DE FILOSOFIA DA FAFICH/UFMG
IISSN 1807-6440
N°3 | 1° SEMESTRE 2011
ConTextura: 1. Encadeamento; modo como estão ligadas entre si
as diferentes partes de um todo organizado; conexão completa e
organizada; diversidade de ideias e emoções que formam uma rede
complexa, um contexto. 2. Conjunto, todo, totalidade; Aquilo que
constitui o texto no seu todo. 3. Com-textura; ato ou efeito de tecer,
tecido, trama. 4. Texto com textura; Contextura.
(...) para começar
ConTextura é uma iniciativa do corpo discente de Filosofia da UFMG. Publicada pela relacionada à cultura, contemporaneidade, arte ou qualquer outro tema afim. Finalmente, o
primeira vez no 2º semestre de 2004, com o apoio do CAFCA (Centro Acadêmico de Filosofia), número se encerra com uma tradução de “A Discourse of Laws” (1620) de Thomas Hobbes.
a revista teve seu segundo número lançado em 2007, assim como um número especial temático ConTextura, desde o início, buscava o encontro da produção acadêmico-literária com
sobre “Filosofia no Brasil”. uma produção de caráter gráfico e artístico. Acreditamos em tal perspectiva e, mantendo-se
Agora, a revista retorna em seu terceiro número com o mesmo objetivo para o qual foi o entrecho, preocupamo-nos com o cuidado estético, desde a arte da capa até o projeto grá-
criada: proporcionar um espaço para publicação de produção intelectual e divulgação do trab- fico – o qual mantém e inova, buscando novas feições, mas sem descaracterizar-se em relação
alho de jovens pesquisadores na área de Filosofia. aos números anteriores. Além disso, as diferentes texturas da artista plástica Marcela Heloir
Todavia, ConTextura não se limita ao rigor acadêmico; pelo contrário, pretende incenti- guiarão o leitor a cada seção.
var a produção de textos de forma livre, e que propiciem a reflexão e o debate acerca de temas Agradecemos aos autores, pareceristas, revisores, membros da equipe editorial e todos
de relevância filosófica – em outras palavras, cultivar o diálogo entre Filosofia e as demais aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram para a conclusão deste número. Que os
áreas do saber. Assim, enlaçam-se a trama e a urdidura, tecendo uma malha de ideias vizinhas, diálogos traçados despertem no leitor a ousadia do pensamento filosófico, na academia e para
interdiciplinares. além desta.
O presente número contém trabalhos inéditos, agrupados por gêneros textuais. Primei-
ramente, apresentamos a seção Passos Contados, dedicada à publicação de artigos acadêmi- Sofia Noman Filizzola
cos resultantes de pesquisa em Filosofia. Além disso, a revista traz, em sua segunda seção, en-
saios em forma livre, nos quais se espera que ocorra uma reflexão crítica de cunho filosófico,
Publique seu texto na ConTextura: nesta edição
Tipos de Textos: passos contados
1. Artigos: textos com o caráter de mono- especializado; cabe ao aluno a observância
A filosofia prática de Aristóteles na
grafia, resultantes de pesquisa em Filosofia, dos direitos do autor e das devidas respon- caracterização heideggeriana do modo
sabilidades legais. próprio de ser do Dasein 08
abordando algum tema presente na li-teratu-
ra filosófica em geral. Os artigos devem se- Todos os originais recebidos serão sub- Vitor Sommavilla de Souza Barros
guir as normas acadêmicas. metidos à apreciação do Conselho Editorial da A antropologia filosófica de Henrique Vaz:
2. Ensaios: textos com forma livre e con- Revista, que decidirá sobre sua publicação, da auto-expressão à transcendência
como também de um ou mais pareceristas Márcio Silva e Faria 14
teúdo filosófico, mesmo que difuso e implíci-
to, no qual se espera que ocorra uma reflexão ou colaboradores. A Revista não remunera os Lógos e Léxis, a velha divergência
mais livre sobre cultura, sobre a contempora- autores. Os interessados devem enviar os tex- João Luís Manini 20
neidade, sobre a arte ou qualquer outro tema tos, em anexo, exclusivamente para o e-mail Sobre Doxa e Aletheia
vizinho. contexturaufmg@gmail.com , especifican- Guilherme Werkema O. Moraes 29
3. Aforismos: ideias sintéticas, expressas do o tipo de texto (artigo, ensaio, aforismo
A maldade do homem
com vigor, carentes de argumentação, mas ou tradução) no campo Assunto. e a história desperdiçada
que se impõem pela expressividade, provo- Diogenes G. Morais Silva 36
cando o leitor a pensar. INFORMAÇÕES:
O conceito de ser no período pré-crítico de
4. Traduções: textos de interesse filosó- www.fafich.ufmg.br/petfilosofia/ Kant: A existência no “Beweisgrund”
fico, traduzidos sob a revisão de um professor Filicio Mulinari e Silva 44
Conselho Consultivo
Joãosinho Beckenkamp, Ernesto Perini, Mauro Engelmann,
na caracterização heideggeriana
des Seienden nach Aristoteles, de 1862, Heidegger logia fundamental, a necessidade de se perguntar tóteles para Heidegger,
teria passado a interessar-se fortemente pelo que anteriormente pelo ser do ente que compreende ver Volpi (1984) e Berti
(1997).
significa ser e a buscar, assim como Brentano esse ser, ou seja, pelo ser do Dasein. Essa obser-
do modo próprio de ser do Dasein o fizera, um sentido unívoco para ser, isto é, a
perguntar-se: “se o ser é dito de diversas manei-
vação está em perfeita conformidade com o acima
exposto. De fato, se o ser é compreendido como
3. Ver Ser e tempo, §44
para esta informação,
e as seguintes sobre o
ras, qual é então o significado fundamental e ser manifesto, a contraparte é que haja um ente
conceito de verdade.
diretivo?” (HEIDEGGER, 1969, p. 81, tradução para o qual ele se manifeste, ou possa se manife- Ser e tempo será citado
Vitor Sommavilla de Souza Barros | Mestre em Filosofia, UFMG minha). star. Assim, em termos heideggerianos, é preciso doravante como SZ; o
Natorp-Bericht, como
Segundo Franco Volpi, todo o pensamento de fazer uma interpretação de como o Dasein se abre NB essa obra não é
Heidegger poderia ser analisado como uma tenta- ao ser. O próprio Aristóteles, porém, apesar de não citada depois através
tiva de reflexão sobre o ser por meio das quatro ter dado a ênfase ontológica heideggeriana, já da sigla; e os volumes
passos contados
Resumo: Este artigo pretende contribuir para a compreensão da ontologia fundamental de das obras completas
possibilidades de significação do ser legadas pela teria encetado, segundo Heidegger, essa analítica (Gesamtausgabe) de
Heidegger por meio de uma de suas principais fontes: a filosofia (especialmente prática) de Aris-
filosofia aristotélica, a saber: (1) o ser segundo das formas através das quais o ser se manifesta ao Heidegger, como GA,
tóteles. Nesse sentido, foca-se o papel desempenhado pela interpretação de Heidegger (no seminário seguido do número do
a forma das categorias; (2) o ser segundo potên- Dasein, ou, na formulação aristotélica, das formas
de inverno de 1924/1925) da EN VI para a posterior caracterização, feita por Heidegger em Ser e tempo, volume.
cia e ato; (3) o ser como verdade; (4) e o ser em da alma (psyché) estarem na verdade (aletheuein)
do modo próprio de ser do Dasein, marcada pela forma da resolução. Assim, em primeiro lugar, mostra-
si ou por concomitância. Brentano teria logrado (ARISTÓTELES, EN, VI). Essas formas são sophia,
se como a forma “mais eminente da abertura ao ser”, isto é, a resolução, é apresentada como um estar
unificar esses sentidos de ser ao conceder epistéme, techné, noûs e phrónesis. Por essa 4. Exceto nos casos
na verdade, em um sentido similar à compreensão de Heidegger das chamadas virtudes dianoéticas
destaque ao primeiro desses sentidos e, dentre as razão, esse livro da Ética a Nicômaco foi extensa- de incompatibilidade
de Aristóteles, lidas como “formas de se estar na verdade” (aletheúein). Em seguida, sustenta-se que entre o português e o
categorias, à categoria da substância, com rela- mente estudado por Heidegger durante o período
o Dasein em seu modo próprio pode ser entendido através de uma aproximação com a dimensão aris- castelhano, seguimos
ção à qual as demais seriam compreensíveis por de preparação do Ser e tempo.6 Segundo Volpi as opções de tradução
totélica da práxis, por conta da particularidade e da autorreferência que caracterizam ambos. Por fim,
analogia – testemunho de sua formação tomista.2 (1992), de grande interesse para Heidegger foi o de Jorge Eduardo Ri-
sublinha-se a similaridade entre a noção aristotélica de phrónesis, tal como Heidegger a compreende, e viera, em Ser y tiempo.
Insatisfeito com o entendimento brentaniano da fato de que, ao contrário do que se tornou prática Também para as demais
o conceito heideggeriano de consciência.
ontologia como ousiologia, Heidegger teria se corrente na tradição filosófica ocidental, Aris- obras de Heidegger
citadas, essas opções
voltado, no decorrer dos anos 1920, à interpreta- tóteles não restringe o acesso ao ser que se mani-
O senhor está olhando para fora, e é justamente o que foram, na medida do
menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode ção do ser como verdade, ou, antes, da verdade festa à atividade contemplativa (theoría), cuja possível, aplicadas.
aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um como manifestação do ser, como desvelamento excelência é a sophía, mas o expande também aos
caminho. Procure entrar em si mesmo.
(Unverborgenheit) (VOLPI, 1992). É fato que o âmbitos da poíesis e da práxis, com as correspon-
Rilke. Cartas a um jovem poeta. 5. Ver a esse respei-
sentido corriqueiro de verdade, como dizendo dentes excelências sendo a techné e a phrónesis, to o texto de Enrico
Denn der Mensch ist zum Handeln gebohren. respeito a juízos, ao lógos apophântikós, que pode respectivamente. Com vistas à caracterização Berti “Heidegger e il
Schelling. Ideen zu einer Philosophie der Natur. concetto aristotélico di
ser verdadeiro (katáphasis) ou falso (anápha- ontológica do Dasein, Heidegger se apropria da
verità” (1990).
sis), pode também ser atribuído a Aristóteles – e explicação aristotélica dessas formas de se estar
Heidegger o reconhece.3 Entretanto, não é esse, na verdade – virtudes dianoéticas ou intelectuais,
6. Ver Phänomenolo-
segundo Heidegger, o sentido fundamental, na tradução canônica – e das correspondentes
I seção de Ser e tempo, as considerações mais gerais gische Interpretationen
originário de verdade. Ele é somente derivado e formas de se proceder – theoría, poíesis e práxis zu Aristoteles e Platon:
A importância da filosofia de Aristóteles para que se seguem mostram-se necessárias.
fundado no sentido originário. Com efeito, origi- – fazendo uma “radicalização ontológica”7 delas, Sophistes (GA, 19).
o pensamento heideggeriano sempre foi ressal- Para além de haver motivos suficientes, que
nariamente, “alétheia [...] significa ‘as coisas isto é, dando-lhes um potencial ontológico que
tada. Essa influência pode ser verificada, por não serão explorados aqui, para se afirmar que
mesmas’, aquilo que se mostra, o ente no como elas não possuíam em Aristóteles. Assim, pode- 7. Idem. Volpi (1992)?
exemplo, através da quantidade de cursos minis- a virada pela qual passou o pensamento heideg-
de seu estar descoberto” (SZ, p. 219, tradução se com facilidade aproximar a caracterização da
trados por Heidegger nos anos 1920 sobre a obra geriano no começo dos anos 1930 acarretou
minha).4 Essa compreensão Heidegger atribui ocupação (Besorgen) com os entes que estão à
de Aristóteles, ou pelo fato de Aristóteles ser o mudanças substanciais em seu projeto filosófico
1. Günter Figal (2005)
já a Aristóteles (Metafísica, IX, 10), embora este mão (zuhanden) da noção de poíesis e a contem-
autor mais citado ao longo de Ser e tempo, mas e que, por isso, se pode falar adequadamente em
discute o problema da não tenha retirado disso as consequências que plação dos entes que estão-aí (vorhanden) com
também por outras razões mais importantes para primeiro e segundo Heidegger, parece correto o
unidade (ou não) do Heidegger retirou.5 a theoría. Embora mais problemática, Volpi faz 8. Ver Volpi (1984,
pensamento heidegge- nós, como explicarei adiante. Embora a intenção diagnóstico de que, ao longo de toda a sua obra, 1992). Aqui, interessa-
riano na introdução de Se, por um lado, pode-se assumir como verdade também a terceira aproximação: entre Dasein e
deste texto seja sustentar a utilidade de se ter em a questão diretiva de suas reflexões tenha sido -me menos a aproxi-
seu Heidegger: fenome- o fato de que todo o pensamento heideggeriano práxis.8 mação geral que pode
nologia da liberdade, mente alguns conceitos fundamentais da filoso- a questão do ser.1 Informações biográficas de
pode ser caracterizado pela questão ontológica, De fato, Volpi (1992) relembra que, em Aris- ser feita entre a noção
tomando partido pela fia prática de Aristóteles para a interpretação da Heidegger podem ajudar a situar esse primado aristotélica de práxis e
questão do ser como por outro, e como traço distintivo da primeira tóteles, pode-se, por um lado, pensar em práxeis o conceito heidegge-
análise feita por Heidegger do modo próprio de da ontologia. De fato, como ele mesmo lembra
motivo unificador da fase da obra de Heidegger, como este explica como ações particulares e, portanto, distintas de riano de Dasein. .
filosofia de Heidegger. ser do Dasein, no segundo capítulo da segunda em “Mein Weg in die Phänomenologie”, desde
2011/1 .ConTextura. 9
passos contados
poíeseis e theoriai, ações de produção e contem- que todos nós, enquanto marcados pela queda, ente, segundo a qual ele está entregue ao mundo mundo. A angústia retira, por conseguinte, a
plação, respectivamente. Por outro lado, Aris- sempre vivemos, a dimensão “poiética” predo- do qual se ocupa (a condição de lançado).” (SZ, fonte cotidiana, decaída e familiar de autocom-
tóteles reconhece um sentido ontológico mais mine, por conta de nossa relação com os objetos §42, p. 199, tradução minha). preensão do Dasein e o isola em seu mais próprio
fundamental para esse termo, ao dizer que “a vida à mão (zuhanden), quando se trata da passa- No cuidado, portanto, estão fundadas tanto a estar-no-mundo. Na disposição afetiva (Befind-
é práxis, não poíesis” (ho de bíos práxis, ou poiesis gem à propriedade, isso não se verifica. De fato, propriedade do antecipar-se a si quanto a impro- lichkeit) da angústia, o Dasein se sente estranho
estin. Política I, 4, 125a). Informar a referência assim como em Aristóteles o bem agir (eu praxia) priedade da vida cotidiana marcada pela queda. (umheimlich) em seu mundo, não mais em casa.
da edição consultada Conforme Volpi, Heidegger é fim de si mesmo e o objeto da phrónesis é o Dessa forma, a análise do modo próprio de ser “A angústia traz de volta o Dasein do cadente
10. A phrónesis é, teria assimilado essa concepção ontológica de próprio homem,10 a consciência moral (Gewis- do Dasein não pode ater-se a essa explicação do absorver-se no ‘mundo’. A familiaridade cotidi-
conforme Aristóteles,
práxis em sua caracterização do Dasein, o que sen) chama o Dasein à compreensão de suas mais cuidado, mas deve abordar os fenômenos que, por ana se rompe. O Dasein fica isolado [vereinzelt],
um “hautoi eidenai”,
um conhecimento pode ser atestado, por exemplo, pela afirmação de próprias possibilidades. Devendo ser analisado assim dizer, instauram o regime da propriedade mas o faz enquanto estar-no-mundo.” (SZ, §40, p.
acerca de si (EN, VI, que “existir é agir, práxis” (GA 9, p. 58, tradução segundo circunstâncias particulares, por um na vida humana. 189, tradução minha). Ao isolamento angustiado,
1141b34).
minha. No original: Existieren [ist] Handeln, lado, e possuindo o próprio fim em si mesmo, Na mediania própria à cotidianidade, nós só resta o poder-ser próprio.
práxis). Dessa caracterização do Dasein como por outro, o Dasein deve, ao menos com relação à deixamos que a impessoalidade (man) tome as O chamado da consciência é feito pelo próprio
fundamentalmente práxis, Volpi faz derivarem propriedade, ser aproximado da práxis. Esse foi o decisões por nós nas diversas situações em que Dasein, quando este se encontra no máximo
as próprias formas da ocupação (Besorgen) com primeiro argumento a favor da aproximação entre nos encontramos em nossas vidas, seja de fato estranhamento (Umheimlichkeit) com relação a
entes à mão (zuhanden) – que Volpi associa à poíe- a análise aristotélica da práxis e a análise do modo simplesmente não decidindo, seja “decidindo” seu próprio mundo acarretado pela disposição da
sis –, e da solicitude (Fürsorge) para com outras de ser próprio do Dasein. O segundo é a quase fazer o que se (man) faz entre as pessoas com angústia. O interpelado pelo chamado é também
pessoas. O propósito desse texto, no entanto, não correspondência entre alguns conceitos centrais quem convivemos, isto é, em ambos os casos, não o próprio Dasein, na medida em que é chamado a
é expor a caracterização geral do Dasein em sua dessas duas análises. Para apresentar esse argu- decidindo a partir de nós mesmos. Essa falta de abandonar a queda na cotidianidade e a assumir
extração aristotélica, mas atentar para a apre- mento, contudo, será preciso expor minimamente escolha ou eleição (Wahl) precisa ser reparada, seu poder-ser mais próprio. A consciência,
sentação que Heidegger faz do modo ser próprio os conceitos de consciência, resolução e outros mas repará-la implica já fazer uma escolha. É entretanto, não diz nada específico, em termos de
ou autêntico (eigentlichen) do Dasein e mostrar correlatos. preciso eleger a eleição, isto é, o Dasein precisa máximas de conduta moral. O que a consciência
como essa apresentação pode ser compreendida II decidir abrir por si mesmo e para si mesmo suas dá a entender é o ser-culpado que é constitutivo
como uma apropriação de noções fundamentais O ser do Dasein é caracterizado por Heidegger próprias possibilidades (de escolha), seu poder- do próprio ser do Dasein. Ser-culpado significa
11. Ver SZ, §39 e
da filosofia prática de Aristóteles como cuidado (Sorge).11 O cuidado, por sua vez, ser (SZ, §54). Nas palavras de Christian Sommer, primariamente ser fundamento de uma nihili-
seguintes. Aqui, pretende-se abordar não o ser do Dasein caracteriza-se, por um lado, pela noção de ante- “escolher a escolha” é portanto antes de tudo dade (Nichtigkeit), algo que o Dasein é (SZ, §59).
em geral – o que implicaria uma análise mais cipar-se a si mesmo (sich-vorweg-sein), e, por escolher e eleger expressamente a possibilidade E é em dois sentidos. Primeiro, por conta de sua
detida da adequação de se considerar Dasein outro, pelo estar sempre em meio a um mundo. mesma de ser confrontado com uma escolha condição de lançado no mundo, o Dasein não
como práxis, no sentido aristotélico –, mas o Esse antecipar-se a si mesmo significa que, na (ou bem, ou bem), através da qual se decidirá escolhe ser fundamento de sua existência, mas
modo próprio de ser do Dasein, tal como apresen- medida em que o Dasein assumiu suas possi- o poder-ser mais individual do Dasein, pois essa já o é desde sempre. Segundo, enquanto poder-
tado no segundo capítulo da segunda seção de Ser bilidades de ser mais próprias, ele está sempre possibilidade da alternativa está velada pela ser que opta por ser algo em detrimento de algo
e tempo. Ao menos no âmbito da interpretação da voltado para seu poder-ser (como remissão a indecisão e a irresolução do modo cotidiano e outro, o Dasein é sempre fundamento disso pelo
propriedade (Eigentlichkeit), a aproximação entre seu futuro, como antecipação dele). Nesse ante- impróprio de ser a si mesmo. (SOMMER, 2005, que não optou, livre ou não livremente. Assim,
a filosofia prática de Aristóteles e o pensamento cipar-se, ao estar livre para suas possibilidades, p. 247, tradução minha) nas palavras de Heidegger, “ele [o estranha-
heideggeriano se sustenta por dois motivos. Em o Dasein se coloca diante das possibilidades da A operação da “escolha da escolha” está ligada, mento] põe esse ente [o Dasein] frente a sua crua
primeiro lugar, há que se ter em mente a distinção propriedade (Eigentlichkeit) e da impropriedade. como se verá, à resolução (Entschlossenheit). nihilidade, que pertence à possibilidade de seu
aristotélica da alma racional (logon echon) entre Entretanto, o Dasein está sempre no mundo, Segundo Heidegger, o momento em que o mais particular poder-ser” (SZ, p. 287, tradução
epistemonikón, caracterizada pela sophía e pela lançado (geworfen) no mundo, e absorto em seus Dasein passa a assumir a responsabilidade por minha). E cabe ao Dasein apenas ser propriamente
epistéme, isto é, pelo procedimento teórico, e afazeres cotidianos. Assim, não somente a possi- seu ser, passa a decidir por si mesmo, conforme esse ser-culpado que ele já sempre é.
detendo conhecimento sobre o universal, e logis- bilidade da propriedade, mas também a facti- suas possibilidades mais próprias, é o momento A compreensão do chamado, que é também
9. Ver SZ, §9 sobre
a noção de ser-a- tikón, que diz respeito às circunstâncias particu- cidade (o fato de sermos, como somos, sempre em que ele começa a escutar o chamado de sua a “escolha da escolha” supramencionada, é um
-cada-vez-meu lares, nas formas da techné (no procedimento da no mundo) e a queda (a absorção no mundo da consciência (Ruf seines Gewissens). Entretanto, escolher ter consciência, um querer-ter-consciên-
(Jemeinigkeit). Sobre
a doutrina da alma poíesis) e da phrónesis (no procedimento prático). cotidianidade) estão fundadas no fenômeno do imerso na impessoalidade, o Dasein é incapaz cia, diz Heidegger. Esse querer-ter-consciência
racional aristotélica Dessa forma, enquanto caracterizado por possibi- cuidado, enquanto ser do Dasein. Nas palavras de de escutar sua consciência, de forma que cabe é justamente um projetar-se para o mais próprio
no âmbito prático, ver
lidades a cada vez suas9 e não universais, o ser do Heidegger, “a perfectio do homem: o tornar-se o perguntar: o que faz com que ele passe a dar poder-ser culpado. É também uma forma da aber-
Berti (2002, p. 115-
155); e em comparação Dasein deve ser compreendido seja pela poíesis, que ele pode ser em seu ser livre para suas mais ouvidos a ela? A resposta é: a angústia (Angst). tura (Erschlossenheit) do Dasein para o ser. Toda
com o pensamento seja pela práxis, mas não pela theoría. Entretanto, particulares possibilidades (no projeto) é ‘obra’ Isso porque ninguém se angustia por um objeto abertura é caracterizada pelas três dimensões
heideggeriano aqui em
questão, ver Escudero apesar de que, como bem salientou Taminiaux do ‘cuidado’. O cuidado determina, porém, com específico do mundo, mas ante o mundo como da compreensão, da disponibilidade afetiva e
(2003). (1995), na cotidianidade (Alltäglichkeit) em igual originariedade, o modo fundamental desse tal, ante o próprio fato de que o Dasein está no do discurso (Rede). E, nos termos de Heidegger,
LÓGOS E LÉXIS:
reprimenda explícita, aos poetas. Eles são os ex nihilo a contenda com a poesia grega, como
primeiros protagonistas de que se tem notícia da talvez o pretenda Nietzsche. Ele é herdeiro de um
contenda entre filósofos e poetas. Heráclito, por papel que já alguns filósofos anteriores a Sócrates
e a história desperdiçada
natureza. A ideia de um homem da natureza diferente do amor-próprio e da simplicidade da natureza, não manten-
poderia representar certa condição que permi- vida do homem no estado de natureza. Rousseau do entre si qualquer es-
pécie de relação moral
tisse a aproximação de sua existência pregressa, diz em nota: nem deveres conhe-
de um “homem natural, e, por conseguinte da Não se deve confundir o amor-próprio com o cidos, não podiam ser
bons nem maus” (OC, t.
idéia unificante; não digo aqui no domínio da amor de si mesmo; são duas paixões bastante
Diogenes G. Morais Silva | Mestre em Filosofia, UFPB
III, p. 152).
doutrina, mas no domínio mesmo da existência.” diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos
(PIZZORUSSO, 1979, p. 73). seus efeitos. O amor de si mesmo é um senti- 5. Segundo Rousseau:
Este homem, condição de possibilidade de mento natural que leva todo animal a velar pela “Hobbes pretende que o
homem é naturalmente
uma investigação, não se pode mais encontrar própria conservação e que, no homem dirigido intrépido e não procura
Resumo: O que se pretende analisar nesse texto são as causas do mal humano – investigando, sobretudo, com precisão, nem por puras conjecturas, nem pela razão e modificado pela piedade, produz senão atacar e comba-
ter”. (OC, t. 3, p. 136).
três obras de Jean-Jacques Rousseau – segundo a visão votada para uma história possivelmente por investigações filosófico-históricas, pois ele a humanidade e a virtude. O amor-próprio não 6. “Poderá parecer
desperdiçada, de tal forma que o sentido que esse texto atribui à palavra “desperdício”, pode estar está “deteriorado” pelas “crostas” da sociedade. passa de um sentimento relativo, fictício e nas- estranho a alguém que
não tenha considerado
no declínio de um tempo histórico que se afasta de qualquer sentido de progresso verdadeiramente Este estado deteriorado talvez seja o “retrato” cido na sociedade que leva cada indivíduo a
bem estas coisas que a
“humano”, considerando que o sentido de progresso, mostra uma idéia de adiantamento. Para filósofos mais próximo daquilo que o homem constituiu fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer natureza tenha assim
como Voltaire, Kant e Condorcet, a história é analisada a partir de seus progressos, e os conflitos são para si no decorrer da sua história. Sabe-se que a outro, que inspira aos homens todos os males dissociado os homens,
tornando-os capazes de
deveras naturais para um avanço do homem quando direcionado à sua sociabilidade. Com esses elementos sua “desfiguração” se fez a partir de sua maldade, que mutuam, entre se causam e que constitui atacar-se e destruírem-
e com a análise dessa divergência filosófica, pretende-se levantar a hipótese de que a passagem escolhida implícita em suas escolhas de forma tal que o a verdadeira fonte da honra. (OC, t. III, p. 219) -se uns aos outros.”
pelo homem em seu “tempo histórico”, forma na análise desse tempo cronológico, um esgotamento do tornou mais “monstro” que homem. Em vista [nota: XV]. (Grifo nosso). (HOBBES, 1979, p. 75).
sentido puramente “humano”, e possivelmente não conduza à luz de seu “progresso” qualquer proveito. disso, seria possível uma análise dos aspectos Assim, é possível identificar que o homem
7. Esta transformação
Palavras chave: Maldade, homem, história, Rousseau. deste declínio humano? Se a alma “deformada” do causa mutuamente os seus próprios males. O que já havia sido expli-
homem o torna quase “irreconhecível”, também o autoriza uma interpretação como essa é notar as citada no Segundo
Discurso, mas é na
torna irrecuperável? escolhas e conveniências dos homens. A título
Carta a Christophe de
A pior consequência do mal de exemplo, pode-se apontar um dos “males” Beaumont que Rous-
1. Desta forma estare- Para se pensar o conceito de mal na filosofia na história, a saber, o episódio conhecido como seau expõe de forma
Da história e do homem histórico pela análise da inscrição do “templo de Delfos”,2
mos seguindo o mesmo mais inteligível, e que
Rousseau inicia o prefácio do Segundo sobre a qual pouco se meditou e que perfaz, de Rousseau, é preciso dizer primeiramente que “Desastre de Lisboa” de 1755, que ficou marcado permite tanto a sua
caminho que Rousseau
propôs em seus textos. Discurso com a seguinte sentença: “É do homem talvez, o maior conhecimento para o homem. bem e mal são representações do homem a partir na história por ceifar vidas, as quais, em sua defesa às acusações do
da constituição de uma sociedade.4 Sobre este totalidade, se exprimiram no martírio das vítimas arcebispo, como tam-
que devo de falar” (OC, t. III, p. 131). Pensando Neste caso, Rousseau é o escafandrista3 que bém uma ampliação
minimamente no teor deste fragmento, nota-se mergulha no denso e tenebroso mar social, onde fato o autor alerta: “Evitemos, pois, confundir o desse desastre. O que se pode dizer, certamente, crítica de sua filosofia.
2. “Conhece a ti mes-
mo”, citado no prefácio que ele traduz boa parte do pensamento do autor, o homem e sua alma se encontram “desfigu- homem selvagem com os homens que temos diante é que não foi o primeiro nem o último. Nos últi- “Quando, afinal, todos
do Segundo Discurso. os interesses parti-
uma vez que, nas obras do genebrino, é possível rados”, tal qual a “estátua de Glauco”, pois, dos olhos.” (OC, t. III, p. 152). Ora, o homem como mos dez anos notou-se uma constante repetição culares agitados se
identificar a persistência em investigar questões “a alma humana alterada no seio da sociedade se mostra “diante dos olhos” Hobbes já o vira, e o desses tipos de desastres. Muitos ainda se pergun- entrechocam, quando
3. A metáfora que identificara em sua perversidade natural.5 De fato, tam se é o resultado de uma naturalidade, de Deus o amor de si posto
humanas, ou ainda, o que poderia se dizer da por milhares de causas sempre renovadas [...],
utilizamos nesta em fermentação se
manifestação humana em seus tempos primevos. adquiriu, por assim dizer, outra aparência, a o século XVII fomentou a inspiração filosófica ou se é obra dos homens. Ora, debates como esses torna amor-próprio,
passagem tem uma
intenção figurativa. Questões como essas parecem atravessar toda sua ponto de estar quase irreconhecível.” (OC, t. III, do pensador inglês; pois diante da crise por que já estavam presentes no século XVIII, mas o que [...], torna-os todos
Rousseau utiliza (como inimigos natos uns dos
trajetória filosófica e literária. p. 122). A passagem do homem do estado de passava a Europa e as sucessivas transformações aconteceu para a diminuição ou o fim das trági-
metáfora) no primeiro outros e faz com que
parágrafo da introdu- Entretanto não basta apenas falar do homem, natureza para o estado civil é responsável pela sociais, políticas e econômicas trouxeram a Hobbes cas consequências? Ou ainda: o que aconteceu ninguém encontre seu
ção do Discurso sobre a a perspectiva do pensamento que representava a para se preservar as vítimas? Ó homem renitente, bem a não ser no mal
é preciso meditar sobre o humano, analisar suas sua desfiguração. Cabe ao filósofo submergir nas
desigualdade a estátua de outrem.” (ROUSSE-
escolhas, considerar seus sentimentos, para profundezas densas desta sociedade civil para necessidade de poder do homem, e, portanto, isso até quando? Rousseau escreve uma carta, em AU, 2005, p. 48).
do Deus Glauco, que
Platão usa para compa- poder avaliar minuciosamente o que ele é em retirar toda crosta que nos impede de encontrar poderia estar vinculado a sua natureza humana. agosto de 1756, endereçada a Voltaire e intitulada
rar à alma no livro X da Apesar de Rousseau concordar em parte com Carta Sobre a Providência, em que vai inquirir os
si. É preciso distinguir as transformações desse o homem natural. Esta limpeza – que é tarefa da
República.
homem no decurso histórico, e para tanto, filosofia – bem como a tentativa de restauração Hobbes, ao pensar o homem como um ser perverso filósofos,8 para saber se o mal no mundo é mera
8. Uma vez que já
podemos começar por conhecer a nós mesmos1 feitas a partir de denúncias, geraram todo tipo e intrépido,6 ele acredita que esta maldade é causa da providencia ou se é responsabilidade dos havia uma discussão
de ataque a Jean-Jacques. Eis aqui o homem própria do homem no estado social. Isto ocorre homens. À sua maneira,, o autor mostrará que a sobre esse assunto,
assim como conhecer o movimento da narrativa
entre, por exemplo,
da humanidade a partir de uma avaliação mínima histórico, o homem das vicissitudes. por vários motivos, e o principal deles está na segunda condição é mais plausível. Leibniz, Alexander
de seus episódios, ou seja, dos episódios que Homem das mudanças e desatinos, que permi- troca de uma espécie de amor-próprio do homem Observar a opulência humana e as desigual- Pope e Voltaire.
tornaram o homem “demasiadamente humano”. tiu a Rousseau investigar a possibilidade de se por uma espécie amor demasiado de si mesmo,7 dades por ela geradas pode ser uma das formas
Além disso, para avançar, pode-se começar falar de um homem social, diferente e distante ou seja, o amor-próprio, e aquele permite que de se identificar esta espécie de mal. A referência
O conceito de ser
prudente dizer – apoiado na visão filosófica de STAROBINSKI, Jean. Le remède dan le mal.
Rousseau – que o homem foi se desviando em seu In: Rousseau secondo Jean-Jacques. Editio a cura
caminhar, rumo a um declive que a própria socie- dell‟Ufficio Attività Culturali dell‟Instituto della
dade impôs amiúde.
REFERÊNCIAS
Enciclopedia Italiana, et Faculté des Lettres, Fi-
renze: Université de Genève, 1979. (pp. 19 - 40). no período pré-crítico de Kant:
a existência no Beweisgrund
CONDORCET, Jean Antonio-Nicolas. Esboço de ______. Jean-Jacques Rousseau: A transpar-
um quadro histórico dos progressos do espírito hu- ência e o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre
mano. Tradução de Carlos Alberto R. de Moura, Ed. Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo,
Unicamp, Campinas, 1993. Companhia das Letras, 1991.
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do Es- ______. Ação e Reação, e aventuras de um Filicio Mulinari e Silva | Graduando em Filosofia, UFES
petáculo, Política e Poética em Rousseau. Discur- casal. Tradução de Simone Perelson, Rio de Janei-
so Editorial, São Paulo, 1997. ro, Civilização Brasileira, 2002.
HOBBES, Tomas, Leviatã ou matéria, forma e VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Tratado Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o conceito de existência/ser entendido por Immanuel Kant 1. “O único argu-
poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de metafísica; Dicionário Filosófico. Tradução de no período pré-crítico, na obra Beweisgrund, e pontuar as consequências desse novo conceito de ser para
mento possível para
uma demonstração da
de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Marilena de Souza Chauí, 2ª ed. São Paulo, Abril a ontologia moderna. Salienta-se que os apontamentos sobre o conceito feitos na Crítica da Razão Pura existência de Deus”. A
Silva, 2ª ed. São Paulo: Abril, 1979. Cultural, 1978. pouco diferem dos apresentados no Beweisgrund e, por este motivo, a análise da existência na referida partir daqui a obra será
KANT. Immanuel. Ideia de uma história univer- referida apenas como
obra pré-crítica é fundamental e proporciona grande auxílio para a compreensão do conceito presente Beweisgrund.
sal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de no período crítico.
Ricardo Terra, 2º ed. São Paulo, Martins Fontes, Palavras-chave: Metafísica moderna; ontologia; ser; existência; posição absoluta 2. Onde Kant fala do
2004. ser, especialmente na
relação com sua crítica
LEBRUN, Gerard, Comentário à obra ideia de
às provas ontológicas
uma história universal de um ponto de vista cos- da existência de Deus,
mopolita. In: ideia de uma história universal de um Entende-se por período pré-crítico de Kant concepções de Kant sobre o conceito de existên- ele usa o termo de modo
idêntico ao conceito
ponto de vista cosmopolita. Trad. de Rodrigo Naves aquele anterior a 1781, ano de publicação da cia, pois no período crítico estas teses são apre- de existência. Sua tese
e Ricardo R. Terra. São Paulo: Brasiliense, 1986. Crítica da Razão Pura, primeira das três Críticas sentadas en passant, como algo já pressuposto principal é que ser não
LEVI-STRAUSS, Claude. Jean-Jacques Rous- que Kant viria a publicar e que lhe dariam lugar para o desenvolvimento das demais teses ali é um predicado real que
possa ser adicionado
seau, Fundador das Ciências do Homem. In: notável na história da filosofia moderna. encontradas. Assim sendo, será observada aqui a ao conceito de algo,
Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Nos escritos do período pré-crítico, Kant se relação do conceito de existência na obra Beweis- mas ”meramente a
posição de algo ou de
Brasileiro; pp. 41-51, 1987. PEREZ, Daniel Omar. Os ocupou de problemas clássicos da metafísica, grund, uma vez que é nela em que se encontra
certas determinações
significados da história em Kant In: Philosophica, como as provas da existência de Deus e os funda- as principais teses kantianas acerca da noção de nelas mesmas” (KANT,
Revista do Departamento de Filosofia da FLUL, mentos da moral. No entanto, o filósofo recon- existência no período pré-crítico. 2001, A598/B626). Na
distinção do uso lógico
Lisboa, 2006. hecia cada vez mais nitidamente as dificuldades A existência não é um predicado ou determi- do é como cópula, o
PIZZORUSSO, Arnaldo. Le “personae” nei Dia- em se resolver esses problemas com as soluções nação existencial é indica que
o sujeito e seu predi-
logues. In: Rousseau secondo Jean- Jacques. Editio propostas pela metafísica tradicional. No tratado Logo na primeira seção do Beweisgrund, Kant
cado estão postos. Tal
a cura dell‟Ufficio Attività Culturali dell‟Instituto Der einzig mögliche Beweisgrund zu einer Demon- atentou para o devido cuidado e empenho que se postulação diz respeito
della Enciclopedia Italiana, et Faculté des Lettres, stration des Daseins Gottes,1 publicado em 1763, deve ter com a análise do conceito de existência: ao objeto em relação ao
seu conceito (HOLZHEY;
Université de Genève, Firenze, 1979. (pp. 65 - 74). apesar do exame das provas especulativas da Hence, in these reflections I should not aspire MUDROCH, 2005, p. 62).
ROUSSEAU, J. J. Carta a Chistophe de Beau- existência de Deus ainda não ser tão preciso e to analyse the very simple and well-understood
3. “A maior parte das
mont e Outros Escritos sobre a Religião e a Moral. negativo como o feito na Crítica da Razão Pura, concept of existence, were it not for the fact that
interpretações pós-
Tradução de José Oscar de Almeida Marques org., percebe-se que ali Kant já formulava a tese que the present case is one in which such an omis- -kantianas desco-
São Paulo, Estação Liberdade, 2005. seria mais tarde de importância central para sua sion could occasion confusion and lead to seri- nheceram que, nesse
ponto essencial [sobre
______. Discours sur les sciences et les arts; Dis- ontologia, a saber, que “a existência não é um ous errors. (KANT, 1992, 2:70). a existência], a Crítica
cours sur l‟origine et les fondemens de l‟inégalité predicado ou determinação de uma coisa” (KANT, Com a citação acima, percebe-se a importân- não corrigiu em nada
o pré-criticismo: elas
parmi les hommes. Oeuvres Complètes. Col. Bib- 1992, 2:72).2 cia de um exame minucioso que deve ser feito
consideram a causali-
liothèque de la Pléiade, tomo III, Paris: Éditions Observa-se que no período pré-crítico já com relação ao conceito de existência, a fim de se dade fenomenal como
Galimard, 1964b. estavam esboçadas em seus traços principais as evitar confusões que levem a erros graves. o único conceito válido
de causalidade, e o
______. Emíle ou de l‟Éducacion. Oeuvres teses defendidas na Crítica da Razão Pura sobre Kant advertiu que não iria propor uma existente determinável
Complètes. Col. Bibliothèque de la Pléiade, tomo o ser.3 Como ressalta Vaz (2006, p. 25), é no definição formal da existência, mas uma definição no fenômeno como o
todo da existência” (LE-
IV, Paris: Éditions Galimard, 1969. período pré-crítico que se vê com mais clareza as que primeiramente garanta o que realmente pode
BRUN, 1993, p. 152).
O lugar da parrhesía e do mestre (mestre, diretor). Este Outro constitui uma condi-
tio sine qua non para que haja o processo de
de um problema que se inscreve no âmbito moral.
A lisonja aparece como aquela que impede que o
na hermenêutica do sujeito
formação de si. Neste sentido, é preciso concor- dirigido conheça a si mesmo como ele verdadei-
dar com Fréderic Gros quando este observa: “Não ramente é, de modo que o priva, sobretudo, de
posso ser chamado a alcançar certa verdade de ocupar-se consigo mesmo.
mim mesmo a não ser por um outro que me exorta O lisonjeador é inferior ao lisonjeado, e,
Jean dos Santos Vargas | Graduando em Filosofia, UFMG e me arranque de uma alienação primeira”.4
Dito de outro modo, caso não houvesse este
através desta prática, o superior pensa obter mais
qualidades do que realmente tem; por isso ele (o
4. GROS. Foucault: A
coragem da verdade,
p. 156.
Outro, não haveria prática de subjetivação, já que lisonjeador) bajula o poder e o desvia da verdade.
o sujeito a ser formado ficaria preso em si mesmo. A parrhesía, contudo, quando necessário, age
RESUMO: Considerando as noções de mestre e parrhesía apresentadas por Michel Foucault na obra
Por isso, o pensador francês passa a comparar a como um discurso contra o poder, de modo que
denominada Hermenêutica do sujeito, este ensaio tenta investigar o escopo em que se inserem estes
necessidade de direcionamento que há aqui com ela o situa na verdade. Então, se por um lado a
conceitos, e como eles foram objetos de reflexão por parte do filósofo. O objetivo é pôr em evidência os
aquela que mais tarde vai se mostrar pertinente no parrhesía tem seu compromisso com a verdade,
diferentes modos de ser da parrhesía, e como, de posse dela, o mestre lança mão de mecanismos para
mundo cristão. Ele está se referindo exatamente à há por outro lado, uma espécie de dialética entre
promover a subjetivação no dirigido. Além disso, o texto propõe revelar as credenciais desse mestre que
confissão, em que, em ambos os casos, o dirigido o lisonjeador e o lisonjeado. Ora, o lisonjeador,
deve, por ofício, enunciar o discurso parrhético.
precisa deste Outro para que seja constituída a embora apareça em um plano inferior ao lison-
sua própria subjetivação. Acontece, portanto, um jeado, o torna impotente e até mesmo cego para
comprometimento moral em que o sujeito se iden- a verdade.5 5. Para ilustrar isto,
tifica com o conteúdo do enunciado. O aguilhão da verdade, no sentido em que Foucault se vale da
comparação entre a
Introdução definição positiva. No primeiro momento, o filó- Todavia, há uma diferença crucial entre a se serve da parrhesía, não é fixado no terreno lisonja e a cólera. Para
1. Aqui utilizo a ex- A concepção de parrhesía1 constitui, para sofo francês quer entender o que a parrhesía não confissão cristã e a parrhesía. A diferença está epistemológico como propõe Descartes. Logo, ele, enquanto na cólera
pressão tal como ela é
Michel Foucault, um objeto privilegiado de é, e em sua extensão, qual não é a identidade do naquele que cede o ouvido e naquele que profere não se trata de evidenciar o verdadeiro, mas sim há um abuso do poder
grafada na edição que
por parte do superior, a
está em português. No investigação. Seu interesse por este tema foi tão mestre. A análise é, por isso mesmo, por oposição. o discurso. Enquanto no Cristianismo o ouvido é de procurar a verdade no terreno moral, onde há lisonja é uma maneira
original, Foucault a
relevante que, nos anos de 1983 e 1984, o pensa- No segundo momento, propõe-se a compreender do Outro e o enunciador do discurso verdadeiro um comprometimento do mestre em falar fran- de o inferior ganhar
grafa como parrhêsia.
este poder através de
dor francês ofereceu cursos no Collège de France estes mesmos conceitos sob as lentes de Filodemo, é o dirigido, no contexto grego cabe ao mestre camente. O dirigido pode, então, ter tanto mais favores e benevolên-
com o objetivo de, justamente, refletir sobre esta o epicurista, Galeno, o médico e Sêneca, o estoico. proferir o discurso verdadeiro, enquanto aquele acesso ao verdadeiro quanto assimila os enuncia- cias.
noção. No entanto, a parrhesía já havia aparecido Resta dizer ainda que, no curso de 1982, que ouve e assimila é o discípulo. Então, pode-se dos do mestre. Por isso, o mestre deve se distan-
em análises no curso de 1982, que viria a ser o Foucault está apresentando o resultado parcial dizer que a ruptura consiste, justamente, no fato ciar e se distinguir do lisonjeador, porque os seus
embrião, por assim dizer, dos cursos posteriores. de suas pesquisas. Pesquisas estas que serão de que na confissão, o sujeito que confessa realiza efeitos são contrários: se a lisonja cega, a parrhe-
Além disso, associada à concepção de parrhe- aperfeiçoadas nos anos posteriores. Talvez venha um processo de identificação com a verdade. Há, sía faz ver; se a lisonja traz ilusão, a parrhesía traz
sía, aparece também neste primeiro momento, daí o seu receio em autorizar a publicação desses portanto, uma objetivação da verdade em que o a verdade. Se a lisonja impede, portanto, que se
mas não de forma inédita, a figura do mestre, bem cursos. Assim, os resultados apresentados aqui ouvido do Outro é o elemento chave. Já na parrhe- conheça a si mesmo, o discurso parrhetico possi-
como uma reflexão acerca do seu lugar na cultura não possuem caráter exaustivo, nem estão imunes sía grega, há uma subjetivação da verdade com o bilita o conhecimento de si.
antiga, o que aponta para uma significativa a reconsiderações do próprio autor. É importante discurso. Aqui, o ouvido do dirigido é o elemento Diante deste tópico, pode-se sublinhar que
contribuição à prática de subjetivação. Talvez, ter este panorama geral em mente, o que pode, chave. Enquanto no exemplo cristão a função do o mestre não é o lisonjeador, que parrhesía e
uma boa chave de leitura para se compreender eventualmente, vir a contribuir para uma melhor mestre é ficar em silêncio, no exemplo grego, o lisonja são opostas e que esta oposição se dá pelo
o lugar da parrhesía seja aproximá-la do mestre, leitura dos conceitos expostos neste artigo. silêncio deve ser exercido pelo dirigido. Logo, o compromisso da primeira com a franqueza e da
2. Aqui, prefiro que é o responsável pelo discurso parrhetico2 e Por uma definição negativa: as identidades mestre não pode ser o confessor, de modo que, segunda com o convencimento. Este problema,
usar este termo, no assim, questionar o que se espera dele e o que é do mestre e a função da parrhesía embora ambos os exemplos sejam relevantes para porém, não se situa no escopo epistêmico, mas
entanto, parrhesiasta
para o mestre, servir-se da parrhesía. Por isso, se pensar a importância do mestre, há aqui uma sim no escopo moral. Então para concluir com as
também seria uma op- O mestre não é o confessor: um problema
ção sem prejuízo para o aqui, tenta-se mostrar como Foucault apresentou diferença, se quisermos, de inversão de lugar, em próprias palavras de Foucault, deve-se notar que:
de inversão de lugares
sentido. a função da parrhesía em diferentes contextos e certo sentido, entre este Outro e o discípulo. A conclusão é que a parrhesía... é exatamente a
que tipo de mestre exatamente era o encarregado Franco-falar, franqueza, abertura de coração antilisonja. É a antilisonja no sentido de que, na
3. Libertas é a tra- e até mesmo libertas.3 Estes são, entre outros, os
O mestre não é o lisonjeador: um
de aplicá-la. parrhesía, há efetivamente alguém que fala e
dução que os latinos
significados em que se usa a palavra parrhesía,
problema moral
oferecem para parrhe- As considerações deste trabalho limitam- que fala ao outro, mas fala ao outro de modo tal
sía. Foucault, porém, se, portanto, ao curso de 1982, de modo que conforme apresentados no curso de 1982. O segundo adversário do discurso parrhetico que o outro, diferentemente do que acontece na
entende que franco- Na aula de 3 de março (segunda hora), proposto por Foucault é a lisonja. O franco-falar
-falar é uma melhor a exposição é apresentada em dois grandes lisonja, poderá constituir consigo mesmo uma
tradução. momentos: o da definição negativa e o da Foucault se propõe a investigar, sob o contexto dispensa a lisonja. Mas qual seria o problema com relação que é autônoma, independente, plena e
52 .ConTextura. 2011/1
ensaio
58 .ConTextura. 2011/1
dossiês
a cena e o pensamento
ganha espaço no momento mesmo em que vem que se possa descer às profundezas, buscando
representar esse estado de dilaceramento, rela- conhecer-se o próprio sentido da vida. A dor é,
cionando-se à ambivalência, à contradição que então, o fundo que garante a metamorfose da
brota na experiência da transcendência dos vida: a passagem da impotência à potência, isto é,
limites humanos e reflete, no plano da estética, do desprazer ao prazer.
Gilson Motta | as tensões e antagonismos que se faziam sentir Se compreendermos o pensamento do eterno
profundamente na vida social na virada do século retorno como uma doutrina ética, a atividade
XVIII para o século XIX, quando uma tensão se artística parece-nos ser exemplar para ilustrá-lo.
estabelece entre uma subjetividade exacerbada e O importante a ser notado aqui é que a atividade
dossiês
as condições históricas concretas da vida social. O criadora aponta para um modo de pensar situado
Resumo: O presente texto trata das relações entre o teatro e a reflexão filosófica, privilegiando o tema do trágico toma lugar na cena filosófica no momento para além das dicotomias de valores, afirmando
trágico e da tragédia. O pensamento de Friedrich Nietzsche configura-se como um momento fundamental em que o advento da Modernidade, ao operar uma a unidade entre pensamento e ação, determina-
dessa reflexão, repercutindo intensamente na produção artística e cultural contemporânea. As teorias transformação radical dos valores que até então ção e acaso, liberdade e necessidade. A perspec-
de Nietzsche perpassam boa parte dessa produção na pós-modernidade, em especial, o movimento de orientavam a ação humana, abre ao horizonte tiva que admite que o que retorna no eterno é o
revivificação da tragédia e do trágico, no qual, a partir da encenação dos textos trágicos gregos, os humano a possibilidade da negação total dos elemento criador ou artístico já foi empreendida
valores. Em sua essência, o trágico é um discurso por Danko Grill5 e Eugen Fink.6 Para ambos, a 5. GRILL. Nietzsche
artistas teatrais discutem diversas questões sociais e políticas da atualidade. e o Eterno Retorno do
de caráter político e ontológico que se articula doutrina do eterno retorno só pode ser represen- Mesmo ou o retorno da
tendo em vista o questionamento do sentido de tada na atividade artística ou lúdica. Assim, tal essência artística na
A tragédia é um tema privilegiado quando se subjetiva ou liberdade e a estrutura objetiva da arte.
uma ordem dada. O trágico é a ausência de funda- doutrina funde o elemento ético, o desejar viver
trata de estabelecer uma relação entre a reflexão realidade ou necessidade, enquanto fatores que mento, a ausência da unidade que sustenta e dá de novo, o estético e o querer o retorno da essên- 6. FINK. La philoso-
estético-filosófica e o teatro. A vasta quanti- determinam a escolha ou decisão. Neste sentido, sentido à realidade, é a revelação da ausência de cia da arte como possibilidade de liberação de phie de Nietzsche.
dade de obras produzidas ao longo da história do em sua concepção dialética, o trágico revela- sentido no interior desta ordem, afirmando-se forças. É na atividade lúdica que se dá a repetição
7. NIETZSCHE. A gaia
Ocidente consolida uma verdadeira tradição de se como um conflito de valores, privilegiando sob os signos da contradição e da luta: a ordem do mesmo. ciência.
reflexão sobre a tragédia. Esta produção possi- a dicotomia entre liberdade e necessidade. Em e o caos, a vida e a morte. Em seu sentido exis- Em A gaia ciência, Nietzsche nos mostra a
bilitou o afloramento de questões puramente suma, a tragédia revelou a questão do trágico. tencial, o discurso trágico é sempre atual, visto imagem do navio de imigrantes em sua hora de
filosóficas. A experiência estética da tragédia A história do conceito de trágico é abor- que se relaciona à própria estrutura da existência partida. A expectativa em relação ao futuro, o
abriu espaço para uma especulação de ordem dada por Roberto Machado, em O nascimento do enquanto ausência de fundamento. desejo de descobrir e de se aventurar por novos
ontológica: o trágico é visto como uma caracter- trágico.2 É no final do século XVIII que o trágico Encontramos em Nietzsche o sentido mais territórios explorando novos modos de ser
ística fundamental da existência, decorrente da penetra no espaço aberto pela tragédia, passando perturbador e paradoxal da concepção do trágico, configurariam um estímulo das funções vitais,
revelação de uma contradição essencial entre o a ser pensado de maneira autônoma. Para Roberto na medida em que o filósofo alemão concebe a vontade de ser diferente, de querer exercer a
homem e o universo, contradição que conduz a Machado, esta história tem início com Schiller e o trágico como alegria, como afirmação plena potência que lhe é mais própria. Este momento
1. LESKY. A tragédia um sofrimento extremo. Segundo Albin Lesky,1 chega ao seu ápice com Nietzsche, tendo como da vida. Em Nietzsche, o pensamento trágico de intensificação das funções vitais implica um
grega. os gregos não chegaram a desenvolver uma teoria tônica a ideia da contradição e do antagonismo, relaciona-se aos dois conceitos capitais de sua dispor integralmente de si.7 Assim, de modo
do trágico que englobasse a concepção do mundo isto é, o conflito de valores. Enquanto que, para filosofia: vontade de poder e eterno retorno. A análogo, no processo de criação, o artista se
2. MACHADO. O nasci-
mento do trágico. como um todo, isto é, o trágico não estabelece Peter Szondi, por exemplo, uma “filosofia do tragicidade marca a ação a partir do momento em encontra numa situação semelhante à dos
uma cosmovisão para os gregos. No entanto, trágico” – distinta de uma poética da tragédia – que, pela vontade de poder, se busca a determi- imigrantes: ambos buscam um reinscrever-se no
3. Cf. SZONDI. Ensaio o mesmo autor observa que a tragédia grega tem início com o pensamento de Schelling;3 para
sobre o trágico. nação, a forma, o ser, que se acompanham, neces- mundo, buscam distinguir-se, buscam ser dife-
encerra o trágico na medida em que põe em cena Roberto Machado e Gleen W. Most,4 a independên- sariamente, de esforço e dor. A esta busca de rentes, transformando a si próprios. Este transfor-
4. Cf. MOST. Da tragé- um conflito insolúvel, uma ausência de quadros cia do trágico em relação à tragédia, enquanto forma, relativa à espacialidade, se funde a dimen- mar só é possível na repetição do ato criador. Mas
dia ao trágico. estáveis de valores nos quais a ação humana se fenômeno especificamente moderno, tem sua são da temporalidade, que – pelo eterno retorno ambas as viagens contam com um componente
fundaria; daí a dimensão da tragicidade. Esta primeira formulação com Friedrich Schiller. É – lança todas as coisas no eterno devir, no não- desconhecido: o acaso. O processo de criação é
dimensão se faz sentir nos grandes textos dos com Schiller – e seu afastamento do pensamento ser. Assim, enquanto a vontade de poder anseia sempre misterioso, podendo conduzir o artista
autores gregos, como Édipo Rei, Antígona, Medeia, aristotélico – que a tragédia e o trágico passam o futuro, o eterno retorno, aniquilando todas as para soluções ou formas que ele não esperava
As bacantes, entre outros. Desta forma, conforme a ser vistos como um fenômeno extraestético. O formas, afirma o futuro como passado. No inte- encontrar. Citemos Iberê Camargo: “Eu, antes
observa Glenn Most em Da tragédia ao trágico, trágico apresenta o homem numa situação-limite rior deste jogo, o próprio querer, que original- de iniciar a viagem – o quadro – consulto minha
a tragédia problematiza a própria estrutura em que sua necessidade natural e sua liberdade mente é uma vontade ardente de ser, reconhece bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou
da agência humana, confrontando a estrutura moral – um fim suprassensível – são colocadas em seu caráter vão. É nesta desarticulação do querer, no mar grosso, sempre sopra um vento forte que
interseções possíveis?
Física, etc.) e a correlação entre suas questões. O autor reconhece ainda que a filosofia da
Ainda no verbete, a observação mais sugestiva arte em geral – e da música em particular –, se
de Sparshott refere-se a três razões que justificar- encontra entre os campos mais movediços da
iam um ceticismo recaído sobre a área no decorrer filosofia. Dado que a arte é o campo estético mais
82 .ConTextura. 2011/1
passos contados
Diz-se que a morte é o fim de tudo. Para o que planejava visitar seus amigos distantes, que
nunca tomava a iniciativa da organização das
Guilherme, meu querido amigo e companheiro dos sempre reservava tempo para os amigos próximos,
festanças, que comedidamente perdia a medida,
anos de formação em Filosofia – anos de angús- que respeitava as distâncias de amigos queridos,
que implicava e brigava e se indignava com toda
tias e incertezas, mas também de alegrias e desco- que lamentava os desencontros e que brindava
tentativa de organizar um churrasco dos amigos,
bertas, muitas vezes compartilhadas nas salas de com alegria os encontros, que nutria uma admi-
que tinhas as melhores histórias do mundo sobre
estudo do PET-Filosofia, o recanto privilegiado ração profunda pelos poemas de Safo e discutia
fuga de elefantes, que sempre evocava uma passa-
de algumas de minhas mais verdadeiras amizades traduções do grego com amigos com a alegria
gem da Odisseia nas conversas sérias, que adorava
– a morte tão precoce e inesperada foi o fim de de quem partilha uma saborosa guloseima; do
as histórias d’As Mil e Uma Noites e sabia várias
grandes planos e de sonhos inabaláveis. Sonhos Guilherme filho e irmão, sempre dedicado e
travessuras do cego Tirésias pelos gêneros huma-
de uma promissora carreira acadêmica, alimen- envolvido, do Guilherme que amava e sonhava ter
nos, que tinha sempre uma boa anedota grega no
tados desde os tempos em que cursava Direito e sua própria família, que nutria o sonho da alegria
bolso. Guilherme era aquele que fez uma guerra
buscava disciplinas e grupos de estudos no curso de um casamento que pouco saboreou e de uma
de armaduras de papelão em casa com os amigos
de Filosofia, tempos recheados de concretude vida, por assim dizer, “adulta”, de responsabili-
e que admirava a virtude heroica, que sonhava
pela experiência como professor voluntário em dades e contas a pagar de uma nova casa que ele
participar de uma guerra épica e que citava a frase
Cabo Delgado (Moçambique) e, principalmente, não conheceu. A vida de infinitas possibilida-
das mães espartanas que lembravam aos filhos
pela experiência extrema da precariedade des e trajetos, infinitos desejos e necessidades
sua bravura e dever para com Esparta, e dizia “Ou
humana – em suas diversas manifestações – com chegou precocemente ao fim para ele, que tanto
bem com ele [o escudo] ou bem sobre ele”. Enfim,
a qual podemos apenas fantasiar do alto de nossas caminho tinha pela frente, e tanta vontade tinha
Guilherme é aquele que será lembrado pelos
torres de marfim. Não por acaso ele se tornou um de caminhar. Chegou e escancarou nosso despre-
inúmeros amigos, cada qual a seu modo, mas que
curioso e astucioso pesquisador na área de Ética, paro para uma perda tão dolorosa, tão improvável.
será, acima de tudo, lembrado sempre.
encontrando em Aristóteles a companhia para Chegou e, ao fechar-lhe o caminho , obrigou-nos
suas inquietações e para seus próprios dilemas. O a retraçar seus caminhos em nossas lembranças,
“Es gibt nur das, was nicht vergessen wurde”6
sonho da vida acadêmica e do reconhecimento da a cultivar em nós aquilo que dele ficou, para que
dedicação visceral a Aristóteles e ao árduo estudo ele não se perca no mecânico passar dos dias e no Paul Celan
da Ética – mesmo da contemporânea – deu seu acumular frenético dos afazeres. E dos planos. E
primeiro grande passo com a aprovação na sele- dos sonhos. Nos obrigou a recriá-lo de todas as
ção de mestrado, iniciado em 2010 sob a cuida- formas, pedacinho por pedacinho que cada qual
dosa e sempre dedicada orientação do professor dele vivenciou, das formas como cruzou a vida de
Fernando Rey Puente, seu exemplo e inspiração cada um de nós e nela deixou seus rastros.
desde as mais incipientes pesquisas, em seu debut Guilherme era aquele que cuidava do forneci-
no PET, início de tudo. mento de café das nossas longas horas de estudo,
Junto aos sonhos do futuro e promissor que toda semana tinha em mãos um texto obscuro
professor e pesquisador Guilherme moravam de poetas gregos que recitava em voz alta,
também os sonhos materiais do Guilherme amigo, contando a métrica com os pés, que escrevia frases
88 .ConTextura. 2011/1