Resumo
Este trabalho consiste em uma análise de alguns pontos de contato entre a história e o
direito. Ele se inicia com uma breve discussão teórica a respeito das tensas relações
entre história, memória e esquecimento, seguida de algumas considerações sobre o
atual estado da historiografia dita “pós-moderna”. Busca-se, a partir da crítica a essa
“história em migalhas”, para usar a expressão de Dosse, esboçar um papel social que a
história ainda possa desempenhar, mesmo em tempos de descrença em qualquer
projeto minimamente amplo. Utilizamos, para isso, as perspectivas de Koselleck e
Ricoeur. Finalmente, será feita uma análise crítica das políticas públicas brasileiras a
respeito dos arquivos (ou da ausência delas), informada por essa discussão teórica e
com ênfase na lei 8159, de 1990. Apesar de ser descrita, em sua ementa, como uma
“política nacional de arquivos”, acreditamos que tal “política” inexiste no Brasil. Nossa
hipótese é a de que, mais que um inocente descuido, trata-se de um mecanismo eficaz
para manter velados certos fatos, limitar as possibilidades de conhecimento do passado
e, assim, resguardar determinados interesses.
Jorge Luis Borges tece em Funes el memorioso1 uma narrativa que pode ser lida
como alegoria do trabalho do historiador. Trata-se da história de Ireneo, um indivíduo
que se esquecia de quase tudo, mas que, depois de receber uma pancada acidental na
cabeça, passa a registrar cada detalhe, minuciosamente, como se sua memória fosse
agora um espelho perfeito do real. Esse excesso de lembranças o torna incapaz de
articular sequer uma história, priva-o de qualquer capacidade de abstração e o condena
a viver o caráter irrepetível de cada instante, sem jamais apreender seu sentido. Em
certo ponto, afirma, descrente: “Minha memória, senhor, é como um depósito de lixo”.
1
BORGES, Jorge Luis. Funes el memorioso, Artificios. In: Obras completas. 1923-1974. Buenos Aires:
Emecé Editores, 1974.
2
10
Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Espacio de experiencia” y “horizonte de expectativa”: dos categorias
históricas. In: Futuro passado. Para uma semantica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidos, 1993.
pp. 333-357.
11
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v.1. p. 85.
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pública séria a esse respeito é indispensável, visto que a sua ausência poderia dar
ensejo a violações graves de direitos e garantias fundamentais, como a intimidade, a
ameaças à ordem pública e à segurança nacional, interpor obstáculos ao exercício da
democracia, em última análise. Ademais, há a questão fundamental da necessidade de
preservação, na luta hercúlea contra a ação destrutiva do tempo, verdadeiro e
incessante pesadelo dos historiadores. Um arquivo que tudo guarde, cujos limites
coincidam, ponto a ponto, como a memória de Funes, com a vida social, contudo, é
tanto inconveniente quanto inútil. Portanto, também aqui é necessário que se
desenvolvam mecanismos tanto de lembrar quanto de esquecer.
A Constituição Brasileira de 1988 contempla o assunto em dois momentos. No
primeiro, dentro do rol de garantias fundamentais de seu artigo 5º, postula-se a
legitimidade de qualquer cidadão, com isenção de custas judiciais, para propor ação
popular visando a anular ato que lese o patrimônio histórico e cultural. Os artigos 215 e
216 de nossa Carta Maior definem o que se entende por patrimônio cultural brasileiro e
determinam que ele seja preservado. Destaca-se o §2º do artigo 216, em que se
expressa a responsabilidade da administração pública sobre a gestão e o acesso a
documentos. Essa tarefa, entretanto, vem sendo exercida de maneira um tanto
“irresponsável” por nossos administradores. Há uma séria deficiência normativa a
respeito, como se pode depreender da Lei 8159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe
sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, objeto de uma leitura crítica a
seguir.
Primeiramente, a estrutura institucional dos arquivos brasileiros deve ser
problematizada. A vinculação do Arquivo Nacional ao Ministério da Justiça e, mais
recentemente, à Casa Civil expressa uma visão muito limitada acerca desse lugar de
memória (para utilizar a terminologia de Pierre Nora12), posto que enfatiza o papel
jurídico individual dos arquivos públicos, em detrimento de seu valor histórico e coletivo.
Confirmação clara disso se encontra na definição desse órgão dada pelo Decreto 11,
de 18 de janeiro de 1991, que, embora revogado, muito ajuda a compreender como o
Estado brasileiro lida com os arquivos:
12
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris : Gallimard, c1984.
6
A defesa do governo e a diminuição dos gastos públicos são contempladas, mas, sobre
a história, nem uma palavra sequer. Isso nos leva a questionar se as definições que
“acentuavam o aspecto legal dos arquivos” são mesmo “antigas”, e se foi mesmo
superada a visão dos documentos como algo útil “apenas para estabelecer ou
reivindicar direitos”, como afirma Marilena Leite Paes14. Mesmo na Lei 8159 (esta ainda
em pleno vigor), a história só fará sua primeira aparição, tímida, no art. 8º, em que se
define o que são documentos correntes, intermediários e permanentes: “§3º:
Consideram-se permanentes os conjuntos de documentos de valor histórico, probatório
e informativo que devem ser definitivamente preservados”. No restante do texto, apenas
mais uma referência: “Art. 12. Os arquivos privados podem ser identificados pelo Poder
Público como de interesse público e social, desde que sejam considerados como
conjuntos de fontes relevantes para a história e desenvolvimento científico nacional”.
Um outro aspecto a se questionar é a multiplicidade de órgãos estatais
existentes para lidar com os arquivos. Além do próprio Arquivo Nacional, há o Conselho
Nacional de Arquivos (Conarq), o Sistema Nacional de Arquivos (Sinar) e o
recentemente criado Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo da Administração
Pública Federal (Siga). Se, por um lado, a desconcentração das funções do governo
permite que ele seja melhor exercido, por outro, pode levar à sua ineficácia, à
burocratização e a conflitos de competências. Esta hipótese se torna especialmente
plausível quando as definições e os limites de cada órgão não são muito claros, o que
13
Grifos nossos.
14
PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1997. p. 19
7
Embora ainda seja forte a valorização do teor administrativo dos documentos, a simples
substituição do termo “acervo arquivístico”, que constava do já mencionado art. 24 do
Decreto 11, por “patrimônio documental” denota uma maior valorização da história e da
preservação de seus registros materiais. Movimento semelhante, e ainda mais
animador, pode ser observado na recente Resolução 27 do Conarq, de 16 de junho de
2008, que clama pela regulamentação de um dos dispositivos da Lei 8159:
Art. 1º O Poder Público, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, deverá, por meio de lei específica de arquivos, definir os critérios de
organização sistêmica da gestão arquivística de documentos públicos e dos
serviços arquivísticos governamentais, bem como a criação e a vinculação do
Arquivo Público e os mecanismos de difusão e acesso aos registros públicos,
em conformidade com o art. 21, da Lei Federal de Arquivos nº 8.159, de 1991.17
Como se pode ver, a preocupação com o acesso, com o público, com a função social
dos arquivos está cada vez mais explícita. O problema é que isso seja feito por meio de
espécies normativas de menor hierarquia e, conseqüentemente, menor abrangência e
mais fraco poder cogente.
Talvez possamos daí derivar nossa derradeira e mais séria crítica à Lei 8159,
vista como metonímia da política governamental brasileira sobre os arquivos. Suas
disposições são por demais genéricas, limitando-se a definir conceitos já firmados na
15
Ver, a título exemplificativo, as definições dadas pelo Conarq e pelo Siga, disponíveis em
http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=4 e
http://www.siga.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=3, respectivamente.
16
Disponível em http://www.portalan.arquivonacional.gov.br/Media/RegimentoInterno.pdf. Grifos nossos.
17
Disponível em http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from%5Finfo%5
Findex=21&infoid=245&sid=46. Grifos nossos.
8
18
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In:
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana Gonçalves (orgs.). Museus: Dos gabinetes de
curiosidades ao museu moderno. Belo Horizonte: Argumentum, 2005.
9
19
CHAGAS, Mário. Museus: antropofagia da memória e do patrimônio. In: Revista do patrimônio histórico
e artístico nacional. nº 31/2005. p. 24.
20
Idem., p. 24.
21
SARLO, op. cit., p. 22.