Henri Acselrad*
Novas articulações
em prol da justiça
ambiental
A morte de uma criança, ocorrida em agosto de 2004 em Barra Mansa, no Rio de Janeiro – quando
brincava em um terreno baldio onde produtos químicos entraram em combustão –, chamou mais
uma vez a atenção para o descalabro do lançamento descontrolado de resíduos industriais peri-
gosos nos espaços públicos, notadamente nos bairros habitados por populações de baixa renda.
Diante de ocorrências trágicas como essa, cabe abrir espaço para a discussão mais geral sobre a
desigualdade social na exposição da população aos riscos ambientais em nosso país. Esse debate
parece estar apenas em seu começo entre as forças empenhadas no processo de construção
melhor articular a questão dos riscos ambientais com o debate sobre as condições de existência da
que os incêndios florestais em Roraima, a seca no Nordeste, a desigual exposição dos grupos
sociais aos riscos da poluição são a expressão do mesmo processo de produção da desigualdade
ambiental que distancia pessoas ricas e pobres, brancas e negras em nosso país? É da experiência
dos próprios movimentos sociais que esperamos obter pistas, como veremos a seguir.
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A desigualdade ambiental é uma das expres- Nas conjunturas recessivas, o crescimen-
sões da desigualdade social que marca a his- to do desemprego tende a ser acompanhado
tória do nosso país. As pessoas pobres estão de uma redução da capacidade de organização
mais expostas aos riscos decorrentes da loca- e resistência da população trabalhadora, acar-
lização de suas residências, da vulnerabilida- retando, conseqüentemente, uma diminuição
de das moradias a enchentes e desmorona- dos cuidados empresariais com a manuten-
mentos, além da ação de esgotos a céu aberto. ção dos equipamentos, uma intensificação
Há, assim, forte correlação entre indicadores dos ritmos de trabalho das pessoas que não
de pobreza e a ocorrência de doenças associa- perderam seus empregos, o crescimento dos
das à poluição por ausência de água e esgo- acidentes de trabalho e da irresponsabilidade
tamento sanitário ou por lançamento de ambiental das empresas. A democratização do
rejeitos sólidos e emissões líquidas e gasosas controle sobre os riscos é, portanto, muito mais
de origem industrial. Essa desigualdade re- viável de ser conquistada nos períodos de
sulta, em grande parte, da vigência de meca- menor incidência do desemprego e de maior
nismos de “privatização de fato” do uso de capacidade de mobilização dos atores sociais.
recursos ambientais. Seu enfrentamento re-
quer dar visibilidade a processos pouco visí-
Distribuição desigual
veis ao senso comum.
Ante os indicadores do que o pensa- As conjunturas históricas podem explicar a
mento dominante considera como principal maior ou menor propensão de os atores sociais
problema ambiental – o desperdício –, empre- mobilizarem-se na denúncia da irresponsabili-
sas e governos costumam propugnar ações da dade ambiental de mercado. Não há nenhuma
chamada “modernização ecológica”, destina- lei natural que imponha que as populações
das essencialmente a promover ganhos de efi- destituídas coloquem-se automaticamente ao
ciência e a ativar mercados. Trata-se, nessa lado dos propósitos ambientalmente dano-
perspectiva, de agir exclusivamente dentro da sos de empreendedores pouco responsáveis.
lógica econômica, atribuindo ao mercado a Os movimentos por justiça ambiental vêm, ao
capacidade institucional de resolver a degra- contrário, mostrando como as ligações entre
dação ambiental, economizando o meio am- as lutas por justiça social e por proteção ambi-
biente e abrindo mercados para novas ental podem se articular.
tecnologias ditas limpas. Nenhuma referên- O movimento de justiça ambiental cons-
cia é feita, por certo, por esses atores domi- tituiu-se inicialmente nos Estados Unidos, na
nantes, à associação entre degradação ambi- década de 1980, fruto de uma articulação cria-
ental e injustiça social. Por sua vez, os atores tiva entre lutas de caráter social, territorial, am-
sociais que percebem a importância de tal re- biental e de direitos civis. Já a partir do fim da
lação lógica, ao contrário, não confiam no década de 1960, redefiniu-se em termos ambi-
mercado como instrumento de superação da entais um conjunto de embates contra as con-
desigualdade ambiental e promoção de justi- dições inadequadas de saneamento, de conta-
ça ambiental. Para eles, o enfrentamento da minação química de locais de moradia e trabalho,
degradação do meio ambiente é o momento e contra a disposição indevida de lixo tóxico e
da obtenção de ganhos de democratização, e perigoso. Na década de 1970, sindicatos preo-
não apenas de ganhos de eficiência e de mer- cupados com saúde ocupacional, grupos ambi-
cado, pois há uma ligação lógica entre o exer- entalistas e organizações de minorias étnicas ar-
cício da democracia e a capacidade de a soci- ticularam-se para elaborar em suas pautas o que
edade se defender da injustiça ambiental. entendiam por “questões ambientais urbanas”.
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NOVAS ARTICULAÇÕES EM PROL DA JUSTIÇA AMBIENTAL
como parte do conhecimento relevante para os empregos das pessoas que trabalham nas
a elaboração não-discriminatória das políti- indústrias poluentes ou penalize as popula-
cas ambientais. ções dos países menos industrializados para
Mudanças ocorreram, então, no pró- onde as transnacionais tenderiam a transfe-
prio Estado. Pressionado pelo Congressional rir suas “fábricas sujas”.
Black Caucus, em 1990, a Environmental Pro- O movimento de justiça ambiental vem
tection Agency do governo dos Estados Uni- procurando se internacionalizar para cons-
dos criou um grupo de trabalho para estudar o truir uma resistência global às dimensões glo-
risco ambiental em comunidades de baixa ren- bais da reestruturação espacial da poluição,
da. Dois anos mais tarde, esse grupo concluiria ou seja, para barrar a lógica perversa do co-
que havia falta de dados para uma discussão nhecido Memorando Summers,6 no qual, em
da relação entre equidade e meio ambiente e 1991, o então eco-
reconheceria que os dados disponíveis apon- nomista-chefe do
tavam tendências perturbadoras, sugerindo, Banco Mundial, Law-
por essa razão, maior participação das comuni- rence Summers, jus-
dades de baixa renda e minorias no processo tificava a transferên- Em 1991, 600
decisório relativo às políticas ambientais. cia de riscos técnicos
Em 1991, 600 delegados e delegadas e industriais para os delegados e
presentes à 1ª Cúpula Nacional de Lideranças países menos desen-
Ambientalistas de Povos de Cor aprovaram
os “17 Princípios da Justiça Ambiental”, es-
volvidos. Tal meca-
nismo, dizia ele, se-
delegadas
tabelecendo uma agenda nacional para
redesenhar a política ambiental dos Estados
ria perfeitamente ló-
gico do ponto de
presentes à 1ª
Unidos de modo a incorporar a pauta das vista econômico,
“minorias”, comunidades ameríndias, latinas, pois os baixos salá- Cúpula Nacional
afro-americanas e ásio-americanas, tentando rios da periferia tor-
mudar o eixo de gravidade da atividade nam o custo da vida de Lideranças
ambientalista naquele país. 4 O movimento de humano mais baixo.
justiça ambiental consolidou-se, assim como A subpoluição dos Ambientalistas
uma rede multicultural e multirracial nacio- países pobres é, por
nal – e, mais recentemente, internacional 5 –, essa lógica, a expres- de Povos de Cor
articulando entidades de direitos civis, gru- são de uma inefici-
pos comunitários, organizações de trabalha-
dores e trabalhadoras, igrejas e intelectuais
ência a ser corrigida.
Embora Summers
aprovaram os
no enfrentamento do “racismo ambiental”
como uma forma de racismo institucional,
tenha, em seguida,
desmentido a serie-
“17 Princípios da
buscando fundir direitos civis e preocupações dade de sua asserção,
ambientais em uma mesma agenda e avan- sabemos que tal Justiça Ambiental”,
çando na superação de 20 anos de dis- processo já existia e
sociação e suspeita entre ambientalistas e o veio ganhando mais estabelecendo uma
movimento negro. realidade desde o
aprofundamento agenda nacional
do processo de libe-
Tempo de denúncia
ralização das eco-
A luta pelo reconhecimento da desigualdade nomias periféricas.
ambiental nos Estados Unidos tem constituí- A deslocalização
do um passo importante para a contestação industrial tem se mostrado meio estratégico
do modelo de desenvolvimento. O lema do pelo qual as grandes corporações impõem
4 BRADEN, Anne. Justice
movimento tem sido “poluição tóxica para a regressão dos diretos sociais e a desre- environnementale et justice
sociale aux États Unis. Ecologie
ninguém”, e não simplesmente o de deslocar gulação das normas ambientais. Resistir à Politique, n. 10, p. 10, 1994.
a poluição de lugar ou “exportar a injustiça chantagem da deslocalização é uma das
5 Seis representantes do mo-
ambiental” para países onde as classes tra- motivações centrais dos movimentos por vimento dos Estados Unidos e
das Filipinas estiveram no Rio
balhadoras estejam menos organizadas. Tra- justiça ambiental. de Janeiro em 1998, desenvol-
ta-se de discutir a pauta da chamada “tran- Se, por um lado, sabemos que os me- vendo contatos com ONGs
(como o Ibase) e grupos aca-
sição justa”, de modo que a luta contra a canismos de mercado trabalham no sentido dêmicos (como o Ippur/UFRJ).
poluição desigual não destrua simplesmente da produção da desigualdade ambiental – os 6 The Economist, 8 fev. 1991.
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NOVAS ARTICULAÇÕES EM PROL DA JUSTIÇA AMBIENTAL
Assim como a literatura econômica fala ção feroz entre empresas, Estados e * Henri Acselrad
de “sistemas produtivos locais” designando indivíduos. Em sua roupagem neoli- Professor do Instituto
“arranjos produtivos cuja interdependência, beral, esse jogo pressupõe a violação de Pesquisa e
articulação e vínculos consistentes resultam em sistemática das regras. As relações Planejamento Urbano e
interação, cooperação e aprendizagem, possi- entre o político e o econômico estão Regional da UFRJ (Ippur/
desprotegidas torna-se regra, e o controle de- filosofia da história, de Walter Benjamin, 16 14 AGAMBEN, G. A zona mor-
ta da lei. Folha de S.Paulo, São
mocrático dos riscos, a exceção. para quem a tradição das pessoas oprimidas Paulo, 16 mar. 2003. Caderno
“No capitalismo <convencional>”, Mais!, p. 5.
ensina que devemos ter sempre em mente
lembra-nos Luiz Gonzaga Belluzzo, concepções da história em que o estado de 15 Idem, ibidem, p. 6.