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Tulio Kahn
Fundação Espaço Democrático, Brazil, São Paulo
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Sumário:
1) Quantas armas de fogo existem, de que tipo e qual o perfil dos usuários?
Perfil dos proprietários de armas
2) Quão envolvidas estão as armas de fogo nos crime violentos?
Perfil das vítimas e dos autores dos homicídios
3) As armas de fogo detém o crime ou tornam a violência com armas mais provável?
4) Em que medida o controle sobre as armas de fogo reduz a disponibilidade de armas
e seu uso nos crime violentos.
Efeitos indesejados do Projeto de Lei.
Bibliografia
Notas
A constatação feita pelas Nações Unidas de que o Brasil ocupa o primeiro lugar em
termos de homicídios praticados por armas de fogo, somada a visita recente do
presidente Fernando Henrique Cardoso à Inglaterra - que desde 1997 proíbe a posse
de armas de fogo pelos cidadãos - e os incidentes envolvendo adolescentes que
atiraram em colegas e professores em escolas norte-americanas reabriram o debate
sobre a contribuição das armas de fogo para a violência. Por iniciativa do governo
federal, o Congresso discute no momento um projeto de lei versando sobre a proibição
de venda e posse de armas de fogo no país. A proposta vem sendo debatida também
pela sociedade e nos meios de comunicação, provocando reações intensas entre os
contendores, que polemizam sobre seus efeitos práticos e legais. Muitas "pesquisas" e
"dados" estatísticos são invocados para ilustrar os argumentos contra ou a favor da
medida. Não é preciso dizer que estas pesquisas e dados são muitas vezes distorcidos
em favor dos argumentos que se procura provar e quase sempre são omitidas as
fontes e a metodologia com que foram obtidos.
1) Quantas armas de fogo existem, de que tipo e qual o perfil dos usuários?
O contrabando, a subnotificação dos dados oficiais e a ausência generalizada de dados
na área criminal no país tornam difícil responder a esta questão básica, de modo que
os números aqui apresentados serão bastante imprecisos. As inconsistências são
várias, mas ainda assim é possível fazer algumas estimativas, se assumirmos como
verdadeiras algumas pressuposições.
Se considerarmos como válidas - ao menos para uma estimativa das armas legais - as
respostas dadas em pesquisas de vitimização e de opinião pública realizadas em São
Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, sobre posse de arma de fogo na residência, então,
em média, 7% dos domicílios brasileiros tem armas de fogo em casa. Uma vez que
existem cerca de 39,6 milhões de domicílios particulares permanentes no país (IBGE,
1996), isto representaria a existência de 2.771.934 armas legais.
Se for correta a estimativa de 2,5 milhões de armas registradas somente em São Paulo
e Rio, neste ritmo seriam necessários 70 anos para retirá-las de circulação, sem falar
nas não registradas. Nem os registros oficiais nem as pesquisas de vitimização, como
vimos, abrangem o universo das armas clandestinas. Seria possível chegar a uma
estimativa se soubéssemos quantas armas legais a polícia encontrou nas investigações
e não apenas as armas apreendidas. Mas mesmo esta estimativa seria enviesada pois
a polícia não para aleatoriamente qualquer pessoa, mas antes pessoas "suspeitas", o
que poderia inflar artificialmente a proporção de armas ilegais em circulação. Em
outras palavras, a amostra policial é enviesada.
Tipo de arma
O argumento de que os crimes não são efetuados com as armas legais mas sim com
as armas contrabandeadas, de calibre grosso, é falacioso. Outra pesquisa feita pelos
sociólogos Leandro Piquet Carneiro e Ignácio Cano, do ISER, revelou que 78% das
armas apreendidas pela polícia, são de procedência nacional, e geralmente roubadas.
Segundo a Divisão de Produtos Controlados da Polícia Civil, cerca de 77.000 armas
foram roubadas (24.673), furtadas (46.869) ou extraviadas (5.509) em 1998, apenas
no Estado de São Paulo, realimentando o mercado ilegal. E provavelmente a
quantidade é maior, se lembrarmos que os proprietários de armas ilegais e mesmo
muitos proprietários de armas legais deixam de registrar a ocorrência na polícia. Se
levarmos em consideração que as armas atualmente nas mãos dos criminosos são
armas que um dia foram legais e que foram roubadas ou furtadas, então,
teoricamente, uma diminuição geral na quantidade de armas legais poderá ocasionar
também uma queda na quantidade de armas ilegais em circulação, caso esta demanda
não seja suprida pelo contrabando. De fato, existem indícios de que isto já esteja
acontecendo: a queda no volume de compras de armas legais em São Paulo fez com
que diminuíssem os roubos e furtos de armas nas mãos de pessoas jurídicas (bancos,
empresas de vigilância, etc.) A média anual de roubos e furtos de armas de pessoas
jurídicas no Estado de São Paulo caiu de 225 por mês, em 1997 e 1998, para 165 por
mês, até junho de 1999.
Com relação ao perfil das residências onde existiam armas de fogo, levantado pela
pesquisa de vitimização em São Paulo, constatou-se que sua existência era
proporcionalmente maior quando os moradores eram mais ricos e escolarizados:
somente 4% dos entrevistados com escolaridade até o 1º grau afirmaram ter arma de
fogo em casa, em contraste com 15% dos entrevistados com formação superior. Com
respeito a renda familiar, somente 3% dos entrevistados com renda até R$ 780,00
disseram possuir armas, em contraste com 19% dos entrevistados com rendimentos
superiores a R$ 2340,00. Ao menos no que diz respeito às armas "confessáveis", sua
existência é claramente maior entre os mais ricos e escolarizados, que, não por acaso,
são as maiores vítimas dos crimes contra o patrimônio e os que mais temem ser
vítimas de crimes. Quando perguntadas sobre os motivos pelos quais tem uma arma
de fogo, 58% dos proprietários afirmou tê-las para proteção ou prevenção contra o
crime. Parece existir assim uma relação entre posse de arma de fogo na residência e
probabilidade de vir a ser vítima de crime contra o patrimônio.
Por outro lado, o perfil dos usuários das armas ilegais difere em diversos aspectos do
perfil levantado nas pesquisas de vitimização, segundo dados da Acrimesp. Os homens
ainda são os maiores proprietários das armas ilegais, mas principalmente os de baixa
escolaridade, ao contrário do que ocorre entre os proprietários de armas legais. Cerca
de 77% tinham o primeiro grau incompleto.
O Brasil é não só um dos países que tem uma das maiores taxas de homicídios por 100
mil habitantes como também é o país com a maior proporção de homicídios cometidos
com armas de fogo. Num estudo preparado pelas Nações Unidas abrangendo 69 países
desenvolvidos e subdesenvolvidos, constatou-se que nada menos que 88,39% dos
homicídios brasileiros são cometidos com armas de fogo, o campeão entre todos os
países pesquisados: dentro de um universo de cerca de 50.000 homicídios perpetrados
em 1996, 45.000 o foram com armas.
Esta proporção é corroborada por outras fontes: o anuário 1997 do DHPP de São
Paulo, que trata somente dos homicídios de autoria desconhecida, informa que,
naquele ano, a arma de fogo foi o instrumento utilizado em 91% das mortes (4255 em
4684 homicídios).
Esta mesma pesquisa apontou que 90% dos roubos praticados no Brasil o são com a
utilização de armas de fogo (225.000, num universo de 250.000 roubos e furtos em
1996). Esta proporção faria do Brasil um dos países com maior proporção de roubos
com armas de fogo, entre os 69 pesquisados. Lembre-se todavia que estamos falando
dos roubos notificados e que existe uma tendência de notificação maior dos crimes
mais sérios, como os cometidos com armas de fogo. Isto pode explicar as diferenças
entre as taxas oficiais e as encontradas nas pesquisas de vitimização.
Com efeito, as pesquisas de vitimização fornecem alguns outros indícios do uso das
armas de fogo nos crimes violentos contra o patrimônio. As vítimas de assalto
entrevistadas em 1997 disseram que em 69% dos casos os agressores tinham uma
arma qualquer (inclusive arma branca) durante o crime e em 40% dos casos esta
arma era um revólver, proporção inferior à encontrada no estudo das Nações Unidas,
que utiliza estimativas oficiais.
A explicação para a baixa proporção de armas de fogo nos casos de ofensas sexuais
pode residir no relacionamento entre vítima e agressor: em ambos os casos, os
agressores são, em boa parte das vezes, conhecidos da vítima, como colegas de
trabalho, amigos, namorados ou ex-namorados, parentes, etc. A ofensa sexual,
diferentemente dos assaltos, ocorre quase sempre dentro da casa ou no trabalho da
vítima.
Com a possível exceção das ofensas sexuais, a armas de fogo estão claramente
envolvidas em muitos crime violentos no Brasil, especialmente homicídios, lesões
corporais e roubos.
As maiores vítimas das armas de fogo são os homens, jovens e pobres, moradores da
periferia. O citado anuário do DHPP aponta que 93% das vítimas de homicídio por
autoria desconhecida em São Paulo eram do sexo masculino (4471 dos 5145 mortos).
A maior parte destas mortes esteve concentrada nas faixas entre 18 e 26 anos de
idade (42%). Estes dados são bastante conhecidos de modo que não é preciso repisá-
los aqui. O ponto intrigante é o seguinte: se é verdade que o uso de armas pelo
cidadão comum tende a se voltar contra ele ou membros de sua família e, por outro
lado, se também é verdade que são as classes mais abastadas as que
proporcionalmente mais tem armas (quase 20% dos entrevistados com rendas
superiores), como explicar este perfil das vítimas de homicídio ? Não deveríamos
esperar uma proporção maior de indivíduos de outras faixas etárias, classe social e
gênero entre as vítimas de homicídio ?
Esta aparente contradição entre perfil dos proprietários e perfil das vítimas só pode ser
compreendida se lembrarmos que 1) este perfil esboçado pela pesquisa de vitimização
diz respeito aos proprietários das armas legais. As armas ilegais, por outro lado, -
como corroboram as apreensões feitas pela polícia - encontram-se em grande parte,
precisamente, nas mãos de homens, jovens e pobres, moradores de periferia. 2) É
preciso também ressaltar novamente a questão do contexto: não é a mera quantidade
de armas, per si, que provoca a violência, mas sim a existência de armas num
contexto violento. Assim, mesmo que existam mais armas entre os mais ricos, eles
não precisam ser necessariamente as vítimas preferenciais da violência. Armas, assim
como bebidas ou drogas, são fatores criminógenos, que podem ou não contribuir para
a eclosão da violência. Quanto mais violenta for a sociedade em questão, maior o dano
potencial destes fatores.
3) As armas de fogo detém o crime ou tornam a violência com armas mais
provável?
Os Estados Unidos, alias, diferem da Europa com relação a este aspecto, onde é muito
maior a proporção de homicídios entre conhecidos. Isto significa que é preciso ser
cuidadoso com o uso de dados norte-americanos ou outros que sugerem reduzido
efeito do controle de armas nos crimes violentos, simplesmente porque o perfil dos
assassinatos e de outros crimes é diferente de país para país. Além disso, como vimos,
a porcentagem de homicídios cometidos com armas de fogo varia conforme o país: nos
Estados Unidos - para ilustrar novamente as diferenças e o perigo de "importar"
pesquisas sem atentar para o contexto - 66,1% dos homicídios (13000 em 19645)
foram cometidos com armas de fogo, enquanto esta proporção no Brasil é superior a
88%. Significa também dizer que, qualquer que seja o efeito geral do controle das
armas de fogo sobre os homicídios, eles serão maiores no Brasil do que nos EUA.
Mesmo nos Estados Unidos, todavia, estudos sugerem que a existência de armas de
fogo em casa aumenta a probabilidade de violência letal. Conforme Barkan, muitos
estudos feitos nos EUA encontraram uma correlação, ainda que pequena, entre
disponibilidade de armas e homicídios. No Brasil, encontramos esta relação entre taxa
de homicídios por arma de fogo por 100 mil e número de armas vendidas por 100 mil
para o ano de 1998 (r =.40) mas não encontramos esta correlação quando
correlacionamos com os dados de vendas de 1997. Na tabela 2, com países em
desenvolvimento, a correlação foi corroborada (taxa geral de disponibilidade de armas
nas residências X % de homicídios cometidos com armas de fogo: r = 0.46). Martin
Killias também encontrou uma correlação significativa entre porcentagem de casas
com armas de fogo e porcentagem de homicídios por 1 milhão de habitantes cometidos
com armas de fogo, analisando os dados de 16 países desenvolvidos (r = 0.47)
Nas duas outras tabelas que tomam os países como unidades de análise, encontramos
também casos desviantes: entre os países em desenvolvimento, Filipinas tem muitas
armas e reduzida taxa de homicídios enquanto na Costa Rica e Argentina a situação se
inverte. Entre os desenvolvidos existe o caso clássico da Suíça, onde cerca de um terço
das casas tem armas e as taxas de homicídio são pequenas e o caso oposto da Irlanda
do Norte. Todos estes casos sugerem que, tão ou mais importante do que a
quantidade de armas é o contexto dentro da qual elas se inserem. O mesmo número
de armas produz efeitos muito mais danosos em países desiguais e injustos como o
Brasil e os Estados Unidos, onde existe uma aceitação cultural da violência e a vida
perdeu seu valor, do que em países "pacificados" como a Suíça.
A arma é apenas uma substância crimogênica, como o álcool e as drogas, e seu perigo
é tanto maior quanto piores as condições circundantes. Isto explica porque mesmo
sendo os mais ricos que possuem proporcionalmente ma is armas, sejam os pobres as
maiores vítimas dos homicídios, porque a Suíça não é a campeã mundial de
assassinatos ou o Rio Grande do Sul.
Quanto a natureza dos homicídios, no Brasil, os dados são esparsos, mas sugerem a
existência de um elevado percentual de mortes cuja autoria não pode ser imputada a
criminosos, mas antes a pessoas comuns, sem antecedentes criminais, mas que
perderam a cabeça num momento de tensão. Segundo o sociólogo Guaracy Mingardi,
autor de uma pesquisa sobre a violência na Zona Sul de São Paulo, 48,3% dos
homicídios naquela região decorriam de motivos fúteis, como discussões em bares,
brigas de trânsito ou conflitos de vizinhança. Pesquisa recente do Iser com crimes
violentos cometidos no Rio de Janeiro no mês de março de 1998 revelou, com base em
164 ocorrências com vítimas fatais, que em 58 casos existia um relacionamento entre
autor e vítima, ou seja, 35,4 % dos casos.
Algumas outras características dos homicídios, como dia da semana e horário em que
acontecem, sugerem a mesma interpretação: o anuário do DHPP de 1997 mostra que
40% dos homicídios acontece nos finais de semana, entre 23:00 e 03:00 da
madrugada. A não ser que se consiga demonstrar que, por algum motivo obscuro, os
criminosos atuam mais nas madrugadas dos finais de semana, estas características
temporais levam a crer que se trata em boa parcela de homicídios de autoria passional
ou por motivo fútil, em decorrência da ingestão de bebida alcoólica ou mesmo de
drogas. Existe um outro dado curioso e que ilustra bem a natureza passional ou
fortuita de boa parte dos crimes contra a pessoa: tradicionalmente, as taxas de
reincidência das pessoas que cometeram crimes contra a pessoa (homicídios e lesões)
são menores do que as das pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio. A
explicação para isso é a de que, entre os condenados por crimes contra a pessoa,
temos muitas pessoas sem antecedentes criminais, que eventualmente cometeram
crimes, cumpriram sua pena e retornaram à sociedade e jamais voltaram a cometer
crime s.
São estes crimes passionais, fúteis, ou como quer que se os chame, os tipo de crimes
que podem ser reduzidos com o desarmamento da população, e não são poucos.
Até agora nos detivemos na relação entre disponibilidade de armas de fogo e crimes,
relação que, como vimos, é controversa. Bem menos polêmica é a associação entre
disponibilidade de armas de fogo e quantidades de suicídios e lesões acidentais. Entre
as 42.900 pessoas mortas por armas de fogo em 1995 no Brasil, 1200 (2,7%)
envolveram-se em acidentes e 700 (1,6%) cometeram suicídio. Tanto as taxas de
acidentes quanto as taxas de suicídio são maiores entre os profissionais que trabalham
armados, como os policiais, e estes incidentes estão associados não só ao caráter
estressante da profissão como principalmente à disponibilidade de armas de fogo.
Todos passam por momentos de angústia mas para pessoas com acesso a uma arma é
mais fácil passar da intenção ao ato. Martin Killias, comparando a disponibilidade de
armas em 18 países desenvolvidos com as respectivas taxas de suicídio por milhão de
habitantes, encontrou que a porcentagem de suicídios cometidos por arma de fogo
aumenta dramaticamente com o aumento na disponibilidade de armas ( r = .92,
Killias, 1992). A correlação entre disponibilidade de armas e suicídios é tão forte que
vários autores, incluindo Killias, sugerem que, na ausência de informações sobre
quantidade de armas de fogo numa região, as informações sobre suicídio com armas
de fogo podem mesmo ser utilizadas como um substituto (tecnicamente, uma variável
"proxi").
Correlacionando a taxa de armas de fogo por 100 mil habitantes com a taxa de suicídio
com armas de fogo por 100 mil habitantes nos Estados, encontramos uma correlação
positiva e significativa entre os indicadores (.53), corroborando assim o encontrado em
outras pesquisas.
Até fevereiro de 1997, o porte ilegal de armas de fogo no Brasil era apenas uma
contravenção penal, punida sem muita severidade. A partir do início daquele ano, de
acordo com a Lei nº 9437/97, o porte de arma de fogo sem registro e sem autorização
competente transformou-se em crime, sendo punido com maior rigor. A lei previa o
prazo de alguns meses para que as pessoas regularizassem a situação de suas armas,
que de outro modo se tornariam ilegais.
Uma maneira alternativa de avaliar o efeito da nova lei é atentar para os números de
vendas de armas, que caem abruptamente de 1995 para 1998, em quase todos os
Estados, com exceção do Acre, Amazonas, Alagoas e Rio de janeiro. No país como um
todo, segundo a Associação Nacional de Armas e Munição, as indústrias venderam
86.857 armas em 1995. Em 1997 as vendas caíram para 41.424 unidades e no ano
passado, segundo a fabricante de armas Taurus, as lojas revenderam para o público
apenas 17.531 armas em todo o país, além de 8.000 mil para empresas de segurança,
totalizando 25.531 armas. (Isto É/1548, 2/6/99). Isto significa que, qualquer que
tenha sido o efeito da legislação, não foi ela a única ou a principal razão da queda em
todos os Estados pois a lei que transformou o porte ilegal de contravenção em crime é
de fevereiro de 1997, enquanto que as reduções nas vendas começaram pelo menos
desde 1995.
Quando observamos os registros e concessões de armas do Estado de São Paulo, fica
evidente que as quedas no volume de armas legais em circulação começaram pelo
menos 3 anos antes da mudança legal. O ponto de inflexão no Estado foi 1995, quando
as concessões caem dramaticamente, em função de uma determinação do governo
estadual.
É preciso lembrar também que, não obstante as apreensões feitas pela polícia e a
redução de registros e concessões, o estoque atual de armas é bastante elevado e
muitos anos serão necessários para que ele diminua substancialmente.
Uma característica adicional da lei proposta pelo governo federal é a compra das
armas pelo Estado por um valor em torno de R 150,00, que é o custo de um revólver
usado no mercado paralelo. Se, numa hipótese remota, todas as 7,5 milhões de armas
cadastradas fossem entregues, isto representaria um gasto de 1,1 bilhões de reais.
Trata-se de um bom investimento dos recursos públicos ?
Estes três experimentos são ilustrativos mas são bastante diferentes do que se propõe
aqui. A proposta governamental concilia proibição e recompra; é uma proposta
nacional e não local, de modo que é indiferente de onde as armas estejam sendo
atraídas e, com o valor pago, qualquer que seja ele, não será possível adquirir armas
legais no mercado, uma vez que o comércio estará igualmente proibido. Não se pode
portanto inferir a priori que a recompra será malsucedida, caso implementada.
Em todo caso, Sherman sugere a existência de meios mais efetivos para combater a
violência com armas de fogo, como os colocados em prática em Kansas e Boston. Nas
duas cidades a polícia reforçou a busca de armas ilegais em grupos de risco, em locais
e horas de risco. Em Kansas, as apreensões de armas ilegais aumentaram 60% na
área enfocada e os crimes com armas de fogo diminuíram 49%. Em Boston, onde a
ação foi centrada nos jovens, também reduziram-se os crimes perpetrados com armas
de fogo.
Além das apreensões de armas feitas pela polícia em locais e horas "quentes", no
âmbito legal, existem nos Estados Unidos diversas propostas alternativas ao
banimento total de armas, uma vez que a constituição americana - diferentemente da
brasileira - garante expressamente aos cidadãos o direito de portar armas. Entre as
propostas que tramitam atualmente nos legislativos dos Estados norte-americanos,
estão, por exemplo:
Limitação de venda: "uma -arma-por pessoa-por mês", para evitar grandes compras
dirigidas ao mercado clandestino.
i. Comprovação de residência;
iii.Inspeções periódicas;
iv.As idades mínimas e máximas como critério para a posse de arma de fogo: O limite
de idade máxima foi considerado importante porque encontra-se associado tanto com
a habilidade mental quanto física da pessoa. A discussão também tratou da freqüência
dos exames médicos conforme o envelhecimento das pessoas licenciadas. Foi
recomendado a exigência do exame médico uma vez por ano para pessoas licenciadas
com mais de sessenta anos de idade.
vi.Foi dada ênfase ao treinamento do uso de armas de fogo: Onde possível deve haver
um sistema de credenciamento de instrutores de armas de fogo;
Os Estados Membros recomendaram que é essencial para o controle das armas de fogo
as inspeções regulares, a supervisão apropriada, audiências periódicas e a acusação
por negligência.
Bibliografia
Barkan, Steven. Criminology - a sociological understanding. Prentice Hall, New Jersey,
1997.
Del Frate, Anna Alvazzi. Viticm of Crime in the Developing World. United Nations
Interregional Crime and Justice Research Institute . Publication nº
57, Roma, 1998.
Del Frate, Anna Alvazzi; Zvekic, Ugljesa e Van Dijk, Jan. Understanding Crime -
Experiences of Crime and Crime Control. United Nations
Interregional Crime and Justice Research Institute . Publication nº 49, Roma, 1993.
Kahn, Tulio. Pesquisas de Vitimização. Revista do Ilanud n° 10. São Paulo, 1998.
Regulamentação de Armas de Fogo nas Américas. Revista do Ilanud n° 11. São Paulo,
1998.
Sherman, Lawrence e outros. Preventing Crime: what works, what doesen´t what´s
promising. University of Maryland, 1997.
United Nations International Study on Firearm Regulation. United Nations, Nwe York,
1998.
Notas
2 Outras fontes falam em até 3,7 milhões de armas no Estado de São Paulo. A
estimativas para o Rio de Janeiro é de 1 milhão de armas registradas.
3 É difícil dizer se existem mais armas na zona urbana ou na zona rural. Na zona
urbana é provável que existam mais armas adquiridas para fins de proteção contra o
crime, enquanto na zona rural podem existir mais armas compradas para prática de
caça, defesa contra animais, esportes, herdada de antepassados, etc.
4 Uma pesquisa do tipo "self-repport crime" realizada com 1800 adolescentes pela
Faculdade de Medicina da USP, perguntou aos alunos das escolas
públicas e particulares quantos tinham levado armas para a escola no último ano. Nas
escolas particulares, 3% dos estudantes confessaram ter levado
uma arma de fogo, porcentagem que se eleva a 5% entre os estudantes da rede
pública. (Folha de S.Paulo, 10/01/99, C3.p4) Em ambos os tipos de
escola, portar arma constitui-se em comportamento tipicamente masculino.
6 Levantamento com base em 1775 casos de flagrante de porte ilegal de arma, entre
março e outubro de 1998, pela Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de
São Paulo.
7 Os jornais e o próprio ministro da justiça do Brasil tem citado dados de uma pesquisa
realizada pela OAB, segundo a qual apenas uma em cada 16 pessoas que reagem com
armas a um assalto é bem sucedida. Não se sabe ao certo, contudo, como, quando ou
por quem foi feita esta pesquisa, amplamente divulgada. É preciso saber se a pesquisa
levou em conta somente os assaltos que foram notificados à polícia, deixando de fora
os assaltos que foram evitados (e, por isso, não notificados).
8 Segundo a Educational Fund to End Handgun Violence, 28% dos homicídios norte-
americanos tiveram origem em discussões ("arguments"), 9% ocorreram durante
roubos, 6% estiveram relacionados a gangues e 6% a drogas.
9 Lembre-se que é uma estimativa da quantidade de armas legais e que toma por
base as vendas de 1997 e 1998, já afetadas pela legislação e pelas campanhas de
desarmamento.
10 A elevada taxa de armas por 100 mil habitantes no Rio Grande do Sul pode ser
explicada de várias maneiras. Trata-se de uma região de fronteira, com tradição militar
e, não por acaso, é onde estão localizadas as maiores indústrias de armas do país.
12 A lei propõe ainda que o crime por porte de arma de fogo seja inafiançável, o que
também nos parece demasiado. Não tem sentido colocar na cadeia - especialmente as
nossas cadeias - alguém que possui uma arma de fogo, fato que até alguns anos atrás
era considerado mera contravenção penal. Uma punição mais adequada seria uma
pena restritiva de direito (penas alternativas).