Anda di halaman 1dari 367

editora ética

B e r n a r d L a h ir e

S u c e s s o e s c o l a r
N O S M E IO S P O P U L A R E S
As razões do improvável

Tradução
Ramon Am érico Vasques
Sonia Goldfeder

EDITORA AFILIADA

mtttora A tic a
Editor
Miriam Goldfeder

Editor-assistente
Claudemir D. de Andrade

Preparação de texto
Maria de Fátima Mendonça Couto

Revisão
Fátima de Carvalho M . de Souza (coord.)
Isaías Zilli

Paginação eletrônica
G&.C Associados
Laura Sanae Doi

Capa
Isahcl Cnrhnllo

Impresso nas oficinas da


Gráfica Palas Athena

Seuil/Gallimard, Paris, 1995


T ítu lo original: Tableaux de familles — Heurs et malheurs scolaires
en milieux populaires
ISBN 2 02 025951 0

ISBN 85 08 06601 5

1997
Todos os direitos reservados pela Editora Atica
Rua Barão de Iguape, 110 - CEP 01507-900
Caixa Postal 2937 - CEP 01065-970
São Paulo - SP
Tel.: (011) 278-9322 -F a x : (011) 277-4146
Internet: http://www.atica.com.br
e-mail: editora@atica.com.br
S umário

Prelúdios................................................................................. 11

1. O P O N T O DE V I S T A D O C O N H E C I M E N T O ................................ 17

• A estrutura do comportamento e da personalidade da criança 17


• Os traços pertinentes da leitura sociológica 19
A s formas familiares da cultura escrita, 2 0 Condições e dispo­
sições econômicas, 24 A ordem moral doméstica, 2 5 As formas
de autoridade familiar 27, A s formas familiares de investimen­
to pedagógico, 28
• A pluralidade dos estilos de “ sucesso” 29
• Singularidade e generalidade .31
Contextualizar, 32 Exemplos caricaturais, 34 A questão da
equivalência, 36 A estruturação de objetos singulares, 3 7 Por
um procedimento experimental, 40

2. ‘‘F racasso ” e “ sucesso” .......................................................... 47

• A população pesquisada 47
• A percepção escolar dos alunos 53
A ordem escolar das qualidades, 54 Sobre a autonomia e a dis­
ciplina, 58

3. P erfis de c o n fig u r açõ e s .................................................... 71

• Variações sobre o mesmo tema 71


• A elucidação das palavras: à procura de indícios 74
O eh impossível 77
Perfil 1: A distância em relação aos universos objetivados, 79 Per­
fil 2: Uma prisão familiar, 88 Perfil 3: Uma ruptura radical, 97
A herança difícil 104
Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo, 106 Perfil 5: As
más condições de herança, 11 5 Perfil 6: Dois capitais culturais
indisponíveis, 124 Perfil 7: Um a perturbada divisão sexual das
tarefas domésticas, 131
D a indisciplina à autodisciplina 141
Perfil 8: Recusa às coerções e “ bloqueio” em relação à escrira, 143
Perfil 9: A moral, a autoridade e a escola, 155 Perfil 10: A “escre-
vinhadora” disciplinada, 164
Sentimento de inferioridade, sentimento de superioridade 171
Perfil 11: Um sentimento de “ inferioridade cultural” , 173 Per­
fil 12: Uma reencamação social, 181 Perfil 13: Vigilância moral
e auxílio mútuo familiar, 190 Perfil 14: U m afável confinamen-
to simbólico, 19 7
Configurações familiares heterogêneas 207
Perfil 15: A s contradições, 208 Perfil 16: Entre inquisição e indul­
gência, 2 1 9 Perfil 17: Uma relação de força cultural, 227
A criança no centro da família 2.3.3
Perfil 18: Um a situação com dupla face, 234 Perfil 19: A crian-
ça-rei num reino modesto, 244
Investimento fam iliar positivo ou negativo 256
Perfil 20: U m superinvestimento escolar paradoxal, 258 Perfil
21: Os limites da despesa familiar, 268 Perfil 22: O investimen­
to escolar, 277
O s “ brilhantes” sucessos 285
Perfil 23: Aqui, tudo é ordem e regularidade..., 288 Perfil 24:
Uma vigilância regular e sistemática, 296 Perfil 25: Um caso
“ ideal” , 30.3 Perfil 26: U m a militância familiar, 313

C o nc lu sõ e s .................................................................................. 334

• O mito da omissão parental e as relações famílias-escola 334


• As modalidades da transmissão 338
O tempo e as oportunidades de socialização, 338 Transmissão
ou construção?, 3 4 0 Um patrimônio cultural morto, 342 A
integração social e simbólica da experiência escolar, 343 Capi­
tal escolar e experiência escolar, 344 A constituição das iden­
tidades sexuais, 345 Contradições e instabilidades, 346
• U m a a n tro p o lo g ia da in terd ep en d ên cia 348
A interdependência, 348 Das estruturas objetivas às estruturas
mentais, 350 O “ interior” e o “ exterior” , 352

B ib l io g r a f ia ..............................................................................359
A g r a d ecim en to s

Agradeço antes de tudo às famílias que me confiaram uma parte de


sua experiência. Espero que este trabalho, ao evocar situações sociais sem
nenhum sentimento de desprezo nem piedade, possa devolver a cada uma
delas a dignidade que raramente lhes é atribuída.
Meus agradecimentos dirigem-se também ao G rupo de Pesquisa sobre
a Socialização ( U R A 893, C N R S ), que contribuiu para a publicação
deste trabalho nas melhores condições possíveis. A Daniel T h in , que fez
uma grande parte das entrevistas comigo, a todos os que participaram
da pesquisa, a Roger Chartier, Daniel Fabre, Yves Grafmeyer, Claude
G rignon, Jean-Claude Passeron, Jacques Revel e G uy Vincent, por
suas observações, e , finalmente, a Régis Bernard e Yane Golay, que ama­
velmente acompanharam a passagem do relatório de pesquisa inicial
(Les raisons de l’improbable. “ Heurs" e “ malheurs” à l’école élém en ­
taire d’enfants de m ilieux populaires — A s razões do im provável.
“ A legrias” e “ tristezas" na escola primária de crianças de classes popu­
lares) à redação deste litro.
Fenso, aliás, com o vocês, que o que deve
sobretudo solicitar nossa atenção são os
grandes problemas d o mundo e da ciência.
Mas, muitas vezes, de nada serve formular
o simples projeto de dedicar-se à investigação
desse ou daquele grande problema, pois nem
sempre sabemos para onde devem os orientar
os passos. E sempre mais racional, em um
trabalho científico, mergulhar naquilo que
temos diante de nós, nos objetos que se
oferecem por si mesmos à nossa pesquisa.
Se o fizermos com seriedade, sem idéias
preconcebidas, sem expectativas exageradas,
e se tiverm os sorte, pode acontecer que,
graças aos elos que ligam tudo a tudo,
o pequeno ao grande, o trabalho que
começamos sem nenhuma pretensão abra
cam inho ao estudo de grandes problemas
(Sigm und Freud, Introduction à la
psychanalyse, p. 17).

Enredamo-nos no gelo escorregadio onde


a fricção está ausente, e onde, portanto,
as condições são ideais em um certo sentido,
mas, onde, em troca, e causa disso, não
podemos caminhar. Ora, queremos caminhar;
precisamos, portanto, de fricção. Voltemos
ao solo áspero! (Ludw ig Wittgenstein,
Investigaüms philosophiques, p. 164.)
P relúdios

Só existe uin;i íorrrui de se checar ao universal;


observar o part icular, não superfic inlmenre mas
minuciosa mente e em detalhes1.

Para compreender isto de modo mais claro, pre-


c isamos, tanto aqui com o em inú m era casos anã-
logos, considerar as particularidades dos procès'
sos; uí/titr tiwis cie perto o que esrá acontecendo'.

Souyla está cursando a 2a série do I a grau. Seu pai, ex-operário


da construção c iv il, não-qualificado, está aposentado. Ele e sua
mulher, dona-de-casa, são analfabetos, dom inam com dificuldades a
língua francesa e têm um conh ecim en to bastante restrito do sistema
escolar {de seu funcionamento cotidiano, do desempenho de seus filhos,
das classes que freqüentam ...). O casal teve onze filhos e v iv e na peri­
feria de uma grande cidade. Souyla está indo m uito bem na escola.
Esta descrição sumária de uma siruação social e escolar, que pode­
ría ser a verbalização de algumas informações extraídas de uma das
inúmeras fichas de análise de uma pesquisa estatística que tenta
“ explicar” a m elhor ou pior situação escolar de crianças de 2a série
do I e grau, segundo um conju nto de indicadores “ objetivos” (n íveis
de form ação, situações profissionais, lugar onde moram os pais, grau
de conh ecim en to do sistema escolar e acom panham ento da escola­
ridade dos filhos, número de filhos na família...), não é ficção, ainda
que apresente algo de inesperado. O quadro descritivo, por seu aspec­
to a típ ico — com o, pode-se questionar, uma família que acumula tan­
tas “deficiências" poderia levar uma criança a ter “sucesso” na esco­
la? — pergunta o sociólogo, em busca de maiores explicações.
Porém, ao procurar compreender, esse sociólogo contunde-se ainda
mais. C om parando algumas fam ílias a partir do co n ju n to dos atri­
butos ou dos recursos dos quais “ o b jetiva m en te” dispõem , não c o n ­
seguirá chegar a nenhum a conclusão: fam ílias não totalm ente “ des­
providas de recursos” , sobretudo do ponto de vista do capital escolar,
possuem filhos com enorm es dificuldades escolares, ao passo que
outras, cujas características objetivas levariam a pensar que a esco-

11
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

laridade dos filhos poderia ser custosa, possuem crianças com boa
e mesmo m uito boa situação escolar. Há, portanto, para o so ció lo ­
go, em relação ao que con h ece sobre o fu n cion am en to p rovável do
m undo social a partir de dados estatísticos, co m o que um m istério
a ser elucidado. A s pistas parecem, ao menos no in ício, confusas, e
a tentativa de com preensão de situações atípicas, que não nos m os­
tram aquilo que poderiam os esperar, constitui um verdadeiro desa­
fio sociológico.
A questão central que m oveu nossa pesquisa d it respeito à c o m ­
preensão das diferenças “ secundárias” entre famílias populares cujo
n ível de renda e n ível escolar são bastante próxim os. Sem elhantes
por suas condições econôm icas e culturais — consideradas de forma
grosseira a partir da profissão do ch efe de fam ília — , co m o é possí­
vel que configurações fam iliares engendrem , socialm ente, crianças
com n íveis de adaptação escolar tão diferentes? Quais são as d ife­
renças internas nos m eios populares suscetíveis de justificar varia­
ções, às vezes consideráveis, na escolaridade das crianças? O que pode
esclarecer o fato de que uma parte delas, que tem probabilidade muito
grande de repetir o ano no curso prim ário, consegue escapar desse
risco e até mesmo, em certos casos, ocupar os m elhores lugares nas
classiticaçiães escolares? Essas são as questões para as quais tentare­
mos encontrar respostas, tentando com preender as posições esco­
lares de crianças da 2a série d o I a grau em relação à sua situação,
ao cruzamento de configurações familiares específicas e do espaço
escolar. Para sermos mais precisos, o o b jeto cen tral de nosso traba­
lho são os fenôm enos de dissonâncias e de consonâncias entre c o n ­
figurações familiares (relativa m en te hom ogêneas do p o n to de vista
de sua posição n o seio d o espaço social em seu c o n ju n to ) e o uni­
verso escolar que registramos através do desem penho e com porta­
m ento escolares de uma criança de cerca de 8 anos de idade.
A maneira pela qual os professores primários classificam os “ fra­
cassos" escolares, ou seja, atribuem a esses acontecim entos um co n ­
texto interpretativo, é relativam ente diferente quando julgam indi­
vidualm ente os alunos de uma classe ou quando julgam as “ causas
gerais” do fenômeno. Quando os professores falam de uma forma muito
genérica, as “ grandes causas sociais” tom am -se predom inantes. Pro-

12
PRELÚDIOS

cedem assim, de cerra forma, à maneira dos sociólogos que manipu­


lam categorias macrossociológicas. V iveriam os em uma sociedade na
qual os pais não “ conversam mais com seus filhos” , não têm “ mais
tem po” ou “ mais v on tade” por causa de suas ocupações profissionais,
onde os círculos familiares se tornam “cada vez mais instáveis” , com
mães solteiras, famílias “ implodidas” pelos divórcios, separações e situa­
ções econôm icas “ precárias" (desem prego, salário m ín im o de inser­
ção*...)- O s filhos, em tais situações, “ perdem todos os parâmetros",
“ não desen volvem sua linguagem ” e “são abandonados a si pró­
prios". Q u anto aos pais, estes deixam de ser “ verdadeiros país": não
desempenham — ou não desempenham mais — seu “ papel” , “omi-
tem-se” e "não cuidam mais dos filh os” .
N o entanto, quando é preciso evocar esse ou aquele aluno da clas­
se, com suas dificuldades e suas capacidades específicas, seu m odo de
com portam ento e seu desempenho escolar, os professores não man­
têm mais o mesmo discurso. A s explicações se tom am menos segmen­
tadas, menos caricaturais, menos evidentes. Confnm tados com algu­
mas crianças específicas, apresentam questões prementes: com o fazer
para modificar ou “desbloquear" uma situação difícil? Por que tal aluno,
que era um “ perfeito vagabundo” , um belo dia com eça a “funcionar
m elhor” , "a interessar-se mais” , ao passo que nunca conseguimos
fazer nada por aquele outro?
Os professores (sobretudo aqueles que estão menos habituados a
manipular categorias sociopolíticas) resistem na maior parte das vezes
às explicações sociológicas em termos de categorias sociais, de gru­
pos ou de classes, de causas sociais ou determinantes sociais. E resis­
tem, sem dúvida, por algumas (boas) razões. De um lado, encontram
com regularidade casos que não se encaixam nos modelos que lhes
são propostos: “ desempenhos" exemplares em meios populares (às vezes
é o seu próprio caso particular), ou, inversamente, “ catástrofes esco­
lares” em meios burgueses. Por outro lado, além do caráter excepcio­
nal Je certos casos encontrados, a vida escolar os leva a tratar os alu-

* O salário mínimo de inserção (cm francês* retenu minimum d'insertion, o R M I) é quanto ganlia
um desempregado u nno salário-dcscmpte^o, ou então os indivíduos totalmente m arginali­
zados do sistema de trabalho na França. Ele gira em torno de 500 dólares. (N .T .)

13
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

nos caso por caso (co m nom e e sobrenom e), nunca totalm enre simi­
lares entre si, apanhados em um con texto de classe particular, com
pais, desempenhos e um com portam ento escolar singulares.
Ora, nós, aqui, apostamos que a sociologia (por causa de seu m odo
de pensar relacionai e por evita r a absolutização de certos traços
sociais, por sua capacidade específica de distanciam ento em rela­
ção a realidades de interdependência, que, n orm alm ente, provocam
sobretudo atitudes de engajam ento1) pode ajudar a compreender casos
específicos (n ã o especialm ente no sentido de “ excepcion ais” ) sem
dispersar as razões ou disseminar as causas ao infinito. N o tem o s que
encontram os aí um b elo exem p lo de elo entre senso com um e saber
cien tífico , que, dados os problemas epistem ológicos, m eto d o lóg i­
cos e teóricos levantados pela pesquisa, com plica de maneira sin­
gular o debate sobre o tema.
Q u ando queremos com preender “ singularidades” , “ casos parti­
culares" (mas não necessariamente exem plares), parece que somos
fatalm ente obrigados a abandonar o plano da reflexão macrossocio-
lógica fundada nos dados estatísticos para navegar nas águas da
descrição etnográfica, m onográfica. E, geralm ente, a questão d o elo
ou da articulação entre estas duas perspectivas não se coloca nem
àqueles que, etnógrafbs ou estatísticos convictos, falam do mundo
de m odo diferente, mas co m o m esm o sentim ento de dar conta do
essencial. Ora, em vez de fazer de conta que a com preensão de ca­
sos singulares acontece por si só, colocan do-nos de im ediato e in­
genuam ente d o lado daqueles para quem a questão da representa­
ção ou da generalização n ão causa nenhum problem a, optamos, n o
quadro de uma antropologia da interdependência, por estudar expli­
citam en te uma série de questões ( singularidade/generalidade; visão
etnográfica/visão estatística; m icrossociologia/m acrossociologia;
estruturas cogn itivas índividuais/estruturas o b jetivas...) a respeito
de um o b jeto singular e lim itado. E, sobretudo, questionar a práti­
ca — m uito criticada nos estatísticos — que consiste em juntar, em
uma mesma categoria, realidades consideradas diferentes, e que, logi­
cam ente, im plica sacrificar sua singularidade.
A lé m disso, durante um percurso de pesquisa que acentuava as
modalidades concretas da socialização familiar, encontram os mút-

14
PRELÚDIOS

riplos exem plos que possibilitaram com preender com o o capital cul-
rural parental (ou de form a mais ampla, fam iliar) podia ser trans­
m itido, ou, ao contrário, não conseguia encontrar condições para
ser transmitido. O u ainda, com o, na ausência de capital cultural ou
na ausência de uma ação voluntária de transmissão de um capital
cultural existente, os con h ecim en tos escolares podiam , apesar de
tudo, ser apropriados pelas crianças. Mas, afinal de contas, as pró­
prias noções de “ capital cultural” e de “ transmissão” ou de “ heran­
ça” — metáioras úteis quando com entam os quadros que cruzam
variáveis — deixam de ser pertinentes quando, ao mudar a escala
de observação, voltam o-n os para a descrição e análise das m odali­
dades da socialização fam iliar ou escolar, no âm bito de uma s ocio­
logia dos processos de constituição das disposições sociais, de cons­
trução dos esquemas mentais e com portam entais.

A título de aviso ao leitor, gostaríamos de ressaltar a escolha, um


pouco particular, de determinada escritura sociológica. A p ó s termos
precisado o ponto de vista do conhecim ento adotado, descrevendo
em seguida a população analisada, e antes de propormos algumas con ­
clusões a serem extraídas da exploração sociológica feita, apresenta­
mos uma série de "perfis familiares" que constituem o corpo principal
deste livro. O perfil, com o gênero cien tífico livremenre inspirado no
gênero literário, comporta duas exigências fundamentais: de um lado,
baseado em “dados” e preocupado com a crítica dos contextos de sua
produção, é a pintura, diferente portanto do discurso literário, de um
m odelo particular existente na realidade. Por outro lado, deve deixar
transparecer claramente a maneira específica de pintar, o ponto de vista
a partir do qual o pintor observa e explicita o mundo.
Exceto suas ambições científicas principais, a qualidade deste tra­
balho, se existe, reside prim eiro e antes de tudo n o cuidado dispensa­
do a cada uma das diferentes fases práticas da pesquisa. Nossa análise
não somente apoia-se em dados ricos e suscetíveis de serem cruzados
(entrevistas com 26 famílias em suas casas e notas etnográficas sobre
cada um dos contextos das entrevistas, fichas com informações esco­
lares, cadernos de avaliação, entrevistas nas escolas com cada uma das

15
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

27 crianças, entrevistas no com eço e no final do ano escolar com os


7 professores envolvidos, entrevistas com 4 diretores de escola), mas
cada etapa dessa pesquisa foi conduzida com a preocupação particu-
lar de se fazer uma grande reflexão sociológica em cada relatório. A s
vezes, quando estes relatórios deviam ser dados "às cegas", suas con-
seqüências sobre o trabalho eram medidas logo em seguida para com-
preendennos o que havia sido feito, ainda que não o soubéssemos sem­
pre no próprio momento. O conhecim ento sociológico só pode ser cria­
do através de um trabalho permanente de retorno aos protocolos
anteriores da pesquisa, a partir de aquisições progressivas, graças aos
protocolos de pesquisa que se seguiram. Trata-se neste caso de um avan­
ço através de um retom o reflexivo sobre os momentos passados do tra­
balho, sendo que as diferentes etapas da pesquisa não estavam jamais
separadas, com o nos esquemas hipotético-dedutivos escolares. Tudo
é válido, a qualquer m om ento do trabalho, para compreender melhor
o que foi feito em qualquer outro m om ento.
Portanto, estamos inclinados a pensar que a qualidade p rin ci­
pal do so ció logo não pode ser a de “ in térprete” fin al, mas sim uma
qualidade de artesão, preocupado com os detalhes e com o ciclo
co m p le to de sua produção, introduzindo sua ciên cia nos m om en ­
tos m enos “ brilhantes" mas mais determ inantes da pesquisa: con s­
tituição da população a ser entrevistada, construção da ficha de entre­
vista, qualidade da relação de entrevista, trabalho de transcrição
da entrevista, notas etnográficas sobre o contexto... Em vez de refle­
tir assim que acabar a pesquisa, o sociólogo d eve fazê-lo a cada ins­
tante e, particularmente, naqueles m om entos banais, aparentem en­
te anódinos, em que tudo leva a crer que não há nada a se pensar.

N otas

1 E. Durkheim, “ La science positive de la m orale en A llem agn e” , in Textes, 1975, p. 335.

“ L. W irtgenstein, investigations pfu/osojb/iic/ues, 1986, p. 141.

' N . Elias, Engagement et distanciation..., 1993.

16
1 0 PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

A E S T R U T U R A DO C O M P O R T A M E N T O
E D A P E R S O N A L ID A D E D A C R IA N Ç A

À estrutura e a forma do com portam ento de um


indivíduo dependem da estrutura de suas rela'
ções com os outros indivíduos1.

A personalidade da criança, seus “ raciocín ios” e seus com porta­


m entos, suas ações e reações são incom preensíveis fora das relações
sociais que se tecem , in icialm en te, entre ela e os outros membros
da constelação familiar, em um universo de objetos ligados às fo r­
mas de relações sociais intrafamiliares. De fato, a criança constitui
seus esquemas com portam entais, co gn itivos e de avaliação através
das formas que assumem as relações de interdependência com as pes­
soas que a cercam com mais frequência e por mais tem po, ou seja,
os membros de sua fa m ília 2. Ela não “ reproduz", necessariam ente e
de maneira direta, as formas de agir de sua fam ília, mas encontra
sua própria m odalidade de com portam ento em função da configu ­
ração das relações de interdependência n o seio da qual está inseri­
da. Suas ações são reações que "se apoiam” relacionalm ente nas ações
dos adultos que, sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de c o m ­
portam entos e de representações possíveis para ela.
Se, por um lado, temos tendência a reificar os com portam entos
das crianças em traços de caráter ou de personalidade, a sociologia
d eve lembrar, por outro, que esses traços não aparecem em um

17
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

vazio dc relações sociais: são, sim, o produto de uma socialização


passada, e também da form a das relações sociais através das quais
estes traços se atualizam, são m obilizados. C o m o explica François
Roustang : “ Diriamos, por exem plo, que alguém é ‘dependente’, ‘hos­
til’ , ‘ lou co’, ‘m eticu loso’, ‘ansioso’ , ‘ exibicion ista’, etc.". N o en tan ­
to, co m o observa Bateson, esses adjetivos, “ que deveríam descre­
ver seu caráter, não são aplicáveis de form a alguma ao indivíduo,
mas às transações entre ele e seu meio, material e humano. N inguém
é ‘esperto’ , ou ‘dep end en te’ , ou ‘fatalista’ no vazio. Cada traço que
atribuímos ao in divídu o não é seu, mas corresponde mais ao que
acontece entre ele e alguma outra coisa (ou alguma outra pessoa)” '.
N o rb ert Elias nos fornece, em sua sociologia de M ozart, o exem ­
plo de um modo de reconstrução sociológica do que pode ser um indi­
víduo. “ Para com preender um indivídu o” , escreve, "é preciso saber
quais são os desejos predominantes que ele aspira a satisfazer [...]. Mas
estes desejos não estão inscritos nele antes de qualquer experiência.
Constituem -se a partir de sua prim eira infância sob o efe ito da c o e­
xistência com os outros, e fixam-se progressivamente na form a que
o curso de sua vida determinar, no correr dos anos, ou, às vezes, tam­
bém de maneira brusca, após uma experiência particularm ente mar­
cante” '. N a verdade, o mais íntim o, o mais particular ou singular dos
traços da personalidade ou do com portam ento de uma pessoa só pode
ser entendido se reconstituirmos o “ tecido de imbricações sociais com
os outros” 5. E é unicam ente quando não esquecemos que as condi­
ções de existência de um indivíduo são prim eiro e antes de m do as con­
dições de coexistência que podem os evitar todas as reificações destas
condições de existência em form a de propriedades, de capitais, de
recursos abstraídos (abstraídos das relações sociais efetivas). Essas
propriedades, capitais ou recursos não são coisas que determ inam
o indivíduo, mas realidades encarnadas em seres sociais concretos
que, através de seu m odo de relacionam ento com a criança, irão per­
mitir, progressivamente, que constitua uma relação c o m o mundo
e com o outro.
A maneira pela qual construímos sociologicam en te nosso o b je­
to nos leva tam bém a refletir sobre a pluralidade das formas de vida
social e formas de pensam ento e de com portam ento. Nesse senti-

18
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

do, afastamo-nos de qualquer idéia de evo lu çã o co gn itiva natural


e universal, com um ao con ju n to das crianças de uma mesma faixa
de idade. C o m efeito , inúmeras hipóteses de trabalho e psicologia
baseadas na teoria de Piaget sobre o d esen volvim en to da in teligên ­
cia supõem, de um lado, uma escala única d o d esen volvim en to
co g n itivo , e, de outro, uma form a um tanto abstrata e geral de c o n ­
ceber os processos de construção de esquemas mentais.
A nosso ver, só podem os com preender os resultados e os c o m ­
portam entos escolares da criança se reconstruirmos a rede de in ter­
dependências fam iliares através da qual ela constituiu seus esque­
mas de percepção, de julgam ento, de avaliação, e a m aneira pela
qual estes esquemas podem “ reagir" quando “ fu n cion am " em fo r­
mas escolares de relações sociais. De certo m odo, podem os dizer que
os casos de “ fracassos” escolares são casos de solidão dos alunos n o
universo escolar: m uito pouco daquilo que interiorizaram através
da estrutura de coexistência familiar lhes possibilita enfrentar as regras
do jo g o escolar (os tipos de orien tação co gn itiva , os tipos de práti­
cas de linguagem , os tipos de com portam entos... próprios à escola),
as formas escolares de relações sociais. Realm ente, eles não possuem
as disposições, os procedim entos cogn itivos e com portam entais que
lhes possibilitem responder adequadam ente às exigên cias e injun-
ções escolares, e estão portanto sozinhos e co m o que alheios diante
das exigências escolares. Q u an do voltam para casa, trazem um pro­
blem a (escolar) que a constelação de pessoas que os cerca não pode
ajudá-los a resolver: carregam, sozinhos, problemas insolúveis. O
S

O S T R A Ç O S PE R T IN E N T E S D A L E IT U R A SO C IO LÓ G IC A

Se a família e a escola podem ser consideradas com o redes de inter­


dependência estruturadas por formas de relações sociais específicas,
então o “ fracasso" ou o “ sucesso” escolares podem ser apreendidos
co m o o resultado de uma m aior ou m enor contradição, d o grau mais
ou menos elevad o de dissonância ou de consonância das formas de
relações sociais de uma rede de interdependência a outra. Nosso tra­
balho consistirá — mais d o que privilegiar um ou outro aspecto da

19
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

socialização familiar e em vez de estabelecer correlações fator por fator


— em descrever e analisar configurações singulares, combinações espe­
cíficas de traços gerais. Para a descrição das configurações fam ilia­
res, consideramos c om o pertinentes os cin co temas que seguem: as
formas familiares da cultura escrita, as condições e disposições eco ­
nômicas, a ordem moral doméstica, as formas de autoridade fa m i­
liar e as formas familiares de investim ento pedagógico.

A s form as fam iliares da cultura escrita

A escola é um universo de cultura escrita", e podem os nos per­


guntar se os meios populares não se distinguem entre si do ponto
de vista de sua relação co m a escrita. Por detrás da similaridade apa­
rente das categorias socioprofissionais, talvez se escondam d iferen ­
ças, abismos sociais na relação com a escrita, diferentes frequências
tle recurso a práticas de escrita e leitura, diferentes m odalidades de
uso da escrita e da leitura, diferentes modos de representação dos
atos de leitura e de escrita, diferentes sociabilidades em torno do
tex to escrito.
A familiaridade com a leitura, particularmente, pode conduzir a
práticas voltadas para a criança, de grande importância para o “suces­
so” escolar: sabemos, por exem plo, que a leitura em voz alta de nar­
rativas escritas, combinada com a discussão dessas narrativas com a
criança, está em correlação extrem a com o “ sucesso” escolar em lei­
tura7. Quando a criança conhece, ainda que oralmente, histórias escri­
tas lidas por seus pais, ela capitaliza — na relação afetiva com seus pais
— estruturas textuais que poderá reinvestir em suas leituras ou nos atos
de produção escrita. Assim , o texto escrito, o livro, para a criança, faz
parte dos instrumentos, das ferramentas cotidianas através das quais
recebe o afeto de seus pais. Isto significa que, para ela, afeto e livros
não são duas coisas separadas, mas que estão bem associadas.
O fato de ver os pais lendo jornais, revistas ou livros pode dar a
esses atos um aspecto “ natural" para a criança, cuja identidade social
poderá construir-se sobretudo através deles (ser adulto com o seu pai
ou sua mãe significa, naturalm ente, 1er livros...). Inversam ente,
podem surgir experiências com o tex to impresso negativas ou ambi-

20
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

valentes “ em famílias onde os livros são: 1) respeitados demais, arru­


mados assim que oferecidos, não ten do a criança o d ireito de tocá-
los sozinha; 2 ) oferecidos co m o brinquedos que as crianças têm de
aprender a manejar sozinhas de im ediato”8. A questão não se lim i­
ta portanto à presença ou ausência de atos de leitura em casa: quan­
do existe a experiência, é preciso sempre se perguntar se é vivida posi­
tiva ou negativam ente, e se as modalidades são com patíveis com as
modalidades da socialização escolar d o texto escrito.
Da mesma form a, o fato de ver os pais lerem ou escreverem com
ou sem dificuldades, de ver os pais recorrerem cotidianam ente, em
sua vid a familiar, a escritas de determ inado tip o pode desempenhar
um papel im portante do pon to de vista do sentido que a criança
vai dar ao tex to escrito dentro do espaço escolar. Irá associá-lo a
uma experiência necessariamente dificultosa e até mesmo d o lo ro ­
sa, ou, ao contrário, a um aro natural e, às vezes, até de prazer? Fazem-
na participar, de alguma form a, dos pequenos atos de com unicação
escrita cotidiana? Mas as práticas domésticas com tex to escrito não
têm somente um papel de exem plo dado às crianças. Podem ter, para
uma grande parte delas, através das formas de organização dom és­
tica que tais práticas tom am possíveis e das quais participam {c o n ­
tribuindo para constituí-las), um efe ito indireto mas poderoso.
Por exem plo, o calendário e a agenda não têm som ente a fu n ­
ção de objetivar o tempo. Eles tornam possível uma distribuição das
atividades (individu ais ou co letiva s) no tem p o objetivado, e com
isso um planejam ento das atividades que implicam uma relação mais
reflexiva em relação ao tem po passado, presente ou futuro. C o m os
lembretes, a lista de compras, a lista de coisas a fazer, a lista de c o i­
sas para se levar numa viagem , o liv ro de contas, a classificação dos
docum entos adm inistrativos, as receitas recopiadas (p o r categoria
de pratos), ou as fotografias (em ordem cro n o ló gic a ) no álbum de
fam ília, a caderneta de endereços e de telefon e (e m ordem alfabé­
tica ), os bilhetes diários entre os membros da fam ília, que possibi­
litam, sobretudo, continuar a organizar a vida fam iliar enquanto o
corpo está ausente... — esses m eios de o bjetivação contribuem para
uma gestão mais racional, mais calculada e, com isso, m enos im e­
diata, menos espontânea das atividades fam iliares1
'.

21
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

A organização das atividades graças à objetivação-p lan iflcação


em múltiplas listas, os cálculos de orçam ento, o calendário, a agen­
da — regula e estrutura o tem po {diário, semanal, mensal ou anual)
e as atividades dos membros da fam ília. U m a tal sistematização das
atividades pode contribuir para uma disposição à regularidade, ao
respeito a horários. Sabemos que são os execu tivos que, estatistica­
m ente, parecem mais inclinados, entre os assalariados, a pensar e
gerir a vida fam iliar cotidiana c o m o uma “ organização” e a cultivar
uma form a de ascese11'. N o entanto, se por um lado as disposições
racionais domésticas são repartidas socialm ente de m odo desigual",
por outro as linhas divisórias nem sempre seguem as fronteiras das
classes ou dos grupos sociais. Embora tenham os ten dên cia a repre­
sentar as classes populares co m o classes hom ogêneas", nossas pes­
quisas anteriores explicitaram a diversidade das relações que tais clas­
ses podem ter com a escrita. Essa diversidade, que outorgam os com
mais facilidade aos mais bem-dotados, tam bém é visível para quem
quiser se dar ao trabalho de reconstruí-la através de pesquisas em p í­
ricas nos m eios populares.
A s práticas de escrita o rgan izacion a 1-doittéstica p erm item ca l­
cular, planejar, programar, p rever a a tividade, organ izá-la p o r um
p erío d o de tem p o re la tiva m en te lo n g o 11. P erm item preparar ou
retardar a ação direta e suspender em parte a urgência prática;
im plicam , por isso, um m aior co n tro le de seus desejos, de suas pul-
sões. O ca d ern o de contas ou o cá lcu lo d o o rça m en to , por e x e m ­
plo, constitu em co n creta m en te “ a possibilidade Je d eixa r de lado
algo que nos sentim os levados a fazer hic et rume em p ro v e ito de
uma satisfação que só obterem os d en tro de uma sem ana ou de um
a n o ” H. A ssim , uma grande parte das práticas da escrita pode c o n ­
tribuir para a con stitu ição de uma relação específica co m o rem po
na aprendizagem da capacidade de prorrogar (seus desejos, seus
im pulsos) e de planejar. Sua ausência no u niverso fa m ilia r a c o n ­
tece, inversam ente, entre os adultos mais hedonistas, mais espon­
tâneos1 Da mesma forma, a escrita pode perm itir gerir de maneira
mais precisa e ordenada seu discurso em uma carta argum en tati-
va ou em anotações antes de telefon ar, quando o que se qu er dizer
não d eve ser im provisado, e ex ig e uma ordem precisa e uma certa

22
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

exaustão. Escritas deste tip o im p lica m uma relação particular


com a linguagem : preocupação com a form a, precisão verbal e dis­
cursiva ou co m a exaustão.
A s práticas de escrita e gráficas introduzem uma distância
entre o sujeito falante e sua linguagem e lhe dão os m eios de d o m i­
nar sim b olica m en te o que até en tão d om in a va de form a prática:
a lin gu agem , o espaço e o tem po. O s m eios de o b je tiv a ç ã o do
tem p o, as listas de coisas a dizer e a fazer (c o m o planos de ação
ou de palavras futuras) e muitas vezes até as correspondências escri­
tas são de fa to instrum entos de con cretização de nossa têm pora-
! idade (e às vezes de nossa lin gu agem ) que con stitu em exceções
cotidianas e repetidas em relação ao ajuste p ré -re fle x iv o do sen ­
tid o p rático a uma situação social, E chega até m esm o a existir
uma distân cia en tre o tem p o v iv id o “ que passa” e o tem p o o rga ­
nizado graças a m eios de o b jetiva çã o , c o m o existe en tre o tra je ­
to esp on tân eo de um au tom obilista e o itin erá rio de via gem que
p la n ifica um percurso, o prepara, o d iv id e em etapas... A s p rá ti­
cas com uns de escrita constitu em desta form a verdadeiros atos
de ruptura em relação a o sen tido prático; m antêm uma relação
n ega tiva co m a m em ória prática d o habitus e tornam possível um
co n tro le s im b ó lic o de certas atividades, assim co m o sua ra cio n a ­
lização. A interrogação sociológica sobre as práticas da escrita abre,
porta n to, uma brecha na unidade da temia, da prática nu do senso
prático. Se, de fa to, o habitus é a ex p eriên c ia com u m d o m undo,
p ré-reflexiva , prática... en tão n em todas as práticas têm o habi-
tus co m o p rin cíp io de criação"'.
V em os bem co m o os escritos dom ésticos ultrapassam am pla­
m ente seu papel cultural im ediato para alcançar a organização
dom éstica, inclusive em sua dim ensão econ ôm ica — enquanto té c ­
nicas com uns de gestão d o co tid ia n o que im plicam Lima relação
co m o tem p o, com a lingu agem e, quase sempre, uma relação com
a ordem , participam de form as de organização dom éstica mais
racionais nas quais a crian ça está sendo con tin u am en te socializa­
d a 17. Trata-se, in diretam en te, de técnicas de organização, uma
relação mais calculada com o tempo, uma preocupação com a ordem
e a previsão, uma relação re flex iva com a linguagem que pode pro-

23
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

gressivam ente in corporar a criança que v iv e nesse universo fa m i­


liar. Esses escritos fam iliares estão, portanto, em parte, ligados a
esses dois pontos que seguem: as co n d ições e as disposições e c o ­
nôm icas, de um lado; a ordem m oral e dom éstica, de outro.

C o n d içõ es e disposições econôm icas

Se quiserem sobreviver e não afundar, os pobres


devem , com o carga suplementar, irônica e per­
versa, gerir seu dinheiro, com o os contadores o
fariam. Nada pode ser ultrapassado, afrouxado,
relaxado, nem mesmo um pouquinho1*.

Para que uma cultura escrita familiar, ou para que uma moral da
perseverança e do esforço possam constituir-se, desenvolver-se e ser
transmitidas, é preciso certam ente condições econôm icas de existên­
cia específicas. U m divórcio, uma morte ou uma situação de desem­
prego que fragilizam a situação econôm ica familiar podem constituir
rupturas em relação a uma econom ia doméstica estável. O desem­
prego pode mudar a relação com o tem po na medida em que a pre­
cariedade econôm ica impede toda projeção realista d o futuro: o dis­
tanciam ento das formas organizadas de trabalho e a insegurança
econôm ica são simações pouco favoráveis ao desenvolvim ento de uma
atitude racional em relação ao tem p o'1’. A estabilidade profissional
do chefe de fam ília permite, claro, sair da gestão do cotidiano “ no
d ia-a-d ia", mas também oferecer os fundamentos de uma regularida­
de doméstica de conjunto: regularidade das atividades e dos horários
familiares, limites temporais estruturados e estmturantes.
N o entanto, com o bem lem bra a epígrafe de H oggart, as c on d i­
ções econôm icas imediatas, conjunturais, não determ inam m ecani­
cam ente com portam entos econôm icos ou disposições econôm icas.
A s condições econôm icas de existência são condições necessárias,
mas seguramente não suficientes. Sejam quais forem as condições
materiais, sem a.s técnicas intelectuais apropriadas (os cálculos, as
conferências bancárias, as previsões de despesas projetadas em um
caderno ou num livro de contas...) não há cálculo racional possí­
v e l . O mesmo capital, a mesma situação econ ôm ica podem ser tra-

24
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

rados,-geridos de diferentes maneiras, e essas maneiras são tanto o


produto da socialização fam iliar de origem e de trajetórias escolares
e profissionais, quanto da situação econ ôm ica presente. É desta
fonna que, enquanto muitas das famílias com o mesmo n ível de renda
da família Hoggart mergulham em dívidas e caminham para uma situa­
ção de subproletariado, a mãe de Richard H oggart, oriunda de um
m eio social mais elevado e com tendências ascéticas (opostas ao "d ei­
xar fazer para ver o que acon tece” de outras fam ílias), gere o inge-
rível, ou seja, uma situação de grande precariedade econôm ica, para
não descer mais “ ba ixo” ainda.

A ordem m oral dom éstica

U m a parte das fam ílias das classes populares pode outorgar uma
grande im portância ao “ bom com portam ento” e ao respeito à auto­
ridade do professor. G a m o não conseguem ajudar os filhos d o pon to
de vista escolar, ten tam inculcar-lhes a capacidade de submeter-
se à autoridade escolar, com portan do-se corretam ente, aceitand o
fazer o que lhes é pedido, ou seja, serem relativam en te dóceis,
escutando, prestando atenção, estudando e não brincando... O s pais
visam , desse m odo, a uma certa “ respeitabilidade” fam iliar da qual
seus filhos d evem ser os representantes. Em casa podem exercer um
controle exterior direto da escolaridade dos filhos: sancionar as notas
baixas e os maus com portam entos “ escolares” , assegurar-se de que
as tarefas tenham sido feitas... In diretam en te, tam bém , podem
co n trola r o tem po consagrado aos deveres escolares, p roib in d o ou
lim itando as saídas noturnas, restringindo o tem po que passam dian­
te da televisão... A través dos controles dos amigos, d o controle entre
o tem po que levam da escola para casa (os filh os podem ser leva ­
dos e trazidos), os pais podem , igualm enre, con trola r as situações
de socialização nas quais estão colocados os filhos, para evita r que
“ não degrin golem ".
Fora dessa ação sociatizadora, que se concentra n o aspecto moral
das condutas infantis, o universo dom éstico, através da ordem mate­
rial, afetiva e m oral que reina ali a tod o instante, pode desem pe­
nhar um papel im portante na atitude da criança na escola. A famí-

25
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

lia pode constituir um “ lugar d ecen te” 1, um tipo de santuário de


ordem , de ordenação, relativa m en te fechado sobre si mesmo, para
evitar as influências nefastas, os possíveis “ desvios estranhos” (re jei­
ção do bairro” , dos imigrantes ou dos outros imigrantes, quando a
própria fam ília o é...).
Sem dúvida, uma configuração fam iliar relativam en te estável,
que perm ita à criança relações sociais freqüentes e duráveis com os
pais, é uma condição necessária à produção de uma relação com o
m undo adequada ao “ ê x ito ” n o curso prim ário *. A tra vés de uma
presença constante, um apoio moral ou a fetivo estável a tod o ins­
tante, a família pode acom panhar a escolaridade da criança de algu­
ma forma (p o r exem plo, através de um autoritarismo m eticuloso ou
uma confiança ben evolen te). N este caso, a intervenção positiva das
famílias, do p on to de vista das práticas escolares, não está voltada
essencialm ente ao d om ín io escolar, mas a dom ínios periféricos.
M oral do bom com portam ento, da conform idade às regras, moral
do esforço, da perseverança, são esses os traços que podem preparar,
sem que seja consciente ou in tencion alm en te visada, n o âm bito de
um projeto ou de uma m obilização de recurso, uma boa escolarida­
de. Inúmeras características próprias à form a escolar de relações
sociais estão próximas desses traços: apresentação pessoal ou apre­
sentação dos exercícios, trabalho ordenado, cuidado com os cader­
nos e atitudes corretas’4. O o fíc io de aluno n o curso primário, o tipo
de ethos, de caráter que a escola exige objetivam ente, podem ser pare­
cidos com o ethos desen volvid o por essas famílias.
Se a ordem moral e material em casa pode ter uma importância
na escolaridade dos filhos, é porque é, indissociavelmente, uma ordem
cognitiva. A regularidade das atividades, dos horários, as regras de
vida estritas e recorrentes, os ordenamentos, as disposições ou clas­
sificações domésticas produzem estruturas cognitivas ordenadas, capa -
zes de pôr ordem, gerir, organizar os pensamentos. X en ofon te propõe
um exem plo célebre em Économique. Q uando Sócrates se dirige ao
rico C ritóbulo, faz o elo gio tanto da ordem material quanto da ordem
cogn itiva c da memória. Pôr ordem em casa é uma outra m aneira de
pôr ordem nas suas idéias. Da mesma forma que Sócrates aconselha
C ritóbu lo a passar em revista seus instrumentos, seus utensílios, bem

26
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

co m o suas contas, para sempre saber em que pé se encontra, mos­


tra-lhe que uma discussão é igualm ente uma form a organizada, que
d eve ser ordenada: “ O ra, retom e seu discurso sobre a econ om ia
doméstica onde parou, e tente co n tin u ara exposição [...]■ Então, diz
Sócrates, e se passarmos prim eiro em revista todos os pontos sobre
os quais estamos de acordo durante a discussão, para que, se possí­
vel, tentem os nos pôr de acordo, do mesmo modo, sobre o que se
segue ?De acordo, diz Critóbulo, pois se é realm ente agradável, quan­
do remos em com um o interesse por dinheiro, rever nossas contas
para evitar qualquer contestação, é tam bém agradável, numa discus­
são conjunta, passar em revista, para nos pormos de acordo, todos
os pontos discutidos” ’’ .
Certas expressões empregadas marcam bem o fato de que uma dis­
cussão é com o uma ordenação. Retom am os as palavras onde as
tínhamos interrompido, da mesma forma com o apanhamos um uten­
sílio onde o havíam os deixado. Fazemos um in ven tário ( “ passar em
revista” ) dos pontos abordados co m o se faz um inventário dos uten­
sílios ou das provisões para o ano. X en o fon te nos dá assim uma das
chaves de interpretação de seu texto: não se trata som ente de um
tratado de econ om ia doméstica, mas tam bém de um tratado de eco­
nomia psíquica. O autor compara explicitam en te o in ven tário de
suas contas e o in ven tário dos esquemas ou temas utilizados. Mais
adiante, desenvolve a idéia segundo a qual quem arruma os objetos
que lhe pertencem e os passa regularmente em revista desenvolve
uma m em ória m a io r'’. G estão de um interior e gestão interior são
atividades irmãs. O aluno que v iv e em um universo dom éstico mate­
rial e tem poralm ente ordenado adquire, portanto, sem o perceber,
m étodos de organização, estruturas cogn itivas ordenadas e predis­
postas a funcionar co m o estruturas de ordenação do mundo.

A s form as de au toridade fam iliar

A apreensão das formas de ex erc ício da autoridade fam iliar nos


parece im portante, porque a escola primária é um lugar regido por
regras de disciplina e porque cerros alunos são estigmatizados com o
indisciplinados, desatentos ou bagunceiros. A escola desenvolve nos

27
SUCESSO ESCOLAR NOS MEI05 POPULARES

alunos e supõe de sua parte o respeito às regras escolares de co m ­


portam ento. O com portam ento daqueles que respeitam por si mes­
mos essas regras é frequentem ente classificado co m o “ autônom o”
(a autonomia é considerada a capacidade de seguir sozinho pelo cami­
n ho certo e da maneira certa), e opõe-se ao com portam ento daque­
les a qu em é preciso, incessantem ente, lem brar as regras e que
dem onstram pouco espírito de autodisciplina, de self'direction.
A s diferentes formas de exercício da autoridade fam iliar dão rela­
tiva importância ao autocontrole, à interiorização das normas de com ­
portam ento” . A lé m disso, as diferentes relações com a autoridade
são indissociáveis das relações com o tem po: a sanção física ou ver­
bal brutal imediata, que se repete todas as vezes que se quer lim itar
aquilo que é visto co m o um excesso de liberdade da criança, opõe-
se a todas as formas de punição que são adiadas, e que possibilitam
a reflexão e aumentam o período de tem po no qual a sanção é apli­
cada; e, mais ainda, opõe-se a todos os procedimentos verbais de racio­
cín io da criança, destinados, no presente discurso, a fazê-la com preen­
der o que compreenderá sozinha no futuro. Portanto, é im portante
estar atento a fenôm enos de dupla coerção em alguns alunos: eles
podem estar sendo submetidos a regimes disciplinares, familiar e esco­
lar, diferentes ou opostos.

A s form as fam iliares de in vestim en to pedagógico

N osso trabalho construiu-se em parte contra a idéia segundo a


qual as fam ílias populares cujos filhos tiveram "sucesso” na escola
se caracterizariam essencialm ente por práticas de superescolariza-
ção. Pareceu-nos" que estávamos, na verdade, diante de um m ode­
lo (singular) de “ sucesso" por m érito, que im plica tensão e atenção
fam iliares inteiram ente voltadas para a escola, mais do que a chave
geral de acesso ao " ê x ito ” . A existência de um "p ro je to ” ou de uma
“ in tenção fa m ilia r" in teiram en te orientados para a escola seria
som ente um caso entre outros casos sociais possíveis.
Alguns pais podem fazer da escolaridade a finalidade essencial, e
até exclusiva, da vida dos filhos, ou mesmo de sua própria: pais que
aceitam vive r n o desconforto para permitir que os filhos tenham tudo

28
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

o que necessitam para “ trabalharem " bem na escola, pais que sacri-
ficam o tem po livre para ajudar os filhos nas tarefas escolares, to­
mando as lições, lendo os mesmos livros que os filhos para pixier dis­
cutir com eles e verificar se compreenderam bem, pais que aumentam
o número de exercícios da lição de casa ou que pedem aos filhos para
lhes escreverem algumas historietas, ou ler-lhes trechos de livros... A
escolaridade pode tomar-se, em alguns casos, uma obsessão familiar,
e podemos estar diante de um h iperinvestim ento escolar ou pedagó­
gico: fazer mais que os outros para estarem seguros do “ sucesso" esco­
lar dos filhos, reduzidos ao estatuto de alunos. Os pais “ sacrificam” a
vida pelos filhos para que cheguem aonde gostariam de ter chegado
ou para que saiam da condição sociofamiliar em que vivem . Mas o sacri­
fício parental pode ultrapassar muito o investim ento pedagógico: esta
atitude geral deverá deixar traços na organização da ordem moral
doméstica e na maneira de gerir a situação econôm ica da família.
O in vestim en to pedagógico pode tom ar formas mais ou menos
rigorosas e sistemáticas, mas pode, sobretudo, operar-se segundo moda­
lidades mais ou m enos adequadas, para atingir o o b je tiv o visado.
O s efeitos sobre a escolaridade da criança podem variar segundo as
formas para in citar a criança a ter “ sucesso” ou a estudar para ter
“ sucesso” , segundo a capacidade fam iliar de ajudara criança a rea­
lizar os objetivos que lhe são fixados.

A P L U R A L ID A D E DOS ESTILO S DE “ SUCESSO”

Se levaranos em consideração a literatura sociológica sobre os casos


de “ sucesso" escolar e/ou social de indivíduos oriundos das camadas
populares, encontramos um leque de hipóteses, todas interessantes,
mas que não esclarecem muito o pesquisador9. A s vezes é o projeto
escolar, o superinvestimento escolar que ê posto em prim eiro lugar;
às vezes é o aspecto “fam ília operária m ilitante” que é superconside-
rado (algumas famílias, por seu militantísmo religioso, sindical ou
político, desenvolvem , independentem ente do capital escolar inicial,
um interesse cultural que leva em conta os livros, a palavra formal,
explicativa, explícita, dita às vezes em p ú b lic o )". Podem os ter variam

29
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tes desses exemplos ao evidenciarm os famílias autodidatas ou carac­


terizadas por uma posição profissional um pouco mais qualificada
(operário especializado, aristocracia operária...): ainda neste caso, é atra­
vés d o capital cultural adquirido ou conquistado que podemos expli­
car o “ sucesso" escolar dos filhos. Finalmente, um últim o m odelo
im plícito ou explícito: o caso de famílias cuja intervenção se opera es­
sencialmente nas condições morais, financeiras, afetivas. Por razões
devidas ao percurso científico, poderiamos rer rido a mesma tentação
de parrir da questão da cultura e da escrita: quando nos interessamos
por um problema, ficamos sempre inclinados a tornar absolutas (ou
seja, desconcextualizar) as verdades parciais que produzimos.
Mas quando nos defrontamos com casos singulares considerados
em sua com plexidade, nos damos conta da debilidade destas diver­
sas hipóteses que ignoram sua interdependência. Ser m ilitante não
garante de forma nenhuma o “sucesso" escolar da criança, não mais
que o simples controle moral rigoroso, que o superinvestimento esco­
lar ou que o capital cultural adquirido. Mas é preciso perguntar, por
exem plo, se os diferentes casos de pais dispõem de tem po e ocasiões
favoráveis para exercer, plena e sistematicamente, seu efeito de socia­
lização escolannenre positivo. O que dizer dos pais militantes que rara­
m ente estão em casa? O que dizer das mães que lêem bastante mas
que trabalham e não podem cuidar da educação escolar de seus filhos?
O que dizer de pais mais qualificados que ourros, mas que, na divisão
sexual tradicional dos papéis domésticos, não transmitem seu capi­
tal cultural aos filhos, educados por mães menos qualificadas? O que
dizer ainda de pais que dispõem de muitas qualidades (d o ponto de
vista das exigências escolares), mas que, perturbados por um d ivó r­
cio, não conseguem organizar uma ordem fam iliar estável necessária
para pôr em ação algumas práticas escolarmentc rentáveis para seus
filhos? Poderiamos multiplicar os exemplos concretos que as teses evo ­
cadas quase sempre negligenciam .
De um certo m odo, essas diferentes hipóteses procuram centrar
a interpretação das situações im prováveis de " ê x ito ” sobre um fator
ex p lica tivo dom inante, sobre um prinutm mobile, enquanto as c o n ­
figurações familiares efetivas deixam claras combinações sempre espe­
cíficas de certos traços pertinentes gerais.

30
0 PONTO DE VISTA 0 0 CONHECIMENTO

Estes diferen tes m odelos im p lícito s ou e x p lícito s de “ sucesso”


(q u e cada pesquisador, segundo sua própria tra jetória social, tem
len d ên cia a universalizar) ten dem a fazer esquecer que as c o m ­
binações en tre as dim ensões m oral, cultural, e co n ô m ica , p o líti-
i a, religiosa podem ser m últiplas... e que os graus de “ ê x it o " c o m ­
paráveis sob o ângu lo dos desem penhos, dos resultados podem
escon der às vezes estilas de “sucesso" diferentes. E se p od em exis-
i ir estilos d iferen tes de “ ê x it o ” é porque a escola prim ária p ropõe
o b je tiv a m e n te , p or seus m ú ltiplos aspectos, uma relativa h etero -
gen eid ad e de m odelos de “sucesso" escolar ( “ sucesso” através do
o fíc io de aluno ou de desem penhos brilhantes, através de q u a li­
dades literárias ou cien tífica s, em uma form a “ tím id a " ou “ arris­
cada” , “ rigorosa” ou “ c r ia tiv a ” ...).

S in g u l a r id a d e e g e n e r a l id a d e

Em lugar de "desejo de generalização", poderin


ig u a lm en te fa la r de "d es p rezo p e lo s casos
particulares"’1.

O problem a cen tral de construção d o o b je to consiste em pas­


sar de uma reflexão estatística sobre as relações, as correlações entre
"m e io social" (n a maior parte das vezes defin id o pela P C S 'Jdo pa i)
e desem penhos escolares, a uma m ieroscopia s o cio ló g ica dos pro­
cessos e das m odalidades dos fen ôm en os sociais, sem cair n o en tan ­
to em puras descrições m on ográficas” . Para se passar da lin gu a­
gem das va riá veis1'1 à descrição so cio log ica m en te construída das
con figu rações sociais é necessário uma con versã o co n scien te do
olhar so cio ló g ico . Porém , os problem as m eto d o lóg ico s e teóricos
que nos colocam os e que vam os ex p o r não teriam nenhum a per­
tin ên cia se não tivéssem os em m ente a idéia de que a sociologia
d e v e tirar p ro v e ito de todos os m étodos e de todas as maneiras de
construir cie n tific a m e n te a realidade social. A s questões postas e
expostas aqui são, portanto, questões de um s o ció lo g o que tenta,
por interesse p elo c o n ju n to dos m étodos, traduzir, com u n icar suas
respectivas especificidades. Se estivéssem os in tim a m en te con -

31
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ven cid o s da superioridade sem contestação da m onografia sobre


as pesquisas estatísticas (ou inversa m en te), en tão essas questões
não nos seriam jam ais ( i m ) postas*5.

C on textu a liza r

A n tes de tudo, é preciso vo ltar aos termos sociológicos em pre­


gados correntem ente: “ origem social” , “ m eio social", “ grupo social” .
Esses termos, que podem ser colocados com o sendo “ causas" em mode­
los gerais (estatísticos) de explicação dos fenôm enos de “ sucesso”
e de "fracasso" escolares, tom am-se inadequados a partir do m om en­
to em que variamos, co m o diz Jacques R ev el a propósito dos m icro-
historiadores italianos’0, o fo co da objetiva, ao construir volu nta­
riam ente con textos sociais mais precisos: configurações familiares
particulares*'. Q u ando mudamos o fo co da o b jetiva e pretendem os
considerar as diferenças entre famílias que norm alm ente se tomam
equivalentes nas pesquisas estatísticas (con cretam en te as en con tra­
mos nas mesmas linhas ou nas mesmas colunas dos quadros estatís­
ticos) por sua sem elhança do p o n to de vista de propriedades sociais
gerais (por exem plo, capital escolar, capital e con ôm ico) então nos
damos con ta de que não há nada m ecânico (c o m o poderíam fazer
crer os m odelos deterministas e causalistas um tanto abstratos), e,
com isso, nada simples nos processos que conduzem às facilidades
ou às dificuldades escolares. Deslocando o olhar para os casos par­
ticulares, ou, m elh or ainda, para a singularidade evid en te de qual­
quer caso a partir do m om ento em que se consideram as coisas no
detalhe, o sociólogo mostra aquilo que os m odelos teóricos funda­
dos no con h ecim en to estatístico e na linguagem das variáveis ign o­
ravam ou pressupunham: as práticas e as formas de relações sociais
que conduzem ao processo de “ fracasso” ou de "sucesso” .
D ado que lidam os com seres sociais e não com coisas, é som en ­
te por m etáfora que podem os estabelecer um e lo en tre capitais
(eco n ô m ico s , culturais...) ou recursos de qu alqu er outra n atu re­
za e os desem penhos ou situações escolares. N ã o se trata de c a p i­
tais que circulam , mas de seres sociais que, nas relações de in te r­
dependên cia e em situações singulares, fazem circu lar ou não,

U
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

podem “ tran sm itir" ou não, as suas propriedades sociais. Dessa


lorm a, nunca d ev e m o s esqu ecer que estam os d ia n te de seres
mii mis co n creto s que en tram em relações de in terdep en d ên cia
específicas, e não “ v a riá ve is” ou “ fatores" que agem na realidade
mk ial. N ã o podem os igu alm ente perder de vista que as abstrações
e s i arísricas {o s c ritério s retid os c o m o indicadores p ertin en tes de
realidades socia is) d ev em sem pre ser contextualizadas. Q u an do
(orn am os absolu to o e fe ito desse ou daqu ele fa to r (o u a c o m b i­
nação entre um e ou tro), estamos produzindo falsos problemas liga-
ilos à excessiva im precisão dos term os utilizados (o que d efin e,
em d eterm in a d a pesquisa, uma “ o rig e m s o c ia l" ou um “ m eio
social"?)- Esta pesquisa procura sublinhar a im portância de se le v a ­
rem em con sideração situações singulares, relações eterivas entre
i is seres sociais in terdep en d en tes, fo rm an d o estruturas p articu la­
res de co ex istên c ia ( “ uma fa m ília ” ), em vez de correlações entre
variáveis que são recom posições sociológicas de realidades sociais
às vezes “ fo rte s " dem ais, desestruturantes dem ais ou abstratas
demais para com preen der certas m odalidades do social, e co m isso
certos aspectos das realidades sociais em seu c o n ju n to
A o construir con textos mais restritos, somos logicam ente leva ­
dos — se não quisermos passar ao largo daqu ilo que constitui a gran­
de parte da riqueza dos materiais que a pesquisa produz — a decons-
truir as realidades que os indicadores o b jetivo s nos propõem , a
h eterogen eizaro que h avia sido, forçosam ente, h om ogeneizado em
uma outra construção do objeto.
T o m a n d o em prestado um ex em p lo de Ludw ig W irtgen stein ,
podem os nos in terrogar sobre o sen tido de expressões que aparen­
tem ente são de uma extrem a clareza e de uma extrem a precisão,
tais com o “esperar B de 16h a 16h30 ”'n:. A informação que tal enun­
ciado traz, segundo o c o n te x to reconstruído visado, pode ser um
“ detalh e fin o dem ais" ou uma “ grosseira abstração". Se o p rob le­
ma consiste em caprar uma crajetória social ou uma história de vida,
isso pode parecer a n ed ótico. Se, ao con trário, nos interessarmos,
en qu an to an tropólogos ou s o ciólogos da co gn içã o, pelas m o d a li­
dades J o com portam ento de um indivíduo particular, podem os co n ­
siderar que essa in form a çã o n ão diz nada d o que a co n teceu .

33
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

W ittg en s te in observa qLie esperar alguém é uma ativid a d e de espí­


rito um pouco am pla que n ão indica de nenhum a form a os “ m úl­
tiplos pensam entos" que vão passar pela cabeça de A .
Todos os que praticam a pesquisa através de questionários sabem
que as inform ações produzidas nesse âm bito são am bivalentes,
ambíguas e às vezes bastante vagas. O s traços, propriedades, carac­
terísticas extraídos das form as de vida social d evem sem pre ser
recontextualizados se quisermos dar um sentido so cio lóg ico às c o r­
relações estatísticas.

Exem plos caricaturais

Esse ripo de biograli;i, que poderiamos dizer


modal, uma vez que «»> biografias individuais
apenas servem para ilustrar as fiirmãs típicas de
com portam ento ou de esrai uto, apresenta mui­
tas analogias com a prosopografia: de falo, nesse
caso, a biografia não é a de lima pessoa singu­
lar, mas sim a de um indivíduo que concenrra
todas as características de um grupo41.

Q u ando estamos n o âm bito de m odelos estatísticos que fazem


uma correlação entre propriedades sociais (sem dúvida um tanto
quanto grosseiras e abstratas), fora de qualquer referência a situa­
ções particulares, somos às vezes conduzidos a fazer uma represen­
tação um tanto falsa dos seres sociais concretos que, na realidade
social, são os “portadores” , os “ detentores” dessas propriedades.
Seremos dessa form a levados a encontrar casos ou exem plos cari­
caturais, ideais, sem dúvida satisfatórios para ilustrar o m odelo teó ­
rico m acrossociológico, porém insatisfatórios para com preender a
realidade social. Para exemplificar o grupo operário, pegarem os um
caso caricatural que acumula os critérios estatisticam ente mais rela­
cionados ao grupo’ . O que fazer, então, com aqueles que n ão reú­
nem todas as propriedades que caracterizam o grupo em seu c o n ­
junto? O que fazer co m os operários não-qualificados que lêem mais
de 50 livros por ano? O que fazer co m aqueles que, em certos aspec­
tos, em certos dom ínios, parecem mais próxim os ao perfil dos buro­
cratas ou das profissões intermediárias? Passamos sempre do “ macro”

34
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

ui "m icro", dos grupos aos indivíduos, da linguagem das variáveis


.1 descrição e à interpretação dos contextos, sem mudar nossas for­
mas d<- ver as realidades sociais.
I V fato, para que tenham os um sistema de disposições in d iv i­
duais coerente, são necessárias condições sociais bastante particu-
Lires que nem sempre estão reunidas. Durkheim, que utilizava a noção
de hahiuis n o sentido de uma relação com o m undo m uito coeren-
le e durável, evoca va este co n c eito a propósito de duas situações
I ust i meas singulares: as “ sociedades tradicionais” e o “regime de inter-
nato". N o prim eiro caso, Durkheim escreve que “ O m enor desen-
vi ilvim ento das individualidades, a m enor extensão do grupo, a homo­
geneidade das circunstâncias exteriores, tudo contribui para reduzir as
diferenças e as variações ao m ínim o. O grupo realiza, de uma m anei­
ra regular, uma uniformidade intelectual e moral da qual encontramos
somente raros exemplos nas sociedades mais avançadas. Tudo é com um
a iodos” " . N o segundo caso, Durkheim em prega o term o "habitus"
a propósito da educação cristã co m o educação que engloba a crian ­
ça integralm ente, cuja influência é única e constante. O habitus, em
Durkheim, corresponde perfeitam en te à situação de internato. O
internato é o pensionato mais a escola, onde o aluno fica enclau­
surado; é uma verdadeira instituição total no sentido de G offm an ,
t lonstitui o “ m eio natural de realizar integralm ente a n oçã o cristã
de edu cação"": “ para poder agir co m tanta força nas profundezas
da alma, é preciso evid en tem en te que as diferentes influências às
quais está submetida a criança não se dispersem em sentidos divergem
tes, mas estejam, ao contrário, energicam ente concentradas em uma
mesma finalidade. S ó podem os chegar a este resultado se as crianças
viverem em um mesmo am biente moral, sempre presente, que as
e n v o lv a por todos os lados, de cuja ação, digamos, não possam
escapar"". A educação é organizada, então, "de maneira a poder pro­
duzir o efeito profundo e durável que esperávamos dela""'.
A coerência das disposições sociais que cada ser social pode ter
interiorizado depende portanto da coerência dos princípios de socia­
lização aos quais fo i subm etido. A partir d o m om en to em que um
ser social foi colocad o, sim ultânea ou sucessivamente, n o seio de
uma pluralidade de mundos sociais n ão-hom ogêneos, às vezes cnn-

35
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tradirórios, ou no interior de universos sociais relativam ente coe-


rentes que apresentam, porém , sob certos aspectos, algumas con-
tradições, podem os então nos defrontar co m uma relação com o
mundo incoerente, não-unificada, que origin a variações de práti-
cas segundo a situação social na qual ele é levado a “ funcionar” . Existe
sempre, em cada ser social, em qualquer grau, com petências, m anei­
ras de ser, saber e habilidades, ou esboços de disposições, d elin ea ­
das porém não atualizadas em algum m om en to da ação, ou, de
maneira mais ampla, em algum m om ento da vida, que podem ser
postas em ação em outros m om entos, em outras circunstâncias4' .

A questão da equ ivalên cia

N a linguagem das variáveis, dois avós paternos com grande capi­


tal escolar são considerados equ ivalen tes na análise. D ois avós
paternos, que têm, por exem plo, n ível universitário m ín im o serão
colocados na mesma categoria; na lógica da descrição contextuali-
zada, empregada com mais freqüência por etn ólogos ou historiado­
res, um avô com im portante capital escolar, que vê regularmente
seus netos e lhes “ transm ite", através de situações singulares, as fo r­
mas de ver, de apreciar, de avaliar o mundo, não é equ ivalen te a
um avô com im portante capital escolar m orto ou que não vê nunca
seus netos porque não mora na mesma região ou país. Essa obser­
vação pretende destacar o fato de que as estatísticas são produções
de dados a m aior parte das vezes m uito abstratas, ou seja, abstraí­
das de seus contextos.
Muitas vezes a ação efe tiv a de um a vô sobre as disposições do
neto, em um caso, encontrará seu equ ivalen te na ação de um irmão
mais velh o em um segundo caso, de um professor em um terceiro,
de uma série de pessoas em um quarto caso... A s práticas podem ,
em duas situações, ser idênticas ou parecidas no ângulo de suas moda­
lidades, mas distribuídas entre indivíduos sociais particulares de
maneiras m uito diferentes. D evem os, portanto, privilegiar as prá­
ticas e suas modalidades em relação à equ ivalên cia de indicadores
abstratos. Em vez de adotar a linguagem das variáveis p rivilegia n ­
do as equivalências formais entre traços abstraídos de seus contextos

36
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

tr, v onseqüentem ence, as analogias superficiais) — quando sabe-


mns muito bem que, em certos contextos, certas inform ações têm
menos valor, menos pertinência (exem p lo: avós que só estão pre-
seules na forma de esquemas de percepção que “ transm itiram ” aos
pais da criança) — , é preferível p rivilegia r as equivalências efe ti­
vas entre as práticas contextualizadas (e, conseqüentem ente, as
analogias profundas e escondidas, que só a análise sociológica deta­
lhada pode fazer em ergir).
N orm alm en te, quando tratamos uma série lim itada de entrevis-
ias, rendemos, espontaneam ente, a continuar a utilizar um raciocí­
nio estatístico. Por exem plo, em cerca de 30 entrevistas, podemos
crua>ntrar 3 casos patentes do papel importante desempenhado pelo
avô m aterno. Ora, uma ausência do papel desem penhado pelo avô
materno em todos os outros casos va i nos im pedir de com preender
a lógica dos 3 primeiros casos. A linguagem das variáveis nos leva­
rá a abandonar coisas de m aior importância, e impedirá de levarmos
em consideração 3 situações particulares que colocam em cena os
avôs maternos, porque elas não se repetem form alm ente. E, para o
conjunto dos critérios utilizados, acontecerá a mesma coisa. Portanto,
é útil alternar o mais frequentem ente possível abordagens estatísti­
cas, mais abstratas, e abordagens que fixam e interligam as variáveis,
os fatores em tecidos sociais específicos, em configurações sociais sin-
guiares'1''. Visamos, portanto, à alquim ia das relações concretas entre
traços pertinentes contextualizados.

A estruturação de objetos singulares

Q u em diz descrição de co n tex to s não diz ausência de qualquer


problem ática teórica, de qualquer construção do ob jeto. D ian te
Jo que Jean-Claude Passeron cham a de “ radicalism o das form as”
— que "só pretende co n h ecer uma realidade, a dos traços p erti­
nentes e dos sistemas de relações que os constituem : realism o das
posições e das oposições, leis de transform ação ou de reprodução,
para quem os futuros individuais, deixan d o de ser c o n vites à des­
crição daqu ilo que, em uma singularidade, se presta à in te lecçã o
de generalidades, não podem mais ser vistos c o m o ‘portadores da

37
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

estrutura', ocupantes de um ‘sistema’ ou de um ‘cam po’, enfim , agre­


gações de propriedades sincrônicas”4" — , o pesquisador n ão é o b ri­
gado a cair na arm adilha da h erm enêutica sem m étodo. E, louco
por escrever histórias, acaba por esquecer qu alqu er ex igên cia de
“ estruturação dos o b jetos de pesquisa” e a questão dos traços per­
tin en tes da descrição.
A s 26 configurações sociais que reconstruímos n ão são puras ideo-
grafias fechadas ern si mesmas e sem con ta to entre si. Esses perfis
de configurações com unicam -se entre si pela problem ática com um
que as informa, mas tam bém pelo trabalho de escrita/reescrita que
possibilita voltar à construção de uma configuração após a escrita
de outra, para cpie elem entos om itidos ou negligenciados durante
a primeira escrita despontem melhor. C o lo c a n d o em ação esque­
mas in terprétatives idênticos, podem os e v ita r as armadilhas da
m onografia m o n a d oíó gica A Podem os assim escapar à aporia de
inúmeros trabalhos sobre o “ fracasso" e o “ sucesso” escolares que, ten ­
tando com preender os processos, acabaram provocan do um esface­
lam ento dos objetos.
Cruzamos as informações sobre os crianças (fornecidas pelos pro­
fessores, pelas famílias, pelos relatórios escolares, pelas fichas esco­
lares que resumem os resultados de avaliação, pelas próprias en tre­
vistas), sobre as famílias (obtidas pelas entrevistas c o m as fam ílias,
com os professores, com as crian ças) e sobre a vida da classe (e n tre ­
vistas com os professores, com as crian ças). Cuidam os de n ão
separar as informações (trarando-as, por exem plo, com o corpus sepa­
rados: as entrevistas das crianças, as entrevistas das fam ílias...). O li

seja, tratamos de não p rivilegia r as variáveis em relação às c o n fi­


gurações sociais. Podem os considerar que o interesse de tal estudo
é o de realizar perfis de configu rações sociais com plexas que m os­
trem crianças n o p o n to de cruzam ento de configu rações fa m ilia ­
res e d o universo escolar, co m a fin alidade de com preen der co m o
resultados e com portam entos escolares singulares só se explicam
se levarm os em consideração uma situação de co n ju n to co m o
interação de redes de in terdep en d ên cia (fa m ilia res e escolares),
tramadas por formas de relações sociais mais ou m enos h arm o n io ­
sas ou contraditórias.

ifl
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

N ; h >devem os, portanto, trabalhar co m o se estivéssemos diante


i Ir Jadi is estatísticos sobre uma população mais considerável. Os per-
li dr configurações sociais são primordiais, e é preciso não perder
,i unidade de cada configuração. Isso não significa que as tais con-
lil’iir.içôe.s não d evam ser comparadas, aproximadas por seu paren-
i i -m o lógico, sua afinidade global ou parcial. N ã o estamos, porém ,
o.i lógica de com paração segundo variáveis, lógica que decom põe/
i tu « impõe os contextos sociais a partir de uma ficha de critérios obje-
nvo.s. A com paração é feita entre perfis de configurações.
N a linguagem musical, podem os dizer que assistimos a uma série
de variações sobre temas mais ou menos comuns: músicas fam ilia­
l e s singulares, sínteses inéditas, produto dessa ou daquela co m b i­
nação especial de traços pertinentes. A te n to s ã estruturação de
i o n ju n to das configurações, não esquecemos, no encanto, as sin­
gularidades, as particularidades. C oloca n d o-n os no n ível das redes
de interdependência entre seres sociais concretos, entre estruturas
de coexistência e formas que assumem as relações entre seres sociais
singulares, percebem os de uma maneira mais precisa aquilo que as
grandes pesquisas estatísticas traçam em linhas gerais '1. A lé m d o mais,
o m icroscópio so cio ló g ico possibilita descobrir a relativa h eteroge-
nvidade daquilo que imaginamos ser h om ogêneo ( “ um m eio social",
“ uma fa m ília ” ), a instabilidade relativa desta rede de interdepen­
dência e a existência de elem en tos contraditórios, principalm ente
na forma de princípios de socialização concorrentes.
Fin alm en te, devem os precisar que o c o n c e ito de configu ração
social, que esraremos sempre retom an do, é um c o n c e ito aberto,
mais v o lta d o para designar um processo len tam en te construído no
decorrer das pesquisas em píricas du que para estabelecer uma d e fi­
n ição estabilizada. A nosso ver, ele está fu n dam en ralm ente liga­
d o a uma a n trop o lo gia da in terdep en d ên cia hum ana^, que c o n ­
sidera os in divídu os, antes de tudo, co m o seres sociais que v iv e m
em relações de in terdep en d ên cia, ocu pando lugares em redes de
relações de in terdep en d ên cia e, co m isso, possuindo capitais ou
recursos ligados a esses lugares, bem c o m o à sua socialização a n te­
rior no seio de outras configu rações sociais'1. D efin irem os, portan ­
to, provisoriam ente, uma configuração social com o o co n ju n to dos

39
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

elos que constituem uma “ parte” (m ais ou menos gran de) da rea-
lidade social concebida com o uma rede de relações de in terdepen ­
dên cia humana. A separação dessa parte de uma rede contín u a
depende do p o n to de vista d o co n h ecim en to adotado’ 4. C o m o um
pesquisador não pode nunca reconstruir tudo, e le às veies som en ­
te evo ca de form a geral o que será descrito em detalhes por outros” .
Dessa forma podemos dizer que as configurações de relações de inter­
dependência recorrentes que construímos com a ajuda de nossos
perfis não passam de “ trechos escolhidos” de configurações mais
amplas. Por exem p lo, os próprios pais são ligados por m ú ltiplos
elos invisíveis a seus próprios pais, seus irmãos e irmãs, seus c o le ­
gas de trabalho, seus amigos, vizinhos... Esses elos são presentes e
tam bém passados: esses adultos constituíram -se através das rela­
ções de in terdependência que só com preendem os através de seus
produtos cristalizados, na form a de disposições específicas de se
com portar, .sentir, agir, pensar. Da mesma form a, as crianças estão
relacionadas com outros seres sociais que nem sempre pertencem
à constelação fa m ilia r’ 0.
Podem os falar de configuração social a respeito de uma intera­
ção face a tace, de uma sala de aula, de uma rede de vizinhança, de
uma família, de um time esportivo, de um vilarejo, uma cidade, etc.1’ .
Porém , ao contrário de uma interação face a face, uma configura­
ção social não im plica necessariamente que os seres sociais estejam
presentes no mesmo espaço e no mesmo m om ento’ ’ . A lé m disso, é
possível imaginar a construção de configurações que não têm o b ri­
gatoriamente um nome na linguagem dos seres sociais: o recorte socio­
ló gico não segue forçosamente os recortes sociais endógenos (a d m i­
nistrativos, jurídicos, econôm icos, políticos, religiosos, morais...).

P o r um procedim en to experim ental

N osso propósito n ão é nem fazer uma crítica das estatísticas,


nem uma defesa das descrições etnográficas/ideográficas, mas sim
uma ten tativa de determ inação, a partir de um problem a particu­
lar, de campos de p ertin ên cia das duas abordagens. Se nos mos­
tramos mais distantes em relação às abordagens estatísticas, é sim-

40
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

plesm ente para e x p licita r o n d e a construção particular d o o b je to


*Hii- estudamos aqui afasta-se dela, e, ao m esm o tem po, para fazer
i um que a esp ecificid ad e transpareça m elhor.
Em vez de proceder, co m o de hábito, a uma defesa d o caráter
universalm ente fecun do de nossa construção d o o b jeto, preferimos
defender o caráter experim ental de nosso procedim ento, que con-
i mua conscien te dos lim ites de validade, do cam po de pertinência
do m odelo utilizado. Sucintam ente falando, acreditam os que seja
necessário afirmar o caráter universal d o poder eurístico desse ou
daquele m étodo, dessa ou daquela maneira de construir o o b jeto ou
desse ou daquele te x to so cio lógico para garantir-lhes legitim idade
no debate cien tífico . Estamos mesmo con ven cidos de que é ilusó-
i ii i acreditar que os conceitos ou os métodos sociológicos são ou pode­
ríam tornar-se ferramentas universais.
Podem os até duvidar da pretensão à universalidade de alguns
mi idelos teóricos ou de alguns dispositivos m etod ológicos (sua pre-
l ensão de com preender todos os fen ôm en os sociais, todas as dim en ­
sões d o social, todas as formas de vida social). Podem os procurar
com preender seus lim ites de validade e, ao mesmo tem po, desco­
brir seu poder e x p lica tivo específico. A partir de uma tal atitude
cien tífica, n ão d evem os mais nos espantar ao constatar que m ode­
los teóricos, fecundos para ex p licita r certos fen ôm en os sociais,
enfraquecem-se, de repente, quando se afastam de seu campo de per-
i inência. Tentam então, a maior parte das vezes desesperadamente,
trazer para si coisas que lhes escapam. A lé m disso, a lição episte-
m ológica que decorre de tudo issow consiste em pensar que o tra­
balho crítico pode proceder desta maneira: “ Esse co n c eito (ou esse
m é to d o ), que vocês acreditam ser geral, universal, só se aplica de
maneira pertinen te a algumas categorias de fatos, a alguns tipos de
práticas...” . E com preenderem os aqui que os conceitos, o m étodo e
a escrita sociológica usados neste trabalho não escapam a esta regra.
Consequentem ente, longe de nós a idéia de que a compreensão
de configurações sociais singulares que propom os permiriria aproxi­
mar-nos da com plexidade do real. Por querer dizer tudo e considerar
tudo co m o significante, os sociólogos às vezes perdem qualquer
noção de estruturação de seus objetos de pesquisa. Em relação à visão

41
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

estatística que permite aceder a uma ordem específica de complexi­


dade, nosso texto insiste na ordem da complexidade à qual a recons­
trução de configLirações sociais singulares permite ter acesso. Mas
trata-se de um nível de análise de um ponto de vista particular sobre
a realidade.
Poderiamos, finalm ente, nos perguntar se não estaríamos sucum­
bindo ao m ito do mapa tão grande quanto o território. Se acredita­
mos escapar a essa crítica, é porque nossa única am bição é mostrar
que é possível, de maneira totalm ente experim en tal, e com um
número pequeno de casos, pensar sociologicam ente casos particu­
lares, em sua ordem de com plexidade específica. N ã o visamos, por­
tanto, ao território, e não refaremos o mesmo procedim ento em
relação a 300, 3 000 ou 30 000 casos: neste caso, seria bem m elhor
trabalhar com a ajuda de ferramentas estatísticas.

N o ta s

• N . Elias. Lu société des individus* 1991a, p. 104-

- B. Lahire, “ Formes sociales er structures o b j e c t i v e s , . 1992a, e “ Sociologie des prati­


ques d'écriture...", 1990b.

3 R Roustang, Influence, 1990, p. 107-

« N . ÉUas, M o ^ r í,.., 1991b, p. 14.

** lb id .,p . 15.

11 A objetivarão escrita dos saberes está ligada, na história, a uma série de transformações
conjuntas em matéria de m odo de conhecim ento (saber ob jetiva d o versus saber incor­
porado; relação reflexiva com a linguagem versus relação prática com a linguagem ); em
matéria de m odo de aprendizagem (form a escolar versus mime,sis) e de forma de regula­
ção das atividades (regras e normas explícitas versus regularidade prática dos W xttts)-
A escola, lugar específico separado das outras práticas sociais, está ligada á existência
de saberes objetivados; a “ pedagogizaçao" das relações sociais de aprendizagem é indis-
soeiáve ld a constituição de saberes escritos formalizados, saberes objetivados, delim ita­
dos, codificados, que dizem respeito tanto ao que é ensinado quanto a maneira de ensi­
nar; tanto às práticas dos alunos quanto à dos professores. A forma escolar de aprendi­
zagem opõe-se, portanto, ao mesmo tempo, à mim esis que opera através e na prática,
sem nenhum recurso à escrita, e à aprendizagem do ler-escrever não-sistematizado, não-
formalizado, não-durável. C f. R. Lahire, Culture écrite et inégalités scolaires. .., 1991a.

42
O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO

< i Wells, 'Treschuul literacy-related activities...", 1985.

\ M l liari ier, ( C.lesse e ). Héhrard, L i r e ' é ' c f t r e . 1991, p. 46-7.

I Bumdicii cr al., Travai! ei travailleurs en Algérie, 1963, p. 3 16: “Em nossas sociedades
I ] i racionalização se estende pouco a pouco até a econom ia doméstica.,,’1'.

I K I .« iltlei, L'école est-elfc rentable/, 1987, p. 212.

II l í B. Lahire, “ La division sexuelle du travail d’écriture...” , 199 VI.

1 i l ,\> indicações de C'. G rign on e J.-C. Passeron cm Le .Savant et le Populaire..., 1989.

I v M iisn dom éstico da agenda ou du calendário está ligado ao aum ento do espaço de tempo
a ser controlado e à com plexidade das atividades que devem ser geridas nas sociedades
i unie a hu roera lização e a organização das atividades sociais supõem a gestão de longos
períodos de tem po, durante os quais são planejados encontros, reuniões, eventos...

II N. Elias, L a société des individus, p. 181.

1 B. Lahire, La raison de.s plus faibles..., 1993h.

M' 11. B. Lahire, “ Pratiques d ’écriture et sens pratique", I993e.

1 Podemos acrescentar as práticas de escrita que participam de Uma reflexão sobre si


mesmo, de um dom ín io de si e/ou de lima disposição estética que podem revelar-se ren-
níveis no plano escolar: diários íntimos, poemas, autobiografias, comentários protolite-
rários acompanhando as Litografias...

1 R Hnggart, 33 N W p o rt Street, 1991, p. 81.

|,J P. Bourdieu et al., Travail et travailleurs..., p. 338.

Se, com o pensamos, pode-se constituir lima relação com o mundo através das práticas
Je linguagem quase sempre específicas, então as diferenças no grau de racionalização
dos comportam entos domésticos supõem diferenças nas práticas de linguagem, e, sobre­
tudo, a introdução de uma série de escritas domésticas. A respeito de um problema idên­
tico, d . B. Lahire, Culture écrite et inégalités scolaires..., “ Epilogue".

1 M. de Certeau, L' invent ion du quotidien, 1980.

“ Essas famílias vivem fechadas em relação às outras famílias do bairro", escreve Jacques
Tehtanière, Les enfants de milieux populaires..., 1982, p. 146.

- i Esse, aliás, é um pressuposto da pesquisa. Pretendemos comparar algumas configurações


familiares; porém, as crianças podem estar temporariamente tora da estrutura familiar
clássica e internas em centros onde quem toma conta delas são os educadores. N ã o é
por acaso que essas crianças estão sempre em situação de dificuldade escolar.

•’4 C . Baudelot e R. Estahlct, A lie* les filles! ,1992. p. 150.

Xenofcinte, Economique, 1949, p. 55.

i ( ' Ibid.* p. 70.

43
SUCESSO E5COLAR NOS MEIOS POPULARES

H C f. J. Lautrey, C lasse sociciíc?. milieu familial t intelligence, 1980, p. 150; M. L. Kohn, "Social
class and the exercise nf parental authority", 1959, c “ Social class and parental-child
relationships...", 1963.

A leitura das obras de Richard 1loggart e de A n n ie Ernaux nos encaminhou nessa direção.

-><J C f. sobretudo S. Laacher, "L’école et ses miracles...", 1990; J. P. Laure ns, Í .sur 500...,
1992; Z. Zéroulou, " L i réussite scolaire des enfants d'immigrés...” , 1988; J. Testanière,
Les enfants Je milieux populaires...; J. P. Terra d, Des uns rm niers..., 1990.

R. Establet, U école esi-elle rentable?, p. 229-30; “O s filhos de militantes gozam, cm sua


família, de um ambiente cultural propício a realizarem bons estudos (hâhito da cultura
escrita, da leitura de livros, de discussões abstratas): o sucesso escolar é, portanto, mais
provável, e os problemas que levanta são percebidos de forma mais nítida” .

íl L- W ittgenstein, Le Cahier hleu et le Cahier brun, 1988, p. 70.

*' Profissão e categoria socioprofissional.

Y. Lem el, “ Le sik iolngue des pratiques du quotidien...” , 19tS4, p. I I .

J.-C. Pa&scron, L l' rdisonnemenr sociologique . . . 1991,

^ Enconrmremos em Yves ürufnieyer um destaque em relação âs escalas de iobservação e


aos instrumentos de análise pertinentes, diferentes para cada estudo singular, O autor
pretende cruzar sobretudo "as informações estatísticas, que descrevem de forma ampla
as propriedades dos indivíduos, com o estudo de um certo número de escrufwtus de inter'
dependência, de redes de mtemniheamento, ou ainda de situações de interação das mais e fê ­
meras às mais ntu.ihzadas" (identités mh:uiles et espaces de m o b i l i t é . 1990, p. 49).

j. Revel, "L’histoire au ras du sol”, 1989.

R. Lepetir, “ A rchitecture, géographie, histoire...". 1993, p. I 37-8: "A s conclusões que


resultam tle uma análise feita em uma escala particular não podem opor-se às conclu­
sões obtidas em outra escala. Elas só são cumulativas se levarem em consideração níveis
diferentes nos quais foram estabelecidas” .

Maurizio Gribaudi e A la in Blum ( “ Des categories aux liens individuels...” , 1990) co lo ­


cam em questão a junção dos dados em categorias síntêt icas homogêneas e equilibradas
e a "normalização” dos casos difíceis que permitem em geral o trabalho estatístico.
autores voltam, portanto, aos processos comuns de construção estatística de realidade* macro-
estruturais (grupos, massas, estruturas...) fundados sobre essas categorizações e o cálculo
de médias por categorias. Peguntam ("L es déclarations professumelles...", 1993): "Porqu e
e como, a partir de um objeto que apresenta formas e dinâmicas complexas, chegamos a
representações em termos de estruturas compactas e variações marginais?"

C f. B. Lahire, "Formes sociales et structures objectives...". Sabemos que os estatísticos


têm tendência a "m edir o que há de mais mensurável" (F. 1léran, "L’assise statistique de
la sociologie", 1984) na vida social, e não é por acaso que os critérios de nível de renda
e de diplom a são frequentemente utilizados nos estudos sociológicos. M a sé preciso tam­
bém às vezes ir procurar outros critérios menos objet ivados (e dificilm en te ob jetiváveis)
para compreender certos fenôm enos sociais.

44
O PONTO OE VISTA DO CONHECIMENTO

I I W itigt'iistein, Le Cahier bleu et le Cahier brwn, p. 72-3.

II < i Levi, "Les usages de In biographie", 1989. p. I 330.

1 < T. as observações m etodológicas de Roger Bénoliel e Roger Establei ("Jeunesse et


habitus...", 1991,p. 19-20) quanto às formas de interpretar uma série de pesquisas sobre
"lovens” (alunos de escolas profissionalizantes e d o colegial): "Seria imprudente con-
i luir, acreditamos, sobre a existência de dois habitus de classe, ainda que incipientes,
levando-se em consideração estas tendências estatísticas. N o colegial, bem co m o em
nossas escolas prof issionalizantes, são muito poucos os indivíduos que reúnem todos os
i ruços de um tipo ideal1'. Ou mesma forma, Baudelot e Estublet (A llez les filles!, p. I 38)
i ^ revenu em relação às diferenças culturais entre meninas e meninos: “ Para cada um
destes traços culturais, as distancias são de ordem estatística, ou seja, são distribuídas
to m mais frequência entre os m eninos que entre as meninas, ou reciprocamente. N o
entanto, esta distribuição desigual não significa que cada indivíduo, e mesmo a m aio­
ria deles, retina, na forma de uma síntese coerente, a totalidade desses traços".

*1 I I )urklieim. Les formes élémentaires de la vie religieuse, 1985, p. 7- Sublinhado pelo autor.

' * b Durkheim, L‘ évolution / ^ d a g n g ü ju e .1990, p. 1 59.

1' Ibtd., p. 38. G rifos do autor.

b' Ihid., p. 39. G rifos do autor.

1' Pierre Bourdieu insiste, corn excessiva exclusividade, sem dúvida, no aspecto "sistemáti­
co " e ‘ unificador" do habitus. Escreve, por exem plo: “O gosto, propensão e aptidão para a
apropriação (material e/ou sim bólica), por uma determinada classe, de objetos ou de pra­
ticas cl.cssificad.Ls e classificuntes, é a fórmula geradora que está no principio do estilo de
vida, conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específ ica de
cada um dos subespaços simbólicos, mobiliário, roupas, linguagem ou atitude corporal, íi

mc.s?iw ÍTiteriçõo expressiva. ( '.ada dimensão do estilo de vida ’ simboliza com' os outros, com o
dizia Leibniz, e os simboliza: a visão d e mundo de um velho artesão marceneiro, sua
maneira de gerir seu orçamento, seu tem po ou seu corpo, seu uso da linguagem e suas esco-
lhas de vestuário, estão totalmente presentes em sua ética de trabalho escrupuloso e impe­
cável, ética do cuidado, da minúcia, do acabado c seu sentido estético do trabalho, que
faz com que meça a beleza de seus produtos pelo cuidado e paciência que exigem " ( La Jís-
fíueiioii, 1979a, p. 193-4. t m fosd o autor). N ã o estamos colocando em questão aqui a pos­
sibilidade de existência de situações que são propostas como exem plo por Bourdieu (vamos
encontrá-las durante nossa pesquisa), mas gostaríamos dc ressaltar o fato de que nem todas
, ls situações se encaixam neste modelo.

^ J.-C. Passeron, Le raisonnement sociologique..., p. 87

Ilud., P. 188.

W llm L .p .8 0 .

Um a de nossas referências teóricas encontra-se em N . Elias, Mozorr. .

E à noção de inrcrsuhjetiviJade tal com o M erleau-Ponty a mobiliza em alguns de seus


textos.

45
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Porém nàn podemos nunca dissociar os tapirais ou recursos das relações Je interdepen­
dência que lhes dão vida, sentido e valor, os m ohiliiam ou os deixam atentos, etc.

O livie r Schwartz (L e monde fwtiv des m û r i e r s . 1990) mostra cornu, para compreender
uma parte da econom ia dns trocas afetivas nus casais operários, devem antes de tudo
introdtiiir .1 mãe da esposa (p. 225), ou ainda com o, para compreender os comporta-
tnenlos masculinos dentro de casa, é preciso reconstruir suas inscrições em outros luga­
res exteriores à casa (p. 284) Isto significa que a compreensão de certos aspectos das
configurações sociais (uni casal, uma fam ília...) passa pela reconstrução de configura­
ções de relações de interdependência mais amplas.

^ Dessa forma, cm nossos perfis, quando não podemos descrever, por exem pla, detalhes
da> relações entre os país da criança e seus avos, retomamos a linguagem das variáveis
que consiste em indicar a profissão dos avós, hem com o seus níveis de instrução, para
dar simplesmente uma imagem sumária dos universos sociais de origem,

^ Sobretudo seus colegas de clas.se com quem, veremos, podein estar em relação de co m ­
petição.

^ O conceito de configuração “aplica-se tanto aos grupos relativam enle restriros quanto
às sociedades formadas por milhares ou milhões de seres interdependentes” , escreve N o r ­
bert Elias, QuVst-ce que Lt síxioíogieO, 1981, p. 158.

^ E assim que Erving G offm an concebe seus objetos, O que interessa ao autor são os "encon­
tros sociais" ou “ reuniões” que necessitam da “ presença conjunta” e " imediata” de pes­
soas que "se encontram mutuamente ao alcance do olhar e do ou vid o", em limites físi­
cos relativamente restritos.

w B. Lalure, "Línguistique/écriture/pédagogie...”, 1991.

46
Fracasso" e " sucesso "

A ]>t>1*111.A Ç Ã O PE S Q U IS A D A

A c< instituição da população entrevistada (dos 139 alunos da 2a


Mlrie d o I e grau aos 27 alunos selecionados) fo i um lon go procès-
so, determ inante para a continuidade da pesquisa, que im plicou um
i on junto de escolhas teoricamente construídas concernentes aos cri-
i ei ios de seleção das crianças e suas famílias. Nessa fase, partimos
de quatro grupos escolares situados em zonas de educação prioritá­
rias na periferia de Lyon'.
N ã o era de espantar que desta população inicial, que mora em
bairros populares, 77% dos pais fossem operários ou empregados
nao-qualificados (a tivos ou aposentados). Só uma m inoria dos che-
íes de fam ília era constituída de empregados qualificados, profissões
intermediárias, artesãos, com erciantes, pequenos chefes de em pre­
sas e executivos. A m aioria das mulheres (6 6 % ) era dona-de-casa.
A< >analisarmos a situação familiar, constatamos que em 68% dos casos
os pais eram casados ou vivia m m aritalm ente, co m um núm ero
m édio de 3,3 filhos por fam ília; notamos ainda o efeito da grande
predom inância de fam ílias populares em nossa população (4 0 %
delas têm 4 ou mais filh os). Enfim, outra característica era o fato de
grande núm ero de chefes de fam ília (na m aioria o pa i) serem estran­
geiros. A s famílias magrebinas eram majoritárias (4 4 % ), seguidas das
francesas (2 9 % ) e das fam ílias cambojanas e vietnam itas ( 11% ).
O s resultados da avaliação nacional da 2a série d o I e grau, da
qual estes alunos participaram em setem bro de 1991, mostravam
que as notas médias em francês e m atem ática situavam-se em to m o
de 5,5 . Isso indica claram ente que nossa população, essencial­
m ente por sua com posição social, situa-se de form a global abaixo
da média n acional. O s bairros populares urbanos agrupam famílias
cujas características sociais (econôm icas, culturais, familiares...) não
predispõem a grandes desem penhos escolares.

47
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Para chegar às 26 famílias da pesquisa (e às 27 crianças, sendo


2 dentre elas irmãs), seguimos diferences etapas. A primeira c o n ­
sistiu em selecionar, entre a população inicial, o subgrupo das fam í­
lias que se caracterizavam por ter um chefe com capital escolar fraco
e por uma situação econ ôm ica modesta (exem p lo: pai operário qua­
lificado ou não-qualificado, em pregado d o setor de serviços, em pre­
gado n ão-qualificado, desempregado ou aposentado destas ca tego­
rias). Esses critérios culturais e econ ôm icos basearam-se na leitura
das profissões declaradas nas fichas escolares dos alunos ou nos
questionários feitos antes da pesquisa.
Em uma segunda etapa constituím os, n o in terior deste sub­
grupo, duas grandes categorias de alunos: aqueles que tinham “ ido”
relativam ente mal na avaliação nacional da 2a série (m édia geral
em francês e m atem ática estritam ente inferior a 4,5) e aqueles que
tiveram “ ê x ito ” na avaliação (m éd ia geral em francês e m atem áti­
ca estritam ente superior a 6).
C om parando as avaliações escolares comuns, constatamos uma
grande variação dos julgamentos das notas bem com o dos valores
atribuídos à mesma nota por um professor-corretor ou por um otitro'.
Basta imaginar classes com níveis médios relativam ente altos para
com preender que as notas dependem particularm ente de um co n ­
texto. Inúmeros alunos passam pela experiência de serem os prim ei­
ros de uma classe “de n ível m édio" e de se encontrarem entre os “ m é­
dios” de uma classe que tem um m elhor desem penho escolar com o
um todo. N a escola sempre existem os primeiros e os últimos, e, segun­
do o n ível m édio de cada classe, os primeiros e os últimos conside­
rados não são equivalentes n o plano das com petências escolares.
O aspecto quantitativo da avaliação não significa que duas notas
idênticas, produzidas em c o n textos diferentes (d e uma classe para
outra, de uma escola para outra), têm exatam en te o mesmo sen ­
tido. Seria o caso se rodas as provas fossem, in depen den tem en te
da classe considerada, estritam ente codificadas do p o n to de vista
dos ex ercícios propostos, das cond ições de aplicação desses e x e r­
cícios e dos julgam entos escolares em itidos em relação ao desem ­
pen h o dos ahinos. Mas não é esse o caso. Os professores, conscien ­
te ou in con scien tem en te, adaptam-se de form a h om eostática ao

48
"FRACA550" £ "5UCESSO"

t linui e ao n ív e l geral do m icrocosm o particular que uma classe


i on.st irui a cada ano. N ã o são tão severos ao darem notas a uma
i lasse com posta em sua m aioria de alunos co m pequenas ou gran ­
des dificuldades escolares e a uma classe com posta p or alunos
m elhores. A a va lia çã o dos professores é re la tiva à configu ração
do grupo-classe, e cada n ota só tem sen tid o se relacion ada com
0 conjunto das outras notas da mesma classe. Segundo as classes,
.is notas obtidas são reavaliadas ou não, compensadas por outras
notas ou não, produzidas em condições de auxílio durante a prova
ou não, etc. Todas estas maneiras de manifestar uma adaptação
a Lima classe particular que podem, se nos colocam os do ponto
ile vista de uma estrita igualdade formal, ser consideradas com o
1 rapaças institucionais ( “ Eu os faço recom eçar várias vezes, se v e jo
que n ão está bom , m a n ten h o aquela n ota, mas dou -lhes outra.
Para que n ão digam que estou trapaceando, fa ço a m édia das
duas notas, e o resultado va i parecer bem m elhor. V ai dar 5,5, 6,
por ex em p lo, em lugar de 3. E por isso tam bém que meus alunos
têm notas boas” ) n ão passam de uma antecipação, mais ou m enos
co n scien te, por parte dos professores, d o e le ito “ desm oralizad or”
sobre os alunos, segundo a expressão de um professor. Q u e p o d e ­
ría ter, em co n tex to s de avaliação controlados, notas codiíicadas
de desem penh o escolar, desprovidas de qu alqu er fu n ção sim b ó ­
lica de en corajam en to, mas voltadas ex clu siva m en te para a a v a ­
liação o b je tiv a das com p etên cia s ( “ S enão, alguns alunos seriam
con sta n tem en te penalizados” ).
A p en a s na avaliação nacional é que as notas foram constru í­
das em situações codificadas. Todos os alunos da 2~ série de tod o
o território n acion al deviam fazer os mesmos exercícios, em c o n ­
dições de tem po e d es en v olvim en to fixadas pelos que conceberam
a avaliação. O m odo de correção se pretendia tam bém extrem a ­
m ente preciso. O s professores foram, no caso, apenas in term ediá­
rios de uma organização já pensada, organizada. A in d a que ex is­
tissem margens de manobra — • m esm o neste caso bem particular
em que a parcela de variação con textu al estava m uito limitada
(co m en tá rio s sobre as palavras ou in dicações julgadas difíceis,
tem po perm itido aum entado e às vezes n em con trola d o ...) — , a

49
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

avaliação perm itiu-nos, do p o n to de vista d o desem penho escolar,


selecionar as crianças com a m aior segurança possível. A escolha
de alunos da 2a série está ligada à existência desta avaliação.
E im portante destacar tam bém que as notas da avaliação n acio­
nal são construções sociais. Se considerarm os o va lo r rela tivo ou
o peso rela tivo dos diferentes tipos de e x erc ício propostos em fran ­
cês e em m atem ática durante a avaliação da 2a série do I e grau em
1991, nos damos con ta de que ela registra — ao m esm o tem po que
contribu i para criar e m anter — uma situação das práticas peda­
gógicas. O "C on h ecim en to do cód igo” (ortografia, vocabulário, gra­
mática, conju gação) representa 53 pontos, enquanto a "Leitura-
com preensão” equ ivale a 29 pontos e a “ Produ ção do te x to ” , 18
pontos. Da mesma form a em m atem ática, os "E xercícios ge o m é­
tricos” va lem 13 pontos, as “ M ed idas", 19 pontos, os “ Exercícios
num éricos” , 34 pontos e a “ Resolu ção dos problem as com dados
num éricos” , 15 pontos. O s exercícios têm , portanto, um peso maior
ou m enor na construção fin al da nota. Isso confirm a, em relação
à língua francesa, que o c o n h ecim en to do có d ig o é, hnje, central
no ensino d o curso prim ário4. Mas trata-se, neste caso, de práticas
em constantes transformações, e sabemos que certos exercícios de
produção textual ou de leitura-compreensão, por exem plo, tendem
a assumir uma im portância cada vez maior. O ra, os alunos n orm al­
m ente têm — os professores e os resultados da avaliação são tes­
temunhas disso — mais dificuldade nestes dois dom ínios do que
em gram ática. Podem os, porta n to, im aginar que se produzirão
novas diferenças escolares assim que o peso da produção escrita e
da leitura-com preensão nas avaliações escolares forem maiores. O
mesmo acontece com a resolução de problemas de matemática. H is­
toricamente, as diferenças entre alunos não se operam sempre a par­
tir dos mesmos dom ínios e dos mesmos tipos de ex erc ício, e p o d e­
mos m uito bem ter um sistema de diferenças en tre alunos que se
mantém pela simples mudança dos critérios dc avaliação.
O nosso tem or inicial de não en contrar “ bons” alunos revelou-
se infundado. Levando-se em con ta que, com notas abaixo de 4,5,
as crianças eram consideradas em situação de "fracasso” escolar, que
entre 4,5 e 6 eram “ médias" e, acima de 6, estavam em situação de

50
"ERACASSO" E 'SUCESSO"

" mu.vss < tivem os fina (m ente dificuldades em encontrar alunos


ctti situação de en orm e “ fracasso” . A s chances de se sair muito mal
h.i avaliação da 2a série são portanto pequenas, inclusive nos meios
populares. A maioria dos alunos teve notas médias, provan do que
uao estão totalm en te despreparados diante dos exercícios escola-
u s que lhes são propostos. Isso exige uma reflexão sobre a relação
i mu a escolaridade nos m eios populares. O próprio fato de termos
tido dificuldades em encontrar notas m uito baixas entre as crian ­
ças provenientes dos m eios populares (apenas um quarto dos alu­
iu is tem notas estritam ente inferiores a 4,5) e que o grupo dos alu­
nos “ m édios” seja o maior (c o m 40% deles com notas entre 4,5 e
<>) não é um acaso s o cio lógico e h istórico. São raros os alunos radi-
calm ente alheios ao universo dos primeiros anos de escolarização:
suas famílias, em graus diversos, já interiorizaram hábitos mentais,
hábitos de vida, as tecnologias intelectuais do vida qu otidiana que
lêm relação com as práticas escolares.
A s situações de “sucesso” escolar no curso primário estão longe
de ser im prováveis em m eios populares. De fato, quando considera­
mos os índices de escolaridade normal (sem repetência) segundo a
categoria socioprotissionaf do pai, nos damos conta de que, mesmo
nos meios populares, que são os mais atingidos pela seleção nas pri­
meiras séries do 1e grau, a probabilidade de aceder ã 5a série no prazo
normal é m aior que a possibilidade de se aceder com atraso. Assim
sendo, ao nos referirmos a uma amostra de alunos de 5a série ou em
classes de educação especializada (S E S )* , no início d o ano escolar
de 1989, nos damos conta de que as escolaridades ditas “normais” repre­
sentam cerca de 60% das escolaridades de alunos oriundos de meios
populares. E claro que as diferenças sociais são importantes, pois, ao
mesmo tempo, a proporção é de cerca de 76% para as posições sociais
“ médias" e cerca de 88% para as posições mais “ favorecidas"''. Mas,
hoje, para os primeiros anos de escolarização**, a probabilidade de

SES — Section d'Enseignem ent Spécialisé (S eção de Educação Especializada). ( N T . )

* * N a França, o Cours Préparatoire (C P ), que corresponde ao nosso pré-primãrio, é obriga-


lório, alfabetiza o aluno e permite a passagem para o que correspondería ao nosso curso
prim ário e que começa com o C E I , Cours Elémentaire l . ( N T . )

51
SUCE5SO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

incidência de repetência é m enor nas classes populares. A improba­


bilidade estatística diz respeito muito mais às situações de grandes difi­
culdades escolares, cada vez menos freqüentes nas primeiras etapas
de uma escolaridade que se prolongou nas últimas décadas. De tato,
se por um lado é mais provável encontrar crianças dos meios popu­
lares na população que teve ao menos uma repetência no primário
(eles fornecem cerca de 62% das escolaridades “ anormais", enquan­
to representam cerca de 42% do conjunto da população escolariza­
da), por outro não é absolutamente impossível encontrar crianças vin ­
das destes mesmos meios com escolaridade sem repetência.
D e form a global, há 20 anos os alunos vêm repetindo menos
n o curso primário". O s descompasses se deslocaram , e operam-se
cada vez mais n o ginásio e n o colegial. A s proporções de acesso ao
ú ltim o colegia l numa amostragem de alunos que entraram na 5®
série em 1980 mostram diferenças consideráveis segundo o m eio
social de origem . Enquanto o acesso é quase natural para os filhos
de executivos e profissionais liberais (8 3 ,7 % ), ou mais ainda de pro­
fessores (8 8 ,8 % ), perm anece proibido aos filh os de operários não-
qualificados (2 5 ,7 % ) ou de em pregados ligados a serviços (2 8 ,6 % ).
O curso primário constitui progressivamente, historicamente, o solo
com um sobre o qual as diferenças se operam.
A última etapa da constituição da população pesquisada consis­
tiu em entrevistas co m os professores de cada classe, a propósito de
cada aluno escolh ido depois das duas primeiras etapas. A en trevis­
ta visava a determ inar se uma dada criança, ten do "fracassado” na
avaliação, não seria, habitualm ente, um “ bom aluno", se seu pas­
sado confirm ava ou negava o resultado da avaliação, etc.
Foi n o final dessas três etapas que constituímos-nossa popula-
çâo final, que com porta 14 crianças em situação de “ fracasso” esco­
lar (5 meninas e 9 m enin os) e 13 crianças em situação de “ suces­
so” escolar (8 meninas e 5 m eninos).
A s entrevistas que fizem os com os professores n o fim do ano
escolar para com preen der a evo lu çã o dos alunos dos dois grupos
durante o ano, perm itiram -nos constatar que, enquanto os alunos
julgados “ co m d ificuldades” n o c o m eço do ano perm aneceram na
mesma situação n o fin al d o ano (alguns apenas progrediram no

52
"FRACASSO'’ E “SUCESSO"

linrnínio d o com p orta m en to, da participação oral, da “ boa von -


Inde” que dem onstram para estudar...)> os alunos julgados com
"sucesso” têm posições escolares mais frágeis, nunca total e d e fi­
nir ivam ente adquiridas. Dos 3 casos de dificuldades escolares em
algum m om en to (d e c lín io regular durante tod o o ano, com altos
e baixos tod o o ano ou em um m o m en to determ in ado do a n o ),
destacam os 5. È im p ortan te notar que os 4 casos de queda de
n ível mais evid en te fazem parte das 5 notas mais baixas d o grupo
que está em situação de “ sucesso" (o b tiv e ra m entre 6,3 e 7). P o ­
dem os considerar, portanto, que é preciso ter no m ín im o 7 na a va ­
liação para estar-se seguro de n ão ter uma queda de n ív e l em
•seguida (en co n tra m os apenas um caso deste tipo, o de um aluno
que teve 7,1 ; mas trata-se de um caso de queda circunscrita a um
p eríod o bem d elim ita d o e d eterm in ado no tem p o ).
Isso indica que, se os grandes “ fracassos" são, dados os casos
considerados, quase irreparáveis, os “ sucessos", pelo contrário, pare­
cem p oder ser questionados a cada m om ento. A pen as alguns casos,
interessantes por serem excepcionais, não som ente confirm am seu
“ ê x ito ” mas parecem consolidá-lo com uma obstinação observada
pelos professores (qualidade de “ com petidor” , aluno que va i à esco­
la “ ven cer” ...).

A PE RC E PÇÃO E SC O LAR DOS A L U N O S

Q uando o sociólogo pretende indagar sobre o que está no prin-


c ípio do “sucesso” ou do “fracasso" escolar, não pode contentar-se
com relacionar os critérios de “sucesso” e de “ fracasso” com outras
variáveis familiares, ambientais... N ã o pode m edir “ rigorosam ente”
tendo com o base a pré-construção social, que é necessariamente vaga7,
mas, de fato, deve incluir em seu objeto os critérios escolares do “ suces­
so” e do "fracasso” , nunca totalm ente explícitos e sempre suscetí­
veis de variações históricas, que ele próprio retom ou n o in ício da
pesquisa para constituir sua população.
N ã o é papel do sociólogo dizer o que é “ fracasso” e o que é “ su­
cesso” escolar. Estas palavras são categorias, prim eiro e antes de tudo,

53
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

produzidas pela própria instituição escolar. O sociólogo que inter-


viesse nas discussões para a definição d o sentido dessas palavras esta­
ria entrando em uma com petição semântica (co m o um professor ou
um “ superprofessor"), dando a últim a palavra. A o contrário, deve
constatar e analisar as variações históricas e sociais destas noções
um tanto vagas. Elas não são evidentes por diversas razões: de um
lado, porque o tema do “ fracasso" (ou do “ sucesso” ) é o produto dis­
cursivo histórico de uma configuração escolar e econôm ica singu­
lar". Por outro lado, porque o sentido e as conseqüências d o “ fra­
casso” e do “ sucesso” variam historicamente (em função d o grau de
exigên cia escolar alcançado globalm ente por uma form ação social,
da situação do m ercado de trabalho, que exige novas ou maiores
qualificações, etc. “ Passar de a n o" na 23 série nos anos 90 para um
filh o de operário não tem o mesmo sentido que nos anos 60, insti-
tucionalmente (atrás da sem elhança linguística aparente, “ fracassar
n o exam e fin a l do co legia l” * n ão tem nada a ver com “fracassar na
pré-escola") e sociaJmente (o que é um “ resultado brilhante” para uma
fam ília operária pode ser o “ m ín im o esperado” ou um “ resultado
d ec ep cio n a n te” para uma fa m ília burguesa). Portan to, estamos
lidando aqui com noções relativas de extrem a variabilidade".

A ordem escolar das qualidades

Os julgamentos dos professores para com determinados alunos regis­


tram, de fato, com portam entos reais, e não puros produtos de sua
im aginação profissional. Porém , estamos diante de julgamentos que
falam de com portam entos reais a partir de categorias escolares de
compreensão, e, mais precisamente, de categorias utilizadas n o curso
prim ário. Nesses julgam entos, sohressai-se n itidam en te uma sele­
ção, feita pelos professores, dos fatos e gestos dos alunos que lhes
(e para a escola) é pertinen te. A ssim sendo, constroem perfis que
acabam p or dem onstrar harmonias ou contradições entre com por­
tam entos e qualidades morais, por um lado, e resultados escolares

* N a França, não há vestibular, mas sim um exam e no final do curso colegial, o híiaíikitnvaí.
ou simplesmente hac> que habilita o aluno a entrar em qualquer faculdade. (N .T .)

54
"FRACASSO" E "SUCESSO"

e qualidades intelectuais, por outro: existem alunos indisciplina-


ilos, instáveis e co m desem penhos escolares m edíocres; alunos dis­
ciplinados, atentos e com bom desem penho escolar; mas existem
tam bém , ainda que mais raram ente, alunos razoavelm en te indis­
ciplinados e com bons desem penhos escolares, e alunos relativa-
m en te disciplinados com fraco desem penho escolar. N o en tan to,
dam o-nos conta de que é mais freqiien te en contrar crianças "esco­
lares” ou “ escolarm en te suportáveis” no plano com portam en tal e
em "fracasso” escolar, que alunos “ escolarm ente insuportáveis" n o
plano com portam ental e com “ sucesso” na escola. O bom c o m p o r­
tam en to escolar parece mais acessível a esses alunos de m eios
populares — e isto mais ainda quando se trata de uma m enina (dos
7 alunos com com portam ento escolar considerado globalm ente posi­
tiv o e resultados escolares fracos, 5 são m enin as) — que o bom
desem penho: dessa form a os q u alifica tivos “ bon zin h o (b o a zin h a )”
ou “ agradável" são em pregados para os 1 1 alunos, dos quais 9 são
m eninas.
O s professores e v o c a m ta n to — senão mais — o co m p o rta ­
m en to dos alunos, suas qualidades morais, qu an to seus desem pe­
nhos ou suas qualidades intelectuais. U m p rin cíp io de e x p lic a ­
ção pode v ir do fa to de que, ao co n trá rio dos alunos oriu ndos das
classes médias e superiores, nem todas essas crianças in terio riza ­
ram as norm as de co m p o rta m en to que estão na base da s o c ia li­
zação escolar. Essas normas, que são naturais, e que são ainda mais
naturais quando aplicadas a pú blicos infantis socia lm en te p repa­
rados para recebê-las, são questionadas por crianças das classes
populares, portadoras, n o in te rio r da ord em escolar, de normas
h eterogên eas (e p orta n to h etero d o x a s), ou seja, antagôn icas ou
in co m p a tíveis com as normas esp ecifica m en te escolares. Certas
crianças são co n c reta m en te descritas c o m o não estando escola r­
m en te em con form id a d e, tan to — e até mais — n o pla n o c o m ­
portam en tal q u an to n o pla n o c o g n itiv o . Elas parecem não ter as
co n d ições apropriadas para receberem as mensagens escolares: as
m ensagens n ão ch ega m até elas, ou ch egam co m dificu ld ad e,
porque n ão o u vem , brincam , n ão se con cen tram , n ão fazem seus
deveres, estão sem pre viradas para trás, co m a “ cabeça na lua” ,

55
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

não estudam co m o os outros, são lentas... Estes alunos devem sem­


pre ser solicitados, chamados à atenção, receber ordens e diretivas
dos professores. N ã o se pode deixá-los sozinhos, e é necessária
sempre uma pressão extern a fo rte, e ao lo n go do tem po cansativa:
“ R ep etim os sempre a mesma coisa” ; “ Sem pre tem os que dizer-
lhes..."; “ Som os obrigados a vigiá-los o tem po tod o

O aluno ideal da 2'-‘ série do l s grau

O aluno ideal da 2B série, definido em abstrato numa avaliação negativa ou


explicitamente na avaliação positiva dos alunos, é o seguinte:

Qualidades cornportamejuais
Um aluno...
... autônomo, disciplinado, que fica em seu lugar e não se mexe muico na clas­
se, calmo, tranquilo, atento, honzinho, atencioso, educado, que participa ati­
vamente e escuta o professor, tem vontade, tem regularidade no estudo c em
seu esforço, logo começa a trabalhar quando solicitado, faz os exercícios esco­
lares no tempo previsto, não tem a “ cabeça na lua", não é distraído, não brin­
ca durante as aulas, não é infantil, não é instável, nào se deixa levar petos que
ficam brincando, não conversa com os colegas, não fala por talar, é sério, apli­
cado, cuidadoso, apresenta ou estrutura bem as lições, ordenado, não esquece
o material, aprende as lições, íaz os deveres em casa, não falta, não é medroso,
ansioso, angustiado, não enrra em pânico, não é emotivo demais, é descontraí­
do, fica contente de ir à escola c mostra interesse pela atividade escolar.

Qualidades intelectuais
U m aluno...
dotado, inteligente, culto, curioso, que consegue abstrair, rem hna memó­
ria, compreende o que lhe é dito, não precisa constantemente de explicações,
resolve correcameme até os exercícios que não exigem apenas a aplicação de
mecanismos ou automatismes, pensa naquilo que faz, sabe adaptar-se aos
exercícios escolares menos orientados, dirigidos, definidos, enquadrados, não
tem problemas de pronúncia, tem uma escrita legível, não rem problemas de
lógica ou de compreensão, é bom na resolução de problemas matemáticos,
tem um vocabulário rico, uma boa expressão oral e escrita, e gosta de 1er.

A lé m da explicação da importância das qualidades comportamen-


tais ou morais através das características sociais d o público, é preci­
so evidentem en te evocar o fato de que o curso primário, enquanto

56
"FRACASSO" E ‘ SUCESSO"

prim eiro andar do ed ifício escolar, é indissociavelm ente um lugar de


vida, com regras explícitas e normas implícitas relativas à vida em
comum, à relação com o adulto, à disciplina, um lugar onde são incui-
cadas novas estruturas mentais, novos saberes e relações com o saber.
A própria instituição diferencia esses dois aspectos relativamente indis-
sociáveis em categorias de classificação dos alunos, que encontra­
mos objetivadas sobretudo nos relatórios escolares e nas palavras dos
professores em relação aos alunos: “ Com portam entos escolares" e
“ Resultados escolares” . A parte dos relatórios concern en te à escola
m aternal chega mesmo a privilegiar de forma bem clara a apreen­
são e avaliação da integração, da adaptação do aluno na classe.
Q u anto m enor o grau de escolarização (m aternal mais do que pré-
escola, pré-escola mais que primeira série...), mais os aspectos com-
portamentais parecem ser importantes.
O s professores privilegiam , portanto, o com portam ento com o um
todo, o echos detectável n o aluno através do conjunto de seu com ­
portam ento na escola em relação ao dom ín io de qualidades in telec­
tuais “ puras” . A q u ilo que podemos classificar entre os “ resultados esco­
lares" e as “ qualidades intelectuais” fica quase sempre no lim ite da
disposição moral de conjunto: ter uma escrita “ leg ível" significa tam ­
bém “aplicar-se” ; não precisar o tem po todo de explicações significa
também “saber se virar sozinho"; “ ser autônom o", “ independente” ,
“ curioso” , é ser “ aberto"; saber “ adaptar-se” aos exercícios escolares
menos orientados é ter “ espírito de adaptação" a problemas sempre
novos... Inversamente, inúmeras qualidades “ morais” ou “ comporta-
mentais” têm implicações intelectuais quando se referem a trabalhos
escolares. Ser “ ordenado” , “ organizado", é também ser "racional", “ ter
idéias ordenadas” ; ser "cuidadoso" ou “ bem -cuidado", em geral, quer
dizer “ cuidar de sua expressão” , “cuidar de sua apresentação” e mos­
trar um “ espírito de clareza" em certos casos. Temos, portanto, de ope­
rar com algo de artificial, da mesma form a que, por necessidade da
análise, fizemos a divisão sistemática entre os julgamentos sobre os
desempenhos e as qualidades “ intelectuais" de um lado, e sobre os com ­
portamentos e as qualidades “ morais” de outro. Os resultados esco­
lares ou as qualidades "intelectuais” são julgados ou de forma muito
global ( “ muito bom ” , "ruim", “dotado” , “ inteligente", “ não é idiota"...),

57
5UCESS0 ESCOLAR NOS MEIOS POPU1ARES

ou peta simples constatação de debilidade ou de força particular nessa


ou naquela matéria ( “ boa em expressão oral” , “ problemas em le m e
ra-compreensão",..),
C onsequ entem ente, é necessário levar em con ta o fato de que
os professores da 2a série vêem essencialm ente os alunos através de
sua (boa ou m á) adaptação ao espaço de socialização escolar; v e ri­
ficam se estão em conform idade com a ordem escolar (sua boa ou
má “form ação” fam iliar em relação à vida em formas escolares de
socialização). Podem os até verificar, em expressões do ripo: “ pode-
ria ter resultados quase perfeitos” se ela não fosse "in stá vel” , "dis­
persa” ; “ m enino que tem possibilidades” mas "é in fan til"; “ in te li­
gen te” mas “ catastrófico do ponto de vista com portam ental” ; “se
quiser, ela tem muitas capacidades” , provas de que a “ in teligên cia",
as “ capacidades” , as “ possibilidades” são critérios necessários, mas
não suficientes nos primeiros anos de escolaridade. Finalm ente, o
que os professores não deixam de falar durante as entrevistas, é que
de nada serve o aluno ser “ in teligen te” se ele n ão exercer sua “ in te­
ligên cia" nos momentos e, sobretudo, nas formas escolares.

Sobre a autonom ia e a disciplina

O cspíriu» da disciplina c, ;u> mesmo tempo, i>


sentido tro gosto da regularidade, o sentido e o
gosto da lim itarão dos desejos, o respeito às
regras, que im põe ao indivíduo a inibirão dos
impulsos e do esforço | ]. A autonomia é a ati­
tude de uma vontade que aceita a regra, pois a
reconhece com o racionulm ciite fundada".

A autonomia e a falta de autonom ia são frequentem ente citadas


nas entrevistas dos professores para qualificar a atitude dos alunos em
"sucesso" ou em “ fracasso". A utonom ia vista com o autodisciplina cor­
poral (saber conter os desejos, portar-se bem, ficar calmo, escutar, levan­
tar a mão antes de falar, começar a trabalhar sem que o professor tenha
necessidade de intervir, imprimir regularidade ao trabalho, ao esfor­
ço, ser ordenado...) e com o autodisciplina menta! (saber fazer um exer­
cício sozinho, sem a ajuda do professor, sem perguntar nada, fazer uma
leitura silenciosa e resolver por si mesmo um problema, saber se virar

58
"FRACASSO” E "SUCESSO"

sozinho ao fazer um exercício escolar somente com as indicações escri-


tas...). O term o “autonom ia" parece cristalizar um conjunto de carac­
terísticas valorizadas d o ponto de vista escolar.
A n te s de tudo é preciso destacar o fato de que a escola não é um
simples lugar de aprendizagem de saberes, mas sim, e ao mesmo
tempo, um lugar de aprendizagem de formas de exercício do poder
e de relações com o poder. A escola, co m o um universo onde reina
a regra impessoal, “opõe-se a todas as formas de poder que repousam
na von tade ou na inspiração de uma pessoa” 1’. Nesse âm bito geral
da regra impessoal a escola passou historicam ente da construção da
figura d o “ aluno dom ado” à do “ aluno sensato e racional” , sendo a
razão um poder sobre si mesmo que substitui o poder exercido pelos
outros e pelo exterior. D eixar o aluno cam inhar sozinho em direção
ao saber, sendo o professor mais um guia pedagógico do que um ins­
trutor (n o duplo sentido do term o), pedir-lhe que sc com porte bem,
através de uma form a de au tocontrole bem com preendida, signifi­
ca estar cada vez mais próxim o de um aluno sensato e racional, de
um aluno capaz de selfgovemment, de “ aprender a aprender” , de cam i­
nhar sozinho para a apropriação do saber com a ajuda de fichas (d e
leitura, de ortografia, de gramática ou de m atem ática), capaz de
fazer um ex ercício após a leitura de uma instrução, de organizar sozi­
n h o seu trabalho, de virar-se sozinho ou trabalhar em gm po...
R econ h ecem os nessa série de práticas ou de slogans pedagógicos
os leitmotiv da pedagogia m oderna, tendência de inúmeros profes­
sores em seu discurso e/ou em suas práticas. Nada de aprender “ sim ­
plesm ente” a 1er (c o m o dizem alguns), ou seja, som ente decifrar; é
preciso com preen der o que se lê; não se trata tam pouco de recitar
de cor uma lição de gramática, história ou geografia e não saber do
que se está falando; nem se trata, enfim , de “ aplicar m ecanicam en ­
te” regras de gram ática ou procedim entos matem áticos, mas é pre­
ciso com preender o que se está fazendo e mostrar (e x p lic a r) que se
com preendeu o que se fez.
Em língua francesa não partim os de regras de gram ática ou de
ortografia para fazer exercícios de aplicação, mas da constatação,
ten do enunciados co m o base (produções orais espontâneas, peque­
nos textos...), de um certo núm ero de particularidades da língua.

59
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

O u se tenta até, em certos casos, fazer com que os alunos descubram


as regras ou regularidades gramaticais ou ortográficas. Da mesma
forma, ainda que os métodos globais não tenham sido reaímente apli­
cados, os debates sobre a leitura e a maneira correta de ensiná-la
provocaram uma mudança da definição social da leitura escolar, defi­
nição em que a com preensão assumiu uma im portância capital
(m esm o não sendo exclu siva). Cada vez mais pede-se ao aluno um
tem po de pesquisa em francês ou em m atemática. Trabalhos e exer­
cícios durante um período de tem po determ inado são dados a eles,
e deixa-se que eles os organizem sozinhos. Trabalham sozinhos a par­
tir de fichas e aprendem a se autocorrigir, procuram livros na b ib lio­
teca e marcam sozinhos em uma ficha o gênero, o título do livro
que pegaram... Essa tendência pedagógica generalizada explica por
que as matérias ou subdomínios que implicam maior compreensão,
mais “ razão” da parte d o aluno (leitura-com preensão, produção
textual, resolução de problemas m atem áticos), ganham um espaço
cada vez mais im portante na escola primária em detrim ento de
exercícios julgados mais m ecânicos, mais automáticos, e, ao mesmo
tem po, mais “ bobos" (aprender de cor, aplicar uma regra...).
C o m o prova dessa tendência escolar generalizada em direção a
formas de organização que atribuem um lugar central à autodisci-
plina corporal e mental, podemos pegar o exem plo da avaliação nacio­
nal da 2a série do I a grau feita em 1991, que dá uma idéia do que
pode significar o term o “ autonom ia” . Podem os procurar na natu­
reza e na formulação dos ex ercícios1' o aluno visado por aqueles que
conceberam essa avaliação nacional.
Podem os notar, antes de tudo, que a avaliação nacional da 2a
série aconteceu sob o signo das instruções: instruções aos alunos,
instruções aos professores. Em um “ D ocum ento para o professor” ,
os professores encontram "instruções de aplicação” , "instruções de
codificação” e "com entários". O mesmo texto precisa, em matéria
de “ saber 1er", o papel central da compreensão e do respeito às ins­
truções nos exercícios escolares, independentem ente do dom ín io
considerado: “O o b je tiv o prioritário que a abordagem dos textos,
em coda a sua diversidade, constitui acabou por colocar as crianças
em situações muito diversificadas, incluindo com petências indis-

60
"FRACASSO" E "SUCESSO

pensáveis ao estudo de todas as disciplinas, tais co m o a com preen-


sà( >e o respeito pelas instruções precisas” M. H a m aioria dos exercícios
de francês e de m atem ática, as instruções são dadas oralm en te pelo
professor, mas pede-se a ele para não dizer nenhum a outra coisa {e n ­
contramos, por exem plo, no exercício 11 de francês: “ Se uma crian­
ça pedir explicações sobre o sentido de uma palavra, não responda” ).
N o entanto, dois exercícios constituem a chave da compreensão para
a qual se quer conduzir a criança. Trata-se d o ex ercício 4 em fran­
cês e d o ex erc ício 9 em matem ática. O o b jetivo , nos dois casos, é
determ inar se os alunos são capazes de com preender e aplicar as ins­
truções que não são lidas p elo professor. O ex ercício 14 em francês
tam bém com eça com a leitura silenciosa das instruções pelos alu­
nos, em seguida lhes é dada a palavra para saber se com preen de­
ram; e, fin alm én te, o ex ercício solicita ao professor que este refor­
mule oralm ente as instruções. N o s com entários d o ex ercício 4 são
feitas sugestões aos professores a respeito de exercícios futuros em
que se preconiza a criação de instruções por algumas crianças, e, em
seguida, sua execu ção por outras crianças, para verificar se as ins­
truções são su ficientem ente explícitas e se os alunos que as aplicam
o fazem com o rigor necessário. D a mesma forma, o ex ercício 6 de
m atem ática consiste em fazer os alunos encontrarem a indicação
que lhes possibilitou realizar um desenho.
Portanto, para os autores dos cadernos de avaliação, parece que
a autonom ia da criança está íntrinsecamente ligada às instruções. Por
exem plo, encontramos, em relação ao exercício 4 do caderno de
francês, o seguinte com entário: “ A compreensão e o respeito por ins-
tm ções variadas são indispensáveis a qualquer trabalho autônom o da
criança, e isso em todas as disciplinas. Trata-se de instmções que ela
encontra habitualmente nos exercícios que lhe são propostos, e que
quase sempre não são aplicados com rigor. Essa ausência dc rigor, mais
do que uma incom preensão das instruções, pode explicar erros” 1’.
Fica claro, antes de tudo, que a autonomia visada está muito liga­
da a uma relação particular com a leitura, e, no fundo, à leitura silen­
ciosa e íntima, não-orientada. Nesse sentido, a autonomia tem seu lado
de dependência. Essa dependência existe em relação aos sabores, ás
instruções, às regras objetivadas, das quais é preciso apropriar-se para

61
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

chegar-se sozinho a uma solução, a uma descoberta, a uma progressão


no saber. Mas o conjunto de técnicas que conduzem (obrigam ) à auto­
nom ia (com preensão auditiva ou leitura silenciosa das instruções,
ausência de respostas nas questões colocadas, uso de fichas, sistemas
de autocurreção, uso do dicionário para procurar sozinho o sentido de
tima palavra... ) constitui uma relação de poder e uma relação com o saber.
A autonomia é, portanto, uma forma de dependência histórica espe­
cífica. A figura do professor desaparece em proveito de dispositivos pedra
gógicos objetivados, em relação aos quais ele desempenha dois papéis:
preparar para a utilização autônoma desses dispositivos através de um
trabalho específico sobre a leitura-eompreensão (leitura solitária com
os o lhos) e, em seguida, guiar os alunos em sua progressão autônoma
em direção aos conhecim entos (respondendo fatalmente à perguntas,
lembrando ou com entando as instruções...).
D evem os observar que um tal funcionam ento pedagógico im pli­
ca o uso recorrente e central de dispositivos objetivados: da instrução
escrita no quadro-negro ou impressa até as fichas de perguntas e res­
postas, passando pelos manuais escolares. E podemos relacionar estes
dispositivos objetivados com exercícios propostos a partir do curso pri­
mário: 1er um quadro com entrada dupla e saber colocai- os dados em
um quadro (exercícios 11,2 2 ,2 5 ,2 7 e 28 de matem ática), efetuar uma
escolha entre muitas respostas possíveis, como em um questionário de
múltipla escolha (exercícios 2, 3, 5, 7, 8 e l2 de francês e 4, 6 e 20 de
m atem ática), saber responder a um questionário, saber 1er um calen­
dário ou uma agenda (exercícios 10 e 15 de matemática), saber 1er mapas
ou situar objetos em uma representação espacial (exercício 1 de fran­
cês e exercícios 1, 8, 14 e 16 de matemática). Os alunos são coloca­
dos, portanto, em contato com instruções, quadros, classificações, lis­
tas, questionários fechados ou abertos, manual de instruções e mapas.
Sem dúvida uma instrução escolar do tipo: “ Assinale com um X
a alternativa correta" é um procedim ento m uito interessante em si,
mesmo se nos questionarmos o que implica em matéria de exercício
de poder c de relação com o poder. U m ral procedimento se parece
com o questionário burocrático que inúmeras instituições aplicam hoje
usualmente. E com o se fosse uma aprendizagem de esquemas de
com unicação (de formas de relações sociais particulares entre “ emis-

62
"FRACASSO" E "SUCESSO"

1 >i ” <■“ receptor” ) constitutivos de uma relação específica com o poder.


( 11 idudão d eve agora ser capaz de localizar-se em um espaço escri-
li 1 1 gnifico co m o o questionário, de fazer uma escolha entre várias
i 1 i U>st ,i> possíveis predeterminadas ou de realizar um ato a partir de
uma instrução dada p or escrito e enunciada por alguém. O poder se
despcrsonaliza nesse tipo de situações. Esses usos sociais da escrita
i a i muram uma forma de exercício de poder especial. E nos faz ine-
viio velm en te pensar na definição weheriana da dom inação legal e
i u ii mal: "o deten tor legal-típico do poder, o ‘superior’ , quando esta-
i ui e, portanto, quando ordena, obedece por sua vez à ordem impes-
m ial.it ravés da qual orienta suas disposições [... |, os membros do grupo
i P o- obedecem ao deten tor do poder não obedecem à sua pessoa, mas
sim a regulamentos impessoais” 16. O autor acrescenta que “ as pro-
p< «sições e as decisões, as disposições e os regulamentos de todo tipo
sao fixados por escrito” 17.
Seria um acaso se a seguinte form ulação “ Poderiam os portanto
propor: trabalhos co m todos os tipos de instruções; a produção de
instruções em outras situações, pelas próprias crianças, ten do com o
primeira validação a execu ção destas instruções por seus colegas;
a constituição progressiva de recapitulações metodológicas, que even-
tualm ente poderíam estar afixadas na classe, e que estejam em
relação com as atividades da classe” 1'' lembrasse im ediatam ente
certas situações sociais um tanto burocráticas nas quais instruções
são escritas por uns, executadas por outros, e os regulamentos, os
procedim entos a serem seguidos, afixados em público? Sem preci­
sar procurar m uito longe, basta considerar em detalh e o docu m en ­
to forn ecid o p elo M in istério de Educação N a cio n al francês a todos
os professores que aplicaram a avaliação. A s instruções de aplica­
ção e co d ifica çã o são claras e prescrevem uma execu ção precisa e
rigorosa. Da mesma forma que é dito ao aluno “V o cê deve com preen­
der as instruções e fazer exatam ente o que pedim os” , é d ito aos pro­
fessores “ Diga aos alunos: C o n ced a três minutos. D epois des­
ses três m inutos diga aos alunos: ‘V irem a página’ , ou ‘ Fechem os
cadernos’ , e recolh am os cadernos” . O s professores são colocados
exatam ente na mesma relação de com unicação diante de seu minis­
tério quanto os alunos dian te da instituição escolar.

61
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

A autonomia é, portanto, o nom e de uma relação social especial


com o poder e o saber. A escola, que pretende tom ar os alunos autô­
nomos ensinando-os a virar-se sozinhos (sobretudo pela leitura silen­
ciosa), diante de dispositivos de saberes objetivados, visa à produção
de disposições cognitivas para poder apropriar-se de saberes escritos
com plexos, e, ao m esm o tem po, de disposições sociais a fim de p o ­
der agir nas formas particulares de exercício do poder. O aluno im plí­
cito, o “ bom leitor" im plícito da avaliação nacional da 1~ série do 1-
grau, é, por um lado1”, um aluno autônomo, que sabe compreender e
aplicar as instruções, que sabe decodificar sozinho os dispositivos de
saberes objetivados, e sabe tirar daí informações (verbetes de dicio­
nários, quadros, textos, listas, agendas, calendários, mapas, desenhos...)
e utilizar os modos de seleção de uma informação, tais com o os que
encontramos nos formulários administrativos clássicos (marcar com
um X ou fazer um círculo em to m o da alternativa correta, sublinhar,
riscar, colocar um número de código n o lugar correspondente...). O
fato, porém, de reconstruir o “bom leitor” almejado não nos informa
a respeito daquilo que os alunos realmente leram. N e m todos “cons­
tróem" a mesma coisa com essa avaliação, e o embate com o texto pode
ser mais ou menos feliz do ponto de vista das expectativas da institui­
ção: nem rodos têm o perfil ideal do aluno autônomo.
D e fato, a autonom ia é questionada pelos alunos que não fiz e ­
ram suas (a u to ) leis (nom os) escolares enquanto maneira de se
com portar e de pensar. Para efetuar sozinho certas atividades é pre­
ciso ter interiorizado esquemas mentais e com portam entais sob a
orien tação do adulto. C o m o diz o psicólogo russo L. S. V ygotski,
a ajuda que a criança recebe em sua aprendizagem (o “ elem en to
de colaboração” ) torna-se “ in visivelm en te presente e implicada na
resolução aparentem ente autônom a d o problem a pela criança” "'’.
Q u alqu er com petên cia aparece duas vezes ao lo n g o da ex p eriên ­
cia de um indivíduo (tanto adulto quanto criança): uma vez no plano
interpsíquico e uma segunda vez, mais tarde, no plano intrapsíqui-
co. Isto im plica, para um bom m étodo, que o pesquisador deva se
esforçar para reconstruir eis con d ições de in terdependência que
estão no prin cíp io da produção das com petências, saberes, dispo­
sições de um in divídu o determ inado.

64
"FRACASSO" £ "SUCESSO"

N ilo é por acaso, portanto, que os professores que ensinam em


nu n is populares se qu eixem ritualm ente da ausência de autonom ia
t li seus alunos. U m a análise do juízo feita em relação aos alunos de
i lasses de recuperação’1 mostra essa crítica de não-autonom ia, de
d is|lersão. De fato, uma vez que a criança formou, sobretudo na inter-
■Irpendência com seus pais, um co n ju n to de disposições e de com -
I Tièncias, escolarm ente adequadas, pode enirentar “ sozinha” as
exigências escolares. Mas é exatam ente este conju n to de disposi­
ções e de com petências pré-requisitadas que parece estar mais ou
menos presente, dependen do do m eio social considerado, e, nesse
nosso caso, dependendo da configuração fam iliar considerada.
Em oposição a um D urkheim racionalista demais, podem os dizer
que a autonom ia não é a consequência de uma vontade que reco­
nhece a regra enquanto algo racionalm ente fundado, mas sim a c o n ­
sequência de um et/ios que reconhece, im ediata e tacitam ente, prin-
i (pios de socialização, regras do jo go não m uito distantes daquelas
que presidiram sua própria produção. Q uando aquilo que é propos-
0 i na escola não enrra em contradição com (n ão põe em crise) o que
loi interiorizado até então, neste caso o aluno se mostra com o alguém
autônomo. Porém, quando as regras do jo go dos dois espaços de sócia-
Inação (fa m ília e escola) são, por um lado, diferentes demais, e, por
1him >, não podem ser vivenciadas em harmonia pelas crianças, então
e.stas ficam deslocadas em relação ás exigências e obrigações esco­
lares. E necessário ficar atento para que os alunos com ecem bem as
lições, prestem atenção, escutem, é preciso controlá-los, lembrar-lhes
.is instruções, estar constante m ente ao lado deles, responder às suas
múltiplas solicitações. Eles não sabem se cuidar, ocupar o tempo sozi­
nhos, fazer sozinhos os exercícios, se virar, com eçar a estudar por ini­
ciativa própria, e daí por diante. D e repente, todos os m étodos (tais
com o o trabalho em grupo) que requerem um m ínim o de autono­
mia demonstram ser dificilm en te aplicáveis a estes alunos.
E caímos, inevitavelm ente, nos problemas de disciplina longa-
mente desenvolvidos pelos professores durante nossas entrevistas:
problemas de crianças turbulentas, barulhentas, agitadas, indisponí­
veis, instáveis, desatentas, que dizem “qualquer coisa a qualquer hora” ,
que não escutam, que se enganam de exercício, que entram na cias-

65
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

se correndo, brigam sem parar, não pensam no que estão fazendo, fazem
as lições de qualquer jeiro, não se aplicam, esquecem regularmente o
material... U m professor particularmente prolixo, por uma série de razões
(recém -chegado à escola, diz coisas que os outros já interiorizaram de
tal forma à medida que os anos de trabalho foram passando, e que as
vivenciam com o corriqueiras e normais; o espanto e o cansaço pro­
vocados por essas crianças tão pouco “ autônomas"; o papel quase tera­
pêutico que a entrevista sociológica pode desempenhar quando se
enfrenta sozinho este tipo de situação; uma classe particularmente difí­
cil — no processo de constituição da população pesquisada, foi nessa
classe que escolhemos a maior parte das crianças oriundas de meios
populares e que tiraram menos de 4,5 na avaliação, ou seja, 12 alunos
em 31), diz, num tom rápido e apressado, imitando os gestos e as ins-
tabilidades dos alunos, os gritos e as entonações, tudo o que os outros
dizem de maneira menos enfática e desenvolvida.

Muitos não escutam enquanto estou explicando. Não sabem ficar cal­
mos, escrever alguma coisa sem... O problema é que as coisas dege­
neram o tempo todo. Tem um que acabou a lição gritando: “ Pronto.
Acabei!”. Assim, bem alto, e aí ele se levanta e sai. Eles se mexem
0 teinpo todo, fazem barulho. Além disso, falam muito alto, gri­
tam o tempo todo. Entram na classe gritando, correndo, é cansativo.
Passo o tempo todo berrando, senão eles não me escutam Só para
tirar um caderno da mala leva um tempo enorme. As coisas deles ficam
espalhadas por todo canto, nas mesas, cai tudo, e aí eles se levantam.
Como se não fossem capazes de arrumar. Daí eu tento: “Coloquem o
livro sobre a carteira, não quero ver mais nada em cima, vocês não
precisam de mais nada, arrumem o resto”. Que nada, fica sempre cheia
de coisas, não adianta nada. Tem uns que são atentos, prestam aten­
ção naquilo que estão fazendo, mas três quartos da classe, ufa, não estão
nem aí, fazem tudo rápido, assim sem mais! “ Pronto, acabei!" Fazem
tudo errado, mas para eles não tem a mínima importância, acabaram
e pronto. Além disso têm tendência a dizer qualquer coisa a qualquer
hora. Faço uma pergunta, e pronto, não foi nem isso o que perguntei
e alguém já respondeu. Não presram atenção. Assim: “Vamos lá,
vamos fazer um exercício”, só que eles nem sabem o que eu pedi. Por
exemplo, um exercício, marco no quadro o número, bom, aí explico
o que eles têm que fazer, tem sempre dois ou três que se enganam de

66
"FRACASSO" E "SUCESSO"

Ii;ii4Ínn. ti o tempo inteiro assim. Portanto, tazem qualquer coisa. A


gente acabou de estudar o assunto, eles se enganam de livro. Tem uns
que nem conseguiram achar o livro, outros já acabaram o exercício.
|...| Tem pelo menos dez por dia que esquecem os cadernos, pelo
menos dez! Quando não é mais que isso. Agora verifico a lição no
caderno de texto, porque no começo escreviam qualquer coisa e não
dava... Não conseguem copiar o número do problema de matemáti­
ca, erram até nisso. Nunca, em uma segunda-feira, consegui encon­
trar todos os cadernos assinados pelos pais, nunca ainda. Se deixo dois
alunos de lado, se não ficar o tempo todo cuidando da classe ou pas­
sando entre as fileiras, logo, em dez segundos, começa um bamlho ini­
maginável. Evito trabalhar em grupo porque não consigo. Eles não
sabem trabalhar. Primeiro brigam, depois se esrapeiam, e assim vai.
E assim... [...] E na aula de ginástica, eles desembestam. Se jogam con­
tra as paredes, batem uns nos outros, gritam como loucos, fazem
muito barulho, bagunça, e é isso. O que não quer dizer que vão se esfor­
çar. Por exemplo, jogando basquete, na quadra ou fora, não importa,
quando tento fa2er alguns pequenos exercícios, para explicar a téc­
nica, não estão nem aí, preferem brigar, gostam muito mais disso, evi-
dentemente. Recebemos estagiários da U FRAPS (Unidade de For­
mação e Pesquisa de Atividades Físicas e Esportivas), e aí eles deram
aulas de luta e hóquei, bom, foi a mesma coisa. Por exemplo, na luta,
na primeira aula ela colocou um tapete, eles deviam correr sobre o
tapete sem se tocar. Bom, ninguém ficou de pé para começar a cor­
rer. Estavam todos no chão, começaram a se jogar no tapete quanto
puderam, atiraram-se contra a parede, e assim por diante. E assim que
ficam contentes. Ela precisou de uma hora para, reunidos, explicar-
lhes. Então disse: “Já que vocês não sabem correr, vocês vão fazer a
mesma coisa andando". Mesma coisa, todo mundo ficou no chão, É
sempre assim: fazem qualquer coisa. Ébom porque eles se descontraem,
mas não passa disso. Na piscina é a mesma coisa. [...] Eles me cansam
o tempo todo. Que eles têm energia, sem dúvida, isso no conjunto,
fora dois ou três. Se faço perguntas não posso dizer que ninguém res­
ponde nada. Eles respondem qualquer coisa, mas falam, sem duvida,
não posso criticá-los, não são tímidos, este defeito não têm. As
vezes eu digo a mim mesma, talvez seja eu que não estou acostuma­
da, não sei tomar uma atitude, coisas do gênero. Mas vejo que todo
mundo sente a mesma coisa, até quando a conselheira pedagógica
entra, eles são terríveis. Quando ficavam com as estagiárias, elas eram

67
SUCE550 ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

jovens inclusive, era a mesma coisa, e olha que eles estavam prati­
cando esporte, alguma coisa bem estruturada, dava na mesma, não
adianta, não muda... Eles são difíceis o tempo todo".

Os exem plos que se referem à prática de esporte são m uito in te­


ressantes, pois poderiam os imaginar que, avessas aos exercícios mais
“ intelectualizados” , as crianças ficassem mais interessadas e atentas
nas atividades mais corporais. Mas não é isso o que acontece. Seja
qual for a matéria, seu com portam ento permanecerá o mesmo, o que
faz com que certos professores achem que eles “ não se interessam por
nada” . Porém, é a forma escolar de aprendizagem, não importa o dom í­
n io considerado, que parece estar sendo rejeitada pelas crianças.
Tan to em ginástica com o em outra matéria, a escola passa por
ex ercícios ch eios de regras, ex p lica ções, e as crianças que n ão
seguem à risca o que lhes é pedido (executar tal gesto, tal m o vim en ­
to...) são vistas pela escola, lugar por excelên cia d o con trole das pul-
sões e do uso regulam entado do corpo e da palavra, co m o criaturas
que só pensam em “ se soltar” , ou seja, “ dar livre curso a impulsos
norm alm ente reprim idos” .
O fato de as “ novas” d efin ições de regras d o jo g o escolar im p li­
carem, às vezes, um rela tivo desaparecim ento das regras, n orm a l­
mente mais implícitas, não d eve fazer com que esqueçamos sua exis­
tência. O s alunos menos autônom os ex igem que as regras sejam
ex p licita m en te lembradas, que haja uma in terven ção direta, c o n ­
siderada mais “ tradicion al” pelos professores (“ Será que devem os
dom á-los mais ou é preciso con trolá -los mais?” ), pedem que se
cham e sua atenção o tem po tod o, que sejam controlados direta­
m ente, e tom a m difíceis os n ovo s tipos de exercícios que necessi­
tam de um m ín im o da famosa “ au tonom ia” (trabalh o com fichas,
trabalho em grupo, trabalho de pesquisa...).
Os professores, portanto, são surpreendidos por uma terrível co n ­
tradição: por um lado, as transformações da instituição pedagógica
tom am caducos um certo núm ero de termos e de práticas pedagógi­
cas (o term o “regra” , as práticas de intervenções incisivas junto aos
alunos, as aulas teóricas, a aprendizagem “ de co r"...)21, e, por outro,
os professores são colocados diante de alunos que os forçam a fazer o

68
FRACASSO" E “SUCESSO"

■111 r ( uk Ic iii viven cia r co m o retrocessos pedagógicos (lem brar que


i •s r.l fin regras, “domar” os alunos para que fiquem mais atentos à pala-
v i.i >l<>prt >fessor, insistir na possibilidade de “sair-se” m elhor “ apren-
ili inln de cor” , adquirindo técnicas, “ mecanismos” , evitar a multipli-
i ,u,,n> de atividades que dispersam a já frágil atenção dos alunos...).

N o IAS

/ I T d e Bron-Fartlly e Z E P de B ron-Teiraillon, Alunos de 4 dusses da 25 série e 2 clas-


0 de 2 * e } “ séries do l 8 grau no ano escolar de 1991-92. (N a França o ano escolar
1 om eça em setembro e termina em Fins de junho, início de julho. O M inistério da Edu-
i .içún francês classifica com o rona de educação prioritária algumas escolas das regiões
d e população de baixa renda, com grande incidência de imigrantes, com problemas de
, miem social, escolar, comportam enral - N ,T .)

I'< k lemos encontrar estes resultados em Repères et références .'Mimiques..., 1991, p. 66-7-

' i ' Baudelot e R. Establet, Allez les filies!, p. 82.

1 t ï. B Laliire, Culture écrite et inégalités scalaires ...

' l'orcentagens construídas a partir do quadro "Types de cursus à l'école primaire (par PC S
icgrtiupées)” , Repères et références statistiques..., p. 87.

" t )s indices de repetência no pré-primário ( ( T ) passaram de 17,6% em 1970-71 a 12, 5%


u n 1980-81 e a 8,1% c m 1989-90. O mesmo aconteceu com os indices d e repetência
n.i 4 ° série, que passaram de 15% em 1970-71 a 4,5% em 1989-90. Quadro: "O s in d i­
ces de repetência no pré-primário e na 4Esérie. Evolução (França metropolitana)” , Repères
el références statistiques..., p. 59.

1 B. Lahire, "Discours su r‘ l’illettrism e’. . 1 9 9 2 b .

n B. Lahire, Culture écrite e! inégalités s c o la ir e s .p . 44-8.

v E por isso que, mesmo sob pena de tornar o texto pesado, colocam os sistematicamente
entre aspas os termos “ fracasso" e "sucesso".

1,1 Em relação ao conjunto de crianças das quais dispomos dc informações e que estão na
França desde os 2,5 anos ( 19 alunos: 8 em situação de “ fracasso" e 11 em simaçãt>de "suces­
so "), constatamos uma prccocidade relativa du frequência da escola maternal entre as
crianças que tem "sucesso” : a idade media de entrada na escola maternal é de 5 anos e 4
meses para as crianças com “ sucesso", e sobretudo de 2 anos e 10 meses para os alunos
que tiraram acima de 7 na avaliação nacional da 2’’ série (ou seja, 8 alum>s). C oncer-

69
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

nente iis crianças em situação de "fracasso", » idade média de entrada no maternal é de


3 anos e 11 meses. “Os alunos que se beneficiaram de uma escolaridade mais longa no
maternai obtêm melhores resultados escolares no final da pré-escola", escrevem A . M in ­
guar e M . Richard, Evaluation des activités de re-éduatíton..., 1990, p. 49. Isto não signi­
fica necessariamente que a escola maternal é causa de um m elhor "sucesso” escolar. A
entrada no maternal pode ser também um indicador da relação dos pais com a escola e
significar que suas práticas socializador.ts já são trabalhadas tendo com o preocupação a
escola. Purent, em uma série de perfis, constatamos que a frequência na escola maternal
durante ao menos 2 anos permite à criança travar conhecim ento com as regias de co m ­
portamento, com uma política disciplinar, com práticas de linguagem, etc., pouco comuns
na família, e não perdei tempo na pré-escola aprendendo esses hábitos escolares.

11 P. Fauconnet, "L'œuvre pedagogique de Emile Durkheim” , 1989, p. 26.

G, Vincent, L’école primaire française, 198Û, p. 264. Seria necessário desenvolver aqui os elos
profundos entre a constituição do Estado moderno, o monopólio estatal da violência legí-
rima, a dominação legal racional, as regras impessoais e as processos de interiorizaçãa do con-
tnile das emoções que podemos esrabelecer através das obras de Max W eber e Norbert Elias.

1* D o mesmo m odo que Roger C hartier tenta reconstituir o leitor e a leitura implícitos,
inscritos nas estruturas materiais dos livros da ‘'Bibliothèque Bleu” e visados pelos ed i­
tores troianos a partir do século X V II. C f “ Du livre au lire", 1985, p. 62-88.

** Evaluation à l'entrée au CE2..., 1991, p. 6.

15 Ihid., p. 20.

16 M . Weber, Économie et société, 1971, p. 233.

12 Ibid., p. 225.

18 Evaluation à l'entrée au C E 2 ..., p. 20.

Ele não se reduz a isto. E igualmente um aluno que sabe não ultrapassar o tem po que
lhe é dado, que reconhece as expressões verbais do tempo, distingue os textus pelos indi­
ces formais, sabe copiar exatam ente um texto, concordar sujeito e verbo, extrair uma
regra a partir da observação de um exemplo, etc. Quisemos, porém, insistir sobre os aspec­
tos menos visíveis.

2° L. S. Vygotski, Pensée ei langage, 1985, p. 281.

- 1 B, L a h ire,Culture écrite et mégoitrésscolaires...

U m a professora da Zona de Educação Prioritária da cidade de Bron-Parilly.

2 * A s novas Iinguagens pedagógicas chegam a forçar um professor a corrigir-se quando duran­


te uma entrevista a palavra “ regra" lhe escapa com o num lapso: “O respeito às regras,
instruções, se vocês não querem dizer regras, pois nflo deve se dizer ‘ regras’. E uma paLi-
v rafo ra de moda, devemos di 2er instruções, o respeito ãs instruções".

70
3 P e r f is d e c o n f ig u r a ç õ e s

V a Kl AÇÕES SOBRE O MESMO T E M A

d o m o obtivem os os perfis que vamos mostrar adiante? C o m o


lnmm reconstruídas essas configurações fam iliares nas quais esta-
vam inseridas as crianças? Se o perfil sociológico, com o gênero de
escrita cien tífica, trata de uma realidade social e realm ente visa —
com o discurso não-literário que se apóia nos dados e se preocupa
to m a crítica dos con textos de sua produção — a uma verdade rela-
t iva, também d eve deixar aparecer a m aneira específica, o estilo do
"desenhista” . N e ste trabalho de construção, esforçamo-nos, portan-
in, para organizar sociologicamente, a partir de uma construção par-
i icular d o objeto, o material oriundo da observação de realidades sociais
rclatimmente singulares. C o m isso produzimos textos de configura­
ções singulares; textos que, n o entanto, n ão são isolados entre si por
duas razões ao menos: p o r um lado, trabalham co m as mesmas
orientações interpretativas, e, por outro, o tex to de cada perfil
desempenha um papel n o tex to de todos os outros perfis1.
Dessa form a, fizem os co m que o trabalho so c io ló g ic o p rogre­
disse com avanços e recuos, o que nos perm itiu, fin a lm en te, aban­
donar o gên ero m on og rá fico puro. N a realidade, nossa form a de
proceder não n eglig en c io u a singularidade de cada situação, mas
sobretudo não se con ten tou e m fazer descrições ideográficas puras,
sem com parações, que traem a ausência de uma o rien ta çã o inter-
pretativa claram en te defin id a . O que procuram os são invariantes
ou in variâncias através da análise de configu rações singulares tra-
radas co m o variações sobre os mesmos temas.
A o escolher a form a cien tífica d o tex to , quisemos ultrapassar as
aposições teoria/empirismo, interpretação/fatos... e apresentar à le i­
tura fatos — teoricam ente — construídos. Dessa form a, procura­
mos encarnar nesses perfis a nossa leitura sociológica das situações
sociais, para dem onstrar claram ente que os casos particulares tra-

71
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tados não passam de sínteses originais de traços (ou características)


igualmente genéricas. Evitar a explicação unilateral através de um
fator, ou, de m odo mais geral, de um tema predom inante n ão sig­
nifica, na realidade, que nos percamos em um n ev o e iro de causas.
Trata-se som ente de, ao centralizar o olhar sobre objetos mais p re­
cisos, tentar contextualizar o efeito de propriedades ou de traços per­
tinentes de análises absolutamente gerais, exatam ente os que en con ­
tramos nas pesquisas estatísticas.
Se tivéssemos abordado separadamente traços, teríamos perdido
de vista o que nos parece o mais importante a destacar, ou seja, que
esses traços (características, temas) se com binam entre si e só têm
sentido sociológico, para nosso objeto, se inseridos na rede de seus
entrelaçamentos concretos. A o concrário d o que se poderia pensar
costumeiramente, é exatam ente nos perfis de configurações e não
em análises que desenredassem o que tínhamos, conscienciosam en-
te, enredado que encontraremos a interpretação dos iatos. Nossa preo­
cupação foi a de não destruir demais as lógicas práticas com suas m úl­
tiplas coerções simultâneas e embaralhadas ( lógicas nas quais somos
constantemente surpreendidos quando precisamos adotar essa ou aque­
la orientação, fazer uma “escolha" e não outra ao longo de nossa vida
co tid ia n a )’, e não a de fazer uma leitura da realidade social na lin ­
guagem das variáveis e dos fatores explicativos.
O fato de os diferentes membros das famílias contextualizadas
agirem com o agem, de seus filhos serem o que são e com portarem -
se com o tal nos espaços escolares não é fruto de causas únicas que
agiriam poderosamente sobre eles. N a verdade, estão envolvidos num
conjunto de estados de fatos, de dados cujos com portam entos práti­
cos cotidianos não passam de tradução: traduzem o espaço potencial
das reações possíveis em função do que existe em termos inter-huma-
nos. Qualquer m odificação da constelação de pessoas (e portanto
dos traços familiares, das propriedades objetivas ou das disposições
incorporadas), da estrutura de co ex istên cia , pode levar a uma
transformação do com portam ento da criança. Mas nenhuma carac­
terística em si explica este com portam ento. A o contrário da c o m ­
preensão descontextualizada das causas do “ fracasso” ou do “ suces­
so", a reconstrução das pressões sociais relacionais concretas que

72
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

M e xercem sobre as crianças singulares procura restituir os deter-


nunismossociais relacionais deform a mais próxima da maneira com o
M- apresentam a elas.
t a mio observarem os várias vezes nos diferentes perfis, os proies-
m ires tendem , quando falam de casos particulares, a reter apenas um
traço, um elem en to da vida da criança (ser canhoto, ter sido o p e­
rado uma vez, ter um problem a de saúde...) ou da fam ília (fam ília
monoparental, pais desempregados que v iv e m co m a ajuda m ínim a
do Estado...), para co n v ertê-lo em causa do seu problem a escolar.
( lontra estas visões espontaneamente isolacionistas e absolutistas que
selecionam um traço — às vezes físico — , o isolam do co n tex to no
qual desempenha um papel e lhe conferem , de form a mágica, o
poder exclusivo de explicação, quisemos afirmar a primazia do todo
sobre os elem entos, das relações entre as características sobre as
características per se. E mais uma vez evocarem os N o rb ert Elias,
quando defende o procedim en to sintético (o u s in óp tico) que co n ­
sidera a especificidade das relações com plexas enrre diferentes ele­
mentos, contra os procedim entos exageradam ente analíticos e ato-
mistas. Nesta segunda via, elem entos considerados em configurações
de relações mútuas “ são abordados com o capazes de conservar suas
particularidades distintivas quando são exam inados isolada e inde­
pendentem ente de qualquer outro co n tex to "'.
E preciso, consequentem ente, ressaltar o fato de que o agrupa­
m ento dos perfis por remas — que parece v ir contrariar a lógica das
variações sobre os mesmos remas — operou-se co m a única preo­
cupação de dar ao leito r uma pausa para respiração. Assim sendo,
opeamos por uma m aneira particular, entre outras possíveis, de ju n ­
tar os perfis. Mais ou m enos com o nas experiências psicológicas com
imagens, em que, dependendo d o olhar, o in divídu o pode distin­
guir rostos ou um vaso, um jo vem ou uma velh a senhora, etc., nosso
agrupam ento é apenas uma entrada possível na realidade das c o n ­
figurações familiares singulares sociologicam ente construídas. Reuni­
mos casos na m edida em que distinguim os neles, particularm ente
bem, certos traços ou conjuntos de traços, mas isso não significa que
estes estejam ausentes dos outros perfis. A lé m disso, certos aspec­
tos presentes na prim eira parte (p o r exem plo, as práticas de escri-

71
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ra) são tratados apenas no interior dos perfis e nossas conclusões


evidenciarão outros tipos de relações entre as diferentes configura­
ções fam iliares (p o r ex em p lo, as diferen ças segundo o sexo do
aluno).

A E L U C ID A Ç Ã O DAS P A L A V R A S : À P R O C U R A DE IN D ÍC IO S

N ã o existem coisas importantes que, em certas


condições e em certos momentos, manifestam-
se apenas por sinais muito fracos? |...] E, enquan­
to juiz, ao fazer uma investigação sobre um assas­
sinato, você espera o quê? Que o assassino tenha
deixado sua fotografia e seu endereço no lugar
do crim e, ou vo cê d eve se contentar, necessa­
riamente, para descobrira identidade do crim i­
noso, com indícios em geral m uito frágeis e
insignificantes? N à o desprezemos, portanto, os
pequenos sinais: eles podem nos colocar na tri­
lha de coisas mais importantes4.

A ntes de tudo é necessário lembrar que a entrevista não deixa


transparecer uma informação que existiría previamente, em uma forma
fixa, com o um objeto, antes da própria entrevista. Entre o sociólo­
go e o “ discurso da entrevista” não existe a mesma relação que entre
o historiador e os arquivos. A s palavras não esperam (na cabeça ou
na boca dos entrevistados) que um sociólogo venha recolhê-las. Só
puderam ser enunciadas, formuladas, porque os entrevistados pos­
suem disposições culturais, esquemas de percepção e de interpreta­
ção do mundo social, frutos de suas múltiplas experiências sociais.
N o entanto, suas formas, seus temas, seus lim ites de enunciação
dependem também da própria form a da relação social de entrevis­
ta, que, neste caso, desempenha o papel de um filtro que perm ite tor­
nar enunciáveis certas experiências, mas que impede o surgimento
de outras que implicam cerras formas lingüísticas e desestimulam sis­
tematicamente outras ocorrências, etc. C o m o escreve N orbert Elias,
“o com ércio com os outros desperta n o indivíduo [...] pensamentos,
convicções, reações afetivas, necessidades e traços de caráter que lhe
pertencem, que constituem seu ‘verdadeiro’ eu e através dos quais o

74
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tecido das relações d o qual em erge e n o qual se inscreve se expri­


m e” 1. O trabalho s o cio lógico consiste, portanto, em tentar recons­
truir as formas de relações sociais que estão na origem da produção
de inform ações liberadas no âmbito de uma form a de relação social
especial: a entrevista.
Outra questão central: teríamos acesso, através da entrevista, à
práticas, ao real, à verdade destas práticas? Para nós é e vid en te que
só a observação direta das práticas perm ite considerá-las com a
im agem que o pesquisador forn ece ou que produz por sua própria
presença (problem ática teórica, ficha de observação das práticas,
condições da observação, o papel do observador na produção dos
com portam entos observados...). A partir d o m om en to em que esta­
mos tratando de discursos, não podem os pretender ter acesso às prá­
ticas. Isso porque, primeiro, existe aquilo que temos o hábito de cha­
mar, h oje, de “ efeitos de legitim idade”''. Q u an do estamos dian te de
um o b je to ou de uma prática cultural que acontece em um u niver­
so cultural diferen ciado e hierarquizado (o n d e alguns produtos são
mais legítim os que outros); quando, além disso, a pessoa que res­
ponde a uma pergunta referente a esses objetos ou práticas partici­
pa mais ou menos desse universo, com uma consciência mais ou
menos clara da dignidade ou da indignidade cultural de certos o b je­
tos, de certas práticas, podem os estar, então, diante de efeitos de
legitim idade. O entrevistado corre o risco de subestimar (o u de não
m encionar) as práticas que percebe com o menos legítimas, e de supe­
restimar as práticas que considera mais legítim as. O risco aumenta
quando — e é o caso desta pesquisa — a situação de entrevista, pela
maneira com o os entrevistados foram avisados (através de um bilh e­
te en via d o por in term édio da escola), pelos temas abordados ( l e i ­
tura, escrita ou escolaridade das crianças), co loca os entrevistados
em uma situação de tensão em relação ao que consideram com o n or­
mas legítimas. Para muitos pais, fom os identificados com o profes­
sores preocupados em con h ecer o m eio social onde v iv e a criança.
Da m esma form a, muitas crianças entrevistadas querem agradar ao
entrevistador, e apresentam-se com todas as qualidades possíveis.
E necessário, assim, decodificar a entrevista com o o resultado de
um processo de construção, pela criança, de uma imagem de si e de

75
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

sua fam ília que ela pensa ser, socialm ente, a mais c o n ven ien te pos­
sível aos olhos de um adulto estranho que v e io entrevistá-los d en ­
tro da escola, com a autorização do professor e do diretor.
C o m o enfrentar uma situação desse tipo? D evem os considerar
que a pesquisa é deturpada em p rin cíp io e que não poderem os
nunca atingir a verdade social dos entrevistados? N a verdade, as c o i­
sas não são tão simples assim. A n tes de tudo, uma parte d o traba­
lho (da profissão) do entrevistador consiste justamente em lim itar
o m áxim o possível os efeitos de legitim idade através de sua parti­
cipação ativa na entrevista e ofuscando sua pessoa em prol da pala­
vra e da experiência dos entrevistados. Isso im plica não colocá-los
em situação de hum ilhação cultural e, ao contrário, isentar de culpa
os que se autocensuram durante a entrevista por expressões do tipo:
“ E verdade que eu devia ter feito isso” , “ N ã o sou m uito e vo lu íd o ” ,
ou com entonações que demonstram que eles “ se sentem dim in u í­
dos” diante das perguntas. E tam bém os entrevistados n em sempre
estão na defensiva durante a entrevista; n em sempre estão preocu­
pados em mostrar uma boa imagem ou falar a coisa certa. E mesmo
quando chegam a fazê-lo, isso nos fornece uma im portante in for­
mação sobre sua relação com a cultura legítim a e com a escola. Mas
uma entrevista nunca é hom ogênea, e m esm o o entrevistado mais
preocupado em dar o que considera com o “ respostas corretas” m os­
tra-se mais eloqüente a respeito de cerras práticas (o que denota que
controla certas práticas m elhor do que outras, que é mais ou menos
apaixonado por esse ou aquele tem a), pode parecer dizer “ branco”
pelo discurso e “ n egro” pela entonação e as mím icas que faz quan­
do enuncia “ branco” . Para aquele que quer vê-las, m il pequenas c o i­
sas traem os graus de fabulação dos entrevistados sobre os d iferen ­
tes pontos abordados7.
A lé m disso, não raro há outras pessoas presentes durante a entre­
vista. M arido e mulher, mãe e irmã, marido e cunhado, pais e filhos
podem estar juntos durante um certo tem po, em seguida alguém sair
durante a entrevista, etc., e as variações do discurso, dependendo da
presença desse ou daquele protagonista da cena familiar, deixam
transpareceras contradições, as fabulações, as omissões . Finalmente,
e m uito importante, nos outorgamos a possibilidade de cruzar as

76
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

informações oriundas dos professores, da criança (entrevistada sozi­


nha na escola) e das famílias: a m ultiplicidade dos índices e das
informações com paráveis permitiu reconstruir pacientem ente co n ­
textos sociais e razões sociais pertinentes para as quais o efeito de legi­
timidade funcionou em determ inados m omentos.
C o m o conclusão, fica claro que o problema não é, definitivam en­
te, saber se os entrevistados disseram ou não a “verdade", mas tentar
reconstruir relações de interdependência e disposições sociais prová­
veis através das convergências e contradições entre as informações ver­
bais de uma mesma pessoa, entre as informações verbais do pai e as
f t imecidas pela mãe ou pela criança, entre as informações verbais e as
paraverbais, contextuais ou estilísticas, etc. C o m objetivos bem d ife­
rentes, o m étodo de trabalho do sociólogo comporta, no entanto,
certa analogia com o do d etetive que busca indícios, “ detalhes reve­
ladores” , confronta-os, testa a pertinência de uns em relação aos
outros, para conseguir reconstruir uma realidade social". Portanto, é
enfrentando a questão da entrevista com o discurso não-transparente
que poderemos ter uma oportunidade de reconstruir as práticas efeti­
vas. O u melhor, as disposições sociais efetivas que estão no princípio
dos discursos proferidos.

O elo impossível

H avia algo de est ranho, indescritível, uma coral


desorientação"'.

N o s perfis fam iliares aqui reunidos, que dem onstram um elo


impossível entre o universo fam iliar e o universo escolar, os pais são
originários de países estrangeiros e têm uma relação d ifícil co m a
língua francesa. Porém , a origem estrangeira e o frágil d o m ín io do
francês n ão são suficientes para explicar as situações delicadas dos
filhos (v e r os Perfis 13,14 e 23, on de estas duas características não
im pedem o bom desem penho escolar). O s trabalhos sociolingüís-
ricos estabelecem bem que não existe uma relação de casualidade
simples entre “ língua” e “ dificuldades escolares” . C o m o escreve
John Gum perz para o caso dos Estados U nidos,

77
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

... se se tratasse apenas de diferenças linguísticas, poderiamos espe­


rar que crianças de cultura chinesa e japonesa tivessem maiores difi­
culdades, dada a diferença enorme entre seu sistema gramatical e
o inglês, Mas não é o caso. As estatísticas concernentes aos desem­
penhos escolares mostram que os imigrantes chineses que chega­
ram recentemente da Ásia conseguem, em geral, se sair melhor que
os que nasceram nos Estados Unidos11.

Q u an do falam os de língua ou de cultura, passamos im ediata-


m en te a Im pressão de que ex istem fron teira s in tra n sp on íveis
en tre as diversas línguas e culturas. Mas é preciso lem brar, c o n ­
tra o em pirism o, que os esquemas sociais m entais, as form as
sociais ou os processos sociais mais fundam entais ( por e x em p lo ,
os processos de o b jetiva çã o , de c o d ific a ç ã o , de teorízação, de
form alização, de racionalização, de bu roeratização, de escolari-
zação...) transparecem, na m aior parte das vezes, nas línguas, nos
costumes, nos traços culturais próprios aos grupos sociais, so b re­
tudo quando estes são socialm en te d e fin id o s '2. Dessa form a, dois
seres sociais escolarizados em sociedades m u ito diferen tes sob o
ângulo de suas tradições nacionais, culturais, lingüísticas, p o lít i­
cas, religiosas, etc. estão mais p róxim os en tre si do p o n to de vista
c o g n itiv o que os membros não-escolarizados de suas respectivas
sociedades11.
A articulação das configurações fam iliares e do universo esco­
lar, nesta série de perfis, é difícil de se realizar por conta da grande
distância cultural ("cultural" d eve ser en ten d id o aqui n o sentido
dos processos, das formas sociais ou dos esquemas sociais m entais)
que os separa. O s pais, às vezes, estão v iv e n c ia n d o uma ruptura em
relação aos universos ocidentais da escrita (escola, burocracia adm i­
nistrativa...). Podem , com o reação a seu universo social atual, opor
uma legitim idade fam iliar (m oral, religiosa) à legitim idade da ins­
tituição escolar (a fam ília e seus valores podem inclusive tornar-se
a única referência em relação a um mundo exterior julgado mau e
hostil em sua globaiidade), operando dessa maneira um fecham ento
da fam ília sobre si mesma. Podem , fin a lm en te, por um trabalho
de interpretação Je um universo cujos fins e intenções lhes pare­
cem incom preensíveis e ao mesmo tem po hostis, estar desen vol­

78
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ven do uma con cepção m aquiavélica do fu n cion am en to da escola


francesa considerada deliberadam ente segregacionista em relação
aos filhos de estrangeiros.
E mais difícil inserir todas estas configurações familiares, enquan­
to redes de relações de interdependência, nas formas sociais leg íti­
mas, d o que as fam ílias mais despossuídas, mas que não são oriun­
das da imigração. A s experiências sociais anteriores vividas pelos
adultos em universos culturais religiosos, administrativos, políticos,
econ ôm icos m uito diferentes não as ajudam a se orientar com fa ci­
lidade nas novas form as de relações sociais. Estes percursos de im i­
gração são casos dotorosos de desenraizamento ou de adaptação d ifí­
cil a novas situações sociais. R evela m m uito particularm ente o que
escapa ao olhar com um quando tudo parece ser evid en te, ou seja,
as condições históricas necessárias para que as formas de vida social
possam ser vividas sem tantos choques.

♦ Perfil L: A distância em relação aos universos objetivados,


MeMi M ., nascido nas ii/ias Comores, África, com três anos de atraso na
escolaridade (chegou recentemente à França), ohteve 3,4 na avaliação.

Quando fomos marcar a entrevista, o pai nos recebeu vestido com


calça social e camisa branca. M u ito cordial, parecia estar a par do
bilh ete que lhe encam inham os por interm édio da escola. N ã o sabe
o n om e do professor, só o do diretor da escola. N a casa ressoava uma
música reggae, razoavelm ente alta.
N o dia da entrevista fom os recebidos p elo pai na presença de
um am igo que assistiu a toda entrevista sem intervir. O pai estava
tom ando conta dos dois filhos mais novos da família. Durante a entre­
vista, chegou um cunhado que era professor prim ário nas ilhas
C om ores e que falou muito, a pedido do senhor M ., a princípio ("E le
vai explicar mais m elhor qui eu” ), e, em seguida, cortand o-lh e
oportunam ente a palavra. Foi mais d ifícil obter a palavra do senhor
M . enquanto seu cunhado esteve presente. N a verdade, muitas pes­
soas passaram pelo apartam ento durante a entrevista, entre as quais
um amigo, o cunhado e uma vizinha que entrou diretam ente sem
tocar a cam painha, dizendo: “O i, pessoal!". Q u ando a mulher do

79
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

senhor M . vo ltou (estava em um curso de alfabetização), ficou um


pouco conosco e depois, rapidamente, fo i para a cozinha preparar
a com ida. (Estavam no período de ram adã*.)
Esta fam ília é originária das ilhas C om ores. O pai freqüentou
durante 3 anos a escola m aom etana e som ente por 3 anos a esco ­
la com um o n d e se ensinava o francês (um a das duas línguas in te r­
nacionais, ju n to com o inglês), pois o trajeto entre sua casa e a
escola era lo n go demais e os m eios de transporte, precários. Seu
cunhado observa que “ ele se vira m uito b em ” , ainda que sua pouca
escolarização seja “ uma desvantagem para ele poder ajudar os
filhos". Seu pai é operário especializado na França, lê apenas árabe,
sua mãe nunca trabalhou e só lê árabe.
O senhor M . fala correntem ente a língua com oriana e se expri­
me em francês com grande dificuldade nas construções de frases e
no vocabulário. Lê mal o francês (sobretudo do ponto de vista da
com preensão), lê a língua com oriana escrita com a ajuda d o alfabe­
to francês ou árabe, e lê o árabe literário, sobretudo o A lco rã o .
A prendeu nas ilhas Com ores a profissão de alfaiate, mas não possui
diplom a profissional. N a ocasião estava desempregado, depois de ter
trabalhado aqui e acolá para “dar de com er” a seus cin co filhos. Tra­
balhou em vários lugares com o “ trabalhador braçat", “ auxiliar de
pedreiro" ou “ lavador de pratos no N o v o te l durante 18 meses". A s
vezes trabalhava apenas 1 mês, outras 15 dias, alternando períodos
de desemprego e de pequenos empregos. Está na França desde 1984.
A mãe de M eh di só freqüentou a escola maometana (p o r cerca
de 4 anos). Sabe 1er o árabe mas nem sempre com preende o que lê.
Isso parece ser consequência do ensino m aometano, que insiste mais
na organização e recitação que na compreensão dos textos lidos. T em
também dificuldades para escrever, pois na escola aprendeu prim ei­
ro a 1er e depois a escrever. Estava freqiientando, na ocasião, um curso
de alfabetização em uma escola próxima, para onde seu marido disse
tê-la “enviado", o que caracteriza o tipo bem distinto de divisão sexual
dos papéis domésticos n o casal. Ela veio, parece, das ilhas C om ores

* Período d o ano considerado sagrado pelos muçulmanos, durante o qual se jejua desde o
amanhecer até o pôr-do-sol. (N .T .)

80
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

em 1989 ou 1990, com M ehdi, seu filh o mais velh o de 13 anos. Nunca
trabalhou, nem nas C om ores nem na França, mas disse estar à pro­
cura de um em prego. A mãe da senhora M . v iv e na França, não cra-
balha e lê árabe. Seu pai faleceu há muito tem po e ela n ão sabe qual
era sua profissão. O casal tem cin co filhos (quatro meninos e uma
m enina), dos quais dois são ainda bebês. Os mais velhos têm 13 anos
(M e h d i, na 23 série), 9 anos (na 1° série) e 8 anos (na pré-escola).
O s M . são antes de tudo um caso de fam ília que n ão possui um
grande núm ero de práticas “ociden tais" de escrita. A tra vés de uma
trajetória de im igração, esta fam ília v iv e um em bate entre u n iver­
sos objetivados de culturas, e se encontra totalm ente desprepara­
da, pela sua situação de origem , para apropriar-se deles. E não é por
acaso que, para o senhor M . e seu cunhado, parece im portante
explicar bem, além das perguntas que lhes fazemos, com o as coisas
acontecem nas ilhas C om ores, do p onto de vista da organização da
vid a social e econôm ica. Esse é um p o n to central da entrevista, que
revela uma oposição ( “ T em muitas coisas que não são nada p areci­
das” ) entre dois universos culturais mais ou menos escolarizados, buro-
cratizados, mais ou menos tecidos por formas sociais de escrita.
O senhor M . e seu cunhado (que tem um diplom a técn ico e foi
professor prim ário nas ilhas C o m o res) insistem m uito em dar o tes­
tem unho de seu espanto e de sua confusão diante do co n ju n to de
docum entos que é preciso ter na França. N este aspecto estão v iv e n ­
do uma diferença radical entre seu país e a França. Q u alificand o
seu país com o “su bdesen volvido", n o estágio de “ Idade M é d ia ” ,
sem estradas asfaltadas, sem eletricidade nem telefon e (e x c e to nas
“ grandes cidades"), ressaltam a fraqueza da administração e, c o n ­
sequentem ente, os poucos docum entos que circulam.
D escrevem seu país co m o bem m enos burocratizado, m enos
cod ifica d o e, ao m esm o tem po, bem m enos organizado por práticas
de escrita e dos docum entos oficiais (diplom a, hollerith, carteira de
trabalho, certifica d o de nacionalidade, certidão de nascim ento,
recibo, talão de cheques, cédula de identidade, carteira de seguri­
dade social, quitação de conta de luz, prova de residência...), m uito
mais ligado à palavra dada, ao en gajam en to puramente oral e pes­
soal: “ N u m tem nenhum a instituição nos C om ores onde v o c ê vai

81
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

e eles vão re pedi uma prova de residência, eles sabem que o cê é


com oriano, o cê é com oriano. V o cê diz que é de tal cidade, que é de
Cal cidade e pron to"; “ N u m te pedem cédula de identidade, só se
vo cê vai n o banco, num têm certificado de nacionalidade: ocê é
com oriano, ocê é com oriano. (R isos.)"
Da mesma form a, o senhor M . com preendeu rapidam ente que
o fato de não possuir um diplom a recon h ecen do o ficia lm en te suas
com petências era fatal na França, enquanto o diplom a não tem o
mesmo papel determ in ante em seu país natal. O senhor M . apren­
deu uma profissão na prática (v e n d o fazer), nas formas sociais orais
práticas e não em formas escolares de relações de aprendizagem, e
nos diz que é capaz de mostrar que “ sabe fazer", mas que está cons-
cience de que isso não é suficiente na França: “ O d iplom a é quan­
do remos a profissão. Se alguém m e pediu para fazer alguma coisa,
se me pedissem: ‘O c ê vai tirá as m edida e fazê uma calça’ , eu faço,
ou camisas, ou coisas assim, mas não ten ho certificado” .
A língua com oriana não é codificada, ou seja, não passou por
tod o um trabalho h istórico de dicionarização, de pesquisas gram a­
ticais, com o explica o cunhado d o senhor M .: “ N ã o é nem mesmo
uma língua, porque não teve de fato estudos sobre ela, sobre sua gra­
mática, conjugação, tudo isso. Tem gente com o vocês que são, sei
lá, sociólogos, franceses que chegam a fazer estudos desta língua. A c h o
que parece que, recentem ente, ouvi falar que um francês publicou
um dicion ário francês-com oriano, mas antes não tinha isso. Se
v o c ê queria escrever para sua mãe ou sua fam ília, v o c ê escrevia no
dialeto com orian o com as letras...” .
O senhor M . declarou que é ele (sua mulher está fazendo atual­
m ente um curso de alfabetização) que se encarrega dos docu m en ­
tos, mesmo que isso consista em pedir ajuda a amigos ou vizinhos,
quando não com preende certos docum entos que deve preencher ou
quando precisa escrever cartas, preencher cheques... Tiran do os
docum entos obrigatórios, o senhor M . não utiliza de form a alguma
a escrita, pelas razões expostas acima, em sua vida cotidiana. N ã o
possui um caderno de contas (e para que um caderno quando esta­
mos desempregados e sempre em situação econôm ica precária?), não
escreve lembretes, listas de coisas para fazer ou lista de compras ( “ A s

82
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

vezes vo u até a loja e assim que en tro ela m e diz” (sua m ulher): ‘A h ,
tem nada, alguma coisa’ , mas é tarde dem ais" (ris o s)), não tem
agenda, não marca nada n o calendário ( “N ão, eu tento me lem brar"),
não anota recados n o telefon e, e nunca teve um diário. Escreve só
algumas cartas em com orian o, usando o alfabeto francês ou árabe.
Seus diferentes documentos administrativos ficam guardados em pas­
tas mas em uma ordem, sem dúvida, não muito rigorosa, pois o senhor
M. explicou que passa muito tempo procurando um documento: “Jogo
em qualquer lugar"; “ Se continuar a aumentar, em tod o canto, até,
se vo cê for ver, n o armário, tem algumas vezes, se alguém pediu nos­
sos docum entos, eu sei que vou, o docu m en to está lá , mas não sei
onde botei, procuro em tudo quanto é canto o dia inteiro, mas é
d ifíc il". Dado o grau de racionalização da atividade social e e c o n ô ­
mica d o universo de o rige m 14, com preenderem os que as técnicas de
escrita que perm item gerir de form a mais racional as atividades
domésticas se mostram co m o a última preocupação do senhor M .,
que parece m uito espantado ao saber que o entrevistador faz listas
de compras. A reação de incom preensão de M eh d i quando lhe per­
guntamos se escreve bilhetes a seus pais para dar-lhes algum reca­
do mostra que essa não é uma form a habitual de intercâm bio no
in terior de sua fam ília.
O senhor M . lê m elh or o árabe que o francês. Raram ente c o m ­
pra, portanto, algum jorn al, pois não com preende tudo o que está
escrito, ainda que “ se interesse muito pelo noticiário". Nunca lê revis­
tas, nem as de programas de televisão, e dela só assiste ao n o ticiá ­
rio e a alguns film es. N ã o lê histórias em quadrinhos, nem rom an­
ces, ou livros práticos, e não possui uma estante (seus livros estão
num arm ário). Q u ando perguntamos ao senhor M . se ele ou sua
mulher lêem histórias para seus filhos, com eçou a rir, mostrando com
isso que essa forma de interação pais-filhos, rotineira em muitas fam í­
lias francesas, lhe era totalm en te estranha.
De fato, o senhor M . lê textos ligados a práticas m ilitantes, re li­
giosas ou políticas. Possui livros religiosos em árabe e lê “ quase
todos os dias” o A lc o rã o , que consegue com preender (seu cunha­
do esclarece: “ L e io o A lco rã o , mas não com preendo. Mas ele, isso
ele até co m p reen d e"). Parece ter lido m uitos livros “ socialistas” ou


SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

“ comunistas", segundo seus próprios termos (L e n in , M arx, Engels,


M a o Tsé-tung), e d efin e-se com o um m ilitan te político: “ Sou um
hom em de esquerda” ; “ E um verdadeiro m ilitan te” , diz seu cunha­
do. Lutou, m uito jo vem , enquanto m em hro do Partido Socialista
das ilhas Com ores, pela independência de seu país, e passou onze
meses na prisão: “ É o prim eiro partido de oposição das Com ores, é
o partido socialista das Com ores, isso fo i antes, ele foi criado em
1968, e existiu até 75, e aí até a independência das C om ores” . Sua
maneira de pensar se mostra inteiram ente estruturada por estes
dois aspectos de seu engajamento: um engajam ento muçulmano, que
o leva a ensinar o A lco rã o aos domingos à tarde a um gm po de jovens
(qu e incluem seu filh o M e h d i) e adultos, e um engajam ento polí-
rico voltad o para o marxismo. O senhor M . é um tipo de autodida­
ta que passou pelo m ilitantism o religioso e p o lític o e que sustenta
um discurso n o qual sempre se misturam referências livrescas sobre
seu país — históricas ( “ Ele é realm ente capaz de te contar a histó­
ria de Castro ou de qualquer outra pessoa d o mundo, mais do que
pessoas com o nós, que sabem 1er o n oticiário” ) e políticas — e expe­
riências pessoais. Fora da entrevista, o senhor M . nos contou sobre
a associação dos com orianos que acaba de criar (e da qual é presi­
d en te) para ajudar seus com patriotas e seus filhos a “ se darem bem ”
na escola ou em outras atividades, mostrando dessa form a que está
adaptando seu m ilitantism o de origem à situação presente.
O s pais exercem sua ação educativa essencialmente no campo
do controle do com portam ento moral, que tem primazia sobre qual­
quer outra dimensão. O pai não é, portanto, particularm ente seve­
ro em questões estritamente escolares, ainda que não ignore as d ifi­
culdades de seu filh o em francês e em matem ática. Ficou bravo
quando soube que o próprio M eh d i assinava os cadernos em seu lugar
para evitar sua raiva e as surras que os maus resultados pudessem pro­
vocar. N o entanto, disse que não toma nenhuma atitude especial quan­
do constata que as notas não são boas. Eventualm ente faz uso da pro­
messa de um presente com o forma de encorajar o filh o: “ N ã o vou
bater nele, talvez depois, eu digo que precisa fazer um esforço para
aprender, às vezes digo que vou trazer bicicleta ou coisas assim, para
encorajar ele a estudar” . A s crianças fazem sozinhas as lições de

84
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

casa, e o pai confessa calm am ente que não sabe se realm ente fazem
ou não: “ N ã o sei se estão fazendo outra coisa, não sei nada, de ver-
dade...” A liás, o professor de M eh di nos diz: "T en h o a impressão que
ele irão fez mais as lições em casa... Ele aprende muito pouco das lições” .
O pai justifica que não ajuda os filhos, porque tem m edo de ajudar
“ mal” . M eh di fica na escola até às 18 horas*, salvo n o período do
ramadã. Q uando tem dificuldades para fazer as lições, pede ajuda ao
rio. “ A gente pergunta pro meu tio porque às vez meu pai sai, não
está, saiu.” Durante as férias, as crianças ficam em casa ou brincam
pelo bairro, e o senhor M . diz que só fazem lições se a escola pede
(m ostrando assim que não conh ece todos os pressupostos tácitos da
com petição escolar, que estima, caso a escola não dê deveres duran­
te as férias escolares de verão, que seja “ bom ” , por exem plo, com ­
prar cadernos de férias para as crianças).
O investim ento escolar do pai é portanto bem fraco. A in d a que
consciente de que a escola e sobretudo o diplom a (que ele não pos­
sui) sejam importantes para se ter uma boa profissão na França, suas
práticas efetivas indicam mais uma preocupação moral de conjunto
do que uma preocupação especificam ente escolar. N o entanto, gos­
taria que seus filhos não fossem com o ele e que prolongassem os estu­
dos, deplorando ao mesmo tempo sua incapacidade de ajudá-los a nível
escolar: [a escola] “ A h , é, m uito importante, porque, fico m uito cha­
teado. T en h o muita pena de não poder ir aprender na escola. Porque
hoje eu vejo, a gente precisa ajudar as crianças na escola, senão não
consegue nada. Sem as escolas, não podem os ter médicos, cientistas,
coisas assim. A c h o que as crianças conseguem aprender alguma coisa,
assim não vão ser com o a gente. N ã o somos nada, não quero que as
crianças fiquem como eu. Espero que ele aprenda uma profissão, se as
crianças têm alguma coisa, é b om ” .
Deixa o filh o assistir à televisão quando volta da escola e só a proí­
be por razões de saúde ou morais (e não por razões escolares, classi-
cam ente evocadas pelos pais atentos à hora de dorm ir em função das
aulas). Se o senhor M . não gosta que M eh di assista durante muito

* Nii França, existe a possibilidade de as crianças ficarem na escola após as aulas numa a ti­
vidade chamada "horário de estudos livres” , onde fazem as lições e podem ser ajudadas
eventualm ente por algum assistente d o professor ou estagiário. (N .T .)

85
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tempo à televisão é porque, segundo ele, íaz mal para os olhos {e le


nos diz que é desde que estão na França que um de seus filhos preci­
sa usar óculos, e associa o taro à prática de ver televisão). O senhor
M . também limita a prática televisiva de seus ti Ihos por razões morais:
não podem assistir a film es ou programas onde se vêem cenas “ por­
nográficas" ou violentas. Ele próprio e sua mulher não vêem filmes
“ m eio fortes", mas às vezes vêem filmes violentos. Da mesma forma,
se as crianças descem para brincar em baixo, peru.) do prédio, a mãe
não gosta muito, porque não quer que sigam “ maus exem plos” (q u e­
brar, roubar, cuspir nas pessoas...). O senhor M . também não gosta
que seus filhos saiam muito para brincar porque não pode ver com
quem estão. Insiste também no fato de que as crianças não fazem muito
barulho no apartamento, e explica que andam descalços para não fazer
barulho quando pulam. A o ressaltar por várias vezes a questão dos
com portam entos “corretos” ou “ incorretos” de seus filhos, o senhor
M . prova sua profunda ligação com a inculcação de um cthos.
Insiste bastante também n o fato de que as crianças devem se cur­
var à vontade dos pais ( “A q u i, entre os franceses, dizem que a partir
dos 18 anos as crianças podem fazer o que quiserem. Entre nós não é
assim, pois mesmo eu, meu pai, estou sob as ordens de meu pai, num
posso fazer alguma coisa que ele não quer” ), e que não cabe a eles “deci­
dir fazer alguma coisa” . R econhece ficar atento para que eles não que­
brem nada, não roubem, não façam ma! a ninguém, “ não joguem
pedras", etc. C hegou até a pedir a um professor do maternal para
“ bater” n o pequeno se ele cuspisse nos seus coleguinhas ou n o profes­
sor, pois o viu fazê-lo uma vez em casa. É sempre com a preocupação
de manter sua autoridade que o pai deixa de brincar com os filhos, por
medo de perder o “ respeito” deles. Q uer ser levado a sério e inspirar
medo ( “ E do m edo que vem um certo sentido de respeito” ) quando
diz alguma coisa, e a brincadeira não se presta, segundo ele, para
demonstrar sua autoridade: "Pois se estão acostumados a brincar, se
um dia você diz para ele ‘Pare de fazer isso! ele diz, ‘ Eu não paro’ . Por
exem plo, a mãe pode ‘ inventar uma história’ para eles irem dormir,
mas ele não, porque, explica, ‘se eles não tiverem medo de m im não
irão se deitar' ” . Ele só pode brincar com os mais velhos (que já "co m ­
preenderam” sua autoridade), mas não com os menores15.

86
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

U m fraco grau de escolarização, práticas de leitura essencialmen-


te ligadas ao A lc o rã o , que pouca relação têm com a leitura escolar
(sem dúvida, não é por acaso que o professor nota que M eh di lê “ cor-
refam en te", oralm ence, mas que tem dificuldades "assim que pas­
sam para a parte de com preensão” ), fracas práticas domésticas da
língua escrita e um déb il processo de racionalização das atividades
domésticas (o filho "esquece os cadernos, não sabe onde estão” , segun­
do o professor), uma vigilân cia parental moral e não especificam en­
te escolar, situação eco n ôm ica instável e modesta, um precário
d om ín io da língua francesa pelos pais, chegada recente ao territó­
rio francês de M eh d i (agosto de 1990), que tem dificuldades em se
exprim ir claram ente durante a en trevista16 — o conju n to c o m b i­
nado dessas dificuldades (d o ponto de vista d o universel escolar) per­
m ite-nos en tender o “ fracasso” de M eh d i, visto na escola co m o um
aluno “d ifíc il de se entender” , “ desinteressado” , “ que não estuda em
casa” , e “ com problem as de lógica e de com preensão em leitura” .
A descrição fina da configuração fam iliar da criança perm ite real-
m ente ver que o “ fracasso escolar” de uma criança não está neces­
sariamente associado à “ omissões dos pais” , mas, neste caso p reci­
so, a uma distância grande demais em relação às formas escolares
de aprendizagem e de cultura.
N o entanto, o fato de ter um pai m ilitan te e que leu bastante,
de ter uma mãe que frequenta um curso de alfabetização e um tio
que foi professor, em um co n tex to em que o co n trole d o com por­
tam ento moral desponta com o relativam ente estrito, em que a lu ci­
dez concern en te à im portância da escola n o futuro profissional foi
adquirida e em que a frustração escolar e profissional dos adultos os
leva a projetar as esperanças sobre os filhos (cf. o que disseram
sobre o futuro dos filhos, mas igualm ente a von tade associativa de
ajudar as crianças com orianas a “ se darem bem ” ), deixa en trever a
possibilidade de condições mais favoráveis de “ ê x ito ” na escola pri­
mária para os dois irmãos mais novos. A configuração fam iliar de
socialização não se forma nunca definitivamente, e as diferentes crian­
ças oriundas de uma im igração nunca estão todas na mesma posi­
ção. O fato de ser o mais velh o, co m o M eh d i, não favorece e vid en ­
tem ente seu destino escolar.

87
SUCESSO ESCOLAS NOS MEIOS POPULARES

♦ Perfil 2: Uma prisão familiar.


Latifa S ., nascida em Bron, com I ano de atraso na escolaridade (repe­
tiu a pré-escola), obteve 3,1 rur avaliação.
Akha S., nascida em Bron, sem repetência escolar, obteve 4,1 m avaliação.

Chegam os meia hora atrasados à casa desta fam ília argelina que
não estava nos esperando: o encontro "m arcado" por telefone tinha
sido esquecido, e o bilhete transmitido por intermédio da escola ainda
estava nas mochilas das crianças. Esta imprecisão na forma de gerir
os encontros já se mostra com o um sinal da relação com o tem po
dos pais17.
Entramos em um apartamento de sala e três quartos onde havia
uma fileira de crianças (6 ao m enos). A mãe, vestida em trajes tra-
dicionais, nos abriu a porta, mas esperava o marido, que estava para
chegar. S entim os um am biente estranho cuja razão só com preen-
derem os mais tarde, durante a entrevista. De fato, todas as criam
ças estavam na sala, o tempo estava bom, vím os muitas crianças brim
cando em baixo dos prédios e não h avia aula naquele dia... P o rq u e
será que elas não estavam lá fora?
A entrevista aconteceu em m eio a m uito barulho e com todas
as crianças em torno de nós. Ficamos sentados ao redor da mesa. O
menor, que tam bém é o mais barulhento, parece poder fazer o que
quiser, até que a m ãe ou o pai lhe dêem um tapa ou o “ em purrem ” .
N u m determ inado m om ento, desfaz, em baixo da mesa, os laços de
nossos sapatos, e quando seu pai sai, sobe na mesa e tenta puxar o
m icrofone d o gravador. Durante uma parte da entrevista, Latifa e
Aücha (ambas da mesma classe) estão sentadas em volta da mesa e
A ïc h a tenta, algumas vezes, 1er nossas perguntas. O pai distribui tapas
ou bate nelas com o lápis quando, de vez em quando, respondem
em seu lugar. V isivelm en te, não suporta que tom em a palavra sem
sua permissão, e quando, por duas ou três vezes, dirigimos, em sua
presença, a palavra às meninas e não a ele, o pai desviou o olhar
mostrando seu descontentam ento.
O próprio estilo da entrevista quase constituiu a informação c e iv
trai em relação à pesquisa: tratou-se de uma conversa picotada,
interrom pida, barulhenta, que ressaltou o fato de os pais não esta-

88
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

rem acostumados a esse ripo de relação com unicativa. O "barulho


de fu n d o" durante a entrevista, que quase todo o tem po se tom ou
um hurburinho, não parou. O u vim os as crianças falarem , gritarem,
berrarem, brigarem . C o rta va m tod o o tem po a palavra do pai ou da
mãe, que foram obrigados a parar de falar para repreender algum dos
filhos em voz alta. Se acrescentarmos a dificuldade dos pais de c o m ­
preender o que estávamos falando e de dom inar o francês, pode­
mos im aginar quase fielm en te a form a co m o se desenvolveu o que
d ific ilm en te podem os cham ar de uma “ en trevista” . Porém , isso
indica que tínhamos razão em fazer essas entrevistas na casa dos entre­
vistados e de fazer anotações etnográficas im ediatam ente após sair­
mos da entrevista. Foi ali que com preendem os a configuração fam i­
liar em seu fu n cion am en to banal e em sua maior estraneidade.
Essa fam ília v e io da A rg élia . O senhor S., 44 anos, vem de uma
fam ília analfabeta de C on stan tine, cu jo pai era operário agrícola e
a mãe sem profissão. A senhora S., 38 anos, perdeu os pais quando
tinha 12 anos. Eram lavradores e analfabetos. O senhor S. freqüen-
tou a escola na A rg élia , segundo ele, dos 6 aos 18 anos, mas duran­
te a entrevista tivem os dúvidas sobre o tem po de sua escolarização.
C h egou à França com 22 anos, depois de ter trabalhado co m o
pedreiro, e nunca ficou desem pregado: fo i adm itido prim eiro em
uma fábrica de am ortecedores, e a partir de então com o operário
numa fábrica de papéis de parede, on de está até hoje. Sua mulher
chegou à França há 12 anos. Frequentou a “ escola da R epú blica”
dos 6 aos 9 anos. A o tod o, o casal tem 8 filhos, 6 m eninos e 2 m en i­
nas: um rapaz de 22 anos, que trabalha com o pedreiro, outro de 14
que está na 6a série (2 anos de atraso), um outro de 10 que está na
4a série, duas meninas, uma de 9 (L a tifa ) e outra de 8 anos (A ïc h a ),
que estão na 2a série, um m enino de 6, que está na pré-escola, um
outro de 4 anos, que freqüenta o m aternal, e um últim o de 3 anos,
que também está no maternal. O filh o mais velh o não mora mais
co m os pais, mas de qualquer form a são 9 pessoas, viv e n d o em um
apartam ento de 3 quartos,
A pesar de estar há 22 anos na França, o pai fala mal e não sabe
1er nem escrever o francês. A mãe só sabe alguns rudim entos de le i­
tura em árabe. A ïc h a e Latifa têm poucos exem plos em casa do que

89
SUCESSO ESCOLA* NOS MEIOS POPULARES

concerne a uma cultura corriqueira da escrita. É o filh o mais velh o


de 22 anos quem passa norm alm ente à noite, depois do trabalho,
para cuidar dos docum entos da casa. A n tes, o pai disse, eram seus
amigos que faziam isso, mas agora que seu filh o é grande, ele é
quem ficou encarregado dos docum entos da casa: “ A go ra que meu
filh o é grande, é ele que vai se virar para preencher os papéis” . Ele
observa que seu segundo filh o de 14 anos e mesmo o de 10 com e­
çam a ajudar (" A h , sim, ele é in teligen te, faz tudo, o de 10 anos,
um m enino legal, sim !” ), e fala deles orgulhoso. Conta também orgu­
lhoso que nunca te v e de recorrer a uma assistente-social para
ajudá-lo a p reencher os papéis: “ N u n ca na minha v id a ” . Preenche
sozinho seus cheques e guarda os docum entos da família, mas são
as crianças que escrevem os bilhetes para a escola.
O senhor e a senhora S. tam bém não cultivam hábitos racio­
nais e calculistas de fazer listas, agendas, livros ou cadernos de con ­
tas, ou utilizar calendários, lem bretes, fazer anotações antes de
falar no telefon e: ( Irritado com as perguntas): “Ts ts ts ts ts, hum hum
hum, n ão marcamos nada, hum hum hum, nadinha” . Pelo contrá­
rio, o pai descreve, às vezes agressivam ente, os hábitos que deixam
pou co espaço para se prever o futuro. N ada é escrito nem calcula­
d o qu an to ao o rçam ento fam iliar: “ Vam os no banco e tiramos por
exem p lo 3 000, 4 0 0 0 francos (600, 800 reais), colocam os tudo na
casa, acaba, passamos no banco, não marcamos nada, tem o alu­
guel, a gente paga, tem as televisões, tá pago, vamos pagá” . A liás,
o senhor M . sublinha várias vezes que “ eles” , os árabes, não an o­
tam esse tip o de coisas. “ A h , não, nós, os árabes, não fazemos este
tipo de coisa." Para ele, anotar os gastos significa não ter c o n fian ­
ça em alguém e v ig ia r quem gasta quanto. Isso é incom patível
co m a con cep çã o que tem da fam ília. " A gente num é... N ó is esta-
m o todos junto, com er em casa, si priciso, eu, eu vô e pego 100
francos ou 200 francos, 300 francos, minha mulher precisa c o m ­
pra, e t c . ..., si sobrô, sobrô, si num sobrô, num sobrô, nunca faze­
mos isso, a gente num faz isso." A lé m do mais, diz, escrever não
serve para nada, pois, de qualquer jeito , vão gastar a mesma quan­
tia. (C o m um tom de evid ên c ia ): “ N u m serve pra nada” . (Irrita­
do): “ Pra que qui serve? E, sei, eu pagá aluguel, pago isto, pago aqui­

90
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

lo, pago o seguro, sei que n o fim d o mês, por exem p lo, ten h o o alu­
guel, o seguro do carro, o seguro da casa, o m édico, si é eu qui paguei
isso, qui v ô paga por mês, pago e daí e daí... nóis não fazem o assim
(com um tom rewindicativo), num adianta nada. S i marcamo ou num
m arcam o, dá n o m esm o” . Ele parece não ter idéia do interesse de
sem elhante utilização da escrita, para racionalizar, limitar, prever,
calcular, planejar os gastos. C om p ra aquilo que precisa, e escrever
ou não escrever para ele dá n o mesmo, em se tratando de contas.
(Rindo): "S i sobra, sobra, si não sobra, não sobra, é verdade né, nóis
nunca fazem o isso” ; " A gente traz o din h eiro pra casa, vam o, eu,
se ten h o tem po, v ô com pra, si não, m inha m ulher tem tem po, ela
vai com prá e pronto. N ã o m arcam o nada, não registram o nada, é
verdade né, se num tem mais, num tem mais. Se tem , pegam o a
grana no banco” . O senhor S. tem hábitos pouco racionais, e c o n ­
sidera a diferen ça de u tilização da escrita com o uma diferen ça
entre “ eles” ( “ os franceses” ) e “ nós” ( “ os árabes” ).
O senhor e a senhora S. não lêem jornais (a não ser um jornal
árabe que o pai com pra umas 4 vezes por a n o ), nem revistas, nem
histórias em quadrinhos, nem sequer a programação da televisão.
O pai possui algumas obras em árabe, entre elas o A lc o rã o e dois
livros que contam histórias m uito antigas (" A s histórias, v o c ê vê,
têm séculos e séculos” ). Porém diz que lê o A lc o rã o se tem tem po
(" S i en con tro um tem p in h o "), e sobretudo no período do ramadã.
Q uanto às outras leituras, ressalva: “ O resto, não tenho tem po” (suas
filhas confirm am que só vêem o pai 1er quando está rezando). Pos­
suem um dicion ário, mas o próprio casal S. não o consulta jamais,
pois fo i com prado pensando nas crianças.
Nossas perguntas sobre as práticas de leitura e de escrita podem ,
com o já dissemos, às vezes, provocar efeitos de legitim idade. Porém ,
para que um efe ito de legitim idade escolar possa agir, é necessário
que aqueles sobre os quais é suscetível de se exercer tenham um m íni­
m o de fé n o valor do sistema escolar e em seus representantes. Ora,
para o senhor e a senhora S. a escola tem uma im portância secun­
dária na medida em que uma outra lei, a do A lc o rã o , se lhes mos­
tra com o mais fundamental. N ã o se sentem em uma posição de dom i­
nados em relação à escola francesa (que a seus olhos representamos).

91
SUCESSO ESCOLAR N05 MEIOS POPULARES

Para eles o A lc o rã o é a Lei, mais forte e mais legítim a que a Esco­


la. E o pai chegará a contestar, com uma certa agressividade, o in te­
resse de nossas perguntas: “ E então, acabou? A ca b o u as perguntas?
Ora, o que é isso, purque fazer perguntas, purqui eu num com prem
d o isso, essas perguntas. (M u ito seco e até um pouco agressivo.) Q u i
é isso, pra que serve, num serve pra nada isso!” . Para ele, as pergun­
tas que fazemos não servem para nada, pois estima que é na moral
religiosa que encontram os os “ com portam entos corretos” e não na
form a de gerir o orçam ento, nas práticas de leitura e de escrita.
A preocupação com a dim ensão moral religiosa esteve portanto
onipresente durante a entrevista, sem comparação com o interesse
pelos resultados escolares. A mãe terminou a entrevista dizendo que
querem voltar para seu país porque aqui as crianças "não respeitam
mais os pais", e tom am -se “ selvagens” e “ mau-caráter": “ Q u ando os
joven s cresce, num respeita mais os pais, eu num d eixo eles, vo lto
pro meu país na A rg é lia ” — e faz, de passagem, uma distinção entre
os “ árabes bons” e os outros. Por outro lado, ela exprim e uma gran­
de saudade da A rg é lia quando diz não poder contar histórias sobre
a A rg élia a seus filhos, pois isso a “faz sofrer” muito.
Esta configuração familiar é relativam ente próxima do caso pre­
cedente (Perfil 1), porém mais excepcional na medida em que ambos
os pais estão na França há muito tempo. Dom inam muito mal o fran­
cês, mesmo depois de tantos anos de permanência no país. N o entan­
to, o isolamento familiar em relação a um “ exterior" considerado dife­
rente, hostil e ruim para as crianças pode explicar, de certa forma, a
conservação da maneira de falar o francês bastante marcada pelo sota­
que argelino, e nem sempre correta do ponto de vista das normas sin­
táticas e léxicas escolares. O retom o é um m ito ou um projeto real?
D e qualquer forma, contribui para fechar um pouco mais a fam ília em
si mesma. Este isolamento se opera a partir de uma moral oriunda em
parte do A lco rã o ou em todo caso legitimada por ele. O princípio de
direção da política disciplinar familiar é uma moral religiosa, e não
uma preocupação especificamente pedagógica em relação à escola.
A ic h a e Latifa não podem nunca sair sozinhas. A s meninas,
assim com o os filhos menores — as filhas, independentem ente da
idade, são tratadas com o criancinhas — ficam fechadas em casa ( “ A s

92
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

meninas não sair nunca, e os dois pequenos nunca"). S ó os dois m eni­


nos de 10 e 14 anos podem sair para brincar. A proibição também
é válida para as quartas-feiras*, sábados e dom ingos ( “ N ã o, nunca,
porque assim não é bom pra nóis, purque eles aprende coisas errada
de ver. Falam palavra que num é bom pra nóis. Eles saem sempre,
mas as menina não, e os pequeno também fica em casa” ). Assim pude­
mos com preender por que todas as crianças estavam em casa no dia
da entrevista. A ïc h a e Latifa só podem sair com a fam ília, para a casa
dos primos ou para ir fazer compras com a mãe.
A televisão também é muito controlada pelos pais, que utilizam a
chave da abertura que possibilita o acesso ao botão de liga-desliga, por
razões morais. A mãe diz que seus filhos não podem ver coisas “que
são erradas” . Insiste no fato de que é importante que os filhos façam
com o eles no que se refere à prática religiosa. N ã o devem insultar as
pessoas, devem se comportar bem em relação aos vizinhos, e assim por
diante: “ Eu num insulto ninguém, eu tranquila com os vizinhos, cum
todo mundo, ué". D eixa claro que, desde que estão morando naque­
le apartamento, nunca tiveram nenhuma queixa da parte dos vizinhos
franceses. Durante a entrevista, ao escutarmos o ham lho de uma sire­
ne de polícia, a mãe nos diz, muito séria, que quando a polícia passa
não é para ela, insistindo assim no faro de que não têm nada a escon­
der: “ N u m é pur causa de mim, não, nunca problema...” . A mãe tam ­
bém cuida de que os filhos com am com calma, ficando de pé atrás
deles com um ch icote ou um cin to ( “ A s criança com e quatro aqui,
i treis na cuzinha, eu, de pé, do lado, si alguém quer água, eu v ô buscá.
D o lado, eu com o cícote, com o cin to na mão, sempre de p é "), e
batendo em quem não respeita as ordens. "Bato na cinta e falo: 'Acaba
comer, com e devagar, com e tranqüilo1.”
Se, por um lado, a escola n ão é uma preocupação prim ordial dos
pais (os professores nos inform am que foram convocados três vezes
e nunca com pareceram ), eles con trola m o com p orta m en to dos
filhos na escola, pois pensam que a escola serve para ensinar uma
profissão que não seja “ dura e suja” e evitar o desemprego. D o ponto
de vista do com portam ento, que lhes parece particularm ente impor-

* N a quarta-feira não há aula nas escolas francesas, até a 8Ü série. (N .T .)

93
5UCESS0 ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

cante, acham que “ vai indo hem” com a “ escola da República” . Mas
interpretam o mau desempenho escolar das filhas no sentido de “ mau
com portam ento” em aula {n ã o escutar, não fazer o que mandam
fazer... ). O s dois olham as notas, e quando são baixas, a mãe as pune,
obriga-as a estudarem, proíbe de ver televisão, grita e bate nelas. O
irmão mais velh o e o de 10 anos também batem nelas, e a mãe expri­
me sua satisfação em ver os filhos “ tom arem co n ta " de suas irmãs:
“ Ele bate nelas e eu fico conten te, ele bate nelas. E por elas, não é
por ele. Ele in teligen te” . A s duas irmãs são unânimes, em cada uma
das respectivas entrevistas, ao dizer que as reações dos pais ou dos
irmãos, quando tom am con h ecim en to de suas notas baixas, são
violentas: "d ã o bronca", “ xin gam ” , “ am eaçam ” , batem co m um
cin to, com sapato ou dão tapas, e A ïc h a conta que sua mãe lhe diz:
“ Se ocê tira nota baixa, vou te batê” . Elas fazem sozinhas as lições,
“ ajLidadas” apenas pelos irmãos de 10 e 14 anos (a m ãe diz que ela
“ não consegue" ajudã-fas ou exp lica r). O irmão de 10 anos também
bate nelas se n ão fazem as lições, se não com preendem ou não
fazem certo os exercícios. Mas A ïc h a e Latifa, evo ca n d o ex p licita ­
m ente a incapacidade dos pais de 1er o francês, dizem na en trevis­
ta que não lhes mostram suas lições sistem aticam ente, e isto com
a cum plicidade dos irmãos. D e fa to A ïc h a e Latifa estão relativa-
m ente sós em face de sua escolaridade, e só têm "d iá lo g o " fam iliar
sobre questões escolares através de socos, gritos e xingam entos dos
pais, mas tam bém dos irmãos, que se revezam com os pais na p o lí­
tica disciplinar parental: “ Sobretudo meu irmão, ele me xinga hiper-
demais, na 2a série” . — E ele te castiga? — “ N ã o , ele me bate e co i­
sas assim” .
Q uando chegam da escola, Latifa e A ïc h a deixam as mochilas,
trocam de roupa, lavam as mãos, trocam de sapato, tom am lanche
e com eçam a 1er o “ dicion ário” . Essa lista reconstituída na ordem
pronunciada pela mãe é interessante, pois revela a im portância dos
aspectos com portam entais e morais (ser cuidadosa, ser lim p a) e a
nebulosa que representa para ela o trabalho escolar ( “ 1er o d ic io ­
nário” parece designar o con ju n to das ações escolares que consiste
em fazer os deveres). A lé m disso — um parêntese sociolingüístico
— a mãe nos conta que ela Lhes “ diz” para lavarem as mãos e não

94
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

que vão lavar (p o r si mesmas) as mãos. Da mesma forma, Latifa escla­


rece, durante a entrevista, que não v ê televisão de noite, pois a mãe
diz, quando acabam de com er “ Vai ir dorm ir” (expressão repetida
desta forma três vezes durante a entrevista, o que demonstra sua recor­
rência). A in d a uma vez, a mãe desponta co m o o elem en to ex ter­
n o que exerce coerção sobre o com portam ento das crianças. Elas
vã o d orm ir porque a mãe diz para irem dorm ir e não porque n o dia
seguinte têm aula, etc. Latifa não forn ece explicações interioriza­
das. Tudo isso revela o tipo de ex ercício de autoridade por pressão
externa que iremos agora considerar.

D e fato, nesta configuração fam iliar, há c o m o um paradoxo


aparente entre o estilo bastante c o e rc itiv o de disciplina exercido
pelos pais sobre as crianças, pelos irmãos sobre as irmãs, pelas irmãs
sobre os irmãos menores, e o tumulto, o burburinho e o con ju n to
dos com portam entos que constatamos durante a entrevista. Por que,
podem os perguntar, crianças tão “ contidas” são tão livres para g r i­
tar, bagunçar, grudar-se nos pais enquanto estão falando conosco,
cortar-lhes a palavra o tem po tod o quando se dirigem a nós? N a
verdade, a disciplin a se exerce d o exterior, e é com preen sível,
quando uma disciplina é aplicada de maneira coercitiva, que o co m ­
portam ento das crianças apenas se m odifiqu e tem porariam ente, no
m om en to em que deixam de existir as sanções (pancadas, gritos,
“ xingam en tos” ).
Elas têm o h áb ito de regular o com portam ento nos lim ites d e c i­
didos pelo outro, e n ão nos lim ites construídos pelo outro mas in te­
riorizados co m o autolim itações ou desejos pessoais (A ïc h a e Lati-
la, por exem plo, estão inscritas no curso de árabe, mas form ulam a
coisa dizendo que fo i sua mãe quem as inscreveu, nunca evoca n d o
uma von tade pessoal).
N o seio desta configuração familiar, A ïc h a e Latifa não podem ,
porta n to, en co n tra r a p o io para re so lv er seu p rob lem a escolar.
Prim eiram enre, em bora as duas tenham nascido na França e ido à
escola m aternal, seu estilo de fala, im p lícita, nem sempre bem
dom inada sintática e lexicalm en te, é m uito parecida, ao menos na

95
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

pronúncia, com o estilo dos pais ( “ É meus prim os que vem na


minha casa” : “ M in ha mãe, ela que vai lá na casa dos primos” ). Q uan­
do, por exem plo, A ïc h a faz a lista dos irmãos que ficaram em casa
com ela durante as férias, procede da seguinte maneira, bastante faulk-
neriana1": “ M eu irmão mais velh o , meu irmão, meu irmão, meu
irm ão” , para dizer "M eu irmão mais v e lh o de 22 anos, meu irmão
de 14, o de 10 e o de 6 anos” . A maneira co m o o diz, pensando em
cada um dos irmãos dem onstra que, para ela, sua designação é da
ordem da evid ência. Am bas explicam também com dificuldade a
maneira com o procedem para aprender as lições: “ L e io palavra por
palavra e depois leio tudo. D epois leio palavra-por-palavra-por-
palavra, depois, quando leio palavra-por-palavra, recom eço e leio
tudo inteiro. D epois repito. Latifa diz que, por sua vez, ajuda o
irmão, mas explica isso im plicitam ente: “ A h , quando ele m e diz, às
vezes, ‘Isto dá quanto?’, eu faço nos dedos e depois digo pra ele".
Nestas duas entrevistas, são bastante marcantes a franqueza e,
às vezes, a vulgaridade ( “ A h , a gramática, grrr, uma droga” ) das pala­
vras. Tem os a impressão de que, ao contrário do conju n to das en tre­
vistas com crianças, nas quais estas têm tendência a eufemizar,
esconder os próprios problemas, conflitos, apresentar uma imagem
aceitável n o plano escolar, aqui, co m o co m os pais, o e fe ito de leg i­
tim idade que podem os produzir às vezes é extrem am ente frágil. A s
referências destas dtias crianças são fortem en te familiares, e a rup­
tura social com o exterior, sustentada pelos pais, com uma im por­
tante valorização do “ nós” em relação ao “ eles” , parece produzir
efeitos nos discursos das crianças. A ïch a e Latifa não hesitam em co n ­
tar que apanham, dizem sem reticências que os pais não sabem 1er
francês ou que são más alunas: " N o meu boletim , só tenho 0, 1 e 2” ,
diz Latifa.
A parte a ajuda escolar dada pelo irmão que está na 4a série, mas
que aterroriza as irmãs, e bate nelas, com o consentim ento dos pais,
A ïc h a e Latifa não recebem uma ajuda o b jetiva nem subjetiva
(grau de escolarização, relação com a escrita, relação com o tem po
dos pais, in cen tivos, apoio, diálogo, recon fo rto ). A lé m do mais, o
pai e a mãe não hesitam em enunciar diante delas que seu irmão
de 10 anos é “ in teligen te” , enquanto elas são “ burras” : “ A h , a Lati-

96
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ta é burra” . Estas palavras podem , é claro, agir com o enunciados pre-


ditivos. O pai possui a idéia tradicional de que a escolaridade das
meninas é menos im portante que a escolaridade dos m eninos. N ã o
é este o ponto de vista da mãe, se bem que esperou que seu m arido
saísse para dizê-lo. Em tal con texto, o d esen volvim en to de uma dis­
ciplina coercitiva e exercida do exterior, não-compreensiva, não per­
m ite que A ïc h a e Latifa tenham “ sucesso” na escola. Vem os tam ­
bém m uito bem, neste caso, que não adianta ser “ docilizado” pelo
estatuto familiar, nem ter responsabilidades domésticas (durante a
entrevista, a mãe dirá a A ïc h a para “ pôr o tênis” no seu irmãozi-
nho, e sabemos que ela e sua irmã, ao contrário dos irmãos, parti­
cipam nas tarefas domésticas: lavar a louça, arrumar suas camas e
as de seus irmãos, varrer...) para ter sucesso na escola. A in d a que
as duas irmãs sejam vistas com o “ boazinhas", “ m uito sensíveis às
admoestações” e tendit “ necessidade constante de encorajam ento
e a feto” , nem por isso possuem menos dificuldades escolares: têm
“ grandes problemas de com preensão", e, sobretudo, “ de com p reen ­
são das instruções”, “ precisam sempre que o professor expliqu e” , têm
“ grandes problemas de vocabu lário” com a resolução de problemas
em matem ática, e, de maneira mais geral, têm dificuldades “ assim
que os mecanismos se tom am mais com plicados".
A in d a que os professores n otem que o n ív e l permaneça “ muito
muito baixo nos dois casos” e que “ elas tenham dificuldades seme­
lhantes", salientamos, no entanto, para concluir, que A ïc h a foi mais
cedo para o maternal (3 anos e n ove meses) que Latifa (4 anos e 9
meses), o que, em parte, poderia explicar a repetência de Latifa. Em
uma configuração socializadora fam iliar tão distanciada do co n tex ­
to de socialização escolar, a freqüência mais precoce das formas esco­
lares pode constituir um pequeno “ in vestim en to" suplementar.

♦ Perfil 3; Uma ruptura radical.


N ’Dongo K , , nascido no Zaire, sem repetência, obteve 4 na avaliação.

N o dia d o en co n tro , penetram os em um apartam ento bastan­


te escuro. H a v ia muita gente: a senhora K. e três de seus filhos,
entre os quais N ’ D on go, a irmã da senhora K. e seus dois filhos.

97
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

NTD ongo diz, na ocasião, que o b ilh ete que tínham os en via d o pela
escola ainda estava na sua m o ch ila e que tin h a esqu ecid o de
en tregá-lo à mãe.
Quando informamos à senhora K, que estávamos gravando, ela nos
disse que não podia, pois falava mal o francês, e esteve a ponto de se
recusar a dar a entrevista'1
'. Mas nós a tranquilizamos dizendo-lhe que
aquilo não era importante e que não deveria se preocupar. Começamos
a entrevista enquanto a irmã da senhora K. e seus filhos estavam sen­
tados no sofá ven do um vídeo de música africana em alto volume.
Ficamos sentados com a senhora K. ao redor de uma pequena mesa na
entrada da sala-de-estar. Pouco depois, perguntamos à senhora K. se
podíamos ir para um outro côm odo por causa do hanilho, mas ela pre­
feriu ficar ali, e falou com a irmã em sua língua materna. O que fez com
que a música parasse, mas eles passaram a assistir a um programa de
televisão. H ouve, portanto, m uito barulho durante toda a entrevista.
A entrevista aconteceu em uma atmosfera m uito estranha. A
senhora K. não parava de olhar sua irmã, para quem estávamos
dando as costas, e acreditamos que certas respostas foram ditadas pela
irmã, ou ao menos bastante inspiradas nela. Muitas vezes, abando­
nando a entrevista, a senhora K. falava com a irmã em sua língua
antes de nos responder. O caráter estranho da situação se esclare­
ceu quando a relacionam os com as palavras finais da entrevista. A í
as duas irmãs com eçaram a criticar o sistema escolar francês. Segun­
do elas, a escola francesa tornava impossível uma longa escolarida­
de para os filhos de estrangeiros: “ A q u i, gosto m uito, ele continua
bastante tem po na escola. Mas para as criança estrangeira aqui, na
França não acredito as coisas í bem. A s criança, os estrangeiro, aqui
na França, sempre co ’as profissão de pintô, m arceneiro, com o se fala,
pedreiro. E fazem isso purgue um dia o estrangeiro vai v o ltá pro país
dele"; “ I, tamém, a m aior parte deles, estrangeiro, qué dizê, alguém
que não sabe lê. O s pais não sabem lê tudo isso". E mesmo se as crian­
ças se saem bem na escola, elas sustentam a idéia de que são orien ­
tadas para cursos profissionalizantes, para aprender um ofício: “ Pruquê
m ém o que eles faz bem os estudo, depois, com 14 anos, eles diz: ‘Vai
fazê uma profissão, vai sê p in tô ’, ou um outro curso de profissão” . A
senhora K. diz que não é só ela quem pensa assim: “A gente, todas

98
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

as criança acha isso. N u m sô só eu que dis isso. Som os muitos que


diz isso” . A senhora K. diz tam bém que “é a política” que quer isso
para os filhos de estrangeiros que vive m na França. A responsabili­
dade do “fracasso” escolar dos filhos de estrangeiros é jogada in tei­
ramente sobre a escola, e é com preendida na forma de um diabolus
in machim, de um com plô político consciente, intencional. “ Eles acaba
com as criança, é a política deles.” Pou co preparada para enfrentar
a situação com uma form a de “ realismo” mais ou menos pessimista
(que encontram os em inúmeras fam ílias) em relação às exigências
escolares, a senhora K. desenvolve uma concepção m aquiavélica na
qual a escola é m ovida por uma vontade política deliberadam ente
segregacionista em relação às crianças estrangeiras.
A senhora K. diz entender a vio lên cia urbana dos joven s com o
o sintom a de uma revolta ligada ao sistema escolar, pois a escola não
lhes dá os meios para fazerem algo que não seja uma form ação para
profissões manuais: “ Si você visse as crianças que quebram tudo. Num
sei qual na rua. N u m é pur causa de nada não, mas purque existe raiva.
Eles estuda com o o N ’ D on go com eço, assim, e aí, quando têm cator­
ze anos: ‘ A h , cê num é bom aluno. Vai fazê a escola das profissão’ . 1
tem gente qui continua a estuda e outras qui não. Principalm ente
os estrangeiro, aqui n o teu país é assim. A n tes as pessoas me falava
e eu num acreditava. M ais tem que vim aqui, na fonte, pra v ê com o
é que as coisa acontece. Eu agora vim na fonte, sei co m o as coisa
acontece. E um problem a de política, ach o” . A partir dessa crítica
podemos compreender que alguém que vá fazer perguntas sobre a vida
fam iliar só pode aparecer com o m uito suspeito (p o r duas vezes a legi­
timidade de nossas perguntas será colocada em xeque através de pedi­
dos de explicação, em que percebemos um pouco de agressividade):
“ Quiria saber purquê de todas essas pergunta. Eu num entendo"; (M e
desculpa, vocês estão fazendo pesquisa ou u quê?), e aí percebemos
m elhor a estratégia discursiva adotada pela senhora K. que consis­
tirá em exaltar os talentos de seu filho.

A senhora K. tem 37 anos e ve io do Zaire. Foi à escola dos 8 aos


12 anos e aprendeu um pou co de francês. Está na França desde os

99
SUCESSO ESCOLAR NOS MEtOS POPULARES

25 anos e por duas vezes, em 1990 e 1991, fez estágios de alfabeti­


zação que duraram 3 meses. Trabalha há apenas 3 anos co m o fa x i­
neira em várias casas. V iv e sozinha (diz, sobre o marido: “ N u m ve jo
ele mais. N u m c on h eço ele mais” ) com seus 6 filhos: uma m enina
de 17 anos que está fazendo Lim curso de alfabetização há 8 meses
(ela chegou há pouco d o Z aire), dois outros meninos, um de 15 e
outro de 13, cujas classes desconhece, um m enino de 11 anos que
os outros filhos dizem estar cursando uma classe especial (SES, em
francês) (e la confirm a, mas não se lem bra), N ’D on go, que tem 8
anos, e uma filha de ó, que está na pré-escola.
O pai da senhora K. era um funcionário público de baixo esca­
lão no Zaire, mas ela não sabe até que ano da escola cursou. Mas
sabia 1er e escrever. Sua mãe era com erciante e vendia peixe fres­
co e defumado nas feiras. O pai de N ’ Dongo está no Zaire, e a senho­
ra K. exalta as qualidades de seu ex-m arido dizendo que con h ecia
muitas línguas (inglês, italiano, alemão...), pois trabalhava “ nos escri­
tórios de finanças” em um aeroporto. Escrevia cartas destinadas a
vários países, que ele próprio batia à máquina, ela esclarece.
A o contrário de outros casos familiares que com binam investi­
mentos e obstáculos, a configuração fam iliar na qual está inserido
N ’D on go encontra sua coerência a m il léguas de distância das carac­
terísticas do universo escolar. N a realidade N ’D ongo v ive em uma
fam ília que acumula uma série de traços que impedem que siga uma
escolaridade sem dificuldades. Sua mãe, escolarizada durante som en­
te 4 anos em seu país, faxineira e dom inando m uito mal o francês,
ez cursos de alfabetização, mas continua com dificuldades para 1er
e escrever francês. C o m tal percurso escolar e social, suas práticas
de leitura são evidentem ente muito raras. E limitam-se essencialmen­
te às coisas que precisa 1er por obrigação (a correspondência) ou por
necessidade (anúncios de jorn al quando está procurando trabalho:
"Eu ó io só o trabalho, e pronto. Fora isso, num ó io nada” ). N ã o pos­
sui livros a não ser a Bíblia ( “ Eu tenho a Bíblia, e só” ), cuja utiliza­
ção não conseguimos entender. N a verdade, a senhora K. diz lê-la
“ de veiz in quando, quando eu posso” . Sabemos por experiência que
quando nossos entrevistados dizem 1er quando podem ou quando têm
tem po, isso significa que essa prática é bastante rara.

100
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

A senhora K. tam bém não utiliza m uito a escrita. D esen vo lve


muito pouco as atividades de cálculo, racionais, administrativas, tanto
por conta de sua situação econôm ica quanto por falta de hábito cul-
tural em relação a um certo núm ero de atos de planificação, de ges-
tão: não escreve lem bretes, não faz lista de compras, nem lista de
coisas a serem feitas ou para levar numa viagem , não tem agenda,
possui um calendário mas não anota nada n ele ( “ Sabê, sei, sei se
tenho um en con tro num dia, na m inha cabeça. Entrô nela, eu sei")i
não tem um caderno de contas ( “ M ais sei que se tirei 500 francos,
eu falo: ‘T irei 5 0 0 francos.’ Pra que qui ocê qué o caderno? Faço tudo
sem cabeça [ou seja, de cabeça]” ), não escreve cartas à fam ília nem
a amigos, não anota nada antes de dar um telefon em a nem depois,
e guarda seus docum entos sem classificar “ em um grande en velo -
pe” . O c o n te x to social do qual é originária e seu grau de escolari-
zação contribuem, sem dúvida, muito para justificar essa falta de prá­
tica rotineira da escrita. Suas com petências limitadas fazem com que
recorra á assistente social ( “ E, si tô com algum pobrema, si num rô
en tendendo, procuro a m inha assistente social. A í ela vai me m os­
tra co m o é qui fa iz"), ou en tão recorre a N ’ D ongo: “ Pruquê N ’ D on-
g o lê, né. Ele mi ex p lica um p oco si eu num en tendo a frase” ; “ A s
vez eu ajudo ela a lê", nos confirm a o filh o.
A senhora K. diz que escreve cartas para fins administrativos,
preenche sua declaração de imposto e escreve bilhetes para a escola,
sozinha. N o entanto, podem os nos perguntar se ela rem com p etên ­
cia de escrita para tanto, pois se até para 1er sua correspondência
consulta a assistente social. Dada a visão crítica que conhecem os,
podem os com preender a estratégia de respostas da senhora K . com o
uma maneira de não ser vista co m o alguém que tenha muitas d ifi­
culdades para 1er e escrever, por m edo de ver o filh o encam inhado
para cursos profissionalizantes de curta duração.
C o m o N ’ D ongo ajuda a mãe a com preender certas cartas admi­
nistrativas, podemos conceber facilm ente que a ajuda que a mãe possa
lhe dar quando faz seus deveres escolares é muito limitada. A lé m disso,
ela não pode estar em casa para controlar a lição de casa dos filhos,
pois seus horários de trabalho fazem com que volte lá pelas 9 horas
da noite. Se, em um prim eiro m om ento, a mãe afirma que manda o

101
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

filho fazer a lição de casa ( “ Eu pergunto: ‘O cê fez a lição?' ‘Não, mamãe,


vô fazê agora m esm o’ . Depois ele com eça a fazê. A s veis, si não v e jo
ele, ele tá no quarto, fazeno seus dever” ), o con trole não se mostra
ser sempre tão estritoA Ela faz questão de dizer que N ’D on go “ gosta
m uito” de fazer a lição, mas acrescenta também: “ D e qualquer jeito,
nunca v i assim, que ele num tem vontade de fazê nunca. Ele faz o
tem po todo, mais às veis ele vai escjuecê um pouco”. Finalmente, falan­
do ainda da lição de casa, ela acaba deixan d o passar: “ N u m posso
controla” . A lé m disso as únicas pessoas que podem ajudar N ’D on-
go nos deveres escolares são pessoas que estão de passagem ( “ É, si
tem gente que v e io m i vê aqui, ele pergunta, mostra, bem, diz si fez
direito, aí eles diz: ‘A q u i v o c ê errou, aqui'. Assim ele vai corrigi” )
— é o caso de sua tia '1— , ou de seus irmãos, mas só aos sábados,
pois durante a semana cada um está em suas respectivas escolas. O
controle que a mãe pode exercer sobre a escolaridade é portanto rela­
tivam ente fraco, e vem os um in dício disso na história do bilhete que
lhe endereçamos por interm édio da escola e que nunca chegou às
suas mãos. A mesma coisa acontece com o controle da hora de se
deitar e às amizades de N ’D ongo. A senhora K. diz que o filh o vai
dorm ir as 20h30 todos os dias, com exceção das vésperas dos dias
em que não tem aula, quando pode se deitar às 21h30; mas pode­
mos nos perguntar, ainda neste caso, com o ela pode verificar se o
filh o se d eitou às 20h30 se ela chega às 21 horas. Por outro lado, ela
também não conh ece os colegas do filh o, mas sabe que são “ legais"
(" A h , num cunheço seus colega aqui do bairro, mais de qualqué jeito
sei qui eles são ‘ legal’ " ), e em ite seu julgam ento a partir do que lhe
diz N ’ D ongo: “ A c h o que seus colega são legal purquê ele nunca me
disse assim: ‘M ãe, ele mi fez isso ou aquilo” ’.
A senhora K. diz que con h ece os professores de N ’ D on go mas
que nunca falou com eles. N ã o va i às reuniões pois, explica, “ antes
não, eu trabalhava muito, num tinha tem po de fazê isso” . Diz que
nunca foi convocada pelos professores, mas sabemos que entre o
m om ento da entrevista e o fim d o ano, ela fo i contactada três vezes
por carta e por telefon e pelos professores, que não conseguiram vê-
la assim mesmo. A irmã da senhora K. critica a escola por não dar
suficiente lição para se fazer à n oite ou nos fins de semana, e desen­

102
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

v o lv e a idéia segundo a qual, se a escola não obriga a fazer os d e v e ­


res, as crianças não vão querer fazer se os pais lhes pedirem: “ Quan-
do a professora num dá lição, e ocê diz pra teu filh o ‘V em aqui lê ’ ,
ele vai te dizê: 'A h , não, mãe, a professora num deu lição, então
num vô lê ’ . Então si num têm nada pra fazê e o cê diz : ‘V em d e c o ­
ra esta poesia', ele num vai ficá con ten te". É assim que a irmã da
senhora K, esboça o perfil da criança que não quer ouvir os pais se
a escola não os ajuda a serem ouvidos. Estes pais a que se refere são
aqueles para quem a escolaridade não é “ natural". D e fato, em
outras configurações familiares, as ações pedagógicas dos pais não
precisam d o apoio da instituição escolar: a criança já interiorizou
em form a de desejos pessoais aquilo que se espera dela.
Fin alm en te, a senhora K . mostra a distância que a separa o b je ­
tiva m en te da escola quando não consegue dizer em que classe seu
filh o está ou en tão quando se engana sobre os pontos fortes e fra­
cos de N ’D o n g o (segu ndo ela, “ ele é m elh or em francês” , en quan ­
to os resultados escolares provam que N ’ D o n g o tem m elhores
notas em m atem ática que em fran cês). M as ela não d eixa de v a n ­
gloriar-se das qualidades d o filh o : seu trabalho na escola, seu amor
pela escola ( “ ele gosta bastante da escola” ), pela leitura (dep ois
de conversar co m sua irmã, a senhora K. diz que é N ’D o n g o quem
lê mais na casa), e pela escrita, sua capacidade para con ta r ( “ Ele
sabe com prá hem, ele sabe contá hem ” ), sua seriedade.., N o fin a l
da entrevista, a irmã reconhece que ele tem apenas algumas peque­
nas dificuldades para com p reen d er o que lê: “ com preen de ele
com pren de um p o c o ” . Esta supervalorização de N ’ D o n g o , que
ultrapassa m uito o que a escola recon h ece n ele com o qualidades,
só se ex p lica n o quadro da visão de co m p lô co m a qual justificam
o “ fracasso” dos filh os de estrangeiros na França.
N este sentido, N ’D on go é visto desde o maternal (on de entrou
com 4 anos e 5 meses) com o uma criança “ pouco interessada pela
vida da classe", “ m uito tagarela e barulhenta” . Seu grau de maturi­
dade para a aquisição da leitura é julgado “ m edíocre", e o desenvol­
vim ento de sua linguagem, “ m édio” . Seus professores amais dizem o
seguinte: " A gente percebe que ele está com a cabeça em outro lugar” ,
"Está na lua” , “ E preciso todo o tem po chamar sua atenção para que

103
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

com ece a trabalhar” , “ E preciso ficar atrás dele” , “Consegue d e v o l­


ver uma folha em branco sem se importar” . O conjunto destas apre­
ciações ressalta a pouca implicação que N ’D on go tem em relação ao
trabalho escolar. Evidentem ente, dizem que ele não é "escolar” , que
esquece de pedir para assinarem seus cadernos, que esquece ou perde
o material, que o material está sempre em desordem ou então que “não
é capaz ou não tem vontade de se organizar” . E não é por acaso que
é no dom ín io mais próxim o das práticas que lhe são mais comuns
( N ’D ongo vai sempre fazer compras para a m ãe), a numeração, que
obtém “ boas notas” , enquanto os “ problemas", ao contrário, fazem
com que “decaia". Descrito com o alguém “ apagado” no conjunto da
classe, os professores esclarecem que “ no recreio não tem esse tipo de
com portam ento” . A c o n te c e que a fratura entre a configuração fam i­
liar e as formas escolares de vida é tal que, na escola, N ’D ongo só pode
estar com a "cabeça na lua” .

A herança difícil

A tendência do patrim ônio (c, neste sentido,


de toda a esinitura social) lmti perseverar em seu
ser só pode se realizar sc a herança herda o her­
deiro, se, por interm édio daqueles que têm pro­
visoriam ente o encargo e que devem assegurar
sua sucessão, “ o m orto (ou seja, a propriedade)
apodera-se do v iv o (ou seja, um proprietário
disposto e apto a herdar)"’ .

C o m o herdamos?Quais são as condições sociais, relacionais, para


que uma disposição cultural possa ser “ transmitida” ou, em todo caso,
passada, de uma maneira ou de outra — à força de se inculcar, de
form a expressa ou difusa, direta ou indireta, etc. — , de um corpo
socializado a um outro corpo socializado? A s más con d ições de
herança que descobrimos em certas condições familiares nos fo r­
çam a colocar qLiestões que as heranças que deram certo e as trans­
missões felizes tendem a escamotear.
Dado que o “capital cultural” está condenado, de um lado, a viver
em estado incorporado, sua “ transmissão” ou sua “ herança" depen­
dem da situação de seus portadores: de sua relação com o filh o, de

104
PERFtS DE CONFIGURAÇÕES

sua capacidade, (socialm en te constitu ída) de cuidar de sua educa­


ção, de sua presença a seu lado, ou, fin alm en te, de sua d isp on ibili­
dade de transm itir à criança certas disposições culturais ou acom ­
panhá-la na construção dessas disposições.
De fato, os indivíduos que detêm as disposições culturais mais
com patíveis com as exigências do universo escolar nem sempre são
— por conta da distribuição dos papéis fam iliares ou d o tem po de
que dispõe — aqueles que estão em contato co m a criança com mais
frequência e de m aneira mais duradoura.
A c o n te c e que o tem po de socialização é uma con d ição sine qua
non para a aquisição certa e duradoura dessas disposições, das m anei­
ras de pensar, de sentir e de agir. A o con trário do patrim ôn io m ate­
rial que pode ser transm itido instantaneam ente, sem prazo (o que
não garante, no en tan to, de form a alguma a capacidade socialm en­
te constituída do proprietário de fazer uso dela, e, mais que isso, de
tirar dela o m elhor partido possível ), as disposições, as esquemas men­
tais sociais só podem ser adquiridos ou construir-se através de rela­
ções sociais duráveis (eerxns efêmeras, ocasionais) ” . E isso o que
demonstram, de m aneira caricatural, as matrizes de socialização
“ totais” (co n v e n to , caserna, prisão, internato, escola...): através do
isolam ento Jos seres sociais durante um lon go período Je tem po em
um espaço fechado e isolado d o exterior, pela grande prom iscuida­
de entre esses seres sociais e pela coerência e sistematicidade da orga­
nização das atividades, tornam possíveis os efeitos de socialização
coerentes e duráveis. É por essa razão também que, ainda que os soció­
logos nunca tenham abandonado com pletam ente o estudo das rela­
ções efêmeras, ocasionais, preocuparam-se m uito mais em analisar
as relações mais frequentes, duráveis, estabilizadas, cristalizadas e
muitas vezes institucionalizadas, pois o exam e dessas relações per-
m ite com preender as disposições sociais mais características e cons­
titutivas dos seres sociaisA
O s perfis que verem os aqui (bem co m o os de número 8, 9 e 12)
mostram bem que as "heranças” — com “ sucesso” ou fracassadas —
não são nunca processos mecânicos, mas efetuam-se sempre, para
a criança, nas relações concretas com outros membros da co n figu ­
ração fam iliar, que n ão se reduzem às figuras, norm alm ente sacra-

105
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

lizadas e reificadas, do Pai e da M ãe. A econ om ia das relações afe­


tivas no seio da fam ília, o b jeto de pesquisa de psicólogos e psica­
nalistas, nunca trata de seres cuja única característica seria ocupar
uma ou outra posição em uma estrutura fam iliar abstrata (P a i, M ãe,
F ilh o ). Essa econ om ia efetua-se entre seres sociais co m múltiplas
facetas sociais e cognitivas, form ando entre si uma configuração social
particular; e para cuja apreensão é necessário que se passe de um
m odelo de relações entre figuras abstratas, desencarnadas (despro­
vidas de corpos socializados) de um m odelo so cio lógico de relações
de interdependência entre seres sociais que ocupam lugares em
configurações sociais e possuem capitais ou recursos ligados a esses
lugares, bem co m o à sua socialização anterior no seio de outras co n ­
figurações sociais.

♦ Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo.


fAiuI B ., nascido cm Lyon, com J «no de «troço escolar (repetiu « pre-
escola), obteve 3,5 n« Avaliação.

Chegam os ao encontro por vo lta das 14 horas de um sábado. U m


hom em , jo v e m , abre a porta. Explicam os que havíam os marcado
um encontro com N o ra , a irmã de Ryad. Ele pede para esperar. Logo
depois, deixa-nos entrar. N o ra nos cumprimenta. Estava descansan­
d o por causa do ramadã, que a deixa cansada. O hom em é seu irmão
mais velh o , de 29 anos. Entramos e ela diz para sentarmos em uma
cadeira, na sala de jantar.
Seu pai estava dorm indo em um côm odo contíguo ã sala de jan­
tar, separado apenas pom m a cortina. N ã o o vimos mas o ouvimos ron­
car ligeiramente. A mãe vai se levantar durante a entrevista. Ncás a
cumprimentaremos. Ela não se mostrará nem espantada nem parti­
cularmente interessada em nossa entrevista. Durante toda a co n ver­
sa Ryad estará numa festa anual regional, que acontece em uma praça
não muito longe de sua casa, com seu irmão de 17 anos. A entrevis­
ta decorre normalmente, sem barulho. N ora parece estar interessada
na conversa e espera sinceramente que Ryad vá melhor na escola.
Os avós de Ryad morreram, menos a a vó materna. A s famílias,
tanto d o lado paterno quanto materno, eram argelinas, agriculto-

106
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

iMs e analfabetas. O s pais de Ryad, que nunca foram à escola, tam ­


bém são analfabetos tan to em francês quanto em árabe. O pai v e io
sozinho da A rg élia com 19 anos aproxim adam ente, e tez cursos de
form ação profissional que o capacitou a operar máquinas eletrô n i­
cas de concreto, uma profissão qualificada ( “ N u m é fácil fazer fun­
cionar uma máquina de con creto nas obras públicas” ). Ele tem 57
anos e faz cerca de 37 anos que está na França. A tualm cnce está
desempregado, pois sua empresa atravessou problemas financeiros,
e tem dificuldade para encontrar trabalho. A mãe, de 49 anos, ve io
para a França co m os filhos em 1971 (há 21 anos), e nunca traba­
lhou. R epetem muitas vezes que sentem m uito não ter freqüenta-
d o a escola e não saber 1er n em escrever. Para eles “ faz uma falta
enorm e” : “ E, é, eles falam sempre: ‘Q u e pena, eles não sabem 1er,
não sabem isso, não sabem aqu ilo” ’ .
Ryad, o mais n o v o da fam ília, tem 5 irmãos e 1 irmã (N o r a ): um
irmão de 29 anos que fez um curso técn ico de soldador e está tra­
balhando nisso, outro de 28 anos que n ão conseguiu term inar um
curso profissionalizante de m ecânica geral e que está atualm ente
fazendo estágios na A g ê n c ia N a cion al para o Emprego ( A N P E ) , um
outro de 25 anos que fez um curso técn ico de I e grau (B E P )’' de
pintor de paredes, uma irmã de 22 anos, N ora , que respondeu a nos­
sas perguntas e que está fazendo um curso técn ico de secretariado
após ter co n clu íd o o 2e grau em n ível F8:", um outro irm ão de 19
anos, excep cion a l, que está em uma escola especializada, e um
irmão de 17 anos, que atualm ente está na 7a série de um curso téc­
n ico de I e grau, depois de um percurso escolar d ifícil (está com 4
anos de atraso). V iv e m ainda com os pais N ora, Ryad e seus dois
irmãos de 17 e 29 anos.
Ryad, que entrou para a escola m aternal quando tinha 4 anos e
2 meses, foi rapidam ente considerado co m o uma criança “ inadap-
tada" em relação às exigências escolares. “ C rian ça medrosa, pouco
à vontade na classe", que “ fica sozinho” , “ m uito pouco maduro para
aprender a 1er” , se m ostrava “ superprotegido” pelos pais, “ o queri-
d in h o ” , “ com eçou a saber 1er em voz alta aos 7 anos e 10 meses” .
Ryad é a única criança de nossa amostragem que foi indicada para
seguir aulas de recuperação n o final da 2a série. Seus dois professo­

107
SUCESSO ESCOLAS NOS MEIOS POPULARES

res o consideram d ifícil de ser “ en ten d ido” , com “ enorm es proble­


mas de com preensão, mesmo na com unicação coloq u ia l” , e “que se
deixa levar pelas brincadeiras dos outros".
V iv e em uma fam ília na qual foi uma m enina quem se deu
m elhor na escola de maneira flagrante, conseguindo o bter o d ip lo ­
ma de 2a grau, e que depois fo i fazer um curso profissionalizante.
N ã o é por acaso que é ela quem responde a nossas perguntas em uma
família na qual é a responsável pela gestão administrativa e pelo acom­
panham ento escolar de Ryad. Tudo repousa sobre ela, o que pode
explicar em grande parte a dificuldade escolar de Ryad.
A in d a que os pais sejam analfabetos e tenham o A lc o rã o com o
um objeto sagrado que não é lido, Ryad não v iv e em um universo
totalm ente desprovido de qualquer prática de escrita. E, sem dú vi­
da, sua irmã N o ra que representa o p ó lo mais instruído da família
de imigrantes argelinos analfabetos: compra o jornal de duas a três
vezes por semana (L e Progrès ou Lyon M atin), foi assinante durante
dois anos da revista L’ Etudiant, e pede emprestados com frequência
livros na Biblioteca M unicipal de Lyon ou às amigas (romances, “ his­
tórias verdadeiras, antigas"). Mas seu irmão de 29 anos também lê
“ livros sobre a atualidade” , e seu irmão de 17 lê romances policiais
e revistas em quadrinhos. Ryad, de vez em quando, folheia histórias
em quadrinhos, mas sua irmã acredita que não leia as histórias, co n ­
tentando-se em olhar as imagens: “ Ele olha, mas não lendo a histó­
ria, seguindo toda a história do com eço ao fim . Lê, olha as imagens
assim ou então uma página, depois deixa o livro de lado, né?” .
N o ra é a responsável por tudo que se relacione com os docum en­
tos escritos, e isso desde a idade de 14-15 anos: “ Da correspondência
ou para responder às cartas, sou eu quem me encarrego". Ela diz que
isso não “ é um sacrifício de forma alguma" e que gosta disso: “Tem
meus irmãos, que lêem a correspondência, mas com o sabem que sou
eu quem vai logo responder ou preencher os papéis, então deixam pra
mim, né?” . É ela quem redige as cartas administrativas, quem preen­
che a declaração de imposto, que seu pai assina, quem preenche os
documentos para a escola e quem classifica por ordem cronológica,
em pastas, (rs docum entos da família, para poderem encontrá-los
facilm ente quando precisam deles: “ Faço uma triagem para que seja

108
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

fácil Je achar quando preciso. C o lo c o os papéis do seguro-desempre­


go de lado, ou o en velo p e com os hollerichs, quando ele estava traba­
lhando, em outra parte, assim fica bem classificado". N ora copia as
receitas de cozinha e coloca num caderno, e é ela também que tem
condições de fazer anotações antes de dar um telefonema, pois é a encar­
regada dos documentos administrativos da família: “ Faço uma peque­
na lista pra num ter de telefonar muitas vezes” . É ela também quem
taz a lista de compras. Mas, em contrapartida, é seu pai quem contro­
la as contas, discutindo com a mulher, a partir do extrato de uma cader­
neta de poupança. Esta não é uma tarefa para Nora, que é mais do
gênero mulher-administradora que mulher-executiva” . Finalmente,
mantém um diário pessoal e se corresponde bastante com os primos,
primas ou a avó, que vivem na A rgélia, e tem também uma corres­
pondente americana. Ryad v ive , portanto, rodeado de membros de
sua família que leem, de uma irmã que organiza a vida fam iliar com o
uma segunda mãe de família, mais escolarizada e racional que sua pró­
pria mãe. N o entanto, não basta estar “ rodeado” ou “ cercado” para
conseguir construir concretam ente suas com petências culturais.
É ainda N ora quem responde p elo acom panham ento escolar de
Ryad. N ã o tem tem po de ir às reuniões na escola à n oite, mas
conh ece m uito hem a situação de seu irmão na escola (qu al sua clas­
se atual, o fato de ter repetido a pré-escola...), e sobretudo seus p ro­
blemas relativos à leitura em voz alta (e le tropeça nas palavras), à
leitura-com preensão, à gramática e à expressão. E ela que co n tro ­
la seus estudos, inform ando os pais dos resultados. Ten ta supervi­
sionar suas lições de casa, mas repete várias vezes que nem sempre
é possível, pois tem um horário m u ito sobrecarregado. Sobretudo
chega m u ito tarde em casa: “T en to organizá-lo, mas é difícil, por
causa de meu horário. T e n to conversar com Ryad pra ver o que não
está indo bem, p or que faz tantos erros no ditado, por exem p lo, uma
palavra ou outra"; “ A c o n te c e que estou aqui só de noite, nem toda
noite, porque não renh o tem p o” .
A pesar disso, ela o obriga á fazer exercícios, quando tem tem po,
e a estudar as lições. Q u ando os resultados não são bons, diz que faz
"ch an tagem " com Ryad em relação ao vídeo-gam e. G eralm en te ele
com eça a chorar quando ela faz isso. Pode privá-lo tam bém de ver

109
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

televisão ou de sair com os amigos, mas com o diz N ora, “funciona


na hora, depois não". Ryad, portanto, faz os deveres norm alm ente
sozinho ou com seu irmão de 17 anos, que não o ajuda m uito. A s
vezes a irmã lhe explica, o corrige, lhe dá outros exem plos e passa
outros exercícios. A hora da lição de casa parece ser m uito desgas­
tante para Ryad, que chora cada vez que tem que aprender uma lição:
“ Ele aprende com dificuldade, mas aprende; chora, é um drama cada
vez que tem que aprender uma lição” . C h eg a a ficar até as 10 e meia
da n oite para fazer duas operações: “ E ele ainda queria que eu fizes­
se para e le ” . O que não é de espantar, pois "esquece” frequentem en­
te de fazer as lições ou de anotá-las n o caderno. E preciso ficar “ o
tem po tod o atrás dele", e N o ra pediu a um de seus professores para
ficar “um pouco mais atrás dele” . Durante as férias de verão, ele não
tez nenhuma revisão, a não ser na semana que antecedeu a vo lta às
aulas. N o ra trabalha durante esse períod o, p rova velm en te para
poder pagar os estudos, e não pode organizar m elh or as coisas.
D eplora o fato de não ter mais tem po durante o ano escolar para
ficar “ atrás" de Ryad, que, se não for assim, acaba n ão fazendo nada.
Sua mãe, a cunhada, o irmão de 29 anos e o de 17 tam bém ficam
“ atrás d ele” para ele fazer as lições, mas parece que só a irmã é que
controla realm ente essa parte.
N o ra nos descreve Ryad com o uma criança que não tem nenhum
gosto pela leitura: “ Bom, eu ten to obrigá-lo a 1er, mas ele não gosta
de 1er” . Ryad não freqüenta a biblioteca, lê raramente e quase nunca
pede um livro: “ Nunca ele vai dizer: ‘O lh a, esta tarde v ô pegá um
livro e v ô lê, em vez de ir jogar bola de gude” ’ . N o fim de semana,
quando ela tem tempo, às vezes lhe dá para 1er algumas páginas de
alguns livros de bolso que guardou de suas aulas da 7a ou 8a séries.
“T en to obrigá-lo a 1er ao menos duas ou três páginas por dia, mas
ele não gosta de 1er. Fica parado na frente do livro, Faço umas per­
guntas, digo: ‘M e diz qual é o assunto, qual é a história’ ” , mas ele
não gosta de 1er. Quando ela faz perguntas, percebe que ele não leu
ou que não guardou nada: “ Ele fica ali, com o liv ro na frente dele,
num sei, ele não lê. Faço algumas perguntas, é co m o se eu falasse
(risos) com um surdo. Ele n ão gosta de je ito nenhum de 1er, não sei
por quê” . Portanto, Nora tenta, infrutiferamente, provocar-lhe o gosto

110
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

pela leitura: “ T en to , com eço a contar um pouco da história, para


tentar atraí-lo, né? Então, leio algumas palavras, co n to um pouco
da história por alto, mas nunca o fim . Ele sempre me pergunta
com o é que term ina (risos), eu digo: ‘ Bom, leia e vo cê vai ver co m o
termina, né?’ . Daí, ele va i para o quarto, tenta 1er, mas não sei, ele
não lê. Faço duas ou três perguntas uma hora depois, duas horas, e
ele continua na primeira página. E olha que eu tento contar um pouco
a história para fa cilita r um pouco, mas n ão” . Poderiam os pergun­
tar se ela, sem saber, não está colocan d o o irmão dian te de d ificu l­
dades insuperáveis.
Sua irmã acha que será necessário inscrevê-lo no horário de estu­
do livre após a aula, durante os três últimos meses de escola, pois
lias 17h ãs 19h30 mais ou menos (h ora em que volta para casa) ele
fica brincando e n ão faz a lição (" A c o n t e c e que não tem ninguém
para cuidar disso, das 5h às 7h. Ele brinca demais, não faz a lição” ),
e às vezes nem chega a v ê -lo de n oite. N a verdade Ryad é m uito
mais ligado a seu irm ão de 17 anos ( “ os dois são mais próxim os, ele
é m uito mais p róx im o de Ryad do que de mim, porque têm muita
coisa em comum. Saem juntos nos fins de semana. Q uando fazem
as lições, tazem ju n to s"), que tam bém está em situação de grande
“ fracasso" escolar (um dos professores nos informa que teve este irmão
com o aluno, e que ele "tam bém tinha enorm es dificuldades” ). N ora
ressalta a existência de uma grande cum plicidade entre seus dois
irmãos ( “ Estão sempre conversando, pois divid em o q u a rto"); o
irmão e sua irmã representam portanto concretam en te para Ryad
dois princípios de socialização contraditórios (o “ sucesso” e o “ fra­
casso", a diversão e o esforço escolar), mas a cum plicidade entre os
dois irmãos, fundada, sem dúvida, em parte, sobre uma identidade
masculina com um , faz pender a balança para o lado mais desfavo­
rável a uma boa adaptação escolar.
N o ra conta que Ryad, quando vo lta da escola, vai logo tomar
lanche, e sai para brincar com seus amigos. Pode vo ltar para casa
lá pelas 19h ou fazer a lição antes que ela chegue. Pode ficar fora
até às 20h e dorm ir entre 21h30 e 22h, no m áxim o 22h30, e isso,
todas as noites. A s vezes, no dom ingo, Ryad alm oça sozinho p or­
que fica brincando com seus amigos e só volta depois das I3h.

L LI
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Parece que Ryad se diverte e sai bastante: vê televisão demais (tom a


o café da manhã ven d o desenho an im ado), brinca com seu vídeo-
game, brinca fora com os amigos, vai ao estádio de futebol com o
irmão de 17 anos, pratica atividades esportivas na quarta-feira à tarde
por intermédio da escola. O controle que é exercido sobre ele é, então,
bastante lim itado: diz respeito aos film es a que pode assistir (nada
de violên cia nem de sex o ), aos amigos que pode freqüentar e aos
limites territoriais de suas brincadeiras fora de casa ("E les não vão
além de um certo perím etro, porque eu os proibo de irem a lém ").
U m a outra faceta para explicar o que acontece c o m Ryad é fo r­
necida, de form a endógena, pela própria irmã, quando diz que ele
foi tratado demais com o o “filhinho mais n ovo” , o “queridinho” "super-
protegido” , que “ brinca demais” e nunca é colocad o diante das suas
obrigações. Parece, realmente, que Ryad não é sistematicamente con ­
trolado em sua vida cotidiana familiar, n o interior da qual passa muito
tempo desenvolvendo atividades lúdicas de todos os tipos. N ã o está,
portanto, nem em uma situação onde poderia se redirecionar por si
mesmo para uma autodisciplina d o p onto de vista escolar (em c o n ­
sequência, por exem plo, de uma socialização fam iliar escolarm ente
favorá vel), nem em uma situação onde as injunções dos pais sobre
a importância da escola pudessem encontrar os meios de se concre­
tizar nas formas de exercício de um con trole e de um acom panha­
m ento mais regulares e permanentes de seu trabalho escolar. O fato
de ser o “ filho mais n ovo ” , protegido, dentro de uma família sem gran­
des investim entos ctilturais o bjetivos (pais analfabetos, irmãos com
percursos escolares difíceis); o fato de ser escolarizado em uma classe
composta de casos difíceis e onde cada aluno não pode ser acom pa­
nhado regular e constantem ente (c o m o observou um dos dois pro­
fessores); o fato, fin alm en te, de só poder se beneficiar das com p e­
tências de sua irmã de vez em quando, de ter relações mais estreitas
com um irmão mais velh o em situação de “ fracasso” escolar, tudo
isto contribui para explicar a situação escolar de Ryad.
N o ano passado, quando ele alm oçava na cantina da escola, sua
irmã nos conta que fez amizade com uma servente que o fazia 1er, e
ele voltava à tarde rodo contente contando-lhes: “ Ele conhecia uma
senhora aqui, não sei seu nom e, que fazia ele preencher o tempo. Ela

112
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

lhe dava frases. É uma senhora que cuida da cantina. Era m uito sim ­
pática com ele. Fazia com que lesse certos... Era superlegal, não o
tem po todo, mas de vez em quando". A figura da “ senhora da ca n ti­
na" que deu atenção a Ryad, consagrando-lhe um pouco de tempo,
é o exem plo de uma situação, excepcional e não durável, na qual ele
pôde constituir através de uma relação socioafetiva privilegiada, um
princípio de m otivação ou de interesse pela leitura e pelas coisas esco­
lares ( “C h egava todo contente, falava disso com a gente à n oite").
A entrevista com Ryad permitiu confirm ar os elos estreitos que
tem com o irmão d o qual se sente mais próxim o, o papel de c o n ­
troladora que sua irmã exerce em matéria de escolaridade ( “ Depois
ela diz: ‘Faz a lição’ . Depois eu term inei, depois ela diz: 'M c mostra
o caderno’ ” ), seu v iv o interesse por tudo o que é brincadeira em
casa ou fora dela. Mas deixa sobretudo transparecer, através de
imprecisões semânticas, os diálogos de surdo, os im plícitos, a o ri­
gem dits dificuldades de com preensão da qual falam seus professo­
res. E que são, sem nenhum a dúvida, a consequência que sofre uma
criança cujas produções de linguagem , n o in terior de uma fam ília,
não são retomadas pelos adultos para c o rrigi-lo e levá -lo a ultrapas­
sar suas contradições, suas imprecisões, seus contra-sensos...

“Eu... eu vô comê. Depois eu, depois minha mãe, ela se... ela vai
passeá. Ela passeia, passeia, e eu vô pra fora pra passeá. Uma vez,
uma vez, uma... um monte de veis! Fico dando volta, vô na minha
prima. A í a gente,,. a gente fala, a gente falava, eles falava e assim
e assim. Depois, é... meu primo, sabe, ahnn..., tem o mesmo tama­
nho que eu. Então, ahnnn... então... a gente brincava um pouco
no quarto. Então, ahnnn... F ... ele si chama E ... A í ele disse, ahnnn:
‘Vai, vai ficá do lado da tua mamãe, vai’. A í, ahnn, minha, minha
mãe, ela me disse, ahnnn: ‘Porque você não vai brincá com o
F . A í eu disse: ‘Não, num tô mais cum vontade’. A í ela me disse:
'Então, vatno, vamo voltá pra casa’. A í a gente voltou, vi as hora,
era 10 horas. A í a gente... depois dormi, minha mãe mc disse:
‘ Dorme!’”

Q uando relemos a entrevista de Ryad, tivem os im ediatam ente


a impressão de um m odo de discurso bastante típico das crianças

113
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

escolarizadas em classes especiais, que já tínhamos estudado alguns


anos antes” . O fato de ficarmos sabendo que Ryad tora indicado para
freqüentar uma classe especial só confirm ou nossa intu ição inicial.
A tra vés de suas respostas, Ryad nos perm itiu evid en ciar um pres­
suposto às questões que nos colocam os n o m om en to da entrevista.
Essas questões partem do princípio de que a criança saiba situar-se
no registro do recorrente, do regular, d o habitual ou do geral ("E m
geral, me d eito a tal hora, faço isso, aquilo, etc.” ), e portanto que
adote uma atitude um tanto “ teórica" e classificatória em relação à
sua própria experiência. A c o n te c e que Ryad não consegue susten­
tar esse registro. Seu discurso, pleno de implícitos (de “ eles” , “ a gente"
que não rem etem a ninguém de preciso), confuso e contraditório,
respondendo ao contrário daquilo que esperamos, é igualm ente um
discurso que tom a a dim ensão do fato particular relatado co m a uti­
lização d o p retérito p erfeito* e de detalhes n ão pertinentes ao tipo
de discurso que se espera ( “ U m dia, com alguém, em tal situação,
aquilo se passou assim ou assado e deste je ito ...").
Desta form a, quando perguntamos o que taz quando vem da
escola e não quando vai à escola, Ryad responde à segunda propo­
sição. Em seguida, após uma retificação de nossa parte, diz que larga
sua mochila, que se senta “ na mesa” , que vê televisão, que tom a lan­
che, que vai brincar lá fora, que sobe, que pega um copo de água,
que bebe, põe de volta, e sai de n o vo para fora com “ eles” , tudo isso
expresso em um registro superficial.
Mas é necessário, para com preender m elhor a situação de Ryad,
saber o que ocasionou o "sucesso" de N o ra , que assim m esm o
repetiu a I a série ( “ A c h o que fo i por causa das com panhias (risos),
era legal, m e d ive rtia pra v a le r” ). U m a socialização fem in in a
m enos voltad a para o ex terio r da casa, um sistema de coerções e
responsabilidades familiares mais importantes por causa de seu sexo,
a responsabilidade m uito precoce pelos docu m entos da fam ília e
certas tarefas dom ésticas não acabaram por desviar N o ra das brin ­

* Km francês existem dois pretéritos perfeitos (ação concluída) atualmente: o da lingua­


gem escrita/literária, chamada de passé simple (passado simples), e, ás vetes, empregado
em língua oral cm formas de narrativas; na linguagem oral e escrita normal, emprega-se
o passé composé (passado com posto). (N .T .)

114
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

cadeiras exteriores e interiores mais distanciadas da socialização


escolar? D e qualquer form a N o ra , sem ex em p lo a n terior em sua
fratria, pôde, ao co n trário de seu “ irm ãozin ho m en or", en contrar
um lugar na con figu ração fam iliar, que se tornou c o m p a tív e l com
seu lugar na escola.

♦ Perfil 5: A s más condições de herança.


Jth K ., nascklrj em Lyon, sem Tcpetênciu escolar, obteve 3,8 nu avalia­
ção nacional.

Quando fom os marcar a entrevista, descobrimos que a senhora K.


não tinha lido o bilhete que tínhamos enviado. Pede a seu filh o Ith
para procurá-lo, se bem que tenhamos insistido em que não havia pro­
blema e que poderiamos explicar do que se tratava. Ela parece sem
graça p elo fato de não ter tom ado conh ecim en to d o bilhete, e culpa
o tilho, que, segundo ela, não lhe conta tudo. O bilhete estava no m eio
de suas coisas, todo amassado, o que a deixa bastante aborrecida.
A sala on de vai acontecer a entrevista, alguns dias mais tarde,
é revestida por um papel de parede um pouco gasto, com algumas
scrigrafias pregadas na parede, entre as quais o busto de uma m ulher
com um chapéu de véu. H a via tam bém uma televisão, um peque­
no aquário com peixes e um grande aquário onde estavam colocados
alguns livros. O irm ão da senhora K., que está viv e n d o p rovisoria­
m ente em sua casa, entrará por um m om ento durante a entrevista.
Durante nossa conversa, a senhora K. nem sempre term ina as fra­
ses, e faz várias afirmações vagas. A s vezes, fala depressa, e seu rosto
é m uito expressivo. Fora da entrevista, vai falar m uito dos proble­
mas d o prédio, d o fa to de estar v elh o , de ter baratas e ser insegu­
ro e evocará tam bém seu tédio durante os fins de semana. Q u a n ­
do fom os embora, nos agradeceu, talvez por termos preenchido uma
daquelas tardes “ m ortais” , ou talvez por termos nos dado ao traba­
lh o de escutá-la.
A mãe de Ith, que tem 32 anos, é de nacionalidade francesa (com o
seus pais), e não está trabalhando atualm ente, pois cuida do filh o
menor. Ela trabalhou em “ impressão” (grá fica ), em seguida com o
digitadora, que aprendeu na prática, "num dia só” . Depois de ter

115
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

repetido a 4a série, fo i orientada, durante a 6a série, para um curso


pré-profissionaP ( “ N ã o era grande coisa, viu?” ), depois fo i fazer um
cLirso técn ico |L' de três anos que lhe habilitaria a ser auxiliar de
escritório. Mas “ não gostei não", diz, “ e m esm o h oje ainda não
gosto” . N ã o teve tem po de fazer o exam e de fim de curso, pois sua
mãe morreu quando tinha 18 anos: “T iv e que cuidar de meus irmãos
e irmãs e de meu pai, claro” . N a escola, era m elh or em francês que
em matemática ( “ Era um zero à esquerda” ), e foi por isso que a orien ­
taram nessa direção. De fato, não gosta de trabalhar em escritório,
“ sentada, sem fazer nada” . T ev e uma série de empregos, trabalhou
com um dentista ( “Trabalhei com um dentista, no com eço era só
co m o recepcionista. Mas eu fazia tudo, na verdade. Era responsá­
v e l por arrumar o material, receber os pacientes. O rganizava aque­
las fotos pequenas, ele chegou a me ensinar os diferentes dentes, a
classificar, tudo isso. Fazia um pouco o serviço de secretária, tudo
isso. Era legal porque era variado. Posso dizer que de todos os tra­
balhos que tive foi esse que de verdade..."), e trabalhou também num
cen tro de recolh im ento de impostos.
O s pais da senhora K. são rela tiva m en te modestos. Seu pai
com eçou a trabalhar aos 14 anos, sem form ação profissional, com o
tom eiro-m ecân ico, e aí ficou. Sua mãe trabalhou um pouco com o
operária na indústria têxtil mas parou logo para poder educar os seis
filhos. Ela qualifica os irmãos de, “ ao contrário, um zero à esquer­
da em francês” (ou seja, comparados a ela: “ Fui eu que ensinei
eles” ). Seu irmão que está viv e n d o com ela, parou na metade de
um curso pré-profissionalizánte de n ível m édio, e h oje faz entregas.
Tem uma irmã que trabalha “ em digitação” , outra que trabalha na
A g ên cia N a cio n a l para o em prego { A N P E , em francês); outro que
é ch ofer de cam inhão e outro que é lixeiro em V a u lx-en -V elin
(periferia de Lyon ).
A senhora K. está divorciada há um ano do pai de seus dois filhos
(q u e lhe dá uma pensão alim en tar), e sua vida profissional instável
está ligada a uma vida pessoal m ovim entada: “ Bom, eu podia ter
ficado lá (n o dentista), daí eu tive uma história com o pai dos meus
filhos, então fui para Paris por algum tempo. E depois ele me fez v o l­
tar para Lyon. E, ah, bom, foi a í então que eu trabalhei mais tempo.

116
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Depois trabalhei de n o vo . N u m lem bro mais, fiz tanta c o isa !” . Seu


ex-m arido trabalhava com o vigia em um restaurante, e às vezes fica ­
va servindo n o bar. N ã o conhece ao certo sua escolaridade, mas deve
ter sido curta, segundo ela. Os pais de seu ex-m arido, que são tai-
landeses (o pai era m ilitar de carreira), viveram com eles durante
vários anos.
C o m esse perfil temos a prova flagrante de que um capital cultu­
ral familiar só pode ter efeitos socializadores sobre as crianças se encon­
tra os meios (situação e tem po) de ser “ transmitido". De fato, ainda
que a senhora K. tenha tido um percurso escolar infeliz (curso pré-pro-
fissionalizante, não tirou o diplom a), ainda guarda, de uma formação
escolar curta mas nobre (auxiliar de escritório) — e sem dúvida tam­
bém de algumas experiências profissionais valorizadas — , algumas
práticas de leitura relativam ente importantes. Lê revistas (faz palavras
cruzadas e lê o horóscopo), jornal (L e Progrès, no qual lê as páginas
policiais, mas não as de política): “ Bom, num leio muito, porque é m eio
jato (em v e : de ch ato), e isto, pra mim... (risos)... o programa da tele­
visão” (uma revista chamada Télé 7 Jours, na qual Lê os artigos, mas
“ com eço sempre" pelo horóscopo). Gosta também de livros (lê roman­
ces de aventuras ou livros que falam de “ histórias vividas", de “ fatos
reais” — Jamais sans ma fille (Sem minha filha, jamais), de Betty M ah-
m oody*, mas faz questão de dizer que não lê romances banais de amor,
pois “é tudo sempre igual, são sempre as mesmas histórias” , bem com o
de histórias em quadrinhos (seu irmão lhe traz, pois ele faz entregas
para gráficas), e ela era assinante durante um ano do France L o i­
sirs**. Frequenta também a Biblioteca M unicipal ( “O Ith só vai quan­
do lhe dá na telha, mas com o na maior parte das vezes ele tica com
as amigos...") e um centro de encontros onde coordenadoras contam
histórias para as crianças e onde mães e filhos brincam juntos.
Várias frases mostram na senhora K. uma atitude de boa vo n ta ­
de cultural e até m esm o uma certa bulim ia cultural. A v a lia em
cin co ou seis o núm ero de livros que lê por mês e, n o caso das revis-

* L ivro que narra a historia de uma mãe que deseja reaver a filha, sequestrada pela família
de seu marido. ( N . T )

* * France Loisirs: um clube de livros, (N .T .)

117
SUCESSO ESCOIAR NOS MEIOS POPUIARES

tas, afirma: “ L e io tudo, absolutam ente tudo o que m e passa pelas


mãos” . E até percebemos em sua maneira de justificar o fato de recor­
rer ao d icion ário a relação de d o m ín io que estabelece com a cultu­
ra legítim a: “ Prefiro olhar logo pra saber, em vez de ficar ussím ni/um-
do feito boba ..." E necessário acrescentar que o pai da senhora K.
parecia dar va lo r à leitura, pois sua filha ainda guarda uma coleção
de livros sobre animais que ele lhe deu de presente ( “ Foi uma c o le ­
ção de de: livros que meu pai me deu de aniversário. São livros de
A a Z, sobre todos os animais. Tenhos muitos livros assim, são
livros que tenho há m uito tem po, mas que co n servo "). Ela até se
apresenta com o a maior leitora de sua fam ília, em relação a seus
irmãos, que não têm nenhuma paixão por livros ( “ Ih, meus irmãos,
nem pensar, nem adianta falar de livros com eles, não é o n egócio
deles. Eles gostam é de esporte, de sair, todas essas coisas"), e justi­
fica o pouco interesse de Ith pela leitura por ser hom em : “ T en to fazer
ele 1er, mas é mais difícil, num sei, acho que os m eninos se preocu­
pam m enos c o m isso, com livros, co m a leitura, essas coisas” ,
Podem os notar que ela lê, apesar da inexistência de uma rede de
sociabilidade onde poderia encontrar uma maneira de dar sentido
e valor, junto com outros, a suas leituras: “ Estou sempre sozinha,
então... (risos)".
A posição da senhora K. enquanto mulher, na divisão sexual dos
papéis familiares, e enquanto pessoa, formada em um trabalho de tipo
adm inistrativo, acabou por conduzi-la a tarefas familiares de escri­
ta. A in d a que reaja de um m odo tipicam ente espontâneo a um certo
número de práticas de escrita que considera rígidas e constrangedo­
ras, foi obrigada a ocupar-se dos docum entos do casal e de seus
sogros, sem que isso lhe causasse realm ente dificuldades. Ela mesma
é quem escreve as cartas administrativas (ainda que prefira usar o
telefon e para contatos com sua fam ília), preenche sua declaração de
impostos, escreve os bilhetes para a escola e deixa às vezes alguns
bilhetes pregados na porta quando sai. Faz listas de compras, redi­
gindo-as à medida que vai se lembrando das coisas que precisa com ­
prar, e calcula mais ou menos quanto vão custar: “ Faço antes umas
contas, m eio por alto, né? Por exem plo, o litro de leite, aí separo uns
20 francos (4 reais), ponho uns 20 francos, assim, por alro, consigo

118
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

calcular não o total exato, mas praticam ente” , Ela anota alguma coisa
antes de telefonar para algum órgão adm inistrativo, ( “ Porque às
vezes a gente pensa uma coisa e depois esquece e não sabe mais o
que dizer” ), e também durante ou depois d o telefonem a.
P or outro lado, nunca m an teve um caderno de contas, não
escreve lem bretes ( “T á tudo aqui dentro, ó ," nos diz m ostrando a
cabeça), não escreve listas de coisas que tem de fazer ( " A c h o isso
rid ícu lo") e tem uma reação tipicam ente espontânea em relação a
esse tipo de prática de escrita que julga rígida demais: “ A gente sabe
m uito bem o que tem de fazer, né? N u m sei, eu sei mais ou menos
o que ten h o de fazer amanhã. N u m d igo daqui uma semana, não,
aí precisava, mas num sei, acho isso m eio... O lh a, é como se a gente
escrevesse uma coisa para um robô: ‘V o c ê tem que fazer isso, aquilo,
aquele outro, etc., etc.’ . Bom, quer dizer, eu vivo minha vida, de ver­
dade, bom, não assim, dt^ jeito que ela vem, mas... N u m sei (risos),
é bom , talvez assim, si a gente faz uma lista, precisa fazer isto, aqui­
lo, durante o dia, e si a gente num tá com vontade de fazer uma coisa,
bom, passo roupa, ten h o que ir num lugar, e depois, si num posso
ir, num sei, sei lá. A c h o isso, sei lá... A gente faz com o pode, como
quer". A senhora K. possui várias agendas, mas não as utiliza, bem
co m o diversos calendários que, às vezes, olha para contar os dias,
mas sobre os quais não anota nada.
A tualm ente classifica os documentos administrativos, mas duran­
te muito tempo não o fazia. Suas fotografias são, na maior parte, “fotos
livres". N ã o acha m uito útil classificar fotos “ que olham os só de vez
em quando". Q u ando perguntamos se anota coisas nas fotos, res­
ponde: “ N ã o , im agine, já tem a fotografia, já tá bom ". A ssim com o
outros entrevistados, ela reage com um “ E quebrar a cabeça pra nada",
quando perguntam os sobre certas práticas de escrita. Em relação a
ter um diário, reage tam bém de uma form a um pouco espontânea:
“ N u n ca me v e io na cabeça” . Ela considera esta prática “ m eio estra­
nha” , sem que consigam os saber o que entende por isso: “ N ós, nossa
vida, a gente guarda ela na cabeça, não precisa de... É a vida, é assim
e p on to final. N u m precisa contar em um...”
A senhora K. insiste no fato de que a escola é uma coisa im por­
tante e afirma que n ão pára de lem brar seu filh o: "B om , não paro

119
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

de repetir, pois quando vem os a vida co m o está agora, imagina


mais tarde. E nele que penso, digo pra ele: ‘O lha com o tá difícil encon­
trar trabalho ou qualquer coisa, m esm o quando temos um diplom a
na mão, num é?,..‘ N ã o quero que ele faça co m o eu” . N o en tan to,
ela mostra os lim ites do acom panham ento escolar de Irh, quando
o julga “ m édio, não muito bom, não m uito bom. N u m seria bom,
nem m uito ruim, m édio", quando considera que lê e escreve "razoa­
velm en te bem ” , quando, na verdade, ele é descrito p elo professor
com o tendo enorm es dificuldades em todos os dom ínios (tirou 3,2
com o média geral na última prova do ano, da qual 2,5 em leitura
silenciosa, 2,7 em ortografia, 4 em gramática e 3,7 em m atem áti­
ca ), e sobretudo em relação à escrita. A senhora K. apresenta Ith
com o uma criança avessa ao trabalho escolar e que só pensa em brin­
car com seu vídeo-gam e ou fora, com seus amiguinhos: “ Pra m im é
difícil lidar com ele, é verdade. Porque para tentar que faça algu­
ma coisa... Q u ando v e jo que tem uma coisa que ele não com preen ­
de, ou tá d ifícil pra ele, digo sempre, vem aqui, te explico, vamos
rentar entender, ele é tão teimoso, e vem logo me dizendo: ‘ D eixa,
já entendi, num precisa’, e não quer nem saber, Ele é realm ente.,.
Fica o tem po tod o pensando em ir brincar com seus amiguinhos, e
é só". Ela lhe retirou o vídeo-gam e durante um certo tem po porque
ele ficava m uito tem po jogando, mas isso não alterou seu com por­
tamento: “ E, eu proibi. Desliguet durante umas semanas, e ele nem
aí. Ele sai co m os amigos. Berra o dia inteiro que quer descer, por­
que o dia in teiro ele ficava jogando vídeo-gam e, num queria fazer
mais nada, e por causa disso, na sua cabeça, num tinha mais nada...
Era isso ou seus amiguinhos. Então o dia in teiro era o vídeo-gam e,
os amiguinhos, o vídeo-gam e, os amiguinhos. Ele chegava, jogava
a m ochila no chão e saía correndo pra brincar” .
Q u ando ela ten ta explicar-lh e as lições, ele n ão escuta. N u n ca
pede ajuda vo lu n ta ria m e n te, pois está sem pre co m pressa de
livrar-se o mais rápido possível dos deveres de casa. Sua mãe diz
que faz um c o n tro le a cada dois ou três dias, mas Ith diz sem pre
que já fez a lição na escola (“ A m aior parte das vezes ele ch ega e
eu digo: ‘ Bom , agora v o c ê vai fazer a liçã o ...’ ■
— ‘ Eu num ten h o
h o je ’ , ele responde. ‘N u m ten h o, eu já fiz on tem .' O u en tão, ‘já

120
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

fiz na escola ’ ” ), ou en tão fica n o quarto e, qu an do sai, afirm a já


ter fe ito : “ Ele quer sem pre fazer liçã o n o quarto. D a í digo: ‘N ã o ,
v o c ê va i fazer aq u i’ , porqu e depois ele pega as coisas: ‘ P ron to, já
fiz’ . Eu aí num v i nada...” Ele, porta n to, utiliza todas as estraté­
gias possíveis para escapar aos deveres de casa: “ Q u er se livrar o
mais rápido para brincar, sim plesm ente". C h eg a até a "p u la r" os
ex ercícios e a esquecer os livros e cadernos na escola. Sua mãe
diz que, assim m esm o, ela o o briga a refazer os ex ercícios até que
estejam certos, e o faz recitar em voz alta as lições. D urante as
férias, ela lhe com pra cadernos de férias ( “ Pra que ele num esque­
ça tudo, pra que fique um pouco por d en tro” ), mas ele faz exercícios
a cada dois ou três dias, e n ão sabemos se ela consegue realm en -
te im p or-lh e essa obrigação.
A própria senhora K. nos dá, num d eterm in ado m om ento, uma
explicação sohre suas dificuldades em co n trola r seu filh o : “ E duro
mesmo. D ig o pra vocês, e le é d ifíc il. Principalm en te, ahn, diga­
mos que com seu pai num era assim. N ós nunca vivemos com ele de
verdade um tempo significativo. A í acho qui tem isso também. Porque
quando seu pai tá aqui, num é assim” . D e vez em quando, eia tem
que usar o “ c in to ": “ É, sô obrigada a usar de vez em quando o
‘c in to ’ (risos). Bom , num bato, é só pra amedrontar. Porque sinão
num tem mais respeito, num tem mais nada.” M ais adiante, duran­
te a entrevista, confessa que bate nele de vez em quando: “ Bato
nas pernas, um pouco. N ã o é para machucar". Seu marido, por outro
lado, parece ter mais autoridade: “ Sem bater nele, nada. Só gritan ­
do um pouco, o lh a n d o e pronto, ele lo g o fica co m m edo, obedece
e acabou. O problem a é que ele nunca vem aqui, então, é por isso
que ele a p ro veita ” . Ela acha que d eixou “ passar muita coisa” quan­
d o ele era m enor: “ É por isso que co m o m enor ten to fazer... Tem
muita coisa que num passo pro pequ en o e que passei pro grande.
E assim tam bém pur causa disso, porque com o num estava nunca
em casa, passei um m on te de coisa. N u m devia, v e jo agora qui eu
num d evia rê passado, porque... Agora é tarde demais’’ .
A en trevista nos p erm ite recon stitu ir uma situação na qual o
casal é particu larm en te instável. O pai nunca esteve fisic a m en ­
te presente na vid a fam iliar, e nunca se preocupou co m os filh os

121
SUCESSO ESCOLA» NOS MEIOS POPULARES

( “ Seu pai, não, de qualquer je ito ele nunca cuidou dos filh o s ” ),
a mãe teria saído de casa várias vezes para vo lta r à própria fam ília,
deixa n d o talvez as crianças co m os avós: “ T em 10 anos que m ora­
mos aqui, antes m oram os 2 anos n o núm ero 2 e depois viem o s
pra cá, por 8 anos. S ó que eu, eu num morei m uito tempo aqui. C o m o
disse pra vocês, ia daqui pra la. (R isos.) A gen te mora cada dia
num lugar".
Podem os imaginar, é claro, qLie, em outras configurações fam ilia­
res, as dificuldades do casal não se refletissem tanto na escolaridade
dos filhos, pois a preocupação pedagógica é maior. Mas em um m eio
onde o capital cultural não é evidente, onde os reflexos, culturalmen­
te incorporados, de preservação da escolaridade da criança não estão
presentes, as turbulências familiares têm efeitos imediatos, co m o é o
caso de Irh. U m a certa forma de estabilidade familiar (ainda que m an­
tida através de separações, divórcios...) parece im portante para for­
necer as condições de uma escolaridade correta.
E é nessa turbulência do casal que podem os com preen der m e­
lhor o com portam ento de Ith. Sua própria mãe diz que, por conta
dessa situação, ela “ lhe deixou passar m u ito " as coisas. Ela deixa
transparecer, nas situações que d es crev e", que perdeu o co n trole
dos filhos, e se apresenta c o m o alguém que tem menos autoridade
que o ex-m arido. Parece deixar as coisas a con tecerem e só agir n o
lim ite, am eaçando bater de cin to ou dar tapas. A s regras de vida
não são, portanto, m uito fixas e definidas, e, na m aior parte das
vezes, são aplicadas irregularm ente. Por exem p lo, em bora a senho­
ra K. diga que con trola o que Ith faz fora de casa, quando ela vai
à biblioteca às quartas-feiras, d eix a -o brincar com os am iguinhos,
e não tem na realidade possibilidade nenhum a de con trolar o que
ele faz. Da mesma form a, quando con ta que Ith conseguiu uma vez
ir bem longe da cidade sem sua permissão, é sinal de que o c o n tro ­
le de suas atividades, sem dúvida, não é tão rígido qu an to o diz.
O u ainda, em bora diga que o obriga a fazer e refazer seus deveres
de casa todas as tardes antes que ele saia para brincar com os a m i­
guinhos, o professor (q u e con firm a que Ith "n ã o fica triste e in fe ­
liz em um ca n to " mas que, “ p elo con trário, ficaria brincan do o dia
in teiro” ) nota que ele nem sem pre faz as lições e que raram ente

122
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

aprende o que lhe é ensinado. U m a interpretação psicanalítica sel­


vagem veria aqui um caso típ ico de ausência d o Pai e, portanto,
da Lei. A interpretação sociológica, menos universalista e mais aten­
ta à singularidade das configurações fam iliares, tendería, antes, a
descrever as condições sociais de inexistência de regras de vida fixas
e regulares e da ausência de uma autoridade respeitada.
Sem dúvida, Ith aprendeu que, com uma mãe preocupada com
seus problemas conjugais, suas repetidas “ mentiras” (a mãe diz, a esse
respeito: “ Porque pra ele, entre o que ele con ta e o que acontece
realmente.... Precisa ver, viu?") para fugir de certas obrigações (fa m i­
liares ou escolares) funcionavam perfeitamente. Isso explicaria o tom
com pletam en te “ m itô m a n o" da entrevista que tivem os com ele.
De fato, foi a entrevista mais im aginativa que fizemos. Ith parece
ir in ven tan do situações enquanto vai respondendo às perguntas.
Retom a, por exem p lo, com portam entos da mãe, atribuindo-os a si
mesmo: diz que toda tarde sai para com prar o jantar para toda a
fam ília, “ lá em b a ixo", pois a mãe é doen te; diz que fica cm casa n o
dom in go tom ando conta do irm ão enquanto a mãe “ vai lá em bai­
x o ", e explica co m o estuda as lições, in verten do mais uma vez os
papéis: “ D igo pra m inha mãe, leio e digo si tá certo ” . A firm a tam ­
bém que vai à biblioteca todas as quartas-feiras, que mostra as notas
ao pai (qu e não v iv e mais com eles), à mãe e ao “ irm ão" de 18 anos
(que talvez seja seu rio de 30 anos, ou então um ser que ele im agi­
nou), que, acrescenta, está n o exército, etc., transformando as situa­
ções ao bel-prazer de uma fantasia cujo prin cíp io ou origem nem
sempre chegam os a com preender m uito bem.
Porém , as “ mentiras", as fabulações de Ith só se explicam na rela­
ção com seus pais, e em particular, com a mãe. Poderiam os dizer que
n ão passam de um sintom a. A s estratégias para contornar as pres­
sões que Ith in ven ta são indissociáveis dos com portam entos e rea­
ções dos membros da constelação familiar. Essas estratégias são ca l­
cadas nas m odalidades dos com portam entos parentais existentes.
N o entanto, Ith é descrito do p o n to de vista escolar co m o “ uma
criança que não é nada burra", e cujas "enorm es dificuldades não
são necessariamente conseqüência de uma falta de possibilidades",
mas que não possui as condições de atenção adequadas: “ Fica todo

123
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

o tem po virado de costas” ; “ O tem po tod o está distraído” ; “ A s raras


vezes em que escuta, em que presta atenção, reage positivam en te";
“ N unca está interessado por algo em especial". Podemos, portanto,
supor que a relação com as pressões, com as regras, com as ex igên ­
cias impostas por adultos é, no quadro da configuração descrita {e
que se caracteriza, sobretudo, por um fraco grau de racionalização
das atividades domésticas), o cen tro dos problemas escolares de Ith.
Seu irmão menor, pelo fato de ter uma presença materna mais regu­
lar (ela não quer lhe “ deixar passar” tantas coisas com o fez com o
filh o m aior), de com eçar sua escolaridade no m om en to em que os
“problemas conjugais" estavam se resolvendo e por frequentar um
centro o nde encontra outras crianças e onde brinca e escuta histó­
rias, talvez esteja em uma situação mais favorável para vivenciar uma
escolaridade mais feliz.
Para terminar, observaremos que o julgam ento do ponto de vista
escolar feiro sobre Ith tem tendência, em desespero de “ causas" (p o r­
que n ão encontram os uma causa prová vel para a situação), a c o n ­
centrar o problem a sobre um elem en to natural e isolado, e assim
absolutizar seus efeitos: “ Ele é canhoto. Vocês me dirão: ‘ Isso não é
um problem a', mas fin alm en te, bem, tem isso também ...” .

♦ Perfil 6: Dois capitais culturais indisponíveis.


Smatn M , , nascido em Lyon, sem repetência escolar, obteve 4,4 na ava­
liação nucional.

N o dia do en con tro marcado entramos em um apartamento após


nos tennos anunciado pelo interfone. Ele fica em um prédio um pouco
mais “chique" que os outros do bairro. A mãe de Sm aïn nos acolhe
e vai i medi atam ente buscar a filha mais velha, de 23 anos, cham a­
da M . Explicam os-lhe as razões pelas quais estamos fazendo esta
entrevista, pois será ela quem vai responder às nossas perguntas.
Entramos em uma sala o nde duas vizinhas estão sentadas em um
sofá. Sentam os em uma cadeira com um pé quebrado. A irmã mais
velha está sentada ao nosso lado, e a mãe, d o outro lado da mesa.
N ã o vem os m uito bem seu rosto, que fica escondido atrás de um
arranjo de flores. Pensamos de in ício que ela fosse afastá-lo, mas de

124
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

fato, ficou ali até o fim cia entrevista. Portanto, a mãe fica nos
o lh an do de um m odo engraçado, durante toda a conversa, através
das flores. Sua filha lhe pedirá, de vez em quando, algum esclareci­
m ento, na língua cabila ou em francês. A entrevista se desen volve
m uito bem. M . parece muito à von tade durante toda a conversa.
A c h a algumas perguntas estranhas ou evidentes, que lhe provocam
risos ou sorrisos e que instalam uma espécie de con ivên cia entre nós.
Sm aïn ficou fora, brincando com os amigos, durante a entrevista.
O pai de S m aïn, de 52 anos, vem de uma fam ília cam ponesa
cabila analfabeta. Está na França desde que prestou o serviço m ili­
tar (h á mais de 30 anos), e está trabalh an do c o m o o perário esp e­
cia liza d o, soldador. L ê e escreve francês sem p roblem as. Sua
mulher, de 43 anos, vem do m esm o m eio social. N ã o frequentou
a escola, e, p o rta n to , não sabe 1er n em escrever. V e io para a
França 4 anos depois d o m arido, e, assim mesmo, tem d ific u ld a ­
des para falar e c om p reen d er o francês, e sua filh a lhe traduz algu­
mas das perguntas.
Os filhos, à exceção de M ., nasceram na França. São seis ao todo:
M ., de 2.3 anos, fez até a 8a série, em seguida cursou uma escola
profission alizan te'', e trabalha co m o assistente em puericultura
em uma creche ("E n tre parênteses, meu diplom a não tem nada a
ver com o que eu queria fazer (risos). Bom , depois eu queria fazer
uma especialização em atividades sanitárias e sociais. Bom, aí num
deu certo, porque eu tinha perdido uns docum entos e toda essa his­
tória, daí esquecí a escola e en trei na vida a tiva ” ); um rapaz de 17
anos que está na 8a série; uma m enina de 13 anos, na 6 a série; um
outro de 12 anos, na 5a série; Sm aïn, de 8, que está na 2a série, e
um pequeno de 4 anos que freqüenta o maternal.
Sm aïn não v iv e em um m eio social totalm ente desprovido em
relação ao universo escolar. Frequentou a escola maternal, com o toda
criança francesa (qu an do tinha 4 anos), e seus pais estão na França
há mais de 30 anos. N o cen tro da configuração familiar, o pai e a
irmã despontam co m o os personagens mais próxim os dos u niver­
sos de cultura legítim a,
O pai é op erá rio especializado e m ilita n te sindical. Interessa-
se, ao co n trá rio da m aioria dos pais que consideram os até aqui,

125
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

através da leitura co tid ia n a d o jorn al {L e Progrès), acom pan h an ­


d o os jornais na T V ou os debates p o líticos, pelas atividades p o lí­
ticas e sociais ( “ Ele se interessa m u ito por tudo que é atualidade
e essas coisas” ). Se considerarm os que a in diferença em relação
ao mundo p o lític o é, na m aioria das vezes, um sinal de im p o tê n ­
cia em relação a ele, en tão o interesse d o senhor M . pela p o lítica
é sinal de um sen tim en to de m en or im p otên cia. Ele não se auto-
exch ii deste universo leg ítim o , e dem onstra assim uma relação
menos in feliz com os universos de cultura legítim a. Sua filh a o
apresenta co m o o especialista da fa m ília em p o lítica , e diz que se
dirige a ele quando não en ten d e algum a coisa: “ Ih, ele lê tudo.
Si interessa, lê bastante. C ada vez qui tem um d ebate p o lític o na
televisão, sabe, eu num gosto di p o lítica , a í eu v ô imbora. Ele não,
ele diz: ‘V ô olh á , quero sabê o que eles vã o dizê, o que eles vã o
co n tá ’ . A liá s, quando eu num c o m p reen d o uma coisa de política ,
pergunto pra e le ” . A c o n t e c e tam bém Lie os dois con versarem
sobre coisas qtie e le lê no jo rn a l ou em algum livro: “ C o m ig o , é
quase sempre, quando ele pega um livro, aí, en tão ele m i diz o
que tá pensando, ou quando um livru im pressiona ele. A í assim
ele me diz umas frases, e co m o eu quase sem pre já li o liv ro antes
(risos), eu leio bastante, então, eu sei que ele tá falando nisso. Daí,
então, a gente engata a conversa, né? Senão, mais ou menos, quan­
do acon tece alguma coisa, um crim e que ch oca ele, ou en tão
política , sempre igual, uma coisa que ch oca ele ou qui ele acha
que num rá certo, aí ele diz, pensa em voz alta, aí a gen te o u ve e
engata uma conversa, né?” .
De maneira geral, ele gosta de 1er (a té histórias em quadrinhos:
" A h , sim, as revistas de quadrinhos, ele gosta m u ito! C om pra para
as crianças, quando ele sai pra fazer compras, coisas assim, bom,
ele passa, com pra e diz: ‘ E pras crianças’ , mas ele lê ” ), e freqüen-
tava regularmente, há dez anos, a biblioteca municipal. O que, ainda
neste caso, se mostra com o excepcional se comparado às outras situa­
ções em que os pais, sobretudo os hom ens, não colocam os pés em
tal universo. Mas a leitura de livros não parece ser freqiienre nele.
Quando lê, trata-se sobretudo de obras sobre a geografia de um país
ou romances policiais, mas não “ romances do tipo Sulitzer". M . escla­

126
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

rece que a leitura tam bém não é o “ passatempo fa v o rito " de seu
pai ("E u vi ele pegar livros e 1er. Bom , digam os que ele não está
ligado nisso, na leitura, não é seu passatempo fa v o rito ” ), mas que
ele prefere a televisão, que vê bastante.
Outro personagem central, portanto, em relação à cultura legítima
é a irmã de S m a ín ". Ela tem um diplom a profissional, lê m uito e é
assinante do France Loisirs. Tem até uma profissão, assistente de pue­
ricultura, que a aproxim a dos problemas educativos. Portanto, não
é por acaso que ficou encarregada de responder a um estranho que
faz perguntas sobre a escolaridade. C o m o o pai, é responsável pelas
relações externas à fam ília, em particular, o extern o legítim o. Ela
diz que gosta de se ocupar dos problemas fam iliares: “G o sto de ver
o que está acontecendo, ué. Problemas de família, tudo isso, me m eto
em tudo” , e confessa que nem sempre está de acordo co m o pai.
E o senhor M . quem, por sua mulher ser analfabeta, tom a conta
dos documentos da fam ília ( “ É tarefa do meu pai. Q uando tem a ver
com ele e com minha mãe, enfim, com a família, é com ele todos os
documentos administrativos” ), sem precisar de ajuda, ainda que a filha
desempenhe o papel de assessor quando ele não tem tempo. É ele quem
lê a correspondência adm inistrativa e responde, quem preenche a
declaração de impostos, preenche os cheques, escreve e assina os docu­
mentos para a escola, redige lembretes quando necessário e escreve
“ regularm ente” ao irmão, que mora na C abília. N o entanto, co m o
em muitos lares on de os hom ens é que são responsáveis pela escri­
ta doméstica por conta da m enor com petência de suas mulheres, o
senhor M . não desenvolve nada além dessas práticas de escrita e, nesse
sentido, suas disposições racionais. E ele o encarregado dos docum en­
tos administrativos, mas a filha nos diz que ele não os arruma real­
mente: “ Ele é um pouco bagunçado. A gente briga sempre por causa
disso, mas pra ele, digamos, ele põe as coisas num canto, e acha
depois, sozinho, mas ele não é ordenado. P õ e tudo no mesmo lugar.
Bem, a gente sabe que são seus documentos, sua papelada, então a
gente num mexe. E daí, quando ele precisa de alguma coisa ele acha
sozinho". Ele não tem uma caderneta de contas: “N ã o , nada de cader­
neta de contas. Sabe tudo de cor, com o minha mãe. Fazem todas as
contas deles de cabeça, bom, eles não têm caderneta de contas. E tam-

127
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

bém, em geral ele tem boa memória, se lembra m uito bem de quan­
to gastou, de quanto sobrô, e si esquece ou tem uma dúvida, ele pega
o talão de cheques, refaz as contas, mas em geral, ele se lembra bem ” .
Só raramente acontece de ele deixar um bilhete para alguém da
família (mas isto é mais frequente para M .): “ Bom, qué dizê, meu pai,
não, não muito. N u m faz muito bilhete. O u então, quando é muito
importante de verdade, aí então ele tem m edo que a gente num lem ­
bre, ou coisas assim, aí acontece. Mas é raro, ele sempre nos diz na
véspera, as coisas desse tipo. Eu, por exem plo, ten ho mais tendência
de deixar, quando saio, se num vô voltá, bom, aí anoto, ou então quan­
do esqueci de comprar alguma coisa, ou então, quando quero que
alguém taça alguma coisa pra mim, bom, escrevo e d eixo em cim a da
mesa!” . Ele também não faz lista de compras ( “ N ã o , faz de cabeça” )
ou listas de coisas para fazer, não tem agenda e não toma notas antes
ou depois de um telefonem a ( “ N ã o , ele tem tudo na cabeça, ele sabe
tudo e diz m u ito bem o que tem de dizê").
O problem a de Sm aín reside no fato de que os dois capitais cul­
turais (o s dois princípios socializadores mais adequados em relação
ao mundo escolar) da fam ília quase nunca estão disponíveis. O
efeito que poderíam exercer sobre ele não têm , portanto, o m esmo
peso que poderíam ter se ele estivesse o tem po tod o e n v o lv id o por
eles. U m a irmã de 23 anos que trabalha e tem suas próprias a tiv i­
dades extrafam iliares com amigas; um pai que v o lta tarde do traba­
lho ou que tem atividades extrafamiliares com os amigos ( “ A c o n ­
tece dele num ficar em casa, quando sai com os amigos” ), e que, no
âm bito da d ivisão sexual das tarefas domésticas, pouco se ocupa da
educação cotidiana de seu filh o. A in d a que os pais considerem que
a escola seja uma coisa importante para os filhos ( “ E, ela (a m ãe)
diz m uito bem , e explica pras crianças que si eles querem mesmo se
esforçar, nós num podem o fazê n o lugar deles. Então eles precisam
se esforçar o m áxim o, qui si eles num fazem isso, vã o sê eles qui vão
sofrê as conseqüências mais tarde, né? D e qualquer jeito , isto a
gente explica lsem pra eles” ), quem fica em casa para cuidar de Smaïn
é uma mãe analfabera que não fala m uito bem o francês (qu e fica
atenta para que Sm aín vá se deitar às 21h “ n o m áxim o” , a não ser
quando ele não tem aula no dia seguinte e quer ver um film e ) e dois

128
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

irmãos e uma irmã que estão atrasados do p o n to de vista escolar (um


deles tem 3 anos de atraso, e os outros dois, 1 ano de atraso). Os
professores que já tiveram seus irmãos e irmãs com o alunos (a m enor
freqüentou uma classe especial) nos inform am que eles também
tinham o mesmo tipo de dificuldades escolares.
Dessa form a, S m aïn encontra-se só para fazer as lições de casa
e superar suas dificuldades escolares. Quando perguntamos a M . sobre
a escolaridade do irm ão, ela nos diz: "B om , eu num posso respon­
der m uito sobre isso” , pois é o pai quem acom panha mais sua esco­
laridade: “ Eh, é, é ele quem assina o b o letim , por isso é ele quem
sabe o que está a co n te c e n d o !” . M . tica pou co em casa ( “ Porque eu
num tô quase nunca” ), e a mãe, que não sabe 1er, ignora todas as
dificuldades de Sm aïn: “ A h , não, m inha mãe, co m o ela num sabe
1er, ela num olha as notas” . A irmã confessa, portanto, não saber
quais são os resultados escolares do irmão: “ N ã o posso dizer em que
matérias ele vai m elhor, em quais vai pior. Sei que em leitura ele
tem algumas dificuldades, porque num certo m om ento eu dava bron­
ca e queria que ele lesse e escrevesse m elhor; e n tão sei que nisso é
d ifíc il, mas m atem ática, rudo isso, num sei m esm o si e le tá na
m édia da classe ou n ão” . Pou co a pouco, n o desenrolar da e n tre ­
vista, descobrim os que as duas pessoas mais com petentes da fa m í­
lia estão pouco d ispon íveis para acom panhar efetiva m en te Sm aïn
em seu percurso’4.
O controle escolar feito pelo pai e pela irmã é episódico. O pai
verificaria as lições, “ mas não toda n oite” . A lé m disso, quando Smaïn
traz notas baixas para casa, o pai lhe demonstra que não está co n ten ­
te e lhe diz que é preciso estudar mais, mas não lhe dá nenhuma puni­
ção: “ Ele dá umas broncas, e diz que ele precisa estudar mais, bom,
coisas desse tipo, né? Punir, não! N ão, meu pai nunca é severo demais!
N ã o , de jeito nenhum. M eu pai dá bronca, reclama, diz pra ele que
ele tem que tirar m elhores notas, senão, já viu, no futuro, mas puni­
ção desse tipo, ah isso n unca’1". Smaïn nunca fica depois da aula no
horário de estudo livre, e faz quase sempre as lições em casa. O fato
île a irmã não saber dizer quanto tempo ele leva para fazer a lição ( “Num
calculo m uito o tem po que ele leva pra fazer a lição! N u m sei!” ) é
um bom índice de que acompanha muito pouco o irmão no traba-

129
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

lho escolar. N o entanto, ela diz que, quando ele tem alguma dificul­
dade em fazer as tarefas, pede ajuda mais para ela que para o pai, que
volta tarde do trabalho. Essa assistência deve ser, no entanto, relati­
vam ente pouco frequente, pois quando lhe perguntamos em que
consistem as dificuldades de Smaïn, não consegue dizer ( “ Bom, deixa
ver, hum... tudo depende do problema, depende de ver o que ele tem
de fazer. Tem vezes qui ele num comprende direito, tem vezes que sim” ).
M . acrescenta que Smaïn faz as lições por iniciativa própria, sem que
lhe peçam. Mas isso pode significar que Smaïn faça seus deveres
quando tem vontade e que não há ninguém que lhe diga que os faça.
A liás, os professores confirm am que o sistema de controle dos d ev e­
res de Smaïn é bastante permissivo, pois “ ele tem tendência a não
fazer grande coisa em casa” e “esquece muita coisa, se esquece de pedir
para assinarem seus cadernos” .
Se por um lado M . e seu pai con trola m os am igos de Sm aïn,
pois não gostam que e le “ vagabu n deie” co m qualquer um ( “ Bom,
confesso que é mais eu [que sua m ãe]. 1 tam ém meu pai, purque
ele num gosta m uito qui a gen te fiqu e vagabu ndeando sem fazê
nada até m uito tarde. Isto ele num gosta m uito” ), Sm aïn passa bas­
tante tem po (as tardes, depois da aula, quartas-feiras e os fins de
sem ana) em atividades que não requerem necessariam ente as mes­
mas qualidades de trabalho e aten ção que as tarefas escolares:
v íd e o -g a m e , b o lin h a de gude, skateboard, b ic ic le ta , piscina...
Durante as férias, parece que o program a de Sm aïn é o m esm o das
quartas-feiras, sábados e dom ingos do ano. A própria irmã, M ., acha
que ele passa tem p o dem ais brincan do e não m uito tem po len do
( “ Ele num gosta m u ito de 1er, mas talvez seria m elh o r dizê pra ele,
dar algumas i d é i a s " ) e não é de se espantar que os professores
observem que S m aïn “ gosta m uito de brincar" e que tem “ d ific u l­
dades em se con cen trar nos estudos” .
Dessa form a, Sm aïn desen volve fora da escola certos c o m p o r­
tam entos que não estão em harm onia co m os da vida em aula, pois
desponta, n o universo escolar, co m o m uito “disperso” e sobretudo
“ in stável” . Podem os dizer, portanto, para resumir a inform ação
central nesta configuração fam iliar singular, que Smaïn é, do ponto
de vista escolar, vítim a da indisponibilidade dos capitais culturais

130
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

familiares. A d ivisão sexual dos papéis, principalm en te, contribui


para m anter o pai a lh e io às tarefas educativas e afastá-lo de uma
boa parte do capital cultural familiar.

♦ Perfil 7: Uma perturbada divisão sexual das tarefas domesticas.


Martine C ., nascida em Vénissieux, um ano atrasada ( repetência da pré'
escola), obteve 7 na avaliação nacional.

O senhor e a senhora C . v iv e m em uma pequena casa n o m eio


de um terreno com uma horta e um galinheiro. Q u em nos recebe
é o senhor C ., que, m uito nervoso, nos faz entrar na cozinha, onde,
numa parede, está pendurado um diplom a que o b teve recen tem en ­
te, de estudos profissionais agrícolas. Ele está preparando a com ida
antes que a m ulher chegue do trabalho, e nos diz: “ M u ito bom o
que vocês estão fazendo. É a prim eira vez que alguém vem me per­
guntar sobre m inha filha, que alguém vem me ver por isso. M u ito
bom ". Tín h a m os marcado o en con tro para antes d o jantar, pois a
senhora C . nos esclarecera que eles jantavam tarde.
A entrevista c om eça co m o pai, depois continua com a mãe na
presença de M artin e. O s pais respondem sem reticências às pergun­
tas que lhes fazemos. U tiliza m expressões fam iliares e vulgares,
inclusive dian te da filha, N ã o se trata de fa to de um linguajar popu­
lar típ ico dos m eios operários, mas sim da linguagem coloqu ial de
quem freqüentou o l 2 e o 2~ graus.
A tu a lm e n te o sen h or C . está sem profissão d efin ida. T rab a ­
lha co m a m ulher em um posto de gasolina, apenas nos fin s de
semana. Cursou até o fin a l do 22 co legia l de con tabilidade, quan­
d o lhe propuseram que repetisse de ano. Foi nesse ano escolar que
con h eceu sua futura m u lher e, en tão, decidiu parar de estudar:
“ N ã o queriam m e d eix a r passar para o ú ltim o ano porque eu n ão
freqüentava m uito as aulas de matem ática, mas eu não era tão ruim
assim em m atem ática. A lé m disso, n ão me dava bem co m o p r o ­
fessor de m atem ática, ele se encheu , e n ão quis m e d eixa r passar.
E n tão estourei e parei com tu do". Ele já tinha rep etid o de ano
duas vezes: in icia lm en te, a 8a série e, depois, a 1a série d o 2fi grau.
Seus pais pagaram -lhe en tão um curso particular de d igita çã o , e

131
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

em seguida trabalhou durante 10 anos em "in form á tica , mas coisa


pequena, digitador, coisas assim” . Foi m andado em bora por razões
de eco n o m ia da em presa, e aí ele “ abusou", pois os em pregos que
lhe propunham pagavam abaixo d o que recebia co m o salário-
desem prego: “ E agora estou aqui, ao deus-dará, sem saída". P o d e ­
ría ter co n tin u ad o a trabalhar n o setor de in form ática, mas não
era desse tip o de trabalho de que realm en te gostava: “ O p ro b le ­
ma era que em in form ática, eu gan hava uma miséria. O que me
en ch ia m u ito, mas daí d e ix e i rolar. T e n h o vergon h a de dizer,
mas d ig o assim m esm o (risos)” . Ele acabou de tirar um diplom a
profissional de estudos agrícolas17, depois de um curso dc fo rm a ­
ção que durou 10 meses, pois pensava estabelecer-se co m o “ peque­
n o criador” co m a m ulher: “ A gen te escreveu, n em sei mais, a uns
trinta ou cinquenta organismos que gerenciam um pouco essa coisa.
A única coisa que nos propuseram foram sítios de 35 hectares.
Isso não m e interessa. Q u eria um pequ en o n e g ó c io legal, né?” .
A rrep en d e-se de não ter ido mais lon ge em seus estudos pois, diz,
“ M e deixa uma vara estar com 35 nos costados sem ter nada...".
O senhor C ., que é filh o ú nico, não ve m de um m e io operário: o
pai era su boficial n o e x é rc ito francês e a mãe trabalhava nos
escritórios c ivis d o ex ército .
A mãe de M artine, que tem 34 anos, é digitadora em um escritório
de contabilidade desde 1985 ( “ Isto a enche muito, bom, não é bem o
n egócio dela. Vejam por alto a quantas andamos atualmente” ), e tra­
balha também às vezes nos fins de semana com o marido no posto de
gasolina vizinho. A ntes, diz, “eu cuidava da minha filha". Ela não tra­
balhou até que M artine entrasse na escola. C o m o seu marido, ela foi
até a 2a série do 2° grau, depois de ter repetido a 7a série. “ N o fim ",
diz, “ eu faltava tanto nas aulas, estávamos com eçando a namorar,
então, já viu” . Ela tem um inuão que parou de estudar na 8a série, outro
que tirou um diploma profissional em agricultura e uma irmã que seguiu
só a parte prática de um curso profissionalizante de “faxineira” . Seu
pai era operário, depois cuidou de colônias de férias, e, no final da car­
reira, trabalhou com o cozinheiro em um C en tro de Adaptação para
o Trabalho A A mãe trabalhou, temporariamente, com o secretária em
uma fábrica, na prefeitura, e num centro de convivência.

132
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

M artine é filha única. Ela faz parte das crianças que têm "sucesso”
na escola, embora seu n ível renha baixado no decorrer do ano, do pri­
meiro para o décim o primeiro lugar. Apesar disso, o professor obser­
vou que o pai ve io conversar com ele e que as coisas pareciam ir me­
lhor a partir de então. Durante um período, ela não conseguia mais
aprender as lições, não mandava assinar seus cadernos e os deveres eram
feitos “ mais ou menos". O professor nota que a situação “ não era ca­
tastrófica, mas que era uma pena que seu n ível estivesse baixando
tanto” . Descrita com o uma aluna “séria” , com “resultados satisfatórios”
no início do ano, ela passa a ser notada no final do ano, por sua incons­
tância: “ Ela tem muito mais capacidade. Q uando quer, se aplica. Se
presta atenção, seu caderno é m uito apresentável. Mas n o dia seguin­
te é capaz de fazer quinze erros em uma cópia de dez linhas” . M artine
entrou relativam ente tarde no maternal (4 anos c 9 meses), e repetiu
a pré-escola.
Se compararmos a situação escolar de M a rtin e com outras situa­
ções em famílias nas quais as trajetórias escolares dos pais são rela­
tivam en te limitadas (este é o prim eiro caso de pais que cursaram
até o 2S grau), ficam os um pouco desarmados para com preen der o
que acontece. M a rtin e repetiu a pré-escola, enquanto seus pais n ão
repetiram de ano antes d o ginásio (7 a série, 8a série, 2e ano c o le ­
gial), e seu n ível baixou durante o ano. Poderiamos esperar que, sendo
de um m eio familiar n o qual os pais frequentaram até o 2a grau, onde
os avós paternos não são operários e o avô m aterno teve uma peque­
na ascensão social, a criança não repetisse de ano no curso prim á­
rio. A c o n te c e que mais uma vez nos encontram os diante de um caso
de capital cultural familiar que não encontra condições para ser “ trans­
m itid o". Em vez de explicarm os o "sucesso" de M artin e, somos
assim, paradoxalmente, levados a explicar por que este “ sucesso” não
é mais com pleto, p or que esta situação escolar é tão d ifícil, mais do
que o capital escolar fam iliar poderia deixar prever.

O problema central desta configuração familiar, do ponto de vista


da escolaridade de M artine, deve ser buscado, sem dúvida, nos papéis
parentais, que, por força das circunstâncias, foram invertidos sem que

133
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

os hábitos sociais e as disposições mentais ligadas classicamente a esses


papéis fossem eles próprios modificados. O pai está desempregado e
segue cursos de form ação há 3 ou 4 anos, mas a mãe encontrou ime-
diatamente um em prego do mesmo tipo de seu marido (digitadora),
o que, do ponto de vista econôm ico, não constitui uma alteração no
n ível financeiro da família, pois, quando o pai trabalhava, a mãe fica­
va em casa cuidando da filha. D o p on to de vista econ ôm ico nada
mudou, e, n o entanto, do ponto de vista familiar, nada é igual a antes.
A situação seria, de fato, idêntica se as competências, as disposições,
os gostos entre marido e mulher fossem intercambiáveis, o que não
é, evidentem ente, o caso. O pai não pode, de repente, mudar para
uma identidade sexual socialm ente construída da n oite para o dia.
A q u ilo que é da alçada das mulheres (ocupar-se da gestão dom ésti­
ca cotidiana, da educação cotidiana dos filhos, e sobretudo do acom ­
panhamento de sua escolaridade), o senhor C ., enquanto hom em,
não o possui naturalmente, e suas disposições, sua identidade, o c o lo ­
cam em desacordo com a situação que está viven do. Suas estruturas
mentais estão mal adaptadas à situação que d eve enfrentar, e esta é
certam ente a razão de seu mal-estar, pelo tato de que, com o ele diz,
“ há algo que incom oda", “ ou que as coisas andem mal” .
Em primeiro Ligar, é a senhora C. quem lê mais. Seu marido lê “ muito
raramente" jornal “ pois", diz, “ me enche o saco” , e, “de uma maneira
geral, não leio m uito” . E acrescenta im ediatam ente: “ Mas minha
mulher sim, lê muito” . Tem mais paixão pela música e cinema que pela
leitura: “ É, mas música eu ouço dia e noite, estou sempre escutando,
já viu, né N o entanto, foi leitor de revistas especializadas em músi­
ca e cinema: Actuel, Best, R txk’n Folk, Cahiers du Cinéma, Ciné Revue,
Télé-Cassette ( “ Eles falam dos novos filmes que entram em cartaz, c o i­
sas desse tipo, aí me interessa um pouco mais” ), e também La Chèire,
uma revista especializada que lia quando pensou em tomar-se criador.
Sua mulher quase não compra revistas, mas cita Rústica, Femme Actuelle
(que lê às vezes na casa da mãe) e uma revista sobre boomerang que com ­
praram numa época. Foi a senhora C . quem mais leu revistas em qua­
drinhos na infância. Lembra Astérix, Tintin, Lucky Luke e também qua-
drinhos de ficção científica. “ Bom, era o meu irmão que tinha geral­
mente, né? Eu devorava tudo." Mas faz muito tempo que deixou de 1er.

134
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Possuem livros sobre jardinagem e livros de culinária que ele afir­


ma “estudar muito” pais gosta muito da cozinha exótica. Mas é ela quem
é do France Loisirs e d o Grand L ivre du M o is* (se bem que os livros
que compra sejam para M artin e) e quem lê livros ("Verdade que aí,
em relação à leitura, tenho um certo receio, bom, é isso, é assim, que
posso fazer?...” , diz o senhor C .). Q uando acontece de 1er livros de fie-
ção científica, explica, não pode ser do tipo de “passar um terço do
tempo tentando entender o que acontece, porque daí eu fecho logo.
E verdade que tenho dificuldade em entrar na história quando leio
r<anances, essas coisas". Ele opõe, por outro lado, as leituras de “ infor­
mação” que suporta e as leituras “ literárias" das quais não gasta ( “ S em ­
pre que pego livros é mais para 1er informações, e não romances ou
outra coisa, sabe. L i alguns clássicos, com o todo mundo, né?, porque
não teve jeito, mas não faz meu gênero. U m resumo é mais que sufi­
ciente (risos).” ), e declara ver no cinem a ou na televisão aquilo que
a mulher lê. A senhora C., ao contrário do marido, diz “ devorar” os
livros. “ Ela deve matar talvez um livro por dia.” “ M eu n egócio é
romance policiar, ela diz. Diz também que gosta de 1er “ romances água-
com-açúcar", e os sarcasmos de seu marido a forçam a justificar-se: "O h,
você não me deixa falar... Eu leio isso, mas n ão é especialmente meu...
N ã o peguei na coleção de ‘romances para moças’. Isto sem problemas,
eu lia porque, bom, tinha oportunidade de 1er. E é verdade que d e v o ­
rava em meia hora, é isso, ora. Mas estou aberta para tudo” . A n tes de
trabalhar, ela lia cerca de dois livros por semana, e agora um a cada
uma ou duas semanas, toma emprestados muitos livros da biblioteca,
aonde vai junto com a filha, e ajuda M artine a escolher seus livros.
Foi ela também que, quando M artine era pequena, fez uma assinatu-
ra de uma revista infantil (Poussy, l'O u rs ), e é quem ainda lhe conta
histórias para donnir. O pai, por sua vez, exprim e seu descontentamen­
to em relação às besteiras que são contadas às crianças, com o por exem ­
plo a história de Papai N o e l: “ N ã o gosto que lhe contem bobageiras” .
Q uando M artin e viu a mãe sair de casa para trabalhar e seu pai
ficar, viu sair uma mãe que lia bastante e que despertava seu in te­
resse pela leitura. Em contrapartida, herdou a presença de um pai

* Grand Livre du Mois: um tipo dc Clube do Livro, com o n France Loisirs. (N .T .)

135
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

mais interessado por cinem a, música e televisão. Ela própria c o iv


firma que o pai “ não lê m uito", a não ser quando faz palavras cru­
zadas, mas em troca, insiste no fato de que a mãe lê m uito, e rapi­
damente: “ M in h a mãe lê um livro desta grossura em dois dias, Fica
muito tem po n o banheiro porque fica lendo lá dentro. C o m o ontem ,
ela não viu televisão. Foi se deitar e então ficou len do” . M artine
esclarece à noite que não gosta tanto de 1er co m o a mãe: “ N ã o com o
a minha mãe, né? M in h a mãe gosta m uito. Eu gosto m édio” , e
declara, sem vacilar, que prefere ver televisão a 1er. M artin e tem sua
própria televisão e seu próprio aparelho de som no quarto, e a mãe
diz que cia foi obrigada a trear um pouco a televisão: “ N o ano pas­
sado, ah, de manhã precisava ligar a televisão pros desenhos a n i­
mados, mas não, eu disse não e não, acabou, porque é uma perda
de tem po". A s preferências de M artin e dem onstram que ela in cor­
porou mais os gostos associados ao pai que ã mãe, pois seus pais opõem-
se quanto ao e ix o leitura/televisão-cinema-música...
Os papéis econ ôm icos foram trocados, mas os papéis domésticos
não sofreram alteração. A senhora C . continua gerindo uma boa parte
do cotidiano, é responsável pela correspondência e pelo conju nto
dos docum entos administrativos: " D e ix o tudo por conta da minha
mulher. E ela quem se encarrega de tudo quanto é papelada e co m ­
panhia"'1'. E ela quem, com efeito, escreve as cartas, se bem que às
vezes ele redige “o conteú do” : “ G osto bastante de escrever, mas não
gosto de procurar as frases certas, as palavras corretas, e além disso
tenho uma letra bonita... (risos). Bom, escrevo m elhor do que ele
(riSos). Portanto, na maior parte das vezes, ele não escreve nunca".
Mas a senhora C . guarda os rascunhos das cartas que manda às repar­
tições públicas para poder reutilizá-los co m o m odelos para as p róxi­
mas cartas ou então pede os m odelos para a mãe ou para a sogra. E
ela quem preenche a declaração de impostos, quem paga as contas
da fam ília, quem tom a conta dos docum entos escolares: “ A t é assi­
no por ele. Sou eu que escrevo os hilhetes para a professora. Sou eu
que assino os docum entos” . E ela tam bém quem organiza os docu­
mentos administrativos, embora não os classifique de fato: “ Estão na
maior bagunça. N ã o consigo. Prim eiro não temos m uito lugar, e tam­
bém somos bagunçados. A viso já, levo 2 horas pra achar” .

136
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

É sempre ela qu em deixa bilh etes para o m arido que, n o e n ­


tanto, fica em casa o dia tod o, para lem brá-lo de não esquecer de
lazer alguma coisa ( “ Q u a n d o me leva n to pela m anhã, escrevo um
bilh ete: ‘ Faça isso, faça a q u ilo’ . Se tem coisas realm en te im p or­
tantes para fazer que ten h o m edo que ele esqueça ou que esquecí
de pedir, porque às vezes isso pode acontecer, eu lh e escrevo uns
h ilh etin h o s")'111. E ela quem co n tro la as contas fam iliares ( “ A n o t o
tudo num bloco, e m arco quanto entrou e quanto saiu. N ã o faço
isso o tem p o todo. Q u a n d o faço é porque é preciso rea lm en te” ),
quem faz as listas de com pras (q u e ele "n ã o respeita" quando faz
as compras, mas ela sim, m ostrando que é mais preocupada que
ele com a gestão d o o rça m en to dom éstico, en quan to ele tem um
com portam en to mais h ed on ista ), que anota coisas em uma a gen ­
da ( “ P o n h o os sábados que trabalham os no posto de gasolin a” ) e
no calen dário (c o m respeito à co leira d o cach orro, ao bujão de
gás) e que faz anotações antes de dar um telefon em a. ( O sen h or
C . diz: "Eu não, dou uma matutada antes"). Finalm ente, é ela quem
arruma as fotografias nos álbuns e escreve a data em cada uma.
Q uanto à cozinha, a senhora C . diz que usa livros e fichas, e o senhor
C ., co n firm a n d o suas disposições mais hedonistas, acrescenta:
“ Eu vou pelo meu feeling na lata, sem pre” . N e m suas fichas de c o zi­
nha nem seus d ocu m en tos adm in istrativos estão, n o en tan to,
classificados. ( A senhora C .: " A h , não, a gen te não conseguiría.
C lassificar não é bem nosso n e g ó c io ...” , e o senhor C .: “ Ih, a
gen te faz uma bagunça co m estas coisas").
Embora o casal se caracterize por uma predom inância de ten ­
dências hedonistas e espontâneas, a mãe — e vem os isto m uito bem
através da gestão do co tid ia n o dom éstico — desen volve mais dis­
posições racionais que o pai. Portanto, n ovam en te são as disposi­
ções racionais que se afastam de M a rtin e quando a mãe sai para
trabalhar, deixando-a em com panhia de disposições paternas n iti­
dam ente mais hedonistas.
Embora a senhora M . vá buscar a filha à tarde na escola (uma vizi­
nha a leva todas as manhãs, junto com sua filh a ) e a ajude, às vezes,
a fazer as lições, sentimos que tudo isso não lhe é muito familiar. Se
bem que seja ele quem acom panhe m elhor a escolaridade da filha, é

137
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

a mãe qLiem responde espontaneam ente às perguntas em relação à


escolaridade de Martine. Ela acha que M artine está indo bastante bem
na escola, mas está consciente de que sua classe não é m uito boa e
que não podem os realm ente julgar se M artine é boa aluna ou se são
os outros que têm resultados muito fracos ( “ Precisa ver o n ível da clas­
se!” ). A lé m disso, quando é levado a falar sobre cada disciplina, julga
qtie a filha tem alguma dificuldade com quase todos os temas. Diz qtie
em francês “ é d ifícil", “ porque ela tem lacunas em conjugação, gra­
mática". Aliás, M artine está indo a uma fonoaudióloga, pois confun­
de algumas letras quando lê. Ela seria boa em m atem ática “se quises­
se aprender a tabuada, porque é sempre igual...” , diz a mãe, deixando
entender que a filha nem sempre tem boa vontade em relação à esco­
la. Em relação a outras matérias, a mãe observa ainda outras falhas.
“ Em história, parece que a coisa não anda. Em geografia, também não
é excelente.” Globalm ente, no entanto, ficaram surpresas com os bons
resultados do ano, pois M artine tinha repetido a pré-escola.
Ê sempre a mãe quem assina os cadernos uma vez por semana,
mas observa que “agora tenho menos tempo, e olh o menos que antes” .
Mas é a senhora C . que, em bora trabalhando fora, diz que vai ten ­
tar “ retom ar as rédeas” em relação à filha, pois constata, sobretudo
nos sábados e dom ingos, quando retom a seu papel “ natural" de
mãe educadora, que ela nem sempre estuda com o deveria: “ Disse
que ia retom ar as rédeas, acom panhá-la mais de perto, porque ela
tem tendência a dizer, assim, numa lição, por exem plo, ela ve io com
essa sábado: ‘A h , mas ninguém vai m e fazer perguntas, nem nada,
então não preciso estudar’. Então, é por isso que eu disse: 'Bom, agora
temos que dar uma sacudida n ela’ . Porque, bem, ela faz suas tare­
fas, mas não acha ú til aprender o que fo i dado em aula. M as o p ro­
blem a é quando tem prova. Ela precisa ter consciên cia que precisa
aprender tudo". C o n ta n d o isso, a senhora C ., sem dizê-lo expres­
samente, traça os limites do acompanhamento escolar feito pelo mari­
d o durante a semana.
M a rtin e faz as tarefas em casa “ sozinha, e quando tem coisas
que não en ten d e, ela cham a a g e n te ” , diz a mãe, que, e n tre ta n ­
to, lo go em seguida, especifica: “ Bem, ela te cham a, porque eu,
em geral, não estou em casa à tarde. Bem, v o lto às 7 horas do tram-

138
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

p o e ela já acabou, em gera l” . N o e n ta n to, não som en te M a rtin e


não solicita esp on tan eam en te os pais ( “ Ela nunca diz: ‘M e tom a
a liç ã o ’ ” ), mas o pai confessa que M a rtin e solicita sobretu do a
mãe, que raramente está disponível: “ Mas co m o sua mãe nem sem ­
pre está em casa... (risos)". Q u ando M artin e traz notas baixas, mos­
tra p rim eiro para o pai: “ Bem , co m o a mam ãe trabalha, en tão isso
é co m meu pai” . O sistem a de sanção dos pais repousa sobretudo
nas recom pensas que são dadas quando os resultados são bons e,
e v id en tem en te , que são subtraídas quando são maus*. A própria
M a rtin e nos co n ta que é proibida de ver televisão, por e x em p lo,
só quando "faz besteiras” , ou en tão quando não arruma seu qu ar­
to. D urante as férias, ela va i para a casa dos avós m aternos, no
cam po, o nde “ então, ali, faz o que quer” , e a a vó tenta fazê-la estu­
dar um pou co co m cadernos de ex erc ícios de férias, “ mas é d ifíc il,
h ein ” ; “ Ela faz os exercícios, mas reclama, sim, é m inha mãe41 quem
faz, gera lm en te” .
A mãe, leitora assídua, possuindo as maiores disposições racio­
nais e habituada, pela divisão sexual dos papéis, a tom ar conta de
M artin e, é, portanto, pou co dispon ível para a filha durante a sema­
na, e chega a ajudar o m arido n o posto de gasolina, em alguns fins
de semana. C o m a mãe fora de casa, M a rtin e perde o b en efício que
poderia extrair, através de interações mais frequentes e regulares,
da pessoa mais co m p a tível com o universo escolar. Ela ganha com
isso um pai pou co afeito à leitura, mais hedonista e que se adapta
mal, por sua própria identidade sexual socialm ente construída, ao
papel im posto de “ dono-de-casa". O casal atravessa, dessa form a,
uma fase d ifícil de v id a relacionada, em parte, à dificuldade do pai
em encontrar trabalho: “ A tu alm en te, vegeto demais. Bem, aliás não
sou só eu, toda a fam ília vegeta, e tod o mundo sofre com isso” . Ele
próprio evoca várias vezes esse seu “ m al-estar" pessoal que se refle­
te n o con ju n to da fam ília: “ N u m sei se vocês escolheram a m elhor
fam ília. O que eu quero dizer com isso é que as coisas estão difíceis
pra nós, neste m om en to ” .

* "Is io é, cia tem recompensa só quando tem boas notas, e não tem mais quando tem notas
baixas."

139
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

A situação de m al-estar (e c o n ô m ic o e fa m ilia r) p erm ite c o m ­


preen der o que in com od a os pais em relação a dois grupos que
para cies constitu em co m o que atentados à sua d ignidade. D e um
lado, percebem os aparecer uma form a de racism o em relação às
populações estrangeiras julgadas dem asiado numerosas na esc o ­
la. O senhor e a senhora C . consideram , por ex em p lo, um p r iv i­
lé g io não se com er carne de p o rco na ca n tin a da escola *. Foram
até lá perguntar se a escola poderia fo rn ecer refeições v e g eta ria ­
nas ou d ietéticas, e a resposta fo i que não era possível: “ O s muçul­
manos têm um cardápio especial, e se eu quiser que m inha filh a
seja vegetariana, eles me m andam à m erda. Esse tip o de coisa, já
viu, né?, m e irrita um p o u co ” . Por ou tro lado eles próprios sen ­
tem-se estranhos em relação ao p eq u en o grupo de fam ílias p re­
sentes nas reuniões, pessoas que se c o n h e c e m ’ e estão bem in te ­
gradas no grupo escolar freq ü en ta d o por M a rtin e: “ E verdade
que são sem pre os m esmos pais, e que eu n ã o ten h o vo n ta d e de
me integrar nesse pequ en o grupo” . O sen tim en to de injustiça que
sentem em relação aos im igrantes, bem co m o o sen tim en to de
exclusão v iv id o em relação às famílias bem inseridas n o grupo esco­
lar, só podem ser os sintom as de uma situação de m al-estar fa m i­
liar, devida ao fato de o pai estar desempregado, mas passando tam­
bém pela confusão dos papéis fam iliares.
Podem os dizer, fin alm en te, que M artin e está sendo socializada
em um am biente cultural fam iliar orientado globalm en te em dire­
ção a gostos eudemonistas: uma mistura de descontração cm moda,
gosto por artes de n ível m édio co m o o cinem a e a música pop ou o
rock, gosto peta dierética, pelos países estrangeiros, pela cozinha ex óti­
ca, ecologia, p elo retorno ao cam po, que fazem parre de uma “ cul­
tura jo v e m ” adquirida no ginásio e n o colégio. O que pode, em uma
configuração singular reconstruída, contribuir para descom prom e­
ter M a rtin e de um m ín im o de ascetismo e x igid o p elo sistema esco­
lar: concentração, regularidade n o esforço, regras a serem respeita­
das... Pois o pai não disse, n o final da entrevista: “ M in h a filha é m eio

* N as refeições fornecidas nas escolas francesas, há sempre uma op ção para os alunos de
religião muçulmana, que não com em cam e de porco. (N .T .)

140
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

selvagem , com o seu pai (risos)?". D escrevendo a si mesmos ao longo


da entrevista, co m o “ zé-ninguém ", “ bagunceiros", os pais não são
adeptos Ja regularidade (seus horários são variáveis: “ Q u an to a
isso, é verdade, não podem os dizer que ela renha uma vida bem equi­
librada", diz o p a i), nem da ordem (os docum entos n ão são organi­
zados, nem os livros: " T á em tudo quanto é lugar"). A in d a neste
caso, a mãe é que é a mais racional dos dois, mas é ela também quem
se relaciona menos com M artine'” .

D a indisciplina à autodiscipline!

D e fato, o que há do mais essencial no caráter


é a aptidão a se controlar, é a faculdade de parar,
ou, com o se diz, de inibir-se, que nos permite
conter nossas paixões, nossos desejos, nossos
hábitos, e lazer deles a lei44.

E nas relações de interdependência entre os m em bros da cons­


telação fam iliar que se construem as formas de co n trole de si e do
outro, as relações com a ordem (e sobretudo o grau de sensibilida­
de à ordem verb a l) e com a autoridade, ou o sen tim en to dos lim i­
tes que não d evem ser ultrapassados, Essas formas de ex erc ício da
autoridade (e , do p o n to de vista da criança, de sensibilidade à
ordem ), variáveis histórica e socialm ente, tornam possíveis ou atra­
palham a "transmissão" do capital cultural ou a construção de dis­
posições culturais, e são mais ou menos com patíveis com as políticas
disciplinares próprias à ordem escolar.
E sempre através do c o n tro le do outro, através das formas sem ­
pre específicas d o e x erc ício d o poder, que os co n h ecim en to s e a
técnica podem ser “ transm itidos" ou construídos. De fato, para que
a criança possa adquirir esses c o n h ecim en to s e essa técn ica gerais
ou especializados que farão dele um ser social adaptado às situa­
ções sócio-históricas determinadas, é necessário não som ente a pre­
sença organizadora — em bora a organização n em sem pre seja e v i-
Jen tem en te conscien te — de adultos disponíveis (co m o já vim os),
mas igualmente a capacidade de a criança tomar-se disponível, aten­
ta, sensível à palavra e às ações dos adultos. E claro que, c o m o em

141
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

todos os círculos viciosos, são esses mesmos adultos que, através


das relações de poder que exercem sobre a criança, levam -na a cons­
truir essa atenção ou essa disponibilidade.
Desde W illia m James, os psicólogos têm destacado os fe n ô m e ­
nos de atenção seletiva: é impossível estarmos constantemente aten­
tos aos m últiplos acon tecim en tos (lin gu ísticos e n ão-lin gü ísticos)
que nos rodeiam ; e são, de fato, as interações co m os adultos que
ajudam progressivam ente as crianças a “ d efin ir situações” , a d eter­
minar aquilo que, nessas situações, é sign ificativo ou não, pertinen­
te ou não, etc. Os estudos feitos por Jérôme S. Bruner, por exem plo,
destacam o fa to de a criança “ aprender” , não co n scien tem en te, a
vo lta r seu o lh a r para aquilo que o adulto à sua fren te está o lh a n ­
do, a “ fazer c o in c id ir seu cen tro de aten ção co m o d o o u tro ” . N as
brincadeiras, sobretudo, a criança in terioriza pau latin am en te um
“ sistema de a ten ção seletiva con ju n ta ” c o m o adulto4’ .
A educação do olh ar e da atenção, porém , supõe, co m o q u al­
quer processo de socialização, uma form a de d o cilid a d e por parte
da criança. A o co n trário d o que podem fazer supor certos esque­
mas da com u nicação para os quais uma inform ação é transmitida
assim que o destinatário da mensagem possua o c ó d igo para d e c i­
frá-la, este é o u v id o só por aquele que se interessa em o u v i-lo , por
aquele que, por causa das relações de poder entre destinatário e des-
tinador, é forçado a escurá-lo. Para penetrar nas relações estáveis
de construção de conh ecim en tos, de com portam entos, é preciso
tam bém que os seres sociais sejam con trolá veis. A c o n te c e que
existem casos de falhas na autoridade parental (ligadas a histórias
fam iliares com p lexa s), que im pedem alguns pais, ainda que pos­
suam recursos culturais, de ajudar seus filh os a construírem seus
conh ecim en tos, suas orien tações cogn itivas, suas práticas de lin ­
guagem..., em um sentido d idaticam ente adequado (cf. o Perfil 8,
ou mesmo o Perfil 5).
É necessário tam bém que as formas de autoridade parental,
quando conseguem exercer seus efeitos, estejam em harm onia com
as que são exercidas na escola, cada vez mais fundadas na auto-repres-
são e na interiorização das normas. "Som os mais obedecidos quan­
do não precisamos repetir sempre as mesmas ordens4"", escrevia

142
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Mi Milice Halbwachs, e é realm enre isso que as formas de relações


mu iais baseadas na autodisciplina demonstram.
Os perfis agrupados nesta parte d o livro evid en ciam a im portân­
cia da econ om ia das relações de poder n o seio das famílias. Outros
perfis poderíam ter sido escolhidos co m o exem plos de form as de
exercício da autoridade particularm ente diretos ou coercitivos (P e r­
fis 2 e 5 ), ou formas de ex erc ício da autoridade bastante eufem ísti­
cas, e q u e repousam sobretudo sobre a auto-repressão (Perfis 13, 22,
23 e 25).

♦ Perfil 8: Recusa às coerções e “bloqueio" em relação à escrita.


Walter O ., nascido em Lyon, 1 ano de atraso na escola (repetência da
pré-escola); obteve 3,1 na avaliação.

Q u ando fom os marcar a entrevista, h avia muita gente e m uito


barulho n o apartam ento. A senhora O . não tinha lido o bilh ete, e
pede ao filh o para procurá-lo, mas ele não o encontra ímediatam en-
re. Enquanto explicam os, na porta, d o que se trata, algumas crian ­
ças vêm espiar o que está acontecendo. A senhora O . manda-as entrar.
N o dia da entrevista, não aparece ninguém n o horário marcado ( 10
horas). Passamos de n o v o às 10h25; a senhora O . já está em casa,
e diz calm am ente: “ Vocês vieram às 10 horas? Eu estava no m édi­
co ", dem onstrando que marcar hora para ela não significa nada de
form al ou de preciso. U m sobrinho (d e cerca de 18 ou 20 anos) tam ­
bém esrá n o apartamento, ven do televisão. Ela pede que a desligue
durante a entrevista. A ssim que paramos de gravar, o sobrinho
v o lta a ligar a televisão, e bem alto.
O apartam ento tem poucos m óveis. N o ta m o s um bufê de esti­
lo m oderno, avariado em vários pontos, sobre o qual estão dispos­
tos vários hihelôs; algumas fotos de fam ília estão coladas em uma
de suas portas. Observamos também uma pequena serigrafia sem m o l­
dura ten do co m o m o tiv o uma m ulher com um chapéu de véu. U m a
grande televisão, um rádio, uma pequena mesa baixa sobre a qual
W a lte r às vezes faz suas lições e um sofá em péssimo estado c o m ­
põem a m obília da sala. Notam os, na cozinha, que a porta do forno
está presa por uma fita adesiva marrom. Durante toda a entrevista,

143
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

o cachorro da senhora O . vem se grudar na gente e ela lhe pede várias


vezes para se deitar.
A senhora O . nem sempre term ina as frases, e exprim e-se m uito
com o auxílio de mímicas, o que nos leva a perguntar-lhe várias vezes
o que significam as expressões de seu rosto. Podem os ver aí, sem dúvi­
da, o sinal de um m odo de com unicação pelo qual a mensagem passa
tanto através das palavras quanto fora delas. !sc< >demonstra, em todo
caso, uma atitude diferen te das que a entrevista ou o exam e oral
escolar presumem.
A senhora O . é uma jo v e m m am ãe de 27 anos oriunda de uma
fam ília rela tiva m en te modesta. Seu pai, argelin o, trabalhava em
um hospital, mas parou por invalidez quando ela tinha 2 ou 3 anos.
Sua mãe, francesa da região da A lsá cia , era faxineira. Em um c o n ­
te x to e c o n ô m ic o pou co fa vo rá vel, v iv e u rodeada de doze irmãos
e irmãs, dos quais som en te dois conseguiram d iplom a profissional
{cabeleireira e pin tor de paredes). Foi à escola até os 16 anos, onde
fez o I a ano de um curso profissionalizante (pintura de paredes).
Saiu da 5a série para freqííentar por 1 ano um curso pré-profissio-
nalizante. Q u a lifica sua escolaridade de “ n ão m uito boa” . Tu do o
que diz da escola dem onstra seu pouco interesse pelas atividades
escolares durante a in fância e a adolescência ( “ Bom , digam os que
eu num tava nem aí co m a escola"; “N u m gostava de jeito nenhum";
“ D igo francamente, a escola num me interessava de jeito nenhum” ),
ainda que observe ter algumas capacidades; “ E, os professores me
diziam que eu tin h a capacidade para estudar, mas eu num queria
nem sabê” .
L o g o que saiu da escola conh eceu o pai de seus dois filh o s (dois
m eninos, um n o ú ltim o ano d o m aternal e W alter, que está na
2a série). Ela n ão com eçou a trabalhar logo. Foi só quando se sepa­
rou do pai das crianças que fez uns “ trabalh in h os” , nunca m u ito
estáveis; fo i fa x in eira em uma escola, trabalhou em serigrafia e
n o M c D o n a ld ’s. O pai das crianças era en tregad or de bebidas em
um superm ercado. Ela ign ora seu n ív e l escolar. A m ãe desse
h om em era fa x in eira na França, e seu pai v iv ia na M a rtin ica . O
atual com pan h eiro da senhora O . é co zin h eiro , e d eve possuir um
diplom a profissional, ao m enos é o que ela deduz de sua situação

144
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

profissional. C o m o às vezes, nos m eios populares, o d ip lo m a não


é um crité rio p ertin en te nos en con tros co m o outro, esposos ou
con cu b in os n em sem pre sabem qual é exa ta m en te o n ív e l esc o ­
lar do cô n ju g e47.
Nesta configuração familiar, não estamos nem diante de um caso
dc traco d o m ín io do trances, nem dian te de um analfabetism o
radical, nem de uma oposição entre dois universos culturais radi­
calm ente estranhos entre si, A senhora O . lê m uito raram ente os
jornais, e quando lê, só se interessa pelas páginas policiais, e nunca
pela política , que rejeita com veem ên cia ( “ O lh a, v ô dizê fran ca­
m ente, num quero n em sabê (risos) de p olítica. S ei que M itterrand
é o presidente; é tudo o que sei, purque eu e a p olítica, num tô nem
aí, viu?” ); não lê revistas*. D eclara 1er cerca de um liv ro por mês
e ir todas as semanas com seus filh os à b iblioteca para pedir em pres­
tados livros que contem “histórias verdadeiras": leu Raízes (cuja adap­
tação viu na televisã o ), que fala de racismo, a história de uma pros­
tituta, etc. Por ou tro lado, não gosta de rom ances de amor, que,
segundo ela, são besteiras: “ E um horror, não va le nada. N u m acre­
d ito em histórias de amor, é tudo bobagem ” . É sócia, há 4 ou 5 anos,
d o France Loisirs on de só com pra livros para seus filhos. O c o m ­
pan heiro da senhora O . lê essencialm ente romances policiais.
O princípio do “ fracasso” escolar de W a lte r é o produto da c o m ­
binação de vários traços familiares, tais co m o as fracas disposições
racionais domésticas, a relação dolorosa com a palavra escrita, a rela­
ção da mãe co m a escola, bem co m o a p o lítica disciplinar fam iliar
o b jetiva (n ão-conscien te, n ão-in tencion al, com todos os seus e fe i­
tos e implicações). D ito de outro modo, a forma de exercício da auto­
ridade que estrutura as relações m ãe-filhos. N en h u m elem en to em
si pode dar conta da dificuldade escolar de W alter. C ertos e lem en ­
tos poderão até m esm o ser encontrados em famílias em que a crian ­
ça tem “ sucesso” .
A senhora O . dem onstra, antes de tudo, uma fraca propensão
à racion alização de suas atividades dom ésticas: se, por um lado,

* Apesar Je também não 1er revistas» ela, no entanto, não está desprovida — ao contrário
— de qualquer interesse pela leitura.

145
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

escreve lembretes sobre algo preciso que deve fazer ( “ Pego um papel,
co lo c o em cim a d o armário ou diante da televisão, num lugar aonde
vou bastante, pra m e lem bra"), e faz, ocasionalm ente, listas de com ­
pras que esquece quase sempre de levar ou de consultar quando
chega ao superm ercado; por outro, n ão organiza o orçam ento,
n ão faz uma lista das coisas que tem que fazer, não tem agenda pes­
soal, possui vários calendários dos quais nunca se serve, e nunca
faz uma anotação antes de telefonar. A lé m disso, não classifica os
docum entos, que “ ficam jogados em qualquer lugar". Diz que tem
"p re gu iça ” de arrum á-los: “ E verdade, quando os docu m en tos
estão bem arrumados, a gente num precisa andá de um lado pro
outro, olhá no quarto, n o arm ário, em todas as portas, prá vê si o
docu m en to num tá lá den tro, antes de encontrá, é verdade que
leva um tem p o dan ado prá encontrá, verdade qui é m uito m elh o r
classifica que colocá em qualquer lugar. Mas tenho preguiça de fazê,
d ig o francam ente, podia fazê mais, ih... ten ho preguiça de esco­
lhe, de separá, a gen te tem docu m en to dem ais” . O mesmo o c o r­
re com as fotos da fam ília: estão dispersas por tod o lugar e ela não
as organiza em álbuns. Prefere c o lo c a r em porta-retratos. Sua rea­
ção à nossa pergunta sobre a lista de coisas que d eve fazer c o n fir­
ma o fraco d e s en v o lvim en to de uma disposição racional, o rga n i­
zacional. Prefere, quando pode, d eix a r que as coisas aconteçam e
não agendar suas atividades: “ Eu, se ten h o um n e g ó c io pra fazê,
eu faço, né? Si num renho nada pra fazê, num v ô fic á fazendo, co m o
se diz, uma, uma... Por exem p lo, eu d igo h oje: ‘ A h , amanhã ten ho
de ir aqui, ali’ . Eu não, si tenho alguma coisa pra fazê, eu v ô e depois
v o lto , cabô. N u m fic o m e ocupando o dia in te iro ” .
Escrever, sobretudo quando se trata de escrever algo “ o ficia i” ,
exposto aos olhares extrafamiliares, torna-se um problem a m uito
sério para a senhora O . Se, por um lado, diz que lê sozinha a co r­
respondência ( “ S ei lê, n é f” ), é seu com panheiro quem redige as car­
tas administrativas ou quem preenche a declaração de impostos. “ A h ,
prá isso me dá um bloqueio, nossa, é m uito complicado, ne7, quando
eu priciso escreve. Bem, às vezes tem meu amigo, ele me dá uma força,
ele me diz: ‘Ora, veja, cê só tem que escreve, tô ch eio, v o c ê sabe
escreve!’ , mas é ele quem escreve a m aior parte da correspondên-

146
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

i ui. O u então ele me faz um rascunho e eu copio, e olha que às vezes


.mula erro quando copio, aí já viu... N ã o , mas é verdade, eu num
escrevo, erro demais quando escrevo.” Q u ando precisa escrever um
texto, tem m edo de com eter muitos erros: “ O lh a, eu consigo escre­
ví-, mas erro dem ais” . Por conta disso não m antém correspondên­
cia escrita com a fam ília ou os amigos: “ O u vou visitá ou então, si
ele mora longe, si mora fora da França, bom, talvez eu escrevo, ou
então num escrevo, espero que ele me escreva, purque eu num gosto
de escreve, me deixa maluca (risos), é verdade... erro demais, fic o n er­
vosa de escreve” . Q u an do precisa mandar algum b ilh ete para a
escola, tenta redigi-lo sozinha, sem com eter muitos erros, mas acon­
tece de perguntar a W a lter sobre alguma palavra da qual tem dú vi­
das. “ T en to relê o que escrevi, ou então alguém que tá d o meu lado
lê prá mim... A s vezes pergunto pro meu filh o co m o é qui escreve
uma palavra. M as isso me d eixa m uito mal, num sei, fic o m eia sem
graça” . Isso significa que seu filh o é co locad o numa situação de ver
concretam en te a mãe em dificuldade com a escrita.
A senhora O . n ão faz palavras cruzadas, pois acha m uito difícil.
“ E d ifíc il pra m im .” N o rm a lm en te faz palavras cruzadas de um tipo
mais fácil, onde só precisa localizar as palavras em uma lista e encai­
xá-las adequadam ente nos quadradinhos. A explicação que fo rn e­
ce referindo-se a seu interesse por esses jogos revela a insegurança
cultural que perm eia a entrevista. Ela faz esses jogos porque, nesse
caso, n ão se acha em uma situação de "fracasso” nem de "grande
dificuldade", en contran do assim uma form a de sair-se bem em algo,
em contrap on to à sua possível situação de vergonha cultural per­
m anente e a uma frustração em relação à sua experiência escolar:
"B om , eu faço, vocês vão gozá de mim, faço purque quando faço, quan­
do acabo, fico contente purque num errei. A o menos tem uma coisa qui
eu seifazê, purque quando o lh o as outras palavra cruzada, fic o o lh a n ­
do, precisa pensar pra fazê esta coisa, /sto, ao menos, eu seifazê”.
N o entanto, ela tem um certo número de práticas de escrita pes­
soal ou destinada a pessoas próximas, cujo julgam ento cultural a
amedronta menos. Preenche cheques ou ordens de pagam ento sozi­
nha, pois “ num tem muita coisa pra marcá", possui uma caderneta
de endereços própria, deixa de vez em quando bilhetinhos para seu

147
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

companheiro ou para W alter na porta, para que saibam onde está quan­
do sai ( “T ô neste lugar, me esperem", ou “ Venham me en con trá"), e
finalm ente escreve a W alter todos os dias quando ele vai para a co lô ­
nia de férias, pois sente muita falta dele (neste caso, escrever uma carta
lhe parece menos difícil, pois, diz, “ num preciso fazê, com o a gente
diz isso, fazê frases, com o quando escrevo para a frrefeitura ou coisas assim,
porque escrevo como eu penso"). De fato, a senhora O. poderia escre­
ver mais, mas, por um lado, teme os erros de ortografia ( “ Sabe, eu
fico sem je ito ” ), e, por outro, tem dificuldades para formular frases,
redigir uma carta, quando sabe qtie será um adulto, principalm ente
se escolarizado (professor, funcionário...), quem deverá lê-la.
Q uando falamos da ajuda escolar que dá a W alter, reaparece o
mesmo m edo de se enganar, a mesma falta de segurança. C o m o
W alter não fica na escola durante as horas de estudo livre, faz as lições
em casa. A mãe o ajuda, mas sente dificuldades e pede ajuda às irmãs:
“ Eu também erro, e aí peço ajuda” . Diz que antes (na pré-escola e
na I a série) era mais simples que agora e que “ aprende” coisas ao
mesmo tempo que W alter. N unca fica segura da ajuda que dá ao filho,
e pede-lhe sempre para perguntar à professora n o dia seguinte. “ Bom,
eu digo, deixa com o está, si, por exem plo, no problema tem um erro
ou coisa assim, ou então em francês, eu explico, eu digo pra ele: ‘Olha,
W alter, v o cê erro’ . D aí eu digo: ‘Mas num tenho certezfl, pergunta pra
tua professora’ .” Portanto, parece que durante as lições de casa, W a l­
ter encontra-se em uma situação em que se dá conta mais uma vez
das dificuldades da mãe, de sua frágil segurança cultural.
Q u anto à escolaridade de W alter, a senhora O . está totalm ente
a par de suas dificuldades, e chega a conversar com a professora uma
vez por semana. Diz que é a escrita que lhe traz mais problemas. Mas
o que chama principalm ente a nossa atenção é a form a com o a
senhora O . se com para rapidam ente com W alter. Diz assim: “A c h o
qui ele é com o eu, num qué sabê da escola” , de uma form a que faz
supor que as coisas se repitam co m o que por fatalidade hereditária.
“ É purque às vezes tem coisa quando falo com sua professora qui tenho
a impressão qui sou eu há 20 anos atrás. E v e jo eu di n o vo na 2a série,
quando meus pais eram sempre chamados, assim, pela professora, e
quando ela dizia: ‘A M . é isto e aquilo’, e é verdade, quando a pro-

148
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

fi'.s.snra diz: ‘Ele pode estudar mais', e as minhas professoras diziam a


mesma coisa, que eu podia estuda mais, mas que num queria, e acho
que meu filho é com o eu.” A senhora O . também se compara ao filho
quando conversa co m ele: “T ô sempre brava com ele. E então digo:
‘O lh a, você é um imprestável na escola’, e eu falo: ‘O lh a, v o c ê vê,
eu, eu...’, mostro que gostaria de vo ltá pra trás. C o m o que eu sei hoje
num teria feito as besteiras que eu fazia na escola. E digo isso sem­
pre pro meu filh o, pro W alter, eu digo: ‘O cê vai vê, agora você diz,
né, que num qué nem sabê da escola, mas o cê vai vê mais tarde, vai
se arrepende de tudo o que vo cê fez agora, v o c ê vai dizê: ‘ Si eu tives­
se sabido, eu teria estudado, com o a m inha mãe dizia'” .
Podem os igualmente constatar uma analogia chocante entre as
palavras empregadas pela mãe a seu próprio respeito e as da profes­
sora referindo-se a W alter. A senhora O . diz ser “ bloqueada” em rela­
ção à escrita e não gostar de escrever; a professora de W alter diz que
“ ele tem um bloqueio terrível em relação à escrita". Q uando a senho­
ra O . nos conta que, apesar das dificuldades em escrever na escola,
W alter sempre redige histórias que inventa e pede que ela leia ( “ A h ,
escrevê, é impossível fazê ele escreve na escola, né? D igo assim na esco­
la, pra fazê ele escrevê, a professora pena. Mas cm casa ele gosta de escrre-
vê umas historinfias, assim, em cima do papel. Pra ele escrevê na esco­
la tem que fica em cima dele. Mas aqui ele escreve pra burro, às vezes
ele pega umas folhas, faz um livrinho, e então inventa umas histórias");
poderiamos, com isso, nos perguntar se ele não estaria “ repetindo” a
situação da mãe, reticente diante da escrita pública, extraíam il iar. O
fato de não escrever para um universo estranho ao mundo familiar
(enquanto escreve para a m ãe) não reiteraria, na verdade, a própria
relação da mãe com a escrita que a leva a escrever só para seu círcu­
lo familiar mais próxim o (seu filh o, seu com panheiro), por causa de
um m edo m enor de julgam ento cultural!
A mãe parece com unicar ao filh o, em inúmeras situações, seu
"b lo q u eio ” inicial em relação à escrita: m edo de com eter erros o rto ­
gráficos, de escrever mal, e, no fundo, de encontrar-se novam ente
na mesma situação de julgam ento escolar n egativo e sentir v e rg o ­
nha cultural. Lem os n o discurso da mãe uma relação íntim a entre
sua própria escolaridade (n ão tão distante assim) e a de seu filh o.

149
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Retom a os próprios termos da professora de W alter para falar de sua


própria experiência, “ identifica-se" nos julgam entos que os profes­
sores fazem em relação a W alter, faz explicitam en te analogia entre
as duas situações, seja em consideração a nós ( “ Ele é co m o eu” ), seja
em consideração à professora ( “ M in h a mãe me disse: ‘ Eu era m eio
assim quando era pequena, tinha o m esm o problem a’ " ), seja fin a l­
m ente em consideração a seu filho. Demonstra para com o filh o (nas
discussões com seu com panheiro sobre as dificuldades de redigir car­
tas, na ajuda às lições de casa pouco segura, nas perguntas que faz
ao filh o sobre ortografia das palavras...) uma fragilidade em suas com ­
petências de escrita, um sofrimento em relação a qualquer docum en­
to escrito mais ou menos form al. N ã o estaria W a lte r fazendo a
“dedução prática", por analogia não-consciente, de que a escrita diri­
gida ao outro (sobretudo quando esse outro é exterior à fa m ília ) é
causa ou sinal de sofrim ento, e que só a escrita para si ou para sua
fam ília seja tolerável? N ã o poderiam os com preender assim o “ b lo ­
queio com a escrita” de W a lter no espaço escolar, e sua produção
escrita espontânea no espaço fam iliar? Verem os, mais adiante, que
essa interpretação pode vir acompanhada de outra.
D o p on to de vista das formas d o e x ercício da autoridade paren­
tal, parece realm en te que W a lte r soube encontrar, através de d ife ­
rentes experiências familiares, os m eios de contornar ou de en fren ­
tar as obrigações que, além disso, na m aior parte das vezes, são
expostas, mas não aplicadas.
Q u ando os resultados escolares n ão são bons, a senhora O ., que
é a única que controla a escolaridade do filh o (a professora nos conta
o que foi d ito pela mãe sobre as reações de seu com pan heiro, apre­
sentado c om o pai, em relação às dificuldades escolares de W a lter:
" O pai não parece levar m uito a sério, pois quando ela lhe conta
das dificuldades d o filh o, ele acha graça” .), diz que não lhe dá
nenhuma punição: “ Q uando ele me mostrou sua classificação, é v e r ­
dade que ele piorou. Eu não castiguei porque num adianta. Se ele
num qué estudá, ele num vai estudá. Eu até que daria um castigo,
gritaria com ele, mas num vai adianta nada” . C o m relação às lições
de casa de W alter, sua mãe diz que “ baralha” para que ele as faça
e, mais que isso, para que anote antes os deveres que foram solici-

150
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

lados. A s situações que descreve, porém, mostram que as “ batalhas”


não são levadas até o fim : “ T e n h o que brigar com ele, e às vezes
brigo porque, quando ele chega em casa, mostro que confio um pouco
nele. Pergunto si ele tem lição. Ele me diz que não. E então acre­
dito, porque é verdade, a professora não dá sempre lição, estas c o i­
sas, e ele me diz não. A í digo: ‘ Si v o c ê num tem lição, tudo bem ’.
E de manhã vou v e r a professora e digo: ‘ Ele tinha lição? T in h a,
claro’ . A í d ig o pra ele: ‘ W alter, v o c ê m e enganou'. O u então ele
esquece de marcá que tinha lição. Eles têm lição mas ele num anota.
O u então ele anota mas esquece os cadernos, os livros que p re c i­
sa". Da mesma form a, quando tenta que o filh o estude um pouco
nas férias de verão, a tarefa não parece fácil, e é ela quem acaba
cedendo. U m a vez comprou um livro, Passport pour le C P ( Passaporte
para a pré-escola) e ele n em abriu ( “ Eu acho que num serve pra
nada, n é?"). Tam bém tenta fazer ditadus com ele durante as férias,
mas isso n ão dura m uito, e diz que fica nervosa co m o co m p o rta ­
m en to de W alter: “ Sou eu que num agüento, que d eix o cair. Largo
tudo, deixo as coisas: ‘Vai embora, você m e deixa nervosa* ” . A senho­
ra O . parece tam bém ter adm itido o fa to de “ não p o d er" falar de
escola com o filh o porque e le “ não quer” talar nisso: “ Ele m e diz:
‘M ãe, a escola já acabô, mi d eixa em paz’. E, ele é assim, num posso
falá de escola com e le ” .
Q uando chega da escola, W alter larga a mochila, em seguida ou
vai direto brincar na sala de jogos (um dos quartos da casa) ou vai para
a cozinha tomar lanche. Depois de ter lanchado, ele volta a brincar,
e só depois vai fazer a lição, quando diz que tem: “ Q uando eu chamo,
ele num vem. Q uando diz que num tem lição e quando eu num tenho
tempo de ver a professora às 4 e meia da tarde, eu deixo ele brincan­
do” . A in d a que a mãe tenha "boa vontade escolar", muitas vezes não
age de maneira firm e em relação a isso. O próprio W alter confirma
que brinca quando volta da escola, e não hesita em nos dizer que às
vezes esquece as lições. A maneira com o avalia o tempo que passa fazen­
do as lições nos revela muito sobre sua relação com a escola: de hábi­
to, 5 minutos, e 10 minutos, "se a lição for comprida demais". Aliás,
fala m uito sobre televisão4*, do fato de gostar de “sair para brincar” e
d o tem po que passa brincando (co m um carrinho teleguiado, um

151
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

vídeo-gam e, de banco imobiliário, jogando cartas, de esconde-escon­


de, “ brigando", ou com os carrinhos, junto com a mãe).
Q u ando sai, a mãe é obrigada a ir buscá-lo, pois não vo lta nunca
por si mesmo, e ela bate nele se faz "besteiras” . Por exemplo, no verão,
W a lte r fica brincando fora até as I9 h ora s, 2 1 h i0 e a t é mesmo 22h:
" A s vezes, às 10 horas sô obrigada a corrê atrás dele pra ele voltá
pra casa, e às vezes ele se esconde lá em baixo” . Q u alifica seus dois
filhos de “dem ôn ios” ou “diabos” , que fazem tudo o que podem para
"acabar com ela"; “T en h o um apartam ento com três quartos, e um
deles é só pra eles brincarem. Mas eles querem levar os brinquedos
lá pra baixo. A í eu digo: ‘N ã o , vocês ficam aprontando lá fora’ . E
eles me deixam angustiada, até que eu com eço a gritá, e quando eles
não aguentam mais de me vê gritá, aí eles m e provocam até eu batê
neles pra que eles se acalm em ” . Segundo ela, “ só batendo” é que
eles se acalmam: “ U m a vez eu o surpreendí com um cigarro na boca
junto com um am igo, aí não me segurei, nem olhei e bâti, né?” ; “ Eles
continuam , e assim que p onh o a m ão neles com eço a bater. A í eles
ficam calmos, juro. Pra acalmá eles, sou obrigada a batê. Tem um
sobrinho que diz: ‘ bate neles logo, assim eles te deixam o dia in te i­
ro sossegada’ ” . C o n ta tam bém que as crianças n ão têm mais estan­
te de livros porque a desmontaram, e fazem isso para ver a mãe “deses­
perada": "Eles desmontaram, e num adianta fazê outra. Pra me
enchê. D e qualquer je ito o que meus filhos fazem é pra m e enchê.
Eles gostam di me v ê desesperada” .
A senhora O . parece não conseguir im por obrigações aos filhos,
e W alter faz as coisas quando “ lhe dá na telha", e não porque a mãe
exige ou lhe pede. Seria então, um acaso o fato de W alter nos dizer
que gosta de escrever histórias em casa, afirmando ao mesmo tem po
não gostar da expressão escrita, explicando de m odo m uito revela­
dor: “ Eu faço sozinho", com o que para dizer que faz voluntariamente
(sem que lhe peçam ), mas que não gosta da pressão da obrigatorieda­
de? D o ponto de vista do m odo de exercício da autoridade familiar,
podem os observar que, em vez de tentar impor “ regras de c o n v iv ê n ­
cia" através da compreensão, a senhora O . parece funcionar através
da permissividade, cujas transgressões de limites são sancionadas por
“ gritos” e corretivos corporais. Estamos diante de um tipo de “ liber-

152
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

di.de" relativa ou de imposição de obrigações, cujo caráter tênue e


débil a criança já experim entou no passado. Pouco controle perma­
nente, mas somente limites de aceitabilidade a partir dos quais o adul­
to julga se a criança está realm ente exagerando (passando dos lim i­
tes, com o se diz); e a transgressão desses limites deverá gerar uma
repressão verbal ou física. A s crianças, aliás, parecem estar o tempo
todo buscando esses "lim ites” , ou seja, o m om ento preciso em que a
mãe “ fica acabada” . Mas esse funcionam ento, apresentado pela mãe
com o ligado ao com portam ento de seus filhos, depende em grande
parte da maneira co m o ela organiza, percebe e interpreta as situações
familiares. E evid en te que os com portam entos das crianças baseiam-
se inrerativam ente nas reações (antecipadas pelas crianças) da mãe,
e que sõ se explicam na relação com o adulto. A mãe coloca o pro­
duto de sua interação, de sua interdependência, n o com portam ento
intrínseco de seus filhos. Estes têm o hábito de "fazer” , até que um
adulto venha lhes comunicar, através de uma admoestação verbal ou
física, que não podem mais continuar.
Esse m odo de exercício da autoridade familiar é pouco com patível
com o da escola que pede a interiorização das normas por parte das
crianças para que façam “ por si mesmas” , sem que tenham de ser
constantem ente lembradas da ordem e das coisas a serem feitas. A
senhora O . diz que se a professora não estiver sempre atrás de W a l­
ter paru ver se está escrevendo, ele não faz nada: “ Enquanto seus
colegas escrevem uma poesia inteira, ele não passa de duas linhas,
e fica desenhando e assim que vê que a professora tá ven d o ele, ele
com eça a escrevê". A lé m disso, as brincadeiras, as distrações lúdi­
cas, ocupam um lugar im portante na vida de W alter, lugar o b je ti­
vado na “sala de jo go s” (a professora diz: “ Ele gosta de brincar").
W alrer surge, dessa forma, com o uma criança cujo interesse pela esco­
la é m uito lim itado: o tato de considerar que tem “ liçã o dem ais",
de declarar que se esquece de vez em quando de fazê-la, de dizer cla ­
ram ente (em lugar de tabular, co m o muitos de seus colegas, cons­
cientes da im portância da leitura) que prefere brincar ou ver tele­
visão em vez de 1er, de parecer fazer distinção entre aquilo que tem
von tade de fazer por si mesmo e aquilo que lhe é im posto, de preen ­
cher a vida com brincadeiras, mostra bem um dos problemas cen-

153
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

trais de W alter. Ele recusa as obrigações escolares porque não está


habituado a ter um horário tão regular quanto o horário escolar.
Tudo isso é liem coerente com o que nos diz sua professora. Ele
não encontra suas “ marcas” , suas “ referências naturais” (culturais)
n o espaço escolar, onde lhe pedem que realize coisas precisas em um
espaço de tem po determ inado e em m om entos que ele próprio n ão
escolheu. Assim sendo, W alter surge com o alguém que não quer tra­
balhar, com o uma criança que se chateia, que “ despreza a escola” e
que, “ sc a gente deixar", com o diz a professora (e não é justamente
o que a mãe faz em casa?)i “ brincaria o dia in teiro” . W alter é clara­
m ente descrito com o uma criança sem autonom ia, “ que não sente
nenhuma responsabilidade em relação a si m esm o” , que tem “ hor­
ror a impor-se uma obrigação, uma disciplina” . Se acrescentarmos a
isso o pequeno grau de racionalização doméstica, visível tanto na recu­
sa parental em impor-se horários, em classificar os docum entos ou
fotografias (a professora observa que “ todo o m aterial de W a lter fica
espalhado pelo chão” ), quanto no bloqueio com a escrita, as dúvi­
das e vergonha cultural da mãe, percebemos bem a configuração que
engendra o “fracasso" escolar de W alter. Dam o-nos conta, ao mesmo
tem po, de que aquilo que se “ transm ite" de uma geração a outra é
muiro mais que um capital cultural. E um conju n to feito de relações
com a escola e a escrita, de angústias e de vergonhas, de reticências
e rejeições, de sistema de defesa diante de julgam entos externos, de
relações com a autoridade e co m o tempo...
N ã o podem os dizer que a mãe não se interesse pelos estudos de
W a lter e pelas consequências de seu percurso escolar n egativo. Pelo
contrário, é vista pela professora c o m o “ bastante presente na esco­
la"; vem regularm ente saber co m o W a lte r está indo, e chegava
m esm o a ir buscar suas hções de casa quando ele estava na I a série.
A lé m disso, está bem consciente da im portância da escola para se
en con trar um em prego interessante, e n ão gostaria que o filh o
conhecesse as mesmas dificuldades que ela: “ E eu num peço gran­
de coisa, mesmo se é faxina, si são duas horas de faxina por dia: ‘Eu
faço sem problem a’ . Mas eles me pedem diplom a e estas coisas. Tem
mesmo estas firmas de trabalho tem porário que num quiseram mi
inscreve porque eu num ten ho diplom a. A vida tá muito difícil pra

154
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

hancá n besta m escola, digo francamente. É verdade, ela é m uito d ifí­


cil, com tudo o que tá acontecendo agora. Eu num queria qui meu
filh o ficasse nesta situação, não. Prifiro que tenha um bom traba­
lho, né?". Q u ando fala de seu filh o e das esperanças que deposita
nele, não pára de falar de si mesma, de seu próprio "fracasso” esco­
lar e de sua frustração atual em relação a essa experiência escolar
negativa: “ O lh a, v ô te dizê francam ente. T em dias que mi arrepen­
do di verdade de num tê term inado a escola e de num tê me p reo­
cupado com os estudos, né ?E eu num quero qui meu filh o seja com o
eu, qui tenha problem a pra escrevê uma carta. Q u ero que ele se vire
s<>zinho, qui num precise de alguém do lado dele pra preenche a decla­
ração de imposto, coisas assim” .
A senhora O . até tem práticas que, em uma configuração fa m i­
liar de conju n to, poderíam contribu ir para uma escolaridade feliz:
lê livros, vai à biblioteca uma vez por semana com os filhos, lê ou
conta histórias para que adormeçam, acom panha a escolaridade de
W alter, fala com a professora, ajuda W a lter em suas lições... Mas os
efeitos dessas práticas ficam co m o que anulados pela situação que
acabamos de descrever.

♦ Perfil 9: A moral, a autoridade e a escola.


Nabila M ., nascida em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve
4,1 na avaliação rutcional.

Q uando chegam os ao encontro marcado, foi a senhora M . quem


nos abriu a porta. A p re sen ta m o -n o s e perguntam os se estava
lembrada d o en contro. Ela responde que, ao ver-nos, lembrou. Isto
é m u ito ca ra cterístico de uma parcela de nossos in terlocu tores,
que não têm , fora das o brigações profissionais, a oportu n idade de
pôr em prática a n o çã o de en con tros co m hora e data fixas. Seu
ra c io c ín io p rático n o m om en to de m arcar o e n c o n tro é p rin c i­
palm en te do tipo: “ Tal dia eu não trabalho nunca, pode passar” ,
ou: “ Tod os os dias trabalh o até tal hora, pode passar dep ois...” .
A relação c o m o fu tu ro é m enos precisa, m enos ra cio n al. A
senhora M . pede-nos para sentar na sala de jantar e co n ta que
acabam de se leva n tar p or causa da Quaresm a. Seu m arido sai d o

155
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

quarto, vem nos v e r e nos cum prim enta. A en trevista vai ser feita
c o m o pai, pois sua m ulher (qu e n o telefo n e disse que preferia
que fosse em um dia em que o m arido estivesse) perm anecerá ocu ­
pada nas “ suas” tarefas (dom ésticas, essen cia lm en te), e in tc rvi-
rá só de vez em quando.
N o com eço da entrevista, todos os filhos ficaram em tom o da mesa
e a televisão continuou ligada. Julgando rapidamente que havia baru­
lho demais, o pai lhes diz para saírem, mostrando a porta e gritando
secam ente para o mais n ovo: “ V ai! Saia já !". De uma forma geral, a
entrevista desenvolveu-se sem reticências da parte do senhor M . A
discussão não foi perturbada por interferências, que se manifestaram
só em segundo plano. Durante uma boa parte da entrevista pudemos
escutar a senhora M . cozinhar ou fazer a faxina (afastar os móveis,
deixar cair uma vassoura...), hem com o as vozes das crianças.
O senhor M . de 43 anos, frequentou a escola dos 9 aos 14 anos,
na A rgélia, e comenra: “ N u m fiz grande coisa, né?". Ficou 3 anos sem
trabalhar, e em seguida ve io para a França com seu “ m ano” quando
tinha 17 anos. Fe: um estágio de m ecânica de autom óveis e tirou um
diplom a profissional. Depois desse estágio, empregou-se na C itroen ,
onde está até hoje; trabalha atualmente n o serviço de recepção dos
carros, que consiste em cuidar deles da chegada até o e n vio para os
clientes. O pai d o senhor M . era agricultor na A rgélia, e analfabeto.
Sua mãe ficava em casa e ajudava o marido. Ela também não sabia
1er n em escrever.
A senhora M ., que tem 40 anos, cursou a escola por 2 ou 3 anos,
na A rg élia , e lê e escreve um pou co em francês. N u n ca trabalhou.
Seu pai v e io para a França depois da guerra da A rg élia , e rrabalhou
no setor de recepção de mercadorias numa empresa. Freqüentou a
escola e sabia 1er e escrever um pou co o francês. Sua mãe. analfa­
beta, era dona-de-casa. “ Fui eu quem foi buscá-la” , diz o senhor M .
referindo-se à sua mulher, que mora na França há 11 anos. Eles rêm
quatro filhos: um m enin o de 9 anos, que está na 3a série, uma m en i­
na de 8, N abila, na 2a série, um outro de 7, na I a série, e finalm en-
re um m enin o de 4 anos, que frequenta o maternal.
N a b ila é considerada, desde o m aterna! (o n d e entrou precoce­
m ente, aos 3 anos de idade), co m o uma criança “ agradável", “ bem

156
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

adaptada", “ muito aplicada” , embora em otiva. N o segundo ano, quan­


do tirou 4,1 com o média na avaliação nacional (da qual 2 em lei-
rura-compreensão, 3,9 em produção de tex to e 3,5 em exercícios
num éricos), é julgada co m o alguém que tem “ possibilidades", “ tra­
balha razoavelm ente bem quando não fica conversando” , “ escolar",
“ clara” e "rela tiva m en te organizada” , mas que tem problemas com
a escrita ( “falta de sintaxe” ), em com preensão e nas operações. Os
professores observaram, no entanto, no fin al d o ano, que estava um
pouco “desatenta” e “ com tendência a dispersar-se quando em c o n ­
tato co m os outros". Estamos, portanto, diante de um caso de aluno
que consegue m anter o papel de "a lu n o” no plano com portam en-
tal, mas cujos resultados escolares n ão correspondem.
Em relação aos atributos familiares, temos, prim eiro, um pai
que possui um diplom a profissional (em bora obtido tardiam ente)
e ocupa uma função que não o coloca diretam en te em con ta to com
a produção de autom óveis, mas que, ao contrário, com porta rela­
ções co m os clientes. Isto confere ao senhor M . um tom emposta-
do, um vocabu lário e uma sintaxe de frase de uma grande correção
na m aior parte das vezes, algo p róxim o aos pequenos em pregados
(freq iien tem en tc mulheres, tais co m o recepcionistas), cujo traba­
lho consiste, em parte, em falar com usuários ou clientes, e que o b ri­
ga a um esforço de correção, de expressões de polidez...
A lé m disso, os pais exprim em uma té na importância da escola.
O senhor M . está totalm ente consciente da relação escola-emprego,
sobretudo em termos de qualidade do trabalho: “ N ã o é possível ter
uma profissão sem passar pela escola; quando se é mecânico, caldei-
reiro, coisas desse tipo, é porque é um cara que não se deu bem na
escola. Senão ele não vai tazer isso, né? Porque quando a gente é mecâ­
nico, se suja todo, porque os caras realm ente não têm escolha, né?” .
Porém , vários com portam entos parentais só podem ser com preendi­
dos se percebermos que, para eles, a escola é uma coisa séria. O pai
explica, por exem plo, que não ensina jogos a seus filhos porque isso
poderia desviá-los da escola: “ Senão eles não conseguem, as crian­
ças. N ã o pode deixar eles brincarem demais. Se eles brincam, eles não
estudam. Eu, pessoalmente, não ensino eles a jogar, não” . C on trola
regularmente os boletins escolares e “ grita” com a filha ou “ bate" nela

157
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

qLiando traz notas baixas ou observações de mau com portam ento em


classe. A s vezes, com o castigo, afasta-a do resto da família. “ C o lo co
ela num canto sozinha. Ela pega um caderno ou fica lá, faz o que qui­
ser, mas que ela não se mexa... (risos). E eu afasto ela da família.” lnde-
pendentem ente do que possamos pensar dos efeitos desce tipo de rea­
ção, somos obrigados a constatar que, se um pai bate em seus filhos
por causa dos maus resultados ou mau com portam ento escolar, é por­
que, para ele, a escola representa algo que não é desprezível. Os pais
também controlam N abila para que vá dorm ir todos os dias da sema­
na, “ varia pouco” , à mesma hora: “ N o v e e meia, mais ou menos, ela
está deitada” , fora as vésperas dos dias em que não há aulas, quando
pode ficar aré por volta das 22 horas.
In felizm en te estes in vestim en to s são contrabalan çados por
uma série de obstáculos. Prim eiro, o capital cultural dessa fam ília
está quase in te ira m en te co n c en tra d o na pessoa do pai, que é
pouco presente, sobretudo em relação à educação dos filhos. A mãe,
que, no quadro de uma divisão sexual d o trabalho bastante clás­
sica, é responsável pela educação dos filh os, sõ tem 2 ou 3 anos
de escolaridade e está na França há apenas 11 anos (co n tra 26 de
seu m arido). T em dificuldade para 1er a correspondência e não tem
con d ições de ajudar os filh os a fazerem as lições de casa. A c o n ­
tece que o pai ch ega por v o lta das 19h30 ou 20h, e não p ode real­
m ente cuidar dessa parte.
A liá s, de um ponto de vista global, os pais de N a b ila têm p ráti­
cas de escrita e de leitura m uito restritas. N o que concerne à leitu ­
ra, o senhor e a senhora M . não têm grandes interesses. Lêem jo r­
nal m uito raramente ( “ N ã o , isso num m ’ interessa” , diz a senhora
M ., e o m arido esclarece: “ Durante um tem po eu com prava sem ­
pre, mas agora, não com pro m ais"). A televisão substitui o jornal:
“ Tudo o que a gen te olha, as notícias, as coisas, dá na televisão". O
senhor M . com pra Le Progrès todos os dom ingos, mas por causa da
programação de televisão. Em um prim eiro m om en to disse que “ via
um pouco de tLido” no jornal, mas quando tentam os fazer com que
detalhasse mais sua leitura, descobrímos que não lê nem a seção espor­
tiva ( “ N ã o gosto de esporte” ) nem a política, que lhe parece to ta l­
m ente fora de sua realidade e de suas com petências. C h ega a opor,

158
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

de maneira m uito reveladora, a sua “casa” , que é o d o m ín io sobre


h qual ele reina e de cuja política está incum bido, e a “ p o lítica ” ,
com o um universo que não dom ina e p elo qual outros são respon­
sáveis: “ N ã o , a p olítica não estou em condições, não m'interessa.
1V i xo aos cuidados dos que. (Risos.) Porque não serve pra nada a
gen te perder tem po com coisas que não dom in a” . “ M esm o o que
está a con tecen d o na A rgélia ?" “ A h não, não m ’ interessa. Porque
com o eu v iv o aqui, não m ’ interessa as coisas que acontecem lá. Os
que vive m lá que se preocupem com isso. M eu problem a é tom ar
conta da m inha casa, o resto...” .
Tam bém não lêem revistas, e o senhor M . evoca, rindo, som en­
te as revistas que fo lh e ia na sala de espera de um consultório m éd i­
co, bem com o revistas técnicas que possui, mas que não utiliza mais
desde que fez sua form ação técnica. Tam bém não lêem revistas em
quadrinhos, ainda que ele, “ antes” , “ dava uma olhada” . A leitura
de livros também não faz parte de suas atividades cotidianas. A senho­
ra M . evoca im ediatam ente sua falta de interesse por essas coisas,
e a elas opõe práticas que, a seu ver, são mais sérias, co m o cuidar
da casa e educar os filhos: "E, num m'interessa. T en h o de cuidar dos
filh os o dia inteiro. Já é um grande trabalho” . Ela não tem livros
práticos sobre cozinha, costura, tricô, e o m arido diz, para defende-
Ia, que “ ela sabe cozinhar” ; deixan d o en tender que para ele o livro
é para ser utilizado por incom petentes. Possuem um dicion ário para
toda a fam ília, mas não uma en ciclopédia, e o senhor M . diz que
tinha um livro de preces e o A lco rã o , mas não lia nenhum dos dois.
A in d a que co n v en c id o de que o A lc o rã o diga coisas interessantes
sobre o passado (" E interessante, né?, é um livro que conta histórias
que acon teceram ” ), parece possuir estes livros enquanto signos
exteriores de seu credo religioso, e não com o livros que sejam o b je ­
to de uma apropriação pela leitura.44
N o referente às práticas de escrita, é o senhor M . quem, por
conta de suas com petências, cuida de todos os documentos ("E le é
o responsável, né?” , diz a senhora M ., e seu m arido acrescenta:
“ N u m a casa, é norm al, ou a gente faz ou num faz” ). Mas ele prefere
ir direto às repartições públicas para explicar “ pessoalmente’’ e "acer­
tar o que tem de ser acertado, lo go ” , em vez de escrever uma carta

159
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

pedindo explicações ( “ Eu não sou com plicado, então não com plico
minha v id a "), da mesma form a que pretere telefonar para um paren­
te a trocar uma correspondência escrita, pois isso evita esperar a res­
posta e perm ite escutar a voz da pessoa: “C o m o existe o telefone,
então dou um telefonem a, é preferível... N ã o é a mesma coisa que
escrever num pedaço de papel e esperar o ito dias pra saber (rindo)".
A senhora M . anota somente os números de telefon e em uma cader­
neta e algumas coisas no calendário (consultas médicas, excursões
escolares das crianças...).
Mas o leque das práticas de escrita utilizadas pára aí, indicando
um grau bem fraco de racionalização doméstica. N ã o m antêm uma
caderneta de contas, n em escrevem lem bretes ( “ N ã o , não, esse n ão
c meu estilo, quando tenho alguma coisa pra fazer, eu penso nisso",
diz o senhor M .), não fazem lista de compras ( “ Dou uma olhada e
pronto, fica gravado” ), nem lista de coisas para fazer ou para levar
em viagem , n ão anotam nada em agendas, não copiam receitas cu li­
nárias, não fazem anotações antes de dar um telefon em a im portan­
te, quase não anotam nada durante um telefonem a, ou depois d ele
(a não ser que haja uma lista grande de docum entos solicitados, pre­
cisa o senhor M ; "senão n ão adianta n ad a"), têm fotos dos filhos,
mas não organizadas em álhuns ( “ Fazemos uns pacotinhos” ), e não
escrevem nada atrás das foros. Tam bém não fazem palavras cruza­
das de nenhum tipo ( “N ã o gosto", diz o senhor M .).
A lé m disso, várias informações demonstram que, apesar do dese­
jo de que N a b ila “ seja boa” na escola, os pais estão hem alheios ao
sistema escolar e à escolaridade dos filhos. O pai não consegue dizer
espontaneam ente em que classes estão os filhos ("P reciso pergun­
tar pra eles (rindo), porque eu ..."), e n em ele nem a mulher c o n h e ­
cem os professores. Seu interesse pela escola é m uito mais m oral do
que especificam ente escolar ou pedagógico: retêm a figura moral
(corajosa, franca, direta, trabalhadora e volu ntarista) d o diretor
( “ E um cara legal. Tom ara que dure, que fique lá. Ele se preocupa
com muitas coisas. In felizm ente não tem muitos que são assim. Ele
ajuda m uito tod o mundo. T em uns que não têm vontade de estu­
dar. Eu, se tivesse a idade das crianças que ficam lá sem fazer nada,
conseguiría alguma coisa, tenho certeza. Ele não se incom oda, vem

160
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ut vo cê quando cem alguma coisa, ele é sincero"), os elem entos mais


eticos das reuniões escolares ("P o r causa das besteiras que fazem as
i nanças no recreio. T em criança que leva faca na escola "), e preo-
i upam-se mais com o com portam ento da filha na escola (que brin-
i a dem ais) do que com o desem penho escolar propriam ente dito.
Para o senhor M ., se os joven s fazem besteiras “ é por culpa dos pais
que não tom am conta dos filh os", em pregando neste caso uma
expressão tipicam en te escolar, mas atribu indo-lhe, sem dúvida,
mais um sentido moral e disciplinado que pedagógico.
O pai cita uma atividade escolar paralela (desenho) como uma maté­
ria na qual N abila se sai bem: "Ela desenha bem. N ã o sei por quê. Ela
gosta. Prefere o desenho". Ele também não sabe que a filha não fica
na escola nas horas de estudo livre para fazer as lições’0, mas sim para
aprender costura. Quando evocam um exercício de leitura-compreen-
são, os pais demonstram também que não entendem esses exercícios
“ novos” , que lhes parecem difíceis para uma criança dessa idade: “ Ê
muito difícil. N ós, antes, a gente não tinha isso. É n ovo, difícil, né?".
O senhor M . até acrescenta “ que as coisas evoluíram e que a gente
não consegue acompanhar. Por enquanto dá, eles são pequenos, mas
depois eles vão nos ultrapassar” .
A o mesmo tem po, é p elo fa to de ter uma visão redutora da rea­
lidade e dos “ bons” com portam entos escolares que o senhor M . é
leva d o a rejeitar tudo aquilo que n ão lhe parece ser “ escolar” .
Desta form a considera que os jogos, em seu con ju n to (dos quais
parece desconhecer as virtudes pedagógicas exploradas pela própria
escola), e as leituras extra-escolares (qu e desviam dos "d eve res")
são “ besteiras” das quais preserva seus filhos. O senhor M . n ão c o m ­
pra, portanto, livros para presentear N a b ila : “ E co m o é que eu vou
com prar livros assim, que não têm pé nem cabeça, que conta
histórias? N ã o sei se é im portante ou não é. Pra m im acho que não
é im portante, porque tem outras coisas que são mais im portantes
que isso. Fazer lição, fazer desenho, em vez de 1er besteiras. Eu não
gosto de 1er besteiras, e en tão (rindo) n ão faço meus filhos lerem
besteira” . Ele d ivid e, portanto, a realidade em duas: a que é séria,
que serve para a escola (os deveres de casa), e a que é vista co m o
um luxo inútil, uma “ besteira” .

161
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

C o m o volta do trabalho entre 19h.30 e 20h, o pai reconhece que


não vê o que os filhos fazem, e as lições de casa não parecem ser
verificadas (e poderíam ser?). Confessa que não sabe se N a b ila está
m entindo quando diz que não tem lição: “ Infelizm enre, eles nunca
tiveram lição de casa. A gora, cada vez que a gente pergunta pra ela:
“ E verdade ou não é?, ela me diz: 'N ã o ten ho liçã o ’ . Será que é ve r­
dade ou num é?” . Por seu lado, N a b ila diz que não pede ajuda ao
pai “ porque ele está trabalhando” , n em aos irmãos, “ que ficam brin­
cando lá fora” , e conta que às vezes não faz a lição. O senhor M .
parece pensar que, se os professores não lhe dizem nada, é porque
não há problem a desse n ível, mas a verdade é que as lições de casa
(não obrigatórias) não são sistematicamente controladas. N abila não
é forçada a estudar durante as férias, e o senhor M . acha norm al que
uma criança, “ com o todas as crianças", pense antes de tudo em brin­
car: “ E raro, se a gente não diz pra eles, eles não fazem. É férias, né?
É férias mesmo, de verdade, né? (risos)".
A liá s, durante toda a entrevista, o senhor M . revela sua c o n ­
cepção de uma infância naturalm ente im pulsionada para a b rin ­
cadeira (à tarde, “ eles passam p rim eiro p elo pátio, é esse o p rob le­
ma das crianças” ), o d ivertim en to, a procura de “ liberdades” . Mas
nos fala, ao m esm o tem po, da in terven çã o necessária e e x terio r do
adulto, cu jo papel consiste em atenuar e lim itar essa natureza. O
m odo de e x erc ício da autoridade parental é, portanto, direto, im e ­
diato, e se apoia na manutenção de uma obrigação externa. Nessa
forma de e x erc ício de autoridade, que se revela na m aneira co m o
falam aos filhos durante a entrevista’ 1ou com o reagem às notas bai­
xas (nada de punição, advertência ou privação, que feriam in flu ên ­
cia, com o tempo, sobre a interiorização das obrigações pela criança,
mas “berros” e surra quando as coisas andam m a l’ ’ ), os problemas
são resolvidos, assim com o os problemas adm inistrativos, n o ato,
sem espera. Isto supõe uma presença constan te ju n to às crianças,
algo que os professores n ão fazem, sendo por isso a lvo da crítica do
pai de N abila. D e fato ele não com preendeu por que os professo­
res esperaram o b oletim para avisar que N a b ila hrincava na aula:
“ Eles puseram: ‘ Ela brinca demais, o lh a ’ ". Segundo ele, eles d e v e ­
ríam tê-lo p reven id o assim que as coisas não estivessem in do bem,

162
perfis de configukacões

pura que ele pudesse tom ar alguma atitude: “ Tem que dizer antes
h- eles vêem que ela tá brincando m uito. P or que esperar o dia...
até o dia que ela vem trazer o boletim ?” . A com u n icação por vias
regulamentares e oficiais, com o o b o letim , para ele é perda de
tem po. G ostou que um professor do ano anterior tivesse d ito que
um de seus iilh os se com portava mal em aula, e conta que ele lhe
deu “ autorização" para “ corrigi-lo": “ Então eu disse: ‘O lh a eu te dou
autorização. Quando ele fizer isso, o senhor corrige, e eu faço a mesma
coisa d o meu lado. E a partir de agora, se o senhor vê que ele vai
continuar a brincar, não d eix e de me co n voca r im ediatam en te” ’ .
O problema é que, além de tudo, ele não compreende por que lhe
dizem que N abila brinca durante a aula, uma vez que não pode fazer
nada, porque não está presente. Segundo ele, quando os professores
notam que N abila está brincando, estão confessando sua falta de fir­
meza. Se ele não está lá, não pode fazer nada: e se ela brinca, é porque
os professores deixam: “Ora, se ela brinca os professores estão lá para
(rtsus) corrigi, né? (Risos.) N ã o sou eu que vou ver isso... se eu não tô
lá” . Interpreta, portanto, o fato de a filha brincar com o um excesso de
liberdade dada às crianças: "Se eles brincam demais, com o tá marca­
do no boletim, é que a menina encontrou liberdade. E a criança que
é livre". O pai mostra com isso que não concebe o tato de que uma
educação diferente podería levar N abila a brincar menos em aula. E,
reagindo a partir do único m odo de autoridade que conhece — o dire­
to e imediato — , diz que quando não está presente, não pode fazer nada,
e o responsável é o professor. O senhor M . preferiría, portanto, que os
professores “fossem severos com as crianças desde o início. Elas não
têm que brincar muito na classe. Eu prefiro que eles tentem controlar
mais as crianças, né?, porque... A s crianças, se a gente deixa elas brin­
carem, é normal, elas vão brincar, né? Se a gente tentar tomar um pouco
conta, elas não vão brincar". Os efeitos não previstos dessa forma de
exercício da autoridade residem no fato de que, uma vez atenuada a
coerção, ou seja, assim que as crianças conseguem encontrar a “ liber­
dade” , com o diz o senhor M ., seu comportamento pode ser menos con ­
trolado. N ã o tendo aprendido a se autodisciplinar, elas podem estar
deslocadas diante de uma situação escolar que exige um m ínim o de
autonomia. Esses efeitos estão atenuados (ainda que presentes) no caso

163
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

de Nabila, que, pelo fato de passar por lima socialização fem inina que
a leva ao exercício de suas responsabilidades familiares (ajuda nas
tarefas domésticas, responsabilidade educativa junto ao irmão menor),
aprendeu a ser muito mais dócil e "responsável” que os irmãos” . Os
professores notam que ela é "trabalbadeira", “ clara", "ordenada” , qua­
lificativos que poderíam ser característicos de uma “boa dona-de-casa".
U m capital cultural pouco disp on ível, um fraco grau de racio­
nalização dom éstica, uma vigilân cia mais moral que escolar e uma
form a direta e exterior de ex ercício da autoridade fam iliar: eis os
traços que, com binados entre si, forn ecem a configuração fam iliar
a partir da qual N a b ila consegue, d ificilm en te, apesar de uma adap­
tação relativa ao com portam ento escolar, apropriar-se dos co n h e­
cim entos escolares.

♦ Perfil 10: A “escrevinhndora” disciplinada.


Saliííw T., nascida cm OuIIins, sem nenhuma repetência, obteve 7,2 na
avaliação nacional.

Foi o senhor T. quem respondeu às nossas perguntas, pois sua


m ulher estava ausente durante a entrevista. M as não é por acaso
que é ele quem responde às perguntas sobre a escolaridade de Sali-
ma: com o sua m ulher é analfabeta, é ele quem acom panha e ajuda
os filhos, na m edida d o possível. A entrevista aconteceu na sala de
jantar, em to m o da mesa. N a sala, podem os observar que os m óveis
são simples, e na parede há uma gravura com um texto em árabe e
um calendário. O senhor T. é conciso em suas respostas e parece à
vontade ao longo da entrevista. Fala m uito rápido, com um pronun­
ciado sotaque argelino, e às vezes fica d ifícil com preender o final
das frases. A lé m disso, com ete frequentem ente erros de vocabulá­
rio ou de gramática: emprega constantemente "e le " em iugar de “ ela” ,
os verbos perm anecem no singular, enquanto o sentido da frase
demonstra que deveríam ser conjugados no plural...
O senhor T., de 40 anos, é originário da Cabília, na A rgélia.
Nunca frequentou a escola em seu país, e declara: “Sei 1er um pouco,
mas não escrever” . N ã o escreve em árabe, nem em francês, e não lê
francês. A p ó s passar por vários empregos, trabalha em uma empresa

164
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

há 16 anos com o operário em eletricidade, sem no entanto ter feito


nenhum curso de formação: "Em eletricidade eu me víro. N u m tenho
qualificação". V em de uma fam ília de onze irmãos, e seu pai era
pedreiro na Argélia. Sua mulher, de 38 anos, também nunca foi à esco-
Ia. C hegou à França em 1980 e nunca trabalhou. H á um ano faz algu-
mas horas de faxina por dia. V em de uma fam ília de doze irmãos, e
seu pai tinha um bar na A rgélia. O casal tem três filhos: o mais velho,
um garoto de 10 anos, está na 4â série do l s grau. Em seguida vem
uma menina de 8 anos, Salima, que está na 2~ série, e uma menina
de 7 queestána I a série ( “ A s e n h o ra *** medisse: ‘E leéform id á vel” ’).
Salim a entrou n o maternal aos 2 anos e 8 meses. Fez cursos de
fonoau diologia durante dois anos antes de entrar para o primário.
Julgada “ um pouco menos rápida e brilh an te" que o irm ão ( “ ávido
de co n h ecim en to s") p elo professor, que teve os dois co m o alunos,
Salim a é “ discreta", “ alegre” , “ não é barulhenta" e faz as coisas
quando é preciso fazer. “ S entim os que ela quer fazer” , acrescenta o
professor. Segundo ele, o pai “ con trola” os filhos. A única crítica
que faz a Salim a é de ser às vezes um pou co distraída, e um pouco
"bagunceira” . Seu desem penho fo i constante durante tod o o ano
(n a última prova tirou 7,5 em francês — da qual 8 em expressão
oral — e 8,3 em m atem ática).
O caso de Salima reúne todas as condições objetivas para um pro-
vá vel “ fracasso” escolar. De fato, o pai, eletricista não-qualificado, e
a mãe, faxineira em tem po parcial, não foram à escola. A mãe é anal­
fabeta, e o pai lê um pouco em francês, mas quase não escreve. E, no
entanto, Salima nunca repetiu de ano, está tendo “sucesso” na 2a
série e m anteve um bom desempenho escolar durante todo o ano.
A in d a neste caso, será a com binação de características da configu ­
ração fam iliar que permitirá com preender seu “ êx ito ” na escola.
N ã o será, portanto, nas práticas de leitura de seus pais que p o d e­
remos encontrar uma parte da explicação da boa escolaridade de
Salim a. A senhora T. não sabe 1er, e seu m arido lê ocasionalm en­
te jornal (L e Progrès), que consegue com preender porque já ouviu
talar dos acontecim entos pelo rádio ou pela televisão. O suporte escri­
to é, portanto, contextualizado pela mídia audiovisual: “ Eu in ten ­
do, sobretudo o jorn al, com preen do m elh or qui outra coisa, né?

165
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Porque são coisas qui já ouvi na tevê, ou ço falar no rádio, e então,


quando revejo o artigo, por exem plo, eu v ô com prendê um pouco
mais” . Q u ando o senhor T. lê o jornal, interessa-se sobretudo pelas
páginas policiais, esporte e turfe ( “O resto num m ’ interessa” ). Ele
não lê revistas nem histórias em quadrinhos, vê a program ação de
televisão no Le Progrès, quando o compra, ou en tão escuta os p ro­
gramas anunciados na televisão. Q u ando o tex to é longo, com o no
caso de um livro, o senhor T. declara ter dificuldades para com preen­
der: “ N u m posso 1er, por exem plo, livros de histórias. N u m consi­
go acabar porque tem muita coisa qui num consigo intendê” . Possui,
no entanto, um dicion ário do qual se serve constantem ente, sobre­
tudo para os jogos de scrabble: “T en h o um prim o, e jo go scrabble de
vez em quando com ele. A f procuro as palavras n o d icion ário. Pra
encontra uma palavra qui renho lá n o coisa, por exem plo. Sem dicio­
nário num consigo fazê nada".
Entender as práticas domésticas de escrita também não nos abre
cam in h o para com preen der o que a co n tece na fam ília. E n con ­
tramos, ao co n trário, numerosos sinais de uma disposição esp on ­
tânea na organização das atividades domésticas. E o senhor T. quem
lê a correspondên cia ( “ N u m ten h o problem a” ), a não ser quan­
do é um pou co com plicad o. Nesse caso, pede ajuda a alguém da
fa m ília ( “ Sem pre da fa m ília , é c la r o "). C o rn o n ão sabe quase
escrever francês, não é ele quem escreve em casa: "Quase num escre­
v o ” . Fora a declaração de impostos, que ele preen che, e os d ocu ­
m entos escolares que assina, a m aior parte dos docu m en tos quem
preenche é um prim o. N ã o tem talão de cheques, pois tem m edo
de se enganar na hora de preencher: “ T en h o m ed o purque num
sei escrever, escrever com letras". E ele quem organiza seus d o cu ­
m entos, mas não de uma form a m uito ordenada ( “ N u m estão tão
bem arrumados, m édio. U m pou co entre tis dois, né?” ), e d ec la ­
rou não poder realmente “ gerir” seu orçamento, porque ganha m uito
pouco: “ V ivem o s co m o din h eiro con ta d o quase, porque co m meu
salário num v e jo qui orça m en to posso fazê. Esperamos que c h e ­
gue o salário e depois o aluguel. N u m tem o rça m en to pra gerir".
N ã o escreve lem bretes ( “ M i lem bro bem quando ten h o um e n co n ­
tro, e sem escreve nada” ), listas de compras ( “ N u n ca fiz lista de

166
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

1 1 >mpras. Si m inha m ulher vem co m ig o ela pega as coisas que pre­


cisa pra casa. S i vem os alguma coisa pras crianças. D i qualquer
m aneira pra com id a num sei porque te n h o que fazê lista, purque
precisamos de iogu rte, de pão, disso, daqu ilo, d o que precisa, né,
num ten ho nada prá dizê. N u m calcu lo, num calcu lo o que prici-
so. Pego, depois, quando num tem mais, v ô com pra e acabô” ), não
laz listas das coisas que tem a fazer, não utiliza agenda, n ão anota
nada no calen dário e não escreve cartas para a fam ília ( " D ó um
telefon em a, é su ficien te” ).
Se tem de en viar uma carta para “ explicar” coisas e “ é lon go", ele
pede para alguém. Em vez de telefc>nar a uma repartição pública qual­
quer e anotar o que dizem, prefere ir pessoalmente, pois, segundo ele,
exprime-se mal ao telefone. A preferência por uma cultura oral e ges-
tual em situação de interação tace a face é nítida neste caso: “ N u m
telefono sempre pras repartições. Prifiro estar lá que falá no telefo­
ne, porque falo mal n o telefone. Então prifiro ir no lugar. Telefon o
por exem plo pra marcá hora. Si é coisa pouca, tudo bem, mas si tem
que explicá coisas, vô lá, prifiro. Assim frente a frente mi explico melhor.
Si eles num entenderam uma coisa, posso explicá com gestos".
N o que se refere à escolaridade, é preciso observar que o senhor
T. não consegue dizer em que classes estão seus filhos ( “ Eles vã o dizer
daqui a pouco quando ch egar"). O que não significa que não se in te­
resse. P elo contrário, a escola é para ele algo m uito im portante: “ E
m uito im portante, sobretudo neste m om en to". Ele acha que, por
um lado, há cada vez menos necessidade de trabalhadores braçais
( “ Penso que mais tarde, é a técnica que vai fu n cion á” ), e que, por­
tanto, a escola se torna cada vez mais necessária e, por outro lado,
que “ é importante aprender” . O senhor T. vai ver os professores quan­
do é necessário e estes estão muito contentes em seus filhos. N o entan­
to, nunca viu, em especial, o professor de Salim a, e é raro com pa­
recer às reuniões da escola, pois vo lta m uito cansado do trabalho:
“ Istô muito cansado porque às vezes v ô trahalhá m uito longe. C h eg o
às 6 horas, e a reunião é as 6 horas, num posso í. Prifiro ficá em casa".
O senhor T . se revela um pai a tivo na ordem d o “saber” , sobre­
tudo para os filhos. É sobretudo a ele que se dirigem quando falam
da escola, pois nem sempre sua mulher com preende o que dizem:

167
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

“ C o m a mãe talvez não falem m uito da escola, mas co m igo sim.


Porque co m sua mãe, eles dizem coisas qui ela num com preen de” .
A pesar de não saber em que classe está Salim a, ele con h ece seus
pontos fortes e fracos. Diz que ela tem problemas em leitura silen ­
ciosa e que nem sempre é cuidadosa quando escreve: “ Em leitura
silenciosa, bom , ela responde qualquer coisa. E sua letra é miserá­
vel. D igo: ‘Escreve devagá e bem, mas ela escreve qualquer coisa,
num dá pra lê. G rande, pequeno, torto, risca demais, o senhor vê
com o são as coisas'. Então eu digo: ‘Tem que fazê m elhor', mas num
tem je ito ” . O pai parece ter um papel im portante quanto ao cálcu­
lo: “ Ensinei bastante cálculo pra ela, porque eu faço m uito cálcu lo” .
A pesar de tudo, ela a acha “ boa", se bem que o filh o mais v e lh o seja,
segundo ele, “ mais instruído que ela” : “ Salim a tem a cabeça dura.
Quando falam com ela, explicam, parece que está com a cabeça nou­
tro lugar” . À s vezes ele se declara “ descon ten te” com Salim a, pois
ela traz "notas m u ito baixas", e ela própria diz que isso “ acontece
bastante” , mas, na verdade, os seus resultados estão longe de ser decep­
cionantes. M as isso indica a sensibilidade tanto d o pai com o da filha
para com notas (raram en te) mais baixas.
Todas as noites, o senhor T. diz aos filh os para fazerem as lições,
e con trola regularm ente suas notas. Ele os ajuda na m edida de suas
possibilidades, ou seja, mais em cálcu lo d o que em leitura: “ Daqui
há pou co não poderei dar francês. E mais do qui eu sei. A ju d o eles
um pouco, e xp lico um pouco du qui eu posso. Q uando num sei digo:
‘N u m en ten d i’ , e aí ela va i perguntar para outra pessoa” . U m tio
de Salim a, que está tem porariam ente v iv e n d o com eles, a ajuda
quando ela tem dúvidas ein leitura. Salim a e o irm ão mais velh o
se ajudam tom ando a lição um d o outro. Em geral o senhor T . pede
para ver quando eles terminam as lições, mas quando volta cansado
d o trabalho slí pergunta se acabaram e diz que co n fia no que res­
p o n d erem '1. Q u an do S alim a está de férias, o pai faz questão de lhe
com prar, bem c o m o para seus ou tros irm ãos, um ca d ern o de
exercícios.
Embora não passe a im agem de um pai que consulte freqüente-
m ente o dicion ário em casa, o senhor T. (ou às vezes sua m ulher)
vai com os filhos à biblioteca municipal; também os presenteou recen-

168
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tem ente com um liv ro com posto por uma história para cada dia do
ano e compra, às vezes, para Salim a “ livros de histórias, Branca de
Neve, coisas desse tip o ” . C onsidera evid en te ( “ A h , claro, felizm en ­
te” ) que seus filhos possuam sua própria biblioteca.
A lé m disso, em bora ele próprio não escreva, “obriga" os filhos a
fazerem coisas que ele "n ã o faz" (n ão pôde fazer) em matéria de prá-
ticas de escrita. Pede-lhes, por exem plo, para ter uma agenda para
prever e lembrar-se do que devem fazer: “Forço as crianças a escre­
verem coisas importantes no calendário, mas eu não. Sei lá, quan­
do tem alguma excursão com a escola, coisas desse tipo digo: ‘pre­
cisa anotar antes que...1Q uando chega o dia, a gen te sabe que ele
está la. H bom pra eles, eu acho. Assim eles sabem que, sei la, nesse
dia tem que ir em tal lugar, ou noutro dia, ele va i fazer outra coisa.
Por isso faço eles marcá, H também no fim do ano eles sabem o que
fizeram, sei lá, coisas assim. Em princípio, eles marcam. E um calen­
dário com umas páginas, C o m o chama isso? U m a agenda". Ele tam­
bém os incentiva a ter um diário das férias para contar o que fize­
ram, e, nesse m om ento, exprim e seu ressentimento em relação a essas
práticas que gostaria de poder ter feito, pois poderia conservar lem ­
branças precisas de seu passado. Salim a é que parece ter interioriza­
do m elhor os desejos paternos: “ Eu os obrigo quando saem de férias.
Eu digo pra eles: ‘Tem que fazê um diário, o que vocês fizeram de dia,
por exem plo, o que vocês fizeram durante nas férias, essas coisas'.
Bom, o mais v elh o num faz nunca. É raro si escreve um bilhete, mas
ela (S a lim a ), tô certo que quando ela ficar de férias, ela pode fazer
um diário enorm e. Sou eu que digo pra ela fazê. Eu falo: T u rqu e é
bom pra vocês’ . E legal, si eu pudesse ter feito, ah, que pena! Porque
eu m e arrependo di não ter Lembranças de toda minha juventude,
sabe? Porque é uma pena. Si tivesse escrito, taria tudo escrito, né?
O que a gente escreve fica” . Existe, portanto, entre o senhor T . e seus
fi lhos, laços que passam pela escrita. Seria um acaso o fato de o filh o
ser “ávido de conhecim entos" e a filha, que gosta de escrever histórias
a partir do que lê, desejar ser “ escrevinhadora” ( “ Ten h o von tade de
ser escrevinhadora quando for grande"; “ Invento muito", ela diz, falan­
d o de histórias)’5? O s filhos sabem que dão prazer ao pai quando se
saem bem na escola e escrevem para e le A

169
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Porém, as exigências do pai em matéria de leitura, de escrita e, de


forma mais ampla, de escolaridade são mais eficientes junto aos filhos
na medida em que ele se mostra igualmente preocupado em estabe­
lecer boas relações com eles, em sair, brincar, ainda que, cansado do
trabalho, nem sempre tenha vontade: “ Bom, às vezes num tô com v o n ­
tade, mas faço por eles, porque, bom, tô cansado, chego, tô morto, mas
eles são jovens, precisam se mexê, né?". Responde também a desejos
deles por atividades, inscrevendo-os em clubes esportivos (“ Queria levar
eles na ginástica, mas é muito longe. N u m tenho tempo de chegar às
5 e meia e levar eles até lá. Então coloquei eles no futebol pra que eles
se soltem um pouco” ), ou então deixando-os participar de excursões
organizadas pelo centro social durante as férias.
De m odo geral, o pai parece exercer uma autoridade baseada não
na violência física, mas na interiorizaçãoda legitimidade de suas pala­
vras pelos filhos. Assim sendo, ele não bate quando os filhos trazem
notas baixas, e "xin ga " moderadamente, com a preocupação de não
os colocar contra ele ou piorar a situação: “ N u m quero dizer coisa
demais. N u m sô tão v io len to . G rito com eles, mas... G rito pro bem
deles, mas não demais". Vim os também que o senhor T. verifica as
lições de casa à noite, mas, quando não o faz, dem onstra confiança
nos filhos. Isso não significa falta de autoridade. Sabemos que ele
sabe fazer-se respeitar rapidamente, e que as crianças interiorizaram
o respeito ao adulto. U m a passagem da entrevista nos fornece um
h elo exem p lo disso. De fato, quando as crianças chegaram da esco­
la, durante a entrevista, Salim a perguntou se podia hrincar lá fora,
e o pai respondeu-lhe uma só vez, pela negativa: ("N ã o , e feche a
porta, Salim a” ). Ela não fez nenhum com entário, e não insistiu1' . A
nosso pedido, o senhor T. com entou esse a con tecim en to mais tarde
durante a entrevista, dizendo: "Em princípio, quando digo pra eles
fazerem alguma coisa, eles n ão dizem não. Porque são jovens. Q uan­
do lhes digo qualquer coisa, é qualquer coisa. A í eles num podem
m e dizer não. D igo: ‘Vai fechar a porta, vai buscar tal coisa’, ele num
vai m e dizer não. N en h u m dos três vai me dizer não. Estão habitua­
dos". Esse m odo de exercício da autoridade familiar está sem dúvida
bastante ligado à capacidade, observada pelo professor, de com eçar
a estudar quando ele lhe diz, de ser discreta, de não fazer barulho,

170
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Je não ser indisciplinada, em resumo: “ V o cê lhe dá trabalho para


lazer” , diz o professor, “ ela com eça e pronto, sem discutir” .
Mas talvez a figura central do pai explique tam bém por que Sa-
lima é julgada, d o ponto de vista escolar, um pouco menos “ brilhan­
te” que o irmão. O pai descreve uma divisão sexual de papéis bas­
tante clássica. E ele quem fica atrás do filh o , in citan do-o a virar-se
quando, por exem p lo, um pneu de sua bicicleta estourou: “ Eu, por
exem p lo, si sua bicicleta quebrou, eu digo: ‘O lh a ’ . Eu dô as peças e
eu digo: ‘T i vira, eu ti com prei cola, vo cê m onta a peça'. Mas uma
vez m on tei uma peça pra ele". Em contrapartida, é sua mulher
quem é a responsável por uma parte da educação das meninas,
sobretudo ensinando-as a cozinhar um pouco: “ Sobretudo as m en i­
nas, eu digo pra sua mamãe, ‘porque elas são meninas num sô eu
que v ô tom ar conta, é a mãe, de ensinar a cozinhar, de fazê elas cozi­
nharem, fazerem umas coisas, num vai fazê mal pra elas’ ” . N a cons­
trução social de sua identidade sexual, Salim a tem de ajustar-se a
uma mãe bastante alheia à cultura escrita e ao universo escolar.

Sentimento de inferioridade, sentimento de superioridade

Minha intuição m e d i ;i certeza de que, finalmen*


rc, tudo ira bem, e atribuo isso ao enorm e senti­
m ento de segurança que experimentei enquan­
to filho único, graças ao amor de meus pais 1H.

Em certos casos de “ fracasso” escolar, podem os dizer que o con ­


flito cultural é duplo para a criança. Enquanto ser socializado pelo
grupo familiar, ela transporta para o universo escolar esquemas com -
portamentais e mentais hererônimos que acabam por im pedir a com ­
preensão e criar uma série de mal-entendidos: esse é o prim eiro co n ­
flito. Mas, viv e n d o novas formas de relações sociais na escola, a
criança, qualquer que seja seu grau de resistência para com a sociali­
zação escolar, interioriza novos esquemas culturais que leva para o uni­
verso familiar e que podem , mais ou menos conform e a configuração
familiar, deixá-la hesitante em relação a seu universo de origem: esse
é o segundo conflito, O “ fracasso” escolar é, então, o produto de um
co n flito tanto entre a criança e a escola (en tre a “fam ília” e a “esco-

171
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

la", com o se diz frequentem ente de maneira lapidar, mas essa forma
sumária de colocar o problema desvia o olhar da sutileza do duplo con ­
flito viven ciado na intersecção de duas redes de interdependência)
quanto entre a criança e os membros de sua família.
Por conseguinte, a maneira co m o os membros da configuração
fam iliar viv e m e tratam a experiência escolar da criança, re v iv e n ­
do, às vezes, através dela, sua própria experiência escolar passada,
feliz ou infeliz, se mostra co m o um e lem en to central na com preen ­
são de certas situações escolares. Os adultos da família, às vezes, vivem
numa relação hum ilde com a cultura escolar e com as instituições
legítim as e podem transmitir à criança seu próprio sen tim en to de
indignidade cultural ou de in com petên cia (cf. os Perfis 11 e 12 e
também o Perfil 8 ). Mas, ao contrário, podem com unicar o senti­
m ento de orgulho que experimentam diante dos bons resultados esco­
lares da criança, ou en tão olhar com b en evolên cia a escolaridade
da criança, apesar da distância qLie os separa d o m undo escolar (cf.
os Perfis 13 e 14 e também os Perfis 16 e 25).
O apoio moral, afetivo, sim bólico se mostra tanto mais im portan­
te quanto sejam pequenos os investimentos familiares (p o r exem plo,
o caso dos pais analfabetos). Ele possibilita à criança sentir-se inves­
tida de uma importância exatam ente por aqueles de quem ela está
em via de separar-se. C o m efeito, com o sublinhava M aurice Halb-
wachs a propósito da dor (psíquica ou física), esta se mostra mais supor-
tisvel quando podemos imaginar "que ela pode ser experim entada e
compreendida por várias pessoas (o que não seria possível se perma­
necesse uma impressão puramente pessoal e, então, ú nica)” , pois nos
parece, então, que "transferimos uma parte de seu peso para os outros,
e que eles nos ajudam a suportá-la'” 1'. E, se a criança consegue, no ponto
de cruzamento da configuração familiar e da configuração escolar, tor­
nar o trabalho escolar o local de constnição de seu valor ou de sua
legitim idade própria, então as “desvantagens” de origem podem aré
tornar-se uma fon te de desafio suplementar para a criança.
A “ herança” familiar é, pois, também uma questão de sentimen­
tos (de segurança ou de insegurança, de dúvida de si ou de confiança
em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de
privação ou de dom ínio...), e a influência, na escolaridade das crian-

172
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

1, 11s, da “ transmissão dos sentimentos" é importante, uma vez que sabe­


mos que as relações sociais, pelas múltiplas injunções predítivas que
engendram, são produtoras de efeitos de crenças individuais bem reais.

♦ Perfil 1 ! : Um sentimento de "inferioridade cultural”.


Alberto C . , nascido em Bron, sem nenhuma repetência escolar, obteve
nota 3,3 na avaliação nacional.

A entrevista é feita co m os pais de A lb erto . Estamos sentados


em volta da mesa da sala de jantar. A peça tem poucos m óveis: um
televisor, uma côm oda baixa onde estão colocados numerosos bibe-
lôs e uma V irgem n o cen tro, um pequeno aparelho de som e um
pequeno sofá num canto. D epois da entrevista, o senhor e a senho­
ra C . nos o ferecerão vin h o do Porto, de sua terra natal, com orgu­
lho, e, quando form os embora, nos agradecerão.
O senhor e a senhora C ., in icia lm en te, estão m uito in tim id a ­
dos. Ficam á nossa frente co m as mãos sobre a mesa, quase co m o
numa situação de exam e. Por diversas vezes, dem onstram que
estão prestando atenção no que estamos dizendo e que querem pare­
cer “ bons pais” . Perm an ecem m u ito prudentes em suas respostas,
que são sempre razoavelm en te curtas, e, na m aior parte das vezes,
parecem ter por p rin c íp io a vo n ta d e de “ responder b em ". A o
m esm o tem po, tudo na atitude deles e v o c a a hum ildade, o sen ti­
m en to de não ser m u ito im portantes. Parecem sempre espanta­
dos quando lhes fazem os perguntas sobre leitura ou escrita, mas
nunca ousarão con testar a legitim idade das perguntas ou a u tili­
dade de falar das práticas que evocam os.
A fa m ília C . é portuguesa. O pai, 32 anos, paisagista (o u "ja r­
din eiro” , com o diz em um determ inado m om en to), chegou ã França
há 10 anos. Foi à escola primária durante 4 anos, em Portugal, e
gostaria de ter contin u ad o os estudos. Entretanto, seu pai não q u e­
ria que ele continuasse, pois “ era preciso trabalhar” , e foi o que ele
fez depois dos 11 anos, n o sítio da fam ília. N a verdade, seu pai e
sua m ãe são lavradores, analfabetos, e todos, na época, trabalha­
vam com eles na propriedade em que eles eram meeiros. O senhor
C . viveu com seis irmãos e irmãs. Destes, o que foi mais longe na

173
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

escola concluiu o prim ário. Foi durante férias em Portugal que o


senhor C . conheceu sua futura mulher.
A senhora C ., de 28 anos, atualmente está trabalhando com o ope-
rária numa fábrica de encerados de caminhão e cortinas de lona. V eio
de Portugal para a França com a idade de 4 anos. Foi à escola até a 4®
série do l s grau, e tinha, segLindo ela, 15 anos (o que indica ou uma
escolaridade particularmente difícil — 5 anos de atraso — ou uma supe-
restimação da idade de saída da escola primária). Em suas palavras,
ela oscila entre o arrependimento de ter parado de ir à escola e a ausên­
cia de arrependimento: “ Bem, eu fui até a idade de 15 anos. A t é a 4 a
série, e depois parei. N ã o ta va indo muito mal. Mas também não tava
indo muito bem, não. A h , me virava. Das vezes, os jovens, a gente se
enche da escola e então pára, a gente prefere trabalhar. Foi o que acon­
teceu com igo. E depois, mais tarde, a gente se arrepende, ora. A gente
fala, se a gente tivesse ido mais adiante” . “ A senhora se arrepende?”
“ N ão, acho que não, não necessariamente. N ã o, não me arrependo.”
N a ocasião, ela tinha vontade de trabalhar, e foi o que fez. Faz 12 anos
que está empregada na mesma empresa. Seu pai é paisagista no mesmo
local que seu marido. Foi ele quem conseguiu que o senhor C- fosse
contratado. A mãe da senhora C., que também é a “ babá" de A lb e r­
to, nunca trabalhou (ex ceto fazendo algumas “faxinas” ). N ã o lê nem
escreve em francês, só em português; na maioria das vezes, fala em sua
língua de origem. A senhora C . tem um irmão e uma irmã que, dos
três filhos, é a que foi mais longe nos estudos (7 a série).
O "fracasso" escolar de A lb e r to (q u e é a única criança depois
da m orte, no in íc io d o ano escolar, de sua irm ã) pode ser e x p lic a ­
do, co m o em todos os casos observados, não por uma causa d e c i­
siva, única, mas pela com bin ação singular de características fa m i­
liares bastante gerais. In icia lm en te, trata-se de pais que tiveram
uma exp eriên cia escolar extrem am en te curta (caso do p a i) ou
in feliz (caso da m ã e). Por causa de sua socialização escolar, n ão
desen volveram um grande interesse pela leitura e, en tre outras,
pela leitura de livros, tota lm en te ausente de suas práticas. O pai
lê jo rn al “ não tod o o tem p o” e só o com pra m uito raramente. A f i r ­
ma que foi nos jornais diários que aprendeu a 1er o francês sozi­
n ho, mas que "é m u ito d ifíc il” ; declara 1er nos jorn ais “ um pouco

174
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

(Í l tudo” ("E depois, se v e jo que m e interessa, con tin u o; senão,


viro a página” ), mas sem grande co n v icçã o . A mãe diz que não lê
porque n ão gosta d e p o lítica ( “ P rin cip alm en te p o lítica , não me
interessa, então... A h , ten h o h orror d isso"), associando, dessa
t<>rma, espontaneam ente “jo rn al" a "p o lític a ” . O senhor C . lê, todas
as semanas, revistas, que ele cham a de “ livro s” , sobre au tom óveis
(A u to -P lu s), e sua m ulher com pra o que ela cham a de “ rom ances” ,
que são “ fo to n o v e la s ” , mas “ só quando m e v e m na cabeça” , pre­
cisa ela. Eles tam bém com pram um guia de T V (T é lé 7 jo u rs), que
ele declara 1er in teiro ( “ A gente lê tudo, h ein, eu leio tu d o "), e
ela diz 1er apenas a parte da program ação.
Fora disso, ambos não lêem . Ele não tem livros práticos ou téc­
nicos, e ela tem um liv ro de receitas, mas n ão o consulta (e la diz
que cozinha “ assim" — subentendido de cabeça ou “ por intuição” ).
N ã o lêem romances ou histórias em quadrinhos, nunca foram assi­
nantes de uma organização de ven da de livros por correspondên­
cia, não v ã o à bib lioteca e não têm biblioteca em casa. Se têm um
dicionário (mas n ão en ciclop éd ia ), é apenas para A lb e rto usar. Eles
não o utilizam nunca, e constatam que A lb e r to tam bém não o uti­
liza muito: “ Bem, o d icion ário a gente com prou principalm ente pra
ele. Porque uma vez ele pediu um. A gente com prou e depois, no
fim das contas, ele não usa m uito ele. Ele diz: ‘M ãe, preciso de um
d icion ário’ , e, n o fim das contas, ele só usou uma vez e nunca mais".
Esse dicion ário que tem em casa, e que não tem nenhum usuário
p elo lado dos pais, é o exem p lo típico da situação de ruptura que
A lb e rto pode estar vivendo. O s livros que, no universo escolar, estão
investidos de um grande valor (e A lb erto não se engana quando esco­
lhe, no decorrer de sua entrevista, antes a leitura d o que a te le v i­
são) permanecem em estado de “ letra m orta" no âmbito do universo
familiar. Os con textos de leitura que se oferecem a ele no interior
de sua fam ília são raros e pouco variados. Se a mãe se espanta sin ­
ceram ente com o fato de que A lb e rto apenas utilizou o dicion ário
uma vez, já que o comprara porque ele tinha pedido, ela não ima­
gina que é a relação entre a criança e o d icion ário que não é susci­
tada (co m o nas fam ílias em que os pais dão o exem p lo natural de
uma utilização cotidiana do d icio n ário) ou organizada pelos adul-

175
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tos. O senhor e a senhora C. com pram -lhe livros “ de tempos em


tem pos", mas dão o ex em p lo de Picsou (revista de história em qua­
drinhos), de Martine (álbu m ) ou de álbuns com figuras para colar
(das tartarugas N in ja ), mas não pequenos romances (e le próprio diz
não pegar livros sem imagens).
A s práticas familiares de escrita deles tam bém não são m uito fre­
quentes. C o m o sempre acontece nos meios populares, é a senhora
C . quem se encarrega de escrever as cartas administrativas, de preen­
ch er o form ulário de impostos ou cheques da fam ília, de escrever os
bilhetes para a escola ou de assinar os papéis da escola. E ela ainda
que, às vezes, deixa bilhetinhos para o marido ( “ A s vezes, sim, d eixo
um bilhete. Por exem plo, quando preciso que com pre alguma coisa,
porque vou chegar mais tarde: 'Será que vo cê pode fazer isso pra
mim ?' ” ), que anota coisas num calendário ou que, às vezes, faz as ano­
tações prévias para um telefonem a quando há várias coisas a pedir.
Seu marido se encarrega apenas das cartas em português, quando pre­
cisa escrever para uma pessoa de sua fam ília em Portugal (a senho­
ra C . não sabe escrever em português).
Mas não fazem exatam ente suas contas (a senhora C . conh ece
um colega de trabalho que as tem num cadern o), não redigem lis­
tas de coisas a serem feitas, a serem levadas numa viagem ( “ A m edi­
da que a gente arruma a mala, pega as coisas, põe den tro” ) ou listas
de compras ( “ N ã o , não. Sei mais ou menos, abro o anuário, o lh o e
sei mais ou menos o que está faltando. É raro quando faço uma lista,
ora.” ). C o m seu m odo de responder, o senhor e a senhora C . nunca
ousam, entretanto, dizer coisas que poderíam questionar a legitim i­
dade das perguntas: as práticas, mesmo as mais distanciadas do uni­
verso cultural deles, nunca são rejeitadas com o inúteis ou incom ­
preensíveis. A s respostas sempre revelam a mesma hum ildade, que
consiste em dizer que "talvez é útil", mas que nunca “pensaram” e
que mostram que eles não se sentem, diante de nós, em posição de
julgar sobre a utilidade de tais práticas. Da mesma forma, se não fazem
palavras cruzadas diretas, e não jogam scrabble, é porque acham isso
m uito d ifícil para eles ( “Ten tei uma vez, não consegui, larguei” , diz
a senhora C .). Parecem, assim, diante de nós, experim entar com o
que um sentim ento de inferioridade cultural que transparece ao

176
PERFIS OE CONFIGURAÇÕES

longo da entrevista, numa espécie de hum ildade e de grande tim i­


dez. O discurso do pai, fora da entrevista, sobre os “ pobres” que têm
de “ se calar” e os “ ricos” que decidem por eles realm ente indica a
maneira com o ele se percebe.
O s pais de A lb e r to viven cia m , além disso, uma série de defasa-
gens em relação à escola que indicam a que pon to estão excluídos
do universo escolar, apesar da von tade de ajudar o tilh o da m elhor
maneira possível. E ainda a senhora C . que mais responde às per­
guntas referentes à sua escolaridade. C o m efeito, n o âm bito de uma
divisão sexual, bastante clássica, dos papéis familiares, é ela quem
cuida da sua educação. É ela quem vai às reuniões (e le não c o n h e ­
ce o professor) e diz que A lb e rto tem muita dificuldade em o rto ­
grafia, m atem ática e leitura, mas julga que “está indo m elh or" na
escola desde que está indo à fonoterapia ( “ N o final das contas, é
graças a ela que ele aprendeu a 1er, porque não sabia absolutam en­
te 1er. Ele ainda precisa progredir m uito, mas se sai razoavelm en­
te "), enquanto os resultados e os julgam entos escolares perm ane­
cem constantem ente negativos ( “ É um desastre” , diz o professor).
O s pais foram con vocados uma vez p elo professor, e a mãe im edia­
tam ente acreditou que ele tinha fe ito uma “ bobagem " ( “ M in h a
reação fo i: ‘Q u e bobagem vo cê andou fazendo, que besteira vo cê
aprontou?' E ele m e disse: ‘N ada, não fiz nada’ . E eu lhe disse: ‘Mas
se o professor me con vocou , é porque v o c ê fez alguma coisa. V o cê
d eve saber’ . Ele disse: ‘N ã o , não, não fiz n ad a'” ), quando se trata­
va dos resultados escolares de A lb erto .
É ela quem “ co n trola ” , todas as noites, sua m och ila para saber
se ele tem tarefas, quem o manda fazê-las se ele ainda não as fez antes
de ela ter ido buscá-lo, à tarde, na casa de sua própria mãe, e é en fim
ela quem verifica suas notas. Ela o manda refazer as tarefas ( “ Se não
está bem feito, co m o aconteceu com igo várias vezes, risco e depois
m ando ele refazer” ), se o que fez estiver errado, e, às vezes, lhe faz
ditados. A maneira c om o a senhora C . julga a ortografia correta das
palavras mostra, nesse aspecto, também uma defasagem em relação
às exigências escolares: “ Eu falo pra ele: ‘ Bem, v o c ê pega um cader­
n o que, depois, vou te fazer um ditado, pra v er o que v o c ê sabe’ . Ele
esquece uma letra e muitas vezes põe uma a mais. Mas ele sabe. N ã o

177
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

sei co m o ele faz, mesmo das vezes que ele não aprende, ele sabe".
A senhora C . julga correram ente ortografada uma palavra mesmo
que esteja com “aproxim adam ente uma letra" errada, ao passo que
a escola considerará que um erro por palavra é sinal de um péssimo
d om ín io da ortografia.
Os pais tam bém n ão com preendem as novas regras pedagógicas
que abalam um pouco certezas e transtornam as poucas referências,
ligadas à sua própria experiência escolar, qrie tinham em relação ao
sistema escolar. C riticam a escola por n ão dar muita tarefa, com o
na época deles ( “ A gente acha em relação à nossa época — é, a gente
com para — , a gen te acha que... eles não têm muita tarefa c o m o a
gente, antes"), e acham que há pouca severidade (m esm o que p en ­
sem que, em sua época, fosse muita ("E a gente, na nossa época, o
que a g e n te levou um chute. E isso não é m étodo", diz o senhor C .)
e pouca aprendizagem “de cor” . C ritic a m tam bém o m étodo de
aprendizagem da leitura mais global (eles não em pregam essa pala­
vra ), que não lhes parece bom, e ao qual parecem atribuira respon­
sabilidade da dificuldade de leitura do filh o. O senhor C . diz: “ Eu
não aprendi assim. A p rcn d i com eçando a aproxim ar as letras. O
senhor vê, ele não. Ele, é tudo de cor, ora. N ã o gosto disso. Eu c om e­
cei aprendendo palavrinhas, mas letra por letra, e depois a gente
aprendia bem e depressa, enquanto agora... N ã o aprendem mais
nada"; e a senhora C.: “ E eles não aprendem o alfabeto com o a gente
na nossa época. E a gente pensa que se ele tivesse aprendido o alfa­
beto co m o a gente, teriam o m étodo que a gente tinha antes, penso
que ele teria conseguido 1er. N ã o precisaria da fo n o a u d iólo ga ” .
Dem onstram, assim, uma form a de desespero diante das mudanças
pedagógicas que não dominam.
Mas as regras de vida ou as exigências escolares impostas a A lb e r ­
to são também m uito raramente aplicadas de form a m uito rigorosa.
A análise das palavras dos pais faz surgir elem entos que entram em
contradição com a vonrade real declarada por outro lado. Por exem ­
plo, A lb e rto não fica n o horário de estudo livre, mas vai à casa de
sua " v o v ó ” . Sua mãe diz que ele “ rem” de fazer suas tarefas até ela ir
buscá-lo depois que sai do trabalho (por volta das 18h), mas, frequen­
tem ente, quando ela chega, encontra-o brincando. Assim que chega

178
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

t in casa, a senhora C . é obrigada a repetir-lhe várias vezes, até


erguendo a voz, para que ele com ece a estudar ( “ Ele é teim oso, sim.
E preciso pelo menos que eu lhe diga três vezes: ‘A lberto, faz as tarefas’.
E logo depois, bem, assim que ergo um pouco a voz, que com ece a
ficar aborrecida, então, ele com eça logo em seguida"). A a vó m ater­
na, que cuida dele desde seu nascimento, durante os períodos de férias
e todas as quartas-feiras (ela o leva à fonoterapia e ao catecism o, a
cada quinze dias), é analfabeta em francês, só fala com A lb e rto em
português e não pode, pois, ajudá-lo a fazer as tarefas. Ela também
não parece querer obrigar o n eto a fazê-las. Da mesma form a, nas
férias, os pais de A lb e rto com pram -lhe um caderno de tarefas, “ mas,
se eu não obrigo ele a fazer, ele não faz” , diz a senhora C . Ele quer
brincar, e diz à mãe que as férias n ão são feitas para estudar: “ Ele só
quer brincar. Ele diz: ‘ É as férias, não é pra estudar’ ” .
Q u ando traz más notas da escola, seus pais “ ficam bravos” com
ele, mas sem serem “ maus” . Eles lh e pedem que m elhore, mas
nunca o punem: “ A gen te não diz: ‘ Bem, vais ficar de castigo, sem
televisão, vam os te deixar de castigo por isso” ’. Da mesma form a,
A lb e rto vê m uito televisão ( A senhora C .: “ Assim que chega a casa,
se aboleta em seguida. A n tes de co loca r a mala (riso), liga a te le ­
v is ã o ") e pode deitar quase que a hora que quiser. O pai diz que
seu filh o “ nunca tem pressa” de ir deitar-se, e frequ en tem en te
acon tece de ficar co m eles até as 22h. A s palavras um tanto quan­
to vagas sobre as horas de deitar-sc parecem indicar que elas d ep en ­
dem da atitude mais ou m enos co erc itiv a dos pais co n form e as n o i­
tes: “ A c o n te c e dele se deitar tarde. Prin cip alm en te se a gente não
diz nada” . O próprio A lb e r to diz, ainda a respeito da televisão, c o i­
sas aparentem ente contraditórias que podem ser aproximadas do
“ falso rigor" dos pais em relação à hora de dormir. C o m efeito , às
vezes diz que não “ pode ver televisão à n o ite ” , e “ quando quero,
v e jo ". Isso só se mostra con trad itório se não fizerm os a distinção
entre "te r o d ireito fo rm al” e "saber que se pode ficar se se quiser” ,
isto é, entre o discurso em pregado pelos pais e as práticas efetivas.
D e m odo geral, os pais, portanto, não reprim em A lb e r to rígida e
sistem aticam ente, e, quando a senhora C . lembra a conversa que
teve com a professora sobre o caráter “ fech a d o ” de A lb e rto , des­

179
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

venda, em grande parte, » que transparece por trás de um co n ju n ­


to de respostas: “ Ela queria saber por que ele se tinh a fechado e se
havia alguma coisa que in com od ava ele na escola, seus colegas, ou
em casa. Eu disse a ela: ‘N ã o , em casa, de fato, a gente deixa ele fazer
o que cjuer. Então, não sei por que ele era assim, fechado". A s regras
de vida existem , mas A lb e r to tem o h ábito de transgredi-las bas­
tante frequentem ente, na medida em que nenhum a punição repro­
vará essas transgressões.
Em uma tal configuração, sem exem plos de contextos de apropria­
ção da escrita nem sistema muito rígido de coações, na interação sócia-
Lizadora com uma avó analfabeta que se dirige a ele em português e
com pais de passado escolar curto e infeliz e que também falam com
ele, em geral, em português, A lb e rto não pode criar outra vida senão
essa que seu lugar nas relações de interdependência familiares lhe esbo­
ça. R epetindo, sem dúvida, as angústias familiares diante da escola
(sua mãe conta que tinha “ dificuldades em matemática, na escola",
e a professora de A lb e rto n ota que ele tem “ um sério problema com
núm eros") e das práticas de escrita, A lb e rto é descrito pela professo­
ra com o uma criança “ ansiosa” , “com pletam ente bloqueada", “sem­
pre na defensiva”, “ muito inquieto” . U m elem ento suplementar pode
contribuir para justificar essa inquietação e tiques nervosos de A lb e r­
to, ou seja, a m orte de sua irmã, no in ício do ano letivo. Mas tal tipo
de acontecim ento, que pode perm itir m elhor esboçar o perfil de um
“fracasso" e que, freqüentemente, é citado nos discursos dos pedago­
gos, nada diz em si mesmo e por si mesmo. Nossas análises provam
que nenhum elem en to pode ganhar o status de causa, e que cada e le ­
m ento só tem sentido e efeito em configurações familiares singulares.
T a n to para a mãe c o m o para o pai, a escola, n o en tan to, é uma
çoisa im portante. Esperam que A lb e r to possa ir mais lon ge do que
eles, e estão conscienres da necessidade d o d ip lo m a na situação
do mercado de trabalho. Visam ao “ diplom a de 2B grau" para o filho,
mas tim idam ente, tam bém sem m u ito acreditar nisso. Em um
d iá lo g o que co n c lu i a en trevista, en con tram os, de m aneira c o n ­
densada, a mistura de realism o e de esperança, de resignação e
de vo n ta d e, que caracteriza o discurso d o sen h or e da senhora C.
Se esse trecho nos parece p articu larm en te pu n gen te, é porque os

180
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

pais term inam tran sferindo suas esperanças para a “ v o n ta d e ” de


A lb e r to e para a sua capacidade pessoal de “ mudar", en qu an to
este, preso a uma in terd ep en d ên cia fam iliar, n ão pode, sem d ú v i­
da, mudar sem que mude a constelação de pessoas que constitu em
seu universo:

Sra. G : O que a gente quer para ele é que aprenda. Que aprenda bem
e que vá mais longe do que... do que a gente foi. A gente quer que vá
mais longe, se não é... se for possível. Mas isso depende dele, se tiver
vontade, que ele tenha diploma, que vá mais longe, ora. Porque agora,
agora, não é, se a gente não tem diploma, não tem nada, não é...
E: E o que é que vocês chamam “será que há um mínimo” , vocês
querem dizer: “ É preciso que ele atinja um mínimo, para...” ?
Sra. C.: Bem, a gente gostaria muito que ele terminasse o 3S cole­
gial, mas não dá pra pedir muito, não é...
E: E, pelo jeito de vocês, parece que não têm muita certeza...
Sr. C.: E que ele já tá pensando em trabalhar comigo.
E: Já?
Sr, C., rindo: Sim, mas... ele tava me falando disso... Me fala disso
sempre.
Sra. C.: Ah, é.
Sr. C., dirigindo-se ao filho: “E então, você que ir com o pai? Veja
bem, heia, lá não é... não é a escola” .
Sra. C.: E mais Juro que a escola.
E: Vocês acham que seria bom que ele terminasse o 2a grau, mas,
no momento, vocês não acreditam muito nisso, se é que estou
entendendo bem?
Sra. G : Sim, não, mas não acredito muito. Principalmente com,
bem..., como ele tá se comportando na escola e com as notas que tem.
Sr. G : Ele vai mudar. Não é, Alberto?
Sra. G : A gente espera, pra ele, que ele mude.

♦ Perfil 12: Uma reencarnação social.


Robert F., nascido em Lyon, um ano de atraso (repetência tia pré-escola) ,
obteve 4 na avaliação nacional.

N o m om ento da m arcação do en con tro por telefon e, o pai de


R o b ert nos pergunta se estamos ven den do algo. Q uando lhe e x p li­

1 81
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

camos que se trata de seu filh o, de sua vida na escola e na fam ília,
nos diz então: "S e é p elo meu filh o, me interessa” .
N o dia do en co n tro , estam os um p ou co adiantados, e c o m e ­
çamos a en trevista em torno da mesa da sala de jantar, com a mãe,
que fala m u ito h aixo e parece estar intim idada. Ela chama R obert,
que escá em seu quarto. Ele chega, nos dá hom -dia, perm anece
um instante atrás da mãe e, depois, senta-se à mesa, e não se m exe­
rá mais até o fin a l de nossa conversa. In tervirá em alguns m o m en ­
tos, p rin cip alm en te sobre as questões de escolaridade e de a t iv i­
dades extracurriculares, porque seu pai dem onstra d ificu ld ad e
para falar destas de m aneira detalhada. Q u a n d o o pai chega, des­
culpa-se por estar atrasado (apenas dez m in u tos). C o m eça m o s a
en trevista com a mãe, contin u am os co m os dois pais e, depois,
apenas com o pai (a mãe tem uma hora marcada n o fisio tera p eu ­
ta ), e en fim a term inarem os co m o casal. N o decorrer da e n tre ­
vista, o pai nos o ferecerá algo para heber. Ele e a m u lher nos agra­
d ecerã o por nossa visita ao sairmos.
O pai de Robert, de 46 anos, nasceu na Itália, e conserva um forte
sotaque italiano, assim c o m o os estigmas de uma apropriação tardia
do francês (por exem plo, enuncia “ pourquoi” para dizer “ parce que” ,
“ il” para “ e lle "...)*. N a Itália, fo i à escola, mas não tirou nenhum
diplom a. M u ito jo vem , foi colocad o para trabalhar co m o pintor de
paredes. Q uando ve io para a França, com 17 anos, trabalhou com o
operário montador, e em seguida, depois d o serviço militar, com o ire-
sador em uma empresa de fabricação de tubos de aço para cadeiras.
Desde os 22 anos está na mesma empresa, onde galgou todas as esca­
las e, atualm ente, é OP2"'!. Seu pai era sapateiro na Itália, sabia 1er
e escrever, e tinha até uma “ bela caligrafia” . Sua mãe transportava
água de uma aldeia para outra e lavava roupas para algumas pessoas.
A mãe de R obert, de 42 anos, abandonou a escola com 12, “ por
causa da guerra da A rg é lia ” . Ela, na verdade, é francesa da A rgélia .
Entre os 10 e 13 anos, tom ou conta de crianças, depois o b teve um
C ertifica d o de A prendizagem Profissional de C o rte e Costura. Em

* Pourquoi, em francês, c empregado para uma pergunra (por que), c parce que, pura uma
resposta (porque). I l e elle são, respectivamente, e le e cia. (N .T .)

182
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

seguida, trabalhou co m costura até a idade de 20 anos, casou-se e


nunca mais vo ltou a trabalhar (à exceção de alguns trabalhos com o
empregada dom éstica), até hoje. N o m om en to da entrevista, acaba
de retom ar um trabalho de babá e de faxineira que a ocupa da
manhã até as 16h. Diz que na escola era “ zero” , “ nula", principal-
m ente em cálculo: “ Em cálculo, tinha zeros de enfiada". O pai da
senhora F m orreu quase n o nascim ento dela. Era pin tor numa
empresa e sabia 1er e escrever. Sua mãe era em pregada doméstica,
e foi à escola até a idade de 12 anos: “ Eles a puseram pra trabalhar
m uito n ova ” . R obert a encontra regularmente.
R o b ert é o caçula de uma fam ília de três filhos. T em duas irmãs
mais velhas. A mais velh a , com 21 anos, que repetiu a pré-esco-
la e saiu da escola n o “ 1s c o le g ia l” , va i se casar, e está preparan­
do sua licen ça de m on itora de auto-escola. A segunda, de 19 anos,
repetiu a 3a série, está co m o aluna in tern a num c o lé g io a g ríc o ­
la, o n d e estuda para o b ter um d ip lo m a de técn ica agrícola. Teria
ido à escola até a 8a série, mas a m ãe se con fu n de um pou co nos
anos: não sabe mais realm en te se ela fo i até o fim da 8a série ou se
está no 3S ano do Curso T é c n ic o A g ríco la : “ Espere, 6a, 7a (silêncio
de 3 segundos; respira). N ã o sei dizer exatam ente” . A n tes de Robert,
a senhora F. esclarece que te v e outra filh a, mas que a perdeu m u i­
to n ova.
A análise do caso de R obert é interessante pelos efeitos escola­
res das relações socioafetivas pais/filhos que deixa transparecer.
Rohert v ive num meio que realmente podemos qualificar de “ modes­
to ” , em todos os sentidos do termo. Seus pais dão provas, pelas pala­
vras co m o tam bém pela voz e n o m odo de comportar-se, de hum il­
dade, de modéstia e de uma espécie de retraim ento. O senhor F. não
faz uma aposta em corridas de cavalos, faz uma “ apostazinha” . A
senhora F. não tirou um C ertifica d o de A prendizagem Profissional,
ela conseguiu um “ diplom in h a de corte e costura” . Tem uma atitu­
de m uito hum ilde que até a faz entender, às vezes, nossas pergun­
tas em outro sentido. Assim , quando lhe dizemos que a interrup­
ção de sua escolaridade não foi “ porque ela quis", ela responde:
“ N ã o , não foi por m inha culpa, não". Sente-se, na maneira co m o
nos respondem, que tem em dizer coisas que não estejam corretas.

181
SUCESSO ESCOiAR NOS MEIOS POPULARES

A mãe, principalm ente, nos (ilha ao responder, esperando co m o que


um sinal de confirm ação de que o que está dizen do é legítim o.
A titu d e modesta, mas também práticas modestas de leitura. O
senhor e a senhora F., ambos, lêem jornal (L e Progrès), duas vezes
por semana (aos sábados e dom ingos). Ela lê a rubrica N e cro lo g ia
(“ Porque digo pra mim que pode ter pessoas que conh eço") e um pouco
das ocorrências policiais, mas não sobre política: “ A h , não, num quero
saber. E tudo blá-blá-blá, então. E ainda é desmoralizante". Ele olha,
em prim eiro lugar, o resultado das corridas de cavalos, porque tenta
regularmente a sorte, um pouquinho de política, embora esteja “ can­
sado" desde a subida de M itteran d ao poder ( “ Mas enfim , tou com e­
çando a me cansar. Por causa que são tudo igual, mas se quero vê
um h om em p o lítico, escuta seu discurso até o fim, não. Dois ou três
minuto, e... chega. Eles tão sempre certo. Q uando tem os debate dos
h om e político, bem, os dois qué tê razão” ), e o horóscopo, sem acre­
ditar muito, de fato. Quase nunca lêem revistas. Em matéria de livros,
enquanto o senhor F. não lê nenhum ( “ N ã o , não sô apaixonado” ),
a senhora F. “ gosta m uito em relação a documentação, a história” ,
e lê também um pouco a Bíblia, mas nunca romances. Ela esclare­
ce, aliás, que com eça os livros, mas nunca os term ina: “ E, eu com e­
ço, mas não acabo. N u n ca acabei um livro, nunca” . Durante 2 ou 3
anos, a senhora E foi associada ao France Loisirs, mas desligou-se há
um ano por razões financeiras. T ê m um dicionário, mas respondem
“ Sim, o dicion ário Le Robert, temos um ” , indicando com isso que,
para eles, a utilização não é m uito frequente (o senhor F. não o uti­
liza nunca, e sua mulher o olha, às vezes, para conh ecer a definição
de palavras “ esquisitas” que o u v e). Espontaneamente, no m om ento
de falar dos livros, os pais de R obert evocam o irmão da senhora E,
que trabalha com o telefonista numa empresa, leitor voraz que lê quase
um livro por dia e que os oferece a Rohert. R obert gosta principal-
m ente dc histórias em quadrinhos, pois a imagem, diz ele, “ me dá
uma idéia do que vai acontecer depois” . Mas compara-se, bem expli-
citam ente, com sua mãe quando lembra os livros de escola (livros
de história e de c iên cia ) de que gosta ( “com o eu ").
O senhor e a senhora F. conservam ainda as marcas de percursos
escolares relativam ente curtos e, sobretudo, infelizes. A senhora E,

184
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

u n particular, apresenta uma série de dificuldades em relação à lei-


tura, à escrita e a todas as situações oficiais um tanto quanto formais
nas quais parece perder suas capacidades. Tem grandes problemas de
cálculo, mesmo simples (de onde advém a divisão do trabalho de preen­
ch im en to do form ulário de impostos segundo a qual ele se encarre­
ga dos “ números” e ela das "letras” , insistindo n o in côm odo diário do
qual se ressente) ( “ A liás, ainda tenho alguns problemas em calcular.
O cálculo, aliás, me dava medo, e ainda m e dá sempre m edo”'’1); tem
grandes dificuldades para lembrar-se de coisas que aconteceram no
próprio dia, sai dos órgãos administrativos sem ter com preendido ou
retido as explicações que lhe são fornecidas ( “ Por exem plo, minha
mulher, se tem de ir a algum lugar com , por exem plo, cortaram a luz,
ou pior ainda, se enganaram, bem, m inha mulher, ela é incapaz de ir
lã e explicar por que tem... Então, eu é que preciso ir. Por causa que
ela me diz: ‘Se vou eu, entro e, quando saio, não sei nada’. E isso que
ela me diz. Ela manda sempre eu por causa que não sabe explica” ),
tem dificuldades para com preender as cartas administrativas e deixa
que o marido cuide delas ( “ Eu pego a carta, dou uma olhada, enquan­
to ele pega a carta e fica em cima dela uma h ora").
A m bos têm problemas de compreensão de certas cartas adminis­
trativas, e apelam para o irmão da senhora E quando as coisas estão
fora do alcance deles. Em relação às cartas aos órgãos administrativos,
é antes ele que diz o que tem de ser colocado, e ela é que redige, pois
ele escreve muito pouco em francês: “ É minha mulher, por causa que
ela escreve, portanto sabe escrever. Eu não sei bem. A gente faz ela os
dois. Quando a gente consegue se virá, a gente faz. Eu dito e ela escre­
ve". Se, de fato, eles não conseguem, recorrem ao irmão da senhora F.
N ã o têm um caderno de contas, mas a senhora F, que se encarrega de
fazer as contas de tempos em tempos, diz que seria melhor fazê-lo, “ assim,
a gente sabia pra onde vai o dinheiro". N ã o têm agenda, praticamen­
te nunca escrevem cartas à fam ília ou a amigos, mas telefonam, e não
fazem listas das coisas a serem feitas ou listas das coisas a serem leva­
das em viagem: “ Bem, se a gente se põe a fazê tudo isso! (riso)".
E ela, enfim , quem, no âm bito de uma divisão sexual clássica do
trabalho de escrita doméstica, mantém atualizada a caderneta de ende­
reços e de números de telefones, escreve lembretes, deixa bilhetes

185
SUCESSO ESCOLAS NOS MEIOS POPULARES

ao marido ou aos filhos ( “ Q uando ela não tá quando v o lto pra casa,
pior, quando tenho que fazê alguma coisa, então ele me escreve. A t é
pro R obert.” ), redige listas de compras, anota algumas coisas n o ca­
lendário da fam ília, guarda fichas de receitas e as classifica, cuida dos
álbuns de fotos e anota coisas atrás das fotos (R o b ert diz que “ atrás
das fotos, ela escreve coisas, os nom es da pessoa que está na fo to ” ).
O senhor E, por sua vez, se mostra saudoso de uma Itália rural menos
burocratizada do que a França urbana contem porânea, e onde havia
menos papéis e incôm odos administrativos: “ A Itália não tem pape­
lada. Enfim, acho qLie antes era melhor. A gente esquenta m uito a
cabeça, de verdade, hein. A vida que a gente tá levando h oje não
dá pra acreditá".
A lé m disso, o senhor e a senhora E demonstram mal-estar em
relação à escola primária, que não se assemelha mais à que co n h e­
ceram. O pai, por exemplo, parece perdido e quase escandalizado dian­
te da tabuada que pediu para o filh o ir buscar e que nos mostra. São
as linhas de “ 0 " que lhe parecem aberrantes, inúteis. D e qualquer
forma, não fo i assim que ele aprendeu, e parece um pouco espanta­
do com as “ mudanças pedagógicas” : “ Zero, zero, zero, zero. O que é
esses zero? Então por que põem os zero aí? Pra mim, a escola quan­
d o eu, partia de 1 igual a 1. Sim, mas se a gente tira tudo isso, não
é m elhor pro m en in o pra decora? Então, ele precisa decorá o zero
na cabeça. Ele com eça de zero. N ã o é m elhor tirar isso? Bem, eu não
sei, mas é bobo isso. Podiam tírá os zero, é mais simples. Q uanto mais
simples, o m enin o decora, é isso. Bem, num sei não". A lé m disso, a
escola tem co m o missão, do ponto de vista deles, instruir, transmi­
tir conhecim entos necessários para sair-se bem na vida. Para eles,
fica claro que é a alfabetização que tem a primazia, e que todas as
novas atividades escolares (esportivas, culturais) lhes parecem supér­
fluas. Por exem plo, a senhora F. pode com preender por que Robert
está aprendendo a nadar, pois é “ útil” , mas não para que lhe fazem
praticar a luta. Q u anto ao pai, ele acha útil saber que tal país fica ao
norte de outro ( “ C on cord o, isso serve” ), mas inútil estudar história.
A o m esm o tem po, o senhor e a senhora F. não estão privados
objetivam en te de investim entos culturais. Ela tem um C ertifica d o
de A prendizagem Profissional, e ele pouco a pouco se tornou ope-

186
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

i ;írio qualificado. A escola é im portante para eles, pois “ é realm en-


<(.• preciso tom ar o cam inho certo ” para “ conseguir um em prego
depois” , mesmo que o discurso deles esteja m atizado de uma forma
de realismo fatalista que mostra que, de certa forma, não acreditam
m uito nisso: “ Por que não?, mas... Se isso m elhora, por que não? Eu
não sou contra. P elo contrário, se ele pode escolher um belo em pre­
go e pode ganhar seu pão sem ter que se esforçar muito, por que não?” .
A preocupação deles em relação à escolaridade de R obert é tam­
bém in egável (n o final da entrevista, o pai procura saber o que há
“ de bom para a escola" no que nos disse). A análise dessa c o n figu ­
ração familiar, mais uma vez, questiona a idéia de uma omissão paren­
tal e do desinteresse dos pais para com as coisas escolares. Eles
con h ecem as dificuldades do filh o ( “ N ã o é forte, h ein ?") e o estão
levan do à fonoau dióloga há um mês ( “ E depois, ele está se aplican­
do. A gen te v ê isso” ). Sua mãe n ota que, co m o ela, ele está tendo
dificuldades para lembrar-se das lições. É ela quem tom a conta de
sua escolaridade, controla suas tarefas, explica, quando pode, ao filho
(o pai também , mas unicam ente quando se trata de cálculo, assim
com o sua irmã, quando vem no fim de sem ana) e o faz repetir em
voz alta as lições ( “ Bem, eu falo ela muitas vezes. E depois, eu fech o
o caderno, dou à mamãe e depois eu fa lo ela prá m inha mãe. E ela
me diz se tá bom ou não tá b o m "). Durante as férias escolares de
verão, os pais com pram tam bém um caderno de exercícios para
Robert, para que ele continue fazendo um pouco de exercícios,
mesmo que seu pai diga que “ é preciso correr atrás dele para m an­
dar ele fazer” , pois, se não, ele só brincaria ( “ Ele não pegava nele
nunca, só pensava em brincá” ). O pai até que se diverte, às vezes,
em dar-lhe m u ltiplicações para fazer: “ E das vez, a gente se d ive r­
te: ‘ Papai, me dá conta de m u ltiplicá', por exem plo. Então, eu dô
pra ele alguns núm ero, e não é que ele fais?” .
Q u ando ele vem para casa co m notas ruins, o pai diz que eles
não “ ralham com e le ” . O senhor F. ex p lica a razão pela qual nada
diz a Robert: “ Eu não falo nada pra ele, o senhor sabe por quê? Porque
meus pai nunca me dissero nada, en tão eu num quero ralhá com
ele. Então, eu digo: ‘R obert, cê tem que fazê tuas tarefa, hein?’ . A
gente n ão se cansa de talá pra e le ” . O pai nota que Robert, às vezes,

187
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

não quer fazê-las, e quando não consegue, fica nervoso: “ Q u ando


a mãe dele diz: ‘N ã o , não é assim!’, e pronto, ele fica n ervoso” .
Os pais cuidam de que R obert se d eite cedo (2 0 h 3 0 ) toda n oite
anterior aos dias de aula. Tam bém são m uito prudentes quanto às
saídas de Robert (quase inexistentes) n o âm bito de um n o v o c o n ­
texto (até as últimas férias de verão, a fam ília F. m orava na Isère,
onde tinham uma casa), mais urbano, que lhes causa m edo (m ed o
das arruaças, da ausência de con h ecim en to das crianças que brin­
cam na rua, dos “ palavrões” ). R obert parece ter interiorizado as vo n ­
tades dos pais, pois ele próprio não tem vontade: “ N ã o é porque a
gente proíbe ele, hein?, é ele mesmo, ele também. A gente num gosta,
e ele também num gosta” ; “ N u m gosto de sair por causa que tem
muito palavrão que se ouve. E eu num gosto de ouvi palavrão".
O que se entende, em realidade, nessa configuração, é que, de certa
maneira, Robert repete as dificuldades de sua mãe, de quem, particu-
larmente, parece sentir-se próximo. A mãe, que toma conta de sua esco­
laridade, que lhe contava histórias quando era pequeno e que escuta
suas histórias, parece lhe ter transmitido seus complexos, suas angús­
tias, suas próprias d ificuldades escolares, ao mesmo tempo que suas pre­
ferências. Por exemplo, Robert diz que o que ele prefere na escola é
história, geografia e ciências, que são os assuntos de que a senhora E
nos diz gostar. Robert até precisa que é sua mãe quem o ajuda nesses
três aspectos, e que ela gosta de 1er livros de história e de ciências “com o”
ele. Robert também participa muito dos trabalhos de casa, ajudando
a mãe, e diz, com o ela, que gosta de cozinhar. A própria senhora F. diz
que, quando era mais jovem, era “ muito tímida, com o Robert” .
A comparação está presente ao lo n go da entrevista. O pai até
lembra as dificuldades mnemônicas de Robert, próximas às de sua
mãe. Mas tudo se esclarece mais ainda quando se escuta os profes­
sores falarem de R obert e de suas dificuldades escolares: “ Ele tem
muita dificuldade em matemática e, para mim, é um tanto in com ­
preensível, pois é um menino m uito aberto, que conhece muitas co i­
sas de ciências, de geografia. Ele sabe muitas coisas, mas tem um blo­
queio em relação a matemática. Ele diz: ‘Eu vou errar, não vou saber
j a z e “ Ele é m uito tímido, m uito apagado em classe” ; "E le tem
um problema de m em ória". A s analogias entre a mãe e o filh o são

188
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

extrem am ente recorrentes para que se possa crer n o acaso: tím ido,
apagado, bloqueando-se em m atem ática, em bora conh eça muitas
coisas de ciências e geografia, construindo um co m p le x o de in fe­
rioridade ao pensar que vai se enganar, e que não vai saber fazer,
rendo problemas de m emória, tantas características que também ser­
viríam m uito bem para descrever sua mãe. Assistim os, pois, a uma
verdadeira reencarnação social dos problemas (e também das pre­
ferências) da mãe na pessoa do filh o 61.
E com o se, por amor à mãe, ou em virtude da relação socioafeti-
va que o une a ela, R obert não pudesse permitir-se passar (ou pen­
sar) por cima dela. Da mesma forma que ela lhe transmite suas pre­
ferências, transmite-lhe suas dúvidas, sua total falta de segurança, seus
problemas de memória, seu bloqueio em cálculo... U m pouco com o
no caso da senhora O . (P erfil 8 ), assistimos a uma troca entre duas
experiências: a do filh o e a da mãe. A liás, os professores apontam um
ligeiro progresso no decorrer d o ano d evido a diversas intervenções
que, sem dúvida, contribuíram para dar a R obert confiança em si. Ele
está indo à fonoterapia, é acom panhado em horário de estudo livre
durante três m eios-períodos por semana, e seus professores notam
mudanças positivas: “ Ele progrediu” ; a classe de recuperação “ lhe fez
um bem enorm e” ; “ Ele não mais escreve qualquer coisa” em m ate­
mática; "A go ra , ele até utiliza um procedim ento de reflexão” ; "E
muito mais legível". E o termo “ bloqueio", utilizado por um profes­
sor para evocar as dificuldades em matemática, nos parece particu­
larmente adequado, na medida em que R obert interiorizou, no decor­
rer das relações intrafamiliares, uma série de complexos.
O que se mostra, por conseguinte, aos professores, com o um pro­
blem a “ m édico" num dado m om ento, isto é, com o um caso que não
dizia respeito apenas à competência pedagógica deles ( “N ós não somos
médicos, não tem os muita coisa a fazer” ) é apenas um caso cultu­
ral de interiorização particularmente forte de relações familiares com
a escola so ciologica m en te co m preen sível; uma tal situação não
pode, sem dúvida, encontrar m elh or solução escolar que não seja
pela construção de outras relações sociais que possibilitem a Robert
encontrar outros pontos de apoio (extrafam íliares) para ven cer seus
com plexos e seus “ bloqueios” .

189
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

♦ Perfil 13: Vigilância moral e auxílio mútuo familiar.


Souyla B., nascida cm Saint-Priest, sem nenhuma repetência escolar, obte­
ve 6,6 na avaliação nacional.

O pai aceitou “ marcar um en c o n tro ", dizendo: “ Estou aqui o


dia inteiro, se v o c ê marcar uma hora, talvez estou aqui, talvez não.
Passa à tarde". N o dia marcado, chegam os diante de uma casa, cons­
truída p elo senhor B., que, extern a m en te, não está rebocada. E
sua filh a de 17 anos quem nos recebe. N ã o está a par, co m o tam ­
bém não estão suas duas irmãs, de nossa visita. Q u an do cham a o
pai, ele chega visiv elm en te espantado. Estava vestin d o sua roupa
de serviço e, sem dúvida, iria sair para trabalhar em torno da casa
(o que fará quando form os em bora). C o n v id a -n o s a sentar á mesa
da cozinh a e a co m eçar a conversa. Enquanto term ina de se pre­
parar, a filh a de 17 anos nos o ferece um café e pergunta, co m ar
preocupado, se há algum problem a c o m S ouyla. N ó s a tranqü ili-
zamos, ex p lica n d o -lh e em duas palavras o porquê de nossa visita.
Durante a en trevista, o senhor B. fala con osco visiv elm en te com
prazer. Suas intervenções verbais são, âs vezes, m uito longas e sem ­
pre m uito im plícitas, com frases nem sem pre m uito corretas gra­
m aticalm ente. A senhora B. vem um instante nos cum prim entar.
Parece falar bem francês, mas, v is iv elm en te, n ão é de sua alçada
responder a nossas perguntas. Q u a n to às irmãs de Souyla, pare­
cem ocupadas em v e r televisão. D epois da entrevista, o pai nos
acom panhará até a grade do jardim e nos falará de seu jardim e
d o cão, que causa estragos na grade...
O senhor B., de 65 anos, é aposentado. V e io para a França em
1946, graças a seu sogro, que era m in eiro perto de Saint-Etienne.
Trabalhou durante ó meses com o m in eiro, depois em obras pú bli­
cas, com o pedreiro: “ Então, um pouco de construção, pá e enxada
sempre. E a gente coloca cercas e tudo, e é uma trabalheira, é pesa­
d o ” . Insiste m uito na dureza de seu trabalho, porque “ antes a gente
fazia tudo na m ão” , e fala dos problemas de saúde que tem desde
então: “ E duro, n o meu trabalho. A go ra , tô com dor nos rim, veja
bem. Desde das 10 hora, v ô tentando se levanta e acabo se leva n ­
tando agora. O senhor tem dor nas costa? — vix e, as costa, os

190
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

braço, a n oite inteira eu não dorm e, fic o esquentado. A h , tô sem­


pre se sentindo mal. Puxa, é fogo. E então, co m o chuvia. A gente
i rabaia sem pará. N ó is faiz 8 hora na merda, o tem po intero. E então,
bem, ainda bem, desde novem bro até agora, num trabaio. T ô apo­
sentado, ora". Fez um estágio de 6 meses em curso de form ação de
adultos, mas aprendeu seu trabalho essencial m ente na prática ( “ Foi
trabaiando” ). Parece co n ten te em poder nos falar de sua ex p eriên ­
cia profissional. Foi à escola na A rg é lia até a idade de 7 anos, e diz
ter aprendido o árabe, mas não sabe 1er e escrever nem em árabe
nem em francês. Esclarece que era preciso ter dinheiro para ir à esco­
la, e que seus pais, ambos analfabetos, não o tinham. Seu pai tra­
balhava para alguns m eeiros com o assalariado agrícola, e a mãe não
trabalhava (eles tinham cin co filh os).
A m ulher d o senhor B. nunca trabalhou, e n ão sabe 1er nem es­
crever. Seu pai, analfabeto, trabalhava co m o m in eiro em Saint-
Etienne, e a mãe, tam bém analfabeta, cuidava do lar. De seu m ari­
do, a senhora B. teve onze filhos. Os dois mais velh os nasceram na
A rg élia ; os outros, na França. A frátria é com posta de n o ve m u lh e­
res e dois hom ens. U m a das filhas é quem avançou mais na esco­
la, até o I e ano da Faculdade de D ireito. O n ív e l escolar mais baixo
é o C e rtific a d o de A pren dizagem Profissional. D ois filh os o b t iv e ­
ram um C e rtifica d o de Curso Profissionalizante de I a grau, e um
tem um D iplom a de C on clu são do 2B grau Profissionalizante. Três
filhas estão no 2a grau, duas na 2~ série de A d m in istra çã o e C o n ­
tabilidade, e uma, na I a.
Souyla faz parte dos alunos em “ ê x ito ” escolar que tiveram irre­
gularidades de desempenho no decorrer da 2a série do 12 grau. Desde
a pré-escola, os professores observam um problema de regularidade
n o trabalho. N a 2a série do I a grau, quando da primeira entrevista
com o professor, este observava que, havia duas ou três semanas, ela
não estava fazendo “ mais nada", esquecia sempre os livros e não man­
dava mais assinarem os cadernos. O s pais tinham sido, então, con ­
vocados. N o final do ano, o professor observa que, depois de ter-se
encontrado com os pais (o pai e também a irm ã), “fu n cion ou ” : “ Fui
eu que con voqu ei, justamente porque ela não mandava mais assi­
nar nada. O s pais n ão estavam mais a par do que estava acontecen ­

191
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

do. Seu pai v e io ter com igo, e depois foi talvez uma irmã mais velh a
que passou um dia, me parece. Portanto, com o era preciso, eu lhes
pedi que prestassem muita atenção para que fosse tudo assinado, e
que olhassem um pouco as tarefas ã noite. Pelo menos o essencial,
digamos. Aparentem ente, isso deve ter sido feiro, uma vez que se recu­
perou e tudo. Penso que não tem grandes problemas". A fam ília, por­
tanto, desem penhou um papel eficaz em relação a SouytaM.
Fora essas irregularidades n o com portam ento, e mais raram en­
te nas notas, Souyla é considerada, desde o maternal, co m o uma
hoa aluna. Destacamos sua capacidade de fazer um trabalho com
aplicação, sua m otivação pela leitura, seu interesse p elo trabalho
feito em classe e sua vivacidade (que, às vezes, pode se tom a r “ c o n ­
versa” ). N a última avaliação d o ano, ficou em terceiro lugar, pro­
vando que seu “ sucesso” perm anece estável.
O caso de Souyla é o exem plo de um “sucesso” escolar numa c o n ­
figuração fam iliar que, em relação aos critérios sociológicos h abi­
tualmente considerados (profissão, n ível de diplom a dos pais, núme­
ro de filh o s ), não parece poder preparar eficazm ente para bons
desempenhos escolares. Pais analfabetos, um pai aposentado, ex-op e­
rário de obras públicas, com um discurso m uito im plícito, dom in an ­
d o fracam ente o francês, n ão con h ecen d o o sistema escolar (suas
exigências, as classes de seus filhos, seus desempenhos), pais que vivem
uma ruptura cultural e, principalm ente, lingüística com os próprios
filhos"', onze filhos... não seria preciso tanto para com preender uma
situação de “fracasso" escolar, principaím ente quando se compara,
segundo os critérios que acabamos de enumerar, essa situação fam i­
liar cm relação a outras configurações fam iliares já analisadas. E, no
entanto, estamos com um caso, realm ente, de "sucesso” .
D e in ício, esse caso prova que o in vestim en to pedagógico não
é a única e exclusiva ch a ve para conseguir que, d o p o n to de vista,
as crianças, em meios populares, tenham "êx ito ". O s pais, neste caso,
exercem uma vigilân cia moral qtie ultrapassa muito o caso da esco­
la. N ã o poden do ajudar os filhos na escola, o im portante para eles
é fom ecer-lhes boas condições de vida, dar-lhes o que precisam, para
que trabalhem o m elhor que possam: “ N ã o fui na escola. O que é
que v ô d izê? T en h o m inha filha, hein, eu num en tendo nada, o que

192
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

c que vou mandá lê? H ein? Se vocês é capaz, vocês tão certo. Mas
ve não, bem, se vocês estuda, é pra vocês, não é pra mim. Bem, vocês
ião ben vvestido, com e bem e tudo, não farta nada pra vocês! Só
tem que estuda. M asse vo cê num consegue, o que é que cê q u é? T á
bem, mas o que é que eu ten ho que fazê? N ã o aprendí lê em fran-
cês e lê e escreve. N u m consigo, e com o é que vô fazê? H ein ?".
Eles interferem, assim, mais na periferia da escola do que na esco-
la. E o pai que leva e vai buscar Souyla na escola (alternando esse
papel com um v izin h o), e conhece as crianças com as quais ela brin-
ca, pois são crianças da vizinhança. Q uando ela tem aula no dia
seguinte, os pais ficam atentos para que Souyla vá se deitar, no mais
tardar, às 21h30. Eles a mimam se ela tem bons resultados e, princi­
palmente, se são respeitados por ela. O senhor B. diz que se ela gosta
de brincar com amiguinhas, ele, entretanto, não tem de que “ repro­
vá-la”, pois ela o "respeita” : “ Dizem, ela é um pouco a queridinha do
papaí, ela, e da mamãe também. Sim, mesmo quando ela discute com i­
go de verdade, me respeita, tá vendo". Os pais "gritam ” ( “G rita um
pouco, assim m esm o” ), “oprim em ", “ privam ” , “ maltratam” , se for
preciso, no m om ento certo ( “ Souyla, n o m om ento, tá indo bem, mas
se com eçar a... precisa oprim i ela um pouquinho, precisa estuda, Ele
me diz pra mim, eu digo pra ela o que precisa (sorrindo) fazê. N u m
posso ficá vigiando ela. Se você marcá quarqué coisa n o caderno, tá
certo” ), tanto quando ela faz bobagens quanto quando ficam saben­
do (raramente em seu caso) que há um problema na escola, mas pare­
cem, por outro lado, estabelecer um contrato de confiança com os
tilhos. Por exem plo, o senhor B. se mostra absolutamente com preen­
sivo em relação às vontades de seus íilhos. N a quarta-feira à tarde,
Souyla queria praticar esporte na escola, e o pai conta que se limitou
a assinar e dar o dinheiro: “ [Souyla] vc o que faiz à tarde, é d iverti­
do, o esporte. E ele diz: 'Papai, eu fiz isso*. N u m posso dizê sim ou não,
então, ele queria o esporte, eu disse sim. N u m v ô dizê não. Eles, eles
faiz o que querem, heim , então eu num posso dizê, é eles que esco­
lhe. Então, ele diz isso e, bem, eu dô o dinhero pra ela. E é só: ‘ Se
você qué o d in h eiro’, com o o esporte, nóis pagô 50 franco, hein?” .
E claro que, em relação à escolaridade de Souyla, são as três
irmãs mais velh as presentes na casa que desem penham um papel

193
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

cen tral. Elas estão n o 2a grau, foram assinantes, há alguns anos,


de Science et V ie , gostam m uito de 1er rom ances e, nesse aspecto,
são aconselhadas pela irmã mais velh a , que fo i à u n iversid ad e66,
ajudam Sou yla e constitu em , com a mais velh a , exem p los co n -
eretos de possíveis escolares para ela. Pod eriam os nos perguntar
{sem ter respostas) com o se engendrou o "sucesso” escolar da irmã
mais velh a , que chegou à universidade. Para as outras, uma das
ch aves da com preen são reside num sistema m u ito eficaz de a u x í­
lio m útuo fam iliar. C o m e fe ito , n o que diz respeito à escola, o
senhor B. se mostra incapaz de dizer as classes nas quais se e n c o n ­
tram seus filh os ( " A h , não sei ao certo, não, nisso, eu disse a v e r ­
d a d e"), ou de em itir um ju lga m en to sobre a escolaridade de Souy-
La: “ Bem, eu, qu an to a isso, eu n ão posso dizer se tá in do hem ou
se num tá in do bem. Então, eu pergunto com o, ele diz: ‘T u d o bem,
papai, tudo b em ’ , e é só” . É, porta n to, uma das irmãs mais velh as
presente no dia da en trevista (17 anos, 2a série d o 2a grau de
A d m in istra çã o e C o n ta b ilid a d e ), a que se en con trou co m a p ro ­
fessora e o diretor, que responderá a nossas perguntas. Ela nos in for­
ma que é S ou yla quem vem m ostrar suas tarefas às três irmãs (n a
2" série e na I a série do 2a grau) para saber se o que ela fez está
certo: “ N ã o , n em precisam os perguntar a ela: ‘ V o cê acabou o tra­
balho?’ ou ‘ V o cê n ão tem tarefas?’ , porque é ela quem chega,
abre o caderno e m e diz: ‘ Ei, dá uma o lh a d a ’ . Q u a n d o está erra ­
do, ela me pede para explicar, é isso” 67. Ela destaca tam bém a exis­
tên cia de uma grande solidariedade fam iliar en tre os filh os, da
qual tam bém se b en eficiou : “ E o que é legal na m inha fa m ília é
que todos, eu sei que, eu m e lem bro, quando tinha a idade de S ou y­
la, co m ig o , to d o o tem po era m inhas irmãs mais velhas que se
debruçavam co m ig o e depois m e ajudavam . Po rta n to , isso faz
co m qu e...” .
E também , sem dúvida, pela interação com as irmãs que Souy­
la construiu seu gosto pela leitura. Ela vai à biblioteca municipal,
assim com o à b ib lioteca da escola, e lê contos, histórias em quadri­
nhos e pequenos romances (da c oleçã o “J’ A im e L ire” ). Diz que fala
sobre eles co m as irmãs e que tam bém conta histórias ao pai para
que ele pegue n o sono: “ Eu falo pra ele: ‘ Papai, vo cê quer que eu te

194
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o>nte uma história?', porque ele não consegue dormir. D epois, eu


conto pra ele, bem no m eio da história, ele dorm e” . Da mesma forma,
ela pede que uma das irmãs leia uma história para ela, para poder
lembrar-se à n oite e sonhar: “ A n oite, eu co n to a história pra m im,
na m inha cabeça. Eu gosto m uito porque eu chego a não sonhar, a
ter pesadelo, então m e vem a história” .
E ainda a mesma solidariedade fa m ilia r que faz com que os
filhos ajudem o pai em todos os docum entos. Q u an to a tudo que
diz respeito a d in h eiro, o senhor B. diz que se vira m uito bem, e
que não conseguem “ en rolá -lo", porque ele conh ece bem os núm e­
ros: “ Eu não leio. Se tem algumas coisinhas assim, consigo m a n i­
pular o din h eiro. Se, p o r exem p lo, eu te dou um cheque e pra fazer
ele, cê quer dar uma de esperto, cê não consegue, porque eu sei a
soma que cê tá co lo c a n d o e tudo o mais. A lg u m a coisa não co n si­
go, mas, ao contrário, com coisas assim, eu consigo m uito bem ".
A filh a mais velh a se encarrega dos docum entos da fam ília desde
a idade de 10 anos (o pai pedia tam bém a colegas de trabalh o), e
foi ela principalm en te que se ocupou em cuidar dos papéis para a
aposentadoria d o pai. A tu a lm en te, é a filh a de 17 anos, que está
na 1 - série do 2° grau de A dm in istração e C on ta b ilid ad e e que gos­
taria de tornar-se contadora, quem o acom panha quando vai ver
a assistente social: “ E sempre uma filha. E uma filha que vai ir c o m i­
g o ” . E graças às filhas que o senhor B. consegue lim itar as situa­
ções de hum ilhação que todos aqueles que não sabem 1er nem
escrever e que d ep en d em de m aior ou m en or boa vo n ta d e de
outrem são, in evita velm en te, levados a viven ciar. Ele conta, por
exem p lo, que às vezes, quando pede a funcionários da adm inistra­
ção para preencherem os papéis em seu lugar, eles recusam: “ Eu tava
lá, em Saint-Priest, para e n via r uma ordem de pagam ento, e falei:
'Senhora, bem, a senhora poderia preencher isso’. Ela me disse: ‘N ã o ,
meu senhor, é proibido*. Então, v o ltei pra cá e, à noite, quando meus
filh o viero, foi as criança que fez. A h , sim, ele diz: ‘ N ã o , não, num
posso preencher', ele fala: ‘N u m te obriguei, o brigad o’ (diz, sorrin­
d o )” . E depois do relato dessa história que o senhor B. diz que “ é
duro" quando não se sabe 1er e escrever: “ A h , sim, isto é, pra quem
num sabe lê e escrevê, escreve então, é duro” .

195
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

A tra vés desse sistema de au xílio mútuo, mostra-se a Souyla a


im portância social, sim bólica, no p róprio seio da estrutura de c o e ­
xistência familiar, dos que sabem 1er e escrever. A liá s, Souyla não
se engana quanto a isso. Ela inventa, na entrevista, dizendo que os
pais lhe pedem para 1er a correspondência e escrever as cartas.
Mostra, assim, que se identifica com o papel das irmãs mais velhas
e que dá va lo r ao fato de saber 1er e escrever. Ela até diz que procu­
ra palavras nos dicionários para as irmãs, afirma que sabia 1er aos 3
anos e que escreve desde a idade de 5 anos, lembrando-se de uma
história lida: “ Eu copio elas. Depois, às vezes, leio utn livro, c o lo c o
ele na m inha mala, vou nalgum lugar e depois escrevo o que tenho
na cabeça. E porque preciso me lembrar das coisa aqui na minha
cabeça. Mas eu só cop io o que preciso mais. E depois, cada vez mais,
antes, quando com ecei com 5 ano, tive a idéia assim, e eu lia livros
porque já sabia 1er bem com 3 anos. E depois, com 5 ano, eu disse,
bem, agora eu leio e depois escrevo, e se não sei eu torno a 1er, leio,
leio, com o se fosse um autoditado pra m im mesma, o que precisa­
va saber. A go ra , eu leio duas vez e depois me lem bro das coisa” . Ela
conta tam bém que chega a escrever poemas. Todas as histórias que
podem os descobrir em Souyla não deixam de ser interessantes na
medida em que deixam transparecer sua identificação com as irmãs.
Isso se traduz, na realidade e não mais no discurso ficcion al, pela
escrita freqüente de cartas quando está em férias, o que, aré agora,
nunca encontram os em nossas entrevistas ( “ T em semana que a
gente recebe duas, três” ).
Podem os acrescentar, para com p leta r o perfil fam iliar, que o
próprio fato de o senhor B. ter construído uma casa mostra uma
von tade de instalação d efin itiva , ao passo que, em outras fam ílias
magrebinas, a situação era mais ambígua. A casa tam bém é sinal
de um distan ciam en to em relação aos grandes con ju n tos urbanos.
Enfim, S ou yla é a últim a de uma fa m ília de onze filh os' e é c o n ­
siderada co m o a "qu eridin h a” por seus pais, isto é, ben eficia-se de
uma atenção específica da qual todos os outros irmãos e irmãs de
uma fam ília tão grande, sem dú vida, não puderam beneficiar-se
(p o r exem p lo, a mãe de S ouyla não a d eixa fazer serviços de casa).
Essa atenção específica dada a ela, no âm bito da configuração fami-

1%
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

har descrita'"', traduz-se, na entrevista, por uma espécie de apre­


sentação de si m uito positiva, m uito especialm enre sobre questões
escolares: “ Eu sabia 1er bem co m 3 anos". Essa m aneira de apre­
sentar-se, que revela uma grande segurança, uma grande c o n fia n ­
ça em si, é, evid e n te m e n te , o produ to in teriorizado d o o lh a r de
to d o um grupo fam iliar.

♦ Perfil 14: Um afável confinamenro simbólico.


S«mira B ., nascida em Viííerbanne, sem nenhuma repetência escolar, obte­
ve nota 7,1 na avaliação nacional.

Q u an do a en trevista com eçou , o senhor B. tinha acabado de


fazer a sesta. Ele está fazendo o ramadã e, além do mais, tem h orá­
rios de trabalho cansativos (das 4h às 1 Ih ). Ele e a m ulher são pes­
soas sorridentes, calmas, acolhedoras. E o senhor B. quem respon­
de a nossas perguntas. Sua m u lh er fica, durante quase tod a a
entrevista, afastada, numa cadeira isolada. S ó raram ente p a rtici­
pa da conversa, apenas para rir ou con firm a r o que seu m arido diz,
com um m o v im e n to de caheça ou rápidas palavras. Dá m am adei-
ra durante lo n g o tem p o a seu bebê, escutando-nos falar. A pesar
de sua dificuldade em falar o francês, o senhor B. o com preen de
m u ito bem, e raros sãos os m om entos em que há m al-entendidos.
Estamos sentados em torn o da mesa da sala de jantar. O cô m o d o
parece vazio, tendo em vista os poucos m óveis e a ausência de en fei­
tes ou bibelôs. N o fin a l da en trevista, o senhor B. agradecerá por
term os ido vê-los.
O senhor B., de 40 anos, nunca fo i à escola em seu país, o M a r­
rocos ( “ Era a miséria, quando a gen te nasceu. N ó is num era nada
nada. É por isso que nóis num fo i na escola. N ã o tem co m o mandá
os filh o pra escola "), e não sabe 1er e escrever nem árabe, nem fran­
cês. V iveu nas m ontanhas e em con d ições m uito difíceis, sem água
nem eletricidade. N e m m esm o sabe ao certo a data de seu nasci­
m ento, porque a fa m ília não tinh a registros de n ascim en to na
época: “ Mas não é bem certo ainda que eu nasci em 51, porque meu
pai não tinha o registro, e a gente não tinha nada de nada! Eu é
que pôs a data” . O pai d o senhor B., que tinha três mulheres, m o r­

197
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

reu quando este tinha 8 anos. Era um pequeno lavrador, caçava um


pouco (c o m cachorros nas tocas) e possuía alguns animais. N e m
ele nem a mãe do senhor B. aprenderam a 1er e escrever. A n tes de
v ir para a França, com a idade de 18 anos, o senhor B. trabalhou
no M arrocos com o servente, na construção c iv il e na funilaría de
autom óveis. U m de seus irmãos trouxe-o para a França m ediante
um contrato de trabalho para ser sucateiro. D epois, eie trabalhou,
a partir de 1974, numa empresa de fabricação de alm ôndegas e aí
ficou desde então. Fez exam e de m otorista na França, sem saber
1er ou escrever, numa época em que o exam e era oral. Sua mulher,
a senhora B., co m 31 anos, tam bém é analfabeta. V e io para a
França há 11 anos e nunca trabalhou, ex ceto quando ajudava, em
sua aldeia, a m oer cereais. Seu pai e sua mãe eram pequenos lavra-
dores analfabetos das montanhas marroquinas.
Eles têm cin co filhos, cujas datas de n ascim ento o senhor B. sabe
de cor. De m odo geral, o senhor B. é, aliás, extrem am ente preciso
quanto às datas. T ê m uma filh a mais velha, A ., nascida em 1978,
n o M arrocos, que repetiu de ano uma vez (a 2~ série do I a grau ou
a 4a série) e que está na 7a série do I e grau, em Curso de Educação
Especializada70. Depois vem Samira, nascida em 1983, que está na
2a série do I e grau ( “ Eu acho que Samira é m elh or que A . ” ), um
m enino nascido em 1984, que está na 1- série do 13 grau (o pai decla­
ra que o professor lhe disse que ele era o prim eiro da classe), uma
m enina que morreu aos 6 meses e 7 dias e cu jo lugar, que deveria
ocupar entre os irmãos e irmãs, o senhor B. lem bra co m o se ela esti­
vesse viva, uma m enina nascida em 1987 que está no maternal e,
fin alm en te, uma outra nascida em janeiro de 1992 (tem aproxim a­
dam ente 3 meses no m om ento da entrevista).
Sam ira entrou bastante ced o na escola m aternal (c o m 2 anos
e 6 meses) e nunca foi, de fato, apontada co m o uma aluna com
dificuldades. G lo b a lm en te, é considerada co m o “ uma boa aluna"
numa classe de 2a série do 1Q grau/3B série, cu jo n ív e l m éd io já é
bastante elevad o. E uma aluna qualificada co m o “ interessante",
que “ com preen de m uito rá p id o” , “ trabalha hem ” , “ aprende bem ” ,
“ tom a a palavra” ( “ ela se exprim e bem, é in teligen te, não fala à
toa, sempre tem idéias, boas idéias”71) e “participa” . O caso de Sami-

198
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

i;i pode, porta n to, revelar-se co m o um caso s o cio lo g ica m en te


espantoso. C o m um pai e uma mãe analfabetos (os únicos livros
presentes na casa são os da escola e da b ib lio teca que as crianças
trazem ), um pai operário n ão-qu alificado, uma mãe sem profissão
e, en fim , uma irmã mais v elh a escolarizada em Curso de Educação
Especializada, podem os efe tiv a m en te perguntar-nos on de Sam i-
ra en contra os apoios para responder adequadam ente às e x ig ê n ­
cias escolares.
In icia lm en te, fica claro que a configu ração fam iliar co n fere
uma posição legítim a à “ criança letrada” . O senhor B., em vários
exem plos, mostra co n fiar em seus filh os em m atéria de leitura e de
escrita. Ele próprio preenche seu form ulário de impostos, porque
sabe 1er e escrever os números sem problem a (d izem -lh e onde tem
de preencher e ele escreve as im portâncias). A p ren d eu isso com
colegas quando estava no a loja m en to e tinha o h áb ito de d ivid ir
os gastos: “ Sim , porqu e antes, a gen te m ora sozinho, não tem
mulher, n ão tem nada. N o aloja m en to, ten h o am igo, tam bém
árabe, e francês tam bém , a gen te com e ju n to e daí, no fim do mês,
a gen te d ivid e o que comeu. M arca tudo. Ele é que marcava, e por
isso aprendi os número. A gente marca, por exem plo, hoje nóis com ­
pro um frango e uma bengala de pão, marca a data, por exem p lo,
amanhã de n ovo , e n o fim do mês, ele me fala: ‘ Isso fo i o que nóis
com eu ’ . Ele faiz a conta, por exem p lo, 500 franco, d ivid e por dois
e dá 250 fran co pra cada um".
C aso contrário, ou ele vai diretam en te às repartições para ter
explicações e mandar preencher seus papéis ("E x p lic o cara a cara
com uma senhora, assim. N u n ca escrevi. Por exem plo, na p refei­
tura ou co m o v o c ê tá falando, no departam ento de salário-fam í-
lia, eu é que vô pra ter explicação, porque, com o num sei lê nem
escrevê, as veiz v ô eu m esm o” ), ou pede a seus vizinhos argelinos
(P e rfil 2), cu jo filh o mais v e lh o ajuda os pais para escrever as ca r­
tas em francês ( “ Sim , às veiz eu falo pra ele: ‘V em aqui em casa',
assim. A gen te confia, são vizin h o ” ), ou, enfim , pede à sua filha
mais velh a, A ., ou a Samira, que lê mas ainda não escreve a c o r­
respondência: "Sim , faz, ela escreve mais ou menos bem, com o pre­
cisa. Mas ela ainda n ão preencheu nenhum a ordem de pagam en-

199
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

to. Mas às vez vai chegá uma carta com o essa, não sei, talvez um
salário-fam ília ou mesmo im posto, da televisão, não sei, hem, ela
me explica. Ela fala: ‘ Papai, quando precisa pagá, presta atenção,
precisa passar lá hem na data’ . Ela, en tretanto, às vezes, preenche
ela mesma os docum entos da escola".
O senhor B. não tem talão de cheques, e, quando precisa p reen ­
cher uma ordem de pagam ento que envia à fam ília, é sempre A . que
se encarrega disso. Q u ando era ele que se encarregava de arrumar
os docum entos, estes não eram classificados: “ Das vez procuro um
papel qualqué, levo 15 m inuto". Desde que A . o faz, ela os arruma
numa grande pasta: “ A go ra , com o A . está n o co légio , é quem cuida
quase de tudo agora, os documentos. Ela com prou uma pasta gran­
de assim. Tem folhas lá dentro em branco, e ela, por exem plo, pões
as conta de luz de um lado, os impostos de outro, as ordem de paga­
m en to de outro, os holleriths de outro, tudo ao lado. (Riso.) Ela
marca, isto é, põe um paperzinho assim, cola ele, faz isso pros impos­
to, esse é pras conta de luz, esse é pro aluguel, tudo. E bem arrumado.
(Riso.) A n tes, eu punha no troço assim. Q u an do co m eço a procu­
ra arguma coisa, renho que procura por tudo lugar” . A ., portanto,
introduziu classificação, organização na fam ília. A utilização de
pasta faz pensar que a escola, com sua lógica de diferenciação em
matérias, em disciplinas, em horários, não está alheia a essa práti­
ca, e que contribuiu para a racionalização dos docum entos fa m ilia ­
res. O senhor B. guarda todos os números de telefon e na cabeça
( “ Ten h o todos eles na cabeça, tu do!"), mas A . anota todos os núm e­
ros num caderno ( “ Ela marca tudo, A ., agora "). Enfim, o senhor B.
diz que, frequentem ente, utilizam os calendários para anotar os
compromissos ( “ A h , sim, claro. Os compromissos assim, a gente
marca, cla ro "), e ainda é A . quem se encarrega de anotá-los.
Samira só participa dos atos de leitura e escrita da fam ília modes­
tam ente em relação à irmã mais velh a (ela confirm a que é antes a
“ irmã mais v elh a ” quem se encarrega), mas contribui assim m esm o
a esse au xílio mútuo familiar, e vê, por interm édio da irmã, a im por­
tância sim bólica conferida pelo pai às com petências de leitura e de
escrita dos filhos. Ela mesma conta, orgulhosam ente, que, na m edi­
da em que seu pai “ sabe 1er um pouquinho, algumas palavra, mas

200
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

não tudo” , ele pede à irmã, assim com o a ela própria, para 1er para
ele cartas em francês: “ E quando ele recebe cartas em francês, hem,
é nós quem lê elas” .
Mas o segredo do sucesso escolar de Samira reside essencialmen-
re no ethos familiar m uito coerente que é posto em prática com muita
regularidade e sistem aticidade. Os pais exercem um con trole moral
em todos os instantes, e o co n trole escolar surge com o uma parte
entre outras do controle exercido mais amplam ente em todos os seto­
res da existência.
O s pais são, in icia lm en te, m uito rigorosos em relação às horas
de deitar-se (S am ira se deita, n o mais tardar, às 20h45 e declara
ela própria co m er às 7 em p o n to ). Fixam lim ites que não d evem
ser ultrapassados, que se aplicam a todos os dias da semana, e x c e ­
to o sábado, quando as crianças podem ver os desenhos anim ados
na T L M ;' (os pais exercem uma censura sobre os tilmes vistos) e
deitar-se às 21h45. Em seguida, Sam ira, assim co m o o irm ão ou
as irmãs, não sai para hrincar sozinha n o bairro ( “ Ele não sai
nunca, só se eu saí c o m ” ), e os pais a leva m e vã o buscá-la na esco­
la. O fato é apresentado, tanto pelo lado d o pai quanto de sua filha,
co m o sendo uma escolha da parte dos filhos. É Sam ira quem não
quer sair para brincar fora ( “ N ã o ten h o vo n ta d e. G o s to mais de
fica r em casa d o que de s a ir"), é ela quem n ão gosta de ir às excur­
sões escolares sem os pais, é ela tam bém que, durante as férias, n ão
quer fica r longe da fam ília. O pai esclarece que é ela quem não
quer sair, mas que ele prefere que as coisas sejam assim. Estamos,
pois, na esfera da c o erç ã o bem interiorizada pelos filhos. E essa
interiorização só é tão p erfeita 7' porque a ação fam iliar é con stan ­
te. O s filh os v iv e m p rin cip alm en te (fo ra da escola ) num u n iver­
so de referências morais, cuidam de todos os seus possíveis im pos­
tos e ign oram ou rejeitam as coisas im possíveis ou contraditórias.
M as o am finam ento simbólico n o universo fa m ilia r só é possível se
os pais ( “ Eu fa ço apenas pros meus filh o , pra m im num interes­
sa", diz o pai) oferecem aos filh os m om entos de descontração, pas­
seios: “ A gen te sai. N u m é preciso ficá sempre em casa, parecen ­
d o uma prisão. (R is o .) D urante as férias v o c ê tem o d ireito de sair
um pou qu in h o pra tom ã ar, prá mudá” A

201
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Se o senhor B. leva os filh os para passear ou brincar lon ge do


bairro, é porque ele o considera um lugar pou co exem plar: “ S aí
sozinha, isso nunca. E já to aqui desde 85, elas nunca saíro sozi­
nha, só co m ig o. L e v o n o parque, é tudo. A gen te fica lá a tarde
inteira e vo ltam o. Mas eles nunca saíro sozinho. Das vez sai, mas
fic o olhan do da janela assim dois ou treis m in u to, depois eles
sobe. Eles num tão acostum ado. Mas é m e lh o r assim, porque se
eles sai, ficam acostum ado. H o je , eles brinca aqui, am anhã vão
longe, depois mais longe, mais longe, e depois é uma baderna, depois
quebra os carro, e depois, co m o sempre. N ã o d e ix o eles n o bair­
ro. V ô um pouco mais longe, quando ach o que é mais ou m enos
lim po, a gen te co m e lá". O pai, portanto, sai co m eles para fazer
passeios, jogar um pouco de bola, e Sam ira joga tênis, basquete,
anda de patins de rodas, pula corda. Durante as férias, ele os leva
para passear todos os dias, fazer piqueniques, b rin ca r". E tam bém ,
nas noites de verão, os filh os ficam com os pais na grande sacada
d o apartam ento da fam ília.
O pai se destaca das outras fam ílias árabes que m oram no
bairro ( “ Eu tam bém sou árabe, mas...") e critica os joven s que fazem
bobagens, quebram , roubam ( “ E se v o c ê estivé lá, eles te d e g o ­
lam ” ). Esses atos con stitu em para e le uma degradação m oral.
Segu n do ele, os pais desses jo ven s não tom am con ta deles, e nos
co n ta que algumas crianças fica m fora de casa d o fin al das aulas,
até as 21h. O s pais joga m o lanche deles por uma janela e ficam
tran qu ilam ente em casa ven d o televisão . Nessas con d ições, diz
ele, “ a gen te pode ter seis, sete, o ito , n o ve filh o ". A maneira co m o
o senhor e a senhora B. in terpretam a fin a lid a d e da en trevista é,
aliás, igu alm ente reveladora de seu m o d o de ver as coisas. A mãe
nos diz: “ E pra falá os que cuida de seus filh o s e os que não cu ida”
— m ostrando assim que adota um p o n to de vista m uito p róx im o
d o da in stitu içã o escolar, ainda que sua o rie n ta ç ã o seja mais
m oral do que esp ecifica m en te escolar — e nos pergunta se esta­
mos fazendo isso para saber se o que os pais fazem “ está c erto ou
não está c e rto ” .
O senhor B. diz que a escola é im p orta n te para ele: “ A h , sim,
ló gico , é im portante. S im , im p ortan te 100%. É n orm a l” . Ele pró-

202
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

prio tem ressentim entos em relação a uma escola que não c o n h e ­


ceu ( “ E claro, senti m uito. Q u a n d o era pequ eno, num sabia o que
queria dizê ir pra escola, porque a gen te era co m o anim al, pa re­
c id o ” ) e em relação ao curso de alfabetização que n ão freqüen-
tou quando teve a possibilidade no alojam ento ( “ Era jo vem e baba­
ca (riso abafado). N u n ca escu ta va "). M as vem os m u ito bem , ao
lo n g o da entrevista, que a escola nunca é percebida c o m o um uni­
verso autônom o, mas antes co m o um local on de se d eve, tam bém ,
antes de mais nada, com portar-se bem. Assim , se o senhor B. julga
que Sam ira é a mais “ in te lig e n te " de todos os seus filh os, é p o r­
que “ ela nunca te v e problem as na escola. Ela estuda, faz seu tra­
balho, nunca fo i má co m seu professor ou professora” 76. S er “ in te ­
lig e n te ” é exa ta m en te com portar-se na aula, não ser mau e fazer
os trabalhos. E m ais a diante, na en trevista, o senhor B. dirá ta m ­
bém que Sam ira, freq u e n tem en te, lhe pergunta se pode rezar
co m ele, e é por isso que ele gosta m u ito de Sam ira: “ É p or isso,
tô te dizendo, Sam ira é legal (riso). M e pede pra rezá c o m ig o ” .
T a lvez, portan to, quando ele diz que Sam ira é a mais “ in te lig e n ­
te ” de todos, ele tam bém esteja pensando na in teligên cia de c o m ­
p o rta m en to da filh a , que, por si própria, cam in h a em d ireçã o à
sua cultura.
O pai verifica se o trabalho escolar está fe ito , apoiando-se nos
controles mútuos que estimula entre seus diferentes filhos, uma vez
que ele m esm o n ão pode verificar nada: “ Das vez, quando eles têm
trabalho e fizero mal, eles olha, voltam pra casa, m exem nas mala
e depois vem pra m im e diz: ‘V eja , papai, o que ele fez', e se ele
num fez, por exem p lo, meu filh o vai ch egá daqui a pouco: ‘ Pai, ele
não fez certo sua tarefa’; Sam ira é igual, ela o lh a * * * , se ele não fez
certo, vai chegá: ‘Papai, ele não tá bem, ele engano, escreveu erra­
d o porque escreveu depressa, pra ir vê televisão' (riso). Portanto,
eles con trola entre eles, h ein ". Samira faz suas tarefas quase sozi­
nha, em casa. D e qualquer form a, sua irmã a ajuda um pouco, mas,
juntas, elas brigam frequ entem ente. Q u ando ela tem notas baixas,
seu pai lhe diz que é preciso não brincar e que é preciso escutar o
professor. C o m isso, indica que, para ele, o “ bom com p orta m en ­
to ” é a ch a ve do “ sucesso” escolar, e dá co m o ex em p lo à filh a sua

203
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

própria atitude n o trabalho: “ Bem, eu falo pra ela: ‘N ã o tem que


ficá brincando, não tem que ficá rindo na escola. Q u ando v o cê vai
na escola, é a escola. N u m precisa ficá brincan do com as criança.
Precisa escuta o que a professora tá dizendo*. Eu expliqu ei: ‘ V ê eu,
fáiz quanto tem po tô na fábrica? Quase deiz ano. N u n ca com eti um
erro, nada, nada, nunca. T ô bem onde tô trabaiando, sô educado
com o patrão, o ch efe, porque nunca fiz uma bobagem , nunca'. Eu
falo: ‘C u m vo ceis é igual. Se voceis estudá bem , escutá professora
ou escutá bem , nunca va i v ê os pai, eles fala que n ão trabalha bem,
eles fazem bobagem , não escura’ ” .
O s pais já estiveram co m o professor de Sam ira, e o sen h or
B., às vezes, vai às reuniões escolares. Diz que é m elh o r e n c o n ­
trar-se co m os professores d o que co n fia r nos filh os: “ A h , sim, é
interessante, claro, porqu e nisso, é preciso n ão confiar, as cria n ­
ças, tudo o que eles fala disso. M e lh o r é ir vê o professor” . Mas
o senhor B. tam bém pergunta, freq u en tem en te, aos filh o s sobre
o que a con teceu na escola, se está in do tudo bem , se n ão fizeram
bobagens, para expressar-lhes que se interessa por ela , que não é
in d iferen te ao que possam estar fa zen d o na escola: “ A h , todos os
dias, isso, todos os dias. Sim , é o b rig a tó rio , porqu e se a gen re não
pergunta, eles v o lta pra casa, eles diz: ‘Boa-tarde, p a p a i!’ , e depois
a gen te não se fala: ‘ O que é que v o c ê feiz na escola?’ ; Bem , no
dia seguinte, eles fala: ‘ É, papai num m e fa lô nada. Ele num m e
fala da escola'. N o dia seguinte, v ã o fazê bobagem e ninguém fica
sabendo. D epois, v ã o batê em alguém e n ingu ém fic a sabendo.
Por isso eu pergu n to sem pre: ‘O que é que v o c ê feiz na escola?
N u m teiz bobagem ?Q u e que v o c ê feiz, que que v o c ê tem co m teu
professor? Foi educado co m ele? V o c ê é ruim?’ ; Faço as pergun­
ta, é necessário. N ó is , a gente num sabe lê , nem escreve, mas a gente
pergunta assim mesmo, é necessário. De m aneira que se eles faiz
com o qué, porque as criança, cê sabe, é preciso vigiar, mesmo assim,
é preciso falá, élrreciso vigiá, é preciso pergunta, porque que que eles
faiz na escola? Q u e que fazem? Q u e que tão pensando na cabeça
deles?” . D e m o d o geral, escutando e qu estion a n d o o pai, Sam ira
está numa configuração fam iliar em que o lugar sim bólico do “ esco­
lar” é legitim a d o. Seu pai tam bém escuta qu an do ela lhe conta

204
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o que leu (ela lhe falou, por ex em p lo , d o que leu sobre a h istó ­
ria, há “ 100 ou 200 anos” ) 77.
De m o d o geral, o senhor e a senhora R. estabelecem sua au to­
ridade na interiorização, pelas crianças, de disciplina e dão um lugar
essencial à atenção e ao d iá logo. M esm o que o pai n ão possa e x e r­
cer vig ilâ n cia direta nas questões escolares, o d iá lo g o que m an­
tém acerca da escolaridade possibilita a in tegração sim bólica no
seio d o universo fa m ilia r da exp eriên cia escolar de Samira. A lé m
disso, para o senhor B. “ num serve pra nada batê n eles" para lhes
m od ificar o com portam en to. S egu n do ele, é preciso falar com
eles, even tu a lm en te gritar para causar-lhes m edo ou puni-los, mas
não bater neles. Q u a n d o lem bram os os casos de fam ílias m uçul­
manas que proíbem os filh os de falarem à mesa, ele ch ega a dizer:
“ E, é verdade, existe isso, mas nós, a gente se fala” e acrescenta:
“C o m as crianças, cê n ão consegue parar as criança. (Rmdu. ) N ã o
consegue. Pára uma, depois a outra com eça. (Riso.) C ê d eixa tudo
pra lá {rin d o )".
A lé m dessa ordem moral familiar, o pai calcula o orçamenm, sepa­
ra uma quantia de dinheiro para a poupança, para poder enviar ordens
Je pagam ento â fam ília, m ostrando, assim, uma relação co m o
tem po pessoal, feito de paciência e ascetismo: “ Sim, das vez, a gente
pensa assim: mais ou m enos 2000 franco pro aluguel, num sei, pra
luz 400, telefon e 300 mais ou menos, a gen te faiz as conta assim. A
gente fala, por exem plo, 400 0 exato pro aluguel, luz e im posto, e
tudo, e deixa um pouco na caderneta de poupança, e quando a gente
precisa, a gente rira, é isso". Ele até mandou construir uma casa no
Marrocos, durante 12 anos (en tre 1968 e 1980), sinal de uma dis­
posição para poupar e ter paciência: “ Doze anos, porque eu faço deva­
garinho, porque não tinha c o m o ". Pouco a pouco, separando uma
quantia de dinheiro, ele conseguiu pagar os serviços de pedreiro.
Desde o maternal, os professores n otam o fato de que Sam ira “ se
preocupa m uito co m os outros, em d etrim en to de seu próprio tra­
balh o (seja ajudando, seja avisando pequenas coisas)” . N a pré-
escola, as professoras observavam que ela tom ava conta de seus co le ­
gas. N a I a série d o I a grau, esse com portam ento persiste, uma vez
que a professora diz que ela é “ m uito prestativa” , “ m uito am ável” ,

205
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

“ sempre pronta para fazer favores". Essa característica de com p or­


tam ento (ou de caráter, co m o se diz com u m ente) é, sem dúvida, o
produto de uma socialização fam iliar que estimula as crianças (p rin ­
cipalm ente as meninas) a cuidar das coisas do lar (Sam ira tira a mesa,
passa o aspirador, arruma a cama, “ esquenta um cafezinho, um cha-
zinho” de vez em quando para o pai... ), da correspondência e de seus
irmãos e irmãs. Desde o maternal, Samira tem tendência a cuidar
de seus colegas de escola, sinal de que, m uito cedo, teve de cuidar
do irmãozinho. A s tarefas domésticas ou educativas lhe dão respon­
sabilidades, assim com o o hábito do trabalho e da ordem. Entretanto,
há certam ente um lim ite para essas atividades, que podem tom ar
tem po do trabalho escolar (a irmã mais velha, que cuida p rin cip al­
m ente dos trabalhos dom ésticos com a mãe, está com muita d ifi­
culdade escolar).
A situação escolar de Samira só é, portanto, m uito favorável
porque a configuração fam iliar não é contraditória (os pais são co e ­
rentes entre si, não há vários princípios de socialização que se super­
ponham ou se ch oq u em ) e exerce seus efeitos regular, sistemática e
perm anentem ente. A ausência de capital escolar é compensada pela
presença de uma ordem de vida que, direta (n a produção de crian­
ças disciplinadas, que respeitam as autoridades) ou indiretamente (pela
produção de situações em que as crianças são incitadas a ir, por si
mesmas, em direção a uma cultura escolar ausente da fam ília) se har­
moniza com o universo escolar. Mas vem os que, nesses casos, o
“ êx ito ” nunca está defin itivam en te assegurado. Samira chegou a ter
uma queda n o ano: “N ã o era catastrófico, mas era menos bom ” . Ora,
essa queda, em janeiro e fevereiro, corresponde exatam ente ao nas­
cim ento de uma irmãzinha (n o dia 18 de ja n eiro). N ada de espan­
toso se, numa situação tão excepcional, a m odificação da econom ia
das relações afetivas no seio da fam ília devida a um nascimento pôde
pôr em perigo o equilíbrio de uma situação escolar. Talvez Samira
tenha se sentido menos ouvida, menos en volvida. Talvez os país
tenham dim irm ído sua vigilân cia durante um curto período. De
qualquer forma, a mãe foi chamada, disse que falaria com o pai e,
com o diz a professora, “ depois, voltou ao norm al", sinal de que os
pais souberam restabelecer o equilíbrio inicial.

206
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Configurações familiares heterogêneas

Em todas essas formas, a coerência assim des­


coberta desempenha sempre u mesmo papel:
mostrarque as contradições imediatamente visí­
veis nada mais são do que um rellexo de super­
fície; e que é preciso reduzir a uma origem única
o jogo de reflexões dispersadas LV qualquer
forma, a análise tem de suprimir, tanto quanto
possível, a contradição7",

Assim com o a história das idéias que, com o escrevia M ich el Fou­
cault, atribui ao discurso um "créd ito de coerência” , as concepções
globalizantes que vêem em cada fam ília um pequeno mundo tota l­
m ente coerente, unitário, às vezes uniform e, subestimam, frequen ­
tem ente, as diferenças de investim entos, de disposições, de o rien ­
tações e de interesses que caracterizam os diversos com ponentes da
configuração familiar.
E claro que tudo é uma questão de p o n to de vista e de escala
dos contextos que o pesquisador se propõe reconstruir. Pode ser útil
caracterizar a fam ília com indicadores m uito gerais, tais co m o a pro­
fissão d o ch efe do lar, assim que se pretenda com preen der as linhas
gerais de uma situação social global. A s correlações estatísticas entre
variáveis nos dão co m o que visões panorâmicas, co n form e ângu­
los específicos. Se esse p o n to de vista revela o espaço em suas
linhas gerais, suas estruturações mais genéricas, ele, entretanto, não
possibilita esclarecer as múltiplas particularidades mais finas, apa­
gadas sob o e fe ito do distanciam ento. Pode, por conseguinte, ser
muitíssimo útil h eterogen eizar o que parecia h om ogên eo aos olhos
da visão estatística.
A atenção para co m fenôm enos, tais co m o o fato de pertencer­
mos, simultânea ou sucessivamente, a vários grupos ou com o a trans­
form ação progressiva dos grupos aos quais participamos, o que im p li­
ca que nunca estamos totalmente no mesmo grupo em momentos dife­
rentes da história desse grupo (duas crianças que pertencem a uma
mesma frátria não nascem e não v iv e m nunca exatam ente na mesma
fam ília), ou tais com o o fato de frequentarmos segmentos ou frag­
mentos singulares de cerros grupos, já está bem presente no traba­

207
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

lho de um sociólogo com o M aurice Halbwachs, preocupado com o


cruzamento e os laços íntimos entre o p sicológico e o social:

Para fazermos uma idéia, ao contrário, da multiplicidade das memó­


rias coletivas, imaginemos o que seria a história de nossa vida se,
enquanto a estivermos contando, nós a interrompéssemos sempre
que nos lembrássemos de um dos grupos pelos quais passamos, para
examiná-lo em si mesmo e dizer tudo o que dele conhecemos. Não
bastaria distinguir alguns conjuntos: nossos pais, a escola, o colé­
gio, nossos amigos, os homens de nossa profissão, nossas relações
em sociedade e, ainda, uma dada sociedade política, religiosa, artís­
tica à qual poderiamos nos ter ligado. Essas grandes divisões são
cômodas, rruis respondem a uma visão anula exterior e simplificada da
realidade. Essas sociedades compreendem grupos bem menores que ocu­
pam apenas uma pane do espaço, e foi apenas com uma seção local de
um dentre eles que estivemos em contato. Eles se transformam, se seg­
mentam, de modo que, mesmo que permaneçamos num grupo e que dele
não saiamos, acontece de o grupo tomar-se, pela renovação lenta ou
rápida de seus membros, realmente um outro grupo que tem apenas pou­
cas tradições comuns com aqueles que o constituíam no inícioA

A s famílias reunidas aqui (cf. também os Perfis 4 ,6 ,9 e 13), às vezes


numerosas, constim em com o que leques, mais ou menos amplos, de
posições e de disposições culturais, de preferências, de com portam en­
tos, de relações com a escola, de princípios socializadores heterogê­
neos. A s vezes, até observamos um conjunto de matizes muito sutil
na experiência escolar dos diversos membros da constelação familiar.
Essas diferenças, esses desvios ou essas contradições no seio da
fam ília (algumas contradições se apresentam, às vezes, até mesmo
nos in divídu os) são tam bém relações de forças, tensões entre d ife­
rentes pólos familiares, e a escolarização da criança depende, então,
do produto dessas relações de forças m odificáveis pela evolu ção dos
destinos individuais (nascim ento de outra criança, morre de um adul­
to, partida ou chegada de um dos mem bros da fa m ília ).

♦ Perfil 15: A s contradições.


Souyla B ., nascida em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve
3,3 na avaliação nacional.

208
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Q uando da m arcação da entrevista, a senhora B., jo v e m m ulher


argelina, nos recebe na soleira da porta; atrás dela, a mãe, vestida
tradicional m ente. A c e ita a entrevista, mas espera que ela seja feita
na escola. N o dia marcado, ela não está lá. O diretor nos diz: “ M e
espanta M . ..., ela não esquece esse tipo de coisa” . Ela foi sua aluna,
e ele a con h ece m uito bem. Telefon a para a casa dela e pede ã mãe
mandá-la à escola assim que chegar. Q u ando ela chega, em abrigo
esportivo, beijam -se e fica claro que ela tinha esquecido com p leta ­
m ente o encontro, pois diz: “ Assim que soube que M * * * queria me
ver, v im ” . Existe uma relação muito ín tim a entre a senhora B. e a
escola e, particularm ente, com a fam ília do diretor. Q uando a d e i­
xarmos, ela vai para a reunião de preparação da quermesse o rga n i­
zada pela escola.
A senhora B. tem um defeito de pronúncia que, às vezes, tom a d ifí­
cil a compreensão de suas palavras, e os erros de francês são perma­
nentes em seu discurso. Qualquer que seja a “boa vontade cultural"
expressa por ela no decorrer da entrevista, vem os com o se inscreve
em seu discurso a distância objetiva que a separa do universo do falar
escolar. Souyla, tal co m o a mãe, tem um defeito de pronúncia: ela fala
“ch " no lugar de “ se” ou “ce” .
A senhora B. tem 29 anos e v iv e na casa dos pais com a única
filha, Souyla. T eve uma escolaridade difícil, que a levou a fazer em
2 anos a 7a série, numa classe pré-profissional de aceleração, e mais
2 anos para obter o Certificado de Aprendizagem Profissional de corte
e costura, parando, finalm ente, os estudos antes de fazer o exame:
“ N ã o term inei. Tava m e enchendo, A escola não me dizia nada, ora.
Preferia trabalhar” . Explica que não tinha vontade de fazer corte e
costura, mas que foi influenciada pelos pais: “ Foi quando estava na
classe pré-profissional de aceleração que eu quis fazer um curso pro­
fissionalizante. Sempre gostei de datilografia ou mecânica, mas meus
país: 'N ão, costura, costura’. E eu, não era meu caso” . Trabalhou com o
faxineira e depois ficou desempregada, após um período de doença.
N o momento da entrevista, ela faz um estágio de reinserção há 5 meses:
“A go ra , estou fazendo um estágio, com reinserção. É uma recicla­
gem. A gente tem o vídeo, tem ecologia, tem expressão oral. Isto é,
esse estágio é pra ir pro M arrocos, e a gente faz esporte. À tarde, a

209
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

gente faz sempre esporte. Isto é, o que a gente quer é escalar o A tlas
do M arrocos, o m aior A tlas do Marrocos. E isso que é meu estágio".
A senhora B. é mãe solteira, e não m encionará o pai de sua filha,
que nunca a conheceu. Nasceu na França, mas sua nacionalidade
é argelina. Seu pai, chegado em 1954, h oje é aposentado, fo i o p e ­
rário em fundição. Ele nunca foi escolarizado, e não sabe 1er nem
escrever (em francês ou em árabe); fala misturando palavras fran ­
cesas e árabes. Sua mãe, na França desde a idade de 16 anos, nunca
trabalhou e é analfabeta com o o m arido ("L á , ela nunca pôde ir à
escola; seus pais não deixaram ” ). O s irmãos e irmãs da senhora B.
tiveram resultados desiguais na escola: ela tem um irm ão que co m ­
pletou o 2° grau, uma irmã que tem um C ertifica d o de A pren diza­
gem Profissional de cabeleireiro, dois outros irmãos que pararam os
estudos depois d o ginásio e um ú ltim o que está na últim a série do
2 a grau (co n ta b ilid a d e). C om preen dem os por que a senhora B.
marcou o en co n tro na escola. V iv e na casa dos pais e d ivid e um
quarto do apartam ento com a filha. Sem dúvida, a escola, mais do
que o espaço familiar, lhe possibilita falar mais livrem en te.

O caso de Souyla está longe de ser simples. M esm o a nota na ava­


liação não é das mais confiáveis n o que diz respeito a ela, na medida
em que, em três campos, não fez trabalhos por causa de faltas: c o n h e­
cim ento do código, produção de texto e resolução de problemas.
Essas ausências parecem ser o centro do problema de Souyla. N o final
do ano, o professor nos indicou que estava em 14® lugar, numa clas­
se de 24 alunos. N ã o estamos, portanto, neste caso, tratando de uma
situação catastrófica, mas de uma aluna “ bastante m édia", com o
dizem os professores, no seio de uma classe de n ível “ bastante m édio” .
Desde o m aternal, para on de entroti m u ito cedo, co m 2 anos
e 6 meses, Souyla tem uma freqü ên cia à instituição escolar m u ito
irregular, por causa, principalm ente, da saúde. O s professores dessa
época já evo ca m uma “ criança apagada e integrando-se pou co na
vida da classe por causa de suas ausências” . O professor de S ou y­
la, da 2“ série do l s grau, destaca o problem a: Souyla está “ m u i­
tíssimas vezes ausente” , "perdeu numerosas provas” ; "h á semanas

210
PERFIS OE CONFIGURAÇÕES

em que ela falta dois ou três dias” . Esse problem a e n v o lv e a c o n ­


figuração fa m ilia r e, p rin cip alm en te, o papel da a vó materna:
“ Falei com a m ãe dela, en tão ela já está sabendo. N ã o sei por que
ela está sempre ausente assim. A p a ren tem e n te, ela ficaria na casa
da avó, d eve ter muitos problem as de saúde, en fim , ou então,
basta ter qualquer coisinha, não vem . E além disso, tenho a impres­
são que é a sua a vó quem cuida dela quase sempre. A mãe não está,
e quando a mãe n ão está, se ela n ão tem vo n ta d e de vir, a a vó
parece que não diz nada. Porque a mãe dela, outro dia, me disse:
'N ã o estarei n o mês de junho, então fique atenta para que ela venha,
porque é a m inha mãe que vai cuidar dela, e, muitas vezes, se ela
n ão quer vir, ela n ão v e m ’ . Então, ela me disse: ‘Precisa telefon ar
nessa ép oca ’ . E, aparen tem ente, se S ouyla n ão pode vir, a a v ó não
diz nada, ora” . O aviso da mãe é interessante na m edida em que
deixa transparecer a diferença de percepção da im portância da esco­
la entre ela e a a vó analfabeta. Esta não tem , portanto, um papel
de socialização n u lo (m esm o que se trate de uma personagem
pouco lembrada nas entrevistas com a senhora B. e com sua filh a ),
uma vez que sua percepção da escola tem im plicações práticas c o n ­
sideráveis na frequ ên cia escolar da neta.
O professor observa, portanto, um “ trabalh o irregular” e c o n ­
tradições n o c o m p o rta m e n to de Sou yla, que ora pede exercícios
suplem entares, ora n ão faz os ex erc ícios normais: “ É uma m e n i­
na que um dia ve m m e ped ir exercícios suplem entares e, n o dia
segu inte, quando só tem um e x e rc íc io de m atem ática pra fazer,
ela n ão o faz. Então, bem, eu d igo a ela: ‘ E bobagem me pedir mais,
se v o c ê n ão faz o que eu lh e d o u ” '. A p esa r disso, m esm o que não
ju lgu e tais co m p orta m en tos m u ito sérios, o professor observa,
co m espanto, que “ ela se vira re la tiva m en te b em ” com números,
que “ n ão é de tod o catastrófica" na resolução de problemas, e que,
fin a lm en re, “ apesar de todas essas ausências, n ão é tota lm e n te
catastrófica, porqu e n ão sei co m o ela faz para se recuperar” .
Nesse aspecto, as contradições apontadas p elo professor são
com preensíveis quando se reconstitui a configuração fam iliar da
criança. A pequena Souyla v iv e co n creta m en te em relação de
interdependência co m pessoas que representam universos cultu-

211
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

rats e princípios socializadores m uito diferentes e cujas relações com


a escola são extrem am en te h eterogêneas (essencialm ente sua mãe,
os avós, um tio que está na últim a série do 2S grau e uma tia). A s
oposições entre ausência escolar e trabalho em casa, pedido de exer­
cícios suplementares e tarefas de casa irregularmente realizadas c o lo ­
cam em jo go diferenças entre membros da constelação familiar. Para
a mãe de Souyla, a escola é algo im portante, e ela gostaria que a
filha continuasse, pelo menos, até o nde fo i seu tio: “ O ra, ela os ins­
trui. E depois, na vida, falo dos que não esteve na escola... T en h o
um colega, ele não fo i na escola. Ele tava pou co se lixando. Bem,
ele não sabe 1er, n em escrever. E então, prum docu m en to, bem, ele
precisa procurar o diretor d o a loja m en to ou qualquer outro e isso
que eu fa lo que é pena. Falo, é m elh o r que a gen te tenha uma pos­
sibilidade de ir na escola, m elhor a gente ir. Por mais tarde que seja,
ela nos serve. Eu gostava que terminasse o co legia l p elo menos. E
depois, ela própria, ela diz pra ela: ‘Sim , eu v ô até onde com o meu
tio, até o fim do c o le g ia l’, ora. Ela diz isso na cabeça dela. Bem,
então eu falo: ‘Precisa estudar para chegar até lá'. E isso que eu tento
fazer ela en ten d er” .
A senhora B. conh ece relativam ente a escolaridade de sua filha,
encontra-se regu larm ente co m o professor e parece acom panhá-
la hem de perto, m esm o que fiqu em os sabendo, p ou co a pouco,
que não é ela, d e fin itiv a m e n te , quem cuida, n o mais das vezes,
das tarefas de Souyla. Ela o lh a as tarefas co m a filh a durante o
fim de sem ana (p o d e , por ex em p lo, p ed ir que ela revise as rahua-
das), ou e n tão diz à filh a para p ed ir ao professor. D urante a sem a­
na, é o rio de Souyla ( V série do 22 grau de C o n ta b ilid a d e ) quem
co rrige suas tarefas e, se erradas, faz com que ela refaça: “ D e ix o
o en cargo a meu irm ão mais n o v o , sim, co m o é mais in stru ído do
que eu, en tão d e ix o que e le se encarregue um pou co". A sen h o ­
ra B., assim c o m o Souyla, até co n ta que o tio lhe ensina divisão,
ao passo que o professor ainda n ão a abordou. E sem pre o tio que
lhe diz para reler, a fim de com p reen d er m elhor, ou que lhe dá
outros exem p los para que ela com preen da. A tia ( C A P ) ou a mãe
podem tam bém ajudá-la quando não estão trabalhando. A sen h o­
ra B. até com prou para a filh a cadernos de ex erc ícios para co m -

212
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

pensar as repetidas ausências. Espera a com panhá-la, para que ela


n ão perca pé na escola: “ E verdade que ela está sempre doen te,
mesmo. Então, eu gostaria que ela não ticasse atrasada nas aulas.
Bem, o n tem ela recuperou todas as aulas de uma semana. Bem,
eu fa lo pra ela: ‘E m elhor vo cê recuperar as aulas, pelo menos en ten ­
der, assim v o c ê será c o m o todos os outros” ’. A senhora B. cíiz que
ela está sempre “ atrás dela” (verifica n d o se fez as tarefas), mas fic a ­
mos sabendo pelo professor “que a con tece dela esquecer as tare­
fas” , N ó s, en treta n to , com preen dem os co m o Souyla consegue
“ recuperar-se” : os cadernos de ex erc ícios paradidáticos, o tio no
ú ltim o co le g ia l que ajuda em tarefas, corrige, ex p lica e até lhe
ensina coisas que ela ainda não viu na escola, o c o n tro le e a v i g i ­
lância mais ou m enos regulares da m ãe, tudo con tribu i para c o m ­
pensar, em parte, as ausências freqü entes de Souyla, que parece
v iv e r quase co m o as crianças que fazem cursos p or correspon d ên ­
cia e fora d o sistem a escolar.
A lé m do acom panham ento escolar, a mãe, assim co m o os avós,
ficam atentos às atividades e às com panhias de Souyla. N a quarta-
feira pela manhã, ela tem aula de dança, e à tarde pratica esporte
na escola. N o sábado e n o dom in go, a senhora B. passeia com ela
e deixa que ela desça para brincar fora, mas não o tem po todo, por
causa do bairro, que apresenta, segundo ela, perigos: “ A genre vê
m uito jo vem que a gente não conhece. E depois, nos m om entos que
tem essas baderna que a gente vê nos bairros, então eu prefiro e v i­
tar pras crianças, pra m inha filha e tam bém pros outros, prefiro que
subam, que ficam aqui se tem baderna. C o m o ontem , aconteceu uma
baderna no bairro” . Ela vigia sempre a filha por uma janela: “ Ela
desce, depois tem suas amiguinhas que descem, bem, é verdade que
estou na janela e n ão saio dela um m inuto, ora". O avô de Souyla
vai buscá-la na saída da escola, ao m eio-dia, c é sua mãe quem a
leva pela m anhã e va i buscá-la à tarde: “ A gente n ão deixa ela sozi­
nha nunca” . Se a mãe de Souyla se o p õe à avó em matéria de per­
cepção da im portância da escola, ela própria é perturbada por uma
contradição entre diferentes aspectos de suas experiências (presen ­
tes ou passadas) e de suas disposições sociais. D e um lado, seu per­
curso escolar infeliz, seu percurso profissional d ifícil, irregular, seus

213
s u c e s s o ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

erros de sintaxe e suas imprecisões léxicas, suas dificuldades com o


texto escrito e com um conjunto de coisas que lhe lembram, de perto
ou de longe, a escola, sua pouca prática de leitura; por outro lado,
uma boa von tade cultural recente, uma particular atenção em rela­
ção à escolaridade da filh a (e la a leva à biblioteca, com pra-lhe
cadernos de exercícios... ), suas ambições profissionais e as que pensa
para a filha, m esm o que possam mostrar-se um tanto vagas (ela gos­
taria que a filh a concluísse o 2S grau para “ser cabeleireira" ou “ pro­
fessora prim ária” ).
A senhora B. parece estar em plena fase de mutação ou de m o ti­
vação cultural, por causa do estágio que está fazendo. Expressa suas
aspirações quanto a um trabalho com o monitora, para ajudar os jovens
na rua, depois da obten ção de um B A F A '’0, e declara que, agora, a
escola lhe interessa: “O s estudos, pra mim, antes não m e dizia nada,
enquanto que agora, bem, tô fazendo uma reciclagem , e me in te­
ressa cada vez mais. E eu ac/to que tenho, parece que, o professor de
francês, ele me disse que eu a va liei [por evolu í] de verdade, com pa­
rando com o in ício que ele me viu ". Mas diz, no fin al da entrevis­
ta, que gostaria tam bém de alpinism o, mostrando o frágil realismo
de suas esperanças profissionais ( “ E verdade que o alpinism o, liem,
antes, eu n ão conh ecia, e, então, estou com eçan do a descobrir o
alpinismo. A c h o que é legal m esm o, ora. Depois, escalar uma rocha
de verdade, ver o que é, com parar com uma parede artificial, então
eu prefiro ter uma rocha de verdade. (Riso.) E, acho que é bonito,
ora, principalm en te quando a gente chega n o alto e depois olha a
paisagem. Eu acho que é legal").
Encontram os a mesma ruptura entre um “ antes” ( o estágio) e
um “ agora” referente às suas práticas de leitura. A senhora B. diz
que lê o jo rn al todos os dias, há algum tem po: “Todos os dias eu leio
agora. É, todos os dias. Antes, eu não me interessava, mas agura eu
pego todos os dias". Ela compra Le Progrès e E l Moudjahid (jorn al
argelino em francês). A primeira das coisas que declara 1er são “os
classificados" (para encontrar um trabalho mesmo durante as férias)
e as notas policiais. “ Sem pre” dá uma olhada n o horóscopo, "nunca”
a política. N o El Moudjahid, ela se interessa pelos anúncios (em rela­
ção a casas de cam po, para passar férias na A r g é lia ) e notas p o li­

214
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ciais. Tam bém lê revistas, com o M axi ou Femme Actuelle, que d en o ­


mina de “ livros” . Em geral, “ e v ita ” as páginas sobre os “ problem as”
das pessoas, mas olha principalm ente as receitas ( “E o que gosto
mais” ). Tem o programa da televisão no Le Progrès, mas diz não o
consultar, pois isso n ão lhe interessa. Essa declaração pode, entre-
tanto, estar matizada, na m edida em que talvez nada mais seja do
que o produto de um e fe ito de legitim idade que a excita, particu-
larm ente num períod o de “ reciclagem ” e de con tato com a cultura
legítim a. A senhora B. diz, com efeito, que só deixa a filha ver te le ­
visão entre 20 e 20h30, durante a série Madame est servie, ao passo
que a filh a esclarece que liga o aparelho quando tem “ vo n ta d e", e
prova, em todo o caso, que não está inventando a esse respeito, citan­
do os títulos dos programas a que assiste: os desenhos animados Club
plus, La Petite Maison clam la prairie, Flipper le dauphin, Drôles de dames,
Madame est servie e o film e das noites de terça-feira para as crian ­
ças. E acrescenta: “ Se eu quero, fico acordada" e "Q u an d o tem
coisa legal na televisão, eu vejo ". Isso, portanto, põe em dúvida uma
parcela das palavras da mãe, que, sem dúvida, são incitadas pelo dese­
jo de “ falar bem ” .
Seu interesse pela leitura de livros parece ter-se constitu ído,
recentem ente, p elo estágio de reinserção. N o m om ento, relaciona­
do ao p rojeto de alpinism o n o M arrocos, está len do um livro sobre
esse país ("B em , agora, estou debruçada sobre o M arrocos, para ver
o que é que nos espera lá. C o m o n ão con h eço o Marrocos. Então
é pra ver as tradições deles, é. E depois, de vez em quando, ele nos
explica o que eles com em e o que tem que ser respeitado, o que não
tem de ser respeitado. C o m o a gen te não con h ece a vida deles, é
diferente da nossa. E isso que estou fazendo nesse m om ento sobre
o M arrocos” ), mas ela não gosta de romances ( “N ã o me diz nada
de nada, ora, não gosto de jeito nenhum "). Ela fala do que está lendo
com seu professor de francês, com quem se encontra duas vezes por
semana e que parece ser a principal pessoa para ela nessa n ova fase
de sua vida: “ Eu, fin alm en te, fa lo sobre isso com meu professor de
francês, porque sei que ele éatencioso, ele nos escuta, nos diz: ‘Se vocês
têm algo, bem, a gente pode discutir o liv ro ’ ". Ela também usa d ic io ­
nário, sobretudo nas aulas.

215
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Se a senhora B. vai à biblioteca m unicipal co m a filha, todas as


quartas-feiras, é “sobretudo por Souyla". Pede à bibliotecária que
lhe sugira livros para a filha, e retira, assim, um livro de receitas para
crianças e livros para a escola. Tam bém com pra livros co m o pre­
sentes de N a ta l ou na época dos aniversários (u ltim am en te cin co
livros de con tos).
Segu indo os conselhos d o irm ão mais n o v o d o 3S colegial, faz
a filh a 1er uma página de livro todas as n oites e, desde a idade de
3 anos, lê para ela histórias à n oite: “ M eu irm ão me disse: ‘V ou te
dar uma fórm ula pra que a pequena guarde hem o que v o c ê lê pra
ela. E com prar um livro e 1er ele. O s contos, aos 3 anos, entram
um pouco na cabeça’. Bem, é verdade, nessa idade não é simples,
mas devagarin ho, devagarin ho, ela com eçava a entender. E agora
está en ten d en d o bem ” . A esse respeito, a filh a faz um ju lgam ento
escolar n ega tivo sobre o m o d o de 1er em voz alta da mãe, e x p li­
cando-nos que "ela lê depressa” , ao passo que ela própria lê com o
“ precisa” ser lido ( “ Eu fa ço co m o precisa 1er” ). A s mesmas c o n tra ­
dições se apresentam à senhora B., principalm ente n o leque de suas
práticas comuns de escrita: a regularidade das práticas de escrita
passadas ou recentes cam inham lado a lado co m a rejeição de cer­
tas formas d o te x to escrito, e o desejo de escrever pode, às vezes,
ser paralisado p elo m edo de co m eter erros ou a angústia de ter de
en contrar palavras...
A ajuda buscada para determ inados textos escritos é, in icial­
m ente, sinal de pouca habilidade de escrita. A senhora B. redige as
cartas às repartições com as quais tem en vo lvim en to, com seu guia
de correspondência ( “ Pego o m odelo. É, leio bem o m odelo e, depois,
escrevo m inha carta” ), e também pede ajuda ao irmão mais velh o;
o mesmo acontece com os bilhetes endereçados à escola, pois tem
dificuldades com ortografia. É tam bém o irmão quem lhe preenche
a declaração de impostos. Da mesma fonna, quando resolve caça-
palavras; não gosta, porém, de palavras cruzadas, por causa das d efi­
nições que lhe lembram suas dificuldades escolares. É nesses m om en­
tos que se percebe que a recentíssima boa vontade cultural encontra
limites nas experiências escolares infelizes: “Já as definições, não
consigo encontrar elas eu mesma. C o m o não era boa em francês, as

216
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

definições não consigo encontrar. Então tem uma palavra que não
sei o que quer dizer. Tem uma, não sei o que quer dizer, então desis­
to. Então, não consigo. A s palavras embaralhadas, é mais prático
pra m im ” . Tam bém diz nunca ter tido diário pessoal. Gostaria, mas
acha que é m uito d ifícil pôr por escrito. Tam bém foi apenas recen-
tem ente que aprendeu, n o estágio, a escrever com eçando por um
foamstormíng ( “ Então, o que eu aprendi ultim am ente é fazer um
íraím.stormmg [sic] sem m edo, e depois tudo o que sinto, tudo o que
me vem na cabeça, numa folha e, depois, trabalhar em cim a disso,
é. E isso que estou fazendo agora").
Ela não faz listas de coisas a serem feitas, não gosta de agendas,
porque diz não suportar ver as semanas passarem, não escreve ca r­
tas à fam ília ou a am igos ( “ N ã o me diz nada escrever” ), e x c e to se
os pais lhe pedem para ter notícias da fam ília na A rg élia , e “ nunca”
faz listas das coisas a serem levadas numa viagem ("T u d o de im p ro­
viso, eu im proviso n o ú ltim o m om ento. N ã o esquento a cabeça com
isso"). Tam bém não redige listas de coisas a serem ditas antes de
telefonar, e con ta que foi censurada por isso no estágio. A prepa­
ração escrita, que retira a espontaneidade do discurso, in com od a
a senhora B. Portanto, ao mesmo tempo, diz de sua dificuldade dian­
te dessa plan ificação escrita d o que vai dizer e de sua preferência
pela espontaneidade da fala, p elo senso linguístico prático: “O d ire­
tor lá on d e eu fazia meu estágio m e disse: ‘ E m elh or anotar, dizer
antes para saber o que se quer dizer a um c h e fe ’ . Mas eu im p ro v i­
so no ú ltim o instante. N ã o esquento a cabeça. N ã o gosto de a n o ­
tar toda vez e, depois, olh ar m inha lista, isso me perturba um
pouco. Eu, é verdade, eu, esses n egócio, não gosto de je ito nenhum.
Isso m e incom oda m uito. T en tei. A gente queria organizar uma v ia ­
gem para os desem pregados que recebem o R M I, então, a o rien ta ­
dora nos preparou a lista, então, c o m o era eu que telefon ava, aqu i­
lo m e in com odava m uito. Então, eu falei: T u prefiro im provisar’ .
Então, ela me falava: ‘N ã o , não, é importante saber ponto por ponto’.
Então, aquilo me in com odava, mas não era simples. Precisava eu
telefon ar uma segunda vez para tornar a me explicar co m o é p re­
ciso. Mas, depois, eu fiz sem a folha, hein?, não agüentava mais.
(R iso.) É Juro pra m im ” .

217
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Ela tam bém nunca faz anotações depois ou durante um te le fo ­


nema: “ N unca. (R iso.) N ã o , eu ten to m em orizar na m inha ca b e­
ça. Depois, m esm o que tiv e r de fazer de n o vo , de repetir duas
vezes, porque sei que tem sempre alguém d o meu lado. Bem, q u an ­
do é pra uma via gem ou qualquer coisa, tem uma pessoa do meu
lado, ela escuta. Mas, de outro jeito, não, hein Em relação às recei­
tas culinárias, arranca as que estão nas revistas e as p õe em plásti­
cos, ou num liv ro de receitas, mas n ão as copia. Tam bém tem
álbuns de fotografias, mas não escreve nada em cim a (n em datas,
nem com entários: “ N ã o , não co lo c o nada, nunca escrevo nada.
(Riso. ) Enfim, eu, acabo recon h ecen do quando ela fo i feita, a foto,
mas não diz nada pra m im marcar num álbum ” ).
Em contrapartida, a senhora B. mantém um caderno de contas,
desde que aprendeu a fazê-lo no curso de preparação ao C A P de cos­
tura ("Eu gosto bastante de fazer isso. M a rco minhas despesas no
mês. Sim , escrevo o que gasto, o que retiro, o que ganho. Eu c o m e ­
cei, bem, ensinaram pra gen te isso quando eu estava no curso C A P
de costura. Foi ali que ensinaram pra nós, e depois eu conservei isso
e acho interessante” ), escreve, às vezes, lem bretes ou deixa b ilh e­
tes aos irmãos. Tam bém escreve, “ o tem po in teiro", listas de co m ­
pras, anota coisas num calendário e tem, en fim , uma caderneta pes­
soal de endereços e de números de telefone.
A s contradições presentes no âmago da con figu ração fam iliar
e que passam pela senhora B. são visíveis tam bém em sua própria
rede de interdependência. Ela v iv e num universo de pessoas m uito
h eterogên eas d o p o n to de vista da relação co m a cultura legítim a
e a escola: os pais analfabetos e uma parte pou co escolarizada de
sua frátria se acham lado a lado co m o d iretor da escola, o profes­
sor de francês (várias vezes cita d o, e que representa um n o v o
m o d elo de id en tifica çã o p o ssível) e uma outra parte mais escola ­
rizada de sua frátria. Essas contradições en tre personagens fa m i­
liares ou extrafam iliares, en tre o passado e o presente da senhora
B., entre seus diversos com portam entos, interesses ou preferências,
são contrad ições que podem m uito bem ex p lica r os resultados
“ m édios” de Souyla, que v iv e , m uito con cretam en te, n o in terior
dessas múltiplas oposições.

218
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Podem os con clu ir dando a palavra ao professor, que, ignorando


o con ju n to das características singulares da configuração familiar,
mas m edindo os “ efeitos” através dos com portam entos c dos resul­
tados escolares de Souyla, declara: “ O problem a é, principatm en-
re, as ausências, porque renho certeza de que ela teria melhores resul­
tados se estivesse sempre presente, regularmente, e também se fizesse o
trabalho regularmente. Porque é a mesma coisa, um dia não vem e
fez as tarefas; no dia seguinte, vem e não fez as tarefas. E, humm...
m uito, muito irregular” .
Mas podem os fa cilm en te im aginar que a situação das relações
de in terdependência no seio das quais se acha inserida Souyla é
suscetível de se transformar. A mãe pode en contrar um trabalho
mais valorizador ou ver a boa vontade cultural frustrada com os resul­
tados de seu estágio ou de suas tentativas de v o lta ao em prego. O s
irmãos podem deixar o d o m ic ílio fam iliar, e Souyla se achar mais
solitária diante dos problem as escolares. A senhora B. pode insta­
lar-se num apartam ento com a filh a, e Souyla pode ser forçada a
uma m aior presença escolar, e assim por diante. Q u an do tudo (a
situação escolar positiva ou n egativa da crian ça) só se m antém por
um fio, por causa de uma ausência de investim entos culturais e e co ­
nôm icos suficientem ente fortes, recorrentes, para im pedir qualquer
a co n tecim en to perturbador, a m enor m odificação das relações de
força entre elem entos contraditórios pode se transformar em “suces­
so" ou em “ fracasso” escolares.

♦ Perfil 16: Entre inquisição e indulgência.


féamel B ., nascido em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve 4,3
na avaliação nacional.

C h egam os ao en co n tro por v o lta das 14H50, em vez de 15h. O


senhor R. abre-nos a porta, dá-nos a m ão e nos co n vid a a sentar.
Sua m ulher está lá, assim co m o Kam el, que está d o en te desde a
manhã e não fo i à escola. O senhor B. é um h om em m uito a co lh e­
dor, que fala m uito e conta inúmeras anedotas detalhadam ente. Sua
m ulher fala m enos, e freqüentem ente sua palavra é cortada pelo
m arido, quando seu discurso é um pou co longo. O sen h or e a

219
SUCESSO ESCOLAR N05 MEIOS POPULARES

senhora B. discutem m uito fa cilm en te durante toda a duração da


entrevista e não parecem incom odados nessa situação. C on servam
um forte sotaque de seu país de origem , a A rg é lia , e co m etem
numerosas incorreções sintáticas e léxicas (ela mais do que e le ),
mas, n o geral, são bastante com preensíveis.
N o fin a l da en trevista , o senhor B. se desculpa por n ão nos
ter o fe re c id o a lg o para beber, pois está fazen do o ram adã. C o n ­
clu i: “ Bem, a g e n te falam os m uito. N u m sei se tá c e rto m as...",
c nos agradece. R espon dem os que som os nós que agradecem os,
mas ele afirm a que não, “ tá c e r to ” , a en trevista lh e tez passar o
tem po, e que, depois da nossa visita, é exatam ente a hora da prece,
“ p o rta n to , está b em ” . Sua m ulher, ao fin a l da en trevis ta , fo i
para a cozinh a, e o u vim o s e sen tim os que estava preparan do a
refeiçã o . A n te s de sair, damos a m ão ao sen h or B., a K a m el e à
senhora B.
O senhor B., de 55 anos, não foi, durante m uito tem po, à e sc o ­
la: “ Eu, falando sinceramente, não fui na escola". Ficou 3 ou 4 meses
na escola d o A lc o rã o , recebeu uma paulada na cabeça e nunca mais
voltou: “ Eu não tinha chance. T in h a um mestre que era m uito ruim
na escola árabe, só sabia batê. N o p rim eiro dia que estava na
escola, fo i o p rim eiro dia que recebi uma paulada na cabeça. N u m
sei se ele que um dia m e pegou quando tava na escola e me disse:
‘Vamos lã, diga com o é que as otras crianças que tão na escola falam’ .
Eu num sei o que é que eles fala. Eu falei- ‘ N u m sei n ã o ’ . ‘V o cê
não sabe nada’ , pím ba ! { U m gesta acompanha a fa la . ) Eu fa lei bem,
então, e v i que tinh a sangue. ‘ Professo, posso i n o banhero?’ . Ele
me falô: ‘ Pode, pode, v a i’ . S aí pro banhero, fui em bora, nunca mais
v o lte i na escola. M eu pai, então, dizia o tem p o in tero: ‘V a m o, é
preciso i na escola ’ . Eu fa lei: ‘N ã o , escola n ão’ . Ele, portan to,
aprendeu apenas a 1er um pou co em árabe co m o pai e os irmãos.
O senhor B. n ão sabe 1er nem escrever em francês. Sabe apenas
escrever e 1er números.
Trabalhou nas terras do pai e guardou os carneiros e as cabras até
a idade de 17 anos. Fez o serviço m ilitar na França, por volta dos 19
anos, depois com eçou a trabalhar na França, em obras públicas, com
“ o senhor Francis Bouygues, o m elh or patrão, aqui, na França” . Está

220
PERFIS OE CONFIGURAÇÕES

inibalhando há 13 anos, numa empresa de fabricação de aquece­


dores elétricos. H o perário P l , na função de regulador. Seu pai, que
fui à escola árabe “ co m o d evia", fazia a oração para as pessoas da
aldeia e possuía terras cu ltiváveis e animais. Sabia 1er e escrever em
arabe e estava sempre com os livros: “ Pra ele, não tinha a fro n tei­
ra. Ficô o tem po intero na escola. E, lia o tem po intero os livro, assim.
Sempre com os livro. E, m ém o casado, o tem po in teiro lia eles, o
tem po in teiro, até morrê. Se eu me lem bro bem, o tem po in teiro
com seu livro (riso), olhava, ele falar cosas [coisas], expricava pra
nóis co m o a gente nasce, precisa sê am ável, não pode roubá, pre­
cisa segui o A lc o rã o , isto é, provocá as pessoa, v o c ê precisa sê amá­
vel, en fim cosas assim". A mãe do senhor B. não toi à escola e nunca
trabalhou fora.
A senhora B., 36 anos, nunca fo i à escola. C o m o sua mãe era
doen te, ela é que cuidava da casa ( “ M am ãe é doente, eu ficar na
casa, faz o serviço de casa” ) e trabalhou com máquinas de fiar a lã
entre 14 e 16 anos. V e io para a França em 1977, com a idade de
2 3-24 anos, e às vezes trabalhou com o faxineira: “Trabalho, vez ou
outra, nas casa” . Seu pai era zelador de escola, e ela nos diz que ele
sabia “ lê um p oqu in h o” . A mãe não trabalhava e não sabia 1er nem
escrever. O senhor e a senhora B. têm quatro fiihos: uma m enina
Je 12 anos e um m enin o de 10 anos que estão na 4a série, Kam el,
de 8 anos, que está na 2a série do I a grau, e uma m enin inh a de 4
anos, no maternal.
K a m el freq u en tou a escola m aternal durante 1 ano apenas
(en tro u com 4 anos e 11 meses) e é d escrito, na época, co m o uma
criança “ fechada” , “ pou co e n v o lv id a com a classe" e cuja freqüên-
cia era “ irregular” p or causa de crises de asma. O "grau de m atu­
ridade para aquisição da leitu ra " fo i ju lgado, na época, " m e d ío ­
cre” . E n tretan to, apesar de seu fraco desem pen h o na a va lia çã o
n a c io n a l da 2a série d o I a grau (n o ta 4 ,3 ), K am el nunca repetiu
de ano, é con siderado “ um aluno m uito interessado p e lo que está
fazen do” , consegue lem brar ao professor que ele não corrigiu seu
caderno, “ que tem o senso da op era çã o” , “ mostra uma certa a u to­
nom ia na vid a de rodos os dias” , “ se v ira ” e “ não tem de fa to gran­
des d eficiên cia s", m esm o que nem sem pre faça as tarefas. Ele é o

221
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

alu no que, no grupo dos que consideram os "em fracasso", pare-


ce ter p rogredid o mais.
Podem os considerar o caso de K am el relativam ente espantoso
se o compararmos a outros “ fracassos” mais significativos em que os
pais têm, entretanto, um capital escolar não n egligen ciável (C A P ,
por e x e m p lo ). E n tretanto, o capital cultural não é transm itido
m ecanicam ente. A possibilidade de sua transmissão tem condições
sociais (relacionais). Mas exam inem os os problemas pela ordem. Por
que Kam el está com dificuldades? P o rq u e ele, com um capital cul­
tural fam iliar no grau zero, tem menos dificuldades que outras crian ­
ças oriundas de m eios mais hem-dotados?
O “ fracasso” rela tivo de Kam el é com preensível se considerar­
mos o conju n to do capital cultural fam iliar à sua disposição. In i­
cialm ente, tem pais que falam um francês m uito aproxim ativo e que
não o põem em contato com uma cultura comum da escrita. O senhor
e a senhora B. não sabem 1er e quase não possuem nenhum livro.
N ã o têm o A lcorão, mas conhecem preces “de cabeça” : "Assim , com o
a gen te diz: ‘A , B, C , D ’ . Assim , de cabeça” . N ã o com pram livros
para os filhos ( “ A h não, não vou m enti. N ã o , acho que não co m ­
prei, hein, Kam el?” ), exceto quando eles lhes pedem (caso dc um
liv ro de cá lcu lo). A leitura está tão lon ge de suas preocupações
comuns que, quando perguntamos ao senhor B. qual de seus filhos
lê mais, ele responde: “ A h , isso a gente n ão presto atenção” . K am el
declara que gosta de 1er "m éd io" e não hesita em dizer que prefere
ver televisão a 1er. Se tom a emprestadas histórias em quadrinhos
na biblioteca da escola (A s té rix eO b é lix , Lucky L u k e ...), não conta
para ninguém em casa.
Q u a n to à escrita, o senhor e a senhora B. se viram com a ajuda
de uma rede de vizin h os conh ecidos. Q u a n d o há cartas um pou co
com plicadas de escrever ou formulários de impostos a serem preen ­
chidos, “ a gen te pede a vizin h os” , a "ch efes” n o trabalho, que são
“ m u ito am áveis” , ou e n tão aos filh os (essen cialm en te a filh a mais
velh a ). O s bilhetes destinados à escola são redigidos pela filha mais
velh a ( “ Ela é m e io in te lig e n te ” ), assim co m o as guias m édicas e
as ordens de pagam ento que têm de ser preenchidas. E sempre ela
quem anota coisas num calendário árabe, a pedido da mãe: “ Porque

222
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

as m ulher, não é co m o a gen te, tem cosas pra anotá ali (ris o )". O
senhor B. tem um talão de cheques, mas pede aos caixas que
preencham seus cheques. E ntretanto, cuida das contas fam iliares
e consegue calcular “de cabeça” muito bem: “Tudo coa m inha cabe­
ça, tudo, mesmo, não sei lê nada de nada, mas sei quanto eu d ev o
e quando sobra, sei mais ou menos. A gente não tem din hero, dá
exa to, ten h o m inhas d ívid a . A n te s de recebê o pagam ento, o
d in h ero das criança, paga isso, paga a q u ilo e o resto, não sei quan­
to sobra. V ô fazer as com pra. A s coisa, a gen te não pode com pra
tod o mês, h e in íT e m v eiz que eu com pro. Das veiz, falta um poqui-
nho, das veiz sobra um p oqu in h o. Pergu n to n o banco quanto ficô.
C o m o ten h o m inha casa, é lá que paga, o apartam ento com prei
a prazo, en tão sô obrigad o a pergunta q u an to eles cobraro d o apar­
tam en to, algumas prestação tam bém . Fica quanto, fic a isso, e
quanto fica eu anoto, V ix e , os núm ero, sim, sim, eu sei, eu sei cal-
culá, quanto e tu do". Q u a n to aos núm eros de telefo n e, o senhor
B. diz que tem alguns marcados numa caderneta, “ ou então, minha
filha vai procura no livro [a lista]. A c h a logo de cara". Mas a senho­
ra B. sabe aproxim adam en te cerca de v in te núm eros de telefo n e
de cor. Q u an to às compras, o senhor e a senhora B. não têm lis­
tas de compras: “ D e cabeça, assim. Das veiz, a gen te acaba esque­
cen d o alguma cosa” .
O senhor e a senhora B. têm um co n h ecim en to apenas m uito
vago da escola. O senhor B. não consegue citar as classes nas quais
seus filhos estão escolarizados, e é Kam el quem responde em seu lugar.
A s dificuldades de K am el não são, de fato, percebidas, por ainda
não ter sido reprovado e por estar em séries iniciais: “ Isto é, ele, não
sei ainda, porque ainda não tá na secundário. N o m om ento, tá
indo bem ele. T á bem na escola. N ã o é com o seus irmão. Seus irmão
com eça a caí. Ele, aré agora, sempre ele me trait o boletim , ele tá
con ten te e tudo: ‘O lh a , papai, 9, 10, 9, 8, droga’. Pra ele, vai bem.
Os problem a pra mim , pra mim, é a m enin a” . O senhor B. parece
representar as dificuldades escolares co m o dificuldades crescentes,
à medida que as crianças crescem. E evid en te que os pais não podem
ajudar Kam el em suas tarefas, e ele fica nos horários de estudo livre:
“ E é lá que ele faiz a tarefa. E m elhor pra eles, porque eu, se tem

223
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARE5

alguma cosa que n ão entendo, eles pode perguntá pra professora. E


aqui, o que é que e le pergunta? Papai n ão salie nada. A ssim é
m elhor". A irmã ou o irm ão que estão na quarta série é que o aju­
dam em suas tarefas e verificam se ele as fez.
A lé m do mais, Kam el fica entre o pai, que ocupa o p ó lo da indul­
gência, e a mãe, que, não aprovando o laxism o do m arido, d etém
o p ó lo inquisitorial em todos os campos, mas prin cip alm en te nos
do trabalho escolar e das regras fam iliares. O pai tem ten dên cia
a não puni-lo quando tem notas baixas (am eaça-o, apenas se repe­
tir, de trancá-lo no porão, e lh e prom ete, se passar, com prar-lhe
“ alguma cosa que gosta m u ito "), pois, não sabendo 1er n em escre­
ver, não se sente legitim a d o a fo rçá -lo a 1er: “ Eu, é por isso que eu
n ão v ig io m uito eles. Porque n ão sei lê. O que é que vo cêis qu e­
rem que eu digo, heín? Se eu, se eu dizê pra ele isso ou aquilo, ele
m e diz: ‘O c ê num sabe lê ’ ” . Ele só pergunta raram ente sobre as
tarefas ( “ Eu não pergunto m uito n ã o "), e n ão o obriga a fazê-las
durante as férias ( “ A h , não! N u n ca! N e m ele, nem seus irmão. Ele
fala: ‘T o de férias” ’ ), ao passo que sua m ulher está sempre atrás
de K am el a esse respeito. Tam bém a propósito da televisão, o
senhor e a senhora B. rêm atitudes diferentes. A senhora B. acha
que “ é m elhor a escola ” do que a televisão. Seu m arido diz: “ A h ,
sim, eles v ê televisão , o tem po in tero! O tem p o in tero assim, ela
fala pra eles: ‘ Prã ca m a !’ . Eu falo: ‘N ã o , deixa, deixa, deixa eles
v ê ’ . Eu é que tô errado, eu sei” .
O senhor B. se mostra mais com o uma espécie de “ supervisor”
em relação aos resultados escolares: é ele quem assina o boletim de
notas e é a senhora B. que tem a responsabilidade da exigên cia c o t i­
diana de vigilân cia, a fim de construir uma certa disciplina fam i­
liar (principalm en re em relação ao universo escolar). Ela se en car­
rega de con trolar as horas de dormir, as tarefas, as refeições, com
rigor: "Eu, o tem po intero, o tem po intero, é a bagunça. Ele nada,
vê televisão, a luta de boxe, o futebol, tudo isso e le ” . O senhor B.
parece ter confiança na ação da mulher: “ E por isso que eu não esquen­
to a cabeça, porque tô ven do o que que ela tá fazendo. (Riso. ) E por
isso que eu fato que num fico atráis deles, por causa que é ela. Ela
fala tudo, e eu falo pra ela: ‘V o cê é verdadeiro um fiscal!’ ". A senho­

224
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ra B. recon h ece facilm en te que as crianças preferem a atitude do


pai: “ A s criança, eles gostam dele, não de mim. Eles gostam dele,
hein?, por causa que ele não bate nelas, é isso", tem , portanto, um
papel d ifícil de desempenhar. A s vezes, acon tece de ela até ter de
recorrer à força para fazer ou vir seu “ p o n to de vista” : “ A cinta, a
cinta. Ela bate, bate, bate". K am el, portanto, v iv e entre esses dois
pólos, e não encontra n o com portam ento paterno o m eio de “ se ape­
gar” ao trabalho escolar que, dados os investim entos familiares,
não é nada natural para ele.
Mas a situação não é simples. In icialm ente, o senhor B. é anal­
fabeto, mas não com plexado por sê-lo. Os filhos desempenham, dian­
te dos pais, papéis de interm ediários culturais. O s pais legitim am ,
assim, seus conhecimentos escolares. Por exemplo, o senhor e a senho­
ra B. recebem uma program ação de televisão, mas são as crianças
que a consultam e lhes indicam os programas: “ Pra vê o que é que
tem, é obrigado, é as criança. Porque eles é que sabe lê, é eles que
fala: ‘Papai, tem um bom film e assim, ou um film e que num é bom ’ ” .
Tam bém não sentem nenhuma vergonh a em pedir à filh a mais
velh a para ajudá-los com alguns dos docum entos, e consideram , ao
contrário, que isso é um sinal de "in telig ên cia ". Da mesma forma,
durante a entrevista, a ajuda de Kam el é solicitada pelos pais para
1er o títu lo dos livros que estavam na sala de jantar: “ A gen te tem
um, cê vai buscá ele, Kam el?"; “O que é isso, K am el, o que que tem
aí dentro?"; “ Vai buscá o tro lá atrás na esquerda” . Assim , existe, no
seio dessa configuração familiar, um lugar leg ítim o para escolares.
E isso não é nada. N a impossibilidade de ajudar os filhos, esses pais
sem capital cultural tam bém não têm tendência a transmitir-lhes
uma relação dolorosa com a escola e a escrita.
Em segundo lugar, a mãe é analfabeta, mas frustrada por não ter
podido ir à escola ( “ E pena, é pena quanto à escola” ), o que a teria
levado, pensa ela, a não ficar reduzida a cuidar da casa: “ T á ven d o
eu, sem 1er, casa, sempre casa na vida. Precisa não sê com o eu, pre­
cisa lê” , repete ela para o filh o. A lé m disso, ela tem exem plos fa m i­
liares de possíveis escolares e profissionais que estão relacionados
a situações de grande co n trole das crianças. C o m efeito , tem em
m ente o “ sucesso” de primos ou de seu irmão ( “ Ler, ele é bom nisso.

225
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

N ã o é com o e u ") que galgaram as escalas da hierarquia social por


causa do in vestim ento escolar sign ificativo (seu irmão com pletou
o 2y grau, e alguns dos primos são médicos, dentistas ou en gen h ei­
ros). Cuida, portanto, contin u am en te, das horas de dormir, das
tarefas, das saídas da escola, da televisão, das horas das refeições:
“ Ela v ê isso [o “ ê x ito " dos primos da m ulher], ela esquenta a cabe-
ça, ‘ Por que não meus filhos?’ . Então, com eça a bater quando eles
se faz de idiota” , resume o pai.
Mas apenas ela está em pregando, co m pulso, uma co n cep çã o
moral, cen tral na en trevista, que o m arido d ivid e co m ela: é pre­
ciso agir corretam en te, obedecer, não fazer bobagens, não roubar,
não insultar, n ão ferir51... A escola, en tre outros, faz parre dos
locais on de é preciso com portar-se bem ; o in vestim e n to ou a
“ m o b iliza çã o" fam iliar não são, estritam ente, de ordem ped agó­
gica ou escolar, mas moral. Por ex em p lo, o pai conta, n o d e c o r­
rer de um lo n g o relato, co m o brigou co m uma caixa de loja que
não queria acreditar que lhe tinha d e v o lv id o d in h e iro dem ais, c
faz questão, co m esse relato, de provar-nos a hon estidade que
em prega na vid a cotidian a. Ele tam bém diz ter fica d o desgostoso
e afirm a ter tid o vergo n h a ao fica r sabendo que um professor fo i
espancado por um árabe, numa festa da escola: “ N u n ca vi isso! É
uma vergo n h a ! Bater num mestre que ensina as crianças na esco­
la, isso n ão existe aqui em casa. Isso, com os árabes, isso n ão exis­
te. A h , juro que não existe! Bater num, olh a eu, a prova, eu já
disse pra voceis, que ele me abriu a cabeça e que que meu pai fez,
ele me falô: ‘ Bem fe ito pra v o c ê '. C o m a gente, n orm alm en te, a
gente não dá queixa na p olícia quando um mestre bate num m e n i­
no, não, isso n ão existe! Q u an do me co n ta ro isso, eu fiqu ei loco,
tinh a vergon h a, eu até nem mais queria i na escola. Foi m inha
m ulher quem me empurro. N ã o precisa dizê bestera, é. Eles nos
dão a escola e tudo pra fazer meus filh o in teligen te, e tudo, e batem
na gente, isso nunca. U m mestre, a gen te num bate num mestre,
não existe batê num mestre, o h U ” . O senhor B. insiste, en fim , nas
amizades dos filh os: co n h ece os am igos co m quem K am el brinca
na rua, e sabe que os pais dessas crianças as “ educam b em ” , senão
não o deixaria brincar com elas.

226
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

A lé m do mais, K am el, e é o próprio pai que o diz ( “ Ele é menos


d ifícil que os irmão, porque os irm ão já passô por isso. Ele, se tem
um problema, pergunta pros irmão, mais o problem a é a m enina,
porque é ela que é a mais grande. Se ela pergunta alguma cosa, ela
vai pergunta pra quem? Eu num sei lê, a mãe num sabe lê, é o b ri­
gada a ir nos vizin h o pra pedi pras meninas mais grande” ), não está
na situação de sua irmã mais velha, que não tinha ninguém para
ajudá-la nos afazeres escolares. C o m o irm ão e a irmã escolarizados
na 4a série, ele tem, de qualquer form a, próximas a ele, duas pes­
soas capazes de dialogar com ele sobre problemas escolares. Essa é
uma razão suplementar que possibilita com preender o fato de que
K am el esteja em “ fracasso” , mas não mais d o que outras crianças
que pertencem a meios sociais o b jetiva m en te mais bem dotados.

♦ Perfil !7: Uma relação de força cultural.


Yassine M ., nascido cm Bron, sem nenhuma repetência escolar, obteve
7 na avaliação nacional.

N o dia do en contro, são as irmãs mais velhas de Yassine que nos


abrem a porta. A mãe estava fazendo bolachas com outras m ulhe­
res e pára para nos v ir cumprimentar. V en do que vamos gravar, as
duas irmãs decidem fazer a entrevista em seu quarto, para evita r o
barulho das panelas e da televisão. A prima delas as acompanha.
N o quarto, há duas camas e uma pequena escrivaninha, uma estan­
te co m fitas-cassetes, cerca de trinta livros de bolso e uma coleção
com p leta de "T o u t l’U n iv ers” , que, visivelm en te, fo i m uito usada
e foi comprada para ajudar as crianças em sua escolaridade.
N o in ício da entrevista, a mãe nos traz café e bolachas que está
assando. A s meninas não com em porque estão fazendo o ramadã. A
senhora M . voltará para oferecer mais café, e iremos embora com
um saco cheio de bolachas. Em alguns desses momentos, nós lhe fare­
mos perguntas, que ela responderá, metade em dialeto cabila (tra­
duzido pelas filhas), metade em francês. O pai está presente n o apar­
tamento durante a entrevista, mas está em seu quarto dormindo. Assim
mesmo, a mãe irá ao quarto pedir-lhe uma informação, apesar de nos­
sas diversas tentativas de lhe dizer para não incom odá-lo.

227
SUCESSO ESCOLAR N05 MEIOS POPULARES

São, portanto, as duas irmãs que respondem às nossas pergun-


tas. Falaremos delas dizendo “ prim eira irmã” e “ segunda irmã” . A
primeira tem 16 anos, nunca repetiu e está na 2a série d o 2° grau
(co n ta b ilid a d e). A segunda tem 18 anos, repetiu a 3a série do 1“
grau, tirou um diplom a nacional de salvam ento, está se preparan­
d o n ovam ente para poder conseguir o C e rtifica d o de C onclusão do
Curso de l 9 Grau Profissionalizante de Secretariado, pois foi repro­
vada no ano anterior e gostaria, eventu alm en te, de se tornar en fer­
meira de am bulância ou en tão conseguir obter o D iplom a T é c n i­
co Profissional de 1° G rau de Secretariado.
O senhor M ., na casa dos 50, é operário qualificado, eletricista
da C om pan h ia de Eletricidade de Lyon. C h egou à França em 1962
e, na A rgélia, tinha ido à escola até a 5a série. Lê e escreve em fran­
cês e fala francês com os filhos, com uma pronúncia nem sempre muito
“correta” ( “Q uando ele fala francês, tem vezes, ele deforma palavras” ).
Seu pai trabalhou na França co m o operário, e a mãe ficava em casa.
A senhora M ., de 45 anos aproxim adam ente, não trabalha. Nunca
fo i à escola, é analfabeta, tala francês co m muita dificuldade ( “ Ela
entende razoavelm ente bem, mas tem dificuldade pra expressar-se” )
e fala d ialeto cabila com os filhos. C h egou à França com eles, há 17
anos. Seu pai era servente de pedreiro, tinha ido à escola e sabia 1er
e escrever em francês. A mãe não trabalhava e era analfabeta. A fam í­
lia M . é com posta de sete filhos, que viv e m todos no mesmo apar­
tamento: o mais velh o, um rapaz de 23 anos, que chegou à França
com a idade de 6 anos, teve uma escolaridade d ifícil (realizada prin­
cipalm ente em classe pré-profissionalizante de aceleração: “ M eu
irmão mais velho, que tem 23 anos, bem, quando ele chegou na França,
ele tinha 6 ou 7 anos, e não sabia falar nada de francês, portanto tinha
dificuldades de se adaptar” .) e está trabalhando com o temporário ( “ Ele
volta pra casa, com e e, depois, volta a sair, e, depois, a gente não
sabe o que ele faz” ); a “ segunda irm ã"; “ a primeira irmã” (da qual a
“ segunda irmã” diz: “ Em casa, era a caxias. (R iso.) M e lem bro que,
n o I e colegial, ela estudava até m eia-noite, 1 hora, e ficava cansa­
da, ora” .); uma garota de 15 anos, na 8a série (série que está “ repe­
tindo” ), e que fez duas vezes a pré-escola; uma garota de 14 anos,
que está repetin d o a 6a série ( “prim eira irm ã” : “ Ela não estuda

228
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

m uito” ; “ segunda irmã” : “ Ela não se interessa pelas atilas. A gente


não sabe com o fazer co m ela. N ã o sei se é o período de adolescên­
c ia ".); um m enino de 8 anos, Yassine, e, enfim , um ú ltim o m enin o
de 7 anos que está na I a série do 1B grau ( “ Precisa ajudar e le ").
Yassine, que, é im portante dizê-lo, freqüentou a escola m ater­
nal bastante p recocem ente (2 a n o se 7 meses), de maneira regular,
é, segundo sua professora, um aluno “ perfeitam en te integrado no
sistema escolar", “ m u ito sério” , “con cen trad o” , “ m u ito estudioso",
“ m u ito aten to", que “ procura saber” , “ quer tudo", tem “sede de
aprender” e não tem “ grandes pontos fracos” , à exceção de sua
“ base linguística” , qualificada de “frágil” . Segundo ela, “ na base, deve
ser sólido, d eve h aver uma boa estrutura fam iliar". Entretanto, não
é tão simples assim. Yassine é cercado por uma constelação de pes­
soas m u ito diferentes d o ponto de vista dos percursos escolares. A
configuração fam iliar na qual v iv e não é absolutam ente coerente,
hom ogênea culturalm ente. Estamos diante de um caso típ ico em
que é d ifícil falar de uma conform ação exterior fam iliar coerente,
produtora de disposições gerais inteiram ente orientadas pelos mes­
mos princípios de direção. Yassine vive, concretam ente, no seio de
um espaço de socialização familiar com características variadas e e x i­
gências variáveis, on de exem plos e contra-exem plos estão lado a
lado, onde princípios de socialização contraditórios se entrecm zam .
Por um lado; uma mãe analfabeta, que fala francês com dificu l­
dade e se dirige aos filhos, no mais das vezes, em dialeto cabila, um
pai que não lê quase nada (salvo a correspondência e a program a­
ção da televisão ), um irmão mais v e lh o que teve grandes proble­
mas escolares e tem muitas dificuldades com a língua escrita ainda
h oje ("E le não sabem escrever bem, hein? Enfim, sabe escrever, mas
tem palavra que ele m o d ifica ” ), uma irmã na 6a série, que parece
não apreciar a escola, uma irmã que está fazendo de n o v o o últim o
ano para conseguir o C ertifica d o Profissionalizante de I e Grau,
irmãos e irmãs que, freqüentem ente, repetiram de ano e que, no todo,
não são leitores particularm ente assíduos ou apaixonados ( “ A gente
n ão lê m uito” ), além das obrigações escolares (a “segunda irmã” aré
diz que tem “ h orror" de 1er). Por outro: exem plos, todavia, de aces­
so ao ginásio ou ao co légio , um pai que é operário qu alificado

229
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

(m esm o que seja do prim eiro n ível da hierarquia: P I ), que foi à esco­
la até a 5a e cuida de todos os docum entos familiares, e uma irmã
de 16 anos (a “ cabeça” da fa m ília ) que lê um pouco mais do que o
resto dos filhos (m ais livros de “ aventuras", tais co m o Jamais sans
ma fille, de Betty M a h m o o d y ).
Yassine tem, portanto, o exem p lo de um pai escriba, absoluta­
m ente autônom o. E xceto os bilhetes referentes à escola que as duas
irmãs redigem , na medida em que são elas que cuidam da escolari­
dade de Yassine, e que ele se contenta em assinar, o pai escreve “sozi­
n h o ” as cartas às repartições, preenche o form ulário de impostos e
os cheques da fam ília, m antém as contas por escrito, deixa, às vezes,
um bilh ete aos filhos quando sai com a mulher, classifica as fo to ­
grafias nos álbuns ("E le gosta bastante de classificar” ) e organiza de
maneira bastante precisa os docum entos ( “ Ele tem uma pasta só pra
isso. Tem repartições onde faz a separação. E tod o mês, ou a cada
dois meses, faz uma separação” ). A s filhas insistem particularm en­
te no caráter ordenado de um pai que não gosta que se deixem desor­
ganizados os docum entos. “ Segunda irmã” : “ N ã o , todas as notas do
carro e tudo, elas são arrumadas em ordem , é classificado. M eu pai
é bem rigoroso na classificação. Ele gosta mesmo que tudo que é de
carro, de um lado; m édico, de outro. Precisa tá bem arrumado, é pre­
ciso não desarrumar, precisa deixar e le sossegado. G osta m uito que
nós, a gente não tire. Enfim, a gente classifica tam bém , ele gosta
muito disso” ; "primeira irmã” : “ A h , sim, ele classifica. Ele gosta muito
de classificar. E bem arrumado. Ele não é severo, mas é severo
para... Ele gosta que esteja bem separado, bem arrumado para um
dia que a gen te tem de procurar alguma coisa, a gen te ache logo,
não tem que desembalar tudo".
Mas, se Yassine tem diante dos olhos o m odelo de um pai escri­
ba, v ive , entretanto, numa oposição de com portam ento entre o pai
e a irmã de 16 anos: o pai não pune os filhos por causa de maus resul­
tados escolares ( “ Ele não gosta m uito de berrar com eles sobre isso.
São os dois qu eridin h os"), tratando os dois filhos mais n ovos com
indulgência, ao passo que a irmã “ berra” com eles, com o diz ( “ Bem,
eu, pessoalmente, eu berro” ), e acha que, embora Yassine renha "faci­
lidades” , que “ na I a série d o 1Ggrau e na pré-escola fosse o prim ei-

230
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ru du classe" e “ vá indo pra m elh or” , de qualquer form a, é preciso


"ficar atrás dele” (parece ter o sentim ento ín tim o d o esforço a ser
feito para conseguir m anter a vantagem escolar durante muitos
anos); o pai deixa o filh o v e r televisão à n oite, ao passo que a irmã
o obriga a ir deitar-se ( “ A s vezes, a gente obriga eles, mas porque
meus pais mimaram m uito eles. Eram os ú ltim os"), porque tem aula
n o dia seguinte (a relação de força é, neste caso, mais a fa vo r do
pai: “ A h , deixa eles, deixa eles, mais cin co minutos, dez minutos,
deixa eles, são pequeno ainda". “ Mas a gente os obriga, grita: ‘ É, ama­
nhã v o c ê tem aula, com eça às 8 e meia, já devia estar na cam a’.
Depois, ele não nos escuta, ora, visto que nossos, seu pai...” ); o pai
não se preocupa com a escolaridade de Yassine ( “ primeira irmã” :
“ De jeito nenhum, até poderia dizer"), mas antes tem vontade de brin­
car com ele, ao passo que a irmã se preocupa ( “ Só eu que o lh o ” , co n ­
trola as tarefas.) ( “Todas as noites verifico o que ele faz” ), ajuda-o,
dá-lhe explicações, manda-o refazer ( “ E preciso forçar ele o tem po
inteiro. O tem po inteiro é assim” ), fá-lo falar em voz alta as lições ou
recitar suas poesias ( “ Porque ele, às vezes, esquece a lição, o tempo
inteiro mandamos ele repetir em voz alta as lições, mas, bem, se for
uma poesia, bem, ele aprendeu ela, m uito bem, mas se ele não acer-
ra a entonação, eu ex p lico pra ele com o é. Sem pre que tem um
ponto, precisa abaixar o tom . Explico tudo isso pra ele. Depois, quan­
do ele sabe mais ou menos, deu entonação, bem, está b o m "), fá-lo
1er e verifica se entendeu81, não acredita piam ente nas palavras do
irmão quando lhe diz que acabou as tarefas no horário de estudo livre
( “Sem pre fica faltando alguma coisa. Sempre fica, mas ele m ente, diz
que acabou. E eu sei m uito hem que ele não terminou, portanto o b ri­
go ele a deixar eu ver o que ele fez” ) e fá-lo voltar para casa para mandá-
lo fazer as tarefas — “ primeira irmã” : “ Sempre, eu berro com ele por
causa disso...” 84.
Sabem os que o pai não fo i sempre tão fle x ív e l co m todos os
seus filh os. A s irmãs eram m uito mais acom panhadas, co n tro la ­
das por ele, inclusive em relação a questões de escolaridade; a
“ segunda irm ã” lem bra o trabalho que ele a m andava fazer: “ Eu,
ele me fazia de verdade estudar. E, eram m u ltiplicações, divisões.
G rita v a por causa disso...” .

231
SUCESSO ESCOLAS NOS MEIOS POPULARES

A s irmãs explicam essa transformação pelo fato de que Yassine


é considerado, junto co m seu irm ão menor, co m o o “ qu eridin h o” ,
o caçula. Podem os pensar que o fato de que seja um garoto c o n tri­
bui muito para a relação que o pai m antém com ele. O senhor M.
parece ter um carinho especial por Yassine e seu filh o caçula, brin­
cando com eles, indo ao parque com eles n o verão, levando-os para
com er salgadinhos na beira do lago... C o m isso, o pai não exige dele
o que exigia das filhas, principalm ente em matéria de organização
ou classificação. Yassine não “ faz nada” em casa, não arruma nada,
ao contrário, deixaria suas coisas espalhadas ( “A o contrário, ele deixa
tudo espalhado p elo ch ão” ), ao passo que as irmãs participam regu­
larm ente do trabalho dom éstico, desde a idade de 12 anos, aproxi­
madam ente. O pai, que gosta bastante, com o sabemos, de que seus
docum entos estejam bem separados e de que suas filhas façam o
mesmo, não ex ige canto rigor do filh o, que, com isso, não conse­
gue beneficiar-se de uma qualidade escolar a mais (o rigor, a ordem ).
Yassine está, portanto, colocado diante de um am plo leque de p o ­
sições, de preferências e de com portam entos possíveis no conjunto
dos membros de sua constelação familiar. Mas, principalm ente, nos
matizes das experiências escolares de seus irmãos e irmãs, na relação
cultural de forças que perpassa pela família, e!e se beneficia muito,
entretanto, da presença de um capital escolar e, sobretudo, de uma
vigilância enérgica, escolarmente orientada, da parte de uma irmã de
16 anos, considerada “ a cabeça” da fam ília"1. Yassine parece, por
exem plo, ter uma preferência pela leitura, graças à ação socializado-
ra da irmã: “ Yassine, ele gosta bastante de 1er, Yassine. O tem po intei­
ro na biblioteca, gosta bastante de trazer livros e 1er eles"’*". Podem os
dizer que suas qualidades — percebidas em n ível escolar — de serie­
dade, de atenção, de concentração, de curiosidade dependem de uma
situação familiar estável, voltada para o "ê x ito ” social (mais ampla­
m ente do que escolar) dos filhos, mas, principalm ente, d o papel da
irmã que se atribui a missão de estar atenta às condições de uma boa
escolaridade para os irmãos, persuadida que está da importância da
escola ( “ E por isso que fazemos eles darem duro"), “ para encontrar tra­
balho", “ para o futuro principalm ente” , mas também “para aprender
alguma coisa, para ter conhecim entos” : “ E bom saber coisas” '7.

m
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

A criança no centro da família

Sc pudermos sonhur, 6 para o futuro. Para esse


futuro hoje já presente: a criança"*.

C on hecem os, a partir dos estudos de Ph ilip p e A riès, o im por­


tante papel desem penhado pela escola na in ven ção social da “ infân­
cia ” , d o “sen tim en to da infância” .
Agrupan do juntos indivíduos segundo sua idade biológica, m an­
tendo, durante m uito tem po, os alunos excluídos das atividades dos
adultos, numa situação de imaturidade social, de irresponsabilida­
de provisória, da mesma form a que adaptando os conh ecim en tos e
as maneiras de ensinar conform e a idade (o próprio princípio da peda­
go gia ), a escola participou da construção da infância co m o c a tego ­
ria social de percepção e organização. C o m a educação escolar, “ a
fam ília com eça [...] a organizar-se em torno da criança, a atribuir-lhe
uma im portância tal que ela sai de seu antigo an on im ato” *. Entre­
tanto, a desigualdade em matéria da duração do tempo de frequência
à escola, conform e o m eio social de origem , explica que “ o senti­
m ento de uma in fância curta perm aneceu ainda m uito tem po nas
classes populares"1*5.
N ã o é, portanto, espantoso que a escolaridade obrigatória e o
alongam ento progressivo da duração da escolaridade tenham acar­
retado transformações nas famílias populares.
A vontade parental de preservar os filhos e de fazer com que a tin ­
jam aquilo que não se pôde conseguir se traduz, às vezes, por uma
verdadeira doação de st, um sacrifício de si mesmo em b en efício dos
filhos, isto é, d o futuro (cf. o Perfil 25). O sacrifício é, inicialm ente
e antes de tudo, financeiro. Priva-se a si mesmo para comprar para
os filhos tudo aquilo de que têm necessidade (para a escola ou para
seu con forto pessoal). Recusa-se que eles sofram as conseqiiências
de uma situação econ ôm ica d ifícil ou modesta, e faz-se de tudo para
colocá-los em posição de privilegiados. Algumas crianças vivem , assim,
graças à ação voluntarista de seus pais, co m o pequenos-burgueses ou
burgueses n o seio de m eios populares.
O mundo da criança se torna co m o que uma pequena ilha de
riqueza e de luxo n o seio de um universo na verdade pobre, e a crian­

233
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ça-rei se tom a, então, objeto de um verdadeiro culto familiar. O sacri­


fício é, evidentem ente, também uma doação parental de tempo co n ­
sagrado ao au xílio escolar da criança.
Mas, reverso da medalha do sacrifício parental, mimadas, papari­
cadas, as crianças, viven d o em tais universos, podem, apesar de tudo,
experimentar algumas dificuldades escolares, mostrando-se escolannen-
te com o muito "nenens", muito voluntariosas, muito desprovidas de
senso de responsabilidade. Da mesma forma, paradoxalmente, os pais
protetores podem acabar, por causa de seu elevado investim ento na
criança, percebendo a escola com o uma rival educativa.
Essa reação é o sinal de uma vontade parental de co n trole da
socialização dos filhos e de uma resistência o b jetiva em relação a
qualquer ação das instituições legítimas de socialização sobre estas''1.
Em tod o o caso, estes perfis mostram a que p o n to os “ sucessos” em
meios populares nunca são simples.

♦ Perfil 18: Utna situação com dupla face.


Mtdteí B., nascido em Lyon, sem nen/iuma repetência escolar, obteve
6,3 na avaliação nacional.

Chegam os um pouco adiantados ao en contro. U m hom em vem


abrir a porta para nós, é o senhor B. (que chamaremos “ seu mari­
do” , falando com a senhora B.: na realidade, eles vive m m aritalm en­
te ). A entrevista com portará três mom entos: prim eiro, com eçam os
com o casal, depois o senhor B. sai para buscar M ich el, que estava
viajando o dia in teiro com a escola, e continuam os com a senhora
B., e, en fim , term inam os a en trevista n o va m en te com o casal.
Durante tod o o tem po da entrevista, a televisão permanece ligada.
Q uando lhes dizemos que estamos gravando, o senhor B. nos diz que
vai abaixar o som. D e vez em quando, dão uma olhada na imagem,
sem deixar de nos dar atenção.
A mãe de M ich el, 48 anos, fo i à escola até a idade de 14 anos,
depois trabalhou numa fábrica de bonés até seu casamento. N ã o obte­
v e o certificado de conclusão de curso, pois faltou m uito: “ N unca
consegui ele, porque m inha mãe não me m andava sempre pra esco­
la para ficar tom ando conta de meus irmãos m enores ou qualquer

234
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

coisa assim” . A tualm ente, está recebendo o salário do seguro-desem-


prego. Durante seu casam ento teve seis filh os (o mais v e lh o tem 28
anos), dos quais M ich el é o último. Seus filhos estudaram muito pouco
( “ Eles não continuaro, num tivero nada, n ad a"): apenas uma c o n ­
seguiu um C A P (d e cabeleireira). Todos ocupam posições profis­
sionais pouco elevadas ou precárias (prendas domésticas, para as
mulheres; pequenos em pregados, m úsico de b a ile.,,). O pai da
senhora B., fabricante de bonés, tinha freqüentado a escola prim á­
ria. N ã o o conh eceu m uito, pois ele morreu quando ela ainda era
m uito nova. Sua mãe, sem em prego assalariado até a m orte do
marido, trabalhou em seguida co m o fabricante de bonés. Foi à esco­
la primária.
O senhor B., de 34 anos, foi escolarizado em colégio de freiras
até a 6a série. Fez a escola de jóquei, se formou e depois fez um C A P A 1'2.
Foi jóqu ei profissional, mas, depois de um acidente, com eçou a tra­
balhar com o enfenneiro, depois com o coordenador de estágios duran­
te 10 anos (conseguiu o diplom a de habilitação para as funções de
coordenador) e principalm ente co m o diretor de colôn ia de férias:
"Fui coordenador de estágio, diretor, copeiro, fiz de tudo” . R ecen ­
tem ente, fez estágios na A N P E (A g ê n c ia N a cio n a l para Em prego)
(principalm ente sobre administração e m anutenção de restaurantes,
com a senhora B .), e ele também participa d o programa de seguro-
desemprego n o m om ento (co m o assegurado, está tirando sua carta
de m otorista). Seu pai tinha ido à escola até 14 ou 16 anos e traba­
lhava com o cabeleireiro num hospital em S alon-de-Provence: “ Ele
foi o prim eiro cabeleireiro em S alon -de-Provence que fazia cortes
com navalha. E depois trabalhou no hospital. T eve seu salão e tudo.
Depois trabalhou durante anos e anos. G anh ou a medalha de ouro
do trabalho, pois era con h ecid o n o hospital e em S alon". Sua mãe
também foi à escola primária, mas não trabalhava.
O senhor e a senhora B. tiveram , no in ício, um pouco de vergo ­
nha de “ confessar” que ambos fazem parte do programa de seguro-
desemprego (dizem , inicialm ente, que estão fazendo “ um estágio o fi­
cia l” ), e querem ter certeza de que o que vão dizer vai perm anecer
confiden cial ( “ N ã o que a gente tenha coisas pra esconder, heín?” ).
Parecem tem er os m exericos ( “ A s pessoas extrapolam depois e,

235
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

então...")- tanto a esse respeito quanto sobre a diferença de idade


entre eles (ela tem catorze anos a mais que e le ).
M ich el, que freqüentou por 2 anos a escola maternal (entrou com
3 anos e 9 m eses), é considerado por sua professora co m o uma
criança que perm anece m u ito “ in fa n til” , “ que se distrai m uito,
m uito rapidam ente” , “ não consegue fixar a atenção” , às vezes é
“ catastrófico d o p o n to de vista com portam ental", mas que é “o ri­
gin al", “ in teligen te" e "tem idéias” . O ra, a reconstrução da c o n fi­
guração fam iliar possibilita com preender o con ju n to dessas carac­
terísticas escolares positivas e negativas.
Q u anto aos investim entos, podem os classificar, sem ambiguida­
de, as disposições sociais dos pais em matéria de leitura. A m bos, que
passaram pela Juventude O perária C ristã, têm uma preferência
declarada m uito grande por leitura de qualquer gênero. O senhor
B.: "Estou acostumado, leio m uito desde m enino, e depois, quan­
do fui enferm eiro, eu tam bém lia m uito, acontece, então, que perdi
o hábito". C om p ra o jornal (L e Progrès) todos os dias, mas esclare­
ce que, não faz m uito tem po, com prava Le Monde. Diz que lê tudo
no jornal, “da prim eira à últim a página” . Sua maneira de falar dos
jornais mostra uma concepção um tanto quanto en ciclopédica do
saber com o soma de inform ações sobre o mundo: “ G o sto bastante
de 1er sobre esporte, atualidade, notícias policiais. G osto de tudo,
porque quero estar a par de tudo, para ter conhecim entos” . A senho­
ra B. lê mais as notícias policiais e as notas de fa lecim en to —
“ Porque a gen te chega, nos falecim entos, a ver pessoas que a gente
con h ece" — , o horóscopo, embora não acredite de fato nele (" O lh o
assim, mas pra me divertir, afinal” ), mas não política: “ N ã o , n ão me
interessa, fico perdida nesse assunto, não sei nada” .
T ê m também muitas revistas que lhes são dadas pelo ex-sogro da
senhora B. São revistas variadas, mas com portam uma parte de
“ imprensa marrom” : dentre elas, encontramos Détective, Ici Paris,
France-Dhm nche, Le Hérisson, Paris-Match, V S D e tam bém Seleções
do Reader’s Digest (Ela: “ Bem, aí tem histórias, dramas da vida real,
histórias verdadeiras que aconteceram "). A senhora B., entretanto,
quase com o em relação ao horóscopo, faz restrições em relação à
imprensa marrom: “Q uando a gente lê essas porcarias (risos), sim, por-

236
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

que é bobagem, no fundo, esses jornais. A genre vê assim, mas, no


fundo, não precisa. A gente não vai perder tem po com isso. E idio-
ra, não?". O senhor B. diz que assina o N ouvel Observateur. E difícil
dizer com que intensidade essas revistas são lidas ou vistas, mas o senhor
B. diz, falando de todas as revistas que lhes dão: “A gente folh eia” .
A p ropósito dos livros, a senhora B, assinante há pouco tem po
de France Loisirs, diz que lia m uito mais antes do que agora, pois
teve uma rápida dim inu ição da visão de um o lh o. D iz ter lido todos
os livros de Bernard C la v e l e de G u y des Cars, assim co m o vários
de Konsalik, que qu alifica de “ rom ances água-com -açúcar": “ Mas,
en fim , gostava m uito assim mesmo". O senhor B., que declara c o n ­
seguir 1er dois livros em uma semana, gosta de histórias v e rd a ­
deiras, reais, e não lê fic ç ã o cien tífica . A p re c ia o que o padre o p e ­
rário G u y G ilb e r t faz, de quem fala co m o se fosse seu am igo, as
histórias que falam de crianças ("S u m m erh ill — Liberdade sem
medo: é m u ito b o n ito ” ), os livros de M a rc el P a gn ol e os livros de
história (te m uma c o le ç ã o sobre os grandes processos da h istó ­
ria: “ Isso nos faz co n h e c e r um p ou qu in h o quem foram essas pes­
soas"; obras sobre os tiranos da história, “ d o tip o H it le r ” ). Leria
um rom an ce de aventuras “ se a aven tura fosse verdadeira, sim,
mas se é uma aventura inventada, n ão m e interessa. G o sto do que
é verdade, do que é real, ora". Apesar de sua declarada paixão pelos
livros, o senhor e a senhora B. dizem nunca discutir suas leituras
e nunca terem trocado livros entre si. Ele: “ Eu leio o livro pra m im ” .
Enfim , possuem dois d icio n á rios que dizem utilizar quando estão
jo g a n d o — “ m u ito, m u ito ” scrabble.
O s jornais, revistas, livros ou autores citados não possibilitam
duvidar das palavras de nossos entrevistados. Entretanto, o efe ito
de legitim idade está constantem ente presente na entrevista. Marca-
se, in icialm en te, por uma ten dên cia do senhor B. em superestimar
certas práticas em d etrim en to de algumas outras (p o r exem p lo, a
leitura em relação à televisão — a senhora B. diz, quando seu c ô n ­
juge saiu, que ele v ê televisão frequ en tem en te)'1', selecionando, em
seu passado ou em seu presente, as atividades mais legítimas, as que
valem ser declaradas ( Le M onde, Le N ou vel Observateur...). Em sua
entrevista, M ich el, aliás, não fala de um pai leito r de livros, mas faz

237
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

o perfil de um leitor de jornais e até diz que não há grandes livros


na casa. O efe ito de legitim idade se marca ainda n o m odo co m o a
senhora R. não pára de fazer restrições em relação a certas leituras
que percebe, im ediatam ente após tê-las enunciado, c om o mais ile ­
gítimas (os “ romances água-com-açúcar", o horóscopo visto “para
rir” , a imprensa m arrom que con tém “ porcarias” ). Mas o fato de que
o e fe ito de legitim idade estrutura a entrevista não é desinteressan­
te para nós. Isso marca a crença dos pais na cultura escrita leg íti­
ma. Entretanto, é preciso situar as práticas de leitura de M ich el num
co n tex to sem dúvida menos “ letrado” d o que nos faz pensar o dis­
curso dos pais à primeira vista: ele não vai à biblioteca municipal,
não lê muito regularmente ( “ Depende dos momentos. Tem m om en­
tos que M ic h e l lê mais, depois, em outros m om entos...” ), e a mãe
diz que algumas vezes deve 1er “ m uito rápido", pois não entende o
que está lendo.
Segundo investim ento importante: em matéria de práticas domés­
ticas de escrita, os pais de M ich el não têm nenhum problem a par­
ticular. A maneira co m o eles d ivid em o trabalho faz, entretanto,
despontar, por um lado, uma divisão sexual das tarefas bastante clás­
sica"'1(a mulher cuida dos docum entos d o seguro social e dos docu­
mentos da escola; o hom em , do form ulário de impostos; quanto às
cartas, o h om em dita ou dá as idéias — “ À s vezes, ele d ita” ; “ Se eu
dito, sai melhor. Faço frases mais elaboradas, ten h o tem po para ana­
lisar o que quero dizer” — e a m ulher contribui com “ sua bela c a li­
grafia” : “ N ã o , porque ele, às vezes, n ão gosta de escrever. Então, pra
eu fazer pra ele, ele me diz: ‘Bem, vo cê escreve m e lh o r'” ), e, por
outro lado, uma oposição entre as disposições racionais da sen h o­
ra B. e as disposições mais espontânas e hedonistas de seu cônjuge.
E ela que faz uma lista das coisas que o filh o leva quando de uma
viagem (n ã o para evitar esquecer algo, mas para verificar se ele trou­
xe realm ente tudo de vo lta ), que escreve ou copia freqüentem ente
receitas, que cuida da caderneta de números de telefon e e de en d e­
reços. É ainda ela que faz a lista de compras, na ordem das g ô n d o ­
las ( “ N ã o vou pôr sabão em pó, por exem plo, e depois açúcar, e depois
manteiga. Tudo o que é de laticínio, junto, e o que é enlatado, ju nto"),
e ele quem faz as compras. A pesar de sua lista “ racional” , a senho­

238
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ra B. observa o pequ en o grau de rigor d o com panheiro: “ L eva sem­


pre rrês horas. E n o en tan to escrevo d ireitin h o no papel dele, mas
não sei com o ele se vira. Ele roda, roda, em vez de percorrer prate­
leira por prateleira” .
O senhor e a senhora B. não têm um caderno de contas (ele: “N ã o ,
porque a gente sabe. A gente sabe, assim"; ela: “ A gente presta aten­
çã o ” ), não anotam nada nas agendas que possuem nem no ca len ­
dário, não fazem anotações prévias para um telefonem a (é ainda ela
quem se encarrega de telefonar para as repartições), e raramente
depois de uma chamada telefônica. Em contrapartida, ambos escre­
veram poemas. Q uando era jovem ( “ Era menina” ), a senhora B. tinha
o hábito de escrever poemas ( “ Eu tentava, eu gostava m uito, afi­
n a l"), mas não sabe se conseguiría ainda fazê-los ( “ Mas agora não
sei mesmo se ainda teria idéias” ). H á apenas 15 anos, ela in ven tou
a letra para uma música, e “ depois, eu gravei pra m im ” , diz ela. O
senhor B. ainda continua a escrevê-los ( “ Ele é m uito p o ético ” ) e,
às vezes, com M ich el: “ E, às vezes, fazem os dois juntos. M ich el tam ­
bém gosta bastante de poeminhas ou inventa músicas” . A liás, o pró­
prio M ic h e l diz gostar de poesia ( “ A d o r o a poesia” ) e tentar in ven ­
tar poemas. Mas acha isso d ifícil, explica: “ N ã o sei bem o negócio,
pra rimar". Já aconteceu de ele escrever cartas para sua avó pater­
na ou para a prima co m a ajuda dos pais ( “ A gente lhe faz um ras­
cunho e depois ele copia” ), ou então redigir “cartinhas” para os pais
e escondê-las deb aixo das almofadas: “ Eu escrevo pra eles: ‘Eu te
am o’ ” . M ich el está, portanto, num universo fam iliar em condições
de lhe transmitir uma cultura da escrita.
A senhora B. diz que na escola “ está m uito bem” em m atem áti­
ca e em conjugação, mas que o filh o teria problemas para c o m ­
preender certas palavras (n ã o consegue lembrar-se do n om e da
“ m atéria” : leitura-com preensão). Diz tam bém que M ich el “ estuda
bastante, mas é m u ito lento". Os pais parecem bastante cuidadosos
quanto a M ich el fazer bem suas tarefas. A senhora B. diz que “ seu
pai olha a mala dele todos os dias, todos os dias, todos os dias, para
ver se não tem papéis para assinar. Porque, às vezes, ele pode esque­
cer de dizer: ‘O lh a, tem isso pra assinar’ , ou coisas assim” , e que “ a
gente pergunta pra ele todos os dias" acerca do que fez na escola. Q uan­

239
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

to às tarefas, M ich el pergunta mais para o pai du que para a mãe ( “ A


gente ajuda bastante ele nas tarefas"). Os exem plos que a senhora
B. dá provam que eles, efetivam en te, acom panham sua escolarida­
de. Q u ando os resultados são menos bons, a senhora B. diz não co n ­
seguir puni-lo: "Eu não gosto disso” . E antes o senhor B. que “ deixa
ele sem jogar” durante uma semana. O s pais cuidam também de que
M ich el vá para a cama por volta das 21 h l 5 quando tem aula n o dia
seguinte. C on hecem muito bem o professor de M ichel, vão vê-lo “regu­
larm ente” ( “ O mais freqüente possível” ) para saber se tudo está indo
bem e também com parecem às reuniões da escola.
Mas os pais de M ich el parecem, sobretudo, um pouco confusos
com as novas formas pedagógicas, embora tentem adaptar-se para
m elhor ajudar M ich el escolarmente. A senhora B. diz que ela gosta­
ria de ter continuado os estudos, pois não consegue “ acompanhar”
os "garotos de agora” , e o que lhes pedem em aula. Ela dá exem plo
da divisão: “ Eles não fazem com o a gente fazia na escola. Eu vejo quan­
do ele faz as contas de dividir. A gente lhe dizia: ‘N ã o , não é assim’,
e depois ele provava por A mais B pra nós que era daquele jeito. E
efetivam ente ele [seu companheiro] perguntou então ao professor, eles
não fazem, não sei (suspiro). Aliás, não sei com o eles conseguem encon­
trar o resultado. N ã o sei nada, não entendi nada, eu". A escola se toma,
então, a escola dos pais. O professor conta: “ M e aconteceu, por exem ­
plo, de lhe [ao senhor B.] explicar com o se aprendia a m ultiplicação
ou com o se aprendia a divisão, quais eram as diferentes etapas. Bem,
porque eu senti que ele tentava fazer a seu modo, portanto, para que
o m enino não ficasse hesitante, ou eu hesitante em relação ao m eni­
no, bem, eu lhe expliquei com o a gente fazia” .
É o senhor B. que mais cuida de M ic h e l d o p on to de vista esco­
lar. O ra, o senhor B. tem um perfil cultural bastante particular, que
é o produto de sua trajetória escolar e profissional. Tem todas as carac­
terísticas d o autodidata um pouco espontâneo, criativo , “ p o ético ” ,
co m o diz a senhora B. A o longo da entrevista, dirá “ ser apaixona­
d o " ou “ não ser apaixonado” por essa ou aquela coisa e responderá
às nossas perguntas dizendo que lê “ tudo", olha “ tudo” , se interes­
sa por “ tudo"... Poderiam os dizer que o senhor B. tem o estilo do
criador aventureiro com conh ecim en tos heterócliros. Seu confie-

240
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

cim en to (que ele próprio concebe com o uma soma infinita de infor­
mações sobre o m u n do) não foi principalm ente construído na rela­
ção com os livros e com os exercícios escolares clássicos, mas se cons­
tituiu através dos múltiplos encontros de uma vida de b oêm io ( “ A h ,
v o c ê gandaiô bastante! (riso)", lhe diz a senhora B.) em que nada
pôde ser capitalizado (jó qu ei, en ferm eiro, copeiro, coordenador,
diretor de colônia, desempregado recebendo o seguro-desem prego).
Q u an to à questão de religião, o senhor B. insiste no fa to de que a
fé deve ser sentida do interior pela criança e não imposta pelos adul­
tos, mostrando co m isso suas disposições espontâneas e sua visão
antiascética do mundo: “ U m a criança que é batizada é uma crian ­
ça que não sabe se vai ter fé mais tarde ou não. U m a criança que a
gente manda pro catecism o fazer sua com u nhão e tudo, as pessoas,
é mais pra fazer uma festinha, pros presentes, é n egó cio ou oba-oba.
Eu falo, se a gen te mandar ele pro catecism o, é pra fazer ele sentir
se tem fé ou se não tem. E depois não precisa forçar uma criança a
tazer o que ela n ão quer. Portanto, se amanhã ele me fala: ‘ Eu quero
ir no catecism o’ , m atricularei ele n o catecism o. Se ele quer ir na
igreja, le v o ele na igreja. Se ele quer ver um padre, ele vai se en co n ­
trar co m um padre, porque eu ten h o amigos padres” . Ele gosta de
contar histórias a M ich el para que adormeça, com, às vezes, um “ fun-
din h o musical” , recuperando com isso hábitos adquiridos nos meios
de coordenação ( “ C o m o eu fazia quando estava na co lô n ia "). Enfim,
escreve poemas com ele. Será, então, um acaso esse padrasto “ p o é­
tico " produzir uma criança “origin al” , que “ tem idéias", que “ adora
a poesia” , mas que, às vezes, não consegue en tretanto “ concentrar-
se” numa tarefa escolar precisa, que “ não consegue prestar atenção"?
A s disposições espontâneas do senhor B, (já visíveis nas práti­
cas de escrita), mistura de disposições culturais adquiridas n o curso
de uma trajetória feita de encontros e de uma ideologia pedagógi­
ca da criatividade existente em certos meios de coordenação, o levam
assim a reprovar na escola o fato de elas darem “ muita” tarefa às crian­
ças, que não mais têm tem po para “ levar sua vida de criança” , para
conversar ou brincar com os pais. Sua visão antiascética do mundo
se tom a, às vezes, uma visão antipedagógica (sendo o ex ercício
percebido co m o oposto à vid a ). É sem dúvida isso que leva os pais

241
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Je M ic h e l a não insistirem m uito para que ele faça tarefas durante


as férias. Se a mãe tem em vista “ agora, que está com eçan do a ficar
grande” , comprar-lhe cadernos de tarefas de férias, até então, duran­
te o verão, os pais não obrigaram M ic h e l a fazer trabalho escolar:
“ V ai depender, às vezes vai ter vontade, às vezes n ão” . Esse traba­
lho parece depender dos desejos de M ich el, e seus pais realm ente
o precisam: " À s vezes, a gente vai dar um em purrãozinho nele; às
vezes, a gente vai deixar ele um pou co” . Conjugada à atitude pouco
autoritária da mãe, essa visã o das coisas pode afastar M ich el, c o n ­
siderado um aluno “ que se distrai m uito, m uito, rapidam ente” , do
m ínim o de ascetismo escolarm ente ex igid o ( “ E preciso que eu este­
ja atrás dele sem parar” , diz o professor).
Se quisermos, em tal caso, separar as características familiares posi­
tivas e negativas, nos defrontaríamos com a seguinte dificuldade: os
investim entos com portam seus reversos n egativos, e uma prática ou
disposição fam iliar pode ser considerada tanto co m o um elem en to
favorável quanto desfavorável. Por exem plo, M ich el se mostra, aos
olhos do professor, co m o uma criança “ paparicada” , “ mim ada” ...
Podem os dizer que M ic h e l é o b jeto de uma espécie de culto fam i­
liar: possui sua própria televisão, uma m ultidão de brinquedos ( “ Ele
tem brinquedos por toda parte. Tem aqui, tem dentro dos arm ários"),
numerosas fitas de víd eo ("Estão ven d o todas as fitas que rem aqui,
é tudo praticam ente de M ic h e l” ), é dele a maior parte dos álbuns de
fotos — “ A gente tira muitas fotos de M ich el. A t é observei com meu
filh o que ele é bonito, ele é bonito, é isso (riso)” — e é dispensado
de qualquer tarefa dom éstica por sua mãe: “ Eu paparico m uito ele.
Eu é que fazia tudo, afinal. N ã o deixava ele fazer nada”’’\ Ela o c o n ­
sidera também com o uma criança “ m uito evolu ída": “ M ich el, o que
ele gosta de 1er tam bém é o dicionário, e desde que era pequeno. Ele
tinha que idade? D evia ter 3 anos, porque era um garotinho, bem,
não é porque é o meu garotinho, mas ele é muito, muito, muito, muito
evolu ído, e ele com eçou a falar bem, bem ced o” . D e m odo geral,
M ich el, ten do o lugar de “ caçula” , está colocad o n o cen tro de todas
as atenções e de todas as admirações do casal.
Assim , esse fato faz co m que os pais acom panhem de perto seu
filh o, dêem -lhe o que deseja, cuidem escolarm ente dele, o ajudem

242
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

em suas tarefas, vã o buscá-lo na saída da escola, procurem o pro­


fessor para saber se tudo está indo bem, evitem que ele tenha más
com panhias ou problemas com outras crianças, cortando-lhe qual­
quer (m á ) amizade ( “N ã o d eixo ele brincar lá em baixo” )... Mas, ao
mesmo tem po, é esse universo p rivilegia d o n o seio de uma fam ília
modesta que contribu i para torná-lo “ in fan til” , desprovido de senso
de responsabilidade em relação ao que está fazendo.
E preciso observar que M ich el faz parte das crianças em “ ê x ito ”
que tiveram quedas n o ano. A dim inuição de ren dim en to mais
im portante está ligada a uma perm anência prolongada nos horários
de estudo livre. A senhora B. conta: “ Ele, no final das contas, nem
chegava a fazer as tarefas, não sei, devia brincar, não sei o que ele
ficava fazendo. Tam bém , é um pouco por nossa culpa, porque antes
ele não ficava. N ã o faz m uito tem po que está ficando ma horário de
estudo livre. A gente falava: ‘Ele fica n o horário de estudo, portan­
to, está fazendo suas tarefas, não precisa olhar’ . C o m o a gente esta­
va errado. E, afinal, ele n ão fazia as tarefas. T ivem os sorte, porque o
professor percebeu logo em seguida e, portanto, nos avisou” .
Esse acontecim en to nos permite destacar a parcela de responsa­
bilidade escolar nas ações que podem fazer a balança dos desempe­
nhos escolares pender para um ou para outro sentido. D esentendi­
mentos sobre o que está acontecendo nesses horários de estudo, sobre
o grau de adaptação das crianças e sobre o grau de confiança que se
pode depositar na instituição escolar em matéria de verificação das
tarefas, tudo isso pode contribuir para fragilizar a situação escolar mais
para boa de certas crianças que já estão vivendo no limite. Para a maior
parte dos pais, alheios às sutilezas dos serviços oferecidos pela insti­
tuição escolar, o term o "horário de estudo livre" pode portanto pro­
vocar confusão.
Durante cerca de quinze dias, M ich el não fez as tarefas, e foi só por­
que o professor se deu conta de que a situação podia voltar a ser con ­
trolada pelos pais'". Mas as coisas nem sempre acontecem assim, e pode­
mos dizer que a escola participa, sem o saber, da produção de certos
mal-entendidos prejudiciais à escolaridade de algumas crianças.
Para concluir, observaremos que se trata de um casal numa situa­
ção econôm ica muito precária que tem um filh o mais para o “suces­

24Í
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

so” escolar, ao passo que outros meios menos privados econom icam en­
te têm crianças em “fracasso” . Isso significa que o capital econôm ico
não está, de forma alguma, isolado das disposições sociais e da orga­
nização familiar capazes de gerá-lo e orientá-lo num ou noutro senti­
do. N este caso, a preocupação com a criança leva o senhor e a senho­
ra R. a privilegiarem M ich el e a criar e manter para ele um universo
dourado no seio de uma configuração fam iliar com pouco dinheiro.

♦ Perfil 19: A criança-rei num reino modesto.


Nicole C ., nascida em Lyon, 1 ano de atraso (repetência da pré-escola, mas
tendo entrado nela com 5 anos e meio), obteve 6,9 na avaliação nacioiuú.

Batemos à porta de entrada. A senhora C . vem abrir e nos co n ­


vida, com um leve sotaque italiano, a entrar. De imediato, temos a
impressão de estar à frente de alguma dessas caricaturas de habitação
popular. Estamos numa minúscula sala de jantar de um apartamen­
to de dois quartos que parece estar em muita desordem: um sofá-cama
de cor verde (ficam os sabendo, no decorrer da entrevista, que se
trata da cama dos pais), uma mesa redonda preta e cadeiras, num e­
rosos bibelozinhos em prateleiras de parede, vários quadros (dentre
os quais algumas daquelas crianças típicas de M ontm artre), uma tele­
visão, um cachorro dorm indo n o chão... N ã o é nada espaçoso.
O senhor C . está sentado n o sofá-cama, de calção, sem camisa
e falando ao telefon e; quando desliga, desculpa-se por nos receber
daquele jeito. O ferece-n os um café que aceitamos. A s migalhas de
pão de cim a da mesa — restos do alm oço — são limpas com uma
esponja pela senhora C ., e o senhor C. dá uma vassourada rápida
para retirar as que haviam caído no chão. N ã o consegue ir m uito
longe, porque o espaço entre as cadeiras é exíguo. D epois, veste-se
quase diante de nós. C om eçam os a entrevista co m o casal, depois
o senhor C . sai para um com prom isso, desculpando-se. Sua fisio­
nom ia é fechada: sentimos que teve, co m o se diz, “ uma vida dura” .
N o decorrer da entrevista, a senhora C. se levantará diversas vezes
para acender um cigarro e nos oferecerá C o ca -C o la .
A entrevista é bastante fluida e não revela reticências por parte
dos entrevistados. Estes dão a impressão, ao lon go da conversa, de

244
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

csrar interessados nas perguntas que lhes são feitas e, em certos


m omentos, até parecem arrebatados pelos assuntos abordados. C o m
idéias bem determinadas em relação à educação de seus filhos, a senho­
ra C . d esenvolve, em vários m omentos, suas concepções com ardor.
O pai de N ic o le , de 33 anos, fo i à escola até a idade de 13 anos.
Nessa época, com eçou um curso de form ação de h orticu ltor numa
Escola A g ríco la , mas não concluiu o curso e entrou diretam ente,
“ sem ir à escola” , com o aprendiz numa cavalariça. Form ado na prá­
tica até a idade de 18 anos, parece ter atualm ente adquirido uma
posição hierárquica sim bolicam ente valorizada. A senhora C . diz
que o marido “ tem o mais alto grau” entre os cavalariços-jóqueis,
pois ele é “ p rim eiro-ca va la riço de L y o n ” , abaixo dos prim eiro,
segundo e terceiro jóqueis, mas responsável pela cavalariça. Seu tra­
balho consiste em treinar os cavalos, limpá-los, cuidar deles e, às
vezes, aos dom ingos, “ m ontar" neles, “ participando das corridas” .
Seu salário não é m uito alto (cerca de 5000 francos por m ês), mas
as corridas que faz lhe rendem numerosos prêmios que lhe possibi­
litam “ arredondar o m ês" (seu salário é de, aproxim adam ente, 9000
francos por mês, e chega, n o verão, perto de 12000 francos, pois
ele faz mais corridas). Seu pai era agulheiro na C o m p an h ia de
Estradas de Ferro, ele ignora seu n ível escolar, mas diz que ele não
“ lia m uito". A mãe era faxineira, de vez em quando, em salas de cin e­
ma. N ã o tinh a diplom a, mas lia “ muitos romances, e principalm en­
te foton ovelas. L ê m uito, ora, é seu passatempo” .
A mãe de N ic o le , 33 anos, tinha 6 anos e m eio quando v e io para
a França. A pren deu o francês numa escola particular m antida por
religiosas e diz que sabe 1er e escrever em italiano. Tem um C e r ti­
ficado de A prendizagem Profissional de cabeleireira, e trabalhou,
durante sete anos, co m o cabeleireira até o nascim ento de seus filhos
(a mais velh a tem 10 anos). Seus pais, que atualm ente são, ambos,
fiscais de seguro, exerceram muitas profissões na vida, mas tiveram
êx ito em numerosas empresas que nos descreve com inúmeros deta­
lhes para destacar o fato de que levou uma vida luxuosa e despreo­
cupada durante toda a juventude: “ M eu pai, antes de ser fiscal, era
cozinh eiro-ch efe no Palais de la M éditerran ée de N ic e . E um gran­
de cassino. Q u ando ele vem aqui e vê que estou m orando aqui, fica

245
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

louco, hein? A h , é, é sim (ela ri), ele me diz: ‘Mas onde é que você
foi cair, não é possível!’ . Eu sempre rive casas, eram palácios, hein?
O tem po in teiro a gente era mimada, hein? A gen te não tinh a a
noção de dinheiro. A gente era tão m im ado, a gente v iv ia com o
rico. Tin h a tudo o que a gen te queria, saíamos de férias três, qua­
tro vezes p o r ano, tínhamos casas, era um sonho. A gente tinha grana.
Bem, é, a gente estava acostumado co m o luxo. Então, a filh a dele,
de início, foi parar num apartam ento tipo C O H A B (riso), mas isso
me... Eu não era uma pessoa inconsequente. Passei d o luxo ao outro
extrem o sem me queixar. N o entanto, acreditem -m e, a gen te tinha
luxo, a gente vivia realm ente co m o burgueses, hein? A liá s, meus
pais têm m odos burgueses em tudo. Eles não com em c o m o eu.
M in h a mãe não com e qualquer tipo de carne. N ã o co m e se n ão for
feito de certo jeito. Ela fo i tão acostumada co m luxo que acabou
sendo assim, m inha mãe".
Assim , ela está viv e n d o h oje uma situação m uito mais difícil,
que diz aceitar, em bora percebamos, no todo, um pouco de sauda­
des em relação a seus anos mais dourados. Seu pai estudou até a idade
de 22 anos (co m uma interrupção durante a guerra), e a mãe pos­
sui um diplom a de esteticista.
O senhor e a senhora C . têm quatro filhos: uma m enina de 10
anos, na 3a série (que está na mesma classe que N ic o le , pois trata-
se de uma classe de 2a série do 1e grau), N ic o le , co m 9 anos, na 2a
série do I e grau, um m enino de 7 anos, na pré-escola, e uma ú lti­
ma filh a de 6 anos, n o últim o ano do maternai.
C o m o em outros casos, apenas a consideração da situação pro­
fissional e d o capital escolar não possibilita com preen der o que dis­
tingue essa configuração fam iliar de outras no seio das quais a crian ­
ça está em “ fracasso” escolar. O pai, cavalariço-jóqu ei, foi à escola
até a idade de 1.3 anos e não tirou nenhum diplom a, a mãe tem ape­
nas um C A P de cabeleireira e não trabalha. Podem os, portanto, nos
perguntar o que, na socialização de N ic o le , é relativam en te co m ­
p a tível com a socialização escolar.
Em tod o o caso, não é nas práticas pessoais de leitura dos pais
que encontrarem os uma resposta a essa pergunta. O senhor C . lê
os jornais hípicos em seu trabalho para con h ecer os resultados das

246
perfis de configurações

corridas, os contratos dos cavalos e, de tem pos cm tempos, dá uma


olhada num jorn al region al de esportes, mas nos diz não gostar de
1er: “ Porque ouço bastante as notícias todas as noites. O u ço um pouco
as inform ações, porque senão, não sou muito de 1er. N ã o gosto de
1er. N ã o é uma coisa que eu gosto, não. É uma coisa que nunca me
agradou” . A senhora C . não lê jornais; algumas vezes, lê revistas tais
com o Nous Deux, Intimité, Femme Actuelle, e não tem livros de recei­
tas ( “ N ã o , porque uma vez que eu fiz duas ou três vezes a receita,
num preciso mais delas, hein? Bem, eu me lem bro delas, h ein ?") ou
de tricô... Em contrapartida, diz gostar dos romances de A ga th a
C h ristie ( “ É isso que eu leio mais” ), mas, na verdade, lê alguns tex ­
tos de A g a th a C h ristie que são publicados em Nous D eux e, talvez,
m uito mais histórias de amor: “ À s vezes, tem algumas historinhas.
Naus D e u x é fo to n o v ela , mas lá tem histórias escritas. Belas histó­
rias. G osto disso, é, histórias de amor principalm ente (rindo). Se fosse
assim na vida real, seria bom (risada)". Seu m arido até esclarece,
dirigindo-se a ela: “ M as cê num compra livros” . "O s únicos livros
que com pro é as en ciclopédias", declara a senhora C . T ê m duas que
compraram “ para os filh os", para ajudá-los quando têm d eterm in a­
das tarefas para fazer: “ Eles copiam a tarefa neles” . T ê m também três
dicionários que são mais utilizados principalm ente pelas crianças e
pela senhora C .
De m aneira totalm ente clássica, é essencialm ente a senhora C .
quem cuida dos docum entos, mostrando às crianças a imagem de
uma mãe escriha ( “ Freqüentem ente, é ela quem cuida dos docum en­
tos, mais do que eu m esm o"). É ela quem redige as cartas adm inis­
trativas (co m exceção do form ulário de im postos)98, quem cuida dos
papéis da escola, quem controla as contas, sem caderno (“ A t é o geren­
te do banco ficou espantado, porque nunca precisei que me tirasse
um extrato da con ta pra me dizer se isso fo i pago, se aquilo foi pago.
A h , não, não, sei quase que cen tavo por cen tavo o que estou d even ­
do” ), quem faz as listas de compras “ com os preços ao lado, porque
sei os preços de cor” e quem classifica os docum entos adm inistra­
tivos em pastas: “Tu do o que é orçam ento, escola, filhos, tudo isso,
é eu” . C o m o eles n ão escrevem lembretes, não fazem listas das c o i­
sas a serem feitas ou levadas numa viagem, não têm agendas (a senho­

247
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ra C . esclarece que suas duas filhas mais velhas têm uma agenda e
“ marcam o aniversário delas, as amiguinhas que v ã o convidar, o
núm ero de suas am iguinhas") ou n ão escrevem nada no calendá­
rio, é a senhora C . quem constitui a m em ória viv a fam iliar: “ Eu é
que ten h o que lembrar ele de tudo o que ele tem de fazer (ris o )” .
A lé m disso, m arido e m ulher deixam pequenos bilhetes um para
o outro ( “ Entre eu e meu marido, porque ele se levanta às 5h (rindo),
e eu estou dorm indo. O u sou eu à n oite, antes de me deitar, quem
lhe deixa bilhetes pro dia seguinte. Sei lá, alguma coisa assim: ‘ Bom-
dia, amor. C o m o está? Beijos', ou então: ‘Estou indo trabalhar’ , ‘V ocê
tem que pedir isso e isso a teu ch efe’ para que ele não se esqueça” )'",
e a senhora C . às vezes escreve poemas para os filhos ou para uma
amiga: “ C h eg o a criar coisas com muita facilidade. (Rindo.) Aliás,
nem sei porquê. N ã o sou poeta, hein? (Risos.) É um dom, ora. Ten h o
até uma colega de 20 anos, ela precisava fazer um poema de uma pági­
na, e fui eu que fiz o poema pra ela, e ela tirou 9. Fui eu que fiz. Estou
assim com endo, com eço a pensar e in ven to, assim, num estalo. E
verdade que já fiz uns bem bonitos, mas pra m im , não, eu nunca...
Pra in ven tar um, me vem instantaneamente. Da última vez, in ven ­
tei um poem a sobre as mães. Era realm ente bonito, e m e vinha
assim, sozinho. N ã o sei com o é que essas coisas me vêm ” .
É sempre a mãe quem cuida dos filhos. O ra, oriunda de um m eio
social não operário, ela não tem absolutam ente as mesmas disposi-
ções sociais que seu marido. Em prim eiro lugar, a senhora C . viveu
num m eio fam iliar muito abastado, foi mimada, adquiriu e desen­
volveu , nesse m eio, duas atitudes que perpassam o con ju n to de suas
palavras: por um lado, uma concepção da infância que tem de ser,
segundo ela, uma infância dourada, despreocupada, luxuosa, e, por
outro, em relação à existência cm geral, consiste em querer ser in ­
dependente e não se deixar enganar ou “ se deixar insultar” .
N a casa deles, os filhos vive m , portanto, co m o reis. São os sobe­
ranos de um pequeno reino o nde os indivíduos fazem de tudo para
ocultar as dificuldades econômicas. A vontade de preservar as crian­
ças e de fazê-las alcançar aquilo que não se conseguiu por si mesmo
traduz-se, neste caso, por uma verdadeira doação de si, um sacri/ício
de si em proveito dos filhos, ou seja, do futuro101’. O sacrifício é, de

248
PERFfS DE CONFIGURAÇÕES

im'cio e antes de tudo, financeiro, e não é exagero dizer que as crian­


ças vivem , graças aos pais, co m o pequeno-burgueses ou burgueses.
O mundo da criança se corna com o que uma ilhota de riqueza e de
lu xo no seio de um universo, na verdade, m odesto101.
Tudo demonstra, com efeito, que os filhos ocupam um lugar essen­
cial na vida dos pais, e estes sacrificam muitas coisas para comprar-
lhes o que desejam. “ Eu sofri muita privação quando era pequeno,
então tenro não privar eles de nada” , diz o senhor C . Eles têm apa­
relho de vídeo, duas enciclopédias (uma das quais custou 10 000 fran­
cos). O filh o de 7 anos tem uma televisão no quarto, um aparelho
de vídeo-gam e (d e 3000 francos). A s duas filhas mais velhas têm,
em seu quarto, uma televisão pequena, um aparelho de som, um
radiococa-fitas... Os pais até dorm em na sala de jantar, no sofá-cama,
pois deixaram o quarto para os dois mais novos. A mãe esclarece
que eles até podem com er menos para que os filhos sejam mimados
(p o r exem p lo, um quarto de h otel a 900 francos a diária. " C o m as
crianças, gastamos m uito d in h eiro ” ). O lugar central dos filh os
pode ser visto tam bém nos álhuns de fotografias, que são dedicados
exclusivam ente a eles; na maneira de fazer a lista de compras, co n ­
sistindo em anotar, prim eiro, as compras que são destinadas a eles
( “ C o m e ç o prim eiro por rudo o que é para as crianças. Sim, leite,
Nescau, iogurte, bolacha, rudo o que é para eles p rim eiro"); no fato
de os pais não possuírem carro para buscar os filh os na escola, que
é o que eles desejam; no fato de que são as crianças que decidem
sobre o que vã o com er n o alm oço ("E também meus filhos com em
o que querem. E meus filh os que decidem o que v ã o comer, não eu.
A liá s, por causa disso, sempre sou m uito criticada por minhas am i­
gas. Porque eu, às vezes acontece de ter que fazer três coisas d ife ­
rentes para o alm oço. E, porque P. e N ic o le querem uma coisa, X.
e J. querem outra, meu m arido e eu queremos outra. Eles não com em
todos a mesma coisa, e isso me acontece muito. A q u i, parece até
que estamos numa lanchonete” ), ou ainda nos dois PE P1"7, feitos para
os dois mais velhos.
A senhora C . não gosta de regras m u ito rigorosas em relação aos
filhos. E preciso, segundo ela, deixá-los viver, e não coagi-los co m o
no exército: “ T en h o uma amiga assim. Eu a cham o de Gestapo, aliás.

249
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

T en h o horror, tem de chegar às 8, às 8h05 tem de fazer isso. A q u i


em casa não é m uito rigoroso, e x ceto a hora de deitar, às 8 e meia,
e só. Mas ten ho horror disso. N a m inha casa n ão era assim. Bem,
tem certas mães que até dizem: ‘O armário de bolachas, eu fech o às
4h e meia, agora vo cê não vai com er porque passou da hora’. A h ,
não, não, pra m im eles com em o dia in teiro se quiserem. Eles v o l­
tam às 4h e meia e tom am lanche, e as 5h e m eia tom am outro. Eles
abrem, fecham , fazem o que querem , não tem... A gen te não está
no exército. Eu conh eço gente assim. À s vezes, eu d ig o a elas: ‘Mas
não é possível, eles não estão n o exército, deixa eles v iv e re m !’ ” .
Por outro lado, a senhora C. dá provas de uma relação crítica, desen­
cantada, para com as instituições legítim as (principalm ente a esco­
la), contra as quais ela, freqüentem ente, parece oferecer resistência.
Assim, ela não suporta que os professores possam “ encostar a mão”
em sua filha ou mesmo “gritarem” com ela. Para ela, a função da esco­
la tem de limitar-se à tarefa de ensinar e não ocupar-se com a educa­
ção disciplinar das crianças10': “A liá s, sou m uito rigorosa com os pro­
fessores, hein? E na escola não tem nenhum professor que vai gritar
com meus filhos ou tocar neles. Porque, e isso aconteceu não tem muito
tem po aliás, o senhor** *, meu marido foi lá pra quebrar a cara dele,
é verdade. Ele levantou a mão pra minha filha. Eu não adm ito isso.
Isso, pra isso, a gente é m uito rigoroso. N e m sendo diretor de escola
com o ele é, não adm ito de form a alguma, ninguém, hein? (Cum/ir-
meza. ) N e m meus pais, ninguém tem o direito de tocar cm meus filhos.
E só o meu marido que tem direito. E primeiro os meus. Isso não admi­
to de forma nenhuma. A c h o que um professor está lá pra ensinar-lhes,
e pon to final. Eles acham que são pessoa importante, mas fora ensi­
nar-lhes a escrever, 1er e as lições deles, fora isso, eles não têm o direi­
to de fazer nada. Talvez eles tenham esse hábito aqui porque, é v e r­
dade, tem muitas mães árabes que não falam o francês. Batem nos
filhos delas e tudo e elas não falam nada. Mas com igo, eles se deram
mal, hein? (N u m tom /irme.) C o m isso, eu sou muito rigorosa. Eles
não têm o direito de gritar com meus filhos, por exem plo, na escola,
ou de dar-lhes um tapa, isso nem pensar!” 104.
A íirm a bem alto que são seus filhos e que os professores têm ten ­
dência de esquecer-se disso quando querem “ obrigá-los" a fazer as

250
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

coisas: “ A g o ra , eles im põem coisas. N ã o param de dizer pros meus


filhos: ‘ E o b rigatório’ . E eu não paro de dizer pros meus filhos: ‘N ã o
é obrigatório, é se E U quiser!’. Esquecem que S Ã O M E U S F IL H O S
P R IM E IR O , E U decido. Enquanto que para meus filhos, eles não
têm o direito de ficar dizendo sempre: ‘E obrigatório!’. O s meus filhos,
eu fa lo pra eles: ‘O b riga tório, eu não con h eço. E obrigatório se
papai ou mamãe quiserem. Se papai ou mamãe não quiserem, não
tem obrigação que se segure. Fui E U que te pus no mundo (rindo),
não fo i o s e n h o r*** [professor] nem o sen h or** * [d ir e to r ]"’.
Tam bém critica sucessivamente os professores que não ficam muito
tem po ex p lica n d o várias vezes às crianças ( “ A go ra , a gente até
podia dizer que se chateiam em ficar explican do às crianças duas
ou três vezes a mesma coisa. E é só isso que eles têm que fazer, ora” ),
a maneira de ensinar a nadar ( “ Eu acho que eles não sabem de fonna
nenhum a ensinar as crianças a nadar. A co n tece u com m inha filha
N ic o le , que já se afogou, hein? Levaram um ano pra recuperar ela,
fazer ela perder o m edo da água, hein?” ), o m étodo de aprendiza­
gem da leitura que com para com o que ela conheceu ( “ C o m ig o , era
prim eiro o alfabeto. Eu aprendia que “ m ” e "a” dava "m a” . M eu filh o
lê com o um papagaio. Lê um m ilhão de vezes a mesma frase, e depois
de um m ilhão de vezes, ele sabe de cor a frase. V ê ela num jornal e
recon h ece ela. U m a vez, eu disse aos professores: ‘V ocês lêem com o
papagaios’ " ) , e observa que, às vezes, os professores ensinam às
crianças coisas que não estão “ cerras” .
A senhora C . tem o m esm o tom crítico em relação à institui­
ção religiosa, confirm ando a existência de uma relação rebelde mais
ampla com relação às instituições: “ Sou católica, mas não acredi­
to nem em padres, nem em freiras. A o contrário, não posso nem
vê-los. Representantes de Deus, aqui, ó, nada mais são d o que la­
drões, eles, hein?” . Mas sua crítica à instituição escolar não impede
que a senhora C . com preenda a escola co m o um m eio de acesso à
independência econôm ica: com a obtenção de uma “ boa profissão",
e, quando se é mulher, tom ando-se independente do m arido. Ela
própria confessa ser totalm en te dep end en te de seu cônjuge, e diz
que, se um dia não der mais certo entre eles, ela ficará sem d in h e i­
ro e sem trabalho. In d ep en d en te em relação às institu ições, a

251
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

senhora C . também deseja a independência para as filhas. Essas duas


atitudes de proteção dos filhos e de co n trole fam iliar da socializa­
ção deles (q u e leva à crítica de alguns aspectos da escola) se tra­
duzem por uma série de ações socializadoras que estão longe de lim i-
tar-se à dim ensão escolar. O “ in vestim en to ” da senhora C ., se é que
podem os em pregar esse term o por dem ais econom ista, é m uito
mais global do que esrrítam ente escolar. Leva, principalm ente, a
uma v ig ilâ n cia física e m oral. Q u an do N ic o le sai da escola, a mãe
vai sempre buscá-la { “ Estou sempre lá” ), e quando ela sai para
brincar, a mãe diz que tem que ficar vendo-a de uma janela e a chama
assim que com eça a anoitecer.
Tam b ém c o n tro la esp ecia lm en te as amigas, e nunca aceitaria
que sua filh a fosse brincar ou d o rm ir na casa de uma co lega cujos
pais ela não co n h ece: “ A h , sim, sim, c o n h e ç o os pais, os irmãos,
as irmãs. N u n ca irá na casa de alguém que n ão co n h eça , nunca.
A liá s, meu filh o, tem um passeio no mês de m aio, p elo menos devia
ter. Recusei in screvê-lo. Ele iria na casa de seu correspon d en te.
Eu não sei na casa de quem ele está indo. N ã o sei quem são os
pais dele. N ã o sei quem são seus irmãos e irmãs. Q u em me diz que
não são crianças torturadas pelos pais, eu, hein? N o telefo n e, eles
podem ser bem am áveis, mas na vid a , se a gen te fo r ver, não é
nada disso". Ela diz que “ presta muita a ten ç ã o ” nisso e a crescen ­
ta: “ Pra isso, sou uma ch a ta ” . Fica aten ta para que N ic o le vá dei-
tar-se todas as n oites às 20h 3010\ e x c e to nas n oites que p recedem
os dias sem aula, em que ela pode deitar-se mais ou m enos entre
22h30 e 23h.
Fica claro que a mãe é até mais rigorosa co m questões morais do
que com questões estritam ente escolares, perdoando facilm en te
maus desem penhos, mas não transigindo co m as faltas de respeito,
os roubos, as colas escolares... “ A s vezes, ela me diz: ‘ Se v o c ê fez (5
que pôde, não tem im portância’ , ou ela me diz: ‘N ã o tem im por­
tância, vo cê não tem muitas notas ruins’. O u às vezes ela me diz pra
centar ter m enos notas ruins. Senão, ela diz que vou ficar reprova­
da co m as notas ruins, não terei festa de aniversário. Mas é o que
ela diz. A s vezes, ela nos fala alguma coisa, mas às vezes ela n ão faz.
N ã o , ela não castiga por causa das notas baixas. Mas ela não quer

252
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

que a gente fale palavrão, coisas assim. N ã o quer que a gente falte
co m o respeito co m as pessoas, e, nisso, e h é muito brava. Ela não
quer que a gente roube e que a gente c o le ” 10'’.
A mãe desen volve, portanto, entre outras coisas, uma atenção
no cam po da escolaridade. E ela quem cuida disso, porque o m ari­
d o “perde a paciência m uito mais rápido” do que ela se as coisas não
estão indo bem. Sabe as classes de seus filhos e acom panha de perto
a escolaridade de N ic o le . O lh a seus cadernos todas as noites —
“ A ssim que eles chegam da escola, o lh o nas malas deles!” — e
esclarecendo: “ Nisso, sou m ito rigorosa". N ic o le só pode sair para
brincar co m suas colegas ou ver televisão depois de ter acabado as
tarefas: “ Prim eiro as tarefas, depois a televisão” lü7.
Ela, portanto, faz as tarefas em casa com a mãe, que a ajuda: “ Eu
m ando eles fazerem, e depois, quando acabaram, eu fa lo para eles:
‘ V o cê entendeu co m o vo cê fez pra chegar nesse resultado?’. Então,
se ela me diz sim, hem, pergunto pra ela co m o ela fez e tudo. Se ela
me diz não, eu e x p lico pra ela ” . A s vezes, quando a própria mãe não
compreende, ela telefona a uma "colega" que tem 20 anos e que ainda
está na escola. A senhora C . diz que ela n ão deixa os filh os fazerem
sozinhos as tarefas, e afirma ser especialm ente obrigada a ficar lem ­
brando N ic o le de fazê-las ( “ É preciso dar um em purrãozinho nela,
hein? pras tarefas” ), pois para ela “é uma obrigação” .
A mãe, que, co m o vim os, não tem uma prática pessoal de leitu ­
ra muito intensa, em contrapartida lê m uito para os filhos. Lê para
N ic o le , por exem plo, pelo menos uma vez por semana, contos de
fadas, antes que ela durma. Mas desen volve principalm ente o co n ­
trole de leitura da filh a, lendo ela própria os livros emprestados e
fazendo-lhe perguntas para saber se ela leu bem ou com preendeu
bem: “ Q u ando elas retiram um livro da biblioteca, eu leio ele pri­
m eiro. E depois, quando elas me falam que acabaram de 1er ele, per­
gunto a elas do que se falava, se elas entenderam , se gostaram ou
se não gostaram, para ver se elas com preenderam o que leram.
Depois, bem, assim eu posso ver se elas sabem 1er d ireito ou se, na
verdade, lêem assim, pra ficar fazendo alguma coisa, ou... E eu per­
gunto pra elas sobre o que elas leram, ora” . Ela va i à biblioteca da
escola a cada quinze dias para ajudar uma professora a atender às

253
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

crianças que devolvem e retiram livros e, reforçando o trabalho peda­


gógico, pergunta em casa, com o a professora na biblioteca da escola,
do que elas gostaram e por quê: “ Eu pergunto pra elas o que acharam.
Se elas me falam: ‘N ã o gostei’ , pergunto a elas por que não gostaram” .
N icole evoca também, m uito exatam ente, n o decorrer de sua entre­
vista, a maneira co m o são os encontros na biblioteca da escola e a
maneira co m o eles são preparados pela mãe: “ C o m os livros que a
gente pega na segunda-feira com a sen h ora***, assim que eu aca­
bei de 1er, eu dou ele pra mamãe. Falo pra ela se gostei ou n ão gos­
tei. Se eu não gostei, eu falo pra ela por quê, e se eu gostei, eu falo
também por quê, mas sem contar pra ela a história, porque a senho­
r a * * * fala: ‘Vocês vão nos explicar por que gostaram dele, mas não
precisam contar a história inteira’ . Ela nos pergunta se a gente gos­
tou ou não gostou, e, às vezes, perguntam se a gente indicaria ele
ou não, e eu falo pra ela se eu in dico ou n ão’’lca.
A mãe pode até ajudar a filha a tornar mais com plexa a p rim ei­
ra leitura que tinha fe ito de uma história: “ Eu, da últim a vez, tinha
lido o livro e tinha gostado dele. T in h a achado que era uma histó­
ria bonita. E elas não tinham gostado, e eu acho que elas não
tinham gostado porque não tinham com preen dido o sentido da his­
tória. Era uma história de racismo. N u m a escola infantil, havia
crianças negras, crianças árabes e francesas, e era uma criança árabe
que roubava na escola. Roubava o lanche da vizinha, da colega e
dos colegas, então ninguém gostava dele. Então elas me disseram:
‘N ã o gostei desse liv ro porque esse m enin o é mau’. E eu disse a ela:
‘ Mas vo cê entendeu por que ele é mau, esse m enin o, será que vo cê
entendeu por que ele fazia aquilo?’ . Então, ela não tinha en ten d i­
do. Então, quando eu lhe expliqu eí, ela m e disse: ‘A h , é !’ . N a v e r­
dade, ele fazia aquilo porque tinha uma fam ília de onze pessoas. Seus
pais, os dois, estavam doentes e davam de com er aos irmãos e irmãs.
Ele não fazia aquilo porque era um m arginal, ora. A o passo que ela,
im ediatam ente, bem em seguida: ‘A h , não, ele rouba e tudo, não
gosto dele. Eu não gostei desse livro, n ão’ ".
Escolarm ente, N ic o le é percebida co m o uma aluna “ aplicada” ,
“ discreta", “ estável” em seus desem penhos1” , mas em quem se sente
que “ o que ela assimila vem m uito da escola” . N a verdade, o julga­

254
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

m ento escolar está errado p elo menos num ponto: não é apenas a
escola que dá cultura a N ic o le , mas toda uma configuração fa m i­
liar que, com todos os investim entos o bjetivos realm ente não m uito
excepcionais, consegue construir, entretanto, um lugar sign ificati­
vo para a experiência escolar dos filhos.
Mas algumas disposições relativam en te favoráveis para a esco­
laridade têm tam bém sua verten te “ n egativa" no universo escolar.
Sabemos que, tendo entrado um tanto quanto tardiamente na esco­
la maternal (4 anos e 9 meses), N ic o le apenas a freqüentou m uito
irregularm ente, por “ n egligên cia dos pais", observam na época.
Assim , N ic o le era julgada “ defasada na vida da classe por causa de
suas numerosas ausências” . A com p a n h a n d o seu percurso escolar,
dam o-nos conta de que N ic o le só se adaptou à escola e às suas o b ri­
gações progressivam ente. A liá s, a mãe observa que, quando ela
passou para a pré-escola, foram as tarefas o que ela absolutam ente
n ão suportou.
O fato de que os filhos sejam socializados com o h áb ito de fazer
principalm ente o que querem e sem preocupação com a maneira
de obter o que desejam não contribui, ao mesmo tem po que isso os
protege no seio de um universo modesto, para desequilibrá-los em
relação às exigências e pressões escolares coletivas que se im põem
a todos igualm ente (n ã o fazemos o que querem os na escola, mas o
que está previsto fazer de tal a tal hora...)? A senhora C . expressa,
aliás, seu tem or de que a filh a não continue na escola além dos 18
anos, pois, para ela, a escola é uma “ obrigação" e não uma paixão.
A disposição que consiste em querer controlar as situações sociali-
zadoras nas quais são colocados seus filhos leva tam bém a senhora
C . a ver na escola uma rival educativa que tenta ter a penhora sobre
seus filhos, e a adotar, com isso, com portam entos nem sempre m uito
favoráveis à escolaridade. Assim , a senhora C . diz que, se não h ou­
vesse escola, ela ficaria mais conten te ainda, pois gostaria de poder
cuidar sozinha dos filhos. Isso a levou a querer conservá-los com ela
durante o maior tem po possível, em vez de colocá-los na escola mater­
nal, sinal, sem dúvida, de uma maneira de “ ficar livre” dos filhos,
co m o ela o diz claram ente a propósito dos horários de estudo livre
e da can tin a110.

255
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Em conclusão, taremos duas observações a propósito desse perfil.


A primeira é que, se as trajetórias da mãe e do pai fossem exatam en­
te inversas, no âm bito da própria divisão sexual dos papéis, o “ suces­
so” de N ic o le estaria, sem dúvida, m uito com prom etido. A segunda
é que a reconstrução da configuração familiar não possibilita ver
uma separação clara entre as características familiares favoráveis à esco­
laridade da criança e as características familiares desfavoráveis a essa
escolaridade, mas q Lie algumas práticas socializadoras são am bivalen­
tes do ponto de vista dos efeitos escolares, nem totalm ente positivos,
nem totalm ente negativos.

Investimento familiar positivo ou negativo

N a situação social contem porânea, caracterizada por uma m uito


grande proporção de assalariados e de exigências cada vez mais ele­
vadas em matéria de cursos de qualificação, o diplom a se torna uma
condição necessária (m esm o que insuficiente) de entrada no mer­
cado de trabalho para o conju nto dos grupos sociais. M esm o o filh o
do lavrador que quiser assumir a propriedade fam iliar tem de passar
pela escola e submeter-se a suas exigências. C o m a crise d o em pre­
go, o diplom a até se tom a particularmente detem tinante para se c o n ­
seguir um em prego estável. N o âm bito dessa n ova configuração
social e escolar, o n de tudo é oposto à situação d o século X IX (on de
o acesso ao em prego e, por conseguinte, às posições sociais se orga­
nizava, para muitos, independentemente do tem po de escolarização),
o “ fracasso” escolar ganha, im ediatam ente, o sentido de uma rele­
gação socioeconôm ica, e os pais dos meios populares vão, pouco a
pouco e em graus diferentes conform e os recursos e as trajetórias fam i­
liares, investir na escola com o um importante desafio. Em certos casos,
a escola até pode invadir a fam ília, que, com isso, destina a maior
parce de seus esforços e de suas atenções para a criança.
Assim , supomos, às vezes, que é n o grau de conscientização e de
m obilização familiares em relação aos desafios escolares que reside
o princípio das diferenças entre as escolaridades em meios popula­
res. D e um lado, temos aqueles que, buscando explícita e in tencio­
nalmente (e, às vezes, racionalmente) um objetivo, desenvolvem estra-

256
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

régias educativas em torno de um “ projeto escolar” e conduzem os


filhos nos cam inhos do “ sucesso” escolar; de outro, aqueles que não
têm os recursos ob jetivo s e subjetivos para pôr em prática determi-
nadas estratégias e determ inada m obilização, e cujos filhos experi­
mentam as dificuldades escolares. Esse quadro se mostra simples e
esclarecedor, mas a realidade se revela um tanto quanto rebelde.
Em p rim eiro lugar, todos os casos de “ sucesso" escolar e n c o n ­
trados não dependem , ao con trário, desse m o d elo de m obilização
fa m ilia r em to rn o de um p ro jeto escolar: o grau de in te n c io n a li-
dade nas condutas familiares, assim co m o o grau de in vestim en to
fa m ilia r e sp ecifica m en te vo lta d o para a escolaridade, é e x tre m a ­
m en te va riá vel. Em segundo lugar, qu an do existe, a m obilização
fam iliar não ocasiona autom aticam ente o “ sucesso” escolar. C o m o
as condutas que são classificadas na rubrica “ m ob iliza çã o” podem
ser m u ito diversas e co m o essas mesmas condutas não são sem ­
pre coeren tes co m outros aspectos das práticas fam iliares, os e fe i­
tos p o sitivos na escolaridade das crianças são, ainda aqui, ex tre-
m am en te diferen tes.
Alguns pais podem , portanto, ter uma elevada expectativa esco­
lar para seu filh o e, co m isso, controlar sua escolaridade, acom pa­
nhando-a e conh ecendo-a em detalhes, fiscalizando e corrigin do as
tarefas, fazendo escudar durante as férias com material comprado com
essa finalidade, encontrando-se regularm ente com os professores,
sancionando ou dem onstrando seu descon ten tam ento quando os
resultados escolares parecem insatisfatórios, etc. Mas a rentabilida­
de escolar desses com portam entos de in vestim en to varia conform e
a configuração fam iliar considerada.
Em alguns co n tex to s fam iliares perpassados por contradições
(e n tre as e xp ecta tiva s escolares e os m eios concretos para sua rea­
lização, entre as palavras e os atos, en tre os princípios alardeados
e os princípios postos em p rá tica ), em que os pais punem quando
de maus resultados escolares sem verdadeiram en te conseguirem
ajudar ou dar o “ bom e x e m p lo ” , e só in citam o filh o para o traba­
lho escolar em form a de sanções, a m obilização fam iliar produz e fe i­
tos n egativos n ão co n trola d o s (P e r fil 20). Em outros casos, tam ­
bém , a arrebatada m obilização fam iliar e as numerosas pequenas

257
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

estratégias educativas postas em prática mal conseguem co m p en ­


sar as dificuldades fam iliares ob jetiva s (cf. o Perfil 21 e tam bém
o Perfil 19).
Enfim , em outras co n d ições m ateriais e culturais e outras c o n ­
figurações fam iliares, alguns pais podem , a partir às vezes de um
pequ en o capital escolar, cuidar da escolaridade da crian ça c o m o
que para fazê-la ch egar a um ren d im en to m á x im o (c f. o P e rfil 22
e tam bém os Perfis 17, 24, 25 e 26).

♦ Perfil 20: Um superinvestimento escolar paradoxal.


Johanna U ., nascida em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve
J,8 na avaliação nacional.

Foi com o pai de Johanna que marcamos o en contro. De início,


estava desconfiado, reticente. Pede-nos um docum ento, "um a car­
tão” e só aceita a entrevista quando vê o bilhete que mandamos atra­
vés da escola e que sua filha não tinha m ostrado (sinal da form a pela
qual os docum entos circulam entre a escola e a fam ília).
A entrevista a contece na sala de jantar. O cô m o d o parece entu­
lhado — há uma mesa, um jo g o de sofás, uma televisão e m óveis
diversos — e nele se circula com dificuldade. Durante a en trevis­
ta, a televisão está ligada, e as crianças passam inúmeras vezes
(para as tarefas escolares, para o u v ir o que se está fa la n d o), bem
co m o vizinhos. O pai sai no decorrer da entrevista (e era p rin c i­
palmente ele quem estava respondendo às perguntas), porque a prima
de sua mulher vem procurá-lo para que ele saia com ela de carro.
A mãe tom a seu lugar. M uitas das vezes, ela responde em poucas
palavras ou balançando a cabeça. D efin itiva m en te, a entrevista é
mais uma cena corriqueira do que um m om en to form al, um p arên­
tese no ritm o dom éstico cotid ia n o no qual as pessoas se d ed ica ­
riam in teiram en te a responder a questões ou n o qual as condições
nas quais a conversa se concretiza seriam controladas (lim ita r os
ruídos, as passagens das pessoas...).
A fam ília é originária da M artinica. O a vô paterno é apresen­
tado, por seu filh o , co m o “ subdiretor de obras públicas” e “ respon­
sável por tudo". A a vó fazia, antes de morrer, “ servicínhos” em

258
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

fábricas ou ficava em casa. O co n tex to fam iliar (sete filhos, co n ­


tando o pai de Johanna) pode explicar a situação do senhor U ., quar­
to filh o, que é eletricista. C o m a m orte de sua mãe, o filh o diz que
se tom ou “responsável pela fam ília” : “ Perdi minha mãe, e então tive
que trabalha, ora” . U m a de suas irmãs (o terceiro filh o, com d ip lo ­
ma de 2a grau) trabalha, atualm ente, nas A n tilh a s com o “ diretora
de telecom u nicação, na pesquisa". Ele não tem condições de falar
de todos os outros irmãos com os quais não m anteve nenhuma
relação. Seus irmãos e irmãs foram à escola durante m aior ou m enor
tempo, mas não estão privados de qualquer capital escolar, Ê, en tre­
tanto, necessário observar que, em vários m om entos, o senhor U .
parece confundir os níveis escolares: o de um irmão que está “ no
1B colegial ou na 7~ série, qualquer coisa assim” , ou seu próprio n ível
escolar que afirma ser a “ 6a série” e, depois, em outro ponto da entre­
vista, quando sua m ulher declara ter ido até o colegial, “ a 7a": “ E,
é mesmo, não era 8a, me enganei, era o mats ou menos a 7a” . Tem
37 anos, trabalha co m o eletricista em uma empresa de obras pú bli­
cas com a qual é obrigado a deslocar-se inúmeras vezes (uma em cada
duas semanas). C h egou à m etrópole há 12 anos, fez um curso de
form ação profissional e o b teve um C ertifica d o de A prendizagem
Profissional de eletricista. Depois, fez um estágio de form ação em
eletrôn ica. E m uito sensível em relação às diferenças entre profis­
são qualificada e profissão não-qualificada (talando do trabalho da
irmã de sua mulher, ele diz: “ N ã o é uma coisa m ecânica, ora. Tem
uma diferença entre ser uma coisa m ecânica e, pior, ser, hem ...").
Em relação aos avós m atem os, a situação parece menos fa v o ­
rável: dois filh o s que v iv ia m sozinhos com a mãe, que “ trabalhou
em fábrica” . A irmã da senhora U . foi até o 2“ co legia l, mas ela
só fo i até o l fi. G ostaria de ter con tin u ad o os estudos, mas a situa­
ção fam iliar n ão o perm itia. T em 35 anos e trabalha co m o a u xi­
liar de enferm agem num hospital de Lyon. N ã o tem em vista to r­
nar-se en ferm eira porque “ agora é m u ito tarde": “ C o m três filh os,
não vou m u ito lo n g e".
O senhor e a senhora U . vivem m aritalm ente. T ê m três filhos,
dentre os quais um está escolarizado na 6a série (um m e n in o ), um
na 2a série do I e grau (Johanna) e um n o m aternal (um m e n in o).

259
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

O maior já está 1 ou 2 anos atrasado, e o pai parece falar, a respei­


to dele, um tanto quanto in coeren tem en te, quando lhe pergunta­
mos co m o está indo sua escolaridade: “ De m odo geral, a gente tem,
hem, não vou hatê palma pra ele, mas tá indo mais ou menos bem,
mas, nesse m om ento, não está lá assim” . N ã o sabemos realm ente
n o que é que ele quer insistir: no fato de seu filh o não ter proble­
mas na escola ou n o fato de estar atravessando uma fase ruim na
escola. Mas já até tala no passado sobre as expectativas profissio­
nais que tinha para ele. Ele “ teria preterido" (m as o filh o ainda não
com pletou a escolaridade) que o m en in o fosse mais longe que ele
escolarm ente, que tirasse o diplom a de 2B grau, ou, m elhor ainda,
que fizesse o “ mestrado” para tornar-se m éd ico ou advogado, e não
gostaria que ele se tornasse eletricista, pin tor ou m ecânico.
Do p o n to de vista das condições familiares objetivas, nada nos
parece poder explicar o “fracasso" de Johanna na 2a série do 1Hgrau.
U m pai operário qualificado e uma mãe empregada, um pai deten ­
tor de um C A P e uma mãe que fo i até o I e c o leg ia l. T u d o isso
distinguiria mais positivam ente essa fam ília de outras famílias ob je­
tivam ente menos bem-dotadas. N ã o apenas do ponto de vista das
condições da vida familiar, mas tam bém do ponto de vista do que
alguns chamam de a “ mobilização familiar” , estamos diante de um ca­
so em que tudo deveria correr bem. Mas este não é o caso. Johanna é
exatam ente a aluna de nossa amostragem que obteve a nota mais
baixa na avaliação nacional. Experim enta, em final de ano, gran­
des dificuldades em todas as matérias. Assiste-se, claram ente, neste
caso, a um caso paradoxal de superinvestimento escolar que não leva
aos efeitos esperados. E com o se houvesse uma distorção objetiva entre
os fins visados e os meios utilizados ou detidos para chegar a eles.
Num erosos índices mostram, contrariam ente ao que se imagina fre­
quentem ente, que não há nenhuma “ omissão” dos pais, nenhum
"abandono". O pai deseja para o filh o um belo futuro escolar, gos­
taria que se saísse m elhor que ele na vida, aplica sanções quando ele
cai escolarm ente, diz a seu respeito, co m o sua m ulher a propósito de
Johanna, que “é preciso a gente ticar atrás dele” . A mãe controla cons­
tantem ente a filha, manda-a fazer as tarefas, verifica se as fez corre­
tamente, controla suas notas, sua freqüência, pune-a ou bate nela

260
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

quando não faz as coisas corretam enre, com pra-lhe cadernos de


exercícios de férias, vai ver os professores para fazer-lhes perguntas,
pôs a filha na fonoterapia (há 2 anos)... A t é podem os destacar a prá­
tica do catecism o todas as quartas-feiras pela m anhã (form a escola­
rizada de transmissão da religião: com leitura, audições, diálogo...)
e a freqüência ao centro de atividades exrra-escolares, indicando uma
participação em instâncias educativas externas. E as palavras do
professor responsável por Johanna confirmam realmente essa impres­
são: "Sua mãe se expressa bem, hein?"; "ela é m uito acompanhada
pela mãe, que se preocupa com ela, leva-a à fonoterapia".
Mas as m obilizações ou os investim entos familiares, assim com o
os investim entos objetivos dos membros da fam ília, são impotentes,
parece, para m odificar o desem penho desta aluna. C o m efeito, isso
não é totalm ente exato. Tanta coerção fam iliar não deixa de ter um
efe ito sobre o com portam ento escolar da criança. N ã o é por acaso
que o professor observa que, apesar de seus maus resultados, “ela tem
vontade” , “ tenta, de qualquer forma, progredir” , “ é esforçada” , “ pro­
cura saber” , e que é “ uma m enina muito, m uito amável, que não tem
nenhum d efeito ” , ou que, “se aprende uma regra de gram ática” ,
“ sempre se lembra ou é capaz de aplicá-la” . D e qualquer forma,
alguns vestígios dos comportamentos familiares permanecem: ela não
é uma aluna instável, indisciplinada. Entretanto, podem os ficar
espantados com o baixo rendim ento escolar que uma tão grande m obi­
lização fam iliar produz. N a verdade, tudo isso só pode se tornar sur­
preendente se permanecermos num n ível m uito abstrato de d efin i­
ção de um com portam ento de "m obilização” , de "superescolarização”
ou de “ superinvestim ento escolar". Ë preciso considerar um pouco
mais de perto as práticas e os com portam entos familiares, assim
com o a econ om ia psíquica particular das relações pais-filhos.

O pai é operário qualificado, mas tem práticas de leitura in con ­


sistentes. Prefere ve r o jorn al television ado a 1er o jornal. Q u ando
o lê, interessa-se pelas notícias policiais e p elo futebol, mas não, tal
com o sua mulher, pela p olítica ( “ A política eu não gosto m uito, não
é meu cam po” ), da qual se sente m uito afastado. Foi fã de histórias

261
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

em quadrinhos populares na infância (Blek le Roc, Zemhla, A k im ).


Q uando ele diz: “ A ntes, outrora, lia m uito” , sua companheira com e­
ça a gargalhar, contrad izendo-o, co m isso, im ediatam ente. Ele,
então, acrescenta: “ A g o ra não ten ho mais tem po, sou mais te le v i­
são, ora". A senhora U . parece 1er um pou co mais que seu com pa­
n h e iro '". Ela com pra revistas (M atch, M axi, Femme A ctu elle) para
1er “ n o serviço", le Télé-Poche inteiro, é assinante de France Loisirs
e declara 1er um liv ro por mês. Entretanto, não é, de fato, capaz de
dizer o gênero de livros de que gosta. C o m o seu marido, enrola-se
um pouco em suas explicações: “ Q uando tenho tem po também, por­
que quando a gente trabalha, hein?, mais durante as férias, ou então
quando ten ho um tem p o” . E, mais adiante, torna a acrescentar
ainda: “ Eu gosto bastante de 1er, porque então, agora, eu leio menos
porque não ten h o tem po” .
A m b o s crêem que a en ciclopédia é para seus filhos e não para
eles. Quase nunca a utilizam, tanto quanto não utilizam os dois dicio­
nários ( “ M ais para enriquecer eles, porque ele [o filh o j nos faz uma
pergunta, ele só tem que olh ar lá” ). O ra, uma en ciclopédia co m o a
deles não é, sem dúvida, m uito acessível a crianças, m esm o às de
6a série (prin cip alm en te para um aluno co m dificuldade escolar).
Trata-se de um patrim ônio cultural que quase não é m obilizado
pelos pais e para o qual as crianças estão, sem dúvida, totalm ente
despreparadas. E um patrim ônio cultural m orto, não apropriado e
impróprio. Mas haverá metáfora mais perfeita para um p atrim ônio
cultural m orto do que a disposição que nós, imediatam ente, cons­
tatamos ao entrar na sala de jantar? O s volum es exibem , a quem os
esteja olhando, o seu corte de frente, e não a lombada.
N e m o pai nem a m ãe vã o à biblioteca m unicipal e tam bém não
levam os filhos ali. Johanna “está com eçan do a 1er” , segundo sua
mãe, mas não lê livros sem imagens. Ela n ão tem assinatura de algu­
ma revista para crianças e nunca pede livros, salvo quando está num
supermercado. N ã o tem um espaço pessoal para co locar os próprios
livros, que se espalham por toda parte em seu quarto (eles parecem
não estar arrumados).
Se postularm os a h ipótese de que, com o muitos operários qua­
lificados na prática e tardiam ente (e m estágio de form ação, por

262
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

vo lta dos 30 anos, mais d o que na escola por v o lta dos 16-18
an os), ou co m o m uitos em pregados em c o n ta to d ireto com pes­
soal mais qualificado (a auxiliar de enfermagem , oriunda do pessoal
de lim peza, está em c o n ta to com a enferm eira e com o m é d ico ),
o pai e a mãe m antêm uma relação am bivalente com a cultura esco­
lar, impregnada de reverência mas afastada da maioria de seus p o n ­
tos de referência, compreenderemos, então, o próprio estilo da entre­
vista. P o r um e fe ito de legitim id a d e, os entrevistados sem dúvida
orientaram , con scien te ou in con scien tem en te, suas respostas para
os pólos mais legítim os. N ã o é por acaso que a mãe n ão consegue
deixar de rir quando o m arido diz ter lid o m uito “ antes” . Ela ta m ­
bém não deixará de fazer o mesmo (aliás, o marido não estava mais
a li) a propósito de suas leituras de romances, sobre os quais não
conseguirá dar m uitos detalhes. Podem os, afinal de contas, per­
guntar-nos que va lo r devem os atribuir ás declarações dos pais a
respeito de seus n íveis escolares.
O u tro ponto central na com preensão desta configuração fa m i­
liar: a relação dos pais com a escrita. Dizem explicitam en te não gos­
tar de escrever e preferir telefonar ( “ N ã o g o s to de escrever” , diz prin­
cipalm ente a mãe, “ tom a tem po” ). O pai raramente se e n v o lv e com
a escrita dom éstica e pede explicações à m ulher sobre a m aneira de
preencher o form ulário de impostos (ela declara isso quando ele se
ausenta por um instante). M esm o que haja um evid en te desequilí­
brio do p on to de vista das tarefas dom ésticas de escrita “ a fa v o r" da
mãe ( “ Sim, tudo, papelada é co m ig o ” ), esta, organizando, mais do
que o companheiro, a vida familiar (p o r sua posição na divisão sexual
do trabalho dom éstico, ela gerencia o cotid ia n o dom éstico e é fo r­
çada a recorrer à escrita: lembretes, agenda para o estudo e para a
cantina dos filhos, cartas às repartições, bilhetes para a escola, fo r­
mulários de impostos ou de seguro social, listas de coisas a serem
levadas em férias, caderneta de números de telefon e e de en dere­
ços), quando não se vê forçada, também não utiliza realmente a escri­
ta ( “ Sim, no trabalho sim, a gente é obrigada, hein?, é, é, escrever
no trabalho, escrever aqui, assim de vez em quando, é...” ): nenhu­
ma lista de compras, pois estas são feitas espontaneam ente ao pas­
sar pelas gôndolas ("V o u , passo em cada prateleira, v e jo o que tá

263
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

faltando (riso) e pronto, tá pron to” ), nenhum a lista de coisas a


serem feitas (e x c e to para dizer aos seus para fazerem o que ela pró­
pria não pode fazer quando está trabalhando), nenhum a n ota no
calendário-agenda, que, outro detalh e revelador, está na data erra­
da quando da en trevista, nenhum liv r o ou cadern o de contas,
nenhum a nota antes de um telefon em a im portante, etc.
Essas ausências marcam uma organização doméstica m uito pouco
centrada na racionalização, na previsão e n o cálculo. O u tro índice
disso tam bém é o fato de que a mãe recon h ece não ser m uito “ orga­
nizada” : ela realm ente não arruma os docum entos fam iliares, que
tem dificuldade de encontrar, e faz os próprios filhos arrumarem os
quartos, recusando-se a intervir: “ N ã o é fácil, hein?, pra eles, bem,
mas eu d eix o eles fazerem, hein?, e eu não arrumo, hein?” . C o n fes­
sando que os filh os têm dificuldades para arrumar o quarto (Johan-
na chora para não fazer isso), faz pensar que os diferentes côm odos
devem ficar freqüentemente em desordem. Da mesma forma, os horá­
rios de deitar, de h igien e corporal e de refeições são freqü en tem en ­
te variáveis, in dicando c o m isso uma irregularidade nos ritm os
familiares. A ausência de disposição racional marcada, visível ranto
na ordem dos côm odos ou nos ritm os familiares quanto na m an ei­
ra de gerenciar a atividade dom éstica, pode revelar-se im portante
para a com preensão d o “fracasso” escolar de Johanna. A liá s , vem os
um efeito direto dessas características familiares nas palavras do pro­
fessor, referindo-se a Johanna, que gosta "de ter muitas coisas em
volta dela” .
Enfim, os modos de intervenção d o pai em relação ao filh o (fo i ele
quem puniu o filh o quando seu resultado escolar haixou) e da mãe em
relação à filha parecem ser muito coercivos. Q uando as coisas não vão
bem na escola, os pais reagem rapidamente, mas através da punição,
da chantagem, da sanção, da privação, da coerção. Q uando as notas
de Johanna são ruins (e elas o são freqüentem ente), a mãe diz que ela
“ leva uma surra” , que ralha com ela ou que faz chantagem com ela
co m os presentes de aniversário, em bora confesse que isso não fun­
ciona durante muito tempo, pois Johanna é qualificada de "cabeça-
dura". E preciso constantemente, segundo a mãe, lembrá-la de fazer
as tarefas, estar sempre “ atrás dela” , senão ela só quer brincar.

264
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Nesse aspecto, se ela não fizer as tarefas, a mãe tam bém ralha
co m ela. A mãe até ex p lica que, às vezes, a filh a fica estudando
até as 21h30, e que não va i se deitar en qu an to não tiv e r te rm i­
nado. O u en tã o ela a cham a às 6h da m anhã para que term in e as
tarefas. A m ãe ch ega a esclarecer que é m uito mais a prim a de
Johanna (21 anos, C e rtific a d o de C on clu sã o d o I a G rau P ro fis­
sionalizante de costura, agente de serviço n o hospital) que se encar­
rega de ajudá-la, pois ela própria acaba fica n d o nervosa e batendo
nela. A liá s , a filh a se d irige mais à sua prima, por causa d o c o m ­
po rta m en to da mãe: "Q u a n d o , às vezes, já lhe ex p liq u ei duas ou
três vezes e ela m e acaba fazen do a m esm a bobagem , en tão isso
me en erva e eu b a to n ela ” . P od em os dizer que, para as crianças,
a escola e tudo o que dela decorre (esp ecia lm en te as tarefas) p o ­
dem se mostrar, pelas experiên cias fam iliares que têm , co m o uma
ocasião de sofrim en to, de punição, de sanção, de privação, de ner-
vosism os, de surras, e assim p or dian te. Johanna freq u e n tem en ­
te esquece os cadernos na escola, ven do-se, assim, am eaçada pela
mãe ( “ F req iien tem en tc, sim, sim, e n tã o mais ameaças tam bém :
‘ V o cê vai leva r uma surra’ , ah, mas é freq u en te, h ein?” ), e p o d e ­
mos nos perguntar se o esqu ecim en to dos cadernos ou dos livros
não é um a to fa lh o so cio lo g ica m en te co m p reen sível da parte da
m enin a: é fácil esquecer de leva r o b jetos que são a o rigem de uma
ex p eriên c ia dolorosa"-'.
N u m p o n to de vista superficial, poder-se-ia ver, nas práticas
de vigilân cia, de c o n trole, de cham ada à ordem , os índices de uma
m obilização fa m ilia r p o s it iv a " 1. A mãe co n h e c e bem a situação
escolar da filh a , sabe que não repetiu, está tam bém a par de suas
dificuldades escolares, que com eçaram na pré-escola, “ em todas
as m atérias” ; na sua o p in iã o , é o d ita d o que lhe traz mais p r o b le ­
mas — e o professor observa, co m e fe ito , grandes dificuldades em
ortografia. A senhora U ., aliás, vai regu larm ente ver o professor,
faz perguntas a ele sobre o trabalh o da filh a , pergu n ta-lh e se ela
está p rogredin do, se ela é “ ajuizada” ou “ distraída” em aula, vai
às reuniões da escola co m o m arido e acha que é ú til porque
fica m sabendo “ o que está a co n tece n d o na escola” . D urante os
longos períod os de férias, Johanna fica em casa co m a prim a ou

265
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

en tão viaja para a M artin ica; com pram -lhe cadernos de exercícios
de férias e ela tem de estudar 2 horas rodos os dias, apesar do fato de
ela “ rebelar-se".
Mas vemos, ademais, numa tal configuração fam iliar perpassa­
da por contradições culturais (p o r desejos e expectativas para cuja
realização não se encontram os m eios con cretos), os índices de
uma m obilização fam iliar de efeitos negativos não controlados. A s
crianças parecem estar submetidas a um sistema de double bind* com
pais que punem sem dar o “ bom ex em p lo ” e que incitam exclusi­
vam ente em form a de sanções. O s princípios ou as vontades apre­
goados pelos pais diante de nós ou diante dos filh os podem tam­
bém nem sempre ser colocados em prática. Enquanto a mãe diz que
é obrigada a lutar para que a filha faça as tarefas, em vez de v er te le ­
visão, esta tica ligada durante quase tod o o tempo da entrevista: está
ligada sem que alguém em particular a esteja vendo, quase com o
uma emissora de rádio que se teria posto co m o fundo sonoro.
N o decorrer da entrevista co m Johanna, esta apresenta suas
ações depois da saída da escola na seguinte ordem : lanche, tarefas,
televisão, brincar com o irmão — prestando bastante atenção para
colocar as tarefas antes da televisão, com o a mãe não pára de lhe
repetir. M as se Johanna afirma tam bém preferir leitura a televisão
(interiorizou bem a legitim idade relativa das duas práticas), fala mais
dos programas a que assiste ( “ V e jo Madame est servie e Sauve' par le
gong, e P ro f et tais-toi" ) do que dos livros que lê. D a mesma forma,
a mãe diz, primeiro, que a filha não pode descer para brincar; depois,
diz que vai brincar, às vezes, com o irm ãozinho; e acrescenta, mais
adiante na entrevista, que, nos fins de semana, quando o tem po está
bom , ela “ a manda descer” .
A lé m disso, a mãe diz, o que pode parecer contraditório com o
investim ento escolar, não “falar m u ito" da escola com Johanna, com
exceção do que eventualm ente tenha acontecido n o recreio (acerca
das outras crianças que possam estar in com odan do a filh a ).
Entretanto, talvez não seja tão contraditório assim: o diálogo fam i­
liar a respeito da escola parece reduzir-se a um m o n ólo go dos pais

* Em inglês, no original. {N.T. )

266
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

sobre os estudos de Johanna (vigilân cia, acom panham ento, contro-


le, chantagens, punições...), e Johanna, de fato, não ter nunca opor­
tunidade de falar de sua experiência escolar ou de “ ter explicações"
calm am ente, sem excesso de nervosism o, isto é, que as tentativas
de trabalho escolar n ão estejam associadas sistem aticam ente com
experiências in felizes"1.
Apesar da maneira “ correta” com o os pais falam, sentimos a fra­
gilidade das inform ações e a frágil coerência de algumas de suas
palavras. Por exem plo, é com o se o pai quisesse em pregar uma retó­
rica, expressões, fórmulas, palavras ( “ mestrado", “ laboratorista"...)
que dão aparência da “ boa linguagem ” , da “ boa maneira de falar” ,
sem dominá-las de fato. C o m isso, o em prego delas é um pouco vago
ou aparece em contextos sintáticos ou semânticos nem sempre m uito
pertinentes. O que as palavras dizem, e os valores que elas parecem
encerrar, entra im ediatam ente em contradição com o em prego que
delas se faz. Isso também acontece com sua mulher, cujo discurso se
caracteriza por imprecisões léxicas e raciocínios um tanto quanto
imprecisos. A liás, a entrevista co m Johanna revela uma m enina
bastante tímida, que fala baixo, quase sussurrando, co m o que para
não fazer barulho, e que sente, com o os pais, certa dificuldade de falar
de maneira coerente e exp lícita '” . N a entrevista, alguns “ eles” , “ a
gen te” , “ nós" rem etem a pessoas raram ente explicitadas, salvo pedi­
do de nossa parte. C o m o em relação a seus pais, podem os dizer que
há imprecisões em sua linguagem, e que ela tem formas de raciocinar
um pouco surpreendentes. Quando lhe perguntamos, por exem plo, o
que prefere na escola, ela inicialmente responde que é “francês" e "m ate­
mática” . Depois diz que o que gosta menos são “ os exercícios". E final­
mente acrescenta, depois de um pedido de esclarecimento: “ Fora os
exercícios de m atem ática e francês, não gosto dos exercícios de, de...
(silêncio de 7 segundos) gramática". A lé m disso, Johanna não d om i­
na a n oção de tem po (duração e horas): não consegue avaliar quan­
to tem po dura seu trabalho escolar da noite, diz que deita às 9h da
noite, mas não sabe a que horas se deita nas noites em que fica acor­
dada até mais tarde: “ Depois de Ecjualizeur” "".
Se quisermos acrescentar um últim o retoque ao perfil familiar, é
preciso, sem dúvida, considerar o fato de que ambos os pais traba­

267
SUCESSO E5COLAR NOS MEIOS POPULARES

lham, a mãe co m horários variáveis e o pai viajan d o durante uma


semana em cada duas. Mas essas situações profissionais que apenas
possibilitam pouco tem po de dedicação aos filhos não explicam
nada em si mesmas. É apenas recolocado no seio da configuração fami­
liar de conju n to que esse últim o aspecto pode adquirir um sentido
particular.

♦ Perfil 21: Os limites da despesa familiar.


fiais H . , nascido em Villerbanne, um cmn atrasado (repetência da l “ série
do 1- grau) , obteve 6,7 na avaliação nacional.

Estamos adiantados para o en contro; a senhora H . acaba de


chegar do trabalho e se apressou para estar em casa antes de nossa
chegada. Está um pouco maquilada, usa roupas modernas. A casa,
bem cuidada, parece-se, em sua decoração, mais co m um lar euro­
peu do que outras casas magrebinas visitadas"7.
Durante a entrevista, ficam os sentados num sofá. A nossa fren­
te, a senhora H . sentou-se numa poltrona. Entre nós há uma mesa
baixa. A irmã mais velha de Kais tam bém está sentada no sofá, à
nossa direita. M en in a sorridente, am ável, responde, algumas vezes,
às nossas perguntas e se expressa com o um adulto. Sua mãe fala arras­
tando os “ r” e pronuncia “ té” por “ le", “ pé" por “ peu", “ ti” por “ tu",
“ journi" por “journée” ... Tem , portanto, um forte sotaque tunisiano,
mas se faz compreender. Quase no final da entrevista, a irmãzinha,
Kais e o irmão mais velh o chegam e se instalam, por algum tem po
— os meninos atrás da mãe, a m enor a seu lado — , para escutar nossa
conversa. O fu ncionam ento da entrevista é perfeitam ente revela­
dor da configuração fam iliar o pai está no trabalho, a innã mais velha
responde às perguntas junto com a mãe e os m eninos estavam fora
e só intervirão quando chegarem , no final da entrevista.
O senhor H ., de 45 anos, nunca foi à escola na Tunísia. “ E a fam í­
lia dele, é um pouco pobre e tudo. Ele não encontrou os meios. Sua
mãe trabalhou um pouco nas casas para ajudá-lo um pouco. Ele não
chegou a estudar ou algo assim.” Fez vários tipos de serviços ( “ Em
qualquer lugar, quando ele acha alguma coisa de bom, ele faz, hein?” )
antes de vir para a França, há quase 20 anos. Desde o in ício, está

268
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

rrabalhando c o m o pedreiro na construção civil. A pren deu francês


quando chegou à França, mas não sabe 1er nem escrever (n em em
árabe, nem em francês). Seu pai, lavrador na Tunísia, morreu antes
mesmo de ele nascer. Sua mãe estava gravem ente doente, e depois
“ficou inválida". Era o filh o que a ajudava financeiram ente.
A senhora H., de 35 anos, foi à escola na Tunísia durante 6 anos.
Durante 3 anos estudou apenas árabe, e depois o árabe e o francês,
por mais 3 anos. Sabe 1er e escrever em árabe, e lê e escreve com
dificuldades em francês ( “ Tem erros"). C o n h eceu o marido quando
este estava de férias na Tunísia, há 13 anos, e, desde então, v iv e na
França. Faz 5 meses que ela com eçou a trabalhar com o faxineira em
diferentes locais, em prego que a obriga, às vezes, a horários até tarde
da noite. Seu pai teve mais ou m enos o mesmo n ível escolar que ela
e, antes de aposentar-se, era cam inhoneiro por conta própria (trans­
portava frutas e legumes). Sua mãe, analfabeta, não foi à escola.
O senhor e a senhora H . têm quatro filhos: uma m enina de 11
anos, escolarizada, na 5a série; um m en in o de 10 anos, escolariza­
do, na 3â série (série em que ficou retid o no ano anterior); Kais,
escolarizado, na 2- série do l s grau, e uma m enina de 6 anos, esco­
larizada, na pré-escota, e a propósito de quem eles nos explicam , de
im ediato, que é a prim eira da sua classe.
O caso de Kais nos fornece o exem p lo de um m eio social que,
aparentem ente, apresenta todas as características do m eio “desfavo­
recido". Se falarmos a linguagem das variáveis e se objetivarm os esse
m eio com a ajuda de variáveis sociologicam ente clássicas, nos encon­
traremos em face de uma situação objetivam ente desfavorável. O pai,
pedreiro, é analfabeto. A mãe, faxineira, com um pequeno capital
escolar (em relação a outras configurações familiares em que a crian­
ça estava em “fracasso” ), dom ina o francês com dificuldades e, caso
tenha lido na juventude, não lê quase mais nada: “ A n tes de me casar,
eu pegava em árabe, às vezes em francês, e tudo, eu leio. Mas desde
que... Estou ocupada, não sei, não encontro tem po (ela ri)". De vez
em quando, com pra um jornal tunisiano, em francês ( “ Para saber,
nosso ministro, o que é que ele c o n ta ") e uma programação de tele­
visão. O senhor e a senhora H . possuem o A lco rã o , mas apenas o
lêem raramente, pois aprenderam preces de cor na infância.

269
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Esse ripo de situ ação pode leva r a du vidar da im p ortân cia da


“ o rigem socia l” ou d o “ m e io so cia l" d o alu no para co m p reen d er
sua escolaridade. Em verdade, é sinal de que essas categorias glo -
b a lm en te (esta tis tic a m e n te ) p ertin en tes cam u flam as m últiplas
relações sociais, os m ú ltiplos processos que tornam possíveis um
“ sucesso" ou um “ fracasso" escolares. O s fracos in vestim en tos são,
neste caso particular, compensados por maneiras de fazer, por orga-
nizações e o rien ta ções fam iliares. E a mãe quem , a partir de um
m odesto ca p ita l escolar, opera um tra b a lh o de in te rm e d iá rio
en tre os filh os e uma cultura da escrita. A senhora H . leva e vai
buscar os filh o s na b ib lio te c a m u nicipal ( “ O n te m eu le v e i dois...
m inha filh a e uma outra filh a . L e v e i lá até as 7h. Fui buscar elas.
Eu... eu n ão fiq u e i. (R in d o .) Estou sem pre ocu pada aqui em
ca sa "), às vezes lê um liv r o co m eles e o lh a os que eles trazem da
b ib lio teca . Ela m anda-os 1er, revezando-se, páginas de uma h is­
tória ( “ E de vez em qu an do tam bém eu fa lo pra ela, está bem ,
ela pega o liv r o e o o u tro lê, lê uma página, o ou tro lê uma p á gi­
na. É sem pre assim, essa é a página de K..., essas é as página de
Kais, a gen te d iv id e en tre eles assim pra 1er um liv r o num a ou
duas hora, assim m esm o. É bom , assim ele lê, m esm o não qu e­
rendo, eu fa lo pra ele, é preciso isso e v o c ê num va i sair” ), ou
manda a mais v elh a 1er histórias em voz alta durante as férias para
os irmãos e a irmã: “ M in h a filh a de vez em qu an do m e lê argu-
ma coisa” . Q u a n d o Kais era pequ en o, ela lia para ele ou c o n ta ­
v a -lh e tam bém histórias em francês antes de ele dorm ir. Da
mesma form a, às vezes, ela manda os filh o s escreverem p eq u e­
nas histórias, e Kais, co m o verem os, que tem ten d ên cia a c h o ­
rar quando tem de fazer tarefas extra-escolares; escreve sem pro­
blem a, pois isso ganha a form a de um jo g o : “ Â s vezes eu d ig o pra
eles assim: ‘ Im agin em que vocês estão co m um m e n in in h o pobre
ou qualquer coisa, co n tem o que é que ele fez ou um ric o pra saber
onde ele v a i’ . De vez em quando, quando eu m ando eles fazê assim,
pra fazer h istorinh a assim. C ada um faz a h istória que sabe. [Kais]
Ele faz coisas assim, sim. N ã o chega a fazer uma grande coisa, mas
só três ou quatro lin h a ". E nfim , resolve co m os filh o s palavras-
cruzadas, joga “ T r iv ia l Pursuit” e “ D eux M ille M o ts ". A sen h o ­

270
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ra H . opera, co m todas essas práticas, to d o um trabalh o de pôr


os filh o s em c o n ta to co m uma cultura da escrita.
Dá prova também , além de suas práticas de gestão da escrita, de
um gosto pela escrita que pode desempenhar um papel incitador junto
aos filhos. Redige freqüentem ente (ainda que menos frequentem en­
te do que quando não estava trabalhando) cartas em árabe para a
fam ília ( “ Sim, freqüentem ente, ora! N ã o faz nem dois ou três dias,
escrevi quatro, cin co cartas para a fam ília, com o meu cunhado e
m inha mãe, para m inha fa m ília e para m inha irm ã "), gosta de
copiar receitas em uma caderneta, troca pequenos bilhetes em cum­
plicidade com a filha mais velha: “ De vez em quando, sim, com minha
filha, assim, a gente escreve bilhetes secretos". E ela também quem
arruma as fotografias, indicando, quando tem tem po, a data, e até
afirma ter tido, quando era jo vem , uma espécie de diário íntim o:
“ A n tes, fazia às vezes, assim, pra passar o tem po, gosto bastante de
contar minha vida, assim. O que a contece com meus pais, em volta,
tudo. Escrevo três, quatro folhas...” .
Foi ainda a senhora H . quem pensou im ediatam ente, quando
com eçou a trabalhar, em compensar sua ausência, recorrendo a uma
estudante que ajudasse os filhos todas as noites: “ Eu falo, é isso, eu
não tenho todo o tem po, eu pago ela para que ela fique no meu íugar".
Mas acrescenta que a estudante pode contribuir com uma ajuda
mais eficaz do que ela: enquanto seus filhos estavam em séries bem
iniciais, ela podia ajudá-los ( “ Porque eu, antes, as coisa fáceis, eu
conheço, mas...” ), mas, segundo ela, a filha mais velha, agora, já sabe
mais do que ela. Foi sempre ela quem soube manter com a filha uma
relação de grande cum plicidade e quem a estimulou a cuidar esco­
larm ente dos innãos e da irmã. Esse con ju n to de ações, que poderia
assemelhar-se a um verdadeiro plano educativo prem editado, ape­
nas é o produto do sentim ento que a mãe tem da importância da esco­
la para acesso a em pregos mais decentes do que o de seu marido ou
o seu. A liás, freqüentem ente cita o exem p lo d o trabalho m uito can­
sativo do marido para dizer aos filhos que é do interesse deles estudar
bastante em aula: “ Vocês tão ven do co m o o pai de vocês trabalha,
é muito duro. Ele trabalha muito. Se vocês trabalham um pouqui­
n ho assim, depois vocês vão descansar um pouquinho. É m elhor ser

271
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

um professor assim, ou qualquer outra coisa, no quentinho, n o limpo,


não é com o meu marido. N o inverno, precisa vestir três, quatro coisa”.
Ela própria surge co m o uma pessoa um pouco frustrada com a esco­
la, até confessando aos filhos que, se estivesse no lugar deles e não
tivesse se casado, teria continuado os estudos, pois, na França, os pro­
fessores são amáveis ( “ A am abilidade conta também pras crian ­
ças” ), ao passo que, na Tunísia, eles batem nos alunos com bastões,
se não souberem as lições de cor. C o m uma grande energia e uma
grande fé na escola1", ela faz, portanto, frutificar seu pequeno capi­
tal escolar para além d o que ele parece poder produzir, apoiando-se,
para tanto, na filh a mais velh a e na estudante.
Pelas razões que conhecem os, é a mais velh a quem responde
espontaneamente às perguntas sobre as dificuldades escolares de Kais.
Ela, na verdade, está muito próxima do irmão em matéria de escola­
ridade. Diz que Kais, assim com o o irmão mais velho, tem maiores
dificuldades em francês do que em matem ática ( isso, aliás, se confir­
ma nos resultados da avaliação nacional, em que Kais obteve 6 em
francês e 7,4 em matem ática). Kais “ às vezes pede à irmã para ajudá-
lo nas tarefas", e esta esclarece de fato que nunca as faz em lugar dele:
“ Eu explico pra ele e d eixo ele se virar. A n tes de explicar pra ele, eu
falo pra ele: ‘Se você me pedir pra fazer pra você, num vô fazer’. Então
ele me fala: ‘T á bom, então me ex p liq u e'” . Q uando o irmão term i­
na o trabalho, ela o “ corrige” . Este só quer fiazer o que os professores
pedem, mas não outros exercícios que a irmã ou a estudante lhe dão
( “ Se eu falo pra ele, toma lá, ele chora: ‘N ã o , não, eu não preciso disso,
não é o professor, ele não disse’ ” ); ele chora freqiientem ente, mesmo
quando tem de aprender as lições. A mãe acrescenta que os resulta­
dos de Kais são irregulares. Quando tem notas baixas, ela lhe diz “ que
precisa prestar bastante atenção no professor", e o priva também de
televisão para que vá fazer as tarefas: “ Sim, de vez em quando, tem
desenho animado o dia inteiro, então eu falo: ‘Taí, vou desligar a tele­
visão. V ã o pro quarto estudar um pouquinho’. D e vez em quando eu
digo: ‘É , é quarta-feira ou algo assim — é de manhã — , deixa um
pouquinho de televisão à tarde’, é isso, eu desligo. N o sábado à noite,
ele põe uma fita que ele aluga ou algo assim. E n o dom ingo, assim, a
tarde inteira eu falo pra ele: ‘Chega, teve televisão o sábado inteiro.

272
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

É isso, chega, hoje é estudar um pouco, eu desligo a televisão' " ll". A c o n ­


selhada pelo professor dele da I a série d o I “ grau, durante as últimas
férias, a senhora H . com prou-lhe um caderno de férias. D e vez em
quando, também a irmã mais velha brinca de professora e manda os
irmãos e a irmã fazerem pequenos exercícios escolares, e depois atri­
bui notas a eles.
A senhora H. passa a imagem de alguém que é, ao mesmo tempo,
o com andante do barco familiar, direcionando-o, e o simples grume-
te que cuida de todas as manobras a bordo ( “ Ele [seu marido] está ocu­
pado desde a manhã até a noite, vem lá pelas 7h. Está cansado do
seu dia” )- Assim, é ela quem cuida dos documentos familiares: “ E eu
que faço eles, purque meu marido num rem tem po e não sabe muito
bem. Então, eu sei um pouco mais que ele. Eu me viro um pouqui­
nho pros documentos, pra preencher o cheque e tudo, porque o tra­
balho dele é duro, quando ele chega, é isso, ele descansa um pouco".
Ela nunca pede ajuda a alguém. Q uando m orava em um bairro mais
central de Lyon (h á 4 anos), sua vizinha a ajudava um pouco, mas
não mais agora. É ela quem preenche o formulário de impostos, quem
cuida da caderneta de endereços e de números de telefone, quem faz
resumos para cuidar de todas as atividades familiares (" A s vezes, por­
que esqueço um pouquinho, ao lado da escrivaninha de minha filha
ou algo assim, eu falo, é isso, para quando eu voltar, eu ve jo logo em
seguida. Se eu tenho uma hora marcada ou algo assim n o m édico,
para as crianças ou qualquer coisa. É preciso eu vê diante de mim, se
não, esqueço (eia r i)” ), quem classifica os documentos ( “ Eu pus em
saquinhos todas as fichas de pagamento, com um letra grande assim,
as coisas assim, eu classifiât de vez em qu an do"), quem escreve co i­
sas no calendário (comprom issos...) e quem faz anotações após uma
chamada telefônica (endereços ou números de telefon e).
N ã o tem caderno de contas, mas verifica, de qualquer form a, os
extratos bancários a cada 15 dias para saber o que foi retirado e o
que fica, e tem uma preocupação evid en te (ju n to com o m arido)
de calcular, de prever, de antecipar as coisas futuras, que a leva a
refletir mesmo durante a noite: "N ã o , mas, ora! A gente sabe o que
a gente tem. Se tem 4 m ilhão, então, é preciso deixar 3 m ilh ão pras
férias. E para as despesas de 2 ou 3 meses. A in d a tem 3 ou 4 meses

273
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

pra chegar, o que é que a gente vai fazer mais ou menos? E se acon ­
tece alguma coisa... Sei lá, uma coisa qualquer pra com prar pra casa
ou qualquer coisa. Então, deixa 1 m ilh ão ou coisa assim de lado.
N ã o é uma grande soma, das (riso) de patrão. A gente pode calcu­
lar sozinha assim, de cabeça. Sim, tudo, sempre assim, quando a gente
tá sentada à noite, assim um pouquinho, a gente calcula tudo. Pre­
cisava isso, precisava aquilo. O que é que a gente vai gastar? O que
é que precisava deixar um pouco de lado?” .
O papel da senhora H . consiste em cuidar da fam ília, em fazer
que tudo fu n cion e da m elhor form a possível (leva n d o , por ex em ­
plo, os filhos à bib lioteca e vo ltan d o para continu ar o trabalho da
casa). Em sua brava von tade de p rom over os filhos, a senhora H .
até se m antém a distância no bairro ( “ mal frequentado” , segundo
os termos da filha). N o entanto, eles compraram o apartamento onde
estão m orando e têm um fin anciam ento de 10 anos: “ A gente pro­
curou em outro lugar, mas não era, é menos caro aqui, depois, a gente
tava aqui e então a gente comprou. T á fazendo, é, quase 4 anos, ou
por aí, a gen te com prou aqui, mas...” . Entretanto, ela esclarece que,
se tivesse as condições financeiras, não ficaria nem um ano num
bairro com o aquele, on de se põe fo g o em carros: “ A g o ra , os jovens,
então, v o c ê olha pra eles assim, olha por acaso, assim. E então, ele
se zanga, fala qualquer coisa. Por que vo cê está olh an do pra ele ? Por
quê? N ã o sei, eles são tão cheios de si! Isso é que m e dá m edo aqui.
Eu procurava tan to me mudar daqui, mas o m eio é... Se fosse d ife ­
rente, ora, eu não ficava aqui nem mesmo um an o” . A liás, ela não
deixa Kais sair m uito freqüentem ente para brincar fora por todos
esses m otivos, e previn e-o de que se h ou ver uma baderna, mesmo
que não tenha sido ele a começar, é ele quem vai ser castigado. Ten do
m orado num bairro de Lyon onde tam bém havia fam ílias france­
sas, ela pensa que ali as crianças teriam mais oportunidades para ter
“ sucesso” . E d ifícil, segundo ela, “ aprender” num bairro com uma
grande proporção de imigrantes, pois com o tem muitos filhos de im i­
grantes nas classes, isso se torna mais duro: "E duro que a gente é
tudo im igrante. E duro deixar eles bem na escola. E a prim eira vez
que estou m orando aqui. Tudo é mais duro porque a gente era tudo
im igrante aqui. E, é duro pra vo cê aprender o francês com o os

274
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

outros. U m nasceu aqui, o outro nasceu na Turquia ou na Tunísia,


depois tudo fica misturado e tudo. Isso é duro” .
Sempre com a preocupação de que os filhos tenham “ sucesso" na
escola, ela também gostaria que os horários de estudo livre da tarde
fossem mais eficazes, mais organizados e mais sérias. Kaís fica no horá­
rio de estudo desde que a mãe com eçou a trabalhar, mas ele próprio
diz, assim com o o irmão mais velho, que não consegue estudar lá,
porque tem barulho e tod o mundo fica brincando. A senhora H . c ri­
tica, portanto, o horário de estudo para dizer que não é sério; ela até
estaria disposta a pagar para ter horários de estudo em que as crian­
ças fossem fiscalizadas quando estivessem fazendo as tarefas, ajuda­
das quando n ão compreendessem e corrigidas n o final do horário.
Sabendo de tudo isso, podem os considerar que as palavras do
professor de Kaïs a respeito de seus pais constitu em uma espécie
de injustiça in terpretativa em relação à intensa energia em prega­
da pela mãe, que acom panha regularm ente a escolaridade, o fe re ­
ce m eios aos filh os a lém de suas próprias capacidades, vai ter co m
os professores quando é con vocada, trabalha tora freq u en tem en ­
te até as 20h ou 20h30 e, às vezes, só v o lta para casa depois de
2 lh : "N ã o , os pais, a gen te os v ê raram ente. A mãe essencialm en ­
te quando há necessidade, bem, a gente a chama, ela vem . Por outro
lado, tem esse créd ito de co n fian ça que se dá, que é p o s itiv o por
um lado e n e g a tiv o por outro, e que faz co m que a gen te n ão a
veja se n ão fo r cham ada. N ó s é que somos os professores, remos
de fazer nosso trabalh o” .
Da mesma form a, a recusa da mãe em aceitar que a filh a mais
velh a fosse viajar para ter aulas de in iciação ao esqui, n o ano a nte­
rior, n o m o m e n to em que esta estava co m dificu ldades na 4 a
série, mostra o profu n do m a l-en ten d id o en tre alguns pais, v o lt a ­
dos para a a tivid a d e escolar estrita e c o n h ece n d o os esforços c o n ­
sideráveis despen didos para ch egar a resultados corretos, mas
n em sem pre brilh an tes, e professores, com , sem dú vida, uma
ped agogia o b je tiv a m e n te vo lta d a para m eios sociais mais bem -
dotados, para os quais os “ fracassos” escolares são re la tiva m en te
im prováveis. O a n tig o professor da 3a série da irmã con ta, com
um toqu e de con d escen d ên cia : “ Ela tin h a id o mal n o in íc io do

275
SUCESSO ESCOLAR N05 MEIOS POPULARES

an o anterior, e a professora queria fazer uma excursão com seus


alunos para aulas de in iciação ao esqui, e a mãe não p erm itiu p or­
que n ão en ten d ia. É também um pouco o problema com esses pais,
é que ela não entendia. Ela me tom ou por testem unha (e u tinha
ten tado e x p lic a r-lh e ) de que co m ig o , eu era um bom professor,
porque c o m ig o ela ia bem e com a professora, era uma má p r o ­
fessora, porque só dava aula de ginástica e só fazia excursões e tudo,
e assim, ela não estava estudando m ais".
Kais só fo i durante 4 meses à escola maternal, e prova, com sua
adaptação escolar rápida, o papel d o m odo de socialização familiar.
N a 2a série do 1Hgrau, ele é descrito com o um aluno que não é “ mau” ,
“ bastante am ável, apagado” que, “ às vezes, tem dificuldades de
com preensão", mas que, de qualquer m odo, “ n ão deixa" de acom ­
panhar, faz as tarefas, “ sabe a tabuada de c o r” , é “ calm o” , “ a ten to” ,
“ cuidadoso” , não cria problem a na aula, fica sempre calado, às vezes
“ fica n o mundo da lua” e “ é um pou co au tôn om o". Essa é a situa­
ção escolar, correra, mas apenas correta, de uma criança cuja mãe
d esen volve numerosas estratégias educativas. E preciso, portanto,
muita energia materna para atingir resultados corretos.
É im portante, para com preender ainda mais a situação escolar de
Kais, observar que sua irmã mais velh a era, segundo os professores
d o primário, “ uma aluna muito boa, m uito escolar", que tinha “ algu­
mas dificuldades, mas era m uito estudiosa", “ era m uito aplicada” e
“ cuidava bastante" de seu trabalho. Temos, pois, com a irmã mais
velha, com o que uma variante mais brilhante do m odelo com por-
tam ental das crianças dessa fam ília. A o contrário, o irmão mais
velh o de Kais é julgado por esses mesmos professores co m o um aluno
que tem "enorm es dificuldades escolares” , que é "preguiçoso em
relação a seus irmãos e irmãs” e não “ se interessa” pela escola. Mas
os m eninos são apresentados pela mãe com o os que têm os maiores
problemas escolares: “T en to para os m eninos se m elhoram um pou­
quinho". Sabemos tam bém que eles lêem menos e gostam m enos de
le r d o que as irmãs. Kais vai à b iblioteca municipal e à b iblioteca da
escola, mas a irmã mais velha diz que ele não gosta de romances e
de contos, pois não aprecia os livros nos quais há m uito tex to e que
demoram para ser lidos: "U m livro assim em 20 minutos, ele lê um

276
PERFIS BE CONFIGURAÇÕES

livro, assim sim. Mas quando vo cê dá pra ele um livro de um ou dois


dias ou algo assim...” . A mãe também constata que é preciso mandá-
lo 1er, e que não fará isso por gosto próprio: “ Trabalha bem na esco­
la, mas pegar um liv ro assim, sozinho, num canto... N un ca é pra ele,
mas (rind o) pra mim . Se vo cê fala pra ele: ‘ L ê !’, ou então eu forço
ele: ‘Tom a, precisava te trazê cin co liv ro ’ . Eu falo: ‘T od o dia você
vai 1er um ou algo assim’, então ele lê. Mas é só assim, não por seu
gosto” . Em contrapartida, as duas meninas parecem ter interioriza­
do o gosto pela leitura, e a senhora H . confessa ficar espantada, às
vezes, com as palavras empregadas pela mais nova, “ primeira da
classe", extraídas de suas leituras: “ Da outra vez, disse num sei o quê
pra sua irmã. Eu falei: ‘O que é isso? A s palavras, é m uito grande pra
cabeça dela’ , eu brinquei” .
Será que este não é o caso do efeito da diferença sexual dos papéis
n o seio da fam ília? A s meninas têm a possibilidade de construir sua
identidade sexual sobre o m odelo de uma mãe que conjuga o fato
de cuidar dos docum entos e gostar de escrever, de se preocupar com
a escola e de ter sido frustrada com ela... Observam os, principal­
mente, a cum plicidade estabelecida entre a senhora H. e a filha mais
velha, que desempenha, em determ inados campos, o papel de uma
segunda mãe (escreve os bilhetes para a escola, consulta um d ic io ­
nário quando a mãe tem necessidade de escrever uma palavra, troca
bilhetes com ela, cuida da escolaridade dos innãos e da irmã...). A p e ­
sar das incitações da mãe, os m eninos d evem construir sua id en ti­
dade sexual com um pai analfabeto, ocupado com um trabalho
estafante, dom esticam ente v o lta d o para a recuperação de sua força
de trabalho e totalm ente alheio aos problemas escolares.

♦ Perfil 22: O investimento escolar.


Sabine G ., nascida em Bron, sem nenhuma repetência escolar, obteve
7,5 na avaliação nacional.

A senhora G . é uma mulher acolhedora, que gosta m uito de falar.


C o m ela, fizem os uma das entrevistas em que as respostas eram as
mais longas. M anda-nos entrar na sala de jantar do apartamento.
O côm odo, espaçoso, está bem-arrumado e possui um jo g o de sofás

277
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

de couro, uma mesa redonda co m cadeiras, um iiving e uma te le v i­


são colocada sobre um m óvel. N otam os, numa das paredes, uma foto
d o senhor G . m on tado num cavalo. Conversam os sentados em
vo lta da mesa, e a senhora G . se levantará uma vez para ir buscar
um volum e de uma enciclopédia. Por volta das 18h, Sabine e o irmão
chegam da escola.
A senhora G ., de 3 5 anos, fez a m aior parte dos estudos em esco­
las particulares. Ficou m im internato de freiras na 3a e 4a séries ("Eu
aprendia bastante na escola. N ã o era uma m enina d ifíc il” ) e c o n ­
tinuou os estudos até a conclusão do 2B grau, na área de m atem á­
tica e ciências naturais, n o ensino particular. ( “ N ã o fui brilhante,
mas term inei, hein?” ). Depois de um ano de faculdade, em curso
de biologia, pouco decisivo, a conselho da a vó que foi quem prati­
cam ente a educou, prestou concurso público e fo i aprovada: “ M in ha
a vó tinha a cabeça bem no lugar. V eja isso, era uma a vó que apren­
dia bem na escola, teria conseguido... Foi à escola durante muito
tempo. Falava m uito da professora dela, hein? a m inha avó. E, a mãe
de meu pai. A liá s, depois, quando a gen te saía do internato nos fins
de semana, a gente ia pra casa de minha avó, hein? Portanto, a gente
teve boa base para a vida com ela, e então, ela falava: ‘ Bem, vo cê
d evia prestar concurso para entrar n o funcionalism o', e então, foi
o que fiz". N u m prim eiro m om ento, passou num concurso que e x i­
gia diplom a de 1“ grau, depois em outro com n ível de 2 a grau, o
que lhe possibilitou ser secretária adm inistrativa. Seu pai, in icia l­
m ente agricultor, se tornou operário, prim eiro numa fábrica de
rolhas de plástico, depois no Progrès de Lyon. T in h a um certificado
de conclusão do prim ário. A mãe da senhora G . morreu quando ela
só tinha 5 anos.
O senhor G ., de 37 anos, “ é apaixonado por cavalos” . Trabalha
desde os 14 anos com cavalos de corrida. E “ auxiliar de viagens” e
cavalariço. Q uando não os está transportando, “ é ele quem prepa­
ra os cavalos para que corram ” . O b te v e o certificado de conclusão
do prim ário e depois fez um estágio prático n o cam po d o hipismo:
“ N ã o é que não aprendesse na escola. Bem, preciso dizer-lhes que
ele também perdeu a mãe com 8 anos. Ele tinha o pai, enfim , bem,
não quero ficar criticando, mas um h om em em casa com os filhos

278
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

talvez cuide menos d o que uma mãe, para as tarefas, hein? estou que­
rendo dizer” . Seu pai era agricultor. O senhor e a senhora G . têm
dois filhos: um m enin o com a idade de 10 anos, na 4a série, e uma
menina, Sabine, que tem 8 anos e está na 2a série d o 1B grau.
Ten do entrado muito cedo na escola maternal ( 2 anos e 5 meses),
Sabine, desde o in ício, adaptou-se à escola. E isso continuou na pré-
escola e na I a série do l s grau. N a 2a série do I a grau, o professor
só tem elogios a lhe fazer: “ Se a gente tivesse só criança assim, bem,
não terminaríamos o dia com a cara n o chão. E uma flor. Se todos
eles fossem iguais... É, ela é am ável, acom panha, estuda, tem senso
de humor. N ã o tem problemas. Perfeitam en te integrada à escola,
ela só vê vantagem em vir à escola de manhã. Sente que a mãe c o n ­
fia nos professores, estuda bem ” .
Ten d o estabelecido nossa população em função, antes de tudo,
da categoria socioprofissional do pai, deparamo-nos, neste caso, com
um casal socialmente misto: o marido é um pequeno empregado, “ auxi­
liar de viagem ” , possuindo apenas um certificado de conclusão do
primário, ao passo que a mãe é secretária adm inistrativa e tem o 2S
grau com pleto. O pai, que freqüentem ente está viajando a trabalho
e que não se preocupa nem em gerenciar o cotidiano da fam ília, nem
co m a escolaridade, parece apenas desempenhar um papel secundá­
rio na econom ia das relações familiares. Assim , por causa do im por­
tante papel desem penhado pela mãe em numerosos campos, temos
a impressão de estar diante de uma fam ília mais de classe média.
A balança pende m uito mais a favor da senhora G . em relação
às leituras. O senhor G . só lê o jornal: de vez em quando, com pra
Le Progrès e, todos os dias, com pra P a ns-T urf para acom panhar de
perto o mundo das corridas: " A h , ele, quando ele lê, é sempre sobre
os cavalos. Lê tant... (ris o )” . A senhora G . com pra e lê Le Progrès
todas as quartas-feiras por causa d o suplemento infantil que ela tenta
fazer o filh o e a filh a lerem: “ Eu leio Le Progrès des Enfants, e falo
pras crianças: ‘Vocês devenan t 1er’. Então, de vez em quando, eles
lêem, mas enfim , co m o digo a eles, talvez um dia na cabeça deles
aconteça alguma coisa, não é? N ã o é sempre, é raro, mas agora que
eles pegaram o hábito, nem que seja só às quartas-feiras, acho que
eles sentiríam falta se eu não fosse com prar o jornal. Então eu falo,

279
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

é m elhor eu fazer esse esforço, mesmo que eles não leiam, e depois,
é verdade que eu gosto bastante de 1er o jornal infantil, então não
está perdido pra tod o mundo. A c h o que ele é b em -feito” . A s vezes,
ela recorta “folh etos” , que põe na bolsa para 1er n o trabalho. T a m ­
bém lê revistas (Femme Actuelle, V oici), principalm ente n o verão.
A pen as ela lê livros (" N ã o , ele, é preciso cutucar” 1’0, aproxim a­
dam ente seis por ano, e é associada a France Loisirs desde a idade
de 19 anos. Diz: “ O que eu gosto é romance. O bom rom ance, não
os água-com-açúcar, hein?, o bom rom ance, os Barbara Cartland,
ah, não, não agüento, hein?” . Ela gosta de H en ri Troyat (L e mos­
covite), N icola s H u lot, N ic o le A v ril, R ég in e Deforges (L a bicyclet­
te bleue), e gostaria de 1er livros de Paul-Loup Sulitzer. Diz que vo l-
tou a 1er durante o ano, fora dos períodos de férias: “ Eu me obrigo
a reler romances, talvez eu só leia três paginas à n oite, mas leio ” .
Precavendo-se de qualquer pretensão quanto ao futuro lIo s filhos
e quanto a seu “ n ível cultural” , assim com o o de seu m arido (ela
insiste, por várias vezes, n o fato de que eles não são “ intelectuais” ,
de que não discutem p o lítica em casa, pois eles n ão gostam de “ dar
uma de intelectuais” ou de “consertar o m undo", e de que ela é “ bem
pé-n o-chão” , que ela não “ se atreve" a dizer até o n de irão os filhos
na escola ...)1’ 1, a senhora G . organiza, rigorosam ente, a vid a fam i­
liar em to m o da escolaridade dos filhos, traduzindo os julgam entos
ou conselhos escolares em práticas familiares. G osta m uito de todos
os professores da escola ("Eu gosto deles todos” ), e fala com eles para
poder dar a seus filhos exercícios suplementares. A liá s, fo i a c o n ­
selho de uma professora do maternal que com eçou a 1er histórias
para os filh os à n oite: “ N o maternal, ela mandava fazer isso. Então
é por isso que eu ia buscar os livros na biblioteca e, à n oite, lia uma
história” . Foi tam bém depois que viu na escola uma en ciclopédia
e achou que “ podia ajudá-los", que ela com prou uma em o ito v o lu ­
mes para os filhos. Está persuadida de que os filhos, h oje, têm de
“ apostar” ou “ in vestir” na escola, e pensa que não é mais possível,
com o em cerra época, sair-se bem apenas com um “simples c e rtifi­
cado de frequência” .
Ela própria conheceu um regim e escolar m uito rigoroso (fez a
m aior parte dos estudos em escolas particulares ca tólicas). A c o m ­

280
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

panha sozinha a escolaridade dos filhos ( “ Isso, a escola, sou eu, 100%,
h e in í” ) e tem dificuldades para dizer quais são os pontos fracos da
filha, pois esta tem bons resultados escolares: " N ã o posso respon-
der m uito bem, porque ach o que ela está indo bem em tu do". S ó
reprova nela o fa to de n ão se aprofundar m uito, às vezes, nas le i­
turas. Todas as noites, ela o lh a os cadernos de Sabine, que faz as
tarefas quase sozinha: “ D e qualquer form a, o lh o o tem po in teiro o
que eles fizeram . Pergu n to pra eles o que eles tiveram . Q u ero
m esm o saber o que fizeram ". V erifica se as tarefas estão corretas (o
que pode fazê-la 1er, às vezes, dez páginas de um liv r o ) e as corri­
ge, se necessário122. A s crianças sabem que fazer as tarefas é uma
regra absoluta: “ Eles sabem que é proibid o ir à escola sem saber a
lição. Então, ora, se um dia eles não sabem a lição bem, bem, eles
têm que... N orm a lm en te, é proibido. Então, é raro que v ã o à esco­
la sem saber a poesia, por exem p lo. E raro, isso nunca, h ein ! Então,
às vezes, tem algumas que são mais difíceis que outras, mas eles se
leva n tam quinze m inutos mais ced o de manhã, às vezes, para r e v i­
sar. Eu parto d o p rin cíp io de que n ão tem m o tivo . Então, é isso.
N ã o é ser m u ito severa! E ser lógica, eu ach o” . Q u an do falamos
co m a mãe a respeito das atividades da filh a durante as férias esco­
lares, é ela própria quem lembra, espontaneam ente, as tarefas de
férias que os filh os fazem com “fichas escolares” que ela compra.
A senhora G . também atribui uma particular im portância à le i­
tura. Vim os que ela lhes com prava regularm ente Le Progrès des
En/unts e que adquiriu uma en ciclopédia para eles por ocasião do
N atal. Podem os acrescentar que ela com prou dicionários para eles
co m o presentes de aniversário e que assinou para eles, durante
certo tem po, revistas infantis. Mas, principalm ente, ela obriga os
filh os a lerem um pouco todas as noites1'' ( “Nisso, as crianças, eu
as obrigo todas as noites. E, todas as noites, bem, eles v ã o se deitar
por v o lta das 8h e meia, 9h, bem, azar, eles leem na cama, não é?
Eu d eix o eles sozinhos, mesmo que apaguem a luz às 9h e meia, eles
íêcrn sozinhos na cama, e assim eles se acostumam, não é?” ), e
“ obrigou" a filha, n o início, a ir sozinha à biblioteca: "Eu nunca co m ­
prei m ontes de livros pros meus m eninos. A gente ia na b ib lio te ­
ca” . Ela tam bém íê os mesmos livros que eles, para poderem falar

281
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

disso depois: “ Então, a gente leu o livro, os três. Bem, a m enina não
acabou, não é? porque tinha também, não sei, tinha talvez 100 pági­
nas. Bem, todos nós lemos o livro, e, de fato, pude falar sobre isso
com eles. E depois, eu fa lei, mas as histórias são m uito, m uito
boas” 'A E mesmo eles, às vezes, lhe perguntam o que ela está tendo.
A s vezes, o “ acaso” faz com que ela discuta com os filh os o assunto
de um livro que está lendo, porque pode haver uma relação com o
que eles estão estudando na escola ( “ C o m o Le moscovite, fo i engra­
çado, não é? T in h a a retirada da Rússia, ele [o filh o ] estava d e c o ­
rando um tex to sobre a retirada da Rússia. E bem estranho. Então
eu falei: ‘ Bem, olha, o que você tá aprendendo aí é o que estou lendo’,
tá vendo? Eu falei pra ele: ‘V eja, os soldados na n eve, no fr io ’ , c o i­
sas assim, mas não pra ficar en ch en d o a cabeça deles, não é?, mas
quando dá certo ” ). E além disso as duas crianças vão ao catecism o
todas as quartas-feiras pela manhã, onde continuam , de outra forma,
o trabalho escolar (têm textos para 1er ou para copiar).
A senhora G . verifica regularmente as notas, conversa frequen­
tem ente sobre a escola com os filhos (todas as noites, ritualmente,
Sabine conta um pouco sobre seu dia na escola para a mãe: o que comeu,
o que fizeram em classe, as notas que tirou) e mantém contatos regu­
lares com os professores. Ela é até uma espécie de apoio da escola.
Presente no bairro há dez anos, conh ece m uito bem os professores e
o diretor, e vai a todas as reuniões escolares: “ Eu gosto bastante, sim.
Pois isso nos ensina, nos ajuda a nos conhecer. E também acostuma
a ver a equipe de professores, mesmo que seu filh o não esteja numa
classe. V ocê vê tudo, vê o que está acontecendo. E depois, ora, você
entrega seus filhos lá, então, não é” . E é assim que o professor de Sabine
fala da senhora G .: “ São pessoas que, principalm ente a mãe, a gente
a vê muito, todas as tardes está na saída, esperando os filhos, co n ver­
samos muito, e neste ano nos encontramos fora da escola. Por in i­
ciativa da senhora G ., fizemos um almoço para nas encontrarmos todos.
São pessoas que a gente encontra todos os anos na quermesse, que a
gente encontra sempre na saída. A senhora G . não é uma senhora
complicada, a gente sente que ela tem alguma coisa na cabeça, que
ela sabe m uito bem o que quer. M u ito amável, muito meiga, mas sabe
o que quer, sabe m uito bem levar seu barco, sabe muito bem onde

282
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

está. O marido eu conh eço muito pouco, não posso dizer muita coisa
sobre ele, não é com ele que a gente se encontra” .
A lé m disso, a disciplina fam iliar passa prin cip alm en te pelo
au tocontrole: as crianças sabem, por exem p lo, que é p roib id o ir à
escola sem ter aprendido as lições e in teriorizam isso em form a de
necessidades pessoais. E quando, ex cep cion a lm en te, Sabine tem
notas ruins, sua m ãe lhe diz que, na próxim a vez, ela vai “ pensar
m e lh o r” , mas não fica brava com ela. Desse p o n to de vista, a
m aneira co m o se dá a en trevista é m u ito reveladora da autodis-
ciplin a fam iliar. Q u a n d o as crianças chegam da escola, não fazem
barulho, brincam co m seu víd eo-g a m e n o cô m o d o em que esta-
mos conversando, mas ten do o cuidado de tirar o som da televi-
são e não falando, tudo isso sem que a mãe tivesse d ito o que quer
que fosse. M esm o a en trevista co m S ab in e revela uma m enin a
calma, educada, até um pouco tím ida, que fala com m u ito zelo,
com eten do poucos erros de francês, e que interiorizou bastante pro-
fu n dam en te as normas Je boa educação.
Tam bém a senhora G . cuida sozinha dos docum entos fa m ilia ­
res, d esen volven d o um grande núm ero de práticas de escrita. Lê a
correspondência ( “ Ele lê também , mas, bem, os assuntos de casa,
eu é que p on h o em ordem ” ), escreve as cartas às repartições, preen­
che o form ulário de impostos (e le se con ten ta em assiná-lo), cuida
dos docum entos da escola, arruma os docum entos adm inistrativos
( “ Bem, tudo va i para um cesto. D urante um ou dois meses, eu
am ontoo. Q u ando tem m uito (riso), faço uma triagem, e tem uma
pasta” ), tem um caderno onde anota suas contas ( “ Então, agora, eu
faço, em vez de fazer em pedaços de papel, faço num caderno, co m o
um caderno de rascunho. M as não é por isso que fiquei mais rica,
hein?! (Riso.) Então, é isso, faço e depois risco” ), escreve lem bre­
tes (" A g o r a m esm o tem um lá na lousa” ), redige listas de compras
com cuidado ( “ Bem, isso tam bém faço na lousa, e depois copio direi­
to, porque não vou levar a lousa” ), na ordem das gôndolas do super­
mercado, e va i assinalando as compras ("D e p o is de um tem po, não
sei mais direito onde é que estou, e pra ver sc não esqueci nada, com e­
ço a marcar tudo 0 que peguei, ve jo o que está faltando. D epois,
bem, é um hábito que a gente adquire com o passar dos anos, tudo

283
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

isso, não é? N ã o acredita? A gen te até não fica pensando mais


quando faz isso, não é?, mas precisa fazer, é cla ro "), escreve coisas
n o calendário da fam ília ( “ Porque é mais fácil pra mim. O ca len ­
dário fica diante de nós quando estou com en do à n o ite” ) e, num
bloco-calen d ário que tem n o local de trabalho, guarda receitas
coladas num caderno ( “ A gente retira, eu tenho um cadem inho meu.
Frequentem ente recorto e c o lo ” ) em ordem alfabética ( “ É bem-arru-
m ado” ), troca-as com as “colegas” , faz anotações depois de uma ch a­
mada telefônica, troca pequenos bilhetes com o marido e deixa alguns
para os filhos ( “ M esm o pras crianças, outro dia d eixei um pra eles").
A senhora G . dá mostras de grandes disposições racionais na
organização do co tid ia n o fa m ilia r e utiliza frequ en tem en te, para
tanto, escritos dom ésticos. Em contrapartida, o m arido deixa tudo
por conta dela ( “ Ele berra quando n ão tem mais d in h e iro ", diz ela
falando dele com h um or), e ela aceita a situação com o se fosse uma
evid ên cia: “ A c h o que é, de qualquer form a, da m inha natureza,
não é?, fazer assim. N u n ca m e pergu n tei". Será, portanto, um
acaso se a mãe observa que a filh a “ se organiza quase sozinha" para
as tarefas? ( “ A in d a o n tem , ela m e disse: ‘ A h , bem , eu ten h o
tem po, é pra sábado que vem , eu vo u fazer” '.) Para ela, é porque
ela é uma m enina (em sua cabeça, uma m enina é, necessariam en­
te, ordenada, ansiosa, preocupada): “ Porque é as meninas, não é?,
co m as m eninas tem outra coisa, é tudo mais ordenado. E tam ­
bém, ela é preocupada, ansiosa, fica aflita, en tão, ela tam bém tem
suas confusões. Eles têm o liv ro de textos e ela en ten d e rápido,
co m o tem de ser. Ela é esperta. S ão as m eninas". Será um acaso
ter sido a filh a quem pensou p or si mesma em escrever na lousa
da fam ília o que estaria faltando ( “ Pilhas para o walkman” ) e a mãe
ter esclarecido que o filh o nunca teria tid o essa idéia ( “ M as foi
ela que in ven to u isso, porqu e o maior, ele não teria pensado
assim ") ? Será ainda um acaso se o filh o é, escolarm ente, um pouco
m enos “ b rilh a n te” que a irmã (e le , p rin cip alm en te, fo i à fonoau -
dióloga: “ O irm ão tam bém estuda bem, mas ela tem, talvez, mais
facilidade d o que ele. Ele talvez tem um pouco mais de d ificu ld a ­
des em francês, é m enos expan sivo que a irmã. A irmã está hem
à vo n ta d e” )? N in g u é m duvida de que as nuances de escolaridade

284
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

en tre Sabine e o irm ão p roven h am dos m odelos sexuais de iden ­


tifica çã o tota im e n te diferentes.
Se, por uma ou outra razão, ral com o encontramos em outras con ­
figurações familiares, o senhor G . gostasse de im prim ir m uito mais
a própria marca nos filhos, a situação não seria absolutam ente a
mesma para eles. A configuração das incitações socializadoras se acha­
ria m uito m odificada. N a situação descrita, o senhor G . parece
desempenhar o papel de um capital e co n ôm ico que delega à mulher
toda a gestão das questões familiares, dentre as quais as questões esco­
lares. A situação é, portanto, relativam ente coeren te para os filhos,
pois a delegação de autoridade leva ao esm aecim ento do caráter rela­
tivam en te con trad itório das características familiares, ligado à mis-
cibitidade social do casal.

Os “feni/iarues” sucessos

C on clu i-se que, mesmo que a fam ília não o


“obrigue* muito, é ele quem “se obriga” com todas
as suas forças e par.i além de qualquer medida***.

O s últimos perfis de famílias agrupados agora (pode-se também


1er o Perfil 22 na mesma perspecriva) são casos de verdadeiros “ êx i­
tos” , sem defeitos, que os professores percebem com o "brilhantes”
sucessos em meios populares. Por sua diversidade, estes exem plos são
uma prova do fato de que não há um estilo fam iliar ú nico que leve
à conclusão da escola primária. Estes casos se mostram, pela regula­
ridade, pela linearidade dos resultados, co m o fatos excepcionais.
Todas as crianças parecem ter interiorizado precocemenre — por razões
de singular econ om ia socioafetiva que a análise sociológica das rela­
ções de interdependência tenta reconstruir— o “ sucesso” escolar com o
uma necessidade interna, pessoal, um m otor interior. Assim , elas têm
menos necessidade de solicitações e de advertências externas do que
outras crianças, e até parecem, às vezes, mais mobilizadas do que os
pais (p. ex., Perfil 23).
A autobiografia de Richard H o g g a r t'A intelectual oriundo das
classes populares inglesas, nos dá um bom exem plo dos casos de “ suces­
so" im p rovável ( o Perfil 25 apresenta numerosos pontos em comum

285
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

com ;i situação fam iliar v iven cia d a p elo autor) e, mais amptamen-
te, da maneira co m o podem os justificá-lo. C o m efeito , num g ê n e­
ro particular de escrita, distinto d o gênero literário que consiste em
sempre dar prioridade à vida e aos sentim entos do aucor, H oggart
nos oferece uma autobiografia que n ão está exclusivam ente v o lta ­
da para um percurso individual isolado, mas que nos apresenta, atra­
vés de um m inucioso trabalho de reconstrução, as diferentes c o n ­
dições sociais de produção de sua pessoa. A autobiografia, para ele,
só pode ser a descrição de si mesmo visto, e incessantem ente fo r­
mado, constituído, num tecido de relações sociais, de múltiplos
vínculos de interdependência.
H oggart viveu m uito pouco c o m os pais: seu pai, p in tor de pare­
des, que teve muitos períodos de engajam ento n o exército, morre
antes da idade de 40 ou 45 anos, e a mãe, originária de uma fa m í­
lia de L iverp ool, considerada pelo lado paterno com o de “classe
m elh or", morre quando seu filh o tem apenas 7 ou 8 anos. Essa mãe,
verdadeiro “ prin cíp io organizador do lar” , se caracteriza, antes de
tudo, por uma recusa constante, ligada p rovavelm en te a sua origem
social menos popular, da "n egligên cia ", do “d esleixo” e da “ indul­
gência", características de outras famílias também deserdadas. V iv e n ­
do em condições materiais m uito precárias e, sob muitos aspectos,
humilhantes (a família Hoggart, Composta da mãe e de seus três filhos,
fica sob a responsabilidade da paróquia, da Com issão da Guarda
C iv il e da assistência social da m u n icipalidade), ela, com o pouco
dinheiro de que dispõe, gerencia, com o pode, uma vida familiar co n ­
centrada em si mesma.
Q u an do R ich ard H oggart, co m a m orte da mãe, fo i separado
do irmão e da irmã, fican do na casa da avó paterna em Hunslet, na
Rua N e w p ort, 3.3, integra então um m eio que também se caracte­
riza por um “ apego crispado e con tín u o à respeitabilidade, produto
do tem or de soçobrar sem deixar vestígios” 1 Essa “ classe popular
respeitável" se personifica nos traços de sua tia Ethel, guardiã intran­
sigente das exigências da "n ã o -n egligên cia ", do c o n trole de si e da
respeitabilidade, da sua avó "im ensam ente enfamiliarizada” , despro­
vida de qualquer ambição pessoal, que quer que o neto “ siga seu cam i­
n h o” e, “acim a de tudo” , “saiha m anejar as palavras” e “ aprenda",

286
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

e enfim de sua tia A n n ie , que, com o a avó, tem para com ele “ um
am or desinteressado” . M esm o a figura contrastan te de seu rio
W a lte r (que “ esbanja" seu talento bebendo á lc o o l) não é totalm en ­
te n egativa: H oggart se lembra de que, num universo social bastan­
te distanciado da cultura escrita, seu tio W a lte r escrevia histórias
“ co n form e o m o d elo que podia ser en contrado nas baratas revistas
semanais da época” '“ . Da mesma form a, o avô paterno (m o rto antes
que ele se integrasse à fa m ília ), caldeireiro e “ bem acima de um o p e ­
rário n ã o -q u a lifica d o", fico u na m em ória da fa m ília c o m o um
hom em caracterizado por um orgulho profissional.
E se acrescentarmos a im portância de um diretor de escola pri­
mária e de um professor da U niversidade de Leeds que foram solíci­
tos em ajudar m aterialm ente e em encorajar o jovem H oggart (co m
injunções preditivas d o tipo: “ É preciso que você vença, meu jovem ” ),
com preenderem os todos os pequenos elem entos, materiais e sim bó­
licos, que contribuíram para tom ar possível um im p rovável “ suces­
so" escolar. N o entanto, é necessário esclarecer que esses múltiplos
elem entos irão se somam uns aos outros, mas se combinam para criar
a realidade, tão evid en te à intuição quanto rebelde aos esforços de
objetivação, que um “ clim a fam iliar” escolarm ente favorável cons­
titui. N ã o estamos, neste caso, diante da lógica dos investim entos
que se somariam entre si, onde o número mais ou menos elevad o de
investim entos determ inaria o grau de “sucesso" escolar.
A s análises estatísticas de alguns percursos escolares de "ê x ito ” em
meios populares fazem, aliás, realmente evidenciar-se dois pontos fun­
damentais'™. Por um lado, nenhum fator explica por si só o “sucesso”
dos alunos: avós não-operários, uma relativa estabilidade profissional
e uma com odidade financeira de um pai mais para operário qualifica­
do, uma mãe ativa ou com uma situação profissional mais elevada do
que o pai, uma fam ília pouco numerosa, uma trajetória de imigração
dos pais..., tudo isso pode contribuir para explicar certas trajetórias esco­
lares, mas nenhum desses investimentos se mostra claramente deter­
minante. Por outro lado, quando se tenta v er se o acúmulo de inves­
timentos mais sólidos pode possibilitar uma m elhor compreensão
dos casos observados, constata-se que raras são as famílias que acu­
mulam os fatores mais favoráveis, e encontram-se até casos de alu-

287
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

nos que acumulam mais investim entos do que outros e que são ou
foram escolarizados em escalões menos nobres.

♦ Periil 23: Aqui, tudo é ordem e regularidade...


Bun Nat V., nascido na Tailândia, tem, sem dúvida, dois anos a mais
do que a uUtde declarada. Obteve 7,5 na avaliação nacional.

Quando chegamos à casa do senhor e da senhora V , o marido ainda


não tinha voltado do trabalho. Sua mulher, que estava conversando
com uma vizinha cambojana, manda-nos sentar na sala de jantar e nos
oferece um café. O apartamento no qual entramos se distingue dos outros
interiores visitados pela clareza e grande ordem que nele reina. Nada
está jogado pelo chão ou sobre os móveis. N o côm odo, iluminado pela
luz do dia, há um grande sofá, uma mesinha branca encostada na pare­
de e um televisor Sony de excelente qualidade. Percebemos uma nesga
da cozinha, que fica ao longo da sala, limpa, arrumada, clara. U m a sim­
ples cortina separa a sala de estar de um quarto de crianças.
C om eçam os a falar co m a mãe, explican do-lh e o que gostaría­
mos de saber. Ela parece m uito cansada, e observamos, em v o lta de
seu pescoço, uma cicatriz, vestígio da vida n o C a m b oja sob o regi­
me de Pol Pot. A irmãzinha mais n o va de Bun N a t (n o 2H ano do
m aternal) está ali. Faz-nos gracinhas e vai esconder-se, co m o numa
brincadeira. Q uando as outras crianças chegam da escola, uma a uma,
olham -nos, mas não dizem nada, e não farão nenhum barulho. N o
fin al da entrevista, tom arem os um café com o senhor V , café que
nos foi trazido por sua mulher. P o r duas vezes, a senhora V. nos per­
gunta, preocupada, se nós nos encontram os apenas com refugiados
em nossa pesquisa, e nos explica, por antecipação, que seus docu­
mentos se queimaram no decorrer da im igração que, do Cam boja,
os trouxe para a França, passando pela Tailândia.
O senhor e a senhora V. falam , com um carregado sotaque cam-
bojano, um francês cu jo d o m ín io é m uito im p erfeito d o p o n to de
vista sin tático e léx ico , e que, âs vezes, tem os d ificu ld ad e em
compreender. Mas com preendem bem as perguntas e, em caso c o n ­
trário, não hesitam em pedir esclarecim entos. N ã o transparece
nenhum a reticên cia. O am biente é tranqüilo, às vezes pontuado

288
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

por breves gargalhadas. D e m odo geral, n ão se afastam da pergu n­


ta feita, e suas respostas são, em con ju n to, bastante curtas, mas
sempre precisas.
O senhor V , de 42 anos, ve io para a França em 1985. E originá­
rio do Cam boja, onde viven cio u o regime khmer verm elh o de Pol
Pot. Entrou para a escola com 9 anos, onde permaneceu até os 24,
na última série d o 2* grau, onde estudava matem ática. Trabalhou
in icialm en te no C am boja com o policial, depois com o “ auxiliar de
m ecânica’’ na aeronáutica. Q uando v e io para a França, conseguiu
em prego com o operário não-especializado e permaneceu nesse cargo
desde então. Seu d om ín io precário do francês e o fato de ter perdi­
do todos os seus docum entos que provam seu n ível de estudo o
im pedem de encontrar um em prego mais qualificado. Seus pais eram
com erciantes num pequeno armazém e trabalhavam tam bém com o
agricultores nos arrozais. Seu pai sabia 1er e escrever, mas apenas o
que se referia aos assuntos de sua loja (e le não escrevia "cartas muito
longas” ), e sua mãe não sabia 1er n em escrever.
A senhora V., de 38 anos, foi à escola até os 21, na última série
do 2“ grau de ciências. Ia entrar para a faculdade de direito quan­
do o regim e de Pol Pot se instalou. Ela nos descreve as condições
de vida n o tem po de P o l P ot que reduzia as pessoas à escravidão nas
“ cooperativas” de trabalho forçado. Todas as escolas foram fech a ­
das, e todos trabalhavam 14 horas por dia, sem salário, apenas por
um pou co de com ida e uma roupa por ano. Desde então, por causa
do esgotam ento, tem problem as de m em ória e de coração. A n tes
do regim e de P o l Pot, estava empregada co m o agente de impostos.
Desde que chegou à França, em 1987, trabalha com o costureira em
dom icílio. Seu marido a ajuda nos trabalhos de costura, à noite, quan­
do vo lta da fábrica. O s pais da senhora V. eram com erciantes um
pouco mais abastados que os de seu marido. Tam bém eram agricul­
tores e possuíam tratores. O s dois escreviam e liam bem, e seu pai
até poderia ser professor primário, “ porque eles v ã o à escola duran­
te m uito tem po” , “ mas ele não quer fazer” , “ele quer fazer co m er­
cian te". O senhor e a senhora V. também poderíam ser professores
primários, pois h aviam conclu ído o 2° grau, ao passo que, para
tanto, bastava o 2a ano.

289
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

O senhor e a senhora V. têm quatro filhos. O niais v e lh o é um


rapaz de 14 anos, escolarizado na 6a série. Depois vem um outro
m en in o de 10 anos, na 4a série; Bun N a t, de 8 anos, na 2a série do
1G grau, e a últim a, de 4 anos, n o m aternal. E ntretanto, há uma
dúvida em relação à idade das crianças. O professor de Bun N a t
nos disse, com efeito : “ A idade o ficia l não é a sua idade real. N a
verdade, ele d eve ser de 81 (e n ão de 8 3), acho. N a realidade, é
mais velh o, e, frequentem ente, entre os cam bojanos ou os v ie tn a ­
mitas, eles enganam sobre a idade para poder recuperar o n ível esco­
lar. E ele d eve ser de 81. Ele diz isso abertam ente, ingenuam ente".
Bun N a t é descrito, na 2a série d o 1“ grau, co m o um “ super-
bom alu no” , “ m uito escolar, p erfeito, cuidadoso, im p ecá vel” , que
escreve bem. Ele até é visto co m o uma criança “ m uito m inuciosa"
e que realiza “ belos grafism os" desde a escola m aternal, que fr e ­
quentou durante 2 anos. Term ina o ano seguindo as aulas de m ate­
m ática co m os alunos da 3a série da classe, cam po em que ele é
particularm ente e x celen te. D e qualquer form a, tem algumas lacu­
nas na expressão oral e escrita, isto é, nos cam pos em que o d o m í­
nio preciso da língua francesa está em jo g o (confunde, na linguagem
oral, os masculinos e os fem in in os, por e x e m p lo ). N ã o co n ten te
de ser um e x c e le n te aluno em m atem ática (1 0 na m aioria das pro­
vas: “ Em m atem ática, ele realm en te dom in a o a ssu n to")1’0 e um
muito bom aluno em francês (m esm o assim, ele tem 8,2 com o média
geral de francês, ou seja, 8 em leitu ra-com preensão e 7 em expres­
são escrita), Bun N a t d es en v o lve qualidades de co m p etid or: “ Ele
quer ser o prim eiro, quer vencer. Seu o b je tiv o é sempre fazer o
m elhor possível, vencer os outros” . T em um “ tem peram ento de com ­
p etid o r", “ com para-se sempre co m os outros", va i solicita r a clas­
sificação (q u e o professor n ão entrega pu blicam ente na classe) e,
“ se não tiv e r a m elh or nota, n ão fica satisfeito” . A lé m disso, não
se n ota nenhum a queda n o d ecorrer d o ano: “ Foi ex c e le n te do
co m e ç o ao fim . É sempre m uito bom ” . O m esm o professor teve
co m o alu no um irm ão mais v e lh o ( o que está na 4a série), e diz
que se tratava de um “ aluno d o m esm o tip o ” , p rova de que o
“ sucesso” escolar de Bun N a t está relacion a d o a uma configu ra­
ção fam iliar singular que produziu efeitos em , pelo menos, outro

290
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

filh o . N ã o é consideran do, rápida e superficialm ente, as ca racte­


rísticas ob jetiva s e as práticas dos pais que se conseguirá explicar
um “ sucesso” escolar tão adm irável.
Se exam inarm os, in icialm en te, as práticas de leitura, ficarem os
sabendo que, apesar de o senhor e a senhora V. terem aprendido fran­
cês na escola n o C am boja, eles o lêem com dificuldade. A senho­
ra V. diz que há frases que ela não entende ( “ Ela não entende o sen-
rido para as frases” , explica o m arido). Mas eles não têm nenhum
tem po livre para 1er, pois ambos trabalham m uito ( o pai, desde que
volta do trabalho, ajuda a mulher a costurar: “ N ã o muito tempo para
1er assim. Trabalh o depois assim” ; “ N ã o , porque o senhor sabe,
com o a gen te trabalha sempre, trabalho m uito, não posso fazer tudo
sozinha. M eu m arido ajudar um pouquinho quando sai trabalho, ele
ajudar para costura assim "), e não lêem , portanto, nenhum jornal,
nenhuma revista e nenhum livro em francês ou em cambojano. Quan­
do evocam os a possibilidade de 1er histórias em quadrinhos, riem e
nos dizem que os filh os deles possuem algumas, mas que eles não
têm tem po para esse ripo de coisa ( “N u n ca 1er. N u n ca ter tem po
para 1er assim "), nem mesmo, segundo eles, para os jornais distri­
buídos gratuitam ente nas caixas da correspondência.
A pen as olham , de vez em quando, os livros de m atem ática e de
física do filh o mais velh o , pois se interessam por isso: “ C o m o o iivu-
ro de matemática, sim, eu leio m uito porque tem interesse para mim.
O física também. Sim, assim” . A ch a m que os m étodos mudaram,
mas “eu sigo sempre” , diz a senhora V : “ Os métodos, diferente um pou­
quinho, mas leio um pouquinho e depois en ten d o” , diz o senhor V.
Eles com praram uma en ciclopédia para que os filhos, quando cres­
cerem, possam fazer as tarefas ( “ Sim, muitos volumes, sim, para meus
filhos também, depois da saída da escola, e voltam pra casa, não tenho
m u ito tem po pra ver, para acom panhar a tarefa assim” ), e sabem
perfeitam ente bem que ela n ão é um instrum ento de trabalho para
as crianças que estão n o primário, mas mais para as crianças que cur­
sam o ginásio e acima. Tam bém têm um d icion ário, que consultam
de vez em quando ( o senhor V. diz: “ Se eu n ão com preender, ablo
o dicion ário, ex p lica r assim, mas não renho m uito tem po para 1er
assim), mas que é, sobretudo, para as crianças: “ A h , não, é meus

291
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

filhos! (E la r i . ) ” . A senhora V , às vezes, tam bém os leva à b ib lio ­


teca municipal, para que eles retirem livros, e os com pra quando
eles têm necessidade, mas trata-se unicam ente de livros escolares:
“ Sim , se ele quer livuros co m o m atem ática, com o ortografia ou gra­
mática, leva na loja para comprar, sim, sim, ou 1er alguma coisa tam­
bém, se ele quer".
Q u an to à correspondência, o senhor e a senhora V. tentam
resolvê-la entre si sempre que possível, sem a ajuda das crianças. É
mais ele quem cuida da correspondência e a redige, pois ve io para
a França dois anos antes da mulher e dom ina m elhor a língua escri­
ta, mas é ela quem solicita a ajuda da assistente social quando se
trata de docum entos mais com plicados que o norm al, em relação
ao salário-família. Q u ando não consegue, o senhor V. pode recor­
rer, numa primeira vez, a alguém, mas depois é ele mesmo quem faz:
“ A prim eira vez, mas a segunda vez já sei bem ". São eles que preen ­
ch em o form ulário de impostos, que fazem os cheques ( “ Sem pro­
blem a” ), que fazem os bilhetes para a escola ("S im , sim, a gente pode
fazer isso. Porque é b ilh ete sempre. N ã o é com pricado! (E la ri.) Se
com pricado, não posso fazer” ), que classificam os docum entos, que
colocaram numa folha de papel, e em ordem alfabética, os nomes
das pessoas com os núm eros de telefo n e ( “ S im , m arcado numa
folha, folha grande assim, m arcado o n om e na orde A , o B, o C , o
D, o nom e assim, bem grande, é mais fácil para olhar. Sim, é m elhor
assim "). A m b o s anotam pequenos recados dados p elo telefon e e a
senhora V. escreve, num calendário, os compromissos dos filh os e
deles. A m b o s também escrevem , uma ou duas vezes por mês, car­
tas em cam bojano para a fam ília. Enfim, têm muitas fotografias ( “ A
gente tem bastante” ), classificadas em ordem cronológica em álbuns.
Em relação à escolaridade de Bun N a t, o senhor V. diz que “ ele é
sério para aprender", mas “ tím ido um pouquinho” : “ Ele tem muito
m edo, assim” . É ele quem acompanha seus resultados, e nos diz que
ele é mais fraco em francês (ortografia e leitura) d o que em matemá­
tica (Bun N a t lê, “ mas não bem” e “ não m uito depressa"). Entretanto,
o senhor e a senhora V, não conhecem o professor de seu filh o (a senho­
ra V. diz: “N ã o , eu nunca ir com, conversar com ele nunca” ), e ape­
nas participaram, por falta de tempo, de uma ou duas reuniões esco-

292
PERFIS DE CONFIGURAÇOE5

lares relativas aos quatro filhos. A lé m disso, falam raramente sobre


a escola com os filhos, somente quando há algum problema: “ N ã o é
sempre não. C o m o tem um probrema sim, se não tem probrema...,
prohrema com as tarefas, com meus filhos. E com probrema assim.
S igo todos os tirimeste assim. V ejo a caderneta da escola. Se as notas
baixa que o mês antes, eu falo: T o r que as notas baixar um pouco assim.
Precisa aprender bem ’, eu converso com ele assim para...” .
Bun N a t n ão fica nos horários de estudo livre e faz as tarefas em
casa. O pai diz que não tem m uito tem po para ajudá-lo: “ Se eu
tenho um pou co de tem po, acom panho as tarefas com meus filhos,
assim. E depois, cansado, eu descanso!” . Bun N a t, às vezes, lhe pede
explicações ( “ Das vez, meu marido, ele exprica. Sim, se tem algu­
ma coisa assim. Sim é meu marido que expricar que mostrar sim, mas
n ão tem po in teiro” ). Q uando perguntamos ao irmão mais velh o
presente se ele ajuda Bun N a t, ele responde laconicam ente: "N ã o ,
d eix o ele se virar” . Q uando tem notas menos boas, seu pai lhe diz
para 1er mais e aprender: “ Ele chegava na casa e eu falo a ele para
aprender, para 1er assim, olha bem a gramática, ortografia. E depois,
para fazer os ditados com seu irmão tam bém ” . E, finalm ente, Bun
Nat. não faz trabalhos escolares durante as férias.
C o m um pai operário não-especializado e uma mãe costureira que
falam francês com dificuldades e se dirigem aos filh os em camboja-
no, que nunca lêem livros, revistas ou jornais, que têm práticas de
escrita em francês pou co trabalhosas, que realm ente não têm tem po
para cuidar da escolaridade dos filh os e, principalm ente, para acom ­
panhar regularmente as tarefas, que não obrigam os filhos a fazer tra­
balhos escolares durante as férias, que não conhecem o professor de
Bun N a t e que quase nunca vão às reuniões escolares, não dispomos
da chave para interpretar o “ sucesso” escolar da criança.
O senhor e a senhora V. têm um n ív e l escolar eq u iva len te ao
do 2a grau c om p leto. Se n ão tivesse parado em sua progressão pela
instauração d o regim e de P o l P ot, a mãe teria até en trado na
faculdade de d ireito. Ela estudou ciên cias e o pai, m atem ática. E,
sem dúvida, não é p or acaso — m esm o que não captem os, de im e­
diato, co m a en trevista, as m odalidades da transmissão de um ral
saber — que Bun N a t é particu larm ente forte em m atem ática. A

293
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

mãe até parece ser de ex tra to social re la tiva m en te abastado, uma


vez que seu pai tinha form ação para ser professor p rim ário e pre­
feriu ser co m ercia n te para ganhar m elh or a vida.
Entretanto, o capital escolar dos pais não parece ser transmitido
de forma pedagógica dentro do am biente familiar. N este caso, não
estamos tratando com pais que sempre têm tempo para ajudar nas tare­
fas ou assegurar que tenham sido bem feitas (Bun N a t confirm a que
ninguém o controla). E, no entanto, sabemos também que Bun N a t
faz bem todas as tarefas e assumiu a escola de forma competitiva. Temos,
portanto, um caso, se assim podemos dizer, de superinvestimento
escolar de Bun N at, sem superinvestimento escolar por parte dos pais.
Por que meios, então, os pais “ transmitem” essas disposições escolar­
m ente adequadas que fazem de Bun N a t um “superbom aluno"?
É, sem dúvida, n o estilo de vida fam iliar co m o um todo, na
ordem m oral dom éstica, que é, indissociavelm ente, uma ordem
mental, que podem os reconstruir os princípios de produção de co m ­
portam entos adequados d o p o n to de vista escolar. Percebem os,
tanto nas m odalidades da entrevista quanto nas declarações feitas,
que há inculcação difusa mas sistemática de uma espécie de ethos
ascético, racional. O s horários da fam ília, por exem plo, são de gran­
de precisão, e a regularidade parece ser uma im portante qualidade
familiar. Bun N a t vo lta da escola às 17h. A t é a hora d o jantar, vê
televisão ou fica brincando, em casa ou fora. Janta por volta das 18h30
e, entre o fim da refeição e a hora em que vai se deitar (en tre 20h30
e 21h, exceto quando não tem aula no dia segu inte), ele “ estuda"
e “ é proibido ver televisão” . A s quartas-feiras, Bun N a t fica livre o
dia inteiro, desce para brincar fora e vê televisão. Mas, a partir de
18h30, põe-se a fazer suas tarefas, e essa regra é igualm ente válida
para os dom ingos: "Tam bém é proibid o” . A s regras são enunciadas
claram ente: a partir de tal hora, todas as noites, Bun N a t tem de
passar das brincadeiras para o trabalho escolar. Ele, aliás, nos mostra
o produto dessa regularidade e dessa exatid ão dos horários fam ilia­
res quando nos diz as horas exatas de deitar-se, de tom ar as re fei­
ções ou a duração de suas tarefas1".
A maneira co m o acontece a entrevista nos inform a m uito tam ­
bém sobre a maneira fam iliar de comportar-se que repousa na auto-

294
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

disciplina. N este caso, nenhuma chamada incessante à ordem por


parte dos pais em relação a seus filhos. Estes não vêm perturbar a
entrevista, são calm os e reservados. Desde o m aternal, Bun N a t é,
aliás, assinalado co m o “ a tiv o ” nas atividades físicas individuais,
mas “ apagado" n o grupo. Bun N a t é antes descrito, tanto do p on to
de vista escolar quanto familiar, co m o uma criança interiorizada,
fechada, que quase não gosta das atividades coletivas nas brinca­
deiras ao ar livre com crianças de sua idade.
Os pais tam bém insistem no fato de que os filhos devem apren­
der na escola e tam bém em casa: “ U m pouquinho assim, não muito.
Sim, eu falo: 'A h , não aprender tudo na escola. A p ren d er em casa
um pou qu in h o'” . Por exem plo, Bun N a t tira a mesa quando acaba
de co m er1’1. A liá s, o que nos impressionou assim que entramos no
apartam ento foram a ordem e a clareza. Nada estava espalhado,
nem na sala de jantar, nem na cozin h a'” . Essa impressão se con fir­
mou com certas práticas de escrita ou de classificação: organização
dos documentos, listagem de telefones, classificação cron ológica das
fotografias ou freqüente utilização do calendário. Por fim , a incan­
sável atividade da mãe e do pai é um exem p lo de regularidade que
se aplica, em casa, num trabalho especialm ente m inucioso e preci­
so: a costura.
Précisai), regularidade, interiorização, calma, aucunumia, ordem, cla­
reza e minúcia, essas são as “ qualidades” indissociável m ente com -
portamentais e organizacionais que sobressaem de tod o um con ju n ­
to dc elem en tos em relação ao co n tex to da entrevista, o estilo do
discurso mais do que seu conteúdo. O s pais, e também o filh o, são
precisos e breves em suas respostas. Bun N a t responde às nossas per­
guntas de m aneira rápida e concisa. Sua maneira de falar é seca e
contida, e não é do tipo de ficar m uito tem po numa questão. Inútil
dizer que essas qualidades fam iliares são tam bém qualidades esco­
lares. Se Bun N a t é descrito co m o uma criança “ m uito escolar" pelo
professor, é porque tudo, em seu com portam ento preciso, m in u cio­
so, rigoroso, “ d ireto ” , se ajusta à lógica escolar da regularidade, da
ordem e da clareza, e, particularm ente, n o in terior da ordem esco­
lar, às qualidades mentais e com portam entais que os exercícios de
m atem ática exigem .

295
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

M esm o qLie este "sucesso" aconteça sem superinvesrimento esco­


lar dos pais e que estes se apoiem na autodisciplina dos filhos, isso
não significa que os pais se exim am cotalm ente da questão da esco­
laridade. Com praram uma en ciclopédia para os filhos (depois, sem
dúvida, de um longo trabalho), levam-nos, às vezes, à biblioteca muni­
cipal, com pram -lhes livros escolares quando têm necessidade e,
principalm ente, m odificaram , sem dúvida, e co m muita lucidez, a
idade real dos filhos para possibilitar-lhes recuperar o atraso ligado
ao problem a linguístico. Já que o sistema escolar francês distribui
os alunos segundo a idade e não segundo o n ív e l de desem penho,
os pais m entem quanto à idade dos filhos, para que n ão fiquem per­
didos em classes on de não com preenderíam nada. N o tá v e l preocu­
pação pedagógica, portanto. Mas essas poucas práticas, se n ão esti­
vessem fundamentadas na autonom ia das crianças e no conju nto
das disposições familiares, no fundo m uito “ escolares” , não produ­
ziríam de form a alguma os mesmos efeitos. A consequência da
socialização difusa descrita é realm ente tão potente que Bun N a t
desenvolve uma energia escolar fora der comum. C o m este caso vemos,
portanto, co m o obstáculos linguísticos, materiais e culturais (os
m om entos voltad os ex p lícita e diretam ente para a transmissão de
um conhecim ento parecem ser limitados pelo tempo que os pais ficam
no trabalho) são vencidos por um et/ius familiar muito coerente, regu­
lar e sistematicamente posto em prática e, co m isso, potente em seus
resultados.

♦ Perfil 24: Uma vigilância regular e sistemática.


Christian R., nascido em Bron, sem repetência escolar, obteve 7,5 na
avaliação nacional.

A entrevista se desen volve com a senhora R., na presença de


sua irmã e de um bebê de quem tom a conta. A irmã intervirá de
vez em quando na conversa, desculpando-se sempre por isso. Esta­
mos na sala de jantar, em volta de uma mesa recoberta por uma toa­
lha plastificada. N o côm odo, percebe-se uma estante com e n c ic lo ­
pédias ( “ L’univers en Couleurs” , “ B B C ” ), fotos de C hristian e seu
time de futebol, um grande m ó vel com uma parte envidraçada con-

296
PERFIS DE CONFIGURACOES

tendo uma co leçã o de bonecas e numerosos bibelôs de porcelana,


um televisor, um aparelho de som e um aparelho de vídeo. Nas pare­
des, vê-se uma paisagem em serigrafia, um quadro em relevo de bar­
cos n o mar e um pequ en o quadro vertical intitulado Ethnoiog^ 0 /
Madagascar. U m calendário para as férias escolares está pendurado
num painel. Durante a entrevista, a senhora R. parece bastante tensa,
co m o alguém que esteja procurando respostas corretas, que não
quer se enganar.
O marido da senhora R-, de 45 anos, é origin ário de Madagas­
car, mas de nacionalidade francesa. Foi à escola em M adagascar até
a 6a série ( “ Ele não fo i m uito, m uito, m uito bom . E além disso, não
pôde continuar” ). N a França, fez um estágio de form ação de tor­
neiro, alguns serviços temporários, depois en controu um em prego
de operário polivalente na Black & Decker: tem uma loja há 10 anos.
O senhor R. está na França há 20 anos. E fo i aqui que conheceu a
mulher. Esta nos diz que o marido não é m uito apegado aos pais (a p o ­
sentado da C om p an h ia N a cio n a l de Estradas de Ferro e dona-de-
casa), pois ficou m u ito tem p o em um pensionato, e, quando esta­
va em férias, ia mais à casa d o avô, no campo.
A senhora R., de 42 anos, tam bém é origin ária de Madagás-
car. Foi à escola até a 7a série, “ os dois prim eiros trim estres", mas
esclarece que a escolaridade com eça mais tarde em Madagascar
(e la saiu da escola co m a idade de 16 anos e m e io ). Interrom peu
os estudos para v ir para a França. T in h a d ec id id o fazer um está­
g io de form ação profissional, mas abandonou-o. C o m eçou , p o r­
tanto, co m o operária não-especializada numa fábrica durante 10
anos e parou com o n ascim en to da filh a ( “ Parei para criar m inha
filh a ” ). A g o ra está trabalhando c o m o babá. N ã o con h eceu o pai,
que morreu quando ela era m u ito pequena e sua mãe nunca e x e r­
ceu atividade assalariada.
O senhor e a senhora R. têm dois filhos: uma filh a de 12 anos,
na 6a série, e um filh o de 8 anos, Christian, na 2a série do I a grau.
Este entrou m uito c ed o (2 anos e 2 meses) no m aternal e, desde a
época, é visto co m o uma criança “ bem adaptada” e “ m uito séria em
seus trabalhos” . N a I a série do I e grau, os professores observam que
C hristian é um "alu n o d ó c il” e, na 2a série d o I a grau, é conside-

297
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

rado com o uma criança “ tranquila” , “distraída” ou “ in dolente", mas


“ dotada". Os n íveis escolares ou as profissões dos pais de Christian
não nos possibilitam especialm en te com preen der uma situação
escolar m uito fa vorá vel.
U m a abordagem pelo ângulo das práticas familiares de leitura tam­
bém não é esclarecedora, na m edida em que são m uito restritas por
parte dos pais. N ã o estamos diante, por exem p lo, de pais autodida­
tas que se interessariam por práticas de leitura apesar da posse de um
capital escolar relarivam ente pobre. O senhor e a senhora R. não
com pram regularmente jornal ( “ Ele, é principalm ente o jornal da
televisão, às 20h, que ele assiste, e só", diz a senhora R. a propósito
d o m arido), e, quando têm um, “ folh eiam ” apenas as notícias p o li­
ciais (assassinatos, atentados...) ou os classificados de em prego, mas
nunca a política ( “ Passo de lado” ). Tam bém quase não lêem revis­
tas, histórias em quadrinhos ou livros ( “N ã o gosto muito” ), diz a senho­
ra R.: "O lh o revistas de vez em quando, folhetos, anúncios, catálo­
gos, mas 1er de fato, 1er um livro, não". Q u anto ao marido, ele “ olha
a B íb lia" de vez em quando. O senhor e a senhora R. têm um d icio ­
nário e enciclopédias ( “ C om prei ‘B B C ’ para m inha filh a” , diz ela,
“ para aprender m elhor o inglês” ), que estão dispostos numa estan­
te. A senhora R. diz que utiliza “ freqüentem ente” o dicionário, que
desempenha um papel de árbitro nas contendas semânticas ou o rto ­
gráficas ( “ Pras palavras que a gente não entende, sempre tem um que
fala: ‘N ã o é isso', o outro, ele diz: ‘É isso’ , então a gente fala: ‘Beim,
olha no dicionário!'. A gente olha sempre no dicionário para ter, com o
falar, o resultado exato. E o dicionário que nos guia, que nos dá o
certo” ), ou a en ciclopédia ( “ Tem mais d eta lh e"). O s livros que pos­
suem são essencial m ente os que são comprados para as crianças.
É mais considerando as disposições sociais familiares m ateriali­
zadas na pessoa da mãe, que cuida da gestão do c o tid ia n o e da esco­
laridade de seus filhos, que podemos com preender um pouco m elhor
a situação escolar de Christian. E a mãe quem cuida de tudo na casa.
Ela diz, rindo, de maneira reveladora, que seu m arido "é in existen ­
te ” . A lé m disso, ela recorre a numerosas práticas de escrita ou de
classificação que revelam uma grande disposição racional, uma ten ­
dência ao cálculo e à previsão.

298
PÊRFIS DE CONFIGURAÇÕES

É, portanto, quase exclusivam ente a senhora R. quem cuida dc


todos os escritos dom ésticos. Põe o m arido “ a par” da correspon­
dência, mas ele n ão a lê. R ed ige as cartas administrativas, preen ­
ch e o form ulário de impostos, cuida das contas familiares, classifi­
ca rigorosam ente os diversos docum entos em pastas, gerencia o
orçam ento familiar, sem caderno, mas separando as notas que ainda
não foram pagas ( “Tudo o que está pago, arrumo, sucessivamente,
em pastas"), escreve lembretes, listas de compras, faz anotações no
calendário da cozinha ( “ Tem dias que tá m arcado: m édico, dentis­
ta, reunião, com prom isso que vou riscando... N ã o posso esque­
cer” )' M, troca pequenos bilhetes com o cônjuge, redige as cartas para
a fam ília ( “ M eu m arido não escreve nunca. Ele é m uito fechado
(riso)” ), escreve ou cola receitas num caderno (" C o p io tudo, sim,
sim, tenho um caderno, tiro num caderno, co lo c o o títu lo n o in í­
c io ” ), faz anotações prévias a um telefon em a ( “ Faço uma espécie
de rascunho, por exem p lo, etapas” ) ou depois de uma conversa
telefôn ica, para lembrar-se do que lhe disseram ("R is c o , anoto,
escrevo algumas palavras que vou abreviando ao longo para me lem ­
brar o que foi que ela respondeu” ), e cuida dos álbuns de fotos, escre­
ven d o pequenos com entários: “ Fazia isso principalm en te antes,
quando a gente não tinha filhos, eu marcava: ‘U m feliz aniversá­
rio. Esse dia foi form id á vel’ ou, por exem plo: ‘C om em os e bebemos
m uito b em ’, ‘ U m dia in esqu ecível’ , coisas assim".
Apesar de a mãe parecer, às vezes, descrever, no decorrer da entre­
vista, uma maneira bastante indolente de gerenciar o tem po — sua
irmã diz: "Bem , ela vem das ilhas, hein? (R iso .)” — , ela utiliza bas­
tante os numerosos calendários presentes quase por toda parte na casa
(n o quarto de cada um dos filhos tem um ), e gerencia racionalm en­
te o cotidiano familiar. A lé m disso, a senhora R. insiste n o fato de
que o filh o tem de saber olhar o calendário para poder organizar-se
em seu trabalho: “ Ele tem sempre programas na cabeça, então, para
mim, é essencial que saiba olhar o calendário, para poder guardar ‘Tal
dia, tenho tal coisa pra fazer’ ” . Por trás de uma forma de displicên­
cia (que os professores também observam no com portam ento de
Christian) se esconde uma maneira muito rigorosa de pautar os rit­
mos familiares, de controlar as atividades dos filhos, de organizar as

299
SUCESSO ESCOLAR N05 MEIOS POPULARES

obrigações e de organizar a vida familiar. A mãe até corrige algLins


atos dos filhos para que sintam o valor das coisas que consom em e a
necessidade de não avançarem sobre um alim ento para poder guar­
dar um pouco para mais tarde. A través de atos cotidianos, ela trans­
mite uma relação específica com o dinheiro e com o tempo, que impli­
ca cálculo e a lim itação dos desejos imediatos: “ A liás, quando a gente
faz as compras, bem, as crianças slí querem doces, bem, minha filha
é roupa, é uma loucura, a gente fala pra eles: ‘E, vo cê vai ver, quan­
do trabalhar, se vai poder comprar tudo isso, é, vo cê vai ver quando
for com você, com teu dinheiro que vo cê vai pagar. Vai aprender que
é preciso prestar atenção, que não é ficar gastando assim de um dia
pro outro assim o que tem em casa’. M eu filh o, que tá sempre com en ­
do, sempre procurando, porque acabamos de voltar das compras, eu
falo pra ele: ‘ N ã o é porque a gente acabou de comprar isso que já vai
dando um fim . Tem que saber que amanhã vai fazer falta, assim, que
não vai ficar com prando toda vez que não tem. Isso custa dinheiro,
é ’. A gente ensina tudo isso pra eles” . E a isso é necessário acrescen­
tar o ritm o fam iliar bastante regular, tanto das crianças quanto dos
adultos. N a véspera dos dias em que tem aula, Christian se deita “cedo,
8h e meia", e eles próprios têm um ritm o regular que se expressa par-
ticulanuente n o ditado: "Q u em deita cedo, cedo madruga". Assim ,
podemos pensar que as rigorosas organizações da existência familiar
que descobrimos podem estar na origem das organizações de pensa­
m ento bem-estruturadas.
Mas isso não basta, sem dúvida, para explicar o "sucesso” escolar
de Christian. A lé m do mais, é preciso considerar uma vontade de ascen­
são social que está conscientem ente voltada para a escola com o m eio
de vencer na vida. A senhora R. “ lastima m uito" não ter podido ir mais
adiante nos estudos. Para ela, a escola é um investim ento particular­
m ente im portante para ter uma “ situação” . A trib u i sua condição
modesta a um n ível de escolaridade muito baixo: “ É importante, por­
que a gente sabe que nós, os pais, a gente leva uma vida dura, e acho
que é porque não fomos muito longe na escola e a gente não tem muita
instmção. A gente não aprendeu o suficiente, e é por isso que a gente
tá assim na vida” . Ela e o marido sempre repetem a seus filhos: “ Você
precisa aprender bastante na escola para se sair m elhor mais tarde” .

300
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

É sempre a mãe quem acom panha a escolaridade de Christian


e aré faz parte do C o n selh o de Classe da escola. “ Assim , fico sabem
d o o que acontece na escola” , diz ela. Isso lhe possibilita também
julgar os desem penhos d o filh o em função do que ouve acerca dos
outros alunos. Considera que, em matem ática, a situação de C h ris­
tian é boa, mas que ele tem dificuldades em o rto g ra fia "’ , pois quer
ir m uito rápido: “ Ele não pensa m uito quando está copiando” . O lh a
regularmente suas notas e, quando são ruins, o “ repreende".
C hristian n ão fica nos horários de estudo livre depois da aula,
nunca desce sozinho para brincar, pois a mãe tem m edo dos carros,
e fa: as tarefas no quarto. R esolve sozinho, depois mostra os cader­
nos à mãe ou à irmã: “ Estuda sozinho. Q uando acabou e já está saben­
do, vem até nós, nos mostra seu caderno e, então, a gente olh a com
ele e ele repete em voz alta. E sempre a gen te diz: ‘Será que vo cê
entendeu o que isso quer dizer'? Porque, bem, falar assim em voz
alta é bom tam bém , mas pode ser que até n ão com preenda o que
aquilo quer dizer, não é ? " " 6. A senhora R. con trola m uito o filh o,
pois está persuadida de que o professor dá tarefas m u ito fáceis e de
que ele tem “ ten dên cia a ser m uito tranquilo e dar notas muito
altas” 1'7: “ Por exem p lo, se meu filh o tem 9,5, bem, ele fala: ‘N ã o
vou dar 9,5; 10 está bem ’. E eu não gosto disso, não con cordo com
isso, porque m esm o em vez de dar 9,5, era m elh or ele dar 9,0 pra
criança entender que não estava bom o que fez, porque se a crian­
ça com eça a fazer assim, fica achando que uma vírgula não é im por­
tante e, então, vai contin u ar” . Ela n ão está con ten te co m os atuais
resultados absolutam ente brilhantes d o filh o , pressentindo que
qualquer desleixo de sua parte poderia prejudicar o que já apren­
deu "". Para ela, os atuais resultados n ão constituem uma razão para
não mais esforçar-se, para uma n egligência. M a n ten d o a pressão,
fica lem brando constan tem en te ao filh o para que faça as tarefas
( “ Q u ando a gen te v ê que está vadiondo, falo: ‘ V ocê já tez as tare­
fas?’ " ) , para que “ ele não se acom ode assim fa cilm en te” , e acres­
centa que ele precisa ser co n trola d o 1w.
A mãe também estimula os filhos a lerem. V ai à biblioteca m uni­
cipal, “ de vez em quando, mus ésemprre assim, para as crianças", e com-
pra-lhes livros co m o presentes"0. C o m o ela própria não lê e consi­

101
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

derando essa lacuna com o um “d efeito", tenta persuadir os filhos de


que se trata de algo interessante: " A s crianças, eu estim ulo m uito
eles, 1er, 1er, 1er. Sei que é um defeito que ten h o” . C h ega a incitar
Chistian a ir ele próprio consultar o dicionário quando não com preen­
de uma palavra { “ Ele faz isso, mas não é sempre, hein.?. Preciso estar
sempre atrás d e le "), Ela acha que é len do que ele poderá m elhorar
a ortografia: “ Eu quase obrigo ele. T en to fazer que ele faça isso, por­
que sei que é assim que ele poderá m elhorar d o p on to de vista da
ortografia, por exem plo. Ele vai encontrar palavras novas que tem
de anotar, que tem de aprender” . Segundo a mãe, Christian “ não gosta
m uito" de 1er, pois não tem “ pacién cia"Mi. Mas isso n ão im pede que
ele, às vezes, peça livros: "Foi por causa deles que ele descohriu a esco­
la. Ele me disse: ‘Veja, a professora nos fala isso, aquilo, talvez seja
interessante, quero 1er da próxim a vez’ , ou algo assim".
A mãe tam bém exerce uma ação socializadora que estim ula os
filhos d o p o n to de vista das exigên cias escolares, de form a que
Christian viv ê n c ia a escola com o um universo de co m p etição na
qual deseja ser o prim eiro. Preocupado, ele interiorizou a von tade
escolar da mãe de form a com p etitiva . C o m efeito, ele gostaria de
passar na frente de uma m enina de sua classe que sempre está em
prim eiro lugar (é a aluna do Perfil 25): “ Então, bem, é o que deixa
ele nervoso, às vezes; tem uma m enina, que está na fileira 2, que
vai m elhor que ele, que é sempre a prim eira, en tão ele fala: ‘ Putz!
A q u e la ali, não con sigo passar na frente dela ! '. Eu fa lo pra ele: ‘ Mas
não é isso que precisa fazer’ . Eu falo pra ele: 'N ã o é isso que conta,
porque’..., é claro, eles estão, não sei bem, com dois pontos de d ife ­
rença, ou um ponto. Eu falo: ‘N ã o é isso que precisa fazer. É você,
vo cê olha o que está diante de você, n ão precisa querer passar na
frente da ou tra!’ . É o trabalho dele que ele tem de ver, se fez com
vo n ta d e, co m atenção, vai dizer: ‘ Bem , pô, não consegui fazer
m elhor, mas fiz o que pude’ . A lé m disso, ‘ ele aprende bem as lições,
consegue guardar bem elas. A liás, ele fica repetindo elas várias
vezes e tudo. Isso o atormenta. A n tes de ir pra escola de manhã, ele
ainda faz uma revisão delas” .
Os “ dons” atribuídos a C hristian p elo professor são, portanto, o
produto de uma organização fam iliar racional voltada para o "suces-

302
PERFI5 DE CONFIGURAÇÕES

so” escolar (e, mais amplamente, social) dos filhos. Podemos até acres­
centar que o fato de que a mãe tenha parado de trabalhar por v o n ­
tade própria no m o m en to do nascim ento da filha, só vo ltan d o a
fazê-lo com um serviço cm casa, desem penha um papel n ão-n egli-
genciável, principalm ente em configurações familiares em que tudo
depende de uma vig ilân cia regular e sistem ática11'. O que pode
reforçar essa hipótese é o fato de a irmã da senhora R. in tervir no
fin al da entrevista, lem brando as dificuldades escolares de seus pró­
prios filhos, mais graves, por, segundo ela, trabalhar fora e pela sua
relativa falta de disponibilidade em relação a eles. “ Meus filhos tra­
balham menos bem que os filhos de m inha irmã. T e v er em casa, já
tem uma preocupação de menos pras criança, tem a impressão que
isso tranquiliza elas. C om p aro os filhos dela com os meus. Eu, por
exemplo, que estou quase sempre mais fora do que dentro, bem, quan­
d o eles voltam , n ão encontram ninguém , e isso já é uma preocupa­
ção a mais, que não deixa eles em condições para estudar, estudar
m elhor, eu diria. E, eu estou mais m etida na engrenagem , sempre
correndo, a mesma rotina. Incapaz nem de ajudar meus filhos em
seus estudos, e " (R iso.) A senhora R. confirm a isso: “ Estou em casa,
posso controlar m uito mais do que ela, porque ela, ela trabalha".

♦ Perfil 25: Um caso “ ideal” .


Nadia D . , nascida em Oullins, sem ncnfiurm repetência escolar, obte­
ve 7,6 na avaliação nacional.

Quando marcamos o encontro por telefone, talamos com a senho­


ra B., avó materna de N adia, que nos diz: “ É claro, aceito. Som os
m uito abertos ao diálogo. Tudo o que puder ajudar a criança. Venha
à minha casa, o senhor verá em que am biente v iv e N adia, é im por­
tante o am biente” . N o dia da entrevista, entramos num apartamen­
to im pecável: arrumado, limpo, claro e espaçoso. N o hall de entra­
da, está pendurado um pequeno quadro com a inscrição: “Quem chega
com o am igo chega m uito tarde e sai m uito cedo". A entrevista o cor­
re na sala de visitas. N e la encontramos um jo g o de estofados de couro,
uma estante com portas de vidro, m óveis n ovos em “estilo rústico",
uma televisão e um aparelho de vídeo, grandes plantas, fotos dos filhos,

303
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

da sua titha falecida (a mãe de N a d ia ) e quadrinhos acompanhados


de rextos em árabe. O quarto de Nadia, que a senhora B. nos levou
para conh ecer quando a entrevista acabou, está bem arrumado.
N e le , observamos principalm ente livros e uma lousa. O senhor B.
vem se juntar a nós n o decorrer da entrevista. Usa pequenos óculos
em metal, um corte de cabelos im pecável e está vestindo, sobre uma
camisa clara, um pulôver com decote em V, de losangos.
Nadia D. vive com os avós matem os desde a morre da mãe, ocorrí'
da quando ela tinha 23 meses. A senhora B., de 56 anos, ficou em
casa para cuidar dos quatro filhos, e depois, com o os estudos de seus
filhos se tornaram m uito onerosos, ela trabalhou co m o auxiliar de
m aternal1'” . N ã o fo i à escola na A rg é lia e chegou à França com a
idade de 14 anos, sem saber 1er n em escrever. M ais velh a de uma
fam ília numerosa, seu pai queria que ela auxiliasse a mãe junto aos
irmãos e irmãs: “ Eu era a mais velha. Precisava ficar em casa, pre­
cisava ajudar toda aquela criançada” . Cursou a escola durante 2 anos
na França, mas aprendeu, quase às escondidas, a 1er e a escrever, e
dá mostras de uma grande curiosidade cultural. A p ren d en d o com
a irmã, en viava seu trabalho à sua antiga professora, que o corrigia
e o d evolvia . Esta queria que ela fizesse o exam e para obter o C e r ­
tificado de S u p letivo, mas o pai não deixou.
Desde m uito nova, era fascinada pelos livros (te v e a oportu n i­
dade de conh ecer a biblioteca de Ferhat A bbasH4: “ Ferhat A bbas era
nosso vizinho. Q u ando a gente vê que era um m édico, um farm a­
cêu tico reputado, um hom em que tinha biblioteca, milhares de
livros! Eu me lem bro só disso, quando entrava na casa deles. Eram
os livros que m e atraíam. Q ueria saber o que tinha dentro de todos
aqueles livros. Eram pra m im um m istério. U m m istério, porque eu
não sabia o que era um liv ro ” . Seu pai era operário não-qualifica-
d o e dirigia os negócios da fam ília com uma vontade moral bastan­
te segura: "U m simples operário, mas a gente vive u m uito bem. A
gente era feliz. M eu pai era supergentil, em todos os aspectos, mas
era m uito rigoroso. Super. A gente podia pedir a ele o que quises­
se que ele nos trazia. Mas era rigoroso, era o hom em , ora. N ã o era
nem o hom em , era o patrono. (Riso.) A q u e le que dava murros na
mesa, é". Seus irmãos e irmãs não se tom aram todos operários; ela

304
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tem um irmão que concluiu o 2S grau {n a área de m atem ática e ciên ­


cias naturais), uma irmã que tem um C ertifica d o de Conclusão de
1® Grau Profissionalizante de Secretariado, uma outra que cursou
a escola de enferm agem , um irmão que é telhador e outro que se
tornou “gerente de uma boate". O senhor B., de 64 anos, é aposen­
tado. Trabalhou co m o m ontador em m etalúrgica (operário q u alifi­
ca d o) e fo i à escola na A rg é lia até o fim do curso prim ário.
A mãe de N a d ia morreu há 6 anos. C on clu iu o 22 grau, na área
de matemática e ciências físicas, e tinha uma licenciatura em russo.
Tin h a com eçado a trabalhar com o programadora, e h avia se casado
com um hom em de quem a senhora B. parece não gostar muito. De
in ício, ela havia questionado sobre o n ível de estudos (pou co ele­
vado) daquele rapaz — sinal da im portância atribuída por essa fa m í­
lia à cultura escolar: “ Q uando minha filh a o apresentou a mim , é,
era um belo rapaz. U m belo rapaz, nada mais. Mas beleza não põe
mesa. A h !, é por isso que lhe digo, talvez seja pretensão porque eu
teria preferido para meus filhos pessoas intelectuais, que alcançaram
um certo n ível. Sabe, não podemos todos ser doutores, mas ter algu­
ma coisa para conversar, conversar com alguém sobre alguma coisa,
dum livro que a gente leu, de um film e que assistiu". O pai de N adia
trabalha com o m otorista-entregador e v ê a filha todos os domingos.
T en d o en trado na escola m aternal com 4 anos, N a d ia é vista
c o m o uma crian ça que se adapta b em escola rm en te, em bora
tenha “ dificuldades para se desen volver, às vezes". O professor da
2a série do l s grau observa que ela sem pre “ progride” , que “ vem
à escola c o n te n te ” , que “ sahe bem as liçõ es” e que se sente “ que
ela vem à escola para ter sucesso". Pu dem os con statar que o
m aior obstáculo para uma escolaridade e x celen te das crianças que
v iv e m em m eios populares estava rela cion a d o ao fa to de que a
boa vo n ta d e escolar dos pais n em sem pre en con tra va os m eios
para sua realização (e m tem po, em form as de relações sociais...),
ou en tão era qu estionada por elem en tos socializadores co n tra d i­
tórios no próprio seio da fam ília. O caso de N a d ia é um caso excep­
c io n a l de criança que v iv e uma socialização estável, sistem ática
e n ão-co n tra d itó ria que a leva a um “ sucesso” escolar “ b rilh a n ­
te ” . A in d a neste caso, não é pelos diplom as ou p elo tip o de pro-

305
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

íissão exercida pelos avós que se p o d e co m p reen d er o processo


de “ ê x ito ". D o ângu lo do capital escolar e d o capital eco n ô m ico ,
n ão se percebe em que consiste a esp ecificid ad e da con figu ração
fam iliar, da constelação de atitudes, de disposições, de in cita m en ­
tos cotidian os, difusos ou ex p lícito s, n o seio da qual N a d ia pode
con stitu ir sua própria personalidade.
Em prim eiro lugar, estamos às voltas co m uma personagem
central, uma figura-chave desta fam ília: a a vó materna. Esta se sin-
gulariza por sua bulim ia cultural, sua curiosidade en ciclo p éd ica de
autodidata, p or seu respeito p elo saber e alta cultura e, m uito
especialm en te, pelos livros. A n te s da m orte da filh a, ela lia apro­
xim adam en te quatro livros por semana. Fala co m uma n otável
intensidade da enorm e vontade de saber que sente dentro de si e que
poderia tê-la levado a fazer outra coisa de sua vida: “ Li tudo. Se meu
m arido estivesse aqui, ele lhe diria: ‘ Ela me queim ou muitas lâmpa­
das. N o ites inteiras, dias inteiros, ficaram acesas’ . Li durante noites
inteiras. Q u ando me casei, lia livros até 3 ,4 horas da manhã, escon­
dida, hein?, porque meu m arido trabalhava de manhã. Eu na época
tinha 19 anos, tapava com jornais a lâmpada de cabeceira. Porque
era uma necessidade de saber, de aprender. E eu queria aprender e
conseguia. A go ra sei que isso não é arrogância. N ã o é nem mesmo
pretensão, é uma necessidade. A c h o que é uma necessidade. Talvez
tenha nascido para outra coisa além disso. E alguma coisa em mim,
é alguma coisa cm mim, sinto assim. A h , veja, não é arrogância, é
uma necessidade” . Q uando o marido chega, ele confirm a suas pala­
vras, com entando: “ Ela lia, ah, sim, ela com ia, hein? Ela é mais
cu lta qu e eu ", Ela leu , e n tr e o u tro s, C a m u s, M o n t h e r la n t ,
Chateaubriand, G isèle H a lim i, e gosta de biografias (acabou de 1er
a de R om y Schneider, M o i, Ronry). Nas biografias, gosta do fato de
poder entrar na história de uma pessoa real: “ Porque isso dá a impres­
são de que tem alguém por trás desse livro. T em uma presença, e fico
im aginando essa presença quando estou lendo” .
A lé m disso, ela interiorizou uma relação legítim a com os pro­
dutos culturais, e fala das “ bobagens" da televisão (qu e opõe às
“ inform ações realm ente interessantes", tais co m o os “ programas
médicos ou os jornais in form ativos” ) ou da “ im becilidade” de uma

306
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

revista que tinh a com eçad o a assinar para N adia. Lem bra com
menosprezo os romances policiais { " A h , não gosto de romances poli­
ciais! T en h o h orror disso” ) e os romances "m elosos". C h ega a cen ­
surar o marido por não 1er bastante: “ Ele não lê nada. É verdade, é
uma censura que faço a ele constantem ente. A gente se torna culto
lendo. (T om um tanto quanto moralizador. ) E isso que ele não co n ­
segue com preender. N ã o quer tornar-se cu lto” . M esm o assim, o
senhor B. compra, ocasional m ente, o jorn al (L e Progrès), onde lê
as notícias policiais, esporte, assim com o todas as notícias locais11'.
E a avó ainda organiza racion alm en te a vida fam iliar: as a tiv i­
dades dos diferentes dias, os horários das refeições, os horários de
deitar... são de grande precisão ( “ E pontual, é ex a to ” ) 141', e estão cal­
cados nas exigências escolares (N a d ia se deita por vo lta das 21h,
ex ceto nas noites em que, n o dia seguinte, não tem aula e quando
pode v er televisão até um pouco mais tarde). Essa organização fa m i­
liar rigorosa se torna visív el também n o aspecto d o apartam ento,
hem-cuidado, sem desordem (incluindo o quarto de N adia), que passa
(e , sem dúvida, quer passar) a im agem de gente de “ bem ” e que "se
apresenta bem ” . Inclusive na apresentação de si; com sua m aneira
de falar e de vestir-se, o senhor e a senhora B. lembram a classe o p e ­
rária respeitável147.
A gestão da organização dom éstica, pela senhora B., é especial­
m ente ordenada, e é ela quem cuida de todos os papéis — “ Era
sua fu n çã o ” , diz o sen h or B.; "E meu d o m ín io ” , acrescen ta a
mulher. A m b o s lêem a correspondência, mas ele faz uma leitura
mais “ su perficial". Q u an do é preciso escrever cartas ãs repartições
ou para a fam ília, é sempre ela quem se encarrega disso: “ Sou sem ­
pre eu, não é às vezes, é sem pre". O m arido acrescenta: "Ela é d ed i­
cada. E a secretária, faz to d o o orçam en to, tudo, geren cia o orça­
m ento. Ela sempre conduziu o barco, hein?". E ela quem p reenche
o form ulário de im postos (e la o assina), faz os bilh etes para a es­
cola, se encarrega das contas fam iliares, organiza os docu m en tos
( “ Está tildo classificado, hein?, em pastas co m os n om es em cim a,
com etiquetas. Tudo está marcado. A h , sim, aqui em casa é assim "),
faz as contas fam iliares todos os meses com a ajuda de um cader­
no e de uma agenda, m antém atualizada a caderneta de endere-

307
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ços e de núm eros de telefo n e e escreve lem bretes num papel ou


num “ca len d á rio ". E ela ainda quem d eix a bilh etes para o m ari­
d o ou para outras pessoas ( “ Q u a n d o meu m arido está ausente e
eu ten h o que sair, d e ix o um b ilh ete para ele. A h , isso sou eu que
faço. Ele n ão faz, mas eu sim ” .), redige uma lista de com pras na
ordem das gôndolas e vai m arcando as com pras gradativam en te,
no superm ercado ( “ Em p rin cíp io, fa ço assim, na ordem , porque
depois me am ola ter de tornar a marcar e v o lta r ao ou tro lugar.
Vou len d o o que vou pegando. Sei pra o n d e vou , o lugar pra on de
estou indo. D e qualquer form a, a gen te consegue se localizar, por
exem plo, a gen te pega cin co, seis coisas n o m esm o local, e a g en te
vai lo g o d iretam en te pra lá " ), escreve uma lista das coisas a serem
levadas numa via ge m ( “ Q u an do a gen te sai, por exem p lo, qu an ­
d o vou para A rg é lia , ou en tão quando a gen te sai de férias, sou
obrigada, de qualquer form a, a falar: ‘ L e v o seis pulôveres, três ca l­
ças, um m a iô ’ . A gen te é obrigada, porque, senão, a mala fica uma
co n fu são ") e faz anotações ao telefon e.
Toda a oposição entre as disposições gerenciais, calculadoras, racio­
nais da a vó e as d o a v ô se revela quando perguntamos se eles têm
uma caderneta para con trole de m anutenção e gastos com o carro,
e a senhora B., julgando certam ente ser da alçada de seu marido,
diz: “ N ã o ele! A h , ele não é m inucioso", e se dirige a ele, falando
num tom moralizador: “ V o cê não é esforçado” .
O senhor e a senhora B. tam bém orientaram a própria vida para
o futuro dos filhos. O orgulho pessoal deles se manifesta n o orgu­
lho que sentem pelos “ sucessos" escolares e sociais dos filhos. São
pais que tudo sacrificaram para tanto, e esperam fazer o mesmo pela
neta, a quem dedicam um verdadeiro culto: “ N ó s fizem os tudo pros
nossos meninos. A h , tenho orgulho de meus filhos, e digo. T en h o
m uito orgulho de meus filhos. A h ! eu, é por isso, m esmo ela, a gente
anda de cabeça erguida. P or quê? Por que a gente sofreu por eles. A
gente não buscava o luxo ou coisas assim. Nosso objetivo era educar nos­
sos filhos", diz o senhor B.
A avó acrescenta a isso a con cepção de uma presença constan­
te ( “ Eu estou aqui” ; “ Ela tem uma presença” ). A c h a que uma crian­
ça tem necessidade de amor, de ternura e de sentir-se “ apoiada

308
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

m oralm ente” : “ U m a criança, d o que ela precisa? Precisa de um


apoio moral. Isto é, de alguém que esteja ali, uma presença, só isso.
M esm o que a gente não a ajude, não pego a caneta dela para fazer
suas tarefas, não sou eu, é ela quem tem que fazer, mas estou cujui
(acentua essa palavra). Isso prova que o esteio está aqui. E ela estu­
da, estou em vo lta dela, só isso. Ela sente que estou aqui” . E c o m ­
preendem os a excepcion al transferência de afeto que se opera por
causa do desaparecim ento da mãe: “ Eu a educo com m uito amor,
muita ternura. M ais amor, prim eiro, d o que ternura porque m inha
filha não está aqui. M in h a tilha não está aqui, mas acho que gosto
m uito mais dela d o que sua própria mãe” .
Esse constante ap oio se manifesta especialm ente num acom pa­
n ham ento escolar e, mais am plam ente, cultural m uito rigoroso11*.
A a vó está c o n ven cid a do valor da escola: “ O estudo, para mim , é
uma necessidade e é sagrado. C o m a vida que se está levan do agora,
a gente é obrigada a ter instrução e educação” . Ela con h ece bem o
professor de N adia, e vai vê-lo frequ en tem en teH”. V erifica as tare­
fas ( “ A gente controla isso todos os dias"), corrige-as, explica quan­
do N adia não com preende uma palavra ou um exercício1'0, fá-la dizer
em voz alta as lições ( “ À s vezes, quando tem resumos para estudar,
bem, eu decoro, e depois dou meu caderno pra ela e falo em voz alta",
confirm a N a d ia ) e acom panha as noras com o marido.
O senhor B. va i com N a d ia à bib lioteca m unicipal regularm en­
te, todas as quartas-feiras. Ele e a mulher com pram -lhe livros com o
presentes freqüentem ente. Ela tem contos, livros da coleção “ B ib lio­
thèque Rose", tem sua própria biblioteca ( “ T en h o muitos livros” ,
diz N a d ia ). A a vó tam bém lê histórias para N adia desde que ela era
bem pequena, pois entendeu que a filha o fazia quando ela ainda
era bebezinho: “ M in h a filh a tinha jeito. Sabia muitas coisas. Sabia
canções e tudo, e N a d ia desde cedo sabia tudo isso, e quando v e io
morar com igo, ela tinha 23 meses quando m inha filh a entrou em
com a, en tão fiquei com N adia e, à noite, ela falava: ‘C o n ta !’, e eu:
‘C o n to ’ , era 1, 2, 3, e ela chorava. U m dia, ela pegou um livro e
disse: ‘C o n ta , v o v ó !’ , e en tendi que era um co n to que ela queria” .
E, além disso, ela lhe com pra cadernos de férias, assim com o jogos
educativos (u m m inicom putador, Les Incollables...).

309
SUCESSO ESCOtAR NOS MEIOS POPULARES

O s avós são m u ito sensíveis às variações de notas Je N a d ia 1’ 1. A


senhora B. diz que, se virem o n ív e l escolar da neta baixar, seu m ari­
do ficará “ furioso", e ela, “ envergonhada” . O am or dos avós para
com a neta se manifesta pelo “ sucesso” escolar de Nadia, que sente
que terá tanto mais am or por parte dos avós quanto mais progredir
na escola. Nessa econ om ia afetiva especial que se instaurou, qual­
quer sucesso escolar se converte em amor. Vem os que N adia in te­
riorizou a im portância do "ê x ito ” , pois fica envergonhada quando
não encontra a palavra correta em seu com putador: “ Q uando ela
não consegue, ele lhe diz: ‘ Está errado’ , e isso a en vergon h a” .
Ten d o vive n cia d o a perda da mãe, o afeto dos avós d eve ser par­
ticularm ente im portante para ela. Q u an do ficou separada deles
durante 28 dias numa c o lô n ia de férias, ela lhes en viou 28 cartões
ou cartas, mostrando um apego excepcion al: “ Ela colocava bilhe-
tinhos. Q u ando já tin h a fechado o e n velo p e e tudo, e tinha esque­
cid o alguma coisa, en tão ela virava a carta, o rem etente, n o lugar
do remetente, e escrevia: ‘V ovó, esqueci de te dizer isso’ . (Riso.) Então
ela m e escrevia bilh etinh os por cim a. Então, veja, que gracinha".
Mas o n otá vel1’ ’ é que esse apego seja expresso de maneira tão
intensa através da escrita. Ela tam bém escreve bilhetes para os avós
quando é o aniversário deles1''1: “ Era o aniversário de seu vo vô , dia
1B de março, ela lhe escreveu um b ilh etin h o am ável: ‘M eu vo v ô ,
te amo muito, petos teus 65 anos, desejo-lhe m uito a m á vel’. (Riso.)
Então, disse a meu marido: ‘T á vendo, você não é amável, é por isso’ .
(R iso .)’’. Sua avó tam bém diz que "ela tem tendência a escrever,
mesmo aqui, quando está brincando com os primos, às quartas-fei­
ras de manhã, ela brinca de professora. Então, escreve, faz b ilh eti­
nhos” . A s vezes, ela também copia trechos “ engraçados” de um livro
que está lendo: “ Assim , depois, leio eles pras minhas colegas. Tem
pedaço que é m uito bom , que a gen te pode rir. Pego eles e depois
leio pras minhas colegas". Seus muitos contatos com histórias (lidas
por outros ou por ela ) fazem com que ela chegue, agora, a com por
novas histórias a partir das que já conh ece. Sem o saber, ela d esco­
briu “sozinha”— graças às múltiplas ações fam iliares e escolares —
uma parte do processo da criação textual: produzir o n o v o com o
velh o , ser capaz de im provisar um tex to a partir dos inúmeros te x ­

510
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tos lidos, interiorizados: "L en d o livros, en con trei pedaços e juntei


mais ou menos eles com outros pedaços, assim. Deu certo ” .
D escreven do em detalh e sua m aneira de aprender as lições
{ “ L e io a frase, faço um pon tin h o hem de leve com o lápis e, depois,
aprendo bem a frase. Faço isso co m todas as frases e, depois, falo
tudo, e depois eu fa lo ela em voz alta pra v o v ó e apago os p o n ti­
nhos” ), ela revela, enfim , qualidades também presentes em sua avó:
m étodo, minúcia e cuidado. Considerando-se que é a senhora R.
quem está mais em interação co m a neta e que o senhor B., mesmo
que se mostre menos racional e m enos “ cu lto" que a mulher, não
contradiz suas orientações socializadoras, podem os dizer que N a d ia
se constrói numa configuração fam iliar fuim ogênea, no seio da qual
as incitações culturais são incessantes, onipresentes, principalm en­
te através d o m odo de expressão m uito e x p lícito e correto de seus
avós. A liá s, n o d ecorrer da entrevista, N a d ia fala com facilidade e
de m aneira m uito clara.
Mas não com preenderiam os tota lm en te a energia fam iliar des­
pendida pela senhora B. se não levássemos em con ta um últim o
aspecto. Esta se mostra, ao lon go de suas falas, co m o uma pessoa
"d e caráter” , “ in te lig e n te ” ; e podem os analisar essa energia com o
o produto de uma lucidez sobre sua co n d içã o de dom inada ou de
estigmatizada que se traduz em orgulho, em von tade de mostrar aos
outros que não se deixa humilhar, que ela não pede nada a n in ­
guém e consegue as coisas por si mesma, por seu trabalho e por sua
luta: “ O senhor vê, eu talvez seja um pouco orgulhosa. Digam os
orgulhosa, se preferir, é. Sou orgulhosa. N ã o gosto de me abaixar.
Sem pre tiv e horror de pedir” .
Foi ela quem estimulou o marido a pedir demissão de uma em pre­
sa na qual o am eaçavam despedi-lo se não estivesse con ten te: "E le
sempre foi m altratado, eu acho, na fábrica. Ele ticou trabalhando
na mesma fábrica durante treze anos, era explorado, e diziam pra
ele sempre: ‘Se não está conten te, saia’ . E um dia ele me contou.
M e deu nos nervos, e eu disse a ele: 'V o c ê vai me fazer o favor de
ir lá e pedir a conta, agora’ . Em 66, era duro, hein? lhe asseguro que
era duro. Eu disse a ele: ‘V o cê vai me fazer o fa vo r de ir lá e pedir a
conta, agora. N ã o quero saber. Se fo r pra ficar vivendo, sendo expio-

311
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

rado e subjugado'. Disse a ele: ‘ N ã o precisa chegar a esse ponto. N ã o


estamos num cam po dos boches que oprim iam os judeus, não esta-
mos mais no tem po da guerra da A rg é lia , onde os soldados, os boi-
nas-vermelhas, batiam nos muçulmanos. A g o ra estamos na França,
hein?, igualdade, igualdade, é o caso de dizer pra eles’ . Ele me escu­
tou. Foi lá, pediu a conta e saiu. Ficou dois dias sem trabalhar; no
terceiro, arrumou trabalho” .
Ela não gosta de mendigar, de rebaixar-se, de solicitar auxílios
sociais ou econômicos. Recusa, por exemplo, que considerem seu meio
fam iliar com o um "m eio desfavorecido” ( “ Eu não gosto da palavra
‘desfavorecido” '), e insiste no fato de que consegue as coisas por si
própria e não espera que lhe deem: “ M esm o que nos esteja faltando
alguma coisa, eu falo que não está faltando nada para nós. Porque a
gente pode lutar para ter alguma coisa” . C h egou ã França “ iletra-
da” , “ mas", diz ela, “ cheguei com meus próprios m eios” . Por e x em ­
plo, depois de uma tentativa de suicídio, em seguida ao falecim en ­
to de sua filha, a senhora B. foi acompanhada por um psiquiatra que
lhe aconselhou “ pedir 100% de reem bolso ao Seguro S ocial". C o m o
seu prim eiro pedido de reem bolso integral das despesas foi recusa­
do, o psiquiatra lhe propôs “recorrer” , o que ela recusou: “ A h , eu disse:
‘N u n ca! Meu marido contribui durante toda a vida, desde a idade
de 17 anos que está na França, já contribuiu m uito mais do que pre­
cisava, e, resultado, me indeferem isso. N ã o é norm al’. Então, veja
com o é orgulho, mal colocad o talvez, mas é orgulho. E não record.
Sou m uito-m uito orgulhosa". Da mesma forma, quando lhe “ impu­
seram” a nacionalidade argelina, n o m om ento da independência, ao
passo que teria preferido a nacionalidade francesa, ela não procurou
mudá-la. Considerando que era seu direito ser francesa, ela consi­
derou essa recusa com o um menosprezo em relação a ela: “ O cute­
lo caiu: ‘ V ocê é argelina’. De um dia para o outro. O senhor sabe,
isso m exe. C o m meus princípios, co m minhas convicções, não,
nunca me tomarei francesa. E eu talo, hein?, e, no entanto, aqui estou,
e no entanto estou aqui, mas não, nunca me tornarei francesa” .
Ê sempre co m o m esm o orgu lh o dos in divídu os dom inados e
hum ilhados, mas lúcidos quanto à sua con d içã o, que a senhora B.
ev o c a sua m aneira de pensar quando a mãe de N a d ia não foi acei-

312
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

t;i numa escola m enos “ desfavorecida": “ O senhor se dá c o n ta ! Por


que n ão a aceitaram , para que ela n ão progredisse aqui? M as eu
lhes disse: ‘V ocês v ã o à * * * [n om e da escola] e vão escudar mais do
que os outros'. E é por isso que eu deixarei eles n a * ** [nom e da esco­
la], porque eu ten h o o d ireito de c o loca r eles o n de quiser, mas eles
ficarão lá. Estudarão, e eu lhes mostrarei que estudam m elh or do
que os outros, isso eu lhes asseguro” . U m a vez que lhe im punham
co loca r sua filh a num a escola m enos “ cotad a", a senhora B. teve
a reação que consiste em aceitar a situação, mas provan do que seus
filh os podem ser m elhores do que todos os outros. L ógica típica
do estigm a in vertid o , m u ito hem condensada na expressão “Black
is beautiful” '™.
Sendo argelina, filha e m ulher de operários, a senhora B. p o d e­
ría ter in teriorizado sua co n d içã o em form a de submissão e de
modéstia. Por razões que a entrevista n ão nos possibilita elucidar
totalm en te (suas diversas leituras de autodidata a esclareceram
sobre o fu n cion am en to do mundo: con h ece a história da A rg élia ,
cita uma escritora fem inista...), a senhora B. tom ou, antes, o ca m i­
n ho da reivindicação, do com bate m ilitante (desde a m ilitância p o lí­
tica pela independência da A rg é lia até a m ilitân cia associativa na
França para conseguir abrir um centro p oliesportivo, ela nunca d ei­
xou, em sua vida, de participar dos assuntos da m unicipalidade), mas
também, e principalm ente, da luta cotidiana através da educação
dos filhos e, h oje, de Nadia. E tam bém essa energia d o estigm ati­
zado, essa força específica dos dominados, cheios de lucidez e de revol­
ta, que a senhora B. põe a serviço da neta.

♦ Perfil 26: Uma militância familiar.


Imane M ., nascida em Lyon, sem nenhuma repetência escolar, obteve
7,9 na avaliação nacional.

Quando fomos marcar a entrevista, nós nos encontramos com o


senhor M . Ele viu o bilhete no bloco de anotações e nos pergunta se
somos “ universitário". Convida-nos a sentar e lhe falar da pesquisa que
estamos fazendo. Fala-nos de m odo geral do bairro, que, segundo ele,
tem muitos imigrantes ( “ Eu sou imigrante, não nego” ), e parece pen­

313
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

sar, com o a mãe do Perfil 21, que existem “ imigrantes” e “ imigrantes” .


Durante uma reunião de condôm inos, há dois anos, falou com um dos
auxiliares do prefeito para que fizesse algo pelo bairro, mas nada foi
feito desde então. Para ilustrar ou esclarecer seu discurso sobre a pre­
venção, cita-nos um provérbio: “N ã o se compram armas depois da guer­
ra", e evoca os acontecimentos de Vénissieux de alguns anos atrás. Com -
binamos um encontro para a semana seguinte.
Portanto, o senhor M . nos recebe uma semana mais tarde, pela
manhã. Cumprimentamos sua mulher, cordial e discreta, que não par­
ticipará da entrevista. Fica na cozinha e não faz barulho. N ós nos ins­
talamos na sala de visitas, em poltronas confortáveis. U m tapete
oriental cobre o chão; a sala é limpa, bem-amimada; a arca de m adei­
ra escura parece ser de boa qualidade. Vem os também uma televisão.
Por volta das 1lh 4 0 as crianças, dentre as quais lmane, com eçam a
chegar da escola. O filh o que está na 4a série senta-se no sofá, mas a
mãe o chama. N o final da entrevista, o senhor M . se desculpa por
não ter pensado em alguma bebida para nos oferecer.
O senhor M ., de 41 anos, é originário da Tunísia. Foi escolarizado
até a 5a série (repetiu uma série), depois fez um curso de form ação em
mecânica durante 2 anos e o abandonou para trabalhar. Tendo vindo
para a França em 1971, fez um escágio de 6 meses em automação e,
depois, um estágio de um ano ( “ Foi quando tive a oportunidade na
minha empresa, bem, eu fui o prim eiro a me inscrever. Eeu falei: ‘ Por
que não eu?” ’) na empresa onde está trabalhando atualmente com o
ajustador-operário qualificado n ível P3. N a Tunísia, trabalhava para
a Tunis A ir, no aeroporto, e era encarregado da encom enda e da com ­
pra de peças soltas de avião em diferentes países europeus. Seu pai tra­
balhava com o guarda em uma empresa e tinha frequentado a escola
do A lcorã o; sua mãe nunca trabalhou e nunca foi à escola. A m bos
estão mortos. O senhor M . tem um irmão que v iv e na França e cujos
filhos frequentaram a escola durante bastante tempo: uma filha no 3E
ano de direito na universidade (que gosta bastante de lm ane e com
quem realiza muitas atividades), uma filha estilista e um rapaz que tem
o 2e grau técnico de contabilidade.
A senhora M ., de 38 anos, chegou à França em 1975. Frequen­
tou, na Tunísia, a escola árabe durante 4 ou 5 anos, e tem dificul-

314
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Jade para 1er e escrever em francês. Seu pai era agricultor e sua mãe
não trabalhava. A m b o s sabiam 1er e escrever o árabe. O senhor e
a senhora M . têm quatro filhos: o mais velh o , um rapaz de 17 anos,
faz a 8a série d o I a grau profissionalizante numa escola particular
(p o r aproxim adam ente 12000 francos por a n o ); um m en in o de 12
anos, na 6a série; um m en in o de 10 anos, na 4a série; e uma m en i­
na de 8 anos, lm ane, na 2a série do I a grau.
Foi só no final da entrevista que o senhor M . evocou a m ilitân ­
cia sindical e política que o levou a abandonar a Tunísia. Tin ha ade­
rido ao Partido Com unista e tinha tendência a dizer o que pensava
num país em que a liberdade sindical e política era particularmen-
re limitada. Foi para fugir de grandes dissabores que emigrou: “ M e
trouxe muitos problemas. C o m e cei prim eiro n o sindicato e vi que,
com o já lhe disse, n ão tinha muita liberdade, e tudo... Eu era jovem ,
não tinha nenhuma responsabilidade, não estava n em aí. Eu respon­
dia, e era esse o problema, eu respondia. Q uando tem alguma coisa
que não está certa, eu falo, mesmo na frente de meus chefes mais
altos, os grandes responsáveis da empresa, eu fato. Então, eu era m al­
visto, não gostavam de mim. A gente arriscava tudo, tudo: perder o
em prego, ir pra cadeia, tudo, hein? A gente arriscava tudo, e eu res­
pondia". Ten d o ficado ajuizado com a idade, o senhor M . confessa
que não tem mais nenhuma vontade de m ilitar aqui.
lm ane entrou ced o na escola m aternal (2 anos e 5 meses). N o t a ­
mos im ediatam ente o cuidado que tem com seu trabalho. Ela é uma
dos dois m elhores alunos da sua classe de 2a série do I e grau, junto
com o m enino do Perfil 23 ( “ E, sem dúvida, a m elhor aluna de minha
classe” ). N o fin al do ano, já está ten do aulas de m atem ática ju nto
com os alunos da ,3a série. O professor está espantado com a capa­
cidade de explicação oral de lm ane: “ A m im , ela m e deixa boquia­
berto, porque sempre tem uma resposta certa. O u tro dia, estávamos
falando de ‘ aprender’ e de ‘com preen der’. Ela, logo em seguida,
disse coisas de uma tal form a! Mas de uma clareza! Ela definiu, e,
de fato, sentiu a coisa” . Ela participa, com preende m uito rápido,
nunca esquece as coisas: “ É sempre im p ecável".
Q uais são, neste ú ltim o perfil, as razões do "sucesso” escolar da
criança? O pai é operário qualificado, e a mãe não tem em prego;

315
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

seus n íveis de diplom a nada têm de excep cion a l, mas é na traje­


tória do pai que encontram os a ch a ve principal para a co m p reen ­
são das disposições fam iliares extrem am en te favoráveis à escolari­
dade dos filhos.
Em prim eiro lugar, o estilo de discurso do senhor M . sobressai
do de muitos outros entrevistados. M u ito cordial, esse h om em
incorporou um conju nto de atitudes em harmonia co m a escola: edu­
cação, linguagem explícita, construída, correta, precisa, tom refle­
tido, voz calma e suave, gestos que acompanham seu discurso... Desen­
v o lv e as respostas sem nunca perder de vista as perguntas. À s vezes,
temos a impressão de que se perde, mas está apenas explican do sua
resposta, dando o seu contexto ou fazendo apartes: “ Isso é entre parên­
teses” . Essas m odalidades da expressão verbal e corporal estão sem
dúvida ligadas, por um lado, ao passado m ilitante do senhor M ., que
adquiriu o hábito do discurso form al, e x p lícito (através da partici­
pação em numerosas reuniões nas quais tinha de argumentar, ou atra­
vés da redação freqüente de textos) e, por outro lado, a um passa­
do profissional numa com panhia aérea nacional.
Sua m ilitân cia sindical e p olítica o levou não apenas a 1er m ui­
tos jornais e revistas políticas (Jeune A friq u e ), mas também, de um
m odo geral, a apreciar produtos culturais legítimos, tais com o os poe­
tas e cantores egípcios ou escritores árabes''b Se atualm ente só lê
jornais (tunisianos — den tre os quais Le Rennuveau, três vezes por
semana — e franceses, Le Progrès), revistas e livros ou folh etos pro­
fissionais sobre “ qualidade tota l” ; se deixou de lado qualquer idéia
de v o ltar a ser m ilitan te sindical, o senhor M ., entretanto, n ão per­
deu as disposições que estavam relacionadas a essas atividades e que
ele transformou, atualm ente, num com p rom etim en to profissional
(fo i “ o prim eiro" que quis fazer o estágio que o conduziu ao top o da
hierarquia operária, e nos fala por bastante tem p o de sua empresa)
e edu cativo ( “ Tudo o que faço agora é para eles").
O senhor M . constim i, portanto, o p ó lo “ cultural” da família.
Sua mulher parece mais distanciada das questões escolares e edu­
cativas ( “Ela não lê muito frequentem ente” ). Em contrapartida, está
m uito presente na gestão d o c o tid ia n o dom éstico (seu m arido no-
la descreve co m o sendo “ um pouco m aníaca" em relação à m anei­

316
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

ra de cuidar da casa, e o apartam ento com prova, de im ediato, uma


atividade dom éstica rigorosa e regular).
De m aneira inabitual no âm bito da divisão sexual tradicional das
tarefas domésticas, mas por causa das com petências, é, portanto, o
senhor M . que se encarrega dos documentos. Redige as cartas admi­
nistrativas, preenche o form ulário de impostos, os cheques para co n ­
tas familiares, escreve os bilhetes para a escola e classifica com m éto­
do os docum entos familiares: “ A rru m o-os uma vez por semana.
T en h o essa cestinha. Tudo o que chega diariam ente, bem, eu leio.
A correspondência que pode esperar, isto é, se tem uma conta, eu
co lo c o num lugar, e, então, se é uma correspondência que precisa
ser classificada, eu co loco ela nessa cesta, e uma vez por mês tenho
um pequeno armário de correspondência, bem, eu a arrumo lá den ­
tro” . Escreve coisas numa caderneta ou os compromissos num calen­
dário, para se lembrar deles, e faz anotações ao telefone. A s contas
familiares são feitas com sua mulher e sem caderno, mas o orçam en­
to é “calculado” em função dos extratos de conta: “ Para a verifica­
ção, sou eu, e para as despesas ou outra coisa, é m inha mulher” .

Os filhos têm, portanto, a imagem de um pai que gerencia os assun­


tos familiares, mas eles tam bém participam dos escritos dom ésticos
e integram a escrita em numerosas atividades mais ou menos lúdi­
cas. Deixam bilhetes para o pai para que assine os cadernos quan­
do ele v o lta tarde d o trabalho, m antêm em dia os álbuns de fotos e
acrescentam a elas pequenos com entários ( “ Eles escrevem : ‘ Isso
aconteceu em tal lugar’ , lE a m oça tal, m inha prima tal, meu prim o
qualquer coisa. Em tal lugar, fizem os...1” ). Tam bém escrevem car­
tas a seus primos, e Im ane as en via durante os períodos de festas:
“ Faz isso na época de festas religiosas, leigas ou outra coisa. A n o -
N o v o , coisas assim, ela escreve sua carta". Imane copia e guarda recei­
tas que sua prima, no terceiro ano de direito, lhe dá ( “ E sempre sua
prima mais velh a que lhe dá. Ela adora isso, a Im ane” ), redige his­
tórias ou poesias quando está d oen te ou não tem nada para fazer,
tenta copiar de livros e brinca com os irmãos de se deixarem bilhe-
tinhos: “ Pra brincar, a gente escreve, pra não ter que se deslocar.

ÏI7
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Por exem plo, eu escrevo um bilh ete e dou ele pro meu irm ão para
L]ue ele entregue ao outro” .
E sempre o Senhor M . quem cuida da escolaridade dos tilhos.
A com p a n h a as notas de Im ane regularm ente ( “ Sim , faço questão
d is s o ")1’0e considera que está “ boa no co n ju n to ” . Fala sempre sobre
a escola com os tilhos: “ Sempre, aliás, é a primeira pergunta que faço,
quando sentamos à mesa: ‘ Então, o que é que vocês fizeram h oje de
manhã?” ’. É raro que Im ane peça realm ente ajuda para suas tare­
fas, mas, em contrapartida, ela pede ajuda, às vezes, para as tarefas
de seu irm ão da 4B série, que tenta fazer ao mesmo tem po que ele
(sinal de que interiorizou a escola em forma de uma preferência pes­
soal). Seu pai aceita explicar-lhe uma parte, mas cuidando de não
confundi-la: “ Q u ando vê o irmão fazendo m u ltiplicações ou d iv i­
sões, coisas assim, ela tenta fazer com ele. É claro, depois de ter aca­
bado as tarefas dela. Bem, ela pega seu caderno de rascunho, com o
eles têm uma só escrivaninha, bem, ela se põe ao lado dele, fica olhan­
do, faz a operação e, então, vem m e pedir explicação. Eu acho que
não é pra ficar confun din do ela com coisas assim, porque, às vezes,
pega uma divisão co m dois ou três números, então eu falo: ‘Escuta,
tilhinha, v o c ê ainda não está aí. Se v o c ê quer, te ex p lico um pouco
de divisão co m um núm ero, é sim ples e vo cê vai entender, no
entanto, se v o c ê pegar dois ou três números co m o teu irmão, você
não vai entender nada e vai confundir a cabeça por nada” '.
O senhor M . também é m uito a tento em relação ao tem po d ed i­
cado às tarefas e aos brinquedos. Q uando voltam da escola, os filhos
tom am lanche e tornam a descer “ para brincar um pouco, para
esquecer um pouco, durante uma meia hora, quarenta e cin co minu­
tos” , depois tornam a subir para fazer as tarefas1’7. 0 senhor M . guar­
dou durante um tem po o vídeo-gam e que estava tom ando o lugar
do trabalho escolar: “ Está fazendo uma semana que suspendí o
vídeo-gam e. Sim , porque eles perdem m u ito tem p o” 15". In cen tiva
os filhos a não se “ conten tarem ” em apenas fazer as tarefas duran­
te as ferias: “ E além das tarefas, eu os estim ulo a fazerem outra coisa,
a 1er ou a fazer exercícios, além das tarefas, é claro, em vez de ficar
o dia inteiro brincando". É ainda ele quem leva os filh os à b ib lio ­
teca a cada 15 dias. A liá s, vê a filh a sempre len do ( “ Ela lê muito.

318
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Q u ando v e jo ela na cama, ve jo que está com um livro. A n te s de


dormir, tem um liv ro ” ) e se lembra de que, com a mulher, eles lhe
contavam histórias “ para adorm ecer" quando ela era pequena1” .
A lé m disso, os ritmos familiares são m uito regulares (às 21 h “ no
m á x im o " as crianças estão deitadas), e o pai tam bém aconselha os
filh os sobre a m aneira de organizar o trabalho, de p la n ejá -lo:
“ Provas, chamadas orais, lições pra estudar, pra que dia da sema­
na, fazer a agenda. A s vezes, sim, conselhinhos, é claro: ‘N ã o p reci­
sa esperar o dia para estudar a lição, para revisá-la’ . Sim , porque
às vezes, co m o toda criança, bem: T e n h o tecn olo gia , mas pra
semana que vem*. Então, não precisa esperar a semana que vem ,
quinta por ex em p lo, ou quarta para pegar o caderno de te c n o lo ­
gia. 'N ã o , porque, na quarta, v o c ê vai ter outra coisa pra fazer, com
certeza, vai ter outras tarefas pra fazer, rem co m certeza outras
lições pra estudar ou pra revisar pra quinra. E depois, na quarta,
v o c ê não vai ter tem p o’ . E isso, um pouco de organização, ora. Ficam
ven d o televisão: 'Eu ainda ten h o tem p o pra estudar essa lição.
Sim , ainda ten h o dois ou três dias, ten h o tem p o pela fren te’ . Então
explico que não precisa esperar o dia marcado pra estudar, porque nesse
mesmo dia: ‘ V ocê vai ter outra coisa pra fazer para o dia seguinte,
e quando você põe tudo ju n to, bem, você não vai conseguir mais, e n ão
vai aprender nada, e n ão vai com preen der nada, e não vai fazer
nada’ ” . C o m suas explicações sobre o fato de que, esperando m uito
tem po, o trabalho se acumula até chegar o dia em que não se c o n ­
segue mais fazê-lo, o senhor M . desenvolve uma relação com o tempo
que está indissociavelm ente relacionada com o futuro e com o pre­
sente: é preciso prever as coisas e, portanto, pôr em prática uma
ética do trabalho co tid ia n o , regular, possibilitando, co m o se diz,
não ser pego p elo tem po.
Se Imune in teriorizou as exigên cias escolares co m o anseios
pessoais, constatam os que tem, co m o por m im etism o, o m esm o
tom refletido, o m esm o estilo de discurso e x p líc ito que seu pai
durante a entrevista. U tiliza com plexas estratégias de respostas e
descreve claram en te e co m detalhes ta n to a maneira co m o estu-
da as lições co m o as características de um “ álbum ” para crianças.
Tam b ém in teriorizou , su ficien tem en te, a cultura escrita escolar,

319
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

servindo-se dessas com petências, ju n to co m seus dois irmãos da


4a série e da 6a, com finalidades mais lúdicas. A lé m do pai, que é
a figura cen tral na o rien tação dos com portam en tos escolarm en ­
te adequados, é preciso também lembrar a cum plicidade que se esta­
beleceu entre Im ane e sua prim a mais velh a. A in d a neste caso,
Im ane está em relação co m uma pessoa que, em seu m o d o de
falar, em suas preferências..., pode con tribu ir para que se co n sti­
tuam, nela, disposições escolarm en te adequadas.
Observem os, de qualquer forma, para concluir, que essa situação
tão fa vorá vel se d eve a uma divisão sexual das tarefas domésticas
totalm ente atípica. E, sem dúvida, porque hou ve “fracasso" da m ili­
tância do pai que este passou a controlar a educação dos filhos.
Im ane poderia m uito bem ter, em uma outra configuração, um pai
preocupado com suas atividades m ilitantes e com a vida profissio­
nal, e que delegasse à sua mulher o cuidado de assegurar, com seus
próprios recursos (m u ito menores escolarm ente), o acom panha­
m ento escolar e cultural dos filh os1"0. Portanto, de fato, é pela sin­
gularidade da configuração das relações de interdependência entre
seres sociais co m recursos variáveis que se realiza um tão brilhante
“ sucesso” na escola primária.

N o ta s

1 Gostaríamos de destacar aqui o uso determ inante do programa de tratamento de texto


que tornou possível a redação científica dos perfis. Para nós era indispensável trabalhar
cada perfil com o um rexcoque poderia ser potencialm ente alterado» em relação ao texto
dos outros perfis. A maleabilidade do programa de tratamento de texto permiriu-nos
redigir perfis que se relacionassem entre si. D e uma certa maneira, fizemos com que se
comunicassem.

^ P. Bourdieu, Le sem pratique, 1980; M . de Certeau, L'invention du quotidien•, M . D etièn-


nee e J.-P. Vernanc, Les ruses de L m t d iíg e n e e . 1974.

1 N . Elias, Engagement et distanciation.... p. 4i -

■* S. Freud, Introduction à la psychanalyse, 1989, p. 17.

^ N . Elias, La société des individus, p- 72.

^ P. Bourdieu e R. Chartier, “ La lecture: une pratique culturelle” , 1985, p. 223.

320
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

7 D aí a importância dada transcrição precisa e detalhada das entrevistas. Se não trans­


crevéssemos, por exem plo, as risadas, os silêncios e as diversas entonações que contri­
buem tanto quanro a estrutura verbal para dar sentido àquilo que é dito, perderiamos
múltiplos índices da relação — variável dependendo dos m om entos da entrevista — que
o entrevistado mantém com o pesquisador e com as questões que lhe foram colocadas.
Da mesma forma que conservamos, na medida d o possível, a pronúncia, a sintaxe e o
léx ico da linguagem oral, para restituir tanto quanto possível o estilo da tala de cada um
de nossos interlocutores. Em certos extraros das entrevistas utilizamos o itálico para e v i­
denciar certas palavras.

** Os manuais de sociologia frequentemente opõem a entrevista à pesquisa por questionário,


acreditando que por um lado ocorra uma análise "qualitativa" das representações conscien­
tes e, por outro, uma compreensão dos determinismos não conscientes, das realidades que
escapam à consciência dos atores. Por um lado, esta oposição simplista impede qualquer
possibilidade de analisar a entrevista de forma mais ou menos complexa (pelas contradi­
ções que ela oculta, as não-ditos, os implícitos... para compreender determinismos mais finos
e contextualizados), e, por outro, age com o se o que tinha sido sistematicamente relacio­
nado num grande número de pesquisas nada mais fosse do que declarações produzidas em
circunstâncias de comunicação particulares. C om isso confunde-se m étodo de produção
dos dados e o tipo de tratamento dos dados coletados.

9 É em parte o procedim ento do historiador italiano C arlo Ginzburg (Myt/ies, emblèmes,


traces..., 1989), que fala de “ paradigma dos indícios".

^ A . Emaux, Les armoires vides , 1984, p. 5.3.

11 J. Gumperz, “ Interactional sociolinguistics...", 1986, p. 51.

12 E assim que Maria Theresa Sierra (Pratiques discursives et relations de pouvoir..., 1986)
descreve, a respeito do M é x ic o contem porâneo, os processos de formalização dos dis­
cursos nos vilarejos otomi do vale do Mezquital, durante as diversas assembléias comu­
nais, hem com o a exclusão da m aior parte dos aldeões incapazes de dominar os novos
esquemas de interação verbal. Esta renovação dos esquemas culturais pode produzir-se
na própria língua vernácula, e, inversamente, o espanhol pode ser utilizado nas práti­
cas discursivas "m enos oficializadas, mais ligadas à comunidade e partilhadas pela m aio­
ria dos membros d o vilarejo” (p. 297-3.30).

13 C f. S. Scribner, “ M odes ot rhinking and ways o f speaking...", 1977.

14 Nesse aspecto, a situação descrita pelo entrevistado parece com a situação analisada por
Sylvia Scribner e M ichael C o le em The psychology o f literacy, 1981. O s autores mostram,
sobretudo, com respeito às populações vai na Libéria, que as relações sociais efetuam-se,
em numerosos campos da prática, sem qualquer recurso à escrita: a maior parte da heran­
ça cultural e os conhecim entos técnicos são transmitidos sem a ajuda de materiais escri-
tos. Em consequência, os contextos sociais de uso da escrita permanecem marginais, oca­
sionais, e contribuem muito pouco para organizar, produzir e reproduzir a vida social.

^ D o ponto de vista Ja autoridade familiar, a d o pai parece forte e predominante no casal.


A divisão social d o trabalho dom éstico parece hem estrita, ligada sem dúvida às rradi-

321
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ções muçulmanas (o pai disse ter "en viad o” a mulher ao curso de alfabetização, o que
indica o tipo de relação instaurada entre os dois). A própria maneira co m o se desen­
v o lv e a entrevista é um sinal dessa divisão sexual dos papéis: o marido responde a um
estranho, enquanto a mulher vai logo para a cozinha. Durante o pouco tem po que a mãe.
ao chegar de fora, nos fala. o marido responde quase sempre em seu lugar.

16 Para M ehdi, tirando a dificuldade específica em falar francês, explicar não parece estar
dissociado de fazer ou mostrar, uma vez que seu m odo de expressão c im plícito. C ite ­
mos um trecho em que tenta explicar as regras de um jogo de cartas: "D epois a gente
pega, a gente |icga esta qui, e deixa assim e pega quela lá, procura o que este; de copa
assim, depois a gente pega...” .

17 A ïch a e hatifa têm dificuldades em avaliar o tem po e dizer as horas: Latlfa diz que leva
“ 1 hora" para lazer seus deveres e A ïch a “ 1 m inuto” ; Latifa diz que janta junto com a
mãe e que vai dormir depois do jantar ("Q u a n d o acabo de comer, v ô dorm ir"), mas não
sabe exatam ente quando, e acrescenta que nunca vê as horas; A ïch a , igualmente, é inca­
paz de dizer a que horas jantam ou a que horas é o recreio á tarde.

lí* B. Laltire, "R écits oraux des enfants...", I993L

O sotaque e a construção das frases, nem sempre gram aticalm ente corretas, tornarão,
de fato, algumas respostas d ificilm en te compreensíveis.

N 'D o n g o nos contou que, às vezes, esquece de fazer a lição ou que não tem vontade de
fazê-la.

71 Mas ela própria diz: “Nóts num sahe como fazê, parque faiz tem po. A pedagogia de quan­
do nóis tava na escola e agora num é a mema coisa. Eu, pur exem plo, às veis tenho d ifi­
culdade".

77 R Bourdieu, Les règles de l'art..., 1992, p. 30.

7i R Bourdieu, “ Les trois états du capital culturel", 1979h, p. 4.

74 Em vez de generalizar certos aspectos das realidades sociais enquanto filosofias sociais,
é preferível questionar as condições sócio-hisróricas de em ergência das formas sociais.
Desta maneira, os sociólogos opõem -se, muitas vezes, tacitam ente, em relação à ques­
tão do caráter efêmero/ocasional ou durável/estável das relações sociais. Contra a visão
romântica daqueles que concebem a sociedade com o um m ovim ento contínuo de inven­
ção, ou, segundo a expressão de Bakhtlne, com o um “ processo criativo ininterrupto de
construção (enevgeia), estão aqueles que, presos à análise das “ estruturas", das "institui­
ções", dos “ grupos” , vêem a sociedade em seus aspectos mais cristalizados, mais estabi­
lizados. É somente quando se coloca, por exem plo, o problema das condições históricas
de surgimento de relações sociais trágeis ou permanentes, efêmeras ou duráveis, que pode-
mos lugir do debate filosófico e rem etê-lo a uma questão sociologicam ente pertinente
(à medida que a pesquisa empírica pode contrihuir a resolvê-la). Disseminando a reali­
dade social em uma multiplicidade de relações efêmeras, ocasionais, inesperadas, reno­
vadas, esquecemos que essas relações podem repetir-se historicamente; perdurar, repro­
duzir-se, institucionalizar-se.

71 Diplom a de I a grau profissionalizante.

322
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

■f' 1>]plnm;i de conclusão do 2° grau na área de ciências médico-sociais, que habilita o jovem
a entrar numa faculdade.

■ 1 M. C lau de e F. de Singly, “ L'organuation domestique...", 1986.

2t* B. Lahire, Culture écrite et inégalités scolaires..., e “ Récits oraux J'enfants...''.

C P P N , "Classe pré'professionelle de niveau", em francês.

^ C E T, "collège d'enseignement technique " , em francês.

E que podem ser relacionadas com as situações descritas peta Senhora O . ( Perfil 8).

12 Tirou uni diplom a em hotelaria e rrabalhos comunitários.

^ Sm aín confirm a que vê essencialmente o pai e a irmã mais velha lerem em casa.

14 E u que diz Smaín em sua entrevista. Q u ando a lição é difícil e seu pai está em casa, diz
que pergunta para e le ( “ A s vezes, quando é difícil e quando meu /wt esta em casa e quan­
do volta d o trabalho ás 6 horas, eu pergunto um pouco, né?") ou à irmã ( “ A s vezes, né,
purque às vezes ela tá em casa mas num pode"). Smaín, porém, precisa que, atualmente,
não necessita de ajuda. É sua irmã quem pergunta “ às vezes" se ele fez a lição, mas “às
vezes ela num tá em casa e às vezes ela esquece". E chega a precisar: “ Então eu tenho que
aprender sozinho, né?".

^ "À s vezes quando repito de ano aí ele mi bate, mas eu ainda num rcpiti", diz Smaín de
m odo significativo,

Smaín pede emprestadas, principalm ente da hiblioteca da escola, revistas em quadri­


nhos, e diz: "N u m leio m uito purque tenho de fazê a lição de casa".

i7 Diplom a de escudos profissionais agrícolas, BEPA.

C A T , em francês.

]<> Quando perguntamos quem escreve as cartas administrativas, é M artine quem, haíxi
nho, responde: “ A mamãe", e todo mundo ri.

4CI M artine observa que é a mãe que deixa bilhetes para o pai: “C om o minha mãe traba­
lha, ela volta ao m eio-dia e pede às vezes pro meu pai que lhe prepare o alm oço".

41 A avô materna, na casa de quem Martine passa ,i> tardes de quarta-feira e que a faz estudar
durante as férias, parece ser também uma personagem importante na constelação familiar.
Por exem plo, os pais de Martine contam que “ a menina, ela escreve poemas, fez um sobre
a primavera, outro sobre a noite, sobre o sol, ela iaz assim quando dá na telha". Mas sabe­
mos, através de Martine, que ela escreve com sua "vovó": “ Eu esçrevt>poemas e minha vovó
faz os desenhos"; ou então "Eu escrevo poemas embaixo dos desenhos". Martine guarda suas
poesias em uma caixa e depois recopia em um caderno que seu "v o v ô " lhe deu. Sem seus
avós, a situação escolar de Martine podería ser sem dúvida ainda menos favorável.

321
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

4- É o caso d o Perfil 22.

4* Podemos observar que as múll iplas mudanças de professor nu classe de Martine (o ito pro-
fessores durante o ano escolar: “ A c h o um abuso” , dis o senhor C .) jogam para a escola uma
parte da responsabilidade em relação ao "sucesso" irregular de Martine. U m professor está­
vel, que tenha tem po de conhecer melhor as crianças, de verificar se aprenderam as lições,
de convocar os pais no m om ento em que as coisas começam a degringolar, não é igual a
um substituto que fica uma semana, que não tem tempo nem de conhecer as crianças, nem
de desenvolver sua ação pedagógica a longo rermo, nem de contactar os pais...

44 É. Durkheim, L 'éducation morale, p. 39.

J. S. Rruner, Le développement de l'en fan t,.., 1991, p. 179-80.

46 M. Halhwachs, L a mémoire collective, 1968, p. 178.

4i C o m o um contra-exem plo interessante, veremos a importância que uma fam ília (P e r­


fil 25) dá ao diplom a dos conjuges de seus filhos.

48 A mãe diz que ele vê a T V o tem po todo, e desde cedo, ao mesmo tem po que toma café
c se veste.

4g Quando perguntamos a N abila se via os pais lerem, ela demonstrou por suas respostas
que, para ela, a leitura tinha uma definição puramente escolar, pois só na escola via alguém
lendo: “ Seus pais lêem D Eles leem sim. A quilo que eu /aço?’ ".

w Aliás, assim com o o senhor M., muitos pais pensam que a permanência depois da aula é
uma garantia para que as crianças façam bem as lições, o que, sabemos, mramenre é o caso.

41 Da mesma forma pi>demos notar o m odo com o a mãe, quase sempre gritando, se dirige
aos filhos, para pedir que façam algo. Ou as intervenções verbais do pai, num tom rís­
pido cm relação aos filhos: “ N ã o m exe!", “ Vai brincar lá fora!", "Im ediatam ente!” , “ M e
dá a vassoura", "Pa re!", “ Pare! vai lá pra fora, v a i!” , “ Vamos, sai daqui! Depressa! Rápi­
do! Tira o casaco!". O mesmo acontece, repetindo o Perfil 2, na maneira com o N abila
conta certas atividades diárias (depois de brincar lá fora, ela toma banho, vê televisão,
e acrescenta, “ depois minha mãe me diz: ‘Vadorm ir1, e depois eu du rm o"), inscrevendo
assim o m odo de expressão dos pais, próxim o da ordem do indiscutível: "V á dormir".

Quando N abila mostra as notas baixas ao pai, ele “ berra": “ Ele me diz: ‘N um vai com e­
çar de n ovo a ter esta nota', e depois ele mc bate". Mas ela deixa claro que ele não lhe
dá nenhuma punição ("N u n ca, ele não me dá punição") ou não a priva de nada (de
televisão, de sair). O que pode parecer estranho é que ela diz que apanha, mas não é
"punida". D e fato, isto significa que a autoridade sc aplica de im ediato, c não tem
influência a longo termo, com o as privações, as punições... O que im plica, cerramente,
uma relação especial com o tempo.

O tem po relativam ente longo que passou no maternal (3 anos) pode também contri­
buir para a compreensão d o com portam ento bem-adaptado de N ab ila na escola.

^4 A confiança parece surrir efeito, pois o professor de Snlima nos diz que ela faz sempre
as lições.

«4
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

55 Sa ti ma é a que mais lê entre os irmãos, mas sobretudo é ela quem mais gosta de escre­
ver: “ Ela lê mais que os outros. Principalm ente escreve mais que os ourros. Sei qui ela
escreve” . Muitas vezes escreve uma carta ao pai quando parte por alguns dias em excur­
são com a escola, e gosta sempre de escrever cartões-postais quando está de férias.

5f> N orbert Elias, a o explicar a excepcional idade das com petências musicais precoces de
Mozart, descreve com o seu pai tecera com ele ligações afetivas m uito fortes que pas­
savam pela música. M ozart recebia “um suplem ento a fetivo para cada uma de suas e x e­
cuções musicais, e isso seguramente toi benéfico para u desen volvim en to da criança
no sentido que o pai desejara” (M ozart..., p. 93),

57 Salima nos conta {.pie brinca lá fora com as amigas, sobretudo no dom ingo: "Porque",
ela diz, "nos outros dias, não tenho vontade, c meu pai, algumas vezes, não quer, nem
minha mãe. Eles nem sempre dizem sim".

58 N . Élias, N otÍíltí Elias par lui-même, 1991c, p. 14.

M . Halhwachs, La mémoire collective, p. 91.

Gd A hierarquia operária com eça com os O S1, O S2, O S3, depois continua com os OP1
(O perário profissional), O P 2 , O P 3 . (O S significa, literalm ente, operário especializado
(“ouvrier spécialisé” ). N o entanto, essa term inologia fixou-se inadcquadamente; O S é,
em realidade, um operário não-qualificado. (N .T .)

61 Ela não consegue, por exem plo, no decorrer da entrevista, calcular mentalmente a idade
do marido em 1963, sabendo que ele nasceu em 1946 ("P o r causa que precisaria contar” ).

6“ É verdade que Robert aparece, em entrevista, com o um m enino muito tím ido, mas que
fala de maneira construída, coerente e refletida. Considerando seu discurso, tivem os difi­
culdades em perceber uma criança em “ fracasso" escolar com o em outros casos. Robert
explica bem o que faz, é calm o e não se contradiz sempre.

òí M. Merleau-Ponty, L a prose du monde, 1992, p. 138-9: "Assim , a despeito dos zigueza-


gues, que ás vezes levam ao ponto de partida, e porque cada criança, através de cada
cuidado de que é objeto, de cada gesro de que é testemunha, identifica-se com a forma
de vida dos pais, estabelece-se uma tradição passiva à qual todo o peso da experiência
e das aquisições próprias não será suficiente para acrescentar alguma mudança. Assim
sc faz a terrível c necessária integração cultural, a retomada de um destino no tem po".

64 Souyla conta: "U m a vez, quando tinha esquecido de fazer elas, meu pai ficou bravo co m i­
go e minha mãe também".

65 O senhor B. exprim e, várias vezes, o faro de que sente uma ruptura cada vez mais clara
entre seus filhos e eles. N ã o que a ruptura seja conflítual, pois os laços parecem muito
sólidos entre pais e filhos, mas ela se instaura objetivatnenie entre filhos que cada vez
menos falam o árabe e pais que dominam o francês com dificuldade, entre filhos escola­
rizados e pais analfabetos; “C om eço a falar em árabe: 'Você tá entendendo?' N ão. E isso,
é dessa forma. C o m minha mulher, a genre fala em árabe, a gente fala em francês, quan­
do ele diz: lM in ha filha, me dá um copo d ’água\ em árabe. Ele vira pra direita, pra esquer­

325
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

da: ‘O quê, papal, o que é que o senhor tá pedindo? U m copo d’àgua?' Sim. >c eu nâu
peço em francês, pronto, acahou". O fato de Souyla ficar no horário de estudo livre* diu>
vezes por semana para fazer um cursei de árabe sei pode contribuir para agradar a<is pais.

w’ O senhor B. nos diz: “ N a oficina, rinha papéis e papéis [livrosj se eles quisesse 1er H em ,
tem porque deve com eçá pequeno e até os 20 anos. A s criança deixa uma pra outra, eles
lé tudo isso” . Ele aluga esses livros no co légio das filhas.

67 Souyla pede às irmãs, mesmo quando estão ocupadas: “ M esm o que estão fazendo suas
tarefas, eu nem ligo. Eu falo: ‘V ocês me explicam prim eiro'. (R iso.)” ; acrescenta que não
lhe dão a resposta, pois senão ela não é “ inteligente": "Q uando não entendo, minhas
irmã me dizem o que tem que fazê. Por exem plo, me dão um outro exem plo e depois eu.
quando entendí, bem, eu faço tudo sozinha, porque eles não gostam de me dizê as r e g i s ­
tas, porque, depois, eu vou ficar menos inteligente".

,,h Ela própria esclarece de im ediato na entrevista: “ Eu sou a menor da família. Tenho o ito
irmãs e dois irmãos. O nze filhos mais meus pais, treze, e tenho uma irmã e um irmão
que estão morto, norm alm ente a gente seria quinze".

C f. principalm ente o caso inverso do Perfil 4: a situação d ifícil do “ caçulinha".

O senhor B. manda que leiam para nós uma carta d o ginásio que diz respeito a ela e que
indica que ela ficou de recuperação por “ esquecim ento dc material, trabalho não en tre­
gue e indisciplina".

71 Samira é, ao mesmo tempo, muito explícita e muito expressiva em suas respostas quando
da entrevista.

'• T é lé Lyon M étropole: emissora de televisão de Lyon.

71 O tom de Samira para falar desse assunto não revela nenhum sinal de distância em rela­
ção às vontades do pai.

74 O . Schwartz (L e mande privé des ouvriers..., p. 161 ) escreve, a propósito de certas fam í­
lias: "Para sair-se hem socialm ente, é preciso fechar-se fam iliarm ente".

7' O senhor B. diz, en tretanto, que a filha é m uito grande para nadar com ele: “ A gente
vê muita diferença en tre os francês e os árabe, veja. Porque os francês nem liga se
uma garota de 14, 15 anos nada com os pai assim, de ca lçã o e tudo. N ã o , não, nem
sei com o ocês fala, porque nóis (riso), não sei com o v ô e x p licá em francês, pra nóis,
isso num existe".

76 Quando perguntamos a Samira quem, entre ela e a irmã, era m elhor na escola, ela res­
ponde, muito oportunamente, que a irmã é mais forte hoje, mas que, quando ela esta­
va n o primário, era pior do que ela própria agora.

77 Ela lê histórias para os irmãos e irmãs: “ À s vezes, c o n to histórias pro meu irmãozi-
nho e minha irm ãzinha, leio pra eles a página e depois ex p lico pra eles, porque eles
não en tendem ".
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

78 M. Foucault» L'archéologie du savoir, 1969» p. 197.

79 M . Halbwachs, L a mémoire collective, p. 76. G rifos do autor.

^ Brevet d ’A ptitudc aux F onctionsd'Anim ateur (D iplom a de Habilitação para as Funções


de Coordenador).

81 O senhor B. diz que a cidade onde nasceu, T lem cen , era uma bela cidade, pois, nela,
dizia-se às pessoas que era preciso não roubar, não ser mau, não talar mal...

62 Notarem os, no trecho, que o senhor B. diz que a escola é feita para “ tom ar inteligen­
tes" as crianças, e que o tato de bater em um mestre é, para ele, uma falta de respeito
com relação ao que ele considera ser uma autoridade incontestável.

O próprio Yassine explica, de maneira absolutamente culta, a maneira com o age quan­
do não com preende uma palavra num texto: “ Por exem plo, pego meu livro e depois
eu leio, depois experim ento com o contexto, ou com a frase, ou então, hem, pego o
dicionário".

Evidentem ente, a relação cultural de forças perpassa toda a família, com membros que
dela participam mais ou menos atívam ente. A irmã mais velha está, antes, do lado de
sua irmã (“ A gen te tala: ‘ Você sai niuiro pra fora. Faça as tarefas1. Enfim, a gente grita
com ele assim m esm o"), mas sem gastar tanta energia quanto ela; por exem plo, para o
auxílio nas tarefas, ela manda o irmão para a outra irmã: "Yassine, quando vem até a
gente, nos fala: 'Explica isso pra m im ', e eu falo: ‘A h , vai na casa d e * ** la primeira irmã]
e tu d o'". O irmão mais velho, raramente presente e que experim entou um grande "fra­
casso" escolar, está, objetivam ente» do outro lado da linha de torça, ainda que não
represente um papel ativo. A irmã de 15 anos, que está na 8a série, vai com Yassine à
biblioteca municipal e se acha, pelo menos nesse aspecto, d o mesmo lado que as irmãs.
E assim por diante.

,s7 Podemos nos perguntar se o innãozínho de Yassine, apresentado com o ainda um pouco
menos m otivado escolarm ente do que ele, não estará correndo um risco maior de d ifi­
culdade escolar se a relação cultural de forças se inclinar a favor do pai.

,SÍJ Inicialm ente, Yassine responde à questãi>de se saber quem lê mais na casa: "E minha irmã
e mesmo eu tam bém ", mostrando que se percebe, ao menos em relação a esse aspecto,
do mesmo lado que a irmã. Eis também como ele próprio descreve suas atividades da noite:
“Term ino minhas tarefas. Depois, bem, leio um livrinho. Depois, quando acabou, hem, eu
vejo um pouco de televisão e depois com o e vou dormir". E às quartas-feiras: "Pruridrõ.
leio um livro. Depois, vejo um pouco de televisão e saio". Enfim, conta-nos, com muita
precisão, a história d o últim o livro que leu (Lilly moutarde).

H7 A entrevista com Yassine revela que, frequentem ente, ele atribui ao pai as práticas que
são de sua irmã de 16 anos. Fantasia também, inventando uma mãe que sabe escrever
(em bora diga, em outros momentos, que ela rem dificuldades para 1er), um pai que lê
jornal e revistas... Por que ele “ aumenta" os pais, principalm ente o pai? Podemos ima­
ginar que, para ele, o ideal seria um pai que cuidasse dele com o sua irmã e que tivesse

327
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

todas as suas características. Condensa em um único e singular personagem, que d eve


mostrar-se a ele com o central em sua família, o que está disseminado em pelo menos
duas pessoas (o pai e a irmã).

88 M . Verret, L a culture ouvrière, 1988, p. 63.

89 P. Ariès, L't’n/otu ei la vie fam iliale . ... 1973, p. 8.

Ibid., p. 207.

yi Por exemplo, um diretor de escola nos dá para 1er duas cartas Je pais de meios populares
cujo objetivo consiste, em suma, em dizer que o trabalho da escola era instruir as crianças
(ensinar francês, matemática,...) e não ocupar-se com escolhas em matéria de educação moral.

C ertificado de H abilitação Profissional A grícola.

^ O que “explicaria” a televisão deixada ligada durante a entrevista.

B. Lahirc, “ La division sexuelle du travail d’écriture...".

O professor aconselheni a senhora B. a dar-lhe algumas responsabilidades (arrumar a cama,


põr ordem em suas coisas...), porque, em aula, ele tem um com portam ento "in fan til".
Mas a senhora B. diz que é mais forte que ela e é "erro" dela, é ela quem é “ culpada” por
M ichel ser com o é.

% Já o pai do Perfil 9 estava persuadido de que a filha fazia as tarefas no horário de estudo,
ao passo que estava fazendo a "oficina de costura” .

W Eles vivem marital mente.

98 Também nesse caso, tradicionalm ente preenchido mais pelos homens d o que pelas
mulheres.

w N ic o le nos diz que vê principalm ente a mãe deixar bilhetes para o pai.

* Jacques Testanière ( Les enfant s de milieux populaires ... ) escreve: "Esse espírito com o qual
os pais incentivam os filhos em seus estudos tem com o conseqüência o fato de que eles
tom am o 'sucesso* escolar o o b jetivo exclusivo de seus esforços e se privam de muitas
coisas para favorecer esse ‘ êxito': em certos casos, vivera com desconforto, sacrificam-
se verdadeiram ente” (p. 144); os pais "trocam a vida pela vida dos filhos" (p . 151).

Para exem plos semelhantes de “ crianças-reis” , cf. O . Schwartz, Le monde privé des
ouvriers.... p. 151-2.

102 pj:p — Pliin d'Epargne Populaire (P ia n o de Poupança Topular).

Zaïhia Zélüulou ( " O sucesso escolar dos filhos de imigrantes...", 1988) descreve esse tipo
de com portam ento unicamente nas famílias em que as crianças estão cm "fracasso” esco­
lar, ao passo que esse não é o caso aqui. O s traços pertinentes que descrevem essa ou
aquela conf iguração familiar escolarmente consoante ou dissonante nunca são pertlnen-

32 8
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tes de maneira isolada. O autor escreve principalm cnte que, no grupo de famílias em
que as crianças estão, em realidade, em “ fracasso", “ os pais não escondem sua hostilida­
de para com a escolarização, principalm enre a das meninas: ‘O mestre decide em sua
classe, mas não em minha casa*"{p. 467).

t(M u*pra mim, se tocam no meu m enino, é com o se focassem em m im 1, diz Myriam Sem-
hart. Ë daí que advêm ligeiros conflitos entre ela e a professora, cujas observações ou
eventuais sanções contra sua filha mais velha (7 anos) desencadeiam im ediatam ente a
agressividade de M yriam ". (O . Schwartz, Le monde privé des ouvriers.. ., p. I 36.)

Sua filha nos confirm a que ela só pode ver televisão ãs terças, sextas e sábados à noite;
caso contrário, "quando a gente acaba de comer, vai direto pra cama".

106 Sublinhei aqui, no discurso da menina, a expressão empregada de form a recorrente


pela mãe.

107 A filha conta: "Ela pergunta pra nós. Ela nos fala: ‘V ocê fez as tarefas!1. Depois, a gente
fala se fizemos elas ou não fizemos. Quando a gente diz pra ela: ‘N ã o 1, bem, então, ela
nos tala: ‘Você vai fazer agora*. {Tom autoritdrio). ‘N ã o espere a noite pra me dizer que
você não tez as tarefas* '*.

tOH para nos faim- de um livro, N ic o le retoma, aliás, espontaneamente, uma parte desse esque­
ma: “ Estou com um livro que peguei rui biblioteca da escola. Eu peguei ele porque era
engraçado. ( Diz sorrmdo.) E RendeZ'tnoi mes poux, Eu achei ele gozado porque quando
a gente tem pulgas e a gente tira elas, bem, a gente não quer que devolvam ela* pra gente.
E o mem tunho quer que devolvam pra ele suas pulgas, então eu achei gozado, então eu
peguei ele".

109 N ic o le se mostra na entrevista com o uma menina muito calma. A s vezes, reflete duran­
te muito tem po antes de responder e dá a impressão de ser séria, até desenvolvendo um
discurso hem-construído, acima das questões que lhe colocamos.

110 N ic o le fica no horário de estudo livre uma vez por semana para ficar com uma colega,
e com e todos os dias em casa. Sua mãe nos diz que deixar as crianças no horário de
estudo ou na cantina é quase que “ se livrar" delas.

i*t A filha confirm a isso na entrevista: “ Principalm ente minha mãe e minha prima, mas
meu pai nunca vi” .

Em Le monde privé des ouvriers..., O liv ie r Schwartz evoca um pai que obriga o filh o a
fazer uma redação gritando com ele e esbofeteando-o.

1,1 A m ãe diz tam bém “ fiscalizar" o tem po inteiro as com panhias da filh a: Johanna não
pode brincar “ d e n tro " do prédio, e rem de esrar vis íve l a partir de uma janela do
apartam ento.

1 Ve mo s também que, no caso d o filho, o pai só intervém de forma punitiva e quando a


“queda” escolar é constatada.

329
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

111 Pur exem plo, quando ela conta a história Je um livro: “ Fala Je uma criança que, com
uma menina, bem, eles tinha férias e... e Jepois a professora Jeles, ela falou pra ele, ela,
eles tem a pro... a professora, conta pra eles uma história e Jepois as criança vão prunva
casa e pensam que tem um lobo na casa, e depois vão pruma outra casa brincar". Nesse
trecho, observamos que a relação entre o fato de a professora estar contando uma his­
tória às crianças, por um lado, e o fato de as crianças estarem pensando que há um lobo
na casa. por outro lado, não é explicitada.

116 Série que passa no canal de televisão M6.

117 Faz um ano que a senhora H . tirou carta de motorista e possui, assim com o seu marido,
um carro. E o sinal de que a divisão sexual dos papéis é consideravelm ente mais fle x í­
vel em relação a outras famílias muçulmanas.

1IB Podemos constatar sua fé escolar também no fato de que a irmã de Kais parou de fazer
a prece desde que está no ginásio, pois tem tarefas para fazer: a fam ília privilegiou a esco­
la em relação à religião.

119 O s professores confirm am que Kais nunca se esquece dc fazer as tarefas.

120 Em casa, Sabine diz que vc a mãe 1er livros ( “ Bem, ela lê um livro, codo dia ela lê algu­
mas páginas, acho, quando tem tempo, e, às vezes, ela leva pro trabalho"), mas o seu
pai, que só lê o jornal, as corridas.

171 Essa não-pretensão deve ser relacionada com as origens populares do casal, assim com o
cora o universo cultural do marido.

177 Ela até corrige as cartas que a filha escreve nas férias. Sabine diz: “ Faço elas sozinha e
depois ela corrige meus erros".

12' A obrigação se tom ou hábito: "N ã o estou com vontade de dormir, então leio na cama",
explica Sabine,1

1 Sabi ne conta que a mãe leu seu livro e que elas o discutiram juntas: "Eu tinha pega­
do um livro, e minha mãe queria 1er ele, e antes que ela lesse, eu expliquei pra ela o
com eço da história".

125 R. Hoggart, L a culture du pauvre, 1970, p. 353.

12,1 R. Hoggart, 33 Ncw[>on Street...

>22 lbid.,p. 58.

I2S Ibid., p. 51.

12v J.-P. Laurens, 1 sut 500...

1w É o primeiro nessa matéria, e nos diz com um grande sorriso: " A t é sou prim eiro".
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

14* Biin N at diz que cum e às 18h30, se deita às 20h50 (aliás, é exataipente antes dos pri­
meiros filmes da n o ite) quando tem aula no dia seguinte, e por volta das 2 ih “quando
não tem escola". Suas tarefas duram “ quarenta minutos".

1 Bun N a t nos diz que às quartas-feiras, sábados e dom ingos, “ eu qui faço o trabalho
de casa".

14* M . Halbwaehs, La mémoire collective, p. 30: "Auguste C om te observava que o equilíbrio


mental resulta, em boa parte e de início, do fato de que os objetos materiais com os quais
temos contato diário não mudam ou mudam pouco, oferecendo-nos uma imagem de per­
manência e de estabilidade. E com o que uma sociedade silenciosa c im óvel, alheia à
nossa agitação e às nossas mudanças de humor, que nos dá um sentim ento de ordem e
de quietude. É exato que várias perturbações psíquicas são acompanhadas por uma espé­
cie de ruptura de contato entre nosso pensamento e as coisas, por uma incapacidade de
reconhecer os objetos habituais, de forma que nos achamos perdidos em um m eio estra­
nho e m ovediço e que está nos faltando qualquer ponto de apoio".

* *■* Ela nos mostra que nosso encontro está marcado ali.

1^ Em casa, muitas vezes, Christian gosta de escrever histórias inventadas, e a mãe laz com
que ele corrija seus erros: “ Então, eu falo: ‘N ã o sei, vocâ escreve com o ouve, pense um
pouquinho, depois eu vo lto e corrijo1". Da mesma forma, no verão, ela lhe compra cader­
nos de férias, e a filha mais velha muitas vezes lhe laz ditados em forma de jogo.

1^ Christian, falando da mãe, diz: " A s vezes, ela me corrige e diz os erros que fiz". C o n fir­
ma que é ela quem lhe pergunta se fez suas tarefas e verifica o que fez.

1 E preciso ohservar que dar exercícios fáceis de fazer para a criança sem nenhuma ajuda,
à noite, é uma política pedagógica deliberada da parte do professor: “ E preciso dizer que
não lhes dou muito. N ã o é um monte, compreende, que cai sohre eles e os esmaga. E
um exercício que vão poder fazer sozinhos, portanto, não precisam ir incom odar os pais.
Veja, é alguma coisa que não os põe numa situação de fracasso. E isso não é hem com ­
preendido. Algum as pessoas podeTiam achar que eu dou para eles exercícios muito
fáceis. N ã o necessariamente. A o alcance deles! Q u e consigam se virar um pouco sozi­
nhos. Sem que toda a família fique atrás, dependurada".

1Jíí A senhora R. é vista polo professor com o uma pessoa muito exigente com os filhos: "E
também ela me diz: lO h , ele é nulo em ortografia'". A lé m disso, Christian nos diz que não
gosta de histórias em quadrinhos porque elas levam a com eter erros de ortografia: "Porque
minha irmã, uma vez, tinha lido historieis em quadrinhos, e então ela cometia muitos e m «" .
Sem dúvida, está retomando as palavras da mãe, relacionadas com a ortografia.

1w É útil indicar que, além do programa organizado pela mãe, todas as quartas-feiras, pela
manhã, C hristian vai ao catecismo.

Quando era menor, Christian era assinante do Journal de Midcey.

11,1 O professor observa, a o contrário, que Christian lê bastante.

331
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

142 Podemos observar que Christian é imediatamente comparado, pelo professor, com a irmà,
considerada ainda mais "brilhante” e “concentrada" do que ele. Mais uma v e ;, pode­
mos ver, nessa ligeira diferença, o efeito da diferença entre o pai e a mãe com o mixlc-
los sexuais de identificação.

I4Í A lém da mãe d e N adia, uma filha terminou o 2® grau e, depois de ter com eçado a tra­
balhar com o enferm eira infantil, é dígitadora. U m a outra parou os estudos na l * série
do 2® grau e abriu um salão de cabeleireira. U m filh o estudou em escola particular, co m ­
pletando o 2® grau, na área de matemática e ciências físicas. Cam peão do Ródann de
50 m (corrida a pé), inicialm ente quis ser professor de educação física, depois fez exam e
de seleção para ingresso numa escola de form ação de educadores, tendo sido classifica­
do em 3® lugar e, atualmente, é coordenador de atividades esportivas.

144 P o lític o argelino.

Nadia, em seus discursos, faz oposição clara entre o avô e a avó do ponto de vista das
práticas culturais: ele vê televisão e ela lê. Sua a v ó lê todas as noites: "Q uando meu v o v ô
está vendo televisão, por exem plo futebol, e ela não gosta, então vai 1er".

146 Ela própria foi educada numa família m oralm entc muito controlada por um pai “ amá­
vel, mas m uito rigoroso” .

147 R. Hoggart, 33 Newpurt Street.

,4t< C ercada dc atenção co m o é, N adia é até poupada da realidade doméstica: não faz
nenhum serviço de casa, e a a vó reconhece que “ ela é muito mimada” . Todas as a tiv i­
dades que exerce são concebidas pelos avós com o atividades úteis a seu desenvolvim en­
to físico ou cultural (lcvam -na ao basquete, ao centro de atividades extra-escolares) e
sempre controladas por adultos: avós, pai ou coordenadores (quase nunca sai sozinha
para brincar com crianças de sua idade).

149 Assim com o a mãe do Perl il 24, ela acha que o professor (é o m esmo) se esquece de cor­
rigir os erros, e ou manda Nadia dizer-lhe isso ou ela própria vai dizer a ele.

Nadia até di: que, quando os avós não conseguem ajudá-la, eles chegam a telefonar a um de
seus filhos: “ E então, ás vezes, eles ligam para minha ria e meu titio para saber se eles sabem” .

111 O professor conta que “o avô estava contrariado porque, pela segunda vez, ela estava riran -
do 9,40em ve 2de 9,43, ou algo assim” — e Nadia confirma, dizendo-nos: "A n tes eu tinha
9, agora estou com 8,75, não 78, e eles ficam bravos com igo, ora, porque baixei".

152 A senhora B. utilizou a escrita em momentos difíceis: "Escreví num cadem inho assim,
quando minha filha enirou em coma” . Desde a morte da filha, não redigiu mais nada:
"Exatam ente naquele m om ento. E é simples, assim que me disseram que minha filha
estava morta, era o enterro de minha filha, não escreví nada. Parei. N ã o era nem um
diário, eram notas que relia, só isso".

332
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

"Q u an do é aniversário deles, bem, eu escrevo um bilh etinho, e o cartão eu ponho na


mesa. E depois eu pego um clipe, pego um pedaço de papel e escrevo, por exem plo Tara
o VOVÔ' ou Ta ra a v o v ô ’, e depois eu prendo na carta.”

A avó de N adia parece-se muito com a figura do avô paterno de Richard Hoggart (33
Newport S t r e e t .. p . 40): “ Meu avô tinha sido caldeirei ro, muito acima de um operário
qualificado. E orgulhoso por sê-lo. Um a história familiar o mostra pedindo demissão de
um bom trabalho numa fábrica que fazia máquinas para botas e sapatos, porque um chefe
que não confiava nele criticava seu trabalho. Pelo que diziam, ele respondeu: 'Fique com
seus sapatos’, e deixou -o falando sozinho’ ” .

Quando era jovem , teve até um diário pessoal { “T iv e isso, é verdade, quando era soltei­
ro” ), que destruiu quando se casou: “ Gostava muito disso, é verdade. Principalm ente as
aventuras, coisas assim que fazíamos entre amigos. Escrevia rudo, mas quando era sol­
teiro. Tudo o que aconteceu, escrevi quase rudo, hein?, por alto. E assim que me casei,
deixei pra lá. Tin ha muitas recordações e tinha de tudo lá dentro, entât), eu falei, é uma
pena destruir isso, mas, bem, finalm ente, decidi destruí-lo". Fazia, nessa mesma época,
poemas que falavam das moças por quem se apaixonava.

1 1mane esclarece que ela não mostra suas notas à mãe “ pt >rque ela não sabe 1er m uito bem".

1^ Suas companhias são controladas: “ Eu sempre faço questão das companhias, é verdade.
Falo pra eles que ouço falar de um certo m enino ou menina: ‘Tentem evitá-lo, tentem
evitar brincar com e le '".

l5í< A autoridade do pai parece ser forte, mas interiorizada pelos filhos. Por exem plo, quan­
do todos estão à mesa, os filhos têm o direito de falar, ex ceto quando os país têm algo a
conversar entre si. E eles parecem ter interiorizado essa regra im plícita: "Bem , é verda­
de, eles não podem falar com a gente o que estamos falando, isto é, com o minha mulher
e eu, por exem plo. E verdade, isso não podem. -Sem dizer pra eles, hein?! Bem, mas se é
alguma coisa que interessa a todos, hem, aí sim, sim, eles podem participar".

1w Podemos supor que a relação entre as duas práticas não seja pura coincidência.

160 C f. o pai do Perfil 6,

333
C onclusões

O M IT O D A O M IS S Ã O P A R E N T A L

E A S R E L A Ç Õ E S E A M ÍL IA S -E S C O L A

Se, através desta obra, um fato pôde ser estabelecido, é o seguin­


te: o tema da omissão parental é um mito. Esse m ito é produzido pelos
professores, que, ignorando as lógicas das configurações familiares,
deduzem, a partir dos com portam entos e dos desempenhos escola­
res dos alunos, que os pais não se incom odam com os filhos, deixan ­
do-os fazer as coisas sem intervir. N osso estudo revela claram ente a
profunda injustiça interpretativa que se com ete quando se evoca uma
“omissão” ou uma "n egligên cia” dos pais'. Quase todos os que inves­
tigamos, qualquer que seja a situação escolar da criança, têm o sen­
tim en to de que a escola é algo im portante e manifestam a esperan­
ça de ver os filh os “ sair-se” m elhor do que eles. A liás, é im portante
destacar que os pais, ao exprim ir seus desejos quanto ao futuro pro­
fissional dos filhos, tendem, ffeqüentem ente, a desconsiderar-se pro­
fissionalmente, a “ confessar" a indignidade de suas carefas: almejam
para sua progênie um trabalho m enos cansativo, menos sujo, menos
mal-remunerado, mais valorizador que o deles.
A s mães ou, mais raramente, os pais cuidam da escolaridade, con ­
trolam as tarefas, explicam quando podem , fazem repetir em voz alta
as lições, com pram cadernos de exercícios durante as férias escola­
res de verão para que os filhos continu em a se exercitar (P e rfil 12).
Tam bém ficam atentos para que estes deitem cedo todas as noites
que antecedem os dias de aulas e, algumas vezes, são extrem am en ­
te prudentes com suas saídas e suas amizades. E o que dizer dos pais
ou mães que batem nos filhos quando os resultados são mins ou quan­
do as cadernetas mostram que brincaram em aula (Perfis 2, 8 ,9 , 16) ?
O que quer que se possa pensar da eficácia pedagógica dessa p o lí­
tica disciplinar, tais fatos provam que os pais não são indiferentes

334
CONCLUSÕES

aos com portam entos e aos desempenhos escolares: para bater nos
filhos, é tam bém necessário julgar que isso vale a pena e con ferir à
escola um m ín im o de im portância e de valor. Constatam os até
casos paradoxais de superinvestím ento escolar que não levam aos
efeitos esperados por causa de uma distorção entre os fins visados
e os meios utilizados para atingi-los (P erfil 20).
E claro que existem casos em que as rupturas são tão numerosas
(Perfis 1 e 3 ), e as condições de vida familiar, econôm ica..., tão d ifí­
ceis que, ou o tem po que os pais podem dedicar aos filh os é abso­
lutam ente lim itado, ou suas disposições sociais e as condições fam i­
liares estão a m il léguas das disposições e das condições necessárias
para ajudar as crianças a “ ter ê x ito ” na escola. Mas, mesmo nesses
casos, o term o m oralizador de “ om issão” , que rem ete a um ato
volu ntário, uma escolha deliberada da parte dos pais, nem sempre
corresponde ao que pudemos apreender das realidades de interde­
pendência social.
O s discursos sobre a “ omissão” dos pais são em itidos pelos pro­
fessores principalm ente quando os pais estão ausentes do espaço esco­
lar. Eles não são "vistos", e essa invisibilidade é im ediatam ente in ter­
pretada — principaim en te quando a criança está com dificuldade
escolar — com o uma indiferença com relação a assuntos de escola
em geral e da escolaridade da criança em particular. A lgu n s profes­
sores até parecem pensar que a ausência de relações, a ausência de
contatos com algumas famílias (populares, é claro), explicaria o “ fra­
casso escolar" das crianças. Por isso, é preciso fazer os pais irem, de
qualquer jeito, à escola: nas diversas reuniões, festas escolares...
O ra, sabemos que as relações pais-professores seguem a lógica
das sociabilidades sociais corriqueiras': os pais das classes médias
e altas são os que se en contram mais co m os professores de m a n ei­
ra inform al, mas essas relações dizem respeito menos a um a co m ­
panham ento da escolaridade do que a uma sociabilidade fundamen­
tada em posições e disposições sociais comuns ou próxim as’ . Essas
relações de proxim idade ou de distância en tre adultos de d iferen ­
tes m eios sociais estão fundamentadas em diferenças sociais e v i­
dentes, e podem os nos perguntar se os professores n ão estejam
conceben do sua relação com as famílias populares através do mode-

335
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

lo u tópico (u tó p ic o por causa das distâncias sociais que ele esca­


m o teia ) de sua relação (p o is eles pertencem às classes m édias)
com as fam ílias das classes médias: in tercâm bio na saída da esco­
la, na rua, n o supermercado, nas festas, etc. Se esse for o caso, pode­
mos perceber, atrás da necessidade de “ ver", de “ en contrar” ou de
“ fazer v ir” os pais à escola para lim itar as dificuldades escolares da
criança, uma n ova im posição de quadros sociais e sim bólicos, de
normas de com portam entos direcionados, não mais às crianças, mas
aos adultos de meios populares.
Portanto, boa parte das ações ou das reflexões sobre as relações
fam ílias-escola feitas em n om e da luta contra o "fracasso escolar”
só tem, sem dúvida, frágeis relações com esse "ob jeto". Existem, neste
caso, uma o rien tação e uma ação da escola que têm mais a ver com
a gestão social das populações, com a integração m oral e sim bóli­
ca dos m eios populares nas instituições legítim as (em locais e a ti­
vidades legítimas: festa local, festa da escola, escola co m o a m bien­
te de vida onde os pais vêm “ dar uma m ão” em certas atividades,
abertura da escola aos adultos para estágios de alfabetização, para
estágios de form ação de joven s...). A ç õ e s desse tipo dizem respei­
to aos costumes escolares, às normas legítim as da sociabilidade e a
uma determinada forma histórica de vida pública, mas não tem rela­
ção com os fundamentos das diferenças (e dos m al-entendidos)
culturais, que estão na origem das “dificuldades escolares", entre uma
parte das famílias populares e a escola. Q u erendo a qualquer preço
integrar as fam ílias em locais e instituições legítim as, podem os nos
questionar se não se está aum entando em dobro o trabalho de c o n ­
versão das estruturas mentais, cogn itivas — que fatalm en te qual­
quer aluno oriundo dos m eios populares d eve operar para adaptar-
se ao universo escolar — , com um trabalho de conversão-aculturação
do ethos, dos costumes4. A lgu n s perfis realm ente revelam pais que
participam da vida escolar (reuniões, conselhos de pais de alunos,
festas, excursões às montanhas, acom panham ento nas saídas...: Per-
fis 24,22, 19), mas isso não pode ser considerado co m o uma "causa”
d o ‘ ‘sucesso” das crianças. A esses casos, opõem -se todos aqueles que
só conhecem a escola através das cadernetas escolares, das notas das
crianças e, quando têm tem po, das reuniões de in ício de ano. E, se

336
CONCLUSÕES

considerarmos que a simples participação dos pais na vida escolar


poderia m odificar as coisas em relação aos desempenhos das crian ­
ças, estaríamos postulando, com isso, uma hipótese que se revela­
ria — em vista dos resultados de nossas análises — com o totalm en ­
te ingênua e superficial.
Richard H oggart mostra, a seu m odo, a dissociação entre as fam í­
lias populares (das quais faz parte a sua) e a escola: “N ã o m e lem bro
de que tenha h avido encontros regulares entre os pais e os mestres
em Jack Lane, e nós mesmos nunca nos vim os com o fazendo parte
do dispositivo educativo desenvolvido pela municipalidade de Leeds".
O u ainda: “ Os pais conhecem a escola, mas eram m uito ignorantes
acerca do que h oje se chamaria de sua ‘filosofia’ , que se lim itava a
um pequeno núm ero de o bjetivos e de pontos de vista pragmáticos,
geralm ente convencionais. Eles só entravam nela em caso de urgên­
cia, e, na m aior parte d o tem po, nunca tinham posto os pés nela"*.
Mas, m esmo que a ida dos pais ao espaço escolar pareça ser dese­
jada por uma grande parte dos professores, isso não está despro­
vid o de am bigüidade. O s pais podem ser vistos co m o que se in tro­
m etendo um p ou co demais num d o m ín io p edagógico considerado
reservado e, assim, despertar reações de defesa. U m professor c o n ­
fessa assim que o respeito — que leva alguns pais de m eios popu ­
lares a uma delegação total de autoridade pedagógica — é m uito
con forta n te para os professores: “ H á um respeito aqui pelo m es­
tre, eu acho. Tam b ém talvez dependa do n ív e l sociocultural. N o
mais das vezes, trata-se de resolver um problem a, hein? Q u ando
as fam ílias vêem , nas cadernetas escolares, que tudo va i bem, há
satisfação. Bem , pode a co n tecer que a g en te n ão os veja, mas não
é freqüente. Q u a n d o as coisas estão in do bem , o senhor sabe...
(R is o .) N ã o vã o se in trom eter na pedagogia, eu diria, e qu an to a
isso, bem, ora, há uma cerra tranquilidade para os professores. Porque
há outras escolas em que talvez os pais sejam bastante sequiosos
por ex p lica çõ es n o cam po ped agógico, e isso pode en ch er um
pou co os professores. Sei que, se uma fam ília quiser ir m uito longe,
e então, c o m o se diz, fica r esm iuçando, bem, isso pode ser irritan ­
te, ora, e além do mais a gen te sabe o que é que tem que fazer, e
en tão o que é que está fazen do” . (Risos.) O d ireito ed u ca tivo de

337
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

in gerência é, porta n to, dissim étrico: os pais se vê e m sendo acon ­


selhados sobre a m aneira de agir com seus filh os, mas os profes­
sores não gostam que lhes digam o que d evem fazer.

AS M O D A L ID A D E S D A T R A N S M IS S Ã O

O tem po e as oportunidades de socialização

O que os dados estatísticos n ão podem ve r por falta de con-


textualização dos critérios considerados é, muitas vezes, d eterm i­
nante. A presença o b je tiv a de um capital cultural fam iliar só tem
sen tido se esse capital cultural for co locad o em con d ições que tor­
nem possível sua “ transmissão” . O ra, n em sem pre isso acontece.
A s pessoas que têm as disposições culturais susceptíveis de ajudar
a criança e, mais am plam ente, de socializá-la num sentido h arm o­
nioso do p o n to de vista escolar n em sempre têm tem p o e oportu ­
nidade de produzir efeitos de socialização. N e m sempre conseguem
construir os dispositivos fam iliares que possibilitariam “ transm i­
tir” alguns de seus con h ecim en to s ou algumas de suas disposições
escolarm cn te rentáveis, de m aneira regular, contín u a, sistem áti­
ca. E por essa razão que, com capital cultural equ ivalente, dois c o n ­
textos fam iliares podem produzir situações escolares m uito d ife ­
rentes na m edida em que o ren d im en to escolar desses capitais
culturais depende m uito das configu rações fam iliares de co n ju n ­
to. Podem os dizer, lem brando uma frase célebre, que a herança cu l­
tural nem sempre chega a en con trar as co n d ições adequadas para
que o herdeiro herde.
Por isso, só podem os ficar desconfiados em relação a concepções
que poderiamos qualificar de “ ambientalistas" e que abordam os efei­
tos de um “ m e io " (fa m ilia r ou social) de uma maneira m uito abs­
trata. Sem estar jogan d o com as palavras, podem os dizer que não
basta, para a criança, estar cercada ou en vo lv id a de objetos cultu­
rais ou de pessoas com disposições culturais determinadas para c h e­
gar a construir com petências culturais. Se não querem os fazer da
constituição das estruturas mentais um processo miraculoso cujas
modalidades concretas nunca serão com preendidas e se considera-

338
CONCLUSÕES

mos que a sociologia, e não apenas a psicologia, está en vo lvid a com


a análise dos processos de construção de esquemas cognitivos ou com-
portamentais, então é preciso dotar-nos de ferramentas conceituais
adequadas para avançar nesse campo".
Se uma parte da sociologia estatisticamente fundamentada reve­
lou a distribuição desigual do capital cultural segundo os grupos
sociais, se estabeleceu que o capital cultural leva ao capital cultu­
ral, é preciso, doravante, destacar as modalidades efetivas de “ trans­
missão” desse capital cultural, os procedim entos pelos quais algu­
ma coisa com o a cultura se “ transm ite" n o n ível com um das práticas
(fam iliares ou outras). Se é im portante reconstruir as disposições
sociais dos adultos (e principal m ente dos pais), podem os nos per­
guntar o que "é transmitido” concretamente através das relações pais-
filhos. Essa insistência nos contatos ou nas relações diretas não é
uma abdicação positivista que acentuaria exclusivam ente as in te­
rações visíveis, imediatas', mas uma precaução sociológica inspira­
da pela idéia segundo a qual com petências podem , às vezes, perma­
necer sem efe ito (d e socialização) quando não encontram situações
para que sejam postas em prática.
Q ue pessoa detém o capital cultural? Estará ela sempre presen­
te ju n to à criança? Ela cuida da sua escolaridade? M uitas são as per­
guntas que, por parecerem banais, n ão são menos essenciais. C o m
efeito, a simples existência o b jetiva de um capital cultural ou de
disposições culturais no seio de uma configuração fam iliar não nos
diz nada acerca das maneiras, das formas de relações sociais, a fre­
quência das relações, etc., através das quais eles se “ transm item ” ou
não se “ transm item ” 8. Se o capital ou as disposições culturais estão
indisponíveis, se “ pertencem ” a pessoas que, por sua posição na d iv i­
são sexual dos papéis domésticos, por sua situação em relação às pres­
sões profissionais, por sua m aior ou m enor estabilidade familiar, por
sua relação com a criança (Perfis 4, 5, 6, 7, 9 ), não têm oportu n i­
dades de ajudar a criança a construir suas próprias disposições cul­
turais, então a relação abstrata entre capital cultural e situação
escolar das crianças perde a pertinência. Vim os, em contrapartida,
o poderoso e feito, em algumas escolaridades, da presença constan­
te de adultos que possam exercer disposições escolarm ente harmo-

m
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

niosas a tod o instante, de maneira sistemática, regular e duradou­


ra (Perfis 24 e 25). O fa to de marcar, de form a contínua, sua pre­
sença se mostra particularmente im portante em configurações fam i­
liares em que tudo depende do alto grau de vigilân cia dos pais.

Transm issão ou construção?

Se tom am os o cuidado, ao lon go desta obra, de colocar os ter­


mos “ transmitir” ou “ transmissão” entre aspas, é porque eles rem e­
tem, freqüentem enre, à idéia de uma reprodução idêntica ( “ m ode­
lo a ser im itado” ) de uma disposição (ou de um esquem a) m ental e
levam , antes, a pensar em situações form ais de ensino nas quais um
saber está explicitam en te em jogo.
C o m efeito, é preciso questionar essa maneira de conceber as c o i­
sas. Transm itim os, por exem p lo, uma mensagem escrita a alguém,
rem eten do-lhe ou m andando rem eter-lhe um suporte sobre o qual
a mensagem fo i previam en te inscrita. Nesse exem plo, a transmis­
são parece não mudar nada da natureza ou do conteú do da mensa­
gem transmitida; a mensagem preexistia ao ato de transmissão. A
( o destinador) deu (ou mandou dar) a mensagem a B (destinatá­
rio ). Estamos dian te do m od elo clássico d o esquema da com u n ica­
ção elaborado por R om an Jakobson1'. Da mesma form a, n o caso da
transmissão de um patrim ôn io material, o o b jeto X passa d o doa­
dor ao ben eficiário (u m herdeiro, por ex em p lo ) sem que X se m odi­
fique com o processo de transmissão (ou de herança). A co n tece ria
o m esm o em matéria de cultura, de disposições sociais, de m anei­
ra de ver, de sentir, de agir, de esquemas com portam entais e m en ­
tais, etc.? Podem os dizer que o saber ou a cultura passa dos adultos
para as crianças co m o a mensagem escrita ou o patrim ôn io m ate­
rial passa de A a B? O sociólogo da educação e da cultura d eve con-
tentar-se com a m etáfora do “ transvasar” ou da “ outorga” (fala-se
tam bém em “ transmissão de poderes” ), ou então d eve criar uma lin ­
guagem mais adequada à descrição desses fenôm enos? A s n oções de
capital cultural e de transmissão ou de herança perdem , afinal de
contas, sua pertinên cia assim que nos dediquem os à descrição e à
análise das m odalidades da socialização fam iliar ou escolar.

340
CONCLUSÕES

Falar de “ transmissão” é, principalmente, conceber a ação unila­


teral de um destinador para um destinatário, ao passo que o destina­
tário sempre contribui para construir a “ mensagem" que se considera
ter-lhe sido “ transmitida” . Ele tem de atribuir-lhe sentido na relação
social que mantém com o que o está ajudando a construir seus conhe­
cim entos e com seus próprios recursos, construídos no curso de expe­
riências anteriores. A lé m disso, mesmo nas mais formais situações de
aprendizagem (por exemplo, as situações escolares), o que o adulto julga
“ transmitir” nunca é exatam ente aquilo que é “recebido” pelas crian­
ças. Os horizontes se revelam diferentes sob muitos aspectos. Em pri­
m eiro lugar, o “adulto” (en quan to ta l) possui um horizonte e uma
vivên cia lingüística que não estão ao alcance im ediato das crianças,
que constroem o sentido da situação de aprendizagem e dos conh eci­
mentos propostos a partir do estágio de seu desenvolvim ento cogni­
tiv o (socialm ente determ inado pelas experiências lingiiísticas das
quais participam ). Em segundo lugar, entre o adulto-docente e as
crianças-discentes as diferenças são também diferenças de modo de
inscrição nas relações sociais, de formas de configurações sociais de
referência (a criança é um menino ou uma menina, um filho mais velho
ou um caçula, um filh o de funcionário público ou de um dono de uma
grande empresa privada, um filh o de pais imigrantes ou um filh o cujos
pais nasceram na França, e assim por dian te). Assim, a noção de
“ transmissão” não explica muito bem o trabalho — de aprolmação e de
construção — efetuado pelo “ aprendiz” ou pelo “ herdeiro” . Ela tam­
bém não consegue indicar a necessária e in evitável transformação do
“capital cultural” no processo de “ outorgação” de uma geração para
outra, de um adulto para um outro adulto, etc., pelo efeito das dife­
renças entre aqueles que, presume-se, “ transmitem” e aqueles que, supõe-
se, “ recebem” .
Mas ela é ainda mais inadequada para conceber as freqüentes
situações em que algo se “ transm ite” — ou m elhor, se constrói —
sem que nenhum a in ten ção pedagógica tenha sido visada, sem que
nenhum a ação de transmissão tenha sido pensada co m o tal. Q u a n ­
tos conh ecim en tos e habilidades construímos sem saber, sem que
alguém nos tenha dito: “ V eja, h oje nós vam os aprender a fazer isso
ou aquilo...” ? Se pudermos datar aproxim adam ente o m om en to em

341
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

que aprendemos a 1er e a escrever ( “ Eu aprendi a 1er mais ou menos


com 5 anos” ), porque, neste caso, estamos dian te de um saber o b je ­
tivado, constitu indo um in vestim ento e x p lícito em nossas form a­
ções sociais, e ensinado em situações form ais de aprendizagem,
quem pode dizer com precisão em que m om en to aprendeu a puxar
ou a empurrar um o b jeto, a com binar h abilm en te essas duas ações,
a sentar direito à mesa, a ligar um televisor ou a discar um núm ero
de telefone? E, no entanto, o b jetiva m en te, isto é, para o sociólogo
ou o psicólogo que estudam, descrevem , analisam, nesses exem plos
existem con h ecim en tos e habilidades em ação. H á, pois, um gran­
de núm ero de situações nas quais a criança é levada a construir dis­
posições, conh ecim en tos e habilidades em situações “ organizadas”
— não conscien tem en te — pelos adultos e sem que tenha havido
verdadeiram ente “ transmissão" voluntária de um c o n h ecim en to 10.

U m p a trim ôn io cu ltu ral m orto

Nenhum a fam ília é desprovida de quaisquer objetos culturais, mas


estes (principalm ente os impressos) podem , às vezes, permanecer em
estado de letra morta porque ninguém os faz v iv e r fam iliarm ente. A
existência de um capital cultural fam iliar o b jetiva d o não im plica
forçosamente a existência de membros da fam ília que possuam o capi­
tal cultural incorporado adequado à sua apropriação. O s pais co m ­
pram livros, dicionários, enciclopédias (qu e, freqüentem ente, cons­
tituem investim entos financeiros m uito altos) para seus filhos, mas
sem que possam acompanhá-los em suas descobertas desses objetos
culturais. N ã o desempenham — por falta de disposições ou de opor­
tunidades — o papel de interm ediários que possibilitaria aos filhos
apropriarem-se dos textos que são colocados à disposição deles, e,
frequentemente, ficam decepcionados com o pouco uso que eles fazem
desse capital. A s crianças são, portanto, colocadas numa situação para­
doxal, uma vez que possuem objetos cuja ausência de utilidade fam i­
liar podem constatar todos os dias. O s livros comprados estão tam ­
bém freqüentem ente — por seu conteúdo — fora do alcance das
crianças, principalmente quando estas já têm problemas de compreen­
são de textos. Esse patrim ônio cultural quase não é m obilizado pelos

342
CONCLUSÕES

membros da fam ília, e as crianças estão, muitas vezes, privadas dele.


Trata-se, portanto, de um patrimônio cultural m orto, não apropriado e
in-a{rropriado (Perfis 11 e 20). U m capital cultural objetivado não
tem efeito im ediato e m ágico para a criança se interações efetivas
com ele não a m obilizarem ".
Por outro lado, em oposição a essas famílias que não desenvol­
vem estratégias de apropriação dos objetos culturais por seus filhos,
encontramos outras famílias em que, mesmo que os próprios pais quase
não leiam (n ão passando assim a imagem de uma prática natural da
leitura), eles, entretanto, desempenham um papel de intermediários
entre a cultura escrita e seus filhos: fazem com que eles leiam e
escrevam histórias, fazem-lhes perguntas sobre o que estão lendo, lêem
para eles histórias desde pequenos, levam -nos à biblioteca m unici­
pal, jogam palavras cruzadas com eles, e tc .... (Perfis 10 e 21 ).

A integração social e sim bólica da experiên cia escolar

Podem os observar tam bém que fam ílias fracam ente dotadas de
capital escolar ou que não o possuam de form a alguma (caso de pais
analfabetos) podem , n o entanto, m uito bem , através do d iá lo go ou
através da reorganização dos papéis dom ésticos, atribuir um lugar
simbólico (n os intercâm bios fam iliares) ou um lugar efetivo ao “ esco­
lar” ou à “criança letrada” n o seio da configu ração fam iliar. Assim ,
em algumas fam ílias, podem os encontrar, in icialm en te, uma escu­
ta atenta ou um questionam ento interessado dos pais, dem onstran­
do assim, para elas, que o que é fe ito na escola tem sentido e valor.
M esm o que os pais não com preendam tudo o que os filh os fazem
na escola e co m o não têm vergon h a de dizer que se sentem in fe ­
riores, eles os escutam, prestam aten ção na vida escolar deles,
interrogando-os, e indicam , através de inúmeros com portam entos
cotidianos, o interesse e o va lo r que atribuem a essas experiências
escolares12. A s conversas co m p elo m enos um m em bro da fam ília
possibilitam verbalizar uma experiência nova, não viven ciá -la sozi­
n ho, não carregar sozinho uma experiên cia diferen te. D a mesma
form a, quando pais analfabetos ou c o m dificuldades na escrita
pedem progressivam ente aos filh os escolarizados n o curso prim á­

343
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

rio que os ajudem a 1er a correspondência, a explicar-lh es o c o n ­


teúdo dela, a preen cher as ordens de pagam ento, a escrever b ilh e ­
tes para a escola, a procurar núm eros de telefon es na lista, a a co m ­
panhar a escolaridade dos irmãos e irmãs, etc., podem os dizer que
eles criam uma função fam iliar im portante, ocupada pela criança
que, com isso, ganha em recon h ecim en to, em legitim idade fa m i­
liar (Perfis 13, 14, 16). A lgu m as configurações fam iliares dem ons­
tram, portanto, a im portância social, sim bólica, no próprio seio da
estrutura de coexistên cia, daqueles que sabem 1er e escrever (da
“ criança letrada” ), ou a integração sim bólica do “escolar” . Q uando
se está desprovido de qualquer m eio de ajuda direta, esses p ro ce­
dim entos de legitim ação fam iliar desem penham um papel central
na possibilidade de uma “ boa escolaridade” no curso primário.

C apital escolar e exp eriên cia escolar

Temos, pelo menos, dois casos flagrantes de “ transmissão” de uma


relação infeliz com a escrita em nossa população (Perfis 8 e 12). N os
dois casos, mães passam aos filhos seu “ bloqueio” inicial em relação à
escrita, ao cálculo ou à memória: medo de com eter erros de ortogra­
fia, de escrever sem encontrar as formas certas, de não saber fazer um
cálculo... Essas mães não estão desprovidas de qualquer capital esco­
lar, mas expõem aos olhos dos filhos, em múltiplas situações cotidia­
nas, a fragilidade de suas competências em escrita, em matemática,
ou de suas competências mnemônicas, um sofrim ento em relação a
qualquer docum ento escrito mais ou menos form al ou a qualquer
situação de cálculo. Com unicam , portanto, seus com plexos, suas
angústias, suas próprias dificuldades escolares passadas, ao mesmo
tempo que suas preferências, mostrando assim que um capital escolar
nunca está dissociado de uma experiência escolar (feliz ou infeliz). Para­
doxalm ente, essas situações em que os pais têm um pequeno capital
escolar são mais problemáticas do que aquelas em que os pais são anal­
fabetos, mas desenvolvem outras estratégias familiares para ajudar os
filhos. Expondo os fatos rapidamente, poderiamos dizer que, do ponto
de vista da escolaridade da criança, é sem dúvida preferível ter pais
sem capital escolar a ter pais que tenham sofrido na escola e que dela

344
CONCLUSÕES

conservem angústias, vergonhas, complexos, remorsos, traumas ou blo­


queios. N a incapacidade de ajudar os filhos, os pais sem capital esco­
lar também não tendem a comunicar-lhes uma relação dolorosa com
a escola e com a escrita. Essa é uma das razões que podem explicar o
fato de que não se observa, em nossos perfis, um víncu lo m ecânico e
direto entre grau de “ sucesso” escolar dos filhos e grau de escolariza-
ção dos pais. Saindo da lógica simplista do volum e de capital escolar
possuído, é preciso interrogar-se a respeito da pluralidade das condi­
ções e das modalidades concretas de “ transmissão” ou de “ não-trans-
missão" das disposições culturais.
Tam bém se percebe claram ente que o que se “ transm ite” de
uma geração a outra é m uito mais d o que um capital cultural: um
con ju n to construído em relação à escola e à escrita — de angústias
e de hum ilhações, de reticências e de rejeições — em relação ao
tem po, à ordem e às pressões... O estudo dos fenôm enos de “ heran­
ça cultural” nunca d eve o m itir a análise da especificidade c o g n iti­
v a 1! do que se herda.

A constitu ição das identidades sexuais

A análise dos perfis de configurações, assim com o outras pesqui­


sas", revela que freqiientemente as mulheres, encarregando-se dos escri­
tos domésticos, estão por isso mais para o lado do p ólo racional e os
homens, contando com o trabalho de gerenciam ento de suas mulhe­
res, estão mais para o lado do pólo espontâneo ou hedonista. A s mulhe­
res também se encarregam da educação dos filhos e, principalm en­
te, do acompanham ento escolar deles. E tal fato não deixa de produzir
efeitos nas escolaridades dos filh os". Em mais de um caso, os m eni­
nos é que estão, escolarm ente, com mais dificuldade, na medida em
que a constituição de sua identidade sexual no seio da configuração
familiar deve ajustar-se a um pai que se acha, freqüentemente, do lado
dos princípios familiares de socialização mais dissonantes em relação
aos princípios escolares de socialização.
Mas, de maneira mais geral, vim os que, em famílias em que havia
diferenças marcadas em matéria de capital cultural, de disposição social
ou de atitude cultural entre o pai e a mãe e, mais am plam ente, entre

345
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

üs hom ens e as mulheres confrontados, a escolaridade das meninas


e dos m eninos com portavam matizes: um m en in o considerado um
pouco menos “ brilhante” que seu irmão numa configuração fam iliar
em que o pai era o único que sabia 1er e escrever e que cuidava da
escolaridade (P e rfil 10); m eninos um pouco menos fortes escolar­
m ente do que as irmãs numa situação fam iliar bastante desigual
entre os pais e as mães do p on to de vista das disposições racionais,
do capital escolar e das práticas culturais, porém, neste caso, a favor
das mães (Perfis 21 e 22)... Isso enfatiza, qualquer que seja o sexo
que se beneficie de uma situação fam iliar existente, o peso da cons­
trução social das identidades sexuais na constituição das estruturas
da personalidade e d o com portam ento dos filhos. Isso obriga a reco­
nhecer as diferenças sexuais com o diferenças plenam ente sociais que
entram em jo g o na compreensão dos matizes de percurso escolar no
seio de uma mesma fratria.

C o n tra d içõ es e instabilidade

Podem os [...] deplorar que o con texto seja fre­


quentem ente pintado com o rígido, coerente e
que sirva de tela de fundo im óvel para explicar
a biografia1''.

Longe de constituir realidades homogêneas, as configurações fam i­


liares estudadas nos forneceram mais de um caso de heterogen ei-
dade. A criança pode estar cercada de pessoas que representam
princípios de socialização, tipos de orien tação em relação à escola
m uito diferentes, até mesmo opostos. U m a parte do sucesso esco­
lar dessas crianças está, aliás, relacionada a essa presença de elem en ­
tos contraditórios que lhes possibilita ter p elo menos um membro
da fam ília (pai ou mãe, irmão mais velh o ou irmã mais velh a, rio
ou tia...) em quem podem apoiar-se em sua experiência escolar. A
oposição ou a contradição pode estabelecer-se, conform e o caso, entre
o con trole moral m uito rígido e a indulgência, entre o “d ive rtim en ­
to" e o “ trabalho escolar” , entre uma sensibilidade muito grande para
com tudo o que diz respeito à escola e uma menor sensibilidade, entre
preferências pela leitura e uma ausência de práticas e preferências

346
CONCLUSÕES

pela leitura... M as as contradições perpassam, às vezes, as próprias


pessoas, dúplices por sua história (P e r fil 15). A existência de prin­
cípios de socialização contraditórios faz com que a situação escolar
da criança dependa, m uito particularm ente, de uma relação de
força cultural (P e r fil 17) entre os diferentes membros da fam ília: a
m odificação das relações particulares de interdependência que pos­
sibilitam à criança “ desobrigar-se” escolarm ente pode fazer com
que sua carreira escolar17 seja reconsiderada.
De qualquer maneira, é mais raro encontrar configurações fam i­
liares cultural e m oralm ente hom ogêneas. Pou co numerosos são os
exem plos que possibilitam falar de uma exterioridade fam iliar c o e ­
rente, produtora de disposições gerais inteiram ente orientadas nas
mesmas direções. Num erosas crianças v iv e m co n cretam en te no
seio de um espaço fam iliar de socialização com exigências variáveis
e características variadas, em que exem plos e contra-exem plos se
ch ocam (u m pai analfabeto e uma irmã na universidade, irmãos e
irmãs em “sucesso” escolar e outros em “fracasso” , e assim por dian­
te ), em que princípios de socialização contraditórios se entrecru-
zam. C o m o conju n to dos membros de sua fam ília, elas são, freqüen-
tem e n te, co locad as d ia n te de um a m p lo lequ e de sistemas de
preferências e de com portam entos possíveis. E temos m uito mais
possibilidades de encontrar elem en tos contraditórios quando esti­
verm os em presença de fam ílias numerosas em que várias gerações
de filh os v iv e m sob o m esm o teto ou que com portam , por m últi­
plas razões, tios, tias, primos ou primas, e avós.
A situação das relações de interdependência n o seio das quais se
acham inseridas as crianças é, portanto, m uito susceptível de trans­
form ação e, quando a boa situação escolar das crianças só se mantém
por um fio, por uma ausência de investim entos culturais e eco n ô ­
m icos suficientem ente potentes, recorrentes, para evita r qualquer
acontecim ento perturbador, então a m enor m odificação das relações
de interdependência entre as pessoas confrontadas (e, por conseguin­
te, entre as disposições sociais, as orientações ou os princípios sócia-
lizadores) pode traduzir-se em “dificuldades” (P e rfil 14 ou 15). Esses
elem entos perturbadores podem ser de natureza extrem am ente varia­
da: nascim ento ou m orte de um irmão ou de uma irmã, que provo­

347
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ca a m odificação temporária ou perm anente da econ om ia dos laços


afetivos no seio da fam ília, um desemprego que acarreta m odifica­
ções de com portam entos, um in ício de trabalho de uma mãe que até
en tão estava em casa, saída de um irmão mais v elh o ou de uma irmã
mais velh a da fam ília, um d ivó rcio que m odifica as situações habi­
tuais de socialização..., qualquer acontecim en to que ven h a transfor­
mar a estrutura de coexistência fam iliar pode fazer com que tudo o
que tinha sido adquirido com dificuldade possa ser reconsiderado.
Mas esses acontecim entos não são tão perturbadores numa situação
familiar inversa, e a força de seus efeitos na situação escolar das crian­
ças é, sem dúvida, inversam ente proporcional à força dos investi­
mentos familiares.
N o oposto dos casos de “ ê x ito ” engendrados em configurações
fam iliares contraditórias e que dependem de uma relação de força
entre os diferentes princípios de socialização mais ou menos c o m ­
patíveis com o universo escolar, observam os casos em que a força
escolar da criança repousa numa configuração fam iliar não-contra-
ditória, com posta de adultos coerentes entre si, em que vários prin ­
cípios de socialização não se superpõem e exercem seus efeitos regu­
lar, sistem ática e duradouramente (Perfis 14, 23, 25).

U m a a n t r o p o l o g ia d a in t e r d e p e n d ê n c ia

A interdependência

C ritican d o o objetivism o abstrato da lingüística saussuriana que


define, de maneira m uito durkheim iana, a “ língua” — que “ o in d i­
vídu o registra passivam ente” ls — em oposição à “ fala” , da mesma
form a que o social se opõe ao individual, M ik h a il Bakhtine escre­
v e que essa corrente teórica “ considera a transmissão da língua tal
como um übjeto, por herança, de um ponto de vista metafísico” , mas obser­
va que “essa assimilação não constitui apenas [...] uma metáfora: crian­
d o o sistema da língua e tratando as línguas vivas co m o se fossem
mortas e desconhecidas, o objetivism o abstrato corta a língua da cor­
rente da comunicação verbal. Essa corrente avança sempre para a fren­
te, de maneira contínua, ao passo que a língua, tal qual um balão,

348
CONCLUSÕES

salta de geração em geração. E, no entanto, a língua avança ao mesmo


tem po que essa corrente e é inseparável dela. Em realidade, a língua
não é transmitida, ela dura e perdura na form a de um processo ininter­
rupto de evolução. O s indivíduos não recebem, como quinhão, uma lín­
gua pronta para ser utilizada, eles se inserem na corrente da comunica­
ção verbal, ou, mais exatamente, sua consciência só sai do limbo e
desperta graças à sua imersão nessa corrente” IQ.
Essas poucas palavras de M ik h a il Bakhtine são de uma n otável
clareza e podem servir para esclarecer boa parte das discussões socio­
lógicas em to m o das oposições (ou tentativas de esm ero d ia lético )
entre in divídu o e sociedade, ator e estrutura, subjetivism o e obje-
tivism o, estruturas mentais e estruturas objetivas. A s ciências sociais
têm realm ente a tendência, com o sugeria Bakhtine, de reificar as
n oções de co n tex to, de am biente, de sociedade, de estrutura, e de
colocar diante dessas abstrações reificadas indivíduos isolados, fazen­
do de duas apreensões, distintas da mesma realidade de interdepen­
dência, duas realidades substanciais, dois objetos realm ente sepa­
rados. Passamos, assim, de um co rte m e to d o ló g ic o a um corte
o n to ló g ic o entre in divídu o e sociedade20. A lé m disso, as oposições
(ou as dialéticas) d o tipo ator/estrutura ou indivíduo/sociedade des­
crevem a form ação das consciências individuais da mesma form a
que Santo A go stin h o descrevia a aquisição da linguagem pela crian­
ça, a saber, “co m o se esta fosse para um país estrangeiro sem c o m ­
preender sua língua: isto é, com o se ela já possuísse uma linguagem,
mas não aquela linguagem , ou ainda: com o se a criança já pudesse
pensar, mas não ainda falar”2' . O ra, os seres sociais22 não se en co n ­
tram dian te das “estruturas sociais” ou das “ estruturas lingiiísticas” ,
mas se constituem enquanto tais através das formas que suas rela­
ções sociais adquirem . C o m o m u ito bem dizia N o rb e rt Elias, o
tenno “ indivíduo” é particulannente confuso na medida em que “des­
perta a impressão de que se está falando de um adulto sem n enh u ­
ma relação, isolado, e que nunca fo i criança”21.
A consciência de qualquer ser social só se form a e adquire exis­
tência através das m últiplas relações que ele estabelece, no mundo,
com o outro. Ela é, portanto, social por natureza, e não porque seria
“ influenciada” por um “ m eio social” , um “am biente social” (c o n ­

.3 4 9
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

cepção de um social p eriférico )M. A “ consciência in terior” só tem


realidade porque é a consciência de um ser em relação e, principal­
m ente, de um ser que tem uma atividade linguística determinada.
O h om em é social de parte a parte, d o prin cíp io e por constituição:
porque é um ser em relação e um ser com linguagem 25.
Mas a in tersu bjetivid ad e ou a in terd ep en d ên cia n ão é a in te­
ração de in divídu os isolados, sendo cada um o “ cen tro autônom o
de uma ex p eriên cia do m u ndo” 26, ou a “ fo n te " e o “ proprietário
p riva d o do sen tid o ” . N ã o significa adição, agregação ou mesmo
in teração de inúm eros espetáculos in dividu ais isolados. E é v e r­
dade que todas as m etáforas que podem ser utilizadas para evo ca r
a in terdep en d ên cia dos seres sociais contin u am sem pre im p o ten ­
tes para criar a im agem de seres sociais constitu ídos na e pela
in terdep end ência. Se tom am os, p or ex em p lo, a im agem das bolas
de bilhar, que in teragem umas co m as outras, darem os a impres­
são de que cada in d ivíd u o já está con stitu ído antes ou fora de sua
interação com outros indivíduos. A imagem da bola de bilhar, o b je­
to isolado que entra em relação física co m outras bolas no âm bi­
to de um jo go , não possibilita que se apreenda a idéia de uma sub­
jetivid a d e constitu ída na intersubjetividade.
C ada ser social particular não apenas se form a enquanto tal nas
múltiplas relações de interdependência que estabelece com o mundo
e com o outro desde o seu nascim ento, co m o tam bém nas relações
que mantém com outros homens, “passam pelas coisas” 27, isto é, pelos
produtos objetivados das formas de relações sociais passadas ou pre­
sentes (máquinas, ferramentas, arquiteturas, obras...). A intersub­
jetividade também não é, portanto, sinônim o de interação entre ato­
res nus e despojados.

D as estruturas objetivas às estruturas m entais

A visão estatística é uma m aneira m uito particular de ver o


m undo28. Por exem plo, os estatísticos “são submetidos a coerções
específicas com o a de produzir uma representação hom ogênea (p o r­
que qu antificável) e exaustiva do m undo social”29. O em prego de
nomenclaturas ou de quadros im plica também que um objeto ou um

.350
CONCLUSÕES

indivíduo estejam numa casa e que não possam “estar em nenhuma


outra’’50. A preocupação com coerência e exaustão que implica, para
ser concretizada, técnicas intelectuais especiais, com o formulários,
regras, instruções ou procedimentos automatizados, é a linguagem pró­
pria do taxionomista. D o ponto de vista de uma sociologia do con h e­
cim ento, podem os considerar que essas técnicas intelectuais são os
padrões lingüísticos (os óculos) a partir dos quais os estatísticos — e
qualquer um que utilize estatísticas — aprendem a olhar o mundo.
O perando essa vo lta reflexiva, tom am os consciência do fato de
que a linguagem estatística das variáveis transforma tudo o que
m ede segundo sua própria ló g ica ". Transform a, assim, múltiplas
situações sociais que têm suas lógicas próprias (endógenas ou in dí­
genas) segundo a lógica do qu an tificá vel e do mensurável, e a par­
tir de critérios ou de variáveis que tentam o b jetiva r essas situações:
categoria socioprofissional, n ível de diplom ação, idade, sexo, etc.52.
Esses critérios tentam constituir indicadores o mais pertinentes
possível das cond ições sociais de existên cia dos indivíduos, e o
so ció log o pode, então, construir, graças às suas medidas, espécies
de mapas que tornem visíveis desvios, diferenças entre grupos, cate­
gorias, classes... Pode, portanto, dotar-se de fotografias, tiradas de
ângulos sempre particulares, daquilo que freqüentem ente se chama
de estruturas objetivas d o m undo social. C o m efeito, essas estrutu­
ras objetivas são “cien tifica m en te apreendidas co m o probabilida­
des” 55. Da mesma form a, aquilo a que se dá o n om e de condições
objetivas é construído pelas ciências sociais “ através das regulari-
dades estatísticas, com o probabilidades objetivam en te relacionadas
a um grupo ou a uma classe” 54.
O sociólogo pode, então, indagar sobre a relação entre as m edi­
das objetivantes das estatísticas (as estruturas o b jetiva s) e as estru­
turas mentais dos seres sociais que ele pode tentar, mais ou menos,
reconstruir sempre através das mesmas pesquisas’1. Para reintegrar
uma parte da realidade social (as estruturas m entais), o sociólogo
objetivista e realista terá tendência a proceder, im plicitam en te, da
seguinte maneira:
— pela o b jetiva çã o estatística ignora sobretudo de form a vo lu n ­
tária as m odalidades das práticas, assim co m o as estruturas m en ­

351
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tais dos seres sociais, para construir regularidades mensuráveis (fre-


q ü en tem en te produtos o b jetiva d o s ou institu cionalizados, e às
vezes até quantificados, das formas de vida social: n ív e l de salário,
diplom a, idade, propriedades*6...) que ele pode cham ar de estrutu­
ras objetivas;
— esquecendo que está diante de uma construção, considera suas
medidas com o o real, a base que vai perm itir explicar as práticas
sociais;
— quando retom a as estruturas mentais dos seres sociais (que
elim inara, no in ício, pelos seus autos de reconstrução), coloca-as
em posição de exterioridade em face das “ estruturas objetivas, tor-
nando-as um reflexo (m ais ou m enos déform an te) ou um acrésci­
mo, ao passo que é através delas, com elas, que os seres sociais se
orientaram , interpretaram (perceberam ) as situações que estavam
vive n d o , agiram, se organizaram, consumiram, produziram...;
— confronta, então, sem o saber, duas espécies de estruturas m en­
tais ou cognitivas particulares: aquelas com as quais os seres sociais
tecem suas relações sociais e apreendem o mundo social, e aquelas
por meio das quais o sociólogo-estatístico compreende a realidade social.

O “ in te rio r” e o “ e x te rio r”

A dependência natural do indivíduo em rela-


ção aos outros, a orientação natural das funções
psíquicas em direção à relação com os outros e
sua adaptação a essa relação, sua m aleabilida­
de no âm bito dessa relação são fenôm enos que
não conseguiriamos explicar com a ajuda de
esquemas concretos, de noções espaciais com o
“ interior" ou "exterior” . A análise delas exige
verdadeiram ente outros instrumentos de pen­
samento e outra visão de base'7.

Entretanto, todas as sociologias não procedem de sem elhante


forma. Pelo con ceito de exterioridade concebido com o um “ dos c o n ­
ceitos interm ediários mediadores entre o su bjetivo e o o b je tiv o ’” 6,
Pierre Bourdieu pretende conceber “ a dialética das estruturas o b je ­
tivas e das estruturas incorporadas” *9. 0 o b jetivism o é, então, cons­

352
CONCLUSÕES

tituído com o “ m o m en to necessário da ruptura com a experiência


prim eira e da construção das relações objetivas” 10, m om en to ou pri-
m eiro tem po insuficiente em si mesmo, que tem de ser com p leta ­
do com a consideração das “representações primeiras” que fazem parte
da “ d efin içã o com pleta d o o b jeto ” 41. Para essa form ulação d o pro­
blema, o autor conserva, entretanto, os termos de “estruturas o b je­
tivas” e de “ estruturas m entais” ou “ cogn itivas” 42.
N o âm bito de uma teoria do con h ecim en to, o autor postula que
“ as estmturas cognitivas que os agentes sociais empregam para conhe­
cer praticamente o mundo social são estruturas sociais incorporadas”4’.
Temos, pois, incorporação, inscrição, interiorização das estruturas obje­
tivas. H á conversão, transfonnação, reprodução ou transfiguração das
estruturas objetivas em formas ou sistemas de classificação; ou então
ainda correspondência entre os dois termos da oposição.
Mas, caracterizando dessa m aneira a relação entre exteriorida-
de, co m o sistema de disposições, e estruturas objetivas, damos a
impressão de que as estruturas objetivas — que são indissociáveis
d o trabalho de construção do so ció lo g o — existem in d ep en d en ­
tem en te ou fora de quaisquer form as de classificação e “ antes”
delas, uma vez que se reproduzem, se transformam , se co n vertem
ou se transfiguram. O ra, trata-se, neste caso, de duas apreensões
diferentes da mesma realidade social. A s propriedades, os capitais...
são os índices que o so ció log o retém para construir, por exem p lo,
um espaço o b jetivo das posições num cam po ou uma cond ição o b je­
tiva de existência, mas essas propriedades ou capitais só existem
em relações sociais de in terdependência, encarnadas ou m ob iliza ­
das por seres sociais concretos que, eles próprios, se constituíram
através dessas form as de relações. N ã o é, en tão, espantoso consta­
tar uma correspondência entre o espaço ou a estrutura das posi­
ções sociais (con stru ído p elo so ció log o a partir do volu m e global
e da estrutura d o capital possuído) e o espaço ou a estrutura das
opiniões, preferências, posicionam entos... dos seres sociais.
Se consideram os que os seres sociais se constituem — cons­
tróem suas estruturas mentais ou cogn itivas — de form a contínua
através de suas relações de interdependência, livram o-nos, então,
da oposição entre ator e estrutura e, co m isso, não é tão necessário

353
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

dizer que “ a ordem social se inscreve progressivamente nos cérebros” ,


que “há correspondência entre as divisões reais e os princípios prá­
ticos de divisão, entre as estruturas sociais e as estruturas m entais” ,
ou enfatizar a relação entre “ o m undo real e o m undo pensado” -14,
ou dizer que “ as estruturas objetivas da ordem escolar” se transfor­
mam, pela interiorização, “ em formas escolares de classificação” 4'.
Se as estruturas mentais de um ser social se constituem através das
formas de relações sociais e as estruturas objetivas são uma “ m edi­
da" particular dessa realidade intersubjetiva, desse tecido de in ter­
dependências sociais46, com preenderem os realm ente, en tão, que
não se trata de duas realidades diferentes, sendo uma (as estruturas
m entais) o produto da interiorização da outra (as estruturas o b je­
tivas), mas duas apreensões de uma mesma realidade.
Assim com o a expressão “ a língua com o sistema de signos é trans­
m itida" é apenas uma imagem (que pode revelar-se incôm oda), pois
todo ser social não aprende uma “ língua” 47, mas entra progressivamen­
te nos intercâmbios sociais de linguagem (trocas lingüísticas, intera­
ções verbais...), podem os considerar que a expressão “ as estruturas
sociais se incorporam ” é, de fato, uma metáfora. A s estnituras m en­
tais, cognitivas de indivíduos, são elaboradas socialm ente dentro de
formas de relações sociais específicas e através de práticas de lingua­
gem específicas: dizer isso constitui o lín ico m eio de não tornar o pro­
cesso de “ interiorização da exterioridade” , de “ incorporação das estru­
turas objetivas” ou de “ inscrição das estruturas sociais dos cérebros” ...
algo misterioso e que não pode ser analisado em si mesmo.

N otas

1 É preciso acrescentar que, se nossa pesquisa tem c o m o o b je to as dissonâncias e as


consonâncias en tre socialização escolar e socialização fam iliar, acentuando as espe-
cificidades, as pressões próprias das configurações fam iliares, a escola tam bém parti­
cipa, sem dúvida, da produção de alguns m al-entendidos prejudiciais â escolaridade
das crianças (cf. o caso d o “horário de estudo livre", que muitos pais pensam, por causa
d e sua confiança cega na escola, que seja uma garantia de tarefas controladas, o rie n ­
tadas e corrigidas por pessoas m uito mais com p etentes d o que eles, o que os leva a
não mais verificar, eles próprios, o trabalho escolar dos filhos.

354
CONCLUSÕES

2 C . M ontandon, L'école dans la vie des familles, 1991.

3 O s professores também experim entam reações de desprezo por parte dos pais de classes
mais altas, muitas vezes portadores de diplomas e de salários mais elevados.

4 O que form ulam os sõ tem sentido se aceitarm os a hipótese segundo a qual o que é
da ordem d o c o g n itiv o é relativamente independente d o que é da ordem d o ethos, e
que é possível inserir as crianças dos meios populares na cultura escrita escolar, sem
necessariamente visar a uma conversão, mais ainda utópica, d o con ju n to dos hábi­
tos de vid a populares.

5 R. Hoggart, 33 Newport S treet. .., p. 193-4.

6 C f. V. Cicourel, “ Developm ental and adult aspects ol habitus", 1989, e "Som e basic theo-
retical issues...” , 1974-

7 Cf- a posição de Pierre Bourdieu sobre a noção de cam po que supõe “ uma ruptura com
a representação realista que leva à redução d o efeito d o meio ao efeito da ação direta
que se efetua numa interação", Leçon sur la leçon, 1982a, p. 42.

Algum as pesquisas estatísticas verificam , aliás, o fato de que um alto n ível de diplom a
ou uma posição favorável dos pais não têm, automaticamente, efeito de socialização par­
ticular. Sabemos, por exem plo, que o número de jovens que gostam de 1er e cujos pais
são executivos (ou possuem diplom a de 2® grau), mas pequenos leitores, é m enor d o que
o número de joven s cujos pais são operários ou empregados (e não tem diplom a de 2°
grau), mas grandes leitores: “O gosto pela leitura tem mais oportunidades de surgir num
jovem que possua a carta "pai leitor” d o que aquele que tem em mãos uma carta “ pai
diplom ado” (F. de Singly, “ Savoir hériter...", 1993).

9 R. Jakobson, E ssais de linguistique générale..., e especialm ente o capítulo X I, “ Linguis­


tique et poétique” , p. 209-48.

10 C f. os “ processos de escoram ento" descritos por J. S. Bruner a propósito das “ interações


de tutela" em Le développement de l’enfant...

11 “ Nunca será demais repetir que nenhum ‘gosto pela leitura’ pode surgir de um contato
simplesmente material com objetos-livros” , escrevem A .-M . Chartier, C . Clesse e J.
Hébrard, Lire-É crire.. ., p. 91.

12 Richard Hoggart conta que, quando voltava d o colégio, relatava sua experiência para
a a vó paterna, e "todas as noites voltava para conversar sobre os acontecim entos d o dia
com minha a v ó " (3 3 Newport Street..., p. 128).

11 R. Lahire, Culture écrite et inégalités scolaires..., p. 53-5.

14 B. Lahire, La raison des plus faib les...; “ La division sexuelle du travail d’écriture...".

15 Da mesma forma que as interpretações sociológicas já clássicas que têm com o o b jeto as
desigualdades sociais diante da escola nunca evocaram a natureza escrita dos con h eci­
mentos escolares, nenhuma das teses defendidas h oje em relação ao “ m elhor êx ito" esco­
lar das meninas na escola primária (especialm ente nos meios populares) considera as

355
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

diferenças de práticas da escrita conform e o sexo. C f. B. Lahire, “ L'inégale ‘réussite scolaire’


des garçons et des filles...” , 1993c; ver também D. Fabre, Ecritures ordinaires, 1993.

16 G . L evi, "Les usages de la biographie” , p. 1 331.

17 A lé m desses elem entos contraditórios, podem os destacar os “efeitos ambíguos” de algu­


mas características ou sua ambivalência. Quando se é tentado espontaneam ente a fazer
um balanço tias características escolarmente positivas e negativas, percebemos rapida­
mente que tal procedim ento é ingênuo: investim entos d o p on to de vista escolar em um
determ inado número de casos ou para determinadas dim ensões das práticas escolares,
algumas características (disposições, orientações... fam iliares) podem constituir, em
outras situações, lim itações d o p on to de vista de uma “ boa escolaridade” . O exam e da
realidade nem sempre possibilita separar claram ente as características familiares "fa v o ­
ráveis” à escolaridade da criança das “desfavoráveis” a essa escolaridade, mas mostra,
antes, a ambivalência de certas práticas socializadoras d o ponto d e vista dos efeitos esco­
lares (Perfis 18 e 19). É o caso, por exem plo, de alguns exem plos paradoxais de supe-
rinvestim ento escolar com crianças em grande dificuldade escolar. Se não examinar­
mos de perto, essas situações darão idéia de uma “ mobilização fam iliar positiva” . Q uando
todas as ações de acom panham ento se concentram n o terreno estritam ente escolar das
tarefas, sem que a configuração d o conjunto das práticas familiares se m odifique — os
atos île "boa vontade escolar” são com o que uma ilhota isolada no conjunto das práti­
cas familiares — , essas ações coercitivas (vigilância, acom panham ento, controle, chan­
tagem, punição, tapas) aumentam os tormentos escolares da criança, não chegando, então,
a atingir o ob jetivo determ inado (P erfil 20).

Is F. de Saussure, Cours de linguistique générale, 1972, p. 30.

|l) M . Bakhtine, Marxisme et philosophie du langage. .., 1977, p. 117. G rilos d o autor.

20 N . Elias, Qu'est-ce que la sociologie? , p. 134.

21 L. W ittgenstein, Tractatus logico-philosophicus..., 1986, p. 130. G rifos d o autor.

22 A noção de ser social é indissociável das noções de configuração, de interdependência,


de forma d e relação social, etc., e só é utilizável pelo sociólogo (assim com o as noções de
agente, de ator, de indivíduo, de sujeito, de pessoa...) em momentos limitados, circuns­
critos de reflexão teórica ou epistemológica, nos quais se aceita temporariamente deixar
pendente a questão dos contextos sócio-históricos (sem pre particulares) estudados.

21 N . Elias, Q it’e.st-ce que la sociologie.', p. 138. Da mesma forma, Elias escreve (íbid-.p. 141):
" O Homem é um processo. Por que, nessas condições, os próprios cientistas utilizam, tão
frequentemente, um co n ceito que — com o o de indivíduo — fixa o homem na forma
de um adulto independente, solitário, situado fora de qualquer rede relacionai, sem que
jamais tenha sido criança e sem que jamais se renha tornado adulto?” .

24 L e v S em en ovitch V ygotski e N orb ert Elias — o prim eiro, psicólogo; o segundo, soció­
logo — criticaram essa concepção, mostrando assim que a revisão da oposição indi-
víduo/sociedade implica transformações nas relações entre psicologia e sociologia. C o m o

356
CONCLUSÕES

o trabalho de Jean Piaget durante muito tem po constituiu a referência psicológica im plí­
cita mais im portante de numerosos sociólogos, é o trabalho de Vygotski que é mais
com p atível com nossa con cepção de sociologia. C f., nessa perspectiva, J. S. Brimer,
Le développement de l’e n fa n t..., assim com o M . Deleau, Les origines sociales du dévelop­
pement m en tal..., 1990.

J. S. Bruner, Le développement de l’e n fan t..., p. 285: “Gostaríamos de sugerir que a lin­
guagem não é um instrumento comum, mas um instrumento que entra na própria orga­
nização d o pensamento e das relações sociais. Pode-se perceber que esse ponto de vista
se op õe à imagem piagetiana da linguagem com o sistema ‘preguiçoso’ que apenas rela­
taria o pensamento e seria apenas uma espécie de sintom atologia dele". C f. também B.
Lahire, “ S ociologie des pratiques d’écriture...".

-6 M . Bakhtine, Le freudisme, 1980, p. 201.

M . Merleau-Ponty, Les aventures de la dialectique, 1977, p. 51.

2S B. Lahire, “ Formes sociales et structures objectives...” .

29 A . Desrosières, A . G o y e L. T h éve n ot, “ L’identité sociale dans le travail statistique...” ,


1983, p. 60.

30 A . Desrosières e L. T h é v e n o t, “ Les mots et les chiffres...” , 1979, p. 54.

31 M . de Certeau, L invention du quotidien, p. 20.

’2 N a história, todos os codificadores encontraram o mesmo tipo de problema: o da deter­


m inação de critérios “ o b jetivo s” que possibilitassem classificar situações, pessoas ou
ob jetos para pôr um fim em todas as formas de “ suhjctivism o” , consideradas "a rb i­
trárias". O so ciólog o ob jetivista que invoca a desconfiança contra as "representações
subjetivas” , as “ pré-noções” , etc, reativa, portanto, os mesmos raciocínios que os in ven ­
tados na história pelos legisladores e adm inistradores de qualquer tipo. Foi necessá­
rio principalm ente um en orm e trabalho d e construção de equivalências, no territó­
rio nacional, para que medidas estatísticas — a partir de nom enclaturas utilizáveis
em qualquer lugar — pudessem ser pensadas: d ilusão da língua francesa e destruição
dos dialetos, uniform ização da rede escolar, serviço m ilitar ob rigatório, codificações
jurídicas diversas, divisão administrativa d o território em departamentos, sistema métri­
c o com um , u n ificação dos pesos e medidas, etc. C f. A . Desrosières, L a politique des
grands nom bres .... 1993.

33 P. Bourdieu, Choses dites, 1987, p. 128.

33 P. Bourdieu, Le sens pratique, p. 90. Existem empregos mais realistas — e menos cie n tí­
ficos — dos termos “ estrutura social", "estrutura ob jetiva ", “estrutura das relações entre
classes"... que deixam inteiramente aberta a questão d o m odo de acesso m etodológico
a essas “ estruturas” . Quando evoca, na mesma obra, as “ estruturas objetivas” com o “ pro­
dutos da história co letiva ” (p. 96 ) ou com o “produtos objetivados” (p. 88), P. Bourdieu
está adotando uma linguagem mais realista e m enos convencional.

357
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

35 N . Elias, Engagement et d ista n c ia tio n .. p. 80: “O dualismo oncológico, a representação de


um inundo dividido em ‘sujeitas’ e ‘objetos’, leva ao engano. Isso suscita a impressão de que
‘sujeitos’ poderíam existir sem ‘objetos’. Isso leva os homens a se perguntarem qual dos dois
é a causa e qual é o efeito” .

36 É preciso colocar a possibilidade de se fazer um trabalho objetivista em ciências sociais


paralelamente com os processos sócio-históricos de ob jet ivação, de codificação (m oeda,
diplomas oficialm ente reconhecidos, datas de nascimentos registradas que permitam a
medida objetiva da idade...), eles próprios indissociáveis de formas de ex ercício do
poder e de modos de gestão das populações. C om isso, podemos dizer que o sociólogo
objetivista não é menos vítim a das categorias da prática d o que outros. Empregar esta­
tísticas é empregar procedimentos sócio-historicam ente ligados principalm ente às buro­
cracias de Estado. B. Lahire, "Formes sociales et structures objectives...” .

37 N . Elias, La société des individus, p. 102.

38 P. Bourdieu et al., U n art moyen, 1965, p. 18.

’1' P. Bourdieu, Le sens pratique, p. 70.

« Ibid., p. 87.

41 Ibid., p. 233.

42 Da mesma forma, P. Bourdieu propõe, em C e que parler veut d ire ... ( 1982b), um relacio­
namento das categorias sociologicam ente construídas e das características lingüistica-
menre construídas que, se questiona a autonom ia da linguística, também não aceita a
separação entre língua e sociedade, linguístico e sociológico.

43 P. Bourdieu, La distinction, p. 545. Todos os term os que se seguem são retirados d o autor.

44 P. Bourdieu, L a distinction, p. 549.

45 P. Bourdieu e M . de Saint-M artin, "A g rég a tion e t ségrégation...” , 1987, p. 18.

46 N . Elias, Q u ’est-ce que la sociologie!, p. 115: “ A s estatísticas desempenham um papel indis­


pensável; mas sua função é a de indicadores que revelam diferenças específicas na
maneira com o os hom ens se inserem no tecid o relacionai” .

4| Exceto na escola: o m odelo do objetivism o abstrato que evoca a transmissão de um sis­


tema de signos está falando da situação escolar. U m a "língua", constituída com o tal por
um trabalho de codificação alfabético, léxico, gramatical, estilístico..., é ensinada a “ indi­
víduos” que falam e aprenderam a pensar no decorrer de atos d e com unicação cotidia­
nos. C f. B. Lahire, Culture écrite et inégalités sco laires...

358
B ibliografia

A riÈS, P. 1973. L'enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime. Paris, Seuil.
316 p. (Points.)

Bak h t i n e , M. 1977. Marxisme et philosophie du langage (essai d’application

de la méthode sociologique en linguistique). Pref. de R. Jakobson. Paris,


Minuit. 233 p.

--------- . 1980. Le freudisme. Lausanne, L'Age d’Homme. 229 p.

Bau d elot, C. & E S TA B LE T, R. 1992. Allez les filles! Paris, Seuil. 244 p.

R. &. E S TA B LE T, R. 1991. Jeunesse et habitus: pertinence de


B É N O LIE L,
l’hypothèse, impertinence des enquêtes. Cahiers du CERCOM (C en ­
tre d’études et de recherches sur la communication), 6, p. 9-29.

BLUM , A . et G r ib a u d i. M. 1993. Les déclarations professionnelles. Prati­


ques, inscriptions, sources. Annales ESC, 48 (4), p. 987-95.

B O U R D IE U , P. 1979a. La distinction. Critique sociale du jugement. Paris,


Minuit. 670 p.

--------- . 1979b. Les trois états du capital culturel. Actes de la Recherche en


Sciences Sociales, 30, p. 3-6.

--------- . 1980. Le sens pratique. Paris, Minuit. 475 p.

--------- . 1982a. Leçon sur la leçon. Paris, Minuit. 56 p.

--------- . 1982b. Ce que parler veut dire. L'économie des échanges linguistiques.
Paris, Fayard. 244 p.

--------- . 1987. Choses dites. Paris, Minuit. 231 p.

--------- . 1992. Les règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris,
Seuil. 481 p. (Libre Examen/Politique.)

359
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

B O U R D IE U , P. & . C h a r t ie r , R. 1985. La lecture: une pratique culturelle. In:


C H A R T IE R , R., org. Pratiques de la lecture. Marseille, Rivages, p. 218-39.

B o urd ieu , P. & S aint -M a rtin , M. de. 1987. Agrégation et ségrégation.


Le champ des grandes écoles et le champ du pouvoir. Actes de la Recher-
che en Sciences Sociales, 69,
p. 2-50.

P. et alii. 1963.
B O U R D IE U , Travail et travailleurs en Algérie. Paris/La Haye,
Mouton. 566 p.

--------- . 1965. Un art moyen. Paris, Minuit. 360 p.

BrüNER, J. S. 1991. Le développement de l’enfant. Savoir-faire, savoir dire. Apres,


de M. Deleau. ( 1. ed. 1983.) Paris, Presses Universitaires de France. 292 p.

CERTEAU , M. de, org. 1980. L'invention du quotidien. Paris, Union G éné­


rale d ’Éditions. v. 1. Arts de faire, 374 p. Cap. 10-18.

C H A R T IE R , A .-M .; C lesse, C .; H ebrard, J. 1991. Lire-écrire. Paris, Hatier.


v. 1. Entrer dans le monde de l’écrit. 155 p.

C h a r t ie r , R. 1985. D u livre a u lire. I n : C H A R T IE R , R., org. Pratiques de la


lecture. Marseille, Rivages, p. 62-88.

C lG O U R E L , A . V. 1974- Some basic theoretical issues in the assessment of


the child’s performance in testing and classroom settings. In: C lC O U -

REL, A. V ; JE N N IN O S , K. H.; JE N N IN G S , S. H. M. et alii. Langage use and


school performance. N ew York, Academie Press, p. 300-65.

--------- . 1989. Developmental and adult aspects o f habitus. Comunica­


ção no simpósio Toste, strategies and praticai sense. Berlin, Université
de Berlin/Research Center for Historical Anthropological, 23-24 octo­
bre. 41 p. multigr.

D ELEAU , M. 1190. Les origines sociales du développement mental. Commu­


nication et symboles dans Ut première enfance. Paris, A . Colin. 192 p.

DESROSIÈRES, A . 1989. L’opposition entre deux formes d’enquête: mono­


graphie et statistique. Justesse et justice dans le travail, número especial
de Cahiers du CEE (Centre d’Études de l’Emploi), 33, p. 1-9.

360
B IB L IO G R A F IA

DESROSIÈRES, A . 1993. La politique des grands nombres. Histoire de la raison


statistique. Paris, La Découverte. 441 p.

D e s r o s iè r e s , A .; G o y , A .; T h ÉVEMOT, L. 1983. L’identité sociale dans le


travail statistique. La nouvelle nomenclature des professions et caté­
gories socioprofessionnelles. Economie et Statistique, 152, p. 55-81.

D A . & T h É V E N O T , L. 1979. Les mots et les chiffres: les


e s r o s iè r e s ,

nomenclatures socioprofessionnelles. Économie et Statistique, 100,


p. 49-65.

DÉTIENNE, M. & V ern ant , J.-P. 1974- Les ruses de l’intelligence. La Métis
des grecs. Paris, Flammarion. 316 p. (Champs.)

DURKHEIM, É. 1975. Textes. 1. Éléments d'une théorie sociale. Org. por V.


Karady. Paris, Minuit. 509 p.

--------- . 1985. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Le système tote'mi-


que en Australie. 7. ed. (1. ed. Alcan, 1912.) Paris, Presses Universi­
taires de France. 687 p. (Quadrige.)

--------- . 1989. Éducation et sociologie. Org. por P. Fauconnet. ( 1. ed. Alcan,


1922.) Paris, Presses Universitaires de France. 130 p. (Quadrige.)

--------- . 1990. L 'évolution pédagogique en France. Introd. de M. Halhwachs.


(1. ed. Alcan, 1938.) Paris, Presses Universitaires de France. 403 p.
(Quadrige.)

--------- . 1992. L 'éducation morale. Org. por P. Fauconnnet. (1. ed. Alcan,
1924-) Paris, Presses Universitaires de France. 256 p. (Quadrige.)

E L IA S , N . 1981. Q u ’est-ce que la sociologie? Paris, Pandora. 222 p. (Des


Sociétés.)

------- . 1991a. La société des individus. Trad. J. Etoré. Pref. de R. Chartier.


Paris, Fayard. 301 p.

--------- . 1991b. Mozart. Sociologie d'un génie. Paris, Seuil. 185 p.

--------- . 1991c. Norbert Elias par lui-même. Paris, Seuil. 250 p.

361
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ÉLIAS, N . 1993. Engagement et distanciation. Contributions à la sociologie de la


connaissance. Trad. M. Hulin. Pref. de R. Chartier. Paris, Fayard. 258 p.

ERNAUX, A . 1984- Les armoires vides. (1. ed. 1974.) Paris, Gallimard. 182 p.
(Folio.)

EsTARLET, R. 1987. L'école est-elle rentable? Paris, Presses Universitaires de


France. 239 p.

--------- . 1991. Évaluation à l'entrée au CE 2. Mathématiques-français. Pré­


sentation. Paris, Ministère de l’Education Nationale/Direction de
l’Evaluation et de la Prospective. 120 p. multigr.

Fa r r e ,D. 1993. Ecritures ordimires. Paris, POL/Centre Georges-Pompi-


dou. 375 p.

FAUCONNET, P. 1989. L’œuvre pédagogique d’Émile Durkheim. Pref. de É.


Durkheim. 2. ed. Éducation et Sociologie, p. 11-40.

FOUCAULT, M. 1969. L'archéologie du savoir. Paris, Gallimard. 275 p.

1989. Introduction à la psychanalyse. (1. ed. 1922.) Paris, Payot.


FR E U D , S .
443 p. (Petite Bibliothèque Payot.)

G lN Z R U R G , C. 1989. Mythes, emblèmes, traces. Morphologie et histoire. Paris,


Flammarion. 304 p.

C laud e, M. & S i n c l y , F. de. 1986. L’organisation domestique: pouvoir et


négociation. Économie et Statistique, 187, p. 3-30.

GOFFMAN, E. 1968. Asiles. Études sur la condition sociale des malades men­
taux. Paris, Minuit. 452 p.

--------- . 1987. Façons de parler. Paris, Minuit. 277 p.

G rafm eyer , Y. 1990. Identités sociales et espaces de mobilité. Approche lon­


gitudinale de quelques milieux lyonnais. Paris, Université de Paris-V. 3 v.,
714 p. multigr. (Tese de doutorado.)

G r i b a U D I, M. & BLUM , A . 1990. Des catégories aux liens individuels:


l’analyse statistique de l’espace social. Annales ESC, 45 (6), p. 1365-402.
362
BIBLIOGRAFIA

G R IG N O N , C. & P a SSE RO N , J.-C. 1989. Le savant et le populaire. M isérabi-


lisme et populisme en sociologie et en littérature. Paris, Gallimard/Seuil.
260 p. (Hautes Etudes.)

GUMPERZ, J. 1986. Interactional sociolinguistics in the study o f schooling.


In: COOK'GUMPERZ, J., org. The social construction ofliteracy. Cambrid­
ge, M A , Cambridge University Press, v. 3, p. 45-68. (Studies in Inte­
ractional Sociolinguistics.)

HALBWACHS, M. 1968. La mémoire collective. Pref. de J. Duvignaud. (1. ed.


1950.) Paris, Presses Universitaires de France. 204 p.

HÉRAN, F. 1984. L’assise statistique de la sociologie. Économie et Statisti­


que, 168, p. 23-35.

H ü GGART, R. 1970. La culture du pauvre. Étude sur le style de vie des clas­
ses populaires en Angleterre. Trad. F. e J.-C. Garcias. Pref. de J.-C. Pas-
seron. (1. ed. 1957) Paris, Minuit. 420 p. (Le Sens Commun.)

--------- . 1991. 33 Newport Street. Autobiographie d'un intellectuel issu des


classes populaires anglaises. Trad. C. e C. Grignon. Apres. C. Grignon.
Paris, Gallimard/Seuil. 288 p. (Hautes Etudes.)

Ja k o b s o n , R. 1981. Essais de linguistique générale. Les fondations du langage.

Paris, Minuit, v. 1. 260 p. (Double.)

KOHN, M. L. 1959. Social class and the exercise o f parental authority. Ame­
rican Sociological Review, 24 (3 ), p. 353-86.

--------- . 1963. Social class and parental-child relationships. A n interpré­


tation. American Journal ofSociology, 68 (4 ), p. 473-4-

L , S. 1990. L’école et ses miracles. N ote sur les déterminants


aac h e r

sociaux des trajectoires scolaires des enfants de familles immigrées. Poli-


tix, 12, p. 25-37.

L a h ir e , B. 1990a. Formes sociales scripturales et formes sociales orales: une


analyse sociologique de V “échec scolaire” à l'école primaire. Lyon/Lille,
U niversité Lyon-II/Université de L ille-III, A te lie r N ation al de
Reproduction des Thèses. 1016 p. multigr. (Tese de doutorado.)

363
SUCESSO ESCOIAR NOS MEIOS POPUIARES

Lahjre, B. 1990b. Sociologie des pratiques d’écriture: contribution à l'analyse


du lien entre le social et le langagier. Ethnologie Française, 3, p. 262-73.

--------- . 1991. Linguistique/écriture/pédagogie: champs de pertinence et


transferts illégaux. L’Homme et la Société, i 0 J (3 ), p. 109-19.

--------- . 1992a. Formes sociales et structures objectives: une façon de


dépasser l'opposition objectivisme/subjectivisme. L'Homme et la Socié­
té, 103 ( l ) , p . 103-17.

--------- . 1992b. Discours sur {'“ illettrisme" et cultures écrites. In: BESSE,
j.-M .; G a U L M Y N , M.-M. de; G îNET, D. et alii. L”‘illeirisme" en questions.
Lyon, Presses Universitaires de Lyon. p. 59-75.

--------- . 1992c. Précisions sur la manière sociologique de traiter du sens:


quelques remarques concernant l'ethnométhodologie. Langage et Sodé-
té, 59, p. 73-89.

----- . 1993a. Culture écrite et inégalités, scalaires. Sociologie de {’“échec sco­


laire" à l'école primaire. Lyon, Presses Universitaires de Lyon. 310 p.

----- . 1993b. La raison des plus faihles. Rapport au travail, écritures


domestiques et lectures en milieux populaires. Lille, Presses Universitai­
res de Lille. 188 p.

----- . 1993c. L’inégale “ réussite scolaire" des garçons et des filles de


milieux populaires: une piste de recherche concernant l écriture domes­
tique. In: G r a FMEYER, Y., org. Milieux et liens sociaux. Lyon, PPSH Rhône-
Alpes. p .161-75.

----- . 1993d. La division sexuelle du travail d’écriture domestique. Eth'


nologie Française, 23 (4 ), p- 504-16.

----- . 1993e. Pratiques d’écriture et sens pratique. In: C H A U D R O N , M.


&. SiNGI-Y, F de, org s. Identité, lecture et écriture. Paris, Centre G eor­
ges-Pompidou/BPl. p. 115-30. (Études et Recherche.)

----- . I993f. Récits oraux d’enfants de milieux populaires. Question:


sociologiques et écriture littéraire. Comunicação no colóquio inter­
nacional Le Récit Oral, Montpellier, 24-26 juin. (Langue et Praxis.)
fel&UOCRAflA

LahiRE, B. 1993g. Lectures populaires: les modes populaires d’appropriation


des textes. Rente Française de Pédagogie, 104, p. 17-26.

--------- . 1993h. Les raisons de l'improbable. “ Heurs” et “malheurs" à l’école


élémentaire d’enfants de milieux populaires. Relatório final de pesquisa
(com a colaboração de D. Thin e a participação de F. Blanc, L. Bour­
gade, C. Buarhier, S. Faure, S. Gavory, B. Jannin, H. Margier, M . M il­
let, F. Saunier-Martin, G . Vulin), 364 p. multigr.

--------- . I993i. Inégalités, partages, spécificités et différences ckms les usages


sociaux de l’écrit. De l ’école élémentaire aux pratiques en milieux populai­
res. Lyon, Université Lyon-H. 133 p. multigr. (Texto de habilitação para
coordenar pesquisas.)

L aurens , J.-P. 1992. i sur 500. La réussite scolaire en milieu populaire. Tou-
louse, Presses Lîniversitaires du Mirail. 259 p.

LAUTREY, J. I960. Classe sociale, milieu familial, intelligence. Paris, Presses


Universitaires de France. 283 p.

L emel , Y. 1984. Le sociologue des pratiques du quotidien entre l'approche


ethnographique et l’enquête statistique. Économie et Statistique, 168,
p. 5-11.

LErETiT, B. 1993. Archirecrure, géographie, histoire: usagers de l’échelle.


Genèses, 13, p. 118-38.

Levi, G. 1989. Les usages de la biographie. Annales ESC, 44 (6), p. 1 325-36.

M E R L E A U -P O N T Y , M. 1977. Les aventures de la dialectique. Paris, G a lli­


mard. 341 p. (Idées.)

--------- . 1992. La prose du monde. Paris, Gallimard. 211 p. (T el.)

M IN G U A T , A . <&. R lC H A R n , M. 1990. Évaluation des activités de ré-éducation


C A PP à l'école jnbnaire. Dijon, Université de Bourgogne/Institut de
Recherche sur l’Économie de l’Éducation (1REDU). 165 p.

Montanoon , C . 1991. L’école dans la vie des /amtiies. Genève, Service de


la Recherche Sociologique. 159 p. (Cahier 32.)

365
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

PASSERO N, J.-C. 1991. Le raisonnement sociologique. L'espace non poppérien


du raisonnement naturel. Paris, Nathan. 408 p.

------- . 1991. Repères et références statistiques sur les enseignements et la for-


mation. Paris, Ministère de l’Education Nationale/D irection de
l’Evaluation et de la Prospective. 278 p.

REVEL, J. 1989. L’histoire au ras du sol. Pref. de G. Levi. Le pouvoir au viL


lage. Histoire d’un exorciste dans le Piémont du XVIIe. siècle. Paris, G a l­
limard. p. I-XXXIII.

Roustancî, F. 1990. Influence. Paris, Minuit. 179 p.

SAUSSURE, F. de. 1972. Cours de linguistique générale. Paris, Payot. 509 p.

Schwartz, O. 1990. Le monde privé des omriers. Hommes et femmes du Nord.


Paris, Presses Universitaires de France. 531 p.

St.'RlRN E R, S . 1977. Modes o f thinking and ways o f speaking: culture and


logic reconsidered. In: J O H N S O N -L A IR D , P. N . & W a SON, P. C., orgs.
Thinking: readings in cognitive science. Cambridge, Cambridge Univer-
sity Press, p. 483-500.

SCRIBNER, S. & C ole , M. 1981. The psychology of literacy. Cambridge,


MA/London, Harvard University Press. 335 p.

M. T. 1986. Pratiques discursives et relations de pouvoir chez les pay­


S IE R R A ,
sans otomis de la vallée du M ezquital. Paris, Université Paris-VIII. 491
p. multigr. (Tese de 32 ciclo.)

SlNGLY, F. de. 1993. Savoir hériter: la transmission du goût de la lecture


chez les étudiants. In: FRAISSE , E., org. Les étudiants et la lecture. Paris,
Presses Universitaires de France, p. 49-71.

T errail , J.-P. 1990. Destins omriers: la fin d’une classe ? Paris, Presses U n i­
versitaires de France. 288 p.

T eSTANIÈRE, J. 1982. Les enfants de milieux populaires et l'école. Une péda­


gogie populaire est-elle possible! Paris, Université Paris-V. 642 p. mul­
tigr. (Tese de doutorado.)

366
BIBLIOGRAFIA

V ER RE T, M. com a col. dej. Creusen. 1988. La culture ouvrière. Saint-Sébas­


tien, A C L Edition Société Crocus. 302 p.

G . 1980. L'école primaire française. Etude sociologique.


V IN C E N T ,
Lyon/Paris, Presses Universitaires de Lyon/Maison des Sciences de
l’Homme. 344 p.

V L. S. 1985.
y G O T S K I, Pensée et langage. Paris, Messidor/Éditions Socia­
les. 416 p.

W EBER, M. 1971. Économie et société. Paris, Plon. 651 p.

W ELLS, G. 1985. Preschool literacy-related. Activities and success in school.


In: O l s o n , D. R.; T o R R A N C E , N . ; H lL D Y A R D , A., orgs. Literacy, language
and leaming. Cambridge, M A , Cambridge University Press, p. 229-56.

W IT T G E N S T E 1 N , L. 1986. Tractatus logico-philosophicus. Seguido de Investi-


garions philosophiques. (1. ed. 1961.) Paris, Gallimard. 364 p. (Tel.)

--------- . 1988. Le cahier bleu et le cahier brun. Paris, Gallimard. 424 p. (Tel.)

XÉNO PH O N. 1949. Économique. Trad. e org. P. Chantraine. Paris, Les Bel­


les-Lettres. 115 p.

ZÉRO ULO U , Z. 1988. La réussite scolaire des enfants d’immigrés. L’apport


d’une approche en termes de mobilisation. Revue Française de Sociolo­
gie, 29, p. 447-70.

367

Anda mungkin juga menyukai