Anda di halaman 1dari 45

REVISTA DO CORPO DISCENTE

DE FILOSOFIA DA FAFICH/UFMG

IISSN 1807-6440
N°3 | 1° SEMESTRE 2011
ConTextura: 1. Encadeamento; modo como estão ligadas entre si
as diferentes partes de um todo organizado; conexão completa e
organizada; diversidade de ideias e emoções que formam uma rede
complexa, um contexto. 2. Conjunto, todo, totalidade; Aquilo que
constitui o texto no seu todo. 3. Com-textura; ato ou efeito de tecer,
tecido, trama. 4. Texto com textura; Contextura.
(...) para começar

ConTextura é uma iniciativa do corpo discente de Filosofia da UFMG. Publicada pela relacionada à cultura, contemporaneidade, arte ou qualquer outro tema afim. Finalmente, o
primeira vez no 2º semestre de 2004, com o apoio do CAFCA (Centro Acadêmico de Filosofia), número se encerra com uma tradução de “A Discourse of Laws” (1620) de Thomas Hobbes.
a revista teve seu segundo número lançado em 2007, assim como um número especial temático ConTextura, desde o início, buscava o encontro da produção acadêmico-literária com
sobre “Filosofia no Brasil”. uma produção de caráter gráfico e artístico. Acreditamos em tal perspectiva e, mantendo-se
Agora, a revista retorna em seu terceiro número com o mesmo objetivo para o qual foi o entrecho, preocupamo-nos com o cuidado estético, desde a arte da capa até o projeto grá-
criada: proporcionar um espaço para publicação de produção intelectual e divulgação do trab- fico – o qual mantém e inova, buscando novas feições, mas sem descaracterizar-se em relação
alho de jovens pesquisadores na área de Filosofia. aos números anteriores. Além disso, as diferentes texturas da artista plástica Marcela Heloir
Todavia, ConTextura não se limita ao rigor acadêmico; pelo contrário, pretende incenti- guiarão o leitor a cada seção.
var a produção de textos de forma livre, e que propiciem a reflexão e o debate acerca de temas Agradecemos aos autores, pareceristas, revisores, membros da equipe editorial e todos
de relevância filosófica – em outras palavras, cultivar o diálogo entre Filosofia e as demais aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram para a conclusão deste número. Que os
áreas do saber. Assim, enlaçam-se a trama e a urdidura, tecendo uma malha de ideias vizinhas, diálogos traçados despertem no leitor a ousadia do pensamento filosófico, na academia e para
interdiciplinares. além desta.
O presente número contém trabalhos inéditos, agrupados por gêneros textuais. Primei-
ramente, apresentamos a seção Passos Contados, dedicada à publicação de artigos acadêmi- Sofia Noman Filizzola
cos resultantes de pesquisa em Filosofia. Além disso, a revista traz, em sua segunda seção, en-
saios em forma livre, nos quais se espera que ocorra uma reflexão crítica de cunho filosófico,
Publique seu texto na ConTextura: nesta edição
Tipos de Textos: passos contados
1. Artigos: textos com o caráter de mono- especializado; cabe ao aluno a observância
A filosofia prática de Aristóteles na
grafia, resultantes de pesquisa em Filosofia, dos direitos do autor e das devidas respon- caracterização heideggeriana do modo
sabilidades legais. próprio de ser do Dasein 08
abordando algum tema presente na li-teratu-
ra filosófica em geral. Os artigos devem se- Todos os originais recebidos serão sub- Vitor Sommavilla de Souza Barros

guir as normas acadêmicas. metidos à apreciação do Conselho Editorial da A antropologia filosófica de Henrique Vaz:
2. Ensaios: textos com forma livre e con- Revista, que decidirá sobre sua publicação, da auto-expressão à transcendência
como também de um ou mais pareceristas Márcio Silva e Faria 14
teúdo filosófico, mesmo que difuso e implíci-
to, no qual se espera que ocorra uma reflexão ou colaboradores. A Revista não remunera os Lógos e Léxis, a velha divergência
mais livre sobre cultura, sobre a contempora- autores. Os interessados devem enviar os tex- João Luís Manini 20
neidade, sobre a arte ou qualquer outro tema tos, em anexo, exclusivamente para o e-mail Sobre Doxa e Aletheia
vizinho. contexturaufmg@gmail.com , especifican- Guilherme Werkema O. Moraes 29
3. Aforismos: ideias sintéticas, expressas do o tipo de texto (artigo, ensaio, aforismo
A maldade do homem
com vigor, carentes de argumentação, mas ou tradução) no campo Assunto. e a história desperdiçada
que se impõem pela expressividade, provo- Diogenes G. Morais Silva 36
cando o leitor a pensar. INFORMAÇÕES:
O conceito de ser no período pré-crítico de
4. Traduções: textos de interesse filosó- www.fafich.ufmg.br/petfilosofia/ Kant: A existência no “Beweisgrund”
fico, traduzidos sob a revisão de um professor Filicio Mulinari e Silva 44

O lugar da parrhesía e do mestre na


ConTextura: hermenêutica do sujeito
Jean dos Santos Vargas 50
Conselho Editorial
Editor: Eduardo Soares Neves Silva; Editores Associados: ensaio
Ana Teresa Campos, Caio Lemos, Diego Guimarães, Eduardo
Criando Monstros:
Bittencourt, Eric Renan Ramalho, Graziela Guimarães, Lincoln REALIZAÇÃO: Deleuze e a história da filosofia
Passos, Lucas Rocha, Paulo Rocha, Peter Faria, Rayane Araújo, 56
Tomaz Yanomani, Vagner de Oliveira.
João Gabriel Alves Domingos

Conselho Consultivo
Joãosinho Beckenkamp, Ernesto Perini, Mauro Engelmann,

dossiês (Interseções: Filosofia e Arte)


Maria Célia Veiga França, Fábio Belo, Jairo Dias Carvalho, Pedro
Franceschini, Leonardo de Mello Ribeiro, Tereza Virgínia Barbosa.

Projeto Gráfico A Tragédia e o trágico:


Marcela Carolina Rocha APOIO: a cena e o pensamento
Diagramação Gilson Motta 62
Pi Laboratório Editorial
Uma reflexão sobre a Estética Musical
Preparação e Revisão e a Filosofia da Música
Pi Laboratório Editorial
Lia Vera Tomaz 70
Ilustrações
Marcelo Kraiser Heidegger e a origem da obra de arte
Marco Aurélio Werle 76
Agradecimentos
Departamento de Filosofia , Prof. Eduardo Soares Neves Silva.

Tiragem: 500 cópias in memorian


Impressão: Gráfica Formato
A Revista ConTextura é uma iniciativa do corpo discente da Guilherme Werkema O. Moraes
Filosofia - UFMG. Anna Coli 86
Av. Presidente Antônio Carlos, 6627 | Sala 3035 | BH, MG
A filosofia prática de Aristóteles seu contato muito precoce com a dissertação de
Franz Brentano, Von der mannigfachen Bedeutung
na “Introdução” a Ser e tempo, perguntar pelo
sentido do ser implica, nos quadros de sua onto-
2.  Sobre a importância
da recepção brentania-
na da filosofia de Aris-

na caracterização heideggeriana
des Seienden nach Aristoteles, de 1862, Heidegger logia fundamental, a necessidade de se perguntar tóteles para Heidegger,
teria passado a interessar-se fortemente pelo que anteriormente pelo ser do ente que compreende ver Volpi (1984) e Berti
(1997).
significa ser e a buscar, assim como Brentano esse ser, ou seja, pelo ser do Dasein. Essa obser-

do modo próprio de ser do Dasein o fizera, um sentido unívoco para ser, isto é, a
perguntar-se: “se o ser é dito de diversas manei-
vação está em perfeita conformidade com o acima
exposto. De fato, se o ser é compreendido como
3.  Ver Ser e tempo, §44
para esta informação,
e as seguintes sobre o
ras, qual é então o significado fundamental e ser manifesto, a contraparte é que haja um ente
conceito de verdade.
diretivo?” (HEIDEGGER, 1969, p. 81, tradução para o qual ele se manifeste, ou possa se manife- Ser e tempo será citado
Vitor Sommavilla de Souza Barros | Mestre em Filosofia, UFMG minha). star. Assim, em termos heideggerianos, é preciso doravante como SZ; o
Natorp-Bericht, como
Segundo Franco Volpi, todo o pensamento de fazer uma interpretação de como o Dasein se abre NB essa obra não é
Heidegger poderia ser analisado como uma tenta- ao ser. O próprio Aristóteles, porém, apesar de não citada depois através
tiva de reflexão sobre o ser por meio das quatro ter dado a ênfase ontológica heideggeriana, já da sigla; e os volumes
passos contados

Resumo: Este artigo pretende contribuir para a compreensão da ontologia fundamental de das obras completas
possibilidades de significação do ser legadas pela teria encetado, segundo Heidegger, essa analítica (Gesamtausgabe) de
Heidegger por meio de uma de suas principais fontes: a filosofia (especialmente prática) de Aris-
filosofia aristotélica, a saber: (1) o ser segundo das formas através das quais o ser se manifesta ao Heidegger, como GA,
tóteles. Nesse sentido, foca-se o papel desempenhado pela interpretação de Heidegger (no seminário seguido do número do
a forma das categorias; (2) o ser segundo potên- Dasein, ou, na formulação aristotélica, das formas
de inverno de 1924/1925) da EN VI para a posterior caracterização, feita por Heidegger em Ser e tempo, volume.
cia e ato; (3) o ser como verdade; (4) e o ser em da alma (psyché) estarem na verdade (aletheuein)
do modo próprio de ser do Dasein, marcada pela forma da resolução. Assim, em primeiro lugar, mostra-
si ou por concomitância. Brentano teria logrado (ARISTÓTELES, EN, VI). Essas formas são sophia,
se como a forma “mais eminente da abertura ao ser”, isto é, a resolução, é apresentada como um estar
unificar esses sentidos de ser ao conceder epistéme, techné, noûs e phrónesis. Por essa 4.  Exceto nos casos
na verdade, em um sentido similar à compreensão de Heidegger das chamadas virtudes dianoéticas
destaque ao primeiro desses sentidos e, dentre as razão, esse livro da Ética a Nicômaco foi extensa- de incompatibilidade
de Aristóteles, lidas como “formas de se estar na verdade” (aletheúein). Em seguida, sustenta-se que entre o português e o
categorias, à categoria da substância, com rela- mente estudado por Heidegger durante o período
o Dasein em seu modo próprio pode ser entendido através de uma aproximação com a dimensão aris- castelhano, seguimos
ção à qual as demais seriam compreensíveis por de preparação do Ser e tempo.6 Segundo Volpi as opções de tradução
totélica da práxis, por conta da particularidade e da autorreferência que caracterizam ambos. Por fim,
analogia – testemunho de sua formação tomista.2 (1992), de grande interesse para Heidegger foi o de Jorge Eduardo Ri-
sublinha-se a similaridade entre a noção aristotélica de phrónesis, tal como Heidegger a compreende, e viera, em Ser y tiempo.
Insatisfeito com o entendimento brentaniano da fato de que, ao contrário do que se tornou prática Também para as demais
o conceito heideggeriano de consciência.
ontologia como ousiologia, Heidegger teria se corrente na tradição filosófica ocidental, Aris- obras de Heidegger
citadas, essas opções
voltado, no decorrer dos anos 1920, à interpreta- tóteles não restringe o acesso ao ser que se mani-
O senhor está olhando para fora, e é justamente o que foram, na medida do
menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode ção do ser como verdade, ou, antes, da verdade festa à atividade contemplativa (theoría), cuja possível, aplicadas.
aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um como manifestação do ser, como desvelamento excelência é a sophía, mas o expande também aos
caminho. Procure entrar em si mesmo.
(Unverborgenheit) (VOLPI, 1992). É fato que o âmbitos da poíesis e da práxis, com as correspon-
Rilke. Cartas a um jovem poeta. 5.  Ver a esse respei-
sentido corriqueiro de verdade, como dizendo dentes excelências sendo a techné e a phrónesis, to o texto de Enrico
Denn der Mensch ist zum Handeln gebohren. respeito a juízos, ao lógos apophântikós, que pode respectivamente. Com vistas à caracterização Berti “Heidegger e il
Schelling. Ideen zu einer Philosophie der Natur. concetto aristotélico di
ser verdadeiro (katáphasis) ou falso (anápha- ontológica do Dasein, Heidegger se apropria da
verità” (1990).
sis), pode também ser atribuído a Aristóteles – e explicação aristotélica dessas formas de se estar
Heidegger o reconhece.3 Entretanto, não é esse, na verdade – virtudes dianoéticas ou intelectuais,
6.  Ver Phänomenolo-
segundo Heidegger, o sentido fundamental, na tradução canônica – e das correspondentes
I seção de Ser e tempo, as considerações mais gerais gische Interpretationen
originário de verdade. Ele é somente derivado e formas de se proceder – theoría, poíesis e práxis zu Aristoteles e Platon:
A importância da filosofia de Aristóteles para que se seguem mostram-se necessárias.
fundado no sentido originário. Com efeito, origi- – fazendo uma “radicalização ontológica”7 delas, Sophistes (GA, 19).
o pensamento heideggeriano sempre foi ressal- Para além de haver motivos suficientes, que
nariamente, “alétheia [...] significa ‘as coisas isto é, dando-lhes um potencial ontológico que
tada. Essa influência pode ser verificada, por não serão explorados aqui, para se afirmar que
mesmas’, aquilo que se mostra, o ente no como elas não possuíam em Aristóteles. Assim, pode- 7.  Idem. Volpi (1992)?
exemplo, através da quantidade de cursos minis- a virada pela qual passou o pensamento heideg-
de seu estar descoberto” (SZ, p. 219, tradução se com facilidade aproximar a caracterização da
trados por Heidegger nos anos 1920 sobre a obra geriano no começo dos anos 1930 acarretou
minha).4 Essa compreensão Heidegger atribui ocupação (Besorgen) com os entes que estão à
de Aristóteles, ou pelo fato de Aristóteles ser o mudanças substanciais em seu projeto filosófico
1.  Günter Figal (2005)
já a Aristóteles (Metafísica, IX, 10), embora este mão (zuhanden) da noção de poíesis e a contem-
autor mais citado ao longo de Ser e tempo, mas e que, por isso, se pode falar adequadamente em
discute o problema da não tenha retirado disso as consequências que plação dos entes que estão-aí (vorhanden) com
também por outras razões mais importantes para primeiro e segundo Heidegger, parece correto o
unidade (ou não) do Heidegger retirou.5 a theoría. Embora mais problemática, Volpi faz 8.  Ver Volpi (1984,
pensamento heidegge- nós, como explicarei adiante. Embora a intenção diagnóstico de que, ao longo de toda a sua obra, 1992). Aqui, interessa-
riano na introdução de Se, por um lado, pode-se assumir como verdade também a terceira aproximação: entre Dasein e
deste texto seja sustentar a utilidade de se ter em a questão diretiva de suas reflexões tenha sido -me menos a aproxi-
seu Heidegger: fenome- o fato de que todo o pensamento heideggeriano práxis.8 mação geral que pode
nologia da liberdade, mente alguns conceitos fundamentais da filoso- a questão do ser.1 Informações biográficas de
pode ser caracterizado pela questão ontológica, De fato, Volpi (1992) relembra que, em Aris- ser feita entre a noção
tomando partido pela fia prática de Aristóteles para a interpretação da Heidegger podem ajudar a situar esse primado aristotélica de práxis e
questão do ser como por outro, e como traço distintivo da primeira tóteles, pode-se, por um lado, pensar em práxeis o conceito heidegge-
análise feita por Heidegger do modo próprio de da ontologia. De fato, como ele mesmo lembra
motivo unificador da fase da obra de Heidegger, como este explica como ações particulares e, portanto, distintas de riano de Dasein. .
filosofia de Heidegger. ser do Dasein, no segundo capítulo da segunda em “Mein Weg in die Phänomenologie”, desde
2011/1 .ConTextura. 9
passos contados
poíeseis e theoriai, ações de produção e contem- que todos nós, enquanto marcados pela queda, ente, segundo a qual ele está entregue ao mundo mundo. A angústia retira, por conseguinte, a
plação, respectivamente. Por outro lado, Aris- sempre vivemos, a dimensão “poiética” predo- do qual se ocupa (a condição de lançado).” (SZ, fonte cotidiana, decaída e familiar de autocom-
tóteles reconhece um sentido ontológico mais mine, por conta de nossa relação com os objetos §42, p. 199, tradução minha). preensão do Dasein e o isola em seu mais próprio
fundamental para esse termo, ao dizer que “a vida à mão (zuhanden), quando se trata da passa- No cuidado, portanto, estão fundadas tanto a estar-no-mundo. Na disposição afetiva (Befind-
é práxis, não poíesis” (ho de bíos práxis, ou poiesis gem à propriedade, isso não se verifica. De fato, propriedade do antecipar-se a si quanto a impro- lichkeit) da angústia, o Dasein se sente estranho
estin. Política I, 4, 125a). Informar a referência assim como em Aristóteles o bem agir (eu praxia) priedade da vida cotidiana marcada pela queda. (umheimlich) em seu mundo, não mais em casa.
da edição consultada Conforme Volpi, Heidegger é fim de si mesmo e o objeto da phrónesis é o Dessa forma, a análise do modo próprio de ser “A angústia traz de volta o Dasein do cadente
10.  A phrónesis é, teria assimilado essa concepção ontológica de próprio homem,10 a consciência moral (Gewis- do Dasein não pode ater-se a essa explicação do absorver-se no ‘mundo’. A familiaridade cotidi-
conforme Aristóteles,
práxis em sua caracterização do Dasein, o que sen) chama o Dasein à compreensão de suas mais cuidado, mas deve abordar os fenômenos que, por ana se rompe. O Dasein fica isolado [vereinzelt],
um “hautoi eidenai”,
um conhecimento pode ser atestado, por exemplo, pela afirmação de próprias possibilidades. Devendo ser analisado assim dizer, instauram o regime da propriedade mas o faz enquanto estar-no-mundo.” (SZ, §40, p.
acerca de si (EN, VI, que “existir é agir, práxis” (GA 9, p. 58, tradução segundo circunstâncias particulares, por um na vida humana. 189, tradução minha). Ao isolamento angustiado,
1141b34).
minha. No original: Existieren [ist] Handeln, lado, e possuindo o próprio fim em si mesmo, Na mediania própria à cotidianidade, nós só resta o poder-ser próprio.
práxis). Dessa caracterização do Dasein como por outro, o Dasein deve, ao menos com relação à deixamos que a impessoalidade (man) tome as O chamado da consciência é feito pelo próprio
fundamentalmente práxis, Volpi faz derivarem propriedade, ser aproximado da práxis. Esse foi o decisões por nós nas diversas situações em que Dasein, quando este se encontra no máximo
as próprias formas da ocupação (Besorgen) com primeiro argumento a favor da aproximação entre nos encontramos em nossas vidas, seja de fato estranhamento (Umheimlichkeit) com relação a
entes à mão (zuhanden) – que Volpi associa à poíe- a análise aristotélica da práxis e a análise do modo simplesmente não decidindo, seja “decidindo” seu próprio mundo acarretado pela disposição da
sis –, e da solicitude (Fürsorge) para com outras de ser próprio do Dasein. O segundo é a quase fazer o que se (man) faz entre as pessoas com angústia. O interpelado pelo chamado é também
pessoas. O propósito desse texto, no entanto, não correspondência entre alguns conceitos centrais quem convivemos, isto é, em ambos os casos, não o próprio Dasein, na medida em que é chamado a
é expor a caracterização geral do Dasein em sua dessas duas análises. Para apresentar esse argu- decidindo a partir de nós mesmos. Essa falta de abandonar a queda na cotidianidade e a assumir
extração aristotélica, mas atentar para a apre- mento, contudo, será preciso expor minimamente escolha ou eleição (Wahl) precisa ser reparada, seu poder-ser mais próprio. A consciência,
sentação que Heidegger faz do modo ser próprio os conceitos de consciência, resolução e outros mas repará-la implica já fazer uma escolha. É entretanto, não diz nada específico, em termos de
ou autêntico (eigentlichen) do Dasein e mostrar correlatos. preciso eleger a eleição, isto é, o Dasein precisa máximas de conduta moral. O que a consciência
como essa apresentação pode ser compreendida II decidir abrir por si mesmo e para si mesmo suas dá a entender é o ser-culpado que é constitutivo
como uma apropriação de noções fundamentais O ser do Dasein é caracterizado por Heidegger próprias possibilidades (de escolha), seu poder- do próprio ser do Dasein. Ser-culpado significa
11.  Ver SZ, §39 e
da filosofia prática de Aristóteles como cuidado (Sorge).11 O cuidado, por sua vez, ser (SZ, §54). Nas palavras de Christian Sommer, primariamente ser fundamento de uma nihili-
seguintes. Aqui, pretende-se abordar não o ser do Dasein caracteriza-se, por um lado, pela noção de ante- “escolher a escolha” é portanto antes de tudo dade (Nichtigkeit), algo que o Dasein é (SZ, §59).
em geral – o que implicaria uma análise mais cipar-se a si mesmo (sich-vorweg-sein), e, por escolher e eleger expressamente a possibilidade E é em dois sentidos. Primeiro, por conta de sua
detida da adequação de se considerar Dasein outro, pelo estar sempre em meio a um mundo. mesma de ser confrontado com uma escolha condição de lançado no mundo, o Dasein não
como práxis, no sentido aristotélico –, mas o Esse antecipar-se a si mesmo significa que, na (ou bem, ou bem), através da qual se decidirá escolhe ser fundamento de sua existência, mas
modo próprio de ser do Dasein, tal como apresen- medida em que o Dasein assumiu suas possi- o poder-ser mais individual do Dasein, pois essa já o é desde sempre. Segundo, enquanto poder-
tado no segundo capítulo da segunda seção de Ser bilidades de ser mais próprias, ele está sempre possibilidade da alternativa está velada pela ser que opta por ser algo em detrimento de algo
e tempo. Ao menos no âmbito da interpretação da voltado para seu poder-ser (como remissão a indecisão e a irresolução do modo cotidiano e outro, o Dasein é sempre fundamento disso pelo
propriedade (Eigentlichkeit), a aproximação entre seu futuro, como antecipação dele). Nesse ante- impróprio de ser a si mesmo. (SOMMER, 2005, que não optou, livre ou não livremente. Assim,
a filosofia prática de Aristóteles e o pensamento cipar-se, ao estar livre para suas possibilidades, p. 247, tradução minha) nas palavras de Heidegger, “ele [o estranha-
heideggeriano se sustenta por dois motivos. Em o Dasein se coloca diante das possibilidades da A operação da “escolha da escolha” está ligada, mento] põe esse ente [o Dasein] frente a sua crua
primeiro lugar, há que se ter em mente a distinção propriedade (Eigentlichkeit) e da impropriedade. como se verá, à resolução (Entschlossenheit). nihilidade, que pertence à possibilidade de seu
aristotélica da alma racional (logon echon) entre Entretanto, o Dasein está sempre no mundo, Segundo Heidegger, o momento em que o mais particular poder-ser” (SZ, p. 287, tradução
epistemonikón, caracterizada pela sophía e pela lançado (geworfen) no mundo, e absorto em seus Dasein passa a assumir a responsabilidade por minha). E cabe ao Dasein apenas ser propriamente
epistéme, isto é, pelo procedimento teórico, e afazeres cotidianos. Assim, não somente a possi- seu ser, passa a decidir por si mesmo, conforme esse ser-culpado que ele já sempre é.
detendo conhecimento sobre o universal, e logis- bilidade da propriedade, mas também a facti- suas possibilidades mais próprias, é o momento A compreensão do chamado, que é também
9.  Ver SZ, §9 sobre
a noção de ser-a- tikón, que diz respeito às circunstâncias particu- cidade (o fato de sermos, como somos, sempre em que ele começa a escutar o chamado de sua a “escolha da escolha” supramencionada, é um
-cada-vez-meu lares, nas formas da techné (no procedimento da no mundo) e a queda (a absorção no mundo da consciência (Ruf seines Gewissens). Entretanto, escolher ter consciência, um querer-ter-consciên-
(Jemeinigkeit). Sobre
a doutrina da alma poíesis) e da phrónesis (no procedimento prático). cotidianidade) estão fundadas no fenômeno do imerso na impessoalidade, o Dasein é incapaz cia, diz Heidegger. Esse querer-ter-consciência
racional aristotélica Dessa forma, enquanto caracterizado por possibi- cuidado, enquanto ser do Dasein. Nas palavras de de escutar sua consciência, de forma que cabe é justamente um projetar-se para o mais próprio
no âmbito prático, ver
lidades a cada vez suas9 e não universais, o ser do Heidegger, “a perfectio do homem: o tornar-se o perguntar: o que faz com que ele passe a dar poder-ser culpado. É também uma forma da aber-
Berti (2002, p. 115-
155); e em comparação Dasein deve ser compreendido seja pela poíesis, que ele pode ser em seu ser livre para suas mais ouvidos a ela? A resposta é: a angústia (Angst). tura (Erschlossenheit) do Dasein para o ser. Toda
com o pensamento seja pela práxis, mas não pela theoría. Entretanto, particulares possibilidades (no projeto) é ‘obra’ Isso porque ninguém se angustia por um objeto abertura é caracterizada pelas três dimensões
heideggeriano aqui em
questão, ver Escudero apesar de que, como bem salientou Taminiaux do ‘cuidado’. O cuidado determina, porém, com específico do mundo, mas ante o mundo como da compreensão, da disponibilidade afetiva e
(2003). (1995), na cotidianidade (Alltäglichkeit) em igual originariedade, o modo fundamental desse tal, ante o próprio fato de que o Dasein está no do discurso (Rede). E, nos termos de Heidegger,

10 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 11


passos contados
esse “eminente modo próprio da abertura” é a detém phrónesis, seria possível dizer), tem em Jean-François (Éd.). Herméneutique et ontologie: Daphne Editrice, 1984.
resolução, que é caracterizada pelo modo de cada momento, para si, as possibilidades tanto da hommage à Pierre Aubenque. Paris: PUF, 1990. p. VOLPI, Franco. Dasein as Praxis: the Heideg-
compreensão implicado no querer-ter-consciên- propriedade quanto da impropriedade. O próprio inicial-final. gerian Assimilation and the Radicalization of the
cia, pela disponibilidade afetiva da angústia e Heidegger deu mostras da justeza dessa aproxi- BERTI, Enrico. Aristóteles no século XX. Practical Philosophy of Aristotle. In: MACANN,
pela forma de discurso do calar (pois o chamado mação, quando, confrontado com a dificuldade Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Christopher (Ed.). Martin Heidegger: Critical As-
da consciência não fala nada, mas precisamente de traduzir phrónesis, ele teria dito, conforme o Loyola, 1997. sessments. London; New York: Routledge, 1992. p.
13.  No original: Das ist retira o Dasein da cotidianidade caracterizada relato de Gadamer, “é a consciência!”13 BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. inicial-final.
das Gewissen! Episódio pelo falatório (Gerede) (SZ, §60). Essa abertura Da mesma forma, a resolução, como sustenta Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições
relatado por Gadamer
em seu Heideggers Wege mais própria, que é a resolução, em que o Dasein Volpi (1992), pode ser aproximada da proaíresis, Loyola, 2002.
(p. 31-32) e citado por se abre para si mesmo em seu poder-ser, é apresen- visto que é a condição resultante de um processo BROGAN, Walter. Heidegger and Aristotle: The
Volpi (1992, p. 118).
tada por Heidegger, nos quadros de sua discussão em que escolhemos assumir nossas possibili- Twofoldness of Being. New York: State University
sobre como o Dasein “é/está na verdade” – vale dades, nosso poder-ser, em que escolhemos ouvir of New York Press, 2005.
dizer, de como ele aletheuei –, como a “verdade nossa consciência. Entretanto, parece-me ainda ESCUDERO, Jesús Adrian. Aclaraciones termi-
12.  Ver SZ, §44. da existência”.12 mais correto afirmar, em conformidade com o nológicas en torno al informe Natorp de Heidegger.
Nesse ponto, retornamos a Aristóteles. A sustentado por Sommer (2005), que a resolução Signos Filosóficos, México: Universidad Autónoma
primeira correspondência entre essa caracter- é a héxis (disposição, estado de ânimo) que corre- Metropolitana, n. 10, p. 103-126, jul.-dic., 2003.
ização da resolução e a filosofia aristotélica é um sponde à virtude da phrónesis. Ela é uma héxis FIGAL, Günter. Martin Heidegger: fenomenolo-
tanto evidente. Se a resolução é uma abertura proairetiké, na medida em que ela nos dispõe a gia da liberdade. Tradução de Marco Antônio Casa-
14.  Como observa ao ser, e na verdade a mais própria, e essa aber- tomarmos nossas decisões livremente.14 nova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
Jorge Eduardo Riviera, tura é, do ponto de vista do Dasein, ela mesma Diversas são, portanto, as razões que justifi- HEIDEGGER, Martin. Mein Weg in die Phän-
em nota a sua tradução
de Ser e tempo (p. 444), uma verdade em sentido originário, a phrónesis, cam o entendimento da explicação heideggeriana omenologie. In: _____. Zur Sache des Denkens.
a Entschlossenheit é, por sua vez, é, como se salientou anteriormente, do modo de ser próprio do Dasein através de sua Tübingen: Max Niemeyer, 1969. p. 81-90.
mais do que simples-
um modo de se estar na verdade. Isto é, tanto o aproximação com a filosofia prática (sobretudo a HEIDEGGER, Martin. Wegmarken. Frankfurt am
mente resolução, uma
condição de resolu- Dasein resoluto heideggeriano quanto o homem ética) de Aristóteles. Em primeiro lugar, procurei Main: Vittorio Klostermann, 1978. (Gesamtaus-
ção, uma condição de phrónimos aristotélico estão em uma relação mostrar como, enquanto abertura mais própria gabe, 9).
resolvido, pois resulta
do ato da “escolha da privilegiada com o ser que se manifesta para eles: ao ser, na resolução o Dasein está na verdade em HEIDEGGER, Martin. Platon: Sophistes (Win-
escolha” anteriormente com a alétheia. Tanto um quanto o outro estão na um sentido similar ao modo como a alma está na tersemester 1924-1925). Frankfurt am Main: Vit-
referido, não sendo
verdade (aletheúein). verdade (aletheuei) através das virtudes dianoé- torio Klostermann, 1992. (Gesamtausgabe, 19).
em si nem a primeira
dessas escolhas (que Um acompanhamento mais próximo de alguns ticas tal como estas são caracterizadas por Aris- HEIDEGGER, Martin. Phänomenologische Inter-
instaura a resolução) termos da ética aristotélica permitirá perceber tóteles em EN VI. Em segundo lugar, na medida em pretationen zu Aristoteles (Natorp-Bericht). Stutt-
nem a segunda (que
optará, em circunstân- sua semelhança com as noções heideggerianas que é um assumir das possibilidades mais próprias gart: Reclam, 2003.
cias particulares, pela já apresentadas. Para Aristóteles, pode-se dizer do Dasein, sustentei que, ao menos em seu modo HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen:
propriedade ou pela Max Niemeyer, 2006.
que o sucesso na vida se dá quando o homem, de ser próprio ou autêntico, o Dasein deve ser
impropriedade).
seguindo a phrónesis, delibera corretamente e, compreendido por meio da noção aristotélica de HEIDEGGER, Martin. Ser y tiempo. Traducción,
por consequência, toma a decisão ou faz a escolha práxis e não das noções de theoría e de poíesis. Por prólogo y notas de Jorge Eduardo Rivera. Santia-
(prohaíresis) correta e, por fim, age conforme fim, e sobretudo, argumentei que os conceitos de go: Escuela de Filosofía Universidad ARCIS, [s.d.].
essa decisão. Similarmente, para Heidegger, o consciência e resolução, fundamentais na análise Disponível em: <http://www.heideggeriana.com.
Dasein, seguindo (escutando) sua consciência, heideggeriana do modo próprio de ser do Dasein, ar>. Acesso em: 30 maio 2011.
toma a decisão de assumir suas mais próprias podem ser compreendidos como apropriações, SOMMER, Christian. Heidegger, Aristote, Lu-
possibilidades como responsabilidades suas e, na respectivamente, de phrónesis e de prohaíresis, ther: les sources aristotéliciennes et néo-testa-
disposição da resolução que daí resulta, habilita- ou mais corretamente, héxis proairetiké. Essas mentaire d’Être et Temps. Paris: PUF, 2005. (Épi-
se a tomar por si mesmo a decisão, em circun- afirmações ajudam a corroborar a tese, apresen- méthée).
stâncias particulares, pela propriedade ou pela tada no início do texto, de que a presença de Aris- TAMINIAUX, Jacques. La réapropriation de
impropriedade. A semelhança entre a phrónesis e a tóteles no pensamento heideggeriano é bastante l’Éthique à Nicomaque: póiesis et práxis dans
consciência fica patente. Igualmente, assim como maior do que as referências explícitas a ele podem l’articulation de l’ontologie fondamentale. In:
em Aristóteles a phrónesis, a fim de que se atinja o sugerir. _____. Lectures de l’ontologie fondamentale: essai
bom agir (euprattéin), deve ser realizada em cada Referências sur Heidegger. Grenoble: Jérôme Millon, 1995. p.
circunstância particular de ação, o Dasein angus- BERTI, Enrico. Heidegger e il concetto aris- inicial-final.
tiado, que escuta ao chamado da consciência (que totélico di verità. In: BRAGUE, Rémi; COURTINE, VOLPI, Franco. Heidegger e Aristotele. Padova:

12 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 13


passos contados

A ANTROPOLOGIA de Henrique Vaz. O percurso será feito abordando-


se primeiramente a originalidade do sistema do
três polos epistemológicos fundamentais, N –
S – F, entre os quais o sujeito (S) é entendido

FILOSÓFICA DE HENRIQUE VAZ:


autor ao considerar o homem enquanto expres- como expressividade, como mediador da passa-
sividade; num segundo momento, discorreremos gem da natureza (N) à forma (F), ou do dado ao
sobre a dimensão do espírito enquanto fonte para significado. Assim se configura o papel da Antro-

DA AUTOEXPRESSÃO À TRANSCENDÊNCIA a transcendência; até chegarmos à definição do


homem enquanto ser para a transcendência; ao
pologia Filosófica de construir uma ideia de
homem enquanto ser que unifique as múltiplas
final, esboçaremos uma pequena conclusão. noções de homem oferecidas pelas ciências do
O homem como expressividade homem (VAZ, 1991, p. 11).
Thiago Márcio Silva e Faria Haagensen Gontijo | Graduado em Psicologia, UFMG A crise da noção de homem enfrentada pela Dentre os três níveis de compreensão do
Antropologia Filosófica pode ser explicitada a fenômeno humano do método de Henrique Vaz
partir de duas vertentes: uma histórica e outra (pré-compreensão, compreensão explicativa e
Resumo: O presente trabalho aborda a Antropologia Filosófica proposta pelo filósofo brasileiro Henrique metodológica. Do ponto vista histórico, encontra- compreensão filosófica2), ressaltemos apenas
2.  Ver a definição do
Cláudio de Lima Vaz, expressa em suas obras Antropologia filosófica I e II. Diante da crise atual da mos o entrelaçar das imagens do homem predomi- a compreensão filosófica, que se refere a nossa objeto e o método da
nantes no Ocidente: o homem clássico, o homem proposta. Ela nos interessa na medida em que a Antropologia Filosófica
noção de homem, o objetivo do trabalho é investigar como a determinação do objeto, o método e a de Henrique Vaz em
conceptualização de Henrique Vaz se estruturam para empreender uma abordagem do homem em sua cristão e o homem moderno (VAZ, 1991, p. 10); já mediação que constitui o sujeito nessa compreen-
Vaz (1991, p. 157-172).
totalidade. Evidenciamos a primazia das categorias espírito (de estrutura) e transcendência (de relação) a crise metodológica é evidenciada pela fragmen- são é a mediação transcendental: aqui, o sujeito
na antropologia de Henrique Vaz, enquanto ápices do discurso sobre o homem. tação da noção de homem considerado de forma mediador do dado ao significado é instituidor de
múltipla pelas diversas ciências do homem. Tal um discurso no qual ele dá razão de si mesmo.
fragmentação se relaciona de alguma forma com a Esse é o discurso que deve ser explicitado pela
rejeição da relação de transcendência, a partir da Antropologia Filosófica, na qual a forma (F) repre-
concepção moderna de homem, como veremos ao senta o discurso e a conceptualização mediatiza-
longo do trabalho. dos pelo sujeito transcendental (S) (VAZ, 1991, p.
Resumo: O presente trabalho aborda a Antrop- modo geral (VAZ, 1991, p. 9-10). A característica original do pensamento 164-165). Dediquemo-nos à compreensão desse
ologia Filosófica proposta pelo filósofo brasileiro Max Scheler, no início do século XX, denuncia antropológico de Henrique Vaz evidencia-se na nível de mediação filosófica na constituição do
Henrique Cláudio de Lima Vaz, expressa em suas a falta de uma concepção unitária do homem, ao forma como ele propõe a investigação sobre o ser sujeito enquanto expressividade, uma vez que ela
obras Antropologia filosófica I e II. Diante da crise passo que estabelece as diretrizes da Antropolo- do homem. Segundo o autor, as principais tenta- é importante para ilustrar a consistência com que
1. Sobre a definição atual da noção de homem, o objetivo do trabalho gia Filosófica enquanto disciplina.1 Segundo o tivas de solução dos impasses sobre a concepção o sistema de Henrique Vaz se dedica à complexi-
de Antropologia Filo- é investigar como a determinação do objeto, o autor, nunca na história as concepções acerca da de homem ocidental podem resultar em visões dade do movimento3 humano.
sófica em Max Scheler, 3.  Falamos aqui de
ver Scheler (1959, p. método e a conceptualização de Henrique Vaz essência do homem foram tão incertas, impreci- unilaterais ou reducionistas. Dessa forma, O discurso da Antropologia Filosófica busca movimento conside-
9). Sobre a carência de se estruturam para empreender uma abordagem sas e múltiplas, de modo que já não se sabe o que Henrique Vaz propõe a investigação do homem a constituição de categorias através das quais rando o movimen-
uma concepção unitá- to intencional de
do homem em sua totalidade. Evidenciamos a é o homem (SCHELER, 1959, p. 10). enquanto expressividade, compreendido em sua será explicitado o modo como o homem realiza a
ria acerca do homem, passagem do dado à
ver principalmente primazia das categorias espírito (de estrutura) e A pergunta “O que é o homem?”, que autoexpressão. Trata-se de manter o equilíbrio passagem do dado à forma. O homem se consti- forma pelo sujeito,
Scheler (2003). transcendência (de relação) na antropologia de permanece no centro das questões filosóficas e entre os três polos epistemológicos de compreen- tui como movimento de mediação entre natureza que se expressa como
síntese dinâmica entre
Henrique Vaz, enquanto ápices do discurso sobre da cultura, carece de uma Antropologia Filosófica são do homem: a natureza, o sujeito e as formas e forma (N-S-F); entretanto, ele, em sua forma o ser que é e o ser que
o homem. que encontre um centro conceptual unificador simbólicas, sem que esses polos fiquem distendi- natural, é dado a si mesmo na complexidade de se torna, rejeitando o
Introdução das múltiplas linhas de explicação do fenômeno dos e os conceitos sejam atraídos predominante- sua estrutura somática, psíquica e espiritual, essencialismo estático
em um dos limites do
A Antropologia Filosófica é abalada pelo humano, superando os reducionismos. Sobre esse mente em favor de um deles (VAZ, 1991, p. 158). ou seja, em seu estar-no-mundo, estar-com- contínuo e o puro devir
rápido desenvolvimento das Ciências Huma- intento de afirmar a unidade do homem, desta- A partir justamente da atração predominante o-outro e seu abrir-se para a transcendência. sem sujeito no outro.
nas, no final do século XVIII, configurando uma camos a relação de transcendência a partir do Ver esquema em Vaz
de um desses polos sobre o trabalho teórico de Assim, o homem enquanto natureza é dado a si (1991, p. 262).
problemática complexa devido a peculiaridades espírito como elo conceptual do discurso sobre elaboração de uma visão unitária do homem, mesmo, mas enquanto ser é forma ou expressão
sistemáticas e epistemológicas dificilmente as categorias fundamentais do ser humano na fazem-se presentes no campo da Antropologia (HERRERO, 2003, p. 7). Nas palavras de Herrero:
conciliáveis. O problema sobre o homem assume Antropologia Filosófica de Henrique C. de Lima Filosófica os diversos reducionismos que ten- Porém, o que caracteriza essencialmente o
uma singular gravidade no âmbito das divergên- Vaz. tam reduzir a complexidade das manifestações homem é o movimento de passagem da forma
cias sobre a definição do objeto de tais ciências. Nosso intento aqui será empreender uma do fenômeno humano a uma matriz explicativa “natural”, que é dada, à forma propriamente
A possibilidade de uma visão unitária do homem breve elucidação da importância da relação única, seja ela cultura (culturalismo), seja o humana, que é a forma “natural” por ele re-
parece se distanciar, e podemos identificar a fundamental de transcendência como termo do sujeito (idealismo), seja a natureza (natural- criada como expressão do seu ser. O homem,
partir desse momento os traços de uma crise movimento de autoexpressão na constituição do ismo). (VAZ, 1991, p. 13) portanto, não existe como dado, mas como ex-
da noção de homem na filosofia e na cultura de objeto e das categorias da Antropologia Filosófica Assim, a Antropologia de Vaz guia-se pelos pressão. Assim, o homem é o movimento dialé-

14 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 15


passos contados
tico da passagem do dado (N) à expressão (F), Espírito: abertura à transcendência ser (HERRERO, 2003, p. 10). Na relação de tran- estrutura do horizonte último de nosso
e ele como sujeito é o movimento mediador (S). Henrique Vaz propõe uma estrutura humana scendência, o espírito se vê em face do Absoluto pensamento: ser, uno, verdadeiro, bom e
(HERRERO, 2003, p. 8) tripartita (VAZ, 1992b). Nela, os níveis ontológi- como atributos transcendentais: unidade, verdade belo. A experiência da Verdade é a própria
A partir dessa explicitação da mediação tran- cos por meio dos quais o sujeito realiza a passa- e bem (Absoluto formal), ou como Absoluto real possibilidade do discurso verdadeiro,
scendental constitutiva do sujeito na compreen- gem da natureza à forma são a estrutura somática, ou existente (Deus) (HERRERO, 2003, p. 11). homólogo ao ser (VAZ, 1992a, p. 103).
são filosófica enquanto expressão e ao mesmo a estrutura psíquica e a estrutura espiritual, artic- Homem: ser para a transcendência
tempo mediação da expressão de si, podemos ulados no discurso filosófico como categorias do O termo transcendência refere-se à relação 2. Experiência ética do bem: está intima-
esboçar o seguinte esquema: corpo próprio, psiquismo e espírito, respectiva- entre o homem situado e uma realidade que está mente ligada à experiência de Verdade,
[(N-S-F)] – [S] – [F] mente (VAZ, 1991, p. 168). além da realidade acessível a ele. Essa realidade é no sentido de que a verdade é o bem da
Onde (N-S-F) = [N] (VAZ, 1991, p. 171). O espírito enquanto conceito antropológico transcendente, portanto, não objetiva. O homem razão, ao passo que o bem é a verdade da
A coerência dessa forma de definir o objeto da estabelece o caráter ontológico da Antropologia se relaciona necessariamente com esse Absoluto; liberdade (VAZ, 1992a, p. 105). Assim,
Antropologia Filosófica depende da conceptual- Filosófica de Vaz e sua ligação com a metafísica, dessa forma, a relação de transcendência deve a infinitude com que o Ser se apresenta
ização adequada até a formulação das categorias pela abertura que realiza enquanto inteligên- ser contemplada no discurso do ser do homem idêntico ao Bem é acolhida pelo homem
fundamentais do ser humano que satisfaçam a cia (nôus) ao horizonte infinito da verdade, (VAZ, 1992a, p. 93). A relação de transcendência como um bem.
exigência de uma figura do homem que expresse e enquanto liberdade (pnêuma) à amplitude surge não apenas como imperativo hermenêu-
sua totalidade estrutural e relacional. infinita do Bem (VAZ, 1991, p. 202). A ideia do tico de uma das relações mais fundamentais 3. Experiência noética-ética do ser: é a
Ao definir o objeto diante da pergunta “O que espírito pode ser expressa em quatro temas funda- do ser humano, mas como resultado do excesso experiência metafísica que serve de
é o homem?”, o sistema vazeano encontra o ser. mentais: o espírito como vida (pnêuma), como ontológico do homem, pelo qual ele ultrapassa o fundamento a toda experiência de tran-
4.  O discurso sobre
o ser do homem se Para tanto, após uma problematização histórica inteligência (nôus), como razão (lógos) e como ser-no-mundo (objetividade) e o ser-com-o-outro scendência, a capacidade de pensar
completa na categoria do desenvolvimento das categorias, segue-se consciência-de-si (synesis). Portanto, a estru- (intersubjetividade) na busca pelo fundamento o homem ao afirmar “o ser é”. Aqui o
de pessoa; ela realiza o momento crítico da problematização sobre o para o Eu sou que o constitui (VAZ, 1992a, p. 95).
tura espiritual ou noético-pneumática expressa a homem se vê necessariamente face a
a integração da estru-
tura e das relações do homem. Esse momento crítico é articulado por um estrutura que confere ao homem as prerrogativas A transcendência surge, ao termo da reflexão face com o âmbito da transcendência, ou
homem, do seu ser-em- momento eidético e outro tético, afinal, o homem de ser de razão e liberdade. sobre a intersubjetividade, como horizonte mais ainda com a experiência da abertura ao
-si e do seu ser-para
enquanto ser surge de uma tensão entre a fini- Ao nos elevarmos, no homem, ao nível do es- amplo que se abre à autoexpressão do sujeito, ser, ou da inteligibilidade do ser, através
(paradoxo da ipseidade
e da alteridade). Na tude e limitação de sua forma ou situação (eidos) pírito, vemos anunciar-se a noção de espírito tendo em vista o princípio de ilimitação tética. da negatividade de nossa capacidade de
pessoa convergem as e a infinitude ou ilimitação que aparece na afir- como coextensiva ou homóloga à noção de Ser Com efeito, na relação de transcendência, a infin- pensar – o que significa passar além de
categorias anteriores
que foram suprassumi- mação pela qual o sujeito se expressa (thesis) a si entendida segundo suas propriedades transcen- itude intencional do sujeito encontra a infinitude qualquer limitação dos seres e experi-
das, a transcendência mesmo no horizonte ilimitado do ser. “Trata-se, dentais de Unidade (unum), Verdade (verum) real do Absoluto, e não a infinitude potencial do mentar a infinita transcendência do Ser
através do espírito
pois, de referir a limitação do eidos do sujeito ao e bondade (bonum). Ela constitui, portanto, o universo (na indiferença da relação de objetivi- pela razão (VAZ, 1992a, p. 109).
é o polo último da
unificação do homem âmbito da ilimitação da autoposição do eu como elo conceptual entre a Antropologia Filosófica e dade), nem a infinitude intencional do outro (na
(estrutura e relação) ser” (HERRERO, 2003, p. 8). O método dialético a Metafísica. (VAZ, 1991, p. 202) reciprocidade da relação de intersubjetividade). Na relação de transcendência do homem pelo
que se dá na pessoa espírito acontece uma inversão na compreensão
(VAZ, 1992a, p. 150). seguido para a construção das categorias orienta- Assim, temos a relação com o Absoluto, a partir Encontramos a expressão paradigmática da
Assim, a categoria de se pela possibilidade de reunir no conceito a do espírito, como característica antropológica, transcendência na ideia de Filosofia na Grécia e do momento eidético e tético. Aqui o homem não
pessoa está na base coloca para si o objeto (relação de objetividade),
tensão dos dois momentos: eidético e tético. afinal, “como espírito ele [o homem] é, pois, o na ideia de Monoteismo em Israel, nas quais o ser
da afirmação Eu sou.
“Como unidade, o Dessa maneira, na afirmação Eu sou está lugar do acolhimento e manifestação do Ser e do era considerado parte no Todo, donde surgem as nem se põe diante do outro (relação de intersub-
homem é pessoa. A contida a identificação com o ser (eu=ser). Assim, consentimento ao Ser: capax entis” (VAZ, 1991, p. noções de ordem e transcendência. Além disso, jetividade), mas é posto em sua condição finita,
pessoa aparece, assim, “pela superabundância e pela infinita genero-
como ato total, que o discurso da unidade e da totalidade do homem 202). O espírito carrega a marca do infinito, não a razão é pensada em relação a um horizonte de
opera a síntese entre as através das categorias é regido por três princípios: se atém à realidade material, à contingência e à Verdade absoluto, donde a ideia de verdadeiro e de sidade ontológica do Absoluto” (VAZ, 1992a, p.
categorias de estru- limitação eidética, ilimitação tética e totalização falso (VAZ, 1992a, p. 101). As exigências da razão, 122). Pela transcendência, o homem identifica o
finitude. É pela estrutura espiritual ou noético-
tura e as categorias
(VAZ, 1991, p. 167), segundo os quais a catego- pneumática que o homem atinge o ápice de sua desde a Grécia Antiga, elevaram-se a sua ampli- Absoluto como transcendente a sua razão finita,
de relação através do
seu desenvolvimento ria é afirmada enquanto afirmação limitada do unidade, é nesse nível que o homem se abre neces- tude máxima no contato com o ser, que encon- assim como também é posto pelo Absoluto iman-
essencial, ou seja, da ente no mais íntimo do seu ser, “onde brota a
objeto, mas a própria autoposição do sujeito como sariamente à transcendência (VAZ, 1991, p. 201). trava a transcendência enquanto experiência
sua autorrealização. A
ideia de um huma- ser o impele a se transcender em direção à infini- Existe, então, no espírito do homem uma humana legítima. Convém ressaltar as três formas fonte do espírito, da qual fluem a inteligência
nismo personalista é, tude do ser, superando a forma afirmada antes. infinitude intencional, na qual o sujeito se iden- principais de experiência de transcendência: e a liberdade” (VAZ, 1992a, p. 122). Desvela-se
portanto, a palavra
Essa abertura constitutiva do homem enquanto tifica com o ser (sujeito=ser), a despeito da dife- aqui a dependência constitutiva do homem em
final da Antropologia 1. Experiência noética da verdade: constitui-
filosófica” (VAZ, 1991, espírito o impele a transcender toda limitação rença real entre a pessoa finita e a totalidade do relação ao Absoluto: o homem é porque o Abso-
p. 168). Uma expla- se no discurso como “discurso verdadeiro”
(HERRERO, 2003, p. 9). A expressão completa da ser. Ademais, a partir da estrutura constitutiva luto é. De forma equivalente, afirma-se “Eu sou
nação mais detalhada – como homologia ou identidade com o
do conceito de pessoa unidade do homem, na qual se cumpre o princípio do homem, surge o movimento de transcendên- para a transcendência”, num movimento em que
ser. É uma experiência metafísica porque
ultrapassaria os limites de totalização, se dará na categoria de pessoa.4 cia do homem com relação à infinitude real do a universalidade do ser não é posta pelo Eu, mas
de nosso trabalho. é uma experiência do Ser, formando a
16 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 17
passos contados
pelo Transcendente (HERRERO, 2003, p. 11). É a Diante da restrição do âmbito da razão e da
inversão nos princípios de limitação eidética e negação do Absoluto, vemos surgir a redução
ilimitação tética que permite a síntese das cate- do objeto (homem) e os “mitos pós-metafísicos”
gorias de estrutura e relação e a passagem às (VAZ, 1992a, p. 115) que substituem o horizonte
categorias de unidade. infinito do Absoluto formal. São eles: a ideologia
O problema decisivo, em relação à transcendên- enquanto mito da verdade; o hedonismo enquanto
cia, a ser respondido ao fim da formulação da Antro- mito do Bem; e a história enquanto mito de Deus.
pologia Filosófica de Henrique Vaz é: “O homem Além disso, Henrique Vaz identifica atualmente
é porque o Absoluto é: como Causa Primeira, o que ele denomina como “sucedâneos do abso-
Perfeição Infinita e Fim; ou então, porque o homem luto” (VAZ, 1992a, p. 118), ou seja, concepções
é o Absoluto é, como projeção, imaginação ou que transferem o Absoluto Transcendente para
ilusão” (VAZ, 1992a, p. 124). Essas são as alterna- a imanência da história ou da natureza, uma
tivas da reflexão antropológica, que se evidenciam redução em face da inquietação humana diante
no momento em que o princípio de ilimitação tética da opacidade do ser e da falta de sentido. Segundo
é aplicado à relação de transcendência. Afinal, na o autor, essas posturas acabam por nos levar a um
afirmação “Eu sou para a transcendência”, a univer- niilismo metafísico e ético.
salidade do ser não é posta pelo Eu diante de sua A singularidade da categoria de transcendên-
afirmação em face da limitação eidética (como no cia, enquanto categoria unívoca com as relações
caso da objetividade e da intersubjetividade), mas de objetividade e intersubjetividade, e do espírito
é posta pelo Transcendente ao qual o sujeito se unívoco com a estrutura do corpo e psiquismo,
relaciona necessariamente. “Assim, se consider- tem grande atualidade se considerarmos o desen-
armos a afirmação do Eu sou em relação à univer- volvimento das ciências do homem. Essas ciências
salidade formal do ser, ela implica a submissão do engendram, mesmo que de forma não declarada,
sujeito ao ser enquanto ele é ser-para-a-Verdade e metateorias necessárias para justificar posturas
ser-para-o-Bem” (VAZ, 1992a, p. 124). Ainda, se epistemológicas. Tais posturas têm impacto na
consideramos a universalidade real de Ser, temos formulação da ideia de homem, ao mesmo tempo
a submissão do sujeito ao Ser, como ser-para-o- em que circulam nessas metateorias uma ideia a
Absoluto. Portanto, o Ser é Transcendente, pois, respeito do horizonte de Verdade ao qual a razão se
no caso da categoria de transcendência, a negação dirige incansavelmente (LADRIÈRE, 1977, p. 43).
imposta pela limitação eidética (como se observara Referências
nas relações de objetividade e intersubjetividade) HERRERO, F. Javier. A recriação da tradição na
não tem lugar, o que não permite identificar o ser antropologia filosófica de Pe. Vaz. Síntese, Belo
com a Natureza ou com a História. Horizonte, v. 30, n. 96, p. 5-12, 2003.
Considerações finais LADRIÈRE, Jean. A articulação do sentido.
Podemos relacionar a crise histórica e Tradução e prefácio de Salma Tannus Muchail. São
metodológica da concepção de homem em função Paulo: E.P.U.; EDUSP, 1977.
da efetividade histórica da transcendência. Do SCHELER, Max. La ideia del hombre y la histo-
ponto de vista metodológico, podemos destacar a ria. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1959.
importância de uma Antropologia enquanto Onto- SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos:
logia, e, por conseguinte, a relação de transcendên- filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova.
cia como fundamental nesse enfoque do homem Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
enquanto ser. Desvelam-se para nós aqui as raízes VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia
mais profundas dessa problemática que convergem filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.
para o problema dos limites do horizonte da Razão VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia
(VAZ, 1992a, p. 114) humana, desde a consideração filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992a.
da “inteligência espiritual” (VAZ, 1992a, p. 115) VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia
até seu abandono, o surgimento do racionalismo, tripartita e exercícios inacianos. Itaici: Revista de
e, por fim, a rejeição da transcendência e a falência Espiritualidade Inaciana, Indaiatuba, n. 9, p. 75-
da razão como critério para a Verdade. 83, jul. 1992b. Número especial.

18 .ConTextura. 2011/1 2010/1 .ConTextura. 23


passos contados

LÓGOS E LÉXIS:
reprimenda explícita, aos poetas. Eles são os ex nihilo a contenda com a poesia grega, como
primeiros protagonistas de que se tem notícia da talvez o pretenda Nietzsche. Ele é herdeiro de um
contenda entre filósofos e poetas. Heráclito, por papel que já alguns filósofos anteriores a Sócrates

A VELHA DIVERGÊNCIA exemplo, dizia que “Homero merecia ser banido


dos concursos públicos e surrado com varas,
protagonizaram. Sem embargo, é evidente que
a figura do poeta de seu mundo não é análoga
assim como Arquíloco” (HERÁCLITO, frag. 42 à do poeta de hoje; existe mesmo uma distân-
João Luís Manini | Mestrando em Filosofia, UFMG apud DIÔGENES LAÊRTIOS, IX, 1). Xenófanes, cia imensa entre eles. Para compreender por que
apesar de ter se expressado através de versos, Platão dirige aos poetas as mais duras críticas, a
Resumo: O presente trabalho se propõe a esclarecer e analisar a célebre crítica de Platão à poesia levando também não perdoou Homero. Segundo Diógenes exemplo de outros anteriores a ele, é necessário
em conta a complexidade específica envolvida na experiência poética até o período clássico. Inspiração Laércio, “além de poemas em verso heróico [Xenó- analisar, em primeiro lugar, qual a poesia e qual o
para diversos equívocos na interpretação do pensamento platônico, defendemos que seu ataque à poesia fanes] escreveu elegias e iambos contra Hesíodo e poeta a que ele se refere.
deve ser compreendido em seus aspectos de composição, declamação e recepção, articulados em seu Homero, cujas afirmações a respeito dos deuses Devido ao caráter conciso do presente estudo,
contexto histórico e cultural específico no qual se insere a poesia grega. Para tanto, procederemos a uma criticou severamente” (DIÔGENES LAÊRTIOS, IX, analisaremos apenas brevemente o contexto
breve exposição do cenário e das determinações exclusivas da experiência poética helênica, para então 18). O fato de escrever também em versos torna histórico e cultural que dá as cores tão específi-
analisarmos as consequências desse mesmo panorama na reflexão platônica acerca da poesia nos Livros Xenófanes particularmente interessante, pois, cas à poesia grega, retendo-nos mais demorada-
II e III da República. como Aristóteles diria pouco mais tarde em sua mente na análise do discurso poético que Platão
Poética, “nada há de comum entre Homero e faz nos Livros II e III da República. Procedendo à
Empédocles, a não ser a metrificação” (Poética, análise dos argumentos presentes nesse trecho,
I, 5).3 Quer dizer, apesar da forma de enunciação defenderei que a crítica de Platão à poesia orga- 7.  Quer dizer, assim
5.  Nietzsche, com Introdução: “a velha divergência” uma cidade hipotética, quer dizer, através de um como Empédocles,
comum entre filósofo e poeta, Xenófanes já se niza-se segundo duas ordens distintas de razões,
sua grandiloquência Xenófanes não deveria
Muitos daqueles que começam a trilhar o modelo aplicável somente enquanto exercício de posicionava pelo lado da filosofia na contenda a saber, as razões relativas (1) ao conteúdo do
e virulência habitual, ser chamado de poeta,
parece imputar a Platão caminho dos estudos platônicos sentem-se, não reflexão. Em outras palavras, finge que Platão entre as duas sabedorias. O filósofo jônico ainda lógos poético, isto é, o complexo de elemen- de acordo com Aristó-
a responsabilidade injustificadamente, embaraçados com a dura não quer dizer o que diz.2 Aparentemente aves- teles. Ver Poética, I, 5.
pela rivalidade entre se fez merecedor de um elogio de Timão por sua tos constitutivos do conteúdo do discurso, ou
filosofia e poesia, por posição de Platão em relação à poesia. Atacada sas, se analisadas cuidadosamente, as duas inter- postura rígida para com Homero: “Xenófanes, ainda, aquilo que se deve dizer; (2) e à chamada
este ser, segundo o vigorosamente na República, especialmente nos pretações revelam-se como faces opostas de uma imune ao orgulho, ironizador de Homero, açoite” léxis, quer dizer, a forma ou estilo das narrativas
alemão, um asceta
Livros II e III, a poesia é tomada como “uma mesma moeda espúria. Pela radicalização ou pelo (Poética, IX, 18). poéticas. Apesar da suma importância do Livro
inveterado: “a arte,
na qual precisamente destruição da inteligência” (República, 595b) abrandamento, as duas leituras traem o essencial Portanto, aquilo que Platão chama de “velha X para a realização de um estudo mais completo
a mentira se santifica, no Livro X. O combate tão virulento aos poetas da reflexão platônica, travestindo-a de traços
a vontade de ilusão divergência” (palaià diaphorá) entre filósofos e do tema, tornar-se-ia necessário elucidar vários
tem a boa consciência costuma soar estranho ao leitor moderno. Ora, e problemas estranhos ao contexto histórico e poetas no Livro X da República não é de maneira aspectos da ontologia e epistemologia platônicas
a seu favor, opõe-se atualmente não apenas levamos a poesia na mais filosófico de sua produção. Portanto, se levarmos alguma novidade posta por ele. A própria germi- para abordá-lo de maneira adequada, o que não é
bem mais radicalmente alta conta, como estamos habituados a identificar a questão a sério, deparamo-nos com o enigma:
do que a ciência ao nação do lógos filosófico em suas remotas origens possível, dada a modesta finalidade do presente
ideal ascético: assim sua prática e apreciação a uma minoria intelectu- por que Platão vê a poesia como um mal a ser dependeu diretamente da poesia na medida em estudo. Portanto, nosso foco de atenção localiza-
percebeu o instinto almente refinada. expurgado da cidade que está construindo em
de Platão, esse grande
que a combateu e dela se nutriu simultaneamente se na análise do lógos e da léxis, temas levantados
Afinal, por que Platão nos exortaria tão viril- lógos? A pergunta demanda solução lúcida que, num único movimento. Por um lado, a tecnologia nos Livros II e III e que constituem propriamente
inimigo da arte, o
maior que a Europa mente contra a prática poética? Respostas tão em primeiro lugar, leve em consideração os prob- da metrificação e da expressão em verso imperou o que poderíamos chamar de âmago de uma teoria
jamais produziu. Platão apressadas quanto ineficazes para resolver o lemas específicos da poesia grega imersa no seu
contra Homero: eis o no discurso dos filósofos até Platão, impelindo-os literária em Platão.
verdadeiro, o inteiro arrebatado litígio não são raras. Entre as mais próprio tempo, e, em segundo lugar, não pretenda a adotá-las por não disporem até então de outro A poesia enquanto enciclopédia
antagonismo – ali o recorrentes, limito-me a mencionar duas: (1) a salvar Platão das consequências do que ele recurso tão eficiente de elocução. Em contrapar- A poesia tal qual a entendemos contempora-
mais voluntarioso
radicalização a um extremo desproporcional da mesmo propõe. Caso contrário, incorre-se numa tida, a reflexão filosófica foi fomentada pelas neamente, a saber, experienciada grande parte
‘partidário do além’, o
grande caluniador da postura de Platão, que culmina na imputação tentativa vulgar de ajustar sua filosofia ao pala- asserções poéticas acerca da origem e conduta das vezes de maneira individual através da leitura
vida; aqui, o invo- da responsabilidade por implantar originari- dar moderno, que, a propósito, muito estranha a
luntário divinizador dos deuses, dos homens e do mundo. Ainda de um livro, certamente não pode ser equiparada
da vida, a natureza amente a semente do pensamento cerceado no marginalização da poesia por parte do filósofo. que vista como uma antagonista, a poesia foi à experiência poética grega. O livro, meio pelo
áurea.” Ver Nietzsche Ocidente (Karl Popper e Nietzsche);1 (2) tão O enigma que mencionamos, apesar de sua fundamental para a emergência da consciência qual entramos mais frequentemente em contato
(1998, § 25).
afoita quanto a primeira posição, a segunda, na complexidade filosófica, é, antes de tudo, um filosófica na Grécia. A filosofia só amadureceu e com a poesia, constitui ele mesmo um abismo
pressa de justificar o filósofo com vistas a salvá- problema histórico: quem é o poeta? O que está se tornou propriamente filosofia a partir de sua cultural entre a possibilidade contemporânea e
6.  Ver Grube (1961, p.
203, tradução minha): lo da acusação mencionada, atenua sua posição, em jogo por trás dessa figura que encarna um divergência e, consequentemente, de sua atitude a helênica de experimentar a poesia. Portanto,
“Eles são todos banidos diluindo-a num idealismo utópico estranho a seu dos lados da disputa entre filosofia e poesia? É
do estado ideal. Mas
de diferenciação em relação à poesia, inovando procederemos a um breve mapeamento da atmos-
pensamento. Para tanto, argumenta que a crítica conhecido que pensadores anteriores a Sócrates com um projeto e método absolutamente outros. fera na qual se insere o complexo de composição,
este, repito, é o estado
ideal.” à poesia insere-se apenas no ideário político de mantinham já alguma desconfiança, se não uma Sendo assim, fica claro que Platão não cria declamação e recepção que constitui aquilo que

20 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 21


passos contados
denominamos poesia grega, com vistas a esboçar escrita capaz de acomodar a identidade helênica. comovido pelos tragediógrafos no teatro da postura do armeiro é particularmente importante
possíveis aspectos ocultos pelo texto platônico Acreditamos que a conservação e transmissão pólis, o grego fez da poesia a grande escola de para nós se levarmos em conta como a poesia
devido à distância histórica e cultural entre nós e dos costumes fica a cargo do pensamento inconsci- seu tempo. Portanto, a experiência poética a grega envolve muito mais que uma experiência
8.  A esse respeito, ver nosso objeto de estudo.4 ente da comunidade e do comércio entre as gera- que Platão se refere demonstra-se absoluta- estética, sendo uma formação ética. Como uma
o livro de Eric Havelo-
Durante os dois primeiros terços do século ções, intermediada pelo elemento comum a elas, mente diferente daquela que conhecemos hoje. enciclopédia da tradição depositária do nomos
ck, Prefácio a Platão.
Um estudo detalhado V a.C., Atenas encontrava-se num estágio que que denominamos tradição. Esse depositário da Ele trata a poesia não como um fenômeno esté- e do ethos, é a ela que Céfalo recorreu invaria-
e muito erudito sobre podemos chamar de semialfabetização. Quer memória de um povo só se torna possível medi- tico apartado de sua raiz ética, tal como já faz velmente para munir-se em sua conversa com
o assunto é empreen-
dido. O autor procede dizer, apesar de a tecnologia da escrita se encon- ante algum arquétipo verbal; quer dizer, ele exige Aristóteles em sua Poética. A poesia até então é Sócrates e provavelmente também para a regula-
a uma frutífera análise trar plenamente desenvolvida, a exemplo da qualquer tipo de enunciado linguístico comum, a enciclopédia não apenas do saber, mas do saber ção de sua vida cotidiana, ideia reforçada por sua
do padrão cultural recente reforma responsável pela transposição do uma expressão efetiva de alcance ostensivamente moral, o que para Platão é inadmissível. O caráter retirada para o sacrifício.
grego e do lugar es-
tratégico da poesia na alfabeto ático para o modelo jônico, sua utiliza- geral, que atinja o âmbito público e privado do holístico da República impõe a demanda de anal- Por desertar da discussão, Polemarco, filho de
formação e transmis- ção cotidiana entre o povo grego estava em grupo. No caso do mundo grego, a única tecnolo- isar a poesia em sua totalidade: composição, Céfalo, vem a substituí-lo. Na trilha das palavras
são da cultura, o que,
por sua vez, argumenta
processo de lenta difusão. Portanto, apesar de a gia verbal de alcance irrestrito e simultaneamente declamação, recepção e consequências, seja na do pai, este defende que a justiça é tal qual disse
Havelock, inspirou a escrita já se colocar a disposição como tecnologia muito eficaz em sua capacidade de conservação alma do ouvinte, seja no metabolismo da pólis. A Simônides: “é justo restituir a cada um o que se
contestação por parte de expressão disponível, o modelo oral permane- era a fala rítmica, habilmente organizada em posição platônica em relação aos poetas é, dessa lhe deve” (República, 331e), reformulado em:
de Platão.
ceu predominante. Ou seja, ainda que a leitura e padrões verbais e métricos, singulares o bastante maneira, fundamental para a proposta educacio- o justo é “fazer o bem a seus amigos” e o “mal a
a escrita fizessem parte do programa de estudos para que não fossem facilmente olvidados. nal e política da República. Ao falar da poesia, seus inimigos” (República, 332d), e, finalmente,
do homem grego rico e livre, o sistema educacio- Podemos citar o catálogo das naus presente Platão insurge-se contra a educação de seu tempo “a justiça consiste em servir seus amigos e preju-
nal do século V a.C. nunca deixou de recorrer aos na Ilíada como exemplo dessa tão eficiente numa contestação severa do conhecimento tradi- dicar seus inimigos” (República, 334b). Medi-
métodos tradicionais de instrução balizados na tecnologia de conservação da memória. Sem cional veiculado pelos versos dos poetas, dos até ante a inquisição contínua por parte de Sócrates,
esfera da oralidade. De qualquer modo, mesmo embargo, qual a finalidade de enumerar um a então mestres da verdade.5 Polemarco é incitado a reformular e refinar 9.  Ver Detienne
conhecendo a tecnologia da escrita, a aristocra- um os barcos dos aqueus presentes na incursão Os versos dos poetas no imaginário do cada vez mais suas afirmações de maneira a não (1988).
cia grega (que majoritariamente coincidia com a a Troia se não a de conservar para a posteridade homem grego assumi-las de pronto através dos versos gravados
elite intelectual) comumente mantinha a leitura nomes de homens e lugares? Ainda, como seria A trama da República se inicia quando Sócrates na memória.
como tarefa de escravos, o que, de alguma forma, possível reter tantas informações sem dispor da é interpelado por jovens na volta de uma festa em Fica clara a intenção socrática de friccionar as
remodelava a experiência em uma “audição”, uma escrita como dispositivo de depósito da memória? homenagem a Ártemis. Concordando em ir até a afirmativas dos poetas a fim de encontrar alguma
experiência oral. É somente através da tecnologia desenvolvida a casa de Céfalo, pai de um deles e rico fabricante fraqueza latente em suas definições e diretrizes,
Peguntamos: como uma organização social serviço da memorização que os poetas puderam armas, Sócrates se põe a conversar com os jovens sendo que essa é a postura adequada ao dialé-
que até o século VIII a.C. permanecia ágrafa ou manter tal conteúdo vivo através dos séculos. e o ancião. Após falar animadamente sobre a idade tico, ao filósofo. Se assim é, nem sempre Platão
semiágrafa, e durante os dois séculos posteriores Admitindo-se a cultura da oralidade rein- avançada do armeiro e da fortuna acumulada por rejeitará as asserções da poesia como um bloco
utilizou-se da escrita ainda timidamente, pôde ante até então, conclui-se que daí deriva o que ele, é colocado em pauta o tema que perpassa e único a ser descartado; ao contrário, impõe-se
conservar a organização social dessa civiliza- podemos chamar de um estado mental oral, uma justifica todo o diálogo: a justiça. a necessidade de testá-las uma a uma medi-
ção? Referimo-nos à lei pública e privada, suas disposição psicológica adequada à tecnolo- Céfalo não é capaz de dar seguimento à ante exame dialógico para então assenti-las ou
tradições, sua identidade histórica e cultural. gia de comunicação baseada na expressão oral. conversa com Sócrates e os jovens. Questionado repudiá-las conforme resultado do exame. É certo
Enfim, como manter e passar às gerações poste- Nesse estado único, típico de uma cultura onde sobre a morte, sobre a origem de sua fortuna e, que, apesar do litígio entre filosofia e poesia,
riores o ethos e o nomos de um povo? Muito predomina a oralidade, existe uma identificação finalmente, pela definição de justiça, limita- Platão muito se nutriu dos poetas, em especial de
embora a escrita constitua-se como meio efici- anímica entre declamador e ouvinte, em que são se a reproduzir de memória os ditos dos poetas. Homero, ao qual não esconde sua profunda admi-
ente de sedimentação cultural, ela não dispunha mobilizados todos ou quase todos os recursos Primeiro citando Sófocles, depois Píndaro, Céfalo ração. Também respeitava Ésquilo, que, inclusive,
de um alcance totalizante e abrangente de todas psíquicos deste a serviço da memorização. Quer demonstra sua incapacidade de penetrar no serve de norte para o diálogo na boca de Gláucon
as camadas da sociedade helênica. Não que o dizer, ao memorizar os versos, utiliza-se toda a âmago dos problemas colocados por Sócrates, ao exortar Sócrates a comparar a vida do justo e
alfabeto fosse visto com desconfiança, mas, por disponibilidade psíquica do ouvinte no próprio limita-se mesmo à superficialidade das formu- do injusto: “Depois de imaginarmos uma pessoa
diversos motivos, o mecanismo da oralidade ato de memorizar, restando pouco ou nada para a lações poéticas para responder a tudo que lhe é [injusta] destas, coloquemos agora mentalmente
impunha-se com alcance mais universal. Mesmo análise crítica dos mesmos. inquirido. É necessário salientar a genialidade de junto dele um homem justo, simples e generoso,
se ignorarmos a parcela analfabeta da população Nesse contexto específico, por ser a grande Platão como escritor e dramaturgo ao reproduzir que, segundo as palavras de Ésquilo, não quer
de Atenas do século V a.C., que de maneira alguma depositária dos valores e ensinamentos regula- o caráter do típico homem médio grego através parecer bom, mas sê-lo” (República, 361b).6 10.  ÉSQUILO, Os sete
era desprezível, a escrita não seria ainda o meio dores do mundo, do sentido e do costume, a pala- da figura do anfitrião. Longe de estabelecer um O dito de Ésquilo pretende, através do homem contra Tebas, 592.
par excellence de comunicação e conservação do vra dos poetas é sinônimo de paideia. Educado vínculo dialético e exasperado pelas perguntas justo, demonstrar a divergência entre ser e
nomos e do ethos gregos. Por quê? Por não existir pelos versos de Homero e Hesíodo, encantado de seu convidado, Céfalo entrega a discussão a parecer. Apesar de não se aprofundar na questão
até então um arquétipo verbal veiculado pela pela música do aedo presente no banquete, seu filho e retira-se para preparar um sacrifício. A nesse momento, já é anunciado o problema da

22 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 23


passos contados
aparência e da imagem, tão caro ao projeto da admite não perceber ainda justiça ou injustiça condizem com a verdade. Fazem parte do lógos e que, além de ser absolutamente inútil, consti-
República, constituindo mesmo seu coração os nela. falso, portanto. Explica Sócrates que isso é o que tuiria ato de impiedade por parte de quem as
Livros VI e VII. Ao substituir Adimanto, Gláucon Ao falar sobre o modo de vida frugal que acontece quando “alguém delineia erradamente, proferisse. Portanto, Sócrates postula a primeira
se propõe a fazer uma defesa da justiça pautada levariam os habitantes de tal lugar, o interlocu- numa obra literária, a maneira de ser de deuses e lei relativa ao lógos de sua cidade: “Deus não é
nas “sábias” palavras de Homero e Hesíodo, tor de Sócrates diz que ele está a organizar uma heróis, tal como um pintor faz um desenho que a causa de tudo, mas só dos bens” (República,
capazes de enumerar as vantagens da vida justa cidade de porcos, isto é, totalmente balizada na nada se parece com as coisas que quer retratar” 380c). Essa formulação acerca do deus condiz
em detrimento da injusta. esfera da necessidade humana. Ao ser exortado a (República, 377e). Sócrates salienta que, por não com o mundo da areté que Platão pretende erigir,
[Hesíodo] afirmando que para os justos fazem dar algum conforto a esses citadinos, Sócrates se serem eles mesmos poetas, não criarão os mitos a ou seja, balizado numa nova ordenação racional
os deuses com que os carvalhos “dêem glan- propõe então a formar uma cidade de luxo, onde serem contados à cidade justa, mas que, ao esta- que supõe a autodeterminação moral do indi-
des lá no cimo e abelhas no meio” e acrescenta se encontraria toda espécie de leitos, perfumes, belecer a educação do guardião, devem formular víduo sobre a base do conhecimento do bem.
que “as lanígeras ovelhas se carregam com iguarias, guloseimas, incenso, cortesãs, e que os moldes pelos quais essas histórias devem ser Outro aspecto destacado por Sócrates na
11.  HESÍODO, Os traba- seu velo”,7 e muitos outros bens dessa espécie. fosse inspirada pela pintura e pelo colorido, concebidas. Assim, haverão de proceder à análise imagem que os poetas fazem dos deuses é que eles
lhos e os dias, 232-233.
[Homero] fala também de maneira semelhante, alimentada pelo ouro, marfim e outras precio- do lógos, quer dizer, situarão o que se deve dizer aparecem como feiticeiros, personagens capazes
quando diz: “[...] como a de um rei ilustre, que sidades. Segundo Sócrates, esta é uma cidade (hà lektéon) através dessas histórias, delimitando de se transformar nas mais variadas figuras, assu-
sendo temente aos deuses, obedece ao direito. A “inchada de humores” (República, 372e). E é o conteúdo adequado do discurso. mindo o simulacro das mais absurdas metamor-
terra negra produz trigo e aveia, as árvores car- precisamente na cidade que não é sã e que se Em primeiro lugar, os mitos tradicionais veic- foses. Concordam Sócrates e Adimanto que as
regam-se de frutos, as ovelhas dão sempre crias, encontra inchada que surgirá a figura do poeta! ulados especialmente pelas palavras de Homero e melhores coisas são aquelas que estão menos
12.  HOMERO, Odisseia, e o mar fornece peixe”. (República, 363a-c)8 Ao transpor a instância da absoluta neces- Hesíodo constituem uma imagem equivocada dos sujeitas às transformações e à influência alheia.
XIX, 109-113.
Evocando outros versos dos poetas, Adimanto sidade, aparecem toda espécie de categorias deuses, a qualnão deve ser transmitida àqueles É interessante notar como a teoria das formas
disserta sobre a justiça e a injustiça por caminhos profissionais com o intuito de povoar a cidade de que estão sendo educados. De acordo com Platão, presente mais adiante atende a essa definição. Ou
multifacetados, díspares, igualmente verossí- luxo. Entre elas, surge a trupe de “toda a espé- não constituem bons exemplos as histórias que seja, é através daquilo que nunca muda e sempre
meis, até que ele mesmo se pergunta sobre o efeito cie de imitadores, muitos dos quais se ocupam versam sobre as intrigas familiares, conflitos, é do mesmo modo, no caso, as formas, que está
desses discursos na alma dos jovens, já tão incon- do desenho e cores, muitos outros da arte das assassínios e engodos por parte dos deuses. balizada a possibilidade de conhecer a verdade
sistentes e contraditórios. Apesar do prazer e da Musas, ou seja, os poetas e seus servidores, rapso- Assim, a história das sucessões que ocorrem até acerca das coisas. Portanto, a poesia que versa
beleza da poesia, ela se demonstra ineficaz em dos, atores, coreutas, empresários” (República, o tempo de Zeus segundo a Teogonia de Hesíodo, sobre deuses metamorfoseados é duplamente
postular hipóteses satisfatórias que constituam 373b). Tal cidade, em oposição àquela dos porcos, por exemplo, não podem ser de modo algum edifi- repreensível, devendo ser evitada para que não se
um corpo moral de verdadeiro conhecimento das demandará também um exército para defendê- cantes para a formação dos ouvintes, principal- blasfeme contra eles e para que as crianças não
virtudes. Constatado o caráter dúbio do discurso la. Emerge aí a importante figura do guardião mente se ainda forem crianças. Esclarece-nos as se tornem medrosas. A intenção disso, segundo
poético, passam a desconfiar de seu efeito danoso (phýlax). palavras de Sócrates acerca da censura: explicita Sócrates, é fazer com que os guardiões
na alma dos ouvintes. Impossibilitada de voltar- Com a natureza análoga à do cão de boa raça, É que quem é novo não é capaz de distinguir o ao mesmo tempo temam e se assemelhem ao
se ao exame das coisas tais quais são nelas isto é, dócil com os compatriotas e o inverso com que é alegórico do que não é. Mas a doutrina deus. Quer dizer, assim como o deus, os guardiões
mesmas, a paideia poética encerra diretrizes um os inimigos, o guardião deve ser educado de modo que aprendeu em tal idade costuma ser indel- devem ser absolutamente simples e verdadeiros
tanto nubladas, confusas e conflitantes acerca a reconhecer e refinar sua disposição natural. A ével e inalterável. Por causa disso, talvez, é que em palavras e atos, não se alterando ou iludindo
das coisas. Como é possível viver em justiça, quer educação proposta por Sócrates e seus interlocu- devemos procurar acima de tudo que as primei- os outros. As diretrizes relacionadas a como deve
dizer, ser justo tanto individualmente como cole- tores ao guardião está inicialmente conforme os ras histórias que ouvirem sejam compostas com o deus aparecer constituem a segunda regra rela-
tivamente, se as próprias definições de virtude modelos tradicionais da aristocracia grega: “a a maior nobreza possível, orientadas no sentido tiva ao lógos.
disponíveis pelo arquétipo verbal do imaginário ginástica para o corpo e a música para a alma” da virtude. (República, 378d-e) É importante ressaltar como Platão salva a
são ilegítimas? (República,396e). Muito embora adote o modelo Sócrates diz que independentemente de se mentira da condenação total na composição dos
Colocado esse problema e, portanto, deter- tradicional de educação, ou seja, música e poesia, tratar de poesia épica, trágica ou lírica, a imagem mitos: “E, na composição de fábulas que ainda há
minados a observar o surgimento da justiça e é na análise detalhada da educação do guardião do deus deve ser representada tal qual realmente pouco nos referíamos, por não sabermos onde está
da injustiça na alma do indivíduo e na cidade, que Platão vai de encontro à poesia, revoluciona- se apresenta, a saber, essencialmente bom e a verdade relativamente ao passado, ao acomodar 13.  Essa passagem é
Sócrates e seus interlocutores fundam uma cidade ndo a paideia de seu tempo. responsável apenas pelas coisas boas. Não devem o mais possível a mentira á verdade, não estamos classicamente levada
em conta por aqueles
em lógos. A cidade tem sua origem na constatação A louvável mentira ser imputadas ao deus ações vis e a origem de a tornar útil a mentira?” (República, 382d). que pretendem deli-
de que o indivíduo por si não é autossuficiente Tomando as fábulas (mythos) como traço qualquer mal.9 O ataque a Homero e a todos os Em 377a, o mito é identificado com menti- near o que se poderia
chamar de teologia
na satisfação de suas necessidades. Portanto, interno ao gênero da música (mousiké), Sócrates poetas que situam nos deuses a causa das mais ras, embora contenham em si algumas verdades.
platônica, que parece
enumerando e suprindo as demandas humanas discerne dois gêneros presentes nelas: o lógos variadas desgraças é severo. Sócrates diz que esse Logo, a solução encontrada por Platão está na herdar muito da posi-
mais primárias, a saber, alimentação, habitação verdadeiro (alethés) e o lógos falso (psêudos). Os tipo de história, a exemplo dos sofrimentos de gestação de um gênero intermediário capaz de ção de Xenófanes de
Cólofon. Note-se o uso
e vestuário, Sócrates acredita haver fundado interlocutores concordam então que as fábulas Níobe, dos Pelópidas ou da incursão a Troia, não produzir um horizonte educacional pautado nos do singular ao falar do
uma verdadeira cidade (alethés pólis). Adimanto (ou mitos) presentes no discurso dos poetas não deve ser contada, seja em prosa, seja em verso, mitos com nobreza (kalôs mythos), ao contrário deus em 379b-d.

24 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 25


passos contados
do que vinham fazendo os poetas até então. Quer conteúdo do discurso, o que dá lugar à pesquisa avessos como alternativa a ser adotada. No caso está insurgindo-se não contra inofensivos versos
dizer, o problema não está propriamente no falso do estilo, uma outra característica muito cara do lógos, aceita o discurso mentiroso se nele esti- capazes de proporcionar algum prazer, mas contra a
(psêudos), mas no conteúdo daquilo que está à preleção educacional que será então tratada ver contido algo de verdadeiro e edificante; no enciclopédia do saber de sua época, contra o manual
14.  Nomes de rios sendo narrado. Ao que parece, Platão pressupõe adiante. Portanto, o problema da forma da caso da léxis, admite a forma mista que mescla prático de conduta moral e explicação da vida,
localizados no Hades.
a possibilidade de uma mentira que seja louvável! exposição (diégesis)12 desloca o foco da análise a exposição na terceira pessoa e a imitação por da morte, dos deuses, enfim, do universo grego e
15.  Odisseia XI, 489- Os princípios relativos às coisas que devem para o poeta ou mitólogo, estando em questão parte do expositor. tudo que comporta. Essa enciclopédia do saber era
491.
ser pronunciadas para educar os cidadãos de uma não mais a poesia, os mitos e seus conteúdos, Encerra-se assim a discussão posta em pauta, assimilada e assumida como orientação de pronto,
16.  O termo diégesis cidade justa prosseguem a uma crítica da poesia mas a forma do discurso em que estão contidos. isto é, o que se deve dizer e como se deve dizer o no próprio “momento mágico” da recepção, em
comporta em si mais
apoiada na censura do que pode prejudicar o Sócrates diz que “tudo quanto dizem os poetas que há de ser exposto, narrado, contado, expli- grande parte por mobilizar quase que integralmente
de um significado e
variadas possibilidades desenvolvimento da coragem e do domínio de si. e mitólogos” é uma diegese “de acontecimen- cado à cidade. Nada melhor então que as conclu- os recursos psíquicos no ato de memorização.
de tradução. Adotare- Sócrates e Adimanto concordam em banir todas as tos passados, presentes ou futuros” (República, sivas e irônicas palavras de Sócrates em relação Ao pensar sobre a prática poética na elabora-
mos o termo diegese
como correspondente menções terríveis que são feitas à morte através 392d). São discernidas três possibilidades para a àquilo que compete ao poeta e, consequente- ção hipotética da educação do guardião, Platão é
em português por se do Hades e tudo o que o circunda, como aqueles exposição: (1) a diegese pura, na qual o expositor mente, à sua arte:13 absolutamente original em sua análise e crítica 17.  Platão trata ainda
adequar às pretensões dos modos, ritmos e
nomes capazes de arrepiar os ouvintes, a exemplo fala como ele mesmo durante todo o tempo, isto Se chegasse à nossa cidade um homem apar- da poesia, fundando no Ocidente o que podemos
do presente trabalho, harmonias musicais,
não tencionando, de Cocito e Estige.10 Segundo Sócrates, nenhuma é, procede a uma narrativa na terceira pessoa; (2) entemente capaz, devido à sua arte, de tomar chamar de uma teoria da literatura. Examinados objetos que não ana-
portanto, resolver a dessas histórias é de forma alguma edificante, a mimética, através da qual o poeta assemelha-se todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso o lógos e a léxis do discurso e propondo novas lisaremos no presente
questão. O controverso estudo.
termo compõe o gesto e, pelo contrário, infundem medo e covardia a alguém na voz e na aparência, imitando-o; (3) por se exibir juntamente com os seus poemas, diretrizes para sua composição, Platão coloca em
inaugural da teoria àqueles que as escutam. Como produzir guardiões a mista, em que o poeta alterna entre a simples e prosternávamo-nos diante dele, como de um xeque a paideia grega, conquistando o espaço da
literária no Ocidente, valentes e destemidos se são constantemente a mimética, sendo o caso, portanto, de Homero. ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir- reflexão filosófica que se configurou como o novo
que, quando retomado
por Aristóteles, foi assombrados em seu imaginário pela imagem Sócrates parafraseia Homero no episódio em que lhe-íamos que na nossa cidade não há homens passo que era dado pela consciência helênica.
eficaz para proceder à equivocada que fazem da morte? De acordo com Crises, o sacerdote de Apolo, tem seu pedido de dessa espécie, nem sequer é lícito que existam, A retomada do tema da poesia no Livro X é
distinção dos gêneros
por um longo tempo.
Sócrates, eles devem preferir a morte à derrota e resgate da filha negado por Agamenon, com e mandá-lo-íamos embora para outra cidade, interpretada por alguns como um adendo, um
Muito embora Aristóte- à escravidão, o que não acontece se acreditarem vistas a demonstrar como seria o trecho reprodu- depois de lhe termos derramado mirra sobre a apêndice adicionado superficialmente e desto-
les tenha transportado nos versos de Homero que carregam as palavras zido através da exposição em terceira pessoa. cabeça e de o termos coroado de grinaldas. Mas, ante do corpo do diálogo. Se formos um pouco
o núcleo de sua classi-
ficação dos gêneros da da sombra de Aquiles no Hades: “Antes queria Delineia-se aqui a desconfiança a ser confir- para nós, ficaríamos com um poeta e um narra- mais condescendentes, não poderíamos identifi-
diégesis para a mímesis, ser servo da gleba em casa de um homem pobre, mada por Platão no Livro X em relação à mímesis, dor de histórias mais austero e menos aprazível, car nessa retomada algo da dialética descendente
o termo é de grande
que não tivesse recursos, do que ser agora rei de associada, nesse momento, à crítica da poliprag- tendo em conta a sua utilidade, a fim de que da caverna? Quer dizer, o tema que, de certa
importância também
por haver sido utilizado quantos mortos pereceram” (República, 386c).11 matía, ou seja, da multiplicidade de ações por ele imite para nós a fala do homem de bem e se forma, introduziu o diálogo não deve ser reto-
pela primeira vez em Seguindo o mesmo princípio, devem ser bani- parte dos imitadores que, dessa forma, neces- exprima segundo aqueles modelos que de início mado após conquistadas as ferramentas para sua
Platão. A esse respeito,
ver Brandão (2007). dos todos os discursos que preguem a lamenta- sariamente devem ludibriar ao executá-las. regulamos, quando tentávamos educar os mili- solução satisfatória? Acreditamos que é somente
ção ou a fanfarronice por parte dos heróis. Como Quer dizer, se Homero finge ser um general ao tares. (República, 398a-b) após os Livros VI e VII que o problema da mimese
modelos a serem seguidos, estes não devem imitar o rei dos aqueus, não significa que ele de Conclusão tem a possibilidade de ser abordado pelo prisma
aparecer chorando e lastimando sua sorte, ou fato conheça algo da arte militar. Mais uma vez, A República, livro-chave para compreender a da teoria das formas e resolvido adequadamente.
mesmo procedendo de modo avesso, entreg- o importante discernimento entre ser e parecer postura de Platão em relação aos poetas, termina Determinado a traçar as coordenadas de uma
ues ao riso e ignorantes da disciplina. Ambas as se faz patente. Os homens imitadores precisam com a expulsão dos mesmos da cidade no Livro educação capaz de conduzir à harmonia da alma
diretrizes pretendem manter o ânimo do guardião enganar seu público se passando por aqueles que X. Para compreender esse desfecho, é necessário voltada para a ideia do Bem, a crítica aos poetas
coeso, inabalável e reforçado por histórias úteis imitam para de fato lavrarem uma mimese bem que tenha sido claramente exposta a posição que combateu, antes de tudo, a ambivalência do
para sua formação. sucedida. Não é necessário tornar-se político para defendemos na primeira e na segunda seção do divino no discurso poético, assim como a recepção
Finalmente, postulam o que se deve dizer imitar a arte política, portanto. É dessa fraqueza presente trabalho, a saber, (1) a disputa entre problemática da poesia pelo público, isto é, crua
acerca dos homens. Segundo Sócrates, os poetas inerente ao próprio ato mimético que, segundo filosofia e poesia já existia entre os pensadores e sem análise. É na recepção que reside também o
promoveram grande equívoco e disparataram ao Platão, tanto se aproveitaram os sofistas na anteriores a Sócrates e constituía um lugar problema da sofística, que fazia o uso das asser-
dizer que muitos dos homens injustos são felizes produção dos mais variados discursos, impondo comum à prática filosófica colocar o saber poético ções poéticas indiscriminadamente, de modo a
e que muitos homens justos são desgraçados, um relativismo contra o qual sua filosofia se opõe em questão; (2) a experiência poética grega é construir discursos de toda ordem, instaurando
obedientes à crença de que é vantajoso cometer ferozmente. em muitos sentidos absolutamente diferente da assim um relativismo que não era visto com bons
injustiças se elas não forem descobertas. Para Sócrates admite que a forma mista de dieg- nossa, já que nela a oralidade é determinante na olhos por Platão.
converter a situação, basta prescrever aos poetas ese também possui seus encantos, além de composição, declamação e recepção da poesia, Quando lemos que o resultado da “velha
que digam o contrário, de acordo então com o agradar muito mais às crianças, aos preceptores sendo, assim, algo bem mais complexo que a divergência” é a recusa de certa espécie de poesia,
modelo de virtude proposto por Platão. e à multidão em geral. Mais uma vez, Platão simples experiência estética. entendamos também que a cidade é tomada analo-
Findam-se as considerações concernentes ao escolhe a forma intermediária entre dois gêneros Portanto, ao recusar a tradição poética, Platão gamente à alma. Para que sejam bem governadas,

26 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 27


passos contados
alma e cidade, convém liberá-las das crenças e
dos apegos incompatíveis com a nova consciência Sobre “Doxa” e “Aletheia”1
que surge, a consciência do filósofo, daquele que
pretende se tornar o novo mestre da verdade.
Referências Guilherme W. O. Moraes | Graduando em Filosofia, UFMG
ARISTÓTELES. Poética. Tradução e comentários
de Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
BRANDÃO, Jacyntho Lins. Diegese em Repúbli- Resumo: François Zourabivichvili destaca corretamente a insistência de Gilles Deleuze em se posicionar
ca 392d. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Hori- contra as metáforas. Não só Deleuze se recusa a ler outros autores metaforicamente, como ele não quer
zonte, v. 48, n. 116, p. 351-366, jul.-dez. 2007. que seus conceitos sejam lidos como metáforas. Por isso, “quando Deleuze diz o que faz, ele diz: escrevo
DETIENNE. Os mestres da verdade na Grécia Ar- literalmente” (Zourabivichvili), a despeito de percebermos quase como uma característica do estilo de
caica. Tradução de Andréa Daher. Rio de Janeiro: Deleuze a utilização de imagens (por exemplo, imagens geográficas). Acreditamos que o sentido dessa
Jorge Zahar Editor, 1988. recusa vá além de um rigor hermenêutico e que o problema não é apenas a metáfora, mas a analogia como
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos forma de pensamento. A recusa da metáfora e a necessidade de ler e escrever literalmente compõem o
filósofos ilustres. Tradução de Mario da Gama Kury. projeto de uma filosofia da diferença. O objetivo do nosso texto é apontar caminhos de uma leitura literal
Brasília: Editora UnB, 1988. dentro da obra de Deleuze que são eficazes também para compreendê-la.
GRUBE, George Maximilian Anthony. Plato’s
Thought. Boston: Beacon Press, 1961.
1. Este trabalho é fruto
HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Tradução de
de uma pesquisa feita
Enid Abreu Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996. O grande poema sobre a natureza de principais tem sido uma das questões mais difí- durante o intercâm-
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do Parmênides divide-se em três partes. Primeiro, um ceis na exegese desse texto. Se na primeira parte bio que realizei na
Universidade do Texas,
homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. prólogo escrito em linguagem iniciatória repleto do poema a investigação sobre as “opiniões dos em Austin, no primeiro
São Paulo: Martins Fontes, 1995. de imagens religiosas. Nesse prólogo, Parmênides mortais” foi tida como impossível, por que dedi- semestre de 2009.
Agradeço à valiosa
MORGAN, Michael L. Belief, Knowledge and narra um encontro entre um jovem (“κοῦρος”) car uma parte considerável do poema3 sobre
orientação do Prof.
Learning in Plato’s Middle Dialogues. In: PELLETI- e uma deusa, que antecipa sua revelação com as algo que é e foi reconhecido como falso ou sem Alexander Mourelatos
ER, Francis Jeffry; KING-FARLOW, John (Ed.). New seguintes palavras: “é certo que você aprenda sentido? Apesar de saber que uma resposta satis- e às sugestões feitas
pelo revisor anônimo da
Essays on Plato. Ontario: C.A.P.P., 1983. p. 63-100. todas as coisas – tanto o coração inabalável da fatória para essa questão exigiria uma exposição revista ConTextura.1
NIETZSCHE. Genealogia da moral. Tradução e persuasiva verdade quanto à opinião dos mortais, muito maior do que eu poderia oferecer nesse
notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Com- na qual não há verdadeira confiança” (“Χρεὼδέσε artigo, gostaria de discutir o problema da relação
2.  Chamo de “Ale-
panhia das Letras, 1998. πάντα πυθέσθαι/ ἠμένἈληθείηςεὐπειθέος entre “Aletheia” e “Doxa”. Acredito ser possível theia” o texto dos
PLATÃO. A República. 7. ed. Introdução, ἀτρεμὲςἦτορ/ ἠδὲ βροτῶνδόξας, ταῖςοὐκἔνι apresentar uma solução que toma por base uma fragmentos B2 a B8,
com exceção das linhas
tradução e notas de Maria Helena da Rocha πίστιςἀληθής”, B1. 28-30). Os ensinamentos das interpretações da teoria do conhecimento de B8. 56-61. “Doxa” com-
Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, que se seguem, então, parecem pertencer a essas Xenófanes para dizer que a “Doxa” de Parmênides preende essas linhas
1993. duas categorias. Na primeira parte, “Aletheia”, é uma “segunda melhor” descrição da realidade. mais os fragmentos
B9 a B19. A utilização
VILLELA-PETIT, Maria. Platão e a poesia na Parmênides apresenta uma visão extremamente II dos nomes “Aletheia” e
República. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo original sobre “o que é”, segundo a qual, o que Em um artigo publicado em 1963, Anthony “Doxa” para denomi-
nação das partes do
Horizonte, v. 44, n. 107, p. 51-71, jun. 2003. quer que seja considerado existente– nenhuma A. Long comentou que “o significado atribuído poema, apesar de não
mudança, geração ou corrupção–lhe pode- por Parmênides para a cosmogonia que forma ser originária de Par-
ria sobrevir. Na segunda parte, “Doxa”,2 uma a segunda metade de seu poema continua a ser mênides, é autorizada
pela oposição concei-
visão bem diferente da primeira é apresentada. altamente controverso” (LONG, 1963, p. 90-107). tual das duas partes.
Embora a deusa alerte o viajante muitas vezes Infelizmente, a despeito dos muitos estudos que Para justificativa dessa
nomenclatura em vez
sobre “a ordem enganadora de suas palavras” foram publicados sobre essa matéria desde então,
dos habituais “Ca-
(“κόσμονἀπατηλὸνἐπέων”), ela nos apre- as controvérsias não foram ainda resolvidas, e o minho da Verdade” e
senta uma riquíssima cosmologia, segundo a qual panorama de soluções propostas para esse prob- “Caminho da Opinião”
(ver MOURELATOS,
todos os fenômenos são compostos de luz e noite, lema continua a ser basicamente o mesmo: 2008, p. 66-67).
e anuncia descobertas científicas notáveis.
1. A cosmogonia não é própria de 3.  Estima-se que origi-
Apesar de haver um acordo substancial entre
Parmênides, mas um relato sistem- nariamente “Doxa” era
os estudiosos de Parmênides sobre a divisão do maior que “Aletheia”.
atizado de crenças daquela época;
poema, determinar a relação entre as duas partes (CURD, 1998, p.98).

28 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 29


passos contados
2. a cosmogonia é uma extensão do na primeira parte do poema. Contudo, a teoria ἀμφὶς ἀληθείης· δόξας δ΄ ἀπὸ não é possível apreender uma sem a copresença
τοῦδε βροτείας
Caminho da Verdade; de Long é muito rápida em acusar “Doxa” de ser da outra.
μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων
uma “digressão dentro de falsas premissas, as ἀπατηλὸν ἀκούων. No entanto, se a cosmologia de “Doxa” é coer-
3. a cosmogonia tem validade relativa quais viciam qualquer relato desse tipo” e “a qual Μορφὰς γὰρ κατέθεντο δύο ente e capaz de explicar diversos fenômenos que
como uma segunda melhor explicação do não deve ser concedida nenhuma validade”. Eu γνώμας ὀνομάζειν· intrigaram os filósofos do tempo de Parmênides,
τῶν μίαν οὐ χρεών ἐστιν - ἐν
mundo; acredito que há pelo menos três pontos impor- ainda assim a deusa não cessa de expressar sua
ᾧ πεπλανημένοι εἰσίν -
tantes que favorecem uma interpretação de τἀντία δ΄ ἐκρίναντο δέμας καὶ desconfiança das “opiniões mortais” que ela
4. Parmênides não professa que a cosmogo- tipo (3) que Long deixa de considerar e que eu σήματ΄ ἔθεντο anunciará, por exemplo, em “Doxa” B6.4-5,
nia seja verdadeira. (LONG, 1963, p. 90). gostaria de apresentar aqui. Esses pontos são: 1) χωρὶς ἀπ΄ ἀλλήλων, τῇ μὲν [...] e depois [proibí] também este, o [camin-
φλογὸς αἰθέριον πῦρ,
os comentários negativos que a deusa faz sobre ho] em que mortais sabem-nada,
ἤπιον ὄν, μέγ΄ ἐλαφρόν,
Tendo mostrado que a posição (1) já havia sido “Doxa” não são jamais uma afirmação explícita de Duas-cabeças, vagam. Pois incapacidade
ἑωυτῷ πάντοσε τωὐτόν,
abandonada pelos estudiosos de filosofia antiga, sua falsidade; 2) a apresentação da cosmologia τῷ δ΄ ἑτέρῳ μὴ τωὐτόν· ἀτὰρ Em seus peitos guia sua men-
Long argumenta pela posição (4) e tenta mostrar parmenidiana tem uma similaridade incontes- κἀκεῖνο κατ΄ αὐτό te vagante. Mas são levados
que tomar a cosmogonia como uma extensão de τἀντία νύκτ΄ ἀδαῆ, πυκινὸν
tável com as condições estabelecidas para o real Igualmente cegos e surdos, admirados, tribos
δέμας ἐμϐριθές τε.
“Aletheia” (2) ou como segunda melhor expli- por “Aletheia”; e o mais importante, 3) “Doxa” é sem julgamento (B6.4-5)
Τόν σοι ἐγὼ διάκοσμον
cação do mundo (3) seria simplesmente incom- tão cheia de descobertas científicas admiráveis ἐοικότα πάντα φατίζω, αὐτὰρ ἔπειτ΄ ἀπὸ τῆς, ἣν δὴ βροτοὶ
patível com o que Parmênides demonstrou na que seria extremamente implausível que ela ὡς οὐ μή ποτέ τίς σε βροτῶν εἰδότες οὐδέν
primeira parte do poema. γνώμη παρελάσσῃ.
pudesse ser simplesmente abandonada por πλάττονται, δίκρανοι·
Mas qual seria a revelação de “Aletheia” que Parmênides (quer tenha ele sido o autor dessas Nessa transição, a Deusa diz que não mais ἀμηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν
torna a cosmologia apresentada em “Doxa” obso- descobertas ou simplesmente estivesse envolvido apresentará um discurso fidedigno da reali- στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν
leta? Na primeira parte do poema, Parmênides νόον· οἱ δὲ φοροῦνται.
em círculos de astrônomos que as fizeram), dade, ao contrário do que acabou de fazer em
κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί τε,
põe-se a apresentar o único caminho possível entendida como uma explicação errônea e sem “Aletheia”, e nos pede que escutemos a “ordem τεθηπότες, ἄκριτα φῦλα, [...]
para a investigação racional, o caminho do “o qualquer valor como descrição da realidade. enganadora” (“κόσμονἀπατηλὸν”) de suas
que é”. O que quer que exista ou o que quer Antes de tentar dizer no que residiria a
III palavras. A seguir, Parmênides postula uma
que seja real, Parmênides afirma, deve obede- desconfiança na “Doxa”, é importante notar
Para compreender melhor a imagem que dualidade essencial de duas substâncias: noite
cer a alguns critérios – “os muitos sinais que que ela, em nenhum momento, chega a ser
quero passar sobre a relação entre as duas partes e luz. Esses dois princípios são completamente
estão no caminho” (“ταύτῃ δ΄ ἐπὶσήματ΄ἔασι uma acusação direta de falsidade. Apesar de o
do poema, faz-se necessária uma leitura mais distintos um do outro e apresentam propriedades
πολλὰμάλ΄”) descritos em B8. 2-6. Em linhas caminho da cosmologia mortal não possuir as
acurada de algumas passagens de “Doxa”. Uma opostas. Luz é quente, brilhante e seca; noite é
gerais, Parmênides enumera, nessa passa- qualidades que se espera de um conhecimento
delas é exatamente a que faz a transição entre as fria, escura e úmida. Como justificativa para a
gem, o que ele considera serem os requisitos ou seguramente estabelecido como verdadeiro, tal
duas partes em B8. 50-61. escolha desses princípios, Parmênides parece
condições para a existência das coisas. O que como vimos em “Aletheia”, talvez Parmênides não
ter em mente fenômenos celestes que podem
quer que seja, o que quer que possa ser consid- Aqui eu encerro o discurso fidedigno e o esteja convencido de que isso é o suficiente para
ser explicados pela combinação de luz e sombra.
pensamento nos autorizar a dizer que a opinião não possui
erado um elemento básico da realidade, deve Um exemplo eminente desse tipo de explicação
Sobre a verdade; a partir desse ponto aprende
ser: a) não gerado e imperecível (“ἀγένητον nenhum valor cognitivo, conforme sugere a inter-
as opiniões mortais, se dá na descoberta de que a Lua, de fato, não
kαὶ ἀνώλεθρόν”); b) todo do mesmo gênero, Escutando a ordem enganadora de minhas pretação de Long. Como nota Daniel Graham, há
possui luz própria, sendo iluminada pelo Sol, o
isto é, indivisível e contínuo (“συνεχέςkαὶ palavras. uma significativa diferença entre uma oposição
que é anunciado poeticamente em B14 “Luz-do-
Pois eles se decidiram a nomear duas formas, verdade/falsidade e uma oposição verdade/opin-
ἀδιαιρετόν”); c) imóvel, ou de modo geral, dia-na-noite, em torno da terra vagando uma
Das quais não é certo nomear uma – aqui é
imutável (“ἀκίνητον”); e d) completo e total- ião GRAHAM (2006, p. 174). Se Parmênides, como
onde eles se perderam – luz estrangeira” (“Νυκτιφαὲς περὶ γαῖαν
mente em ato (“τετελεσμένον”). Todos esses E eles distinguiram contrário em corpo e me parece, enuncia em seu poema uma distinção
ἀλώμενον ἀλλότριον φῶς”). A lua que vemos
requisitos, como foi demonstrado por Montgom- puseram sinais do segundo tipo, a balança das interpretações
circular no céu brilha na noite, mas por uma luz
Separados um do outro: a essa forma de etéreo sobre a relação entre “Doxa” e “Aletheia” deixa
ery Furth, poderiam plausivelmente ser derivados que não é dela. É interessante notar que o efeito
fogo de chama,
de um único princípio ontológico, o da impossibi- de se inclinar para a tese defendida por Long para
Sendo suave, leve, em todo lugar igual a si visual que temos dependeria, então, tanto da luz
lidade de se dizer que algo não é e de que o único mesmo recair no grupo de teorias de “segunda melhor
quanto da escuridão (seja a da própria matéria da
pensamento verdadeiro é o de que é. Contrariamente, a noite sem brilho, um corpo explicação do mundo”.
lua que reflete os raios do sol, seja a do espaço em
pesado e denso. Uma das questões mais difíceis que um defen-
Aceitando que esse é realmente o teor de volta que faz ressaltar a lua no céu noturno). Mas
Eu declaro a você que essa ordenação é
“Aletheia”, Long está certo em afirmar que o relato sor de uma interpretação de tipo (3) teria que
completamente plausível, noite e luz não podem nunca se misturar uma com
cosmológico de “Doxa” não se encaixa bem com De modo que nenhum julgamento de mortais resolver é a de como e por que o relato de “Doxa”,
a outra ou gerar-se uma à outra. Elas não compar-
as condições requeridas para uma investigação jamais te ultrapassará. (B8. 50-61). tal qual apresentado, é melhor que outras cosmo-
tilham nenhuma propriedade, são irredutíveis
verdadeira da realidade como ficou estabelecido Ἐν τῷ σοι παύω πιστὸν λόγον logias, já que ambos seriam falsos. Na ausência
entre si, complementares e indissociáveis, pois
ἠδὲ νόημα
30 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 31
passos contados
de um critério claro, as interpretações de tipo (3) científicos, afirma: consegui mostrar que eles não são mutuamente Oὔτοι ἀπ’ ἀρχῆς πάντα θεοὶ 7.  Talvez tal teoria
careceriam de sentido. Nós temos confiáveis relatos que Parmênides excludentes, ainda é preciso explicar melhor θνητοῖς ὑπέδειξαν, nem mesmo seja pos-
ἀλλὰ χρόνῳ ζητοῦντες sível de ser apresen-
Contudo, acredito que Parmênides apre- fez pelo menos cinco descobertas empíricas o que une as visões de “Aletheia” e “Doxa”. ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον. tada, considerando a
sente, sim, esse critério, e isso é exatamente o (astronômicas) de primeira ordem: (i) A lua é Ir além das sugestões que fiz sobre aspectos precariedade de uma
Se deus não tivesse criado o mel interpretação baseada
segundo ponto que a interpretação (3) tem a seu uma esfera; (ii) a lua recebe sua luz do sol; (iii) pontuais da interpretação de “Doxa” e oferecer em tão poucos frag-
amarelo, eles diriam
favor. É impossível deixar de notar que a segunda o crescer e o minguar da lua são irreais: são ape- uma teoria capaz de unir essas duas posições em mentos.
que figos são muito mais doces
parte do poema é escrita de maneira muito simi- nas um jogo de sombras [...]; (iv) a estrela da um todo coerente é uma tarefa que não ousarei (B38)
4.  Ou ao menos pelo lar à primeira. Mais que uma mera coincidên- tarde e a estrela da manhã são um e o mesmo empreender.7 Isso dito, gostaria de discutir, para
caráter de imobilida- εἰ μὴ χλωρὸν ἔφυσε θεὸς μέλι, 8.  Em B38 os homens
cia ou semelhança de forma, Parmênides, em astro; (v) a forma da terra é esférica. (POPPER, a questão da unidade do poema, uma plausível
de do “o que é” (ver πολλὸν ἔφασκον só poderiam saber o
sua descrição da Luz e da Noite, retoma todos 1998, p. 80). resposta que pode ser obtida a partir da inter- γλύσσονα σῦκα πέλεσθαι que é mais doce nos
ARISTÓTELES. Phys.
184b25-185a4). os requisitos (“σήματα”) de “o que é” descri- Como poderia ser que alguém tão sintoni- pretação de fragmentos de outro pré-socrático: limites daquilo que
Xenófanes, ao menos no plano religioso, experimentaram. Se
tos em “Aletheia”. Luz e noite não são geradas zado com a investigação natural de seu tempo Xenófanes de Cólofon. não conhecessem o
duvida de que seres humanos tenham acesso ao
e são imperecíveis, estão sempre presentes no como Parmênides rejeitaria resultados que ele IV mel, achariam que os
conhecimento das coisas como elas são (B34). A figos são mais doces.
5.  Ver POPPER, 1998, mundo e têm qualidades permanentes (B9.3). sabia estarem corretos e, ao invés disso, dizer que Um modo simples – mas interessante – de
p. 68-145; MOURELA- julgar por B38 e outros fragmentos, essa descon- Em B28, Xenófanes,
Elas são todas de um mesmo tipo, “[o fogo] o qualquer descrição além do ”o que é” não é nada entender a teoria do conhecimento parmenidi- seguindo a tradição
TOS, 2002, p. 47-59; fiança poderia bem ser estendida ao âmbito das
GRAHAM, 2006, p. mesmo que ele mesmo em todas as direções; senão um erro e uma falsidade? Como aceitar que ana pode ser encontrado ao nos voltarmos para de especular sobre os
180-181. ciências naturais8. O contraste entre o que é limites do cosmo, afir-
mas não o mesmo que a outra [noite]” (“ἑωυτῷ a sua descrição do movimento dos astros era tão um de seus precursores na tradição pré-socrática. ma que o único limite
verdadeiro e o que é sabido parece ser colocado
πάντοσετωὐτόν,τῷ δ΄ ἑτέρῳμὴτωὐτόν”, equivocada quanto as dadas por Anaximandro ou Apesar de ser difícil reconstruir por inteiro uma “é esse debaixo dos
com clareza. Dizer algo que se constitui o caso nossos pés” - o que ele
B8.57-58). Elas são completas se consideradas Xenófanes?6 Se tudo o que é possível dizer corre- teoria do conhecimento a partir dos fragmentos
6.  Anaximandro, por não é garantia de que eu tenha conhecimento não poderia saber de
exemplo, acreditava em conjunto; nada lhes falta, são completamente tamente a respeito do mundo já foi dito ao final de que nos restam de Xenófanes, é possível fazer fato, mas é certamente
que as estrelas, o sobre minha afirmação. Além do mais, duas ideias uma opinião plausível,
em ato. É certo que elas não são imóveis, mas até “Aletheia”, por que Parmênides se importaria em ao menos um esboço a partir de alguns fragmen-
Sol e a Lua eram na parecem estar implícitas em B34: primeiro, a de uma vez que esse é o
verdade arcos de fogo mesmo isso poderia ser mitigado no sentido de dar uma descrição tão rica e detalhada do cosmos tos diretamente relacionados à percepção e ao
uma verdade objetiva – há algo no mundo que é único limite de que
encobertos de névoa que elas são imutáveis em suas propriedades – e em “Doxa”, que não somente é maior em extensão conhecimento. ele podia ter alguma
que os fazia invisíveis o caso independentemente daquilo que eu possa experiência.
esse é um dos sentidos possíveis de “ἀκίνητον”. que “Aletheia”, mas é também original, repleta de E a verdade certa, nenhum ho-
para nós; vemos os dizer sobre isso –;9 segundo, a ideia de que há
astros somente quando Uma vez que sabemos a priori quais condições evidência empírica e muito mais adequada que mem já viu ou haverá quem
algum buraco nessa saiba sobre os deuses e todas as matérias sobre as quais não há meios de se obter
são estabelecidas como requisitos do “o que é”, as descrições de seus predecessores sobre essas 9.  Foi-me apontado
névoa permite que coisas de que digo. conhecimento.
temos elementos para avaliar e orientar nossa matérias? pelo revisor anônimo
vejamos o brilho do Pois mesmo se, na melhor das Falta de conhecimento certo, contudo, não é deste artigo, com
fogo a escapar pelos investigação sobre a natureza. Ao lidar com dife- A resposta para essa pergunta, acredito, é que hipóteses, acontecesse de uma
de modo algum uma proibição para a pesquisa ou razão, que τὸσαφές
furos. Xenófanes, por rentes sistemas que tentem explicar a natureza “Doxa” para Parmênides é uma representação pessoa dizer o que é o caso, não implica necessaria-
sua vez, acreditava que Ainda assim ele próprio não o para a validade da opinião razoável, como se vê
do cosmo, quanto mais perto de atender a válida da realidade. De fato, não é uma descrição mente a ideia de uma
todos os corpos celes-
saberia. Mas a todos foi dada a em B18. Apesar de não podermos adquirir conhe- verdade objetiva. Nesse
tes eram nuvens mais essas condições um deles chegar, tão melhor perfeita ou completa, já que falha em preencher
opinião. (B34) caso, no entanto, onde
ou menos densas e cimentos perfeitos sobre alguns assuntos – ou não
descrição da realidade ele será, ainda que não os requisitos de “Aletheia”, mas ainda assim uma τὸσαφές se relaciona
incandescentes. Essas termos alguns conhecimentos desde o princípio
nuvens-astros podiam passe definitivamente no teste. Se levarmos em que devia ser considerada provável e útil para a Καὶ τὸ μὲν σαφές οὒτις ἀνὴρ na linha seguinte com
ἲδεν οὐδέ τις ἒσται –, os seres humanos ainda têm à disposição um o τετελεσμένον, não
se apagar e reacender. consideração que qualquer descrição do mundo descrição do mundo. Como se pode depreender
εἰδὼς ἀμφί θεῶν τε καὶ ἅσσα há outra interpretação
Além disso, não faziam modo de compreender a realidade baseado em
fenomênico está afastada pelas próprias carac- do dizer da deusa que ela irá declarar uma expli- que faça sentido senão
movimentos circulares, λέγω περί πάντων
crenças que pode ser melhorado com investiga- a de algo verdadeiro
mas sim um constante terísticas do conjunto de requisitos expostos,4 cação (“διάκοσμον”) de modo que nenhum εἰ γὰρ καὶ τὰ μάλιστα τύχοι exatamente por ter
caminhar de leste a τετελεσμένον εἰπών ção (“ζήτησις”). Da interpretação de B35 e B18
pelo simples fato de querermos explicar algo que julgamento mortal irá ultrapassar quem a apre- acontecido ou ser o
oeste. O que chamamos αὐτός ὃμως οὐκ οῖ’δε. Δόκος pode-se tirar a lição de que o “ceticismo” de Xenó-
já foi mostrado ser impossível, estamos em uma nder, Parmênides realmente aceita “Doxa” como caso – enfim, uma
de Sol seria na verdade
δ’ἐπὶ πᾶσι τέτυκται. fanes podia ser considerado de maneira positiva. verdade objetiva.
uma ocorrência de situação na qual o valor de uma segunda melhor uma melhor explicação comparada a outras que já
tipo. A cada dia pela
Que sejam essas coisas acredi- Se é preciso que algumas coisas devam ser toma-
manhã veríamos um descrição é sensivelmente ampliada. haviam sido propostas. Se é possível dizer que há
tadas como se assemelhando à das como semelhantes à verdade, ainda que elas
indivíduo da classe O terceiro ponto que favorece a teoria de que uma maneira boa e uma ruim de tratar do mundo
“sol” diferente. verdade. (B35) não sejam verdade propriamente, isso não retira o
“Doxa” é uma segunda melhor explicação, ponto fenomênico, “Doxa” não pode ser uma descrição
valor da opinião justificada e não paralisa a inves-
este que só foi devidamente reconhecido há pouco da realidade absolutamente falsa ou sem sentido. ταῦτα δεδοξάσθω μὲν ἐοικότα
τοῖς ἐτύμοισι tigação. Na medida em que nossa investigação
mais de uma década,5 é o seu grande sucesso Apresentei até agora alguns argumentos em
avança com o passar do tempo, nosso conheci-
científico em explicar fenômenos naturais. Karl favor da teoria de que “Doxa” é uma segunda De modo algum os deuses revela-
mento das coisas é melhorado. Nossas conjectu-
Popper, que demonstrou uma admirável fascina- melhor teoria sobre a natureza. É inegável, no ram todas as coisas aos mortais
desde o princípio, ras justificadas podem ser melhoradas, mas elas
ção por esse assunto em seu World of Parmenides e entanto, que as duas partes do poema apresen-
Mas com o tempo, investigando, podem apenas chegar cada vez mais perto do que
desenvolveu uma interpretação muito original da tam dois entendimentos diferentes do mundo
eles descobriram melhor. (B18) seria a verdade que não conheceremos.
teoria de Parmênides baseado em seus resultados que estão em claro conflito um com o outro. Se

32 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 33


passos contados
Baseado nessa teoria de Xenófanes, Referências
Parmênides poderia estar afirmando que “Doxa”, CURD, Patricia. The Legacy of Parmenides. Las
apesar de ser um conhecimento da realidade Vegas: Parmenides Publishing, 1998.
limitado e imperfeito, é ainda assim o melhor FURTH, Montgomery. Elements of Eleatic
que temos sobre os assuntos tratados por ela. Ontology. In: MOURELATOS, Alexander P.D. The
Parmênides reconhece que sua exposição não Presocratics: a Collection of Critical Essays. Garden
pode ser o todo ou a verdadeira descrição da City, NY: Anchor, 1974. p. 241-270.
realidade, mas é assim mesmo um claro aper- GRAHAM, Daniel W. Explaining the Cosmos:
feiçoamento das teorias que eram mantidas nas the Ionian Tradition of Scientific Philosophy.
cosmologias de então. A deusa está certa em dizer Princeton: Princeton University Press, 2006.
que não devemos acreditar em suas palavras, pois, Chapter 6, Parmenides’ criticism of Ionian phi-
no fim das contas, “Doxa” não é a representação losophy, p. 148-185.
última da realidade. Se isso é assim, é possível GUTHRIE, William Keith Chambers. A History of
compreender a motivação da deusa em anunciar Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge Universi-
“Doxa”, mesmo alertando que suas palavras são ty Press, 1965. v. 2, The Presocratic Tradition from
enganadoras: se algo pode ser dito a respeito de Parmenides to Democritus.
nossa visão mortal da realidade, é mais provável GUTHRIE, William Keith Chambers. A History of
que seja algo como a “Doxa” que aquilo que era Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge Univer-
aceito pela tradição religiosa ou que foi dito por sity Press, 1962. v. 1, The earlier Presocratics and
10.  Teses semelhantes outros filósofos. Aprenda-a, diria a deusa, e não the Pythagoreans.
à que defendi foram será superado por nenhuma opinião mortal; mas LESHER, James H. Xenophanes of Colophon:
propostas anterior-
mente. Graham (2006) não se engane em acreditar que essa é a natureza fragments. Translation and commentary by James
discute a contribuição última das coisas. O caminho do “o que é” fica H Lesher. Toronto: University of Toronto Press,
de Xenófanes para a
filosofia de Parmêni-
“fora das vias percorridas dos homens” (“ἦ γὰρ 2001.
des e para a leitura de ἀπ΄ ἀνθρώπων ἐκτὸς πάτουἐστίν”, B1. 27). LONG, Anthony Arthur. The Principles of Par-
“Doxa” como segunda V menides’ Cosmogony. Phronesis, v. 8, n. 2, p. 90-
melhor teoria sobre
a realidade. Popper Neste artigo tentei apresentar um dos mais 107, 1963.
(1998), defendendo intrigantes problemas com que já me deparei ao MCKIRAHAN, Richard D. Philosophy before
uma tese do mesmo
estudar a interpretação da filosofia de Parmênides. Socrates. Indianapolis: Hackett Publishing, 1994.
tipo, argumenta pela
utilização do modelo O modo como Parmênides atinge resultados cientí- MOURELATOS, Alexander P. D. Xenophanes’
noumena/phenomena ficos incomparáveis em “Doxa”, a despeito das contribution to the explanation of the Moon’s
de Kant para compre-
ender a relação entre conclusões chegadas em “Aletheia” – conclusões light. Philosophia, Athens, v. 32, p. 47-59, 2002.
“Aletheia” e “Doxa”. que parecem negar qualquer realidade das opiniões MOURELATOS, Alexander P. D. The Route of
Prof. Mourelatos
dos homens – é um paradoxo que pede clarificação. Parmenides. Rev. and expanded ed. Las Vegas:
(2008), no prefácio da
segunda edição de The Parmênides, nos fragmentos que restaram de seu Parmenides Publishing, 2008.
Route of Parmenides, poema, infelizmente não se explica. Como espero POPPER, Karl. The World of Parmenides. Arne
defende em “Doxa” um
modelo falibilista ao ter mostrado, temos várias e importantes razões Petersen (Ed.). New York: Routledge, 1998.
qual julga semelhante para não abandonar “Doxa” como uma falsidade
ao de Wilfrid Sellars. pura e simples, como propôs Long. Mais que isso,
Compreende-se melhor
a relação entre “Doxa” podemos ver que uma interpretação plausível e
e “Aletheia” – Moure- interessante pode ser extraída a partir da compara-
latos argumenta – se
tivermos em mente a
ção entre Parmênides e seu predecessor Xenófanes.
semelhança que essas A teoria epistemológica de Xenófanes, se utilizada
duas visões do mundo como chave de leitura de “Doxa”, fornece justifi-
têm com os conceitos
de imagem manifesta e cativa para entendermos a última parte do poema
imagem científica apre- de Parmênides como uma segunda melhor explica-
sentados por Sellars.
ção da realidade. “Doxa”, entendida dessa forma,
Minhas ideias são
certamente devedoras funcionaria mais como complemento e aproxima-
a esses três autores. ção de “Aletheia” do que como sua negação.10

34 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 35


passos contados

A maldade do homem de um suposto homem natural, ou seja, de um


homem conforme deveria ter saído do seio da
o “ser” ceda seu lugar às aparências, tanto em
necessidades, quanto em importância, e é muito
4.  “Parece, a princí-
pio, que os homens
nesse estado de

e a história desperdiçada
natureza. A ideia de um homem da natureza diferente do amor-próprio e da simplicidade da natureza, não manten-
poderia representar certa condição que permi- vida do homem no estado de natureza. Rousseau do entre si qualquer es-
pécie de relação moral
tisse a aproximação de sua existência pregressa, diz em nota: nem deveres conhe-
de um “homem natural, e, por conseguinte da Não se deve confundir o amor-próprio com o cidos, não podiam ser
bons nem maus” (OC, t.
idéia unificante; não digo aqui no domínio da amor de si mesmo; são duas paixões bastante
Diogenes G. Morais Silva | Mestre em Filosofia, UFPB
III, p. 152).
doutrina, mas no domínio mesmo da existência.” diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos
(PIZZORUSSO, 1979, p. 73). seus efeitos. O amor de si mesmo é um senti- 5.  Segundo Rousseau:
Este homem, condição de possibilidade de mento natural que leva todo animal a velar pela “Hobbes pretende que o
homem é naturalmente
uma investigação, não se pode mais encontrar própria conservação e que, no homem dirigido intrépido e não procura
Resumo: O que se pretende analisar nesse texto são as causas do mal humano – investigando, sobretudo, com precisão, nem por puras conjecturas, nem pela razão e modificado pela piedade, produz senão atacar e comba-
ter”. (OC, t. 3, p. 136).
três obras de Jean-Jacques Rousseau – segundo a visão votada para uma história possivelmente por investigações filosófico-históricas, pois ele a humanidade e a virtude. O amor-próprio não 6.  “Poderá parecer
desperdiçada, de tal forma que o sentido que esse texto atribui à palavra “desperdício”, pode estar está “deteriorado” pelas “crostas” da sociedade. passa de um sentimento relativo, fictício e nas- estranho a alguém que
não tenha considerado
no declínio de um tempo histórico que se afasta de qualquer sentido de progresso verdadeiramente Este estado deteriorado talvez seja o “retrato” cido na sociedade que leva cada indivíduo a
bem estas coisas que a
“humano”, considerando que o sentido de progresso, mostra uma idéia de adiantamento. Para filósofos mais próximo daquilo que o homem constituiu fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer natureza tenha assim
como Voltaire, Kant e Condorcet, a história é analisada a partir de seus progressos, e os conflitos são para si no decorrer da sua história. Sabe-se que a outro, que inspira aos homens todos os males dissociado os homens,
tornando-os capazes de
deveras naturais para um avanço do homem quando direcionado à sua sociabilidade. Com esses elementos sua “desfiguração” se fez a partir de sua maldade, que mutuam, entre se causam e que constitui atacar-se e destruírem-
e com a análise dessa divergência filosófica, pretende-se levantar a hipótese de que a passagem escolhida implícita em suas escolhas de forma tal que o a verdadeira fonte da honra. (OC, t. III, p. 219) -se uns aos outros.”
pelo homem em seu “tempo histórico”, forma na análise desse tempo cronológico, um esgotamento do tornou mais “monstro” que homem. Em vista [nota: XV]. (Grifo nosso). (HOBBES, 1979, p. 75).

sentido puramente “humano”, e possivelmente não conduza à luz de seu “progresso” qualquer proveito. disso, seria possível uma análise dos aspectos Assim, é possível identificar que o homem
7.  Esta transformação
Palavras chave: Maldade, homem, história, Rousseau. deste declínio humano? Se a alma “deformada” do causa mutuamente os seus próprios males. O que já havia sido expli-
homem o torna quase “irreconhecível”, também o autoriza uma interpretação como essa é notar as citada no Segundo
Discurso, mas é na
torna irrecuperável? escolhas e conveniências dos homens. A título
Carta a Christophe de
A pior consequência do mal de exemplo, pode-se apontar um dos “males” Beaumont que Rous-
1. Desta forma estare- Para se pensar o conceito de mal na filosofia na história, a saber, o episódio conhecido como seau expõe de forma
Da história e do homem histórico pela análise da inscrição do “templo de Delfos”,2
mos seguindo o mesmo mais inteligível, e que
Rousseau inicia o prefácio do Segundo sobre a qual pouco se meditou e que perfaz, de Rousseau, é preciso dizer primeiramente que “Desastre de Lisboa” de 1755, que ficou marcado permite tanto a sua
caminho que Rousseau
propôs em seus textos. Discurso com a seguinte sentença: “É do homem talvez, o maior conhecimento para o homem. bem e mal são representações do homem a partir na história por ceifar vidas, as quais, em sua defesa às acusações do
da constituição de uma sociedade.4 Sobre este totalidade, se exprimiram no martírio das vítimas arcebispo, como tam-
que devo de falar” (OC, t. III, p. 131). Pensando Neste caso, Rousseau é o escafandrista3 que bém uma ampliação
minimamente no teor deste fragmento, nota-se mergulha no denso e tenebroso mar social, onde fato o autor alerta: “Evitemos, pois, confundir o desse desastre. O que se pode dizer, certamente, crítica de sua filosofia.
2.  “Conhece a ti mes-
mo”, citado no prefácio que ele traduz boa parte do pensamento do autor, o homem e sua alma se encontram “desfigu- homem selvagem com os homens que temos diante é que não foi o primeiro nem o último. Nos últi- “Quando, afinal, todos
do Segundo Discurso. os interesses parti-
uma vez que, nas obras do genebrino, é possível rados”, tal qual a “estátua de Glauco”, pois, dos olhos.” (OC, t. III, p. 152). Ora, o homem como mos dez anos notou-se uma constante repetição culares agitados se
identificar a persistência em investigar questões “a alma humana alterada no seio da sociedade se mostra “diante dos olhos” Hobbes já o vira, e o desses tipos de desastres. Muitos ainda se pergun- entrechocam, quando
3.  A metáfora que identificara em sua perversidade natural.5 De fato, tam se é o resultado de uma naturalidade, de Deus o amor de si posto
humanas, ou ainda, o que poderia se dizer da por milhares de causas sempre renovadas [...],
utilizamos nesta em fermentação se
manifestação humana em seus tempos primevos. adquiriu, por assim dizer, outra aparência, a o século XVII fomentou a inspiração filosófica ou se é obra dos homens. Ora, debates como esses torna amor-próprio,
passagem tem uma
intenção figurativa. Questões como essas parecem atravessar toda sua ponto de estar quase irreconhecível.” (OC, t. III, do pensador inglês; pois diante da crise por que já estavam presentes no século XVIII, mas o que [...], torna-os todos
Rousseau utiliza (como inimigos natos uns dos
trajetória filosófica e literária. p. 122). A passagem do homem do estado de passava a Europa e as sucessivas transformações aconteceu para a diminuição ou o fim das trági-
metáfora) no primeiro outros e faz com que
parágrafo da introdu- Entretanto não basta apenas falar do homem, natureza para o estado civil é responsável pela sociais, políticas e econômicas trouxeram a Hobbes cas consequências? Ou ainda: o que aconteceu ninguém encontre seu
ção do Discurso sobre a a perspectiva do pensamento que representava a para se preservar as vítimas? Ó homem renitente, bem a não ser no mal
é preciso meditar sobre o humano, analisar suas sua desfiguração. Cabe ao filósofo submergir nas
desigualdade a estátua de outrem.” (ROUSSE-
escolhas, considerar seus sentimentos, para profundezas densas desta sociedade civil para necessidade de poder do homem, e, portanto, isso até quando? Rousseau escreve uma carta, em AU, 2005, p. 48).
do Deus Glauco, que
Platão usa para compa- poder avaliar minuciosamente o que ele é em retirar toda crosta que nos impede de encontrar poderia estar vinculado a sua natureza humana. agosto de 1756, endereçada a Voltaire e intitulada
rar à alma no livro X da Apesar de Rousseau concordar em parte com Carta Sobre a Providência, em que vai inquirir os
si. É preciso distinguir as transformações desse o homem natural. Esta limpeza – que é tarefa da
República.
homem no decurso histórico, e para tanto, filosofia – bem como a tentativa de restauração Hobbes, ao pensar o homem como um ser perverso filósofos,8 para saber se o mal no mundo é mera
8.  Uma vez que já
podemos começar por conhecer a nós mesmos1 feitas a partir de denúncias, geraram todo tipo e intrépido,6 ele acredita que esta maldade é causa da providencia ou se é responsabilidade dos havia uma discussão
de ataque a Jean-Jacques. Eis aqui o homem própria do homem no estado social. Isto ocorre homens. À sua maneira,, o autor mostrará que a sobre esse assunto,
assim como conhecer o movimento da narrativa
entre, por exemplo,
da humanidade a partir de uma avaliação mínima histórico, o homem das vicissitudes. por vários motivos, e o principal deles está na segunda condição é mais plausível. Leibniz, Alexander
de seus episódios, ou seja, dos episódios que Homem das mudanças e desatinos, que permi- troca de uma espécie de amor-próprio do homem Observar a opulência humana e as desigual- Pope e Voltaire.
tornaram o homem “demasiadamente humano”. tiu a Rousseau investigar a possibilidade de se por uma espécie amor demasiado de si mesmo,7 dades por ela geradas pode ser uma das formas
Além disso, para avançar, pode-se começar falar de um homem social, diferente e distante ou seja, o amor-próprio, e aquele permite que de se identificar esta espécie de mal. A referência

36 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 37


passos contados
que se faz aqui se direciona à histórica ganância Talvez por isso o autor de Genebra recusara de se buscar a própria sobrevivência é substi- Outra possibilidade está no remédio do mal 13.  Por isso Staro-
humana, que cria o apego aos bens e serve de capaz de combater a si mesmo, ou seja, o remédio binski afirma que, no
veementemente a ideia da causa do mal estar tuída pelo descobrimento do benefício da união
século VXIII, a inter-
motivo e de denúncia, combustíveis para a citada ligada à providência divina. Este debate acende em grupos tem-se a primeira cisão entre o mundo capaz de cicatrizar essas feridas na sociedade há de pretação filosófica de
carta, na qual o autor supõe que a possibilidade uma nova abordagem no século das luzes, como selvagem e a sociedade. E tal cisão de forma vir do próprio mal que reconstrói14 e re-concilia o parte dos pensadores
foi baseada essencial-
de o desastre ter tomado proporções consid- cita Starobinski: “O equilíbrio da natureza foi ao alguma representa algo simples, pelo contrário, humano, como aponta Starobinski: “Não é indife- mente em uma “visão
eráveis está na própria preferência dos homens, longo do século XVIII um dos argumentos favori- tomou contornos desastrosos, pois rente, contudo, que o remédio seja imaginado providencialista da his-
que escolhem como moradia a construção de casas homeopaticamente no mal, ou que, ao contrário, tória” (2002, p. 289).
tos da físico-teologia e tornou-se quase que ao as “falsas luzes” da civilização, longe de ilumi- 14.  Assim também
umas sobre as outras, e se obstinam a salvar os mesmo tempo um tema habitual do discurso sobre nar o mundo humano, velam a transparência sobrevenha de fora, alopaticamente, para combater pensa Levi-Strauss:
seus pertences na iminência do perigo de morte, o mal por seu contrário.” (1979, p. 22). “Porque se é verdade
a realidade política” (2002, p. 285). natural, separam os homens uns dos outros,
que a natureza expul-
haja vista que “o que se abandona vale mais do A união inadiável particularizam os interesses, destroem toda A história em Rousseau e Kant sou o homem e que a
que o que se pode levar.” (ROUSSEAU, 2005, p. De fato, em tempos remotos os homens possibilidade de confiança recíproca e sub- No decurso da história do homem, encon- sociedade persiste em
oprimi-lo, o homem
9.  “Pois o próprio mal 123). Ou seja, a vida ganha sentido a partir dos precisaram se unir para enfrentar atmosferas stituem a comunicação essencial das almas tramos elementos que revelam a construção e pode ao menos inverter
que vemos não é um bens que se possui, e o apego a esses bens faz com instáveis e tempos insalubres, pois o ambiente por um comércio factício e desprovido de sin- a constituição de uma sociedade. E é neste ato a seu favor os pólos
mal absoluto, e, longe do dilema, e buscar a
que o homem prefira o resgate dos mesmos, em hostil torna irrestringível a solidão humana, e, ceridade; assim se constitui uma sociedade em constitutivo social que podemos observar a ideia
de combater direta- sociedade da natureza
mente o bem, atua vez de pôr-se a salvo de algum perigo. Na proximi- por outro lado, não há mal algum no fato de os que cada um se isola em seu amor-próprio e de uma evolução, que foi responsável pela eman- para meditar nela, sobre
em concordância com dade da ruína e da catástrofe, majoritariamente, homens se unirem. Entretanto o que interessa se protege atrás de uma aparência mentirosa. cipação do homem enquanto sujeito cognoscente a natureza da socieda-
ele para a harmonia de.” (1987, p. 48).
universal. (ROUSSEAU, há os que prezam pela salvação e o apreço aos notar talvez seja o fato de que, ao mesmo tempo Paradoxo singular que, de um mundo em que e que trouxe, em seu arcabouço histórico, os indí-
2005, p. 67). pertences e suas valias, se esquecendo da “salva- em que as intempéries da natureza – abalos a relação econômica entre os homens parece cios de que a razão ganhou espaço em relação à 15.  Rousseau vê com
ção” de suas próprias vidas. sísmicos, inundações, eras glaciais, entre tantas mais estreita, faz efetivamente um mundo de natureza. Esta evolução da humanidade, vista por desconfiança o projeto
10.  “Além disso, acre- As objeções de Rousseau mostram, nessa alguns filósofos como progresso, é interpretada do Iluminismo. Para
outras –obrigaram os homens a se juntarem, por opacidade, de mentira, de hipocrisia. (STARO-
dito ter mostrado que, ele, o homem seria
exceto a morte, que carta, que o mal é, em grande medida, produ- outro lado, podemos ver que este ato de juntar- BINSKI, 1991, p. 35). por Jean-Jacques Rousseau de forma duvidosa;16 mais feliz, assim como
quase não é um mal zido pelo próprio homem e, por isso, o autor se foi, também, responsável por suas desditas. A maldade dos homens torna-se, desta forma, ou seja, na medida em que houve uma transfor- teria evitado todas as
senão pelos preparati- suas corrupções, se
afirma preferir o otimismo filosófico,9 uma vez O “Desastre de Lisboa” não representa apenas o a mola que impulsiona o progresso de seu tempo: é mação do homem – que buscou ultrapassar seu tivesse conservado seu
vos que a faz preceder,
a maior parte de nossos que este pode ao menos aplacar o sofrimento de infortúnio das vítimas lusitanas no século XVIII, ele mesmo quem pode presidir a própria história. tempo através do uso da sua razão e se submeteu estado de natureza, em
males físicos são mais outrem; e descarta o ponto de vista de Voltaire, a buscar incessantemente seus conhecimentos, que vivia para saciar
mas também a similitude trágica desta tentativa Assim, defende-se o fato de que, para Rousseau,
uma vez obra nossa.” suas necessidades mais
(Rousseau, 2005, p. que defendera a ideia de que o otimismo apenas de união. independente das questões sobre a providên- bens e posses – mais ele se distanciou de sua elementares, e não
123). o reduzia “ao desespero” (ROUSSEAU, 2005, p. Isto reforça a tese de Rousseau de que não foi cia – embora prefira acreditar em um otimismo essência natural. mais que isto.
122). Mas, sofrimento e desespero não pare- uma boa causa os homens se reunirem, muito menos filosófico – a maldade insólita do homem é capaz Na obra Ideia de uma história universal de um
11.  Não só o medo, mas 16.  Na obra A religião
também de um lado cem se apresentar no mesmo esteio? A questão uns sobre os outros, amontoados e apegados aos de acarretar para si mesmo um desastre maior ponto de vista cosmopolita, texto de 1784, Imman- nos limites da simples
a benevolência, e de que reside aqui não é apenas sofrimento pelas bens que valem até mesmo as mais heroicas tentati- que qualquer desastre produzido pela natureza. uel Kant relata que a história se mostra, por efeito, razão, Kant tomará outra
outro as benesses e o posição, desta vez mais
proveito. Como aponta perdas materiais, mas pelas perdas huma- vas de resgate, e por isso, ainda resta responder uma A natureza se regenera, ou seja, se refaz; o na existência de um fio condutor que permite
próxima à posição de
Starobinski: “a estima e nas. Então, não parece estranho pensar que questão: “Acaso não se sabe que a pessoa de cada homem, ao contrário, renitente e sem respostas, explicar seus acontecimentos. Tais acontecimentos Rousseau.
a benevolência consti-
muitas perdas humanas se dão justamente por homem tornou-se a menor parte dele mesmo, e que se degenera. representam um progresso do homem em direção
tuem um laço pelo qual
os homens se reúnem questões materiais? Muitas vezes não é o apego quase não vale a pena salvá-la quando se perde todo A questão é: este mal pode ser abafado? Talvez, ao uso gradual e ininterrupto de sua razão, a qual,
imediatamente: nada aos bens que faz o homem sofrer quando pensa resto?” (ROUSSSEAU, 2005, p. 123). pelo seu oposto; ou seja, pelo despertar da natureza por sua vez, implica a ideia de uma “história univer-
se interpõem entre as
consciências, elas se em sua morte?10 Muito além dessa triste simultaneidade que humana mais pura e desprovida de bem e mal; ou sal” que possui uma consecução teleológica.16
oferecem espontanea- O medo parece fazer as pessoas se unirem,11 força o homem a buscar sua coletividade e ao quiçá com uma nova concepção de habitação, O meio de que a natureza se serve para realizar
mente numa evidência mas o desespero faz as pessoas se dispersarem, ou o desenvolvimento de todas as suas disposições
mesmo tempo o torna vítima eventual da tragé- de união mútua, de ganhos e lucros, de valores.
total. Em compensação,
os laços ordenados seja, “cada um por si e Deus por todos”, segundo dia está o papel crítico de Rousseau, que inter- Contudo, assuntos como esses são espinhosos e é o antagonismo delas na sociedade, na medida
pelo interesse pessoal o adágio universal. Assim como o desespero que rompe os discursos e os conflitos filosóficos fazem o homem se esquivar, se desvencilhar de em que ele se torna ao fim a causa de uma ordem
perderam esse caráter
prenuncia uma catástrofe natural faz cada um entre os pensadores naquele século – a respeito suas possibilidades, assim como já se desvencilhou regulada por leis desta sociedade”. (2004, p. 8).
imediato. A relação
já não se estabelece procurar um abrigo e cuidar de si; quando se da providência divina – para apontar as pergun- da sua própria consciência; pois é mais cômodo e Sob e através de uma visão cosmopolita, Kant
diretamente de consci- trata da competitividade humana, por exemplo, tas sobre a causa do mal no mundo não mais em talvez menos trabalhoso tentar encontrar uma vê nesta ideia a naturalidade dos conflitos e das
ência a consciência: ela
agora passa por coisas.” a ganância dos homens, que é referência aqui, o Deus, mas no próprio homem; desviando o foco causa metafísica para explicar o mal no mundo, incompatibilidades do ser humano como fatores
(1991, p. 35). adágio parece repetir um desespero humano simi- de perspectiva dos debates e das proposições porquanto, desta maneira, o homem pode atenuar necessários para atingir sua finalidade, ou seja, “o
lar, “cada um por si, cada um corre atrás do seu do seu tempo, e propondo questões no âmbito suas crises, bastando ter um pouco de resignação progresso”. Todos os infortúnios e toda ambição
12.  O questionamento
das necessidades de ganho”. Os desesperos, em ambos os casos, não são antropológico. e aguardar dias melhores, ou se nada mais restar, humana mostram uma naturalidade no que cabe
união. precisamente parecidos? Qual será “a pior conse- Se for possível pensar este questionamento,12 esperar pela providência divina,13 enquanto que de aos fatos, e vai mais longe:
quência do mal”? Qual o pior dos desesperos? veremos que no momento em que a naturalidade sua consciência, nada é exigido. “Agradeçamos, pois, à natureza a intratabili-

38 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 39


passos contados
dade, a vaidade que produz a inveja competitiva, capaz de administrar o direito e o estado, o vizinho, mas também para realçar a importância mudanças a se considerar. Portanto, tratar o 21.  Comparar com a
nota 20 desse artigo,
pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também que torna a história universal kantiana uma desse progresso. O Iluminismo, como fundamen- conceito de história em Rousseau não é volver às
onde Kant está propon-
de dominar! Sem eles todas as excelentes dis- história política. Fica claro aqui que, no tocante tação que retira o homem de sua estagnação e origens dos selvagens, mas ao contrário, é pensar do , grosso modo, a
posições naturais da humanidade permanece- ao conceito de história, as ideias do pensador preguiça e o impele à busca do conhecimento, o fato dos homens estarem aqui vivendo com o mesma questão.
riam sem desenvolvimento num sono eterno. O prussiano se distinguem das ideias do pensador e o Renascimento como limiar de um progresso bem e o mal e sobrevivendo em seu próprio mal, 22.  O que não quer
dizer tempo cíclico.
homem quer a concórdia, mas a natureza sabe genebrino, pois o conceito de progresso para artístico, deram forma à chave para se abrir os ou, quem sabe, até representando uma maldade
mais o que é melhor para a espécie: ela quer a Rousseau tem uma conotação desagradável, uma portais do progresso histórico. sem precedentes, por puro desejo de ser mal,
23.  “O tempo históri-
discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosa- vez que o homem, orgulhoso, quer sempre avan- No Tratado de metafísica, Voltaire diz: “A inveja pois “o que é, afinal, a história para Rousseau? co, que para Rousseau
mente, mas a natureza quer que ele abandone a çar seus conhecimentos, sem se perguntar pelo obrigou a preguiça a despertar e afiou o gênio de Não se define ela, justamente, como o domínio não exclui a ideia
indolência e o contentamento ocioso e lance-se sentido do que se pretende conhecer, ou pior, todo aquele que viu seu vizinho poderoso e feliz” por excelência da perversão ‘representativa’?” do desenvolvimento
orgânico, permanece
ao trabalho e à fadiga, de modo a conseguir os sem saber ao certo o que está buscando com tanto (1978, p. 79),21 ou seja, é o sentimento desprezível (FORTES, 1997, p. 26). carregado de culpabili-
meios que ao fim o livrem inteligentemente dos conhecimento. do desejo de possuir o mesmo bem alheio, a saber, Conclusão dade; o movimento da
história é um obs-
últimos.” (KANT, 2004, p. 9). Ouço os clamores distantes dessa falsa sabedoria a inveja e a cobiça, que propicia não somente a Se for possível pensar que o conceito de curecimento, é mais
O conjunto que forma essa história está para que sem cessar nos tira para fora de nós mes- busca dos bens humanos, mas implica também proveito tem a mesma conotação de “utilidade responsável por uma
além de uma mera narração de fatos ou acontec- mos, que sempre considera o presente como uma espécie de poder e felicidade humana, pois que se aproveita”, que provém, sustém, fornece, deformação do que por
um progresso qualita-
imentos, pois ela, a história, permite um movi- nada e, perseguindo sem tréguas um futuro que É, portanto, muito claro que devemos às nossas abastece e beneficia alguma vantagem; o que tivo.” (STAROBINSKI,
mento sobre o tempo, através de um pensamento foge à medida que avançamos, de tanto nos le- paixões e às nossas carências a ordem e as in- se pode constatar é que – em relação à história 1991, p. 29).
e não somente através dos dados relatados pelos var para onde não estamos, leva-nos para onde venções úteis com que enriquecemos o universo – não se tem uma resposta plausível quanto à
17.  Daniel O. Perez historiadores.17 Todas essas conclusões levaram não estaremos nunca. (Rousseau, 1995, p. 68). e é bem verossímil que Deus só nos tenha dado questão de proveito em Rousseau.24 Se a história 24.  Pois essa era a
observa que “Os acon- hipótese norteadora
Kant a grassar que haveria na sociedade uma Em 1793, em plena Revolução Francesa, essas carências, essas paixões, a fim de que nos- não tem seu proveito, é possível constatar que deste ensaio desde seu
tecimentos humanos
responderiam a uma natureza “insociável”, como se pode notar nos surge um texto de um pensador francês chamado sa engenhosidade as usasse em nosso proveito. o homem possui, e é na história que essa utili- resumo. Quanto à his-
intencionalidade fragmentos seguintes: Condorcet e intitulado Esboço de um quadro (VOLTAIRE, 1978, p. 79). dade humana foi capaz de – fazendo uso uns dos tória, se sabe apenas a
lógica a partir da qual forma com que o autor
é possível agrupá-los “Eu entendo aqui [diz Kant] por antagonismo histórico dos progressos do espírito humano, no Em se tratando de história, Voltaire foi o outros – provocar uma parte do que se pode clas- a encontra, ou seja,
e, neste sentido, é a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, qual o autor, nove anos após o texto de Kant, primeiro pensador a questionar sua utilidade, e a sificar como: o lado perverso do homem, uma puramente negativa,
preciso construir esse e “não há dúvida de
sua tendência a entrar em sociedade está ligada repercutiu a ideia de progresso histórico, a saber, chamar a atenção para a necessidade de se olhar vez que gerou desigualdade por um lado, e aban- que uma visão como
conceito de intencio-
nalidade de modo que a uma oposição geral que ameaça constante- de que os progressos do espírito humano forne- a história através de uma concepção teleológica. dono de outro. Se a história foi bem aproveitada a de Rousseau sobre a
possa ser logicamente mente dissolver essa sociedade. Esta disposição cem o fio condutor para uma interpretação racio- É possível notar este fato na pergunta “qual é a ou desperdiçada pelo homem, ainda não se pode história humana é pro-
coerente e semanti- fundamente negativa.”
camente adequado” é evidente na natureza humana.” (2004, p. 8). nal da história, o que denota que o século XVIII é história útil? Aquela que nos mostra deveres e afirmar, pois certamente haveria controvérsias. (FORTES, 1996, p. 78).
(PEREZ, 2006, p. 28). a época em que o conceito de progresso histórico direitos sem ter a aparência de nos querer ensiná- Entretanto é possível entender como e por que
É a necessidade que força o homem, normal-
é fator comum, ou seja, a ideia de que o homem e los.” (VOLTAIRE, 1978, p. 206). Rousseau se nega a reconhecer o avanço da razão
mente tão afeito à liberdade sem vínculos, a
18.  Esta referência se- a história formam um misto de desenvolvimento Outro ponto relevante a ser destacado é o fato e do “progresso” artístico e científico como algo
gue como complemen-
entrar neste estado de coerção, e, em verdade, a
regular que podem ser explicados, pois ambos – a de ambos os pensadores – Rousseau e Voltaire – benéfico e satisfatório, ou ainda, se pode consta-
to. Não abordaremos maior de todas as necessidades, ou seja, aquela
sobejo, por fugir do história e o homem – passam pelos seus diversos verem a história como um tempo linear, ao passo tar como ele se afastará das ideias dos filósofos
que os homens ocasionam uns aos outros e cu-
pretexto, que é anali- estágios de desenvolvimento.18 que Kant a vê como algo cíclico, em que os acon- de seu tempo.
sar a visão de história jas inclinações fazem com que eles não possam
A história em Rousseau e Voltaire tecimentos se repetem, e nessas repetições reside Rousseau provavelmente não se preocupou
entre Rousseau, Kant e viver juntos por muito tempo em liberdade selva-
Voltaire. A história do homem e seus progressos,19 a explicação desses acontecimentos de tempos com a história em si, mas sim com o homem
gem. (KANT, 2004, p. 10).
segundo o filósofo francês Voltaire, são vistos de em tempos. Entretanto, a diferença entre Rous- enquanto constituinte dessa história; enquanto
O que se trata então, no caso, é de mostrar por
19.  Principalmente se forma positiva, e o tempo não volta a sua origem, seau e Voltaire é que, para Rousseau, o tempo, todos olhavam para a causa do mal que possivel-
que razão o homem possui “uma inclinação para
tratando de progres- mas sim, evolui constantemente com pequenos embora linear, se fecha em seu próprio ciclo,22 de mente poderia ser respondida com question-
so das artes e das associar-se” (2004, p. 8), mas ao mesmo tempo se
retrocessos. Para o pensador francês, tanto o forma contínua; e sobretudo, que este tempo é amentos sobre a providência divina, Rousseau
ciências. desvenda no seu caráter insociável, e o que é mais
progresso natural do homem em direção à socie- visto pelo autor como algo negativo,23 enquanto segue os vestígios históricos do mal que já estava
grave, no estado natural de sua existência
dade, quanto a busca pelos seus bens e privilé- para Voltaire o tempo é linear e positivo segundo germinado no homem devido às suas escolhas;
Assim, pode-se dizer que Immanuel Kant
gios, são necessários, pois, isto era natural na o seu sentido de progresso enquanto todos se perguntavam pelos conceitos
foi o primeiro pensador a possibilitar um olhar
antiguidade, pois “o furor de adquirir os bens da Se o homem social se encontra desnaturado, de progresso, liberdade ou igualdade, Rousseau
diferente sobre a história; como aponta Lebrun:
terra acrescentava diariamente novos progressos segundo Rousseau, este é o verdadeiro senhor segue analisando suas formas, como se consti-
“É Kant e não Hegel, quem exclama como é que
às artes” (VOLTAIRE, 1978, p. 79). da história, visto que o homem natural vive o tuíram a partir do pensamento e do sentimento do
a razão, presente na cena da natureza, poderia
Voltaire compara os progressos da França e seu tempo presente; não há um porvir, portanto homem. Assim, podemos dizer que se a história
20.  Seu país de exílio. estar ausente da gesta da humanidade?” (1986, p.
da Inglaterra,20 para mostrar como a Inglaterra não há história. Se não há história, seguramente humana não foi desperdiçada, para Rousseau,
71). Kant supunha a necessidade de um “senhor”
no seu apogeu industrial estava à frente do país se pode afirmar que não há progresso, não há ela constitui, no mínimo, um regresso; é mais

40 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 41


passos contados

O conceito de ser
prudente dizer – apoiado na visão filosófica de STAROBINSKI, Jean. Le remède dan le mal.
Rousseau – que o homem foi se desviando em seu In: Rousseau secondo Jean-Jacques. Editio a cura
caminhar, rumo a um declive que a própria socie- dell‟Ufficio Attività Culturali dell‟Instituto della
dade impôs amiúde.
REFERÊNCIAS
Enciclopedia Italiana, et Faculté des Lettres, Fi-
renze: Université de Genève, 1979. (pp. 19 - 40). no período pré-crítico de Kant:
a existência no Beweisgrund
CONDORCET, Jean Antonio-Nicolas. Esboço de ______. Jean-Jacques Rousseau: A transpar-
um quadro histórico dos progressos do espírito hu- ência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre
mano. Tradução de Carlos Alberto R. de Moura, Ed. Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo,
Unicamp, Campinas, 1993. Companhia das Letras, 1991.
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do Es- ______. Ação e Reação, e aventuras de um Filicio Mulinari e Silva | Graduando em Filosofia, UFES
petáculo, Política e Poética em Rousseau. Discur- casal. Tradução de Simone Perelson, Rio de Janei-
so Editorial, São Paulo, 1997. ro, Civilização Brasileira, 2002.
HOBBES, Tomas, Leviatã ou matéria, forma e VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Tratado Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o conceito de existência/ser entendido por Immanuel Kant 1.  “O único argu-
poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de metafísica; Dicionário Filosófico. Tradução de no período pré-crítico, na obra Beweisgrund, e pontuar as consequências desse novo conceito de ser para
mento possível para
uma demonstração da
de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Marilena de Souza Chauí, 2ª ed. São Paulo, Abril a ontologia moderna. Salienta-se que os apontamentos sobre o conceito feitos na Crítica da Razão Pura existência de Deus”. A
Silva, 2ª ed. São Paulo: Abril, 1979. Cultural, 1978. pouco diferem dos apresentados no Beweisgrund e, por este motivo, a análise da existência na referida partir daqui a obra será
KANT. Immanuel. Ideia de uma história univer- referida apenas como
obra pré-crítica é fundamental e proporciona grande auxílio para a compreensão do conceito presente Beweisgrund.
sal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de no período crítico.
Ricardo Terra, 2º ed. São Paulo, Martins Fontes, Palavras-chave: Metafísica moderna; ontologia; ser; existência; posição absoluta 2.  Onde Kant fala do
2004. ser, especialmente na
relação com sua crítica
LEBRUN, Gerard, Comentário à obra ideia de
às provas ontológicas
uma história universal de um ponto de vista cos- da existência de Deus,
mopolita. In: ideia de uma história universal de um Entende-se por período pré-crítico de Kant concepções de Kant sobre o conceito de existên- ele usa o termo de modo
idêntico ao conceito
ponto de vista cosmopolita. Trad. de Rodrigo Naves aquele anterior a 1781, ano de publicação da cia, pois no período crítico estas teses são apre- de existência. Sua tese
e Ricardo R. Terra. São Paulo: Brasiliense, 1986. Crítica da Razão Pura, primeira das três Críticas sentadas en passant, como algo já pressuposto principal é que ser não
LEVI-STRAUSS, Claude. Jean-Jacques Rous- que Kant viria a publicar e que lhe dariam lugar para o desenvolvimento das demais teses ali é um predicado real que
possa ser adicionado
seau, Fundador das Ciências do Homem. In: notável na história da filosofia moderna. encontradas. Assim sendo, será observada aqui a ao conceito de algo,
Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Nos escritos do período pré-crítico, Kant se relação do conceito de existência na obra Beweis- mas ”meramente a
posição de algo ou de
Brasileiro; pp. 41-51, 1987. PEREZ, Daniel Omar. Os ocupou de problemas clássicos da metafísica, grund, uma vez que é nela em que se encontra
certas determinações
significados da história em Kant In: Philosophica, como as provas da existência de Deus e os funda- as principais teses kantianas acerca da noção de nelas mesmas” (KANT,
Revista do Departamento de Filosofia da FLUL, mentos da moral. No entanto, o filósofo recon- existência no período pré-crítico. 2001, A598/B626). Na
distinção do uso lógico
Lisboa, 2006. hecia cada vez mais nitidamente as dificuldades A existência não é um predicado ou determi- do é como cópula, o
PIZZORUSSO, Arnaldo. Le “personae” nei Dia- em se resolver esses problemas com as soluções nação existencial é indica que
o sujeito e seu predi-
logues. In: Rousseau secondo Jean- Jacques. Editio propostas pela metafísica tradicional. No tratado Logo na primeira seção do Beweisgrund, Kant
cado estão postos. Tal
a cura dell‟Ufficio Attività Culturali dell‟Instituto Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demon- atentou para o devido cuidado e empenho que se postulação diz respeito
della Enciclopedia Italiana, et Faculté des Lettres, stration des Daseins Gottes,1 publicado em 1763, deve ter com a análise do conceito de existência: ao objeto em relação ao
seu conceito (HOLZHEY;
Université de Genève, Firenze, 1979. (pp. 65 - 74). apesar do exame das provas especulativas da Hence, in these reflections I should not aspire MUDROCH, 2005, p. 62).
ROUSSEAU, J. J. Carta a Chistophe de Beau- existência de Deus ainda não ser tão preciso e to analyse the very simple and well-understood
3.  “A maior parte das
mont e Outros Escritos sobre a Religião e a Moral. negativo como o feito na Crítica da Razão Pura, concept of existence, were it not for the fact that
interpretações pós-
Tradução de José Oscar de Almeida Marques org., percebe-se que ali Kant já formulava a tese que the present case is one in which such an omis- -kantianas desco-
São Paulo, Estação Liberdade, 2005. seria mais tarde de importância central para sua sion could occasion confusion and lead to seri- nheceram que, nesse
ponto essencial [sobre
______. Discours sur les sciences et les arts; Dis- ontologia, a saber, que “a existência não é um ous errors. (KANT, 1992, 2:70). a existência], a Crítica
cours sur l‟origine et les fondemens de l‟inégalité predicado ou determinação de uma coisa” (KANT, Com a citação acima, percebe-se a importân- não corrigiu em nada
o pré-criticismo: elas
parmi les hommes. Oeuvres Complètes. Col. Bib- 1992, 2:72).2 cia de um exame minucioso que deve ser feito
consideram a causali-
liothèque de la Pléiade, tomo III, Paris: Éditions Observa-se que no período pré-crítico já com relação ao conceito de existência, a fim de se dade fenomenal como
Galimard, 1964b. estavam esboçadas em seus traços principais as evitar confusões que levem a erros graves. o único conceito válido
de causalidade, e o
______. Emíle ou de l‟Éducacion. Oeuvres teses defendidas na Crítica da Razão Pura sobre Kant advertiu que não iria propor uma existente determinável
Complètes. Col. Bibliothèque de la Pléiade, tomo o ser.3 Como ressalta Vaz (2006, p. 25), é no definição formal da existência, mas uma definição no fenômeno como o
todo da existência” (LE-
IV, Paris: Éditions Galimard, 1969. período pré-crítico que se vê com mais clareza as que primeiramente garanta o que realmente pode
BRUN, 1993, p. 152).

42 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 43


passos contados
ser dito sobre tal conceito, seja tal definição objetos intencionais: “bola” é diferente tanto Há, ainda no primeiro item do Beweisgrund, A existência como posição absoluta
negativa ou positiva. de “bola vermelha” quanto de “bola-não-ver- uma análise da diferença dos juízos existenci- Após advertir, no primeiro momento, a tese
It is not to be expected that I shall begin by of- melha”, pois à bola pode responder tanto um ais quando usados pela linguagem comum. Kant negativa de que a existência não é um predicado
fering a formal definition of existence. [...] My objeto não-vermelho quanto um vermelho. É explicitou isso ao mencionar os exemplos do determinante, Kant partiu para uma segunda tese
procedure will be like that of someone who is justamente por isso que precisamos do predica- unicórnio do mar [sea-unicorn ou narwal].7 – mais positiva – que alega que “a existência é a 7.  Unicórnio-do-mar,
também conhecido
searching for a definition and who first of all as- do “vermelho” para determinar um conceito Nonetheless, the expression “existence” is used posição absoluta de uma coisa”.9 Apesar da apar-
como narval, é um ma-
sures himself of what can be said with certainty, de um objeto, por exemplo, desta bola vermel- as a predicate. [...] But when existence occurs as ente complexidade da tese, Kant adverte logo no mífero cetáceo caracte-
either affirmatively or negatively, about the ob- ha. Caso contrário não precisaríamos de mais a predicate in common speech, it is a predicate início do item sobre sua simplicidade, uma vez rístico das águas frias
do Círculo Polar Ártico.
ject of the definition. (KANT, 1992, 2:71). um predicado além do já pensado no conceito not so much of the thing itself as of the thought que o conceito de posição absoluta é idêntico ao Unicórnios-do-mar
A partir dessas considerações iniciais, parte- “bola”. (ALTMANN, 2003, p. 279-280). which one has of the thing. For example: exis- conceito de ser em geral: possuem um dente in-
se para a análise do conceito de existência propri- Como se observa neste exemplo, o que carac- tence belongs to the sea-unicorn (or narwal) cisivo superior que se
The concept of positing or setting is perfectly
encontra enrolado em
amente dito. teriza vermelho como determinação do objeto bola but not to the land-unicorn. This simply means: simple: it is identical with the concept of be- espiral e que se projeta
No primeiro item da primeira reflexão, “A é a possibilidade de que algo que corresponda a the representation of a sea-unicorn (or narwal) ing in general. Now, something can be thought como um chifre, que
lembra a aparência de
existência não é um predicado ou uma determi- bola não corresponda a bola vermelha e nem ao is an empirical concept; in other words, it is the as posited merely relatively, or, to express the um unicórnio.
4.  “Existence is not a nação de uma coisa”,4 percebe-se implícita já no conceito bola não vermelha. Nesse sentido, algo representation of an existent thing. For this rea- matter better, it can be thought merely as the
predicate or a deter- título uma tese negativa a respeito do conceito de que corresponda a bola deve necessariamente son, too, one does not examine the concept of relation (respectus logicus) of something as a 8.  Uma hipótese forte
mination of a thing”. seria a de que, pelo
(KANT, 1992, 2:72). existência. Kant salientou que, apesar de parecer corresponder ou a bola vermelha ou a bola não the subject in order to demonstrate the correct- characteristic mark of a thing. In this case, be-
motivo acima mencio-
estranha e sem sentido, a afirmação do título é vermelha.6 ness of the proposition about the existence of ing, that is to say, the positing of this relation, nado, os juízos exis-
5.  Título original: Segundo Kant, quando se determina a tenciais não aparecem
indubitavelmente correta. Para explicar tal afir- such a thing. (KANT, 1992, 2:72). is nothing other than the copula in a judgment.
Principiorum primorum na tabela dos juízos na
cognitionis metaphysi- mação, Kant ofereceu o seguinte exemplo: completa possibilidade (a possibilidade de Além de a linguagem comum apresentar erros If what is considered is not, merely this relation Crítica da Razão Pura.
cae nova dilucidatio. Take any subject you please, for example, Julius existir) de uma coisa, nessa determinação já estão no uso do conceito de existência, é importante but the thing posited in and for itself, then this
6.  Altmann (2003, p. Caesar. Draw up a list of all the predicates which contidos todos os predicados da coisa: quando se frisar novamente que Kant defendeu a ideia da being is the same as existence” (KANT, 1992,
282) utiliza o seguinte 9.  O título completo
exemplo: suponha-se may be thought to belong to him, not excepting pensa em um objeto, tal objeto é pensado medi- impossibilidade de encontrar a existência na 2:73-74). do item é “Existence
a ideia – contrária à even those of space and time. You will quickly ante uma descrição completa de todos os seus mera análise do objeto de um juízo, uma vez que Embora Kant tenha dito que o conceito de is the absolute
tese de Kant – de que positing of a thing.
see that he can either exist with all these de- atributos. Dessa forma, a determinação de algo este só contém os predicados que o define. Como posição é demasiado simples [perfectly simple], Existence is thereby
a existência possa
determinar um objeto terminations,’ or not exist at all. (KANT, 1992, se dá pela junção de todos os predicados imag- salientado no exemplo de Júlio César, a existência há certa dificuldade no entendimento da passa- also distinguished
A qualquer. Tal deter- 2:72). ináveis que se aplicam ao objeto em questão na não faz parte dos predicados determinantes, ou from any predicate;
gem. Assim, uma explicação torna-se necessária
minação de A significa the latter is, as such,
que A pode ou não ser Como observa-se no final do trecho citado realidade. A existência não seria, dessa forma, seja, os que definem e determinam o sujeito Júlio a fim de se evitar possíveis equívocos. always posited only
pensado como exis- acima, Kant diz que o sujeito do exemplo (Júlio um predicado determinante, pois não alteraria o César. Na passagem Kant relata dois tipos de relative to some other
tente, e mais: tanto o thing.” (KANT, 1992,
César) pode existir ou não existir mesmo possu- objeto em questão: o objeto concebido e o objeto Outro ponto importante diz respeito ao uso posições, a saber, a posição absoluta e a posição 2:73-74).
objeto pensado como
A existente quanto o indo todas as suas determinações. Percebe-se real (existente) possuem os mesmos predicados. do termo conceito empírico [empirical concept] relativa. A posição relativa, caracterizada pelo
objeto pensado como que no fundo do exemplo já está inserida a afir- Explicada em linhas gerais a noção kantiana de no exemplo do narwall. O termo ressalta a liga- respectus logicus, remete à função gramatical do
A não existente são
mação de que “a existência não é um predicado/ determinação, volta-se então para o exemplo de ção entre o conceito de existência kantiano com verbo ser [dasein] como verbo de ligação (cópula)
diferentes do objeto
A. Em outras palavras, determinação de alguma coisa”. Contudo, antes Júlio César, referido na passagem do Beweisgrund. a epistemologia, principalmente no que se refere de um juízo, que faz a ligação entre dois termos
imaginar A existente e de adentrar-se no exemplo dado por Kant, é No exemplo fica explícito que, mesmo ao atribuir aos limites da linguagem lógica. A importân- (sujeito e predicativo).10 Tal posição é relativa por 10.  Entende-se o
A não existente como termo cópula como
distintos de A é imagi- necessária uma rápida elucidação da noção de qualquer predicado ao sujeito Júlio César, o mero cia epistemológica também é vista na seguinte mostrar apenas a relação (positiva ou negativa) verbo de ligação, ou
nar um objeto que está determinação presente no período pré-crítico fato de pensar nesse predicado como pertencente passagem: entre dois termos distintos em uma sentença seja, um verbo que não
fora do pensamento indica ação, mas une
para que, então, seja possível entender o motivo a Júlio César não faz Júlio César existir. No caso If one wishes to demonstrate the correctness of como, por exemplo, na afirmativa “S é P”. Dessa
e que corresponde dois termos (sujeito
ao objeto A, sem, no da noção de existência não poder funcionar como de se fazer da existência um predicado, percebe- such a proposition, one examines the source of forma, o ser [being] é somente a cópula de um e predicado). São
entanto, corresponder predicado. se ainda que, ao dizer que “Júlio César existe”, one’s cognition of the object. One says: “I have juízo e, por isso, expressa somente uma relação exemplos os verbos ser,
a A existente ou A não estar, parecer etc.
existente. Obviamente, No período pré-crítico, a melhor definição o conceito de Júlio César permanece o mesmo se seen it” or “I have heard about it from those who lógica e não existencial.
na medida em que é kantiana sobre a determinação é encontrada em comparado ao que estava apenas na mente. have seen”. (KANT, 1992, 2:72-73). Explicado o que é posição relativa, parte-
a existência que de- Assim, o exemplo de Júlio César mostra que a
sua obra Nova Dilucidatio,5 datada de 1755, onde É nítido o caráter epistemológico do conceito se agora para o conceito de posição absoluta.
termina o ser daquilo
que é independente do o filósofo diz que “determinar é pôr um predicado existência não pode ser um predicado ou deter- de existência através da importância dada ao Entende-se tal posição como absoluta simples-
pensamento, não há com a exclusão de seu oposto” (ALTMANN, minação de objeto nenhum, pois, além do fato objeto real (empírico) da qual foi retirado o mente por não relacionar meros conceitos. Dessa
como dizer qual objeto
é este. 2003, p. 278). Sobre tal passagem, Altmann dá o de conceber um objeto não assegurar que ele conceito do objeto em questão. Dessa forma, forma, o verbo ser [dasein] põe o objeto de modo
seguinte exemplo: exista, salienta-se ainda que o objeto conce- os juízos existenciais são enquadrados de uma absoluto, ou seja, existente no sentido de poder
Tomemos um exemplo: O predicado “vermelho” bido e o objeto existente são idênticos em seus forma distinta daqueles juízos lógicos em que há ser objeto de experiência e independente do
determina “bola”, pois podemos distinguir três predicados. uma mera relação entre conceitos.8 pensamento e, logo, poder falar de tal objeto

44 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 45


passos contados
sem fazer relação com outro conceito: o objeto But more is posited through an existent thing predicado “oculto”. Após as críticas feitas a Wolff forma justifica a tomada en passant das teses na
simplesmente existe, está dado, está presente: than is posited through a merely possible thing, e Baumgarten, Kant finaliza a primeira medita- Crítica da Razão Pura. Decerto, pode-se concluir
A posição absoluta [...] não tem a função de rel- for positing through an existent thing involves ção do livro na qual procura elucidar o conceito também que no Beweisgrund a posição de Kant
acionar conceitos. Este parece ser o sentido mais the absolute positing of the thing itself as well. de existência. sobre a existência aparece de modo mais claro, se
básico da noção de posição. É absoluta, primei- (KANT, 1992, 2:75). No primeiro e segundo itens da segunda medi- tomado em comparação com o período crítico.
ramente, ao que parece, porque não serve para Sobre o conteúdo, como mostra a citação, tação do Beweisgrund, Kant se dedica a explicar Salienta-se que neste artigo foram analisadas
relacionar representações. Num juízo existen- não se pode dizer que há mais no real (existente) melhor o conceito de possibilidade e mostra os as duas principais teses de Kant sobre a existência.
cial, em que o verbo “ser” tem a função de pôr do que no meramente possível, pois todas as dois elementos que a possibilidade traz consigo: Na primeira tese, conclui-se que a existência não
o sujeito de modo absoluto, uma representação determinações de um estão também presentes o aspecto lógico (formal) e o aspecto material. é predicado de uma coisa, pois não determina ou
(o conceito-sujeito do juízo) é posta, com todas no outro. Contudo, há uma diferença na forma acrescenta nada a coisa. Por conseguinte, chega-
[…] The impossible
as suas notas, de modo absoluto, ou seja, diz-se de como o objeto é posto: sobre o modo como o se a segunda conclusão sobre o ser, que afirma
always contains the combina-
que ela é existente, que pode ser objeto de ex- objeto é posto afirma-se que há mais no existente que a existência nada mais é que posição absoluta
tion of something posited with
periência, que dela se pode falar mesmo sem re- do que no meramente possível. de algo, ou seja, a existência de algo é o próprio
something which also cancels it.
lacioná-la a outro conceito. (VAZ, 2006, p. 17). O existente, além de possuir todas as determi- algo dado no mundo, presente. Em outras palavras,
I call this repugnancy the formal
Desse modo, percebe-se que a posição absoluta nações do meramente possível, envolve também conclui-se que a existência é absoluta porque não
element in inconceivability or im-
de algo nada mais é que o próprio algo posto na a posição absoluta (existência) do objeto em pode ser relativa, ou seja, não pode ser retirada de
possibility.
realidade. Nota-se, assim como na definição de questão. Assim, como conteúdo ele não se mostra meros conceitos: pode-se falar do objeto sem fazer
existência anterior, a importância da experiência mais no existente que no possível, mas, como relação com outro conceito; o objeto está aí.
It is clear from what
para o conceito de posição absoluta, uma vez que modo em que é posto, há uma diferença entre os Referências
has now been adduced that pos-
para o objeto estar de fato em um posicionamento conceitos (há mais no existente que no possível). ALTMANN, Sílvia. Juízo, categoria e existência.
sibility disappears not only when
absoluto, ele deve ser passível da experienciação. Ainda no mesmo item, Kant critica a concep- A resposta kantiana ao argumento ontológico à
an internal contradiction, as the
A existência não é um atributo que pode ser ção de existência de Christian Wolff (1697-1754) luz da Dedução metafísica. 2003. Tese (Doutorado
logical element of impossibility,
acrescentado ao conceito, ela é a posição ab- e de Alexander Baumgarten (1714-1762): em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em
is present, but also when there
soluta deste. Assim, se a existência é, segundo Wolff’s definition of existence, that it is a com- Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do
exists no material element, no da-
Kant, a posição absoluta de um objeto efetivo, pletion of possibility, is obviously very indeter- Sul, Porto Alegre, 2003.
tum, to be thought. For then noth-
tal objeto está posto, ele está no espaço, ele está minate. If one does not already know in ad- GIROTTI, Marcio Tadeu. Os limites do conheci-
ing is given which can be thought.
na experiência sensível. Portanto, a experiência vance what can be thought about possibility in mento humano na filosofia kantiana: Beweisgrund
(KANT, 1992, 2:78).
no contexto do Beweisgrund possibilita a vali- a thing, one is not going to learn it from Wolff’s e Sonhos de um visionário. Filogênese – Revista ele-
dade do conceito de simples possível, e lembre- definition. Baumgarten introduces the concept trônica de pesquisa na Graduação em Filosofia da
Como se evidencia acima, segundo o elemento
mos aqui que neste escrito Kant ainda não de- of thoroughgoing internal determination, and Unesp. v. 2, n. 2, p. __-__, 2009.
formal (ou elemento lógico), algo é possível se em
fine espaço como forma da sensibilidade pura, maintains that it is this which is more in exis- HOLZHEY, Helmut; MUDROCH, Vilem. Histori-
seus próprios termos não for autocontraditório
mas o mesmo já está relacionado com a existên- tence than in mere possibility, for it completes cal Dictionary of Kant and Kantianism. Lanham:
(Kant dá o exemplo de um triângulo-quadrado).
cia daquilo que nos aparece – representação dos that which is left indeterminate by the predi- Scarecrow, 2005.
Já para o elemento material, algo é possível se o
objetos sensíveis. (GIROTTI, 2009, p. 8). cates inhering in or issuing from the essence. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5. ed.
conteúdo material for existente ou “realizável”
Relação entre existência e possibilidade (KANT, 1992, 2:76). Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2001.
(VAZ, 2006, p. 18).
Definidas as primeiras teses, o último item da Para Kant, Wolff estaria errado ao considerar KANT, Immanuel. The Only Possible Argument
Pontuada a relação entre existência e possi-
primeira reflexão do Beweisgrund adverte para a a existência como complemento da possibilidade in Support of a Demonstration of the Existence of
bilidade, estão postas as principais ideias do
diferença entre existência e mera possibilidade [completion of possibility], pois – como anteri- God. In: WALFORD, David; MEERBOTE, Ralf (Eds.)
período pré-crítico de Kant sobre o conceito de
11.  O item recebeu o [mere possibility].11 A pergunta formulada no ormente explicitado – não há nenhuma deter- Immanuel Kant – Theoretical Philosophy, 1755-
existência/ser.
título de “Can it pro- título questiona se há mais na existência do que minação “a mais” na existência do que há na 1770. Cambridge: Cambridge University Press,
perly be said that there Conclusão
is more in existence na mera possibilidade. Para responder à questão, possibilidade: o possível já possui seu conteúdo 1992.
O desenvolvimento deste trabalho permitiu
than there is in mere Kant teve que distinguir entre o que é posto completo. LEBRUN, Gérard. Kant e o fim da metafísica.
possibility?” (KANT, analisar de modo mais aprofundado um conceito
(conteúdo) [what is posited] e como o conteúdo é A crítica de Kant a Baumgarten é um pouco Trad. Carlos Alberto Moura. São Paulo: Martins
1992, 2:75). que, geralmente, é tomado com negligência na
posto [how it is posited]. diferente da feita à Wolff. Baumgarten afirmou Fontes, 1993.
leitura das obras de Kant, a saber, a tese kanti-
As far as the former is concerned: no more is pos- que a existência complementa o que está inde- VAZ, Bruno Rafaelo Lopes. A recepção de Frege
ana sobre a existência. Foi possível notar que as
ited in a real thing than is posited in a merely terminado pela possibilidade. No entanto, Kant da noção kantiana de existência. 2006. Dissertação
teses kantianas sobre o conceito de existência
possible thing, for all the determinations and já havia salientado que os mesmos predicados (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Grad-
presentes no período crítico já estavam funda-
predicates of the real thing are also to be found das coisas “reais” estão presentes nas coisas uação em Filosofia, Universidade Federal de Santa
mentadas de modo bastante similar no período
in the mere possibility of that same thing. [...] “possíveis”, não havendo espaço para nenhum Maria, Santa Maria, 2006.
pré-crítico, na obra Beweisgrund, o que de certa
46 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 47
passos contados
da prática de si, a função exercida pelo Outro o discurso do lisonjeador? Para o filósofo, trata-se

O lugar da parrhesía e do mestre (mestre, diretor). Este Outro constitui uma condi-
tio sine qua non para que haja o processo de
de um problema que se inscreve no âmbito moral.
A lisonja aparece como aquela que impede que o

na hermenêutica do sujeito
formação de si. Neste sentido, é preciso concor- dirigido conheça a si mesmo como ele verdadei-
dar com Fréderic Gros quando este observa: “Não ramente é, de modo que o priva, sobretudo, de
posso ser chamado a alcançar certa verdade de ocupar-se consigo mesmo.
mim mesmo a não ser por um outro que me exorta O lisonjeador é inferior ao lisonjeado, e,

Jean dos Santos Vargas | Graduando em Filosofia, UFMG e me arranque de uma alienação primeira”.4
Dito de outro modo, caso não houvesse este
através desta prática, o superior pensa obter mais
qualidades do que realmente tem; por isso ele (o
4.  GROS. Foucault: A
coragem da verdade,
p. 156.
Outro, não haveria prática de subjetivação, já que lisonjeador) bajula o poder e o desvia da verdade.
o sujeito a ser formado ficaria preso em si mesmo. A parrhesía, contudo, quando necessário, age
RESUMO: Considerando as noções de mestre e parrhesía apresentadas por Michel Foucault na obra
Por isso, o pensador francês passa a comparar a como um discurso contra o poder, de modo que
denominada Hermenêutica do sujeito, este ensaio tenta investigar o escopo em que se inserem estes
necessidade de direcionamento que há aqui com ela o situa na verdade. Então, se por um lado a
conceitos, e como eles foram objetos de reflexão por parte do filósofo. O objetivo é pôr em evidência os
aquela que mais tarde vai se mostrar pertinente no parrhesía tem seu compromisso com a verdade,
diferentes modos de ser da parrhesía, e como, de posse dela, o mestre lança mão de mecanismos para
mundo cristão. Ele está se referindo exatamente à há por outro lado, uma espécie de dialética entre
promover a subjetivação no dirigido. Além disso, o texto propõe revelar as credenciais desse mestre que
confissão, em que, em ambos os casos, o dirigido o lisonjeador e o lisonjeado. Ora, o lisonjeador,
deve, por ofício, enunciar o discurso parrhético.
precisa deste Outro para que seja constituída a embora apareça em um plano inferior ao lison-
sua própria subjetivação. Acontece, portanto, um jeado, o torna impotente e até mesmo cego para
comprometimento moral em que o sujeito se iden- a verdade.5 5.  Para ilustrar isto,
tifica com o conteúdo do enunciado. O aguilhão da verdade, no sentido em que Foucault se vale da
comparação entre a
Introdução definição positiva. No primeiro momento, o filó- Todavia, há uma diferença crucial entre a se serve da parrhesía, não é fixado no terreno lisonja e a cólera. Para
1.  Aqui utilizo a ex- A concepção de parrhesía1 constitui, para sofo francês quer entender o que a parrhesía não confissão cristã e a parrhesía. A diferença está epistemológico como propõe Descartes. Logo, ele, enquanto na cólera
pressão tal como ela é
Michel Foucault, um objeto privilegiado de é, e em sua extensão, qual não é a identidade do naquele que cede o ouvido e naquele que profere não se trata de evidenciar o verdadeiro, mas sim há um abuso do poder
grafada na edição que
por parte do superior, a
está em português. No investigação. Seu interesse por este tema foi tão mestre. A análise é, por isso mesmo, por oposição. o discurso. Enquanto no Cristianismo o ouvido é de procurar a verdade no terreno moral, onde há lisonja é uma maneira
original, Foucault a
relevante que, nos anos de 1983 e 1984, o pensa- No segundo momento, propõe-se a compreender do Outro e o enunciador do discurso verdadeiro um comprometimento do mestre em falar fran- de o inferior ganhar
grafa como parrhêsia.
este poder através de
dor francês ofereceu cursos no Collège de France estes mesmos conceitos sob as lentes de Filodemo, é o dirigido, no contexto grego cabe ao mestre camente. O dirigido pode, então, ter tanto mais favores e benevolên-
com o objetivo de, justamente, refletir sobre esta o epicurista, Galeno, o médico e Sêneca, o estoico. proferir o discurso verdadeiro, enquanto aquele acesso ao verdadeiro quanto assimila os enuncia- cias.
noção. No entanto, a parrhesía já havia aparecido Resta dizer ainda que, no curso de 1982, que ouve e assimila é o discípulo. Então, pode-se dos do mestre. Por isso, o mestre deve se distan-
em análises no curso de 1982, que viria a ser o Foucault está apresentando o resultado parcial dizer que a ruptura consiste, justamente, no fato ciar e se distinguir do lisonjeador, porque os seus
embrião, por assim dizer, dos cursos posteriores. de suas pesquisas. Pesquisas estas que serão de que na confissão, o sujeito que confessa realiza efeitos são contrários: se a lisonja cega, a parrhe-
Além disso, associada à concepção de parrhe- aperfeiçoadas nos anos posteriores. Talvez venha um processo de identificação com a verdade. Há, sía faz ver; se a lisonja traz ilusão, a parrhesía traz
sía, aparece também neste primeiro momento, daí o seu receio em autorizar a publicação desses portanto, uma objetivação da verdade em que o a verdade. Se a lisonja impede, portanto, que se
mas não de forma inédita, a figura do mestre, bem cursos. Assim, os resultados apresentados aqui ouvido do Outro é o elemento chave. Já na parrhe- conheça a si mesmo, o discurso parrhetico possi-
como uma reflexão acerca do seu lugar na cultura não possuem caráter exaustivo, nem estão imunes sía grega, há uma subjetivação da verdade com o bilita o conhecimento de si.
antiga, o que aponta para uma significativa a reconsiderações do próprio autor. É importante discurso. Aqui, o ouvido do dirigido é o elemento Diante deste tópico, pode-se sublinhar que
contribuição à prática de subjetivação. Talvez, ter este panorama geral em mente, o que pode, chave. Enquanto no exemplo cristão a função do o mestre não é o lisonjeador, que parrhesía e
uma boa chave de leitura para se compreender eventualmente, vir a contribuir para uma melhor mestre é ficar em silêncio, no exemplo grego, o lisonja são opostas e que esta oposição se dá pelo
o lugar da parrhesía seja aproximá-la do mestre, leitura dos conceitos expostos neste artigo. silêncio deve ser exercido pelo dirigido. Logo, o compromisso da primeira com a franqueza e da
2.  Aqui, prefiro que é o responsável pelo discurso parrhetico2 e Por uma definição negativa: as identidades mestre não pode ser o confessor, de modo que, segunda com o convencimento. Este problema,
usar este termo, no assim, questionar o que se espera dele e o que é do mestre e a função da parrhesía embora ambos os exemplos sejam relevantes para porém, não se situa no escopo epistêmico, mas
entanto, parrhesiasta
para o mestre, servir-se da parrhesía. Por isso, se pensar a importância do mestre, há aqui uma sim no escopo moral. Então para concluir com as
também seria uma op- O mestre não é o confessor: um problema
ção sem prejuízo para o aqui, tenta-se mostrar como Foucault apresentou diferença, se quisermos, de inversão de lugar, em próprias palavras de Foucault, deve-se notar que:
de inversão de lugares
sentido. a função da parrhesía em diferentes contextos e certo sentido, entre este Outro e o discípulo. A conclusão é que a parrhesía... é exatamente a
que tipo de mestre exatamente era o encarregado Franco-falar, franqueza, abertura de coração antilisonja. É a antilisonja no sentido de que, na
3.  Libertas é a tra- e até mesmo libertas.3 Estes são, entre outros, os
O mestre não é o lisonjeador: um
de aplicá-la. parrhesía, há efetivamente alguém que fala e
dução que os latinos
significados em que se usa a palavra parrhesía,
problema moral
oferecem para parrhe- As considerações deste trabalho limitam- que fala ao outro, mas fala ao outro de modo tal
sía. Foucault, porém, se, portanto, ao curso de 1982, de modo que conforme apresentados no curso de 1982. O segundo adversário do discurso parrhetico que o outro, diferentemente do que acontece na
entende que franco- Na aula de 3 de março (segunda hora), proposto por Foucault é a lisonja. O franco-falar
-falar é uma melhor a exposição é apresentada em dois grandes lisonja, poderá constituir consigo mesmo uma
tradução. momentos: o da definição negativa e o da Foucault se propõe a investigar, sob o contexto dispensa a lisonja. Mas qual seria o problema com relação que é autônoma, independente, plena e

48 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 49


passos contados
satisfatória. A meta da parrhesía não é manter que ele efetivamente pratica.8 adiantar o discurso, de maneira que o dirigido que não há na perspectiva de Galeno, o que seria
aquele a quem se endereça a fala na dependên- Foucault desconsidera dois pontos impor- ainda não esteja pronto para recebê-lo. Nas pala- propriamente uma teoria da parrhesía.
6.  FOUCAULT. A her- cia de quem fala – como é o caso da lisonja.6 tantes ao tratar este assunto: o primeiro é que ele vras de Foucault: “segundo o texto de Filodemo, Para Galeno, como, via de regra, ama-se
menêutica do sujeito, não cita o De Oratori de Cícero, que propõe a iden- sobre o que se assenta, afinal, esta arte conjec- demasiadamente a si mesmo, o dirigido não está,
p. 458. O mestre não é o retórico:
tidade do verdadeiro retórico como aquele que tural? Pois bem, precisamente sobre a considera- de forma alguma, apto a ser médico de si, o que
um problema de engajamento
7.  GROS. Foucault: A une a ratio e a oratio. Outro ponto que passa ao ção do kairós, da circunstância”.11 levaria inexoravelmente ao estado de ilusão. 11.  FOUCAULT. A her-
coragem da verdade, A última oposição postulada por Foucault no menêutica do sujeito,
largo é que, mesmo no cristianismo primitivo, São Embora a noção de Kairós apareça de maneira Então, o dirigido precisa do Outro para que possa
p. 157. p. 468.
curso de 1982 é entre parrhesía e retórica. Antes Paulo já exortava os judeus quanto à necessidade mais peculiar na perspectiva de Filodemo, o prin- exercer este papel terapêutico na alma. Este
8.  Esta concepção de entrar propriamente nesta distinção, é preciso de engajamento no discurso. São Paulo ques- cipal elemento novo para o qual Foucault chama Outro, no entanto, não pode ser um qualquer.
aparece mais tarde pontuar melhor o que a palavra oposição significa
na carta de Sêneca a tiona: “Tu, pois que ensinas a outrem, não te ensi- a atenção é o de que a parrhesía, neste cenário, Deve-se escolhê-lo criteriosamente, pois um bom
Lucílio. aqui. Se quando se tratava da lisonja se poderia nas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve incita e intensifica o dirigido a benevolência. médico da alma não pode hostilizar e tão pouco
dizer que a parrhesía é a antilisonja, aqui, ela não furtar, furtas?”.9 Então, se a retórica é tal como Isto acontece porque, no Epicurismo, espe- lisonjear ou agir com indulgência para com o
9.  BÍBLIA SAGRADA,
p. 1137. pode ser tomada como a antiretórica. Isto, porque sustenta Cícero, esta distinção se enfraquece. E cificamente no discurso do mestre, ocorre um dirigido.
a oposição, neste contexto, se dá de outro modo. quanto à passagem de São Paulo aos Romanos, estímulo ao discurso dos alunos, o que traz à tona O passo seguinte é apresentar-se ao candidato
Pode-se dizer que a parrhesía pode se utilizar parece que a noção que é exigida do mestre, de a benevolência entre eles. Os alunos, após assimi- a diretor de consciência, que deve ser alguém
da retórica como um instrumento para exercer certa forma, também é exigida não apenas do larem a parrhesía do mestre, realizam um discurso desconhecido – sem vínculos de amizades,
o franco-falar; a retórica, no entanto, visa a mestre, mas principalmente dos discípulos no parrhetico entre eles. Este discurso, entre outros portanto – e esperar até que ele perceba aquela
convencer, mesmo que não seja exatamente nisso Cristianismo, o que pode ajudar a compreender objetivos,12 ajuda os próprios discípulos a conhe- paixão da qual é necessário tratar. Se ele não a 12.  Foucault observa
que o retórico acredite e tenha como princípios, por que o discurso verdadeiro no Cristianismo cerem a si mesmo, o que contribui para a prática identificar num primeiro momento, talvez seja que havia entre os Epi-
como observa Fréderic Gros: curistas as primeiras
fica a cargo do dirigido, enquanto no contexto de subjetivação; daí a benevolência. O que ocorre, apenas uma questão de tempo. O que se deve práticas de confissões,
a parrhesía supõe uma adesão do falante ao seu grego, é função do mestre. Estes são pontos que portanto, é uma passagem da parrhesía do mestre fazer, todavia, é reconhecer a importância da já que eles se reuniam,
enunciado; trata-se de enunciar uma verdade poderiam ser explorados e, não obstante, passam para os alunos. direção do Outro para o êxito na vida. Para Galeno, ouviam o mestre e
depois falavam o que
que constitui uma convicção pessoal, ao passo ao largo de Foucault. O guia no Epicurismo ocupa o lugar de uma todos precisam deste Outro, sem exceção; caso tinham no coração,
que o problema do retórico não é acreditar, mas Por uma definição positiva: as perspectivas sucessão que remete a Epicuro. Há, então, uma contrário, isto é, sem o diretor de consciências, inclusive suas faltas.
fazer acreditar (passagem da convicção à per- de Filodemo, Galeno e Sêneca linha vertical que remete à maestria de Epicuro, todos permanecem doentes na ilusão.
suasão).7 mas há também o que o filósofo chama de linha Então, em Galeno, o mestre se apresenta como
Para Foucault, a retórica age sobre os outros
O mestre é o incitador da parrhesía: uma
horizontal, que não são outra coisa, se não as rela- um diretor de consciência, que, ao fazê-lo, age
10.  Expressão que em benefício do orador, visando convencê-los
questão de percepção do Kairós.10
Foucault faz questão ções de benevolência mútua entre os dirigidos. como um médico. Médico não do corpo, mas da
de lembrar cujo uso à ação. Quanto à parrhesía, no entanto, embora Embora a principal fonte de pesquisa do Ora, no exemplo de Filodemo, o mestre não alma, que está, sem tal terapia, condenada à
remete a Aristóteles. também tenha sua ação sobre os outros, ela filósofo francês seja o estoicismo, ao pesquisar só promove a subjetivação no discípulo, como, doença da ilusão; doença para a qual o remédio,
promove um conhecimento de si, e com isto, sobre a parrhesía, ele vai até ao Epicurismo de ao incitar a parrhesía, retira os alunos de uma que impede a subjetivação, é a parrhesía. Ora, é
prepara o sujeito para sua própria autonomia. Filodemo, que, em seu entender, tem algo a dizer postura passiva, já que ao dirigido cabe a assimi- por isso, que o médico deve ser criteriosamente
Outra distinção importante é que a parrhe- acerca deste tema. Foucault ressalta que está lação e a produção desta técnica, que é o discurso escolhido. Isto é, se ele for lisonjeador ou agir
sía não é uma arte ou uma técnica (embora, se apoiando, sobretudo, na tese de um italiano parrhetico. Aqui, é necessário lembrar que esta com hostilidade, não será um bom administrador
como veremos adiante, seja assim que Filodemo chamado Gigante. técnica se caracteriza não apenas pelo franco- do remédio parrhetico. Então, cabe ao mestre ser
a concebe). A retórica, no entanto, não só é uma Em Filodemo, diferentemente do que se tinha falar, mas também pela percepção do Kairós. um médico imparcial, e a parrhesía aparece como
técnica, como se pode aprendê-la com um bom visto até então, a parrhesía aparece como uma Estes atributos marcam e distinguem a função do uma terapia.
orador. Ela é um meio para se alcançar um fim. técnica, uma arte. Esta técnica, todavia, é apre- mestre, bem como o que é para estes Epicuristas o
Isto é, a retórica é um instrumento.
O mestre é o paradigma: uma questão de
sentada como a percepção da ocasião em que o exercício da parrhesía.
A retórica enquanto técnica pode ser indexada
adequação entre ação e discurso
mestre deve enunciar o discurso, para que ele
à verdade, enquanto no franco-falar só pode haver
O mestre é o médico da alma: uma
obtenha o efeito que lhe apraz. Dito de outro A última perspectiva a ser considerada por
a verdade. A parrhesía viabiliza a transmissão do
questão de terapia
modo, a parrhesía neste contexto Epicurista, Foucault é a do Estoico Sêneca. A visão de Sêneca
discurso verdadeiro para quem já o possui. Por sobretudo vislumbrado através das lentes de Neste segundo momento, a investigação é não é completamente nova aqui. Ao se tratar das
isso, o mestre não pode ser apenas o retórico, Filodemo, aparece como a percepção do Kairós. voltada para o Tratado das Paixões do médico relações entre parrhesía e retórica, de alguma
embora possa, eventualmente, sem abrir mão da Ora, o Kairós não é outra coisa se não o chamado Galeno. Aqui, Foucault chama atenção forma já se referencia este pensador, sobretudo,
verdade, se utilizar desta técnica. Contudo, por momento adequado para se enunciar o discurso. para o fato de que, assim como a medicina deve quando se enfatizou que a essência da parrhesía,
definição, o discurso do mestre deve estar enga- Logo, o Kairós deve levar em consideração: 1) o conhecer a doença da qual pretende tratar, o por assim dizer, é uma concordância entre a vida e
jado a sua prática, e deve haver coerência com o estado de espírito do dirigido; 2) não deve retar- texto de Galeno visa tratar das paixões que estão a palavra. Ela realiza e concretiza em seu discurso
que o mestre entende ser a verdade e com aquilo dar o discurso demasiadamente; 3) não deve associadas ao erro. Além disso, deve-se dizer esta coerência.

50 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 51


passos contados
Na carta de Sêneca a Lucílio, a parrhesía A forma de se compreender as concepções
aparece como sendo, segundo Foucault, útil de parrhesía e do mestre se diferenciaram mais
13.  Filodemo é o à gerência da alma. Utilidade esta que se dá a em Filodemo13 – talvez justamente por ser um
único, entre eles, que conhecer quando diante da prática. Três metá- Epicurista – do que em outros pensadores. Inde-
concebe a parrhesía
foras são caras a Sêneca para ilustrar a função da pendente das nuanças que diferenciam uma ou
como uma técnica.
parrhesía: 1) a do governo; 2) a da medicina (que outra posição, fica claro como, na abordagem
aqui aparece novamente) e 3) a da pilotagem. empreendida por Foucault, a parrhesía e o mestre
Todas elas servem para ilustrar a sua relevância que dela se serve possuem um lugar central no
para a prática de subjetivação, que ele espera que cuidado de si.
Lucílio alcance. Mais tarde, em 1983 e depois em 1984,
Outro enfoque inegociável para Sêneca, Foucault vai se dedicar inteiramente a este tema.
segundo Foucault, é que a parrhesía visa fazer uma Ele irá estender suas configurações para o cinismo
transmissão pura e simples do pensamento. O que e para a política, além de distinguir tais noções do
ajuda, neste caso, a se pensar essa transmissão discurso do oráculo, da sabedoria e da técnica.
é a distinção entre o beijo que se dá na amante Se na filosofia predominou a pergunta epis-
(que é retórico) e o beijo terno que se dá em uma temológica pelo conhecimento, Foucault mostra
criança. O beijo na amante visa a algo mais; o que no período antigo (tanto na antiguidade
beijo na criança é terno, puro e simples, além de grega, quanto na romana) filosofia e espiritu-
verdadeiro. Então, com o discurso parrhetico, se alidade estão juntas, e a filosofia, por sua vez,
transmite a pureza e em sua extensão, a verdade; é tomada como uma forma de ascese. É graças a
ele não visa a quaisquer meios para se alcançar este modo de vislumbrar o saber filosófico que o
um fim; possui antes valor intrínseco. cuidado de si, aliado a todas as suas práticas de
Se a parrhesía transmite a verdade, ela não subjetivação, pode constituir mais uma peça deste
deve apenas ser ou expressar o discurso, mas grande quebra-cabeça que é a Paideia antiga.
deve, principalmente, ser selada pela conduta e Ora, em se tratando de cuidado de si, a parrhesía
pela maneira em que efetivamente o mestre vive. e o mestre têm um lugar primordial, que articula
O sujeito da enunciação age, então, de maneira verdade, técnica e subjetivação, como se tentou
adequada com o sujeito da conduta. Eis aí, uma mostrar aqui. Esta articulação se torna clara na
vez mais, a dimensão moral do discurso parrhé- medida em que o pensador francês a expõe com
tico. Fica desta forma registrada novamente a clareza e perspicácia de argumento, como o faz na
distinção entre a parrhesía e a retórica. Logo, Hermenêutica do sujeito.
como foi dito, o mestre em Sêneca deve ser para Referências
o dirigido um paradigma ou, se quisermos, um ABRAHAM, Tomás. El último Foucault. Buenos
exemplo de conduta entre discurso e ação. E a Aires: Sudamericana, 2003.
parrhesía se caracteriza, justamente, pela trans- BÍBLIA Sagrada. Revista e atualizada no Brasil
missão da verdade pura e simples, transmissão por João Ferreira de Almeida. 2. ed. Barueri - São
esta que aparece, seja em forma de discurso, seja Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.
em forma de conduta. FLYNN, Thomas. Foucault as parrhesiast: his
Considerações finais last course at the Collège de France (1984). In:
Este artigo procurou mostrar, antes de tudo, BERNAUER, James; RASMUSSEN, David. (Ed.). The
o lugar e o contexto em que, na Hermenêutica do final Foucault. Cambridge: MIT, 1988. p. 102-118.
sujeito, aparece a noção de parrhesía. Para tanto, FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito.
a figura e a função do mestre também se mostr- 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
aram importante. No primeiro momento, a ênfase GROS, Frédéric; ARTIERES, Philippe. Foucault:
estava voltada para uma definição negativa, que, A coragem da verdade. São Paulo: Parabola, 2004.
por oposição, permitiu uma avaliação da parrhe- GROS, Frédéric; LÉVY, Carlos. Foucault et la phi-
sía sob diferentes perspectivas. Já no segundo losophie antique. Paris: Kimé, 2003.
momento, as definições se limitaram a pontos de
vista cujas abordagens eram distintas.

52 .ConTextura. 2011/1
ensaio

Criando monstros: heterogêneos, a dissolução da forma supõe a


apresentação do elemento informal capaz de lhe
Essa problematização da identidade, por
exemplo, pode ser pensada nas ciências huma-
7.  DELEUZE. Diferença
e repetição, p. 56:

Deleuze e a história da filosofia


garantir a consistência: nas, o que nos auxiliaria a especificar melhor essa 8.  Bryant é radical
Goya procedia por meio da água-tinta e da proposta. O belo elogio de Deleuze ao estrutural- sobre esse ponto, posi-
cionando-se no outro
água-forte, do acinzentado de uma e do rigor ismo10 consiste no fato de autores como Claude
extremo dos comen-
da outra. Odilon Redon procedia por meio do Lévi-Strauss e Jacques Lacan proporem um tipo
João Gabriel Alves Domingos | Mestrando em Filosofia, UFMG
tadores de Deleuze ao
claro-escuro e da linha abstrata. Renunciando de interpretação de fenômenos sociais e psíquicos afirmar a tese segundo
a qual Deleuze é um
ao modelado, isto é, ao símbolo plástico da a partir de uma rede de elementos que só produ- hiper-racionalista (!):
forma, a linha abstrata adquire toda a sua força zem efeitos de sentido na sua relação diferencial “Thus, far from being
ensaio
a sense-data empi-
e participa do fundo tanto mais violentamente uns com os outros. Longe de tomar o simbólico
ricist who bases the
quanto dele se distingue sem que ele se distinga como a ordem na qual se dramatiza um enredo de formations of being on
Resumo: Neste ensaio, comenta-se o procedimento de leitura de Gilles Deleuze empregado nos textos dela. A que ponto os rostos se deformam num personagens determinados de antemão, o texto the irrational surds of
de história da filosofia do autor. A tese essencial é que o fazer história da filosofia pode ser algo experience, Deleuze is
tal espelho. 7 de Deleuze nos convida a pensá-lo como a ordem in fact a hyper-rationa-
profundamente criativo, tornando-o uma atividade indistinta do fazer filosofia. Aproveita-se, ainda, Não basta, então, recorrer a pensadores clás- na qual elementos “sem designição extrínseca list who discovers in-
para citar alguns exemplos presentes nas obras de Deleuze. sicos para encontrar os conceitos a partir dos ou significação intrínseca” se determinam recip- telligibility even in the
apparent chaos of the
quais seja possível pensar diferencialmente; é rocamente. Por outro lado, o reconhecimento matter of intuition”.
preciso que a própria repetição desses filósofos, a da identidade subjetiva, de objetos exteriores, BRYANT. Difference and
Giveness, p. 41.
saber, o próprio método de leitura, seja ele mesmo as produções ideológicas ou os personagens
Os procedimentos típicos na obra de Gilles conjunto de referências significativas de um diferencial. mitológicos são da ordem do imaginário e ocor- 9.  DELEUZE. Lógica do
1.  DELEUZE. Diferença Deleuze assemelham-se muito àqueles utiliza- personagem, que sustentam o seu modo de apre- sentido, p. 105-106.
e repetição, p. 19: “Seria No entanto, não há posição mais avessa à das reriam como efeitos de uma complexa articulação
preciso que a resenha dos em arte moderna. A sua história da filosofia ensão da realidade, é desfeito por um elemento obras de Deleuze do que tomar a diferença como simbólica.11 Em seu artigo “A estrutura dos mitos”,
10.  DELEUZE. Em que
em História da Filosofia pode ser entendida como uma colagem, por reali- perturbador. Então, o personagem é lançado algo sem sentido, meramente sentimental, uma o que Lévi-Strauss recusa veementemente é a se pode reconhecer o
atuasse como um
zar deliberamente deslocamentos de conceitos em uma busca por conhecimento, só que agora, entidade opaca ou psicológica, como se a sua pesquisa de um significado originário de um mito estruturalismo?, p.
verdadeiro duplo e que
e noções de outras obras, produzindo, assim, tomado por outro ponto de vista. A partir desse 221-247.
comportasse a modifi- teoria fosse uma hipóstase da ininteligibilidade em favor de uma leitura a partir da relação entre
cação máxima própria atualizações de sentidos e usos. Como a cola- instante traumático, ele descobre, por exemplo, das coisas.8 Parece claro que, com esse conceito, unidades constitutivas chamadas de mitemas. O 11.  Uma boa hipótese
do duplo. (Imagina-se
gem, outras imagens inseridas para descrever o que mora em uma cidade onde, com exceção dele é tomar a relação do
um Hegel filosoficamen- Deleuze quer levar em consideração o mais singu- mesmo pode ser encontrado na lógica do signifi-
virtual com o atual
te barbudo, um Marx seu procedimento em história da filosofia prolif- mesmo, todas as pessoas ao seu redor são atores, e lar, a novidade mais radical, porém toda sua cante de Lacan e sua recusa da ego psychology. como sendo da mesma
filosoficamente glabro,
eram em sua obra. Poderíamos, ainda, somar uma a vida comum é, na verdade, uma grande encena- argumentação seria vã se acreditássemos que a Poderíamos afirmar que Deleuze quer natureza que a relação
do mesmo que uma
não menos apropriada: a do ventríloco. Todas ção. Em um outro contexto, algo similar ocorre do simbólico com o
Gioconda bigoduda.)”. diferença merece atenção justamente por sua falta constranger as nossas expectativas de reconhe- imaginário.
essas imagens expressam o aspecto essencial do com Édipo.4 Além da ficção científica e da tragé- de sentido. Falando sobre a estratégia teórica de cimento, e talvez seja esse o caminho mais correto
2.  DELEUZE. Carta a
um crítico severo. modo de funcionamento e do conteúdo de sua dia, o efeito do conceptual breakthrough pode ser referir toda a inteligibilidade de um fenômeno a para situarmos o potencial crítico de sua filosofia. 12.  (D’AGOSTINI.
Lógica do Niilismo:
filosofia: o privilégio da criatividade sobre a encontrado também em romances policiais ou uma consciência capaz de fornecer-lhe sentido, Sobre esse aspecto, concordamos inteiramente
3.  Sobre esse aspecto, dialética, diferença,
Roberto Machado permanência, da produção sobre a reprodução, mesmo nas mitologias religiosas. Em suma, Deleuze argumenta contra a tendência de sermos com D’agostini e devemos voltar nesse ponto mais recursividade, p. 375)
(“Interdisciplinaridade da diferença sobre a identidade, do nômade sobre é o processo em que o personagem (e por tabela Algo muito próximo da
obrigados a “aceitar a alternativa que compro- vezes durante o nosso texto:
para a Filosofia da direção de leitura de
diferença”) e Slavoj o sedentário.1 Ao ler-se o que Deleuze diz sobre o leitor) tem a sua visão do mundo modificada mete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, “em toda a caracterização do pensamento afir- Williams. Segundo ele,
Žižek (Organs Without outros filósofos, há a impressão de uma ênfase e recebe o primeiro vislumbre de outra visão, a cosmologia e a teologia: ou singularidades já mativo existe um ponto que deve ser sublinhado Diferença e repetição
Bodies) marcam a em aspectos não convencionais desses filósofos, geralmente mais complexa, fascinante, até as- “is a book that claims
semelhança de Deleuze tomadas em indivíduos e pessoas, ou o abismo com vigor, porque se aproxima das teses on- that pure differences
com autores como Hei- como se ele entrasse nas obras por uma via não sustadora, que virá substituí-la.5 indiferenciado”.9 A argumentação de Deleuze nos tológicas de Heidegger, mas também das teses are the other face of all
degger e Hegel (mas muito convencional.2 E no final das contas, isso Em termos deleuzianos, o conceptual break- actual things – there
sugere que é a expectativa de sentido associada à antiontológicas de Adorno: trata-se da crítica
também Lacan). is no such thing as a
parece legítimo, pois ele consegue, ainda assim, trough é o inverso da recognição, ou seja, o recon- totalidade (por exemplo, individual, mas também da afirmação como positividade, ou melhor, a well-defined actual
4.  Agradeço à profes-
oferecer leituras rigorosas (de acordo com a letra hecimento de um objeto como sendo sempre o qualquer tipo de transcendência) que nos leva a crítica da positividade e a distinção, correlativa, life.” WILLIAMS. Gilles
sora Virginia Figueire-
dos textos), mas que repousam a sua unidade mesmo em momentos e condições distintas. O Deleuze’s Difference
do a sugestão sobre o tomar o singular e a diferença como um “abismo entre afirmação e posição ou ’assunção’” 12 and Repetition, p. 13.
parentesco da noção de sobre pontos até então insuspeitos.3 Poderíamos, que Deleuze quer mostrar é o fundo diferencial indiferenciado” ou um “infinito ruim”. Seríamos, Quem poderia, por exemplo, querer encon-
conceptual breaktrough
e metabole. portanto, nos perguntar: as leituras de Deleuze em que repousa toda assunção de identidade. então, como o espectador desavisado de obras trar teses comuns ao estruturalismo francês e ao
realmente repetem os filósofos ou criam a partir Por isso, “uma receita barata para se produzir um de arte abstrata, que procura a figuratividade de empirismo de David Hume?13
5.  TAVARES. The Ency- 13.  MACHADO. Deleu-
plopedia Of Science deles? E não será a indistinção entre criar e repetir monstro é amontoar determinações heterócli- todas as formas. Devemos, ao contrário, levar a No ambiente intelectual de Deleuze, domi- ze, a Arte e a Filosofia,
Fiction, p. 67. o convite mais profundo desse autor? tas ou sobredeterminar o animal. É bem melhor sério a sua proposta e supor que a sua obra nos nado por figuras como Marx ou Heidegger, Hume p. 139.

6.  DELEUZE. Diferença


A noção de conceptual breakthrough em ficção trazer o fundo à superfície e dissolver a forma.”6 oferece ferramentas conceituais para pensar a não é um filósofo muito frequentado. De todo
e repetição, p. 56. científica descreve os momentos nos quais o Mais do que reunir aleatoriamente elementos diferença nela mesma. modo, reencontramos uma tese fundamental

54 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 55


ensaio
do estruturalismo na definição deleuziana do lacanisme qui distingue trois niveaux hété- nietzschiana de “reversão do platonismo”. Deleuze afirma que ele não é somente uma prova 19.  A questão é esco-
lhermos a aparência
empirismo. No livro sobre Hume, Deleuze define rogènes dans la relation RSI (Réel – Symbolique Entender a motivação do platonismo como o esta- ética da vontade, mas ele é o ser. Desse modo, a
ao invés da essência
a doutrina pelo privilégio das relações sobre os – Imaginaire), accordant une prévalence au belecimento da distinção entre o modelo e a cópia teoria do eterno retorno é uma teoria ontológica. ou aniquilarmos a
termos que as compõem. Ao contrário do racio- niveau symbolique, avec des pôles Réel – Imagi- (entre o mundo das ideias e o mundo das aparên- Afinal, por que um filósofo como Nietzsche, que dualidade aparência e
essência? “In saying
nalismo, que busca internalizar as relações, é naire éloignés l’un de l’autre et quasiment anti- cias) é entender, por consequência, a reversão do constantemente elogia o devir, elaboraria uma that there is no essen-
só a associação constante dos elementos que thétiques. Deleuze et Guattari insistent au con- platonismo como uma espécie de subversão que teoria da estabilidade e da coerência radical do ce, that everything is
constructed socially,
constitui aquilo que eles são. É uma inversão traire sur la dimension réel de l’imaginaire et sur consiste em apenas inverter os termos, dar priv- mundo? E será que o eterno retorno é compatível
linguistically, histo-
que consiste em dizer que é o modo como as le caractère littéral des énonces comme des im- ilégio à aparência sem destruir os modelos. Uma com um sujeito de vontade para acreditarmos que rically, or by power,
14.  DELEUZE. Empirismo coisas estão articuladas que confere inteligibili- ages” (DOSSE. Gilles Deleuze et Félix Guattari: estranha opção pelo precário...19 Nesse sentido, ele é apenas uma prova ética? one would like to say
e subjetividade, p. 123: . that all is appearances.
dade a elas, e que não é a articulação o modo de Biographie Croisée, p. 547). é como se pudéssemos questionar a pintura O eterno retorno não é o efeito do Idêntico so- What goes unnoticed
expressão do que a coisa é. “Denominar-se-á não- Mas é inegável que Deleuze desenvolve de um quadro porque temos a paisagem (ou o bre um mundo tornado semelhante; não é uma in this criticism is that
15.  LACAN. Seminário it reproduces the very
3, p. 131. Importam empirista toda teoria segundo a qual, de uma constantemente uma crítica da imagem, pensada contrário). Para Deleuze, por outro lado, a verda- ordem exterior imposta ao caos do mundo; ao
appearance-essence
pouco as intensões in- ou de outra maneira, as relações decorram da como representação, e uma das suas principais deira proposta da reversão é aniquilar a dualidade contrário, o eterno retorno é a identidade inter- distinction it claims to
ternas e profundas da abolish”. BRYANT. Di-
natureza das coisas”14 Algo como a famosa cena estratégias teóricas nos anos 1960 é o recurso entre modelo e cópia. A “aparência como aparên- na do mundo e do caos, é o Caosmos. E como o
stra. de Montpensier. fference and Giveness,
Para a determinação do do filme Tempos modernos (Modern Times, 1936), a autores estruturalistas. Em grande medida, o cia” só pode significar livrá-la de toda relação leitor poderia acreditar que Nietzsche implicava
p. 144.
sentido, o que interes- de Charles Chaplin, no qual, a despeito da inten- estruturalismo realiza os critérios da filosofia subordinada a uma essência. no eterno retorno o Todo, o Mesmo, o Idêntico,
sa é a relação entre os
elementos. são banal do personagem, ele se torna um mili- da diferença. Uma hipótese interessante para Utilizando o seu procedimento de leitura, o Semelhante e o Igual, o Eu [Je] e o Eu [Moi],
tante político. Ou, um outro exemplo, como o que compreender as rupturas no pensamento de Deleuze dá privilégio aos diálogos Político, Fedro ele que foi o maior crítico dessas categorias? 20.  DELEUZE. Diferen-
ça e repetição, p. 437:
16.  Deleuze se refere Lacan expõe no seminário sobre as psicoses: Deleuze preservando o seu caráter sistemático é e Sofista (em suma, ao método da divisão), most- Como acreditar que concebeu o eterno retorno “O simulacro é o siste-
à discussão entre ma em que o diferente
Claude Lévi-Strauss e
“Um dia, a srta. de Montpensier estava nas bar- supor que a adesão e a ruptura a uma teoria não rando que a dualidade entre modelo e cópia como um ciclo, ele que opôs ’sua’ hipótese a
se refere ao diferente
Paul Ricoeur publica- ricadas, talvez estivesse ali por acaso, e talvez ocorrem em relação a um mesmo aspecto. Ou só pode se estabelecer a partir da exclusão de toda hipótese cíclica? Como acreditar que tenha por meio da própria
do em 1963 na Révue isso não tivesse importância numa certa per- seja, enquanto a adesão é graças ao aspecto X, a um outro tipo de imagem que não estabelece caído na ideia insípida e falsa de uma oposição diferença”.
Esprit. LÉVI-STRAUSS.
“Réponses à quelques spectiva, mas o que há de certo é que apenas ruptura é graças ao aspecto Y. Em outro momento, nenhuma relação de analogia (uma imagem entre um tempo circular e um tempo linear, um
questions”. isso é que resta na História, ela estava ali, e de- é necessário tratar com cuidado o problema das sem semelhança): o simulacro. Em Diferença e tempo antigo e um tempo moderno?”21 21.  DELEUZE. Dife-
ram à sua presença um sentido, verdadeiro ou rupturas no pensamento de Deleuze.17 repetição, Deleuze define o simulacro como o É preciso voltar em outra ocasião ao argu- rença e repetição, p.
17.  DELEUZE. Em que 468-469.
se pode reconhecer o es- não verdadeiro. No momento em que as coisas Por outro lado, contrariamente ao que ocorre sistema no qual o diferente se relaciona com o mento de Deleuze sobre o eterno retorno. Antes
truturalismo?, p. 225. acontecem, aliás, o sentido é sempre um pouco na ordem dos significantes, a oposição binária diferente pela diferença.20 A exclusão do simu- de tudo, porque Deleuze enxerga nele uma lógica
mais verdadeiro, mas é o que se tornou verda- que está em jogo no imaginário pode ser encon- lacro é inaugural para um modo hegemônico de para a ontologia que não faz recurso a uma espé-
deiro na história que conta e funciona. Ou isso trada na leitura comum da filosofia de Platão. fazer filosofia, porque, a partir deste instante, o cie de transcendência. Segundo esse recurso ao
vem de um remanejamento posterior, ou então Nesse caso, os dois termos binários que entretêm seu domínio próprio será a representação, e toda eterno retorno, o ser é imanente. É crucial para 22.  DELEUZE. Dife-
já começa a ter uma articulação no momento uma relação de identificação são a aparência e a diferença deve estar subordinada a ela para que toda a filosofia de Deleuze de uma forma tal que rença e repetição. p.
mesmo em que as coisas acontecem.”15 essência. Como mostra Deleuze, esses dois termos haja pensamento. Uma ótima forma de ler o livro o seu aspecto mais importante está presente em 381: “[...] na passagem
de uma qualidade a
Assim, de modo análogo ao empirismo, são o real e o imaginário: Diferença e repetição é como uma anatomia dos vários momentos de sua obra. A preocupação de outra, mesmo sob o
Deleuze lembra que, para Lévi-Strauss, as rela- Estamos habituados, quase condicionados, a diversos modos de confundir o pensamento com Deleuze em relação à história da filosofia não é máximo de semelhança
ou de continuidade,
ções são exteriores aos termos. O sentido é uma certa distinção ou correlação entre o real e a representação, e o que há de comum a todos é exatamente produzir uma repetição na qual o que
há fenômenos de não
sempre um sentido de posição.16 É o lugar que se o imaginário. Todo o nosso pensamento mantém o privilégio da identidade. Não há surpresa em é produzido é uma novidade, uma diferença? correspondência e de
ocupa dentro de um espaço relacional (chamado um jogo dialético entre essas duas noções. Mes- concluir, portanto, que a reversão do platonismo Com Deleuze, devemos pensar a história da patamar, de choques
de diferença, de
18.  (DELEUZE. Em por Deleuze de ideia ou estrutura) que confere mo quando a filosofia clássica fala da inteligên- significa justamente a liberação dos simulacros e filosofia como um quadro de Andy Warhol, em que distâncias, todo um
que se pode reconhecer
sentido a alguma coisa. “Os elementos de uma cia ou entendimento puros, trata-se ainda de o pensamento da diferença nela mesma. a reiteração de uma figura é sempre acompanhada jogo de conjunções e
o estruturalismo? p. de disjunções, toda
222). Segundo Bryant, estrutura não têm nem designação extrínseca uma faculdade definida por sua aptidão a apre- A versão filosófica da liberação dos simula- de modificações de cores e de intensidade.22 Um
uma profundidade que
sugerindo uma maior nem significação intrínseca. O que resta? Como ender o real em seu fundo, o real ‘em verdade’, o cros e da reversão do platonismo é encontrada em dos trechos mais bonitos de Diferença e repetição forma uma escala gra-
sutileza em Lacan cuja duada, mais que uma
obra não confunde o lembra com rigor Lévi-Strauss, eles têm tão real tal qual ele é, por oposição, mas também em Nietzsche, mas isso está muito longe de ser um diz que: “[...] todos somos Narcisos, pelo prazer
duração propriamente
real com os objetos somente um sentido: um sentido que é necessária relação aos poderes da imaginação”18 consenso entre os leitores do alemão. Mais uma que sentimos ao contemplar (auto-satisfação), qualitativa”.
independentes da Uma imagem é tomada como originária (um
e unicamente de ‘posição’”. Dosse pontua corre- vez, Deleuze aplica o seu procedimento de leitura. se bem que contemplemos outra coisa que não
mente, o conceito de
real nesse texto de tamente onde se situa a diferença entre Deleuze modelo) e a outra como derivada (uma cópia). Convencionamente, o eterno retorno é entendido nós mesmos”.23 Acreditamos que o modo como 23.  DELEUZE. Diferen-
Deleuze não é o mesmo e Guattari e o estruturalismo, em especial, o RSI Deleuze se dedica aos diálogos justamente para como o eterno retorno do mesmo. Deleuze diz Deleuze repete os filósofos afirme esse mesmo ça e repetição, p. 134.
que o Real lacaniano.
BRYANT. Difference and [Real-Simbólico-Imaginário] lacaniano: mostrar o equívoco desta leitura de Platão. Conse- justamente o contrário: só a diferença retorna fracasso do duplo que tem sempre o seu reflexo à
Giveness, p. 168. Avec une telle conception, Deleuze et Guat- quentemente, se nos direcionarmos por ela, faría- no eterno retorno. Convencionamente, o eterno distância, buscando com isso elevar-se à condição
tari déplacent le grand schéma dominant du mos uma leitura equivocada, também, da proposta retorno é entendido como uma prova ética. autônoma de um simulacro.

56 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 57


ensaio
Referências Repetition: A Critical Introduction and Guide. Ed-
BRYANT, L. Difference and Giveness: Deleuze’s inburgh: Edinburgh University Press, 2003.
Transcendental Empiricism and the Ontology of ŽIŽEK, S. Organs Without Body: On Deleuze and
Immanence. Evanston: Northwestern University Consequences. New York –London: Routledge,
Press, 2008. 2004.
D’AGOSTINI, F. Lógica do Niilismo: dialética,
diferença, recursividade. São Leopoldo: Ed. Unisi-
nos, 2002.
DELEUZE, G. « A quoi reconnaît-on le structur-
alisme ? ». L’Île Déserte et Autres Textes : Textes
et Entretiens (1953-1974). Paris : Les Éditions de
Minuit, 2002.
DELEUZE, G. Carta a um crítico severo: Conver-
sações: 1972-1990. Tradução de Peter Pal Pélbart.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Ja-
neiro: Graal, 1988.
DELEUZE, G. Différence et Répétition. Paris:
PUF, 1993.
DELEUZE, G. Em que se pode reconhecer o estru-
turalismo? Textos e entrevistas (1953-1974). São
Paulo: Iluminuras, 2006.
DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: Ensaio
sobre a natureza humana segundo Hume. São Pau-
lo: Editora 34, 2001.
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Per-
spectiva, 1974.
DELEUZE, G. Logique du Sens. Paris: Éd. de
Minuit, 1971.
DOSSE, F. Gilles Deleuze et Félix Guattari: Biog-
raphie Croisée. Paris: La Découverte, 2007.
LACAN, J. Seminário 3: As Psicoses. Rio de Ja-
neiro: J. Zahar Editor, 1988.
LÉVI-STRAUSS, C. « Réponses à quelques ques-
tions ». Disponível em: <http://www.esprit.pres-
se.fr/archive/review/article.php?code=32948>.
Acesso em: 13 maio 2010.
MACHADO, R. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio
de Janeiro: Zahar, 2009.
MACHADO, R. Interdisciplinaridade para a Fi-
losofia da diferença. Revista Filosofia. São Paulo,
n. 37, Editora Escala, 2009. Entrevista concedida
a Patrícia Pereira. Disponível em: <http://filoso-
fiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/37/ar-
tigo144487-1.asp>. Acesso em: 5 ago. 2010.
TAVARES, B. The Encyplopedia Of Science Fic-
tion. In: 10 livros que abalaram o meu mundo. Rio
de Janeiro: Casa da Palavra. p. 67.
WILLIAMS, J. Gilles Deleuze’s Difference and

58 .ConTextura. 2011/1
dossiês

A tragédia e o trágico: estado de tensão, ocasionando uma experiência


do dilaceramento humano. O conceito de sublime
na impossibilidade de apreensão do sentido que
se dá o sofrimento. Ora, a dor é a condição para

a cena e o pensamento
ganha espaço no momento mesmo em que vem que se possa descer às profundezas, buscando
representar esse estado de dilaceramento, rela- conhecer-se o próprio sentido da vida. A dor é,
cionando-se à ambivalência, à contradição que então, o fundo que garante a metamorfose da
brota na experiência da transcendência dos vida: a passagem da impotência à potência, isto é,
limites humanos e reflete, no plano da estética, do desprazer ao prazer.
Gilson Motta | as tensões e antagonismos que se faziam sentir Se compreendermos o pensamento do eterno
profundamente na vida social na virada do século retorno como uma doutrina ética, a atividade
XVIII para o século XIX, quando uma tensão se artística parece-nos ser exemplar para ilustrá-lo.
estabelece entre uma subjetividade exacerbada e O importante a ser notado aqui é que a atividade
dossiês

as condições históricas concretas da vida social. O criadora aponta para um modo de pensar situado
Resumo: O presente texto trata das relações entre o teatro e a reflexão filosófica, privilegiando o tema do trágico toma lugar na cena filosófica no momento para além das dicotomias de valores, afirmando
trágico e da tragédia. O pensamento de Friedrich Nietzsche configura-se como um momento fundamental em que o advento da Modernidade, ao operar uma a unidade entre pensamento e ação, determina-
dessa reflexão, repercutindo intensamente na produção artística e cultural contemporânea. As teorias transformação radical dos valores que até então ção e acaso, liberdade e necessidade. A perspec-
de Nietzsche perpassam boa parte dessa produção na pós-modernidade, em especial, o movimento de orientavam a ação humana, abre ao horizonte tiva que admite que o que retorna no eterno é o
revivificação da tragédia e do trágico, no qual, a partir da encenação dos textos trágicos gregos, os humano a possibilidade da negação total dos elemento criador ou artístico já foi empreendida
valores. Em sua essência, o trágico é um discurso por Danko Grill5 e Eugen Fink.6 Para ambos, a 5.  GRILL. Nietzsche
artistas teatrais discutem diversas questões sociais e políticas da atualidade. e o Eterno Retorno do
de caráter político e ontológico que se articula doutrina do eterno retorno só pode ser represen- Mesmo ou o retorno da
tendo em vista o questionamento do sentido de tada na atividade artística ou lúdica. Assim, tal essência artística na
A tragédia é um tema privilegiado quando se subjetiva ou liberdade e a estrutura objetiva da arte.
uma ordem dada. O trágico é a ausência de funda- doutrina funde o elemento ético, o desejar viver
trata de estabelecer uma relação entre a reflexão realidade ou necessidade, enquanto fatores que mento, a ausência da unidade que sustenta e dá de novo, o estético e o querer o retorno da essên- 6.  FINK. La philoso-
estético-filosófica e o teatro. A vasta quanti- determinam a escolha ou decisão. Neste sentido, sentido à realidade, é a revelação da ausência de cia da arte como possibilidade de liberação de phie de Nietzsche.
dade de obras produzidas ao longo da história do em sua concepção dialética, o trágico revela- sentido no interior desta ordem, afirmando-se forças. É na atividade lúdica que se dá a repetição
7.  NIETZSCHE. A gaia
Ocidente consolida uma verdadeira tradição de se como um conflito de valores, privilegiando sob os signos da contradição e da luta: a ordem do mesmo. ciência.
reflexão sobre a tragédia. Esta produção possi- a dicotomia entre liberdade e necessidade. Em e o caos, a vida e a morte. Em seu sentido exis- Em A gaia ciência, Nietzsche nos mostra a
bilitou o afloramento de questões puramente suma, a tragédia revelou a questão do trágico. tencial, o discurso trágico é sempre atual, visto imagem do navio de imigrantes em sua hora de
filosóficas. A experiência estética da tragédia A história do conceito de trágico é abor- que se relaciona à própria estrutura da existência partida. A expectativa em relação ao futuro, o
abriu espaço para uma especulação de ordem dada por Roberto Machado, em O nascimento do enquanto ausência de fundamento. desejo de descobrir e de se aventurar por novos
ontológica: o trágico é visto como uma caracter- trágico.2 É no final do século XVIII que o trágico Encontramos em Nietzsche o sentido mais territórios explorando novos modos de ser
ística fundamental da existência, decorrente da penetra no espaço aberto pela tragédia, passando perturbador e paradoxal da concepção do trágico, configurariam um estímulo das funções vitais,
revelação de uma contradição essencial entre o a ser pensado de maneira autônoma. Para Roberto na medida em que o filósofo alemão concebe a vontade de ser diferente, de querer exercer a
homem e o universo, contradição que conduz a Machado, esta história tem início com Schiller e o trágico como alegria, como afirmação plena potência que lhe é mais própria. Este momento
1.  LESKY. A tragédia um sofrimento extremo. Segundo Albin Lesky,1 chega ao seu ápice com Nietzsche, tendo como da vida. Em Nietzsche, o pensamento trágico de intensificação das funções vitais implica um
grega. os gregos não chegaram a desenvolver uma teoria tônica a ideia da contradição e do antagonismo, relaciona-se aos dois conceitos capitais de sua dispor integralmente de si.7 Assim, de modo
do trágico que englobasse a concepção do mundo isto é, o conflito de valores. Enquanto que, para filosofia: vontade de poder e eterno retorno. A análogo, no processo de criação, o artista se
2.  MACHADO. O nasci-
mento do trágico. como um todo, isto é, o trágico não estabelece Peter Szondi, por exemplo, uma “filosofia do tragicidade marca a ação a partir do momento em encontra numa situação semelhante à dos
uma cosmovisão para os gregos. No entanto, trágico” – distinta de uma poética da tragédia – que, pela vontade de poder, se busca a determi- imigrantes: ambos buscam um reinscrever-se no
3.  Cf. SZONDI. Ensaio o mesmo autor observa que a tragédia grega tem início com o pensamento de Schelling;3 para
sobre o trágico. nação, a forma, o ser, que se acompanham, neces- mundo, buscam distinguir-se, buscam ser dife-
encerra o trágico na medida em que põe em cena Roberto Machado e Gleen W. Most,4 a independên- sariamente, de esforço e dor. A esta busca de rentes, transformando a si próprios. Este transfor-
4.  Cf. MOST. Da tragé- um conflito insolúvel, uma ausência de quadros cia do trágico em relação à tragédia, enquanto forma, relativa à espacialidade, se funde a dimen- mar só é possível na repetição do ato criador. Mas
dia ao trágico. estáveis de valores nos quais a ação humana se fenômeno especificamente moderno, tem sua são da temporalidade, que – pelo eterno retorno ambas as viagens contam com um componente
fundaria; daí a dimensão da tragicidade. Esta primeira formulação com Friedrich Schiller. É – lança todas as coisas no eterno devir, no não- desconhecido: o acaso. O processo de criação é
dimensão se faz sentir nos grandes textos dos com Schiller – e seu afastamento do pensamento ser. Assim, enquanto a vontade de poder anseia sempre misterioso, podendo conduzir o artista
autores gregos, como Édipo Rei, Antígona, Medeia, aristotélico – que a tragédia e o trágico passam o futuro, o eterno retorno, aniquilando todas as para soluções ou formas que ele não esperava
As bacantes, entre outros. Desta forma, conforme a ser vistos como um fenômeno extraestético. O formas, afirma o futuro como passado. No inte- encontrar. Citemos Iberê Camargo: “Eu, antes
observa Glenn Most em Da tragédia ao trágico, trágico apresenta o homem numa situação-limite rior deste jogo, o próprio querer, que original- de iniciar a viagem – o quadro – consulto minha
a tragédia problematiza a própria estrutura em que sua necessidade natural e sua liberdade mente é uma vontade ardente de ser, reconhece bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou
da agência humana, confrontando a estrutura moral – um fim suprassensível – são colocadas em seu caráter vão. É nesta desarticulação do querer, no mar grosso, sempre sopra um vento forte que

60 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 61


dossiês
me desvia da rota pré-estabelecida e me leva a superar-se enquanto artista. É neste sentido que entre a tragédia antiga e a modernidade. Esta serem escamoteadas pela sociedade tanto recorre
descobrir o novo quadro. Todo criador é um Pedro o trágico é justamente um excesso de força – ou consciência estará presente, com maior ou menor a diversos meios e disciplinas, como a body-art, a
8.  LAGNADO. Con- Álvares Cabral”.8 Aqui, a responsabilidade é a de alegria – que supera até mesmo a dor mais intensidade, na obra de dramaturgos e/ou escri- vídeo-arte, o teatro-dança, entre outros, ou seja,
versações com Iberê coragem de lançar-se na aventura, na incerteza, profunda da vida: o pensamento trágico assimila tores como André Gide (1869-1951), Jean Cocteau a meios típicos da cultura pós-moderna, quanto
Camargo, p. 23.
naquilo que não é calculável e que resiste a todo o mal e o transforma. Assim, a representação (1889-1963), Jean Giraudoux (1882-1944), assim busca afirmar uma visão dionisíaca do mundo,
projeto. A obra de arte resiste a qualquer projeto, nietzschiana do trágico supera o pessimismo e como na geração posterior, com Jean Anouilh isto é, a libertação de toda forma de opressão e
qualquer vontade de controle absoluto com o niilismo schopenhaueriano. Esta concepção (1910-1987), Albert Camus (1913-1960) e Jean- de dissolução da individualidade. Neste sentido,
base nos critérios racionais, na previsibilidade. nietzschiana do trágico, associada à afirmação da Paul Sartre (1905-1980). Mas esta consciência Dionísio e o teatro trágico são extremamente
É somente por ser uma aventura, um risco, que vida em sua transitoriedade, vem sendo retomada trágica se faz sentir com maior intensidade, sobre- atuais, mas este elemento primitivo, de natureza
a arte estimula os instintos vitais, a capacidade pelo pensamento sociológico, como o de Michel tudo, na obra de autores como Samuel Beckett e arcaica, reaparece agora sob as roupagens das
de reagir e de corresponder. O que faz da criação Maffesoli, que busca reconhecer nas práticas soci- Eugène Ionesco, isto é, naquela dramaturgia que novas tecnologias de informação.
uma aventura é justamente sua possibilidade de ais e culturais da pós-modernidade a presença da Martin Esslin denominou de “teatro do absurdo”, Antes de falarmos sobre o teatro brasileiro
encaminhar-se para uma direção inesperada, de dimensão trágica apontada por Nietzsche. Emmanuel Jacquart, de “teatro de derrisão” e contemporâneo e suas releituras da tragédia
poder sempre escapar do criador, de anunciar algo O que se observa assim é que modo, o pensa- Jean-Marie Domenach designou como “infratra- grega, é importante notar que o movimento
novo, um acaso, incontrolável. A obra parece, mento trágico mostra-se como uma construção gedia”. A repercussão da obra destes dramaturgos citado até aqui – de ressurgimento do trágico e
assim, querer devorar o criador, sempre tende a moderna, que apresenta continuidade na socie- – o novo teatro das décadas de 1950 e 1960 – é da tragédia – foi acompanhado, desde o início
seduzi-lo, e cabe ao artista, ao mesmo tempo, um dade pós-moderna ou atual. Assim, é curioso muito forte nos anos subsequentes, sendo deter- do século XX, por uma situação problemática do
9.  GUMBRECHT. Os deixar-se seduzir e controlar a própria paixão que pensar que a ideia de Hans Ulrich Gumbrecht9 da minante para a formação de uma nova consciên- texto antigo em relação à sociedade moderna.
lugares da tragédia. nasce no interior da sedução. Assim, esta “aven- alternância entre períodos tragicofóbicos e tragi- cia teatral. O trágico, ou a consciência trágica Com o surgimento da encenação teatral
tura” se mostra como uma afirmação do acaso, cofílicos parece se aplicar com precisão. Enquanto – consciência do dilaceramento, da insignificân- enquanto arte, que ocorre no final do século XIX,
a qual gera a própria necessidade. Deste modo, o século XIX seria tragicofóbico, os séculos XX cia, do absurdo, da divisão e separação radical, da o debate sobre a tragédia grega vem se refletir na
a atividade criadora envolve uma afirmação da e XXI parecem ser marcados por um retorno do ausência de fundamento – emerge também deste cena teatral. Por sua natureza, o texto clássico –
imanência da vida na medida mesma em que nela trágico e da tragédia, conforme afirma Gerd novo teatro, que terá ainda as práticas e teorias de seja antigo ou moderno – está sempre sujeito a uma
o componente casual é afirmado. Ao aceitar as Bornheim: Bertolt Brecht e Antonin Artaud como estéticas interpretação histórica, segundo valores cult-
novas possibilidades que se oferecem, tornando- A experiência “trágica” fundamental do século determinantes. As novas montagens de tragédias urais e artísticos específicos. Com o surgimento
as “necessárias”, o artista se funde à própria XX é que a tragédia se transfere da esfera huma- gregas, que começam a eclodir a partir do final da moderna encenação, o diretor teatral passou a
temporalidade. Cada nova obra que o artista se na, ou da hybris do herói, para o sentido último dos anos de 1960 trazem em si esta influência do ser o principal intérprete deste(s) sentido(s) do
propõe a fazer é, assim, um jogo com o acaso, uma da realidade, confundindo-se, assim, com uma novo teatro, este ressurgimento do trágico dado texto. No caso de um texto antigo, este processo
aventura, que ele conduz e é por ela conduzido. objetividade ontológica esvaziada de sentido – pelas filosofias existencialistas. Consequent- de interpretação é mais radical, pois implica a
Nesta aventura, o que se dá é sempre o “mesmo”: a qualquer coisa como uma ontologia do nada. emente, a ideia do trágico parece encontrar-se tentativa de tornar o texto antigo inteligível para
possibilidade de formar, de transfigurar, de tomar Digamos que a ordem, o cosmo, é deslocado a como fundamento da revivificação da tragédia, e o espectador moderno. A questão central se artic-
10.  BORNHEIM. Breves posse e afirmar a si. Cada aventura envolve, assim, favor do caos.10 esta, por sua vez, revela o trágico. ula num modo de se pensar como a tragédia grega
observações sobre o um esforço qualitativo de se auto-superar, o qual Nesta perspectiva, o século XX parece ser Em suma, a Modernidade faz ressurgir o pode ser assimilada por um público já moldado
sentido e a evolução do
trágico, p. 89. se faz notar na própria transformação do estilo. paradoxal: os fatos que marcam a história – por trágico a partir de sua negação, mas é no contexto por uma sensibilidade marcada pela velocidade da
Se, de acordo com a doutrina do eterno retorno, exemplo, as duas grandes guerras, a violência cultural que se configura, a partir do entreguer- informação, pela desordem, pela fragmentação,
aquilo que retorna é justamente a vida enquanto exacerbada, as guerras étnicas, o extermínio em ras, que uma consciência mais aguçada de seu pela massificação. Se este questionamento acom-
vontade de poder, e esta é essencialmente criação, massa etc – causam uma extrema aversão à dor, sentido parece se afirmar: o trágico se reinstala panha boa parte da história do teatro europeu, o
logo, o elemento criador, artístico é o que retorna ao trágico e, ao mesmo tempo, nos despertam posto que, na atualidade, o ser humano está mais importante a notar-se aqui é que, desde a origem
no eterno retorno. Este elemento envolve neces- para uma consciência trágica. Esta consciência, sensível às diversas formas de fragmentação, da encenação moderna, a tragédia grega assume
sariamente o sofrimento, a dor, enquanto aquilo por sua vez, é construída não apenas na história divisão e ruptura interior e exterior que destroem uma posição paradoxal: a encenação do texto
que possibilita a ascensão, a liberação das forças. política e econômica e no campo conceitual ou a constituição da identidade. Este contexto trágico antigo apresenta-se também como uma
11.  Neste sentido, Cf. O que retorna é justamente a disposição criadora especulativo,11 mas também no campo da ficção, histórico – o pós-modernismo – seria o pano de possibilidade de renovação do teatro. Daí o fato
DOMENACH. Le retour enquanto um instinto de apreensão ou tomada do mais precisamente na literatura, nas artes e no fundo de diversas releituras dos mitos gregos e de os diretores mais importantes da cena europeia
du tragique.
mundo, isto é, a energia primária de apreensão teatro. Boa parte da literatura e do teatro europeu de diversas encenações do texto antigo, como terem encenado textos gregos. Assim, na história
12.  Cf. FOLEY. Modern
vigorosa de tudo aquilo que cerca o homem. Deste produzidos a partir da década de 1930 é marcada ocorre com autores como Heiner Muller, Tony do teatro moderno – a qual se apresenta sempre Performance and Adap-
modo, no eterno retorno, a vontade criadora quer por essa consciência da situação trágica do Harrison, Timberlake Wertenbaker, Sarah Kane, como a história de uma “crise” – a tragédia grega tation of Greek Tragedy.
possibilitar o retorno do elemento artístico. Isto homem. Neste período, alguns escritores estabel- entre outros. Segundo Freddy Decreus, o teatro vai, progressivamente, afirmando-se como fonte
tanto significa que ele quer repetir a experiência ecem um diálogo com a tragédia grega de modo que brota no seio desta crise e que quer expri- de renovação da cena até se mostrar como um
que deu origem à obra, como indica que ele quer a recuperá-la e renová-la, criando um vínculo mir diversas dúvidas profundas impassíveis de teatro experimental, como propõe Helen Foley.12

62 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 63


dossiês
Isto é, na cena contemporânea, a tragédia grega fato de este espetáculo agregar diversos temas sob a forma de uma ópera brasileira de Carnaval rem a interpretação de Lina Bardi presente nesta
mostra-se como um teatro aberto à experimenta- presentes neste texto. na qual o desejo de encontro dos corpos de todos sua obra de arte, e materializada nas obras per-
ção, na medida em que possibilita o surgimento Em outubro de 1995, José Celso Martinez os que vivenciam o ato estético (atores e público) manentes da ação do Oficina, e submeterem-se
de diversos processos criativos: a superação das Correa estreou o espetáculo, projeto que o diretor é assumido como uma espécie de orgia teatral, aos milhões que permitem bombardear o Bairro
convenções herdadas pelo realismo, a fusão e o vinha acalentando há muitos anos, e para o qual conforme afirma Ericson Pires: do Bexiga na forma do Sonho Kitsch Americano,
confronto de tradições teatrais diversas, a criação o próprio Teatro Oficina foi projetado, por Lina Bo Desta maneira, torna-se perceptível a con- para as autoridades culturais constituídas da ci-
de um discurso político não localizado, a experi- Bardi. O espetáculo é construído com uma diversa strução de uma experiência híbrida que se dade; feudo urbano?16
mentação de diferentes formas de atuação para camada de discursos e ideologias de caráter liber- encontra tangenciada por pulsões de ordem Dois poderes, dois modos de vida, dos espa-
os atores e a adaptação dos enredos trágicos. O tário, posto que resistentes aos diversos modos de religiosa e teatral, dando uma corporeidade ao ços afirmam uma relação absolutamente confli-
mesmo dirá Patrícia Legangneux, para quem a opressão do indivíduo: a apologia ao homoerot- espaço criado pelo acontecimento teatral. É a tuosa, contudo, e de modo trágico, a luta parece
tragédia grega abre caminho para a experimenta- ismo, a crítica ao sistema capitalista e ao moral- formação de uma espacialidade da existência ser desigual, já que os espaços de ordenação são
ção teatral, sendo teatro de participação, teatro ismo que nele se insere, a crítica ao poder público corporal, ou seja, a possibilidade da coexistên- muito mais amplos, muito mais articulados, muito
político, teatro de atores, teatro de violência e e sua relação com a cultura, a presença do teatro cia de diversos devires corporais no mesmo re- mais presentes no cotidiano do que as formas de
crueldade, teatro de fortes imagens, teatro musi- como forma de provocação, como liberação das corte espaço-temporal.14 libertação. Conforme observa Ericson Pires mais 14.  PIRES. Zé Celso
cal, teatro ritual, teatro que entra em diálogo com forças instintivas, de expansão das forças criativas, No que se refere à criação da espacialidade uma vez, o atuador do espetáculo de José Celso, e a Oficina-Uzina de
Corpos, p. 139.
a performance, teatro que possibilita a utilização da valorização do corpo, entre outros. Toda essa da existência corporal, o próprio espaço cênico após viver a intensidade, a plenitude produzida
de diversos recursos técnicos, teatro que propicia ideologia que encontra sua raiz na contracultura ganhará um valor fundamental, na medida em no evento cênico, sofreria a obrigatória queda
15.  Cf. FOUCAULT.
o interculturalismo, teatro que dialoga consigo dos anos de 1960 vem à tona de modo radical em que é explorado em todas as suas potenciali- ou morte, dada aqui por seu retorno ao reino da Outros espaços.
mesmo, como metateatro. Em suma, em função As bacantes sob a forma de uma linguagem cênica dades e em todas as suas dimensões: cenas são norma. Renascer, como o faz o deus Dionísio,
de uma nova estrutura de sensibilidade e de que incorpora vários gestos próprios às poéticas desenvolvidas no porão do teatro, nas partes mais é retornar ao estado criativo experienciado em 16.  CORREA. Progra-
conhecimento, o teatro trágico tornou-se atual, teatrais pós-modernas: a mistura de referências elevadas da arquibancada, valorizando a vertical- cada espetáculo, num espaço específico. ma do espetáculo As
bacantes.
propiciando o renascimento da tragédia grega, culturais (o erudito e o popular); o hibridismo; a idade; cenas com integrantes da plateia ocupando Fazer teatro, nesse sentido, se transforma para
seja enquanto forma de discussão política, ética e presença de elementos performáticos; a participa- a área de jogo, grandes cortejos de característi- Zé Celso em Uzyna de embriaguês, na pos-
ideológica, seja enquanto um modo de renovação ção intensa do espectador; a presença do elemento cas carnavalescas etc. Os elementos cenográfi- sibilidade de alcançar vida experimentando
estética, pela experimentação de novas lingua- primitivo ou arcaico; a interatividade; a descon- cos como carros, fitas, objetos de cena diversos, toda sua potência. É escapar à condição trágica
gens cênicas e do diálogo com outros setores cult- tinuidade da narrativa; a ruptura com os códigos tenderão a valorizar, tanto a verticalidade, quanto vivenciando-a. Converter o niilismo em vontade
13.  Cf. HALL. Why urais e artísticos. Para Edith Hall,13 esse interesse tradicionais da representação; a busca de uma a horizontalidade do espaço. Deste modo, o de potência, vencendo a morte com seu próprio
Greek Tragedy in
the Late Twentieth pelo texto antigo é um resultado da profunda e linguagem cênica brasileira fundada nas mani- excesso que é experienciado no corpo também se corpo, sacrificando-o para entregar-se ao êxtase
Century? radical mudança cultural e política que marca festações populares, como o carnaval; o uso de desdobra materialmente no espaço cênico. O que do acontecimento teatral, sempre reiniciado,
o final dos anos 1960. A partir deste período, as recursos tecnológicos; a valorização daquilo que é sucede é que o próprio edifício teatral adquire morrendo e renascendo, sempre renascendo.
tragédias gregas teriam sido encenadas cada vez excessivo e, por fim, a utilização de uma arquite- uma dimensão utópica, extraordinária, afir- A cada momento singular, renascer quando o
mais com perspectivas políticas radicais e com tura cênica que propicia a participação do público mando o seu caráter de heterotopia,15 quer dizer, carnaval cênico desponta nas pistas do Oficina,
uma busca maior de experimentalismo do ponto e uma ocupação integral do espaço. uma utopia realizada concretamente. Neste movi- revelando, em toda sua potência vital e solar, os
de vista estilístico. Os mitos gregos reelabora- As bacantes revela-se, assim, um espetáculo mento, o conflito original entre Apolo e Dionísio corpos e suas corporeidades.17 17.  PIRES. Zé Celso
dos por Ésquilo, Sófocles e Eurípides teriam se exemplar, já que funde o teatro ritual com diver- parece se desdobrar no próprio espaço, alçando- Se, de um modo geral, esta queda se dá em e a Oficina-Uzina de
Corpos, p. 140.
tornado um dos mais importantes prismas cult- sas referências religiosas, com o teatro político, se ao plano do espaço político, ou seja, o que se qualquer ato criativo, em toda atividade em que
urais e estéticos através dos quais o mundo real, a recuperação de tradições culturais e teatrais gera é um confronto entre as normas da cidade, esse trânsito entre espaços radicalmente diferen-
disfuncional e conflituoso do final do século XX brasileiras e o uso de recursos tecnológicos. Estes que, com seus poderes públicos e privados orde- tes se dá, o que se nota é que, por suas caracter-
tem refletido sobre sua própria imagem. elementos ordenam-se segundo uma perspec- nam, disciplinam, coagem e deformam os corpos, ísticas estéticas, o espetáculo As bacantes parece
Esse movimento de revivificação da tragédia tiva nietzschiana: o confronto entre Penteu e e o espaço do teatro, que se afirma como espaço radicalizar esse modo de vivência do teatro e de
grega – que começa a ocorrer na Europa e nos Dionísio é visto como uma metáfora da realidade da criação, da liberação, da indisciplina, da seu espaço. Assim, seguindo à risca a perspectiva
Estados Unidos a partir do final da década de social, política e econômica nacional, na medida subversão, do júbilo. Ora, no período em questão, nietzschiana, o espetáculo As bacantes revela o
1960, prosseguindo até os dias atuais – também em que as forças de conservação identificam-se o Teatro Oficina passava por um sério problema trágico como uma forma de transgressão,18 a qual 18.  COMODO. Orgia no
se fez sentir no teatro brasileiro, em especial a à estabilidade econômica, às leis do mercado, à com um grande grupo empresarial, conforme envolve luta, conflito, sofrimento, mas também palco. Entrevista com
José Celso Martinez
partir de meados da década de 1990, quando globalização, forças que, por sua vez, operariam comenta José Celso Martinez Correa no Programa júbilo, regozijo, plenitude. Aquilo que o mito de Correa.
diretores como Antunes Filho e José Celso Marti- uma opressão ou uma obstrução às forças ascen- da peça: Dionísio narra é vivenciado pelos atores, pelo
nez Correa começaram a encenar textos gregos. dentes da vida, cuja sede é o corpo, com seus Esta cidade vai ficar sabendo o quanto custa de- público e é corporificado no espaço. O pessimismo
Aqui, destacaremos o espetáculo As bacantes, de instintos, seus desejos, sua imaginação, seu praz- sprezar a orgya. É hilário. Cego. Em pleno século e o niilismo cedem, assim, espaço para o gozo do
Eurípides, dirigido por José Celso em 1995, pelo eres. O conflito Apolo e Dionísio é apresentado vinte e um, os secretários de cultura, despreza- instante, para o efêmero e o transitório, mas que

64 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 65


dossiês
parece ser muito mais real do que a própria vida teatral em suas formas de experimentalismo e no do trágico nas sociedades contemporâneas. São
em sua cotidianidade. ao pensamento, em função das questões éticas e Paulo: Zouk, 2003.
Pelas características aqui identificadas, As morais que o texto grego coloca. MAFFESOLI, Michel. Entrevista. In: SANTOS,
bacantes, de José Celso, parece apontar ainda para Referências Volnei Edson. O trágico e seus rastros. Londrina:
uma forma de compreensão do trágico que se aprox- BORNHEIM, Gerd. “Breves observações sobre o Eduel, 2002. p. XX.
19.  Sobre o sentido ima das teses desenvolvidas por Michel Maffesoli,19 sentido e a evolução do trágico” IN O sentido e a MOST, Gleen. “Da tragédia ao trágico” IN Fi-
pós-moderno do trá- para quem o sentido pós-moderno do trágico está máscara. São Paulo: Perspectiva, 1975. losofia e literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge
gico, Cf. MAFFESOLI.
O instante eterno: o relacionado às ideias de intensidade, de excesso, de COMODO, Roberto. “Orgia no palco”. Entrevista Zahar Editor, 2001.
retorno do trágico nas vivência do instante, do elemento festivo, do afron- com José Celso Martinez Correa. Isto é, São Paulo, NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São
sociedades contempo-
tamento do destino, o retorno cíclico. 1996. Disponível em: http://www.terra.com. Paulo: Companhia das Letras, 2001.
râneas. Cf. também:
MAFFESOLI. Entrevista. Por mais paradoxal que possa parecer, a acentu- br/istoe/vermelha/139601.htm. Acesso PIRES, Ericson. Zé Celso e a Oficina-Uzina de
ação do presente não é mais que outra maneira em 28 de maio de 2004. Corpos. São Paulo: Annablume, 2005.
de expressar a aceitação da morte. Viver no pre- CORREA, José Celso Martinez. Programa do espe- SANTOS, Volnei Edson. O trágico e seus rastros.
sente é viver sua morte todos os dias, é afrontá- táculo As bacantes, São Paulo, Teatro Oficina, 1995. Londrina: Eduel, 2002.
la, é assumi-la. Os termos intensidade e trágico DOMENACH, Jean-Marie. Le retour du tragique. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico, Rio de
não dizem outra coisa: só vale o que sabermos Paris : Éditions du Seuil, 1967. Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
que vai acabar. Algumas épocas protestam con- FOLEN, Helen. Modern Performance and Adapta-
tra isso e, então, a vontade, a ação, o sentido tion of Greek Tragedy. Washington, DC, 1998. Ameri-
do projeto e do futuro predominam. Outras con- can Philological Association. Presidential Address.
cordam, se ajustam, se acomodam à finitude, e Disponível em: http://www.apaclassics.org/
concedem sua preferência à contemplação e ao Publications/PresTalks/FOLEY98.html.
gozo do mundo, ao presenteísmo que lhes serve FINK, Eugen. La philosophie de Nietzsche. Paris:
de vetor. Mas é uma contemplação ou um gozo Les Éditions de Minuit, 1965. (Collection Arguments).
fugaz, penetrados por sentimentos de finitude. FOUCAULT, Michel. Outros espaços IN Estética:
20.  MAFFESOLI. O Consomem, com intensidade, tudo o que vivem.20 Literatura e pintura, música e cinema. Organização
instante eterno: o
À luz dessas reflexões, concluímos que o espe- e seleção de textos, Manoel Barros da Motta, Rio
retorno do trágico nas
sociedades contempo- táculo As bacantes, de José Celso Martinez Correa, de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
râneas, p. 58-59. tende a ser exemplar por conter diversos elemen- GRILL, Danko. Nietzsche e o Eterno Retorno do
tos formais que caracterizam a cena pós-moderna Mesmo ou o retorno da essência artística na arte.
(performance, teatro ritual, teatro da crueldade, In: Nietzsche hoje?: Colóquio de Cerisy. São Paulo:
teatro político), por propor um tipo de espetacu- Brasiliense, 1985.
laridade que, fundada numa filosofia da cultura GUMBRECHT, Hans Ulrich. Os lugares da tragé-
brasileira, isto é, a Antropofagia, de Oswald de dia IN Filosofia e Literatura: O trágico. Rio de Ja-
Andrade, transforma as relações entre espectador neiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
e cena, e ainda por repercutir as teorias contem- HALL, Edith, Why Greek Tragedy in the Late
porâneas sobre o trágico, teorias que encontram Twentieth Century? In Dionysus since 1969: Greek
sua matriz no pensamento de Friedrich Nietzsche: Tragedy at the Dawn of the Third Millenium. Oxford,
o trágico como afirmação plena da vida; em suma, New York: Oxford University Press, 2004.
o trágico como alegria. LAGNADO, Lisette. Conversações com Iberê Ca-
O teatro contemporâneo, em seu movimento margo. São Paulo: Iluminuras, 1994.
de revivificação dos textos gregos, seja por inter- LEGANGNEUX, Patricia. Les tragédies grecques
médio da montagem dos autores gregos, seja sur la scène moderne: une utopie théâtrale. Lou-
pelas releituras e adaptações dos mitos trágicos, vain: Presses Universitaires Septentrion, 2004.
vem atualizando os textos gregos, aproximando- LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Per-
os de discussões contemporâneas, relacionadas spectiva, 2006.
à sexualidade (opções sexuais, violência contra MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico.
a mulher, aborto etc), à política (guerras, holo- De Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
causto, questões ambientais, colonialismo, Editor, 2006.
genocídio, relações interculturais etc), à estética MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retor-

66 .ConTextura. 2011/1 2010/1 .ConTextura. 65


dossiês

Música e filosofia: as modernas disciplinas (tais quais Psicologia,


Sociologia, Antropologia, História, Acústica,
especiais quando aplicada a linguagens não
discursivas e simbólicas da arte.

interseções possíveis?
Física, etc.) e a correlação entre suas questões. O autor reconhece ainda que a filosofia da
Ainda no verbete, a observação mais sugestiva arte em geral – e da música em particular –, se
de Sparshott refere-se a três razões que justificar- encontra entre os campos mais movediços da
iam um ceticismo recaído sobre a área no decorrer filosofia. Dado que a arte é o campo estético mais

Lia Tomás | UNESP de sua história: primeiramente, porque nem todos


os escritores que gostariam de filosofar sobre a
importante, muitos escritores pretendem tratar a
filosofia da arte e a estética como se fossem disci-
música possuem os conhecimentos necessários plinas idênticas. Disso, ocorre que muitos filóso-
sobre a complexidade técnica da produção da fos que se dirigem para a arte colocam perguntas
música e de sua notação; em segundo lugar, que se encontram fora da esfera da estética; simi-
haveria também um forte preconceito quanto à larmente, muitas das perguntas estéticas não se
Resumo: ononononononononononononononononononononononononononononono- abrangência do campo – incluindo-se aí formas relacionam com as obras de arte. Quanto à música,
nonononnonononononononononononononononononononononononononononono- extramusicais da experiência humana e seu Rowell acrescenta que a maior parte das músicas
respectivo valor –; e por fim, o fato de que entre produzidas no mundo não são músicas “artísti-
nonnononononononononononononononononononononononononononononononono-
as ciências humanas a própria música foi consid- cas” (pelo menos segundo algumas definições),
nononononononononononononononononononononononononononononononononono-
erada por muito tempo como uma arte puramente mas as perguntas estéticas se aplicam a todas as
nononononononononononononononononononononononononononononononononono-
emotiva, ornamental e de entretenimento, com músicas.
nononononononononononononononon.
usos e funções insignificantes em assuntos sérios Após levantar os problemas acima, Rowell
da cultura. termina sua introdução com dez proposições bási-
Lewis Rowell, no capítulo introdutório de cas que abarcam tanto a música como a filosofia:
As histórias da música e da filosofia se Filosofia da Música. seu livro (ROWELL, 1987, p. 13-18), também
1. A música é um objeto filosófico legítimo
entrelaçam desde muito tempo. Apesar de Como apontado na introdução, apenas nos procura aclarar o binômio música/filosofia. No
e o pensamento sobre a música tem um
encontrarmos nesta historiografia comentários anos 60 o termo começou a receber um trata- que se refere ao primeiro termo, o autor sugere
lugar apropriado entre as disciplinas
e discussões sobre aspectos que se sobrepõem, mento mais atentivo por parte dos organizadores a dificuldade em definir a música, visto que uma
inquisitivas.
observa-se também que não há uma unanimidade do dicionário. Desde a sua primeira edição, em definição pode ser limitadora em torno da pala-
entre as definições e papéis que a Estética Musi- 1878, ora o verbete era ignorado, ora era apre- vra-objeto. Assinala ainda que em seu sentido
cal e a Filosofia da Música ocupam nestes campos. sentado de modo protocolar ou ainda enfatizando 2. A atividade do filósofo e a do crítico não
mais usual, pode se referir a sons, a uma folha
Tentando demonstrar parcialmente como se dá aspectos que tangenciavam os problemas. são a mesma.
de papel, a um conceito formal abstrato, a uma
esta discussão, escolhemos alguns autores que se Somente nos anos 1980, o verbete comparece conduta social coletiva, entre outros; e conclui
detiveram na temática, tentando argumentar ora com mais vigor, escrito pelo filósofo canadense 3. As perguntas primárias relativas à música
que uma definição precipitada pode fracassar,
a favor da Estética Musical, ora a favor da Filoso- Francis Sparshott. Nessa versão, o filósofo visa são as que incluem ser, saber e valorar.
visto que poderia abranger uma boa parte da
fia da Música e, por vezes, como já dito, sem se delimitar sua abordagem, mas apresenta os música do Ocidente, mas o mesmo não ocorreria
definirem por algum dos termos. Para tanto, este diversos aspectos abraçados pelo termo , o qual 4. A experiência musical em si é um modo
com a música não ocidental e aquela composta
artigo será dividido em três partes, a saber: a) normalmente indica uma explanação sobre o que de conhecimento e uma forma de buscar
nos últimos 30 anos.
como a música define a estética musical e a filoso- a música significa: a diferença entre o que é ou a verdade.
Quanto à filosofia, Rowell parte de sua
fia da música partindo de definições de musicólo- não é música, o lugar desta na vida humana e definição literal e conclui que um filósofo é
gos; b) como a filosofia define a estética musical sua relevância para a compreensão da história da 5. O produto musical, visto que corporifica
alguém que busca o conhecimento e, assim, busca
e a filosofia da música partindo de definições de natureza humana, os princípios fundamentais da importantes valores culturais, constitui
exercitar sua curiosidade intelectual. No entanto,
filósofos; c) síntese e problemas. interpretação e apreciação, a relação da música uma afirmação filosófica e pode-se lê-lo
a filosofia não tem como objetivo respostas defin-
1. A Musicologia definindo a Estética Musi- com as demais artes e/ou práticas artísticas, como tal.
itivas porque seus temas não podem ser provados
cal e a Filosofia da Música entre outros. por meio de uma demonstração. Inspirado por
É possível que a definição apresentada no seja A maior parte das questões centrais para a uma citação de Bertrand Russell, Rowell sugere 6. Os valores musicais não são absolutos.
a mais conhecida, visto que este dicionário é dos discussão filosófica da música foi contemplada quatro requisitos para a filosofia, a saber: uma
mais importantes na área musical. Um esboço do por Sparshott, a saber: questões ontológicas, mente curiosa, uma mente aberta, o hábito do 7. A maior parte das características próprias
problema que envolve as áreas citadas já se encon- epistemológicas e críticas, sobre a apreciação, pensamento disciplinado e o autoconhecimento. da música surge no momento em que a
tra na comparação entre as versões impressas e a julgamento e valor, aspectos funcionais, educati- No entanto, ao mesmo tempo em que a atividade música ocupa e organiza sua dimensão
recente versão eletrônica (implantada em 2001), vos, culturais e de entretenimento. O autor aponta mental e a linguagem são meios para a filosofia, primária: o tempo.
na qual o verbete foi suprimido e encampado pelo ainda as diferenças entre a estética da música e Rowell assinala que esta última cria problemas

68 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 69


dossiês
8. As fontes da filosofia não se limitam aos musical” e um grande “resíduo extramusical”. potencial de sua esfera de influência e relevância a interessar músicos e ouvintes e sua acui-
escritos dos grandes filósofos. Cada uma dessas tendências restringe a gama de que se manifesta nas práticas musicais. Assim, dade argumentativa (quanto à notoriedade do
experiências musicais e práticas relevantes para é um grave erro concebê-la como uma prática livro, esta foi adquirida pelo estilo polêmico de
9. A filosofia deveria, até onde fosse as questões da natureza e valor da música, cujos obscura e marginal, com pouca importância Hanslick e também devido a ideia – errada – que
possível, realizar-se empregando lingua- resultados comprometem seriamente a compreen- imediata para a confecção, experiência ou ensino o livro procura defender, ou seja, de que a música
gem comum e expressando suas ideias do são sobre os fenômenos. da Música. não tem nenhuma relação com as emoções).
modo mais simples possível. Em defesa da Filosofia da Música, Bowman O filósofo Phillip Alperson, em seu texto Segundo Alperson, Hanslick procura atingir
argumenta que seu escopo se direciona a preo- (ALPERSON, 2004, p. 254-276) inicia apontando dois objetivos principais: primeiro, confere um
10. A tarefa prioritária da filosofia é a formu- cupações maiores e contextos filosóficos consid- que a música tem sido um assunto de interesse crédito negativo sobre o significado da música
lação de perguntas. eravelmente mais inclusivos do que aqueles filosófico pelo menos desde a época de Pitágo- instrumental atacando uma visão generalizada de
historicamente vislumbrados pela Estética Musi- ras, e que esse interesse continua inabalável até o que o objeto principal da Estética da Música e do
2. Filósofos definindo a Filosofia da Música cal. Contudo, ela não precisa aceitar as reivindi- presente. Tentando explicar o porquê dessa admi- Discurso Crítico sobre a música possa ser enten-
e a Estética Musical cações da realidade última ou dos pressupostos ração filosófica que dura tanto tempo, indica dido sem termos emocionais. Em segundo lugar,
Wayne Bowman, na introdução de seu livro de autonomia, do que é intrínseco ou do estatuto uma série de características que podem aclarar o aporta um relato positivo do significado musical
(BOWMAN, 1998, p. 5-9), apresenta argumentos de ouvir como o modo essencialmente musical de fenômeno. Entre essas, destacam-se a acessibili- centrado no que ele considera ser o próprio objeto
sobre o porquê de sua preferência pela denomina- engajamento. A Filosofia da Música explora áreas dade da música, a variedade de meios, materiais, da crítica e atenção estética: “o belo musical como
ção Filosofia da Música no lugar de Estética Musi- que a Estética Musical comumente se refere como estrutura e organização dos sons em sua confec- uma espécie autônoma de beleza.”
cal. Na tentativa de aclarar a diferença entre os musicalmente incidental: questões epistemológi- ção, sua associação, para a maioria das pessoas, Hanslick oferece vários argumentos para
dois campos, Bowman destaca que a Filosofia da cas, éticas, sociais, culturais e políticas. com sua vida e seus sentimentos, sua onipresença apoiar a tese negativa. Quando as pessoas
Música não é o estudo de vozes mortas do passado Mesmo assim, continua o autor, a Filoso- devido à sua adaptabilidade, entre outros. dizem que a música tem essencialmente “a ver
e que embora ela seja por vezes equiparada à Esté- fia da Música não deve ser considerada como Sem pretender esgotar as inúmeras questões com sentimentos”, Hanslick argumenta sobre
tica Musical, a Filosofia da Música é mais ampla, uma disciplina hermética, restrita em sua esfera que se derivam das características elencadas, o equívoco entre duas visões da relação entre
pois retoma aspectos da Estética Musical e a de ação da exploração teórica das proposições Alperson se propõe a responder três questões música e emoção, dos quais nenhuma é defen-
engloba. abstratas sobre “boa música”. Seus interesses se principais: sável. De acordo com a primeira visão, o objetivo
Nesta perspectiva crítica, Bowman assinala sobrepõem e se estendem profundamente em um da música é suscitar certos tipos de sentimentos
1. Qual é o significado da música?
que o esforço da Estética Musical em descrever o grande número de disciplinas relacionadas, e a no ouvinte. De acordo com a segunda, a sensação
que distingue a música e a experiência musical mais evidente é a Crítica Musical. A relação entre é o conteúdo ou assunto representado na música.
2. Qual a natureza dos produtos e atividades
muitas vezes fracassa, pois com frequência ela a Filosofia da Música e a Crítica de Música é por Aqui, Alperson sugere os termos para a primeira
do fazer musical?
baseia suas afirmações em uma gama restrita de vezes descrita entre a teoria e a prática, sendo que visão, ou seja, a música desperta sentimentos nos
provas, as quais se baseiam em práticas musicais a filosofia aborda a música de forma mais abran- ouvintes, e r para a segunda, ou seja, a sensação
consideradas no mundo ocidental como “arte”. 3. Qual é o valor da música?
gente e abstrata, enquanto a crítica refere-se ao é o conteúdo ou assunto representado na música.
Infelizmente, continua o autor, situar a mérito de obras musicais determinadas. Embora Contra o termo , Hanslick oferece quatro argu-
Ciente da impossibilidade de adentrar em
música dentro de uma classe de empreendimentos essa distinção seja útil, não é interessante acen- mentos que podem se agrupar em dois pares.
todos os meandros do debate contemporâneo
denominada “as artes” suscita a questão do que é tuar as diferenças entre as duas: elas são muito Os dois primeiros argumentos decorrem princi-
da Filosofia da Música, Alperson apresenta um
música, a quais fins ela se presta e quais são seus semelhantes em suas orientações básicas e por palmente do ponto de vista de Hanslick sobre a
relato de algumas questões básicas dos principais
valores: e para chamá-la de ‘arte’ invariavelmente vezes, cumprem os mesmos objetivos, entre os beleza e a natureza da música como uma arte.
contribuintes nesta discussão. De modo análogo,
remove-se uma ampla gama de práticas musicais quais: explorar as crenças, desfazer estereótipos Estes argumentos se referem, respectivamente,
aqui me deterei apenas na explanação sucinta da
que não são consideradas “artísticas”, ou ainda, habituais e preconceitos, aumentar a imagina- aos aspectos objetivos e subjetivos da compreen-
primeira questão levantada pelo autor – qual o
práticas e obras que não evidenciam um “valor ção e revelar aspectos anteriormente ocultos. são musical:
significado da música – e os argumentos por ele
estético” em alto grau. Em outras palavras, a esté- Ambas visam educar sensibilidades e aumentar apresentados. 1. Objetivamente falando, a beleza da
tica musical tende a conferir validades globais a consciência crítica, esforçando-se em reduzir a Alperson assinala com propriedade que as música é considerada como uma proprie-
sobre características que são locais e específicas estima pelo banal. discussões contemporâneas sobre o significado dade inerente de forma e que não pode
de uma faixa relativamente estreita do repertório Finalizando, Bowman destaca que a Filoso- musical possuem uma dívida considerável com o ter nenhum propósito além de si mesma.
musical. fia da Música não deve ser considerada como um livro , publicado em 1854, pelo crítico vienense A contemplação do belo pode produzir
Além do mais, Bowman aponta que a evolução insular, como um reino esotérico, cujos interes- Eduard Hanslick. sentimentos agradáveis, mas estes não
da Estética Musical tem sido intimamente entrela- ses e esforços têm pouca importância ou relevân- A influência e a notoriedade do livro de possuem nenhuma relação com a beleza
çada com a ideia de um “valor musical intrínseco”, cia para além dos limites da filosofia em si. Ela Hanslick, que passou por dez edições apenas no musical como tal. O ponto de vista causal
um conceito que ergue fronteiras rígidas e imper- se compromete a descobrir e examinar as cren- século XIX, repousam sobre três aspectos: o do falsamente supõe que como sentimen-
meáveis entre o alcance do que é “propriamente ças sobre a natureza da música e de seu valor, o autor sobre problemas que ainda hoje continuam tos agradáveis podem ser despertados
70 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 71
dossiês
pelo belo musical, o objetivo da música é musicais desenvolvem-se historicamente, ele para o domínio da mediação e dos conceitos. musical, ou seja, decidir quem está legitimam-
despertar esses sentimentos. parece insistir, segundo Alperson, em uma inde- Neste sentido, talvez Phillip Alperson, mesmo ente autorizado a falar de música. Chegaram
pendência da afetividade do ouvinte, dos acon- concordando com estas proposições gerais, até nós reflexões profundas provenientes tanto
2. Do ponto de vista subjetivo, a música tecimentos históricos, dos assuntos políticos ou tenha algumas restrições com relação à ênfase da de matemáticos, filósofos ou escritores, como
enquanto arte dirige-se à imaginação das condições. Esta postura também colocaria em música instrumental, visto sua crítica a Hanslick. de músicos, críticos, etc., não se tratando de um
como “uma atividade de pura contempla- xeque a própria realização da composição musi- A intenção de Hanslick ao escrever não era negar evento casual que a música tenha sido levada
ção” de uma sequência de formas tonais, cal, vista aqui como algo diretamente coligada o fator emotivo na escuta da música. Ao contrário, em consideração por categorias tão díspares de
e aqui a excitação de sentimentos é um com sua e o caráter criativo da interpretação o que autor pretendia era apenas refutar a crença estudiosos. A música nos brinda como um fenô-
efeito secundário e periférico. musical. praticamente histórica de que a música tem meno extremamente complexo, poliédrico, do
3. Síntese e problemas como objetivo final apenas a “expressão dos qual se deriva que a atenção do pensador possa
O terceiro e quarto argumentos de Hanslick Em linhas gerais, os autores citados não apre- sentimentos”. ser polarizada, sucessivamente, pelo som como
contra o ponto de vista causal concentra-se no sentam grandes discrepâncias entre si e certa- Para tanto, Hanslick aponta alguns equívo- elemento físico-matemático, ou pela função
sentimento em si: mente concordariam com a seguinte proposição: cos: aquela é uma opinião de senso comum; um técnico-lingüística da música, ou pela função
3. O ponto de vista causal confunde “senti- se a filosofia é o lugar onde todos os saberes são possível significado da música instrumental artística desta, etc. (FUBINI, 1997, p. 26-27).
mentos” com “sensações”. Sensação pensados, a música como um saber também faz não reside estritamente na subjetividade; o som Os autores também concordariam com as
– especificamente a percepção dos senti- parte de seus objetos de pensamento. não possui um caráter semântico e imitativo; observações de Carl Dahlhaus, para o qual a
dos de qualidades específicas, tais como Concordariam também que, desde o século o compositor não é uma espécie de gênio inspi- Filosofia da Música (ou Estética Musical) se apre-
os tons – é pré-requisito para o belo musi- XVIII, quase todos os filósofos e boa parte dos rado que consegue amalgamar sua subjetividade senta como área transversal entre a história da
cal. Definir os sentimentos, como amor, escritores voltaram seu olhar para a música e em um sistema de escrita musical; não se pode música e a história da filosofia, no sentido em
alegria, entre outros, envolve um compo- propuseram uma Estética Musical. Em alguns confundir sujeito e objeto. Em outros termos, que se torna difícil separar a história da música
nente especificamente fenomenológico, casos, a Estética Musical comparece em seus escri- afirmar que a música possui um caráter expres- da valoração estética da própria música. Afinal,
a consciência do “nosso estado mental tos sem muita convicção, ou ainda, que os moti- sivo não significa afirmar que ela possa expres- os julgamentos realizados, bem como toda a ativi-
no que diz respeito à sua promoção ou vos para tal deferência tenham sido distintos, sar sentimentos, sejam eles identificáveis ou não; dade musical, são sustentados por pressupostos
inibição de bem-estar ou aflição.” Daqui como o cumprimento protocolar de seus próprios atribuir um caráter triste ou alegre à música, asso- estético-filosóficos.
não resulta do fato de que música neces- sistemas ou a mera apreciação musical. Concei- ciar um grupo de instrumentos ao canto de pássa- Referências
sariamente envolva sensações e que a tos do campo da estética, como beleza, forma ros ou ao som de trovões ou mesmo reivindicar ALPERSON, Philip. The Philosophy of Music:
finalidade da música seja induzir senti- e , para citar apenas alguns, foram transpostos como verdade geral uma interpretação subjetiva Formalism and Beyond. In: KIVY, Peter (Ed.). Ox-
mentos específicos no ouvinte. para o objeto música, o que por um lado trouxe à de um ouvinte comum, não podem ser tomados ford, UK: Blackwell Publishing, 2004.
baila problemas importantes para a construção da como parâmetro de julgamento musical. Como BOWMAN, Wayne D. . New York: Oxford Univer-
4. Além disso, do ponto de vista empírico própria área e, por outro, acrescentou equívocos Hanslick observa, estas associações são particu- sity Press, 1998.
não há nenhum nexo constante da nas leituras de seu próprio objeto. Para citar um lares, contextuais, e por isso não podem ser toma- ROWELL, Lewis. . Trad. Miguel Wald. Barcelo-
causalidade entre uma música e os exemplo neste sentido, a compreensão do ponto das como absolutas e universais. Em momento na: Gedisa, 1987.
sentimentos específicos que ela pode de vista do senso comum, de que o objetivo final algum, o autor se pronuncia contra a associação THE NEW GROVE DICTIONARY OF MUSIC
despertar. da música – como se houvesse uma relação de de ideias, imagens, figuras, conceitos e funções à AND MUSICIANS. Edição online. Disponível em:
causa e efeito entre quem compõe, quem executa música; no entanto, assinala a necessidade de se <http://www.oxfordmusiconline.com/public/
Após estas colocações, Alperson tece suas e quem escuta – fosse apenas a , sejam estes indi- ter claro que esta associação ocorre bem mais por book/omo_gmo>. Acesso em: 29 jun. 2011.
observações sobre as colocações de Hanslick. O viduais ou coletivos, e de que seu conteúdo fosse parte do repertório e da subjetividade do ouvinte
eixo de sua argumentação concentra-se no fato de a representação destes. do que por atributos inerentes à própria música.
que mesmo Hanslick querendo atacar um caráter Pode se dizer ainda que a florescência da Voltando aos traços comuns entre os autores,
emocional e representacional do significado musi- música instrumental no século XVIII foi o centro vale destacar que, apesar das defesas ou ataques,
cal, ele não consegue livrar-se da própria termi- de dois aspectos importantes no contexto: por creio que também eles concordariam com as
nologia emotiva e representativa na explanação um lado, trouxe para seu julgamento conceitos observações do musicólogo Enrico Fubini:
de seus argumentos. Na mesma perspectiva, assi- estéticos (por parte da filosofia) e, por outro, O que se deve entender por estética musical?
nala o caráter restritivo da autonomia da música emancipou-se com relação às demais linguagens Uma resposta que tivesse um valor normativo
defendida por Hanslick, visto que a mesma coloca e elementos extramusicais (por parte da música). careceria de sentido. Compete ao historiador
graves restrições sobre a analogia familiar entre a Em ambos os casos, o que se verifica é o seu descobrir o desenvolvimento, o caminho e o sig-
música e a linguagem. Ao contrário da língua, a distanciamento da mera experiência sensível, nificado que tomou a reflexão em torno do fenô-
música não tem nenhuma função semântica. imediata, emotiva, e da representação e sua aber- meno musical. Seria absurdo estabelecer aprior-
Embora Hanslick reconheça que os estilos tura para a reflexão e o discurso sobre a música, isticamente as fontes de uma suposta estética

72 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 73


dossiês

Heidegger e a origem da obra de arte O próprio questionamento do conceito de obra


de arte, mesmo que não reste dúvida quanto à
para o campo do entretenimento e da chamada
indústria cultural.
positividade e à validade deste conceito na abor- A perspectiva da origem implica, portanto,
dagem heideggeriana, nos remete, por contraste, um confronto com a estética, essa disciplina que
a uma atmosfera de pensamento do anos 20-30 desde o século XVIII se dedica a investigar a arte.
Prof. Dr. Marco Aurélio Werle | Depto. de Filosofia da USP do século XX, quando surgem oposições à noção Heidegger considera no fim do primeiro momento
de obra (considere-se, p. ex., o ensaio de Walter do UK, que se refere à “coisa e à obra”, que “nosso
Benjamin sobre a obra de arte na época de sua questionamento pela obra encontra-se abalado
reprodutibilidade técnica e os manifestos do porque não perguntamos pela obra, mas em parte
surrealismo de André Breton). por uma coisa em parte por um instrumento. Mas,
A busca pela origem essa não foi uma maneira de questionar desen-
“Schwer verlässt,/ Was Nahe dem Ursprung volvida primeiramente por nós. Esse é o modo de
wohnet, den Ort.” (Dificilmente abandona / o questionar da estética. O modo como ela observa
lugar, o que mora próximo da origem). Assim soam previamente a obra de arte encontra-se sob o
os versos de Hölderlin, do hino A migração, com domínio da interpretação tradicional de todo o
1.  Depto. de Filosofia Introdução sim nomear e festejar, numa atitude solícita que os quais Heidegger encerra o ensaio “A origem da ente” (UK, p. 24). Essa contaminação da abor-
da USP Palestra na obra de arte” [doravante UK], de 1935/36, o qual dagem pela interpretação tradicional não deve
Nesta palestra1 procurarei abordar, de um torna possível habitar o ser. A partir da lingua-
UFMG/Belo Horizonte
25/09/2009 modo um tanto quanto didático, o ensaio de gem e de uma postura de escuta, de recepção e hoje pode ser tido como um clássico do pensam- apagar o sentido positivo do termo origem ou a
Heidegger “A origem da obra de arte”,2 de de cultivo do que se oculta e ao mesmo tempo se ento estético do século XX. Os versos de Hölder- perspectiva da origem como possibilidade de afir-
2.  1935/36, tendo em vista os diferentes níveis de desoculta o homem poderá, caso queira e tenha lin parecem significativos para a compreensão da mação da arte, uma vez que perguntar pela origem
análise que nele se apresentam, desde o percurso forças para tanto, reencontrar-se com a sua perspectiva segundo a qual são pensadas a arte e é, em última instância, perguntar pela poesia.
meditativo que parte do nível mais imediato da existência. a poesia no ensaio de Heidegger, principalmente Toda obra de arte verdadeira é, para Heidegger,
3.  porque acentuam o termo origem (Ursprung), que uma poesia, de modo que investigar a origem da
“coisa”, passando pela noção de instrumento e de Esse elogio ou defesa do caráter de verdade da
obra até chegar ao tema “poesia”. poesia e da arte, no entanto, convive na reflexão remete a dois registros que convém destacar e pôr obra de arte nos leva a atentar para o seu aspecto
Esse percurso pressupõe um embate com de Heidegger com inúmeras críticas à estética e em relevo. poiético, de produção, do que está verdadeira-
o pensamento de Nietzsche, na crítica que ao esteticismo. Ou seja, a intenção mais profunda Em primeiro lugar, o termo origem não deve mente em obra na obra, segundo a linguagem de
Heidegger faz à estética tradicional e ao conceito de Heidegger não é fazer da arte uma espécie de ser compreendido no sentido tradicional de Heidegger. Com isso, procura-se resgatar o movi-
metafísico de arte no primeiro texto do volume paradigma do pensamento contemporâneo. Não “causa” de alguma coisa, segundo o esquema mento abrigado na obra do pôr-se-a-si do ser no
Nietzsche.3 Faz parte também do círculo de se trata de cair numa estetização geral da nossa aristotélico da causa e do efeito, mesmo porque ente, ou seja, a obra é a verdade na medida em
abrangência desse ensaio a interlocução desen- existência. O pensamento pós-metafísico não Heidegger se voltará contra a maneira como a que o ser vem à obra, não por um processo de
volvida com a obra de Hölderlin, tido como “poeta pode deixar de considerar os inúmeros compro- tradição ocidental de pensamento assumiu o im-posição humana, mas de ex-posição diante da
dos poetas”. A origem da obra de arte é aprofun- metimentos que a arte estabeleceu com a história esquema aristotélico para determinar o modo de manifestação do ser.
dada então como Dichtung/poiesis: produção em do esquecimento do ser ou com a metafísica ser das coisas produzidas pelo homem. A origem Mas, como se apresentam esses dois níveis
sentido amplo desde a essência da linguagem. tradicional. da obra de arte é antes pensada como o desdobra- de questionamento, o tradicional e o originário,
Neste movimento de pensamento, que se Paradoxalmente, a oposição à estética tradi- mento inaugural de algo a partir de sua essência, no ensaio UK, ou melhor, no pensamento de
dirige tanto para a história da estética e da cional gera uma sintonia de pensamento entre uma espécie de projeção (Vorsprung) do que está Heidegger nos anos 1930, época em que concebeu
metafísica, quanto para a “ontologia” da obra Heidegger e certos fenômenos artísticos contem- oculto para o que está desoculto. “A origem de sua reflexão sobre arte e poesia?
de arte, Heidegger procura resgatar o caráter de porâneos. Mesmo não se referindo explicitamente algo é a proveniência de sua essência”4 Os momentos ontológicos do ensaio “A ori- 4.  Der Ursprung des
Pensando em oposição ao modo de aborda- gem da obra de arte” Kunstwerkes, In: Hol-
verdade da arte, diante do predomínio da subje- à arte contemporânea, senão pelo caso isolado
zwege, oitava edição,
tividade moderna. Essa, pautando-se no modo de um quadro de Van Gogh, Heidegger concorda gem da arte no interior da metafísica ocidental, Antes de tudo, ao se pensar numa abordagem
Frankfurt am Main,
de agir da técnica, tomou para si toda forma de com as vanguardas no que tange ao rompimento Heidegger perguntará pela origem para além do UK, convém afastar a ideia de que seu obje- Klostermann, 2003,
dos padrões de produção humanos tornados tivo consiste em constituir uma teoria estética, [doravante UK], p. 1.
produzir e de dizer o ser. Ainda que a técnica com certos paradigmas tradicionais, tais como o Heidegger pergunta
não seja nada de técnico, como costuma dizer paradigma da representação, do predomínio do corriqueiros, via de regra ditados pela econo- a saber, um conjunto de normas ou preceitos no fim do UK: “ob die
Heidegger, ela coloca (stellt) ou “aparamenta” a tema narrativo, da imitação e da figuração. Além mia e fundados em noções “subjetivas”. Com destinados à apreciação de uma obra de arte. Pelo Kunst ein Ursprung
sein kann und dann ein
natureza por meio da “armação” (Gestell), como disso, conceitos como o de combate, de volta às efeito, desde o surgimento da estética na época contrário, Heidegger pretende situar a obra de
Vorsprung sein muss”
algo que tem sua finalidade única na funciona- coisas e à origem e de uma ampliação da esfera moderna, como ciência das sensações, estabel- arte enquanto tal, apontar para o seu lugar, para a (se a arte pode ser uma
eceu-se uma ditadura do sujeito na arte, que sua origem, o que implica conferir uma posição de origem e então deve
lidade, como sucedâneo dos anseios utilitaristas da experiência estética podem ser tomados como ser um salto à frente/
do homem. Já a poesia sugere uma outra postura chaves da interpretação heideggeriana para a se apresenta ou se re-presenta pelas noções de destaque à obra de arte no mundo, pois a obra de projeção) (UK, p.66).
diante do mundo, ela não pretende determinar, e compreensão de fenômenos contemporâneos. gosto, gênio, prazer etc., quando não degenera arte é “o pôr-se em obra da verdade” (UK, p. 21).

74 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 75


dossiês
Voltemos mais uma vez ao ponto de partida, humana, que sempre deve ser pensada junto com A intenção de Heidegger, cuja filosofia é experimentar novamente as coisas, deixar que
a perspectiva da origem. No “Posfácio” ao UK, o resultado. É apenas em um sentido inautên- marcada pela fenomenologia e pela questão do ser, elas nos falem e não classificá-las segundo esque-
Heidegger afirma: “o que a palavra ‘origem’ tico que se pode falar em obra da natureza, algo consiste em partir do próprio fenômeno artístico mas previamente fixados. É a partir dessa atitude
aqui significa é pensado a partir da essência da como uma produção completamente indepen- em sua mais absoluta pureza ou originariedade. metódica que Heidegger vai pensar a arte. Com
verdade” (UK, p. 69). A origem tem algo a ver com dente da influência humana. Pois o reino da Empregamos a palavra “originariedade” para efeito, desde Ser e tempo (parágrafo 6) Heidegger
a verdade, pois assim como a essência da verdade natureza é o reino da necessidade e, por conse- procurar fazer eco ao tema da origem e para vem insistindo na perspectiva fenomenológico-
não reside na mera concordância do enunciado guinte, da repetição e da ausência de consciên- distinguir essa noção de uma outra concepção hermenêutica na abordagem da existência
com a coisa, mas é acontecer como um desenvolvi- cia, em oposição ao reino da liberdade, o âmbito muito difundida desde o romantismo, a saber, humana e de suas manifestações.
mento que mantém o encobrimento no desco- humano. Em suma, faz parte da ideia de obra ser a noção de “originalidade”. Na Crítica da facul- Heidegger parte do dado fenomenológico
brimento (aquilo que está à luz diante de nós), algo originado de uma atividade livre, da qual dade do juízo, de Kant, a originalidade é uma das imediato que se apresenta na arte, isto é, a impli-
da mesma forma a obra não é uma adequação à somente o homem é capaz. Donde se segue que características centrais que distinguem o gênio. O cação entre o artista, a obra e a arte para, a partir
coisa, não é imitação, mas um desvelamento do nunca surgirá uma obra por si e em si. gênio, segundo Kant, é original porque instaura disso, questionar os níveis presentes na obra de
ser do ente em sua totalidade. A operação poética Além disso, ambos, o artista e a obra, depen- uma obra a partir de um talento dado ao homem arte. Todo o ensaio “A origem da obra de arte” se
e artística instaura e abriga no ente o descobri- dem da arte, conceito genérico que envolve pela natureza. Mas a problemática da origem em move de uma instância mais “bruta” da arte para
mento e encobrimento do ser. inúmeras determinações, mas que confere Heidegger não passa pelo viés subjetivo, e sim o caráter especificamente artístico da arte, que
3. 1. ) O círculo hermenêutico do artista, da sentido à unificação que ocorre entre o artista e a envolve um nível anterior, por assim dizer, mais Heidegger verá na poesia enquanto Dichtung,
obra e da arte obra. Ambos estão submetidos a um repertório de originário. poiesis, produção do ser.
O enfoque da origem, porém, lança o desafio noções consolidadas ao longo dos tempos e que Trata-se de pensar a arte antes de qualquer 3. 2. ) A coisa, o instrumento, a obra e a poe-
de saber a partir de onde devemos questionar a justamente recebeu a designação de arte, pouco conceito acerca do que seja a arte, o artista, a sia
obra ou a arte. No começo de “A origem da obra de importando se seguem esta ou aquela concepção obra, o espectador etc. A estética tradicional Os níveis ou estágios do ensaio “A origem da
arte” é apresentada uma situação de interrelação em particular. Entretanto, também esta categoria oscila, via de regra, entre esses extremos, privi- obra de arte”, como se deixa depreender pela
recíproca entre e o artista e a obra, no horizonte não é autônoma, pois depende das duas anteri- legiando ora uma ora outra perspectiva. Como própria distribuição temática, são basicamente
do conceito de arte. ores, da atuação de muitos artistas e do repertório veremos, para Heidegger esse é um procedi- articulados em três etapas: 1. a coisa e a obra;
Se iniciarmos a reflexão pelo artista, inde- das obras surgidas ao longo dos tempos e que, mento limitado e restrito, pois seria preciso antes 2. a obra e a verdade; 3. a verdade e a arte. Estes
pendentemente de o considerarmos dotado de hoje, via de regra se encontram nos museus ou inserir-se no campo do acontecimento da arte e três estágios estão marcados por quatro temas (ou
genialidade ou se o tomarmos como alguém que em coleções particulares. Enfim, o problema que esse acontecimento sempre envolve uma dimen- âmbitos) nos quais tem de se demorar o pensam-
opera uma atividade racional que segue regras Heidegger coloca de início é o seguinte: por onde são mais ampla. Heidegger pretende com isso ento: o âmbito da coisidade da coisa, da instru-
artísticas ou poéticas, sempre teremos também começar quando se pretende falar de arte? E a escapar dos esquemas tradicionais de explicação mentalidade do instrumento, do caráter de obra
de colocar a questão da obra, na qual culmina dificuldade principal é que por todos os lados por da obra de arte que partem ou do sujeito ou do da obra e da poeticidade intrínseca da obra de
a produção. Mesmo na época contemporânea, onde pretendemos começar somos remetidos de objeto. arte.
em que se fala de arte sem obra, como é o caso volta a um outro lado e encontramo-nos, de certo A marca da fenomenologia, corrente da filoso- Se observarmos atentamente o desenvolvi-
das performances, ainda assim existe uma exte- modo, perdidos. fia do século XX que prega a volta aos fenômenos mento do texto perceberemos que a reflexão
riorização da atividade artística, sem a qual não Disso resulta um círculo, pois para escla- e da qual Heidegger é um dos herdeiros, é procu- heideggeriana se move de acordo com determi-
se pode pensar o artista. O artista nada é sem a recer um dos elementos essenciais da arte somos rar “ir às coisas mesmas”. Para Husserl, fundador nados registros bastante conhecidos. Para facili-
produção ou mesmo a expressão. Não é possível remetidos imediatamente a um outro. da fenomenologia e professor de Heidegger, a tar a compreensão desse percurso, vou usar uma
imaginar uma mera potencialidade do artista, “O artista é a origem da obra. A obra é a origem humanidade do século XX, com o crescente cien- linguagem que Heidegger certamente repudiaria,
isolá-lo completamente do resultado de sua ativi- do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, tificismo e racionalização extremada, em que mas que permite elucidar de maneira mais aces-
5.  A origem da obra
de arte, trad. de Maria dade, já que não há obra como puro pensamento nenhum dos dois se sustenta isoladamente. se mostram explicações e mais explicações para sível o que está em causa. Pode-se dizer que há
da Conceição Costa, nem produção sem algum suporte material ou Artista e obra são, em si mesmos, e na sua re- todos os fenômenos, perdeu o contato com as um nível mais teórico, um nível mais prático e
Lisboa, Edições 70,
1989, p. 11/UK, p. 1. alguma forma de interatividade. lação recíproca, graças a um terceiro, que é o coisas enquanto tais. Todos os nossos conceitos, um terceiro nível mais estético presente na abor-
Cf. também a tradução Por outro lado, não se pode também falar de primeiro, a saber, graças àquilo a que o artista em vez de oferecer explicações, justamente impe- dagem heideggeriana. Esse esquema remete ao
portuguesa de Irene
obra sem pensar em um artista, ou melhor, em e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças dem as explicações, ou melhor, o problema está modo de pensar do idealismo alemão e não deve
Borges-Duarte e Filipa
Pedroso, In: Caminhos um autor. Mesmo quando se pensa numa obra à arte”5. justamente na ambição de tentar explicar tudo. ser simplesmente aplicado a Heidegger segundo
da floresta, Lisboa, coletiva, ainda ali se faz presente a autoria, no Onde Heidegger pretende chegar com tais Por isso a filosofia deveria voltar-se novamente a carga metafísica que possuía na filosofia
Gulbenkian, 2002 e a
brasileira de Maria José sentido aristotélico de uma causa eficiente, colocações aparentemente óbvias de que há aos fenômenos, exercitar a paciente descrição moderna. Pois, como já se disse, a perspectiva
R. Campos, publicada de alguém que faz ou opera a obra, tanto que o muitas maneiras de se aproximar do fenômeno fenomenológica, permitindo que os fenômenos se heideggeriana é fenomenológica e hermenêutica,
na Kritérion. Revista artístico? Qual é o sentido dessa noção de círculo? revelem à nossa consciência envolvida neles e não vale dizer, enfatiza os momentos pré-teóricos,
próprio termo “obra” deriva do latim operare. A
de Filosofia, núme-
ros 76 (1986), 79/80 peculiaridade de uma obra é o fato de ser feita por Ou melhor, que perspectiva alicerça essa aborda- determinar, a partir de uma arrogância subjetiva, pré-práticos e pré-estéticos da atitude do homem
(1987/88) e 86 (1992). alguém, de ser algo decorrente de uma atividade gem heideggeriana? os fenômenos que estão em torno de nós. Deve-se no mundo. No entanto, há que se notar que a

76 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 77


dossiês
abordagem heideggeriana desses níveis, como dado às sensações. Em ambos os casos, porém, de classe o tema da “reificação” (Verdinglichung). ser revelado pela obra, que instaura o ser dos
veremos a seguir, sempre é feita do interior de o procedimento impõe à coisa algo de fora, um A reificação é a transformação de tudo em coisa e instrumentos, situa-os num contexto de signifi-
uma tradição ou de uma atitude tradicional do esquema humano que pressupõe a separação entre mercadoria, mas justamente porque a coisa como cação. A obra indica toda a complexidade existen-
homem diante das coisas e do mundo. Heidegger sujeito e objeto e é extraída da perspectiva lógica tal perdeu seu sentido. cial do instrumento. Não é a serventia que funda
pretende rever essa tradição, mas não por inter- do enunciado (sujeito mais predicado), isto é, do o modo de ser do instrumento, sua instrumentali-
esse teórico pelas teorias tradicionais e posturas que tem de ser dito/aplicado sobre a coisa. A coisa 3. 2. 2. ) O instrumento dade e utilidade, mas o fato de que o instrumento
engendradas pela história da filosofia, uma vez é tomada como sujeito com predicados e nunca nos propicia uma confiança na organização de
que sua abordagem se orienta pelo fenômeno, é experimentamos a coisa como coisa, tal como ela Em segundo lugar, Heidegger passa para um nossa existência. Essa categoria da “segurança”
fenomenológica, e sim porque a tradição influ- se mostra a nós. Dessa última perspectiva nasce nível diferente de análise, a perspectiva do instru- (Verlässlichkeit]) remete fenomenologicamente a
encia nosso modo de ver e de apreciar a arte, por então o esquema, tão conhecido e aplicado na mento, que pode ser considerada como uma abor- um modo fundamental da existência.
mais que não nos demos conta disso. A tradição estética, por vezes até de modo abusado, de uma dagem prática e que é designada como sendo a E se transpusermos essa dimensão ao plano
resta então um impensado que nos determina matéria que sofre a aplicação de uma forma. abordagem do “caráter de instrumento do instru- artístico contemporâneo, podemos dizer que
silenciosa e tacitamente e na maior parte das Em toda essa reflexão heideggeriana predo- mento (Zeughaftigkeit des Zeuges)”. Heidegger muitos artistas se ocuparam desse tema, com a
vezes nos afasta cada vez mais da manifestação mina uma crítica à perspectiva da teoria do chega a esse patamar porque na base da experiên- chamada transfiguração do cotidiano. Mesmo um
do que verdadeiramente é, do ser. conhecimento, ou seja, ao modo de pensar a arte cia da coisa na filosofia tradicional, vista acima, gesto ultra moderno como o de Duchamp e seu
a partir de esquemas extraídos da vertente da atua a concepção de instrumento (Zeug). A coisa urinol, embora pretenda questionar o sentido do
3. 2.1. ) A coisa teoria do conhecimento. Não é à toa que Heide- sempre é pensada no interior da teoria do conhe- que é uma obra de arte, não deixa de questionar
gger procurará desentranhar o problema da coisa cimento como algo utilizado e empregado pelo a dimensão instrumental do objeto. Já no século
Inicialmente observamos no UK o momento tanto no ensaio Das Ding (“A coisa”) quanto a homem. Seria então a obra um instrumento, cuja XVII a pintura de gêneros dos holandeses, tão
teórico, chamado por Heidegger de “caráter de partir de uma das mais influentes concepções da essência é o servir (Dienlichkeit)? Mais uma vez bem analisada pela estética de Hegel, punha em
coisa da coisa” (Dinghaftigkeit des Dinges) na teoria do conhecimento da época moderna, na Heidegger observará que essa segunda perspec- questão a relação dos homens com as diferentes
investigação da obra de arte. O conceito de coisa obra Die Frage nach dem Ding (“A questão da tiva de aproximação da obra é igualmente parcial relações de trabalho, que envolvem instrumen-
deve aqui ser compreendido em sentido amplo, coisa”), em que analisa a lógica transcendental e limitada, e pior, repousa sobre uma inversão dos tos. Procurou-se nesses pequenos quadros indi-
“qualquer coisa pode ser uma coisa”: coisa é o da Crítica da razão pura de Kant. Não nos inte- fatores. Pois não é a obra que depende do instru- car o ser-mundo desses instrumentos, a conexão
nome para o ente imediato, tal como se apresenta ressa aqui mostrar como Heidegger refuta estes mento, mas o instrumento da obra. Tomando do cotidiano com os interesses mais elevados
num primeiro encontro. Heidegger examina aqui esquemas, mas o fio norteador é que todos eles como exemplo o quadro Os sapatos (1887) de Van da existência. A arte restabelece o sentido mais
a atitude que consiste em pensar a obra como partem do nível do enunciado lógico do pensa- Gogh, Heidegger indica que o artista não imita amplo do atuar cotidiano, recoloca esse atuar, que
algo passivo, a ser determinado por categorias do mento e já pressupõem conhecido e como dado o um par de sapatos, mas antes instaura na obra o parece particular, num todo maior. Ao contrário
pensamento humano abstrato o qual se debruça que pretendem explicar. Além disso, uma concep- ser, a característica mais própria do instrumento, do instrumento, a obra não é algo que serve, que
sobre algo que está meramente a sua frente e que ção remete à outra: a objetiva carece da subjetiva seu ser de confiança (Verlässlichkeit). imita o modo de ser dos instrumentos, mas ela
se oferece para a conceitualização. A primeira e vice-versa. Os instrumentos existem no dia-a-dia como institui um mundo, imprime significação, não é
noção que se apresenta a qualquer um diante Talvez valha a pena aqui uma observa- algo ôntico, possuem uma instrumentalidade fim para um outro, mas fim em si mesmo. A obra
de uma obra de arte é que a obra é uma coisa. O ção paralela sobre o tema da coisa na estética no servir, sem que notemos neles seu caráter de opera a verdade do instrumento.
problema é saber quê coisa ela é. A obra é pensada contemporânea, mais particularmente na poesia ser, seu sentido mais amplo, o fato de que não
como “algo”, uma coisa justamente. Na história de Rilke. Tem-se a impressão de que a Stimmung, são apenas instrumentos, mas algo que os tran- 3. 2. 3. ) A obra entre terra e mundo e o
do pensamento isso foi afirmado segundo o a disposição de ânimo e a sintonia heideggeriana scende e que nos permite viver em confiança no tema da verdade
esquema antigo da substância e dos acidentes ou, é a mesma de alguns poemas de Rilke, não só do mundo. O que seria de nossa vida se não confiás-
na visão moderna determinada por Kant, como ciclo dos Dinggedichte, mas dos Sonetos a Orfeu e semos nos instrumentos que nos cercam, desde o E assim passamos do prático (do uso dos
múltiplo de percepções. Por fim, uma terceira as Elegias a Duino. Assim como Heidegger, Rilke mais simples até o mais complexo? Mas isso não instrumentos) para o estético (para a fundamen-
visão da coisa afirma-se quando se a toma como também se moverá no campo de uma certa perda é revelado pelo instrumento como tal no uso que tação autônoma), que pode ser tomado como
matéria enformada. Esses três esquemas, porém, de contato com as coisas, como se as coisas tives- dele fazemos. Já em Ser e tempo, Heidegger anal- o terceiro momento de análise do UK. O estético
não atingem nem a coisa, a sua coisidade, nem a sem novamente que ser ditas em sua singeleza, isava o modo de ser do instrumento apontando (caráter de obra da obra / Werkhaftigkeit des
obra. Por quê? justamente porque a experiência contemporânea para uma significância e um contexto de uso, os Werkes) evidentemente tem de ser tomado aqui
A coisa é ora situada, segundo a metafísica é a da perda da coisa e do distanciamento das quais em última instância dão sentido ao instru- em sentido amplo, como o campo de instauração
tradicional, de modo objetivo, na perspectiva coisas. Merleau-Ponty, em “A dúvida de Cézanne”, mento. O martelo se realiza no martelar, mas não da verdade.
dos antigos, sistematizada por Aristóteles, como poderia aqui também ser evocado, inclusive pelo como um ente isolado. O instrumento é, por assim Ao ressaltar em seu ensaio o tema da verdade,
sendo uma substância com acidentes. Ora a coisa tema da origem (volume de Os Pensadores, p. dizer, algo mudo que necessita de uma voz que o Heidegger retoma uma questão antiga, já posta
é pensada no horizonte filosófico moderno subje- 308-309). Já na tradição marxista, foi Lukács dignifique como instrumento, que lhe devolva o por Platão na República e tematizada de diferen-
tivo, a partir das percepções, como um múltiplo quem pôs no centro de sua História e consciência estatuto de ser. Isso, no entanto, somente poderá tes maneiras na história da arte e da estética. A

78 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 79


dossiês
reflexão tradicional ora nega à arte um valor de se pensar mais ampla e mais profundamente o Note-se ainda que o fato de o artigo definido uma invocação e mesmo como uma provocação.
verdade, ora a transforma em meio de educação processo de produção, para além da concepção estar reservado para a terra e o indefinido para o Nesse caso, a obra surge em geral como algo que
e de formação do gênero humano. Heidegger se de que fazer arte é imprimir uma forma à matéria mundo aponta para um certo privilégio do oculto pretende chocar o espectador, pois é fruto de
colocará do lado da tradição que defende que a arte ou vice-versa, encontrar uma forma apropriada a e do encobrimento, do ser em sentido ontológico um conflito, de uma dor, por exemplo, de uma
tem a ver com a verdade, ou seja, não é mero jogo essa ou aquela matéria que se pretende enformar. fundamental. Diante desse processo de “posição” experiência completamente outra etc.
ou ilusão. No entanto, a noção de verdade possui Terra, no caso, em termos sucintos, é algo na arte, na qual o homem é convidado a tomar No plano da obra, o conflito dará lugar ao que
em seu pensamento uma conotação bem determi- como a origem de toda forma de materialidade, uma posição, seria possível justamente ques- Heidegger chama de traço ou rasgo (Riss) (UK,
nada, sendo associada ao termo grego alétheia. se quisermos, de todo o universo, a “mãe terra”. É tionar a atitude da técnica moderna no ensaio de p. 51) que, no fundo, corresponde ao aspecto
Num dos ensaios anteriores de Heidegger, inti- sinônimo de natureza, mas não no sentido da pala- Heidegger intitulado “A questão da técnica”. Pois da instauração da forma sensível, do que se
tulado “Sobre a essência da verdade”, essa noção vra latina natura, mas no sentido da palavra grega a técnica moderna ou tecnologia também opera consolida desde o ato da luta e culmina como uma
de verdade é oposta à concepção da verdade como physis, já que natura ressalta apenas o momento uma posição, só que é uma Ge-stell, uma “arma- Gestalt enquanto momento em que a luta encon-
concordância/adequação do enunciado com a do aparecer, do já estar nascido. Heidegger pensa ção”, na qual se revela uma atitude não solícita, tra um “assentamento”. O stellen auf e o stellen
coisa. A verdade como alétheia é o “descobri- com a noção de terra o caráter de sair para fora mas im-positiva da subjetividade moderna. Na her do mundo e da terra alcançam no combate
mento do ente” (Unverborgenheit des Seienden) (Herauskommen), um germinar (Aufgehen) (UK, arte o homem se ex-põe e na técnica ele se im-põe. uma substantivação, uma Gestalt. Essa Gestalt
(UK, p. 37). p.28), onde é central atentar para o instante ante- Voltando novamente à verdade da obra, vere- não deve, porém, ser tomada como o término da
Para além da constatação de um fato ou rior ao processo de vir à luz de algo. Algo sai de mos no texto de Heidegger que a verdade é um luta e do conflito, mas como um traço, um rasgo,
de uma evidência, a verdade é então um certo uma instância fechada, resguardada, para a luz. acontecimento da relação entre o mundo e a terra uma marca que o artista imprime na obra. Essa
espaço e um certo acontecer, no qual o ente se A terra é então essencialmente algo que se fecha na forma do combate ou do conflito (Streit), já marca não é “criada” pelo artista, mas lhe é trans-
coloca desde um encobrimento (de um não ser) e se abre na medida em que sai desse fechamento que a terra e o mundo são diferentes, mas neces- mitida pela luta da terra e do mundo. E o verda-
até um descobrimento, uma espécie de vir à luz e é marcada pelo fechamento. O artista “produz sitam colocar-se enquanto tal para se afirmarem deiro artista é aquele que consegue fazer com que
(Lichtung – clareira). Os dois momentos devem ser desde” (Herstellen) a terra ou “põe” algo diante de segundo seu ser. O conflito surge justamente essa marca apareça de tal modo viva e atuante que
pensados como sendo um único acontecimento. nós a partir da terra. porque a terra se fecha e o mundo se abre. No se mantenha conservada na luta em obra, alcance
Esse campo da verdade é acionado no universo Por outro lado, mundo é aqui tomado como um processo de constituição da obra há algo mais uma substancialização.
artístico por aquilo que Heidegger chama de mundo e não como a mundanidade do mundo, tal amplo em jogo, ou melhor, em luta: a terra, como É a partir desse momento que entrará em cena
“terra” e “mundo”. como Heidegger aborda o conceito de mundo em o sentido último de toda materialidade, de onde o sentido da poesia, da Dichtung, que nada mais é
Esses termos, “terra” e “mundo”, pensados no Ser e tempo, em oposição à concepção de mundo brota toda e qualquer matéria, e o mundo, como do que a consolidação ou a expressão do conflito
campo estético, remetem a uma “tradução” das cartesiana como res extensa (coisa extensa). horizonte onde se torna possível qualquer forma entre terra e mundo, que se apresenta como traço
categorias tradicionais de “matéria” e “forma”. Mundo é a significação, o elemento propriamente de sentido e de significado, encontram-se em luta e forma.
Heidegger procura evitar essas últimas noções humano da obra, a habitação como abertura que (Streit). Essa luta é a expressão da vida da obra,
por considerá-las muito restritas para a ativi- necessita se apresentar como algo que se fecha para além de uma harmonia pacífica e muitas 3. 2. 4. ) A atividade poética
dade artística, elas não explicitam o que real- ou se contém por meio da terra. A terra tem a vezes estéril entre forma e conteúdo na obra.
mente está em causa na produção de uma obra. característica de se fechar, de ser um mistério, tal Essa concepção de luta possui um alcance A poesia é o agente instaurador da obra, um
Uma obra de arte não é a simples aplicação de como era a physis dos gregos. É sobre essa base importante no campo da teoria artística, pois ela criar em sentido amplo, não somente um gênero
uma forma, que o artista dispõe a bel-prazer, de resistência material que a obra se apoia em sua se opõe diretamente ao sentido tradicional da determinado. Heidegger emprega a palavra alemã
sobre uma matéria, que estaria simplesmente produção e proveniência (herstellen). O mundo, harmonia e do equilíbrio na arte, tanto promul- Dichtung e não Poesie (poesia como um gênero
disposta diante dele e que ele então maneja. Pelo ao contrário, implica o movimento “contrário” da gados na Antiguidade e no Renascimento (p. específico), sendo a Dichtung o que aproxima
contrário, a relação artística é mais profunda e abertura, do afirmar-se (aufstellen) de significa- ex. como concinitas). Igualmente a luta é uma (dichtet) em sentido originário. Poderíamos dizer
verdadeira, na obra de arte está presente todo um dos e de noções que fazem com que o homem cele- categoria que se opõe ao conceito especifica- que a Dichtung é aquele centro que aproxima a
mundo e toda a terra. E o artista verdadeiro não bre e glorifique sua existência. Ambos, mundo e mente moderno de jogo (Spiel), promulgado e terra e o mundo, o próprio combate. Em outras
elabora mecanicamente uma matéria como algo terra, promovem então a verdade compreendida defendido pela estética kantiana e também por palavras, ela funciona como a amarração do
específico, p. ex., o pigmento de cor na pintura como alétheia, a verdade que é essencialmente Schiller por intermédio do impulso lúdico (Spiel- desocultamento e do ocultamento da verdade.
ou o mármore da escultura, mas está numa sinto- ocultação e desocultação, e não apenas a afirma- trieb). Heidegger parece estar mais sintonizado Na poesia afirma-se o traço da obra, sua marca
nia mais profunda com a própria “terra”, a origem ção da certeza no enunciado. com uma noção contemporânea de arte, numa (Riss) no âmbito de um excesso, de oferta da
de toda e qualquer forma de materialidade. Da “Aufstellen einer Welt und das Herstellen der sequência da estética de Hegel, em que se pensa terra, de fundamentação e de instauração de um
mesma maneira, o artista verdadeiro não imprime Erde” (UK, p. 34). Note-se nessa formulação a a arte como abrigando uma contradição e como mundo histórico. Sendo assim, percebemos que o
na matéria um mero conceito, concepção ou tema proeminência do verbo stellen, que se mostra expressão de um conflito. Nas vanguardas, por ensaio de Heidegger caminha para a indicação do
que ele tem previamente na mente, e sim mobiliza também como elo de unificação. Na obra de arte exemplo, a arte é pensada essencialmente como que está no mais íntimo da arte, que é a poesia,
um mundo, constrói um mundo que ele mesmo há um stellen que erige [(auf) (mundo) baseado inquietação, aliás, cada movimento de vanguarda o elemento poético que anima toda e qualquer
desconhece antes do processo criativo. Há que num fundamento, numa origem (her) (Terra). pode ser tomado como uma forma de luta, como forma de arte.

80 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 81


dossiês
Para dar conta dessa ampla mobilização
promovida pelo ato poético, Heidegger desig-
nará três características do ato poetizador: ele é
fundar, livre presentear e início (Stiftung, freie
Schenkung e Anfang). A noção de início remete
ao problema da origem, só que agora pensada
como algo ativado pelo homem, pelo poeta, que
institui, mas oferece ao mesmo tempo. Na obra,
poderia se dizer, o ser humano se oferta ou se
oferece, se expõe numa abertura e opera um ato
que se aproxima de um ato divinatório (para usar
aqui uma expressão do romantismo). Esse ato
institui a existência na mesma medida em que se
forma a obra. Aciona-se um início de transcurso
da existência, bem como renova-se o próprio
pertencimento do homem a um mundo histórico
e à terra.
Heidegger irá aprofundar essa dimensão da
atividade poética junto de suas interpretações
de Hölderlin, quando aparecerá um outro termo
central, a noção de sagrado (das Heilige). O
conflito entre terra e mundo será pensado junto
à obra poética de Hölderlin como a relação de
tensão e de complementação entre os homens e
os deuses no plano da história ocidental como um
todo. Na poesia, Heidegger verá uma via para uma
espécie de redenção e “cura” (heilen) da existên-
cia. Notamos aqui o elo profundo entre a analítica
existencial e o discurso poético.
Encerro com uma citação do texto de
Heidegger que aponta para essa perspectiva:
“O dizer projetante é poesia: o dizer essencial
do mundo e da terra, do espaço de jogo de seu
combate e, portanto, do lugar da distância e da
aproximação dos deuses. A poesia é o dizer es-
sencial da desocultação dos entes” (UK, p. 61-
62).

82 .ConTextura. 2011/1
passos contados

Guilherme Werkema em grego no quadro da nossa salinha “pra gente


sorver melhor a verdadeira sabedoria antiga”, que
sabia absolutamente tudo da Ética a Nicômaco
de Aristóteles, mas que sempre metia o bedelho
Anna Coli em todas as discussões sobre éticas em geral. 6.  Só não há aquilo
que foi esquecido.
Guilherme era aquele que carregava todos os dias
um saquinho de castanhas, “comida de vegano”,
que compreendia a necessidade de debater sobre
a questão animal, que tinha um blog sobre vega-
nismo, que guiou meus primeiros passos na dura
empreitada vegetariana... Guilherme era aquele
que tinha posições fortes e censurava nossas
criancices, acusava nossas ingenuidades e sabia
rir das próprias mazelas, era aquele que adorava
um convite para entregar-se a Baco, mas que
in memorian

Diz-se que a morte é o fim de tudo. Para o que planejava visitar seus amigos distantes, que
nunca tomava a iniciativa da organização das
Guilherme, meu querido amigo e companheiro dos sempre reservava tempo para os amigos próximos,
festanças, que comedidamente perdia a medida,
anos de formação em Filosofia – anos de angús- que respeitava as distâncias de amigos queridos,
que implicava e brigava e se indignava com toda
tias e incertezas, mas também de alegrias e desco- que lamentava os desencontros e que brindava
tentativa de organizar um churrasco dos amigos,
bertas, muitas vezes compartilhadas nas salas de com alegria os encontros, que nutria uma admi-
que tinhas as melhores histórias do mundo sobre
estudo do PET-Filosofia, o recanto privilegiado ração profunda pelos poemas de Safo e discutia
fuga de elefantes, que sempre evocava uma passa-
de algumas de minhas mais verdadeiras amizades traduções do grego com amigos com a alegria
gem da Odisseia nas conversas sérias, que adorava
– a morte tão precoce e inesperada foi o fim de de quem partilha uma saborosa guloseima; do
as histórias d’As Mil e Uma Noites e sabia várias
grandes planos e de sonhos inabaláveis. Sonhos Guilherme filho e irmão, sempre dedicado e
travessuras do cego Tirésias pelos gêneros huma-
de uma promissora carreira acadêmica, alimen- envolvido, do Guilherme que amava e sonhava ter
nos, que tinha sempre uma boa anedota grega no
tados desde os tempos em que cursava Direito e sua própria família, que nutria o sonho da alegria
bolso. Guilherme era aquele que fez uma guerra
buscava disciplinas e grupos de estudos no curso de um casamento que pouco saboreou e de uma
de armaduras de papelão em casa com os amigos
de Filosofia, tempos recheados de concretude vida, por assim dizer, “adulta”, de responsabili-
e que admirava a virtude heroica, que sonhava
pela experiência como professor voluntário em dades e contas a pagar de uma nova casa que ele
participar de uma guerra épica e que citava a frase
Cabo Delgado (Moçambique) e, principalmente, não conheceu. A vida de infinitas possibilida-
das mães espartanas que lembravam aos filhos
pela experiência extrema da precariedade des e trajetos, infinitos desejos e necessidades
sua bravura e dever para com Esparta, e dizia “Ou
humana – em suas diversas manifestações – com chegou precocemente ao fim para ele, que tanto
bem com ele [o escudo] ou bem sobre ele”. Enfim,
a qual podemos apenas fantasiar do alto de nossas caminho tinha pela frente, e tanta vontade tinha
Guilherme é aquele que será lembrado pelos
torres de marfim. Não por acaso ele se tornou um de caminhar. Chegou e escancarou nosso despre-
inúmeros amigos, cada qual a seu modo, mas que
curioso e astucioso pesquisador na área de Ética, paro para uma perda tão dolorosa, tão improvável.
será, acima de tudo, lembrado sempre.
encontrando em Aristóteles a companhia para Chegou e, ao fechar-lhe o caminho , obrigou-nos
suas inquietações e para seus próprios dilemas. O a retraçar seus caminhos em nossas lembranças,
“Es gibt nur das, was nicht vergessen wurde”6
sonho da vida acadêmica e do reconhecimento da a cultivar em nós aquilo que dele ficou, para que
dedicação visceral a Aristóteles e ao árduo estudo ele não se perca no mecânico passar dos dias e no Paul Celan
da Ética – mesmo da contemporânea – deu seu acumular frenético dos afazeres. E dos planos. E
primeiro grande passo com a aprovação na sele- dos sonhos. Nos obrigou a recriá-lo de todas as
ção de mestrado, iniciado em 2010 sob a cuida- formas, pedacinho por pedacinho que cada qual
dosa e sempre dedicada orientação do professor dele vivenciou, das formas como cruzou a vida de
Fernando Rey Puente, seu exemplo e inspiração cada um de nós e nela deixou seus rastros.
desde as mais incipientes pesquisas, em seu debut Guilherme era aquele que cuidava do forneci-
no PET, início de tudo. mento de café das nossas longas horas de estudo,
Junto aos sonhos do futuro e promissor que toda semana tinha em mãos um texto obscuro
professor e pesquisador Guilherme moravam de poetas gregos que recitava em voz alta,
também os sonhos materiais do Guilherme amigo, contando a métrica com os pés, que escrevia frases

84 .ConTextura. 2011/1 2011/1 .ConTextura. 85


passos contados

88 .ConTextura. 2011/1

Anda mungkin juga menyukai