Anda di halaman 1dari 11

41

O VALOR JURÍDICO DO CUIDADO: FAMÍLIA, VIDA HUMANA E


TRANSINDIVIDUALIDADE

Jussara Maria Leal de Meirelles 1


RESUMO
O presente estudo tem como objeto delinear a valoração do cuidado no âmbito do Direito.
Para tanto, reconhece-se, de início que, embora tradicionalmente se encontre nas Ciências da
Saúde, é tema marcadamente interdisciplinar; daí porque seus fundamentos devem ser
buscados nos mais diversos ramos do conhecimento, tais como Antropologia, Filosofia,
História, Sociologia, Teologia e outros. Na seara jurídica, antes visto apenas no sentido
objetivo de atenção e cautela, o cuidado vem encontrando espaço adequado na esfera da
família, porquanto é o espaço prevalente para o exercício do afeto, da proteção e da
solidariedade, e passa a ser traduzido em direitos e deveres. Desse modo, são observadas
algumas disposições legislativas a respeito do cuidado a ser dirigido às crianças, aos
adolescentes e aos idosos, e acentua-se a presença do cuidado em decisões judiciais que lhe
atribuem cunho jurídico e, por via de consequência, sanções ao seu descumprimento.
Reconhece-se, por fim, que o cuidado não deve se limitar aos seres humanos nascidos, posto
que a vida humana é muito mais do que a representação que dela se tem na vida de cada um.
Nessa toada, faz-se a leitura do cuidado da vida humana sob uma perspectiva transindividual,
propondo-se que a vida humana seja protegida no presente, com vistas ao futuro e respeito ao
passado, de modo a abranger-lhe nas diversas gerações que a fizeram ser o que é, atualmente.
Palavras-chave: Cuidado. Direito. Família. Vida humana.

1
Doutora em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR. E-mail:
jumeirelles29@gmail.com.
42

INTRODUÇÃO: O CUIDADO COMO TEMA INTERDISCIPLINAR


Entende-se o cuidado como expressão da humanidade, uma vez que decorre do afeto.
“A capacidade de cuidar está enraizada na natureza humana” (WALDOW, 2006, p. 27).
Tradicionalmente e em seu cunho preliminar, a questão do cuidado deu-se na área da saúde.
Embora possa parecer até um tanto óbvio tomar-se o cuidado como inerente às funções da
saúde, é em particular na Enfermagem que se encontram as suas bases. Assim, muito embora
o cuidado deva estar presente em todas as Ciências da Saúde, é em particular na Enfermagem
que o seu conteúdo é mais rico, no sentido de se buscar fundamentos e também limites para o
adequado atendimento de pacientes hospitalizados ou mantidos em outras instituições
similares.
No entanto, visto o cuidado na sua acepção mais abrangente, ou seja, relacionado ao
ser humano em suas dimensões físicas, emocionais, sociais e espirituais, sem afastar as
influências culturais e ambientais, conclui-se que o tema é marcadamente interdisciplinar. A
título de meros exemplos (e sempre com o risco de se olvidar algum ramo do conhecimento
em que o cuidado seja tão ou mais importante), não somente é possível como necessário ver
se o cuidado na Pedagogia, na Assistência Social ou na Sociologia, como o seu entendimento
também encontra bases na Filosofia e na História. O cuidado apresenta marcante cunho
religioso e espiritual, porquanto é vincado na solidariedade que deve haver entre as pessoas;
aproxima-se o seu objeto, nesse sentido e em certa medida, de estudos da Teologia. A Ética
também oferece sérios subsídios, de modo a, por exemplo, desvincular a ideia do cuidado do
mero assistencialismo ou da dependência. Sim, porque cuidar não significa infantilizar o
outro; é reconhecer-se solidário e igual. É, sem dúvida, uma forma responsável de se
relacionar. E é exatamente nesse aspecto que emerge o cunho jurídico do cuidado, a traduzir
que o simples estar presente, o preocupar-se, a consideração, a valorização do outro, em suma,
o cuidado, está inserido no contexto do Direito, a delinear deveres e atribuir responsabilidades
a quem os descumprir.

O CUIDADO NO CONTEXTO DO DIREITO: A FAMÍLIA COMO ESPAÇO


PREVALENTE
Sob um aspecto mais vertical e de exatidão restrita do seu significado, o cuidado
sempre perpassou os fundamentos da responsabilização no Direito, servindo de base para a
Teoria da Responsabilidade Civil. Assim, o chamado dever de cuidado objetivo, nele
compreendidas a cautela, a atenção, ou a diligência que são vistas como necessárias para que
o agir de alguém não resulte em dano a outrem. Nesse sentido, mesmo que a atuação não
43

tenha sido intencional (dolosa), a inobservância do dever do cuidado caracteriza a conduta


como culposa, seja porque foi caracterizada imprudência (agir perigosamente), seja porque a
hipótese é de negligência (agir sem precaução), seja porque houve imperícia (agir sem
aptidão, sem habilidade específica).
Mais recentemente, o cuidado tem assumido papel preponderante no contexto jurídico
das relações interpessoais, não nesse sentido estrito de deveres de cautela ou de atenção, mas
no de afeto, proteção e solidariedade. Para bem se compreender esse papel significativo que o
cuidado assume no contexto do Direito, importa fazer referência ao reconhecimento
(doutrinário, jurisprudencial e, em certa medida, legislativo) de que o ser humano vem
construindo o mundo a partir de laços afetivos. E “esses laços tornam as pessoas e as
situações preciosas, portadoras de valor e infinitamente adoráveis” (BOFF, 2006, p. 19). E o
espaço no qual as relações de afeto parecem mais evidentes, sem dúvida, é o da família, razão
pela qual o cuidado assume papel fundamental no delineamento dos direitos e das obrigações
decorrentes das relações familiares, nas mais peculiares situações, traduzidas a partir dos
diversos modelos assumidos pela família contemporânea.
A funcionalização da família para o desenvolvimento da personalidade e das
potencialidades daqueles que a integram é, por certo, a evidência maior dos efeitos concretos
do princípio da solidariedade. A família surge, assim, como lugar privilegiado do exercício do
cuidado. Não se trata de idealização, como se a família contemporânea fosse mais fraterna e
solidária que a família de décadas passadas. Porém, não se pode negar que, por força do
princípio da solidariedade, foram criados mecanismos jurídicos que facilitam ou mesmo
condicionam ações solidárias (HAPNER e outros, 2008, p. 128).
Corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto pela Constituição
Federal no artigo 1º, inciso III2, o cuidado apresenta-se implícito em diversas normas de
proteção, tanto na esfera pública quanto na dimensão privada. Desse modo, vai refletir-se em
diferentes direitos e deveres, o que pode fazer-se traduzir o cuidado em valor objetivo a
determinar a titularidade dos direitos e a atribuição dos deveres, ou mesmo em significante
que assume, em dimensão específica, uma forte medida de valoração jurídica. Na primeira
hipótese, o cuidado é tido como valor jurídico; na segunda, o cuidado é tomado, para além de

2
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
44

outras valorações que recebe dos mais diferentes ramos do conhecimento, em sua valoração
jurídica e, nesse sentido, afirma-se o valor jurídico do cuidado.
De qualquer sorte, sem aqui se pretender discorrer sobre a questão de ser o cuidado um
valor jurídico objetivo a fundamentar direitos e obrigações, ou se o cuidado, para além das
mais diferentes e multidisciplinares funções, recebe, do Direito, uma valoração específica (o
valor jurídico do cuidado), certo é que “os significados do significante cuidado não enjaulam
saberes ou possibilidades para o direito; ao contrário, fazem emergir reavaliações
permanentes para os idosos, as crianças, os adolescentes e aqueles que estão para nascer, bem
como para o conceito plural de família, à luz da prevalência que atua como princípio inclusivo
do ser compartilhado na comunidade” (HAPNER e outros, 2008, p. 140).

Presença do cuidado na legislação brasileira


O ordenamento jurídico brasileiro apresenta a questão do cuidado em vários diplomas
legislativos, direta ou indiretamente. A título de exemplo, o artigo 226, § 7º da Constituição
Federal3 elevou à categoria de princípio constitucional a paternidade responsável,
determinando aos pais o dever jurídico de sustento, guarda e de educação da prole,
preconizado também pelo art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) 4.
Importa ressaltar a presença do cuidado nesse complexo de direitos e deveres de sustento,
guarda e educação, os quais não se extinguem com o divórcio e devem ser exercidos em
consonância com o princípio do melhor interesse da criança5.
O cuidado também vem claramente refletido no direito aos alimentos e no dever de
prestá-los. Essa reciprocidade, própria da essência do cuidado, está expressa no art. 229 da

3
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento
familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
4
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no
interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
5
O chamado melhor interesse da criança, como princípio geral, não se encontra expresso na Constituição Federal
ou no Estatuto da Criança e do Adolescente. Compreende-se ser ele inerente à doutrina da proteção integral -
Constituição Federal, art. 227, caput, e Lei nº 8069/90, art. 1º (FACHIN, 2008, p. 179; GAMA, 2003, p.584), da
qual decorre o princípio do melhor interesse como critério hermenêutico e como cláusula genérica que inspira os
direitos fundamentais assegurados pela Constituição às crianças e adolescentes (BARBOZA, 2000, p. 206). (CF,
art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Lei nº8069/90, art. 1º. Art. 1º
Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente). O princípio do melhor interesse da criança
já vem apresentando reflexos no direito de visita dos avós, em face da importância da manutenção dos vínculos;
nos critérios para estabelecer a adoção; na observância da vontade da criança e do adolescente no contexto da
saúde; e assim por diante.
45

Constituição Federal, o que traduzo traço solidário, derivado do afeto e da valorização do


outro, mas com a conotação marcadamente jurídica do dever: “Art. 229. Os pais têm o dever
de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e
amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
E no variado complexo das relações sociais que envolvem os idosos, o cuidado
apresenta-se igualmente em contexto jurídico. No artigo 230 da Constituição Federal, tem-se
a seguinte disposição: “Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as
pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e
bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
E seguindo o caminho protetivo previsto na Constituição, no sentido de dar a especial
atenção à condição peculiar na qual se encontram as pessoas idosas, a Lei nº 10741/2003,
denominada “Estatuto do Idoso”, apresenta disposições que procuram dar enfoque aos seus
direitos, inferindo-se “a validade jurídica que há de reinar nos interesses da pessoa idosa,
sobretudo e principalmente, ao se encontrar em situação de risco, pessoal ou social, ou seja,
necessitará de proteção especial quando estiver em desigualdade com os demais seres
humanos, desigualdade essa que decorra, justamente, do fator etário e suas consequências
fáticas” (RODRIGUES; STEFANO, 2008, p. 246).

O cuidado como fundamento de decisões judiciais


Duas decisões do Superior Tribunal de Justiça, cuja relatoria coube à Ministra Nancy
Andrighi, foram precursoras ao buscarem no cuidado um dos seus fundamentos. Na primeira,
foi reconhecido como legítimo o interesse do padrasto em postular a destituição do poder
familiar e obter a adoção da enteada, com base na socioafetividade e no cuidado (STJ, 3ª
Turma, REsp n° 1.106.637/SP, Julg.: 01/06/2010, DJe: 01/07/2010):

O alicerce, portanto, do pedido de adoção reside no estabelecimento de


relação afetiva mantida entre o padrasto e a criança, em decorrência de ter
formado verdadeira entidade familiar com a mulher e a adotanda, atualmente
composta também por filha comum do casal. Desse arranjo familiar, sobressai o
cuidado inerente aos cônjuges, em reciprocidade e em relação aos filhos, seja a
prole comum, seja ela oriunda de relacionamentos anteriores de cada
consorte, considerando a família como espaço para dar e receber cuidados.
Na segunda decisão, versando sobre um caso de abandono afetivo de um pai em
relação à filha, houve condenação no pagamento de indenização por dano moral e, dentre os
fundamentos, a ausência do cuidado, que no contexto assumiu status de obrigação legal,
dando resposta, dessa forma, ao empecilho tantas vezes postulado quando se trata de
46

abandono afetivo: o de que não se pode obrigar ninguém a amar (STJ, 3ª Turma, REsp n°
1.159.242/SP, Julg.: 24.04.2012, DJe: 10/05/2012):

Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar,
que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem
filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais,
situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no
universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado,
distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela
possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da
avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações
voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais
filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à
apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.
A partir das reflexões até aqui expostas, é possível conceber-se a importância do
cuidado nas relações familiares e, bem assim, a sua necessária valoração jurídica. Mas é
imprescindível examinar a questão, de forma mais detida, no sentido de perceber os dois lados
igualmente relevantes, ao se versar sobre o tema do cuidado: um remete ao papel daqueles
que têm o dever de cuidado (daí as considerações sobre o papel do Estado e a efetivação de
políticas públicas de cuidado em relação às crianças, aos adolescentes e aos idosos); e o outro
conduz àqueles de quem se deve cuidar. E é nesse ponto que, para além das preocupações
dirigidas às crianças, aos adolescentes e aos idosos, importa o olhar direcionado a um
momento anterior da vida, ou seja, ao cuidado que merecem aqueles que ainda irão nascer
(HAPNER e outros, 2008, p. 128-129).

VIDA HUMANA: TRANSINDIVIDUALIDADE E CUIDADO PERMANENTE


Trata-se de cuidar da vida humana. E por que cuidar da vida humana? Eis a ética que
determina o caráter axiológico do cuidado. Recorda Diogo Leite de Campos (2004, p. 365-
366) que o chamado “direito” à vida não pode ser considerado um direito no sentido de ser
direito a uma prestação, porque “a vida não é uma concessão da sociedade, uma prestação do
Estado” (p. 366). A vida é precedente à sociedade, a vida é anterior ao Estado. Por
conseguinte, ao Direito cabe o reconhecimento da vida que lhe antecede, amparando-a; não a
concede, não a outorga; seu papel é protegê-la como dado axiológico máximo e anterior que
é.Assim, o direito à vida seria melhor demonstrado pela expressão direito ao respeito da vida,
porque o único conteúdo que se pode extrair do chamado direito à vida é um direito de exigir
um comportamento negativo dos outros (CAMPOS, p. 366), no sentido de que todos devem
respeitar a vida de cada um, abstendo-se de qualquer atitude que atente contra a mesma.
47

Porque atentar contra a vida humana “produz um dano – a morte – superior a qualquer outro
no plano dos interesses da ordem jurídica” (CAMPOS, p. 367).
Em sua dimensão mais ampla, a vida humana transcende a mera titularidade
individual. Não se trata, aqui, do cuidado que deve ser dirigido sobre a minha vida ou em
relação à vida de outra(s) pessoa(s), mas sobre o cuidado que merece receber a vida humana.
E mesmo que se analise o cuidado a ser destinado à vida de uma única pessoa, ela própria e
em si mesma depende da vida de tantas outras que não é possível versar sobre a vida de um
único ser humano sem imaginá-lo num contexto muito mais amplo do que ele próprio, em si
mesmo, individualizado.
E sob uma perspectiva um tanto mais avançada, para além de todos aqueles que fazem
parte da vida de um único indivíduo considerado no momento atual, outros tantos já existiram
antes dele, numa imensa cadeia de gerações anteriores, que contribuíram não somente para ele
vir a ser quem é, mas em ótica muito mais ampliada, para toda a sociedade humana chegar ao
seu estado atual e a todos os demais indivíduos que a compõem. De modo prospectivo, outras
tantas vidas serão geradas, num ciclo incessante em que a vida humana assume essa sua
dimensão tão grandiosa. Por essa razão, a vida humana deve ser amparada sob uma
perspectiva que vá além da mera subjetividade.
Importa assinalar, no entanto, que sob a ótica individualista do período clássico do
Direito, que se arrastou por muito tempo a fundamentar o pensamento jurídico privado na
perspectiva da personalidade e da consequente titularidade de direitos (e na supremacia de
direitos patrimoniais, sublinhe-se), a vida haveria de corresponder a um titular, de se
materializar em alguém, ainda que por nascer. E, em tal medida, seria amparada, pela singela
razão dessa necessária correspondência.
É vincada em tais fundamentos que a ordem legislativa brasileira, ainda hoje,
reconhece e ampara a vida nascida, nas chamadas pessoas naturais.Embora não os reconheça
como pessoas, a lei civil põe a salvo a vida por nascer, em estado gestacional, referindo-se aos
interesses dos nascituros e tipificando criminalmente o abortamento. E assegura vantagem
patrimonial à chamada prole eventual, ou seja, aos seres humanos ainda não concebidos, mas
de cuja vida se pode pretender, em certa medida, cuidar, mediante atos de disposição de bens.
Técnicas artificiais de reprodução humana possibilitam a concepção extrauterina e, por
intermédio dela, a existência de embriões in vitro, o que veio a representar realidade
totalmente diversa da tradição que fundamentou a codificação civil brasileira. Assim, mesmo
o atual Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406, de 10.01.2002) só faz menção ligeira (art.
1597), ao estabelecer normas sobre presunção de paternidade. Não traz dispositivos sobre a
48

proteção da vida embrionária. Uma vez que os embriões não estão incluídos nas categorias
estabelecidas, passou ao largo da codificação o necessário amparo à vida que representam.
Mas há que se reconhecer a similitude originária de todos os seres humanos nascidos:
inegável que todos os que já nasceram foram embriões, no início do seu desenvolvimento.
Seguindo-se o mesmo raciocínio, os embriões hoje mantidos em laboratório podem
representar seres humanos que nascerão amanhã. Quantos terão sido concebidos mediante
técnicas artificiais de reprodução humana no futuro? Poderão ser alguns; ou muitos; ou todos.
O que não se pode afastar é a identidade natural entre todos eles, ou melhor, todos nós. E o
valor que todos representamos como vida humana, a despeito de qualquer individualização
categorizada pela lei.
Ao se buscar o devido amparo jurídico à vida humana, depara a doutrina especializada
com os embriões in vitro. E, então, torna-se evidente como problemática fundamental a
definição quanto à titularidade pela proteção à vida humana por eles representada. Isso é
resultado da categorização oriunda do Direito Clássico, que viu a proteção jurídica vinculada
à perfeita adequação às figuras estabelecidas. Esqueceu-se a doutrina e a legislação,
infelizmente, que por detrás da persona existe gente; e que, para além dos limites
estabelecidos pela lei formal, existe vida pulsante, real e digna de ser protegida, pelo que
representa em si mesma e não somente porque demonstra in vivoo que a lei descreve de modo
abstrato e distante6.
Logo, ao se versar sobre vida humana não se pode nem se deve individualizar,
simplesmente. Não é a vida deste ou daquele ser humano que se está buscando proteger; é a
vida de cada um e a de todos, na perspectiva maior de que cada indivíduo representa, não
somente a sua vida própria, mas uma parte da vida humana do planeta. E ao se atingir a vida
de alguém, está-se atingindo a vida humana na sua acepção mais abrangente, de tal forma que
não somente a vida da vítima individual é ceifada, mas a sociedade humana integralmente é
atingida.
Seguindo tal ordem de ideias, é possível afirmar que a proteção da vida humana
merece um olhar transindividual. Para além dos indivíduos, para além dos sujeitos individuais
que o Direito determina, a vida humana deve ser tratada pelo que representa em amplitude: é
o que habita a Terra, é o que se organiza em sociedade, e, portanto, é anterior ao Direito e por
isso, admite apenas e tão somente o seu reconhecimento e amparo. E, na mesma perspectiva,

6
Traçando-se uma espécie de paralelo tem-se, de um lado, o que se pode denominar pessoa codificada ou sujeito
virtual; e, do lado oposto, há o sujeito real, que corresponde à pessoa verdadeiramente humana, vista sob o
prisma de sua própria natureza e dignidade, a pessoa gente (MEIRELLES, 1998, p. 91).
49

há que se concluir ser difusa a titularidade referente à proteção dos seres humanos
embrionários mantidos em laboratório7. Não se há de proteger os embriões humanos porque
são quase nascituros, ou quase pessoas, ou sujeitos de direitos em potencial. Não se há de
protegê-los porque talvez possam representar direitos daqueles que os conceberam. Há que se
protegê-los por eles próprios.
E ao se cuidar da vida embrionária, duas ordens de ponderações se impõem:
a) o que
fundamenta o cuidado é a finalidade de proteger os embriões (para que protegê-los ou
para que destruí-los?);
b) o cuidado aos embriões humanos deve se fundar no motivo
que conduz a que se pense em protegê-los (ou em destruí-los?).
Ao se pensar na finalidade (para quê) sem dúvida, já se está qualificando os embriões
humanos como objeto de reprodução, ou de estudo, de pesquisa, mas sempre a serviço de
interesses que vão para além deles próprios: para que servem os embriões de laboratório? Para
se transformar em pessoas, fincando-se em determinadas famílias que podem ser as dos seus
ascendentes genéticos ou não... Ou servem para a pesquisa, para a busca da cura de outras
pessoas, acometidas de diversos males para os quais a ciência ainda está procurando
soluções? Para que eles servem? Para que eles não servem? De qualquer sorte, reside aí uma
qualificação do embrião humano como ser útil, com finalidade determinada ou determinável
por quem queira, possa e vá utilizá-lo. Sua essência é medida pela sua utilidade (será viável
ou não, para a pesquisa?); sua importância é maior ou menor conforme sua destinação
finalística (vai para a pesquisa ou vai para alguma família que o queira?); seu valor é
econômico (quem é que vai pagar para mantê-lo no laboratório?). E assim por diante.
Mas se a reflexão diz respeito ao motivo que leva a se buscar o cuidado sobre os
embriões humanos (por que protegê-los?), o questionamento assume outros e diversos
contornos. Os embriões humanos mantidos em laboratório merecem proteção jurídica porque
eles têm a mesma identidade originária que os demais humanos. Ao protegê-los, está-se
protegendo a vida humana representada em laboratório, que pode representar as gerações
futuras. Enfim, o cuidado destinado aos embriões humanos vincula-se à vida humana que
representam e que merece ser protegida.

CONCLUSÕES

7
No mesmo sentido, Sergio MOCCIA (1990, p. 875).
50

O cuidado, embora tradicionalmente se encontre nas ciências da saúde, é tema


marcadamente interdisciplinar. Como expressão da humanidade, opera em searas diversas,
tais como pedagogia e serviço social, e também busca fundamentos em variados ramos do
conhecimento humano, tais como antropologia, filosofia, história, sociologia, teologia, etc..
No sentido jurídico, antes visto apenas no sentido objetivo de atenção e cautela, o
cuidado vem encontrando espaço adequado na esfera da família, porquanto nesse âmbito é
possível verificar-se o exercício do afeto, da proteção e da solidariedade, bem como traduzir-
se em direitos e deveres dele decorrentes. Nessa toada é que são observadas algumas
disposições legislativas a respeito do cuidado a ser dirigido às crianças, aos adolescentes e aos
idosos, por exemplo. E, mais acentuadamente, verifica-se a presença do cuidado em decisões
judiciais que lhe atribuem cunho jurídico e, por conseguinte, sanções ao seu descumprimento.
Mas o cuidado não deve se limitar aos seres humanos nascidos, posto que a vida
humana é muito mais do que a representação que dela se tem na vida de cada um. Categorizar
o direito à vida como um direito subjetivo em relação a um determinado titular reconhecido
pela ordem jurídica como tal é limitar o cuidado com a vida humana; e nem sempre é possível
fixar a vida em categorias jurídicas, a exemplo do que ocorre com os embriões de laboratório.
Mas também não é necessário todo um esforço para sempre adequar a vida humana a alguém
que esteja categorizado como a lei dispõe e pretende. A vida humana merece cuidados que
ultrapassem a mera categorização, que limita e reduz. O cuidar da vida humana faz com que
ela deva ser protegida no presente, com o olhar lançado ao seu futuro, e também em respeito
ao passado, enfim, a todas as gerações que tornaram possível ser a vida o que hoje é.

REFERÊNCIAS

BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. In:


A família na travessia do milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família.
Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.). Belo Horizonte, IBDFAM: OAB-MG: Del Rey, 2000, p.
201-213.

BOFF, Leonardo. A força da ternura. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina,
2004.

FACHIN, Luiz Edson. O princípio do melhor interesse da criança e a suspensão da extradição


de genitora de nacionalidade estrangeira. In: Questões de Direito Civil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 167-187.
51

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações


parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução
assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

HAPNER, Adriana Antunes Maciel Aranha e outros. O princípio da prevalência da família: a


permanência do cuidar. In: OLIVEIRA, Guilherme de; PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O
cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 123-140.

MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito
virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos
do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 87-114.

_____________________________. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica.


Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

MOCCIA, Sergio. Bioetica o “biodiritto”: gli interventi dell’uomo sulla vita in fieri di fronte
al sistema penale dello stato social e di diritto. Rivista Italiana di Diritto e Procedura
Penale, Milano, a. 33, f. 3, p. 863-884, luglio-sett. 1990.

RODRIGUES, Oswaldo Peregrina; STEFANO, Isa Gabriela de Almeida. O idoso e a


dignidade da pessoa humana. In: OLIVEIRA, Guilherme de; PEREIRA, Tânia da Silva
(Coord.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 241-261.

WALDOW, Vera Regina. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis:


Vozes, 2006.

Anda mungkin juga menyukai