Anda di halaman 1dari 16

Edição 09 | Setembro de 2016

DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Para discutir alguns aspectos da discriminação de gênero na justiça criminal, a Rede Justiça Criminal con-
vidou mulheres a escrever sobre temas como a seletividade do sistema penal, racismo, direitos sexuais,
maternidade no cárcere, revista vexatória, indulto, mulheres indígenas presas e mulas do tráfico.

Tradicionalmente quando é dada publicidade para as diversas violências que caracterizam o sistema prisio-
nal essas denúncias são ilustradas por homens, em geral confinados em espaços minúsculos, superlotados
e carentes de toda sorte de bens materiais. No entanto, há dois graves problemas nesse tipo de imagem e
com os quais este boletim procura romper: a de que esse sujeito (supostamente) neutro violado pela justiça
criminal é um homem e de que essas violências são apenas questões de gestão, isto é, eminentemente de-
terminadas pela disponibilidade de recursos financeiros. A ruptura aqui não se restringe a apenas dizer que
há mulheres impactadas por esse sistema, mas sim que o sistema de justiça criminal como um todo, cujos
atores principais são o Poder Judiciário, o Ministério Público, as Defensorias Públicas e a advocacia, produz
e reproduz discriminações de gênero que decorrem de escolhas sobre como interpretar e aplicar a lei.

A discriminação de gênero na justiça criminal é caracterizada pela reprodução dos fatores de discriminação
que se manifestam na assimetria das relações de poder entre homens e mulheres na sociedade, e pelo
modo como determinadas condutas são criminalizadas, pela aplicação de regimes penais desproporcionais
e pelas formas específicas de discriminação construídas no cárcere. Além disso, não é possível visibilizar
e questionar todas essas práticas sem considerar a interação do gênero com outros eixos produtores de
subordinação e discriminação, como raça, classe, etnia e sexualidade.

As mulheres são afetadas pelo sistema punitivo principalmente pela repressão estatal a uma das principais
estratégias de complementação de renda e sustento do lar a que as mulheres sem acesso ao mercado for-
mal de trabalho recorrem: o varejo de pequenas quantidades de drogas. Acusadas de tráfico na maioria dos
casos, mulheres negras e pobres dificilmente têm acesso à liberdade provisória, são submetidas a penas
altas e têm direitos como progressão de regime, indulto e penas restritivas de direitos significativamente
limitados. Dentro do ambiente carcerário, as mulheres ainda enfrentam condições de cumprimento da
pena significativamente mais severas do que as previstas na lei na medida em que vêm seu direito à saúde
desrespeitado, os direitos sexuais, controlados, os vínculos familiares rompidos e seu exercício da materni-
dade controlado pelo Estado.

Considerando a necessidade de um olhar específico para o encarceramento feminino, a Organização das


Nações Unidas promulgou regras mínimas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas
de liberdade para mulheres infratoras. As Regras de Bangkok, como ficaram conhecidas, constituem o
principal marco normativo internacional e estabelecem um olhar diferenciado para as especificidades de
gênero no sistema carcerário. A Rede Justiça Criminal trabalha pela ampla aplicação das Regras de Bangkok.

Mesmo quando não são diretamente criminalizados, os corpos de mulheres são objeto de controle e re-
pressão do sistema penal. A revista íntima vexatória, que ainda faz parte do cotidiano de estabelecimentos
de privação de liberdade brasileiros, obriga principalmente mulheres - mães, esposas, companheiras e fi-
lhas - ao desnudamento, à exposição e revista de órgãos genitais, como condição para a visita à pessoa com
quem mantêm vínculo afetivo e familiar.
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

Evolução da população prisional por gênero


entre 2000 e 2014

Adaptado do Infopen Mulheres de junho de 2014 a partir dos últimos dados disponíveis, divulgados pelo In-
fopen de dezembro de 2014. Observa-se que o Infopen de dezembro indica ter havido um erro na coleta do
total de mulheres encarceradas, que repercutiu tanto na edição de junho quanto no Infopen Mulheres. Este
gráfico corrige o dado sobre o aumento da população carcerária feminina entre 2000 e 2014, que não foi de
567%, mas de 503%.

2
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Entrevista: “Cada uma de nós tem nossos direitos”

Para começar o debate, partimos daquela que Helena: Amanhã faz três meses que eu estou pre-
deve ser a protagonista por excelência: Helena, sa. Eu estou no 155 [furto].
uma mulher de 35 anos, mantida em prisão
preventiva por ter furtado uma bandeja de ITTC: Você foi pra audiência de custódia?
carne, relata em entrevista as condições e os
impactos da sua prisão. H: Não. Se a gente fosse presa na sexta, até dia 18,
a gente tinha ido. Mas nós fomos presas dia 19,
Entrevista: Mariana Lins de Carli Silva, no sábado à tarde. Aí não teve. Nós fomos para a
transcrição: Nina Cappello, edição: Mariana audiência só agora, faz um mês e pouco
Lins de Carli Silva e Raquel da Cruz Lima.
ITTC: E você já estava grávida?
Ninguém melhor para relatar as violações de direitos
decorrentes do encarceramento do que as próprias H: Já estava grávida, de três meses e pouco,
pessoas presas. No caso das mulheres presas, a rup- quase quatro.
tura do silêncio sobre suas histórias e a possibilidade
de expressar suas opiniões manifesta uma esperan- ITTC: Você tem outros filhos?
ça na busca pelo desencarceramento. As histórias
contadas em primeira pessoa são uma tentativa de H: Quatro filhos. A Iara tem catorze, a Michele tem
sensibilização, em especial dos atores do sistema de dez, o Gabriel tem oito e a Aninha tem dois anos.
justiça criminal, ao demonstrar que o conteúdo de Mas agora eu estou aqui sozinha. Minha mãe não
um processo criminal é uma vida humana, uma traje- vem, porque ela está com eles lá. Ela me mandou
tória notadamente marcada por violências, principal- uma carta hoje falando que está muito difícil lá pra
mente no que diz respeito às mulheres. Helena1, 35 ela, falou que está desempregada, que não está
anos, primária, foi mantida em prisão provisória por fácil pra ela.
tentativa de furto de uma bandeja de carne e de uma
pomada para assaduras em um supermercado. Mãe ITTC: Eu queria saber um pouco de você, de
de quatro filhos e grávida do quinto, única responsá- como era a sua vida antes de você vir pra cá.
vel pelo provimento de sua família, seu depoimento
revela a importância e a urgência em aplicar alterna- H: Só tinha três meses que eu estava desemprega-
tivas à prisão de mulheres. da. Eu trabalho de limpeza, com registro na minha
carteira e eu estava morando com os meus filhos,
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que com meus quatro filhos, em uma casa de aluguel.
Helena concedeu ao Instituto Terra, Trabalho e Ci- Até que eu parei de trabalhar. Era difícil, porque eu
dadania, em março de 2016, no âmbito do projeto tinha que pagar o aluguel, eu vendi até uma gela-
“Alternativas à prisão provisória de mulheres: de- deira nova que eu tinha ganhado para pagar o alu-
senvolvendo estratégias para implantar as Regras de guel. Nesse dia em que eu fui presa, eu briguei com
Bangkok no contexto brasileiro”. o dono da casa e aí ele falou assim, “então você
vai sair, eu vou te dar de domingo até segunda pra
você sair”. Ele até falou pra mim que ia desligar a
água e a luz. E eu falei «desligue, se você desligar,
você vai ver o que que eu vou fazer». Aí, né, que eu
falei, “eu estou grávida e tenho quatro filhos, você
não tem que me colocar na rua”.

1 O nome da entrevistada e seus filhos foram modificados para


garantia de sigilo de seus dados.

3
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

ITTC: Como foi o dia do seu flagrante? ITTC: Como que é a sua alimentação?

H: Eu fui presa dia 19 de dezembro, eu passei o na- H: A comida vem de fora. Tem vezes que vem estra-
tal aqui. Eu fui para o mercado com as meninas... gado. Um dia desses a gente até negou a comida,
Nós entramos no mercado e aí a gente pegou as não comemos. As comidas aqui estão horríveis.
carnes, uma das meninas colocou as carnes na mi-
nha bolsa. E nesse dia também tinha um lencinho ITTC: Eu queria falar um pouquinho do seu pro-
para bebês, da Johnson, e duas pomadas para as- cesso agora. É a Defensoria Pública que está na
sadura que eu ia levar para a Aninha, que estava sua defesa?
assadinha. Deus sabe por que que eu fui roubar.
Eu não fui roubar para comprar droga não, eu não H: Não está. Se estivesse, acho que eu já tinha ido
fui roubar para eu usar droga não, nada, foi pra eu embora. Eu estou com uma raiva desse advogado.
dar para os meus filhos. O meu processo está no aguarde, vai dar vinte dias
agora terça-feira. Nós estamos nesse “aguarde”
ITTC: Você acompanha sua gestação na unidade para ver se eu vou embora ou não vou. Eu creio
prisional? que eu vou embora, é a minha esperança, eu não
vou ficar. Está na mão de Deus.
H: Não, aqui na prisão eu não fiz nada, não tenho
nada feito. Só Deus mesmo. A enfermaria é horrível. ITTC: Como foi na audiência? Perguntaram da
gravidez?
ITTC: E você tem alguma atividade de lazer aqui
dentro? H: Ela [a juíza] não perguntou. Ela só perguntou se eu
tinha filhos, eu falei que eu tinha. Eu falei que sempre
H: Tem nada pra fazer lá naquele raio. Eu fico o dia trabalhei, falei o último lugar que eu trabalhei, sete
todo na cela. Às vezes, quando eu saio, sento um meses atrás, como auxiliar de limpeza. Perguntou
pouquinho no pátio, doem minhas costas, eu deito quanto eu ganhava, eu falei: “ah, eu ganhava 900 e
lá no chão, fico deitada, até dar a hora da tranca. O pouco, quase mil por causa dos meus filhos”. Só. E
dia-a-dia é isso. Três mês assim, sem fazer nada. Só. falou: “pode tirar ela”. Depois chamou as outras me-
ninas, o policial, foram todas bem rápidas.
ITTC: Como que é ficar sem fazer nada?
ITTC: Tem alguma coisa que eu não perguntei
H: Deus do céu, é muito difícil... Tem hora que eu que você queria falar?
choro... aí às vezes que tem tumulto lá, eu vou pra
igreja, falo pra Deus, “me tira daqui, que aqui não H: Olha, está muito ruim a comida. Independente-
tem nada”. Amanhã é dia de visita, é o pior dia... mente que tem muita presa aqui, cada uma tem os
(choro) Só isso que eu tenho pra dizer. seus BOs, mas nós somos gente, nós somos seres
humanos. Cada uma de nós tem nossos direitos, en-
ITTC: Como é a cela? tão a gente tem que comer. Independentemente de
qualquer coisa que a gente tenha feito, nós somos
H: É, a gente dorme de “valete”, que é dormir com gente, nós temos que comer um pouco melhor. E a
a outra companheira, também grávida, na mesma comida não está boa. Não está mesmo, está horrí-
cama. Tem doze camas na cela. A minha está com vel. Mas eu como mesmo por causa do meu bebê.
18 meninas. Então, está todo mundo “na praia”,
que é o chão.

4
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Encarceramento Feminino e Seletividade Penal

Por Luciana Boiteux2 são submetidas a condições perigosas de vida (e de saú-


de) na prisão, podendo ser algemadas no parto e dar à
O tema do encarceramento de mulheres vem ga- luz no camburão ou no próprio presídio.7 Dados de grá-
nhando amplo destaque nos últimos tempos. Ape- vidas e mães encarceradas no Rio de Janeiro, apontam
sar de elas representarem apenas 5,8% do total de para um perfil ainda mais dramático: 78% são jovens en-
presos brasileiros, a taxa de aprisionamento femi- tre 18 e 22 anos, de cor negra (77%), com baixa escola-
nino teve um aumento de 503% em 15 anos, muito ridade (75,6% não possuem o ensino fundamental com-
superior ao masculino3, sendo o tráfico de drogas o pleto), sendo que 9,8% declararam não saber ler nem
delito que mais as encarcera (64%, dados de dez/14). escrever. Metade delas mantinha empregos precariza-
Enquanto boa parte dos homens presos responde dos (85% sem carteira assinada), a maioria era respon-
pelos delitos de roubo (26%) e furto (14%)4, podendo sável pelo sustento do lar, além de ré primária (70%).8 E
ser beneficiados pelo indulto natalino anual, por ser grande parte delas é de presas provisórias.
o tráfico considerado crime hediondo, as mulheres
praticamente não recebem indulto.
Apesar de condenadas por crimes sem vio-
O perfil das mulheres presas no Brasil é de pessoa lência, elas são mais facilmente selecionadas
muito vulnerável, e ainda sobrecarregada pelo sus- pelo sistema penal justamente por estarem
tento de seus filhos Elas são, em sua maioria, jo- em situação de extrema vulnerabilidade.
vens (50% tem até 29 anos), solteiras (57%), negras
(68%), com baixa escolaridade (50% têm o ensino
fundamental incompleto, sendo que apenas 10% Se o sistema penal é estruturalmente seletivo no
delas completaram essa primeira fase de estudo). geral, verifica-se a especial (e perversa) seletivida-
Acima de tudo, elas são pobres, condenadas a pe- de com que se encarceram mulheres mães, negras e
nas entre 4 e 8 anos (35%), em regime fechado pobres, justo aquelas que buscam no comércio ilícito
(45%).5 Dados da América Latina6 apontam que as de drogas, por necessidades de subsistência de sua
detentas, em geral, são chefes de família e respon- família, uma melhor remuneração, quando não são
sáveis pelo sustento dos filhos. Sabemos inclusive coagidas ou ameaçadas para levar drogas a presídios.
que 80% delas são mães, ou seja, quando são priva- Para essas mulheres, que rompem duplamente com
das de liberdade, além de serem abandonadas por seu papel social (por praticarem um crime e, além
seus companheiros, são ainda privadas forçosamen- disso, por serem “mulheres criminosas”) o nível de
te do contato diário e do cuidado de seus filhos, os estigmatização e isolamento a que estão sujeitas é
quais passam a ser criados por avós ou tias. Apesar ainda pior, afastadas de seus filhos e abandonadas
de condenadas por crimes sem violência, elas são por seus companheiros.
mais facilmente selecionadas pelo sistema penal
justamente por estarem em situação de extrema O seletivo encarceramento feminino (ainda mais
vulnerabilidade. forte do que o masculino), portanto, reforça a ex-
clusão social dessas mulheres e dos filhos que de-
Quando estão grávidas, ou seja, ainda mais vulneráveis, las dependem. Além disso, o machismo estrutural,
2 Professora Associada de Direito Penal e Criminologia da UFRJ,
Coordenadora do Grupo de Pesquisas Política de Drogas e Direi- 7 Como ocorreu com uma presa no Rio de Janeiro, portado-
tos Humanos da mesma instituição. ra de transtornos mentais e usuária de crack, presa provisória
acusada de tráfico de drogas, que deu à luz no Presídio Talavera
3 Infopen - Dezembro de 2014.
Bruce no Rio de Janeiro, sozinha, numa solitária. Vide: <http://
4 Dados do Infopen Mulher, referentes a junho de 2014. bit.ly/partosolitaria>
5 Infopen Mulher, junho de 2014. 8 Boiteux e Fernandes (Coord.) 2015. Mulheres e crianças en-
6 BOITEUX, Luciana (2015). Mujeres y Encarcelamiento por de- carceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da
litos de drogas. CEDD – Colectivo de Estudios Drogas y Derecho. maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro. Disponível
Disponível em: <bit.ly/boiteuxCEDD> em: <http://bit.ly/boiteuxfernandes>.

5
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

que atravessa toda a sociedade, é marcante em social e de inclusão, já que a repressão aos crimes
relação às mulheres, que se tornam um fácil alvo de drogas e a seletividade penal comprovadamen-
da guerra às drogas. É preciso mudar isso urgen- te só reforçam a exclusão.
temente e focar em políticas sociais de proteção

Lendo gênero e raça no sistema de justiça criminal a partir


da interseccionalidade
Isadora Brandão Araujo da Silva9 do intimamente a questões de gênero, haja vista que
muitas mulheres estão presas acusadas de tráfico de
Falar em interseccionalidade implica lançar luz sobre drogas em razão de relacionamentos amorosos/de
sujeitos tradicionalmente invisibilizados e suas expe- parentesco mantidos com homens já envolvidos no
riências. O termo foi empregado primeiramente por tráfico. No entanto, em que pese as mulheres negras
Kimberle Crenshaw em 1989 para identificar as con- predominarem na população carcerária feminina,
sequências estruturais e institucionais da interação pouco se discute em que medida a dimensão racial
entre eixos produtores de subordinação, a exemplo produz a criminalização dessas mulheres e afeta as
de gênero, raça e classe. condições de seu aprisionamento. Talvez, justamente
porque a questão do encarceramento feminino atin-
Um aspecto central da abordagem interseccional re- ge preferencialmente as mulheres negras, ela não
side na crítica à invisibilização dos aspectos raciais da tem se apresentado como pauta prioritária na agen-
discriminação de gênero e dos aspectos de gênero da feminista.
da discriminação racial, o que é resultado da mani-
pulação das categorias gênero/mulheres e raça/ne-
gros de forma mutuamente excludente. Ademais, a A questão do encarceramento feminino atin-
leitura interseccional revela que as mulheres brancas ge preferencialmente as mulheres negras.
e os homens negros são tomados, respectivamente,
como parâmetro central para identificação do que é
“discriminação de gênero” e do que configura “dis- É possível observar que os movimentos negros têm
criminação racial”, o que dificulta a percepção dos demonstrado que o Estado brasileiro executa um
fatores de exclusão que afetam grupos situados na projeto genocida - operacionalizado principalmente
intersecção, como é o caso das mulheres negras. através da guerra às drogas - que vitimiza sobretudo
a população negra e jovem das periferias. Nessa
Nesse sentido, partindo da abordagem interseccio- linha, demonstram que o racismo possuiu caráter
nal, iremos conferir visibilidade às experiências das substantivo na configuração das práticas das
mulheres negras no campo da justiça criminal e evi- agências penais no contexto brasileiro e refutam o
denciar a sua marginalização na agenda de movimen- emprego da cor/raça enquanto categoria meramente
tos sociais e ativistas de direitos humanos, tomando ilustrativa das injustiças do sistema criminal.
como parâmetro os debates sobre encarceramento
feminino, genocídio da população negra, violência A leitura interseccional revela a necessidade de
doméstica contra a mulher e estupro. agregar a essa análise o processo de vitimização que
a violência policial produz na vida das mulheres ne-
Frente ao incremento das taxas de encarceramento gras, as quais perdem seus filhos, companheiros, ir-
feminino, tem-se buscado ressaltar as razões de gê- mãos pela ação dos agentes do Estado e, na luta por
nero que produzem uma vivência distinta do encar- justiça e reparação, são silenciadas pela conivência
ceramento para as mulheres. Admite-se, em diversas sistêmica do sistema de justiça criminal com as ile-
abordagens feministas, que esse dado está associa- galidades praticadas pelas agências policiais. Ainda,
o cenário de redução das políticas sociais e a preca-
9 Defensora Pública do Estado de São Paulo e mestre em Di-
reitos Humanos. rização da educação, da saúde e da assistência so-

6
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

cial - que constituem a contraface do Estado Penal da sexualidade permitida e regular o comporta-
Máximo - afeta, sobretudo, as mulheres negras e mento sexual da mulher e não proteger a sua li-
pobres, que não dispõem de recursos para delegar berdade sexual. No entanto, para as mulheres
o trabalho doméstico e de cuidados ou para arcar negras, essa análise é uma simplificação por-
com o custo da sua prestação pela iniciativa priva- que, historicamente, nunca houve interesse ins
da. É importante considerar que na medida em que titucional em regular a castidade da mulher negra.
o Estado - via ação ou omissão - reforça a solidão
socioafetiva, a sobrecarga de trabalho e o silencia-
mento das mulheres negras, gera as condições para
a sua morte física e simbólica. A noção de interseccionalidade permite iden-
tificar as situações de invisibilização em que
Nos casos de violência doméstica e familiar contra se encontram as mulheres negras.
a mulher, certa criminologia feminista tem reivindi-
cado intervenção penal específica. É verdade que
tal construção não ignora a seletividade imanente Muito pelo contrário, houve casos em que o júri
ao sistema punitivo, nem seu caráter estrutural- instalado para julgamento de casos de estupro tinha
mente racista e androcêntrico, tampouco o resul- sido instruído a não presumir a castidade da mulher
tado excludente da pena criminal, mas pressupõe negra, ao contrário do entendimento padrão ado-
a compreensão de que é através da sua omissão tado em relação às mulheres brancas. Em contra-
deliberada que o Estado penal reforça o sistema partida, ao mesmo tempo que a lei excluía do seu
patriarcal, pois legitima o poder ilimitado dos ho- âmbito de proteção mulheres brancas não virgens,
mens sobre as mulheres na esfera privada. Ocorre, elas voltavam a ser objeto de proteção caso o su-
no entanto, que esse avanço crítico representado posto agressor – de uma mulher branca - fosse um
pela criminologia feminista precisa considerar o di- homem negro. Essa é uma realidade facilmente ob-
lema que surge para as mulheres negras em situa- servada, com as devidas proporções, no contexto
ção de violência doméstica no momento em que se brasileiro.
veem compelidas a acionar aquele mesmo Estado
Genocida para protegê-las de seus agressores. A Portanto, a noção de interseccionalidade permite
abordagem interseccional coloca a necessidade de identificar as situações de invisibilização em que se
visibilizar esse problema e o desafio de desenvolver encontram as mulheres negras, as quais estão sujei-
alternativas para o combate e repressão da violên- tas a mais de um eixo estruturante de desigualdades,
cia doméstica contra a mulher negra que não resul- contudo, paradoxalmente, acabam sendo marginali-
tem no reforço do sistema punitivo. zados pela retórica dos movimentos sociais e pelos
discursos identitários produzidos por uma concepção
Crenshaw também critica a abordagem tradicio- mutuamente excludente das diversas contradições
nal da questão do estupro pelo discurso femi- sociais produtoras de iniquidades.
nista branco estadunidense10. Menciona que as
feministas brancas desenvolveram a compreen- Assim, a inserção do ponto de vista das mulheres ne-
são de que a legislação referente ao estupro ti- gras é essencial para que abandonemos uma leitura
nha como escopo originário definir os limites unidimensional e estanque das categorias, amplian-
do o potencial emancipatório das leituras e práticas
10 CRENSHAW, K. A interseccionalidade na discriminação de de direitos humanos.
raça e gênero. Painel: Cruzamentos raça e gênero. Ação Educa-
tiva, 2012.
_________________. Beyond entrechment: race, gender and
the New Frontiers of (Um) equal Protection. In: International
perspectives on gender equality & social diversity. Tokohu Uni-
versity Press, 2008.
_________________. Demarginalizing the intersection of
race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination
doctrine, feminist theory, and antiracist politics. University of
Chicago Legal Forum.1989, p.39-52. Disponível em: <http://chi-
cagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8>.

7
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

A experiência da maternidade na prisão

Ana Gabriela Braga11 e Bruna Angotti12 prisões, o horário limitado das visitas e a humilhação
da revista vexatória são fatores que contribuem para
Entre 2000 e 2014, houve um crescimento de 503% da o isolamento da mulher presa.
população prisional feminina brasileira, atualmente com-
posta por cerca de 34.000 mulheres. No mesmo período
o encarceramento masculino cresceu 220,2%13.  Esses Que Estado é esse no qual a privação de li-
dados mostram um cenário preocupante: o grande en- berdade é usada como maneira de garantir
carceramento atingiu, também, e, em especial, as mulhe- direitos que deveriam ser regra extramuros?
res, especificamente as negras e pobres, em sua grande
maioria (aproximadamente 68%) acusadas de envolvi-
mento com o comércio ilegal de drogas. Para aquelas que são aprisionadas grávidas14 ou
as poucas que engravidam em visitas íntimas, sur-
A prisão de mulheres é formada por jovens em ida- ge a complexa questão da maternidade dentro da
de reprodutiva, (68% das mulheres presas têm entre prisão15. Inúmeras violações aparecem nesse ce-
18 e 34 anos), para as quais o encarceramento trará nário, vale destacar, primeiramente, que o exercí-
impactos profundos em sua vida íntima e familiar. cio de maternidade na prisão não é autônomo, há
Principalmente, se considerarmos que a maioria das ingerência e discricionariedade da gestão prisional
mulheres presas é mãe, geralmente responsável pe- na relação mãe e filho, sendo regra na criação das
los cuidados da casa e das crianças, e, muitas vezes, crianças. A maternidade dentro do cárcere é media-
ela mesma é provedora financeira do lar. da por uma série de normas e controles, impedin-
do a convivência livre e particularizada entre mãe
e bebê. Dentre estas, está, por exemplo, a adoção
O exercício de maternidade na prisão não é do mínimo fixado pela Lei de Execução Penal – seis
autônomo. meses – como tempo máximo de convivência entre
mãe e bebê.

As decisões judiciais que investem na prisão como Outro problema é a excepcionalidade de espaços
primeira resposta obrigam aquelas que já são mães específicos para exercício da maternidade na prisão.
a deixarem seus filhos do lado de fora para o cumpri- De acordo com o Infopen Mulheres 32% das unida-
mento da pena. As consequências disto são gravosas, des femininas dispunham de berçário ou centro de
dentre as principais ressaltamos: a quebra dos laços referência materno infantil, enquanto apenas 3% das
de afeto e convivência entre mães e filhos, além do unidades mistas, e nenhuma masculina. Quando exis-
risco de perda do poder familiar sobre as crianças, o tem estão localizadas nas capitais e, quando há vaga,
encaminhamento destas para abrigos na ausência de colocam as mulheres do interior no difícil dilema de
família expandida e, por vezes, o consequente risco manter seus outros laços de convivência familiar ou
de sua perda definitiva para adoção. A distância das passar o tempo permitido pela lei com o recém-nas-
cido na unidade materno-infantil da capital.
11 Doutora em Criminologia pela Universidade de São Paulo
(USP), com período sanduiche na Universitat de Barcelona. Pro-
fessora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP.
Coordenou a pesquisa “Dar à luz na sombra”, da coleção Pen-
sando o Direito, 2015. 14 Não conseguimos precisar quantas, uma vez que não há da-
dos precisos produzidos sobre essa população.
12 Doutoranda e mestre em Antropologia Social pela USP e es-
pecialista em Criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências 15 A pesquisa “Dar à luz na sombra”, coordenada por nós e
Criminais. Professora da Faculdade de Direito da Universidade lançada em 2015, mapeou o exercício da maternidade em esta-
Presbiteriana Mackenzie. Co-coordenou a pesquisa “Dar à luz na belecimentos prisionais de seis estados brasileiros que tinham
sombra”, da coleção Pensando o Direito, 2015. em prática. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-con-
tent/uploads/2015/03/51-Dar-a-luz-na-sombra.pdf, acesso em
13 Levantamento nacional de informações penitenciárias –
31/05/2016.
Infopen - Dezembro 2014

8
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Chama ainda atenção o uso da prisão usada como da como maneira de garantir direitos que deveriam
política social. Muitas vezes o fato de haver algu- ser regra extramuros?
ma estrutura para a convivência de mulheres e seus
bebês, em especial no que tange às distribuições A experiência da maternidade na prisão é sempre trau-
de itens de higiene e alimentação, bem como de mática, para mulheres, crianças e para a sociedade
acompanhamento pediátrico e nutricional, é usado como um todo. Uma melhor possibilidade de exercício
como justificativa pelos juízes para a manutenção da maternidade ocorrerá sempre fora da prisão. O cum-
da prisão da mãe, mesmo que haja possibilidade de primento das medidas desencarceradoras já existentes
aplicação de cautelar ou progressão de regime. Que seria um grande passo na garantia de direitos daquelas
Estado é esse no qual a privação de liberdade é usa- mães e crianças que vivem cotidianamente a prisão.

Dos compêndios criminológicos à ponta do fuzil:


sexualidade e gênero como fundamentos para a garantia
da vida ou a feitura da morte pelos aparelhos de Estado

Natália Corazza Padovani16 17

Parecer físico e biográfico: Nasceu de parto normal a domicílio. Nega relações sexuais. É tabagista modera-
da. Nos exames foram constatados: algumas cicatrizes lineares nos braços, hímen íntegro, pequeno plicma
anal na posição de vinte e quatro horas (Trecho de parecer de inclusão e abertura de prontuário de uma
presa na Penitenciária Feminina da Capital - 1985, grifos meus).

Este é apenas um pequeno trecho de um dos pare- pelas quais Suzane Richthofen tem sido sistematica-
ceres técnicos escritos em prontuários por agentes e mente descrita em laudos produzidos por psiquiatras,
funcionários/as da Penitenciária Feminina da Capital psicólogos e assistentes sociais que a atendem18: Su-
com os quais tive contato durante minha pesquisa de zane é reiteradamente considerada “dissimulada” e
mestrado (realizada entre os anos de 2008 e 2009). “sedutora”. Sem pretensão de emitir qualquer juízo
No processo de meu trabalho de campo, que a prin- de valor sobre Suzane Richthofen, o que se eviden-
cípio não tinha um recorte “específico”, ficava claro cia é o quanto a estrutura carcerária contemporânea
que a sexualidade era ponto nevrálgico para a regu- crê na existência de um “ser delinquente” segundo
lação da vida das pessoas presas. atributos de desvio da sexualidade, os quais, no caso
feminino, sempre foram relacionados a qualidades
O que quero argumentar é que além de marcadores como a “sensualidade” e o “mascaramento”.
como raça e classe, a sexualidade dos sujeitos aprisio-
nados e criminalizados também é um elemento so- Chamo atenção também para o assassinato de Lua-
bre o qual está calcado o discurso criminológico. Isso na Barbosa dos Reis por policiais militares na cida-
pode ficar mais claro se nós lembrarmos as formas de de Ribeirão Preto após ser “confundida” com
um “menino preto” e ter pedido para ser revistada
por uma policial mulher portando em suas mãos
16 Agradeço imensamente aos editores desse boletim, não só o “documento” que a identificava como Luana.19
pelo honroso convite em publicar pela Rede Justiça Criminal,
mas também pelo primoroso trabalho de revisão e edição do 18 Leoni, Fabíola. De Suzane a uma análise do sistema carce-
artigo feito por Raquel da Cruz Lima e Mariana Lins de Carli Silva. rário brasileiro, Opinião e Notícia 13 de julho de 2009. http://
17 Doutora em Antropologia Social pela Unicamp – Pesquisado- opiniaoenoticia.com.br
ra pós-doutoranda Núcleo de Estudos de Gênero/Pagu e Pesqui- 19 Caramante, André. A história de Luana: mãe, negra, pobre
sadora Colaboradora da Global Prisons Research Network. Pes- e lésbica, ela morreu após ser espancada por três PMs, Revis-
quisas de doutorado e de pós-doutorado financiada pela FAPESP ta Ponte: Direitos Humanos, Justiça e Segurança Pública. 25 de
(processos n° 2010/08618-5 e n°2016/08142-7). abril de 2016. http://ponte.org/a-historia-de-luana-mae-ne-
9
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

A mesma Luana a quem eu conheci na Penitenciá- primeiro grau” daqueles que cumpriam pena, mas,
ria Feminina da Capital como Luan e que, depois sim, suas sogras, mães das esposas detidas nas pri-
de sua liberdade em 2009, demandava visitar sua sões femininas que eu visitava.
companheira que permanecera na prisão. Luana/
Luan vivenciava seu corpo, seus desejos, seu nome
de modo transitório. Na prisão, ela/ele era respeita- Direitos sexuais nas prisões não é tema em
da/o pelas demais presas por ser um “sapatão” que separado do que enredam movimentos e lu-
fazia questão de não esconder seu filho. Mas res- tas por direitos sexuais.
peitado/a por suas parceiras de cela e pavilhão, não
tinha os mesmos direitos que algumas delas tinham,
de recebimento ou de realização da visita íntima Falar em “direitos sexuais na prisão”, portanto, é antes
para sua companheira/o. Mais do que isso, respei- falar de como a sexualidade pormenoriza a prática de
tada como uma mãe responsável em seu bairro na governo dos sujeitos presos em prisões masculinas ou
periferia de Ribeirão Preto, Luana não teve o direi- prisões femininas. Sobre como dispositivos de sexua-
to de permanecer viva. Foi por ser uma mulher que lidade governam os direitos a serem acessados segun-
parecia um “homem negro” que Luana Barbosa dos do as tecnologias que alinhavam sexo-gênero-desejo
Reis foi brutalmente assassinada pelos policiais. Foi às prisões femininas ou masculinas: para as mulheres,
por não se submeter às normativas do corpo sub- a maternidade; para os homens, o sexo. Não quero di-
misso feminino que Luan foi violentado, torturado e zer com essa observação que os “direitos à maternida-
assassinado. Assim como foi por não se submeter às de” e os “direitos sexuais” das mulheres e dos homens
normativas de gênero atribuídas a seu corpo bioló- sejam respeitados pelos aparelhos de Estado que
gico que a travesti Verônica foi estuprada, espanca- aprisionam; antes, chamo atenção para o fato de que
da e torturada no ano passado, 2015.20 estes são balizados pela noção de que “mulheres são
ressocializadas pela maternidade” e que os homens
têm maiores necessidades sexuais.
Luana não teve o direito de permanecer viva.
Termino dizendo que, mais do que nunca, em tem-
pos como estes – nos quais enquanto falar sobre
Os dispositivos de gênero, bem como as expectati- gênero nas escolas tem sido considerado uma prá-
vas e práticas das sexualidades, são capilarizados na tica clandestina, mas estuprar, violentar e cortar os
organização dos “direitos e deveres” listados na Lei cabelos de Verônicas, Luans ou de meninas de de-
de Execução Penal. Era o que eu iria compreender zesseis anos, podem ser publicizadas e enaltecidas
ao longo dos anos em que fiz trabalho de campo em pelas ondas das redes sociais – devemos lembrar
Penitenciárias Femininas, ao me deparar com o fato que “direitos sexuais nas prisões” não é tema em
de que, se as visitas íntimas só passaram a aconte- separado do que enredam movimentos e lutas por
cer nas prisões femininas como direito reconhecido e direitos sexuais, de gênero e de manter-se vivo nas
assegurado pelo Estado (desde que heterossexuais) periferias das regiões metropolitanas das capitais
em 2001, nos pátios daquelas instituições femininas, brasileiras. Afinal, são os mesmos dispositivos de Es-
eu recebia a recorrente reclamação de que os com- tado estupram Verônicas, matam os filhos das mães
panheiros de muitas das minhas interlocutoras que de maio e encarceram Luans.
estavam, como elas, presos, não conseguiam receber
a visita de seus filhos. Segundo elas, os funcionários
das prisões alegavam que as pessoas responsáveis
em levar os filhos na visita não eram “parentes de

gra-pobre-e-lesbica-ela-morreu-apos-ser-espancada-por-tres
-pms/
20 Quinalha, Renan. Presa, negra e travesti: devemos ser todas
Verônica. Revista Ponte: Direitos Humanos, Justiça e Segurança
Pública. 15 de abril de 2015. http://ponte.org/presa-negra-e-
travesti-devemos-ser-todas-veronica/

10
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Mulheres indígenas e sistema penal: invisibilidade étnica


e sobrecargas de gênero
Michael Mary Nolan, Viviane Balbuglio e Voltando ao Infopen, é preciso pontuar que seus da-
Amanda Signori21 dos são produzidos a partir das informações presta-
das pelas unidades prisionais e seus diretores. Até
Tendo como pressuposto a constatação de que a pri- mesmo nas questões que envolvem características
são de mulheres acentua violências específicas de sociodemográficas, a unidade recorre a dados já co-
gênero, pode-se afirmar que as mulheres indígenas letados, o que significa dizer não há respeito ao crité-
fazem parte de uma minoria ainda mais invisibilizada rio legal da autodeclaração22
dentre as mulheres em situação de prisão.
Diante dessa crítica aos dados do Infopen, é possível
pensar que se a elas fosse dada a oportunidade de se
Mulheres indígenas fazem parte de uma autoidentificarem quiçá a quantidade de mulheres au-
minoria ainda mais invisibilizada dentre as mentaria e seus direitos poderiam ser respeitados. Um
mulheres em situação de prisão. dos exemplos indicativos para esta conclusão decorre
da vivência prática do Instituto Terra, Trabalho e Cidada-
nia no atendimento às mulheres estrangeiras em confli-
De acordo com os dados oficiais produzidos pelo Mi- to com a lei em São Paulo. Ao aplicar um questionário
nistério da Justiça no Infopen de dezembro de 2014, social próprio, foram encontradas mulheres, oriundas,
existem 41 mulheres indígenas encarceradas, as quais sobretudo da América Latina (em especial da Bolívia) e
em maior parte se concentram em Roraima e Mato do continente africano, que se autodeclararam indíge-
Grosso do Sul. Por sua vez, mesmo ampliando o recorte nas ou pertencentes a povos tradicionais. Esses dados
para homens, os dados do Infopen parecem deficien- não são registrados pela unidade prisional.
tes, pois dizem que no Brasil há 120 estabelecimentos
prisionais - dos 1420 de todo o país – encarcerando Além disso, em diversas situações, é possível notar
indígenas e que apenas 46 teriam informações sobre o que algumas mulheres hesitam em se identificar
povo ou a língua materna dessas pessoas. como indígenas pelo receio de futuras retaliações
discriminatórias e opressoras, tendo em vista o pas-
Esses dados demonstram, quando confrontados com sado de cinco séculos de violência.
a realidade que envolve os povos indígenas no Brasil,
a relevância social do debate sobre a criminalização
e invisibilização das identidades culturais das mino- Algumas mulheres hesitam em se identificar
rias, mas que não será possível abordar nesse texto. como indígenas pelo receio de futuras reta-
O foco deste artigo estará em discutir a problemática liações discriminatórias.
da invisibilização dos indígenas perante o sistema pe-
nal, que marca as mulheres indígenas com as violên-
cias de gênero corriqueiras, especiais e estruturais. A falta de identificação cultural dos indígenas desde
Invisibilidade esta que não é uma mera questão so- a prisão até a persecução penal, infelizmente, justi-
bre o número de mulheres atingidas por essa realida- fica a não aplicação de direitos especiais dos povos
de, mas sim sobre o fato de que essas pessoas sequer tradicionais, afinal, como sabe “se não há índios,
têm a oportunidade de serem propriamente identifi- tampouco há direitos”23. O que, por sua vez, se trata
cadas desde a prisão até qualquer fase do processo
criminal, ao mesmo passo que suas histórias, cultu- 22 Com base tanto no paradigma da pluralidade étnica trazido
ras, línguas e modos de vida, são desconsiderados pelo artigo 231 da Constituição quanto do texto da Convenção
pelos agentes da justiça criminal. 169 da OIT, a autoidentificação de uma pessoa indígena baseia-
se no sentimento de pertencimento de uma pessoa a um deter-
21 Michael Mary Nolan é Presidente do Instituto Terra, Traba- minado grupo, que também a reconhece.
lho e Cidadania. Viviane Balbuglio e Amanda Signori são colabo- 23 Cunha, Manuela Carneira da. O futuro da questão indígena,
radoras da mesma instituição. 1993.

11
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

de uma violência institucional e de violação na pro- mais importante conclusão no tema das mulheres in-
teção dos direitos dos povos indígenas descritos pela dígenas em conflito com a lei: se de forma geral de-
Convenção 169 da Organização Internacional do Tra- terminado que os Estados devem priorizar as alter-
balho (OIT), ratificada em 2004 pelo Brasil. nativas ao encarceramento feminino em razão das
formas históricas de violência contra as mulheres,
A invisibilidade da identidade indígena como forma no caso das mulheres indígenas deve-se reconhecer
de violência institucional inviabiliza e cerceia o gozo que estas podem sofrer discriminações em razão de
de uma série de direitos dos povos, consagrados sua origem, devendo as autoridades identificar e su-
na Constituição Federal e no Estatuto do Índio, tais prir suas necessidades especiais, sempre consultan-
como: a competência da justiça federal, a livre ex- do-as, bem como as suas respectivas comunidades,
pressão em língua materna, o respeito à organização devendo respeitar a organização social de cada povo.
social e aos mecanismos próprios de punição e reso-
lução de conflitos e o regime de semiliberdade em Ainda vale destacar, que a mulher indígena também
órgão indigenista próximo à comunidade. Em relação tem direito ao regime de semiliberdade garantido
às mulheres especificamente, as Regras de Bangkok24 pelo Estatuto do Índio. De toda forma, melhor seria
afirmam que o Estado deve reconhecer que as mu- que as formas de punições e resoluções de conflitos
lheres indígenas podem sofrer discriminações e difi- próprias de cada povo fossem respeitadas e, quem
culdades em razão de sua origem e que devem existir sabe, se fosse questionada a situação de vulnerabi-
políticas e ações do Estado para identificar e suprir lidade em que muitas dessas mulheres estão inse-
suas necessidades específicas. ridas, sobretudo no que tange às violações de seu
direito à terra, não haveria necessidade de levantar
Das Regras de Bangkok, combinada com a interpre- e desvendar esses dados, nem mesmo do presente
tação do artigo 231 da Constituição Federal, deriva a artigo.

Mulas: vítimas do tráfico e da lei

Isabel Penido de Campos Machado25 pécime animal “mula”, opera-se a metáfora em


muitos sentidos.
Na cultura popular brasileira, “mula” é o nome atri-
buído ao animal híbrido, resultante do cruzamento Em primeiro lugar, o processo de recrutamento ao trá-
de um jumento com uma égua, que se caracteriza fico se afirma como uma forma de reificação do sujei-
por ser do sexo feminino26 e por servir como animal to, transformando-o em objeto. A pessoa perde o seu
geralmente usado para o transporte de cargas.27Ao fim em si mesma e passa a ser útil para o transporte de
associarmos a imagem da pessoa que realiza o trans drogas, tornando-se esse o marco para a definição de
porte de droga transfronteiriço à imagem da es- seu valor. Em segundo lugar, é possível verificar que a
mula é um ser no feminino, assim como o(a) correspon-
24 As chamadas “Regras de Bangkok” são as Regras das Na- dente sujeito-metáfora: geralmente são as mulheres os
ções Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas principais alvos do recrutamento para o transporte de
não privativas de liberdade para mulheres infratoras, aprovadas
pela ONU em 2010 e traduzidas para o português em 2016. Dis- drogas. A ironia é que função de transporte não resul-
ponível em: <http://bit.ly/regrasdebangkok>. ta em uma posição de vantagem em face da Organiza-
25 Defensora Pública Federal em São Paulo. Membro do Grupo ção Criminosa. Muito ao contrário, trata-se de posição
de Trabalho Nacional para atendimento a pessoas em situação subalterna, arriscada, desvalorizada e precariamente
de prisão da DPU. Mestre em Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Pós-Graduanda em Direitos Humanos e Acesso à Jus- remunerada, da mesma forma que as posições de tra-
tiça (FGV/EDEPE-SP). balho discriminatoriamente relegadas às mulheres no
26 A espécime masculina é denominada de “Bardoto”. mercado de trabalho lícito.28
27 FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
Segunda edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.1 169.
28 LUZ, Luísa. Consequências do discurso punitivo contra as

12
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Quando se pensa que as mulas são vítimas do tráfico funções essenciais que, salvo lapsos de resistência,
e da lei, não se busca retirar-lhes o poder de decisão legitimam o sistema em vigor e alimentam o dantes-
sobre a prática de eventual conduta delitiva. Muito co sistema penitenciário.
ao contrário. O argumento central é tentar entender
que a realidade que enseja a prática de uma conduta Encarceradas e esquecidas, essas mulheres recebem
(tráfico de drogas) é muito mais complexa que os dis- o rigor do sistema de justiça criminal em relação aos
cursos punitivistas rasteiros observados na “guerra processos de tráfico: dosimetria desproporcional,
às drogas”. Sustenta-se, outrossim, que o sistema de execução em desacordo com os direitos reconheci-
justiça criminal ao proferir a resposta ao delito aca- dos à pessoa em situação de prisão. Distanciamento
ba por repetir a objetificação do sujeito (agora em da família, separação dos filhos e isolamento. Se es-
situação de prisão), perpetuando a sua condição de trangeiras, após a extinção de punibilidade em razão
vulnerabilidade, discriminação e violência. do cumprimento da pena, ainda abre-se a perspec-
tiva do bis in idem: a prisão para a expulsão, que é
a etapa derradeira do descarte da “mula-reificada”
O sistema de justiça criminal ao proferir a res- pelo sistema de justiça criminal.
posta ao delito acaba por repetir a objetifica-
ção do sujeito. Por muito tempo, a jurisprudência dominante ecoa-
va no sentido de que a mula seria parte integrante
da organização criminosa, sendo que, como tal, não
A narrativa mais comum que chega à Defensoria é a faria jus à redução de pena de um sexto a dois terços
de que o recrutamento foi efetuado no país de ori- pela aplicação do §4º do art. 33 da Lei 11.343/2006.
gem, com foco em pessoas que enfrentavam enorme A desconstrução desta ideia, já guerreada há alguns
situação de pobreza e falta de acesso à saúde. Após anos pela Defensoria Pública da União, representa
o aliciamento, passam a exercer a função de trans- um importante marco interpretativo no tratamento
porte das drogas, em geral sem conhecer ou ter o da situação das mulheres acusadas por transporte de
poder de definir a natureza da droga (maconha, co- drogas ao exterior. A proposta é se busque romper
caína, substâncias sintéticas etc) e muito menos da com o tratamento de encarceramento industrial que
quantidade a ser transportada. Há situações em que vem sendo promovido em razão da política criminal
elas sequer sabem do real teor do conteúdo que car- de guerra às drogas. A aplicação da causa de redução
regam consigo (por exemplo, em situações nas quais permite a minoração das penas mais brandas, o que
elas acreditavam estar transportando mercadoria ilí- impacta no regime inicial aplicado e na abertura por
cita oriunda de contrabando, sem entender que se uma política criminal de alternativas penais ao encar-
tratava de drogas). A rota percorrida muitas vezes é ceramento, tal como preconizada na paradigmática
monitorada pelos recrutadores, que criam um siste- Portaria n. 495, de 28 de abril de 2016, do Departa-
ma de coação que impede o arrependimento. Por se mento Penitenciário Nacional.
tratar de crime de mera conduta, o tráfico se consu-
ma pelo mero porte, o que não abre espaço para a No mesmo compasso, o afastamento do caráter he-
desistência voluntária do transporte. Quando apre- diondo do tráfico privilegiado (STF, HC 118533), é
sentam grande insegurança no exercício da missão, a um primeiro passo para permitir que essas pessoas
linguagem corporal (de medo) denuncia a atividade. almejem o benefício do indulto, abreviando-lhes a
Ademais, quando a própria organização as “descar- experiência prisional. Outro ponto crucial, fruto de
ta” (por denúncia anônima), são encaminhadas ao enorme militância de representantes da sociedade
sistema de justiça criminal. E assim se fazem as es- civil, das Defensorias e da Associação dos Juízes para
tatísticas do incrível combate ao tráfico no território a Democracia seria o formal reconhecimento, nos
nacional. As estatísticas justificam a produtividade próximos Decretos Presidenciais, da possibilidade de
das Polícias, do Poder Judiciário, do Ministério Públi- indulto para o tráfico privilegiado (art. 33, §4º da Lei
co, das Defensorias e da advocacia. Exercem todos 11.343/2006). Acima de tudo, esses são caminhos
possíveis para a emancipação da mula em sujeito,
mulheres “mulas” do tráfico internacional de drogas. Instituto
Terra, Trabalho e Cidadania, 2014. Disponível em: <bit.ly/pare- permitindo que esta volte a se ver como um fim em
cerMulas>. si mesma (e nunca um meio de carga).

13
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

Pelo fim completo e imediato da revista vexatória


no Brasil

Raquel da Cruz Lima29 ITTC: Você sabe como funciona a revista das vi-
Jessica Carvalho Morris30 sitas?

Há pouco mais de 2 anos, a Rede de Justiça Criminal Entrevistada: A minha mãe fala que é horrível. A
lançava a campanha pelo Fim da Revista Vexatória31, minha mãe fala que elas fazem de tudo, tem que
dando mais um passo na mobilização que começara abaixar.
pelo menos dez anos antes, com as primeiras ini-
ciativas do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres ITTC: Como você se sente?
Encarceradas no sentido de provocar o Ministério
Público de São Paulo para que instaurasse um in- Entrevistada: Eu me sinto humilhada, um lixo.
quérito civil para investigar o procedimento que Porque minha mãe não precisava disso, nem ela
obrigava crianças e adolescentes a se desnudarem nem meu pai. No entanto, meu irmão mais velho
e terem os corpos inspecionados por ocasião das faz 20 dias que não vem me ver porque [ele] não
visitas a seus pais presos. Desde então, a mobiliza- aguenta, é um impacto para ele muito forte. Ele
ção conjunta da sociedade teve um papel impor- não consegue, minha mãe fala que ele não con-
tante para promover avanços institucionais, como a segue.
sanção de leis estaduais que proíbem a prática em
São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas em que medi-
da avançamos para garantir que na prática milhares
de mulheres não tenham que passar semanalmente “Eu me sinto humilhada, um lixo”.
por essa violência?

Em São Paulo, estado com a maior população prisio- Um dos argumentos de gestores do sistema prisional
nal do país, a proibição à revista foi determinada em e o posicionamento oficial da maioria dos estados da
2014 pela Lei Nº 15.552, mas ainda assim ela é prá- federação em que a revista continua acontecendo é
tica corriqueira nas unidades prisionais do estado. de que a revista é necessária para evitar a entrada
É o que relata uma mulher em situação de prisão de drogas, celulares e objetos perigosos. Há muito
entrevistada pelo ITTC em março deste ano: tempo, porém, a Rede Justiça Criminal constatou
que esse argumento é falacioso, pois conseguimos
demonstrar a partir de pesquisa empírica que,
entre as milhares de visitas que acontecem a
cada final de semana, é absolutamente ínfima a
quantidade de pessoas flagradas portando itens
proibidos ao entrar nas unidades. Em São Paulo, das
aproximadamente 3,5 milhões de revistas vexatórias
realizadas em 2012, em apenas 0,02% dos casos
se apreendeu drogas ou celulares com visitantes.

É preciso atentar, contudo, que a revista vexatória


não pode ser reduzida a uma discussão sobre eficácia
29 Coordenadora do Programa Justiça Sem Muros do Instituto e que a sociedade civil não pode aceitar se limitar a
Terra, Trabalho e Cidadania.
argumentos utilitaristas. Tanto a ONU32 quanto a
30 Diretora Executiva da Conectas Direitos Humanos.
31 Sobre o histórico dessa mobilização, ver CERNEKA, H; DA
CRUZ LIMA, R DRIGO, S. Luta por direitos: a longa mobilização 32 Como manifestou o Relator Especial sobre a Tortura, Sr. Juan
pelo fim da revista vexatória no Brasil. Boletim IBCCRIM, v. 261, Mendes, durante a 25ª sessão ordinária do Conselho de Direitos
p. 10-11, 2014. Disponível em: <http://bit.ly/historicocontraRV> Humanos em 2014.

14
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

OEA33 já apontaram que a imposição do desnudamen- trâmite do Projeto de Lei 7.764/2014 continua emperra-
to e as revistas invasivas podem configurar tortura em do, nas mãos do Deputado João Campos, que há mais
função de seus efeitos. E é aí que está o ponto-chave: de um ano negligencia a apresentação do seu relatório.
sendo absoluta a proibição internacional à tortura, a
proibição da revista vexatória não pode estar sujeita a
juízos de conveniência e casuísmos. A maneira como Em apenas 0,02% dos casos se apreendeu dro-
viola os direitos mais básicos de um ser humano, como gas ou celulares com visitantes.
a dignidade e a integridade física, é tão profunda
que faz com que seja inadmissível tentar justificá-la.
Mais do que nunca o Congresso Nacional se revela
Já passou da hora de proibir em todo território bra- hostil às agendas de direitos humanos, sobretudo no
sileiro essa prática tão odiosa. O consenso em tor- que se refere aos direitos das mulheres e ao reconhe-
no dessa pauta tem unido organizações de direitos cimento da violência de gênero. É por isso que a socie-
humanos, familiares de pessoas presas, defensores dade civil deve seguir intensamente mobilizada e não
públicos, promotores e agentes penitenciários, como arrefecer enquanto houver uma única pessoa privada
ficou demonstrado na audiência publicada realizada de liberdade que tenha seu direito à convivência fami-
na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos liar condicionado ao estupro institucional, que é o que
Deputados em novembro de 2015. Mesmo assim, o a revista vexatória verdadeiramente significa.

O indulto para mulheres: breve história

Kenarik Boujikian34 política criminal através deste instrumento constitu-


cional. Pois bem, o recorte de gênero foi implemen-
O indulto é instituto de patamar constitucional, atri- tado, porém no decreto de 2004 e nos subsequentes,
buído ao Presidente da República, nos termos do ar- excepcionava-se a sua aplicação a quem tivesse sido
tigo 84, da Constituição Federal. É uma forma de in- condenada por tráfico.
dulgência do Estado e sempre esteve presente em
nossa legislação. Rotineiramente é usado no período do Ocorre que a maioria das mulheres está presa por esta
natal, embora possa ser dado em qualquer momento. espécie de delito, com quantidade não significativa de
drogas, sendo que cerca de 70% é mãe e tem a chefia
Trata-se de um importante instrumento de realiza- da família, redundando a sua prisão em consequências
ção direta de política criminal realizado pelo Execu- muito mais danosas ao núcleo familiar e social.
tivo Federal.

Tendo em vista a realidade do encarceramento fe- A vedação de concessão do indulto para o trá-
minino e o perfil das mulheres encarceradas, o Gru- fico, redundou em sua ineficácia para as mu-
po de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” lheres
(GET), rede que tem como objetivo primordial dis-
cutir a realidade da mulher presa, suas condições
de encarceramento, seu acentuado perfil de exclu- A vedação de concessão do indulto para o tráfico, re-
são social, apresentou no Ano da Mulher, em 2004, dundou em sua ineficácia para as mulheres. Vejam os
requerimento de entrada da mulher na agenda da dados: em 2014, em São Paulo, foram indultados 2335
homens e 65 mulheres; em Minas Gerais foram 1211
34 Cofundadora da Associação Juízes para a Democracia e
membro do GET Mulheres Encarceradas, magistrada no TJSP. homens e 54 mulheres; no Rio Grande do Sul, foram
622 homens e 19 mulheres35.
33 Sobre isso, ver a decisão da Comissão Interamericana no
Caso Nº 10.506 de 1996, e da Corte Interamericana, no Caso
Penal Miguel Castro Castro x Peru, de 2006. 35 As informações sobre os anos anteriores podem ser encon-

15
REDE JUSTIÇA CRIMINAL
DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Edição 09 | Setembro de 2016

Por estas razões, em fevereiro de 2016, o GET e mais tuição não estabeleceu e é elementar que não é dado
250 entidades, requereu concessão de indulto e co- ao legislador infraconstitucional restringir quaisquer
mutação de penas para as mulheres, que tivessem co- dos poderes da República.37
metido crime previsto no artigo 33 da Lei de Drogas36.

Para tanto, o pedido passou pelo órgão próprio, o Passou do momento de rever a política de en-
CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal), que carceramento massivo de mulheres
acolheu a demanda e apresentou importante pro-
posta de indulto, com esmero, rigor técnico e trans-
parência, o que aconteceu pela primeira vez, pois até Enfim, o pedido ainda não foi acolhido pela Presidên-
então não se sabia do posicionamento deste impor- cia da República e diante de qualquer vedação válida,
tante órgão de execução criminal. da caótica situação do encarceramento das mulheres
e da ineficácia dos indultos anteriores, pergunta-se:
O CNPCP acolheu a tese que não há proibição para por quê?
sua concessão e recomendou a implementação
apontando o aumento significativo, na última déca- Evidente que a cultura de terror ao tráfico contamina
da, de mulheres encarceradas, de ordem de 570% políticas necessárias para a questão de drogas. Outros
por delito previsto da lei referida. países caminham para outra direção. Passou do mo-
mento de rever a política de encarceramento massivo
No tocante à vedação de indulto para tráfico, previs- de mulheres, especialmente em razão de drogas.
ta na Lei de Crimes Hediondos, registre-se a sua in-
constitucionalidade, pois impõe limite que a Consti- Precisamos ao menos de um passo. Que ve-
nha o indulto para as mulheres.
tradas em: <http://bit.ly/indultoSP>, <http://bit.ly/indultoMG>
e <http://bit.ly/indultoRS>. 37 Confira-se parecer de lavra do festejado Alberto Silva Franco
36 Disponível em: <http://bit.ly/indultomulheres>. em http://bit.ly/parecerindulto.

www.redejusticacriminal.org

16

Anda mungkin juga menyukai