ADHEMAR
A iniciação política de Dilma Rousseff
e outros segredos da luta armada
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como do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), coordenado pelo en-
tão coronel Golbery do Couto e Silva.
Por outro: “Em 1961, manobrando pelo flanco esquerdo do PCB, Fidel
hospedara em Havana o deputado Francisco Julião. Antes desse encontro,
com olhar e cabeleira de profeta desarmado, Julião propunha uma reforma
agrária convencional. Na volta de Cuba, defendia uma alternativa socialista,
carregava o slogan “Reforma agrária na lei ou na marra” e acreditava na
guerrilha como caminho para se chegar a ela. Julião e Júlio Prestes estiveram
simultaneamente em Havana, no ano de 1963. Foram recebidos em separado
por Castro. Um já enviara 12 militantes para um breve curso de capacitação
militar e estava pronto para fazer a revolução. Durante uma viagem a Mos-
cou, teria pedido mil submetralhadoras aos russos. O outro acabara de voltar
da União Soviética”.3
Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência. Em-
bora a constituição fosse clara – assumiria o vice em caso de renúncia do
presidente –, os ministros militares se opuseram à posse de João Goulart, o
Jango – que se encontrava em viagem diplomática na China –, pois viam nele
1 Gregori, José. Os sonhos que alimentam a vida. São Paulo, Jaboticaba, 2009.
2 Almeida, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura (1968-1976). São Paulo, Jaboticaba, 2008.
3 Gaspari, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
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dos políticos e da imprensa, com relação ao golpe, era a implantação de um
governo de transição que aniquilasse politicamente Goulart para em seguida
devolver o poder aos políticos mais confiáveis.”7
Mas não foi isso o que aconteceu. O que vimos foi o estabelecimento de um
governo autoritário, com cassações de mandatos parlamentares, expurgos de
sindicalistas e prisões arbitrárias, que teve seu apogeu na decretação do fami-
gerado AI-5, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, com o qual o gover-
no assumiria de uma vez por todas sua face ditatorial. Além de outras coisas,
o Ato Institucional nº 5 oficializava a censura, suspendia a garantia de habe-
as corpus em todos os casos de crimes contra a Segurança Nacional e conferia
ao Executivo o direito de suspender os direitos políticos e de cassar os man-
datos eleitorais de membros dos poderes Legislativo e Executivo nos níveis
federal, estadual e municipal, além de o presidente poder fechar o Congresso
por tempo indeterminado. Não era apenas a clara postura ditatorial o que
incomodava, mas também a questão do “tempo indeterminado”. Ou seja, o
governo militar de caráter provisório havia se tornado permanente.8
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11 Os outros oito cofres não foram mapeados, apenas os de Santa Teresa e Copacabana. Gustavo Benchimol disse que
eram dez, mas ele só sabia onde estavam dois.
1968
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A nova tarefa me emocionou. Eu acompanhava de longe as primeiras
ações da nossa organização, vibrando de alegria com cada uma delas: requi-
sição de fundos de bancos, ataques com bombas a símbolos do imperialismo.
Ser incumbido de participar delas seria uma honra, como ir para as trinchei-
ras da vanguarda durante uma guerra. Adrenalina pura. Um convite desses
faz você imaginar que o sol amanhecia com a função de iluminar o seu dia e
dar clareza à rapidez da história. A vida passaria a ter outro sabor. Embora
qualquer função fosse importante para o avanço da revolução, participar de
um grupo armado, para mim, seria estar no ponto exato em que as coisas se
decidiam. O pessoal do Logístico fazia ações há muito tempo, com grande efi-
ciência. A primeira ação do Banespa, na rua Iguatemi, e uma das explosões
no jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, haviam sido feitas por eles. A
partir disso, passei a me encontrar também com o pessoal da pesada, vamos
chamar assim. Tornei-me amigo imediatamente do Diógenes José de Carva-
lho, o “Luiz”, e do ex-marinheiro Cláudio de Souza Ribeiro, então “Sílvio”,
depois “Matos”. O “Maciel”, operário do ABC, e o João Domingues da Silva,
açougueiro e estudante de Osasco, meu amigo, que nessa época se chamava
“Elias”, foram os primeiros recrutados para a minha base. Logo no primeiro
encontro o “Luís” e a Dulce Maia, que então se chamava “Judite”, me pergun-
taram se eu dirigia.
entender a situação ou nossa hesitação faz com que imagine que pode ter
uma chance. Quando eles passaram com o Aero Willys em alta velocidade, eu
também arranquei, indo para o ponto de encontro, onde confirmaríamos se
estava tudo certo e eu devolveria o Fusquinha à “Judite”.
Na segunda vez eu já peguei a arma, um Taurus calibre 38. E fui apren-
dendo outros macetes. A primeira coisa a fazer depois de tomar posse de um
carro era inutilizar sua placa de identificação. No lugar a gente colocava
uma placa qualquer, que fora tirada de outro veículo. O carro nunca circu-
lava com a placa original. Era uma forma de confundir a polícia. Enquanto
ela procurava um Aero Willys vermelho placa 2012, a gente passava com uma
placa 4824. Por isso, é claro que tínhamos um grande volume de placas. Essa
era uma forma de treinar futuros combatentes: estudantes aprendiam os se-
gredos da luta armada saindo à noite e pegando as placas da frente e de trás
de carros. Com fita isolante, muitas vezes, nós também alterávamos um ou
dois números da placa. Se considerarmos que na época não havia internet,
celular, e o sistema de rádio das viaturas policiais era amador, nossas técni-
cas de despistamento eram bastante eficientes. Só não podíamos baixar a
guarda ou sermos displicentes.
Para não sermos confundidos com ladrões, e para dar maior segurança
aos proprietários dos carros que requisitávamos, passamos a dialogar com os
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presas em momentos de dificuldade. Eu e o “Elias”, a partir do caso do casal
do Clube Pinheiros, bolamos a tática de enviar cartas para os proprietários
expropriados. A primeira aconselhava-o a dar queixa na polícia, para que
não viesse a ser responsabilizado por nossos atos, e informava que seu au-
tomóvel seria devolvido. A segunda era enviada depois de usar o carro em
alguma ação. Era uma carta de agradecimento mais ou menos assim: “Olha,
o seu carro foi requisitado para uma ação revolucionária, e depois foi deixado
na rua tal. Quando ele foi apreendido, estava com tais e tais problemas, que
foram devidamente consertados e solicitamos que você fique atento, porque
o rádio marca tal continua nele. Se por acaso desaparecerem esses equipa-
mentos, a culpa é da corrupção policial. Você é credor da revolução, nós lhe
pedimos desculpas pela maneira como tivemos que agir. Guarde essa carta
para nos apresentar depois da vitória. Até a vitória. Pátria livre e socialista ou
a morte com dignidade”.
O dia a dia de Sônia Lafoz era “cobrir” ponto. Ponto de manhã, ponto
à tarde. Ponto para dizer que estava tudo bem, ninguém caiu; ponto
para passar algum documento. Sônia ficava muito tempo dentro do apa- 21
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relho, lendo. Ou então saía para fazer levantamento de ação, mulher fazia
muito isso.
Era mais fácil para uma mulher, bonita melhor ainda, entrar num banco
e alegar cansaço:
– Dá licença, posso me sentar, moço? Estou passando mal.
Já viu homem passando mal? Pedindo um copo d’água dentro do estabe-
lecimento bancário? Ninguém cairia nessa história. Mulher podia. Ajeitava-se
num banquinho qualquer e, despreocupada, podia observar tudo o que inte-
ressasse. Quantos caixas são, onde fica o gerente, onde fica o cofre, o horário
de maior movimento, as portas de entrada e saída, todo o croqui interno.
Ao cinema, Sônia ia muito pouco, nem haveria tempo de pegar uma tela.
Pena, havia ótimas opções em cartaz: 2001, uma odisseia no espaço, obra-
prima de Stanley Kubrick; A primeira noite de um homem, com o estreante
Dustin Hoffman; comédias do tipo pastelão havia duas: Deu a louca no mun-
do e Um convidado bem trapalhão, com o impagável Peter Sellers, o maior
comediante do momento; o italiano e romântico Dio come ti amo; e a porno-
chanchada brasileira As libertinas.
Olhou dentro do bule. Não havia sobrado café da vigília anterior. Apanhou
o que restava do pó de café no armário – Caboclo, extraforte –, abrindo e
fechando com muito cuidado a porta, já quase caindo. O açucareiro, para
variar, estava cheio de formiga.
ter aprendido com seu pai, não por ter praticado desde a infância, não; tinha
uma boa pontaria, apesar de ter começado a praticar há pouco tempo.
Onde? Ela não sabia. Como saber, se era levada ao campo de treinamento
de olhos totalmente vendados, em meio a um rígido esquema de segurança?
Talvez na Barra da Tijuca, onde não morava ninguém, algumas vezes; outras,
em São Paulo. Quem era o professor? Lamarca? Ela também não sabia. Tal-
vez tenha sido mesmo ele, mas ela não conhecia nenhum Lamarca, conhecia
“João”. Por mais que “João” fosse a cara do Lamarca, Sônia jamais pergunta-
ria a ele: “Você é o Lamarca?”.
E se perguntasse ele não responderia.
O instrutor de Sônia, “João”, portanto, transformou-a na melhor atiradora
de toda a esquerda brasileira.
Antes de checar o equipamento cujo uso se faria necessário em poucas
horas, ela abriu o jornal e leu a manchete do dia:
APOLO 11 ENTRA EM ÓRBITA LUNAR AMANHÃ
Ainda faltava algum tempo para Reinaldo apanhá-la – como estava com-
binado –, o suficiente para ler a notícia mais importante do dia:
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o essencial: os horários, e o que tinha que fazer. Não perguntava muito, já que
não queria respostas. E, com certeza, não tinha ideia de que essa ação iria
mudar sua vida e a de seus companheiros.
Continuou lendo jornal, enquanto a hora H se aproximava.
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