Contemporânea
Celso dos S. Vasconcellos1
1.Prof. Celso dos Santos Vasconcellos é Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e
Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, pesquisador, escritor, conferencista,
professor convidado de cursos de graduação e pós-graduação, consultor de secretarias de
educação, responsável pelo Libertad - Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica.
celsovasconcellos@uol.com.br www.celsovasconcellos.com.br
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dizemos: caminheiro, existe um caminho projetado, mas o caminho mesmo se
faz ao caminhar.2
O currículo é a espinha dorsal da escola, seu elemento estruturante. Só
que não existe currículo “em si”: existem sujeitos históricos que são seus
agentes, seus construtores e realizadores, nas condições concretas da escola e
da sociedade.
2.Caminante no hay camino, se hace camino al andar (Antonio Machado, no poema Cantares).
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pessoal3. Se isto é importante para superar a alienação do trabalho em qualquer
profissão, muito mais no magistério, uma vez que a pessoa do professor interfere
muito, pela especificidade de nosso trabalho que é a formação humana (com
efeito, seria tudo muito mais simples se nossa tarefa fosse de meros
transmissores de informações). O mesmo vale em relação à atividade discente:
o encontro do currículo escolar com o currículo pessoal.
De um modo geral, professores e alunos passam parte significativa de
suas vidas na escola. Independentemente da Proposta Curricular, os alunos
estabelecem vínculos entre si, criam formas de relacionamento. Alunos e
professores buscam estratégias de sobrevivência em relação às exigências da
escola, desenvolvem suas culturas. Nas escolas inovadoras, estes elementos
(convivência, conflitos, descobertas, afetos, relacionamentos, enfim, formas de
ser), ao invés de ficarem à margem, são estruturantes do currículo. “Perde-se”,
investe-se muito tempo nisto. Os educadores são convidados a reverem sua
cultura pessoal e profissional. Os alunos são instigados a expressarem suas
opiniões (ao invés de reproduzirem o que acham que a escola espera). O
currículo efetivamente está organizado para contemplar a pessoa, a partir de seu
cotidiano. Centralidade na pessoa implica reconhecer a centralidade da vida, na
sua totalidade, isto é, tanto em termos de memória/história, quanto de
futuro/projeto, porém sobretudo como presente/cotidiano. É certo que há tensão
entre o passado e o futuro (Arendt, 1997), mas a vida é no presente. Nesta
medida, o cotidiano é tema constante nas atividades nos espaços de ensino-
aprendizagem, nos projetos, nas assembleias de classe, nas reuniões semanais
dos professores, no trabalho com representantes de classe, nas assembleias da
escola, no conselho de escola, nas reuniões de pais. Normalmente, nos
currículos escolares há uma grande ênfase ao passado (especialmente no que
diz respeito à realidade mais ampla: os saberes historicamente acumulados), e
alguma ênfase ao futuro (projeto de sociedade e projeto de vida, ou pelo menos,
projeto de continuidade dos estudos ou profissional do aluno), mas pouca e
problemática ênfase ao presente, já que costuma estar marcada pelos
mecanismos disciplinares de caráter autoritário. Enquanto o aluno se prepara
para o futuro, submetido aos saberes do passado, o sonho de alguns docentes
parece ser o da assepsia do presente. Quando se propõe a tratar do cotidiano,
normalmente a atenção da escola se volta também para a realidade mais ampla
(“estar atualizado”, “saber o que se passa no mundo”); em alguns casos, ao se
abrir espaço para o indivíduo, cai-se no presentismo, no enfoque narcisista
(Lasch, 1983). Mas, e o cotidiano concreto dos alunos? Não deveria ser uma
temática constantemente valorizada? Que espaço questões como respeito,
liberdade, sentimentos, relacionamentos, sentido de vida, projeto de vida,
amizade, dramas pessoais e familiares, condições de existência (alimentação,
sono, moradia, transporte, etc.), sexualidade, tem ocupado no currículo? (que
fique claro: não de forma pasteurizada em “temas transversais”, mas
criticamente, como tema do diálogo, da relação humana autêntica). É por isto
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que um dos critérios que apontamos para uma escola de qualidade democrática
é a alegria crítica (docta gaudium): ela nos remete necessariamente ao aqui e
agora, ao cotidiano.
Será que uma das causas fundamentais da não-aprendizagem em muitas
escolas não é justamente o fato de considerarmos o aluno apenas do ponto de
vista acadêmico e não o todo de sua pessoa? Fica-se tentando “motivar” os
alunos (e professores) em cima de uma Proposta Curricular estruturalmente
equivocada e, como não se consegue, aciona-se toda uma “maquinaria escolar”
de enquadramento no esquema (Imprinting Escolar Instrucionista). É muito
interessante este fato, pois segundo a economia curricular instrucionista,
preocupar-se com as questões da pessoa seria desperdício de tempo, por deixar
de lado os saberes curriculares do programa. No entanto, a prática releva o
contrário: este efetivo cuidado com a pessoa faz com que o aluno domine os
saberes curriculares clássicos com mais facilidade e profundidade, uma vez que
tal cuidado favorece o vínculo do aluno com o professor e os colegas, diminuiu
sua resistência, possibilita a mobilização para a aprendizagem, e os conteúdos
passam a fazer sentido.
Sem negar o valor da teoria e dos métodos, até porque estamos
profundamente envolvidos nisto, sabemos que não são eles isoladamente que
fazem diferença. Verificamos isto, por exemplo, nas práticas de alfabetização:
algumas professoras, pautando-se na cartilha mais tradicional, conseguem que
seus alunos aprendam; outras, de maneira fria e preconceituosa, utilizam as
mais modernas teorias simplesmente para justificar a não-aprendizagem dos
meninos e meninas. Para que não paire dúvidas: como o sujeito sempre escolhe,
e como escolhe dentro daquilo que está disponível no meio, é evidente que cabe
todo o esforço para disponibilizar ao maior número possível de professores as
conquistas das Ciências da Educação; só estamos alertando para a não
mistificação da teoria pedagógica. Além disto, não podemos pensar a tremenda
responsabilidade da educação escolar em termos casuísticos, e sim como
políticas públicas. Há uma tensão entre a dedicação pessoal e a necessidade de
um método universal, que Pestalozzi (1746-1827) já havia identificado
(Hameline, 2004: 74). Sintetizando, a formação do professor deve contemplar
não só aspectos técnicos e políticos, mas também —e sobretudo— humanos.
Nossa condição de seres contraditórios, sapiens/demens, coloca um
desafio da maior importância que é aprender a lidar com nossa desumanidade,
com o homem velho que, quando menos esperamos, volta a se manifestar
(ciúmes, inveja, sede de poder, competição, omissão, comodismo, medo da
mudança, traição, oportunismo, preconceito, presunção, autossuficiência,
mentira, intolerância, reatividade). Humanização e desumanização, dentro da
história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens
como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão (Freire, 1981b: 30).
Uma das piores limitações do ser humano é o sentir-se superior, julgar-se melhor
que os outros, achar-se pronto, como se nada mais tivesse a aprender, apenas
a ensinar, em função “do elevado nível a que chegou”. É o contraponto da
humildade (do latim humìlis 'que permanece na terra, não se eleva da terra;
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humilde, baixo', que vem de humus, terra). Ser humilde não significa abrir mão
da autoestima, nem dos seus direitos. Humildade é verdade, é consciência de
suas limitações, mas também de seu valor, de sua dignidade.
Afirma-se muito que não se pode fazer educação sem uma visão de
homem e de sociedade. Talvez os docentes repitam este discurso por fazer parte
do novo senso comum pedagógico, mas tendo perdido sua dimensão mais
profunda. Queremos recuperar a centralidade do humano na educação. A
tomada de consciência por parte do professor é importante para que, pelo menos
ali, no seu campo de trabalho —o que não é de forma alguma pouco—, domine
mais o que está fazendo.
Quando falamos da centralidade da pessoa, não nos referimos apenas à
pessoa do educando, correndo, desta forma, o risco de cair nos equívocos
escolanovistas, de fechamento em torno do umbigo dos alunos, através de
enfoques psicologizantes, redutores, de negligência com a dimensão social e
política da educação. A rigor, falar da pessoa como centro é ter como referência
todas as pessoas, em especial, certamente, os alunos e professores, mas
também os demais educadores da escola (do controlador de acesso à direção),
assim como dos pais, dos membros da comunidade e dos membros da
sociedade como um todo (do indivíduo ao ser humano genérico - Marx, 1989b).
4.Como esperar que um professor respeite seu aluno, esteja sinceramente interessado em suas
manifestações, depois da 10ª ou 12ª aula do dia?!
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são arrogantes, insensíveis, prepotentes, vaidosos, autoritários. Por outro lado,
a formação acadêmica do docente, como em qualquer outra área profissional,
em especial pelos contatos que possibilita com outros professores —ou futuros
professores— e com os grandes educadores, através de suas obras, é um
privilegiado espaço de construção humana. Este é outro aspecto que se destaca
nas escolas que fazem diferença: um forte investimento na formação do
professor.
O currículo é feito por sujeitos concretos, marcados, portanto, por seus
tempos de vida, identidades e trajetórias, gênero, orientação sexual, etnia,
classe social, religião, cultura. Uma Proposta Curricular, seja dos órgãos
dirigentes ou da própria escola, é sempre um elemento inspirador, provocador,
orientador; mas não garante por si (não tem como garantir) a realização. Para
sua concretização, há sempre a necessidade da mediação humana qualificada.
O currículo escolar, enquanto construção humana, depende substancialmente
dos sujeitos em relação. Não é algo autônomo, que teria vida própria, ao
contrário do que pensam aqueles que acreditam que, se se chegasse a uma
“boa teoria curricular”, bastaria aplicá-la na escola (provavelmente através de
leis, normas, portarias, parâmetros, materiais didáticos) independentemente das
pessoas e das estruturas, como quando se troca a peça de uma máquina: não
importa os afetos e opções de quem a trocou, se a peça é a adequada, a
máquina passa a funcionar adequadamente (aliás, existem editores de livros
didáticos ou de apostilas padronizadas que estão em busca do material didático
que teria eficácia por si mesmo; em outros termos, “à prova de professor”...). Não
estamos negando o valor das teorias e dispositivos pedagógicos e curriculares,
só que para que venham a se concretizar, passam pela mediação fundamental
do sujeito, do coletivo de educadores e do coletivo escolar e institucional como
um todo.
É preciso pensar as pessoas e as estruturas, o professor (e os alunos) e
os dispositivos pedagógicos. É fundamental romper com a visão dicotômica: não
se trata de optar por uma coisa ou outra, mas sim de articular uma coisa e outra
(e ainda aquilo vai emergir no processo). O que constitui o movimento dialético
é coexistência de dois lados contraditórios, sua luta e sua fusão numa categoria
nova (Marx, 1989c: 109). Como diz Pedro Casaldáliga: A verdadeira revolução
definitivamente transformadora da sociedade humana é tanto psicológica como
sócio-político-econômica. Devemos transformar simultaneamente —sublinhem o
advérbio para evitar escapismos dualistas— tanto as pessoas como as
estruturas (1988: 38). Há um deslocamento: pessoas ou estruturas pessoas
e estruturas.5 A centralidade, certamente, é das pessoas que são as criadoras e
gestoras das estruturas, mas não podemos esquecer que as pessoas são
plasmadas no/pelo contexto em que estão inseridas. É preciso desejo,
5.No contexto do currículo, quando pensamos em estruturas, a primeira ideia que nos vem é a
estrutura pedagógica. Não podemos deixar de considerar também a estrutura social. Os casos
das escolas de Cuba e da região de Reggio Emilia, na Itália, são bem ilustrativos: muito da
qualidade da educação se deve à forma como a sociedade está organizada ou ao quanto se
envolve com a escola.
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compromisso, caráter, superação de preconceitos, crença na humanidade (ser
genérico) e no aluno (ser singular). O desejo e o compromisso, todavia, precisam
acionar a criatividade das pessoas e se desdobrar em novas mediações, novos
instrumentos, novas tecnologias, novos dispositivos pedagógicos, que dão
suporte para o desejo e compromisso, se não quisermos enveredar por uma
concepção idealista, voluntarista. Os próprios dispositivos, por sua vez, deverão
ser constantemente avaliados para ver se estão voltados para as pessoas,
coerentes com a intencionalidade maior do projeto, gerando sucessivos
aperfeiçoamentos das práticas. As pessoas são o ponto de partida (criadoras do
currículo), as que fazem a travessia (mediação e trajetória) e o ponto de chegada
(formação humana). Como vemos, é um processo recorrente, em que não há
uma gênese absoluta num ou noutro polo da relação pessoa-estrutura.
Referência Bibliográfica
VASCONCELLOS, Celso dos S. Currículo: A Atividade Humana como Princípio
Educativo, 4ª ed. São Paulo: Libertad, 2017.