Dizer que a maior parte da poesia produzida pelos poetas brasileiros da atualidade
é escrita em verso livre é correto, mas é dizer muito pouco. O termo “verso livre” abrange
uma variedade enorme de formas poéticas que têm em comum apenas o fato de não
utilizarem um metro fixo. Quando dizemos que Glauco Mattoso escreve sonetos, estamos
dizendo que há elementos formais na poesia deste poeta de nosso tempo que são idênticos
ou muito semelhantes aos que caracterizam os sonetos de Camões, Gregório de Matos,
Bocage e Vinicius de Moraes; mas quando dizemos que Álvaro de Campos, Nuno Júdice,
Armando Freitas Filho e Angélica Freitas utilizam o verso livre, é evidente que não
estamos dizendo que as formas empregadas por esses quatro poetas são comparáveis no
mesmo sentido que são os sonetos de Camões e os de Glauco Mattoso.
A tradicional classificação mencionada por Fussell (1979), que distingue o verso
longo sempre terminado em pausa de Walt Whitman do verso curto e frequentemente
enjambado de William Carlos Williams, é um bom ponto de partida. Essa classificação
nos chama a atenção para um fato importante: o verso de Whitman é uma forma
comprometida com um momento encerrado da história das formas poéticas, o momento
de valorização da cidade e da modernidade em geral como material aproveitável pela
poesia. Mais exatamente, trata-se de um período iniciado em meados do século XIX, com
Whitman e Baudelaire — o qual, diga-se de passagem, jamais utilizou o verso livre — e
encerrado por volta da Segunda Guerra Mundial. Casos como o de Allen Ginsberg, nos
Estados Unidos, que empregou o verso longo de Whitman até sua morte, ocorrida na
última década do século XX, ou de Alexei Bueno, um poeta brasileiro contemporâneo
que ocasionalmente ainda utiliza a forma, podem ser considerados como exceções. De
modo geral, no Brasil tanto nos Estados Unidos, desde o ocaso das neovanguardas, em
meados do século passado, os poetas têm optado por diferentes modalidades do verso
curto e enjambado de Williams. Porém, mais uma vez, nos deparamos com uma definição
de caráter negativo que abarca coisas muito diferentes: as variedades do “verso livre de
Williams” empregadas pelos poetas brasileiros da atualidade só têm duas coisas em
comum: eles tendem a não se alongar muito e a não terminarem sistematicamente em
pausa. Em vez de tentar estabelecer uma subcategorização da classificação binária
original do verso livre, talvez faça mais sentido simplesmente examinar as formas
praticadas por poetas individuais e apontar os diferentes recursos por eles empregados.
Só depois de estudar um número considerável de versões diferentes do “verso livre” é
que poderíamos pensar em realizar algum tipo de classificação mais fina. Assim, apenas
a título de exemplificação da variedade atual, gostaria de examinar poemas de quatro
autores brasileiros contemporâneos.
Comecemos com um exemplo de Annita Costa Malufe (2012: 97).
Neste poema curto, o corte do verso e a ausência de pontuação têm o efeito de tornar mais
opaca a estrutura sintática. Com duas exceções, as separações mais naturais entre frases
se dão fora da posição final do verso:
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ainda mais lenta pela geração de ambiguidades que obrigam o leitor a pausar e voltar
atrás: por exemplo, o falso sintagma “este olho” se desfaz assim que lemos corretamente
“olho ao redor”, e uma primeira apreensão de “estranho” como adjetivo é corrigida
quando entendemos que é um verbo, e um verbo que tem como objeto não “a cadeira”,
como parece de início, e sim “a cadeira de lona”. Outro efeito é enfatizar o adjetivo
“velho”, colocado duas vezes seguidas em posição inicial, e desenfatizar a repetição da
estrutura “tudo é”, que ficaria evidente se a divisão em versos acompanhasse a sintaxe. O
efeito de estranhamento causado no leitor parece harmonizar-se com a situação de
estranhamento relatada pelo poema.
Vejamos agora um poema de Ismar Tirelli Neto (2008: 48).
LEVIANDADE
curte à meia-luz
réstia de pele tipada de sardas
Vejamos agora dois poemas que colocam em xeque o próprio conceito de “verso
livre”. O primeiro é de Ana Martins Marques (2011: 63):
TORNA-VIAGEM
meço mares
singro sereias
cego ciclopes
perco penélopes
cerco circes
serei meu
próprio
porto
A estrutura deste poema obedece a um conjunto de regras que podem ser enumeradas, a
saber: (1) os cinco primeiros versos se constituem de duas palavras que devem
necessariamente começar com o mesmo fonema, ou a mesma letra; a regra também se
aplica aos dois últimos versos tomados como um só; (b) contando até a última sílaba átona
de cada verso, a contagem de sílabas do primeiro ao último verso nos dá a série 4-5-5-6-
4-3-2-2; temos, assim, um movimento de expansão e contração — um recurso, aliás,
muito usado por Whitman — que representa graficamente o movimento indicado pelo
título. Ao contrário dos poemas que vimos antes, pois, aqui os princípios estruturantes da
forma são a aliteração e a contagem de sílabas. Mas o que mais o diferencia dos anteriores
é o fato de que nele temos regras explícitas que determinam, até certo ponto, a forma de
cada verso. Ou seja: se os poemas de Malufe e Tirelli são livres no sentido de não
obedecerem a nenhum conjunto de regras, o de Marques só é livre por não seguir nenhum
conjunto de regras já estabelecido na versificação portuguesa. Temos aqui um conjunto
de regras ad hoc, que funcionam apenas neste poema.
Nosso último exemplo é o mais problemático dos quatro. É um poema de Edimilson
de Almeida Pereira (2002: 91).
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DIA DE FESTA
Em outro trabalho, fiz uma leitura mais aprofundada deste poema admirável. Aqui
só vou me deter numa questão: com que tipo de verso estamos lidando aqui? A expressão
“verso livre” parece inteiramente inadequada para caracterizar um poema com tamanha
aparência de regularidade. Ao contrário dos três exemplos anteriores, temos estruturas
sintáticas completas, pontuação e uso de maiúsculas bem convencionais. Mas quando
tentamos determinar qual a regra ou conjunto de regras responsável pela estruturação de
“Dia de festa”, e em particular pela divisão em versos, a situação é bem mais difícil do
que no caso anterior, “Torna-viagem”. Nenhum sistema de escansão consegue encontrar
nada de regular no poema, nem na contagem de sílabas nem na distribuição de acentos;
tampouco temos rimas. Três características, porém, logo se impõem: (1) todas as estrofes
têm três versos; (2) a mancha gráfica das estrofes é bem regular, por terem os versos todos
mais ou menos o mesmo comprimento; e (3) algumas palavras e expressões, como “a
mulher”, “no cóccix da máquina de escrever” e “com sobrenome dia de festa” se repetem.
A opacidade extrema que é a impressão inicial causada pelo poema se dissipa quando
examinamos com cuidado quais os elementos que se repetem e quais os que não se
repetem. No lado da repetição, temos, além de palavras e expressões e mesmo um verso
inteiro, alguns fonemas, em particular a consoante /m/. Mas é quando destacamos as
palavras e expressões que se repetem e as que não se repetem que o sentido do poema se
revela:
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Com sobrenome dia de festa
a mulher mora no cóccix da
máquina de escrever morte.
Referências bibliográficas
FUSSELL, Paul. Poetic meter and poetic form. Ed. revista. Nova York: McGraw-Hill,
1979.
MALUFE, Annita Costa. Quando não estou por perto. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
MARQUES, Ana Martins. Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Zeosório blues. Obra poética 1. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2002.
TIRELLI NETO, Ismar. Synchronoscopio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.