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O COFRE DO

ADHEMAR
A iniciação política de Dilma Rousseff
e outros segredos da luta armada

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“Na revolução ninguém se perde,
todos se transformam.”

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Introdução

N o auge da Guerra Fria, o mundo se dividia em dois: os capitalistas – cuja


bandeira era carregada com alarde pelos Estados Unidos –, e os comu-
nistas, liderados por russos, chineses e, na América Latina, pelos cubanos.
Na década de 1960, o Brasil também “estava irremediavelmente dividido”1
entre essas duas correntes ideológicas: por um lado, os Estados Unidos aju-
davam a criar em nosso país instituições como a Escola Superior de Guerra
(ESG), que tinha por objetivo “preparar civis e militares para desempenhar
funções executivas nos órgãos de política de Segurança Nacional. Entre 1948
e 1960, uma equipe de militares norte-americanos esteve no Brasil para aju- 7
dar na formação da ESG a pedido da Força Expedicionária Brasileira”2, bem

O Cofre do Adhemar
como do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), coordenado pelo en-
tão coronel Golbery do Couto e Silva.
Por outro: “Em 1961, manobrando pelo flanco esquerdo do PCB, Fidel
hospedara em Havana o deputado Francisco Julião. Antes desse encontro,
com olhar e cabeleira de profeta desarmado, Julião propunha uma reforma
agrária convencional. Na volta de Cuba, defendia uma alternativa socialista,
carregava o slogan “Reforma agrária na lei ou na marra” e acreditava na
guerrilha como caminho para se chegar a ela. Julião e Júlio Prestes estiveram
simultaneamente em Havana, no ano de 1963. Foram recebidos em separado
por Castro. Um já enviara 12 militantes para um breve curso de capacitação
militar e estava pronto para fazer a revolução. Durante uma viagem a Mos-
cou, teria pedido mil submetralhadoras aos russos. O outro acabara de voltar
da União Soviética”.3
Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência. Em-
bora a constituição fosse clara – assumiria o vice em caso de renúncia do
presidente –, os ministros militares se opuseram à posse de João Goulart, o
Jango – que se encontrava em viagem diplomática na China –, pois viam nele

1 Gregori, José. Os sonhos que alimentam a vida. São Paulo, Jaboticaba, 2009.
2 Almeida, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura (1968-1976). São Paulo, Jaboticaba, 2008.
3 Gaspari, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

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uma ameaça ao país por seus vínculos com políticos do Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
O cunhado de Jango e governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
correu em sua defesa e começou, então, a Campanha da Legalidade. Depois
de extensa campanha, e sem sinal de retrocesso por parte dos militares, o
Congresso propôs uma conciliação. Jango, que aguardava o desenrolar da
crise em Montevidéu, no Uruguai, voltaria ao Brasil como presidente, porém
o governo adotaria um modelo parlamentarista, no qual parte do Poder Exe-
cutivo se deslocaria para um primeiro-ministro. Esse modelo de governo du-
rou até janeiro de 1963, quando, em plebiscito, o povo votou pela volta do
presidencialismo, com quase dez milhões de votos.
O Brasil da época era um país de sérios contrastes. Enquanto seu Produto
Interno Bruto (PIB) crescia a impressionantes 6% ao ano, sua infraestrutura
era precária. As medidas propostas pelo presidente João Goulart eram, entre
outras, as reformas agrária, da educação, tributária e do sistema de habita-
ção. Além disso, Jango propunha que, em nome da independência econômica
8
brasileira, se atacasse o FMI e o Banco Mundial. À época, essas medidas
eram vistas como comunistas.
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Não era de espantar, portanto, o descontentamento dos setores conserva-


dores da sociedade – notadamente o alto escalão das Forças Armadas, o alto
clero da Igreja Católica e algumas organizações da sociedade civil, apoiados
fortemente pelos Estados Unidos –, que temiam a transformação do Brasil em
uma ditadura socialista similar à praticada em Cuba.
Um dos estopins do golpe militar foi a Revolta dos Marinheiros, de 25 de
março de 1964: uma assembleia de mais de dois mil marinheiros, realizada
no prédio do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro. Os marinheiros
exigiam melhores condições de trabalho e pediam apoio às reformas políticas
de base propostas pelo presidente João Goulart. O então ministro da Marinha,
Sílvio Motta, ordenou a prisão dos líderes do movimento, enviando um destaca-
mento de fuzileiros navais, comandado pelo contra-almirante Cândido Aragão.
Os fuzileiros, porém, juntaram-se ao movimento. No dia seguinte, 26 de março,
o ministro do Trabalho, Amauri Silva, negociou um acordo. Logo em seguida,
os líderes do movimento foram presos por militares, sob a acusação de motim.
Horas depois, porém, o presidente anistiou os amotinados.4
Para as Forças Armadas, aquela anistia representava uma subversão em
dois de seus fundamentos: hierarquia e disciplina. “Alguns militares afir-

4 Lamarão, Sérgio. “A revolta dos marinheiros”. FGV – CPDOC < http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/


AConjunturaRadicalizacao/A_revolta_dos_ marinheiros>.

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mam que se Goulart tivesse dado sinais claros de que não compactuaria com
a quebra desses fundamentos, suas chances de continuar no governo seriam
maiores e a correlação de forças não se definiria em favor dos golpistas. O gol-
pe resultou de ações dispersas e isoladas, embaladas pelo clima de inquieta-
ção e incerteza que invadiu a corporação militar: em especial após o episódio
da Revolta dos Marinheiros e o anúncio feito por Jango no Automóvel Clube
defendendo a sindicalização de soldados e praças graduados.”5
Entre a madrugada do 31 de março e o 1º de abril de 1964, deu-se a re-
núncia do presidente e a tomada de poder dos militares. Em São Paulo, o go-
vernador Adhemar de Barros, numa entrevista extraordinária pela televisão,
afirmou que o comandante do II Exército, general Amaury Kruel, que mobi-
lizou as tropas do II Exército para a sublevação militar e o sítio ao Estado da
Guanabara, “estava do lado da legalidade”. Isto é, o governador de São Paulo
havia aderido aos golpistas. Na manhã do 1º de abril soube-se que o Forte de
Copacabana havia sido tomado pelo general Montanha, “ao que se contava,
sem disparar um único tiro, apenas com um empurrão na sentinela”.6
A maioria dos jornais de expressão nacional, à exceção do Última Hora de 9
Samuel Wainer, apoiou o golpe. “A intenção de grande parte dos aliados civis,

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dos políticos e da imprensa, com relação ao golpe, era a implantação de um
governo de transição que aniquilasse politicamente Goulart para em seguida
devolver o poder aos políticos mais confiáveis.”7
Mas não foi isso o que aconteceu. O que vimos foi o estabelecimento de um
governo autoritário, com cassações de mandatos parlamentares, expurgos de
sindicalistas e prisões arbitrárias, que teve seu apogeu na decretação do fami-
gerado AI-5, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, com o qual o gover-
no assumiria de uma vez por todas sua face ditatorial. Além de outras coisas,
o Ato Institucional nº 5 oficializava a censura, suspendia a garantia de habe-
as corpus em todos os casos de crimes contra a Segurança Nacional e conferia
ao Executivo o direito de suspender os direitos políticos e de cassar os man-
datos eleitorais de membros dos poderes Legislativo e Executivo nos níveis
federal, estadual e municipal, além de o presidente poder fechar o Congresso
por tempo indeterminado. Não era apenas a clara postura ditatorial o que
incomodava, mas também a questão do “tempo indeterminado”. Ou seja, o
governo militar de caráter provisório havia se tornado permanente.8

5 Almeida, Maria Fernanda Lopes. Op. cit.


6 Gregori, José. Op. cit.
7 Duarte, Celina Rabelo. Imprensa e redemocratização no Brasil: um estudo de duas conjunturas, 1945-1978.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 1978, p. 29. Apud Almeida, Maria Fernanda Lopes. Op. cit.
8 Almeida, Maria Fernanda Lopes. Op. cit.

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“Para se manter no governo, os militares criaram um know-how para de-
tecção dos supostos inimigos internos da nação, que passaram a ser vistos em
todos os setores da sociedade. Uma das doutrinas ensinadas na Escola Supe-
rior de Guerra era a teoria da guerra interna, que considerava inimigos os ha-
bitantes do próprio país. Quem contestasse o regime era um inimigo e deveria
ser combatido. A ameaça vinha principalmente de intelectuais, estudantes,
professores de esquerda e de setores do clero e sindicatos de trabalhadores.”9
Quanto maior a repressão, maior a vontade de derrubar a ditadura. Os in-
telectuais se uniram aos sindicalistas e, por fim, a militares dissidentes para
formar as chamadas vanguardas. Havia alguns adultos, mas em sua maioria
eram jovens de 16, 18, vinte anos, que acreditavam, a exemplo das recentes
revoluções cubana e argelina, que só se conseguiria tirar os militares do go-
verno por meio da luta armada. O treinamento de guerrilheiros era feito ou
em Cuba ou pelos próprios militares dissidentes. O grande desafio era obter
armas e dinheiro (“numerário”), que eles conseguiam por meio de assaltos
(“expropriações”). Todos andavam armados e se conheciam por nomes de
10
guerra. Caso um fosse preso (“caísse”), não poderia entregar os outros, por
não saber seus verdadeiros nomes. Eles se comunicavam por meio de en-
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contros predeterminados (“pontos”) ao longo do dia. Caso seus nomes ainda


não constassem da lista de procurados, viviam vidas duplas, cumprindo suas
responsabilidades “normais” além daquelas da organização à qual se jun-
taram. Quando seus nomes entravam na lista, iam para a clandestinidade.
Passavam a morar em apartamentos alugados pela organização (“aparelhos”)
e a receber um salário mínimo. As expropriações de bancos muitas vezes
rendiam pouquíssimo. A falta de numerário obrigava-os a gastar a maior
parte de seu tempo elaborando golpes e expropriações, ao invés de organizar
a revolução propriamente dita. Até que um dia, um jovem de nome Gustavo
Benchimol procurou um dos líderes da organização Colina (Comando de Li-
bertação Nacional), Juarez de Brito, também conhecido como “Juvenal”.
Gustavo contou que morava na casa de sua tia, Ana Capriglione, braço
direito e amante do ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros – cujo
slogan de campanha não assumido (inventado por um de seus adversários,
mas que acabou por alavancar seus votos) era “Rouba mas faz”. Acusado de
corrupção10 em diversas ocasiões, foi por fim cassado pelo regime militar em
1966. Segundo Gustavo, o ex-governador, que acabara de falecer no exílio,
na França, teria deixado, além da fortuna de família, uma “herança clandes-

9 Almeida, Maria Fernanda Lopes. Op. cit.


10 Ver apêndice V – O algoz do Adhemar, pgs 231–240.

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tina” – fruto de suas negociatas no governo – estimada em US$ 25 milhões.
Esse dinheiro estava guardado em dez cofres distribuídos pela cidade do Rio
de Janeiro11. Desses dez cofres, sabia-se que um estava num apartamento em
Copacabana, e o outro na casa de Ana Capriglione, em Santa Teresa.
O roubo de um desses cofres renderia uma fortuna suficiente para susten-
tar a revolução. Mas Juarez sabia que a Colina não tinha estrutura suficiente
para levar adiante a ação. Foi quando entrou em contato com a VPR, outra
organização, que tinha entre seus dirigentes o ilustre Carlos Lamarca...

11

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11 Os outros oito cofres não foram mapeados, apenas os de Santa Teresa e Copacabana. Gustavo Benchimol disse que
eram dez, mas ele só sabia onde estavam dois.

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1ª Parte
VAR-Palmares

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Como empunhei o primeiro 38
Narrado por ANTONIO ROBERTO ESPINOSA

1968

U m dia, o João Quartim de Moraes, que era meu professor de Filosofia da


Universidade de São Paulo e coordenador do setor urbano da VPR, me
chamou e disse:
– Estamos precisando formar um grupo armado no setor urbano, capaz
inclusive de fazer ações de numerário e recursos bélicos, para a requisição
de fundos e meios para a revolução. Acredito que você possa comandar esse 15
grupo armado; vou te colocar em contato com o pessoal do Logístico.

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A nova tarefa me emocionou. Eu acompanhava de longe as primeiras
ações da nossa organização, vibrando de alegria com cada uma delas: requi-
sição de fundos de bancos, ataques com bombas a símbolos do imperialismo.
Ser incumbido de participar delas seria uma honra, como ir para as trinchei-
ras da vanguarda durante uma guerra. Adrenalina pura. Um convite desses
faz você imaginar que o sol amanhecia com a função de iluminar o seu dia e
dar clareza à rapidez da história. A vida passaria a ter outro sabor. Embora
qualquer função fosse importante para o avanço da revolução, participar de
um grupo armado, para mim, seria estar no ponto exato em que as coisas se
decidiam. O pessoal do Logístico fazia ações há muito tempo, com grande efi-
ciência. A primeira ação do Banespa, na rua Iguatemi, e uma das explosões
no jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, haviam sido feitas por eles. A
partir disso, passei a me encontrar também com o pessoal da pesada, vamos
chamar assim. Tornei-me amigo imediatamente do Diógenes José de Carva-
lho, o “Luiz”, e do ex-marinheiro Cláudio de Souza Ribeiro, então “Sílvio”,
depois “Matos”. O “Maciel”, operário do ABC, e o João Domingues da Silva,
açougueiro e estudante de Osasco, meu amigo, que nessa época se chamava
“Elias”, foram os primeiros recrutados para a minha base. Logo no primeiro
encontro o “Luís” e a Dulce Maia, que então se chamava “Judite”, me pergun-
taram se eu dirigia.

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– Dirijo.
– Nós precisamos fazer uma ação para ir buscar alguns carros. Você topa?
– Como não? Claro que sim, vamos. Só que eu nunca fiz.
– Eu explico como que você deve fazer.
Saímos em três num carro. Acho que o terceiro era o Pedro Lobo, ex-sar-
gento da Polícia Militar, cassado em 1964 e sempre cem por cento disponível,
mas pode ter sido o Yoshitane Fujimori, um japa que dava a maior confiança
nos companheiros de ação. Na primeira vez eu dirigi o nosso carro, um Fus-
quinha azul em ponto de bala, emprestado pela “Judite”. Assim que vimos um
carro que servia, um Aero Willys quatro portas – adequado para ações bancá-
rias e que estava em condições de ser levado com facilidade, pois o motorista
ia colocá-lo na garagem ou estava distraído conversando com alguém –, eu
manobrei nosso carro para evitar a identificação da placa, entrando na pri-
meira rua e estacionei imediatamente. Os companheiros desceram e tomaram
emprestado o carro do cidadão distraído. A surpresa nesses casos era funda-
mental: para ter sucesso era preciso chegar de mansinho, como gato, e falar
16
de maneira firme e clara, não deixando margem a dúvidas. Disso dependia
o sucesso de qualquer operação, pois a pessoa só reage quando não consegue
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entender a situação ou nossa hesitação faz com que imagine que pode ter
uma chance. Quando eles passaram com o Aero Willys em alta velocidade, eu
também arranquei, indo para o ponto de encontro, onde confirmaríamos se
estava tudo certo e eu devolveria o Fusquinha à “Judite”.
Na segunda vez eu já peguei a arma, um Taurus calibre 38. E fui apren-
dendo outros macetes. A primeira coisa a fazer depois de tomar posse de um
carro era inutilizar sua placa de identificação. No lugar a gente colocava
uma placa qualquer, que fora tirada de outro veículo. O carro nunca circu-
lava com a placa original. Era uma forma de confundir a polícia. Enquanto
ela procurava um Aero Willys vermelho placa 2012, a gente passava com uma
placa 4824. Por isso, é claro que tínhamos um grande volume de placas. Essa
era uma forma de treinar futuros combatentes: estudantes aprendiam os se-
gredos da luta armada saindo à noite e pegando as placas da frente e de trás
de carros. Com fita isolante, muitas vezes, nós também alterávamos um ou
dois números da placa. Se considerarmos que na época não havia internet,
celular, e o sistema de rádio das viaturas policiais era amador, nossas técni-
cas de despistamento eram bastante eficientes. Só não podíamos baixar a
guarda ou sermos displicentes.
Para não sermos confundidos com ladrões, e para dar maior segurança
aos proprietários dos carros que requisitávamos, passamos a dialogar com os

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motoristas depois de dominá-los e a enviar cartas àqueles que esqueciam seus
documentos no veículo. Essa ideia me ocorreu depois que, juntamente com
o “Elias”, surpreendemos um casal que namorava no interior de um carro
atrás do Clube Pinheiros. Acho que foi em julho ou agosto de 1968, a rua era
escura e estava uma noite muito fria. O casalzinho ficou apavorado e o rapaz
começou a dizer que o carro pertencia ao pai. Disse-lhe para se acalmar e ter
paciência porque se tratava somente de um empréstimo e que o carro seria
devolvido inteiro. Depois que arrancamos, a gente se deu conta de que, apesar
do frio, a garota havia esquecido uma malha e que, no banco de trás, havia
uma caixa cheia de salgadinhos.
– Coitada – disse o João –, vai ficar com frio, a pé e com fome!
“O que eles vão explicar em casa? Como a garota vai justificar a falta da
blusa?” pensei.
A revolução exige sacrifícios também daqueles que ainda não estão cons-
cientes dela. Se fôssemos ter uma crise de consciência a cada vez, não faría-
mos nada...
Os carros que pegávamos passavam sempre por uma rigorosa revisão do 17
sistema de freios, troca de pneus carecas e eram abastecidos. Isso evitava sur-

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presas em momentos de dificuldade. Eu e o “Elias”, a partir do caso do casal
do Clube Pinheiros, bolamos a tática de enviar cartas para os proprietários
expropriados. A primeira aconselhava-o a dar queixa na polícia, para que
não viesse a ser responsabilizado por nossos atos, e informava que seu au-
tomóvel seria devolvido. A segunda era enviada depois de usar o carro em
alguma ação. Era uma carta de agradecimento mais ou menos assim: “Olha,
o seu carro foi requisitado para uma ação revolucionária, e depois foi deixado
na rua tal. Quando ele foi apreendido, estava com tais e tais problemas, que
foram devidamente consertados e solicitamos que você fique atento, porque
o rádio marca tal continua nele. Se por acaso desaparecerem esses equipa-
mentos, a culpa é da corrupção policial. Você é credor da revolução, nós lhe
pedimos desculpas pela maneira como tivemos que agir. Guarde essa carta
para nos apresentar depois da vitória. Até a vitória. Pátria livre e socialista ou
a morte com dignidade”.

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UM ANO DEPOIS...

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Ponto na Lua
1
18 de julho de 1969

O dia a dia de Sônia Lafoz era “cobrir” ponto. Ponto de manhã, ponto
à tarde. Ponto para dizer que estava tudo bem, ninguém caiu; ponto
para passar algum documento. Sônia ficava muito tempo dentro do apa- 21

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relho, lendo. Ou então saía para fazer levantamento de ação, mulher fazia
muito isso.
Era mais fácil para uma mulher, bonita melhor ainda, entrar num banco
e alegar cansaço:
– Dá licença, posso me sentar, moço? Estou passando mal.
Já viu homem passando mal? Pedindo um copo d’água dentro do estabe-
lecimento bancário? Ninguém cairia nessa história. Mulher podia. Ajeitava-se
num banquinho qualquer e, despreocupada, podia observar tudo o que inte-
ressasse. Quantos caixas são, onde fica o gerente, onde fica o cofre, o horário
de maior movimento, as portas de entrada e saída, todo o croqui interno.
Ao cinema, Sônia ia muito pouco, nem haveria tempo de pegar uma tela.
Pena, havia ótimas opções em cartaz: 2001, uma odisseia no espaço, obra-
prima de Stanley Kubrick; A primeira noite de um homem, com o estreante
Dustin Hoffman; comédias do tipo pastelão havia duas: Deu a louca no mun-
do e Um convidado bem trapalhão, com o impagável Peter Sellers, o maior
comediante do momento; o italiano e romântico Dio come ti amo; e a porno-
chanchada brasileira As libertinas.
Olhou dentro do bule. Não havia sobrado café da vigília anterior. Apanhou
o que restava do pó de café no armário – Caboclo, extraforte –, abrindo e
fechando com muito cuidado a porta, já quase caindo. O açucareiro, para
variar, estava cheio de formiga.

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“Que nojo”, pensou. Não queria formigas no seu café. Fazendo movimen-
tos rápidos de esgrima, tentava apanhar com a colherinha apenas os cristais
de açúcar, sem as intrusas.
Abriu a geladeira para ver se havia alguma coisa para passar no pão dor-
mido. Não valia a pena ir até a padaria. Uma, que do ponto de vista da segu-
rança, quanto menos saísse da casa, melhor. Era uma forasteira na cidade,
transferida por seu comando de São Paulo para o Rio de Janeiro. Acendeu o
fogo, colocou em cima da chama a leiteira branca.
“Se o leite não subir, é porque coalhou”, pensou.
Tanto no Brasil quanto na Argélia – onde ela nasceu – funcionava as-
sim. Ou ferve ou já era. Ferveu. Lembrou-se que “ferve” em espanhol podia
ser hierve e então o rosto de seu pai, o camarada Lafoz, combatente contra
Franco, apareceu instantaneamente, como uma projeção na parede branca
bastante trincada. O melhor jeito de comer pão dormido é o dela: embebido
no café com leite.
Sônia não era igual às outras garotas de 22 anos, que causam frisson ao
22
passar na rua e muitas vezes ouvem de homens mais desinibidos um assobio
insolente. Ela era uma garota que, por exemplo, sabia atirar, e bem. Não por
O Cofre do Adhemar

ter aprendido com seu pai, não por ter praticado desde a infância, não; tinha
uma boa pontaria, apesar de ter começado a praticar há pouco tempo.
Onde? Ela não sabia. Como saber, se era levada ao campo de treinamento
de olhos totalmente vendados, em meio a um rígido esquema de segurança?
Talvez na Barra da Tijuca, onde não morava ninguém, algumas vezes; outras,
em São Paulo. Quem era o professor? Lamarca? Ela também não sabia. Tal-
vez tenha sido mesmo ele, mas ela não conhecia nenhum Lamarca, conhecia
“João”. Por mais que “João” fosse a cara do Lamarca, Sônia jamais pergunta-
ria a ele: “Você é o Lamarca?”.
E se perguntasse ele não responderia.
O instrutor de Sônia, “João”, portanto, transformou-a na melhor atiradora
de toda a esquerda brasileira.
Antes de checar o equipamento cujo uso se faria necessário em poucas
horas, ela abriu o jornal e leu a manchete do dia:
APOLO 11 ENTRA EM ÓRBITA LUNAR AMANHÃ
Ainda faltava algum tempo para Reinaldo apanhá-la – como estava com-
binado –, o suficiente para ler a notícia mais importante do dia:

Cabo Kennedy, 17 (AFP, AP, UPI) – Os astronautas Armstrong, “Buzz”


e Collins hoje acordaram cedo, tomaram café da manhã e revisaram a

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nave. Depois almoçaram e no fim da tarde tiveram um problema com a
água potável. A notícia boa para o Brasil é que está praticamente acer-
tada a transmissão, pela televisão, da descida na Lua.

“Como será fazer ponto na Lua? Todos flutuando...”, pensou.


Decidiu, ao afastar as páginas para tomar café, que levaria na sua missão
uma Winchester 44 e uma granada. Ela não tinha nenhuma preferência es-
pecífica por qualquer tipo de arma. Isso dependia muito de qual papel lhe
era atribuído durante uma ação. Exemplo: se fosse cobertura, a preferência
era por armas longas, tipo fuzil. Se a ação exigia proximidade, o melhor era
arma curta, 38 ou 9 mm (melhor ainda a automática). Metralhadora era mais
usada em caso de ação na rua, para intimidar com mais ênfase. Ela não gos-
tava muito da metralhadora, principalmente a INA, porque dava coices fortes
e o cano fervia.
Não era um dia igual aos outros para Sônia. “Ninguém fica muito tranqui-
lo numa ação, mas a gente se preparava pra isso e ia. Eu não rezava, porque
sou ateia.” 23
Sônia não conhecia muitos detalhes. Nem queria conhecer. Não mais que

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o essencial: os horários, e o que tinha que fazer. Não perguntava muito, já que
não queria respostas. E, com certeza, não tinha ideia de que essa ação iria
mudar sua vida e a de seus companheiros.
Continuou lendo jornal, enquanto a hora H se aproximava.

HAYLEY MILLS QUER VIVER SÓ O PRESENTE


Hayley Mills senta-se, mexendo com uma colher uma mistura de
mel, germe de trigo e iogurte; ela parece bastante jovem, mas dificil-
mente dá a impressão de estar sentindo falta de carinho e proteção. Em
abril comemora seus 23 anos e, brevemente, fará dois anos que o seu
caso de amor com o produtor-diretor de 55 anos, Roy Boulting, sacudia
uma sociedade pertinaz em preferir casamentos entre pessoas mais ou
menos na mesma idade. Seja como for, lá estava Hayley Mills almoçan-
do em seu camarim nos estúdios onde filma Take a girl like you. Numa
porta ao lado, 18 rosas de haste longa, um presente de Roy. “Pela pri-
meira vez me sinto livre para ser o que sou. É uma coisa maravilhosa
encontrar alguém, não é?”

Sônia também pensava só no presente. Sônia também gostava de al-


guém. E se sentia livre “para ser o que era”. Mas jamais ganhou de seu amor

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18 rosas de haste longa. Nem esperava ganhar. Ainda que ele estivesse perto
de onde ela estava, não podiam sair juntos de mãos dadas como qualquer
casal de namorados.

R einaldo José de Melo encostou o Aero Willys perto da hora do almoço.


Sônia, que vigiava da janela, saiu em poucos segundos e entrou.
– Tudo bem?
– Tudo – respondeu mecanicamente, engatando a primeira.
Rodaram alguns minutos até o Largo da Glória. Mais uma parada. Em
frente à banca de jornal. O ex-sargento Darcy Rodrigues, amigo de Lamarca,
uns dez anos mais velho que Sônia, entrou pela porta traseira.
– Gostei da pontualidade – observou Darcy.
Se fossem supersticiosos, teriam todos os motivos para ficarem grilados.
Seis dias atrás, eles três, os mesmos três, quase haviam caído numa incursão
ao Banco Aliança.
– Foi um desastre – lembra Darcy, que comandou a ação do lado de fora.
24
Em 99% dos casos não havia erro: era invadir a agência, e então, diante
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das metralhadoras apontadas, todos ficavam paralisados. Petrificados. Vira-


vam estátuas. Tudo acontecia rapidamente, a surpresa inibia qualquer rea-
ção. E depois tinha a regra número dois: invadir o espaço com superioridade
de fogo. Ninguém atacava com dois ou três gatos pingados. Entravam seis ou
sete de uma vez. Além disso, na porta do banco, outro carro, com dois mili-
tantes bem armados, ficava de butuca. O carro da cobertura.
Dessa vez quase deu zebra. No interior do banco tudo correu bem. Mas lá
fora nem tanto. O carro dos militantes arrancou cantando pneu, sem perda
de tempo. Ainda assim foi seguido pela segurança do banco. Por sorte o carro
da cobertura se colocou entre o carro da ação e o carro da perseguição. E
abriu caminho a bala. “Fernando Ruivo” quebrou o vidro traseiro do carro
para atirar mais facilmente nos perseguidores.
Se acreditassem em bruxas, em assombração, poderiam pensar: “Será
que um de nós é o pé-frio? Será que não devemos nos benzer, nos enfiar num
banho de sal grosso?”. Mas marxistas são, por definição, ateus. Acreditam
no aqui e agora. Não em Deus, não em superstições, não em histórias do
outro mundo.
Darcy consultou o relógio – acertado, como os demais, pelo “horário Telesp”.
– Dez minutos para chegar.
– Dentro do horário.

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– Vamos mostrar a força dos paulistas! – propôs Darcy.
– Conosco ninguém podosco – completou Sônia, repetindo um trocadilho
popular, e todos riram.
– Pelo menos abrir o portão nós sabemos – disse Darcy, rindo de novo.
– Não tripudia – devolveu o carioca Reinaldo, sem tirar os olhos do
para-brisa.
– Tripudiar, não, mas me diz se é verdade ou não é: Juarez e seus com-
panheiros da Colina não tinham tentado fazer uma vez o que vamos fazer
daqui a pouco e fracassaram porque não conseguiram abrir o portão lateral?
Pois então.
– Nós ainda não conseguimos nada.
– Mas conseguiremos.

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O Cofre do Adhemar

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