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Doutora em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR. E-mail:
jumeirelles29@gmail.com.
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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
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outras valorações que recebe dos mais diferentes ramos do conhecimento, em sua valoração
jurídica e, nesse sentido, afirma-se o valor jurídico do cuidado.
De qualquer sorte, sem aqui se pretender discorrer sobre a questão de ser o cuidado um
valor jurídico objetivo a fundamentar direitos e obrigações, ou se o cuidado, para além das
mais diferentes e multidisciplinares funções, recebe, do Direito, uma valoração específica (o
valor jurídico do cuidado), certo é que “os significados do significante cuidado não enjaulam
saberes ou possibilidades para o direito; ao contrário, fazem emergir reavaliações
permanentes para os idosos, as crianças, os adolescentes e aqueles que estão para nascer, bem
como para o conceito plural de família, à luz da prevalência que atua como princípio inclusivo
do ser compartilhado na comunidade” (HAPNER e outros, 2008, p. 140).
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Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento
familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
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Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no
interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
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O chamado melhor interesse da criança, como princípio geral, não se encontra expresso na Constituição Federal
ou no Estatuto da Criança e do Adolescente. Compreende-se ser ele inerente à doutrina da proteção integral -
Constituição Federal, art. 227, caput, e Lei nº 8069/90, art. 1º (FACHIN, 2008, p. 179; GAMA, 2003, p.584), da
qual decorre o princípio do melhor interesse como critério hermenêutico e como cláusula genérica que inspira os
direitos fundamentais assegurados pela Constituição às crianças e adolescentes (BARBOZA, 2000, p. 206). (CF,
art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Lei nº8069/90, art. 1º. Art. 1º
Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente). O princípio do melhor interesse da criança
já vem apresentando reflexos no direito de visita dos avós, em face da importância da manutenção dos vínculos;
nos critérios para estabelecer a adoção; na observância da vontade da criança e do adolescente no contexto da
saúde; e assim por diante.
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abandono afetivo: o de que não se pode obrigar ninguém a amar (STJ, 3ª Turma, REsp n°
1.159.242/SP, Julg.: 24.04.2012, DJe: 10/05/2012):
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar,
que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem
filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais,
situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no
universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado,
distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela
possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da
avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações
voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais
filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à
apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.
A partir das reflexões até aqui expostas, é possível conceber-se a importância do
cuidado nas relações familiares e, bem assim, a sua necessária valoração jurídica. Mas é
imprescindível examinar a questão, de forma mais detida, no sentido de perceber os dois lados
igualmente relevantes, ao se versar sobre o tema do cuidado: um remete ao papel daqueles
que têm o dever de cuidado (daí as considerações sobre o papel do Estado e a efetivação de
políticas públicas de cuidado em relação às crianças, aos adolescentes e aos idosos); e o outro
conduz àqueles de quem se deve cuidar. E é nesse ponto que, para além das preocupações
dirigidas às crianças, aos adolescentes e aos idosos, importa o olhar direcionado a um
momento anterior da vida, ou seja, ao cuidado que merecem aqueles que ainda irão nascer
(HAPNER e outros, 2008, p. 128-129).
Porque atentar contra a vida humana “produz um dano – a morte – superior a qualquer outro
no plano dos interesses da ordem jurídica” (CAMPOS, p. 367).
Em sua dimensão mais ampla, a vida humana transcende a mera titularidade
individual. Não se trata, aqui, do cuidado que deve ser dirigido sobre a minha vida ou em
relação à vida de outra(s) pessoa(s), mas sobre o cuidado que merece receber a vida humana.
E mesmo que se analise o cuidado a ser destinado à vida de uma única pessoa, ela própria e
em si mesma depende da vida de tantas outras que não é possível versar sobre a vida de um
único ser humano sem imaginá-lo num contexto muito mais amplo do que ele próprio, em si
mesmo, individualizado.
E sob uma perspectiva um tanto mais avançada, para além de todos aqueles que fazem
parte da vida de um único indivíduo considerado no momento atual, outros tantos já existiram
antes dele, numa imensa cadeia de gerações anteriores, que contribuíram não somente para ele
vir a ser quem é, mas em ótica muito mais ampliada, para toda a sociedade humana chegar ao
seu estado atual e a todos os demais indivíduos que a compõem. De modo prospectivo, outras
tantas vidas serão geradas, num ciclo incessante em que a vida humana assume essa sua
dimensão tão grandiosa. Por essa razão, a vida humana deve ser amparada sob uma
perspectiva que vá além da mera subjetividade.
Importa assinalar, no entanto, que sob a ótica individualista do período clássico do
Direito, que se arrastou por muito tempo a fundamentar o pensamento jurídico privado na
perspectiva da personalidade e da consequente titularidade de direitos (e na supremacia de
direitos patrimoniais, sublinhe-se), a vida haveria de corresponder a um titular, de se
materializar em alguém, ainda que por nascer. E, em tal medida, seria amparada, pela singela
razão dessa necessária correspondência.
É vincada em tais fundamentos que a ordem legislativa brasileira, ainda hoje,
reconhece e ampara a vida nascida, nas chamadas pessoas naturais.Embora não os reconheça
como pessoas, a lei civil põe a salvo a vida por nascer, em estado gestacional, referindo-se aos
interesses dos nascituros e tipificando criminalmente o abortamento. E assegura vantagem
patrimonial à chamada prole eventual, ou seja, aos seres humanos ainda não concebidos, mas
de cuja vida se pode pretender, em certa medida, cuidar, mediante atos de disposição de bens.
Técnicas artificiais de reprodução humana possibilitam a concepção extrauterina e, por
intermédio dela, a existência de embriões in vitro, o que veio a representar realidade
totalmente diversa da tradição que fundamentou a codificação civil brasileira. Assim, mesmo
o atual Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406, de 10.01.2002) só faz menção ligeira (art.
1597), ao estabelecer normas sobre presunção de paternidade. Não traz dispositivos sobre a
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proteção da vida embrionária. Uma vez que os embriões não estão incluídos nas categorias
estabelecidas, passou ao largo da codificação o necessário amparo à vida que representam.
Mas há que se reconhecer a similitude originária de todos os seres humanos nascidos:
inegável que todos os que já nasceram foram embriões, no início do seu desenvolvimento.
Seguindo-se o mesmo raciocínio, os embriões hoje mantidos em laboratório podem
representar seres humanos que nascerão amanhã. Quantos terão sido concebidos mediante
técnicas artificiais de reprodução humana no futuro? Poderão ser alguns; ou muitos; ou todos.
O que não se pode afastar é a identidade natural entre todos eles, ou melhor, todos nós. E o
valor que todos representamos como vida humana, a despeito de qualquer individualização
categorizada pela lei.
Ao se buscar o devido amparo jurídico à vida humana, depara a doutrina especializada
com os embriões in vitro. E, então, torna-se evidente como problemática fundamental a
definição quanto à titularidade pela proteção à vida humana por eles representada. Isso é
resultado da categorização oriunda do Direito Clássico, que viu a proteção jurídica vinculada
à perfeita adequação às figuras estabelecidas. Esqueceu-se a doutrina e a legislação,
infelizmente, que por detrás da persona existe gente; e que, para além dos limites
estabelecidos pela lei formal, existe vida pulsante, real e digna de ser protegida, pelo que
representa em si mesma e não somente porque demonstra in vivoo que a lei descreve de modo
abstrato e distante6.
Logo, ao se versar sobre vida humana não se pode nem se deve individualizar,
simplesmente. Não é a vida deste ou daquele ser humano que se está buscando proteger; é a
vida de cada um e a de todos, na perspectiva maior de que cada indivíduo representa, não
somente a sua vida própria, mas uma parte da vida humana do planeta. E ao se atingir a vida
de alguém, está-se atingindo a vida humana na sua acepção mais abrangente, de tal forma que
não somente a vida da vítima individual é ceifada, mas a sociedade humana integralmente é
atingida.
Seguindo tal ordem de ideias, é possível afirmar que a proteção da vida humana
merece um olhar transindividual. Para além dos indivíduos, para além dos sujeitos individuais
que o Direito determina, a vida humana deve ser tratada pelo que representa em amplitude: é
o que habita a Terra, é o que se organiza em sociedade, e, portanto, é anterior ao Direito e por
isso, admite apenas e tão somente o seu reconhecimento e amparo. E, na mesma perspectiva,
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Traçando-se uma espécie de paralelo tem-se, de um lado, o que se pode denominar pessoa codificada ou sujeito
virtual; e, do lado oposto, há o sujeito real, que corresponde à pessoa verdadeiramente humana, vista sob o
prisma de sua própria natureza e dignidade, a pessoa gente (MEIRELLES, 1998, p. 91).
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há que se concluir ser difusa a titularidade referente à proteção dos seres humanos
embrionários mantidos em laboratório7. Não se há de proteger os embriões humanos porque
são quase nascituros, ou quase pessoas, ou sujeitos de direitos em potencial. Não se há de
protegê-los porque talvez possam representar direitos daqueles que os conceberam. Há que se
protegê-los por eles próprios.
E ao se cuidar da vida embrionária, duas ordens de ponderações se impõem:
a) o que
fundamenta o cuidado é a finalidade de proteger os embriões (para que protegê-los ou
para que destruí-los?);
b) o cuidado aos embriões humanos deve se fundar no motivo
que conduz a que se pense em protegê-los (ou em destruí-los?).
Ao se pensar na finalidade (para quê) sem dúvida, já se está qualificando os embriões
humanos como objeto de reprodução, ou de estudo, de pesquisa, mas sempre a serviço de
interesses que vão para além deles próprios: para que servem os embriões de laboratório? Para
se transformar em pessoas, fincando-se em determinadas famílias que podem ser as dos seus
ascendentes genéticos ou não... Ou servem para a pesquisa, para a busca da cura de outras
pessoas, acometidas de diversos males para os quais a ciência ainda está procurando
soluções? Para que eles servem? Para que eles não servem? De qualquer sorte, reside aí uma
qualificação do embrião humano como ser útil, com finalidade determinada ou determinável
por quem queira, possa e vá utilizá-lo. Sua essência é medida pela sua utilidade (será viável
ou não, para a pesquisa?); sua importância é maior ou menor conforme sua destinação
finalística (vai para a pesquisa ou vai para alguma família que o queira?); seu valor é
econômico (quem é que vai pagar para mantê-lo no laboratório?). E assim por diante.
Mas se a reflexão diz respeito ao motivo que leva a se buscar o cuidado sobre os
embriões humanos (por que protegê-los?), o questionamento assume outros e diversos
contornos. Os embriões humanos mantidos em laboratório merecem proteção jurídica porque
eles têm a mesma identidade originária que os demais humanos. Ao protegê-los, está-se
protegendo a vida humana representada em laboratório, que pode representar as gerações
futuras. Enfim, o cuidado destinado aos embriões humanos vincula-se à vida humana que
representam e que merece ser protegida.
CONCLUSÕES
7
No mesmo sentido, Sergio MOCCIA (1990, p. 875).
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REFERÊNCIAS
CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina,
2004.
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito
virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos
do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 87-114.
MOCCIA, Sergio. Bioetica o “biodiritto”: gli interventi dell’uomo sulla vita in fieri di fronte
al sistema penale dello stato social e di diritto. Rivista Italiana di Diritto e Procedura
Penale, Milano, a. 33, f. 3, p. 863-884, luglio-sett. 1990.