- Com a descoberta, milhares de pesqui-
em 1994. A supernova
1994D brilha abaixo da to mais se aproximam da Terra, mais azuis sadores passaram a estudar isso. “Nós te-
galáxia NGC4526 elas ficam e, quanto mais se afastam, maior mos cerca de dez artigos científicos por mês
é o desvio para o vermelho. “O pessoal per- que falam da energia escura. Mas nenhuma

20
Estamos aqui: ilustração feita pela equipe da NASA
mostra a Via Láctea, galáxia em que vivemos

das propostas elaboradas até agora funciona o projeta para fora, mas, como os cavalinhos
GLOSSÁRIO
bem, todas são especulativas”, diz o professor estão grudados ao centro, ninguém se ma-
Paulo Caldas, do Instituto de Física da UnB. Os chuca. A diferença é que não se sabe o que Universo: na Física, é o conjunto
pesquisadores da área apostam que essa ex- “gruda” as estrelas ao centro. “Tem alguma
que compreende espaço, tempo,
plicação será a maior revelação da ciência no coisa invisível que puxa as estrelas e galáxias
século XXI, isso se os porquês vierem mesmo e essa coisa não é explicada nem nas teorias energia e matéria.
enquanto alguém ainda estiver vivo. de Newton, nem nas de Einstein”, ressalta o
No Brasil, os estudos são realizados por professor da UnB Marcos Maia. Galáxia: grupo de bilhões de
cientistas de universidades, muitos deles vin- A expectativa é que a composição da ma-
estrelas, planetas e corpos
culados ao Instituto Nacional de Ciência e téria escura seja desvendada em breve, gra-
Tecnologia/Astronomia (INCT-A). O órgão foi ças ao funcionamento do LHC, o mais potente celestes que orbitam em torno de
criado pelo governo federal em janeiro de 2009 acelerador de partículas do mundo, instalado um mesmo centro de massa.
e tem colaboradores em todo o país, inclusive na fronteira da França com a Suíça. Grosso
na UnB. “Muitos pesquisadores estudam ou modo, o LHC recria as condições do surgimen-
Supernova: resultado da
planejam estudar a energia escura, tanto do to do Universo. Isso ajudaria os cientistas a en-
ponto de vista teórico como do ponto de vista tender a tal matéria invisível, provavelmente, explosão de uma estrela com
de observações”, aponta a professora Beatriz ela é formada por partículas minúsculas exis- massa muitas vezes maior que
Barbuy, vice-coordenadora do Instituto e pro- tentes no universo primordial – aquele da épo- a do Sol. A quantidade de luz
fessora da Universidade de São Paulo. ca do Big Bang.
irradiada durante a explosão
E esse não é o único problema que a astro- Juntando matéria escura com energia es-
nomia tem para resolver nos próximos anos. cura, os físicos têm muito trabalho a fazer. A é tão grande quanto a de uma
Outro mistério – não tão assustador assim primeira corresponde a 73% da energia total galáxia.
– é a matéria escura. Descoberta em 1933, do Universo e a segunda, conforme elabora-
é ela que faz com que estrelas de galáxias dos cálculos, equivale a 23%. Os 4% que estão
Teoria da relatividade: criada
como a nossa não saiam por aí, rodopiando faltando são as pouquíssimas coisas que o ho-
espaço afora. Isso porque a velocidade des- mem entende: átomos, luz, eletromagnetismo por Einstein, defende que não
ses corpos celestes é de aproximadamente e por aí vai. “Sendo assim, chegamos à reve- existe um referencial absoluto
240 quilômetros por segundo, e a gravidade, lação mais chocante da cosmologia moderna: em todo o Universo. Em outras
por si só, não daria conta de mantê-los no lu- 96% da composição material do cosmo é des-
palavras, qualquer movimento
gar. É mais ou menos o que acontece quando AMLFCAGB?/S?LRMK?GQ?NPCLBCKMQ
K?GQ
alguém está andando em um carrossel: en- temos para aprender”, reconhece Marcelo no contínuo espaço-tempo é
quanto o brinquedo roda, há uma força que Gleiser, no livro Criação Imperfeita. relativo.

21
INVESTIGAÇÃO ESPACIAL
Dezenas de estudos tentaram explicar o
que é a energia escura, mas nenhum deles
conseguiu resolver o problema sem abrir
precedentes para uma série de outras
dúvidas. Atualmente, três linhas principais
abordam o tema:

Enigma escuro: ilustração de um buraco negro dentro de uma pequena galáxia. O


campo gravitacional nessas regiões é tamanho que nem a luz consegue escapar

ENERGIA

O PODER DO VÁCUO
/S?LBM #GLQRCGL CQR?T? DMPKSJ?LBM
sua teoria da relatividade, teve uma ideia
que parecia absurda e que se encaixava
na sua noção de universo imóvel: o vácuo
teria energia, uma energia constante, que
equilibraria a expansão do Universo. Pouco
depois, o próprio Einstein abandonou essa
hipótese, que voltou com toda a força após
a descoberta das supernovas. TERRA
A chamada “constante cosmológica” se-
ria essa energia do vácuo, algo que em bai-
xa quantidade não provoca nenhum efeito
avassalador, mas considerando o tamanho
do universo, seria capaz de explicar a acele- E SE TUDO ESTIVER ERRADO? UMA QUESTÃO DE PONTO DE VISTA
ração dos últimos bilhões de anos. O proble- Para muitos pesquisadores, o problema Ainda mais perturbadora é a hipótese
ma é que ao fazer o cálculo com o suposto é a geometria utilizada por Einstein. O gran- de estarmos vendo tudo de um jeito equi-
valor da “constante cosmológica”, o resulta- de físico utilizou princípios da geometria vocado. A ciência parte da ideia de que o
do é extremamente alto, algo como 1 segui- de Bernhard Riemann para elaborar suas Universo é homogêneo, com a matéria dis-
do de 100 zeros. E isso já seria demais. ideias. Só que esses princípios não funcio- tribuída uniformemente. Alguns físicos, no
Os físicos acreditam que: ou a fórmula nam em um universo que é curvo. Riemann entanto, defendem que há lugares com
está errada ou essa constante era igual a considerou apenas a gravitação atrativa, mais matéria e outros com menos. Por um
zero no começo e, mais tarde, passou a ter ou seja, corpos maiores atraem os meno- acaso, a Terra estaria em uma região com
um valor bem pequeno. Outra possibilidade res. Mas, o comportamento das superno- pouco conteúdo. Assim, ao olhar para lo-
dessa linha é que a “constante cosmológi- vas mostrou-se bem diferente. Os cientis- cais onde há mais densidade de matéria,
ca” é, na verdade, dinâmica. Ela teria co- tas acreditam que a chave para entender a haveria também mais gravitação envolvida,
meçado com um valor alto que se reduziu energia escura está na revisão dos concei- o que daria a impressão de que os corpos
ao longo do tempo. tos da geometria. celestes estão acelerando.

22
Creative Commons Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência

PROCURA-SE UM NOVO EINSTEIN


Eureka: O professor Marcos Maia quer
solucionar mistérios que Einstein não previu

Saber o tamanho do nada estimula cientis- Maia e seus alunos de graduação e pós es-
tas a trabalhar com milhares de hipóteses. Mas tudam as brechas dessa geometria, conside-
há três possibilidades mais cotadas para expli- rando a “nova” topografia do espaço. “Estão
car o que é a energia escura, o grande mistério faltando pedaços na teoria de Einstein. Ele
da astronomia dos dias de hoje (veja quadro pensou essas coisas em 1916 e, desde então,
na página à esquerda). Na Universidade de a gente descobriu muita coisa”, justifica Maia.
Brasília, uma das linhas de pesquisa defende “A maioria das pessoas acha que a gente não
a revisão da Teoria da Relatividade de Albert pode questionar Einstein”, lamenta.
Einstein. O grande físico pode ter tido ideias Para o professor, o mistério que envolve a
geniais, mas as elaborou com recursos do iní- energia e a matéria escura são como a pes-
cio do século passado. te negra dos dias de hoje. Durante a Idade
Uma das principais “falhas” de Einstein, Média, milhares de pessoas morreram da pan-
apontadas por cientistas, diz respeito à ge- demia até que alguém teve a brilhante ideia
ometria utilizada por ele nos cálculos. O físi- de isolar os doentes. Brilhante porque não era
co suíço melhorou a teoria gravitacional de algo tão óbvio assim, apesar de ser incrivel-
Newton e conseguiu explicar fenômenos até mente simples.
então misteriosos, como os buracos negros e Essa é, inclusive, uma das filosofias dos
o desvio da luz no espaço. Para isso, Einstein cientistas que estudam o espaço: quanto mais
lançou mão de uma geometria formulada lá complicada uma explicação é, menor a chan-
pelos idos de 1850 pelo matemático alemão ce de estar correta. Esse princípio – chamado
Bernhard Riemann. de “espada de Occam”, em homenagem ao seu
O problema é que essa geometria considera criador – é muito utilizado em todas as áreas.
apenas a gravitação atrativa — corpos maiores As teorias de Charles Darwin sobre a evolução
atraem os menores — , bem diferente do que das espécies e as de Newton sobre a gravita-
mostraram aquelas supernovas observadas em ção seguem essa lógica, por exemplo. Ideias
1998. “A energia escura é como se fosse uma simples que explicam muita coisa. SAIBA MAIS
gravidade repulsiva, uma coisa que não estava Mas, enquanto não ocorre a grande revela- A Dança do Universo
no nosso horizonte de conhecimento quando ção, o essencial é respeitar cada descoberta, Marcelo Gleiser
Editora Companhia das Letras, 2000
Einstein formulou suas teorias”, explica o pro- mesmo as que forem desmentidas com o tem-
fessor Marcos Maia. “O grande físico usou os NM x/S?LBM?N?PCAC?QMJSņłMAMPPCR?
ŊAM- Criação Imperfeita
conceitos de forma correta, mas a geometria mum haver um certo maniqueísmo. Todo mun- Marcelo Gleiser
Editora Record, 2010
de Riemann não leva em conta o formato do do que pensou coisas diferentes vira idiota e
Universo como o vemos hoje”, completa. quem participou do estudo final vira gênio”, http://www.astro.iag.usp.br/~incta/
É nessa lacuna que o docente do Instituto de afirma o professor da UnB Paulo Caldas. “Em Site do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia/Astrofísica
Física concentra seus estudos. Basicamente, ciência, as coisas não devem ser assim.”

23
BRINCADEIRA
O QUE EU CRI EI PARA VOCÊ

QUANDO APRENDER É UMA

Baseado no conceito de economia da experiência,


laboratório do CDT da UnB usa jogos que simulam

T
situações reais no treinamento de profissionais
João Paulo Vicente
Repórter · Revista DARCY

rancados em uma sala escura com COMO Depois de se desligar do ambien-


climatização artificial, estudantes de te exterior por meio da exibição de vídeos, os
administração vivenciam uma prática jogadores podem enfrentar-se em grupos ou
de aprendizado intensivo. Vão seguir jogar sozinhos. O enredo é construído por es-
um roteiro elaborado por especialistas para pecialistas para simular situações de diversas
submetê-los a situações comuns na profis- áreas, conforme o necessário. Em um jogo so-
são. Eles decidem a forma de conduzir os ne- bre empreendedorismo, por exemplo, os parti-
gócios, têm que tomar decisões frente a situ- cipantes devem tomar decisões como no que
ações inesperadas e também precisam lidar investir e de que forma escoar sua produção.
com o trabalho em equipe. OS OBJETIVOS Treinar profissionais por
A brincadeira acontece no Laboratório meio de experiência intensiva em laborató-
de Inovações Tecnológicas para Ambien- PGM /SCKN?PRGAGN?BMQHMˆMQLM'2#?A?@?
tes Experience (ITAE), do Centro de Desen- por aprender inconscientemente sobre os as-
volvimento Tecnológico (CDT) da UnB, e está suntos abordados em cada jogo. Outra vanta-
fundamentada no conceito da economia da gem é a redução do tempo de aprendizagem.
experiência. “É uma imersão em um ambien- Uma sessão de duas horas do jogo SuperAção
te preparado tecnologicamente para gerar co- Empreendedora equivale a 40 horas-aula de
nhecimento”, explica Robson Moura, do CDT. um curso sobre o tema.
No Brasil, o conceito da economia da experi- A SALA O Laboratório tem duas mesas nas
ência já é aplicado ao turismo. Um viajante com quais grupos diferentes interagem com o jogo.
interesse em vinhos pode ir ao Rio Grande do Elas são equipadas com grandes telas que res-
Sul e, além de provar a produção local, ajudar pondem ao toque. As informações são envia-
L?AMJFCGR?B?QST?Q /SCKNPCDCPC?QNP?G?Q das ao software que controla o ambiente. E, de
encontra no Nordeste roteiros em que o turista acordo com as respostas dos participantes, o
vai ao mar com pescadores da região. programa emite estímulos sonoros e promove
O ITAE induz os jogadores a experimentar variações na iluminação e na temperatura. O ar-condicionado
situações novas usando elementos estéticos, INCLUSÃO Além de contribuir para a imer- pode ser desligado
pelos controladores
de entretenimento e de evasão da realidade. são na experiência, os equipamentos usados para esquentar o jogo
A imersão nesse ambiente altamente equipa- no laboratório ajudam na inclusão digital ao em caso de desânimo.
do leva os usuários a adquirir conhecimentos permitir o contato dos participantes com no- O contrário também é
possível: esfriar a sala
sem perceber. Atualmente, o local está confi- vas interfaces de relação entre o homem e a para conter os mais
gurado para ser usado com o jogo SuperAção máquina. Em visitas ao local também é pos- exaltados
Empreendedora, desenvolvido em parceria sível conhecer o que é desenvolvido ao redor
com o SEBRAE. Mas pode ser adaptado para do mundo na área de tecnologia de interação
receber projetos diferentes. com computadores.
O QUE É O ITAE faz parte do Centro de PARA QUEM As turmas que fazem uso do
Desenvolvimento Tecnológico (CDT) da laboratório são criadas a partir de convênios
Universidade de Brasília. No laboratório são com o governo, empresas e instituições públi-
desenvolvidos projetos que permitem aplicar cas. O ITAE costuma fazer parcerias para o pa- Cada grupo joga em uma
a economia da experiência na educação. Para trocínio e auxílio no desenvolvimento dos jo- das mesas de dois metros
quadrados. A superfície
tanto, o ITAE criou uma sala que conta com gos. O espaço também pode ser utilizado para das mesas é um visor com
diversos recursos de interatividade, áudio, ví- cursos e aulas de disciplinas de qualquer área touchscreen onde ocorre a
deo, iluminação e temperatura. da própria UnB. interação com o jogo

24
SALA DE VIVÊNCIAS A iluminação varia de acordo
com os acertos e erros dos
jogadores. Muitos acertos
O laboratório está arrumado para receber disputas do SuperAção Empreendedora. Dois grupos enfren- são recompensados com um
tam-se no jogo, cada um deles controla uma personagem feminina chamada Maria, que decide começar ambiente mais claro; luzes
uma empresa. O objetivo é gerenciar e transformar em sucesso um negócio próprio. vermelhas são acesas para
chamar atenção

Ao entrar na sala, os
participantes assistem
a um vídeo para se
desconectarem do
mundo exterior Os cinco monitores de
LCD podem ser usados
para dar informações
extras aos jogadores ou
até mesmo para exibir
imagens captadas
pelas câmeras de
segurança da sala

Luana Lleras/UnB Agência

NÓS FAZEMOS CIÊNCIA


Quem são os pesquisadores: da esquerda
para a direita: Daniel Cavalcanti, 23, formado
em sistema de informações; Luís Afonso
Bermúdez, 57, diretor do CDT; e Maxwell de
Alencar, 37, cientista da computação.

A inovação: um ambiente preparado para


Na sala de controle, receber jogos que ensinam conhecimentos de
supervisores cuidam forma intensiva.
para que o processo não
Os estudantes dividem- apresente erros
se em dois grupos para Onde foi desenvolvido: no Centro de
competir Desenvolvimento Tecnológico (CDT) da UnB

Infográfico: Miguel Vilela/UnB Agência 25


REPORTAGEM

Luana Lleras/UnB Agência

26
WANESSA
UMA CHANCE PARA

Tráfico se vale da pobreza para explorar 75 mil


mulheres. Pesquisadores da UnB ajudam o Governo
a resgatá-las da violência e humilhação

W
Cecília Lopes
Repórter · Revista DARCY

anessa Victoria Feitosa, 20 anos, mandada para um abrigo em Boa Vista (RR).
sonha com uma noite de sono Mesmo sob a custódia do Estado, Wanessa
serena. Não quer mais ser des- começou a prostituir-se. “Eu pulava o muro.
pertada por suas lembranças. Saia com clientes. Escolhia homens educados,
Precisa abandonar o passado. “Os cientistas carinhosos e ricos”. Wanessa cobrava entre R$
deveriam inventar um remédio para apagar 200 e R$ 300 por programa e gastava o dinhei-
pedaços da nossa memória.” Fecha os olhos, PMCKPMSN?Q x/SCPG?RCPMOSC?QKCLGL?QB?
faz força para não chorar, mas as lágrimas es- minha idade tinham.”
correm compulsivamente.
O drama de Wanessa se repete na vida de Sem ninguém por ela, a moça
outras 75 mil mulheres todos os dias. De acor- virou presa fácil dos aliciadores.
do com estimativas do Escritório sobre Drogas
e Crimes das Nações Unidas (UNODC), esse é No Brasil, uma das principais rotas do tráfi-
o número atual de vítimas aliciadas pelo tráfico co de pessoas com fins de exploração sexual
de pessoas para a exploração sexual. A rede passa por Roraima. Em setembro, a reporta-
criminosa movimenta US$ 31,6 bilhões por ano gem da Revista DARCY acompanhou pesqui-
e, apesar de vitimar rapazes, atinge especial- sadores do Departamento de Serviço Social
mente mulheres jovens de países pobres. da UnB que viajaram até Boa Vista, capital do
Wanessa tem o perfil que os aliciadores estado, para explicar aos agentes de saúde
procuram. Sempre viveu em situações de vul- como reconhecer e acolher as vítimas do trá-
nerabilidade. A mãe dela era viciada em dro- fico. A iniciativa faz parte do Plano Nacional
gas e não conseguiu proteger a filha das in- de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
vestidas sexuais do pai e do padrasto. “Os dois parceria da Universidade de Brasília com o
me estupraram”, lembra. Aos 15 anos, ela foi Ministério da Saúde.

27
A invisibilidade das mulheres exploradas dora da Associação Brasileira de Defesa da
é uma das principais dificuldades no comba- Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad).
te às quadrilhas especializadas. Expostas às A Asbrad existe há 13 anos e atende mu-
piores humilhações e reféns do medo, as víti- lheres vítimas do tráfico internacional que
mas não procuram a polícia para denunciar os retornam ao Brasil. “Elas chegam completa-

Roraima
aliciadores. “Os criminosos beneficiam-se do mente destroçadas. São pessoas que não ti-
silêncio delas. Por isso o papel dos profissio- nham perspectivas, arriscaram tudo por uma

População - 422 mil hab.


nais da saúde é tão importante. Eles precisam vida diferente e voltaram ainda mais desilu-
saber identificá-las, acolhê-las”, explica Mário didas,” completa.

Área - 224.298 km2


Ângelo Silva, professor do Departamento de A República da Venezuela, a 215 quilôme-
Serviço Social e coordenador do projeto que tros de distância de Boa Vista, foi o destino

IDH - 0,746 (18º no Brasil) envolve a UnB e o Ministério da Saúde.


As promessas mais frequentes dos alicia-
de Wanessa. Aos 16 anos ela tinha corpo de
mulher e sonhos de menina. Um brasileiro

Boa Vista
dores são empregos de garçonete, babá, co- bem vestido, grisalho, de cerca de 40 anos,
zinheira, arrumadeira, doméstica e dançarina. não teve dificuldades para convencê-la ela a
População - 267 mil hab. O bom salário é o principal atrativo. A fantasia embarcar num táxi, acompanhada de duas

Área - 5.687 km2


de receber em dólares ou euros alimenta os amigas, com destino ao país vizinho. “Nossos
sonhos das vítimas. olhos brilhavam. Era uma sensação muito boa.
As propostas de casamento também são Ficamos iludidas, achando que íamos ganhar
usadas como estratégia para atraí-las. Muitas dinheiro, passear e nos divertir”, lembra.
jovens aceitam pedidos de estrangeiros via Durante a viagem, as meninas saíram do
internet e, ao encontrar os futuros maridos, táxi e entraram num carro. A cada quilôme-
vão viver uma vida que não tem nada de con- tro, elas não sabiam, mas já adquiriam uma
to de fadas. O cotidiano de exploração inclui dívida, que iriam pagar mais tarde com a ven-
situações como cárcere privado, violência da de seus corpos. O transporte era uma pe-
psicológica, física e sexual. quena parte do débito, que se ampliou com a
“Essas meninas precisam saber que alimentação, o uso de drogas e o aluguel do
a prostituição não é crime, mas cubículo onde ficaram presas.
a exploração sim”, explica A entrada de Wanessa no bordel venezue-
Dalila Figueiredo, funda- lano foi um choque. Gestos obscenos, pesso-

CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL

VIOLÊNCIA EXPLORAÇÃO ABUSO

Prática não consentida Meio pelo qual se Contato sexual de adulto


do ato sexual, imposto obtém ganho comercial ou adolescente com criança
pela força ou mediante ou financeiro com a com a qual tem relação
grave ameaça de qualquer prostituição de outra próxima e de autoridade.
natureza, ou imposta a pessoa, em troca favores ou A violência psicológica e
pessoas incapazes de incentivo à pornografia ou a coação estão sempre
consentir. turismo sexual. presentes.

DENUNCIE: HTTP://DENUNCIA.PF.GOV.BR
OU
DISQUE 100

28
as fazendo sexo, portas entreabertas, meninas das amigas. Wanessa veio em seguida. “É exa- Cada mulher aliciada
chorando. “Fiquei chocada. Só depois de che- tamente tudo o que qualquer pessoa pensa de
pelo tráfico rende
até US$ 30 mil por
gar entendi que ele tinha enganado a gente.” ruim. Algo que ninguém nunca quer fazer na
vida. Eu fui usada e não podia fazer nada. Eu
“Eu olhava para as minhas voltei pro quarto e queria morrer, me senti nojen-
ano para o crime
amigas e não sabia o que dizer.”
organizado. Wanessa
ta, queria que o mundo acabasse”, lembra. A ter-
ceira da noite foi Karen, à época com 15 anos.
Cada mulher aliciada pelo tráfico rende até Na boate, poucas meninas podiam andar
recebia R$ 6 por
noite independente
US$ 30 mil por ano para o crime organizado. pelo salão. As que tinham menos de 18 anos fi-
Wanessa recebia R$ 6 por noite independente cavam presas nos quartos esperando ser cha-
de quantos homens atendia. Mesmo menstru- madas. Cerca de 30 meninas eram exploradas
de quantos
homens atendia
adas, as meninas eram forçadas a trabalhar. no local – a maioria, brasileiras. Os tipos fí-
Os exploradores colocam esponjas para sicos revelavam que os aliciadores buscavam
conter o sangramento das mulheres ou apli- garotas em todas as regiões do Brasil.
cam injeções de hormônio sem nenhuma Wanessa conta que queria pedir socorro
orientação médica para que elas não mens- aos clientes, mas os brasileiros que frequen-
truem. “As meninas praticam sexo sem preser- tavam a boate agiam pior que os venezuela-
vativo, fazem abortos mecânicos, não recebem nos. “Eles nos tratavam como lixo.”
atendimento e, quando conseguem fugir, estão As melhores noites para Wanessa aconte-
completamente debilitadas”, denuncia Socorro ciam quando ela estava drogada. Lá as meni-
Santos, assistente social da Secretaria do nas viciam-se para não pensar, para o tempo
Trabalho e Bem Estar Social de Roraima que passar mais rápido. “Tinha garota que deixava
trabalha na área há uma década. de comer para comprar droga”, conta. Apenas
Na Venezuela, Wanessa virou Melissa. “Ele durante o almoço as meninas podiam sair do
(o aliciador) disse que eu era meiga e tinha quarto, o resto do dia elas ficavam presas sob
cara de bonequinha”, conta. As três meni- a guarda de um carcereiro.
nas de Boa Vista eram as novatas da casa.

“Meu corpo não valia mais nada.


Dançaram no palco e quem pagou levou, numa
espécie de promoção, o produto novo.
A primeira mercadoria arrematada foi uma Já tinham estragado comigo.”

Oficina em Boa Vista:


estudantes da UnB e agente
de saúde de Roraima simulam
atendimento a vítima
Luana Lleras/UnB Agência

29
ROTEIRO DA EXPLORAÇÃO
Principais rotas da conexão internacional do
PAÍSES COM MAIOR NÚMERO DE ROTAS DE
tráfico de mulheres a partir do Brasil
CHEGADA DE BRASILEIRAS SEQUESTRADAS

ESTADOS DE ONDE SAEM VÍTIMAS


PARA O MAIOR NÚMERO DE PAÍSES

Pesquisa Nacional sobre Tráfico de


Mulheres, Crianças e Adolescentes
para fins de Exploração Sexual
(Pestraf/2002)
Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência

AÇÕES INTEGRADAS traçar estratégias conjuntas de combate ao


A exploração sexual está associada à desi- tráfico e acolhimento às vítimas. Sob a orien-
gualdade social. As disparidades de distribui- tação de quatro pesquisadores da UnB, os
ção de renda, acesso à saúde e à educação participantes listavam os problemas físicos
criam situações de vulnerabilidade que faci- e psíquicos adquiridos pela vítima. Depois,
EU FAÇO CIÊNCIA litam a ação dos exploradores. O último rela- os grupos se encontravam no auditório da
Quem é o pesquisador: Mário Ângelo da Silva tório do Programa das Nações Unidas para o Universidade Federal de Roraima (UFRR) para
é graduado em Psicologia pela PUC-MG, fez Desenvolvimento (PNUD), divulgado em julho, compartilhar experiências.
mestrado em Serviço Social na UFPB e doutorado
em Psicologia Social na PUC-SP. Fez pós-doutorado mostra o Brasil em oitava posição no ranking No último dia, a equipe da UnB sugeriu que
na Université Paris VII e na UFMG. Atualmente é de país mais desigual da América Latina. os participantes fizessem encenações de aten-
coordenador do Pólo de Prevenção de DST/Aids da O assédio dos traficantes funciona justa- dimentos a mulheres traficadas. Desta vez, o
UnB e da pesquisa Saúde, Migração e Tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual. mente com meninas sem estudo, família e em- objetivo era aproximar as discussões da reali-
prego – jovens sem perspectivas de futuro. dade encontrada pelos agentes de saúde.
SAIBA MAIS “Enfrentar o problema exige um esforço conjun- Os três dias de oficina mostraram que o
Associação Brasileira de Defesa da Mulher da to da sociedade”, avisa Mário Ângelo, da UnB. despreparo dos agentes públicos para o as-
Infância e da Juventude (Asbrad): Para ele, o assunto precisa ser mais discutido. sunto ainda é regra. Vários policiais militares,
www.asbrad.com.br
“Precisamos desmistificar, falar sobre explora- civis e federais e agentes de saúde que par-
Rotas de Ilusão, documentário dirigido pela ção sexual nas escolas, em igrejas, nos serviços ticiparam da oficina escutaram falar sobre o
jornalista Clara Angeiras e produzido por Mídia BCQ?żBCCL?D?KřJG? /S?LRMK?GQGLDMPK?B?Q
 assunto pela primeira vez na vida.
Brasil Produções.
mais protegidas estarão essas meninas.” “Para mim, a violência sexual acontecia a
Veja o que aconteceu com Wanessa depois de Durante as oficinas em Boa Vista, os 50 em casa. Uma mulher violentada pelo marido
escapar do cativeiro em www.revistadarcy.unb.br participantes – médicos, enfermeiros, assis- ou namorado. Nunca imaginei que estivesse
Comentários para a repórter: cecilialopes@unb.br tentes sociais e policiais – foram divididos em inserida em uma realidade maior”, reconhe-
grupos interdisciplinares para discutir como ceu Ana Carolina Brito, médica do Hospital

30
Materno Infantil Nossa Senhora de Nazaré. em início de carreira. Muitas vezes, eles ain-
“Espero a partir de agora ser capaz de inden- da não desenvolveram a experiência e a sen-
tificá-la”, completa. sibilidade necessárias para lidar com o tema”.
A atribuição de combater as quadrilhas Delano acrescenta que, no estado, o governo
especializadas é da Polícia Federal. De 1990 está concentrando esforços para resguardar a
até meados de 2010, a Polícia Federal instau- reserva indígena Raposa Serra do Sol.
rou 820 inquéritos policiais contra o tráfico Tereza Delamare, coordenadora da Área
de pessoas em todo Brasil. Goiás, com 149, Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem
e São Paulo, com 106, lideram o ranking. Em do Ministério da Saúde, reconhece que o go-
Roraima, apenas 27 investigações foram con- verno está longe de encarar o problema de
cluídas. Ou seja, no período, a PF instaurou forma satisfatória. “O Ministério da Saúde
menos de três inquéritos no estado por ano. entende que saúde não é apenas ausência
Segundo o delegado Delano Cerqueira de doença. É um conjunto de fatores sociais.
Bunn, chefe da divisão de Direitos Humanos da Reconhecemos que a nossa política de assis-
PF, o baixo número de inquéritos contra o trá- tência social junto com outras políticas de di-
fico de pessoas deve-se ao perfil dos policiais reitos humanos ainda não dá conta de dar res-
federais mandados ao local. “São policiais postas para a sociedade”.

Luana Lleras/UnB Agência

31
HISTÓRIAS DA HISTÓRIA

No caso de uma certa desmedida


de história, a vida desmorona e
degenera, e, por fim, com essa
degeneração, degenera também

LEMBRAR E ESQUECER

N
a própria história.
Friedrich Nietzsche
José Otávio Nogueira Guimarães *

os anos 1980, ficaram conhecidos, de seu tempo: “estamos sofrendo de uma ar- perdão, sem o qual, segundo ele, a Europa
no Ocidente, dois estudos de casos dente febre histórica; deveríamos ao menos teria dificuldades em retomar sua capacida-
que logo se tornaram clássicos da li- reconhecer que sofremos disso. É completa- de de agir. Esse “perdão difícil” seria a forma
teratura psiquiátrica: O homem com mente impossível viver sem esquecer”. Em se- existencial de se chegar simultaneamente a
um mundo estilhaçado e A mente de um mne- guida, arriscou um conselho: “o sentido não uma memória apaziguada e a um esqueci-
monista, ambos escritos pelo psicólogo russo histórico e o histórico são igualmente necessá- mento feliz.
Alexander Luria. rios à saúde de um indivíduo, uma nação, uma Uma política da justa memória não seria
O homem com o mundo estilhaçado fora civilização”. No século seguinte, o tema seria tema candente na atual conjuntura brasileira?
ferido na cabeça na batalha de Smolensk, du- retomado, no conto Funes, o memorioso, por Nossa ferida histórica mais sensível, no que
rante a II Guerra. Com parte do cérebro des- Jorge Luís Borges. Nesse conto, o protagonista diz respeito ao nosso passado recente, está
truída, perdeu a memória e a capacidade de é irmão gêmeo do mnemonista de Luria: nada relacionada aos crimes cometidos durante a
se lembrar. Conseguiu, mediante grande es- esquece e morre doente de tanto lembrar. Ditadura Militar. Em 1979, a promulgação da
forço, escrever algumas frases por dia, todos O homem são – e por que não a socieda- lei de anistia manteve juridicamente, e talvez
os dias, ao longo de 25 anos. De modo lento, de sã – poderia situar-se entre o combatente politicamente, a ferida protegida. Ao contrá-
acabou por construir uma pequena memória, de Smolensk e o mnemonista. As coisas, con- rio das experiências argentina e chilena, te-
migalhas de um passado relativamente orde- tudo, não são tão simples. Se temos neces- ria, aqui, a dosagem de amnésia prevalecido
nado. Ele nunca chegou, todavia, a ter uma sidade de lembrança e esquecimento, como sobre a de memória? Há seis anos, desacor-
existência normal. Luria testemunhou momen- estabelecer dosagem equilibrada de uma e do em torno da publicação de uma nota, pelo
tos de desespero de seu paciente: “Não me outro? A questão ganhou ressonâncias jurí- Centro de Comunicação Social do Exército,
lembro de nada, de absolutamente nada. Meu dico-políticas recentemente. Uma Europa ca- sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog
passado foi apagado!” rente de identidade, reconstruindo-se como e interpretação histórica dos governos milita-
Já o mnemonista tinha uma memória pro- comunidade e envolvida, desde os anos 1980, res, derrubou o então Ministro da Defesa. Em
digiosa, que impressionava os psicólogos que em uma onda memorial, viu-se diante da ne- 2008, ação impetrada pelo Conselho Federal
se debruçavam sobre seu caso e o público que cessidade de acertar contas com seu passado da OAB no STF – que solicitou declarar que a
acompanhava as demonstrações de seu talen- recente, sobretudo com os eventos traumati- lei de anistia não inclui crimes comuns, como
to. Um caso é o reflexo invertido do outro: um zantes da II Grande Guerra. Nesse contexto, a tortura e o homicídio, praticados por agen-
paciente, não lembra; outro, não esquece. O no qual o Holocausto constituiu a principal tes políticos na repressão aos opositores ao
combatente de Smolensk causa menos espan- ferida histórica, ganhou corpo uma série de regime militar – colocou novamente o dedo
to que o homem de vasta memória, dado que julgamentos de crimes contra a humanidade. na ferida, aumentando a dosagem de memó-
a amnésia é mais facilmente considerada uma Considerados imprescritíveis – extraídos, por ria. Este ano, o procurador-geral da República
patologia. No entanto, Luria contradiz o senso decreto, da ação corrosiva do tempo históri- encaminhou ao STF parecer contrário à revi-
comum: “a maioria procura melhorar sua me- co –, tais crimes alimentaram o debate sobre são da lei da anistia, posição que seria vito-
mória; ninguém se coloca a questão de saber um dever social de memória. Em 2000, em A riosa na corte máxima, que rejeitou o pedi-
esquecer. O mais complicado problema para o memória, a história, o esquecimento, o filósofo do da OAB. Encontra-se ainda pendente, na
mnemonista era aprender a esquecer”. Paul Ricœur justificava seu livro argumentan- Corte Interamericana de Direitos Humanos,
Não é simples a transposição do funciona- do tratar-se de tema cívico: era urgente re- processo contra o Brasil por não ter revisado
mento da memória individual para o da me- fletir sobre uma “política da justa memória”. a lei de anistia.
mória coletiva, mesmo que se mantenha o vo- Ele se dizia “chocado” com o “inquietante es- Lembrar e esquecer: qual, afinal, as boas
cabulário de inspiração patológica. Friedrich petáculo oferecido pelo excesso de memória doses para o equilíbrio? Caberia entre nós,
Nietzsche, em 1874, expressou incômodo com aqui e o excesso de esquecimento acolá”. No como fez Ricœur, ensaiar uma resposta nos
o excesso de memória produzido pela Europa capítulo final, Ricœur abordou o problema do termos de uma reflexão sobre o perdão?

* José Otávio Nogueira Guimarães é professor e chefe do Departamento de História da Universidade de Brasília

32
Fotomontagem: Apoena Pinheiro/UnB Agência

33
LIVRO
CIDADANIA

O SERTÃO
VAI VIRAR
Esta história começa com um servidor da UnB tendo uma
boa ideia e um caminhão partindo de Brasília rumo ao Ceará.
Como ela vai terminar, nem o Padim Ciço saberia dizer

O
João Campos
Repórter · Revista DARCY

calor castiga a pequena sala da soa como um desafio. Além de ser o maior pe-
Biblioteca Municipal de Juazeiro do dido de doação que o produtor recebera, o le-
Norte. É agosto, começo das altas vante deveria ser feito em tempo recorde. Dois
temperaturas no sertão do Cariri meses depois, um caminhão com 12 toneladas
cearense. Um homem grisalho, de óculos de de literatura deixa a capital federal e percorre
grau, senta e liga o rádio para passar o tem- 2.010 quilômetros até a terra de Padre Cícero
po enquanto digere o bode ao molho, almo- Romão Batista, “o padim Ciço”, símbolo da fé
çado em alguma esquina da cidade. Franco na segunda maior cidade do Ceará.
Barbosa, 47, coordenador de Literatura da A jornada dos livros de Brasília a Juazeiro
pacata Secretaria de Cultura local, cola a ore- do Norte é digna de um enredo de romance. E
lha na caixa de som para decifrar a entrevista o encontro radiofônico de Franco, cearense, o
embaçada pelo chiado do aparelho. décimo de quinze filhos, solteiro e professor,
Ouve a voz rouca de um senhor que se com Elmano, casado, pai de dois filhos (um de
identifica como servidor da Universidade de 32 e uma de 1 ano e meio) e fã de Jackson do
P?QřJG? $P?LAM?SKCLR?MTMJSKC /SCKD?J? Pandeiro é só o primeiro capítulo.
do outro lado é Elmano Rodrigues, 61, produ- Antes de pegar a estrada até o Ceará, a
tor gráfico da Editora UnB há 32 anos. O as- dupla se uniu em Brasília com a missão de
sunto do programa é um projeto que há mais encher a carroceria do caminhão. Chegaram
de uma década o entrevistado assume como a sair pelas ruas do Núcleo Bandeirante, ci-
missão: a abertura de bibliotecas comunitá- dade do Distrito Federal, revirando latas de
rias Brasil afora. lixo em busca de caixas de papelão para aco-
Elmano deixa um contato telefônico antes modar os 25 mil títulos recolhidos pela cida-
de sair do ar. Franco anota o número e liga de. Um detalhe: apesar do espírito juvenil, os
imediatamente. “Preciso de 20 mil livros para dois têm problema de coluna pelo avançado
um projeto na periferia de Juazeiro”. A ligação da idade.

Fotos: Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência


Fotomontagens: Miguel Vilela/UnB Agência

Fotos: Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência


Fotomontagens: Miguel Vilela/UnB Agência

34
Alegria do conhecimento: moradora
do bairro João Cabral, um dos locais
beneficiados pela iniciativa

35
“Pense em dois ‘cabra’ que sofreram car- dade. Oito funcionários e 15 estudantes de
regando peso pra lá e pra cá”, conta Franco. Biblioteconomia da Universidade Federal do
“Chegamos a rodar 300 quilômetros por dia Ceará (UFC) assumiram a missão de organizar,
batendo de porta em porta”, lembra Elmano. título por título, tema por tema, biblioteca por
A correria valeu. A carreta com a carga mais biblioteca, a montanha literária. Pelas horas
intelectual do país deixou Brasília na tarde de trabalhadas, receberão créditos acadêmicos.
3 de setembro, uma sexta-feira. Levava cole- Por dois anos, Franco tentou implantar as
ções de enciclopédias, livros infantis, revistas tais bibliotecas na periferia. Mas, além da fal-
de fofoca, cursos de idiomas, apostilas para ta de verba e funcionários, o professor esbar-
concurseiros e clássicos da literatura. rou na morosidade da Secretaria de Cultura do
O motorista rodou bem até constatar um Ceará. “Perdi a conta de quantos ofícios en-
problema no amortecedor. Acabou obrigado a caminhei pedindo livros.” O projeto de Franco,
passar a noite de sábado e o domingo em uma com 20 pontos de leitura, seria um presente
oficina no município de Poções (BA). Resolvido para o centenário do município, celebrado em
o problema, rodou na segunda e terça-feira. 22 de julho de 2011. A “carrada” enviada por
/S?LBM?TG?ˆCKN?PCAG?PCQMJTGB?
CKNJCLM Elmano mudou esta história. Graças a ela, a
7 de setembro, dia da Independência do Brasil, equipe de reportagem da DARCY acompanhou
um novo imprevisto mecânico segura o carre- a abertura das primeiras bibliotecas comunitá-
gamento no município de Cabrobró, sertão rias na parte esquecida de Juazeiro do Norte.
pernambucano. Desta vez não teve conserto,
a solução foi a troca de veículo. Transferidas LIVROS CONTRA O CRIME
as caixas, os livros finalmente seguiram para João Cabral, 29 mil habitantes, é um dos
Juazeiro na manhã seguinte. bairros mais violentos e carentes do município.
A carga foi recebida com entusiasmo na Aos 8 anos, Jasmine de Sousa sabe bem dis-
Biblioteca Municipal Possidônio Silva Bem, so. “Não é bom morar aqui. Tem muito roubo e
fundada em 1975 e única com acervo públi- muita morte”. Drogas como cocaína, maconha
co à disposição dos 300 mil habitantes da ci- e crack movimentam o comércio ilegal, princi-

PADEIRO DE ESPÍRITOS
/S?LBM@PGLA?T?L?QPS?QBCRCPP?B?AGB?-
de de Farias Brito, no interior do Ceará, Elmano
Rodrigues não imaginava que os pais seriam a
inspiração para a abertura de bibliotecas co-
munitárias pelo país.
O pai, Enoch Rodrigues, político e poeta,
dedicou a vida a levar a cultura aos excluídos.
Acabou assassinado em 1958. Elmano tinha 8
anos. Mesmo viúva, a mãe, Maria Carmosina,
não abriu mão da educação dos sete filhos.
Com a ajuda da comunidade fez da própria
A?Q?SKK?ˆGQRŊPGM x/S?LBM?BGDGASJB?BCQSP- bibliotecas, em homenagem ao movimento
ge, é neles que eu penso”. cultural fundado em Fortaleza, no fim do sécu-
Os 32 anos de trabalho na gráfica da UnB lo XIX. “É pouco perto das desigualdades que
só aumentaram seu amor pelos livros. Elmano afastam as crianças dos livros”, avalia.
não ganha dinheiro algum abrindo bibliotecas. Hoje, aos 61 anos, Elmano chega a rece-
A maioria dos fretes de livros enviados para lu- ber 50 mil livros por ano de parceiros não só
gares como a Amazônia e o interior da Bahia de Brasília, como a Biblioteca da Câmara dos
foram pagos com dinheiro do próprio bolso. Deputados, a Fundação Assis Chateaubriand
“Já vendi carro e até um apartamento no Rio e a Editora UnB, mas de todo o país e até de
de Janeiro para dar conta das despesas”. Ele Portugal. Para ele, não há nada que pague o
calcula que já tenha aberto cerca de cem pa- sorriso e o olhar das crianças ao pegar um li-
darias espirituais – como prefere chamar as vro. “Enquanto tiver saúde vou continuar”.

36
palmente nos locais conhecidos como Favela
da Alta Tensão e a Vila José Apolinário, po-
pularmente chamada de o “Beco da Bosta”.
Nesses locais, nem a polícia entra. “Eles (os
traficantes) são mais poderosos (que a polí-
cia)”, conta Francisco Aurílio Jorge, 36, presi-
dente da Associação dos Moradores.
A história de João Cabral já começa torta.
No início da década de 1990, o bairro era um
ponto de fuga de bandidos, conhecido como
Grota. “Tinha um buraco por onde os malan-
dros passavam. A polícia ficava pra trás”, lem-
bra o servente Silvano Pinheiro, morador há 20
?LMQ /SCKAMK?LB?T??ĹPC?L?ŊNMA?CP?
um tal de Lolô Preto que, segundo relatos, era
tão ruim, mas tão ruim que quando foi baleado
por outro bandido ainda correu um quarteirão
atrás do algoz antes de se estatelar no chão. O
terror, dizem, também era espalhado por uma
inusitada família de anões criminosos, que
também acabou morta na guerra do tráfico.
E foi ali, onde o Estado não chega, a polícia
não entra e o passado condena, que se inau-
gurou a primeira biblioteca comunitária de
Juazeiro do Norte. A sala de 25 metros qua-
drados fica no Centro de Convivência ABC
João Cabral, que atende cerca de 400 crian-
ças e jovens carentes. Único espaço aberto à
comunidade, o lugar oferece atividades com-
plementares à escola, como capoeira e tea-
tro. “Fazemos de tudo para tirá-los da rua”,
diz Aurílio Jorge. Segundo a polícia, o alicia-
mento de crianças como “aviõezinhos” – pes-
soas que entregam a droga aos usuários – é
comum por ali.
Por essas e outras, a chegada das 12 es-
tantes repletas de livros foi motivo de festa
com direito a batucada naquele 15 de outu-
bro. Wytallo da Silva, 9, não conteve a euforia.
Parecia que tinha aberto uma caixa de brin-
quedos. “A gente vai entender mais a inteligên-
cia”, repetia o aluno do 3º ano de um dos três
colégios do bairro. Tanto livro de uma vez só
também animou Maria Silva, 13, e um grupo
de amigas. “O que a gente aprender aqui nin-
guém vai roubar.”

LIVROS CONTRA O ABANDONO


A segunda biblioteca chegou ao bairro Vila Colina do Horto: principal ponto turístico
Nova dois dias depois. Seis quilômetros sepa- etas mais representativos da cultura nordes- da cidade também é local de brincadeiras

ram o centro de Juazeiro e a comunidade, dis- tina, que morreu analfabeto) tem a missão de
tância suficiente para o asfalto dar lugar às quebrar o estigma do abandono. Ali, espera-se
ruas de terra e o badalado comércio ser subs- que a máxima “nada se perde, tudo se trans-
tituído por casebres de alvenaria e papelão. Lá forma” extrapole os limites das oficinas de re-
vivem 10 mil pessoas sem saneamento básico ciclagem e chegue aos jovens que começam a
e com medo da crescente violência, confirma- usar livros como instrumentos de mudança. “O
da por números da Secretaria de Segurança livro ajuda a crescer na vida. Agora a gente vai
Pública local. De braços cruzados, um grupo poder pegar um na hora que quiser”, diz Ayza
de moradores acompanhou a chegada das Kellen Silva, 10.
primeiras caixas de livros. “Aqui eles abrem A manutenção das bibliotecas fica por con-
as coisas, mas abandonam tudo”, desconfia ta da comunidade. Funcionários da prefeitu-
Jéssica Romênia, 24. ra prometem visitas mensais para ajudar na
A biblioteca aberta em uma das casas do capacitação de moradores. Segundo Franco
projeto Eco-cidadania, da ONG Universidade Barbosa, um sistema ainda longe do ideal,
Patativa do Assaré (homenagem a um dos po- mas perto da realidade. “A situação é

37
Fotos: Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência
Fotomontagens: Miguel Vilela/UnB Agência
de urgência e não podemos esperar mais permite atribuir diferentes significados ao que
para começar a mudança”, avalia. “O desen- se lê. “É isso que permite soltar à imaginação,
volvimento social, econômico, político, inte- criando cenários, personagens, vozes e versões
lectual e espiritual desse povo passa pela cul- para as histórias. E quanto mais diversificado o
tura”, completa. Chamados de sonhadores, acervo, melhor”, observa. Não se trata apenas
Barbosa e Elmano pedem o empenho das au- de aprender a ler. É aprender a ver o mundo de
toridades para garantir um final digno a essa outra forma, dar novos sentidos à vida.
história. “Não podemos depender só da boa No livro O Alienista, clássico de Machado
vontade das pessoas”. de Assis publicado em 1882, o médico Simão
Bacamarte funda um hospício na vila de
A LITERATURA TRANSFORMA Itaguaí. Obsessivo, interna as pessoas que
O acesso e o incentivo à leitura transfor- julga loucas: o vaidoso, o bajulador, a supers-
mam a realidade não só de crianças e jovens ticiosa, a indecisa. “Um leitor não letrado vê
que entram em contato com os livros, mas de a história de um psiquiatra, mas uma pessoa
toda a comunidade. É o que afirma a pesquisa- com formação literária pode ver uma crítica
dora da Universidade de Brasília Cátia Martins, social por trás da trama”, analisa Cátia, que
especialista em alfabetização infantil. “O novo por 12 anos trabalhou como consultora em es-
leitor desenvolve a autoestima, a oralidade, o colas públicas e particulares do DF.
repertório, a ortografia, a argumentação e o Assim como um cinema ou uma sala de
desempenho escolar”, enumera. “Com essas teatro, os livros de uma biblioteca comunitá-
habilidades, as crianças apuram o senso críti- ria são um bem cultural. Em regiões carentes,
co e sentem-se seguras para questionar e in- com pouco acesso às políticas públicas, mui-
teragir com a sociedade”. tas vezes os pontos de leitura são o único bem
Sem a literatura a criança vê o mundo de à disposição da população que busca o lazer
uma forma linear, objetiva, onde o que é, é. intelectual. “A abertura de bibliotecas onde o
Não conta com a capacidade de abstração Estado não chega é de um valor inestimável”,
que o contato com os livros proporciona. Cátia afirma Cátia. “É preciso que não só Estado,
explica que a leitura impressa possui a carac- mas toda sociedade reconheça o acesso aos
terística de ser pura e significativa, ou seja, livros como prioridade”.

SAIBA MAIS
Confira dicas de leitura da professora Cátia
Martins e galeria de fotos de Juazeiro do Norte
no endereço www.revistadarcy.unb.br

Comentários para o repórter:


campos@unb.br

O PADRE É POP
Em Juazeiro do Norte, Padre Cícero está a paz aos moradores, catequizando a popula-
por toda parte. Imagens do senhor de cabelos ção e pondo fim aos excessos de bebedeira e
brancos e olhos azuis tomam as calçadas em à prostituição. Durante uma missa em 1889,
frente às lojas de suvenir. Rádios, padarias, Padre Cícero teria realizado um milagre ao en-
pomadas e escolas também levam o nome do tregar uma hóstia que se transformara em san-
pároco. Nas praças, o chapéu preto que usa- gue na boca da beata Maria de Araújo.
va para se esconder do sol do Cariri adorna Polêmicas à parte, ainda hoje o homem que
os telefones públicos. Para completar, no alto aconselhou Lampião a abandonar o cangaço
do Horto, tal qual Cristo no Corcovado, uma arrasta uma multidão de 400 mil romeiros em
imagem de 27 metros do pároco é a principal uma homenagem ao Dia de Finados, por lá
atração turística do lugar. chamado de Visita à Cova. Por essas e outras,
Nascido em Crato (CE), em março de 1844, Cícero Romão Batista, o padrinho com mais
e morto aos 90 anos em Juazeiro do Norte, “pa- afilhados do mundo, foi eleito o cearense do
dim Ciço” ficou conhecido na região por trazer século XX pela população do estado.

38
Fotos: Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência
Fotomontagem: Miguel Vilela/UnB Agência
39
REESCRITA
A ESCRAVIDÃO

Estudos baseados em milhares de documentos inéditos mostram que


mesmo pessoas pobres exploravam o trabalho dos negros no Brasil do
século XIX. Maioria dos proprietários tinha até cinco cativos

40
J
Érica Montenegro inéditos trazem novas versões para o período de quatro mil inventários, documentos usados
Repórter · Revista DARCY histórico e revelam que a exploração da mão para fazer a partilha de bens, do período entre
de obra africana era ainda mais comum do 1800 e 1888. “São fontes bastante confiáveis
oão Ignácio de Faria morreu em 1824 no que os livros didáticos nos fazem crer. porque, na hora da divisão, os herdeiros fisca-
Recife. Deixou muito poucos bens, ne- “Escravo não era privilégio de senhor de en- lizam-se mutuamente”, explica Versiani.
nhum imóvel ou equipamento de trabalho. genho”, avisa o professor Flávio Versiani, do Os registros estavam sob a guarda do
Seu patrimônio, valendo apenas 581 mil- Departamento de Economia da UnB, um dos Tribunal de Justiça de Pernambuco e iriam
réis, era constituído quase só pelos seis escravos pesquisadores que está reescrevendo esse ca- para a fogueira não fosse a intervenção de
que possuía, no valor total de 515 mil-réis. pítulo da história do Brasil. Ele e José Vergolino, José Vergolino. Agora, armazenados em
Desses, três eram crianças: duas meninas de da Universidade Federal de Pernambuco 850 caixas, ocupam duas salas do Instituto
2 anos, nascidas no Brasil, e um menino de 10, (UFPE), mostram que mais da metade dos pro- Histórico de Pernambuco – do chão ao teto
africano. Os adultos, todos africanos, Antônio, prietários de escravos pernambucanos do sé- – espaço equivalente ao de um apartamento
de 18 anos, Joaquina e Joana, de 25 e 30, foram culo XIX tinha plantéis de até cinco cativos. de três quartos.
avaliados por 140, 115 e 120 mil-réis, respectiva- Em Recife, de acordo com os pesquisado- Trabalhos semelhantes feitos a partir de
mente. As meninas valiam 30 mil-réis cada, e o res, esses pequenos senhores correspondiam dados de Minas Gerais, São Paulo e Bahia
menino, 80. a mais de 70% dos proprietários de escravos. confirmam que a escravidão brasileira no sé-
João deixou algumas dívidas e uns poucos Os negros cuidavam do serviço doméstico, fa- culo XIX envolvia mais os pequenos senhores
créditos, estes referentes a “serviços realizados ziam fretes e entregas, e executavam traba- do que os grandes latifundiários. Nestas loca-
por escravos” – o que indica que esses eram, pro- lhos manuais em oficinas e ateliês. lidades, como em Pernambuco, mais da meta-
vavelmente, sua fonte de renda. Também eram comuns os “escravos de ga- de dos proprietários tinha até cinco escravos.
nho”, terceirizados por seus proprietários em “A pesquisa sobre Pernambuco está apoia-
A clássica imagem de negros trabalhando troca de uma espécie de diária. O pernam- da em farta documentação. Em um país con-
para um senhor de engenho sob o jugo de um bucano João Ignácio de Faria vivia possivel- tinental como o nosso é excelente que te-
cruel feitor de escravos não é a única possível mente graças ao aluguel da força de trabalho nhamos trabalhos sobre diferentes capitais”,
para retratar a escravidão no Brasil do sécu- de seus negros. afirma João Fragoso, professor da UFRJ e au-
lo XIX. Pesquisas realizadas em documentos A pesquisa de Versiani e Vergolino partiu tor do livro Economia Comercial Brasileira.

41
PARA DECIFRAR O PASSADO
Uma das grandes dificuldades dos
pesquisadores é decifrar a caligrafia
dos escrivães que redigiam os livros
cartoriais. A letra rebuscada e o
envelhecimento dos papéis dificultam
a leitura. A imagem abaixo consta
de um dos 56 livros dos cartórios
da Cidade de Goiás, localizada a
350 quilômetros do Distrito Federal.
Lá, os pesquisadores do Núcleo de
Estudos Comparados do Escravismo
Brasileiro (NUCESC) fotografaram
12 mil páginas e, agora, trabalham
para tabular as informações de um
mil registros de venda de escravos e
800 registros de alforrias, relativos
principalmente à segunda metade
do século XIX. “O movimento
abolicionista precipitou uma série
de alforrias na cidade”, conta Walter
Bittar, aluno de Ciência Política da
UnB que participa do NUCESC.

NOVAS FONTES DE PESQUISA tes documentais como livros cartoriais, inven-


A partir de um grande censo realizado tários e informações censitárias. “Os autores
no Maranhão entre os anos de 1848 e 1850, clássicos não tiveram acesso a essas fontes
Renato Marcondes, da Universidade de São primárias. É por isso que eles não alcançaram o
Paulo (USP), concluiu que o modelo predo- detalhamento que estamos conseguindo”, afir-
minante no estado era o do escravista de um ma o professor Renato Marcondes, da USP.
único cativo. “As senzalas lotadas de negros Os recursos tecnológicos também facilitam
não correspondem à realidade do Maranhão a redescoberta deste capítulo da história do
durante o Império. A imagem mais correta é a Brasil. Os programas de computador permi-
de famílias dividindo um pequeno terreno com tem a análise de longas séries de dados e as
um ou dois trabalhadores negros”, detalha. máquinas fotográficas digitais transformam os
No Rio Grande do Sul, até pessoas de pou- documentos em arquivos de imagem. “O tra-
cas posses exploravam a mão de obra africa- balho ficou mais fácil, não depende de visitas
na. “Gente que seria considerada pobre hoje diárias aos arquivos e de anotações feitas à
tinha escravos”, relata Luiz Nogueról, profes- mão”, detalha Flávio Versiani.
sor da UnB que analisou mil e quinhentos in- Outro grande diferencial dos trabalhos
ventários de gaúchos do século XIX. atuais é o olhar. Apoiados em metodologias

As senzalas lotadas
O conjunto de documentos do Rio Grande importadas da Economia, os pesquisadores
do Sul permitiu que Nogueról rastreasse a pos- conseguem recuperar preços e oscilações do

de escravos não se de 7 mil escravos. “A estrutura produtiva no mercado escravista brasileiro. A partir daí, eles

correspondem à
sul já estava baseada nas pequenas e médias levantam hipóteses para explicar o que acon-
propriedades, portanto, é bastante provável tecia no país durante o período.

realidade do Brasil que os proprietários estivessem na lida junto

durante o Império.
com os escravos”, relata Nogueról. Nos testa- PREÇO, MERCADO E COMPORTAMENTO
mentos analisados por ele foram encontrados João Francisco Paes de Andrade, senhor de

A imagem mais casos de escravos forros que haviam compra- engenho do Recife, faleceu em 1868 deixando

correta é a de
do seus próprios cativos. um patrimônio de 54.595 mil-réis (ou 54 contos
A versão tradicional sobre a escravidão está e 595 mil-réis, como se dizia). Seu engenho São

famílias dividindo nos livros de autores como Gilberto Freyre, Caio Paulo (com uma casa de vivenda, três casas de

um pequeno terreno
Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. A moradores, mais casas de caldeira, de purga,
história contada por eles conjuga as planta- de encaixotamento e de produção de farinha,

com um ou dois tions (grandes fazendas que produziam para a além de estrebaria com seus pertences) foi ava-

trabalhadores negros
exportação) com a exploração da mão de obra liado em 25 contos. O sobrado na Rua Nova, no
negra. O modelo foi estabelecido a partir de Recife, onde residia, valia seis contos e o escravo
testemunhos ou de relatos dos cronistas que Ladislau, de 25 anos, um conto de réis. Ou seja,
estiveram no Brasil nos séculos XVIII e XIX. com seis escravos como Ladislau era possível
As pesquisas mais recentes partem de fon- comprar a casa onde o comendador morava.

42
RETRATOS DA ESCRAVIDÃO
A fotografia surgiu na França, em 1839,
por meio dos experimentos de Joseph
Niépce e Louis- Jacques Daguerre.
No ano seguinte, o daguerreótipo
estreava no Brasil pelas mãos do abade
francês Louis Compte. A novidade logo
ganhou um entusiasta ilustre, Pedro de
JAĻLR?P?
DSRSPM"MK.CBPM'' /S?LBM
se tornou imperador, Dom Pedro II
incentivou a produção de imagens
que retratavam aspectos do Brasil
imperial. Marc Ferrez, o autor das fotos
de personagens que ilustram estas
páginas, era um dos fotógrafos favoritos
do Imperador. Nascido no Rio de
Janeiro em 1843, Ferrez foi educado na
França e retornou ao Brasil por volta de
1860, quando começou a tirar retratos
do cotidiano da capital do Império.
Dominando as técnicas e com olhar
estético apurado, produziu imagens
que chamam atenção por sua beleza.
A foto do mercado publicada na página
anterior foi feita pelo cubano Juan
Gutierrez, no Rio de Janeiro, em 1892.
A imagem capta o mercado próximo ao
Largo do Machado nos primeiros anos
da república, os negros já eram livres
mas continuavam exercendo o
trabalho pesado.

Em 1808, quando Dom João VI e sua comi- Os inventários trazem ainda informações
tiva chegaram ao Brasil, um escravo homem preciosas sobre as relações entre senhores e
com idade entre 15 e 40 anos, ápice do vigor fí- cativos. Em alguns casos, os herdeiros briga-
sico, valia 200 mil réis. Cinco décadas depois, vam entre si por negros que haviam conquis-
um cativo com o mesmo perfil custava cinco tado o apreço das famílias. “Pelos inventários,
vezes mais, um conto de réis ou mil mil-réis. é possível concluir que várias amas de leite
Nesse intervalo de tempo, uma crise nas terminaram a vida bem tratadas pelas pes-
Antilhas aumentou a procura pela produção soas que alimentaram crianças”, comenta
brasileira de cana-de-açúcar, as lavouras de Flávio Versiani.
café expandiram-se no sudeste e as pressões
inglesas pelo fim do tráfico africano cresce- Em 1871, a Lei do Ventre Livre provocou alte-

Foto: Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência


ram, até sua supressão em 1850. “É uma ques- rações no preço dos escravos. O valor das mu-
tão de demanda e oferta. A economia crescia lheres caiu sensivelmente, porque a capacida-
e, ao mesmo tempo, a mão de obra escassea- de reprodutiva delas já não representava lucro
va”, explica o professor Luiz Nogueról. para os escravistas. O valor dos homens, por sua
Além das condições de saúde, o preço vez, continuava alto, até cair na década de 1880,
dos negros era estabelecido de acordo com quando o movimento abolicionista ganhou ainda
o temperamento e as habilidades deles. Os mais força. Em 17 de junho de 1884 a família de
bem mandados custavam mais do que os fu- Alberto Luiz da Cunha Cruz compareceu ao car-
jões. Os que dominavam algum ofício manual tório de Goyaz (atual cidade de Goiás) para co- EU FAÇO CIÊNCIA
– como, por exemplo, a fabricação de sapatos municar que alforriavam a escrava Luiza, preta, Quem é o pesquisador: Flávio Rabelo
– também valiam mais. de 32 anos. No documento, declaravam fazer isso Versiani é graduado em Ciências
Econômicas pela Universidade Federal
As mulheres, em geral, tinham preço menor “em atenção ao movimento abolicionista que se de Minas Gerais (1963), fez mestrado
do que os homens. Por volta da metade do sé- observa em todo o Império, e aos desejos que nu- (1968) e doutorado (1971) na Vanderbilt
culo XIX, o valor delas estava entre 500 mil e trem da completa extinção do elemento escravo University, nos Estados Unidos. Professor
titular do Departamento de Economia, tem
800 mil réis. “As boas de serviço, que cuida- no seio da sociedade brasileira”. Luiza, contudo, estágios pós-doutorais na Yale University,
vam da casa e cozinhavam, eram disputadas e deveria continuara prestar serviços pelos próxi- EUA, e University of London, Inglaterra.
podiam ser vendidas por preço superior ao dos mos seis anos ao filho deles, Luiz que, naquela No final dos anos 90, fundou o Núcleo
homens”, afirma o professor Flávio Versiani. data completava 13 anos. de Estudos Comparados do Escravismo
Brasileiro (NUCESC) junto com o professor
Ao comparar a cotação dos escravos nos José Vergolino, da Universidade Federal
estados brasileiros, os pesquisadores encon- Era a sociedade brasileira relutando em de Pernambuco (UFPE). O núcleo reúne
traram preços similares. Isso permite afirmar se despedir de uma instituição da qual se ainda os professores Renato Marcondes,
da Universidade de São Paulo (USP), Josué
que existia um mercado interno de escravos beneficiou durante mais de 350 anos. “Se a Passos, da Universidade Federal de Sergipe
e que a economia brasileira no século XIX era escravidão não tivesse sido tão popular, pro- (UFS), Luiz Nogueról e Steve de Castro, da UnB,
diversificada e integrada. “A produção não era vavelmente, ela não teria sido mantida por com a participação de diversos estudantes. O
programa de pesquisas do NUCESC tem apoio
tão dependente das exportações, já havia um tanto tempo”, lamenta o professor Renato financeiro da CAPES, CNPq e Fundação de
mercado interno importante”, conta Versiani. Marcondes, da USP. Apoio à Pesquisa do Distrito Federal.

43
ARTIGO

TRABALHO ESCRAVO
A LÓGICA ECONÔMICA DO

O
*Flávio Versiani

interesse fundamental do dono de escravos em que predomine a força, se a escala de produção é pe-
era obter destes o maior rendimento possível, a quena, a execução será individual e não por equipes, difi-
maior produção, visando ao maior lucro. Como cultando ou inviabilizando uma fiscalização direta.
maximizar a produção de um escravo? Imagine- Nesses casos, seria mais eficiente, do ponto de vista
se um caso simples: a “produção” consistiria em cavar bu- da maximização da produção, obter, de alguma maneira,
racos (por exemplo: fazer covas para o plantio), e cada es- a cooperação do escravo, em vez de ameaçá-lo ou puni-
cravo poderia cavar, digamos, cinco buracos por hora. Para lo por um desempenho inadequado. Ou seja: usar incen-
obter o máximo de produção, bastaria garantir que cada tivos em lugar de coerção. Por exemplo: um tratamento
operário trabalhasse o maior número possível de horas. diferenciado (melhor comida ou alojamento); a promessa
No caso da mão de obra escrava, esse objetivo pode- de alforria; permissão de que o escravo pudesse plantar
ria ser facilmente atingido por um feitor que organizasse e para vender, fora do horário de trabalho; e assim por dian-
controlasse a produção: pela coação do chicote, ele faria te. A literatura registra muitos exemplos dessas práticas,
com que os escravos trabalhassem o número de horas de- no escravismo brasileiro.
sejado, com a intensidade desejada. De fato, era comum O mais provável é esperar uma associação entre o tra-
que os escravos tivessem jornadas de trabalho próximas tamento coercitivo dos escravos — com suas sequelas:
do máximo biológico — algo como dezoito horas, nos en- maus-tratos, violência, crueldade — e o tipo de ativida-
genhos e cafezais brasileiros, especialmente em picos de de que estes exerciam. Se predominavam tarefas braçais,
produção, como na colheita. executadas em equipe e de fácil controle e supervisão por
Isso aponta para uma lógica do tratamento coercitivo. um feitor, a coerção fazia sentido econômico, para os se-
Pode ser difícil obter de um assalariado rendimento equi- nhores de escravos. Mas onde fossem mais comuns as ta-
valente ao de um trabalhador escravo — a não ser me- refas “de habilidade”, seria impossível uma organização de
diante um salário tão alto que prejudique o lucro do pa- produção ao estilo de uma linha de montagem, é de supor
trão. Assim, em igualdade de condições (para um mesmo que as relações de trabalho eram mais próximas das que
custo monetário, por dia), o trabalho escravo é mais pro- vinculam patrões a trabalhadores livres, com menos coa-
dutivo do que o trabalho livre, em determinados tipos de ção física e mais incentivos positivos.
tarefa. A coerção garante esse resultado e tem, portanto, Isso ajuda a entender a ideia, expressa entre outros por
um significado econômico. Gilberto Freyre — e gerando enorme polêmica — de que a
Há uma condição, porém: é preciso que o trabalho pos- escravidão brasileira fosse comparativamente “benigna”.
sa ser facilmente monitorado. Isso é viável quando se trata Investigações recentes (inclusive por nosso grupo de pes-
de cavar buracos, tarefa que exige quase só força física, quisa) mostraram que grande parte da população escrava
cujo resultado pode ser avaliado e medido sem dificulda- no Brasil pertencia a indivíduos que tinham um número pe-
de, e que pode ser executada por trabalhadores organi- queno de trabalhadores escravizados. A coerção não se-
zados em equipes. Derrubar a mata, cortar e transportar ria, em geral, “eficiente” na pequena produção agrícola ou
cana, capinar o cafezal são serviços dessa espécie. Como, artesanal, no comércio, no trato do gado etc. Em contras-
de fato, era a maior parte das tarefas, nas grandes proprie- te, no Sul dos Estados Unidos ou nas Antilhas francesas a
dades agroexportadoras. vasta maioria dos escravos pertencia a grandes proprie-
Mas há serviços que não podem ser controlados assim, dades agroexportadoras. Assim, não seria surpreendente
seja pela natureza das tarefas executadas, seja pela forma que se observasse no Brasil, em média, menos coerção e
como a produção é organizada. Em certas tarefas — como maus-tratos (e mais alforrias) do que no caso dos escravos
a do artesão, do minerador de ouro, do vaqueiro, da cozi- daquelas regiões. Não por uma benevolência especial dos
nheira ou mucama — a qualidade é mais importante que a senhores de escravos brasileiros, mas pela simples lógica
quantidade, e pode ser impossível fiscalizar diretamente a de seu interesse econômico.
qualidade da execução (como saber se foram extraídas to-
das as pepitas de ouro do cascalho? Se a rês que fugiu foi *Professor do Departamento de Economia e fundador do Núcleo de
bem procurada?). E mesmo que se trate de tarefa simples, Estudos Comparados do Escravismo Brasileiro (NUCESC).

44
Na aquarela Negra com
tatuagens vendendo cajus,
de 1827, o francês Jean-
Baptiste Debret retrata o
trabalho de uma escrava

Arte de Miguel Vilela sobre aquarela de J.B. Debret

45
BRASÍLIA ANTES
DE
BRASÍLIA
Pesquisadora da UnB recupera mapas e relatos de viajantes
para desvendar o passado da área onde se localiza hoje o DF.
Uma das principais estradas do século XIX cortava a região

O
João Paulo Vicente
Repórter · Revista DARCY

português Ângelo dos Santos cita quatro ou cinco viajantes”, afirma Lenora.
Cardoso era um burocrata. Mas Depois dessas leituras, ela começou a pro-
não apenas isso. Nomeado pelo rei curar quaisquer relatos de desbravadores do
Dom João V para fiscalizar a capi- Planalto Central. Ao final, reuniu 16 cronistas.
tania de Goiás, Ângelo percorreu o Planalto Daí para a cartografia foi um pulo. “Cada
Central explorando os limites norte, sul, leste e viajante que eu estudava tinha feito ou citava
oeste do então desconhecido território. Da sua um mapa”, conta a arquiteta. Ela achou refe-
jornada nasceu um mapa com cada rio, mor- rências ao espaço geográfico onde hoje está
ro e arraial que encontrou pelo caminho. Sem Brasília em 22 mapas, treze deles do século
modéstia, tascou o título O primeiro e mais XIX. “Eram indicações de povoamento, infor-
ajustado, que lá apareceu até aquele tempo. mações sobre arraiais e fazendas”, conta.
Desenhado em andanças entre 1749 e Nessa etapa, o trabalho da pesquisadora
1750, o documento traz, pela primeira vez, o foi uma espécie de caça ao tesouro. Lenora
topônimo Sobradinho grafado. Exatamente reproduziu os mapas no maior tamanho pos-
o tipo de pista que a arquiteta Lenora Barbo sível, espalhou-os no chão da sala e, com uma
procurava para recuperar a história do Distrito lupa, buscou sinais de ocupação. “Passei noi-
Federal na Colônia e Império. Em contraste tes insones com a lupa na mão. No final, achei
com a modernidade da arquitetura de Brasília, coisas que nem procurava”.
ela achou um passado de criadores de gado, A pesquisadora contou com a ajuda do ar-
agricultura de subsistência e sítios tão ermos quiteto aposentado do Instituto do Patrimônio
que a hospitalidade com aqueles que estavam Histórico e Artístico Nacional (Iphan) Marco
de passagem se tornava uma obrigação. Antônio Galvão. Ele havia copiado em papel
Para descobrir o passado da capital do vegetal parte do material cartográfico usado
país, Lenora mergulhou em mapas e diários na publicação dos livros de Bertran. A pedido
de viagem dos que aqui estiveram entre os sé- de Lenora, Marco voltou à prancheta para re-
culos XVIII e XIX. “Dizem que Brasília come- constituir as rotas de alguns viajantes.
çou em 60 com Juscelino. A história colonial
do nosso território tem sido relegada ao es- ESTRADA REAL
quecimento”, afirma. Depois de cruzar imagens de satélite, mo-
O ponto de partida do trabalho foi a obra delos de topografia digital e mapas antigos,
do historiador Paulo Bertran (1948-2005). Lenora conseguiu traçar o trecho da Estrada
“Identifiquei as fontes primárias de Bertran. Ele Real a Goyazes que passava pelo DF. A via era

46
Cartografia histórica:
Cunha Matos, governador
das Armas da Província
de Goiás, esquadrinhou a
região no século XIX

umas das principais rotas do Brasil e contava


com postos de fiscalização e arrecadação da
Coroa portuguesa.
De acordo com a pesquisadora, o trecho
brasiliense da Estrada Real acompanhava o
Espigão Mestre, formação geológica que di-
vide as bacias hidrográficas do Tocantins/
Araguaia, Paraná e São Francisco. A área, lo-
calizada na parte norte do DF, ainda é domi-
nada por chapadões.
O Planalto Central tinha apenas proprieda-
des isoladas, tão distantes umas das outras
que, aos visitantes, não se negava um teto
para passar a noite. As fazendas ficavam próxi-
mas aos cursos de água. Os proprietários man-
tinham pequenas hortas que atendiam às ne-
cessidades básicas de alimentação. A criação
de gado era a principal atividade econômica.
Os relatos dos viajantes também trouxe-
ram informações importantes sobre o povoa-
mento do território. Raimundo José da Cunha
Matos, militar de carreira e governador das
Armas da Província de Goiás, esquadrinhou
a região no início do século XIX, estudo co-
nhecido como corografia. Produzida por ele,
a Carta Corográfica de 1836 documenta Sítio
Novo, Sobradinho e Rodeador – localidades
que existem até hoje.
O magistrado Virgílio de Mello Franco es-
teve por aqui um pouco mais tarde, em 1876.
Apesar de pouco conhecido, o relato dele traz
informações que permitem assegurar que a

47
ONTEM E HOJE
Detalhe do mapa de Cunha Matos
feito em 1836. Ele foi um dos
primeiros a desenhar o local onde
está o Distrito Federal. Veja
onde ele passou:

SÃO JOÃO
Instalada em 1736, a
Contagem de São João
das Três Barras estava
a apenas 10 quilômetros
do atual Plano Piloto. O
local tinha um posto que
fiscalizava o trânsito de
mercadorias e pessoas no
Brasil Colônia e Império.
No auge do ciclo do ouro,
passavam por lá até 10
mil pessoas por ano, entre
tropeiros e escravos.

TOPÔNIMOS
No mapa de 1836, muitos
locais aparecem com
seus nomes atuais, como
Sobradinho e Sítio Novo.
A região do Rodeador,
em Brazlândia, também
foi assinalada por Cunha
Matos. À época, ela era
conhecida como Rodiador.

OS RIOS AS FAZENDAS
São Bartolomeu faz parte O local indicado como São
da bacia do Paraná e corta João hoje é conhecido
o Distrito Federal de norte como Região da Contagem
a sul. O rio Torto teve ou Córrego Três Barras.
seu curso modificado e Mestre D’Armas é a atual
deságua no Lago Paranoá. Planaltina. Couros é a
cidade goiana de Formosa.

O BRIGADEIRO
Raimundo José da Cunha Matos A reprodução que aparece nesta
nasceu em Portugal em 1776. Filho página foi feita pelo arquiteto Marco
de um militar, seguiu a carreira das Antônio Galvão da Carta Corográfica
armas e participou de batalhas na de Cunha Matos. De tão minucioso,
Catalunha, região espanhola. Foi custou quase um mês de trabalho
um dos que ficaram ao lado de Dom no Centro de Documentação do
Pedro I, quando o imperador declarou Exército, em Brasília. “Eu usei bicos
a independência do Brasil em 1822. de penas, mas nunca consegui atingir
Aos 47 anos, em 1823, foi nomeado a precisão dos originais, não sei que
Governador das Armas da Província diabo de penas eles usavam”, conta
de Goiás. Matos.

48
Topografia atual:
trabalho de Lenora
reconstitui trajeto dos
tropeiros no DF
Infográfico: Helena Lamenza/UnB Agência

Estrada Real ficava no alto do Espigão tinha em mãos. “Desconfiei que o mapa da
Mestre. O texto é pontuado de citações sobre coleção era o de Ângelo dos Santos, o que
a terra, a paisagem e os costumes locais. acabou se confirmando”.
O mais antigo relato que Lenora encontrou O resgate histórico feito por Lenora ren-
foi o do tropeiro José da Costa Diogo. Em 1734, deu frutos na UnB. Em 2011, será criado o
ele partiu das margens do rio São Francisco, Laboratório de Cartografia Histórica, com
em Minas Gerais, para encontrar o ouro do pesquisadores da História, Arquitetura e
centro-oeste. A jornada o levou a atravessar Geografia. “Vamos juntar esforços e coordenar
todo o norte do Distrito Federal. interesses para reforçar uma linha de pensa-
P re s e r v a d o n o A rq u i v o H i s t ó r i co mento que desperta cada vez mais atenção”,
Ultramarino, em Portugal, o diário de José explica Estevão Chaves Resende, diretor do
da Costa Diogo descreve claramente o tre- Instituto de Ciências Humanas.
cho da Estrada Real. O tropeiro entrou no DF Outra frente de trabalho para Lenora foi o

Foto: Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência


pelo nordeste, cruzou Mestre D’Armas (hoje resgate de casas de fazenda remanescentes
Planaltina), Sobradinho e saiu por Rodeador, do período colonial. Com base em um levan-
em direção à Pirenópolis, à época conhecida tamento do Iphan na década de 80 e em do-
como Meia Ponte. cumentos datados da construção de Brasília, a
arquiteta identificou dez construções originá-
ERRO HISTÓRICO rias do século XIX que ainda estão de pé.
A revisão bibliográfica também permitiu “O que fizemos então foi levar os alunos de
que Lenora corrigisse um erro histórico. O Proau VIII (disciplina do curso de Arquitetura) a
primeiro mapa da região do DF, segundo a campo para estudar as casas descritas”, conta EU FAÇO CIÊNCIA
historiografia oficial, era o desenhado pelo o orientador de Lenora, o diretor da Faculdade Quem é a pesquisadora: Lenora Barbo é
italiano Tosi Colombina em 1751, a mando do de Arquitetura e Urbanismo, Andrey Schlee. formada em Arquitetura pela Universidade
Católica de Goiânia. Consultora Legislativa
Marquês de Pombal. /S?LBMTGQGR?P?K?QA?Q?QQCASJ?PCQ
MQ de Desenvolvimento Urbano, Rural e Meio
Mas, os livros de Paulo Bertran citavam um estudantes da FAU traçaram projetos para a Ambiente da Câmara Legislativa do Distrito
mapa anterior, creditado ao português Ângelo restauração de cada uma delas. A faculdade Federal desde 1995, concluiu em 2010 o
mestrado na Faculdade de Arquitetura e
dos Santos. “Eu ficava intrigada, porque não disponibilizou as ideias gratuitamente para os Urbanismo da UnB.
conseguia achar o mapa de Ângelo de jeito proprietários. “Só falta o interesse público. Na
nenhum.” Às vésperas do prazo para conclu- política de Estado, até hoje patrimônio é só o Título da dissertação: Preexistências de
são da tese, ela encontrou em um sebo virtual Plano Piloto”, observa Lenora. Brasília. Reconstruir o território para construir
a memória
uma coleção de cartas cartográficas coloniais “Brasília é do século XX, mas está cerca-
lançada em 1960, em comemoração à inaugu- da pelos séculos XVIII e XIX”, brinca o pro- Onde foi defendida: Programa de Pós-
ração de Brasília. fessor do Departamento de História Kelerson Graduação em Arquitetura e Urbanismo, na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Lá, o mapa creditado a Tosi Colombina Semerene. Lenora completa: “O moderno é
não conferia com os desenhos que Lenora mais moderno contraposto ao antigo”. Orientador: Andrey Rosenthal Schlee

49
O MUNDO NO TEMPO DE...

O FRANCÊS QUE
DESCOBRIU O BRASIL
J
Ana Beatriz Magno
Repórter · Revista DARCY

ean Baptiste Debret coloriu o retrato do Brasil com Seja pela vertente idílica ou pelo enfoque satânico,
os tons da realidade. Antes de suas aquarelas, nos- Brasis fantasiosos mancharam nossa imagem nos três pri-
sa imagem oscilava entre duas mentiras: a do para- meiros séculos de colonização portuguesa. Vale pontuar
íso luxurioso e a do inferno selvagem. duas exceções: as paisagens rurais de Franz Post e alguns
O primeiro registro paradisíaco está na carta de Pero retratos pintados por Albert Eckhout - os dois pintores que
Vaz de Caminha, datada de 1500 e endereçada ao rei de acompanharam Maurício de Nassau na empreitada holan-
Portugal, Dom Manuel. O texto é uma espécie de certi- desa em Pernambuco entre 1630 e 1644.
dão de nascimento das terras achadas pela esquadra de À parte o hiato holandês, os brasileiros precisaram es-
Pedro Álvares Cabral. perar 300 anos para aparecer nos quadros sobre o Brasil.
Nela, o escriba anuncia a chegada às areias do Novo Foi só com a chegada de Jean Baptiste Debret que a vida
Mundo e descreve os pacíficos anfitriões que abriram as anônima conquistou os pincéis.
portas do Éden aos lusitanos visitantes: Parisiense, nascido em 18 de abril de 1768, o pintor ti-
nha 48 anos quando resolveu atravessar o Atlântico. Sua
“Andavam três ou quatro moças, bem novinhas e vida estava em crise. A esposa o abandonara, seu único
gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas filho morrera e seu protetor político, Napoleão Bonaparte,
costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas
e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem partira para o exílio.
olharmos, não se envergonhavam” Atordoado, o pintor aderiu à chamada Missão Francesa,
grupo de artistas convidados por Dom João VI para mon-
A transformação da inocência nativa em selvageria dia- tar a Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro. A cidade era
bólica não tardou a contaminar iconografia sobre a Terra sede do império português, tinha 30 mil habitantes e ne-
de Vera Cruz. Ainda no século XVI, xilogravuras apresen- nhum investimento em educação artística.
tando a voracidade canibal dos Tupinambá acompanha- Além de Debret, talentos importantes, como
vam os relatos de Hans Staden, mercenário alemão cap- o professor Joachim Lebreton, o arquite-
turado por antropófagos em 1548. to Grandjean de Montigny e o pintor Nicoles
Após nove meses de sequestro, os índios concluíram que Antoine Taunay toparam a aventura.
o alemão era tão covarde que devorá-lo não lhes empresta- Na bagagem, trouxeram a tendência
ria força alguma. Staden voltou para a Europa e escreveu o que predominava nos salões de arte eu-
primeiro livro ilustrado sobre o Brasil – são desenhos ater- ropeus desde meados do século XVIII: o
rorizantes com prisioneiros em caldeirões e homens gulo- neoclassicismo, estilo que rompeu com
sos se lambuzando de coxas e pés humanos. os excessos decorativos do Barroco, cele-

Arte de Miguel Vilela sobre aquarela Botica, de J.B. Debret, 1823

50
“O brasileiro é geralmente bom. Anda de cabeça erguida, mostrando
sua fisionomia expressiva; as sobrancelhas são bem marcadas, pretas
como os cabelos; os olhos grandes e vivos. Sua estatura, geralmente
pouco elevada, dá-lhe grande flexibilidade e muita agilidade”
Jean Baptiste Debret

brou os ritos da corte e recuperou valores da Antiguidade, becos, nas praças e se deixou contaminar pela realidade
como o equilíbrio da composição cênica e a perfeição de uma tal forma que se afastou da sua formação neoclás-
apolínea dos personagens. sica e criou um jeito de pintar quase documentarista.
O veleiro com Debret e seus compatriotas zarpou do Debret era um neoclássico de quatro costados, como
porto de Havre, na França, em janeiro de 1816 e cruzou ensina Rodrigo Naves em A Forma Ideal. “Mas ao chegar
o Pão de Açúcar, no Rio, em 26 de março. Dois dias de- aqui, ele percebeu que o Brasil não tinha nada de clássi-
pois, os franceses acompanharam uma cerimônia dos ín- co e que para retratá-lo era necessário olhar mais para
dios Botocudos. Debret se maravilhou com o espetáculo as ruas e menos para a corte”, explica o professor Pedro
e pintou o primeiro dos quase mil quadros sobre a vida de Alvim, do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.
brancos, negros, índios e mestiços no Brasil. A temporada no Brasil não apagou por completo as ra-
“Jean Baptiste é um milagre de realismo, de observação, ízes neoclássicas de Debret. Elas parecem no equilíbrio
de meticulosidade, de objetivismo. Sua grande vantagem dos cenários e mesmo na fisionomia dos homens e mu-
é permanecer no campo objetivo da descrição”, resume o lheres retratados em seus quadros. “Às vezes, vemos um
escritor Antonio Carlos Villaça em Debret, um Itinerário de grego por trás de um escravo de Debret”, explica Alvim.
Amor. “Debret faz justiça ao mulato brasileiro.” A pintura de costumes acompanhou Debret até seus úl-
Mesma opinião de um dos maiores historiadores timos dias no Rio de Janeiro. Ao voltar para Paris, em 1831,
contemporâneos, José Murilo de Carvalho, integrante o artista publicou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil,
de Academia Brasileira de Letras e autor do prefácio de tesouro não só pelas imagens, mas também pelos legendas
Debret e o Brasil, mais catálogo obra sobre o artista: assinadas pelo autor em texto claro, onde aparece não ape-
nas seu testemunho de amor à terra dos Tupinambá, mas
“Debret inaugurou entre nós a história da vida privada também sua crítica aos males que por aqui presenciou:
em imagens. Sem dúvida, ele teve de atender às
exigências da Corte que lhe pedia grandes quadros
de solenidades. Mas o mais importante foi que ele x/S?Qe todo dia, entre nove e dez horas da manhã,
pintou cenas do cotidiano e figuras populares. vê-se sair a fila de negros a serem punidos,
Graças a ele, somos informados sobre como se amarrados dois a dois pelos braços (...) até o local
vestia, trabalhava, se divertia, era enterrada, designado para a execução da punição (...) de
gente rica, gente simples, livres e escravos”. cinqüenta até 200 chibatadas. Existem pelourinhos
erguidos em todas as praças da cidade (...) No
retorno a sua prisão, a vítima é submetida a uma
Debret planejava ficar cinco anos no Rio. segunda prova não menos dolorosa: a lavagem do
Ficou 15. Criou mais de mil aquarelas, óleos ferimento com vinagre apimentado”.
e desenhos. Se encantou pelo que viu nos Jean Baptiste Debret

51
FONTES
NOSSAS

Biblioteca Nacional Digital Mapas e Planos Relativos ao Brasil Colonial


http://bndigital.bn.br (1500 – 1822)
A versão digital da Biblioteca Nacional oferece uma Isa Adonias, Ministério das Relações Exteriores, Serviço de
grande variedade de textos raros e imagens sobre Documentação, 1960
o Brasil.
Lançada em comemoração a inauguração de
Brasília, essa coleção de mapas trazia marcada em
Chorographia Histórica da documentos antigos a localização do DF.
Província da Goyaz
Raimundo José da Cunha Matos, Editora Líder, 1979 O Negro na Fotografia Brasileira do Século XIX
Chefe militar da província, o brigadeiro fez uma George Ermakoff, G. Ermakoff Casa Editorial, 2004
vasta descrição geográfica e social de Goiás no O livro mostra mostra imagens dos negros no
século XIX.. período. São estudos antropomórficos, retratos e
cenas do dia a dia.
Coleção D. Thereza Christina Maria
http://bndigital.bn.br/terezacristina/apresentacao.htm Posse de Escravos e Estrutura da Riqueza no
Agreste e Sertão de Pernambuco: 1777 – 1887
No endereço eletrônico está disponível a coleção
de fotografias do Imperador D. Pedro II, composta Flávio Versiani e José Vergolino
por 23 imagens. http://www.scielo.br/pdf/ee/v33n2/v33n2a05.pdf

Debret e o Brasil: Obra Completa No artigo os historiadores estudam a escravidão


em Pernambuco a partir de inventários de
(1816 – 1831) proprietários de escravos
Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, Capivara, 2008
Nos quinze anos em que esteve no Brasil, o pintor Quanto vale ou é por Quilo?
francês retratou elementos da sociedade, natureza Sérgio Bianchi, 2005
e do homem do novo mundo. O diretor faz uma comparação entre o comércio de
escravos e o uso da solidariedade apenas como
História da Terra e do Homem forma de propaganda, sem cunho social real.
no Planalto Central
Paulo Bertran, Editora Verano, 2004 Raízes do Brasil
Bertran escreve sobre o povoamento e a geografia Sérgio Buarque de Holanda, Companhia das Letras, 1997
do Distrito Federal desde a pré-história até a Sérgio Buarque interpreta a formação do Brasil com
fundação de Brasília. No caminho, relata todo o ênfase na influência da colonização portuguesa.
processo de interiorização da capital.

História da Vida Privada no Brasil Viagem pela Estrada Real dos Goyazes
Fernando Novais (Org), Companhia das Letras, 1997 Wilson Vieira Jr., Deusdedith Rocha Jr. e Rafael Carvalho,
Editora Parelelo 15, 2006
Os volumes desta coleção retratam o modo de
viver dos brasileiros durante os cinco séculos de Os pesquisadores resgataram o diário de viagem
história do país. do tropeiro José da Costa Diogo.

Comentários para os repórteres:


biamagno@unb.br
ericam@unb.br
pjompa@unb.br

52
ENSAIO FOTOGRÁFICO

DARCY
LELÉ
DE
PARA

“Ainda melhor que isso é o prédio que o Lelé projetou pra


mim. Será um disco voador enorme, pousado no pedaço mais
bonito do campus da UnB. Com medo de minha Fundar parecer
vetusta demais, consegui do Lelé fazer dela um Beijódromo, que
corresponderá, em Brasília, ao Sambódromo que criei no Rio. Trata-
se de um amplo palco ao ar livre para serestas e leitura de teatro
e poesia, defronte de uma arquibancada para duzentos olharem a
lua cheia e se acariciarem. Eu, lá de longe, estarei vendo, feliz.”

Darcy Ribeiro

Em 1996, Darcy Ribeiro deu as coordenadas para que Lelé Filgueiras, arquiteto premiado e
seu amigo de longa data, desenhasse a sede da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar). Naquele
mesmo ano, Lelé fez os primeiros esboços do prédio. Em dezembro de 2010, o desejo de Darcy
e a ideia de Lelé viraram concreto na Praça Maior da Universidade de Brasília. Para home-
nagear o primeiro reitor da UnB e um dos mestres fundadores da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU), a revista Darcy preparou um ensaio fotográfico especial sobre a construção
do prédio. Veja as fotos feitas pelo fotógrafo Luiz Filipe Barcelos, da UnB Agência, e a carta de
agradecimento que Lelé escreveu aos que trabalharam para transformar intenção em feito.

53
54
LELÉ
DARCY
DE
PARA

É
com muita alegria que vejo realizar-se
o sonho de Darcy em ter seu edifício
implantado no campus da UnB. Os re-
cursos para a execução da obra se de-
vem à sensibilidade e empenho do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, do ministro da Cultura
Juca Ferreira e do reitor da Universidade José
Geraldo de Sousa Junior.
Darcy adorava as grandes malocas comuni-
tárias indígenas nas quais ele viveu no início de
sua formação de antropólogo. Elas eram dis-
postas em círculo formando um grande espa-
ço de convivência da tribo. Lembro-me que em
uma ocasião ele convocou alguns índios para
construir uma delas na praça central da UnB
que Oscar havia imaginado abraçada pelo ICC
e integrando os edifícios da Reitoria, Biblioteca
e Aula Magna. Infelizmente, nem a maloca nem
a praça foram construídas como Darcy sonha-
ra. Mas nessa ocasião, como secretário exe-
cutivo do Ceplan, tive contato com os índios
construtores e comoveu-me o orgulho que de-
monstravam por seu domínio das técnicas uti-
lizadas na execução de seu edifício.

55
A OBRA DO BEIJODRÓMO DUROU 153 DIAS | CERCA DE 110 HOMENS TRABALHARAM NA CONSTRUÇÃO | AS JORNADAS CHEGAVAM ATÉ 11 HORAS POR DIA | O PRÉDIO

Aprofundei-me no conhecimento de todos fases da construção e passei a usá-las em mi-


os detalhes da construção e pude constatar nhas aulas de projeto como um exemplo de
o quanto ela era lógica e precisa, utilizando adequação tecnológica.
materiais simples disponíveis na mata, mas /S?LBM?NPCQCLRCG?"?PAW?K?OSCRCBM
selecionados com extremo cuidado e crian- projeto da sede de sua Fundação, brinquei que
do uma harmoniosa integração inspirada na a forma do edifício poderia ser interpretada
própria natureza. Consegui fotos de todas as como a de uma grande maloca ou de um disco

56
O CUSTOU 7 MILHÕES DE REAIS | O MEMORIAL INCLUI UMA ARENA COM ESPAÇO PARA 200 PESSOAS | O EDIFÍCIO FOI ERGUIDO EM AÇO NAVAL PARA EVITAR FERRUGENS

voador, simbolizando sua grande paixão res- de concebê-los aplicando técnicas de execu-
pectivamente pelos índios e pelas inovações ção integradas com rigor e precisão.
científicas de nosso tempo. Na verdade, como A compreensão e o domínio dessas técni-
Darcy bem sabia, o edifício com suas arqui- cas por cada um dos participantes da equipe
bancadas externas batizadas de Beijódromo, garantiram na obra a qualidade da proposta,
não havia sido inspirado formalmente em ne- a economia e o prazo curto de construção de
nhum dos dois objetos. Mas, apenas no modo menos de cinco meses. Seria impensável

57
A DISTÂNCIA DA CÚPULA AO CHÃO É DE 19 METROS, ALTURA DE UM PRÉDIO DE SEIS ANDARES | A ÁREA DO MEMORIAL EQUIVALE A DOIS CAMPOS DE FUTEBOL

a construção do edifício com o rigor exigido ção precisa e impecável da obra realizada pela Rocha, Antônio Carlos Bastos dos Santos e
sem a participação inicial de Darcy no esta- arquiteta Adriana Rabello Filgueiras Lima. Leonardo Martins de Melo e a participação de
belecimento das diretrizes do programa e de Também merecem reconhecimento a com- todos os funcionários e operários.
seu ajuste posterior promovido pela equipe da petência técnica de Vicente Muñoz, a colabo- E se o edifício atender à comunidade da
Fundar liderada por Paulo Ribeiro. Este prédio ração da empresa Irmãos Gravia, a dedicação UnB, creio que todos teremos muito orgulho
também não seria possível sem a colaboração e experiência dos mestres e encarregados Luiz de ter participado dessa obra. E certamente
da equipe do Instituto Habitat, sem a integra- Aurélio Caraciolo Cordeiro - o Lula, Antônio Darcy, se ainda estivesse entre nós.
ção paisagística proposta pela Arquiteta Alda Bernardo, Raimundo Alves da Silva, José
Rabello Cunha e, principalmente, sem a dire- Evandro Berto Menino, Cândido Mendes da Lelé Filgueiras

58
59
50ANOS

Cedoc/UnB

DIREITO
AVESSO
A FACULDADE QUE VIROU O
PELO

O
Ana Beatriz Magno curso de Direito da Universidade vizinhança do poder. Darcy resolveu pedir aju-
Repórter · Revista DARCY de Brasília virou o ensino jurídico da ao chefe de gabinete do presidente, Victor
pelo avesso na primeira metade Nunes Leal, ministro do Supremo Tribunal
dos anos 60. Até então, as facul- Federal, morto em 1985.
dades brasileiras reproduziam os dogmas do O jurista era um craque da retórica, porém
positivismo e fabricavam advogados enferru- corria contra o tempo. O calendário já marcava
jados pelos códigos. Havia a dinastia das cá- outubro de 1959 quando Victor encontrou JK
tedras vitalícias. Os professores eram senho- para falar sobre a importância de um campus
res eternos de suas disciplinas, ensinavam no Distrito Federal. Iniciou o diálogo contan-
leis em aulas modorrentas, replicavam currí- do-lhe que Thomas Jefferson, em seu epitáfio,
culos alheios à realidade e cumpriam rotinas omitiu ter ocupado a presidência dos Estados
distantes das outras áreas do conhecimento. Unidos porque considerou mais importantes
O nascimento da UnB matou o velho jeito de três outros feitos: a formulação da declara-
formar juristas. ção de independência da América, a criação
Antes mesmo da inauguração da univer- da lei de liberdade religiosa e a fundação da
sidade, o fundador Darcy Ribeiro já anuncia- Universidade da Virginia.
va as grandes mudanças acadêmicas que a “Será que o Clóvis (referia-se ao Salgado,
UnB representaria para a educação. No final ministro da Educação) pode ter esse projeto
do governo Juscelino, Darcy dirigia o Instituto concluído antes da mudança da capital?”, per-
Nacional de Pesquisas Educacionais e se des- guntou o presidente. “Respondi que tudo já ti-
dobrava para convencer o presidente JK a criar nha sido feito por Darcy Ribeiro, juntamente
uma universidade na nova capital. Assessores com um grupo muito competente de professo-
de Juscelino temiam a rebeldia estudantil na res e cientistas”, contou Victor Nunes quan-

60
CERI/UnB Daiane Souza/UnB Agência

Laboratório de futuros doutores:


Recepção aos calouros na praça da
Faculdade

No segundo capítulo da série de reportagens


Formatura dos advogados após cinco
anos de estudos

sobre o Jubileu da UnB, a Revista DARCY mostra


Inquietação nos protestos do
movimento estudantil

primeiros anos do curso de Direito

do magistério. Estas incluíam coordenar


do recebeu o título de professor emérito da o curso-tronco de Direito, Economia e dobrávamos o conteúdo para grupos de 20
Universidade de Brasília, em 1983. Administração. A função administrativa veio alunos”, lembra Sepúlveda Pertence, ministro
Pois é, Victor não apenas convenceu a ser considerada embrião da Faculdade de aposentado do Supremo Tribunal Federal e
Estudos Sociais Aplicados”
Juscelino. Virou professor da universidade e mestrando da UnB de 1962 a 1965. “Eu desdo-
ficou encarregado de montar o modelo peda- O embrião do Direito era quase um gigan- brei aulas de Victor Nunes, de Machado Neto
gógico do curso de Direito. Não foi fácil. A UnB te em matéria de talentos. Roberto Lyra Filho, e de Roberto Lyra. Era um enorme aprendiza-
dos sonhos de Darcy inovava até na estrutura Waldir Pires, Antonio Machado Neto eram al- do”, lembra Pertence, formado em 1960 na
curricular. Para eliminar a distancia entre os guns dos mestres que, ao lado de Leal Nunes, Universidade Federal de Minas Gerais.
saberes, a universidade foi dividida em cursos- preparavam profissionais para ir além da letra Sua vida na UFMG foi muito diferente da
tronco: o aluno recebia dois anos de formação da lei. “O ensino jurídico na UnB inspirou-se passagem pela UnB. “Fiz minha graduação no
básica, escolhia seu futuro profissional e só no ideal de San Tiago Dantas com ênfase no tempo das cátedras. A UFMG e todo o ensino
então partia para os institutos e faculdades. raciocínio jurídico em detrimento da descri- jurídico na época seguia a tradição de Coimbra.
O Direito estava no mesmo curso-tronco de ção de normas jurídicas”, assinala o professor Havia imensa distância entre um catedrático e
Economia e Administração. Eram chamadas Marcio Iorio Aranha. o aluno. A gente não interrompia um professor,
as Ciências Sociais Aplicadas e funcionavam A história do curso de Direito é também a não havia espaço para dúvidas ou perguntas”,
no Instituto Central de Ciências, o “Minhocão”, história de uma nova metodologia de ensino. conta o jurista, hoje com 73 anos de idade e um
como brincou Victor em 1983, diante de uma Os fundadores da faculdade dividiram a grade currículo de rebeldia que começou no movimen-
emocionada platéia que, sem saber, assistia à horária em dois tipos de classe: as aulas maio- to estudantil quando ocupou a vice-presidência
derradeira visita do ex-chefe de gabinete de JK res e as aulas desdobradas. da União Nacional dos Estudantes, em 1959:
ao campus da UnB: “As aulas maiores eram dadas pelos titula-
res das disciplinas e duravam duas horas por “Eu vivi a UNE num período de plenitude
“Lecionei introdução à ciência política democrática. Militei exatamente no
e direito constitucional. Acumulei o semana em formato de grandes conferências. quinquênio JK, de 56 a 60, marcado por uma
exercício da magistratura com as tarefas Depois, nós, alunos da pós-graduação, des- grande tolerância política”.

61
“As aulas maiores eram A tolerância durou pouco nas ruas e nas O reitor interventor, Laerte Ramos, não se

dadas por grandes salas de aula. Com o golpe militar, a univer- constrangeu em enfrentar colegas de magis-

juristas e duravam duas


sidade ficou órfã de seus grandes mestres, de tério e no dia 11 de outubro de 1965 demitiu 15
seus rebeldes alunos e de suas transgressões professores, três deles do Direito. “Eu estava

horas por semana. acadêmicas. Em 9 de abril de 1964, a Polícia entre os 15. Foi uma tragédia para o país, para

Depois, nós, alunos


Militar de Minas Gerais invadiu o campus, a UnB e para a minha vida pessoal. Fui demi-
NPCLBCSCQRSB?LRCQCNPMDCQQMPCQ /S?RPMBG?Q tido na UnB e aposentado compulsoriamen-

da pós-graduação, depois, o reitor Anísio Teixeira perdeu o man- te no Ministério Público. A aposentadoria não

desdobrávamos o
dato. Darcy Ribeiro foi cassado. Victor Nunes dava para pagar o táxi até o Banco. Fiquei sem
também. Zeferino Vaz assumiu a reitoria pro emprego e com quatro filhos. Fui trabalhar no

conteúdo para grupos de tempore, dividido entre o respeito ao projeto escritório do Victor Nunes, onde aprendi que

20 estudantes. Era um
da instituição e o cumprimento aos desígnios antes de olhar a lei a gente deve olhar a vida”,
da caserna. Em 25 de agosto de 1965, Zeferino diz José Gerardo Grossi, um dos mais dispu-

enorme apredizado” renunciou e a Universidade de Brasília mergu-


lhou em sua mais profunda diáspora.
tados penalistas do país e hoje pai de um ca-
louro do Direito. “Meu filho está na linda fase
Sepúlveda Pertence da contestação”.
Os rebeldes de 65 foram expulsos da UnB
e com eles carregaram outros 223 professores
Roberto Fleury/UnB Agência
que pediram às contas em solidariedade aos
1 15 colegas banidos. “Nossa instituição nasceu
de homens como Roberto Lyra, na minha opi-
nião o cérebro jurídico mais criativo e erudito
dos quase 50 anos da UnB. Me orgulho de ser
seu seguidor”, resume o reitor José Geraldo
de Sousa Junior, discípulo de Lyra Filho, com
quem criou o Direito Achado na Rua, um mo-
delo teórico que defende que as leis são inven-
tadas pelos legisladores e reinventadas pela
ação inquieta da cidadania.
“Hoje, nosso curso acolhe as doutrinas
reformadoras e também as conservadoras.
Do diálogo entre elas, da convivência entre
professores acadêmicos e docentes vincula-
Cedoc/UnB
dos ao mercado, do respeito ao passado e do
2 debate sobre o futuro do direito, nascerá um
PROFESSORES, JURISTAS E CIDADÃOS: pensamento jurídico mais consistente”, apos-
ta a atual diretora da Faculdade, Ana Frasão.
Criador do Direito Achado na Rua, José Geraldo
conquista reitoria com apoio dos estudantes “Me formei aqui e sou professora aqui. É uma
enorme responsabilidade seguir os passos dos
Discípulo de Victor Nunes, ministro Pertence homens que há 50 anos mudaram o ensino”.
(esquerda) foi expulso da UnB pela ditadura

ANTÔNIO MACHADO NETO ROBERTO LYRA FILHO


Baiano, nasceu em 1930, em Salvador, Carioca, nasceu no Rio de Janeiro,
onde estudou Filosofia, Ciências Sociais em 1926. Herdou a profissão do pai,
e doutourou-se em Ciências Jurídicas. o famoso jurista Roberto Lyra. No ano
Em 1962, quando foi convidado para seguinte à formatura, assumiu o cargo
participar da criação do curso de Direito de professor-substituto de Direito
da UnB, já era um intelectual respeitado Penal na Faculdade do Rio de Janeiro.
por seus conhecimentos, atitudes políticas Em 1962, Lyra Filho transferiu-se para
e princípios humanistas. Machado Brasília e abandonou a advocacia para
Neto é responsável pela divulgação do se dedicar exclusivamente à carreira
egologismo no Brasil, teoria criada pelo acadêmica na UnB. Deu aulas de Direito
jurista argentino Carlos Cossio. O egologismo propõe que a Penal, Direito Processual Penal, Criminologia, Filosofia
aplicação do Direito deve levar em conta as subjetividades e Jurídica, Sociologia Jurídica e Direito Comparado até
o contexto em que elas são formadas. A teoria foi uma reação aposentar-se em 1984. Como Victor Nunes Leal e Antônio
ao positivismo defendido pelos alemães Hans Kelsen e Rudolf Machado Neto, Lyra Filho propunha uma interpretação
von Ihering. Em 1965, os militares afastaram Machado Neto menos dogmática das leis, com atenção às particularidades
de suas funções na UnB. A ditadura representava a negação dos sujeitos e aos direitos humanos. Na década de 70,
completa de suas ideias. Em 1977, aos 47 anos, o jurista fundou a Nova Escola Jurídica Brasileira, que defendia que
morreu em consequência de um infarto. o Direito não se reduzia à norma, nem a norma à sanção.

62
MEMÓRIAS Trechos do discurso de Victor Nunes Leal na

“É
cerimônia em que recebeu o título de professor
DO MESTRE emérito da UnB em 1983

com muita honra que recebo o *** capital, no dia da sua inauguração, 21 de abril
título de professor emérito da de 1960.
Universidade de Brasília, mas Minha vinculação à Universidade de Brasília ***
com fundado receio de não o data de antes da sua fundação, quando Darcy
ter merecido... Ribeiro, convidado por Cyro dos Anjos, que era A Universidade começou a funcionar em
subchefe da Casa Civil, se empenhava de cor- locais improvisados. Isso aumentou o tumul-
*** po e alma naquela cruzada. Israel Pinheiro, to da inauguração da Universidade, quando
presidente da Companhia Urbanizadora da tudo era mais ou menos improvisado e obje-
Nunca passei de um professor dedicado Nova Capital, receava os possíveis tumultos to de demoradas discussões, a começar pela
e sério, mas discreto e sem pretensões, pela de uma universidade funcionando em Brasília, estrutura universitária, onde predominava um
pouquíssima familiaridade com as línguas es- e Juscelino hesitava, embora ela estivesse dispositivo que dava plenos poderes ao rei-
trangeiras, pela carência de bibliografia e pela prevista no plano de Lúcio Costa. tor. Certa vez observei a Darcy, numa assem-
nenhuma freqüência a cursos de pós-gradua- bléia de professores, que era urgente implan-
ção, seja no exterior, seja no Brasil. *** tar a estrutura definitiva, para descentralizar
as atribuições e dividir as responsabilidades.
*** Oswaldo Trigueiro, grande conhecedor de Naquela situação, todas as medidas acerta-
história, em almoço comigo e Cyro dos Anjos, das seriam creditadas ao reitor, mas não tivés-
Evitei na minha tese de concurso temas lembrou um episódio que poderia influir no es- semos a menor dúvida de que todos os desa-
teóricos, procurando compreender com o má- pírito do presidente, o do epitáfio de Thomas certos seriam debitados a ele.
ximo de objetividade as características de um Jefferson, por ele mesmo escrito. No seu bre-
fenômeno da nossa realidade política – o coro- ve texto, o grande estadista omitiu ter sido se- ***
nelismo – em suas conexões com o funciona- cretário de Estado e presidente do seu país,
mento da federação brasileira, com ênfase es- fazendo constar somente que havia fundado /S?LBM ? 3LGTCPQGB?BC CLRPMS CK APG-
pecial no relacionamento dos municípios com a Universidade de Virgínia, além de ter escrito se, após a revolução de março de 1964, meu
os estados. Com esse enfoque, o trabalho, es- a declaração da independência dos EUA e a lei agouro se confirmava, porque Darcy foi o alvo
crito em 1948, se apresentava como pioneiro, de liberdade religiosa do seu estado. dos mais ferrenhos ataques, como encarnação
tendo sido recebido com benevolência aqui e Fui incumbido de levar esse estímulo ao da Universidade.
no estrangeiro. Coronelismo, enxada e voto foi Presidente Juscelino. Ele ouviu com muito in- Apesar das indefinições e incertezas dos pri-
o título da obra lançada ao público. teresse e compostura e comentou: “Será que meiros tempos da Universidade, toda ela respi-
o Clóvis (referia-se ao ministro da Educação) rava um clima de liberdade criativa e de vigor
pode ter esse projeto concluído antes da mu- junenil. Por isso mesmo, quando, pela própria
dança da capital?” Estávamos por volta de lógica da revolução, os critérios políticos e ide-
outubro de 1959. Respondi que tudo já tinha ológicos passaram a discriminar e afastar pro-
sido feito por Darcy Ribeiro, juntamente com fessores, tivemos a grande crise de 1965, na
um grupo muito competente de professores e qual se retiraram da Universidade cerca de 200
cientistas. E assim a mensagem que acompa- professores, num gesto de solidariedade con-
nhou o projeto da Universidade de Brasília foi tagiante, mas romântica, porque insensível ao
assinada pelo Presidente Juscelino na nova exame de soluções de compromisso.”

VICTOR NUNES LEAL


Mineiro de Carangola, se formou na Faculdade Nacional
de Direito, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em 1936. Em 1947, defendeu a tese que gerou o livro
Coronelismo, Enxada e Voto, um clássico sobre a influência
política das oligarquias. Assumiu a chefia da Casa Civil
entre 1956 e 1959, durante a presidência de Juscelino
Kubitschek. Nomeado ministro do Supremo Tribunal
Federal por JK, mudou-se para Brasília em 1960. Participou
da criação da UnB e lecionou na Faculdade de Direito
até 1965, quando foi afastado pelos militares. Voltou ao
Rio de Janeiro para exercer a advocacia. Em 1983, foi
homenageado pela UnB com o título de professor emérito.
Morreu em 1985, aos 71 anos.

63
50ANOS

64
Luiz Filipe Barcelos/UnB Agência

DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO ENSINO JURÍDICO

O
Cristiano Paixão *

que se aprende num curso de as e grupos em situações definidas. O bacharel


Direito? em direito precisa de treinamento adequado
Esta pergunta, bem menos sim- na arte de postular, contestar, opinar e decidir.
ples e óbvia do que pode parecer, Em outras palavras: ele precisa ser treinado
está na base da constante reformulação pela para interpretar textos e aplicar teorias em si-
qual vem passando a Faculdade de Direito da tuações concretas, que exigem decisão.
UnB, na graduação e na pós-graduação. Com essa descrição, já é possível visualizar
Ao contrário da imagem construída ao lon- alguns dos mais importantes desafios que se
go do tempo, o conhecimento do Direito não colocam ao curso de direito da UnB em sua ca- Se o direito é um saber prático,
pode ser estático, conservador e voltado ape- minhada em direção ao futuro. não há como abrir mão da
nas ao que ocorre nos tribunais. A sociedade
contemporânea é complexa, multifacetada.
Muitas vezes, esses desafios são analisados
sob uma perspectiva reducionista. É comum
dimensão profissionalizante.
Ela apresenta demandas e desafios ao direi- ver a discussão colocada como se fosse ne- Porém, é ilusório pensar
to – tanto na interpretação das normas quan- cessário tomar uma posição, ou seja, como se que um bom bacharel terá a
to na construção de teorias críticas sobre o fosse necessário decidir entre um caráter “teó- capacidade de compreender
próprio Direito.
Por definição, o mundo do Direito é multidis-
rico” (filosófico, interdisciplinar) ou uma feição
“técnica” (profissionalizante, dogmática) do
as normas jurídicas por
ciplinar. O fenômeno jurídico dialoga e intera- curso de direito, tanto na graduação como na meio de um treinamento
ge com as mais diversas esferas da sociedade: pós-graduação. E esse é um falso dilema. “profissionalizante”, que abra
política, economia, religião, cultura, e outras di- Se o direito é um saber prático, não há mão da perspectiva teórica
mensões da experiência social formulam per- como abrir mão da dimensão profissionalizan-
guntas, propõem desafios, estabelecem inter- te, de construção de habilidades efetivas para
locução e oferecem trocas com o Direito. a atuação em instituições (tribunais, casas le- A Faculdade de Direito da UnB, desde a
Um outro dado importante: não é possí- gislativas, órgãos de apoio à Administração modificação curricular realizada em 1996, vem
vel compreender de modo adequado o Direito Pública). Um bacharel em direito não pode re- trilhando o caminho da interdisciplinaridade.
apenas pelo estudo das normas, teorias e de- nunciar ao elemento prático de sua profissão. Na vanguarda dos cursos jurídicos brasilei-
cisões jurídicas. Exatamente em razão de seu Porém, é ilusório pensar que um bom bacharel ros, o currículo hoje adotado na FD parte do
caráter multidisciplinar, a experiência jurídica (o futuro advogado, juiz, promotor, defensor, pressuposto de que o bacharel em direito ne-
só pode ser objeto de aprendizado se as facul- delegado) terá a capacidade de compreender cessita, antes de tudo, de um saber humanís-
dades de direito souberem dialogar com todos as normas jurídicas por meio de um treina- tico, plural, indagador e reflexivo. As mudan-
os campos do conhecimento que informam e mento “profissionalizante”, que abra mão da ças curriculares ora em andamento deverão
iluminam o fenômeno jurídico. Assim, a filoso- perspectiva teórica. Se o jurista não souber ler, reafirmar essa perspectiva, aprofundando-a.
fia, a história, a sociologia, a antropologia, a ou seja, se não souber identificar os elemen- E, com isso, o curso de direito da UnB poderá,
filosofia da ciência e as humanidades em geral tos principais de um texto, confrontá-lo com olhando para o futuro, resgatar a chama fun-
devem constituir a base do aprendizado do di- outros textos, construir uma crítica fundamen- dadora da Universidade de Brasília, que envol-
reito. Todos os cursos jurídicos deveriam levar tada sobre os elementos textuais, jamais será ve, desde os tempos de Darcy Ribeiro e Anísio
isso em consideração. um competente aplicador da norma. E, para Teixeira, a inquietação, a rejeição ao confor-
Ao mesmo tempo, o direito é também uma obter essas habilidades, não há outra forma: mismo, a consciência da historicidade do sa-
atividade prática. Ele é voltado para o mundo é necessário pensar filosoficamente, historica- ber e, acima de tudo, a capacidade de pensar
concreto, para experiências vividas por pesso- mente, sociologicamente. os próprios pressupostos.

* Cristiano Paixão é professor da Faculdade de Direito da UnB e procurador da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª região.

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DE DISCÍ PULO PARA M ESTRE Alexandra Martins/UnB Agência

AS LIÇÕES DE AFETO DA
PROFESSORA NILZA BERTONI

A
Cristiano Alberto Muniz *

professora aposentada Nilza Eingenheer Bertoni atuou


com grande brilho como educadora e pesquisadora do
Departamento de Matemática e da Faculdade de Educação
da Universidade de Brasília, nos anos 70 a 90. Teve papel fun-
damental no desenvolvimento do currículo de licenciatura da matéria,
ao propor a reforma de sua estrutura, com a criação de novos espaços
formativos, tais como os laboratórios de Ensino e Projeto de Pesquisa.
Essa mudança favoreceu a inserção de jovens estudantes no campo
da investigação em Educação Matemática.
A professora Nilza exerceu influência determinante na formação Sua força e sua luz sempre
dos estudantes do curso de Pedagogia, instituindo os primeiros es- revelaram capacidade de
paços para a valorização da Educação Matemática na formação dos
futuros professores do Ensino Infantil e dos anos iniciais do Ensino
mobilizar, orientar e conduzir
Fundamental. Ela criou e coordenou o primeiro projeto de pesquisa em para o campo da investigação
Educação Matemática, financiado pelo SPEC/CAPES, que além de de- científica grupos de jovens com
senvolver novas metodologias de ensino, influenciou significativamente formação inicial em Matemática
na mudança curricular do sistema público.
Isso favoreceu a formação continuada de milhares de professores
na década de 80, por meio de projetos como o Programa GESTAR-
FUNDESCOLA-MEC, VEREDAS-SEEMG, PIE-UnB e, atualmente, no
desenvolvimento da Pedagogia à Distância, FE-UnB/Secretaria de
Educação do Acre. Em especial, inseriu jovens estudantes no campo Conviver trinta anos com Nilza Bertoni significou, portanto, de-
da investigação em Educação Matemática, muitos hoje com formação senvolver um olhar para a capacidade da criança e do jovem produ-
doutoral no campo da Educação, entre os quais me situo. zir Matemática dentro e fora da escola, responsável pela percepção
Mais que uma referência, Nilza Bertoni tem sido a baliza, tanto de que a formação do professor dessa disciplina requer o desenvolvi-
na minha formação continuada no campo da Educação quanto em mento de uma postura investigativa aguçada, provocativa, minuciosa,
minha atuação acadêmica, política e humana, em busca do sonho de auscultação cognitiva, que muitas vezes a Universidade não nos
de que todos aprendam matemática. Sua força e sua luz sempre re- favorece. Nilza sempre buscou uma profunda articulação do ensino-
velaram capacidade de mobilizar, orientar e conduzir para o campo pesquisa-extensão, tendo sido pioneira na iniciativa de trazer grupos
da investigação científica grupos de jovens com formação inicial em de crianças para a Universidade por meio da criação do Laboratório de
Matemática, desafiando-os na busca de novas concepções de currí- Ensino de Matemática.
culo para a Escola Básica. Nilza instaurou o complexo desafio de formar o educador matemáti-
Cada jovem que teve a oportunidade de ser discípulo de Nilza pode co, buscando instituir a Matemática como um instrumento de formação
descobrir que, para além das Matemáticas aprendidas na graduação – e desenvolvimento humano, considerando os determinantes sócio-po-
sejam Teoria dos Números, Análises, Álgebras ou Geometrias – há pro- líticos e culturais do seu tempo. Seu legado tem sido mais amplo que a
dução de conhecimentos nessa área fora dos bancos da academia. formação de educadores matemáticos dentro do campus, constituindo
Os jovens bertonianos puderam vislumbrar uma “Matemática” pro- uma vida acadêmica, profissional e pessoal de profundo engajamento
duzida pelas crianças (muitas delas consideradas com dificuldade de na formação continuada de professores da escola pública brasileira.
aprender) que nos permitiu um alargamento epistemológico ao reve- Sempre proativa no movimento nacional da Educacional Matemática,
lar processos de produção de conhecimento matemático infantil ain- foi a primeira presidente da SBEM. No trato da formação do educador
da não presente nos compêndios. Nilza nos revela que as produções matemático no Brasil, emerge naturalmente o nome de Nilza Bertoni
matemáticas dessas crianças permitem ao professor conceber novos vinculado ao protagonismo inovador da Universidade de Brasília (UnB),
conceitos e procedimentos que rompem as fronteiras de atuais no- desempenhando um importante papel na formação de quadros, tanto no
ções curriculares. campo da atuação profissional quanto no da investigação científica.

Cristiano Alberto Muniz é formado em Bacharelado e Licenciatura em Matemática pela UnB, doutor em Science de l´Educacion pela Université Paris Nord, docente da Faculdade da
Educação, atual presidente da Sociedade Brasileira de Educação Matemática e vice-diretor da FE-UnB.

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REPORTAGEM
SUA TESE RENDE UMA

A Revista de jornalismo científico e cultural da


UnB foi criada para divulgar a produção intelectual
realizada nos campi. Se você quer ver sua pesquisa
nas páginas da DARCY, mande um e-mail para
revistadarcy@unb.br

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