ISSN: 1794-4724
editorial@urosario.edu.co
Universidad del Rosario
Colombia
Resumo Abstract
Esse estudo versa sobre encontros entre a psicologia e This study verses on the meeting of psychology with
o campo das políticas sociais. Objetiva discutir como the social policy area. The objective is to discuss how
psicólogos que atuam em Unidades Básicas de Saúde psychologists that work in the Basic Health Units and in
(UBS) e Centros de Referência de Assistência Social the Social Assistance Reference Centers experience their
(CRAS) vivenciam o cotidiano de suas práticas. Para daily practices. Using the interview and participant ob-
tanto, investigamos os modos de atuar de 13 psicólogos servation methods, we investigated the modes of action
ligados aos serviços indicados por meio de entrevistas e of 13 psychologists involved in these service units. The
da observação participante. Os resultados indicam que results indicate that because these contexts are adverse
por se encontrarem em contextos adversos aos modos to the traditional forms of action, many professionals
tradicionais de atuação, muitos técnicos experimentam experience daily strangeness and discomfort, resulting
cotidianamente estranhamento e mal-estar, frutos da from their encounters with limiting situations of diffi-
vivência de situações limites, de difícil manejo. Além cult management. Furthermore, we observed practices
disso, observamos práticas e vivências marcadas por and experiences that were marked by feelings of com-
sentimentos de compaixão, piedade e pelo ressentimen- passion, pity, and resentment. We consider, finally, that
to. Consideramos, por fim, que o encontro da psicologia the encounter between psychology and social policies
com as políticas sociais exige flexibilidade nos modos requires flexibility in traditional acting modes as well as
tradicionais de atuação e busca de estratégias que con- the pursuit of strategies that consider cultural contexts
siderem as características dos contextos culturais, evi- characteristics, avoiding capture, fatigue and saturation
tando assim processos de captura, cansaço e saturação process that stifle the worker.
que sufocam o trabalhador. Keywords: brazilian psychologist, public health, social
Palavras-chaves: psicólogo brasileiro, saúde pública, protection, subjectivity modes.
proteção social, modos de subjetivação.
Para citar este artículo: Macedo JP, Dimenstein M. (2012) O trabalho dos psicólogos nas políticas sociais no Brasil. Avances en Psicología
Latinoamericana, 30 (1), 182-192
O foco dessas políticas é, no caso da saúde, neira como organizam saberes, práticas e regimes
priorizar ações com base na territorialização do de verdades sobre as formas como adoecem, como
cuidado, tanto em termos da assistência (ação clí- retomam seus estados de saúde, e como enfrentam
nica) à população-usuária, quanto de vigilância sa- suas dificuldades diárias.
nitária, epidemiológica e sobre o ambiente em que Nesse sentido, consideramos que para atuar no
determinado grupo populacional reside (Campos, campo da saúde e da assistência social (ou demais
2003). E no caso da assistência social, que também políticas) no Brasil se faz necessário, cada vez
se refere a uma política que prioriza ações de base mais, uma redefinição dos processos de trabalho e
territorial, garante ações de vigilância, acompanha- de gestão nesse campo (Benevides, 2005; Dimens-
mento e proteção social de indivíduos, famílias e tein, 2006). Mas, para tanto, é preciso ter clareza,
grupos em situação de vulnerabilidade/risco social implicação e disposição afetiva quanto a operar mo-
e pessoal, por não conseguirem prover seu sustento dos de trabalho sob os pressupostos da ação territo-
dado sua condição de exclusão dos processos pro- rial, em rede e intersetorial. Isso exige por parte dos
dutivos, ou pela a exposição: a) frente à condição profissionais o enfrentamento do modo clássico de
de pobreza, preconceito, exploração, violência e organização dos processos de trabalho (e também
abandono/apartação familiar ou social; b) frente às de como os serviços estão organizados), inserir-se
situações de drogadição, alcoolismo, desemprego no trabalho em equipe e transitar por conhecimen-
prolongado e criminalidade; além dos casos em que tos interdisciplinares, além de circular pelas comu-
grupos populacionais são vitimados por situações nidades (Dimenstein, 2006). Na verdade, tais ações
de desastre e/ou acidentes naturais (MDS, 2004). demandam dos psicólogos a desinstitucionalização
O encontro dos psicólogos com esses campos de práticas pouco permeáveis à complexidade da
trouxe uma série de problematizações para a pro- vida das pessoas, das condições de trabalho e dos
fissão, inclusive sobre a necessidade de se operar cenários onde profissionais e usuários interagem.
mudanças na sua base conceitual e técnica para atu- Por isso, propomos com este estudo conhecer e
ação na saúde pública e na assistência social (Lo- discutir as experiências e desafios dos psicólogos
Bianco, Bastos, Nunes & Silva, 1994; Dimenstein, que trabalham na atenção primária à saúde e na
1998, 2006; Lima, 2005; Benevides, 2005; Campos proteção social básica da assistência social, numa
& Guarido, 2007). Isso implica estarmos alerta realidade específica entre umas das capitais do
com a prática de transposição do modelo clínico estado da federação. Nosso interesse é investigar
tradicional para contextos que pedem outros modos sobre os efeitos produzidos no campo das práticas
de ser trabalhador (Dimenstein, 2006; Benevides, profissionais e no campo subjetivo (ou existencial)
2005). Não raro, as equipes profissionais e a pró- dos psicólogos que atuam em Unidades Básicas de
pria rede de serviços encontram-se permeados por Saúde (UBS) e Centros de Referência da Assistên-
modos de trabalho fragmentados, hierarquizados cia Social (CRAS). Foram objetivos desse estudo:
e burocratizados, ou seja, voltados apenas para a a) pensar como esses profissionais atuam e se rela-
afirmação de práticas reducionistas (Campos & cionam com os contextos em que estão inseridos; b)
Guarido, 2007; Vasconcelos, 2009). Tais saberes identificar o que esses campos têm pedido e exigido
e práticas quase sempre não levam em considera- desses profissionais em termos de saberes, práticas
ção as necessidades sociais de saúde e de proteção e disposição afetiva para neles atuar; c) discutir
social, além de não atuarem na defesa de direitos quais pontos críticos esses profissionais têm lidado
que as populações em suas localidades requerem ao se inserirem nesses espaços.
(Benevides, 2005). Além disso, observam-se situa- Acreditamos que o modo como os profissionais
ções em que os saberes especialistas desqualificam problematizam o cotidiano, a forma como articu-
os projetos ou “ideais” de saúde e de vida (Paim, lam/operam seus campos de saberes e práticas,
2006) construídos, normatizados e reiterados, his- têm implicações diretas na maneira como atuam,
tórico-culturalmente, pela própria comunidade (ou inclusive coletivamente e em rede, especialmente
mais singularmente, por cada indivíduo), na ma- na disposição de produzir interferências naquilo
que está instituído, portanto, cronificado. Assim, é à realização desse estudo, e consentiram por escrito
preciso conhecer as relações de forças que confi- participarem do mesmo.
guram os processos de subjetivação nesses espaços A seguir, organizamos um calendário de visitas
e mais ainda, é preciso mapear aquilo que resiste e para cada serviço, no intuito conhecer e vivenciar
escapa às relações de dominação e sujeição em que o seu funcionamento diário, o cotidiano de trabalho
somos investidos e nos produzimos profissionais. dos técnicos e a realidade social em que atuavam.
Diferentemente de décadas anteriores em que Realizamos observação participante (registro no
o psicólogo brasileiro se concentrava em consul- diário de campo) e entrevistas abertas. Nas en-
tórios/ambulatórios isolados e distantes da realida- trevistas com os psicólogos priorizamos não só a
de e do cotidiano da população, hoje, os serviços descrição da rotina e das atividades desenvolvidas
de base territorial, vinculados à saúde pública e à no serviço, mas principalmente as experiências e/
assistência social, constituem-se como um campo ou situações que marcaram de forma singular suas
consolidado de inserção profissional para nossa atuações nos/entre os serviços e nas comunidades.
profissão. É importante ressaltar que o fato de termos
No Rio Grande do Norte (RN), em especial visitado os espaços de atuação desses técnicos
Natal, nosso campo de pesquisa, a ampliação da e conhecer seu cotidiano profissional, além das
presença da psicologia no campo das políticas experiências advindas do seu encontro com uma
sociais não é diferente. Somente na saúde existem determinada realidade social, isso possibilitou o
371 psicólogos na rede SUS em todo o estado, dos mapeamento não só dos modos de atuar desses
quais 222 estão localizados na capital e, desses, 31 profissionais, mas uma espécie de “sobrevoo” por
atuam em Unidades Básicas/Centros de Saúde.1 Na seus territórios afetivos. Para apresentar os resul-
assistência social, contamos atualmente com 202 tados desse estudo, organizamos como categorias
CRAS em 154 municípios, totalizando 193 psicó- de análise: 1) os modos de atuar e os desafios de ser
logos atuando no nível básico da assistência social trabalhador na atenção básica da saúde e na prote-
em todo o estado. A cidade do Natal conta com 10 ção social básica da assistência social; e 2) os mo-
psicólogos nos cinco CRAS da cidade. dos de se relacionar (e subjetivar) desses psicólogos
em relação aos contextos de trabalho e os pontos
Estratégias metodológicas críticos que têm que lidar ao atuar nesses espaços.
1 Disponível em http://w3.datasus.gov.br/datasus/index.php?area=0203
narrativas dos mesmos, momentos de potência e pesquisador) produzindo efeitos que desalinham
produção de movimentos de diferenciação em suas nossas fronteiras identitárias, visto que a intensi-
práticas técnico-profissionais. Inclusive, tendo al- dade do encontro com essas realidades distintas,
gumas vezes, situações em que os entrevistados se com uma pluralidade de forças que geram inúmeras
reconheceram como geradores de ações coletivas e sensações, imagens, pensamentos e ações, indica
problematizadoras do modo como se posicionavam que não há como sair ileso de tais experiências.
em relação aos entraves institucionais e burocráti- Pormenorizando o movimento de alguns afe-
cos dos serviços em que atuavam. tos que conseguimos cartografar na medida em
De uma maneira geral, os relatos referiam sobre que os técnicos produziram suas narrativas sobre
o quanto o encontro com comunidades, em geral as experiências no serviço, identificamos em rela-
de baixa renda, contribuíam para que eles próprios, ção ao mal-estar, que o mesmo derivava tanto dos
os profissionais entrevistados, questionassem suas questionamentos sobre a falta de suporte teórico-
ferramentas de trabalho e o aparato técnico-teórico -técnico e gerencial para melhor desenvolverem
que utilizavam, especialmente por que se tratava de suas funções, quanto em relação à precarização das
contextos que os colocavam em contato direto com condições de trabalho (questões salariais, falta de
pessoas expostas a um cotidiano de miséria, despro- estrutura física, de capacitação e autonomia para o
teção e violência. Ou seja, contextos que expunham desenvolvimento das atividades). Ou seja, condi-
os profissionais a situação de encontrarem-se face ções que acarretavam entre os técnicos frustrações
a face com seus próprios limites. Assim, os relatos visto não realizarem o seu trabalho da forma ide-
dos entrevistados, ora e outra, nos lançava (eles e alizada. Porém, o que mais chamou nossa atenção
a nós próprios que os escutávamos, muitas vezes,) ao longo das entrevistas foram as expressões de
em experiências abismais, que possibilitavam en- inconformação e desconforto dos profissionais em
contrarmos no cotidiano de suas práticas realidades relação à realidade social que atuavam e a clientela
ou posturas tidas como esquisitas ou estranhas, en- que atendiam.
contro com a diferença. Por se tratar , muitas vezes,
de homens e mulheres extraviados/esvaziados de Estava numa atividade grupal e quando vi o público
quaisquer possibilidades (de sobrevivência, eman- o qual estava me dirigindo, me dei conta de como era
cipação, etc.) em suas vidas (Pelbart, 2004), o en- difícil estar ali naquela situação! Como podíamos falar
contro com este universo marcava definitivamente de saúde, se o básico não existia: roupa, casa, comida?
a sensibilidade dos técnicos (e também a nossa ao Nesse dia minha única vontade foi largar tudo e nunca
acompanharmos suas narrativas no momento das mais voltar! (E1-CRAS)
entrevistas).
Nesse aspecto, o cotidiano de trabalho desses Por repetidas vezes, os entrevistados relataram
técnicos, não raro, os impelia a ter que se con- que se sentiam apenas como meros espectadores
frontar com situações de vida dos usuários que os frente ao sofrimento e as demandas sociais de
deixavam profundamente mobilizados e muitas indivíduos e famílias que atendiam. O incômodo
vezes impossibilitados de realizarem intervenções desses técnicos com tal realidade era disparado
eficazes (no sentido de resolutivas). Além disso, por se sentirem impotentes frente a um cenário
deparavam-se constantemente com a falta de reta- que, sem dúvida, os lhes exigia um tipo de atuação
guarda institucional e/ou jurídica em relação aos diferente, ou seja, mais coletiva e política, além de
casos que necessitavam resoluções imediatas. Por problematizadora das condições sociais e das rela-
isso entendemos que atuar no “campo social”, ali ções de forças que se produziam nesses espaços. O
onde a vida se produz, se fabrica e se modula (ou é resultado disso era que muitos desses profissionais
produzida, fabricada e modulada) permanentemen- acabavam resguardando-se apenas em seu saber
te, requer implicação do trabalhador. técnico como forma de manterem-se seguros fren-
Essa experiência incide, sem dúvida, de imedia- te a esse território diverso e problemático que é o
to em nossos territórios subjetivos (inclusive como campo das políticas sociais.
o desenvolvimento das atividades programadas, como esses profissionais são afetados e problemati-
dentre outros). zam tais experiências têm implicação direta, inclu-
Afora o estranhamento, a impotência e a frus- sive coletivamente, na produção de interferências
tração vividos cotidianamente, ainda observamos naquilo que está instituído, cronificado no cotidiano
outro afeto nas narrativas desses profissionais. Fa- desses serviços.
lavam com ressentimento sobre o funcionamento
dos serviços, bem como sobre o modo com que os Considerações finais
usuários lidavam com a sua própria realidade. E
ainda, relataram de maneira queixosa que o ser- O encontro dos psicólogos com o campo das Po-
viço ou a política local estavam estruturados de líticas Sociais exige o reconhecimento dos modos
modo a não permitir a realização das suas ativida- com que nos produzimos nesses espaços, tanto
des, pois faltavam recursos e estrutura necessária quanto a reflexão sobre as estratégias provisórias
para o trabalho com crianças e atividades grupais, que esses espaços demandam da nossa profissão.
por exemplo. Sobre a população, reclamavam que Ou seja, são campos que pedem um profissional
havia pouca consciência em relação às suas con- que circule por entre os espaços da comunidade:
dições de vida e da sua responsabilidade quanto à ruas, becos, esquinas, casas, praças, etc. Portanto,
educação dos filhos e à manutenção da sua saúde e uma profissão que possa se misturar com o cheiro,
de seus familiares (crianças, adolescentes e idosos), o suor e o sol impiedoso da rua; e mais: que possa
ou mesmo em relação à necessidade de reivindica- “abrir seu corpo” (Gil, 2004, p. 13) e captar/car-
ção dos seus direitos e denúncia de ilegalidades. tografar os mais ínfimos e invisíveis movimentos
Assumiam uma posição crítica em relação ao Es- em nossos territórios afetivos e psicossociais, que
tado, mas não problematizavam suas participações seja sensível às variações das formas e fluxos da
quanto ao modo como desenvolviam suas práticas vida, bem como de seus espaços de luta – devir
e contribuíam com a manutenção dessa realidade a clínico-político.
partir da delimitação de modos instituídos de viver Enquanto continuarmos a operar no campo das
e da produção de verdades ancoradas em um dis- políticas sociais no Brasil, especialmente nos ser-
curso técnico atravessado de valores, de uma moral. viços de base territorial, com posturas pouco sen-
Ao longo das entrevistas também identificamos síveis a produzir potenciais de diferença na forma
o movimento de certos afetos/pensamentos gerado- como reconhecemos/intervimos nos “problemas”,
res de campos de potência quanto à transformação apenas reforçaremos a pouca efetividade do nosso
dos modos de agir (ou pelo menos de se posicionar) fazer profissional, mantendo assim nosso clássico
frente à realidade e condição que esses técnicos se modus operandi de atuação, inclusive transferido
encontravam. Inclusive, por que alguns deles ten- para o campo social. Como operadores de uma
taram, em alguma medida, operar movimentos de micropolítica cotidiana, não podemos esquecer que
diferenciação de suas práticas, e também contagiar na medida em que interferimos na forma como as
uns aos outros para se reposicionarem em relação pessoas vivem, pensam, sentem, sofrem, agem e
aos entraves institucionais e burocráticos das po- se relacionam, estamos em nosso trabalho, cons-
líticas sociais. A esse respeito, Baptista (2000) re- tantemente, enredados em algumas encruzilhadas.
fere que o encontro com o inenarrável borra tanto Ora fazemos o jogo da reprodução de modelos de
os nossos limites pessoais quanto os limites em forma a serializar e fixar identidades a partir de
que temos sido “fabricados” como profissionais. modos de vida hegemônicos, ora experimentamos
Agamben citado por Pelbart (2004, p. 139) sinaliza modalidades de ação que favorecem o encontro de
que é preciso mesmo “deixar-nos levar por tais ex- outros possíveis ou novas configurações que agen-
perimentos”, pois por meio deles “arriscamos [...] ciam processos de luta e singularização, mesmo
nossos modos de existência”, bem como abrimos que provisórios. Por isso, precisamos estar atentos
caminhos para uma constituição diferente do que com os movimentos de constituição, reprodução
somos. É por essa via que apostamos que o modo e invenção de territórios existenciais nesses cam-
pos de atuação profissional, pois são dinâmicos e Conselho Federal de Psicologia, CFP (1988). Quem é o
requerem com certa urgência definições e posicio- psicólogo brasileiro? São Paulo: Edicon.
namentos da categoria. Até porque atuar nesses Dimenstein, M. (1998). O psicólogo nas Unidades
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