KÃM 21(1),KÃM
PA APRENTE p. :123-136, 2011.
ALTERNÂNCIA DE ISSN
CÓDIGO0103-9415
EM P ARKATÊJÊ 123
O BILINGUISMO E A PROBLEMÁTICA DA
DIGLOSSIA NO PROCESSO DE LETRAMENTO: O
CASO DE CABO VERDE E SUAS DIÁSPORAS
Introdução
O Século XXI trouxe muitas promessas e expectativas para um mundo
globalizado ou em vias de globalização. No limiar deste Século (Setembro de
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2000), a Organização das Nações Unidas numa reunião com os 191 líderes
dos Estados-Membros delineou metas do milênio a serem alcançadas no ano
2015. Uma das metas visa à educação básica de qualidade para todos até o
ano 2015, isto é, lutar contra a problemática do analfabetismo. Cabo Verde
aceitou este desafio e no relatório da ODM (ONU Cabo Verde) de 2008 foi
anunciado que Cabo Verde já atingiu as metas do milênio no que tange a
educação. Só que tem sido observado que a alfabetização por si só, isto é, a
mera capacidade de ler e escrever, não tem sido produtiva em termos de
capacitar cidadãos para uma integração social eficiente. Em face de tal situa-
ção, foi cunhado o conceito de letramento e novos programas e metas foram
estabelecidas.
Tendo combatido a problemática da alfabetização, pelo que indicam os
relatórios, Cabo Verde agora tem um novo desafio que é comum dos países
de desenvolvimento médio – Cabo Verde obteve este estatuto junto da ONU
em 2007 (Africanidade, 2008). Este novo desafio consiste em buscar atingir
o letramento de seus cidadãos de forma individual, objetivando um letramento
coletivo. Devido à conjuntura sociolinguística de Cabo Verde, é impossível
abordar a questão de letramento, sem considerá-lo no seu sentido duplo ou
pluralístico. Cabo Verde tem grandes potencialidades para ser um país bilíngue
no sentido funcional e na modalidade socialmente prestigiosa de bilinguismo.
Mas o que se constata é um bilinguismo disfuncional, denominado de diglossia
e que se coloca como um grande obstáculo à aquisição do letramento segun-
do os moldes recomendados pela UNESCO. Para resolver este impasse rumo
ao letramento, é necessário a introdução da língua caboverdiana no ensino
formal. Para isso, Cabo Verde pode e deve buscar parcerias com os EUA e
Portugal que já dispõem do ensino formal da língua caboverdiana nas escolas
como promoção de um bilinguismo funcional e socialmente integrante junto
das comunidades caboverdianas radicada no seio das comunidades destes
dois países.
Letramento
O conceito de letramento adotado neste artigo é aquele que o concebe
como um processo que vai além do processo da mera alfabetização, isto é, a
mera capacidade de ler e escrever. As bases para a conceituação do termo
letramento, tal como adotado neste artigo, foram lançadas no período logo
após a segunda guerra mundial. Os governos estavam tão ocupados com
outras questões, que o conceito de letramento estava bem longe de ser uma
das suas preocupações imediatas nem a da maioria dos educadores
(UNESCO, 2003). Em 1948, escrevia o Vice Diretor Geral para a Edu-
cação da UNESCO, C.E Beeby: Não me lembro de ter feito, antes de 1945,
uma única referência ao fato de que metade do mundo era analfabeta.
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Tradução minha.
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Tradução minha.
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O que pode ser denominado de ‘analfabeto funcional’ na língua portuguesa.
4
Tradução minha.
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Tradução minha.
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Foi necessário este novo foco para a questão de letramento porque foi
constado que nos países do primeiro mundo, [...] a população, embora alfa-
betizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para
uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que
envolvem a língua escrita. (Soares, 2004: 2).
Assim nasce na França o conceito de illettrisme (Lahire, 1999) e literacy/
illiteracy (Kirsch & Jungeblut, 1986) nos Estados Unidos da América para
descrever fenômenos idênticos: pessoas alfabetizadas, isto é capazes de ler e
escrever, mas não tendo o domínio da escrita e leitura necessário para práti-
cas sociais ou profissionais que as requerem. Já no Brasil, segundo Magda
Soares, reina uma confusão entre alfabetização e letramento. Os dois se mes-
clam levando á prevalência do conceito de letramento e muitas vezes até pre-
judicando o processo de alfabetização a ponto de dizer que acontece a
“desinvenção da alfabetização” (Soares, 2004: 4).
Retomando o conceito emergente de illettrisme, este foi cunhado para
categorizar um grupo especial denominado de Quarto Mundo.
6
Tradução minha.
O BILINGUISMO E A PROBLEMÁTICA DA DIGLOSSIA NO P ROCESSO... 127
Bilinguismo
Segundo Romaine (1995: 11), o espectro das definições de bilinguis-
mo chega a dois extremos: a de Bloomfield (1933: 56 apud Romaine, 1995:
11) que define o bilinguismo como a fluência, que um indivíduo possui em
duas línguas, igual à de um falante nativo, isto é, o bilíngue deve dominar
duas línguas como se ambas fossem sua língua materna; já Haugen (1953: 7
apud Romaine, 1995: 11) aponta para o outro extremo - bilinguismo começa
quando o falante é capaz de produzir enunciados inteligíveis numa outra lín-
7
Tradução minha (grifos acrescentados).
8
Foram usados os termos Biliteracy e Plurality of Literacy sem tradução devido à
dificuldade em traduzir os mesmo para a língua portuguesa mantendo o sentido
original. Biliteracy implica o letramento em duas línguas e Plurality of Literacy
pode ser literalmente traduzido como pluralismo de letramento.
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gua. Uma pessoa pode não ter o controle produtivo numa língua, mas mesmo
assim ser capaz de entender os enunciados produzidos nela. Pelo que os linguistas
usam termos como bilinguismo passivo ou receptivo ou ainda semibilinguismo
para descrever situações como estas (Romaine, 1995: 11). Mackeu (1967:
555 apud Romaine, 1995:12) sugere que para abordar a questão do bilinguis-
mo é necessário considerar quatro questões fundamentais: grau – o que tem a
ver com a proficiência linguística que o falante tem de cada uma das línguas;
função – diz respeito ao uso que o falante faz de cada uma das línguas e os
papeis que estas desempenham no seu repertório geral; alternância – se refere
à frequência com que um falante alterna de uma língua para outra; interferên-
cia – referente à capacidade de um falante em manter as duas línguas separa-
das uma da outra ou na forma como estas se amalgamam.
Por muito tempo prevaleceu a ideia errônea de que o bilinguismo seria
um fenômeno prejudicial tanto a nível psicológico bem como a nível social.
Mas fatos atuais apontam para o contrário:
Diglossia
O termo diglossia tal como o conhecemos hoje, teve sua origem em
Francês; o termo “diglossie” é uma transliteração do termo Grego
diglwssi/a (diglôssia), que significa “bilinguismo”. Para os fins pretendidos
por este artigo, adotamos a definição clássica de diglossia - a de Ferguson:
9
Tradução minha (grifos acrescentados).
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Tradução minha. Ferguson usou o termo dialeto, mas no caso de Cabo Verde, não
se trata de dois dialetos, mas sim, de duas línguas diferentes uma da outra.
11
Schffiman (1997) usa o termo inglês “zacquired” neste artigo traduzido como
“zadquirida” para demonstrar o processo irregular de aquisição da língua H. Esta
não é a língua materna dos nativos e é adquirida através de um processo que o
autor entende como sendo em forma de “zic- zac”, isto é, não é natural nem li-
near como a aquisição da língua L – língua materna.
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[...] cada palavra, cada construção sintática, cada ritmo tem uma
função específica que a tradução numa outra língua não era
capaz de significar. [...] o crioulo é a nossa mundivisão, grande
parte daquilo que somos e pensamos. Com efeito, [...] é através
dela que melhor nos entendemos, que melhor pensamos, so-
nhamos, nos divertimos, sofremos, trabalhamos, criamos, en-
fim, vivemos (Veiga, 2001: 7).
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Por CCV, Veiga quer dizer o Crioulo de Cabo Verde.
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que aprende a ler e as escrever numa língua que para ela (pelo menos inicial-
mente) não tem qualquer significado (Cardoso, 2005: 60). As interferências
da língua caboverdiana sobre a língua portuguesa se dão a todos os níveis
gramaticais: lexical, sintática, morfológica e semântica. Como a situação é de
diglossia, a inevitável interferência, resultante da cerca de cinco séculos de
convivência destas duas línguas, não é bem aceita e acaba afetando o proces-
so de letramento. Para alcançar o nível de letramento promovido pela UNESCO
é imprescindível ultrapassar a atual situação de diglossia em Cabo Verde e
promover o verdadeiro bilinguismo.
Mesmo tendo alcançado oficialmente as metas do milênio no que tan-
ge à educação, na prática, a realidade é outra, e o quadro precisa mudar-se
ainda no âmbito dos direitos humanos universais. Segundo Cardoso (2005),
a avaliação das crianças caboverdianas inseridas neste contexto de alfabetiza-
ção, que é de diglossia, é injusta e penalizante uma vez que é feita usando os
mesmos critérios e instrumentos usados para os alunos que nunca falaram
outra língua que não fosse a portuguesa. Isto causa um sofrimento linguístico
nas crianças e que é estendida aos professores que também se mostram inca-
pazes de encontrar soluções para estes problemas.
Esta triste e lamentável situação mostra que a alfabetização em Cabo
Verde se dá por meios pedagógicos impróprios o que põe em cheque a questão
de letramento. Letramento não significa ser meramente alfabetizado, mas
não é possível atingir o letramento sem uma alfabetização eficaz. Com a ex-
clusão da língua materna do ambiente escolar e das instancias oficiais, e da
língua portuguesa do cotidiano do caboverdiano, torna-se difícil falar de
letramento no seu sentido pleno e muito menos em biliteracy como deveria
ser o caso de Cabo Verde. A maioria da população caboverdiana pode se dizer
alfabetizada, mas não se pode afirmar que a grande maioria atingiu o grau de
letramento. A Alfabetização por si só não tem se mostrado produtiva. Foi
necessário criar novas abordagens sob o conceito de letramento para lidar
como os problemas que outrora se pensavam resolver apenas com a alfabe-
tização, como já elucidado neste artigo.
De igual modo Barbosa (2005) nos informe que nos EUA o ensino
bilíngue em crioulo (língua caboverdiana) e inglês já conta com 35 anos de
existência, isto é, os anos da independência de Cabo Verde. Através da Lei
Orgânica (1971), o crioulo de Cabo Verde foi reconhecido pelo Transitional
Bilingual Education Act como uma língua viva. Este reconhecimento faz com
que qualquer distrito, com 20 ou mais crianças tendo a língua caboverdiana
como língua materna, seja obrigado a proporcionar condições para que estas
crianças começam seu estudo usando a sua língua materna e aprendendo o
Inglês, como segunda língua (L2), até atingirem o domínio de Inglês para
seguir a educação comum.
Pelo que se percebe, há uma grande vontade política e dispositivos
legais nestes dois países para promover o bilinguismo. Cabo Verde tem muito
a aprender com tais procedimentos e deveria tornar-se o principal promotor
desse interesse comum. Não nos foi possível ter acesso a, nem informações
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precisas sobre o material didático e pedagógico utilizado, nem nos EUA nem
em Portugal, para o ensino da língua caboverdiana nas escolas. Através de
um contato via email (27 de Maio de 2010) com Viriato de Barros 13, inqui-
rimos sobre a existência de manuais pedagógicos e didáticos para o ensino do
caboverdiano nos EUA. Barros, como um dos ex-professores da língua
caboverdiana nos EUA, nos informou que os manuais usados foram elabora-
dos pelos próprios professores. Palavras de Viriato de Barros:
13
Viriato de Barros dispõe de um blog onde aborda a questão do ensino do caboverdiano
nas escolas no EUA, onde ele lecionou como professor da língua caboverdiana.
Pelo que Viriato de Barros é conhecedor da realidade do ensino da língua
caboverdiana tanto em Portugal como nos EUA. O Blog de Viriato de Barros pode
ser acessado através de: http://www.viriatobarros.blogspot.com/.
14
Estas são palavras de Viriato de Barros através de um contato via email de 27 de
Maio de 2010. Foram implementadas pequenas alterações na grafia das palavras
para manter o padrão adotado de acordo com o novo Acordo Ortográfico.
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Considerações finais
Considerando os escassos recursos econômicos e naturais de Cabo
Verde e a situação precária em que se encontrava por altura da sua indepen-
dência, é notório que muito se fez nestes 35 anos de independência, sobretu-
do no campo da saúde e da educação. O analfabetismo está praticamente
15
Cabo Verde tem muitos parceiros internacionais, e estes também podem perfeita-
mente apoiar caso Cabo Verde intentar para o alcance de letramento. Optamos
por EUA e Portugal porque para além de serem parceiros de Cabo Verde, adota-
ram o ensino da língua caboverdiana nas escolas mesmo antes de Cabo Verde.
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Referências
Barbosa, Fernando. Língua, Discurso e Identidade no Cabo Verde Pós-Colonial.
International Conference on Capverdean Migration and Diaspora. Centro de Estu-
dos de Antropologia Social, Lisboa, 6-8 Abril 2005.
Barros, Viriato de. 2009. Educaçâo bilingue: a experiência caboverdiana nos EUA.
Disponível em http://www.multiculturas.com/textos/VB-educacao_bilingue.pdf, aces-
so em 15 de Outubro de 2009.
Cardoso, Ana Josefa Gomes. 2005. As interferências linguísticas do caboverdiano no
processo de aprendizagem do português. Tese (Mestrado) Universidade Aberta, Lisboa.
Cardoso, Pedro. 1933. Folclore Caboverdeano. Porto: Edições Maranus.
Dewaele, J.; Housen, A. & Wei, L. (eds.) 2003. Bilingualism: Beyond Basic Principles.
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