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presente que se prolonga sem fim como o tre a uni-versão da palavra com sentido e o
fluxo incontido de uma torneira mal fechada. atordoamento ruidoso de uma certa di-versão
A palavrosa actualidade televisiva é uma mediático-televisiva.
poderosa máquina de esquecimento. A ac- No primeiro caso coabita-se com o silên-
tualidade, por definição, não tem memória. cio, é um silêncio de fundo do qual irrompe
Ela existe num constante presente que ruido- o sentido; no outro, o ruído de fundo, não
samente passa e vai sempre permanecendo. dando lugar ao silêncio, impede o sentido,
O esquecimento a que o não-presente ime- qualquer sentido, de advir.
diato é votado resulta dessa incontinência A mudança que leva ao aparecimento da
verbal permanente a que o fluxo da actuali- multidão solitária na modernidade foi emble-
dade, num eterno presente, dá lugar. maticamente referido por Lévi-Strauss6 num
Entre a actualidade e o seu esquecimento, texto conhecido onde põe em contraste o si-
a passagem não se nota porque a palavra por lêncio do analista, à escuta do mito indivi-
onde essa passagem se faz não consente nada dual do neurótico7 , em contraste com o si-
para além do seu próprio imediatismo. Uma lêncio do selvagem a quem o xamane recita
palavra imediata é por isso mesmo votada ao o mito colectivo.
esquecimento. Poder-se-á assim dizer que é Dir-se-ia que nesse processo de individu-
a palavra, no seu imediatismo, a causa do es- ação, de que também fala Foucault8 , a pas-
quecimento. sagem do mito colectivo ao mito individual,
Para que a palavra fosse mediação, no- é o de um progressivo alastramento da taga-
meadamente em relação a um passado que relice. O narcisismo é tudo menos silenci-
exista, teria de haver lugar para o silêncio oso. Faz até, habitualmente, muito barulho.
distanciador, isto é a possibilidade de uma Quanto mais se avança na procura da ver-
palavra que não aderisse tão imediatamente dade íntima, da verdade no íntimo, mais se
ao ensurdecedor ruído da actualidade. está a romper o silêncio. A cultura do narci-
Como na TV, a palavra é tão aderente ao sismo9 é, tendencialmente, uma cultura bem
acontecimento e à sua imagem que lhe fica pouco silenciosa, e muito dada à tagarelice
presa como um ruído de fundo. O ruído (fofoca, como dizem os brasileiros). Por isso
da di-versão entra em contraste com a uni- se dá tão bem com os ditos meios de comu-
versão da memória que se opera a partir do nicação de massa.
silêncio e na distância. Lembremos, no entanto, que o silêncio,
A actualidade nunca acaba nem se cala, em psicanálise, é também um indício do não
não dá lugar ao silêncio que é onde a me- esquecimento, daquilo que resiste ao com-
mória distanciadamente se constrói. 6
C. Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale. Pa-
A imagem televisiva sustenta-se no ruído, ris, Plon, 1958. P. 205 sqq.
mais precisamente no ruído de fundo, que 7
J.Lacan, O mito individual do neurótico. Lisboa,
parece procurar combater o temor do si- Assirio & Alvim, 1980.
8
lêncio gerador de angústia. Na moderni- M.Foucault, A vontade de saber. Lisboa, Antó-
nio Ramos, 1977.
dade a multidão será solitária mas não é por 9
C. Lash, The Culture of Narcissism. New York,
isso menos ruidosa. No combate à angús- Warner Books, 1979.
tia da multidão solitária, a escolha está en-
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pleto apagamento. É porque de algum modo um recente crítico contrapunha com alguma
resiste e subsiste na memória que isso se cala ironia: “Whereoff we cannot speak, thereoff
e silencia. Aqui o silêncio (o que se silencia) we will go on guessing”12 (acerca daquilo de
vai de par com a memória, a persistência na que se não pode falar, continuar-se-á a adivi-
memória. Enquanto resiste, existe. Existe nhar)
pelo silêncio. Mas o silêncio também pode ser perfor-
Porque o silêncio não o é de nada. O si- mativo: "fez-se um silêncio". Este "fa-
lêncio é sempre de algo que se silencia, que zer"denota até uma intencionalidade na ac-
se guarda em segredo. Exemplos: os cripto- ção. O silêncio pode até ser da ordem da
judeus de Belmonte ou os cripto-cristãos no agressão como quando se decide "não dirigir
Japão. a palavra"a alguém. Este silêncio é um acto
A matéria do silêncio existe, por vezes in- de gravidade na medida em que retira ao ou-
siste, e sempre espera o momento de se dizer, tro o reconhecimento, base de toda a comu-
com pertinência, na plenitude do sentido em nicação e de toda a auto-sustentação identi-
que pode ser escutada. tária.
O silêncio não é ausência de sentido. Há Em contrapartida, dirigir a palavra a al-
silêncios que falam e há até silêncios que são guém constitui um acto de reconhecimento
eloquentes, isto é que dizem mais ou me- animado de alguma intencionalidade: al-
lhor do que palavras. O silêncio, em todo guém se coloca, ou é por nós colocado, na
o caso - e particularmente aquele que é dito direcção da nossa palavra.
ser eloquente - é um meio de comunicação se A palavra seria da ordem daquilo que se
pensarmos, com Bateson e a escola de Palo recebe, como dom até, a palavra dá-se e
Alto10 , não ser possível deixar de comuni- toma-se, também se conquista e não neces-
car. Há mutismos que são grito. A dor, por sariamente contra o silêncio, mas contra o
exemplo, se se diz normalmente pelo grito, ruído e a tagarelice que não é mais do que
é ainda mais eloquente quando se exprime um ruído de fundo que tende a dissolver
pelo silêncio. qualquer fala racionalmente articulada e com
Sobre os limites da palavra confinando sentido.
com o silêncio também Wittgenstein Já Platão (no Górgias), quando quer situar
meditou na famosa e intrigante proposição a retórica entre as artes começa por colocá-la
final do Tractatus11 onde afirma "Acerca da- entre aquelas de quem a acção é um atributo
quilo de que se não pode falar, tem que se para em seguida distinguir aquelas que ac-
ficar em silêncio", o que pode ser entendida tuam pela palavra, como a retórica, das que
talvez não tanto como uma impotência do fa- actuam em silêncio como a pintura ou a es-
lar mas como o reconhecimento de que ha- cultura. Num caso a acção cumpre-se pelo
verá alguns limites ao dizer para além dos silêncio, no outro ela efectua-se na e pela pa-
quais o silêncio estende o seu manto. Ao que lavra.
10
Falando também da pintura, G. Steiner
P. Watzlawick et alia, Pragmatics of Human
communication. New York, Norton, 1967. cita Van Gogh como tendo declarado que o
11
L. Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico. Lis- 12
P. Hensher, Guardian Weekley
boa, F. Calouste Gulbenkian, 1987
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pintor pinta não o que vê mas o que sente. do silêncio que, como na utopia negativa de
Ao dizê-lo está a justificar uma intuição se- Clastres15 (negativa porque coloca a socie-
gundo a qual “o que é visto pode ser trans- dade sem Estado num passado já cumprido
posto em palavras; o que é sentido pode e não na comunidade por vir), imagina uma
ocorrer a um nível anterior à linguagem ou palavra que já não existe em lugar nenhum,
fora dela”.13 Isso é uma boa ilustração de que se perdeu, e que era uma palavra com va-
como alguém se pode retirar da palavra para lor como quando se dizia de uma palavra que
um silêncio eloquente. ela era de honra. Essa era uma palavra que
Mas o que é também interessante no texto se podia dar, receber e guardar. Em silêncio
de Steiner, é a ligação que ele faz entre a e não a voar, levada pela ventania espasmó-
palavra e a visão. É como se o que se vê dica dos media.
só se explicitasse inteiramente pela palavra Escreve G. Steiner: “A menos que consi-
e como se a imagem pudesse exprimir até lá gamos restaurar alguma medida de claridade
onde a palavra não alcança e só o silêncio e rigor de sentido às palavras nos nossos me-
impera. dia, leis e acção política, as nossas vidas es-
Resta saber onde situar a música e aquilo tarão cada vez mais perto do caos. Virá então
que se ouve. É claro que a palavra também uma nova era de obscuridade”16 .
se ouve e o canto conjuga a palavra com a
música. Mas da música em si, o que é que
se pode dizer? Em todo o caso ela também
depende do silêncio para ser ouvida.
Quanto à escrita, ela é uma arte que, tal
como a pintura no dizer de Platão, se exerce
em silêncio. Entre nós, contemporanea-
mente, a escrita é para ser lida em silêncio
(escutada em silêncio). Sabemos que nem
sempre assim foi. Provavelmente para Platão
essa ideia seria absurda mas para ele e para
os seus contemporâneos a fala com sentido
não era tão perturbada pelo ruído ambiente.
É o aumento desse ruído, a ponto de se tor-
nar hoje literalmente ensurdecedor, que nos
leva a ter de ler em silêncio. Esse tipo de lei-
tura condicionará a escrita que se faz para o
silêncio14 .
De qualquer modo, pensar no regresso a 15
P. Clastres, A sociedade contra o Estado. Porto,
uma relação anterior com a palavra e o si- Afrontamento, 1979.
16
lêncio é certamente uma utopia, uma utopia “Unless we can restore to the words in our news-
papers, laws, and political acts some mesure and strin-
13
Id., ibidm, p. 41 gensy of meaning, our lives will draw yet nearer to
14
F. Nietzcshe, Da retórica. Lisboa, Vega, 1997. chaos. There will then come to pass a new dark age”,
in “The retreat from the word” in op.cit.
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