B e r n a r d L a h ir e
S u c e s s o e s c o l a r
N O S M E IO S P O P U L A R E S
As razões do improvável
Tradução
Ramon Am érico Vasques
Sonia Goldfeder
EDITORA AFILIADA
mtttora A tic a
Editor
Miriam Goldfeder
Editor-assistente
Claudemir D. de Andrade
Preparação de texto
Maria de Fátima Mendonça Couto
Revisão
Fátima de Carvalho M . de Souza (coord.)
Isaías Zilli
Paginação eletrônica
G&.C Associados
Laura Sanae Doi
Capa
Isahcl Cnrhnllo
ISBN 85 08 06601 5
1997
Todos os direitos reservados pela Editora Atica
Rua Barão de Iguape, 110 - CEP 01507-900
Caixa Postal 2937 - CEP 01065-970
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e-mail: editora@atica.com.br
S umário
Prelúdios................................................................................. 11
1. O P O N T O DE V I S T A D O C O N H E C I M E N T O ................................ 17
• A população pesquisada 47
• A percepção escolar dos alunos 53
A ordem escolar das qualidades, 54 Sobre a autonomia e a dis
ciplina, 58
C o nc lu sõ e s .................................................................................. 334
B ib l io g r a f ia ..............................................................................359
A g r a d ecim en to s
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
laridade dos filhos poderia ser custosa, possuem crianças com boa
e mesmo m uito boa situação escolar. Há, portanto, para o so ció lo
go, em relação ao que con h ece sobre o fu n cion am en to p rovável do
m undo social a partir de dados estatísticos, co m o que um m istério
a ser elucidado. A s pistas parecem, ao menos no in ício, confusas, e
a tentativa de com preensão de situações atípicas, que não nos m os
tram aquilo que poderiam os esperar, constitui um verdadeiro desa
fio sociológico.
A questão central que m oveu nossa pesquisa d it respeito à c o m
preensão das diferenças “ secundárias” entre famílias populares cujo
n ível de renda e n ível escolar são bastante próxim os. Sem elhantes
por suas condições econôm icas e culturais — consideradas de forma
grosseira a partir da profissão do ch efe de fam ília — , co m o é possí
vel que configurações fam iliares engendrem , socialm ente, crianças
com n íveis de adaptação escolar tão diferentes? Quais são as d ife
renças internas nos m eios populares suscetíveis de justificar varia
ções, às vezes consideráveis, na escolaridade das crianças? O que pode
esclarecer o fato de que uma parte delas, que tem probabilidade muito
grande de repetir o ano no curso prim ário, consegue escapar desse
risco e até mesmo, em certos casos, ocupar os m elhores lugares nas
classiticaçiães escolares? Essas são as questões para as quais tentare
mos encontrar respostas, tentando com preender as posições esco
lares de crianças da 2a série d o I a grau em relação à sua situação,
ao cruzamento de configurações familiares específicas e do espaço
escolar. Para sermos mais precisos, o o b jeto cen tral de nosso traba
lho são os fenôm enos de dissonâncias e de consonâncias entre c o n
figurações familiares (relativa m en te hom ogêneas do p o n to de vista
de sua posição n o seio d o espaço social em seu c o n ju n to ) e o uni
verso escolar que registramos através do desem penho e com porta
m ento escolares de uma criança de cerca de 8 anos de idade.
A maneira pela qual os professores primários classificam os “ fra
cassos" escolares, ou seja, atribuem a esses acontecim entos um co n
texto interpretativo, é relativam ente diferente quando julgam indi
vidualm ente os alunos de uma classe ou quando julgam as “ causas
gerais” do fenômeno. Quando os professores falam de uma forma muito
genérica, as “ grandes causas sociais” tom am -se predom inantes. Pro-
12
PRELÚDIOS
* O salário mínimo de inserção (cm francês* retenu minimum d'insertion, o R M I) é quanto ganlia
um desempregado u nno salário-dcscmpte^o, ou então os indivíduos totalmente m arginali
zados do sistema de trabalho na França. Ele gira em torno de 500 dólares. (N .T .)
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
nos caso por caso (co m nom e e sobrenom e), nunca totalm enre simi
lares entre si, apanhados em um con texto de classe particular, com
pais, desempenhos e um com portam ento escolar singulares.
Ora, nós, aqui, apostamos que a sociologia (por causa de seu m odo
de pensar relacionai e por evita r a absolutização de certos traços
sociais, por sua capacidade específica de distanciam ento em rela
ção a realidades de interdependência, que, n orm alm ente, provocam
sobretudo atitudes de engajam ento1) pode ajudar a compreender casos
específicos (n ã o especialm ente no sentido de “ excepcion ais” ) sem
dispersar as razões ou disseminar as causas ao infinito. N o tem o s que
encontram os aí um b elo exem p lo de elo entre senso com um e saber
cien tífico , que, dados os problemas epistem ológicos, m eto d o lóg i
cos e teóricos levantados pela pesquisa, com plica de maneira sin
gular o debate sobre o tema.
Q u ando queremos com preender “ singularidades” , “ casos parti
culares" (mas não necessariamente exem plares), parece que somos
fatalm ente obrigados a abandonar o plano da reflexão macrossocio-
lógica fundada nos dados estatísticos para navegar nas águas da
descrição etnográfica, m onográfica. E, geralm ente, a questão d o elo
ou da articulação entre estas duas perspectivas não se coloca nem
àqueles que, etnógrafbs ou estatísticos convictos, falam do mundo
de m odo diferente, mas co m o m esm o sentim ento de dar conta do
essencial. Ora, em vez de fazer de conta que a com preensão de ca
sos singulares acontece por si só, colocan do-nos de im ediato e in
genuam ente d o lado daqueles para quem a questão da representa
ção ou da generalização n ão causa nenhum problem a, optamos, n o
quadro de uma antropologia da interdependência, por estudar expli
citam en te uma série de questões ( singularidade/generalidade; visão
etnográfica/visão estatística; m icrossociologia/m acrossociologia;
estruturas cogn itivas índividuais/estruturas o b jetivas...) a respeito
de um o b jeto singular e lim itado. E, sobretudo, questionar a práti
ca — m uito criticada nos estatísticos — que consiste em juntar, em
uma mesma categoria, realidades consideradas diferentes, e que, logi
cam ente, im plica sacrificar sua singularidade.
A lé m disso, durante um percurso de pesquisa que acentuava as
modalidades concretas da socialização familiar, encontram os mút-
14
PRELÚDIOS
riplos exem plos que possibilitaram com preender com o o capital cul-
rural parental (ou de form a mais ampla, fam iliar) podia ser trans
m itido, ou, ao contrário, não conseguia encontrar condições para
ser transmitido. O u ainda, com o, na ausência de capital cultural ou
na ausência de uma ação voluntária de transmissão de um capital
cultural existente, os con h ecim en tos escolares podiam , apesar de
tudo, ser apropriados pelas crianças. Mas, afinal de contas, as pró
prias noções de “ capital cultural” e de “ transmissão” ou de “ heran
ça” — metáioras úteis quando com entam os quadros que cruzam
variáveis — deixam de ser pertinentes quando, ao mudar a escala
de observação, voltam o-n os para a descrição e análise das m odali
dades da socialização fam iliar ou escolar, no âm bito de uma s ocio
logia dos processos de constituição das disposições sociais, de cons
trução dos esquemas mentais e com portam entais.
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
N otas
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1 0 PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
A E S T R U T U R A DO C O M P O R T A M E N T O
E D A P E R S O N A L ID A D E D A C R IA N Ç A
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O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
O S T R A Ç O S PE R T IN E N T E S D A L E IT U R A SO C IO LÓ G IC A
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Para que uma cultura escrita familiar, ou para que uma moral da
perseverança e do esforço possam constituir-se, desenvolver-se e ser
transmitidas, é preciso certam ente condições econôm icas de existên
cia específicas. U m divórcio, uma morte ou uma situação de desem
prego que fragilizam a situação econôm ica familiar podem constituir
rupturas em relação a uma econom ia doméstica estável. O desem
prego pode mudar a relação com o tem po na medida em que a pre
cariedade econôm ica impede toda projeção realista d o futuro: o dis
tanciam ento das formas organizadas de trabalho e a insegurança
econôm ica são simações pouco favoráveis ao desenvolvim ento de uma
atitude racional em relação ao tem p o'1’. A estabilidade profissional
do chefe de fam ília permite, claro, sair da gestão do cotidiano “ no
d ia-a-d ia", mas também oferecer os fundamentos de uma regularida
de doméstica de conjunto: regularidade das atividades e dos horários
familiares, limites temporais estruturados e estmturantes.
N o entanto, com o bem lem bra a epígrafe de H oggart, as c on d i
ções econôm icas imediatas, conjunturais, não determ inam m ecani
cam ente com portam entos econôm icos ou disposições econôm icas.
A s condições econôm icas de existência são condições necessárias,
mas seguramente não suficientes. Sejam quais forem as condições
materiais, sem a.s técnicas intelectuais apropriadas (os cálculos, as
conferências bancárias, as previsões de despesas projetadas em um
caderno ou num livro de contas...) não há cálculo racional possí
v e l . O mesmo capital, a mesma situação econ ôm ica podem ser tra-
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O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
U m a parte das fam ílias das classes populares pode outorgar uma
grande im portância ao “ bom com portam ento” e ao respeito à auto
ridade do professor. G a m o não conseguem ajudar os filhos d o pon to
de vista escolar, ten tam inculcar-lhes a capacidade de submeter-
se à autoridade escolar, com portan do-se corretam ente, aceitand o
fazer o que lhes é pedido, ou seja, serem relativam en te dóceis,
escutando, prestando atenção, estudando e não brincando... O s pais
visam , desse m odo, a uma certa “ respeitabilidade” fam iliar da qual
seus filhos d evem ser os representantes. Em casa podem exercer um
controle exterior direto da escolaridade dos filhos: sancionar as notas
baixas e os maus com portam entos “ escolares” , assegurar-se de que
as tarefas tenham sido feitas... In diretam en te, tam bém , podem
co n trola r o tem po consagrado aos deveres escolares, p roib in d o ou
lim itando as saídas noturnas, restringindo o tem po que passam dian
te da televisão... A través dos controles dos amigos, d o controle entre
o tem po que levam da escola para casa (os filh os podem ser leva
dos e trazidos), os pais podem , igualm enre, con trola r as situações
de socialização nas quais estão colocados os filhos, para evita r que
“ não degrin golem ".
Fora dessa ação sociatizadora, que se concentra n o aspecto moral
das condutas infantis, o universo dom éstico, através da ordem mate
rial, afetiva e m oral que reina ali a tod o instante, pode desem pe
nhar um papel im portante na atitude da criança na escola. A famí-
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEI05 POPULARES
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O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
o que necessitam para “ trabalharem " bem na escola, pais que sacri-
ficam o tem po livre para ajudar os filhos nas tarefas escolares, to
mando as lições, lendo os mesmos livros que os filhos para pixier dis
cutir com eles e verificar se compreenderam bem, pais que aumentam
o número de exercícios da lição de casa ou que pedem aos filhos para
lhes escreverem algumas historietas, ou ler-lhes trechos de livros... A
escolaridade pode tomar-se, em alguns casos, uma obsessão familiar,
e podemos estar diante de um h iperinvestim ento escolar ou pedagó
gico: fazer mais que os outros para estarem seguros do “ sucesso" esco
lar dos filhos, reduzidos ao estatuto de alunos. Os pais “ sacrificam” a
vida pelos filhos para que cheguem aonde gostariam de ter chegado
ou para que saiam da condição sociofamiliar em que vivem . Mas o sacri
fício parental pode ultrapassar muito o investim ento pedagógico: esta
atitude geral deverá deixar traços na organização da ordem moral
doméstica e na maneira de gerir a situação econôm ica da família.
O in vestim en to pedagógico pode tom ar formas mais ou menos
rigorosas e sistemáticas, mas pode, sobretudo, operar-se segundo moda
lidades mais ou m enos adequadas, para atingir o o b je tiv o visado.
O s efeitos sobre a escolaridade da criança podem variar segundo as
formas para in citar a criança a ter “ sucesso” ou a estudar para ter
“ sucesso” , segundo a capacidade fam iliar de ajudara criança a rea
lizar os objetivos que lhe são fixados.
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0 PONTO DE VISTA 0 0 CONHECIMENTO
S in g u l a r id a d e e g e n e r a l id a d e
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C on textu a liza r
U
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ifl
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elos que constituem uma “ parte” (m ais ou menos gran de) da rea-
lidade social concebida com o uma rede de relações de in terdepen
dên cia humana. A separação dessa parte de uma rede contín u a
depende do p o n to de vista d o co n h ecim en to adotado’ 4. C o m o um
pesquisador não pode nunca reconstruir tudo, e le às veies som en
te evo ca de form a geral o que será descrito em detalhes por outros” .
Dessa forma podemos dizer que as configurações de relações de inter
dependência recorrentes que construímos com a ajuda de nossos
perfis não passam de “ trechos escolhidos” de configurações mais
amplas. Por exem p lo, os próprios pais são ligados por m ú ltiplos
elos invisíveis a seus próprios pais, seus irmãos e irmãs, seus c o le
gas de trabalho, seus amigos, vizinhos... Esses elos são presentes e
tam bém passados: esses adultos constituíram -se através das rela
ções de in terdependência que só com preendem os através de seus
produtos cristalizados, na form a de disposições específicas de se
com portar, .sentir, agir, pensar. Da mesma form a, as crianças estão
relacionadas com outros seres sociais que nem sempre pertencem
à constelação fa m ilia r’ 0.
Podem os falar de configuração social a respeito de uma intera
ção face a tace, de uma sala de aula, de uma rede de vizinhança, de
uma família, de um time esportivo, de um vilarejo, uma cidade, etc.1’ .
Porém , ao contrário de uma interação face a face, uma configura
ção social não im plica necessariamente que os seres sociais estejam
presentes no mesmo espaço e no mesmo m om ento’ ’ . A lé m disso, é
possível imaginar a construção de configurações que não têm o b ri
gatoriamente um nome na linguagem dos seres sociais: o recorte socio
ló gico não segue forçosamente os recortes sociais endógenos (a d m i
nistrativos, jurídicos, econôm icos, políticos, religiosos, morais...).
40
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
N o ta s
** lb id .,p . 15.
11 A objetivarão escrita dos saberes está ligada, na história, a uma série de transformações
conjuntas em matéria de m odo de conhecim ento (saber ob jetiva d o versus saber incor
porado; relação reflexiva com a linguagem versus relação prática com a linguagem ); em
matéria de m odo de aprendizagem (form a escolar versus mime,sis) e de forma de regula
ção das atividades (regras e normas explícitas versus regularidade prática dos W xttts)-
A escola, lugar específico separado das outras práticas sociais, está ligada á existência
de saberes objetivados; a “ pedagogizaçao" das relações sociais de aprendizagem é indis-
soeiáve ld a constituição de saberes escritos formalizados, saberes objetivados, delim ita
dos, codificados, que dizem respeito tanto ao que é ensinado quanto a maneira de ensi
nar; tanto às práticas dos alunos quanto à dos professores. A forma escolar de aprendi
zagem opõe-se, portanto, ao mesmo tempo, à mim esis que opera através e na prática,
sem nenhum recurso à escrita, e à aprendizagem do ler-escrever não-sistematizado, não-
formalizado, não-durável. C f. R. Lahire, Culture écrite et inégalités scolaires. .., 1991a.
42
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
I Bumdicii cr al., Travai! ei travailleurs en Algérie, 1963, p. 3 16: “Em nossas sociedades
I ] i racionalização se estende pouco a pouco até a econom ia doméstica.,,’1'.
I v M iisn dom éstico da agenda ou du calendário está ligado ao aum ento do espaço de tempo
a ser controlado e à com plexidade das atividades que devem ser geridas nas sociedades
i unie a hu roera lização e a organização das atividades sociais supõem a gestão de longos
períodos de tem po, durante os quais são planejados encontros, reuniões, eventos...
Se, com o pensamos, pode-se constituir lima relação com o mundo através das práticas
Je linguagem quase sempre específicas, então as diferenças no grau de racionalização
dos comportam entos domésticos supõem diferenças nas práticas de linguagem, e, sobre
tudo, a introdução de uma série de escritas domésticas. A respeito de um problema idên
tico, d . B. Lahire, Culture écrite et inégalités scolaires..., “ Epilogue".
“ Essas famílias vivem fechadas em relação às outras famílias do bairro", escreve Jacques
Tehtanière, Les enfants de milieux populaires..., 1982, p. 146.
43
SUCESSO E5COLAR NOS MEIOS POPULARES
H C f. J. Lautrey, C lasse sociciíc?. milieu familial t intelligence, 1980, p. 150; M. L. Kohn, "Social
class and the exercise nf parental authority", 1959, c “ Social class and parental-child
relationships...", 1963.
A leitura das obras de Richard 1loggart e de A n n ie Ernaux nos encaminhou nessa direção.
-><J C f. sobretudo S. Laacher, "L’école et ses miracles...", 1990; J. P. Laure ns, Í .sur 500...,
1992; Z. Zéroulou, " L i réussite scolaire des enfants d'immigrés...” , 1988; J. Testanière,
Les enfants Je milieux populaires...; J. P. Terra d, Des uns rm niers..., 1990.
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O PONTO OE VISTA DO CONHECIMENTO
*1 I I )urklieim. Les formes élémentaires de la vie religieuse, 1985, p. 7- Sublinhado pelo autor.
1' Pierre Bourdieu insiste, corn excessiva exclusividade, sem dúvida, no aspecto "sistemáti
co " e ‘ unificador" do habitus. Escreve, por exem plo: “O gosto, propensão e aptidão para a
apropriação (material e/ou sim bólica), por uma determinada classe, de objetos ou de pra
ticas cl.cssificad.Ls e classificuntes, é a fórmula geradora que está no principio do estilo de
vida, conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específ ica de
cada um dos subespaços simbólicos, mobiliário, roupas, linguagem ou atitude corporal, íi
mc.s?iw ÍTiteriçõo expressiva. ( '.ada dimensão do estilo de vida ’ simboliza com' os outros, com o
dizia Leibniz, e os simboliza: a visão d e mundo de um velho artesão marceneiro, sua
maneira de gerir seu orçamento, seu tem po ou seu corpo, seu uso da linguagem e suas esco-
lhas de vestuário, estão totalmente presentes em sua ética de trabalho escrupuloso e impe
cável, ética do cuidado, da minúcia, do acabado c seu sentido estético do trabalho, que
faz com que meça a beleza de seus produtos pelo cuidado e paciência que exigem " ( La Jís-
fíueiioii, 1979a, p. 193-4. t m fosd o autor). N ã o estamos colocando em questão aqui a pos
sibilidade de existência de situações que são propostas como exem plo por Bourdieu (vamos
encontrá-las durante nossa pesquisa), mas gostaríamos dc ressaltar o fato de que nem todas
, ls situações se encaixam neste modelo.
Ilud., P. 188.
W llm L .p .8 0 .
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
Porém nàn podemos nunca dissociar os tapirais ou recursos das relações Je interdepen
dência que lhes dão vida, sentido e valor, os m ohiliiam ou os deixam atentos, etc.
O livie r Schwartz (L e monde fwtiv des m û r i e r s . 1990) mostra cornu, para compreender
uma parte da econom ia dns trocas afetivas nus casais operários, devem antes de tudo
introdtiiir .1 mãe da esposa (p. 225), ou ainda com o, para compreender os comporta-
tnenlos masculinos dentro de casa, é preciso reconstruir suas inscrições em outros luga
res exteriores à casa (p. 284) Isto significa que a compreensão de certos aspectos das
configurações sociais (uni casal, uma fam ília...) passa pela reconstrução de configura
ções de relações de interdependência mais amplas.
^ Dessa forma, cm nossos perfis, quando não podemos descrever, por exem pla, detalhes
da> relações entre os país da criança e seus avos, retomamos a linguagem das variáveis
que consiste em indicar a profissão dos avós, hem com o seus níveis de instrução, para
dar simplesmente uma imagem sumária dos universos sociais de origem,
^ Sobretudo seus colegas de clas.se com quem, veremos, podein estar em relação de co m
petição.
^ O conceito de configuração “aplica-se tanto aos grupos relativam enle restriros quanto
às sociedades formadas por milhares ou milhões de seres interdependentes” , escreve N o r
bert Elias, QuVst-ce que Lt síxioíogieO, 1981, p. 158.
^ E assim que Erving G offm an concebe seus objetos, O que interessa ao autor são os "encon
tros sociais" ou “ reuniões” que necessitam da “ presença conjunta” e " imediata” de pes
soas que "se encontram mutuamente ao alcance do olhar e do ou vid o", em limites físi
cos relativamente restritos.
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Fracasso" e " sucesso "
A ]>t>1*111.A Ç Ã O PE S Q U IS A D A
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"FRACA550" £ "5UCESSO"
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"ERACASSO" E 'SUCESSO"
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"FRACASSO'’ E “SUCESSO"
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* N a França, não há vestibular, mas sim um exam e no final do curso colegial, o híiaíikitnvaí.
ou simplesmente hac> que habilita o aluno a entrar em qualquer faculdade. (N .T .)
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"FRACASSO" E "SUCESSO"
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
Qualidades cornportamejuais
Um aluno...
... autônomo, disciplinado, que fica em seu lugar e não se mexe muico na clas
se, calmo, tranquilo, atento, honzinho, atencioso, educado, que participa ati
vamente e escuta o professor, tem vontade, tem regularidade no estudo c em
seu esforço, logo começa a trabalhar quando solicitado, faz os exercícios esco
lares no tempo previsto, não tem a “ cabeça na lua", não é distraído, não brin
ca durante as aulas, não é infantil, não é instável, nào se deixa levar petos que
ficam brincando, não conversa com os colegas, não fala por talar, é sério, apli
cado, cuidadoso, apresenta ou estrutura bem as lições, ordenado, não esquece
o material, aprende as lições, íaz os deveres em casa, não falta, não é medroso,
ansioso, angustiado, não enrra em pânico, não é emotivo demais, é descontraí
do, fica contente de ir à escola c mostra interesse pela atividade escolar.
Qualidades intelectuais
U m aluno...
dotado, inteligente, culto, curioso, que consegue abstrair, rem hna memó
ria, compreende o que lhe é dito, não precisa constantemente de explicações,
resolve correcameme até os exercícios que não exigem apenas a aplicação de
mecanismos ou automatismes, pensa naquilo que faz, sabe adaptar-se aos
exercícios escolares menos orientados, dirigidos, definidos, enquadrados, não
tem problemas de pronúncia, tem uma escrita legível, não rem problemas de
lógica ou de compreensão, é bom na resolução de problemas matemáticos,
tem um vocabulário rico, uma boa expressão oral e escrita, e gosta de 1er.
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"FRACASSO" E ‘ SUCESSO"
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5UCESS0 ESCOLAR NOS MEIOS POPU1ARES
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"FRACASSO” E "SUCESSO"
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"FRACASSO" £ "SUCESSO"
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se correndo, brigam sem parar, não pensam no que estão fazendo, fazem
as lições de qualquer jeiro, não se aplicam, esquecem regularmente o
material... U m professor particularmente prolixo, por uma série de razões
(recém -chegado à escola, diz coisas que os outros já interiorizaram de
tal forma à medida que os anos de trabalho foram passando, e que as
vivenciam com o corriqueiras e normais; o espanto e o cansaço pro
vocados por essas crianças tão pouco “ autônomas"; o papel quase tera
pêutico que a entrevista sociológica pode desempenhar quando se
enfrenta sozinho este tipo de situação; uma classe particularmente difí
cil — no processo de constituição da população pesquisada, foi nessa
classe que escolhemos a maior parte das crianças oriundas de meios
populares e que tiraram menos de 4,5 na avaliação, ou seja, 12 alunos
em 31), diz, num tom rápido e apressado, imitando os gestos e as ins-
tabilidades dos alunos, os gritos e as entonações, tudo o que os outros
dizem de maneira menos enfática e desenvolvida.
Muitos não escutam enquanto estou explicando. Não sabem ficar cal
mos, escrever alguma coisa sem... O problema é que as coisas dege
neram o tempo todo. Tem um que acabou a lição gritando: “ Pronto.
Acabei!”. Assim, bem alto, e aí ele se levanta e sai. Eles se mexem
0 teinpo todo, fazem barulho. Além disso, falam muito alto, gri
tam o tempo todo. Entram na classe gritando, correndo, é cansativo.
Passo o tempo todo berrando, senão eles não me escutam Só para
tirar um caderno da mala leva um tempo enorme. As coisas deles ficam
espalhadas por todo canto, nas mesas, cai tudo, e aí eles se levantam.
Como se não fossem capazes de arrumar. Daí eu tento: “Coloquem o
livro sobre a carteira, não quero ver mais nada em cima, vocês não
precisam de mais nada, arrumem o resto”. Que nada, fica sempre cheia
de coisas, não adianta nada. Tem uns que são atentos, prestam aten
ção naquilo que estão fazendo, mas três quartos da classe, ufa, não estão
nem aí, fazem tudo rápido, assim sem mais! “ Pronto, acabei!" Fazem
tudo errado, mas para eles não tem a mínima importância, acabaram
e pronto. Além disso têm tendência a dizer qualquer coisa a qualquer
hora. Faço uma pergunta, e pronto, não foi nem isso o que perguntei
e alguém já respondeu. Não presram atenção. Assim: “Vamos lá,
vamos fazer um exercício”, só que eles nem sabem o que eu pedi. Por
exemplo, um exercício, marco no quadro o número, bom, aí explico
o que eles têm que fazer, tem sempre dois ou três que se enganam de
66
"FRACASSO" E "SUCESSO"
67
SUCE550 ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
jovens inclusive, era a mesma coisa, e olha que eles estavam prati
cando esporte, alguma coisa bem estruturada, dava na mesma, não
adianta, não muda... Eles são difíceis o tempo todo".
68
FRACASSO" E “SUCESSO"
N o IAS
I'< k lemos encontrar estes resultados em Repères et références .'Mimiques..., 1991, p. 66-7-
' l'orcentagens construídas a partir do quadro "Types de cursus à l'école primaire (par PC S
icgrtiupées)” , Repères et références statistiques..., p. 87.
v E por isso que, mesmo sob pena de tornar o texto pesado, colocam os sistematicamente
entre aspas os termos “ fracasso" e "sucesso".
1,1 Em relação ao conjunto de crianças das quais dispomos dc informações e que estão na
França desde os 2,5 anos ( 19 alunos: 8 em situação de “ fracasso" e 11 em simaçãt>de "suces
so "), constatamos uma prccocidade relativa du frequência da escola maternal entre as
crianças que tem "sucesso” : a idade media de entrada na escola maternal é de 5 anos e 4
meses para as crianças com “ sucesso", e sobretudo de 2 anos e 10 meses para os alunos
que tiraram acima de 7 na avaliação nacional da 2’’ série (ou seja, 8 alum>s). C oncer-
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G, Vincent, L’école primaire française, 198Û, p. 264. Seria necessário desenvolver aqui os elos
profundos entre a constituição do Estado moderno, o monopólio estatal da violência legí-
rima, a dominação legal racional, as regras impessoais e as processos de interiorizaçãa do con-
tnile das emoções que podemos esrabelecer através das obras de Max W eber e Norbert Elias.
1* D o mesmo m odo que Roger C hartier tenta reconstituir o leitor e a leitura implícitos,
inscritos nas estruturas materiais dos livros da ‘'Bibliothèque Bleu” e visados pelos ed i
tores troianos a partir do século X V II. C f “ Du livre au lire", 1985, p. 62-88.
15 Ihid., p. 20.
12 Ibid., p. 225.
Ele não se reduz a isto. E igualmente um aluno que sabe não ultrapassar o tem po que
lhe é dado, que reconhece as expressões verbais do tempo, distingue os textus pelos indi
ces formais, sabe copiar exatam ente um texto, concordar sujeito e verbo, extrair uma
regra a partir da observação de um exemplo, etc. Quisemos, porém, insistir sobre os aspec
tos menos visíveis.
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3 P e r f is d e c o n f ig u r a ç õ e s
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A E L U C ID A Ç Ã O DAS P A L A V R A S : À P R O C U R A DE IN D ÍC IO S
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
sua fam ília que ela pensa ser, socialm ente, a mais c o n ven ien te pos
sível aos olhos de um adulto estranho que v e io entrevistá-los d en
tro da escola, com a autorização do professor e do diretor.
C o m o enfrentar uma situação desse tipo? D evem os considerar
que a pesquisa é deturpada em p rin cíp io e que não poderem os
nunca atingir a verdade social dos entrevistados? N a verdade, as c o i
sas não são tão simples assim. A n tes de tudo, uma parte d o traba
lho (da profissão) do entrevistador consiste justamente em lim itar
o m áxim o possível os efeitos de legitim idade através de sua parti
cipação ativa na entrevista e ofuscando sua pessoa em prol da pala
vra e da experiência dos entrevistados. Isso im plica não colocá-los
em situação de hum ilhação cultural e, ao contrário, isentar de culpa
os que se autocensuram durante a entrevista por expressões do tipo:
“ E verdade que eu devia ter feito isso” , “ N ã o sou m uito e vo lu íd o ” ,
ou com entonações que demonstram que eles “ se sentem dim in u í
dos” diante das perguntas. E tam bém os entrevistados n em sempre
estão na defensiva durante a entrevista; n em sempre estão preocu
pados em mostrar uma boa imagem ou falar a coisa certa. E mesmo
quando chegam a fazê-lo, isso nos fornece uma im portante in for
mação sobre sua relação com a cultura legítim a e com a escola. Mas
uma entrevista nunca é hom ogênea, e m esm o o entrevistado mais
preocupado em dar o que considera com o “ respostas corretas” m os
tra-se mais eloqüente a respeito de cerras práticas (o que denota que
controla certas práticas m elhor do que outras, que é mais ou menos
apaixonado por esse ou aquele tem a), pode parecer dizer “ branco”
pelo discurso e “ n egro” pela entonação e as mím icas que faz quan
do enuncia “ branco” . Para aquele que quer vê-las, m il pequenas c o i
sas traem os graus de fabulação dos entrevistados sobre os d iferen
tes pontos abordados7.
A lé m disso, não raro há outras pessoas presentes durante a entre
vista. M arido e mulher, mãe e irmã, marido e cunhado, pais e filhos
podem estar juntos durante um certo tem po, em seguida alguém sair
durante a entrevista, etc., e as variações do discurso, dependendo da
presença desse ou daquele protagonista da cena familiar, deixam
transpareceras contradições, as fabulações, as omissões . Finalmente,
e m uito importante, nos outorgamos a possibilidade de cruzar as
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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
O elo impossível
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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
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* Período d o ano considerado sagrado pelos muçulmanos, durante o qual se jejua desde o
amanhecer até o pôr-do-sol. (N .T .)
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em 1989 ou 1990, com M ehdi, seu filh o mais velh o de 13 anos. Nunca
trabalhou, nem nas C om ores nem na França, mas disse estar à pro
cura de um em prego. A mãe da senhora M . v iv e na França, não cra-
balha e lê árabe. Seu pai faleceu há muito tem po e ela n ão sabe qual
era sua profissão. O casal tem cin co filhos (quatro meninos e uma
m enina), dos quais dois são ainda bebês. Os mais velhos têm 13 anos
(M e h d i, na 23 série), 9 anos (na 1° série) e 8 anos (na pré-escola).
O s M . são antes de tudo um caso de fam ília que n ão possui um
grande núm ero de práticas “ociden tais" de escrita. A tra vés de uma
trajetória de im igração, esta fam ília v iv e um em bate entre u n iver
sos objetivados de culturas, e se encontra totalm ente desprepara
da, pela sua situação de origem , para apropriar-se deles. E não é por
acaso que, para o senhor M . e seu cunhado, parece im portante
explicar bem, além das perguntas que lhes fazemos, com o as coisas
acontecem nas ilhas C om ores, do p onto de vista da organização da
vid a social e econôm ica. Esse é um p o n to central da entrevista, que
revela uma oposição ( “ T em muitas coisas que não são nada p areci
das” ) entre dois universos culturais mais ou menos escolarizados, buro-
cratizados, mais ou menos tecidos por formas sociais de escrita.
O senhor M . e seu cunhado (que tem um diplom a técn ico e foi
professor prim ário nas ilhas C o m o res) insistem m uito em dar o tes
tem unho de seu espanto e de sua confusão diante do co n ju n to de
docum entos que é preciso ter na França. N este aspecto estão v iv e n
do uma diferença radical entre seu país e a França. Q u alificand o
seu país com o “su bdesen volvido", n o estágio de “ Idade M é d ia ” ,
sem estradas asfaltadas, sem eletricidade nem telefon e (e x c e to nas
“ grandes cidades"), ressaltam a fraqueza da administração e, c o n
sequentem ente, os poucos docum entos que circulam.
D escrevem seu país co m o bem m enos burocratizado, m enos
cod ifica d o e, ao m esm o tem po, bem m enos organizado por práticas
de escrita e dos docum entos oficiais (diplom a, hollerith, carteira de
trabalho, certifica d o de nacionalidade, certidão de nascim ento,
recibo, talão de cheques, cédula de identidade, carteira de seguri
dade social, quitação de conta de luz, prova de residência...), m uito
mais ligado à palavra dada, ao en gajam en to puramente oral e pes
soal: “ N u m tem nenhum a instituição nos C om ores onde v o c ê vai
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vezes vo u até a loja e assim que en tro ela m e diz” (sua m ulher): ‘A h ,
tem nada, alguma coisa’ , mas é tarde dem ais" (ris o s)), não tem
agenda, não marca nada n o calendário ( “N ão, eu tento me lem brar"),
não anota recados n o telefon e, e nunca teve um diário. Escreve só
algumas cartas em com orian o, usando o alfabeto francês ou árabe.
Seus diferentes documentos administrativos ficam guardados em pas
tas mas em uma ordem, sem dúvida, não muito rigorosa, pois o senhor
M. explicou que passa muito tempo procurando um documento: “Jogo
em qualquer lugar"; “ Se continuar a aumentar, em tod o canto, até,
se vo cê for ver, n o armário, tem algumas vezes, se alguém pediu nos
sos docum entos, eu sei que vou, o docu m en to está lá , mas não sei
onde botei, procuro em tudo quanto é canto o dia inteiro, mas é
d ifíc il". Dado o grau de racionalização da atividade social e e c o n ô
mica d o universo de o rige m 14, com preenderem os que as técnicas de
escrita que perm item gerir de form a mais racional as atividades
domésticas se mostram co m o a última preocupação do senhor M .,
que parece m uito espantado ao saber que o entrevistador faz listas
de compras. A reação de incom preensão de M eh d i quando lhe per
guntamos se escreve bilhetes a seus pais para dar-lhes algum reca
do mostra que essa não é uma form a habitual de intercâm bio no
in terior de sua fam ília.
O senhor M . lê m elh or o árabe que o francês. Raram ente c o m
pra, portanto, algum jorn al, pois não com preende tudo o que está
escrito, ainda que “ se interesse muito pelo noticiário". Nunca lê revis
tas, nem as de programas de televisão, e dela só assiste ao n o ticiá
rio e a alguns film es. N ã o lê histórias em quadrinhos, nem rom an
ces, ou livros práticos, e não possui uma estante (seus livros estão
num arm ário). Q u ando perguntamos ao senhor M . se ele ou sua
mulher lêem histórias para seus filhos, com eçou a rir, mostrando com
isso que essa forma de interação pais-filhos, rotineira em muitas fam í
lias francesas, lhe era totalm en te estranha.
De fato, o senhor M . lê textos ligados a práticas m ilitantes, re li
giosas ou políticas. Possui livros religiosos em árabe e lê “ quase
todos os dias” o A lc o rã o , que consegue com preender (seu cunha
do esclarece: “ L e io o A lco rã o , mas não com preendo. Mas ele, isso
ele até co m p reen d e"). Parece ter lido m uitos livros “ socialistas” ou
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casa, e o pai confessa calm am ente que não sabe se realm ente fazem
ou não: “ N ã o sei se estão fazendo outra coisa, não sei nada, de ver-
dade...” A liás, o professor de M eh di nos diz: "T en h o a impressão que
ele irão fez mais as lições em casa... Ele aprende muito pouco das lições” .
O pai justifica que não ajuda os filhos, porque tem m edo de ajudar
“ mal” . M eh di fica na escola até às 18 horas*, salvo n o período do
ramadã. Q uando tem dificuldades para fazer as lições, pede ajuda ao
rio. “ A gente pergunta pro meu tio porque às vez meu pai sai, não
está, saiu.” Durante as férias, as crianças ficam em casa ou brincam
pelo bairro, e o senhor M . diz que só fazem lições se a escola pede
(m ostrando assim que não conh ece todos os pressupostos tácitos da
com petição escolar, que estima, caso a escola não dê deveres duran
te as férias escolares de verão, que seja “ bom ” , por exem plo, com
prar cadernos de férias para as crianças).
O investim ento escolar do pai é portanto bem fraco. A in d a que
consciente de que a escola e sobretudo o diplom a (que ele não pos
sui) sejam importantes para se ter uma boa profissão na França, suas
práticas efetivas indicam mais uma preocupação moral de conjunto
do que uma preocupação especificam ente escolar. N o entanto, gos
taria que seus filhos não fossem com o ele e que prolongassem os estu
dos, deplorando ao mesmo tempo sua incapacidade de ajudá-los a nível
escolar: [a escola] “ A h , é, m uito importante, porque, fico m uito cha
teado. T en h o muita pena de não poder ir aprender na escola. Porque
hoje eu vejo, a gente precisa ajudar as crianças na escola, senão não
consegue nada. Sem as escolas, não podem os ter médicos, cientistas,
coisas assim. A c h o que as crianças conseguem aprender alguma coisa,
assim não vão ser com o a gente. N ã o somos nada, não quero que as
crianças fiquem como eu. Espero que ele aprenda uma profissão, se as
crianças têm alguma coisa, é b om ” .
Deixa o filh o assistir à televisão quando volta da escola e só a proí
be por razões de saúde ou morais (e não por razões escolares, classi-
cam ente evocadas pelos pais atentos à hora de dorm ir em função das
aulas). Se o senhor M . não gosta que M eh di assista durante muito
* Nii França, existe a possibilidade de as crianças ficarem na escola após as aulas numa a ti
vidade chamada "horário de estudos livres” , onde fazem as lições e podem ser ajudadas
eventualm ente por algum assistente d o professor ou estagiário. (N .T .)
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Chegam os meia hora atrasados à casa desta fam ília argelina que
não estava nos esperando: o encontro "m arcado" por telefone tinha
sido esquecido, e o bilhete transmitido por intermédio da escola ainda
estava nas mochilas das crianças. Esta imprecisão na forma de gerir
os encontros já se mostra com o um sinal da relação com o tem po
dos pais17.
Entramos em um apartamento de sala e três quartos onde havia
uma fileira de crianças (6 ao m enos). A mãe, vestida em trajes tra-
dicionais, nos abriu a porta, mas esperava o marido, que estava para
chegar. S entim os um am biente estranho cuja razão só com preen-
derem os mais tarde, durante a entrevista. De fato, todas as criam
ças estavam na sala, o tempo estava bom, vím os muitas crianças brim
cando em baixo dos prédios e não h avia aula naquele dia... P o rq u e
será que elas não estavam lá fora?
A entrevista aconteceu em m eio a m uito barulho e com todas
as crianças em torno de nós. Ficamos sentados ao redor da mesa. O
menor, que tam bém é o mais barulhento, parece poder fazer o que
quiser, até que a m ãe ou o pai lhe dêem um tapa ou o “ em purrem ” .
N u m determ inado m om ento, desfaz, em baixo da mesa, os laços de
nossos sapatos, e quando seu pai sai, sobe na mesa e tenta puxar o
m icrofone d o gravador. Durante uma parte da entrevista, Latifa e
Aücha (ambas da mesma classe) estão sentadas em volta da mesa e
A ïc h a tenta, algumas vezes, 1er nossas perguntas. O pai distribui tapas
ou bate nelas com o lápis quando, de vez em quando, respondem
em seu lugar. V isivelm en te, não suporta que tom em a palavra sem
sua permissão, e quando, por duas ou três vezes, dirigimos, em sua
presença, a palavra às meninas e não a ele, o pai desviou o olhar
mostrando seu descontentam ento.
O próprio estilo da entrevista quase constituiu a informação c e iv
trai em relação à pesquisa: tratou-se de uma conversa picotada,
interrom pida, barulhenta, que ressaltou o fato de os pais não esta-
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lo, pago o seguro, sei que n o fim d o mês, por exem p lo, ten h o o alu
guel, o seguro do carro, o seguro da casa, o m édico, si é eu qui paguei
isso, qui v ô paga por mês, pago e daí e daí... nóis não fazem o assim
(com um tom rewindicativo), num adianta nada. S i marcamo ou num
m arcam o, dá n o m esm o” . Ele parece não ter idéia do interesse de
sem elhante utilização da escrita, para racionalizar, limitar, prever,
calcular, planejar os gastos. C om p ra aquilo que precisa, e escrever
ou não escrever para ele dá n o mesmo, em se tratando de contas.
(Rindo): "S i sobra, sobra, si não sobra, não sobra, é verdade né, nóis
nunca fazem o isso” ; " A gente traz o din h eiro pra casa, vam o, eu,
se ten h o tem po, v ô com pra, si não, m inha m ulher tem tem po, ela
vai com prá e pronto. N ã o m arcam o nada, não registram o nada, é
verdade né, se num tem mais, num tem mais. Se tem , pegam o a
grana no banco” . O senhor S. tem hábitos pouco racionais, e c o n
sidera a diferen ça de u tilização da escrita com o uma diferen ça
entre “ eles” ( “ os franceses” ) e “ nós” ( “ os árabes” ).
O senhor e a senhora S. não lêem jornais (a não ser um jornal
árabe que o pai com pra umas 4 vezes por a n o ), nem revistas, nem
histórias em quadrinhos, nem sequer a programação da televisão.
O pai possui algumas obras em árabe, entre elas o A lc o rã o e dois
livros que contam histórias m uito antigas (" A s histórias, v o c ê vê,
têm séculos e séculos” ). Porém diz que lê o A lc o rã o se tem tem po
(" S i en con tro um tem p in h o "), e sobretudo no período do ramadã.
Q uanto às outras leituras, ressalva: “ O resto, não tenho tem po” (suas
filhas confirm am que só vêem o pai 1er quando está rezando). Pos
suem um dicion ário, mas o próprio casal S. não o consulta jamais,
pois fo i com prado pensando nas crianças.
Nossas perguntas sobre as práticas de leitura e de escrita podem ,
com o já dissemos, às vezes, provocar efeitos de legitim idade. Porém ,
para que um efe ito de legitim idade escolar possa agir, é necessário
que aqueles sobre os quais é suscetível de se exercer tenham um m íni
m o de fé n o valor do sistema escolar e em seus representantes. Ora,
para o senhor e a senhora S. a escola tem uma im portância secun
dária na medida em que uma outra lei, a do A lc o rã o , se lhes mos
tra com o mais fundamental. N ã o se sentem em uma posição de dom i
nados em relação à escola francesa (que a seus olhos representamos).
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cante, acham que “ vai indo hem” com a “ escola da República” . Mas
interpretam o mau desempenho escolar das filhas no sentido de “ mau
com portam ento” em aula {n ã o escutar, não fazer o que mandam
fazer... ). O s dois olham as notas, e quando são baixas, a mãe as pune,
obriga-as a estudarem, proíbe de ver televisão, grita e bate nelas. O
irmão mais velh o e o de 10 anos também batem nelas, e a mãe expri
me sua satisfação em ver os filhos “ tom arem co n ta " de suas irmãs:
“ Ele bate nelas e eu fico conten te, ele bate nelas. E por elas, não é
por ele. Ele in teligen te” . A s duas irmãs são unânimes, em cada uma
das respectivas entrevistas, ao dizer que as reações dos pais ou dos
irmãos, quando tom am con h ecim en to de suas notas baixas, são
violentas: "d ã o bronca", “ xin gam ” , “ am eaçam ” , batem co m um
cin to, com sapato ou dão tapas, e A ïc h a conta que sua mãe lhe diz:
“ Se ocê tira nota baixa, vou te batê” . Elas fazem sozinhas as lições,
“ ajLidadas” apenas pelos irmãos de 10 e 14 anos (a m ãe diz que ela
“ não consegue" ajudã-fas ou exp lica r). O irmão de 10 anos também
bate nelas se n ão fazem as lições, se não com preendem ou não
fazem certo os exercícios. Mas A ïc h a e Latifa, evo ca n d o ex p licita
m ente a incapacidade dos pais de 1er o francês, dizem na en trevis
ta que não lhes mostram suas lições sistem aticam ente, e isto com
a cum plicidade dos irmãos. D e fa to A ïc h a e Latifa estão relativa-
m ente sós em face de sua escolaridade, e só têm "d iá lo g o " fam iliar
sobre questões escolares através de socos, gritos e xingam entos dos
pais, mas tam bém dos irmãos, que se revezam com os pais na p o lí
tica disciplinar parental: “ Sobretudo meu irmão, ele me xinga hiper-
demais, na 2a série” . — E ele te castiga? — “ N ã o , ele me bate e co i
sas assim” .
Q uando chegam da escola, Latifa e A ïc h a deixam as mochilas,
trocam de roupa, lavam as mãos, trocam de sapato, tom am lanche
e com eçam a 1er o “ dicion ário” . Essa lista reconstituída na ordem
pronunciada pela mãe é interessante, pois revela a im portância dos
aspectos com portam entais e morais (ser cuidadosa, ser lim p a) e a
nebulosa que representa para ela o trabalho escolar ( “ 1er o d ic io
nário” parece designar o con ju n to das ações escolares que consiste
em fazer os deveres). A lé m disso — um parêntese sociolingüístico
— a mãe nos conta que ela Lhes “ diz” para lavarem as mãos e não
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NTD ongo diz, na ocasião, que o b ilh ete que tínham os en via d o pela
escola ainda estava na sua m o ch ila e que tin h a esqu ecid o de
en tregá-lo à mãe.
Quando informamos à senhora K, que estávamos gravando, ela nos
disse que não podia, pois falava mal o francês, e esteve a ponto de se
recusar a dar a entrevista'1
'. Mas nós a tranquilizamos dizendo-lhe que
aquilo não era importante e que não deveria se preocupar. Começamos
a entrevista enquanto a irmã da senhora K. e seus filhos estavam sen
tados no sofá ven do um vídeo de música africana em alto volume.
Ficamos sentados com a senhora K. ao redor de uma pequena mesa na
entrada da sala-de-estar. Pouco depois, perguntamos à senhora K. se
podíamos ir para um outro côm odo por causa do hanilho, mas ela pre
feriu ficar ali, e falou com a irmã em sua língua materna. O que fez com
que a música parasse, mas eles passaram a assistir a um programa de
televisão. H ouve, portanto, m uito barulho durante toda a entrevista.
A entrevista aconteceu em uma atmosfera m uito estranha. A
senhora K. não parava de olhar sua irmã, para quem estávamos
dando as costas, e acreditamos que certas respostas foram ditadas pela
irmã, ou ao menos bastante inspiradas nela. Muitas vezes, abando
nando a entrevista, a senhora K. falava com a irmã em sua língua
antes de nos responder. O caráter estranho da situação se esclare
ceu quando a relacionam os com as palavras finais da entrevista. A í
as duas irmãs com eçaram a criticar o sistema escolar francês. Segun
do elas, a escola francesa tornava impossível uma longa escolarida
de para os filhos de estrangeiros: “ A q u i, gosto m uito, ele continua
bastante tem po na escola. Mas para as criança estrangeira aqui, na
França não acredito as coisas í bem. A s criança, os estrangeiro, aqui
na França, sempre co ’as profissão de pintô, m arceneiro, com o se fala,
pedreiro. E fazem isso purgue um dia o estrangeiro vai v o ltá pro país
dele"; “ I, tamém, a m aior parte deles, estrangeiro, qué dizê, alguém
que não sabe lê. O s pais não sabem lê tudo isso". E mesmo se as crian
ças se saem bem na escola, elas sustentam a idéia de que são orien
tadas para cursos profissionalizantes, para aprender um ofício: “ Pruquê
m ém o que eles faz bem os estudo, depois, com 14 anos, eles diz: ‘Vai
fazê uma profissão, vai sê p in tô ’, ou um outro curso de profissão” . A
senhora K. diz que não é só ela quem pensa assim: “A gente, todas
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A herança difícil
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lhe dava frases. É uma senhora que cuida da cantina. Era m uito sim
pática com ele. Fazia com que lesse certos... Era superlegal, não o
tem po todo, mas de vez em quando". A figura da “ senhora da ca n ti
na" que deu atenção a Ryad, consagrando-lhe um pouco de tempo,
é o exem plo de uma situação, excepcional e não durável, na qual ele
pôde constituir através de uma relação socioafetiva privilegiada, um
princípio de m otivação ou de interesse pela leitura e pelas coisas esco
lares ( “C h egava todo contente, falava disso com a gente à n oite").
A entrevista com Ryad permitiu confirm ar os elos estreitos que
tem com o irmão d o qual se sente mais próxim o, o papel de c o n
troladora que sua irmã exerce em matéria de escolaridade ( “ Depois
ela diz: ‘Faz a lição’ . Depois eu term inei, depois ela diz: 'M c mostra
o caderno’ ” ), seu v iv o interesse por tudo o que é brincadeira em
casa ou fora dela. Mas deixa sobretudo transparecer, através de
imprecisões semânticas, os diálogos de surdo, os im plícitos, a o ri
gem dits dificuldades de com preensão da qual falam seus professo
res. E que são, sem nenhum a dúvida, a consequência que sofre uma
criança cujas produções de linguagem , n o in terior de uma fam ília,
não são retomadas pelos adultos para c o rrigi-lo e levá -lo a ultrapas
sar suas contradições, suas imprecisões, seus contra-sensos...
“Eu... eu vô comê. Depois eu, depois minha mãe, ela se... ela vai
passeá. Ela passeia, passeia, e eu vô pra fora pra passeá. Uma vez,
uma vez, uma... um monte de veis! Fico dando volta, vô na minha
prima. A í a gente,,. a gente fala, a gente falava, eles falava e assim
e assim. Depois, é... meu primo, sabe, ahnn..., tem o mesmo tama
nho que eu. Então, ahnnn... então... a gente brincava um pouco
no quarto. Então, ahnnn... F ... ele si chama E ... A í ele disse, ahnnn:
‘Vai, vai ficá do lado da tua mamãe, vai’. A í, ahnn, minha, minha
mãe, ela me disse, ahnnn: ‘Porque você não vai brincá com o
F . A í eu disse: ‘Não, num tô mais cum vontade’. A í ela me disse:
'Então, vatno, vamo voltá pra casa’. A í a gente voltou, vi as hora,
era 10 horas. A í a gente... depois dormi, minha mãe mc disse:
‘ Dorme!’”
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* L ivro que narra a historia de uma mãe que deseja reaver a filha, sequestrada pela família
de seu marido. ( N . T )
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calcular não o total exato, mas praticam ente” , Ela anota alguma coisa
antes de telefonar para algum órgão adm inistrativo, ( “ Porque às
vezes a gente pensa uma coisa e depois esquece e não sabe mais o
que dizer” ), e também durante ou depois d o telefonem a.
P or outro lado, nunca m an teve um caderno de contas, não
escreve lem bretes ( “T á tudo aqui dentro, ó ," nos diz m ostrando a
cabeça), não escreve listas de coisas que tem de fazer ( " A c h o isso
rid ícu lo") e tem uma reação tipicam ente espontânea em relação a
esse tipo de prática de escrita que julga rígida demais: “ A gente sabe
m uito bem o que tem de fazer, né? N u m sei, eu sei mais ou menos
o que ten h o de fazer amanhã. N u m d igo daqui uma semana, não,
aí precisava, mas num sei, acho isso m eio... O lh a, é como se a gente
escrevesse uma coisa para um robô: ‘V o c ê tem que fazer isso, aquilo,
aquele outro, etc., etc.’ . Bom, quer dizer, eu vivo minha vida, de ver
dade, bom, não assim, dt^ jeito que ela vem, mas... N u m sei (risos),
é bom , talvez assim, si a gente faz uma lista, precisa fazer isto, aqui
lo, durante o dia, e si a gente num tá com vontade de fazer uma coisa,
bom, passo roupa, ten h o que ir num lugar, e depois, si num posso
ir, num sei, sei lá. A c h o isso, sei lá... A gente faz com o pode, como
quer". A senhora K. possui várias agendas, mas não as utiliza, bem
co m o diversos calendários que, às vezes, olha para contar os dias,
mas sobre os quais não anota nada.
A tualm ente classifica os documentos administrativos, mas duran
te muito tempo não o fazia. Suas fotografias são, na maior parte, “fotos
livres". N ã o acha m uito útil classificar fotos “ que olham os só de vez
em quando". Q u ando perguntamos se anota coisas nas fotos, res
ponde: “ N ã o , im agine, já tem a fotografia, já tá bom ". A ssim com o
outros entrevistados, ela reage com um “ E quebrar a cabeça pra nada",
quando perguntam os sobre certas práticas de escrita. Em relação a
ter um diário, reage tam bém de uma form a um pouco espontânea:
“ N u n ca me v e io na cabeça” . Ela considera esta prática “ m eio estra
nha” , sem que consigam os saber o que entende por isso: “ N ós, nossa
vida, a gente guarda ela na cabeça, não precisa de... É a vida, é assim
e p on to final. N u m precisa contar em um...”
A senhora K. insiste no fato de que a escola é uma coisa im por
tante e afirma que n ão pára de lem brar seu filh o: "B om , não paro
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( “ Seu pai, não, de qualquer je ito ele nunca cuidou dos filh o s ” ),
a mãe teria saído de casa várias vezes para vo lta r à própria fam ília,
deixa n d o talvez as crianças co m os avós: “ T em 10 anos que m ora
mos aqui, antes m oram os 2 anos n o núm ero 2 e depois viem o s
pra cá, por 8 anos. S ó que eu, eu num morei m uito tempo aqui. C o m o
disse pra vocês, ia daqui pra la. (R isos.) A gen te mora cada dia
num lugar".
Podem os imaginar, é claro, qLie, em outras configurações fam ilia
res, as dificuldades do casal não se refletissem tanto na escolaridade
dos filhos, pois a preocupação pedagógica é maior. Mas em um m eio
onde o capital cultural não é evidente, onde os reflexos, culturalmen
te incorporados, de preservação da escolaridade da criança não estão
presentes, as turbulências familiares têm efeitos imediatos, co m o é o
caso de Irh. U m a certa forma de estabilidade familiar (ainda que m an
tida através de separações, divórcios...) parece im portante para for
necer as condições de uma escolaridade correta.
E é nessa turbulência do casal que podem os com preen der m e
lhor o com portam ento de Ith. Sua própria mãe diz que, por conta
dessa situação, ela “ lhe deixou passar m u ito " as coisas. Ela deixa
transparecer, nas situações que d es crev e", que perdeu o co n trole
dos filhos, e se apresenta c o m o alguém que tem menos autoridade
que o ex-m arido. Parece deixar as coisas a con tecerem e só agir n o
lim ite, am eaçando bater de cin to ou dar tapas. A s regras de vida
não são, portanto, m uito fixas e definidas, e, na m aior parte das
vezes, são aplicadas irregularm ente. Por exem p lo, em bora a senho
ra K. diga que con trola o que Ith faz fora de casa, quando ela vai
à biblioteca às quartas-feiras, d eix a -o brincar com os am iguinhos,
e não tem na realidade possibilidade nenhum a de con trolar o que
ele faz. Da mesma form a, quando con ta que Ith conseguiu uma vez
ir bem longe da cidade sem sua permissão, é sinal de que o c o n tro
le de suas atividades, sem dúvida, não é tão rígido qu an to o diz.
O u ainda, em bora diga que o obriga a fazer e refazer seus deveres
de casa todas as tardes antes que ele saia para brincar com os a m i
guinhos, o professor (q u e con firm a que Ith "n ã o fica triste e in fe
liz em um ca n to " mas que, “ p elo con trário, ficaria brincan do o dia
in teiro” ) nota que ele nem sem pre faz as lições e que raram ente
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fato, ficou ali até o fim cia entrevista. Portanto, a mãe fica nos
o lh an do de um m odo engraçado, durante toda a conversa, através
das flores. Sua filha lhe pedirá, de vez em quando, algum esclareci
m ento, na língua cabila ou em francês. A entrevista se desen volve
m uito bem. M . parece muito à von tade durante toda a conversa.
A c h a algumas perguntas estranhas ou evidentes, que lhe provocam
risos ou sorrisos e que instalam uma espécie de con ivên cia entre nós.
Sm aïn ficou fora, brincando com os amigos, durante a entrevista.
O pai de S m aïn, de 52 anos, vem de uma fam ília cam ponesa
cabila analfabeta. Está na França desde que prestou o serviço m ili
tar (h á mais de 30 anos), e está trabalh an do c o m o o perário esp e
cia liza d o, soldador. L ê e escreve francês sem p roblem as. Sua
mulher, de 43 anos, vem do m esm o m eio social. N ã o frequentou
a escola, e, p o rta n to , não sabe 1er n em escrever. V e io para a
França 4 anos depois d o m arido, e, assim mesmo, tem d ific u ld a
des para falar e c om p reen d er o francês, e sua filh a lhe traduz algu
mas das perguntas.
Os filhos, à exceção de M ., nasceram na França. São seis ao todo:
M ., de 2.3 anos, fez até a 8a série, em seguida cursou uma escola
profission alizan te'', e trabalha co m o assistente em puericultura
em uma creche ("E n tre parênteses, meu diplom a não tem nada a
ver com o que eu queria fazer (risos). Bom , depois eu queria fazer
uma especialização em atividades sanitárias e sociais. Bom, aí num
deu certo, porque eu tinha perdido uns docum entos e toda essa his
tória, daí esquecí a escola e en trei na vida a tiva ” ); um rapaz de 17
anos que está na 8a série; uma m enina de 13 anos, na 6 a série; um
outro de 12 anos, na 5a série; Sm aïn, de 8, que está na 2a série, e
um pequeno de 4 anos que freqüenta o maternal.
Sm aïn não v iv e em um m eio social totalm ente desprovido em
relação ao universo escolar. Frequentou a escola maternal, com o toda
criança francesa (qu an do tinha 4 anos), e seus pais estão na França
há mais de 30 anos. N o cen tro da configuração familiar, o pai e a
irmã despontam co m o os personagens mais próxim os dos u niver
sos de cultura legítim a,
O pai é op erá rio especializado e m ilita n te sindical. Interessa-
se, ao co n trá rio da m aioria dos pais que consideram os até aqui,
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rece que a leitura tam bém não é o “ passatempo fa v o rito " de seu
pai ("E u vi ele pegar livros e 1er. Bom , digam os que ele não está
ligado nisso, na leitura, não é seu passatempo fa v o rito ” ), mas que
ele prefere a televisão, que vê bastante.
Outro personagem central, portanto, em relação à cultura legítima
é a irmã de S m a ín ". Ela tem um diplom a profissional, lê m uito e é
assinante do France Loisirs. Tem até uma profissão, assistente de pue
ricultura, que a aproxim a dos problemas educativos. Portanto, não
é por acaso que ficou encarregada de responder a um estranho que
faz perguntas sobre a escolaridade. C o m o o pai, é responsável pelas
relações externas à fam ília, em particular, o extern o legítim o. Ela
diz que gosta de se ocupar dos problemas fam iliares: “G o sto de ver
o que está acontecendo, ué. Problemas de família, tudo isso, me m eto
em tudo” , e confessa que nem sempre está de acordo co m o pai.
E o senhor M . quem, por sua mulher ser analfabeta, tom a conta
dos documentos da fam ília ( “ É tarefa do meu pai. Q uando tem a ver
com ele e com minha mãe, enfim, com a família, é com ele todos os
documentos administrativos” ), sem precisar de ajuda, ainda que a filha
desempenhe o papel de assessor quando ele não tem tempo. É ele quem
lê a correspondência adm inistrativa e responde, quem preenche a
declaração de impostos, preenche os cheques, escreve e assina os docu
mentos para a escola, redige lembretes quando necessário e escreve
“ regularm ente” ao irmão, que mora na C abília. N o entanto, co m o
em muitos lares on de os hom ens é que são responsáveis pela escri
ta doméstica por conta da m enor com petência de suas mulheres, o
senhor M . não desenvolve nada além dessas práticas de escrita e, nesse
sentido, suas disposições racionais. E ele o encarregado dos docum en
tos administrativos, mas a filha nos diz que ele não os arruma real
mente: “ Ele é um pouco bagunçado. A gente briga sempre por causa
disso, mas pra ele, digamos, ele põe as coisas num canto, e acha
depois, sozinho, mas ele não é ordenado. P õ e tudo no mesmo lugar.
Bem, a gente sabe que são seus documentos, sua papelada, então a
gente num mexe. E daí, quando ele precisa de alguma coisa ele acha
sozinho". Ele não tem uma caderneta de contas: “N ã o , nada de cader
neta de contas. Sabe tudo de cor, com o minha mãe. Fazem todas as
contas deles de cabeça, bom, eles não têm caderneta de contas. E tam-
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bém, em geral ele tem boa memória, se lembra m uito bem de quan
to gastou, de quanto sobrô, e si esquece ou tem uma dúvida, ele pega
o talão de cheques, refaz as contas, mas em geral, ele se lembra bem ” .
Só raramente acontece de ele deixar um bilhete para alguém da
família (mas isto é mais frequente para M .): “ Bom, qué dizê, meu pai,
não, não muito. N u m faz muito bilhete. O u então, quando é muito
importante de verdade, aí então ele tem m edo que a gente num lem
bre, ou coisas assim, aí acontece. Mas é raro, ele sempre nos diz na
véspera, as coisas desse tipo. Eu, por exem plo, ten ho mais tendência
de deixar, quando saio, se num vô voltá, bom, aí anoto, ou então quan
do esqueci de comprar alguma coisa, ou então, quando quero que
alguém taça alguma coisa pra mim, bom, escrevo e d eixo em cim a da
mesa!” . Ele também não faz lista de compras ( “ N ã o , faz de cabeça” )
ou listas de coisas para fazer, não tem agenda e não toma notas antes
ou depois de um telefonem a ( “ N ã o , ele tem tudo na cabeça, ele sabe
tudo e diz m u ito bem o que tem de dizê").
O problem a de Sm aín reside no fato de que os dois capitais cul
turais (o s dois princípios socializadores mais adequados em relação
ao mundo escolar) da fam ília quase nunca estão disponíveis. O
efeito que poderíam exercer sobre ele não têm , portanto, o m esmo
peso que poderíam ter se ele estivesse o tem po tod o e n v o lv id o por
eles. U m a irmã de 23 anos que trabalha e tem suas próprias a tiv i
dades extrafam iliares com amigas; um pai que v o lta tarde do traba
lho ou que tem atividades extrafamiliares com os amigos ( “ A c o n
tece dele num ficar em casa, quando sai com os amigos” ), e que, no
âm bito da d ivisão sexual das tarefas domésticas, pouco se ocupa da
educação cotidiana de seu filh o. A in d a que os pais considerem que
a escola seja uma coisa importante para os filhos ( “ E, ela (a m ãe)
diz m uito bem , e explica pras crianças que si eles querem mesmo se
esforçar, nós num podem o fazê n o lugar deles. Então eles precisam
se esforçar o m áxim o, qui si eles num fazem isso, vã o sê eles qui vão
sofrê as conseqüências mais tarde, né? D e qualquer jeito , isto a
gente explica lsem pra eles” ), quem fica em casa para cuidar de Smaïn
é uma mãe analfabera que não fala m uito bem o francês (qu e fica
atenta para que Sm aín vá se deitar às 21h “ n o m áxim o” , a não ser
quando ele não tem aula no dia seguinte e quer ver um film e ) e dois
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lho escolar. N o entanto, ela diz que, quando ele tem alguma dificul
dade em fazer as tarefas, pede ajuda mais para ela que para o pai, que
volta tarde do trabalho. Essa assistência deve ser, no entanto, relati
vam ente pouco frequente, pois quando lhe perguntamos em que
consistem as dificuldades de Smaïn, não consegue dizer ( “ Bom, deixa
ver, hum... tudo depende do problema, depende de ver o que ele tem
de fazer. Tem vezes qui ele num comprende direito, tem vezes que sim” ).
M . acrescenta que Smaïn faz as lições por iniciativa própria, sem que
lhe peçam. Mas isso pode significar que Smaïn faça seus deveres
quando tem vontade e que não há ninguém que lhe diga que os faça.
A liás, os professores confirm am que o sistema de controle dos d ev e
res de Smaïn é bastante permissivo, pois “ ele tem tendência a não
fazer grande coisa em casa” e “esquece muita coisa, se esquece de pedir
para assinarem seus cadernos” .
Se por um lado M . e seu pai con trola m os am igos de Sm aïn,
pois não gostam que e le “ vagabu n deie” co m qualquer um ( “ Bom,
confesso que é mais eu [que sua m ãe]. 1 tam ém meu pai, purque
ele num gosta m uito qui a gen te fiqu e vagabu ndeando sem fazê
nada até m uito tarde. Isto ele num gosta m uito” ), Sm aïn passa bas
tante tem po (as tardes, depois da aula, quartas-feiras e os fins de
sem ana) em atividades que não requerem necessariam ente as mes
mas qualidades de trabalho e aten ção que as tarefas escolares:
v íd e o -g a m e , b o lin h a de gude, skateboard, b ic ic le ta , piscina...
Durante as férias, parece que o program a de Sm aïn é o m esm o das
quartas-feiras, sábados e dom ingos do ano. A própria irmã, M ., acha
que ele passa tem p o dem ais brincan do e não m uito tem po len do
( “ Ele num gosta m u ito de 1er, mas talvez seria m elh o r dizê pra ele,
dar algumas i d é i a s " ) e não é de se espantar que os professores
observem que S m aïn “ gosta m uito de brincar" e que tem “ d ific u l
dades em se con cen trar nos estudos” .
Dessa form a, Sm aïn desen volve fora da escola certos c o m p o r
tam entos que não estão em harm onia co m os da vida em aula, pois
desponta, n o universo escolar, co m o m uito “disperso” e sobretudo
“ in stável” . Podem os dizer, portanto, para resumir a inform ação
central nesta configuração fam iliar singular, que Smaïn é, do ponto
de vista escolar, vítim a da indisponibilidade dos capitais culturais
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M artine é filha única. Ela faz parte das crianças que têm "sucesso”
na escola, embora seu n ível renha baixado no decorrer do ano, do pri
meiro para o décim o primeiro lugar. Apesar disso, o professor obser
vou que o pai ve io conversar com ele e que as coisas pareciam ir me
lhor a partir de então. Durante um período, ela não conseguia mais
aprender as lições, não mandava assinar seus cadernos e os deveres eram
feitos “ mais ou menos". O professor nota que a situação “ não era ca
tastrófica, mas que era uma pena que seu n ível estivesse baixando
tanto” . Descrita com o uma aluna “séria” , com “resultados satisfatórios”
no início do ano, ela passa a ser notada no final do ano, por sua incons
tância: “ Ela tem muito mais capacidade. Q uando quer, se aplica. Se
presta atenção, seu caderno é m uito apresentável. Mas n o dia seguin
te é capaz de fazer quinze erros em uma cópia de dez linhas” . M artine
entrou relativam ente tarde no maternal (4 anos c 9 meses), e repetiu
a pré-escola.
Se compararmos a situação escolar de M a rtin e com outras situa
ções em famílias nas quais as trajetórias escolares dos pais são rela
tivam en te limitadas (este é o prim eiro caso de pais que cursaram
até o 2S grau), ficam os um pouco desarmados para com preen der o
que acontece. M a rtin e repetiu a pré-escola, enquanto seus pais n ão
repetiram de ano antes d o ginásio (7 a série, 8a série, 2e ano c o le
gial), e seu n ível baixou durante o ano. Poderiamos esperar que, sendo
de um m eio familiar n o qual os pais frequentaram até o 2a grau, onde
os avós paternos não são operários e o avô m aterno teve uma peque
na ascensão social, a criança não repetisse de ano no curso prim á
rio. A c o n te c e que mais uma vez nos encontram os diante de um caso
de capital cultural familiar que não encontra condições para ser “ trans
m itid o". Em vez de explicarm os o "sucesso" de M artin e, somos
assim, paradoxalmente, levados a explicar por que este “ sucesso” não
é mais com pleto, p or que esta situação escolar é tão d ifícil, mais do
que o capital escolar fam iliar poderia deixar prever.
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* "Is io é, cia tem recompensa só quando tem boas notas, e não tem mais quando tem notas
baixas."
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* N as refeições fornecidas nas escolas francesas, há sempre uma op ção para os alunos de
religião muçulmana, que não com em cam e de porco. (N .T .)
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D a indisciplina à autodiscipline!
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* Apesar Je também não 1er revistas» ela, no entanto, não está desprovida — ao contrário
— de qualquer interesse pela leitura.
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escreve lembretes sobre algo preciso que deve fazer ( “ Pego um papel,
co lo c o em cim a d o armário ou diante da televisão, num lugar aonde
vou bastante, pra m e lem bra"), e faz, ocasionalm ente, listas de com
pras que esquece quase sempre de levar ou de consultar quando
chega ao superm ercado; por outro, n ão organiza o orçam ento,
n ão faz uma lista das coisas que tem que fazer, não tem agenda pes
soal, possui vários calendários dos quais nunca se serve, e nunca
faz uma anotação antes de telefonar. A lé m disso, não classifica os
docum entos, que “ ficam jogados em qualquer lugar". Diz que tem
"p re gu iça ” de arrum á-los: “ E verdade, quando os docu m en tos
estão bem arrumados, a gente num precisa andá de um lado pro
outro, olhá no quarto, n o arm ário, em todas as portas, prá vê si o
docu m en to num tá lá den tro, antes de encontrá, é verdade que
leva um tem p o dan ado prá encontrá, verdade qui é m uito m elh o r
classifica que colocá em qualquer lugar. Mas tenho preguiça de fazê,
d ig o francam ente, podia fazê mais, ih... ten ho preguiça de esco
lhe, de separá, a gen te tem docu m en to dem ais” . O mesmo o c o r
re com as fotos da fam ília: estão dispersas por tod o lugar e ela não
as organiza em álbuns. Prefere c o lo c a r em porta-retratos. Sua rea
ção à nossa pergunta sobre a lista de coisas que d eve fazer c o n fir
ma o fraco d e s en v o lvim en to de uma disposição racional, o rga n i
zacional. Prefere, quando pode, d eix a r que as coisas aconteçam e
não agendar suas atividades: “ Eu, se ten h o um n e g ó c io pra fazê,
eu faço, né? Si num renho nada pra fazê, num v ô fic á fazendo, co m o
se diz, uma, uma... Por exem p lo, eu d igo h oje: ‘ A h , amanhã ten ho
de ir aqui, ali’ . Eu não, si tenho alguma coisa pra fazê, eu v ô e depois
v o lto , cabô. N u m fic o m e ocupando o dia in te iro ” .
Escrever, sobretudo quando se trata de escrever algo “ o ficia i” ,
exposto aos olhares extrafamiliares, torna-se um problem a m uito
sério para a senhora O . Se, por um lado, diz que lê sozinha a co r
respondência ( “ S ei lê, n é f” ), é seu com panheiro quem redige as car
tas administrativas ou quem preenche a declaração de impostos. “ A h ,
prá isso me dá um bloqueio, nossa, é m uito complicado, ne7, quando
eu priciso escreve. Bem, às vezes tem meu amigo, ele me dá uma força,
ele me diz: ‘Ora, veja, cê só tem que escreve, tô ch eio, v o c ê sabe
escreve!’ , mas é ele quem escreve a m aior parte da correspondên-
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companheiro ou para W alter na porta, para que saibam onde está quan
do sai ( “T ô neste lugar, me esperem", ou “ Venham me en con trá"), e
finalm ente escreve a W alter todos os dias quando ele vai para a co lô
nia de férias, pois sente muita falta dele (neste caso, escrever uma carta
lhe parece menos difícil, pois, diz, “ num preciso fazê, com o a gente
diz isso, fazê frases, com o quando escrevo para a frrefeitura ou coisas assim,
porque escrevo como eu penso"). De fato, a senhora O. poderia escre
ver mais, mas, por um lado, teme os erros de ortografia ( “ Sabe, eu
fico sem je ito ” ), e, por outro, tem dificuldades para formular frases,
redigir uma carta, quando sabe qtie será um adulto, principalm ente
se escolarizado (professor, funcionário...), quem deverá lê-la.
Q uando falamos da ajuda escolar que dá a W alter, reaparece o
mesmo m edo de se enganar, a mesma falta de segurança. C o m o
W alter não fica na escola durante as horas de estudo livre, faz as lições
em casa. A mãe o ajuda, mas sente dificuldades e pede ajuda às irmãs:
“ Eu também erro, e aí peço ajuda” . Diz que antes (na pré-escola e
na I a série) era mais simples que agora e que “ aprende” coisas ao
mesmo tempo que W alter. N unca fica segura da ajuda que dá ao filho,
e pede-lhe sempre para perguntar à professora n o dia seguinte. “ Bom,
eu digo, deixa com o está, si, por exem plo, no problema tem um erro
ou coisa assim, ou então em francês, eu explico, eu digo pra ele: ‘Olha,
W alter, v o cê erro’ . D aí eu digo: ‘Mas num tenho certezfl, pergunta pra
tua professora’ .” Portanto, parece que durante as lições de casa, W a l
ter encontra-se em uma situação em que se dá conta mais uma vez
das dificuldades da mãe, de sua frágil segurança cultural.
Q u anto à escolaridade de W alter, a senhora O . está totalm ente
a par de suas dificuldades, e chega a conversar com a professora uma
vez por semana. Diz que é a escrita que lhe traz mais problemas. Mas
o que chama principalm ente a nossa atenção é a form a com o a
senhora O . se com para rapidam ente com W alter. Diz assim: “A c h o
qui ele é com o eu, num qué sabê da escola” , de uma form a que faz
supor que as coisas se repitam co m o que por fatalidade hereditária.
“ É purque às vezes tem coisa quando falo com sua professora qui tenho
a impressão qui sou eu há 20 anos atrás. E v e jo eu di n o vo na 2a série,
quando meus pais eram sempre chamados, assim, pela professora, e
quando ela dizia: ‘A M . é isto e aquilo’, e é verdade, quando a pro-
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quarto, vem nos v e r e nos cum prim enta. A en trevista vai ser feita
c o m o pai, pois sua m ulher (qu e n o telefo n e disse que preferia
que fosse em um dia em que o m arido estivesse) perm anecerá ocu
pada nas “ suas” tarefas (dom ésticas, essen cia lm en te), e in tc rvi-
rá só de vez em quando.
N o com eço da entrevista, todos os filhos ficaram em tom o da mesa
e a televisão continuou ligada. Julgando rapidamente que havia baru
lho demais, o pai lhes diz para saírem, mostrando a porta e gritando
secam ente para o mais n ovo: “ V ai! Saia já !". De uma forma geral, a
entrevista desenvolveu-se sem reticências da parte do senhor M . A
discussão não foi perturbada por interferências, que se manifestaram
só em segundo plano. Durante uma boa parte da entrevista pudemos
escutar a senhora M . cozinhar ou fazer a faxina (afastar os móveis,
deixar cair uma vassoura...), hem com o as vozes das crianças.
O senhor M . de 43 anos, frequentou a escola dos 9 aos 14 anos,
na A rgélia, e comenra: “ N u m fiz grande coisa, né?". Ficou 3 anos sem
trabalhar, e em seguida ve io para a França com seu “ m ano” quando
tinha 17 anos. Fe: um estágio de m ecânica de autom óveis e tirou um
diplom a profissional. Depois desse estágio, empregou-se na C itroen ,
onde está até hoje; trabalha atualmente n o serviço de recepção dos
carros, que consiste em cuidar deles da chegada até o e n vio para os
clientes. O pai d o senhor M . era agricultor na A rgélia, e analfabeto.
Sua mãe ficava em casa e ajudava o marido. Ela também não sabia
1er n em escrever.
A senhora M ., que tem 40 anos, cursou a escola por 2 ou 3 anos,
na A rg élia , e lê e escreve um pou co em francês. N u n ca trabalhou.
Seu pai v e io para a França depois da guerra da A rg élia , e rrabalhou
no setor de recepção de mercadorias numa empresa. Freqüentou a
escola e sabia 1er e escrever um pou co o francês. Sua mãe. analfa
beta, era dona-de-casa. “ Fui eu quem foi buscá-la” , diz o senhor M .
referindo-se à sua mulher, que mora na França há 11 anos. Eles rêm
quatro filhos: um m enin o de 9 anos, que está na 3a série, uma m en i
na de 8, N abila, na 2a série, um outro de 7, na I a série, e finalm en-
re um m enin o de 4 anos, que frequenta o maternal.
N a b ila é considerada, desde o m aterna! (o n d e entrou precoce
m ente, aos 3 anos de idade), co m o uma criança “ agradável", “ bem
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pedindo explicações ( “ Eu não sou com plicado, então não com plico
minha v id a "), da mesma form a que pretere telefonar para um paren
te a trocar uma correspondência escrita, pois isso evita esperar a res
posta e perm ite escutar a voz da pessoa: “C o m o existe o telefone,
então dou um telefonem a, é preferível... N ã o é a mesma coisa que
escrever num pedaço de papel e esperar o ito dias pra saber (rindo)".
A senhora M . anota somente os números de telefon e em uma cader
neta e algumas coisas no calendário (consultas médicas, excursões
escolares das crianças...).
Mas o leque das práticas de escrita utilizadas pára aí, indicando
um grau bem fraco de racionalização doméstica. N ã o m antêm uma
caderneta de contas, n em escrevem lem bretes ( “ N ã o , não, esse n ão
c meu estilo, quando tenho alguma coisa pra fazer, eu penso nisso",
diz o senhor M .), não fazem lista de compras ( “ Dou uma olhada e
pronto, fica gravado” ), nem lista de coisas para fazer ou para levar
em viagem , n ão anotam nada em agendas, não copiam receitas cu li
nárias, não fazem anotações antes de dar um telefon em a im portan
te, quase não anotam nada durante um telefonem a, ou depois d ele
(a não ser que haja uma lista grande de docum entos solicitados, pre
cisa o senhor M ; "senão n ão adianta n ad a"), têm fotos dos filhos,
mas não organizadas em álhuns ( “ Fazemos uns pacotinhos” ), e não
escrevem nada atrás das foros. Tam bém não fazem palavras cruza
das de nenhum tipo ( “N ã o gosto", diz o senhor M .).
A lé m disso, várias informações demonstram que, apesar do dese
jo de que N a b ila “ seja boa” na escola, os pais estão hem alheios ao
sistema escolar e à escolaridade dos filhos. O pai não consegue dizer
espontaneam ente em que classes estão os filhos ("P reciso pergun
tar pra eles (rindo), porque eu ..."), e n em ele nem a mulher c o n h e
cem os professores. Seu interesse pela escola é m uito mais m oral do
que especificam ente escolar ou pedagógico: retêm a figura moral
(corajosa, franca, direta, trabalhadora e volu ntarista) d o diretor
( “ E um cara legal. Tom ara que dure, que fique lá. Ele se preocupa
com muitas coisas. In felizm ente não tem muitos que são assim. Ele
ajuda m uito tod o mundo. T em uns que não têm vontade de estu
dar. Eu, se tivesse a idade das crianças que ficam lá sem fazer nada,
conseguiría alguma coisa, tenho certeza. Ele não se incom oda, vem
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pura que ele pudesse tom ar alguma atitude: “ Tem que dizer antes
h- eles vêem que ela tá brincando m uito. P or que esperar o dia...
até o dia que ela vem trazer o boletim ?” . A com u n icação por vias
regulamentares e oficiais, com o o b o letim , para ele é perda de
tem po. G ostou que um professor do ano anterior tivesse d ito que
um de seus iilh os se com portava mal em aula, e conta que ele lhe
deu “ autorização" para “ corrigi-lo": “ Então eu disse: ‘O lh a eu te dou
autorização. Quando ele fizer isso, o senhor corrige, e eu faço a mesma
coisa d o meu lado. E a partir de agora, se o senhor vê que ele vai
continuar a brincar, não d eix e de me co n voca r im ediatam en te” ’ .
O problema é que, além de tudo, ele não compreende por que lhe
dizem que N abila brinca durante a aula, uma vez que não pode fazer
nada, porque não está presente. Segundo ele, quando os professores
notam que N abila está brincando, estão confessando sua falta de fir
meza. Se ele não está lá, não pode fazer nada: e se ela brinca, é porque
os professores deixam: “Ora, se ela brinca os professores estão lá para
(rtsus) corrigi, né? (Risos.) N ã o sou eu que vou ver isso... se eu não tô
lá” . Interpreta, portanto, o fato de a filha brincar com o um excesso de
liberdade dada às crianças: "Se eles brincam demais, com o tá marca
do no boletim, é que a menina encontrou liberdade. E a criança que
é livre". O pai mostra com isso que não concebe o tato de que uma
educação diferente podería levar N abila a brincar menos em aula. E,
reagindo a partir do único m odo de autoridade que conhece — o dire
to e imediato — , diz que quando não está presente, não pode fazer nada,
e o responsável é o professor. O senhor M . preferiría, portanto, que os
professores “fossem severos com as crianças desde o início. Elas não
têm que brincar muito na classe. Eu prefiro que eles tentem controlar
mais as crianças, né?, porque... A s crianças, se a gente deixa elas brin
carem, é normal, elas vão brincar, né? Se a gente tentar tomar um pouco
conta, elas não vão brincar". Os efeitos não previstos dessa forma de
exercício da autoridade residem no fato de que, uma vez atenuada a
coerção, ou seja, assim que as crianças conseguem encontrar a “ liber
dade” , com o diz o senhor M ., seu comportamento pode ser menos con
trolado. N ã o tendo aprendido a se autodisciplinar, elas podem estar
deslocadas diante de uma situação escolar que exige um m ínim o de
autonomia. Esses efeitos estão atenuados (ainda que presentes) no caso
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de Nabila, que, pelo fato de passar por lima socialização fem inina que
a leva ao exercício de suas responsabilidades familiares (ajuda nas
tarefas domésticas, responsabilidade educativa junto ao irmão menor),
aprendeu a ser muito mais dócil e "responsável” que os irmãos” . Os
professores notam que ela é "trabalbadeira", “ clara", "ordenada” , qua
lificativos que poderíam ser característicos de uma “boa dona-de-casa".
U m capital cultural pouco disp on ível, um fraco grau de racio
nalização dom éstica, uma vigilân cia mais moral que escolar e uma
form a direta e exterior de ex ercício da autoridade fam iliar: eis os
traços que, com binados entre si, forn ecem a configuração fam iliar
a partir da qual N a b ila consegue, d ificilm en te, apesar de uma adap
tação relativa ao com portam ento escolar, apropriar-se dos co n h e
cim entos escolares.
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tem ente com um liv ro com posto por uma história para cada dia do
ano e compra, às vezes, para Salim a “ livros de histórias, Branca de
Neve, coisas desse tip o ” . C onsidera evid en te ( “ A h , claro, felizm en
te” ) que seus filhos possuam sua própria biblioteca.
A lé m disso, em bora ele próprio não escreva, “obriga" os filhos a
fazerem coisas que ele "n ã o faz" (n ão pôde fazer) em matéria de prá-
ticas de escrita. Pede-lhes, por exem plo, para ter uma agenda para
prever e lembrar-se do que devem fazer: “Forço as crianças a escre
verem coisas importantes no calendário, mas eu não. Sei lá, quan
do tem alguma excursão com a escola, coisas desse tipo digo: ‘pre
cisa anotar antes que...1Q uando chega o dia, a gen te sabe que ele
está la. H bom pra eles, eu acho. Assim eles sabem que, sei la, nesse
dia tem que ir em tal lugar, ou noutro dia, ele va i fazer outra coisa.
Por isso faço eles marcá, H também no fim do ano eles sabem o que
fizeram, sei lá, coisas assim. Em princípio, eles marcam. E um calen
dário com umas páginas, C o m o chama isso? U m a agenda". Ele tam
bém os incentiva a ter um diário das férias para contar o que fize
ram, e, nesse m om ento, exprim e seu ressentimento em relação a essas
práticas que gostaria de poder ter feito, pois poderia conservar lem
branças precisas de seu passado. Salim a é que parece ter interioriza
do m elhor os desejos paternos: “ Eu os obrigo quando saem de férias.
Eu digo pra eles: ‘Tem que fazê um diário, o que vocês fizeram de dia,
por exem plo, o que vocês fizeram durante nas férias, essas coisas'.
Bom, o mais v elh o num faz nunca. É raro si escreve um bilhete, mas
ela (S a lim a ), tô certo que quando ela ficar de férias, ela pode fazer
um diário enorm e. Sou eu que digo pra ela fazê. Eu falo: T u rqu e é
bom pra vocês’ . E legal, si eu pudesse ter feito, ah, que pena! Porque
eu m e arrependo di não ter Lembranças de toda minha juventude,
sabe? Porque é uma pena. Si tivesse escrito, taria tudo escrito, né?
O que a gente escreve fica” . Existe, portanto, entre o senhor T . e seus
fi lhos, laços que passam pela escrita. Seria um acaso o fato de o filh o
ser “ávido de conhecim entos" e a filha, que gosta de escrever histórias
a partir do que lê, desejar ser “ escrevinhadora” ( “ Ten h o von tade de
ser escrevinhadora quando for grande"; “ Invento muito", ela diz, falan
d o de histórias)’5? O s filhos sabem que dão prazer ao pai quando se
saem bem na escola e escrevem para e le A
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la", com o se diz frequentem ente de maneira lapidar, mas essa forma
sumária de colocar o problema desvia o olhar da sutileza do duplo con
flito viven ciado na intersecção de duas redes de interdependência)
quanto entre a criança e os membros de sua família.
Por conseguinte, a maneira co m o os membros da configuração
fam iliar viv e m e tratam a experiência escolar da criança, re v iv e n
do, às vezes, através dela, sua própria experiência escolar passada,
feliz ou infeliz, se mostra co m o um e lem en to central na com preen
são de certas situações escolares. Os adultos da família, às vezes, vivem
numa relação hum ilde com a cultura escolar e com as instituições
legítim as e podem transmitir à criança seu próprio sen tim en to de
indignidade cultural ou de in com petên cia (cf. os Perfis 11 e 12 e
também o Perfil 8 ). Mas, ao contrário, podem com unicar o senti
m ento de orgulho que experimentam diante dos bons resultados esco
lares da criança, ou en tão olhar com b en evolên cia a escolaridade
da criança, apesar da distância qLie os separa d o m undo escolar (cf.
os Perfis 13 e 14 e também os Perfis 16 e 25).
O apoio moral, afetivo, sim bólico se mostra tanto mais im portan
te quanto sejam pequenos os investimentos familiares (p o r exem plo,
o caso dos pais analfabetos). Ele possibilita à criança sentir-se inves
tida de uma importância exatam ente por aqueles de quem ela está
em via de separar-se. C o m efeito, com o sublinhava M aurice Halb-
wachs a propósito da dor (psíquica ou física), esta se mostra mais supor-
tisvel quando podemos imaginar "que ela pode ser experim entada e
compreendida por várias pessoas (o que não seria possível se perma
necesse uma impressão puramente pessoal e, então, ú nica)” , pois nos
parece, então, que "transferimos uma parte de seu peso para os outros,
e que eles nos ajudam a suportá-la'” 1'. E, se a criança consegue, no ponto
de cruzamento da configuração familiar e da configuração escolar, tor
nar o trabalho escolar o local de constnição de seu valor ou de sua
legitim idade própria, então as “desvantagens” de origem podem aré
tornar-se uma fon te de desafio suplementar para a criança.
A “ herança” familiar é, pois, também uma questão de sentimen
tos (de segurança ou de insegurança, de dúvida de si ou de confiança
em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de
privação ou de dom ínio...), e a influência, na escolaridade das crian-
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sei co m o ele faz, mesmo das vezes que ele não aprende, ele sabe".
A senhora C . julga correram ente ortografada uma palavra mesmo
que esteja com “aproxim adam ente uma letra" errada, ao passo que
a escola considerará que um erro por palavra é sinal de um péssimo
d om ín io da ortografia.
Os pais tam bém n ão com preendem as novas regras pedagógicas
que abalam um pouco certezas e transtornam as poucas referências,
ligadas à sua própria experiência escolar, qrie tinham em relação ao
sistema escolar. C riticam a escola por n ão dar muita tarefa, com o
na época deles ( “ A gente acha em relação à nossa época — é, a gente
com para — , a gen te acha que... eles não têm muita tarefa c o m o a
gente, antes"), e acham que há pouca severidade (m esm o que p en
sem que, em sua época, fosse muita ("E a gente, na nossa época, o
que a g e n te levou um chute. E isso não é m étodo", diz o senhor C .)
e pouca aprendizagem “de cor” . C ritic a m tam bém o m étodo de
aprendizagem da leitura mais global (eles não em pregam essa pala
vra ), que não lhes parece bom, e ao qual parecem atribuira respon
sabilidade da dificuldade de leitura do filh o. O senhor C . diz: “ Eu
não aprendi assim. A p rcn d i com eçando a aproxim ar as letras. O
senhor vê, ele não. Ele, é tudo de cor, ora. N ã o gosto disso. Eu c om e
cei aprendendo palavrinhas, mas letra por letra, e depois a gente
aprendia bem e depressa, enquanto agora... N ã o aprendem mais
nada"; e a senhora C.: “ E eles não aprendem o alfabeto com o a gente
na nossa época. E a gente pensa que se ele tivesse aprendido o alfa
beto co m o a gente, teriam o m étodo que a gente tinha antes, penso
que ele teria conseguido 1er. N ã o precisaria da fo n o a u d iólo ga ” .
Dem onstram, assim, uma form a de desespero diante das mudanças
pedagógicas que não dominam.
Mas as regras de vida ou as exigências escolares impostas a A lb e r
to são também m uito raramente aplicadas de form a m uito rigorosa.
A análise das palavras dos pais faz surgir elem entos que entram em
contradição com a vonrade real declarada por outro lado. Por exem
plo, A lb e rto não fica n o horário de estudo livre, mas vai à casa de
sua " v o v ó ” . Sua mãe diz que ele “ rem” de fazer suas tarefas até ela ir
buscá-lo depois que sai do trabalho (por volta das 18h), mas, frequen
tem ente, quando ela chega, encontra-o brincando. Assim que chega
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Sra. G : O que a gente quer para ele é que aprenda. Que aprenda bem
e que vá mais longe do que... do que a gente foi. A gente quer que vá
mais longe, se não é... se for possível. Mas isso depende dele, se tiver
vontade, que ele tenha diploma, que vá mais longe, ora. Porque agora,
agora, não é, se a gente não tem diploma, não tem nada, não é...
E: E o que é que vocês chamam “será que há um mínimo” , vocês
querem dizer: “ É preciso que ele atinja um mínimo, para...” ?
Sra. C.: Bem, a gente gostaria muito que ele terminasse o 3S cole
gial, mas não dá pra pedir muito, não é...
E: E, pelo jeito de vocês, parece que não têm muita certeza...
Sr. C.: E que ele já tá pensando em trabalhar comigo.
E: Já?
Sr, C., rindo: Sim, mas... ele tava me falando disso... Me fala disso
sempre.
Sra. C.: Ah, é.
Sr. C., dirigindo-se ao filho: “E então, você que ir com o pai? Veja
bem, heia, lá não é... não é a escola” .
Sra. C.: E mais Juro que a escola.
E: Vocês acham que seria bom que ele terminasse o 2a grau, mas,
no momento, vocês não acreditam muito nisso, se é que estou
entendendo bem?
Sra. G : Sim, não, mas não acredito muito. Principalmente com,
bem..., como ele tá se comportando na escola e com as notas que tem.
Sr. G : Ele vai mudar. Não é, Alberto?
Sra. G : A gente espera, pra ele, que ele mude.
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camos que se trata de seu filh o, de sua vida na escola e na fam ília,
nos diz então: "S e é p elo meu filh o, me interessa” .
N o dia do en co n tro , estam os um p ou co adiantados, e c o m e
çamos a en trevista em torno da mesa da sala de jantar, com a mãe,
que fala m u ito h aixo e parece estar intim idada. Ela chama R obert,
que escá em seu quarto. Ele chega, nos dá hom -dia, perm anece
um instante atrás da mãe e, depois, senta-se à mesa, e não se m exe
rá mais até o fin a l de nossa conversa. In tervirá em alguns m o m en
tos, p rin cip alm en te sobre as questões de escolaridade e de a t iv i
dades extracurriculares, porque seu pai dem onstra d ificu ld ad e
para falar destas de m aneira detalhada. Q u a n d o o pai chega, des
culpa-se por estar atrasado (apenas dez m in u tos). C o m eça m o s a
en trevista com a mãe, contin u am os co m os dois pais e, depois,
apenas com o pai (a mãe tem uma hora marcada n o fisio tera p eu
ta ), e en fim a term inarem os co m o casal. N o decorrer da e n tre
vista, o pai nos o ferecerá algo para heber. Ele e a m u lher nos agra
d ecerã o por nossa visita ao sairmos.
O pai de Robert, de 46 anos, nasceu na Itália, e conserva um forte
sotaque italiano, assim c o m o os estigmas de uma apropriação tardia
do francês (por exem plo, enuncia “ pourquoi” para dizer “ parce que” ,
“ il” para “ e lle "...)*. N a Itália, fo i à escola, mas não tirou nenhum
diplom a. M u ito jo vem , foi colocad o para trabalhar co m o pintor de
paredes. Q uando ve io para a França, com 17 anos, trabalhou com o
operário montador, e em seguida, depois d o serviço militar, com o ire-
sador em uma empresa de fabricação de tubos de aço para cadeiras.
Desde os 22 anos está na mesma empresa, onde galgou todas as esca
las e, atualm ente, é OP2"'!. Seu pai era sapateiro na Itália, sabia 1er
e escrever, e tinha até uma “ bela caligrafia” . Sua mãe transportava
água de uma aldeia para outra e lavava roupas para algumas pessoas.
A mãe de R obert, de 42 anos, abandonou a escola com 12, “ por
causa da guerra da A rg é lia ” . Ela, na verdade, é francesa da A rgélia .
Entre os 10 e 13 anos, tom ou conta de crianças, depois o b teve um
C ertifica d o de A prendizagem Profissional de C o rte e Costura. Em
* Pourquoi, em francês, c empregado para uma pergunra (por que), c parce que, pura uma
resposta (porque). I l e elle são, respectivamente, e le e cia. (N .T .)
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ao marido ou aos filhos ( “ Q uando ela não tá quando v o lto pra casa,
pior, quando tenho que fazê alguma coisa, então ele me escreve. A t é
pro R obert.” ), redige listas de compras, anota algumas coisas n o ca
lendário da fam ília, guarda fichas de receitas e as classifica, cuida dos
álbuns de fotos e anota coisas atrás das fotos (R o b ert diz que “ atrás
das fotos, ela escreve coisas, os nom es da pessoa que está na fo to ” ).
O senhor E, por sua vez, se mostra saudoso de uma Itália rural menos
burocratizada do que a França urbana contem porânea, e onde havia
menos papéis e incôm odos administrativos: “ A Itália não tem pape
lada. Enfim, acho qLie antes era melhor. A gente esquenta m uito a
cabeça, de verdade, hein. A vida que a gente tá levando h oje não
dá pra acreditá".
A lé m disso, o senhor e a senhora E demonstram mal-estar em
relação à escola primária, que não se assemelha mais à que co n h e
ceram. O pai, por exemplo, parece perdido e quase escandalizado dian
te da tabuada que pediu para o filh o ir buscar e que nos mostra. São
as linhas de “ 0 " que lhe parecem aberrantes, inúteis. D e qualquer
forma, não fo i assim que ele aprendeu, e parece um pouco espanta
do com as “ mudanças pedagógicas” : “ Zero, zero, zero, zero. O que é
esses zero? Então por que põem os zero aí? Pra mim, a escola quan
d o eu, partia de 1 igual a 1. Sim, mas se a gente tira tudo isso, não
é m elhor pro m en in o pra decora? Então, ele precisa decorá o zero
na cabeça. Ele com eça de zero. N ã o é m elhor tirar isso? Bem, eu não
sei, mas é bobo isso. Podiam tírá os zero, é mais simples. Q uanto mais
simples, o m enin o decora, é isso. Bem, num sei não". A lé m disso, a
escola tem co m o missão, do ponto de vista deles, instruir, transmi
tir conhecim entos necessários para sair-se bem na vida. Para eles,
fica claro que é a alfabetização que tem a primazia, e que todas as
novas atividades escolares (esportivas, culturais) lhes parecem supér
fluas. Por exem plo, a senhora F. pode com preender por que Robert
está aprendendo a nadar, pois é “ útil” , mas não para que lhe fazem
praticar a luta. Q u anto ao pai, ele acha útil saber que tal país fica ao
norte de outro ( “ C on cord o, isso serve” ), mas inútil estudar história.
A o m esm o tem po, o senhor e a senhora F. não estão privados
objetivam en te de investim entos culturais. Ela tem um C ertifica d o
de A prendizagem Profissional, e ele pouco a pouco se tornou ope-
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extrem am ente recorrentes para que se possa crer n o acaso: tím ido,
apagado, bloqueando-se em m atem ática, em bora conh eça muitas
coisas de ciências e geografia, construindo um co m p le x o de in fe
rioridade ao pensar que vai se enganar, e que não vai saber fazer,
rendo problemas de m emória, tantas características que também ser
viríam m uito bem para descrever sua mãe. Assistim os, pois, a uma
verdadeira reencarnação social dos problemas (e também das pre
ferências) da mãe na pessoa do filh o 61.
E com o se, por amor à mãe, ou em virtude da relação socioafeti-
va que o une a ela, R obert não pudesse permitir-se passar (ou pen
sar) por cima dela. Da mesma forma que ela lhe transmite suas pre
ferências, transmite-lhe suas dúvidas, sua total falta de segurança, seus
problemas de memória, seu bloqueio em cálculo... U m pouco com o
no caso da senhora O . (P erfil 8 ), assistimos a uma troca entre duas
experiências: a do filh o e a da mãe. A liás, os professores apontam um
ligeiro progresso no decorrer d o ano d evido a diversas intervenções
que, sem dúvida, contribuíram para dar a R obert confiança em si. Ele
está indo à fonoterapia, é acom panhado em horário de estudo livre
durante três m eios-períodos por semana, e seus professores notam
mudanças positivas: “ Ele progrediu” ; a classe de recuperação “ lhe fez
um bem enorm e” ; “ Ele não mais escreve qualquer coisa” em m ate
mática; "A go ra , ele até utiliza um procedim ento de reflexão” ; "E
muito mais legível". E o termo “ bloqueio", utilizado por um profes
sor para evocar as dificuldades em matemática, nos parece particu
larmente adequado, na medida em que R obert interiorizou, no decor
rer das relações intrafamiliares, uma série de complexos.
O que se mostra, por conseguinte, aos professores, com o um pro
blem a “ m édico" num dado m om ento, isto é, com o um caso que não
dizia respeito apenas à competência pedagógica deles ( “N ós não somos
médicos, não tem os muita coisa a fazer” ) é apenas um caso cultu
ral de interiorização particularmente forte de relações familiares com
a escola so ciologica m en te co m preen sível; uma tal situação não
pode, sem dúvida, encontrar m elh or solução escolar que não seja
pela construção de outras relações sociais que possibilitem a Robert
encontrar outros pontos de apoio (extrafam íliares) para ven cer seus
com plexos e seus “ bloqueios” .
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do. Seu pai v e io ter com igo, e depois foi talvez uma irmã mais velh a
que passou um dia, me parece. Portanto, com o era preciso, eu lhes
pedi que prestassem muita atenção para que fosse tudo assinado, e
que olhassem um pouco as tarefas ã noite. Pelo menos o essencial,
digamos. Aparentem ente, isso deve ter sido feiro, uma vez que se recu
perou e tudo. Penso que não tem grandes problemas". A fam ília, por
tanto, desem penhou um papel eficaz em relação a SouytaM.
Fora essas irregularidades n o com portam ento, e mais raram en
te nas notas, Souyla é considerada, desde o maternal, co m o uma
hoa aluna. Destacamos sua capacidade de fazer um trabalho com
aplicação, sua m otivação pela leitura, seu interesse p elo trabalho
feito em classe e sua vivacidade (que, às vezes, pode se tom a r “ c o n
versa” ). N a última avaliação d o ano, ficou em terceiro lugar, pro
vando que seu “ sucesso” perm anece estável.
O caso de Souyla é o exem plo de um “sucesso” escolar numa c o n
figuração fam iliar que, em relação aos critérios sociológicos h abi
tualmente considerados (profissão, n ível de diplom a dos pais, núme
ro de filh o s ), não parece poder preparar eficazm ente para bons
desempenhos escolares. Pais analfabetos, um pai aposentado, ex-op e
rário de obras públicas, com um discurso m uito im plícito, dom in an
d o fracam ente o francês, n ão con h ecen d o o sistema escolar (suas
exigências, as classes de seus filhos, seus desempenhos), pais que vivem
uma ruptura cultural e, principalm ente, lingüística com os próprios
filhos"', onze filhos... não seria preciso tanto para com preender uma
situação de “fracasso" escolar, principaím ente quando se compara,
segundo os critérios que acabamos de enumerar, essa situação fam i
liar cm relação a outras configurações fam iliares já analisadas. E, no
entanto, estamos com um caso, realm ente, de "sucesso” .
D e in ício, esse caso prova que o in vestim en to pedagógico não
é a única e exclusiva ch a ve para conseguir que, d o p o n to de vista,
as crianças, em meios populares, tenham "êx ito ". O s pais, neste caso,
exercem uma vigilân cia moral qtie ultrapassa muito o caso da esco
la. N ã o poden do ajudar os filhos na escola, o im portante para eles
é fom ecer-lhes boas condições de vida, dar-lhes o que precisam, para
que trabalhem o m elhor que possam: “ N ã o fui na escola. O que é
que v ô d izê? T en h o m inha filha, hein, eu num en tendo nada, o que
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c que vou mandá lê? H ein? Se vocês é capaz, vocês tão certo. Mas
ve não, bem, se vocês estuda, é pra vocês, não é pra mim. Bem, vocês
ião ben vvestido, com e bem e tudo, não farta nada pra vocês! Só
tem que estuda. M asse vo cê num consegue, o que é que cê q u é? T á
bem, mas o que é que eu ten ho que fazê? N ã o aprendí lê em fran-
cês e lê e escreve. N u m consigo, e com o é que vô fazê? H ein ?".
Eles interferem, assim, mais na periferia da escola do que na esco-
la. E o pai que leva e vai buscar Souyla na escola (alternando esse
papel com um v izin h o), e conhece as crianças com as quais ela brin-
ca, pois são crianças da vizinhança. Q uando ela tem aula no dia
seguinte, os pais ficam atentos para que Souyla vá se deitar, no mais
tardar, às 21h30. Eles a mimam se ela tem bons resultados e, princi
palmente, se são respeitados por ela. O senhor B. diz que se ela gosta
de brincar com amiguinhas, ele, entretanto, não tem de que “ repro
vá-la”, pois ela o "respeita” : “ Dizem, ela é um pouco a queridinha do
papaí, ela, e da mamãe também. Sim, mesmo quando ela discute com i
go de verdade, me respeita, tá vendo". Os pais "gritam ” ( “G rita um
pouco, assim m esm o” ), “oprim em ", “ privam ” , “ maltratam” , se for
preciso, no m om ento certo ( “ Souyla, n o m om ento, tá indo bem, mas
se com eçar a... precisa oprim i ela um pouquinho, precisa estuda, Ele
me diz pra mim, eu digo pra ela o que precisa (sorrindo) fazê. N u m
posso ficá vigiando ela. Se você marcá quarqué coisa n o caderno, tá
certo” ), tanto quando ela faz bobagens quanto quando ficam saben
do (raramente em seu caso) que há um problema na escola, mas pare
cem, por outro lado, estabelecer um contrato de confiança com os
tilhos. Por exem plo, o senhor B. se mostra absolutamente com preen
sivo em relação às vontades de seus íilhos. N a quarta-feira à tarde,
Souyla queria praticar esporte na escola, e o pai conta que se limitou
a assinar e dar o dinheiro: “ [Souyla] vc o que faiz à tarde, é d iverti
do, o esporte. E ele diz: 'Papai, eu fiz isso*. N u m posso dizê sim ou não,
então, ele queria o esporte, eu disse sim. N u m v ô dizê não. Eles, eles
faiz o que querem, heim , então eu num posso dizê, é eles que esco
lhe. Então, ele diz isso e, bem, eu dô o dinhero pra ela. E é só: ‘ Se
você qué o d in h eiro’, com o o esporte, nóis pagô 50 franco, hein?” .
E claro que, em relação à escolaridade de Souyla, são as três
irmãs mais velh as presentes na casa que desem penham um papel
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to. Mas às vez vai chegá uma carta com o essa, não sei, talvez um
salário-fam ília ou mesmo im posto, da televisão, não sei, hem, ela
me explica. Ela fala: ‘ Papai, quando precisa pagá, presta atenção,
precisa passar lá hem na data’ . Ela, en tretanto, às vezes, preenche
ela mesma os docum entos da escola".
O senhor B. não tem talão de cheques, e, quando precisa p reen
cher uma ordem de pagam ento que envia à fam ília, é sempre A . que
se encarrega disso. Q u ando era ele que se encarregava de arrumar
os docum entos, estes não eram classificados: “ Das vez procuro um
papel qualqué, levo 15 m inuto". Desde que A . o faz, ela os arruma
numa grande pasta: “ A go ra , com o A . está n o co légio , é quem cuida
quase de tudo agora, os documentos. Ela com prou uma pasta gran
de assim. Tem folhas lá dentro em branco, e ela, por exem plo, pões
as conta de luz de um lado, os impostos de outro, as ordem de paga
m en to de outro, os holleriths de outro, tudo ao lado. (Riso.) Ela
marca, isto é, põe um paperzinho assim, cola ele, faz isso pros impos
to, esse é pras conta de luz, esse é pro aluguel, tudo. E bem arrumado.
(Riso.) A n tes, eu punha no troço assim. Q u an do co m eço a procu
ra arguma coisa, renho que procura por tudo lugar” . A ., portanto,
introduziu classificação, organização na fam ília. A utilização de
pasta faz pensar que a escola, com sua lógica de diferenciação em
matérias, em disciplinas, em horários, não está alheia a essa práti
ca, e que contribuiu para a racionalização dos docum entos fa m ilia
res. O senhor B. guarda todos os números de telefon e na cabeça
( “ Ten h o todos eles na cabeça, tu do!"), mas A . anota todos os núm e
ros num caderno ( “ Ela marca tudo, A ., agora "). Enfim, o senhor B.
diz que, frequentem ente, utilizam os calendários para anotar os
compromissos ( “ A h , sim, claro. Os compromissos assim, a gente
marca, cla ro "), e ainda é A . quem se encarrega de anotá-los.
Samira só participa dos atos de leitura e escrita da fam ília modes
tam ente em relação à irmã mais velh a (ela confirm a que é antes a
“ irmã mais v elh a ” quem se encarrega), mas contribui assim m esm o
a esse au xílio mútuo familiar, e vê, por interm édio da irmã, a im por
tância sim bólica conferida pelo pai às com petências de leitura e de
escrita dos filhos. Ela mesma conta, orgulhosam ente, que, na m edi
da em que seu pai “ sabe 1er um pouquinho, algumas palavra, mas
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não tudo” , ele pede à irmã, assim com o a ela própria, para 1er para
ele cartas em francês: “ E quando ele recebe cartas em francês, hem,
é nós quem lê elas” .
Mas o segredo do sucesso escolar de Samira reside essencialmen-
re no ethos familiar m uito coerente que é posto em prática com muita
regularidade e sistem aticidade. Os pais exercem um con trole moral
em todos os instantes, e o co n trole escolar surge com o uma parte
entre outras do controle exercido mais amplam ente em todos os seto
res da existência.
O s pais são, in icia lm en te, m uito rigorosos em relação às horas
de deitar-se (S am ira se deita, n o mais tardar, às 20h45 e declara
ela própria co m er às 7 em p o n to ). Fixam lim ites que não d evem
ser ultrapassados, que se aplicam a todos os dias da semana, e x c e
to o sábado, quando as crianças podem ver os desenhos anim ados
na T L M ;' (os pais exercem uma censura sobre os tilmes vistos) e
deitar-se às 21h45. Em seguida, Sam ira, assim co m o o irm ão ou
as irmãs, não sai para hrincar sozinha n o bairro ( “ Ele não sai
nunca, só se eu saí c o m ” ), e os pais a leva m e vã o buscá-la na esco
la. O fato é apresentado, tanto pelo lado d o pai quanto de sua filha,
co m o sendo uma escolha da parte dos filhos. É Sam ira quem não
quer sair para brincar fora ( “ N ã o ten h o vo n ta d e. G o s to mais de
fica r em casa d o que de s a ir"), é ela quem n ão gosta de ir às excur
sões escolares sem os pais, é ela tam bém que, durante as férias, n ão
quer fica r longe da fam ília. O pai esclarece que é ela quem não
quer sair, mas que ele prefere que as coisas sejam assim. Estamos,
pois, na esfera da c o erç ã o bem interiorizada pelos filhos. E essa
interiorização só é tão p erfeita 7' porque a ação fam iliar é con stan
te. O s filh os v iv e m p rin cip alm en te (fo ra da escola ) num u n iver
so de referências morais, cuidam de todos os seus possíveis im pos
tos e ign oram ou rejeitam as coisas im possíveis ou contraditórias.
M as o am finam ento simbólico n o universo fa m ilia r só é possível se
os pais ( “ Eu fa ço apenas pros meus filh o , pra m im num interes
sa", diz o pai) oferecem aos filh os m om entos de descontração, pas
seios: “ A gen te sai. N u m é preciso ficá sempre em casa, parecen
d o uma prisão. (R is o .) D urante as férias v o c ê tem o d ireito de sair
um pou qu in h o pra tom ã ar, prá mudá” A
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o que leu (ela lhe falou, por ex em p lo , d o que leu sobre a h istó
ria, há “ 100 ou 200 anos” ) 77.
De m o d o geral, o senhor e a senhora R. estabelecem sua au to
ridade na interiorização, pelas crianças, de disciplina e dão um lugar
essencial à atenção e ao d iá logo. M esm o que o pai n ão possa e x e r
cer vig ilâ n cia direta nas questões escolares, o d iá lo g o que m an
tém acerca da escolaridade possibilita a in tegração sim bólica no
seio d o universo fa m ilia r da exp eriên cia escolar de Samira. A lé m
disso, para o senhor B. “ num serve pra nada batê n eles" para lhes
m od ificar o com portam en to. S egu n do ele, é preciso falar com
eles, even tu a lm en te gritar para causar-lhes m edo ou puni-los, mas
não bater neles. Q u a n d o lem bram os os casos de fam ílias m uçul
manas que proíbem os filh os de falarem à mesa, ele ch ega a dizer:
“ E, é verdade, existe isso, mas nós, a gente se fala” e acrescenta:
“C o m as crianças, cê n ão consegue parar as criança. (Rmdu. ) N ã o
consegue. Pára uma, depois a outra com eça. (Riso.) C ê d eixa tudo
pra lá {rin d o )".
A lé m dessa ordem moral familiar, o pai calcula o orçamenm, sepa
ra uma quantia de dinheiro para a poupança, para poder enviar ordens
Je pagam ento â fam ília, m ostrando, assim, uma relação co m o
tem po pessoal, feito de paciência e ascetismo: “ Sim, das vez, a gente
pensa assim: mais ou m enos 2000 franco pro aluguel, num sei, pra
luz 400, telefon e 300 mais ou menos, a gen te faiz as conta assim. A
gente fala, por exem plo, 400 0 exato pro aluguel, luz e im posto, e
tudo, e deixa um pouco na caderneta de poupança, e quando a gente
precisa, a gente rira, é isso". Ele até mandou construir uma casa no
Marrocos, durante 12 anos (en tre 1968 e 1980), sinal de uma dis
posição para poupar e ter paciência: “ Doze anos, porque eu faço deva
garinho, porque não tinha c o m o ". Pouco a pouco, separando uma
quantia de dinheiro, ele conseguiu pagar os serviços de pedreiro.
Desde o maternal, os professores n otam o fato de que Sam ira “ se
preocupa m uito co m os outros, em d etrim en to de seu próprio tra
balh o (seja ajudando, seja avisando pequenas coisas)” . N a pré-
escola, as professoras observavam que ela tom ava conta de seus co le
gas. N a I a série d o I a grau, esse com portam ento persiste, uma vez
que a professora diz que ela é “ m uito prestativa” , “ m uito am ável” ,
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Assim com o a história das idéias que, com o escrevia M ich el Fou
cault, atribui ao discurso um "créd ito de coerência” , as concepções
globalizantes que vêem em cada fam ília um pequeno mundo tota l
m ente coerente, unitário, às vezes uniform e, subestimam, frequen
tem ente, as diferenças de investim entos, de disposições, de o rien
tações e de interesses que caracterizam os diversos com ponentes da
configuração familiar.
E claro que tudo é uma questão de p o n to de vista e de escala
dos contextos que o pesquisador se propõe reconstruir. Pode ser útil
caracterizar a fam ília com indicadores m uito gerais, tais co m o a pro
fissão d o ch efe do lar, assim que se pretenda com preen der as linhas
gerais de uma situação social global. A s correlações estatísticas entre
variáveis nos dão co m o que visões panorâmicas, co n form e ângu
los específicos. Se esse p o n to de vista revela o espaço em suas
linhas gerais, suas estruturações mais genéricas, ele, entretanto, não
possibilita esclarecer as múltiplas particularidades mais finas, apa
gadas sob o e fe ito do distanciam ento. Pode, por conseguinte, ser
muitíssimo útil h eterogen eizar o que parecia h om ogên eo aos olhos
da visão estatística.
A atenção para co m fenôm enos, tais co m o o fato de pertencer
mos, simultânea ou sucessivamente, a vários grupos ou com o a trans
form ação progressiva dos grupos aos quais participamos, o que im p li
ca que nunca estamos totalmente no mesmo grupo em momentos dife
rentes da história desse grupo (duas crianças que pertencem a uma
mesma frátria não nascem e não v iv e m nunca exatam ente na mesma
fam ília), ou tais com o o fato de frequentarmos segmentos ou frag
mentos singulares de cerros grupos, já está bem presente no traba
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gente faz sempre esporte. Isto é, o que a gente quer é escalar o A tlas
do M arrocos, o m aior A tlas do Marrocos. E isso que é meu estágio".
A senhora B. é mãe solteira, e não m encionará o pai de sua filha,
que nunca a conheceu. Nasceu na França, mas sua nacionalidade
é argelina. Seu pai, chegado em 1954, h oje é aposentado, fo i o p e
rário em fundição. Ele nunca foi escolarizado, e não sabe 1er nem
escrever (em francês ou em árabe); fala misturando palavras fran
cesas e árabes. Sua mãe, na França desde a idade de 16 anos, nunca
trabalhou e é analfabeta com o o m arido ("L á , ela nunca pôde ir à
escola; seus pais não deixaram ” ). O s irmãos e irmãs da senhora B.
tiveram resultados desiguais na escola: ela tem um irm ão que co m
pletou o 2° grau, uma irmã que tem um C ertifica d o de A pren diza
gem Profissional de cabeleireiro, dois outros irmãos que pararam os
estudos depois d o ginásio e um ú ltim o que está na últim a série do
2 a grau (co n ta b ilid a d e). C om preen dem os por que a senhora B.
marcou o en co n tro na escola. V iv e na casa dos pais e d ivid e um
quarto do apartam ento com a filha. Sem dúvida, a escola, mais do
que o espaço familiar, lhe possibilita falar mais livrem en te.
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definições não consigo encontrar. Então tem uma palavra que não
sei o que quer dizer. Tem uma, não sei o que quer dizer, então desis
to. Então, não consigo. A s palavras embaralhadas, é mais prático
pra m im ” . Tam bém diz nunca ter tido diário pessoal. Gostaria, mas
acha que é m uito d ifícil pôr por escrito. Tam bém foi apenas recen-
tem ente que aprendeu, n o estágio, a escrever com eçando por um
foamstormíng ( “ Então, o que eu aprendi ultim am ente é fazer um
íraím.stormmg [sic] sem m edo, e depois tudo o que sinto, tudo o que
me vem na cabeça, numa folha e, depois, trabalhar em cim a disso,
é. E isso que estou fazendo agora").
Ela não faz listas de coisas a serem feitas, não gosta de agendas,
porque diz não suportar ver as semanas passarem, não escreve ca r
tas à fam ília ou a am igos ( “ N ã o me diz nada escrever” ), e x c e to se
os pais lhe pedem para ter notícias da fam ília na A rg élia , e “ nunca”
faz listas das coisas a serem levadas numa viagem ("T u d o de im p ro
viso, eu im proviso n o ú ltim o m om ento. N ã o esquento a cabeça com
isso"). Tam bém não redige listas de coisas a serem ditas antes de
telefonar, e con ta que foi censurada por isso no estágio. A prepa
ração escrita, que retira a espontaneidade do discurso, in com od a
a senhora B. Portanto, ao mesmo tempo, diz de sua dificuldade dian
te dessa plan ificação escrita d o que vai dizer e de sua preferência
pela espontaneidade da fala, p elo senso linguístico prático: “O d ire
tor lá on d e eu fazia meu estágio m e disse: ‘ E m elh or anotar, dizer
antes para saber o que se quer dizer a um c h e fe ’ . Mas eu im p ro v i
so no ú ltim o instante. N ã o esquento a cabeça. N ã o gosto de a n o
tar toda vez e, depois, olh ar m inha lista, isso me perturba um
pouco. Eu, é verdade, eu, esses n egócio, não gosto de je ito nenhum.
Isso m e incom oda m uito. T en tei. A gente queria organizar uma v ia
gem para os desem pregados que recebem o R M I, então, a o rien ta
dora nos preparou a lista, então, c o m o era eu que telefon ava, aqu i
lo m e in com odava m uito. Então, eu falei: T u prefiro im provisar’ .
Então, ela me falava: ‘N ã o , não, é importante saber ponto por ponto’.
Então, aquilo me in com odava, mas não era simples. Precisava eu
telefon ar uma segunda vez para tornar a me explicar co m o é p re
ciso. Mas, depois, eu fiz sem a folha, hein?, não agüentava mais.
(R iso.) É Juro pra m im ” .
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as m ulher, não é co m o a gen te, tem cosas pra anotá ali (ris o )". O
senhor B. tem um talão de cheques, mas pede aos caixas que
preencham seus cheques. E ntretanto, cuida das contas fam iliares
e consegue calcular “de cabeça” muito bem: “Tudo coa m inha cabe
ça, tudo, mesmo, não sei lê nada de nada, mas sei quanto eu d ev o
e quando sobra, sei mais ou menos. A gente não tem din hero, dá
exa to, ten h o m inhas d ívid a . A n te s de recebê o pagam ento, o
d in h ero das criança, paga isso, paga a q u ilo e o resto, não sei quan
to sobra. V ô fazer as com pra. A s coisa, a gen te não pode com pra
tod o mês, h e in íT e m v eiz que eu com pro. Das veiz, falta um poqui-
nho, das veiz sobra um p oqu in h o. Pergu n to n o banco quanto ficô.
C o m o ten h o m inha casa, é lá que paga, o apartam ento com prei
a prazo, en tão sô obrigad o a pergunta q u an to eles cobraro d o apar
tam en to, algumas prestação tam bém . Fica quanto, fic a isso, e
quanto fica eu anoto, V ix e , os núm ero, sim, sim, eu sei, eu sei cal-
culá, quanto e tu do". Q u a n to aos núm eros de telefo n e, o senhor
B. diz que tem alguns marcados numa caderneta, “ ou então, minha
filha vai procura no livro [a lista]. A c h a logo de cara". Mas a senho
ra B. sabe aproxim adam en te cerca de v in te núm eros de telefo n e
de cor. Q u an to às compras, o senhor e a senhora B. não têm lis
tas de compras: “ D e cabeça, assim. Das veiz, a gen te acaba esque
cen d o alguma cosa” .
O senhor e a senhora B. têm um co n h ecim en to apenas m uito
vago da escola. O senhor B. não consegue citar as classes nas quais
seus filhos estão escolarizados, e é Kam el quem responde em seu lugar.
A s dificuldades de K am el não são, de fato, percebidas, por ainda
não ter sido reprovado e por estar em séries iniciais: “ Isto é, ele, não
sei ainda, porque ainda não tá na secundário. N o m om ento, tá
indo bem ele. T á bem na escola. N ã o é com o seus irmão. Seus irmão
com eça a caí. Ele, aré agora, sempre ele me trait o boletim , ele tá
con ten te e tudo: ‘O lh a , papai, 9, 10, 9, 8, droga’. Pra ele, vai bem.
Os problem a pra mim , pra mim, é a m enin a” . O senhor B. parece
representar as dificuldades escolares co m o dificuldades crescentes,
à medida que as crianças crescem. E evid en te que os pais não podem
ajudar Kam el em suas tarefas, e ele fica nos horários de estudo livre:
“ E é lá que ele faiz a tarefa. E m elhor pra eles, porque eu, se tem
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(m esm o que seja do prim eiro n ível da hierarquia: P I ), que foi à esco
la até a 5a e cuida de todos os docum entos familiares, e uma irmã
de 16 anos (a “ cabeça” da fa m ília ) que lê um pouco mais do que o
resto dos filhos (m ais livros de “ aventuras", tais co m o Jamais sans
ma fille, de Betty M a h m o o d y ).
Yassine tem, portanto, o exem p lo de um pai escriba, absoluta
m ente autônom o. E xceto os bilhetes referentes à escola que as duas
irmãs redigem , na medida em que são elas que cuidam da escolari
dade de Yassine, e que ele se contenta em assinar, o pai escreve “sozi
n h o ” as cartas às repartições, preenche o form ulário de impostos e
os cheques da fam ília, m antém as contas por escrito, deixa, às vezes,
um bilh ete aos filhos quando sai com a mulher, classifica as fo to
grafias nos álbuns ("E le gosta bastante de classificar” ) e organiza de
maneira bastante precisa os docum entos ( “ Ele tem uma pasta só pra
isso. Tem repartições onde faz a separação. E tod o mês, ou a cada
dois meses, faz uma separação” ). A s filhas insistem particularm en
te no caráter ordenado de um pai que não gosta que se deixem desor
ganizados os docum entos. “ Segunda irmã” : “ N ã o , todas as notas do
carro e tudo, elas são arrumadas em ordem , é classificado. M eu pai
é bem rigoroso na classificação. Ele gosta mesmo que tudo que é de
carro, de um lado; m édico, de outro. Precisa tá bem arrumado, é pre
ciso não desarrumar, precisa deixar e le sossegado. G osta m uito que
nós, a gente não tire. Enfim, a gente classifica tam bém , ele gosta
muito disso” ; "primeira irmã” : “ A h , sim, ele classifica. Ele gosta muito
de classificar. E bem arrumado. Ele não é severo, mas é severo
para... Ele gosta que esteja bem separado, bem arrumado para um
dia que a gen te tem de procurar alguma coisa, a gen te ache logo,
não tem que desembalar tudo".
Mas, se Yassine tem diante dos olhos o m odelo de um pai escri
ba, v ive , entretanto, numa oposição de com portam ento entre o pai
e a irmã de 16 anos: o pai não pune os filhos por causa de maus resul
tados escolares ( “ Ele não gosta m uito de berrar com eles sobre isso.
São os dois qu eridin h os"), tratando os dois filhos mais n ovos com
indulgência, ao passo que a irmã “ berra” com eles, com o diz ( “ Bem,
eu, pessoalmente, eu berro” ), e acha que, embora Yassine renha "faci
lidades” , que “ na I a série d o 1Ggrau e na pré-escola fosse o prim ei-
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cim en to (que ele próprio concebe com o uma soma infinita de infor
mações sobre o m u n do) não foi principalm ente construído na rela
ção com os livros e com os exercícios escolares clássicos, mas se cons
tituiu através dos múltiplos encontros de uma vida de b oêm io ( “ A h ,
v o c ê gandaiô bastante! (riso)", lhe diz a senhora B.) em que nada
pôde ser capitalizado (jó qu ei, en ferm eiro, copeiro, coordenador,
diretor de colônia, desempregado recebendo o seguro-desem prego).
Q u an to à questão de religião, o senhor B. insiste no fa to de que a
fé deve ser sentida do interior pela criança e não imposta pelos adul
tos, mostrando co m isso suas disposições espontâneas e sua visão
antiascética do mundo: “ U m a criança que é batizada é uma crian
ça que não sabe se vai ter fé mais tarde ou não. U m a criança que a
gente manda pro catecism o fazer sua com u nhão e tudo, as pessoas,
é mais pra fazer uma festinha, pros presentes, é n egó cio ou oba-oba.
Eu falo, se a gen te mandar ele pro catecism o, é pra fazer ele sentir
se tem fé ou se não tem. E depois não precisa forçar uma criança a
tazer o que ela n ão quer. Portanto, se amanhã ele me fala: ‘ Eu quero
ir no catecism o’ , m atricularei ele n o catecism o. Se ele quer ir na
igreja, le v o ele na igreja. Se ele quer ver um padre, ele vai se en co n
trar co m um padre, porque eu ten h o amigos padres” . Ele gosta de
contar histórias a M ich el para que adormeça, com, às vezes, um “ fun-
din h o musical” , recuperando com isso hábitos adquiridos nos meios
de coordenação ( “ C o m o eu fazia quando estava na co lô n ia "). Enfim,
escreve poemas com ele. Será, então, um acaso esse padrasto “ p o é
tico " produzir uma criança “origin al” , que “ tem idéias", que “ adora
a poesia” , mas que, às vezes, não consegue en tretanto “ concentrar-
se” numa tarefa escolar precisa, que “ não consegue prestar atenção"?
A s disposições espontâneas do senhor B, (já visíveis nas práti
cas de escrita), mistura de disposições culturais adquiridas n o curso
de uma trajetória feita de encontros e de uma ideologia pedagógi
ca da criatividade existente em certos meios de coordenação, o levam
assim a reprovar na escola o fato de elas darem “ muita” tarefa às crian
ças, que não mais têm tem po para “ levar sua vida de criança” , para
conversar ou brincar com os pais. Sua visão antiascética do mundo
se tom a, às vezes, uma visão antipedagógica (sendo o ex ercício
percebido co m o oposto à vid a ). É sem dúvida isso que leva os pais
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so” escolar, ao passo que outros meios menos privados econom icam en
te têm crianças em “fracasso” . Isso significa que o capital econôm ico
não está, de forma alguma, isolado das disposições sociais e da orga
nização familiar capazes de gerá-lo e orientá-lo num ou noutro senti
do. N este caso, a preocupação com a criança leva o senhor e a senho
ra R. a privilegiarem M ich el e a criar e manter para ele um universo
dourado no seio de uma configuração fam iliar com pouco dinheiro.
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louco, hein? A h , é, é sim (ela ri), ele me diz: ‘Mas onde é que você
foi cair, não é possível!’ . Eu sempre rive casas, eram palácios, hein?
O tem po in teiro a gente era mimada, hein? A gen te não tinh a a
noção de dinheiro. A gente era tão m im ado, a gente v iv ia com o
rico. Tin h a tudo o que a gen te queria, saíamos de férias três, qua
tro vezes p o r ano, tínhamos casas, era um sonho. A gente tinha grana.
Bem, é, a gente estava acostumado co m o luxo. Então, a filh a dele,
de início, foi parar num apartam ento tipo C O H A B (riso), mas isso
me... Eu não era uma pessoa inconsequente. Passei d o luxo ao outro
extrem o sem me queixar. N o entanto, acreditem -m e, a gen te tinha
luxo, a gente vivia realm ente co m o burgueses, hein? A liá s, meus
pais têm m odos burgueses em tudo. Eles não com em c o m o eu.
M in h a mãe não com e qualquer tipo de carne. N ã o co m e se n ão for
feito de certo jeito. Ela fo i tão acostumada co m luxo que acabou
sendo assim, m inha mãe".
Assim , ela está viv e n d o h oje uma situação m uito mais difícil,
que diz aceitar, em bora percebamos, no todo, um pouco de sauda
des em relação a seus anos mais dourados. Seu pai estudou até a idade
de 22 anos (co m uma interrupção durante a guerra), e a mãe pos
sui um diplom a de esteticista.
O senhor e a senhora C . têm quatro filhos: uma m enina de 10
anos, na 3a série (que está na mesma classe que N ic o le , pois trata-
se de uma classe de 2a série do 1e grau), N ic o le , co m 9 anos, na 2a
série do I e grau, um m enino de 7 anos, na pré-escola, e uma ú lti
ma filh a de 6 anos, n o últim o ano do maternai.
C o m o em outros casos, apenas a consideração da situação pro
fissional e d o capital escolar não possibilita com preen der o que dis
tingue essa configuração fam iliar de outras no seio das quais a crian
ça está em “ fracasso” escolar. O pai, cavalariço-jóqu ei, foi à escola
até a idade de 1.3 anos e não tirou nenhum diplom a, a mãe tem ape
nas um C A P de cabeleireira e não trabalha. Podem os, portanto, nos
perguntar o que, na socialização de N ic o le , é relativam en te co m
p a tível com a socialização escolar.
Em tod o o caso, não é nas práticas pessoais de leitura dos pais
que encontrarem os uma resposta a essa pergunta. O senhor C . lê
os jornais hípicos em seu trabalho para con h ecer os resultados das
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perfis de configurações
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ra C . esclarece que suas duas filhas mais velhas têm uma agenda e
“ marcam o aniversário delas, as amiguinhas que v ã o convidar, o
núm ero de suas am iguinhas") ou n ão escrevem nada no calendá
rio, é a senhora C . quem constitui a m em ória viv a fam iliar: “ Eu é
que ten h o que lembrar ele de tudo o que ele tem de fazer (ris o )” .
A lé m disso, m arido e m ulher deixam pequenos bilhetes um para
o outro ( “ Entre eu e meu marido, porque ele se levanta às 5h (rindo),
e eu estou dorm indo. O u sou eu à n oite, antes de me deitar, quem
lhe deixa bilhetes pro dia seguinte. Sei lá, alguma coisa assim: ‘ Bom-
dia, amor. C o m o está? Beijos', ou então: ‘Estou indo trabalhar’ , ‘V ocê
tem que pedir isso e isso a teu ch efe’ para que ele não se esqueça” )'",
e a senhora C . às vezes escreve poemas para os filhos ou para uma
amiga: “ C h eg o a criar coisas com muita facilidade. (Rindo.) Aliás,
nem sei porquê. N ã o sou poeta, hein? (Risos.) É um dom, ora. Ten h o
até uma colega de 20 anos, ela precisava fazer um poema de uma pági
na, e fui eu que fiz o poema pra ela, e ela tirou 9. Fui eu que fiz. Estou
assim com endo, com eço a pensar e in ven to, assim, num estalo. E
verdade que já fiz uns bem bonitos, mas pra m im , não, eu nunca...
Pra in ven tar um, me vem instantaneamente. Da última vez, in ven
tei um poem a sobre as mães. Era realm ente bonito, e m e vinha
assim, sozinho. N ã o sei com o é que essas coisas me vêm ” .
É sempre a mãe quem cuida dos filhos. O ra, oriunda de um m eio
social não operário, ela não tem absolutam ente as mesmas disposi-
ções sociais que seu marido. Em prim eiro lugar, a senhora C . viveu
num m eio fam iliar muito abastado, foi mimada, adquiriu e desen
volveu , nesse m eio, duas atitudes que perpassam o con ju n to de suas
palavras: por um lado, uma concepção da infância que tem de ser,
segundo ela, uma infância dourada, despreocupada, luxuosa, e, por
outro, em relação à existência cm geral, consiste em querer ser in
dependente e não se deixar enganar ou “ se deixar insultar” .
N a casa deles, os filhos vive m , portanto, co m o reis. São os sobe
ranos de um pequeno reino o nde os indivíduos fazem de tudo para
ocultar as dificuldades econômicas. A vontade de preservar as crian
ças e de fazê-las alcançar aquilo que não se conseguiu por si mesmo
traduz-se, neste caso, por uma verdadeira doação de si, um sacri/ício
de si em proveito dos filhos, ou seja, do futuro101’. O sacrifício é, de
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que a gente fale palavrão, coisas assim. N ã o quer que a gente falte
co m o respeito co m as pessoas, e, nisso, e h é muito brava. Ela não
quer que a gente roube e que a gente c o le ” 10'’.
A mãe desen volve, portanto, entre outras coisas, uma atenção
no cam po da escolaridade. E ela quem cuida disso, porque o m ari
d o “perde a paciência m uito mais rápido” do que ela se as coisas não
estão indo bem. Sabe as classes de seus filhos e acom panha de perto
a escolaridade de N ic o le . O lh a seus cadernos todas as noites —
“ A ssim que eles chegam da escola, o lh o nas malas deles!” — e
esclarecendo: “ Nisso, sou m ito rigorosa". N ic o le só pode sair para
brincar co m suas colegas ou ver televisão depois de ter acabado as
tarefas: “ Prim eiro as tarefas, depois a televisão” lü7.
Ela, portanto, faz as tarefas em casa com a mãe, que a ajuda: “ Eu
m ando eles fazerem, e depois, quando acabaram, eu fa lo para eles:
‘ V o cê entendeu co m o vo cê fez pra chegar nesse resultado?’. Então,
se ela me diz sim, hem, pergunto pra ela co m o ela fez e tudo. Se ela
me diz não, eu e x p lico pra ela ” . A s vezes, quando a própria mãe não
compreende, ela telefona a uma "colega" que tem 20 anos e que ainda
está na escola. A senhora C . diz que ela n ão deixa os filh os fazerem
sozinhos as tarefas, e afirma ser especialm ente obrigada a ficar lem
brando N ic o le de fazê-las ( “ É preciso dar um em purrãozinho nela,
hein? pras tarefas” ), pois para ela “é uma obrigação” .
A mãe, que, co m o vim os, não tem uma prática pessoal de leitu
ra muito intensa, em contrapartida lê m uito para os filhos. Lê para
N ic o le , por exem plo, pelo menos uma vez por semana, contos de
fadas, antes que ela durma. Mas desen volve principalm ente o co n
trole de leitura da filh a, lendo ela própria os livros emprestados e
fazendo-lhe perguntas para saber se ela leu bem ou com preendeu
bem: “ Q u ando elas retiram um livro da biblioteca, eu leio ele pri
m eiro. E depois, quando elas me falam que acabaram de 1er ele, per
gunto a elas do que se falava, se elas entenderam , se gostaram ou
se não gostaram, para ver se elas com preenderam o que leram.
Depois, bem, assim eu posso ver se elas sabem 1er d ireito ou se, na
verdade, lêem assim, pra ficar fazendo alguma coisa, ou... E eu per
gunto pra elas sobre o que elas leram, ora” . Ela va i à biblioteca da
escola a cada quinze dias para ajudar uma professora a atender às
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m ento escolar está errado p elo menos num ponto: não é apenas a
escola que dá cultura a N ic o le , mas toda uma configuração fa m i
liar que, com todos os investim entos o bjetivos realm ente não m uito
excepcionais, consegue construir, entretanto, um lugar sign ificati
vo para a experiência escolar dos filhos.
Mas algumas disposições relativam en te favoráveis para a esco
laridade têm tam bém sua verten te “ n egativa" no universo escolar.
Sabemos que, tendo entrado um tanto quanto tardiamente na esco
la maternal (4 anos e 9 meses), N ic o le apenas a freqüentou m uito
irregularm ente, por “ n egligên cia dos pais", observam na época.
Assim , N ic o le era julgada “ defasada na vida da classe por causa de
suas numerosas ausências” . A com p a n h a n d o seu percurso escolar,
dam o-nos conta de que N ic o le só se adaptou à escola e às suas o b ri
gações progressivam ente. A liá s, a mãe observa que, quando ela
passou para a pré-escola, foram as tarefas o que ela absolutam ente
n ão suportou.
O fato de que os filhos sejam socializados com o h áb ito de fazer
principalm ente o que querem e sem preocupação com a maneira
de obter o que desejam não contribui, ao mesmo tem po que isso os
protege no seio de um universo modesto, para desequilibrá-los em
relação às exigências e pressões escolares coletivas que se im põem
a todos igualm ente (n ã o fazemos o que querem os na escola, mas o
que está previsto fazer de tal a tal hora...)? A senhora C . expressa,
aliás, seu tem or de que a filh a não continue na escola além dos 18
anos, pois, para ela, a escola é uma “ obrigação" e não uma paixão.
A disposição que consiste em querer controlar as situações sociali-
zadoras nas quais são colocados seus filhos leva tam bém a senhora
C . a ver na escola uma rival educativa que tenta ter a penhora sobre
seus filhos, e a adotar, com isso, com portam entos nem sempre m uito
favoráveis à escolaridade. Assim , a senhora C . diz que, se não h ou
vesse escola, ela ficaria mais conten te ainda, pois gostaria de poder
cuidar sozinha dos filhos. Isso a levou a querer conservá-los com ela
durante o maior tem po possível, em vez de colocá-los na escola mater
nal, sinal, sem dúvida, de uma maneira de “ ficar livre” dos filhos,
co m o ela o diz claram ente a propósito dos horários de estudo livre
e da can tin a110.
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vo lta dos 30 anos, mais d o que na escola por v o lta dos 16-18
an os), ou co m o m uitos em pregados em c o n ta to d ireto com pes
soal mais qualificado (a auxiliar de enfermagem , oriunda do pessoal
de lim peza, está em c o n ta to com a enferm eira e com o m é d ico ),
o pai e a mãe m antêm uma relação am bivalente com a cultura esco
lar, impregnada de reverência mas afastada da maioria de seus p o n
tos de referência, compreenderemos, então, o próprio estilo da entre
vista. P o r um e fe ito de legitim id a d e, os entrevistados sem dúvida
orientaram , con scien te ou in con scien tem en te, suas respostas para
os pólos mais legítim os. N ã o é por acaso que a mãe n ão consegue
deixar de rir quando o m arido diz ter lid o m uito “ antes” . Ela ta m
bém não deixará de fazer o mesmo (aliás, o marido não estava mais
a li) a propósito de suas leituras de romances, sobre os quais não
conseguirá dar m uitos detalhes. Podem os, afinal de contas, per
guntar-nos que va lo r devem os atribuir ás declarações dos pais a
respeito de seus n íveis escolares.
O u tro ponto central na com preensão desta configuração fa m i
liar: a relação dos pais com a escrita. Dizem explicitam en te não gos
tar de escrever e preferir telefonar ( “ N ã o g o s to de escrever” , diz prin
cipalm ente a mãe, “ tom a tem po” ). O pai raramente se e n v o lv e com
a escrita dom éstica e pede explicações à m ulher sobre a m aneira de
preencher o form ulário de impostos (ela declara isso quando ele se
ausenta por um instante). M esm o que haja um evid en te desequilí
brio do p on to de vista das tarefas dom ésticas de escrita “ a fa v o r" da
mãe ( “ Sim, tudo, papelada é co m ig o ” ), esta, organizando, mais do
que o companheiro, a vida familiar (p o r sua posição na divisão sexual
do trabalho dom éstico, ela gerencia o cotid ia n o dom éstico e é fo r
çada a recorrer à escrita: lembretes, agenda para o estudo e para a
cantina dos filhos, cartas às repartições, bilhetes para a escola, fo r
mulários de impostos ou de seguro social, listas de coisas a serem
levadas em férias, caderneta de números de telefon e e de en dere
ços), quando não se vê forçada, também não utiliza realmente a escri
ta ( “ Sim, no trabalho sim, a gente é obrigada, hein?, é, é, escrever
no trabalho, escrever aqui, assim de vez em quando, é...” ): nenhu
ma lista de compras, pois estas são feitas espontaneam ente ao pas
sar pelas gôndolas ("V o u , passo em cada prateleira, v e jo o que tá
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Nesse aspecto, se ela não fizer as tarefas, a mãe tam bém ralha
co m ela. A mãe até ex p lica que, às vezes, a filh a fica estudando
até as 21h30, e que não va i se deitar en qu an to não tiv e r te rm i
nado. O u en tã o ela a cham a às 6h da m anhã para que term in e as
tarefas. A m ãe ch ega a esclarecer que é m uito mais a prim a de
Johanna (21 anos, C e rtific a d o de C on clu sã o d o I a G rau P ro fis
sionalizante de costura, agente de serviço n o hospital) que se encar
rega de ajudá-la, pois ela própria acaba fica n d o nervosa e batendo
nela. A liá s , a filh a se d irige mais à sua prima, por causa d o c o m
po rta m en to da mãe: "Q u a n d o , às vezes, já lhe ex p liq u ei duas ou
três vezes e ela m e acaba fazen do a m esm a bobagem , en tão isso
me en erva e eu b a to n ela ” . P od em os dizer que, para as crianças,
a escola e tudo o que dela decorre (esp ecia lm en te as tarefas) p o
dem se mostrar, pelas experiên cias fam iliares que têm , co m o uma
ocasião de sofrim en to, de punição, de sanção, de privação, de ner-
vosism os, de surras, e assim p or dian te. Johanna freq u e n tem en
te esquece os cadernos na escola, ven do-se, assim, am eaçada pela
mãe ( “ F req iien tem en tc, sim, sim, e n tã o mais ameaças tam bém :
‘ V o cê vai leva r uma surra’ , ah, mas é freq u en te, h ein?” ), e p o d e
mos nos perguntar se o esqu ecim en to dos cadernos ou dos livros
não é um a to fa lh o so cio lo g ica m en te co m p reen sível da parte da
m enin a: é fácil esquecer de leva r o b jetos que são a o rigem de uma
ex p eriên c ia dolorosa"-'.
N u m p o n to de vista superficial, poder-se-ia ver, nas práticas
de vigilân cia, de c o n trole, de cham ada à ordem , os índices de uma
m obilização fa m ilia r p o s it iv a " 1. A mãe co n h e c e bem a situação
escolar da filh a , sabe que não repetiu, está tam bém a par de suas
dificuldades escolares, que com eçaram na pré-escola, “ em todas
as m atérias” ; na sua o p in iã o , é o d ita d o que lhe traz mais p r o b le
mas — e o professor observa, co m e fe ito , grandes dificuldades em
ortografia. A senhora U ., aliás, vai regu larm ente ver o professor,
faz perguntas a ele sobre o trabalh o da filh a , pergu n ta-lh e se ela
está p rogredin do, se ela é “ ajuizada” ou “ distraída” em aula, vai
às reuniões da escola co m o m arido e acha que é ú til porque
fica m sabendo “ o que está a co n tece n d o na escola” . D urante os
longos períod os de férias, Johanna fica em casa co m a prim a ou
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en tão viaja para a M artin ica; com pram -lhe cadernos de exercícios
de férias e ela tem de estudar 2 horas rodos os dias, apesar do fato de
ela “ rebelar-se".
Mas vemos, ademais, numa tal configuração fam iliar perpassa
da por contradições culturais (p o r desejos e expectativas para cuja
realização não se encontram os m eios con cretos), os índices de
uma m obilização fam iliar de efeitos negativos não controlados. A s
crianças parecem estar submetidas a um sistema de double bind* com
pais que punem sem dar o “ bom ex em p lo ” e que incitam exclusi
vam ente em form a de sanções. O s princípios ou as vontades apre
goados pelos pais diante de nós ou diante dos filh os podem tam
bém nem sempre ser colocados em prática. Enquanto a mãe diz que
é obrigada a lutar para que a filha faça as tarefas, em vez de v er te le
visão, esta tica ligada durante quase tod o o tempo da entrevista: está
ligada sem que alguém em particular a esteja vendo, quase com o
uma emissora de rádio que se teria posto co m o fundo sonoro.
N o decorrer da entrevista co m Johanna, esta apresenta suas
ações depois da saída da escola na seguinte ordem : lanche, tarefas,
televisão, brincar com o irmão — prestando bastante atenção para
colocar as tarefas antes da televisão, com o a mãe não pára de lhe
repetir. M as se Johanna afirma tam bém preferir leitura a televisão
(interiorizou bem a legitim idade relativa das duas práticas), fala mais
dos programas a que assiste ( “ V e jo Madame est servie e Sauve' par le
gong, e P ro f et tais-toi" ) do que dos livros que lê. D a mesma forma,
a mãe diz, primeiro, que a filha não pode descer para brincar; depois,
diz que vai brincar, às vezes, com o irm ãozinho; e acrescenta, mais
adiante na entrevista, que, nos fins de semana, quando o tem po está
bom , ela “ a manda descer” .
A lé m disso, a mãe diz, o que pode parecer contraditório com o
investim ento escolar, não “falar m u ito" da escola com Johanna, com
exceção do que eventualm ente tenha acontecido n o recreio (acerca
das outras crianças que possam estar in com odan do a filh a ).
Entretanto, talvez não seja tão contraditório assim: o diálogo fam i
liar a respeito da escola parece reduzir-se a um m o n ólo go dos pais
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pra chegar, o que é que a gente vai fazer mais ou menos? E se acon
tece alguma coisa... Sei lá, uma coisa qualquer pra com prar pra casa
ou qualquer coisa. Então, deixa 1 m ilh ão ou coisa assim de lado.
N ã o é uma grande soma, das (riso) de patrão. A gente pode calcu
lar sozinha assim, de cabeça. Sim, tudo, sempre assim, quando a gente
tá sentada à noite, assim um pouquinho, a gente calcula tudo. Pre
cisava isso, precisava aquilo. O que é que a gente vai gastar? O que
é que precisava deixar um pouco de lado?” .
O papel da senhora H . consiste em cuidar da fam ília, em fazer
que tudo fu n cion e da m elhor form a possível (leva n d o , por ex em
plo, os filhos à bib lioteca e vo ltan d o para continu ar o trabalho da
casa). Em sua brava von tade de p rom over os filhos, a senhora H .
até se m antém a distância no bairro ( “ mal frequentado” , segundo
os termos da filha). N o entanto, eles compraram o apartamento onde
estão m orando e têm um fin anciam ento de 10 anos: “ A gente pro
curou em outro lugar, mas não era, é menos caro aqui, depois, a gente
tava aqui e então a gente comprou. T á fazendo, é, quase 4 anos, ou
por aí, a gen te com prou aqui, mas...” . Entretanto, ela esclarece que,
se tivesse as condições financeiras, não ficaria nem um ano num
bairro com o aquele, on de se põe fo g o em carros: “ A g o ra , os jovens,
então, v o c ê olha pra eles assim, olha por acaso, assim. E então, ele
se zanga, fala qualquer coisa. Por que vo cê está olh an do pra ele ? Por
quê? N ã o sei, eles são tão cheios de si! Isso é que m e dá m edo aqui.
Eu procurava tan to me mudar daqui, mas o m eio é... Se fosse d ife
rente, ora, eu não ficava aqui nem mesmo um an o” . A liás, ela não
deixa Kais sair m uito freqüentem ente para brincar fora por todos
esses m otivos, e previn e-o de que se h ou ver uma baderna, mesmo
que não tenha sido ele a começar, é ele quem vai ser castigado. Ten do
m orado num bairro de Lyon onde tam bém havia fam ílias france
sas, ela pensa que ali as crianças teriam mais oportunidades para ter
“ sucesso” . E d ifícil, segundo ela, “ aprender” num bairro com uma
grande proporção de imigrantes, pois com o tem muitos filhos de im i
grantes nas classes, isso se torna mais duro: "E duro que a gente é
tudo im igrante. E duro deixar eles bem na escola. E a prim eira vez
que estou m orando aqui. Tudo é mais duro porque a gente era tudo
im igrante aqui. E, é duro pra vo cê aprender o francês com o os
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talvez cuide menos d o que uma mãe, para as tarefas, hein? estou que
rendo dizer” . Seu pai era agricultor. O senhor e a senhora G . têm
dois filhos: um m enin o com a idade de 10 anos, na 4a série, e uma
menina, Sabine, que tem 8 anos e está na 2a série d o 1B grau.
Ten do entrado muito cedo na escola maternal ( 2 anos e 5 meses),
Sabine, desde o in ício, adaptou-se à escola. E isso continuou na pré-
escola e na I a série do l s grau. N a 2a série do I a grau, o professor
só tem elogios a lhe fazer: “ Se a gente tivesse só criança assim, bem,
não terminaríamos o dia com a cara n o chão. E uma flor. Se todos
eles fossem iguais... É, ela é am ável, acom panha, estuda, tem senso
de humor. N ã o tem problemas. Perfeitam en te integrada à escola,
ela só vê vantagem em vir à escola de manhã. Sente que a mãe c o n
fia nos professores, estuda bem ” .
Ten d o estabelecido nossa população em função, antes de tudo,
da categoria socioprofissional do pai, deparamo-nos, neste caso, com
um casal socialmente misto: o marido é um pequeno empregado, “ auxi
liar de viagem ” , possuindo apenas um certificado de conclusão do
primário, ao passo que a mãe é secretária adm inistrativa e tem o 2S
grau com pleto. O pai, que freqüentem ente está viajando a trabalho
e que não se preocupa nem em gerenciar o cotidiano da fam ília, nem
co m a escolaridade, parece apenas desempenhar um papel secundá
rio na econom ia das relações familiares. Assim , por causa do im por
tante papel desem penhado pela mãe em numerosos campos, temos
a impressão de estar diante de uma fam ília mais de classe média.
A balança pende m uito mais a favor da senhora G . em relação
às leituras. O senhor G . só lê o jornal: de vez em quando, com pra
Le Progrès e, todos os dias, com pra P a ns-T urf para acom panhar de
perto o mundo das corridas: " A h , ele, quando ele lê, é sempre sobre
os cavalos. Lê tant... (ris o )” . A senhora G . com pra e lê Le Progrès
todas as quartas-feiras por causa d o suplemento infantil que ela tenta
fazer o filh o e a filh a lerem: “ Eu leio Le Progrès des Enfants, e falo
pras crianças: ‘Vocês devenan t 1er’. Então, de vez em quando, eles
lêem, mas enfim , co m o digo a eles, talvez um dia na cabeça deles
aconteça alguma coisa, não é? N ã o é sempre, é raro, mas agora que
eles pegaram o hábito, nem que seja só às quartas-feiras, acho que
eles sentiríam falta se eu não fosse com prar o jornal. Então eu falo,
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é m elhor eu fazer esse esforço, mesmo que eles não leiam, e depois,
é verdade que eu gosto bastante de 1er o jornal infantil, então não
está perdido pra tod o mundo. A c h o que ele é b em -feito” . A s vezes,
ela recorta “folh etos” , que põe na bolsa para 1er n o trabalho. T a m
bém lê revistas (Femme Actuelle, V oici), principalm ente n o verão.
A pen as ela lê livros (" N ã o , ele, é preciso cutucar” 1’0, aproxim a
dam ente seis por ano, e é associada a France Loisirs desde a idade
de 19 anos. Diz: “ O que eu gosto é romance. O bom rom ance, não
os água-com-açúcar, hein?, o bom rom ance, os Barbara Cartland,
ah, não, não agüento, hein?” . Ela gosta de H en ri Troyat (L e mos
covite), N icola s H u lot, N ic o le A v ril, R ég in e Deforges (L a bicyclet
te bleue), e gostaria de 1er livros de Paul-Loup Sulitzer. Diz que vo l-
tou a 1er durante o ano, fora dos períodos de férias: “ Eu me obrigo
a reler romances, talvez eu só leia três paginas à n oite, mas leio ” .
Precavendo-se de qualquer pretensão quanto ao futuro lIo s filhos
e quanto a seu “ n ível cultural” , assim com o o de seu m arido (ela
insiste, por várias vezes, n o fato de que eles não são “ intelectuais” ,
de que não discutem p o lítica em casa, pois eles n ão gostam de “ dar
uma de intelectuais” ou de “consertar o m undo", e de que ela é “ bem
pé-n o-chão” , que ela não “ se atreve" a dizer até o n de irão os filhos
na escola ...)1’ 1, a senhora G . organiza, rigorosam ente, a vid a fam i
liar em to m o da escolaridade dos filhos, traduzindo os julgam entos
ou conselhos escolares em práticas familiares. G osta m uito de todos
os professores da escola ("Eu gosto deles todos” ), e fala com eles para
poder dar a seus filhos exercícios suplementares. A liá s, fo i a c o n
selho de uma professora do maternal que com eçou a 1er histórias
para os filh os à n oite: “ N o maternal, ela mandava fazer isso. Então
é por isso que eu ia buscar os livros na biblioteca e, à n oite, lia uma
história” . Foi tam bém depois que viu na escola uma en ciclopédia
e achou que “ podia ajudá-los", que ela com prou uma em o ito v o lu
mes para os filhos. Está persuadida de que os filhos, h oje, têm de
“ apostar” ou “ in vestir” na escola, e pensa que não é mais possível,
com o em cerra época, sair-se bem apenas com um “simples c e rtifi
cado de frequência” .
Ela própria conheceu um regim e escolar m uito rigoroso (fez a
m aior parte dos estudos em escolas particulares ca tólicas). A c o m
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panha sozinha a escolaridade dos filhos ( “ Isso, a escola, sou eu, 100%,
h e in í” ) e tem dificuldades para dizer quais são os pontos fracos da
filha, pois esta tem bons resultados escolares: " N ã o posso respon-
der m uito bem, porque ach o que ela está indo bem em tu do". S ó
reprova nela o fa to de n ão se aprofundar m uito, às vezes, nas le i
turas. Todas as noites, ela o lh a os cadernos de Sabine, que faz as
tarefas quase sozinha: “ D e qualquer form a, o lh o o tem po in teiro o
que eles fizeram . Pergu n to pra eles o que eles tiveram . Q u ero
m esm o saber o que fizeram ". V erifica se as tarefas estão corretas (o
que pode fazê-la 1er, às vezes, dez páginas de um liv r o ) e as corri
ge, se necessário122. A s crianças sabem que fazer as tarefas é uma
regra absoluta: “ Eles sabem que é proibid o ir à escola sem saber a
lição. Então, ora, se um dia eles não sabem a lição bem, bem, eles
têm que... N orm a lm en te, é proibido. Então, é raro que v ã o à esco
la sem saber a poesia, por exem p lo. E raro, isso nunca, h ein ! Então,
às vezes, tem algumas que são mais difíceis que outras, mas eles se
leva n tam quinze m inutos mais ced o de manhã, às vezes, para r e v i
sar. Eu parto d o p rin cíp io de que n ão tem m o tivo . Então, é isso.
N ã o é ser m u ito severa! E ser lógica, eu ach o” . Q u an do falamos
co m a mãe a respeito das atividades da filh a durante as férias esco
lares, é ela própria quem lembra, espontaneam ente, as tarefas de
férias que os filh os fazem com “fichas escolares” que ela compra.
A senhora G . também atribui uma particular im portância à le i
tura. Vim os que ela lhes com prava regularm ente Le Progrès des
En/unts e que adquiriu uma en ciclopédia para eles por ocasião do
N atal. Podem os acrescentar que ela com prou dicionários para eles
co m o presentes de aniversário e que assinou para eles, durante
certo tem po, revistas infantis. Mas, principalm ente, ela obriga os
filh os a lerem um pouco todas as noites1'' ( “Nisso, as crianças, eu
as obrigo todas as noites. E, todas as noites, bem, eles v ã o se deitar
por v o lta das 8h e meia, 9h, bem, azar, eles leem na cama, não é?
Eu d eix o eles sozinhos, mesmo que apaguem a luz às 9h e meia, eles
íêcrn sozinhos na cama, e assim eles se acostumam, não é?” ), e
“ obrigou" a filha, n o início, a ir sozinha à biblioteca: "Eu nunca co m
prei m ontes de livros pros meus m eninos. A gente ia na b ib lio te
ca” . Ela tam bém íê os mesmos livros que eles, para poderem falar
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disso depois: “ Então, a gente leu o livro, os três. Bem, a m enina não
acabou, não é? porque tinha também, não sei, tinha talvez 100 pági
nas. Bem, todos nós lemos o livro, e, de fato, pude falar sobre isso
com eles. E depois, eu fa lei, mas as histórias são m uito, m uito
boas” 'A E mesmo eles, às vezes, lhe perguntam o que ela está tendo.
A s vezes, o “ acaso” faz com que ela discuta com os filh os o assunto
de um livro que está lendo, porque pode haver uma relação com o
que eles estão estudando na escola ( “ C o m o Le moscovite, fo i engra
çado, não é? T in h a a retirada da Rússia, ele [o filh o ] estava d e c o
rando um tex to sobre a retirada da Rússia. E bem estranho. Então
eu falei: ‘ Bem, olha, o que você tá aprendendo aí é o que estou lendo’,
tá vendo? Eu falei pra ele: ‘V eja, os soldados na n eve, no fr io ’ , c o i
sas assim, mas não pra ficar en ch en d o a cabeça deles, não é?, mas
quando dá certo ” ). E além disso as duas crianças vão ao catecism o
todas as quartas-feiras pela manhã, onde continuam , de outra forma,
o trabalho escolar (têm textos para 1er ou para copiar).
A senhora G . verifica regularmente as notas, conversa frequen
tem ente sobre a escola com os filhos (todas as noites, ritualmente,
Sabine conta um pouco sobre seu dia na escola para a mãe: o que comeu,
o que fizeram em classe, as notas que tirou) e mantém contatos regu
lares com os professores. Ela é até uma espécie de apoio da escola.
Presente no bairro há dez anos, conh ece m uito bem os professores e
o diretor, e vai a todas as reuniões escolares: “ Eu gosto bastante, sim.
Pois isso nos ensina, nos ajuda a nos conhecer. E também acostuma
a ver a equipe de professores, mesmo que seu filh o não esteja numa
classe. V ocê vê tudo, vê o que está acontecendo. E depois, ora, você
entrega seus filhos lá, então, não é” . E é assim que o professor de Sabine
fala da senhora G .: “ São pessoas que, principalm ente a mãe, a gente
a vê muito, todas as tardes está na saída, esperando os filhos, co n ver
samos muito, e neste ano nos encontramos fora da escola. Por in i
ciativa da senhora G ., fizemos um almoço para nas encontrarmos todos.
São pessoas que a gente encontra todos os anos na quermesse, que a
gente encontra sempre na saída. A senhora G . não é uma senhora
complicada, a gente sente que ela tem alguma coisa na cabeça, que
ela sabe m uito bem o que quer. M u ito amável, muito meiga, mas sabe
o que quer, sabe m uito bem levar seu barco, sabe muito bem onde
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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
está. O marido eu conh eço muito pouco, não posso dizer muita coisa
sobre ele, não é com ele que a gente se encontra” .
A lé m disso, a disciplina fam iliar passa prin cip alm en te pelo
au tocontrole: as crianças sabem, por exem p lo, que é p roib id o ir à
escola sem ter aprendido as lições e in teriorizam isso em form a de
necessidades pessoais. E quando, ex cep cion a lm en te, Sabine tem
notas ruins, sua m ãe lhe diz que, na próxim a vez, ela vai “ pensar
m e lh o r” , mas não fica brava com ela. Desse p o n to de vista, a
m aneira co m o se dá a en trevista é m u ito reveladora da autodis-
ciplin a fam iliar. Q u a n d o as crianças chegam da escola, não fazem
barulho, brincam co m seu víd eo-g a m e n o cô m o d o em que esta-
mos conversando, mas ten do o cuidado de tirar o som da televi-
são e não falando, tudo isso sem que a mãe tivesse d ito o que quer
que fosse. M esm o a en trevista co m S ab in e revela uma m enin a
calma, educada, até um pouco tím ida, que fala com m u ito zelo,
com eten do poucos erros de francês, e que interiorizou bastante pro-
fu n dam en te as normas Je boa educação.
Tam bém a senhora G . cuida sozinha dos docum entos fa m ilia
res, d esen volven d o um grande núm ero de práticas de escrita. Lê a
correspondência ( “ Ele lê também , mas, bem, os assuntos de casa,
eu é que p on h o em ordem ” ), escreve as cartas às repartições, preen
che o form ulário de impostos (e le se con ten ta em assiná-lo), cuida
dos docum entos da escola, arruma os docum entos adm inistrativos
( “ Bem, tudo va i para um cesto. D urante um ou dois meses, eu
am ontoo. Q u ando tem m uito (riso), faço uma triagem, e tem uma
pasta” ), tem um caderno onde anota suas contas ( “ Então, agora, eu
faço, em vez de fazer em pedaços de papel, faço num caderno, co m o
um caderno de rascunho. M as não é por isso que fiquei mais rica,
hein?! (Riso.) Então, é isso, faço e depois risco” ), escreve lem bre
tes (" A g o r a m esm o tem um lá na lousa” ), redige listas de compras
com cuidado ( “ Bem, isso tam bém faço na lousa, e depois copio direi
to, porque não vou levar a lousa” ), na ordem das gôndolas do super
mercado, e va i assinalando as compras ("D e p o is de um tem po, não
sei mais direito onde é que estou, e pra ver sc não esqueci nada, com e
ço a marcar tudo 0 que peguei, ve jo o que está faltando. D epois,
bem, é um hábito que a gente adquire com o passar dos anos, tudo
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Os “feni/iarues” sucessos
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com ;i situação fam iliar v iven cia d a p elo autor) e, mais amptamen-
te, da maneira co m o podem os justificá-lo. C o m efeito , num g ê n e
ro particular de escrita, distinto d o gênero literário que consiste em
sempre dar prioridade à vida e aos sentim entos do aucor, H oggart
nos oferece uma autobiografia que n ão está exclusivam ente v o lta
da para um percurso individual isolado, mas que nos apresenta, atra
vés de um m inucioso trabalho de reconstrução, as diferentes c o n
dições sociais de produção de sua pessoa. A autobiografia, para ele,
só pode ser a descrição de si mesmo visto, e incessantem ente fo r
mado, constituído, num tecido de relações sociais, de múltiplos
vínculos de interdependência.
H oggart viveu m uito pouco c o m os pais: seu pai, p in tor de pare
des, que teve muitos períodos de engajam ento n o exército, morre
antes da idade de 40 ou 45 anos, e a mãe, originária de uma fa m í
lia de L iverp ool, considerada pelo lado paterno com o de “classe
m elh or", morre quando seu filh o tem apenas 7 ou 8 anos. Essa mãe,
verdadeiro “ prin cíp io organizador do lar” , se caracteriza, antes de
tudo, por uma recusa constante, ligada p rovavelm en te a sua origem
social menos popular, da "n egligên cia ", do “d esleixo” e da “ indul
gência", características de outras famílias também deserdadas. V iv e n
do em condições materiais m uito precárias e, sob muitos aspectos,
humilhantes (a família Hoggart, Composta da mãe e de seus três filhos,
fica sob a responsabilidade da paróquia, da Com issão da Guarda
C iv il e da assistência social da m u n icipalidade), ela, com o pouco
dinheiro de que dispõe, gerencia, com o pode, uma vida familiar co n
centrada em si mesma.
Q u an do R ich ard H oggart, co m a m orte da mãe, fo i separado
do irmão e da irmã, fican do na casa da avó paterna em Hunslet, na
Rua N e w p ort, 3.3, integra então um m eio que também se caracte
riza por um “ apego crispado e con tín u o à respeitabilidade, produto
do tem or de soçobrar sem deixar vestígios” 1 Essa “ classe popular
respeitável" se personifica nos traços de sua tia Ethel, guardiã intran
sigente das exigências da "n ã o -n egligên cia ", do c o n trole de si e da
respeitabilidade, da sua avó "im ensam ente enfamiliarizada” , despro
vida de qualquer ambição pessoal, que quer que o neto “ siga seu cam i
n h o” e, “acim a de tudo” , “saiha m anejar as palavras” e “ aprenda",
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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
e enfim de sua tia A n n ie , que, com o a avó, tem para com ele “ um
am or desinteressado” . M esm o a figura contrastan te de seu rio
W a lte r (que “ esbanja" seu talento bebendo á lc o o l) não é totalm en
te n egativa: H oggart se lembra de que, num universo social bastan
te distanciado da cultura escrita, seu tio W a lte r escrevia histórias
“ co n form e o m o d elo que podia ser en contrado nas baratas revistas
semanais da época” '“ . Da mesma form a, o avô paterno (m o rto antes
que ele se integrasse à fa m ília ), caldeireiro e “ bem acima de um o p e
rário n ã o -q u a lifica d o", fico u na m em ória da fa m ília c o m o um
hom em caracterizado por um orgulho profissional.
E se acrescentarmos a im portância de um diretor de escola pri
mária e de um professor da U niversidade de Leeds que foram solíci
tos em ajudar m aterialm ente e em encorajar o jovem H oggart (co m
injunções preditivas d o tipo: “ É preciso que você vença, meu jovem ” ),
com preenderem os todos os pequenos elem entos, materiais e sim bó
licos, que contribuíram para tom ar possível um im p rovável “ suces
so" escolar. N o entanto, é necessário esclarecer que esses múltiplos
elem entos irão se somam uns aos outros, mas se combinam para criar
a realidade, tão evid en te à intuição quanto rebelde aos esforços de
objetivação, que um “ clim a fam iliar” escolarm ente favorável cons
titui. N ã o estamos, neste caso, diante da lógica dos investim entos
que se somariam entre si, onde o número mais ou menos elevad o de
investim entos determ inaria o grau de “sucesso" escolar.
A s análises estatísticas de alguns percursos escolares de "ê x ito ” em
meios populares fazem, aliás, realmente evidenciar-se dois pontos fun
damentais'™. Por um lado, nenhum fator explica por si só o “sucesso”
dos alunos: avós não-operários, uma relativa estabilidade profissional
e uma com odidade financeira de um pai mais para operário qualifica
do, uma mãe ativa ou com uma situação profissional mais elevada do
que o pai, uma fam ília pouco numerosa, uma trajetória de imigração
dos pais..., tudo isso pode contribuir para explicar certas trajetórias esco
lares, mas nenhum desses investimentos se mostra claramente deter
minante. Por outro lado, quando se tenta v er se o acúmulo de inves
timentos mais sólidos pode possibilitar uma m elhor compreensão
dos casos observados, constata-se que raras são as famílias que acu
mulam os fatores mais favoráveis, e encontram-se até casos de alu-
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nos que acumulam mais investim entos do que outros e que são ou
foram escolarizados em escalões menos nobres.
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so” escolar (e, mais amplamente, social) dos filhos. Podemos até acres
centar que o fato de que a mãe tenha parado de trabalhar por v o n
tade própria no m o m en to do nascim ento da filha, só vo ltan d o a
fazê-lo com um serviço cm casa, desem penha um papel n ão-n egli-
genciável, principalm ente em configurações familiares em que tudo
depende de uma vig ilân cia regular e sistem ática11'. O que pode
reforçar essa hipótese é o fato de a irmã da senhora R. in tervir no
fin al da entrevista, lem brando as dificuldades escolares de seus pró
prios filhos, mais graves, por, segundo ela, trabalhar fora e pela sua
relativa falta de disponibilidade em relação a eles. “ Meus filhos tra
balham menos bem que os filhos de m inha irmã. T e v er em casa, já
tem uma preocupação de menos pras criança, tem a impressão que
isso tranquiliza elas. C om p aro os filhos dela com os meus. Eu, por
exemplo, que estou quase sempre mais fora do que dentro, bem, quan
d o eles voltam , n ão encontram ninguém , e isso já é uma preocupa
ção a mais, que não deixa eles em condições para estudar, estudar
m elhor, eu diria. E, eu estou mais m etida na engrenagem , sempre
correndo, a mesma rotina. Incapaz nem de ajudar meus filhos em
seus estudos, e " (R iso.) A senhora R. confirm a isso: “ Estou em casa,
posso controlar m uito mais do que ela, porque ela, ela trabalha".
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revista que tinh a com eçad o a assinar para N adia. Lem bra com
menosprezo os romances policiais { " A h , não gosto de romances poli
ciais! T en h o h orror disso” ) e os romances "m elosos". C h ega a cen
surar o marido por não 1er bastante: “ Ele não lê nada. É verdade, é
uma censura que faço a ele constantem ente. A gente se torna culto
lendo. (T om um tanto quanto moralizador. ) E isso que ele não co n
segue com preender. N ã o quer tornar-se cu lto” . M esm o assim, o
senhor B. compra, ocasional m ente, o jorn al (L e Progrès), onde lê
as notícias policiais, esporte, assim com o todas as notícias locais11'.
E a avó ainda organiza racion alm en te a vida fam iliar: as a tiv i
dades dos diferentes dias, os horários das refeições, os horários de
deitar... são de grande precisão ( “ E pontual, é ex a to ” ) 141', e estão cal
cados nas exigências escolares (N a d ia se deita por vo lta das 21h,
ex ceto nas noites em que, n o dia seguinte, não tem aula e quando
pode v er televisão até um pouco mais tarde). Essa organização fa m i
liar rigorosa se torna visív el também n o aspecto d o apartam ento,
hem-cuidado, sem desordem (incluindo o quarto de N adia), que passa
(e , sem dúvida, quer passar) a im agem de gente de “ bem ” e que "se
apresenta bem ” . Inclusive na apresentação de si; com sua m aneira
de falar e de vestir-se, o senhor e a senhora B. lembram a classe o p e
rária respeitável147.
A gestão da organização dom éstica, pela senhora B., é especial
m ente ordenada, e é ela quem cuida de todos os papéis — “ Era
sua fu n çã o ” , diz o sen h or B.; "E meu d o m ín io ” , acrescen ta a
mulher. A m b o s lêem a correspondência, mas ele faz uma leitura
mais “ su perficial". Q u an do é preciso escrever cartas ãs repartições
ou para a fam ília, é sempre ela quem se encarrega disso: “ Sou sem
pre eu, não é às vezes, é sem pre". O m arido acrescenta: "Ela é d ed i
cada. E a secretária, faz to d o o orçam en to, tudo, geren cia o orça
m ento. Ela sempre conduziu o barco, hein?". E ela quem p reenche
o form ulário de im postos (e la o assina), faz os bilh etes para a es
cola, se encarrega das contas fam iliares, organiza os docu m en tos
( “ Está tildo classificado, hein?, em pastas co m os n om es em cim a,
com etiquetas. Tudo está marcado. A h , sim, aqui em casa é assim "),
faz as contas fam iliares todos os meses com a ajuda de um cader
no e de uma agenda, m antém atualizada a caderneta de endere-
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Jade para 1er e escrever em francês. Seu pai era agricultor e sua mãe
não trabalhava. A m b o s sabiam 1er e escrever o árabe. O senhor e
a senhora M . têm quatro filhos: o mais velh o , um rapaz de 17 anos,
faz a 8a série d o I a grau profissionalizante numa escola particular
(p o r aproxim adam ente 12000 francos por a n o ); um m en in o de 12
anos, na 6a série; um m en in o de 10 anos, na 4a série; e uma m en i
na de 8 anos, lm ane, na 2a série do I a grau.
Foi só no final da entrevista que o senhor M . evocou a m ilitân
cia sindical e política que o levou a abandonar a Tunísia. Tin ha ade
rido ao Partido Com unista e tinha tendência a dizer o que pensava
num país em que a liberdade sindical e política era particularmen-
re limitada. Foi para fugir de grandes dissabores que emigrou: “ M e
trouxe muitos problemas. C o m e cei prim eiro n o sindicato e vi que,
com o já lhe disse, n ão tinha muita liberdade, e tudo... Eu era jovem ,
não tinha nenhuma responsabilidade, não estava n em aí. Eu respon
dia, e era esse o problema, eu respondia. Q uando tem alguma coisa
que não está certa, eu falo, mesmo na frente de meus chefes mais
altos, os grandes responsáveis da empresa, eu fato. Então, eu era m al
visto, não gostavam de mim. A gente arriscava tudo, tudo: perder o
em prego, ir pra cadeia, tudo, hein? A gente arriscava tudo, e eu res
pondia". Ten d o ficado ajuizado com a idade, o senhor M . confessa
que não tem mais nenhuma vontade de m ilitar aqui.
lm ane entrou ced o na escola m aternal (2 anos e 5 meses). N o t a
mos im ediatam ente o cuidado que tem com seu trabalho. Ela é uma
dos dois m elhores alunos da sua classe de 2a série do I e grau, junto
com o m enino do Perfil 23 ( “ E, sem dúvida, a m elhor aluna de minha
classe” ). N o fin al do ano, já está ten do aulas de m atem ática ju nto
com os alunos da ,3a série. O professor está espantado com a capa
cidade de explicação oral de lm ane: “ A m im , ela m e deixa boquia
berto, porque sempre tem uma resposta certa. O u tro dia, estávamos
falando de ‘ aprender’ e de ‘com preen der’. Ela, logo em seguida,
disse coisas de uma tal form a! Mas de uma clareza! Ela definiu, e,
de fato, sentiu a coisa” . Ela participa, com preende m uito rápido,
nunca esquece as coisas: “ É sempre im p ecável".
Q uais são, neste ú ltim o perfil, as razões do "sucesso” escolar da
criança? O pai é operário qualificado, e a mãe não tem em prego;
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Por exem plo, eu escrevo um bilh ete e dou ele pro meu irm ão para
L]ue ele entregue ao outro” .
E sempre o Senhor M . quem cuida da escolaridade dos tilhos.
A com p a n h a as notas de Im ane regularm ente ( “ Sim , faço questão
d is s o ")1’0e considera que está “ boa no co n ju n to ” . Fala sempre sobre
a escola com os tilhos: “ Sempre, aliás, é a primeira pergunta que faço,
quando sentamos à mesa: ‘ Então, o que é que vocês fizeram h oje de
manhã?” ’. É raro que Im ane peça realm ente ajuda para suas tare
fas, mas, em contrapartida, ela pede ajuda, às vezes, para as tarefas
de seu irm ão da 4B série, que tenta fazer ao mesmo tem po que ele
(sinal de que interiorizou a escola em forma de uma preferência pes
soal). Seu pai aceita explicar-lhe uma parte, mas cuidando de não
confundi-la: “ Q u ando vê o irmão fazendo m u ltiplicações ou d iv i
sões, coisas assim, ela tenta fazer com ele. É claro, depois de ter aca
bado as tarefas dela. Bem, ela pega seu caderno de rascunho, com o
eles têm uma só escrivaninha, bem, ela se põe ao lado dele, fica olhan
do, faz a operação e, então, vem m e pedir explicação. Eu acho que
não é pra ficar confun din do ela com coisas assim, porque, às vezes,
pega uma divisão co m dois ou três números, então eu falo: ‘Escuta,
tilhinha, v o c ê ainda não está aí. Se v o c ê quer, te ex p lico um pouco
de divisão co m um núm ero, é sim ples e vo cê vai entender, no
entanto, se v o c ê pegar dois ou três números co m o teu irmão, você
não vai entender nada e vai confundir a cabeça por nada” '.
O senhor M . também é m uito a tento em relação ao tem po d ed i
cado às tarefas e aos brinquedos. Q uando voltam da escola, os filhos
tom am lanche e tornam a descer “ para brincar um pouco, para
esquecer um pouco, durante uma meia hora, quarenta e cin co minu
tos” , depois tornam a subir para fazer as tarefas1’7. 0 senhor M . guar
dou durante um tem po o vídeo-gam e que estava tom ando o lugar
do trabalho escolar: “ Está fazendo uma semana que suspendí o
vídeo-gam e. Sim , porque eles perdem m u ito tem p o” 15". In cen tiva
os filhos a não se “ conten tarem ” em apenas fazer as tarefas duran
te as ferias: “ E além das tarefas, eu os estim ulo a fazerem outra coisa,
a 1er ou a fazer exercícios, além das tarefas, é claro, em vez de ficar
o dia inteiro brincando". É ainda ele quem leva os filh os à b ib lio
teca a cada 15 dias. A liá s, vê a filh a sempre len do ( “ Ela lê muito.
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N o ta s
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12 E assim que Maria Theresa Sierra (Pratiques discursives et relations de pouvoir..., 1986)
descreve, a respeito do M é x ic o contem porâneo, os processos de formalização dos dis
cursos nos vilarejos otomi do vale do Mezquital, durante as diversas assembléias comu
nais, hem com o a exclusão da m aior parte dos aldeões incapazes de dominar os novos
esquemas de interação verbal. Esta renovação dos esquemas culturais pode produzir-se
na própria língua vernácula, e, inversamente, o espanhol pode ser utilizado nas práti
cas discursivas "m enos oficializadas, mais ligadas à comunidade e partilhadas pela m aio
ria dos membros d o vilarejo” (p. 297-3.30).
14 Nesse aspecto, a situação descrita pelo entrevistado parece com a situação analisada por
Sylvia Scribner e M ichael C o le em The psychology o f literacy, 1981. O s autores mostram,
sobretudo, com respeito às populações vai na Libéria, que as relações sociais efetuam-se,
em numerosos campos da prática, sem qualquer recurso à escrita: a maior parte da heran
ça cultural e os conhecim entos técnicos são transmitidos sem a ajuda de materiais escri-
tos. Em consequência, os contextos sociais de uso da escrita permanecem marginais, oca
sionais, e contribuem muito pouco para organizar, produzir e reproduzir a vida social.
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
ções muçulmanas (o pai disse ter "en viad o” a mulher ao curso de alfabetização, o que
indica o tipo de relação instaurada entre os dois). A própria maneira co m o se desen
v o lv e a entrevista é um sinal dessa divisão sexual dos papéis: o marido responde a um
estranho, enquanto a mulher vai logo para a cozinha. Durante o pouco tem po que a mãe.
ao chegar de fora, nos fala. o marido responde quase sempre em seu lugar.
16 Para M ehdi, tirando a dificuldade específica em falar francês, explicar não parece estar
dissociado de fazer ou mostrar, uma vez que seu m odo de expressão c im plícito. C ite
mos um trecho em que tenta explicar as regras de um jogo de cartas: "D epois a gente
pega, a gente |icga esta qui, e deixa assim e pega quela lá, procura o que este; de copa
assim, depois a gente pega...” .
17 A ïch a e hatifa têm dificuldades em avaliar o tem po e dizer as horas: Latlfa diz que leva
“ 1 hora" para lazer seus deveres e A ïch a “ 1 m inuto” ; Latifa diz que janta junto com a
mãe e que vai dormir depois do jantar ("Q u a n d o acabo de comer, v ô dorm ir"), mas não
sabe exatam ente quando, e acrescenta que nunca vê as horas; A ïch a , igualmente, é inca
paz de dizer a que horas jantam ou a que horas é o recreio á tarde.
O sotaque e a construção das frases, nem sempre gram aticalm ente corretas, tornarão,
de fato, algumas respostas d ificilm en te compreensíveis.
N 'D o n g o nos contou que, às vezes, esquece de fazer a lição ou que não tem vontade de
fazê-la.
71 Mas ela própria diz: “Nóts num sahe como fazê, parque faiz tem po. A pedagogia de quan
do nóis tava na escola e agora num é a mema coisa. Eu, pur exem plo, às veis tenho d ifi
culdade".
74 Em vez de generalizar certos aspectos das realidades sociais enquanto filosofias sociais,
é preferível questionar as condições sócio-hisróricas de em ergência das formas sociais.
Desta maneira, os sociólogos opõem -se, muitas vezes, tacitam ente, em relação à ques
tão do caráter efêmero/ocasional ou durável/estável das relações sociais. Contra a visão
romântica daqueles que concebem a sociedade com o um m ovim ento contínuo de inven
ção, ou, segundo a expressão de Bakhtlne, com o um “ processo criativo ininterrupto de
construção (enevgeia), estão aqueles que, presos à análise das “ estruturas", das "institui
ções", dos “ grupos” , vêem a sociedade em seus aspectos mais cristalizados, mais estabi
lizados. É somente quando se coloca, por exem plo, o problema das condições históricas
de surgimento de relações sociais trágeis ou permanentes, efêmeras ou duráveis, que pode-
mos lugir do debate filosófico e rem etê-lo a uma questão sociologicam ente pertinente
(à medida que a pesquisa empírica pode contrihuir a resolvê-la). Disseminando a reali
dade social em uma multiplicidade de relações efêmeras, ocasionais, inesperadas, reno
vadas, esquecemos que essas relações podem repetir-se historicamente; perdurar, repro
duzir-se, institucionalizar-se.
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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
■f' 1>]plnm;i de conclusão do 2° grau na área de ciências médico-sociais, que habilita o jovem
a entrar numa faculdade.
E que podem ser relacionadas com as situações descritas peta Senhora O . ( Perfil 8).
^ Sm aín confirm a que vê essencialmente o pai e a irmã mais velha lerem em casa.
14 E u que diz Smaín em sua entrevista. Q u ando a lição é difícil e seu pai está em casa, diz
que pergunta para e le ( “ A s vezes, quando é difícil e quando meu /wt esta em casa e quan
do volta d o trabalho ás 6 horas, eu pergunto um pouco, né?") ou à irmã ( “ A s vezes, né,
purque às vezes ela tá em casa mas num pode"). Smaín, porém, precisa que, atualmente,
não necessita de ajuda. É sua irmã quem pergunta “ às vezes" se ele fez a lição, mas “às
vezes ela num tá em casa e às vezes ela esquece". E chega a precisar: “ Então eu tenho que
aprender sozinho, né?".
^ "À s vezes quando repito de ano aí ele mi bate, mas eu ainda num rcpiti", diz Smaín de
m odo significativo,
C A T , em francês.
]<> Quando perguntamos quem escreve as cartas administrativas, é M artine quem, haíxi
nho, responde: “ A mamãe", e todo mundo ri.
4CI M artine observa que é a mãe que deixa bilhetes para o pai: “C om o minha mãe traba
lha, ela volta ao m eio-dia e pede às vezes pro meu pai que lhe prepare o alm oço".
41 A avô materna, na casa de quem Martine passa ,i> tardes de quarta-feira e que a faz estudar
durante as férias, parece ser também uma personagem importante na constelação familiar.
Por exem plo, os pais de Martine contam que “ a menina, ela escreve poemas, fez um sobre
a primavera, outro sobre a noite, sobre o sol, ela iaz assim quando dá na telha". Mas sabe
mos, através de Martine, que ela escreve com sua "vovó": “ Eu esçrevt>poemas e minha vovó
faz os desenhos"; ou então "Eu escrevo poemas embaixo dos desenhos". Martine guarda suas
poesias em uma caixa e depois recopia em um caderno que seu "v o v ô " lhe deu. Sem seus
avós, a situação escolar de Martine podería ser sem dúvida ainda menos favorável.
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
4* Podemos observar que as múll iplas mudanças de professor nu classe de Martine (o ito pro-
fessores durante o ano escolar: “ A c h o um abuso” , dis o senhor C .) jogam para a escola uma
parte da responsabilidade em relação ao "sucesso" irregular de Martine. U m professor está
vel, que tenha tem po de conhecer melhor as crianças, de verificar se aprenderam as lições,
de convocar os pais no m om ento em que as coisas começam a degringolar, não é igual a
um substituto que fica uma semana, que não tem tempo nem de conhecer as crianças, nem
de desenvolver sua ação pedagógica a longo rermo, nem de contactar os pais...
48 A mãe diz que ele vê a T V o tem po todo, e desde cedo, ao mesmo tem po que toma café
c se veste.
4g Quando perguntamos a N abila se via os pais lerem, ela demonstrou por suas respostas
que, para ela, a leitura tinha uma definição puramente escolar, pois só na escola via alguém
lendo: “ Seus pais lêem D Eles leem sim. A quilo que eu /aço?’ ".
w Aliás, assim com o o senhor M., muitos pais pensam que a permanência depois da aula é
uma garantia para que as crianças façam bem as lições, o que, sabemos, mramenre é o caso.
41 Da mesma forma pi>demos notar o m odo com o a mãe, quase sempre gritando, se dirige
aos filhos, para pedir que façam algo. Ou as intervenções verbais do pai, num tom rís
pido cm relação aos filhos: “ N ã o m exe!", “ Vai brincar lá fora!", "Im ediatam ente!” , “ M e
dá a vassoura", "Pa re!", “ Pare! vai lá pra fora, v a i!” , “ Vamos, sai daqui! Depressa! Rápi
do! Tira o casaco!". O mesmo acontece, repetindo o Perfil 2, na maneira com o N abila
conta certas atividades diárias (depois de brincar lá fora, ela toma banho, vê televisão,
e acrescenta, “ depois minha mãe me diz: ‘Vadorm ir1, e depois eu du rm o"), inscrevendo
assim o m odo de expressão dos pais, próxim o da ordem do indiscutível: "V á dormir".
Quando N abila mostra as notas baixas ao pai, ele “ berra": “ Ele me diz: ‘N um vai com e
çar de n ovo a ter esta nota', e depois ele mc bate". Mas ela deixa claro que ele não lhe
dá nenhuma punição ("N u n ca, ele não me dá punição") ou não a priva de nada (de
televisão, de sair). O que pode parecer estranho é que ela diz que apanha, mas não é
"punida". D e fato, isto significa que a autoridade sc aplica de im ediato, c não tem
influência a longo termo, com o as privações, as punições... O que im plica, cerramente,
uma relação especial com o tempo.
O tem po relativam ente longo que passou no maternal (3 anos) pode também contri
buir para a compreensão d o com portam ento bem-adaptado de N ab ila na escola.
^4 A confiança parece surrir efeito, pois o professor de Snlima nos diz que ela faz sempre
as lições.
«4
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
55 Sa ti ma é a que mais lê entre os irmãos, mas sobretudo é ela quem mais gosta de escre
ver: “ Ela lê mais que os outros. Principalm ente escreve mais que os ourros. Sei qui ela
escreve” . Muitas vezes escreve uma carta ao pai quando parte por alguns dias em excur
são com a escola, e gosta sempre de escrever cartões-postais quando está de férias.
5f> N orbert Elias, a o explicar a excepcional idade das com petências musicais precoces de
Mozart, descreve com o seu pai tecera com ele ligações afetivas m uito fortes que pas
savam pela música. M ozart recebia “um suplem ento a fetivo para cada uma de suas e x e
cuções musicais, e isso seguramente toi benéfico para u desen volvim en to da criança
no sentido que o pai desejara” (M ozart..., p. 93),
57 Salima nos conta {.pie brinca lá fora com as amigas, sobretudo no dom ingo: "Porque",
ela diz, "nos outros dias, não tenho vontade, c meu pai, algumas vezes, não quer, nem
minha mãe. Eles nem sempre dizem sim".
Gd A hierarquia operária com eça com os O S1, O S2, O S3, depois continua com os OP1
(O perário profissional), O P 2 , O P 3 . (O S significa, literalm ente, operário especializado
(“ouvrier spécialisé” ). N o entanto, essa term inologia fixou-se inadcquadamente; O S é,
em realidade, um operário não-qualificado. (N .T .)
61 Ela não consegue, por exem plo, no decorrer da entrevista, calcular mentalmente a idade
do marido em 1963, sabendo que ele nasceu em 1946 ("P o r causa que precisaria contar” ).
6“ É verdade que Robert aparece, em entrevista, com o um m enino muito tím ido, mas que
fala de maneira construída, coerente e refletida. Considerando seu discurso, tivem os difi
culdades em perceber uma criança em “ fracasso" escolar com o em outros casos. Robert
explica bem o que faz, é calm o e não se contradiz sempre.
64 Souyla conta: "U m a vez, quando tinha esquecido de fazer elas, meu pai ficou bravo co m i
go e minha mãe também".
65 O senhor B. exprim e, várias vezes, o faro de que sente uma ruptura cada vez mais clara
entre seus filhos e eles. N ã o que a ruptura seja conflítual, pois os laços parecem muito
sólidos entre pais e filhos, mas ela se instaura objetivatnenie entre filhos que cada vez
menos falam o árabe e pais que dominam o francês com dificuldade, entre filhos escola
rizados e pais analfabetos; “C om eço a falar em árabe: 'Você tá entendendo?' N ão. E isso,
é dessa forma. C o m minha mulher, a genre fala em árabe, a gente fala em francês, quan
do ele diz: lM in ha filha, me dá um copo d ’água\ em árabe. Ele vira pra direita, pra esquer
325
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
da: ‘O quê, papal, o que é que o senhor tá pedindo? U m copo d’àgua?' Sim. >c eu nâu
peço em francês, pronto, acahou". O fato de Souyla ficar no horário de estudo livre* diu>
vezes por semana para fazer um cursei de árabe sei pode contribuir para agradar a<is pais.
w’ O senhor B. nos diz: “ N a oficina, rinha papéis e papéis [livrosj se eles quisesse 1er H em ,
tem porque deve com eçá pequeno e até os 20 anos. A s criança deixa uma pra outra, eles
lé tudo isso” . Ele aluga esses livros no co légio das filhas.
67 Souyla pede às irmãs, mesmo quando estão ocupadas: “ M esm o que estão fazendo suas
tarefas, eu nem ligo. Eu falo: ‘V ocês me explicam prim eiro'. (R iso.)” ; acrescenta que não
lhe dão a resposta, pois senão ela não é “ inteligente": "Q uando não entendo, minhas
irmã me dizem o que tem que fazê. Por exem plo, me dão um outro exem plo e depois eu.
quando entendí, bem, eu faço tudo sozinha, porque eles não gostam de me dizê as r e g i s
tas, porque, depois, eu vou ficar menos inteligente".
,,h Ela própria esclarece de im ediato na entrevista: “ Eu sou a menor da família. Tenho o ito
irmãs e dois irmãos. O nze filhos mais meus pais, treze, e tenho uma irmã e um irmão
que estão morto, norm alm ente a gente seria quinze".
O senhor B. manda que leiam para nós uma carta d o ginásio que diz respeito a ela e que
indica que ela ficou de recuperação por “ esquecim ento dc material, trabalho não en tre
gue e indisciplina".
71 Samira é, ao mesmo tempo, muito explícita e muito expressiva em suas respostas quando
da entrevista.
71 O tom de Samira para falar desse assunto não revela nenhum sinal de distância em rela
ção às vontades do pai.
74 O . Schwartz (L e mande privé des ouvriers..., p. 161 ) escreve, a propósito de certas fam í
lias: "Para sair-se hem socialm ente, é preciso fechar-se fam iliarm ente".
7' O senhor B. diz, en tretanto, que a filha é m uito grande para nadar com ele: “ A gente
vê muita diferença en tre os francês e os árabe, veja. Porque os francês nem liga se
uma garota de 14, 15 anos nada com os pai assim, de ca lçã o e tudo. N ã o , não, nem
sei com o ocês fala, porque nóis (riso), não sei com o v ô e x p licá em francês, pra nóis,
isso num existe".
76 Quando perguntamos a Samira quem, entre ela e a irmã, era m elhor na escola, ela res
ponde, muito oportunamente, que a irmã é mais forte hoje, mas que, quando ela esta
va n o primário, era pior do que ela própria agora.
77 Ela lê histórias para os irmãos e irmãs: “ À s vezes, c o n to histórias pro meu irmãozi-
nho e minha irm ãzinha, leio pra eles a página e depois ex p lico pra eles, porque eles
não en tendem ".
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
81 O senhor B. diz que a cidade onde nasceu, T lem cen , era uma bela cidade, pois, nela,
dizia-se às pessoas que era preciso não roubar, não ser mau, não talar mal...
62 Notarem os, no trecho, que o senhor B. diz que a escola é feita para “ tom ar inteligen
tes" as crianças, e que o tato de bater em um mestre é, para ele, uma falta de respeito
com relação ao que ele considera ser uma autoridade incontestável.
O próprio Yassine explica, de maneira absolutamente culta, a maneira com o age quan
do não com preende uma palavra num texto: “ Por exem plo, pego meu livro e depois
eu leio, depois experim ento com o contexto, ou com a frase, ou então, hem, pego o
dicionário".
Evidentem ente, a relação cultural de forças perpassa toda a família, com membros que
dela participam mais ou menos atívam ente. A irmã mais velha está, antes, do lado de
sua irmã (“ A gen te tala: ‘ Você sai niuiro pra fora. Faça as tarefas1. Enfim, a gente grita
com ele assim m esm o"), mas sem gastar tanta energia quanto ela; por exem plo, para o
auxílio nas tarefas, ela manda o irmão para a outra irmã: "Yassine, quando vem até a
gente, nos fala: 'Explica isso pra m im ', e eu falo: ‘A h , vai na casa d e * ** la primeira irmã]
e tu d o'". O irmão mais velho, raramente presente e que experim entou um grande "fra
casso" escolar, está, objetivam ente» do outro lado da linha de torça, ainda que não
represente um papel ativo. A irmã de 15 anos, que está na 8a série, vai com Yassine à
biblioteca municipal e se acha, pelo menos nesse aspecto, d o mesmo lado que as irmãs.
E assim por diante.
,s7 Podemos nos perguntar se o innãozínho de Yassine, apresentado com o ainda um pouco
menos m otivado escolarm ente do que ele, não estará correndo um risco maior de d ifi
culdade escolar se a relação cultural de forças se inclinar a favor do pai.
,SÍJ Inicialm ente, Yassine responde à questãi>de se saber quem lê mais na casa: "E minha irmã
e mesmo eu tam bém ", mostrando que se percebe, ao menos em relação a esse aspecto,
do mesmo lado que a irmã. Eis também como ele próprio descreve suas atividades da noite:
“Term ino minhas tarefas. Depois, bem, leio um livrinho. Depois, quando acabou, hem, eu
vejo um pouco de televisão e depois com o e vou dormir". E às quartas-feiras: "Pruridrõ.
leio um livro. Depois, vejo um pouco de televisão e saio". Enfim, conta-nos, com muita
precisão, a história d o últim o livro que leu (Lilly moutarde).
H7 A entrevista com Yassine revela que, frequentem ente, ele atribui ao pai as práticas que
são de sua irmã de 16 anos. Fantasia também, inventando uma mãe que sabe escrever
(em bora diga, em outros momentos, que ela rem dificuldades para 1er), um pai que lê
jornal e revistas... Por que ele “ aumenta" os pais, principalm ente o pai? Podemos ima
ginar que, para ele, o ideal seria um pai que cuidasse dele com o sua irmã e que tivesse
327
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
Ibid., p. 207.
yi Por exemplo, um diretor de escola nos dá para 1er duas cartas Je pais de meios populares
cujo objetivo consiste, em suma, em dizer que o trabalho da escola era instruir as crianças
(ensinar francês, matemática,...) e não ocupar-se com escolhas em matéria de educação moral.
% Já o pai do Perfil 9 estava persuadido de que a filha fazia as tarefas no horário de estudo,
ao passo que estava fazendo a "oficina de costura” .
98 Também nesse caso, tradicionalm ente preenchido mais pelos homens d o que pelas
mulheres.
w N ic o le nos diz que vê principalm ente a mãe deixar bilhetes para o pai.
* Jacques Testanière ( Les enfant s de milieux populaires ... ) escreve: "Esse espírito com o qual
os pais incentivam os filhos em seus estudos tem com o conseqüência o fato de que eles
tom am o 'sucesso* escolar o o b jetivo exclusivo de seus esforços e se privam de muitas
coisas para favorecer esse ‘ êxito': em certos casos, vivera com desconforto, sacrificam-
se verdadeiram ente” (p. 144); os pais "trocam a vida pela vida dos filhos" (p . 151).
Para exem plos semelhantes de “ crianças-reis” , cf. O . Schwartz, Le monde privé des
ouvriers.... p. 151-2.
Zaïhia Zélüulou ( " O sucesso escolar dos filhos de imigrantes...", 1988) descreve esse tipo
de com portam ento unicamente nas famílias em que as crianças estão cm "fracasso” esco
lar, ao passo que esse não é o caso aqui. O s traços pertinentes que descrevem essa ou
aquela conf iguração familiar escolarmente consoante ou dissonante nunca são pertlnen-
32 8
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
tes de maneira isolada. O autor escreve principalm cnte que, no grupo de famílias em
que as crianças estão, em realidade, em “ fracasso", “ os pais não escondem sua hostilida
de para com a escolarização, principalm enre a das meninas: ‘O mestre decide em sua
classe, mas não em minha casa*"{p. 467).
t(M u*pra mim, se tocam no meu m enino, é com o se focassem em m im 1, diz Myriam Sem-
hart. Ë daí que advêm ligeiros conflitos entre ela e a professora, cujas observações ou
eventuais sanções contra sua filha mais velha (7 anos) desencadeiam im ediatam ente a
agressividade de M yriam ". (O . Schwartz, Le monde privé des ouvriers.. ., p. I 36.)
Sua filha nos confirm a que ela só pode ver televisão ãs terças, sextas e sábados à noite;
caso contrário, "quando a gente acaba de comer, vai direto pra cama".
107 A filha conta: "Ela pergunta pra nós. Ela nos fala: ‘V ocê fez as tarefas!1. Depois, a gente
fala se fizemos elas ou não fizemos. Quando a gente diz pra ela: ‘N ã o 1, bem, então, ela
nos tala: ‘Você vai fazer agora*. {Tom autoritdrio). ‘N ã o espere a noite pra me dizer que
você não tez as tarefas* '*.
tOH para nos faim- de um livro, N ic o le retoma, aliás, espontaneamente, uma parte desse esque
ma: “ Estou com um livro que peguei rui biblioteca da escola. Eu peguei ele porque era
engraçado. ( Diz sorrmdo.) E RendeZ'tnoi mes poux, Eu achei ele gozado porque quando
a gente tem pulgas e a gente tira elas, bem, a gente não quer que devolvam ela* pra gente.
E o mem tunho quer que devolvam pra ele suas pulgas, então eu achei gozado, então eu
peguei ele".
109 N ic o le se mostra na entrevista com o uma menina muito calma. A s vezes, reflete duran
te muito tem po antes de responder e dá a impressão de ser séria, até desenvolvendo um
discurso hem-construído, acima das questões que lhe colocamos.
110 N ic o le fica no horário de estudo livre uma vez por semana para ficar com uma colega,
e com e todos os dias em casa. Sua mãe nos diz que deixar as crianças no horário de
estudo ou na cantina é quase que “ se livrar" delas.
i*t A filha confirm a isso na entrevista: “ Principalm ente minha mãe e minha prima, mas
meu pai nunca vi” .
Em Le monde privé des ouvriers..., O liv ie r Schwartz evoca um pai que obriga o filh o a
fazer uma redação gritando com ele e esbofeteando-o.
1,1 A m ãe diz tam bém “ fiscalizar" o tem po inteiro as com panhias da filh a: Johanna não
pode brincar “ d e n tro " do prédio, e rem de esrar vis íve l a partir de uma janela do
apartam ento.
329
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
111 Pur exem plo, quando ela conta a história Je um livro: “ Fala Je uma criança que, com
uma menina, bem, eles tinha férias e... e Jepois a professora Jeles, ela falou pra ele, ela,
eles tem a pro... a professora, conta pra eles uma história e Jepois as criança vão prunva
casa e pensam que tem um lobo na casa, e depois vão pruma outra casa brincar". Nesse
trecho, observamos que a relação entre o fato de a professora estar contando uma his
tória às crianças, por um lado, e o fato de as crianças estarem pensando que há um lobo
na casa. por outro lado, não é explicitada.
117 Faz um ano que a senhora H . tirou carta de motorista e possui, assim com o seu marido,
um carro. E o sinal de que a divisão sexual dos papéis é consideravelm ente mais fle x í
vel em relação a outras famílias muçulmanas.
1IB Podemos constatar sua fé escolar também no fato de que a irmã de Kais parou de fazer
a prece desde que está no ginásio, pois tem tarefas para fazer: a fam ília privilegiou a esco
la em relação à religião.
120 Em casa, Sabine diz que vc a mãe 1er livros ( “ Bem, ela lê um livro, codo dia ela lê algu
mas páginas, acho, quando tem tempo, e, às vezes, ela leva pro trabalho"), mas o seu
pai, que só lê o jornal, as corridas.
171 Essa não-pretensão deve ser relacionada com as origens populares do casal, assim com o
cora o universo cultural do marido.
177 Ela até corrige as cartas que a filha escreve nas férias. Sabine diz: “ Faço elas sozinha e
depois ela corrige meus erros".
12' A obrigação se tom ou hábito: "N ã o estou com vontade de dormir, então leio na cama",
explica Sabine,1
1 Sabi ne conta que a mãe leu seu livro e que elas o discutiram juntas: "Eu tinha pega
do um livro, e minha mãe queria 1er ele, e antes que ela lesse, eu expliquei pra ela o
com eço da história".
1w É o primeiro nessa matéria, e nos diz com um grande sorriso: " A t é sou prim eiro".
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
14* Biin N at diz que cum e às 18h30, se deita às 20h50 (aliás, é exataipente antes dos pri
meiros filmes da n o ite) quando tem aula no dia seguinte, e por volta das 2 ih “quando
não tem escola". Suas tarefas duram “ quarenta minutos".
1 Bun N a t nos diz que às quartas-feiras, sábados e dom ingos, “ eu qui faço o trabalho
de casa".
* *■* Ela nos mostra que nosso encontro está marcado ali.
1^ Em casa, muitas vezes, Christian gosta de escrever histórias inventadas, e a mãe laz com
que ele corrija seus erros: “ Então, eu falo: ‘N ã o sei, vocâ escreve com o ouve, pense um
pouquinho, depois eu vo lto e corrijo1". Da mesma forma, no verão, ela lhe compra cader
nos de férias, e a filha mais velha muitas vezes lhe laz ditados em forma de jogo.
1^ Christian, falando da mãe, diz: " A s vezes, ela me corrige e diz os erros que fiz". C o n fir
ma que é ela quem lhe pergunta se fez suas tarefas e verifica o que fez.
1 E preciso ohservar que dar exercícios fáceis de fazer para a criança sem nenhuma ajuda,
à noite, é uma política pedagógica deliberada da parte do professor: “ E preciso dizer que
não lhes dou muito. N ã o é um monte, compreende, que cai sohre eles e os esmaga. E
um exercício que vão poder fazer sozinhos, portanto, não precisam ir incom odar os pais.
Veja, é alguma coisa que não os põe numa situação de fracasso. E isso não é hem com
preendido. Algum as pessoas podeTiam achar que eu dou para eles exercícios muito
fáceis. N ã o necessariamente. A o alcance deles! Q u e consigam se virar um pouco sozi
nhos. Sem que toda a família fique atrás, dependurada".
1Jíí A senhora R. é vista polo professor com o uma pessoa muito exigente com os filhos: "E
também ela me diz: lO h , ele é nulo em ortografia'". A lé m disso, Christian nos diz que não
gosta de histórias em quadrinhos porque elas levam a com eter erros de ortografia: "Porque
minha irmã, uma vez, tinha lido historieis em quadrinhos, e então ela cometia muitos e m «" .
Sem dúvida, está retomando as palavras da mãe, relacionadas com a ortografia.
1w É útil indicar que, além do programa organizado pela mãe, todas as quartas-feiras, pela
manhã, C hristian vai ao catecismo.
331
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
142 Podemos observar que Christian é imediatamente comparado, pelo professor, com a irmà,
considerada ainda mais "brilhante” e “concentrada" do que ele. Mais uma v e ;, pode
mos ver, nessa ligeira diferença, o efeito da diferença entre o pai e a mãe com o mixlc-
los sexuais de identificação.
I4Í A lém da mãe d e N adia, uma filha terminou o 2® grau e, depois de ter com eçado a tra
balhar com o enferm eira infantil, é dígitadora. U m a outra parou os estudos na l * série
do 2® grau e abriu um salão de cabeleireira. U m filh o estudou em escola particular, co m
pletando o 2® grau, na área de matemática e ciências físicas. Cam peão do Ródann de
50 m (corrida a pé), inicialm ente quis ser professor de educação física, depois fez exam e
de seleção para ingresso numa escola de form ação de educadores, tendo sido classifica
do em 3® lugar e, atualmente, é coordenador de atividades esportivas.
Nadia, em seus discursos, faz oposição clara entre o avô e a avó do ponto de vista das
práticas culturais: ele vê televisão e ela lê. Sua a v ó lê todas as noites: "Q uando meu v o v ô
está vendo televisão, por exem plo futebol, e ela não gosta, então vai 1er".
146 Ela própria foi educada numa família m oralm entc muito controlada por um pai “ amá
vel, mas m uito rigoroso” .
,4t< C ercada dc atenção co m o é, N adia é até poupada da realidade doméstica: não faz
nenhum serviço de casa, e a a vó reconhece que “ ela é muito mimada” . Todas as a tiv i
dades que exerce são concebidas pelos avós com o atividades úteis a seu desenvolvim en
to físico ou cultural (lcvam -na ao basquete, ao centro de atividades extra-escolares) e
sempre controladas por adultos: avós, pai ou coordenadores (quase nunca sai sozinha
para brincar com crianças de sua idade).
149 Assim com o a mãe do Perl il 24, ela acha que o professor (é o m esmo) se esquece de cor
rigir os erros, e ou manda Nadia dizer-lhe isso ou ela própria vai dizer a ele.
Nadia até di: que, quando os avós não conseguem ajudá-la, eles chegam a telefonar a um de
seus filhos: “ E então, ás vezes, eles ligam para minha ria e meu titio para saber se eles sabem” .
111 O professor conta que “o avô estava contrariado porque, pela segunda vez, ela estava riran -
do 9,40em ve 2de 9,43, ou algo assim” — e Nadia confirma, dizendo-nos: "A n tes eu tinha
9, agora estou com 8,75, não 78, e eles ficam bravos com igo, ora, porque baixei".
152 A senhora B. utilizou a escrita em momentos difíceis: "Escreví num cadem inho assim,
quando minha filha enirou em coma” . Desde a morte da filha, não redigiu mais nada:
"Exatam ente naquele m om ento. E é simples, assim que me disseram que minha filha
estava morta, era o enterro de minha filha, não escreví nada. Parei. N ã o era nem um
diário, eram notas que relia, só isso".
332
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
A avó de N adia parece-se muito com a figura do avô paterno de Richard Hoggart (33
Newport S t r e e t .. p . 40): “ Meu avô tinha sido caldeirei ro, muito acima de um operário
qualificado. E orgulhoso por sê-lo. Um a história familiar o mostra pedindo demissão de
um bom trabalho numa fábrica que fazia máquinas para botas e sapatos, porque um chefe
que não confiava nele criticava seu trabalho. Pelo que diziam, ele respondeu: 'Fique com
seus sapatos’, e deixou -o falando sozinho’ ” .
Quando era jovem , teve até um diário pessoal { “T iv e isso, é verdade, quando era soltei
ro” ), que destruiu quando se casou: “ Gostava muito disso, é verdade. Principalm ente as
aventuras, coisas assim que fazíamos entre amigos. Escrevia rudo, mas quando era sol
teiro. Tudo o que aconteceu, escrevi quase rudo, hein?, por alto. E assim que me casei,
deixei pra lá. Tin ha muitas recordações e tinha de tudo lá dentro, entât), eu falei, é uma
pena destruir isso, mas, bem, finalm ente, decidi destruí-lo". Fazia, nessa mesma época,
poemas que falavam das moças por quem se apaixonava.
1 1mane esclarece que ela não mostra suas notas à mãe “ pt >rque ela não sabe 1er m uito bem".
1^ Suas companhias são controladas: “ Eu sempre faço questão das companhias, é verdade.
Falo pra eles que ouço falar de um certo m enino ou menina: ‘Tentem evitá-lo, tentem
evitar brincar com e le '".
l5í< A autoridade do pai parece ser forte, mas interiorizada pelos filhos. Por exem plo, quan
do todos estão à mesa, os filhos têm o direito de falar, ex ceto quando os país têm algo a
conversar entre si. E eles parecem ter interiorizado essa regra im plícita: "Bem , é verda
de, eles não podem falar com a gente o que estamos falando, isto é, com o minha mulher
e eu, por exem plo. E verdade, isso não podem. -Sem dizer pra eles, hein?! Bem, mas se é
alguma coisa que interessa a todos, hem, aí sim, sim, eles podem participar".
1w Podemos supor que a relação entre as duas práticas não seja pura coincidência.
333
C onclusões
O M IT O D A O M IS S Ã O P A R E N T A L
E A S R E L A Ç Õ E S E A M ÍL IA S -E S C O L A
334
CONCLUSÕES
aos com portam entos e aos desempenhos escolares: para bater nos
filhos, é tam bém necessário julgar que isso vale a pena e con ferir à
escola um m ín im o de im portância e de valor. Constatam os até
casos paradoxais de superinvestím ento escolar que não levam aos
efeitos esperados por causa de uma distorção entre os fins visados
e os meios utilizados para atingi-los (P erfil 20).
E claro que existem casos em que as rupturas são tão numerosas
(Perfis 1 e 3 ), e as condições de vida familiar, econôm ica..., tão d ifí
ceis que, ou o tem po que os pais podem dedicar aos filh os é abso
lutam ente lim itado, ou suas disposições sociais e as condições fam i
liares estão a m il léguas das disposições e das condições necessárias
para ajudar as crianças a “ ter ê x ito ” na escola. Mas, mesmo nesses
casos, o term o m oralizador de “ om issão” , que rem ete a um ato
volu ntário, uma escolha deliberada da parte dos pais, nem sempre
corresponde ao que pudemos apreender das realidades de interde
pendência social.
O s discursos sobre a “ omissão” dos pais são em itidos pelos pro
fessores principalm ente quando os pais estão ausentes do espaço esco
lar. Eles não são "vistos", e essa invisibilidade é im ediatam ente in ter
pretada — principaim en te quando a criança está com dificuldade
escolar — com o uma indiferença com relação a assuntos de escola
em geral e da escolaridade da criança em particular. A lgu n s profes
sores até parecem pensar que a ausência de relações, a ausência de
contatos com algumas famílias (populares, é claro), explicaria o “ fra
casso escolar" das crianças. Por isso, é preciso fazer os pais irem, de
qualquer jeito, à escola: nas diversas reuniões, festas escolares...
O ra, sabemos que as relações pais-professores seguem a lógica
das sociabilidades sociais corriqueiras': os pais das classes médias
e altas são os que se en contram mais co m os professores de m a n ei
ra inform al, mas essas relações dizem respeito menos a um a co m
panham ento da escolaridade do que a uma sociabilidade fundamen
tada em posições e disposições sociais comuns ou próxim as’ . Essas
relações de proxim idade ou de distância en tre adultos de d iferen
tes m eios sociais estão fundamentadas em diferenças sociais e v i
dentes, e podem os nos perguntar se os professores n ão estejam
conceben do sua relação com as famílias populares através do mode-
335
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
336
CONCLUSÕES
337
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
AS M O D A L ID A D E S D A T R A N S M IS S Ã O
338
CONCLUSÕES
m
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
340
CONCLUSÕES
341
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
342
CONCLUSÕES
Podem os observar tam bém que fam ílias fracam ente dotadas de
capital escolar ou que não o possuam de form a alguma (caso de pais
analfabetos) podem , n o entanto, m uito bem , através do d iá lo go ou
através da reorganização dos papéis dom ésticos, atribuir um lugar
simbólico (n os intercâm bios fam iliares) ou um lugar efetivo ao “ esco
lar” ou à “criança letrada” n o seio da configu ração fam iliar. Assim ,
em algumas fam ílias, podem os encontrar, in icialm en te, uma escu
ta atenta ou um questionam ento interessado dos pais, dem onstran
do assim, para elas, que o que é fe ito na escola tem sentido e valor.
M esm o que os pais não com preendam tudo o que os filh os fazem
na escola e co m o não têm vergon h a de dizer que se sentem in fe
riores, eles os escutam, prestam aten ção na vida escolar deles,
interrogando-os, e indicam , através de inúmeros com portam entos
cotidianos, o interesse e o va lo r que atribuem a essas experiências
escolares12. A s conversas co m p elo m enos um m em bro da fam ília
possibilitam verbalizar uma experiência nova, não viven ciá -la sozi
n ho, não carregar sozinho uma experiên cia diferen te. D a mesma
form a, quando pais analfabetos ou c o m dificuldades na escrita
pedem progressivam ente aos filh os escolarizados n o curso prim á
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U m a a n t r o p o l o g ia d a in t e r d e p e n d ê n c ia
A interdependência
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O “ in te rio r” e o “ e x te rio r”
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N otas
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3 O s professores também experim entam reações de desprezo por parte dos pais de classes
mais altas, muitas vezes portadores de diplomas e de salários mais elevados.
4 O que form ulam os sõ tem sentido se aceitarm os a hipótese segundo a qual o que é
da ordem d o c o g n itiv o é relativamente independente d o que é da ordem d o ethos, e
que é possível inserir as crianças dos meios populares na cultura escrita escolar, sem
necessariamente visar a uma conversão, mais ainda utópica, d o con ju n to dos hábi
tos de vid a populares.
6 C f. V. Cicourel, “ Developm ental and adult aspects ol habitus", 1989, e "Som e basic theo-
retical issues...” , 1974-
7 Cf- a posição de Pierre Bourdieu sobre a noção de cam po que supõe “ uma ruptura com
a representação realista que leva à redução d o efeito d o meio ao efeito da ação direta
que se efetua numa interação", Leçon sur la leçon, 1982a, p. 42.
Algum as pesquisas estatísticas verificam , aliás, o fato de que um alto n ível de diplom a
ou uma posição favorável dos pais não têm, automaticamente, efeito de socialização par
ticular. Sabemos, por exem plo, que o número de jovens que gostam de 1er e cujos pais
são executivos (ou possuem diplom a de 2® grau), mas pequenos leitores, é m enor d o que
o número de joven s cujos pais são operários ou empregados (e não tem diplom a de 2°
grau), mas grandes leitores: “O gosto pela leitura tem mais oportunidades de surgir num
jovem que possua a carta "pai leitor” d o que aquele que tem em mãos uma carta “ pai
diplom ado” (F. de Singly, “ Savoir hériter...", 1993).
11 “ Nunca será demais repetir que nenhum ‘gosto pela leitura’ pode surgir de um contato
simplesmente material com objetos-livros” , escrevem A .-M . Chartier, C . Clesse e J.
Hébrard, Lire-É crire.. ., p. 91.
12 Richard Hoggart conta que, quando voltava d o colégio, relatava sua experiência para
a a vó paterna, e "todas as noites voltava para conversar sobre os acontecim entos d o dia
com minha a v ó " (3 3 Newport Street..., p. 128).
14 B. Lahire, La raison des plus faib les...; “ La division sexuelle du travail d’écriture...".
15 Da mesma forma que as interpretações sociológicas já clássicas que têm com o o b jeto as
desigualdades sociais diante da escola nunca evocaram a natureza escrita dos con h eci
mentos escolares, nenhuma das teses defendidas h oje em relação ao “ m elhor êx ito" esco
lar das meninas na escola primária (especialm ente nos meios populares) considera as
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|l) M . Bakhtine, Marxisme et philosophie du langage. .., 1977, p. 117. G rilos d o autor.
21 N . Elias, Q it’e.st-ce que la sociologie.', p. 138. Da mesma forma, Elias escreve (íbid-.p. 141):
" O Homem é um processo. Por que, nessas condições, os próprios cientistas utilizam, tão
frequentemente, um co n ceito que — com o o de indivíduo — fixa o homem na forma
de um adulto independente, solitário, situado fora de qualquer rede relacionai, sem que
jamais tenha sido criança e sem que jamais se renha tornado adulto?” .
24 L e v S em en ovitch V ygotski e N orb ert Elias — o prim eiro, psicólogo; o segundo, soció
logo — criticaram essa concepção, mostrando assim que a revisão da oposição indi-
víduo/sociedade implica transformações nas relações entre psicologia e sociologia. C o m o
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o trabalho de Jean Piaget durante muito tem po constituiu a referência psicológica im plí
cita mais im portante de numerosos sociólogos, é o trabalho de Vygotski que é mais
com p atível com nossa con cepção de sociologia. C f., nessa perspectiva, J. S. Brimer,
Le développement de l’e n fa n t..., assim com o M . Deleau, Les origines sociales du dévelop
pement m en tal..., 1990.
J. S. Bruner, Le développement de l’e n fan t..., p. 285: “Gostaríamos de sugerir que a lin
guagem não é um instrumento comum, mas um instrumento que entra na própria orga
nização d o pensamento e das relações sociais. Pode-se perceber que esse ponto de vista
se op õe à imagem piagetiana da linguagem com o sistema ‘preguiçoso’ que apenas rela
taria o pensamento e seria apenas uma espécie de sintom atologia dele". C f. também B.
Lahire, “ S ociologie des pratiques d’écriture...".
33 P. Bourdieu, Le sens pratique, p. 90. Existem empregos mais realistas — e menos cie n tí
ficos — dos termos “ estrutura social", "estrutura ob jetiva ", “estrutura das relações entre
classes"... que deixam inteiramente aberta a questão d o m odo de acesso m etodológico
a essas “ estruturas” . Quando evoca, na mesma obra, as “ estruturas objetivas” com o “ pro
dutos da história co letiva ” (p. 96 ) ou com o “produtos objetivados” (p. 88), P. Bourdieu
está adotando uma linguagem mais realista e m enos convencional.
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« Ibid., p. 87.
41 Ibid., p. 233.
42 Da mesma forma, P. Bourdieu propõe, em C e que parler veut d ire ... ( 1982b), um relacio
namento das categorias sociologicam ente construídas e das características lingüistica-
menre construídas que, se questiona a autonom ia da linguística, também não aceita a
separação entre língua e sociedade, linguístico e sociológico.
43 P. Bourdieu, La distinction, p. 545. Todos os term os que se seguem são retirados d o autor.
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