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Paulo Fernando de Moraes Farias.

Sahel: a outra costa da África 1


dentro do grupo, e o contrário também acontece. Ademais, trata-se de
99 populações africanas nos dois lados dessa divisão.
Palestra de Paulo Fernando de Moraes Farias
USP, São Paulo, 29 de setembro de 2004 A África é o continente onde a humanidade tem tido presença por mais longo
Casa das Áfricas / PUC / USP tempo, é precisamente aí onde se encontra a maior acumulação de mutações
Transcrição de Daniela Baudouin fortuitas, que é uma das principais fontes de diferença entre os grupos
humanos. Portanto os berberes, as populações ditas bidan, os mouros, os
tuaregues, não devem ser tratadas como às vezes o são, como populações
Sahel: a outra costa da África estrangeiras à nossa definição de África; são populações geneticamente
aparentadas, e o fato de que a diferença de aparência física entre esses
[...] Há toda uma disciplina – a paleo-climatologia – que se preocupa em grupos não seja muito grande, não vem apenas da intensidade de
estudar sedimentos no fundo dos lagos da África e a espessura dos anéis de miscigenação, que tem acontecido através dos séculos, vem também do fato
crescimento vegetal, através da qual é possível lançar um olhar de volta ao de que de princípio elas também não eram muito diferentes, elas são
passado e tentar reconstituir que tipo de clima existiu, por exemplo, no século descendentes de ancestrais comuns. Esse é um dado genético que é
XI ou no século VIII da era cristã. Há uma variação considerável... se necessário ter sempre em mente. A informação que temos a respeito das
olharmos para esse sítio arqueológico que é (inaudível), que pode muito bem populações do Saara e do Sahel através da história, deixa claro que grupos
corresponder a uma cidade medieval muito conhecida: Awdahust. As que hoje são identificados como grupos bidan eram, originalmente, grupos
descrições que temos dela na Idade Média sugerem uma possibilidade de negros, e vice-versa: grupos que hoje são classificados como
cultivo em escala relativamente grande, possibilidade essa que já não existe. É indisputavelmente grupos sudan eram, originalmente, bidan. É possível
muito possível que a isoieta que passava por Tegdaost já não passe mais; a mostrar isso em detalhe em países como o Senegal e a Mauritânia.
linha que indica a precipitação pluvial que passava ao norte da cidade, hoje
passa mais ao sul. Mas, essa fímbria, essa margem, que é uma fronteira entre As diferenças étnicas no Sahel estão intimamente ligadas à especialização em
o deserto do Saara e a África tropical, não deve ser vista como uma margem tarefas econômicas e à exploração de nichos ecológicos. Os bidan, em teoria,
ou uma fronteira que divide duas ondas ecológicas bem diferenciadas, pois há não são cultivadores, são gente que cria camelos. Os sudan são cultivadores
trocas muito importantes entre uma zona e a outra. O Sahel é, na verdade, ou criadores de gado. Essa descrição não funciona na prática, porque cada
uma articulação central num sistema de trocas e de relacionamentos, que grupo de população no Sahel explora as possibilidades que tem numa
envolve economia, cultura e outras atividades. determinada situação climática e ecológica. Então, um grupo negro que
tradicionalmente se dedicou ao cultivo da terra e que, de repente, se encontra
Costuma-se fazer, em relação ao Sahel, uma divisão entre populações ditas de numa situação em que o cultivo da terra não é mais possível ou não é mais
cor branca e de cor negra, e essa classificação não é feita apenas por olhares rentável, pode optar por mudar de estilo de vida, de passar, por exemplo, à
estrangeiros, também é referida pelas tradições do próprio Sahel. Afirma-se criação de camelos.
que há uma África branca ao norte do Sahel, de populações como os mouros
da Mauritânia, que falavam berbere numa época recuada da história, e que Fontes árabes medievais nos mostram mais de um caso desse processo, como
hoje falam árabe, ou como os tuaregues do Mali e do Níger; e ao sul, uma o das populações que fundaram a cidade de Tadmekka ou Es Souk. Uma fonte
África negra de populações como os mandê, os songai e muitas outras. No medieval indica claramente que esse era um grupo de origem meridional e
entanto, esta afirmação é uma simplificação excessiva e quase absurda, pois negro que, pouco a pouco, mudou seu estilo de vida, cessou de viver no sul
não há uma divisão clara de dois grupos de cor de pele diferente. A divisão dedicado ao cultivo da terra e passou a criar camelos e a viver junto com
que se faz, muito freqüentemente, emprega dois nomes: bidan e sudan; os outros grupos que criavam camelos, e que eram bidan. Através de matrimônio,
primeiros sendo os brancos, e os segundos, os negros. Mas, na verdade, as através de mistura, passaram a ser um grupo branco, e muitos dos grupos
populações ditas brancas têm uma grande mistura de populações negras brancos têm uma cor bastante escura. Essa divisão entre brancos e negros
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deveria ser deixada de lado e substituída por uma outra, uma classificação Há duas maneiras de olhar para esse fenômeno, uma é o que poderíamos
baseada no tipo de trabalho, no tipo de exploração econômica que cada grupo chamar a maneira clássica, que consiste em dizer: houve uma penetração do
pratica numa determinada situação histórica e numa determinada conjuntura continente africano por influências culturais e econômicas vindas do
climática. Mediterrâneo, vindas do Oriente Próximo, que passaram através do Saara e
transformaram o que está do outro lado do deserto. Trata-se daquela
Essa zona saheliana de trocas e de relacionamentos parece ter sido assim linguagem que fala em conversão dos africanos ao Islã, ou penetração do
desde muito antes do grande comércio transaariano das grandes rotas, que foi Corão na África. É uma linguagem que precisa ser criticada, pois ela produz
um fenômeno relativamente tardio. Parece que os gregos, ou o próprio automaticamente uma imagem de passividade histórica. A África saariana e
império romano, tiveram contatos esporádicos através do deserto com a África saheliana aparecem, à luz desse discurso, como quase que desprovidas de
saheliana e com a África tropical. Os grandes contatos regulares se agência histórica, como receptores mais ou menos passivos de influências
desenvolvem a partir do segundo século da era cristã, com a difusão da vindas de fora. Porém, é preciso ver este processo, não como penetração, mas,
presença do camelo no Saara e com a formação de grandes tribos nômades. A pelo contrário, como extroversão.
grande tribo nômade presente no deserto tampouco existiu eternamente,
houve um processo de colonização de uma área ecológica difícil, que só pôde Extroversão é um conceito que está se tornando muito popular em estudos
acontecer quando o camelo ficou disponível. Há uma grande massa de africanos, principalmente para estudos de períodos mais recentes da história
vegetação e uma quantidade grande de água no deserto que está africana, como, por exemplo, o estudo da atual cultura popular africana, que
irregularmente distribuída e varia muito de ano para ano, e o nomadismo é a absorve tanta coisa que vem do outro lado do Atlântico, e que se transforma.
única estratégia econômica que permite a exploração desses recursos. Na Contudo, eu proponho a utilização desse conceito para a época inicial do
medida em que grandes tribos nômades passaram a existir, também guias e tráfego transaariano. A aplicação do conceito a esse processo consiste em
organizadores de caravanas para comerciantes, estabelecidos no norte, propor que o que aconteceu, na verdade, dentro das sociedades sahelianas foi
passaram a descer até o sul; mas este fenômeno se dá depois da vinda do islã um grande interesse de conhecer o externo, e de se apropriar de idiomas
e dos árabes ao norte da África, isto é, começa de uma maneira sistemática a externos para re-dizer coisas que eles diziam antes, de outra maneira. Não
partir dos anos 800. Já na segunda metade do século VIII, ao redor de 780, digo isso de um ponto de vista romântico, negando a importância das
há sinais de tráfego transaariano, mas deveu-se, principalmente, porque nesse influências externas, mas chamo a atenção para o fato de que as influências
período houve, por assim dizer, um estreitamento do deserto, houve maiores externas, por elas mesmas, não teriam tido efeito considerável se não
precipitações pluviais, tanto no norte quanto no sul. Havia mais água no Saara, houvesse já, na própria sociedade do Sahel, uma receptividade ativa e um
portanto ficava mais fácil atravessá-lo, e é desse período que datam essas interesse ativo em receber essas coisas de fora e em retrabalhá-las. Então, o
grandes rotas e que datam os grandes contatos entre o norte e o sul. enigma a decifrar é: porque de repente houve esse interesse? Em primeiro
lugar, se tivesse havido interesse antes, os meios de satisfazê-lo não existiam,
A arqueologia, ao estudar lugares como a cidade de Djenné ou de Gao, no porque a passagem através do Saara era extremamente difícil. Quando o
arco oriental da curva do Níger, pôde mostrar a existência de sociedades camelo e a caravana tornaram o Saara permeável, o Sahel pôde interessar-se
complexas e de complexos urbanos altamente organizados antes do começo pelo mundo de fora, e pôde começar a ter uma participação nele, pois nessa
do tráfego transaariano sistemático. Essa é precisamente uma das época do desenvolvimento do tráfego transaariano, a África saheliana
contribuições mais recentes e mais interessantes ao estudo da região, o fato intervém de uma maneira bastante firme, bastante decisiva, nos eventos
de que cada vez mais se tem acesso à evidência que mostra que a origem de históricos que estão acontecendo fora dela. O grande exemplo disso é um
grandes estados, de sociedades complexas e grandes complexos urbanos movimento que começou no século XI, ao norte do rio Senegal, justamente na
precedeu, na verdade, o estabelecimento do comércio transaariano. Contudo, região da cidade de Awdaghust, e também na região da cidade de Azugi, um
não há nenhuma dúvida de que o estabelecimento desse comércio movimento político-religioso que se expandiu para o norte, conquistou o que
transaariano fez uma enorme diferença à história da África. hoje é o Marrocos, conquistou o que hoje é a parte ocidental da Argélia, e não
ficou por aí, passou adiante, cruzou os estreitos e conquistou uma boa parte
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do que era na época a Ibéria muçulmana, do que veio a ser a Espanha e do Sahel e a África tropical, se amplia, para abranger trocas com o norte da África
que veio a ser Portugal. Esse é um dos raros exemplos em que vemos na e com o Oriente Médio, o ouro, que está no sul, na África tropical, passa a ser
história um império africano vindo bem do sul, não vem da África do norte, importantíssimo.
mas do Saara ocidental.
Esse é um período em que havia o que se pode chamar de uma fome de ouro
[(interrupção) ...chegando até a Europa meridional...] meridional em Sevilha, na Europa e poucas possibilidades de acesso a ele. A África tropical, a partir
mas que tinha a sua metrópole no sul do Marrocos, em Marrakesh, e cuja do desenvolvimento do tráfego transaariano, veio a ser a América antes da
força principal era constituída por contingentes sahelianos de gente que não América, o lugar onde a Europa podia, não só a Europa cristã, mas o mundo
falava árabe, em sua maioria falava berbere, e que incluía também Mediterrâneo, incluindo a Europa muçulmana, se aprovisionar em ouro. Esse
contingentes negros do vale do Senegal. Isto pode ser usado como argumento circuito de trocas se estende, portanto, a regiões bastantes ao sul, e tudo isso
para sublinhar o fato de que o que estava acontecendo naquela época não era passa pelo Sahel. Para que essas trocas comerciais fossem possíveis, foi
simplesmente uma conversão da África saheliana ao Islã, nem simplesmente necessário que certos fatores se pusessem em ação. O primeiro desses fatores
uma introjeção do Islã na África saheliana, mas era uma extroversão da foi a presença de comerciantes vindos de fora da África, vindos do norte; no
própria África saheliana. A África saheliana busca novos idiomas e novas Sahel, esses comerciantes eram muçulmanos. A característica mais
estratégias, e essas estratégias e esses idiomas que são de status, digamos, interessante da vinda deles é a de que eles não deveriam ter vindo. As
internacional, são necessariamente islâmicos, porque o mundo externo, autoridades religiosas do norte da África não proibiam a vinda de caravanas
acessível ao Sahel, na época, era o mundo islâmico. A população entra em muçulmanas ao sul, mas as desencorajavam fortemente, sistematicamente.
contato com idiomas novos para tratar do tempo, para mapear o espaço do Esse processo se deu por uma razão muito simples. Quem vive numa
próprio Sahel, para legitimar o poder político, para descrever formas novas de sociedade muçulmana, de acordo com a lei muçulmana, sabe que vive de
acumulação de riqueza na região. acordo com regras muito precisas a respeito de assuntos como divisão de
propriedade e a distribuição de herança. Mas quando um comerciante, ou um
Esse processo de abertura do Sahel ao exterior não é um processo em que as grupo de comerciantes, deixava uma sociedade islamizada, ao norte da África,
portas são abertas para que tudo entre, é um processo em que o próprio e vinha para o sul, entrava em territórios onde a lei do país não era a lei
Sahel sai de si mesmo para invadir a Espanha, o Marrocos ou a Argélia. É um islâmica. Se, por acaso, um desses comerciantes morria, deixando herança e
processo que tem que ser visto desse ponto de vista. Estou falando, dívidas, não haveria segurança de que sua propriedade seria administrada de
naturalmente, de grandes tropas através do Saara, mas há outras tropas uma maneira legal à lei da luz muçulmana. E é por esta razão que havia o
importantes que passavam entre o Sahel e as regiões africanas mais ao sul. desencorajamento. Mas a atração do ouro ao sul do Saara foi demasiado forte
Por exemplo, se olharmos o mapa há símbolos que representam as minas de para que essas proibições tivessem efeito por muito tempo. É um desses
sal, as de cobre e as de ouro. Há dois minerais cuja distribuição é muito casos em que membros de uma cultura navegam cuidadosamente ao redor
característica; as minas de ouro estão no que hoje são a República de Gana, a das proibições que sua própria cultura estabelece, e esse é um dos
República da Costa do Marfim, República do Mali e República do Senegal. Não mecanismos que permitem mudanças na história e na cultura.
há minas de ouro no Saara. O que há ali – em Teghaza, Taoudeni, Erbed, e
assim por diante – são grandes minas de sal. O sal é uma substância vital aos Assim, esses muçulmanos, sem deixar de, por isso, serem muçulmanos pios e
moradores do interior da África tropical, que têm uma grande necessidade obedientes à lei do Islã, fecharam os ouvidos a essas recomendações, a esses
fisiológica de sal e muito pouca possibilidade de se aprovisionarem em sal desencorajamentos, e continuaram; ora vindo eles mesmos ao sul, ora
localmente. Portanto, a troca deve ter existido desde um período muito financiando essas vindas.
remoto entre o sal, trazido para o sul pelos habitantes do deserto, e o cereal,
cultivado no sul pelos que viviam ao longo do vale do Níger e do vale do A presença do Islã é uma presença importante, e uma das características
Senegal. Outros produtos também, como a noz de cola, vieram do sul, e, na centrais dela é ter sido uma presença pacífica. O Sahel nunca foi conquistado
medida em que esse circuito, a princípio limitado a trocas entre o deserto, o por nenhum exército islâmico vindo do norte, a não ser muito mais tarde, já
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no final do século XVI, durante todo o período que corresponde no Sahel à tão grandes, têm ocorrido em Gao, outras de grande porte em Djenné,
Idade Média européia. É um comércio pacífico, são comerciantes viajantes, alguma coisa em Tombuctu, muito pouco em Tadmekka ou Es Souk. Contudo,
missionários, que vêm, atravessam o deserto e se estabelecem na região. Essa são suficientes para que se possa, por exemplo, deduzir que certos tipos de
penetração pacífica se acompanha de concessões feitas pelos estados do sul, vidro que são encontrados no Sahel foram trazidos por comerciantes, pois era
que tinham interesse em manter essa presença e, por isso mesmo, estão vidro produzido no norte da África, na Tunísia, por exemplo; certo tipo de
dispostos a modificar costumes importantes em sua sociedade e, assim, lâmpada a óleo, que foi encontrado na cidade de Tagdawest (Awdahust) pode
facilitar a vida desses estrangeiros que chegavam através do Saara. Isso fica ser facilmente ligado a modelos de lâmpadas do mesmo tipo que eram
muito claro em descrições de cerimonial em cortes africanas, do qual fazia produzidas no norte da África, e assim por diante. A arqueologia nos diz tudo
parte da etiqueta real local que um súdito, ou qualquer pessoa de status não isso, o que ela não nos dá são textos ou informações verbais de qualquer tipo,
real, ao penetrar na corte, se prosternasse diante do rei e que, muitas vezes, a não ser, muito raramente, quando ao arqueólogo acontece desenterrar uma
lançasse um pouco de poeira sobre a cabeça. Isto era anátema para um inscrição.
muçulmano ortodoxo, porque o ato de prosternação ocorre precisamente na
prece dirigida a Deus, e não deve ser dirigido a um soberano deste mundo. O Outra grande categoria de documentos que existem são tratados escritos na
que as fontes medievais nos contam é que o rei de Gana se mostrou Idade Média por pessoas que vinham ou do norte da África ou da península
perfeitamente satisfeito em eximir os muçulmanos desse costume. Se você ibérica. Essas pessoas escreviam por interesse político ou comercial, algumas
não fosse muçulmano, ao entrar na corte estava obrigado a se prosternar; se delas à serviço do califado de Córdoba, outras a serviço do califado que existiu
você fosse muçulmano, simplesmente batia as mãos, como se estivesse na Tunísia no século X. São documentos escritos por pessoas que tinham
aplaudindo, e isso era aceito pelo rei como reverência suficiente. Então, houve muito pouca abertura ao tipo de cultura existente no Sahel na época, portanto
sempre esse jogo, os que viviam no sul queriam conservar a presença dos que são fontes que devem ser utilizadas tendo em conta de que se trata de um
viviam no norte, queriam atraí-los mais, e os que vinham do norte, por sua olhar extremamente externo, de pessoas que reuniam informações de
vez, faziam concessões, sendo que a maior delas era a de evitar proselitismo. comerciantes, de visitantes que geralmente não passavam ali muito tempo e
O Islã chega ao Sahel na Idade Média e, ao contrário do que acontecia não tinham tempo suficiente para se adentrarem no conhecimento da
naquela época histórica em outras regiões do mundo, não chega como uma sociedade local. Um outro tipo de documento escrito é uma coleção de
religião proselitista, uma religião que se esforça para converter outros - crônicas que foi escrita muito mais tarde na cidade de Tombuctu, no século
conversões acontecem, mas não há um esforço sistemático. O Islã estabelece- XVII, e que são documentos que continuamos a utilizar.
se como a cultura ou religião daqueles que praticam no Sahel o comércio
internacional. Ao mesmo tempo, a própria presença de comerciantes Quanto à documentação oral, há um vasto corpo de tradições orais, sobretudo
muçulmanos engendra uma correspondência na sociedade do Sahel, na qual ao sul, e também em outras regiões, como no planalto onde está a cidade de
grupos de pessoas começam a se dedicar a esse comércio internacional e Tadmekka. Durante muito tempo acreditou-se que seria possível reunir todos
começam a participar de todo o circuito que envolve comércio e religião. Visto os dados que se pôde obter das fontes escritas, das fontes orais e da
que as rotas transaarianas de comércio servem também para que as pessoas arqueologia, e pôr tudo junto numa espécie de soma aritmética. Isso se
viagem à Meca em peregrinação, há uma combinação constante de fatores revelou inviável, porque, ao invés de se juntarem pacificamente e de
religiosos e de fatores econômicos. colaborarem para nos dar, no fim de tudo, um grande panorama de
conhecimento histórico, essas diferentes categorias de fontes subvertem-se
Como é que se pode saber disso tudo? Há três grandes tipos de umas à outras e se contradizem freqüentemente. Então, um tipo de criticismo
documentação histórica que nos permitem dizer alguma coisa sobre isso. Um é mais sofisticado teve de ser introduzido pouco a pouco, com alguma
a arqueologia e o que as escavações arqueológicas são capazes de descobrir a dificuldade, a partir da década de 1970, deixando para trás uma excessiva
respeito da cultura material do Sahel na época. Tem havido escavações de esperança, que havia nos anos sessenta, de que reunindo fontes orais e
grande porte em lugares como Awdahust e Kumbi Saleh, que foram grandes escritas, e arqueologia, se chegaria a uma visão panorâmica muito rica e bem
cidades comerciais na Idade Média. Escavações também importantes, mas não detalhada do que tinha acontecido no passado africano.
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Há, finalmente, um outro tipo de fonte feita por gente do local, do próprio Há uma região do Sahel, que é a pátria das inscrições árabes datadas, onde
Sahel, escrita e contemporânea dos fatos que descreve. Esse tipo de fonte são há vários cemitérios, em cidades como Bentyia, Gao, Saney e Es Souk. Em
inscrições árabes ou inscrições berberes que começaram a existir em certas toda esta área, onde inscrições árabes se estabeleceram tão bem, havia uma
regiões do Sahel, da África ocidental, desde o século XI, e que continuaram particularidade importante: antes da escrita árabe chegar, já existia outra
sendo feitas, internamente datadas, até o fim do século XV. A partir dessa escrita, uma escrita africana que precedeu o árabe na região. Essa escrita, o
época o costume de datar essas inscrições desaparece. Há uma grande tifinah, se fazia, e se faz, com caracteres diferentes do árabe, e transcrevem
mutação cultural e quem fazia a inscrição ou deixa de fazer ou a faz sem uma língua que não é o árabe, é o berbere. Mas, neste caso, a escrita não é
utilizar mais o calendário, sem pôr o ano ou o século no texto da inscrição. usada em inscrições tumulares, trata-se de grafitos. Tifinah é uma palavra que
Esse tipo de fonte foi pouco utilizado até hoje. significa, basicamente, letras, caracteres gráficos, é um plural e é provável que
se refira a um adjetivo púnico. Há especialistas que tentaram ligar a origem da
Há uma espécie de grande divisão vertical que passa a leste de Tombuctu; escrita tifinah à escrita dos cartagineses do norte da África e, em última
quem viaja de Tombuctu para o oeste não acha inscrições medievais; quem instância, à escrita dos fenícios. Por outro lado, há outros que defendem a
viaja de Tombuctu para o leste até Agadez, quem visita Es Souk, Gao ou tese de que essa escrita se originou localmente, a partir de signos gráficos
Bentyia encontra vastos cemitérios cheios de inscrições árabes datadas. utilizados por artesãos para marcar trabalhos de cerâmica ou em metal, ou por
Porque essa diferença, porque essas duas metades do Sahel são tão proprietários de animais para marcar os seus camelos. Esta é uma disputa
diferentes nesse particular? Não há uma resposta absolutamente certa, mas sobre a qual muito se tem escrito.
há respostas hipotéticas que podemos considerar. Em primeiro lugar, o fato de
o Islã ter chegado ao Sahel não significaria, necessariamente, que a prática de As inscrições tifinah não contêm nenhuma data; a outra característica delas é
criar inscrições deveria chegar junto, pois dentro da própria tradição islâmica, que participam de um tipo de escrita cujo uso foi totalmente diferente dos
embora inscrições fúnebres fossem feitas desde uma época bastante inicial da usos da escrita árabe. É utilizada para fins pessoais, lúdicos, uma escrita sem
sua história, houve sempre uma grande resistência a elas. Para muitas das solenidade, que não está ligada à expressão do poder, nem à glorificação de
autoridades em lei islâmica que dissertaram sobre o assunto, fazer inscrições é reis e príncipes, é uma escrita demótica, usada por indivíduos do povo para
um ato de impiedade, a morte é um decreto divino que deve ser aceito tal falar sobre seus namorados e suas namoradas e para dizer: eu estive aqui, ou
qual. Construir sobre o túmulo, pôr uma bela lápide de mármore encima dele, fiz isso ou aquilo. Não há, por exemplo, a não ser muito raramente, inscrições
e ainda inscrever um texto nessa lápide, se assemelha a uma reação que tumulares escritas em tifinah. Esta é uma escrita que trata de coisas da vida,
poderia ser considerada como um desafio ao decreto divino sobre a morte de mas que não trata de todas as coisas da vida, pois é especializada em certos
quem ali está enterrado. As mesmas autoridades que recomendavam aos assuntos.
muçulmanos do norte da África que, se possível, desistissem de vir fazer
comércio no sul, recomendavam que não se levantasse nenhuma construção, O tifinah pode ser escrito de cima para baixo, de baixo para cima, da direita
nem se pusesse nenhuma inscrição sobre o túmulo de um muçulmano. Então, para a esquerda, da esquerda para a direita, ou também em zigue-zague.
as pessoas que se converteram ao Islã no sul tinham uma escolha a fazer: Uma inscrição típica simplesmente diz: “sou eu”. Geralmente, as inscrições
qual das duas atitudes elas iriam seguir. começam com uma afirmação do eu, “sou eu”. “Sou eu Fátima, filha de Dris,
que digo: eu saúdo Agbadi, filho de Agnii, minha parte no filho de Agnii está
(trecho sem gravar) garantida”. Essa é uma inscrição bastante inocente, há outras até um pouco
menos inocentes, mas é extremamente comum que o texto delas seja uma
[...] Espanha, e que era um movimento extremamente puritano, resistiu à mensagem de amor trocada entre pastores, escrita por homens ou por
prática de inscrever lápides tumulares, mas há uma razão provavelmente mais mulheres.
forte que explica o que aconteceu.
Essa escrita, hoje em dia, faz parte do domínio do nacionalismo berbere. As
culturas berberes desde a década de setenta se têm reconhecido como
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culturas vitimadas na Argélia ou no Mali, onde a língua berbere não recebeu o No oeste, onde hoje é a Mauritânia, embora ainda existam minorias que falam
mesmo status oficial de línguas como o árabe ou o bamaná. Portanto, a berbere, perdeu-se a tradição de uma escrita especificamente berbere, não há
afirmação da escrita tifinah faz parte de um movimento de renascimento da escrita tifinah, e tampouco houve tradição medieval de inscrições tumulares
consciência nacional berbere, e o uso do computador têm tornado muito fácil em árabe. Já no leste, onde o tifinah continua a existir, o árabe se afirmou
a modernização dessa escrita. Era uma escrita que não separava as palavras, nesse terreno de inscrições tumulares.
e que não usava símbolos para as vogais. Hoje em dia há tentativas de
escrever em tifinah separando palavras, de produzir textos que sejam É possível chamar a atenção para o fato de que não fora simplesmente uma
perfeitamente compatíveis com a produção de um livro legível para quem penetração do Islã, que chega com sua bagagem e se estabelece, tal qual,
tenha se dado ao trabalho de aprender o alfabeto tifinah. como veio. A região onde o Islã aporta faz uma filtragem, e adota esta ou
aquela parte da bagagem. Uma parte do Sahel adota a parte X da bagagem,
A presença do tifinah parece ter funcionado em relação ao árabe como um que, no entanto, é rejeitada em outra região. Há sempre um trabalho de
desafio ou como uma provocação. A escrita árabe constrói o espaço do filtragem e de busca, idiomas novos estão chegando, e estão sendo solicitados
muçulmano, é um dos recursos através dos quais se pode fazer de um espaço a vir, mas estão sendo também filtrados e re-trabalhados.
um espaço muçulmano, com uma inscrição religiosa na parede ou com uma
lápide tumular inscrita em árabe. Quando o Islã chega a essa parte do Sahel, Um dos idiomas novos que chega é o calendário muçulmano. Os calendários
o espaço dos vales, as paredes das montanhas estavam cheias já de inscrições saarianos que existem nessa região, calendários não muçulmanos, não
em tifinah, inscrições que falavam de tudo menos de Deus, inscrições que se anotam nem o século nem o ano, o ano não é identificado por um número, é
ocupavam do prazer. Penso que como uma espécie de reação a isso, ou como identificado por um nome. Por exemplo, se aconteceu qualquer coisa o ano
uma espécie de afirmação da identidade religiosa do Islã, os muçulmanos passado, poderemos dizer: aconteceu no ano do gafanhoto – se, por acaso,
locais tomaram a peito a tarefa de multiplicar a escrita árabe no local, com o houve uma praga de gafanhotos –; e se aconteceu alguma outra coisa
intuito de que o espaço não ficasse abandonado, por assim dizer, à escrita inusitada, se um avião explodiu em determinada cidade, pode-se dizer que
tifinah. E se era uma coisa feita contra a proibição dos doutores do norte da isso aconteceu no ano em que o avião explodiu.
África, que continuavam dizendo “não se deve fazer inscrição”, havia algo
novo que o muçulmano podia dizer agora. As pessoas são capazes de guardar um número respeitável de anos pelo nome
desses anos, indo 50, 60, 70 anos para trás, mas como não há notação de
Uma das razões pelas quais não há inscrições tumulares em tifinah é porque século, a partir de certo momento fica difícil manter uma cronologia detalhada
um tuaregue não deve pronunciar o nome de um morto, por uma questão de e extensa. Ora, uma das transformações culturais que ocorrem no Sahel nesse
etiqueta, mas também por uma questão relativa a crenças a respeito do momento é a adoção de outro tipo de calendário, que envolve uma concepção
mundo dos espíritos, crenças que existiam entre os tuaregues muito antes de vetorial do tempo, como uma flecha que está avançando, e vai sempre
o Islã ter chegado. Os muçulmanos, ao fazerem inscrições em árabe e ao adiante. Os calendários locais contavam o tempo de modo diferente, o tempo
acrescentarem o nome do morto, estão negando a crença existente na região, quase que girava em torno a uma estação chuvosa, sem essa preocupação de
de que isso poderia trazer conseqüências espirituais muito perigosas. ênfase vetorial.

A feitura de inscrições, que a princípio seria uma infração do comportamento O comércio trans-saariano opera uma mudança cultural que cria uma
legal islâmico, torna-se cada vez mais uma afirmação do Islã, porque o necessidade, um desejo por esse tipo de calendário novo, que se expressa nas
simples fato de inscrever o nome dos mortos vai contra a prática da cultura inscrições da região de uma maneira que chega a ser excessiva, o que
anterior, da cultura não-islâmica que existia na região. Essa talvez seja a denuncia o fato de que havia um interesse extremamente forte na introdução
explicação de por que, exatamente nas regiões onde as inscrições em tifinah desse novo calendário. Nas regiões mais clássicas do Islã, na Espanha
são tão abundantes, as inscrições árabes também o são. muçulmana ou no Oriente Médio, uma lápide tumular simplesmente oferecia a
data, dizia “morreu no dia tal do mês tal do ano tal”, e, muitas vezes, aí
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terminava. Uma larga proporção das inscrições do Sahel, além de exprimir a Há uma inscrição que corresponde a um estágio ainda mais avançado nesse
data dessa maneira, adiciona uma série de outras expressões que reforçam no processo de mapeamento, onde não se trata simplesmente de pôr o Sahel no
leitor a consciência de que ele está lidando com uma data muçulmana. Após a mapa geral do território islâmico, trata-se de criar dentro dele uma espécie de
data do falecimento vem uma frase dizendo um ano do calendário do profeta símile, de contrapartida à própria cidade de Meca. Há, por exemplo, uma
ou um ano da era muçulmana; e, às vezes, isso é repetido. Há uma espécie de inscrição que diz que foi escrita por fulano, e prossegue, dizendo que
ênfase excessiva na datação, característica específica desse gênero de continuará existindo no lugar um mercado semelhante à Meca, e também a
epigrafia tumular do Sahel dessa época. escritura, o Corão. Essa inscrição pode ser identificada no sítio arqueológico
com a cidade de Tadmekka de que falam as fontes medievais, cujo nome é
Há uma inscrição curiosa, pois ela não está num túmulo, está num grafito, e uma expressão berbere que significa “aqui está verdadeiramente Meca”. É a
se limita a uma declaração de data, simplesmente diz: “Este é o ano 404”, que transferência de um espaço simbólico para o Sahel, mas também a
corresponde ao período de 1013 a 1014. É um dado aparentemente sem entronização de um certo tipo de atividade econômica e de legitimidade
nenhuma importância porque não está acoplado a nenhum evento histórico, política. Uma cidade como Meca, pela sua importância religiosa na Arábia, era
não está acoplado ao nome de ninguém, é uma simples declaração de ano, e um território neutro, onde pessoas que, encontrando-se em qualquer outro
é interessante que uma pessoa tenha achado importante declarar tão alto o lugar, saltariam umas contra as outras, ali podiam conviver em paz, pois o
fato de que era este ano. Outro fato curioso nesta inscrição é que ela não espaço de Meca era sagrado e o derramamento de sangue, impensável.
comporta nenhuma frase inicial dizendo “Em nome de Deus”, como
geralmente todo texto muçulmano comporta; tampouco consta o nome de O que se estava estabelecendo no Sahel era um centro comercial e religioso
quem a escreveu, nem está dirigida a ninguém, é simplesmente uma semelhante à Meca, não só pelo nome, mas também pelo fato de funcionar
declaração de tempo. Esta inscrição é emblemática dessa preocupação com o como espaço neutro para receber caravanas, muitas vezes organizadas por
calendário mundial, não local, um calendário que permitisse ao Sahel viver em grupos que podiam ser, em outras circunstâncias, rivais, mas que podiam
sincronia com outras regiões do mundo, e faz parte desse processo que convergir sobre Tadmekka e proceder ali a trocas comerciais em paz.
podemos chamar de extroversão, em que o Sahel se interessa e se volta para
dados culturais externos. Tadmekka não era governada por um poder militar, um estado capitaneado
por guerreiros. Era como muitas outras cidades comerciais saarianas,
Mas não há só a questão do tempo, há também a reorganização do governada por pessoas que se propunham um status de certa santidade e,
mapeamento do espaço, de maneira a ultrapassar o espaço local e incluir portanto, sua autoridade política, que lhes permitia controlar atividades
espaços muito mais vastos, o espaço do mundo inteiro, em teoria. Esse econômicas de vastas confederações tribais, era uma atividade decorrente
mapeamento consistiu em pôr o Sahel dentro desse mapeamento centrado na desse status religioso que se atribuíam, e que outros lhes reconheciam.
cidade de Meca, um mapeamento islâmico, estabelecido pela disciplina física
de rezar cinco vezes por dia em direção à Meca, mas também pelo A transferência de Meca para o Sahel é também a introdução no Sahel desse
posicionamento do corpo na sepultura, e, com isto, o posicionamento das tipo de legitimidade político-religiosa, que permitia a grupos sem exércitos
lápides inscritas sobre ela. Tudo isso funcionava como uma espécie de bússola mobilizados exercerem um poder considerável na região. O Islã é, portanto,
que, ao muçulmano, indicava o leste, a direção de Meca, e dava a direção importante também como uma doutrina que provê a região com esse tipo de
geral de cada um dos outros pontos cardeais. Não é mera coincidência que na legitimidade.
língua tuaregue, por exemplo, o nome dos pontos cardeais tenha a ver com o
nome do leste em árabe e tenha a ver, também, com nomes derivados de A Inscrição da rainha Suwa é uma pedra de mármore que veio de Almeria, no
outras palavras árabes - o mapa muçulmano marcou profundamente o mapa sul da Espanha, que comemora a morte de uma rainha ao norte da cidade de
local. Gao, o que indica como essas ligações transaarianas eram também caminhos
para a introdução de estratégias de legitimização política. Os reis de Gao não
importaram inscrições em mármore somente da Espanha. Essa importação de
Paulo Fernando de Moraes Farias. Sahel: a outra costa da África 8
inscrições era uma importação de bens de consumo conspícuos, porque a a respeito de regiões no vale do Níger, às quais se atribuem, em certa época,
maioria dos súditos do rei de Gao talvez fosse incapaz de ler essa inscrição, governantes judaicos, ou grupos de artesãos praticando o judaísmo. Essa é
que além do mais está escrita em caracteres árabes cúficos, mais difíceis de uma das muitas questões ainda a investigar na história da região.
ler do que outros tipos disponíveis de letras árabes.
No estudo das tradições desses povos do Sahel duas grandes barreiras foram
A importação de uma inscrição da Espanha fazia parte de um outro processo criadas, primeiro pelo colonialismo e depois pelo nacionalismo pós-colonial.
necessário à entronização, que consistia em que o rei de Gao recebesse um Pelo colonialismo, quando dividiu a região entre um império de língua francesa
sabre e um exemplar do Corão enviados pelo califa, neste caso o califa de e um império de língua inglesa. A maior parte do Sahel está, na verdade, na
Córdoba, Espanha. Não há nenhuma prova de que isso realmente acontecesse, região que foi parte da língua francesa, mas há prolongamentos até o norte da
e de que os califas de Córdoba realmente enviassem um sabre e um exemplar Nigéria, onde essa divisão criada pelo colonialismo se faz sentir.
do Corão a cada rei de Gao que se instalava no poder, mas isso era o que era
declarado na corte de Gao a visitantes que nos deixaram a informação A divisão criada pelo nacionalismo pós-colonial é mais séria ainda no caso do
registrada por escrito no século XI. Portanto, embora a maioria dos súditos Sahel, e se acompanha de especializações no mundo acadêmico. Por exemplo,
não fosse capaz de ler essa inscrição, o simples fato de ter a possibilidade de o nacionalismo tuaregue de língua berbere, que afirma a necessidade de
importar de tão longe um objeto de consumo tão conspícuo e tão raro, defender e fazer renascer a sua cultura. Esse nacionalismo se acompanha de
adicionava algo à autoridade do soberano de Gao. comportamentos acadêmicos de certos departamentos universitários, que se
ocupam única e exclusivamente dos tuaregues e do estudo da língua berbere
Parte do processo de extroversão consiste em que agências locais trabalhem e de suas tradições, e não se preocupam com nada do que está em volta. De
com a intenção de monopolizar os idiomas novos ou as mercadorias novas, modo semelhante, o nacionalismo étnico dos songhai, inspira investigações
que se tornam disponíveis através desse processo, como fonte de poder acadêmicas que se preocupam simplesmente com os songhai, não prestam
próprio. E era exatamente isso que fazia a elite em Gao e em outras regiões nenhuma atenção aos fulani, aos tuaregues ou a outras populações.
do Sahel.
O resultado de tudo isso são histórias várias que servem a glorificações
O processo de extroversão não era tampouco um processo de braços abertos nacionais várias, cada povo se intitulando um passado glorioso totalmente
em que, com uma amistosidade infinita, o Sahel se apronta a apreender o independente e diferente do passado dos outros. É aquele cálculo um pouco
resto do mundo e o resto do mundo se apronta a abraçar o Sahel com amor. simplório que todo nacionalismo faz, de que é necessário a cada nação possuir
Era uma luta pelo poder em que a abertura das portas e a introdução de um passado distinto e glorioso. Ora, o que acontece aqui é que cada povo tem
idiomas novos era calculada por muitos como uma oportunidade de acréscimo vivido em simbiose com muitos outros, porque quem ocupa um espaço nessa
de poder e de monopólio de autoridade. região não pode viver somente do que se produz naquele nicho ecológico, é
muito raro que isso aconteça. Um tuaregue não pode viver sem cereais, e os
Nesse processo de contato com o Islã houve um terceiro elemento envolvido, cereais de que ele necessita para viver têm de vir de fora do nicho ecológico
o elemento judaico. Havia uma comunidade judaica importante na região dos que ele ocupa. Da mesma forma a carne, ou até, simplesmente, o adubo
oásis de Tuwat, e sabemos que ela existia, no mínimo, desde o século XIV, animal que um cultivador songhai precisa para a sua cultura, tem de vir dos
porque foi encontrada aí uma inscrição datada de 1329 da era cristã e 5089 da rebanhos dos nômades que ocupam um outro nicho ecológico. E, da mesma
era judaica. Essa comunidade existiu e manteve relações comerciais com o forma que tem havido essa simbiose econômica, que tampouco foi um idílio
Sahel até o final do século XV, quando foi massacrada e eliminada; os amoroso, houve toda uma história de lutas de poder em que um grupo
sobreviventes emigraram para outras regiões mais ao norte. Que escravizou ou oprimiu outro. Porém, há uma simbiose fundamental, que é o
conseqüências culturais e religiosas poderá ter tido a presença dessa respaldo da existência de todos eles, e se estende também à tradição histórica.
comunidade do Tuwat sobre o Sahel? É uma questão ainda muito pouco É possível mostrar que tradições que aparentemente são o mais songhai
estudada, mas há, certamente, lendas registradas pelas crônicas de Tombuctu possível, porque falam da origem da sua identidade e da origem da realeza,
Paulo Fernando de Moraes Farias. Sahel: a outra costa da África 9
na verdade permanecem obscuras até as compararmos com tradições que são
correntes entre os tuaregues. Sem entender o modelo do oposto, expresso de
maneira mais clara por essas tradições tuaregues, fica simplesmente
impossível alcançar o significado completo do que estão dizendo as tradições
songhai. Por isto, a única perspectiva que se pode adotar no estudo dessa
região que é, ao mesmo tempo, uma janela para o mundo e uma região de
variedade ecológica e cultural, é, precisamente, uma perspectiva regional.
Quem quer que adote uma perspectiva local, concentrada num micro-universo
étnico, num mundo lingüístico particular, corre sempre o risco de não poder
estudá-lo bem. É preciso pôr lentes que permitam um ângulo mais largo e, na
medida em que sejam vistos juntos, o tuaregue, o fulani, o songhai e o mandê
ou o dogon, será possível começar a entender como as coisas se passaram.
Portanto, qualquer fuga dessa escala regional para uma escala menor, incorre
num risco histórico muito grande, que é o risco de perder o fio da história, o
risco de perder de vista a direção dos processos que realmente tiveram lugar
nessa região.

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