A feitura de inscrições, que a princípio seria uma infração do comportamento O comércio trans-saariano opera uma mudança cultural que cria uma
legal islâmico, torna-se cada vez mais uma afirmação do Islã, porque o necessidade, um desejo por esse tipo de calendário novo, que se expressa nas
simples fato de inscrever o nome dos mortos vai contra a prática da cultura inscrições da região de uma maneira que chega a ser excessiva, o que
anterior, da cultura não-islâmica que existia na região. Essa talvez seja a denuncia o fato de que havia um interesse extremamente forte na introdução
explicação de por que, exatamente nas regiões onde as inscrições em tifinah desse novo calendário. Nas regiões mais clássicas do Islã, na Espanha
são tão abundantes, as inscrições árabes também o são. muçulmana ou no Oriente Médio, uma lápide tumular simplesmente oferecia a
data, dizia “morreu no dia tal do mês tal do ano tal”, e, muitas vezes, aí
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terminava. Uma larga proporção das inscrições do Sahel, além de exprimir a Há uma inscrição que corresponde a um estágio ainda mais avançado nesse
data dessa maneira, adiciona uma série de outras expressões que reforçam no processo de mapeamento, onde não se trata simplesmente de pôr o Sahel no
leitor a consciência de que ele está lidando com uma data muçulmana. Após a mapa geral do território islâmico, trata-se de criar dentro dele uma espécie de
data do falecimento vem uma frase dizendo um ano do calendário do profeta símile, de contrapartida à própria cidade de Meca. Há, por exemplo, uma
ou um ano da era muçulmana; e, às vezes, isso é repetido. Há uma espécie de inscrição que diz que foi escrita por fulano, e prossegue, dizendo que
ênfase excessiva na datação, característica específica desse gênero de continuará existindo no lugar um mercado semelhante à Meca, e também a
epigrafia tumular do Sahel dessa época. escritura, o Corão. Essa inscrição pode ser identificada no sítio arqueológico
com a cidade de Tadmekka de que falam as fontes medievais, cujo nome é
Há uma inscrição curiosa, pois ela não está num túmulo, está num grafito, e uma expressão berbere que significa “aqui está verdadeiramente Meca”. É a
se limita a uma declaração de data, simplesmente diz: “Este é o ano 404”, que transferência de um espaço simbólico para o Sahel, mas também a
corresponde ao período de 1013 a 1014. É um dado aparentemente sem entronização de um certo tipo de atividade econômica e de legitimidade
nenhuma importância porque não está acoplado a nenhum evento histórico, política. Uma cidade como Meca, pela sua importância religiosa na Arábia, era
não está acoplado ao nome de ninguém, é uma simples declaração de ano, e um território neutro, onde pessoas que, encontrando-se em qualquer outro
é interessante que uma pessoa tenha achado importante declarar tão alto o lugar, saltariam umas contra as outras, ali podiam conviver em paz, pois o
fato de que era este ano. Outro fato curioso nesta inscrição é que ela não espaço de Meca era sagrado e o derramamento de sangue, impensável.
comporta nenhuma frase inicial dizendo “Em nome de Deus”, como
geralmente todo texto muçulmano comporta; tampouco consta o nome de O que se estava estabelecendo no Sahel era um centro comercial e religioso
quem a escreveu, nem está dirigida a ninguém, é simplesmente uma semelhante à Meca, não só pelo nome, mas também pelo fato de funcionar
declaração de tempo. Esta inscrição é emblemática dessa preocupação com o como espaço neutro para receber caravanas, muitas vezes organizadas por
calendário mundial, não local, um calendário que permitisse ao Sahel viver em grupos que podiam ser, em outras circunstâncias, rivais, mas que podiam
sincronia com outras regiões do mundo, e faz parte desse processo que convergir sobre Tadmekka e proceder ali a trocas comerciais em paz.
podemos chamar de extroversão, em que o Sahel se interessa e se volta para
dados culturais externos. Tadmekka não era governada por um poder militar, um estado capitaneado
por guerreiros. Era como muitas outras cidades comerciais saarianas,
Mas não há só a questão do tempo, há também a reorganização do governada por pessoas que se propunham um status de certa santidade e,
mapeamento do espaço, de maneira a ultrapassar o espaço local e incluir portanto, sua autoridade política, que lhes permitia controlar atividades
espaços muito mais vastos, o espaço do mundo inteiro, em teoria. Esse econômicas de vastas confederações tribais, era uma atividade decorrente
mapeamento consistiu em pôr o Sahel dentro desse mapeamento centrado na desse status religioso que se atribuíam, e que outros lhes reconheciam.
cidade de Meca, um mapeamento islâmico, estabelecido pela disciplina física
de rezar cinco vezes por dia em direção à Meca, mas também pelo A transferência de Meca para o Sahel é também a introdução no Sahel desse
posicionamento do corpo na sepultura, e, com isto, o posicionamento das tipo de legitimidade político-religiosa, que permitia a grupos sem exércitos
lápides inscritas sobre ela. Tudo isso funcionava como uma espécie de bússola mobilizados exercerem um poder considerável na região. O Islã é, portanto,
que, ao muçulmano, indicava o leste, a direção de Meca, e dava a direção importante também como uma doutrina que provê a região com esse tipo de
geral de cada um dos outros pontos cardeais. Não é mera coincidência que na legitimidade.
língua tuaregue, por exemplo, o nome dos pontos cardeais tenha a ver com o
nome do leste em árabe e tenha a ver, também, com nomes derivados de A Inscrição da rainha Suwa é uma pedra de mármore que veio de Almeria, no
outras palavras árabes - o mapa muçulmano marcou profundamente o mapa sul da Espanha, que comemora a morte de uma rainha ao norte da cidade de
local. Gao, o que indica como essas ligações transaarianas eram também caminhos
para a introdução de estratégias de legitimização política. Os reis de Gao não
importaram inscrições em mármore somente da Espanha. Essa importação de
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inscrições era uma importação de bens de consumo conspícuos, porque a a respeito de regiões no vale do Níger, às quais se atribuem, em certa época,
maioria dos súditos do rei de Gao talvez fosse incapaz de ler essa inscrição, governantes judaicos, ou grupos de artesãos praticando o judaísmo. Essa é
que além do mais está escrita em caracteres árabes cúficos, mais difíceis de uma das muitas questões ainda a investigar na história da região.
ler do que outros tipos disponíveis de letras árabes.
No estudo das tradições desses povos do Sahel duas grandes barreiras foram
A importação de uma inscrição da Espanha fazia parte de um outro processo criadas, primeiro pelo colonialismo e depois pelo nacionalismo pós-colonial.
necessário à entronização, que consistia em que o rei de Gao recebesse um Pelo colonialismo, quando dividiu a região entre um império de língua francesa
sabre e um exemplar do Corão enviados pelo califa, neste caso o califa de e um império de língua inglesa. A maior parte do Sahel está, na verdade, na
Córdoba, Espanha. Não há nenhuma prova de que isso realmente acontecesse, região que foi parte da língua francesa, mas há prolongamentos até o norte da
e de que os califas de Córdoba realmente enviassem um sabre e um exemplar Nigéria, onde essa divisão criada pelo colonialismo se faz sentir.
do Corão a cada rei de Gao que se instalava no poder, mas isso era o que era
declarado na corte de Gao a visitantes que nos deixaram a informação A divisão criada pelo nacionalismo pós-colonial é mais séria ainda no caso do
registrada por escrito no século XI. Portanto, embora a maioria dos súditos Sahel, e se acompanha de especializações no mundo acadêmico. Por exemplo,
não fosse capaz de ler essa inscrição, o simples fato de ter a possibilidade de o nacionalismo tuaregue de língua berbere, que afirma a necessidade de
importar de tão longe um objeto de consumo tão conspícuo e tão raro, defender e fazer renascer a sua cultura. Esse nacionalismo se acompanha de
adicionava algo à autoridade do soberano de Gao. comportamentos acadêmicos de certos departamentos universitários, que se
ocupam única e exclusivamente dos tuaregues e do estudo da língua berbere
Parte do processo de extroversão consiste em que agências locais trabalhem e de suas tradições, e não se preocupam com nada do que está em volta. De
com a intenção de monopolizar os idiomas novos ou as mercadorias novas, modo semelhante, o nacionalismo étnico dos songhai, inspira investigações
que se tornam disponíveis através desse processo, como fonte de poder acadêmicas que se preocupam simplesmente com os songhai, não prestam
próprio. E era exatamente isso que fazia a elite em Gao e em outras regiões nenhuma atenção aos fulani, aos tuaregues ou a outras populações.
do Sahel.
O resultado de tudo isso são histórias várias que servem a glorificações
O processo de extroversão não era tampouco um processo de braços abertos nacionais várias, cada povo se intitulando um passado glorioso totalmente
em que, com uma amistosidade infinita, o Sahel se apronta a apreender o independente e diferente do passado dos outros. É aquele cálculo um pouco
resto do mundo e o resto do mundo se apronta a abraçar o Sahel com amor. simplório que todo nacionalismo faz, de que é necessário a cada nação possuir
Era uma luta pelo poder em que a abertura das portas e a introdução de um passado distinto e glorioso. Ora, o que acontece aqui é que cada povo tem
idiomas novos era calculada por muitos como uma oportunidade de acréscimo vivido em simbiose com muitos outros, porque quem ocupa um espaço nessa
de poder e de monopólio de autoridade. região não pode viver somente do que se produz naquele nicho ecológico, é
muito raro que isso aconteça. Um tuaregue não pode viver sem cereais, e os
Nesse processo de contato com o Islã houve um terceiro elemento envolvido, cereais de que ele necessita para viver têm de vir de fora do nicho ecológico
o elemento judaico. Havia uma comunidade judaica importante na região dos que ele ocupa. Da mesma forma a carne, ou até, simplesmente, o adubo
oásis de Tuwat, e sabemos que ela existia, no mínimo, desde o século XIV, animal que um cultivador songhai precisa para a sua cultura, tem de vir dos
porque foi encontrada aí uma inscrição datada de 1329 da era cristã e 5089 da rebanhos dos nômades que ocupam um outro nicho ecológico. E, da mesma
era judaica. Essa comunidade existiu e manteve relações comerciais com o forma que tem havido essa simbiose econômica, que tampouco foi um idílio
Sahel até o final do século XV, quando foi massacrada e eliminada; os amoroso, houve toda uma história de lutas de poder em que um grupo
sobreviventes emigraram para outras regiões mais ao norte. Que escravizou ou oprimiu outro. Porém, há uma simbiose fundamental, que é o
conseqüências culturais e religiosas poderá ter tido a presença dessa respaldo da existência de todos eles, e se estende também à tradição histórica.
comunidade do Tuwat sobre o Sahel? É uma questão ainda muito pouco É possível mostrar que tradições que aparentemente são o mais songhai
estudada, mas há, certamente, lendas registradas pelas crônicas de Tombuctu possível, porque falam da origem da sua identidade e da origem da realeza,
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na verdade permanecem obscuras até as compararmos com tradições que são
correntes entre os tuaregues. Sem entender o modelo do oposto, expresso de
maneira mais clara por essas tradições tuaregues, fica simplesmente
impossível alcançar o significado completo do que estão dizendo as tradições
songhai. Por isto, a única perspectiva que se pode adotar no estudo dessa
região que é, ao mesmo tempo, uma janela para o mundo e uma região de
variedade ecológica e cultural, é, precisamente, uma perspectiva regional.
Quem quer que adote uma perspectiva local, concentrada num micro-universo
étnico, num mundo lingüístico particular, corre sempre o risco de não poder
estudá-lo bem. É preciso pôr lentes que permitam um ângulo mais largo e, na
medida em que sejam vistos juntos, o tuaregue, o fulani, o songhai e o mandê
ou o dogon, será possível começar a entender como as coisas se passaram.
Portanto, qualquer fuga dessa escala regional para uma escala menor, incorre
num risco histórico muito grande, que é o risco de perder o fio da história, o
risco de perder de vista a direção dos processos que realmente tiveram lugar
nessa região.