Estudos em homenagem ao
Doutor António Castanheira Neves
Teoria do Direito
Direito interrogado hoje —
o Jurisprudencialismo:
uma resposta possível?
Estudos em homenagem ao
Doutor António Castanheira Neves
Salvador
2012
Conselho Editorial:
Fredie Didier Júnior, Cristiano Chaves de Farias,
Gamil Föppel El Hireche, Nestor Távora,
Valton Pessoa, Rodolfo Pamplona Filho,
Dirley da Cunha Júnior, Maria Auxiliadora Minahim.
PREFÁCIO.....................................................................................................................7
CAPÍTULO 1
O “JURISPRUDENCIALISMO” — PROPOSTA DE UMA RECONSTITUI-
ÇÃO CRÍTICA DO SENTIDO DO DIREITO ...........................................................9
António Castanheira Neves, Universidade de Coimbra
CAPÍTULO II
PRAXIS, PROBLEMA, NOMOS (UM OLHAR OBLÍQUO SOBRE A RES-
PECTIVA INTERSECÇÃO).......................................................................................81
Fernando José Bronze, Universidade de Coimbra
CAPÍTULO III
JURISPRUDENCIALISMO: UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S)
DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA?.............................................................109
José Manuel Aroso Linhares, Universidade de Coimbra
CAPÍTULO IV
JUSTIÇA TRANSCENDENTE E AUTOTRANSCENDENTALIDADE AXIO-
LÓGICA: UM CONTRAPONTO ENTRE JACK BALKIN E CASTANHEI-
RA NEVES..................................................................................................................175
Ana Margarida Simões Gaudêncio, Universidade de Coimbra
CAPÍTULO V
A IMAGINAÇÃO LITERÁRIA E O DIREITO: A (IM)POSSIBILIDADE DE
UM MODELO JURÍDICO-DECISÓRIO NOS ARGUMENTOS DE A. CAS-
TANHEIRA NEVES E DE MARTHA C. NUSSBAUM ......................................... 211
Antonio Sá da Silva, Universidade Federal da Bahia
CAPÍTULO VI
SOBRE O JURISPRUDENCIALISMO: O OCIDENTE COMO CIVILIZA-
ÇÃO FUNDADA NO DIREITO E A FILOSOFIA ................................................. 231
Nuno M. M. Santos Coelho, Universidade de São Paulo
1. SAUDAÇÃO
Aqui vimos alguns universitários portugueses, vimos de Coimbra — essa
memória de muitos também académicos brasileiros — a Vila Rica, à cidade Im-
perial de Ouro Preto, à republicana simplesmente Ouro Preto, não à procura de
ouro (do qual a vossa Cecília Meireles disse: “De seu calmo esconderijo,/ o ouro
vem, dócil e ingénuo,/ torna-se pó, folha, barra,/ prestígio, poder, engenho…/ É
tão claro e turva tudo:/ honra, amor e pensamento”), não à procura de ouro, mas
justamente com o objectivo de uma troca de ideias que permita algum pensa-
mento — e a corresponder a um fraterno e penhorante convite vosso, Colegas e
Amigos brasileiros, em que não posso deixar de distinguir e agradecer o parti-
cular empenho do Doutor Nuno Morgadinho Santos Coelho. Mas sem esquecer
também, neste privilegiado ambiente em que estamos, aquela outra face de Ouro
Preto, a que nos comove como expressão do nosso encontro de outrora. Dela
disse — e que bem! — Vinícios de Morais através de versos também sempre
invocados: “Bom parar a cada ladeira, para adorar cada pequeno detalhe, uma
grade, um ferrolho, um postigo, um corrimão, um lance de escada, um velho
telhado, uma patina louca, num muro branco”.
E dito isto — numa saudação amiga e muito grata —, passemos ao que afinal
tenho para vos dizer. Com uma outra observação ainda: sentirei alegria se isso
que vos quero dizer o disser de um modo simples e claro e para ouvirdes alguma
coisa que valha a pena ouvir. Só que, quanto este último ponto, também uma
advertência mais — não o tomeis como pretensioso ou ingénuo, pois aí as mi-
nhas dúvidas são sinceramente atrozes. Seja como for, atrevo uma reflexão sobre
o Direito, sobre o seu problema e o seu eventual recuperável sentido, na nossa
actual encruzilhada civilizacionalmente cultural. Reflexão que, todavia, não será
mais do que uma recapitulação do que sobre isso tenho tentado pensar, afinal
numa identidade em que se não desiste de persistir. O título desta minha fala já o
denuncia. E, sendo assim, tereis de me perdoar a repetição de mim mesmo.
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3. MOLTO ALLEGRO
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3) Bem se sabe que este mais não foi do que um ficcionado tropos argumen-
tativo num als ob legitimante e para preservar o prius da liberdade no encontro
social. Neste encontro nada seria admissível que a liberdade não postulasse e
validasse, e para a garantir — a implicar que o vínculo social, o direito se quiser-
mos, só poderia surgir convencionalmente, por livres acordos autofundantes, e
também assim tanto fora da história como sem pressuposições intencionalmente
práticas que lhe fossem pré-determinantes — não tinha decerto esta significação
e relevância pressuponente a invocação apenas pela retórica política do “estado
de natureza”. Só que legitimante argumentação em que se reconhecerão dois
deficits — de validade e de possibilidade. O primeiro revela-se, paradoxalmente,
naquilo que a invocação contratualista oculta. Pois para a sua força persuasiva
mobiliza sempre, seja ou não explicitamente, pressupostos normativos pratica-
mente fundamentantes e discursivamente assimilados pela intencionalidade da
argumentação, e que tão só lhe permitem ser retoricamente convincente. Com
a excepção porventura de Espinosa — que no seu Tratado Teológico-político,
Cap.259, a justificar o pacto fundador do Estado não via senão a crassa seguran-
ça e a astúcia da utilidade —, foi assim inclusive em Hobbes, que, distinguindo
ius e lex, direito e lei, não deixou de identificar aquele com o ius naturale, as de-
zanove “leis fundamentais da natureza”, as quais, posto que só de índole moral,
não deixavam de ser o padrão regulativo das “leis” do Estado e que este devia
ter presente, já que “a lei da natureza e a lei civil se contêm uma a outra e são de
igual extensão”, e “a lei da natureza é uma parte da lei civil em todos os Estados
do mundo” (Leviatan, caps. XIV, XV, XXVI); claramente também em Locke,
para quem o “estado de natureza” era já pleno de referências ético-práticas e ex-
pressamente sublinhava que “as obrigações da lei natural não cessam na socieda-
de...” e que “a lei natural permanece como regra eterna de todos os homens, sem
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tardou que a lei assumisse outros tipos prescritivos bem diferentes do que ma-
nifestariam as características atrás referidas da lei como simplesmente “norma
jurídica” — assim as “leis-plano”, as “leis-providência”, etc. Quer dizer, as leis,
como a legislação, ficaram disponíveis para todos os tipos prescritivos que aque-
la funcionalidade exigisse. E isto sem esquecer ainda os fenómenos regulatórios
em que a lei é substituída e ultrapassada pelo que se designa “a concreta legislati-
vidade da organização”(Zagrebelsky), ou seja a constituição autónoma de regras
pelas próprias organizações públicas em ordem à sua eficiência. E quanto ao di-
reito em geral as consequências não seriam menos claras: tornado expediente de
uma teleologia que lhe é heterónoma, vê-se submetido a um funcionalismo que
lhe subtrai valores e fins próprios e lhe impõe uma índole tão só programático-
-regulamentar. Não intencionando as leis fundamentos juridicamente específicos
e alheias mesmo à preocupação com juízos normativos autónomos, os resultados
não podiam ser senão os que verificaram, os de uma ilimitada instrumentalização
em que o direito perde o seu sentido próprio e se avilta a consciência jurídica, na
sua necessária distância de normativa e crítica validade.
O que, dito assim muito em geral, só seria o começo do que viria depois.
Já que deste modo se abriu a porta, pelos seus pressupostos e nas suas consequ-
ências, aos funcionalismos de todos os tipos, em que a materialização política
e político-social do direito seria acabada. Falamos desde logo do funcionalismo
político e do funcionalismo social em sentido estrito, e neste já do tecnológico,
já do económico, com a perspectiva muito particular da Law and Economics. O
explicitante desenvolvimento, no essencial, de todos estes funcionalismos fize-
mo-lo, e por mais de uma vez, noutras circunstâncias, pelo que aqui só enuncia-
remos a conclusão a que então pudemos chegar. E que foi esta: submetido a uma
radical intrumentalização, o que vemos é ser o direito afinal puramente política
ou uma jurídico-política no funcionalismo político, simplesmente uma jurídico-
tecnologia sociológica ou jurídico-administração social no funcionalismo social
tecnológico, não mais do que uma jurídico-economia no fincionalismo social
económico, etc. O direito dissolve-se nas teleologias e compromissos heteróno-
mos que assimila e a que se funcionaliza — quando não se abandona mesmo ao
mundo autorregulado, autocontratualizado a arbitral, dos negócios “sem leis nem
juízes”, o mundo do macrofenómeno da globalização económico-tecnológica. O
que no limite será justamente a base para as alternativas ao direito, as alternati-
vas dele superadoras, que iremos reconhecer.
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4. ANDANTE
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uma acumulação sem fim e obstrui a clareza do horizonte — que tanto é dizer, o
que de fundamental importa pensar.
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e do mesmo modo compreendemos como a resposta que eles esperam nos con-
voca à nossa responsabilidade humano-culturalmente constituens.
O problema metafísico deixemo-lo de lado, já que o nosso é antes de mais
o problema prático. Sem deixar todavia de ter presente que o problema meta-
físico é, evidentemente, o último horizonte de todos os outros problemas, mas
no reconhecimento também de que com isso não só não fica anulada ou sequer
reduzida a especificidade desses outros problemas diferentes como não se obterá
a solução destes na directa e acrítica consideração daquele — o que nem sempre
foi e continuamos a não ver respeitado. Uma directa referência a uma perspec-
tiva metafísica enquanto fundamento do problema prático era decerto o que no
fundo caracterizava o pensamento do “direito natural”, quer o clássico, quer o
moderno. Só que, o direito natural clássico era referido, como todos o sabemos,
a uma concepção onto-teleológica de base aristotélica e no pressuposto de uma
compreensão do ser como ordem imutável e eterna (assim fundamentalmente
no-lo diz Aristóteles, na Metafísica, I, Livro E), afinal só uma concepção e um
pressuposto culturalmente gregos e assim decerto não necessários, e antes já tão
duvidosa uma como inaceitável o outro. E o direito natural moderno implicava
uma onto-antropológica concepção que o homem moderno de si próprio se pos-
tulava e, portanto, não era menos uma projecção cultural culturalmente condicio-
nada. Depois, e a atingir ambos os jusnaturalismos, terá de considerar-se, igual-
mente bem se sabe, a “descoberta” da “subjectividade” — que se viria a pensar
crítica ou transcendental — e desse modo o reconhecimento do homem e da sua
poiésis, digamo-lo assim, como parte também do problema e com isso a impli-
cação da historicidade constitutiva (que não significa mero historicismo), com a
consequente mediação histórico-cultural humana que viria a pôr definitivamente
em causa as indisponíveis necessidades metafísicas, particularmente no universo
prático. O problema prático e a sua solução revelaram-se da responsabilidade e
criação culturalmente humanas. Pelo que as “verdades” ditas “evidentes” e como
tais proclamadas, por exemplo, na Declaração da Independência dos Estados
Unidos da América não eram, efectivamente, senão isso: criações histórico-cul-
turais de que, pela sua força no entendimento epocal da prática polItico-social,
se havia deixado de duvidar. Sem que esta conclusão tenha de significar — como
considerava Leo Strauss e muitos outros com ele — a queda no “relativismo sem
reservas” do “historicismo” e que “rejeitar o direito natural é o mesmo que dizer
que todo o direito é positivo, ou seja que o direito é determinado exclusivamente
pelos legisladores e os tribunais dos diferentes países”, quando “é perfeitamente
sensato e por vezes mesmo necessário falar de leis ou de decisões injustas” e
assim reconhecer que “há um padrão do justo e do injusto que é independen-
te do direito positivo e lhe é superior”. Pois, como se verá, a referência a um
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na sua índole e nas suas implicações, com esse seu sentido, com esse seu sentido
problemático que o diferencia como problema prático. Exigência esta que, não
obstante a sua evidência, nem sempre tem sido respeitada. E daí as atitudes pro-
blematicamente diferenciáveis que criticamente termos de considerar.
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e na acção. E então, eliminar ou, pelo menos como projecto, tentar superar da-
quele modo a espiritualidade, a autonomia e a responsabilidade no universo hu-
mano, no prático universo humano, é amputá-lo de uma dimensão essencial da
sua humanidade. O problema prático pode ser cientificamente incompreendido
ou ignorado, mas não é reduzível nem resolúvel pela ciência — parafraseando
Habermas, dir-se-á que o acréscimo do poder de manipular as coisas no mundo
da prática humana não se verifica senão com o acréscimo proporcional do irra-
cional no domínio mesmo dessa prática Pelo deslumbramento da ciência, obra
cultural também sua, não pode o homem no encontro existencial de uns com os
outros anular-se a si próprio.
6) Em segundo lugar e numa exigência crítica que se poderá ver menos clara,
já que somos agora remetidos, e de uma forma radical, para o global univer-
so prático, consideraremos a proclamação da solução para além do problema,
como será a solução metaproblemática procurada no absoluto ético. Pois se é
reconhecido desde Aristóteles que a praxis convoca a phronêsis, e que esta “não
releva da ciência (epistéme), nem da arte (thécné)” e antes traduz “a disposi-
ção prática, de acordo com um sentido orientador e verdadeiro, com vista ao
que é bem e mal para o homem” (VI,5,1140b,4) (utilizamos a edição bilingue
da Ética a Nicómaco, na tradução e notas de Maria Araujo y Julian Marias)
ou “a disposição racional verdadeira e prática a respeito do que é bom para o
homem” (VI,5,1140b,20), poderia pensar-se que a praxis é sem mais o domí-
nio indiferenciado da ética e que, correlativamente, a ética será globalmente a
solução da praxis, e todavia haveremos de reconhecer que a ética, considerada
não como padrão universal e indiferenciado do comportamento (êthos), mas no
seu diferenciado absoluto intencional, não refere o problema prático, tal como
o enunciámos na sua especificidade, e não nos pode por isso oferecer a sua so-
lução. O absoluto ético, compreendê-lo-emos em breves palavras, situa-se além
(ou, se quisermos, aquém) do problema prático, na sua especificidade sempre
considerado, e nesse sentido a diremos uma solução metaproblemática. Há, pois,
aqui um equívoco a desfazer. O equívoco que um leitura imediata também de
Aristóteles, atrevo-me a dizê-lo, poderá suscitar: na Ética a Nicómaco, e por-
tanto na reflexão em que a ética é o tema geral, se vemos o seu Liv. VI dedicado
às “virtudes intelectuais” também em geral e que se considera a phronêsis, já é
especificamente no anterior Liv.V que se pensa “a justiça”, dizendo-se-nos aí que
“chamamos justo ao que é susceptível de criar ou de salvaguardar, na totalida-
de e nas suas partes, a felicidade da comunidade política”(V,1,1129b,15) e que,
portanto, “a justiça é uma virtude perfeita, não absolutamente, mas em relação
a outro” (V,1,1129b,25), “porque quem a possui a usa para com outro e não
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reguladas e codificadas”. Relação imediata entre os dois, uma vez que “o direito
pretende exercer-se em nome da justiça e (...) a justiça exige instalar-se num di-
reito”, não havendo, portanto, entre justiça e direito uma “verdadeira distinção”,
“um oposição cujo funcionamento seja logicamente regulado e controlado”, e
antes uma exigência de “desconstrução” do direito pela justiça (“a desconstrução
é a justiça”, também se nos diz aforisticamente). E então, e porque “a justiça
como experiência da alteridade absoluta” já por isso “excede o cálculo, as regras,
os programas, as antecipações, etc.” as suas relações teriam de reconhecer-se
afinal aporéticas. Isto porque, se “o direito não é a justiça” — “o direito é o
elemento do cálculo, e é justo que haja direito”, enquanto “a justiça é incalculá-
vel” — esta “exige que se calcule com o incalculável”, o que implicaria, assim
se conclui, “três aporias”. A aporia, vivida num angustiante “momento ou tempo
de suspensão” (de “l’épokhé de la règle”) da decisão na aplicação da regra de
direito e assim de uma generalidade calculável, quando a justiça exigiria nesse
mesmo momento a consideração da absoluta singularidade do outro em causa. A
aporia da tensão da indecibilidade (la hantise de l’indécidable), já que “indeci-
dível é a experiência de quem, estranho à ordem do cálculo e da regra, deve no
entanto (...) propor-se à decisão impossível tendo em conta o direito e a regra”
relativamente “ao outro como singularidade sempre outro”. A aporia da urgên-
cia do decidir contra a exigência sem limites e nunca plenamente cumprida do
saber ou da verdade (l’urgence qui barre l’horizon du savoir). Em tudo o que
temos, verdadeiramente ou se bem virmos as coisas sob o manto envolvente das
subtilezas do discurso, também três posições já hoje insustentáveis. Em primei-
ro lugar, confunde-se o amor, no seu absoluto ético ao outro, com a justiça, na
sua relatividade comunitária com o outro, e se o amor se traduz no acolhimento
absoluto e incondicional do outro em si mesmo, na sua infinita e incomparável
singularidade pessoal, já a justiça implica, como vimos, a mediação da “terciali-
dade” e exige a comparação segundo um padrão comum num espaço de partilha
— por isso o amor está para além da justiça e remete em último termo ao campo
da santidade, vimo-lo também e reconhece-o afinal igualmente Derrida (op.cit.,
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tico). E se Lévinas começou por não estar isento dessa confusão — aliás, é esse
período do seu pensamento que vemos invocado por Derrida (cfr. ibid. 48,s.) —,
pudemos no entanto reconhecer antes que a justiça passou posteriormente a ser
por ele remetida para o problema prático, com a sua tercialidade institucional e
a sua relatividade de comparação, tal como igualmente em Aristóteles e em S.
Tomás a justiça se autonomizou do puramente ético. Em segundo lugar, conce-
be-se o direito no modo vulgar do normativismo prescritivista, que foi próprio
do positivismo dominante, e só essa concepção, já hoje superável e na verdade
superada, como sabemos e melhor ainda iremos ver, é pressuposto de tudo o que
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dele se diz nas suas relações com a justiça — um direito decaído e humanamente
criticável que a justiça, descontrutivamente, é chamada a superar —; em terceiro
lugar, e correlativamente ao ponto anterior, pensa-se a aplicação-decisão jurídica
nos termos também próprios do normativismo sistemático-dedutivista, na sua
lógica de generalidade, e que por isso seria alheia às exigências do problemático
concreto, à singularidade concretamente a reconhecer, manifestando-se assim as
aporias referidas, o que todavia logo perde relevo considerada que seja, como
hoje se haverá de considerar, que a juridicidade exige e actua mediante uma rea-
lização (não mera aplicação lógico-dedutiva) decisório-judicativa, mediante um
juízo problematicamente intencionado e normativamente constitutivo em que o
concreto problemático, e justamente no seu novum e irredutível problemático, se
intenciona e implica uma específica dialéctica normativo-judicativa pela qual as
exigências da “justiça” concreta (a justiça, não o amor infinito) são satisfeitas,
reconhecendo-se assim que as aludidas aporias mais não fazem afinal, embora
de um modo dramaticamente elíptico e insatisfatório, do que convocar essa dia-
léctica. Por último, o próprio dualismo justiça-direito tem uma história, que se
deverá conhecer no que teve de culturalmente contingente, dualismo que, posto
se tenha tornado um lugar comum, se verá não ser necessário e antes devemos
reconhecer também superável, compreendido que seja o direito no seu sentido
autêntico. Quer dizer, e numa palavra, a conclusão que tínhamos enunciado, e
a que fizemos o contraponto desta deriva criticada, pode ser retomada: o ético
absoluto não cumpre ao problema prático, na sua inconfundível especificidade, e
daí não poder oferecer-lhe a solução que a ele lhe seja própria (Também sobre a
relação entre os pensamentos referidos e o direito, v., de leitura imprescindível,
as exaustivas e aprofundadas análises e reflexões de J.M. Aroso Linhares, “O
dito do direito e o dizer da justiça, Diálogos com Levinas e Derrida”. In: Entre
discursos e culturas jurídicas, Studia 89, 181, ss.; e “Autotranscenscentalidade,
desconstrução e responsabilidade infinita”, Studia 90 — a concluir igualmente,
embora de outro modo, pelas fortes limitações desses pensamentos para a consi-
deração última do direito, na sua problemática autonomia).
Conclusão que se manterá, em fundamental analogia, ainda perante a pro-
posta extrema do que poderemos considerar um apocalipse prático — visando
um novo céu e uma nova terra... — do absoluto utópico referido pela que, de-
certo por paráfrase, se diz “Jurisprudência da libertação” (Befreiungsjurispru-
denz) — v. MASTRONARDI, Thomas Félix. “Befreigunsjurisprudenz”, ARSP,
Beiheft n. 62, 53, ss.; referindo MULLER, Jorg Paul. Demokratische Gerechti-
gkheit, 1979; e UNGER, R. Mangabeira. Kowledge and Politics,1975; Id., Pas-
sion, 1985; Id., False Necessity,1987. Aí se convocam os homens ao amor e
à fé nas relações sociais, projectando “amor, esperança e fé” na sociedade: “a
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5. MENUETTO-ALLEGRETTO
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plano estritamente jurídico não fizesse dessas teleologias externas o seu projecto
imediatamente intencional, sem as excluir embora nos seus conteúdos, mas isto
por determinação secundária em que funcionalmente apenas as assimilaria. Fa-
lamos do neolegalismo (democrático) e do funcionalismo jurídico sistémico, por
um lado, e dos procedimentalismos liberal e democrático-discursivo, por outro
lado. Mais vincadas, no entanto, e em que se depositam as mais fortes intenções
de recuperação actual da juridicidade, são duas propostas de marcada índole
material, duas bem diferentes propostas materiais. Uma, a pôr a complacência,
se não a exclusividade, nos “direitos do homem”, outra, indo mais além num
projecto global que absorve em si também aquela primeira, afirma-se o neocons-
titucionalsmo e a identificar, num compromisso que se pensa decisivo, se não a
evidente praxis do nosso tempo, decerto a juridicidade com a constitucionalida-
de. E todavia em qualquer destas propostas não encontramos a solução que nos
poupe a atrevermos a nossa. Sumárias considerações críticas serão suficientes
para o compreendermos.
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termos pensado se revela afinal e paradoxalmente uma entidade sem direito. Pois
se o direito é inconcebível sem a sua referente polarização nas pessoas, enquanto
sujeitos de direito, sujeitos de direitos e sujeitos do próprio direito — o direito
só tem sentido pelas pessoas e para as pessoas —, o que a radical socialização da
juridicidade implica em último termo é não serem afinal as pessoas os sujeitos e
titulares do sistema jurídico, mas ao contrário o sistema jurídico na sua funcional
autonomia social o verdadeiro protagonista da juridicidade, vendo-se as pessoas
não só exteriores, mundo também elas próprias, para o sistema e assim apenas
funcionalmente assimiladas pelo sistema no programa dos seus “papeis”. Pelo
segundo tópico, analogamente o direito seria sem validade (normativa), valeria
sem validade, ou mais claramente teria vigência sem validade. Com efeito, a sua
radical positivação, no significado convocado, se afirma uma plena autofunda-
mentação do direito na sua própria decisória positiva manifestação, mais não
significará isso, e como aliás expressamente se reconhece no âmbito do pensa-
mento sistémico, do que uma paradoxo e uma tautologia em que se manifesta na
verdade a ausência de fundamento — o direito seria pura e simplesmente, como
pura e simplesmente são os factos, que o mesmo é dizer que se autoanulava no
seu sentido de direito. O terceiro tópico tem uma implicação não menos clara.
Um sistema jurídico como estrita heteronomia social de que se exclui a protago-
nização da autonomia responsabilizada das pessoas e em que se exprimiria uma
juridicidade de radical e paradoxal positivação e assim alheio a uma qualquer
referência de normativa validade, um sistema jurídico que se fecha na circu-
laridade da sua autorreferência e que no programa de expectativas sociais que
generaliza não é senão destinado a afirmar-se e subsistir na clausura dessa apenas
funcionalidade, o que verdadeiramente nos oferece é o absurdo de um direito
sem normatividade vinculante, verdadeiramente, pois, anormativo. No quarto
tópico, na radical simetria que afirma, temos em toda a sua evidência confirmada
essa mesma anormatividade, já que a normatividade exclui a mera horizontalida-
de e impõe sempre uma hierarquização — a autorreferência circular é um motu
contínuo subsistente apenas no seu próprio movimento. E pela conjugação de
todos este tópicos ou na globalidade da sua intencionalidade, a conclusão que se
impõe não pode ser outra senão esta: o direito seria verdadeiramente sem sentido
e “sem porquê”, com aquele sem-sentido e sem porquê que corresponde aos fac-
tos evolutivos, na sua apenas emergência como mero resultado da evolução — e
como resultado e facto socialmente evolutivo é, na verdade, entendida a mani-
festação do sistema jurídico no funcionalismo jurídico sistémico.
Nada, pois, é necessário acrescentar para podermos concluir que a recu-
peração crítica do sentido do direito não a temos nestas tentativas de recupe-
ração de autonomia formal da juridicidade, nem na postulada autonomia do
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6.1. O jurisprudencialismo
Há, pois, que prosseguir, passando ao quarto e último andamento. Que se
ocupará directa e especificamente do enunciado esquemático da nossa proposta
jurisprudencialista — começando por uma referência tópica, e em brevíssimas
palavras, aos seus pressupostos já antes anunciados.
6.1.1. Os pressupostos
a) O pressuposto filosófico-antropológico. O problema prático e a sua solu-
ção procurada apenas serão validamente convocáveis com base no entendimento
específico do homem que implicam e a que simultaneamente se dirigem. E o
que nesse sentido imediatamente diremos é que não estamos perante um homo
institucionalis, que teríamos de referir a uma ordem pressuposta e só nela seria
compreendido, como foi o caso do homem estritamente comunitário do pensa-
mento prático pré-moderno. Também não, em contraponto, perante o homo in-
dividualis, próprio agora do individualismo moderno e concebido como mónada
social no quadro prático de uma mera racionalização convencional de liberdades
e interesses, garantidos umas e outros como “direitos”. Ou sequer mesmo peran-
te a entidade, digamos com outra consequência, de um homo subjectus, o sujeito
como causa sui das determinações e titular auto-nomos de racionalidade uni-
versal que era postulado do antropo-racionalismo também moderno. (Para uma
atenta consideração filosófica da distinção ente “indivíduo” e “sujeito”, e aquele
especialmente nos termos da filosofia, e metafísica, modernos, v. Alain Renaut,
L’Ère de l’individu, 1989). E sim perante o homo pessoalis, o homem-pessoa
que nem se reduz à comunidade, nem se assume num solipsismo prático-social,
nem se polariza como constitutivo racional do sentido, mas se compreende como
humano centro de imputação ética e de dignidade axiológica na interlocutora
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não o único), não se visa qualquer desses pontos, mas o conjunto das condições
humano-culturais, básicas condições de possibilidade, por um lado, e das dimen-
sões axiológico-normativas constitutivas, por outro lado, conjunto de condições
e dimensões que, na sua globalidade, também constitutivamente fazem surgir o
direito como uma específica e diferenciada, e nesses termos também autónoma,
dimensão humanamente cultural e prática. Pelo que aí, ou na resposta a essa per-
gunta, igualmente temos o que importa para atingirmos o seu sentido autêntico e
nesse sentido o seu relevo humano capital.
Começando, para tanto, por afastar modos de o perspectivar que apenas obs-
truem o acesso a esse seu sentido. Referimos a consideração do direito como
objecto, como discurso e como função, desde logo — pois que havemos de o re-
conhecer como validade, uma problemática e regulativo-normativamente cons-
tituenda e realizanda validade. A consideração do direito como objecto traduz
uma particular intenção epistemológica do pensamento jurídico consequente,
conjugadamente, ao positivismo e ao cientismo do séc. XIX, proposto a con-
verter o problema prático do direito num problema teórico desse pensamento,
conversão essa só acalentável ao intencionar-se o direito numa postulada sub-
sistência objectiva na sua exterioridade que punha entre parêntesis a imanência
problemático-normativamente constitutiva da sua juridicidade. O direito antes
de se oferecer numa manifestação objectivável, constitui-se ao resolver o seu
problema de uma regulativa validade prática numa intencional normatividade
para uma realização concreta — problema sempre aberto e normatividade sem-
pre constituenda e realizanda. Pelo que assim e verdadeiramente o direito não
é objecto, mas problema e o seu sentido, que em referência à sua problemática
normativa se haverá de pensar, é o que a sua objectivação ex post simplesmente
oculta. Como discurso, em que analogamente repercute agora o Linguistic Turn,
não menos o constitutivo problema normativo em que se assume o seu sentido
— o seu sentido convoca esse problema e visa resolvê-lo — o temos de dizer
também omitido, seja considerado o discurso em perspectiva semiótico-estru-
tural (como uma gramática do jurídico, uma deep structur) ou em perspectiva
semiótico-narrativa (como “relato”, num plano que acaba por não ultrapassa o
literário), seja mesmo ele chamado a manifestar-se constitutivamente através de
uma comunicativa argumentação, expressamente segundo um “princípio do dis-
curso” já antes aludido (e referido a Habermas), visando o consenso num certo
espaço político, já que a validade normativa ou de todo o modo a normatividade
que seria o próprio objectivo discursivo vai afinal fundamentantemente pressu-
posta e a possibilitar o próprio discurso com esse objectivo. Como função, mais
gravemente ainda o sentido do direito será sacrificado. Se a funcionalidade for
de índole material (neomaterialização funcional do direito), o que nela e através
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6.1.3. Os corolários
O pensamento que pelo essencial ficou exposto e fundamentado implica
como consequência de desenvolvimento explicitante, e que temos por capital, já
que é nele que o seu relevo se poderá afinal reconhecer, três diferenciáveis coro-
lários. O reconhecimento da autonomia do direito no universo prático humano;
a definição dos limites do direito nesse mesmo universo; as diagnosticáveis
alternativas ao direito na evolutiva realidade humano-histórico-social.
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que seja o mérito normativo desses projectos, por remeter ao jogo do poder em
que o direito é verdadeiramente res in alia — apenas nos restando então falar de
alternativas para ele, de que adiante efectivamente falaremos.
Autonomia do direito que ainda relativamente à ética, em terceiro lugar, se
afirmará, tanto a nível problemático como intencional e institucional. A ética,
no “face a face” do seu absoluto intencional, dirigido sem mediações cada um
ao outro nas suas singularidades pessoais, e não excluindo embora o relevo de
uma “ética da responsabilidade”, só diferente nas condições circunstanciais que
não no limite absoluto da intencionalidade, remete a um universo só de man-
damentos e deveres em que se não assume, como pudemos ver, o problema
prático na sua especificidade, na comunitária dialéctica de autonmias-direitos e
obrigações-responsabilidades — dialéctica a que justamente ao direito, no sen-
tido autónomo da sua validade e na sua especificidade normativa e institucio-
nal, cumpre dar solução. Com o que o direito não é perante a ética quer apenas
um minus — como tão erradamente se pensava com o dizer-se ele “o mínimo
ético” —, quer um “caso particular” (Sonderfallthese), e numa só particulari-
zação procedimental e de critérios decisórios, do pensamento ético-prático em
geral — como sustenta, entre outros, Robert Alexy (vide, sobre essa tese e a sua
crítica, já a nossa Metodologia Jurídica, 72, ss.; e também criticamente depois,
HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. 3 ed., 281, ss.), mas verdadeiramente
um alium. Repita-se, um alium problemático e assim também um alium na res-
posta de sentido e de normatividade.
A autonomia do direito implica, por último, a recusa de um qualquer ho-
lismo prático, que funcionalmente o dissolveria. Porque sempre esse holismo,
qualquer que seja a sua índole, se parece convocar no direito o contexto global
da realidade humana e social e assim reconhecer nele todo esse mundo que,
sendo o nosso, é também o dele, o certo é que esse aparente enriquecimento do
direito, pela globalidade do compromisso e pelas suas determinações ab extra,
é realmente ilusório e de consequências desagregadoras, já que só arrasta à con-
fusão das essências, ao anular as intencionais autonomias diferenciáveis, com
os seus problemas próprios e irredutíveis — se em tudo está o todo, o todo não
será o critério imediato e específico de tudo — e com o resultado de o triunfo vir
a caber afinal, com o conferir boa consciência consequente ao apagamento da
sua autónoma distância de validade, a forças sociais mais poderosas, no poder e
nos meios que mobilizam, relativamente às quais a intentio do direito deverá ser
normativa instância crítica. É assim que o direito não será política, mas validade;
não será estratégia, mas normatividade; não actuará por decisão de alternativas
consequenciais, mas por juízo de fundamentante validade normativa. Pois, numa
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palavra, o direito não se propõe governar a sociedade, mas constituir uma valida-
de axiológico-normativa que ao homem dê o sentido da sua prática.
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1 Cf. STEINER, George. O silêncio dos livros. Trad. M. Sérvulo Correia. Lisboa, 2007, 33, e Os livros que
não escrevi. Trad. M. Serras Pereira. Lisboa, 2008, 68 s. e 211.
81
risco que corro e a temeridade que assumo não são comparativamente menores,
porque o que me proponho é falar de “metodologia jurídica” na presença do Se-
nhor Doutor Castanheira Neves — que sempre vi (disse-o uma vez e atrevo-me
a repeti-lo aqui, parafraseando uma passagem de um livro de Nietzsche insisten-
temente convocado na sessão inaugural) como o mistagogo, por antonomásia,
do direito, do pensamento jurídico e dos juristas, nesta nossa tão perturbadora
contemporaneidade: como aquele que, com a paciência dos santos e a clarivi-
dência dos sábios, aponta ao direito o sentido mais pessoalmente interpelante,
assinala ao pensamento jurídico a tarefa mais lapidarmente nobilitante, e indica
aos juristas o rumo mais afinadamente responsabilizante.
Já a justificação da escolha de um tema de metodonomologia para esta minha
intervenção não me rouba o sossego, pois poderei dá-la acompanhando a lição
do também meu eminente Mestre. Em conferência recente, proferida ante um
auditório maioritariamente constituído por Colegas brasileiros, o Senhor Doutor
Castanheira Neves teve o ensejo de sintetizar a sua intelecção do jurisprudencia-
lismo. Esclareceu aí o Ilustre Homenageado que o jurisprudencialismo, criterio-
samente recortado, postula a adopção de uma singular perspectiva microscópica,
a assunção de um específico sentido de validade, a consideração de uma parti-
cular normatividade positiva e transpositivamente determinada, a instituição de
uma estrutura material e intencionalmente diferenciadora, e — é este o ponto
circunstancialmente relevante, sendo igualmente nele que o jurisprudencialismo
emblematicamente se cumpre... — a mobilização de um modelo discursivo po-
larizado num juízo prático-normativo colimado à histórico-concreta realização
prudencial do direito2. Sem ignorar as quatro primeiras das cinco notas acabadas
de referir (como poderia fazê-lo, se todas elas se imbricam?...), centrar-me-ei,
todavia, na última, e, no seu âmbito, privilegiarei apenas dois pontos: o da prio-
ridade do problema judicando na esfera do exercício metodonomológico e o do
tipo de raciocínio implicado por esse exercício.
I
1. A prática humana (se nos dispusermos a deixar entre parêntesis a sua in-
compreensão positivista — da versão primígena à dos últimos abencerragens —,
que a reduz a uma pura técnica inucleada no mero fazer eficiente, a uma opera-
tória produtiva de efeitos empírico-analiticamente mensuráveis, ou multiplica-
dora de resultados sócio-economicamente contabilizáveis, e, portanto, de todo
2 Cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro.
Coimbra, 2008, 56 ss.
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3 Acolhemo-nos aqui à lição de Nicolai Hartmann, que, na esfera da teoria do conhecimento, contrapõe a
intentio recta — “a directa orientação do conhecimento para o [seu] objecto” — à intentio obliqua — em
que, diferentemente, aquela atitude “natural” é substituída por uma outra, inucleada na “reflexio” (a com-
preender exactamente como “Rückbiegung”, ou seja, como uma “flexão para trás”, um “dobrar-se sobre
si”, e em que o objecto em questão deixa de ser o que se conhece e passa a ser “o próprio conhecimento”):
cf. “Die Erkenntnis im Lichte der Ontologie” (de 1949), In: Kleinere Schriften, I, Berlin, 1955, 136 s.; v.
ainda HRUSCHKA, Joachim. Das Verstehen von Rechtstexten. Zur hermeneutischen Transpositivität des
positiven Rechts. München, 1972, 11 e 43, e, entre nós, CASTANHEIRA NEVES, A. Metodologia Jurídica.
Problemas fundamentais. Coimbra, 1993, 23 s.
83
II
2. Relevando o metodicamente nuclear — que não o lapalissianamente evi-
dente... —, “é [sempre] difícil encontrar o começo. Ou melhor, é difícil começar
no começo. E não tentar recuar mais”4, em ordem a discernir o início do cami-
nho, a apreender a matriz do processo, a identificar a abertura da sequência. As
tarefas empreendidas devem, decorrentemente, iniciar-se pelo princípio. Acon-
tece, porém, que este, em virtude da sua natural incipiência5, não se apresenta
nunca como um absoluto alheio a contextualizações e indiferente a pressupostos,
sendo antes relativizado pela perspectiva adoptada, atentos os objectivos pros-
seguidos. Pois bem: é certo que as observações anteriores não impõem o iter
argumentativo, já a seguir entreaberto, como o único admissível. Mas supomos
que nos autorizam a preferi-lo como razoavelmente aceitável.
4 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. 471 — na edição bilingue. Trad. M. E. Costa. Lisboa, 1998, 135.
5 Tolerando a paráfrase, explicitemo-lo lapidarmente: “De toutes choses les naissances sont foibles et
tendres. Pourtant faut-il avoir les yeux ouverts aux commencements; car comme lors en sa petitesse on
n’en descouvre pas le dangier, quand il est accreu on n’en descouvre plus le remede” — MONTAIGNE.
Essais. Livre 3, X; na edição devida a Alexandre Micha. Paris, 1996, 232.
6 Sobre a incindível e reciprocamente implicada ligação da linguagem à experiência, ao pensamento e à
comunicação, que, deste modo, implicitamente se pressupõe, cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O actual
problema metodológico da interpretação jurídica — I. Coimbra, 2003, 273 ss.
7 Recorde-se a seguinte passagem de Th. W. Adorno, em Minima moralia, II, 82 — na edição trad. por A.
Morão, Lisboa, 2001, 129: “[a] distância do pensamento à realidade nada mais é do que o precipitado da
História nos conceitos”; ou estoutra de Umberto Eco, em Kant e o ornitorrinco. Trad. J. C. Barreiros,
Algés, 1999, 145: “a palavra conceito vem a significar apenas o que uma pessoa tem na cabeça”…
8 Cf. YALOM, Irvin D. A cura de Schopenhauer. Trad. C. Romão. Parede, 2006, 197.
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9 Mencione-se, exemplificativamente, Civitas Nova enquanto designação de uma… cidade nova, ainda sem
nome próprio — o que precisamente corresponde à utilização de um genus para identificar um (…) indivi-
duum; assim nos aproximamos… e distanciamos de ECO, Umberto. Baudolino. 2 ed. Trad. J. C. Barreiros.
Algés, 2002, 152.
10 A necessária explicitação e a cumprida fundamentação do que acabámos de escrever ver-se-á em COXI-
TO, Amândio. “O que significam as palavras? O Curso Conimbricense no contexto da semiótica medie-
val”. Revista Filosófica de Coimbra, vol. 13, n. 25, 2004, esp.te 40 ss. E ainda, por exemplo, ECO, U. Kant
e o ornitorrinco, op. cit., esp.te 398 s., 402 ss., 407 s. e 408 ss.
11 Cf. COXITO, A. O que significam as palavras?..., op. cit., por exemplo, 46, 48 e 49.
12 No horizonte do pensamento jurídico, e entre nós, parece ser esta, tendencialmente, a posição de Paulo
Ferreira da Cunha: cf. Filosofia do Direito. Coimbra, 2006, 40.
13 Apud SCHAPP, Jan. Das subjektive Recht im Prozeβ der Rechtsgewinnung. Berlin, 1977, 37.
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(v. gr., os paladinos do Movimento do Direito Livre), para quem apenas existe o
particular e o especial, o singular e o individual14, não passando as categorias ge-
rais de meros nomes desprovidos de efectiva realidade e, portanto, inacessíveis a
qualquer apreensão cognitiva15.
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(da “aliança fraterna destas duas divindades”: cf. ibidem, 169), o problema em análise no texto e que de-
terminou a abertura desta nota, confronta-nos, por sugestão de Schopenhauer (a cujo pensamento, também
neste ponto, se acolhe Nietzsche: cf. ibidem, 131 s.), com algo de semelhante — com a co-implicação dos
casos particulares e das ideias gerais.
25 Cf. CARVALHO, Orlando de. Critério…, op. cit., 837 ss.
Note-se, porém — e não deixe de acrescentar-se: se em lugar da perspectiva subjacente às observações an-
teriores — que indisfarçavelmente põem a tónica na facticidade social da mencionada “realidade da vida”
(rectius, da “realidade da vida” reduzida à estrita facticidade social empírico-analiticamente apreensível),
segundo o modus operandi da Jurisprudência dos interesses — nos dispusermos a considerar o ponto de
vista da Jurisprudência da valoração — em que se relevam (em que se arrisca a relevância de) exigências
de sentido de uma “realidade da vida” axiológico-problematicamente intencionada, a comparar, através de
um raciocínio analógico, com as situações problemáticas concretamente judicandas (reconhecendo que,
as mais das vezes, os relata em causa se não articulam como o modelo padrão e o seu correlato objectivo,
antes apresentam semelhanças suficientes não obstante diferenças também evidentes), talvez divisemos
razões para propor uma re-compreensão do tipo como uma categoria aberta — uma “estrutura elástica
de características”, um referente historicamente realizando e constituendo por mediação dos problemas
que fundamentadamente lhe co-respondam (para as necessárias explicitações complementares, cf. agora
SOUSA RIBEIRO, J. de. Cláusulas contratuais gerais…, op. cit., 154 ss., esp.te n. 304).
26 Cf. Critério…, op. cit., 847.
27 Cf. Questão-de-facto…, op. cit., 699 e 760 s.
28 Cf. Id., As fontes do direito e o problema da positividade jurídica, op. cit., esp.te 170, 183, 188, 190 s. e n.
217, e 195.
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5.2. Por seu turno, Leibniz veio ainda reacentuar a primordialidade do in-
dividual, que já se vislumbrava no escotismo. Com efeito, se D. Escoto ainda
remetia para uma haecceitas, de indisfarçável pendor formal (materialmente im-
bricado…), a matriz dos entes singulares (o que não deixa de revelar uma sua
33 De haec (esta coisa): cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil planaltos. Capitalismo e esquizofre-
nia 2. Trad. R. Godinho. Lisboa, 2007, 332, n. 24.
34 Para explicitações complementares, cf. COUTO SOARES, Maria Luísa. Teoria analógica da identidade.
IN-CM, 2001, esp.te 31 e 388 ss.
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35 O modelo hilemórfico “implica simultaneamente uma forma organizadora para uma matéria e uma matéria
preparada para a forma”. Ou, por outras palavras: “[u]ma forma invariável das variáveis [e] uma matéria
variável do invariante é o que funda o esquema hilemórfico” — … por isso mesmo insuficiente para
aprender “muitas coisas, activas e afectivas”, que ocupam o “espaço” que se abre (a “zona de dimensão
média e intermediária” que existe) “entre forma e matéria”. Assim, DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil
planaltos…, op. cit., 469 s. e 520 s.
36 Cf. COUTO SOARES, Maria Luísa. Teoria analógica da identidade, op. cit., 31 e 410 ss. Acrescente-se
apenas que a monadologia leibniziana não deixará de marcar a fenomenologia husserliana — que já convocá-
mos e a que de novo aludiremos já a seguir… —; a acentuação deste ponto (o lançamento desta ponte…) —
ligado(a) à “absorção do empirismo num racionalismo idealista” e ao decorrente esquecimento do “indivíduo
como indivíduo” com a polarização do discurso na “essência e [em] relações de essência”, caracterizadores
da proposta de Husserl (em Leibniz pré-nunciados pela referida articulação de cada mónada com as restan-
tes…) — ver-se-á em FRAGA, Gustavo de. De Husserl a Heidegger. Elementos para uma problemática da
fenomenologia. Coimbra, 1966, esp.te 60 e n. 3, e Fenomenologia e dialéctica, Coimbra, 1972, 139.
37 Seja apenas o seguinte exemplo: enquanto Ed. Husserl articula cada proposição (Satz) com um facto (Sa-
chverhalt), segundo o esquema conceito (Begriff)/objecto (Gegenstand) — o “facto representa a imagem
da proposição na realidade” objectiva —,W. Schapp refere cada proposição a algo histórico-concreto — a
história é, da sua perspectiva, o “lugar onde” de existência da proposição, pelo que, “fora da história”, a
mencionada proposição perde o “apoio” e, portanto, o sentido (ou, quando menos, ganha um sentido ou-
tro…). Ilustremos o que acaba de dizer-se acompanhando o próprio W. Schapp. A proposição “a rainha está
doente” — como, de resto, todas as proposições análogas —, do ponto de vista da lógica (o privilegiado pela
fenomenologia husserliana), não suscita qualquer reparo. Dessa mesma perspectiva, a proposição em causa
refere um facto mas não o atinge. Ao invés, no quadro de uma história concreta, a citada proposição deixa de
“errar pelo mundo, à procura, em vão, do seu facto”, e pode muito bem encontrá-lo. Contra aquilo que, prova-
velmente, os fenomenologistas sustentariam, o sentido da proposição transcrita não é, portanto, o mesmo se
91
é inteiramente natural que um jurista prático centre a sua atenção nos casos que
o (pré-)ocupam, também se não ignora que o moto da fenomenologia, “para as
próprias coisas!” (Zu den Sachen selbst!) do mundo “físico”, ou “psíquico”, ou
“ideal” — como não citar as conhecidíssimas e quase panfletárias asserções de
Husserl “eu não vejo sensações cromáticas mas coisas pintadas, eu não ouço sen-
sações sonoras mas a canção desta intérprete”?...38 —, concorreu para deslocar
o discurso filosófico do abstracto para o concreto, do genérico para o singular
e do absoluto para o histórico.39 Isto pressuposto, ganha pleno sentido — e há-
-de revelar-se-nos rico de implicações... — o modo como W. Schapp abre o seu
ensaio atrás convocado: “Nós homens estamos sempre enredados em histórias”
(“Wir Menschen sind immer in Geschichten verstrickt”)40-41 — e a tal ponto é as-
a virmos por uma ou por outra das duas referidas lupas. Razão por que julgamos vir a propósito lembrar uma
revelação feita por Husserl aos seus alunos (e W. Schapp, já o mencionámos, foi discípulo do Caput Scholae
da fenomenologia e dá-nos testemunho do episódio), segundo a qual a reflexão fenomenológica talvez não
devesse ser confiada, em exclusivo, aos cultores da lógica (e aos matemáticos — como nos recorda Gustavo
de Fraga, “[a] formação universitária de Husserl foi essencialmente matemática”…: cf. Fenomenologia e
dialéctica, op. cit., 119; v. ainda 120 s., 123, 146… — e gramáticos…) — os historiadores também deveriam
ser admitidos a participar no exercício. Cf. SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt. Zum Sein von Mensch und
Ding. 4 ed. Frankfurt am Main, 2004, 169 ss., esp.te 171 ss.; v., complementarmente, SCHAPP, Jan. Sein und
Ort der Rechtsgebilde. Eine Untersuchung über Eigentum und Vertrag. Den Haag, 1968, 7 e 19 ss.
38 Note-se que, neste ponto (v. a nota anterior), são nuclearmente coincidentes as posições de mestre e dis-
cípulo. Com efeito, W. Schapp acentua expressamente não ser possível “separar o [som — a palavra
utilizada pelo A. é Geräusch: “barulho”, “ruído”] produzido pelo carro em andamento do próprio carro
em andamento, ou a cor da casa da própria casa”: cf. In Geschichten verstrickt, op. cit., 72 ss., esp.te 75.
Por seu turno, para se compreender que a física matemática — rectius, o “racionalismo matemático e o
objectivismo fisicalista” —, considerada (os) por Husserl, idealiza(m) a irredutível e originária “experi-
ência ‘relativo-subjectiva’” do “mundo da vida”, que constitui o objecto da fenomenologia, cf. FRAGA,
Gustavo de. Fenomenologia e dialéctica, op. cit., 305 ss., sob 12.
39 Cf. o “Prefácio” de H. Lübbe a W. Schapp, In Geschichten verstrickt, op. cit., V ss., KAUFMANN, A. Frei-
rechtsbewegung — lebendig oder tot?..., op. cit., 2 ss., e SCHAPP, J. Sein und Ort der Rechtsgebilde..., op.
cit., esp.te 96; entre nós, v. MORUJÃO, Alexandre Fradique. A doutrina da intencionalidade na fenomenolo-
gia de Husserl. Das Investigações Lógicas às Meditações Cartesianas. Coimbra, 1955, esp.te 32 s. e 129 ss.
40 Cf. In Geschichten verstrickt, op. cit., 1. E se no último capítulo do segundo parágrafo (o 19º) o A. reforça a
ideia, acentuando que “este enredamento forma uma unidade com as suas histórias” (“[d]iese Verstricktheit
ist eins mit seinen Geschichten”) — ibidem, 190 —, logo a abrir o 10º capítulo desse mesmo parágrafo W.
Schapp deixara bem claro que o núcleo das suas reflexões se prende não com o enredamento mediatizado
por qualquer narrativa (por exemplo, aquele de que alguém toma conhecimento ao ler uma história num
livro, ou aqueloutro, igualmente relativo a um terceiro, que é participado a um juiz ou a um funcionário,
atentas as respectivas competências institucionais), mas com o enredamento directamente experienciado
por uma determinada pessoa — ibidem, 120 — ... sendo certo, todavia, que um meu “hetero-enredamento
(Fremdverstrickung) é [sempre] um auto-enredamento (Eigenverstrickung) de outrem” — ibidem, 121 —;
e, um pouco mais adiante — cf. ainda ibidem, 123 ss. —, sublinhara mesmo que cada um de nós está, ab
origine (von jeher), enredado em histórias (i. e., que esse nosso enredamento remonta a um tempo bem an-
terior àquele em que … dele passámos a dar conta, podendo igualmente acontecer que sintamos muito mais
próxima uma história há muito ocorrida do que uma outra apenas recentemente experienciada — pense-se,
por exemplo, “em histórias [antigas,] ignoradas [pelos demais, mas] cuja descoberta ainda hoje tememos”,
uma vez que, não o esqueçamos, “a fuga das histórias também pertence às histórias”...).
41 As considerações que se seguem baseiam-se, fundamentalmente, no ensaio mais uma vez citado na nota pre-
cedente, que só não invocaremos a cada passo para evitar a multiplicação dos incisos em rodapé. Quando o
92
apoio for outro, não deixaremos de o sublinhar. E sempre que se nos afigure decisivo o ponto, não omitiremos
a referência expressa, mesmo que esteja em causa o mencionado In Geschichten verstrickt, de W. Schapp.
42 Cf. ibidem, 105.
43 Cf. ibidem, 158.
44 Cf. ibidem, 1, 94, e 199 s. e 204 s. — páginas estas últimas em que, para além do acabado de sublinhar
no texto (e sem qualquer contradição…), W. Schapp acentua, primeiro, a compossibilidade das histórias
individuais e da história universal, na base da pertença do eu a um nós: cada um está enredado na sua
história, mas está também enredado na história universal por mediação do nós em que está co-enredado
(Mitverstrickten); e depois, o radical sem-sentido de uma história universal puramente objectiva, em que
ninguém estivesse enredado: o mencionado enredamento é conditio sine qua non da emergência de uma
história universal sensu proprio.
45 Assim, SCHAPP, J. Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit., 9.
46 Cf. Id., ibidem, esp.te 76, 94 ss. e 120 s., e Hauptprobleme der juristischen Methodenlehre, Tübingen, 1983,
31 ss. E uma vez que, no texto que nos trouxe a esta nota, aludimos especificamente ao direito de proprieda-
de, acrescentemos que poderíamos ter convocado globalmente a categoria direito subjectivo — tema a que,
de resto, o A. dedicou outra importante monografia — Das subjektive Recht im Prozeβ der Rechtsgewin-
nung, op. cit. —, em que sustenta uma impostação normativa da mencionada categoria (direito subjectivo),
atenta à radicação na (economicamente relevantíssima) “estrutura” constituída pelo “conflito de interesses”
concretamente emergente da pretensão “[garantida] ‘no espaço jurídico’” pela norma que hipoteticamente
o assimile; e em que ainda adverte que outro tanto poderá dizer-se, mutatis mutandis, da “propriedade”, por
ser, também ela, um singular “dado/realidade económico(a)” (que não um estrito “conceito económico”),
uma muito particular “relação construída sobre uma conexão de sentido” histórico-prática e, especialmente,
sócio-económica: cf. Das subjektive Recht…, op. cit., 14 ss., 23 ss., 36 ss. e 118 ss.
93
47 Deixemos apenas aludida a complexa questão de saber se, da perspectiva que estamos a analisar, para além
das Wozudinge — entre as quais há, aliás, diferenças assinaláveis quanto ao grau de intensidade com que
se podem dizer criadas pelo homem/tocadas por qualquer sentido humano (sirvam-nos de exemplo este
direito e esta bicicleta/o sol e as demais estrelas do céu…) —, haverá outras coisas — “coisas do mundo
exterior que ainda não tenham sido tocadas por mão humana”… Será que do outro lado das “coisas para
que” só há o “nada”?...: cf. SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt, op. cit., 4 e 33 ss., esp.te 38 ss. Ou será
antes que o mundo se não divide em “ser” e “pensar” (numa dicotomia de recíproca exclusão, com aquele
primeiro termo a intencionar a realidade empírico-objectiva e este segundo a compreensão do pensamento
como… “o pensamento do pensamento”: cf. JOYCE, James. Ulisses. Trad. J. Palma-Ferreira. Lisboa,
1989, 53), porque tudo quanto o com-põe integra o “horizonte de histórias polarizadas no eu e no nós (“Ich
und Wirgeschichten”)” — acentue-se que, para W. Schapp, o eu e o nós não se excluem reciprocamente
antes se integram dialecticamente, pois se o “nós tem como ponto de partida um eu, o eu está contido no
nós” —, pelo que “não tem qualquer sentido perguntar por uma existência fora destas histórias”?...: cf.
SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt, op. cit., 164 ss., esp.te 166, e 190 ss., esp.te 191. Ora, ao formular-
mos aquela primeira pergunta, outra logo nos interpela: não estaremos aqui perante algo de parecido com a
conhecida aporia do ser?... Se “dizer de qualquer coisa ‘que é’ não acrescenta nada ao que já se deu por evi-
dente pelo próprio facto de nomear essa qualquer coisa como objecto do discurso” (assim, ECO, U. Kant e
o ornitorrinco, op. cit., 35) — e, por isso, “[p]ronunciar é verbalizar o que já lá estava”… (cf. STEINER,
G. Os logocratas, op. cit., 21) —, também a apreensão por qualquer sentido humano, de qualquer coisa,
faz dessa qualquer coisa, ipso facto, uma Wozuding, e no avesso da referida apreensão só não deparamos
com o nada porque tal pressuporia que nos era acessível a atopia (isto é, “a utopia da ausência de lugar”,
o estritíssimo “em ponto algum” — Irgendwo — em vez do bem menos inexorável “em parte alguma”
— Nirgendwo —: cf. WILLKE, Helmut. Atopia. Studien zur atopischen Gesellschaft. Frankfurt am Main,
2001, respectivamente, 35 e 13). Não nos encontramos sequer aqui, portanto, em situação paralela à de…
Adão e Eva, que ao comerem o fruto da árvore do conhecimento puderam observar também “o outro lado”
(cf. Id., ibidem, 116). Para nós, mesmo que admitamos a existência de jardins paradisíacos, de serpentes
enleantes e de frutos tentadores, não há, decerto, um “outro lado”; ou, no mínimo, ele só é concebível se
formos capazes de experienciar o limite e de assumir a antiquíssima sabedoria segundo a qual “o ser nasce
no não ser”, no que ainda nem sequer veio à epifania… (cf. LAOTSE. Das Buch vom Sinn und Leben.
Trad. R. Wilhelm, Wiesbaden, 2004, 108 e 204).
48 Cf. In Geschichten verstrickt, op. cit., 59. E é radicalmente assim, sublinhe-se, porque cada história tem
o seu “ritmo”, marcado pelo “antes” e pelo “depois” conformadores da “conexão de sentido” em que ela
emerge — v. agora ibidem, 140.
49 Cf. ibidem, 56 ss.
50 Cf. A metodonomologia entre a semelhança e a diferença (Reflexão problematizante dos pólos da radical
matriz analógica do discurso jurídico), Coimbra, 1994, 143 ss. e 150 ss.
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51 Cf., deste último A., Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit., 14 s.
52 Cf. SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt, op. cit., 62 ss. e 193.
53 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. “Investigações Filosóficas”, I, 218 — In: Tratado Lógico-Filosófico. In-
vestigações Filosóficas. Trad. M. S. Lourenço. Lisboa, 1987, 329.
54 Chamando a atenção para um ponto que reputamos fundamental — uma vez que sempre referimos ra-
dicalmente o direito à pessoa… —, lembremos que, da perspectiva que estamos a considerar, qualquer
ente, incluindo a própria “criatura humana” (Mensch), é, em virtude da irremissível individualidade que
a predica, (também) enumerável, podendo, pois, afirmar-se que “ser enumerável” (Gezähltsein) é um dos
modos possíveis de dizer “ser pessoa” (Personsein). Ora — e assim revertemos directamente à passagem
do texto que determinou a abertura desta nota… —, nas palavras de W. Schapp, “o que é enumerável não
é género algum”: apud SCHAPP, J. Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit., 15 s.
55 A radical “individualidade da coisa para que” é insistentemente sublinhada por W. Schapp. A fórmula que sinte-
ticamente a enuncia e que acabámos de traduzir, aparece na monografia In Geschichten verstrickt, op. cit., 66.
56 A estreita interligação dos planos a que assim se alude é expressamente acentuada por W. Schapp: cf. ibidem, 69.
57 Cf. “Die Welt und die Weisheit”, In: Sämtliche Werke, Leipzig, s./d., 1000.
95
lo que tentam pôr-lhe nas mãos é manifestamente fruta e, todavia, prova-se não
haver ali fruta para comprar”...58.
5.3.1. A (esquemática) apresentação que fizemos das (complexas) teses de
W. Schapp é bastante para permitir três conclusões, que logo compreenderemos
relevantíssimas no quadro amplo do pensamento jurídico e naqueloutro mais
restrito da reflexão metodonomológica.
Em primeiro lugar, a Wozuding, tanto pela sua estrutura semântica quanto
pela sua serventia pragmática, mostra-se consonante com a reconhecida centra-
lidade da “lei da finalidade” na esfera do prático-normativo: “[t]oda a acção é
intencional”59; “não há acção sem um fim”, o homem age sempre “para que”60.
O que significa harmonizar-se a proposta de W. Schapp com aquela linha de pen-
samento aberta pela decisiva viragem61 de R. v. Ihering do formalismo mais ou
menos dessorado para o finalismo inequivocamente vivificado — e que haveria
de dar origem tanto a orientações teleologicamente inspiradas62 como a deriva-
ções funcionalisticamente marcadas63.
Depois, e em segundo lugar, a radicação da prática, por parte de W. Scha-
pp, nas histórias singulares em que estamos enredados é condição pressuponen-
te da adequada intelecção dos problemas concretos como topoi polarizadores
do discurso metodológico-jurídico. Com efeito, e mesmo sem pagar tributo a
versões extremas de uma impostação narrativa64, sabe-se que os mencionados
58 Cf. HEIDEGGER, Martin. Identität und Differenz. 3 ed. Pfullingen, 1957, 64.
59 Assim, HABERMAS, Jürgen. “Alguns esclarecimentos suplementares sobre o conceito de racionalidade
comunicativa”. In Racionalidade e comunicação. Trad. P. Rodrigues. Lisboa, 2002, 190.
60 Cf. agora CASTANHEIRA NEVES, A. Teoria do Direito, polic., Coimbra, 1998, 163.
61 Rectius, pela sua (não revolucionária) evolução de uma primeira fase, “receptiva” e “metódico-constru-
tivista”, sedimentada na monografia Geist des römischen Rechts auf verschiedenen Stufen seiner Entwi-
cklung, de 1852-1863, para uma segunda, “produtiva” e “metódico-finalista”, emblematicamente vertida
em Der Zweck im Recht, de 1877-1883, mas inequivocamente pré-nunciada no § 59 do Geistes…, em
que se defendia já, expressis verbis, ser o “fim” — e não a construção lógica… — o “criador” de “todo o
direito”, a verdadeira “força motriz” da juridicidade: cf. FIKENTSCHER, Wolfgang. Methoden des Rechts
in vergleichender Darstellung, III, Tübingen, 1976, esp.te 201 ss., 222, 237 ss. e 250 ss.
62 Por referência à (mais uma vez convocada) Wozuding, não deixe de acentuar-se que, se bem vemos, esta-
mos aqui ante uma teleologia que Nicolai Hartmann designaria de carácter “processual”: aquela em que o
“porquê” (warum) cede o lugar ao “para quê” (Wozu), centrada na ideia forte de que são os “fins imanentes
às coisas” (“ao processo de formação das coisas”) — rectius, a cada coisa singularmente considerada, uma
vez que, nesta modalidade, a teleologia “parte […] dos fenómenos” tomados na sua “especialidade” — que
determinam a respectiva “essentia”; cf. Teleologisches Denken. 2 ed. Berlin, 1966, 7 ss.
63 Cf. CASTANHEIRA NEVES, A. “O funcionalismo jurídico — Caracterização fundamental e considera-
ção crítica no contexto actual do sentido da juridicidade”, RLJ, 136, 2006, n. 3940, 23 s.
64 Cf. Id., O actual problema metodológico da interpretação jurídica — I, op. cit., 394 ss.
96
65 Assim, expressamente, e por referência aos problemas jurídicos, SCHAPP, W. In Geschichten verstrickt,
op. cit., 104. Para explicitações complementares, especialmente atinentes à tentativa de recortar com pre-
cisão “caso” e “história” — será o caso o mero “esqueleto” de uma história?...; a concepção/apresentação
tantas vezes estilizada do caso indiciará uma sua separação da história?...; o caso, ainda que comprima
a história, não a terá sempre como englobante pano de fundo?...; não será a singularidade de cada caso
(singularidade aquela exactamente radicada na… história que lhe subjaz) a razão determinante de que a
solução dada a um certo caso só valha para outro, semelhante, caeteris paribus, e que, portanto, autoriza
que casos jurídicos análogos possam ser julgados diferentemente (pense-se, em termos ilustrativos — e
os exemplos são do próprio W. Schapp —, em vários casos que impliquem o mesmo princípio da boa fé,
ou naqueles outros em que se imponha a fixação da pena concreta por violação do mesmo bem jurídico
criminalmente protegido)?... —, cf. também ibidem, 181 ss., esp.te 183 s. e 188 s.
66 “Ser feito-de-qualquer coisa” (Aus-etwas-sein) é uma nota especificantemente predicativa das “coisas para
que” : cf. W. Schapp, ainda ibidem, 15 ss., esp.te 17.
67 Cf. as nossas Lições de Introdução ao Direito. 2 ed. Coimbra, 2006, 887.
68 Cf., de novo, a monografia Sein und Ort der Rechtsgebilde…, op. cit.
97
III
6. Tudo quanto se disse, compreendemo-lo sem esforço, toca, de um prag-
maticamente interessado ponto de vista metodonomológico e entre outras,
duas questões nucleares: 1ª) a do modo como deve pensar-se a relação caso
69 Aliás, já divisada na monografia Das subjektive Recht im Prozeβ der Rechtsgewinnung, op. cit.: cf. 51 ss.,
incluindo a importante n. 2, a p. 52.
70 Trata-se de uma paráfrase a MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad. H. Caro. Lisboa, s./d., 517.
71 Cf. O que escrevemos em Pensamento Jurídico (Teoria da Argumentação), polic., Coimbra, 2003, 88 s.;
para explicitações fundamentantes, v. COUTO SOARES, Maria Luísa. Teoria analógica da identidade.
op. cit., esp.te 115 ss., 133 ss., 143 ss. e 548 ss.
72 Cf. Hauptprobleme der juristischen Methodenlehre, op. cit., esp.te 10, 15 ss., 31 ss., 50 ss. e 60 ss. A
respeito do último ponto acentuado no texto, sublinhe-se ainda, paralelamente, ser de todo inconcebível
uma metodologia jurídica sem uma fundamentante “ideia de direito”, naturalmente conexionada com o
horizonte cultural concretamente em causa: cf. Id., ibidem, 3 e 18.
98
99
100
80 Cf. Id., ibidem, 41. Poderemos ensaiar a formulação da mesma ideia básica — a da recíproca imbrica-
ção de ser e dever-ser, atentos determinados pressupostos… — aproveitando o modo como, reflectindo
especificamente a problemática metodonomológica, no-la apresenta um dos AA. com quem dialogamos
neste estudo. Jan Schapp — é nele que estamos a pensar — sublinha enfaticamente que o caso decidendo
não emerge na esfera do normativo-juridicamente indiferente, ou neutro, vindo posteriormente o direito
cobri-lo com o seu predicativo manto diáfano; pelo contrário, o caso vem à epifania já cunhado pelo
direito, irrompe ab origine como caso jurídico (conquanto a exacta determinação/comprovação da sua
relevância jurídica admita os afinamentos consonantes com as circunstancialmente realizandas exigências
metodonomológico-processuais…). Nas suas próprias (e bem expressivas) palavras: “não devemos com-
preender o caso como pré-formação (Vorgegebenheit) do direito”, pela elementar razão de que “ele é sem-
pre estruturado pela normatividade jurídica vigente (geltende Recht)”. Se quisermos pôr em evidência o
englobante do que acaba de dizer-se, acentuaremos, ainda com J. Schapp, a macroscópica “com-formação
(Mitgegebenheit) de mundo e direito” — rectius, naquele hemisfério civilizacional em que o direito tenha
vindo à epifania, um e outro completam-se dialecticamente, não se excluem reciprocamente —, razão por
que, em termos agora microscópicos, não surpreende a afirmação de que o caso identifica, “de certo modo,
o ponto de união (Verbindungsstelle) de realidade e direito”, instituindo aquele específico plano em que se
sintetizam o que é “pré-formador para o direito” e “con-formador do direito”: cf. SCHAPP, J. Hauptpro-
bleme der juristischen Methodenlehre, op. cit., 21 ss., esp.te 26.
101
8. A tudo o que se impõe acrescentar mais uma nota ainda. Com efeito, a
prioridade que assim se reconhece à dialéctica em que se enredam os proble-
mas concretos e a por sua mediação apurada intencionalidade problemática dos
fundamentos/critérios do juízo decisório projecta-se em outro importante coro-
lário: o de que não é mais tolerável insistir no carácter conservador do pensa-
mento jurídico81, pois se este implica uma inerme subordinação ao império do
sistema pré-objectivado, que circunscreveria a amplitude do possível — casos
novos juridicamente relevantes seriam apenas aqueles que viessem a irromper
em consonância com o postulado (e enquistado) ponto de partida, numa como
que abertura ocorrida em… circuito fechado —, o que se sustenta é antes, ao
invés e no limite, a superação do mencionado sistema operada pela irreprimível
novidade de um problema juridicamente relevante — i. e., de um problema sus-
ceptível de ser posto em virtude da pertinente pressuposição das constituendas
exigências constitutivas do direito, nomeadamente do sentido demarcador do seu
a-caminho, e a resolver com base no critério excogitado para o efeito, pela ins-
tância circunstancialmente competente, atentas aquelas mesmas exigências —,
que assim derruba as barreiras existentes e alarga a juridicidade a um espaço que
até então a não reclamara82. Ilustremo-lo com um exemplo colhido na esfera da
prática, em geral, mas obviamente transponível, mutatis mutandis, para o campo
81 Ponto este também recentemente acentuado — conquanto em um bem diferente contexto temático… —
por José de Faria Costa, no ensaio-conferência As linhas rectas do direito. Porto, 2007, 22.
82 No que, aliás, se toca algo de fundamental — hoc sensu, de autenticamente radical, não deixemos de o su-
blinhar (aproveitando um topos constante na lição de Castanheira Neves, pela última vez — em referência
ao momento em que escrevemos estas linhas… — convocado no denso ensaio sobre — as modalidades e
aporias de — “O funcionalismo jurídico — caracterização fundamental e consideração crítica no contexto
actual do sentido da juridicidade”, RLJ, 136, 2007, n. 3942, 150). Com efeito, só a abertura da normativi-
dade jurídica (ao novum que a interpela), acentuada no texto, se mostra consonante com a abertura também
do espírito humano (ao novum que o interpela), irredutivelmente predicado por uma liberdade responsabi-
lizante, com as decorrentes autoinstituição e empenhada assunção de um sentido e da tarefa da respectiva
realização no horizonte histórico da praxis, em ruptura com o — em superação do — propugnado pela
metafísica jusnaturalista, com as suas “evidências” pré-fixadas, que se nos impunham inelutavelmente
como “indisponíveis” que estávamos condenados a suportar.
102
específico da prática jurídica (basta pensar, v. gr., pelo que a esta respeita, ontem,
nos problemas de abuso do direito surgidos com a superação do entendimento
tradicional do direito subjectivo, e, hoje, na mais ou menos arriscada qualifica-
ção, como juridicamente relevantes, dos chamados “problemas principais” — os
casos emergentes para lá das fronteiras dogmaticamente estabilizadas e incontro-
versas do direito, mas que, pelo seu mérito específico, se perfilam como capazes
de as ampliar). Na citada colectânea de ensaios Kant e o ornitorrinco, Umberto
Eco confronta, a dada altura, os leitores com a experiência vivida pelos primeiros
exploradores da Austrália quando depararam com o estranho animal: o ornitor-
rinco tinha bico de pato e cauda de castor, a fêmea punha ovos mas aleitava
as suas crias. Era um bicho sui generis, que escapava às taxonomias ao tempo
disponíveis e que só muito posteriormente viria a ser catalogado como um mo-
notrémato — um mamífero ovíparo83. Privilegiando as grelhas classificatórias
pré-fixadas, teríamos que concluir, com Hegel, que se os factos desmentem as
teorias “tanto pior para” aqueles (um so schlimmer für die Tatsachen)84. Todavia,
o híbrido zoológico não era uma ilusão dos sentidos — estava, manifestamente,
ante os olhos dos incrédulos recém-chegados. Se sairmos agora do território da
descoberta narrada e entrarmos naqueloutro que com ela visávamos considerar,
de imediato compreenderemos não ser um teoreticamente elaborado sistema pré-
-definido que impede a emergência de novos problemas práticos. Estes resultam
de uma dinâmica (a da própria história), que aquele não se mostra capaz de ab-
sorver, e apresentam uma dimensão (a referida novidade) que escapa ao poder
de filtragem de qualquer rede aprioristicamente instituída. E uma e outra — a
dinâmica histórica e a novidade problemática — implicam-se reciprocamente,
83 Cf. ECO, U. Kant e o ornitorrinco, op. cit., esp.te 66 s., 95 ss. e 239 ss. Para nos acolhermos a explicita-
ções basilares, lembremos que o habitat dos ornitorrincos se circunscreve a alguns cursos de água doce
de espaços geográficos muito confinados (que, portanto, se apresentam como um capsulado “centro único
de criação”, como um sitiado “berço único” imune a possíveis factores de “dispersão”), onde “as novas
formas [de vida se produzem] mais lentamente [e] as antigas formas [se extinguem] mais lentamente
ainda”. Os ornitorrincos são, por isso, “verdadeiros fósseis viventes” — como “têm habitado uma região
isolada e têm estado expost[o]s a uma concorrência menos variada e, por consequência, menos viva [,…]
constituem, até a certo ponto, uma transição entre [...] ordens hoje profundamente separadas na escala da
natureza” (in casu, a das aves e a dos mamíferos), ligando, no “estado flutuante” que se pode dizer o seu,
essas “duas grandes artérias da organização”: assim, DARWIN, Charles. Origem das espécies. Trad. J. D.
Mesquita Paúl, Porto (ed. da Livraria Chardron), s./d., 94, 117, 134, 346 ss. e 388 s.
84 Apud FIKENTSCHER, W. Methoden des Rechts…, III, op. cit., 604, n. 288. Acrescente-se telegraficamen-
te que, na extensa nota acabada de convocar, o nosso Professor de Munique chama a atenção para dois
pontos de inequívoco interesse na perspectiva deste estudo: 1º) Hegel utiliza a asserção transcrita no texto
“para ilustrar a dialéctica explicitação do sentido do conceito geral-concreto” — em inteira consonância,
portanto, com a idealização da realidade que, como dissemos (cf. supra, II, 4.), subjaz ao mencionado
konkret-allgemeiner Begriff; e, 2º) se não é legítimo inferir o dever-ser do ser (vimo-lo supra, em III, 7.) é
igualmente censurável a posição inversa, i. e., sustentar que “não pode ser o que não deve ser” — uma vez
que as exigências axiológicas não confirmam nem refutam os factos, ajuízam criticamente deles.
103
85 O muito que aqui nos limitamos a pressupor esclarecer-se-á em CASTANHEIRA NEVES, A. Metodologia
Jurídica…, op. cit., 176 ss.
104
86 Cf., por exemplo, O princípio da legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático.
Coimbra, 1988, 86 ss.
87 Privilegiando um registo mais imediatamente tributário das capitais intenções regulativas que se foram
histórico-diacronicamente sedimentando no nosso arco civilizacional e das suas múltiplas projecções e/
ou dimensões normativo-jurídicas (cf., elementarmente, as nossas Lições…, op. cit., 964, n. 271) — onde
tudo, afinal, radica… —, poderíamos aludir às racionalidades, à justiça e ao tribunal excogitados pelo
génio grego, aos referentes axiológicos da civitas romana e à respectiva precipitação nos tria praecepta
iuris, aos fundamentos irredutíveis da extraponência medieval, à ownership liberal e à égalité democrática
moderno-iluministas, aos pathe capitalista e socialista, à fairness implicada pelos Estados constitucio-
nais do nosso tempo… que hoje se sintetizam (em termos hegelianos e, portanto, numa dialéctiva de
conservação-superação, que converge na “concordância prática” das exigências que se afirmem como
circunstancialmente vigentes…) no ethos personalista (maxime, naquele feixe de direitos e deveres que, à
uma, con-formam o rosto jurídico da pessoa e co-instituem a autonomia da juridicidade).
105
88 Sobre a performatividade, tanto na esfera da teoria da linguagem, como na do pensamento jurídico com
a sua predicativa normatividade especificamente intencionada, cf. CASTANHEIRA NEVES, A. O actual
problema metodológico da interpretação jurídica — I, op. cit., 124 ss. e 233 ss., esp.te 238 ss. e 240 ss.
106
89 Cf. KAUFMANN, A. Analogie und “Natur der Sache”…, op. cit., 38.
90 A importância radical do “subjazer” de uma “verdade transcendente” — aqui, o referente juridicidade —
no exacto recorte da analogia é sublinhada por STEINER, G. Os logocratas, op. cit., 21 s.
107
Por outro lado para manifestar a honra e o gosto imensos — mas também o
reconhecimento e a emoção — que sinto em intervir neste encontro, que se quer
expressamente em homenagem ao meu Professor, o Senhor Doutor Castanheira
Neves. Com o benefício de retomar a reflexão que tem estado presente em todo o
109
meu percurso (here too I am at home)... mas sobretudo com o privilégio de partici-
par — com queridíssimos Amigos das duas margens do Atlântico! — naquela que
(com Derrida) poderíamos dizer uma “comunidade” (uma “cidade”-refúgio?) de
perguntas e responsabilidades. Como se se tratasse assim de visitar (-construir) um
“lugar de hospitalidade soberana” (communauté de la question sur la possibilité de
la question1) : aquele lugar privilegiado que, não pondo em causa a liberdade refle-
xiva de cada um — antes a estimulando! —, nos une em torno dos desafios e das
exigências (se não da urgência prático-cultural) da “aposta” jurisprudencialista2.
As breves reflexões que se seguem concentram-nos numa das exigências
capitais do discurso jurisprudencialista ou do caminhar-procura com que este
nos responsabiliza (il faut parier (...) et (...) cela n’est pas volontaire, vous êtes
embarqué).3 Refiro-me à pressuposição de uma validade trans-subjectiva... ou
mais rigorosamente à exigência de vincular esta pressuposição (e o seu com-
promisso material) a uma experiência de realização e à praxis que a consuma
(dominada pela perspectiva da controvérsia-caso). Mais do que invocar aquela
pressuposição (enfrentando-isolando o discurso de fundamentação que a susten-
ta4), trata-se com efeito de considerar a circularidade constitutiva que — para
110
5 “[A] uma “teoria do direito” compreendêmo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-reflexiva-
mente metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da juridicidade (…) e
dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…) [P]ois só na unidade histórico-cultural entre aquelas
e estes o direito vem à sua existência, à sua objectivação real e pode, já por isso, ser “objecto” de uma
reflexão teórica que nessa objectivação o queira compreender…” [CASTANHEIRA NEVES. Teoria do
direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra, 1998 (versão em fascículos)
pp. 50-51, (versão em A4) p. 28].
6 Para o dizermos com a ajuda insuspeita de Fish: “Insofar as one is ever critically reflective, one is critically
reflective within the routines of a practice. (…) What most people want from critical reflectiveness is precise-
ly a distance on the practice rather than what we might call a heightened degree of attention while performing
in the practice. (…) Insofar as critical self-consciousness is a possible human achievement, it requires no
special ability and cannot be cultivated as an independent value apart from particular situations: it’s simply
being normally reflective. It’s not an abnormal, special — that is, theoretical — capacity…” [“Fish Tales: A
Conversation with ‘The Contemporary Sophist’” (entrevista concedida por Stanley Fish a Gary Olson), JAC
Online (12-02-1992), <http://www.cas.usf.edu/ JAC/122/olson.html>. Extraído em: 11/04/2003].
7 Ver muito especialmente Castanheira Neves, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra,
Coimbra Editora, 1993, pp. 9 e ss. (“O problema metodológico-jurídico”).
8 Cfr. a síntese proposta em “Pensar o direito em tempo de perplexidade”, op. cit., pp.18-22.
9 E que deverá começar por perguntar pelo “sentido do direito na realidade-existência e na prática huma-
nas”: ver “Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da
filosofia do direito?”. In: Digesta, vol 3, op. cit., pp. 91-199 (4. e 5.).
10 Ver muito especialmente “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as con-
dições da emergência do direito como direito”. In: Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de
Magalhães Colaço, vol. II, Coimbra, 2002, pp. 837 e ss., agora também no Digesta, vol 3, op. cit., pp. 9 e ss.
111
11 “Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do
direito?”. In: Digesta, vol 3, op. cit., p. 98.
12 Uma intencionalidade à validade precipitada numa perspectiva, num sentido, numa estrutura, numa nor-
matividade: para um desenvolvimento, ver “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro”. In: NUNES, Avelãs; COUTINHO, Miranda (Ed.). O direito e o futuro. O futuro do direito. Coim-
bra: Almedina, 2008, pp.56-65 (3. a).
13 Dito jurisprudencialista stricto sensu: ibidem, pp. 58 e 66-67 (3.b).
14 Dimensões que Castanheira Neves faz de resto explicitamente corresponder às duas partes-núcleos de
um curso sobre O actual problema do direito: assim no “programa temático” da disciplina de Filosofia do
Direito e Metodologia Jurídica cumprido na Universidade Lusófona do Porto no ano lectivo de 2005 /2006
(programa que desde então tem sustentado o percurso desta disciplina) [Primeira Parte — A validade (I. A
crise/ II. A crítica) / Segunda Parte — A metodologia (o sentido da dimensão metodológica enquanto uma
segunda dimensão da emergência constitutiva da juridicidade)].
15 Já assim exemplarmente em Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da juri-
dicidade (ensaio de uma reposição crítica) — I. A crise. Coimbra: Almedina, 1967, passim [ver muito es-
pecialmente pp. 63-84 (§ 3º “O processo que conduz da “crise” à “crítica” e § 4º “O objecttivo: a crítica”)].
Vejam-se também as páginas iniciais de O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito,
policop., terceira versão, Coimbra-Lisboa, 1997, pp. 3-9 (2. “A crise e a crítica” e 2.1. “Conceitualização
prévia: o conceito de crise e a sua relação com a exigência crítica”).
16 Para compreender a especificidade desta “particular criação cultural” e do seu contexto enquanto continui-
dade (projectado na experiência do tempo da “nossa civilização greco-romana, judaico-cristã e europeia”),
ver muito especialmente a síntese proposta em “O problema da universalidade do direito — ou o direito
hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas”. In: Digesta, vol. 3, op. cit., pp. 111 e
ss. (III). Ver também “Pensar o direito em tempo de perplexidade”, op. cit., 7-10 (II.”O contexto histórico-
-cultural civilizacionalmente global. As polaridades histórico-culturais”)
17 Uma demarcação que nos obrigaria a tematizar o Método como uma operatória (se não como uma técnica)
e então e assim não só a determiná-lo prescritivamente mas também a atribuir-lhe o território (analitica e
112
cronologicamente) estanque de um posterus: como se se tratasse de reconhecer a técnica que vem depois da
ciência... ou pelo menos de autonomizar-isolar um conjunto de cânones (ou de regras de correcto proceder) que
pressuporiam a (que viriam depois da) estabilização dogmática (eventualmente, também depois da objectiva-
ção-especificação da validade que esta traduz ou pode traduzir).
18 Confronto que Castanheira Neves defende como uma das tarefas nucleares da teoria do direito de que hoje
precisamos (uma teoria que diz precisamente crítico-reflexiva). Para além da Teoria do direito. op. cit., passim,
vejam-se também as sínteses propostas em O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, poli-
cop., terceira versão, op. cit., pp.65-86, e muito especialmente em “Entre o ‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’
ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do
direito”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 1 e
ss., agora também no Digesta, vol. 3, op. cit., pp. 161 e ss. Como é sabido, trata-se de assumir uma proposta de
diferenciação (e de “explicitação sistemática”) das perspectivas (se não “paradigmas”) de compreensão “pelas
quais se oferece hoje a juridicidade”: uma proposta que nos autoriza precisamente a contrapor normativismo,
funcionalismo e jurisprudencialismo, mas também a distribuir o segundo pelas modalidades principais do fun-
cionalismo material e do funcionalismo sistémico.
19 Ver supra, nota 7.
20 Já assim na Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, op. cit.,
p. XI da Introdução.
113
Dizer que cada uma destas dimensões constitutivas deve ser identificada na
perspectiva da dinâmica em que participam… não significa no entanto invocar
uma conformação pré-determinada deste movimento (e muito menos garantir
aproblematicamente o seu êxito). É (será) de resto antes como um desafio explí-
cito — permanentemente assumido on the edge e sob o fogo de interrogações
radicais — que me proponho acentuar aqui esta experiência de irredutibilidade
(e a conclusion-claim de interdependência que lhe corresponde).
Como um desafio... e como um desafio situado. Um desafio que só estaremos
em condições de invocar (e de levar a sério) vivendo-experimentando o pathos
de “perdição” e de “autocriação” de uma hora de “abalo”23. E que hora de “aba-
lo” (enquanto representação-experiência de uma circunstância prático-cultural
irrepetível) senão aquela em que nos reconhecemos feridos pela crise de uma
certa ideia da Europa e da civilização de direito que esta construiu... se não já
também “comovidos” pelas possibilidades-promessas de uma pós-filosofia e de
um pós-direito24?
114
Que desafio é este... que se cumpre, como acabámos de ver, em nome da reci-
procidade constitutiva da dimensão intencional e da dimensão da realização? Na
nossa circunstância presente não será já só nem principalmente aquele que nos
incita a rejeitar em bloco a frente de reinvenção jusnaturalista (e os seus rastos,
mais ou menos persuasivamente defendidos)...
Isto na medida em que nos impede de conceber a validade pres-
suposta como um núcleo de significações pré-determináveis em
abstracto, reconduzíveis a uma “universalidade intencional” au-
tossubsistente — uma universalidade que pudesse (re)conhecer-se
antes (ou pelo menos independentemente) da sua realização con-
creta (e como um “modelo absoluto” desta realização)26...
25 Acentuar esta predeterminação não significa evidentemente ignorar as “feridas” que a frente da Allgemeine
Rechtslehre abriu e a produtividade com que tais feridas vieram a ser assimiladas! Uma dimensão esta
que procurei explorar em “Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria”, In: ALVES, João Lopes et al.,
Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, op. cit., pp. 261 e ss.
26 Ver muito especialmente CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da filosofia do direito no contexto da
crise global da filosofia, op. cit., pp. 37-52.
27 Num outro texto, complementar deste [“Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em
espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema” (a publicar em breve)] — apresentado também
num encontro em torno de Castanheira Neves (Porto, Universidade Lusófona, 5 de Novembro de 2009)
—, a consideração dos problemas do mundo e do pensamento prático (no seu contexto global) alarga-se a
outras tensões (de que aqui não tratamos directamente): refiro-me ao contraponto dogmático / crítico (ao
problema de uma normatividade crítica), mas também ao contraponto juridicidade / moralidade.
115
nos submete. Tensão ou tensões estas que nos obrigam a enfrentar o círculo va-
lidade /realização acentuando (hipertrofiando!) factores e representações que o
tornam particularmente vulnerável? Podemos concluir que sim. Não tanto por-
que se trate de admitir que os problemas a ter em conta se nos exponham ilu-
minados (amplificados) pela vertigem de uma configuração patológica (e pelo
traço grosso que esta exige) quanto porque se trata de reconhecer que a tensão ou
tensões em causa só nos atingem (e só se tornam enquanto tal experimentáveis)
se levarmos a sério uma situação-limite. Ora uma situação-limite de interpene-
tração e de incorporação recíproca, se não mesmo já de “oposição em ninho” (a
nested opposition is a conceptual opposition where the opposed terms “contain
each other”)28. Uma situação na qual o sofrimento-solidão provocado pela frag-
mentação e pela incomensurabilidade — eventualmente também pelo abismo
sedutor de uma discursividade em degraus, infinitamente prosseguida (e pela
vertigem de incomunicabilidade que esta agrava) — se torne indissociável da
procura de uma “intercompreensão na existência”29 (de uma exigência de comu-
nicação que não seja apenas de “entendimento para entendimento” ou de “espíri-
to para espírito”... mas de “existência para existência”30). Ou se quisermos, uma
situação-limite na qual a celebração (-consagração) prescritivamente feliz da plu-
ralidade (por uma vez livre da nostalgia da unidade perdida) se deixe permanen-
temente (mas nem por isso menos paradoxalmente!) ferir pela urgência de uma
cooperação (material!) entre experiências e formas racionais31. Uma situação-
-limite que — já mergulhando no universo específico do direito — nos autorize
a mobilizar a vocação integradora da intenção à validade (e a força condutora
da sua perspectiva normativa) na mesma medida em que reconhecemos que as
resistências à univocidade de uma coordenação material se tornaram dimensão
constitutiva tanto das práticas de realização juridicamente relevantes quanto das
práticas que exteriormente as condicionam. O que é ainda e significativamente
perguntar —arriscarmo-nos a perguntar — se (e até que ponto é que) assumir um
diagnóstico-experiência de pluralidade não nos condena à celebração regulativa
correspondente (obrigando-nos a aceitar diversos caminhos e as autorreflexões
que os orientam e que simultaneamente estes constroem).
28 Estamos evidentemente a mobilizar BALKIN. “Nested Oppositions”, Yale Law Journal, vol. 99, 1990, pp.
1669 e ss. Para um esclarecimento da categoria, ver infra, nota 112.
29 A expressão (convocada embora explicitamente a propósito de Habermas) é de Castanheira Neves, “Uma
reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do direito?”.
In: Digesta, vol 3, p. 90.
30 Jaspers, op. cit., p. 26.
31 No sentido do processo de “cooperação material” entre “formas vitais” que a transversale Vernunft (Ver-
nunft als transversale Vernunft, Vernunft als Dimension der materiale Übergänge) de Welsch nos incita a
descobrir: ver exemplarmente Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta Humaniora, 1991,
pp. 315-318 (“Transversale Vernunft und postmoderne Lebensform”).
116
32 Estamos evidentemente a dizê-lo com Fish... e então e assim a identificar a reflexão em causa com uma “teoria”
ou cálculo teorético (theoretical calculus): entenda-se — no sentido (amplíssimo) que o Autor de Doing What
Comes Naturally nos incita a reconhecer —, como uma prática discursiva ou como um projecto interpretativo
que, invocando o significante direito ou as expectativas que o determinam (dizendo-se dogmática ou metodolo-
gia jurídicas, teoria ou filosofia do direito), tem por objectivo (e por horizonte de relevância) dirigir-se a outra
prática ou acervo de práticas (também elas iluminadas por uma pretensão de juridicidade). Para uma considera-
ção do problema do cálculo teorético em Fish (com as indicações bibliográficas indispensáveis), veja-se o nos-
so Constelação de discursos ou sobreposição de comunidades interpretativas? A caixa negra do pensamento
jurídico contemporâneo, Porto, edição do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, 2007, pp.16-21 (1).
33 Identificado com a naturhistorische Anschauungsweise des Rechts e com a operatória (Handwerkzeug) que
o sustenta e que se diz Método Jurídico... mas também (evidentemente) com outros formalisms (e rule con-
ceptualisms) anglo-saxónicos... e então e assim, se quisermos, com um grande eixo iluminado pelas sínteses
fecundas da Theorie der juristischen Technik de Jhering e do system of classification de Langdell.
34 Trata-se de partir da circunstância de um pensamento que — sendo discurso e prática (acervo de discursos e
de práticas) — perdeu (superou) o seu modelo (sem o ter substituído por outro). Sendo certo que a experiência
a ter em conta é menos a da consumação de um discurso dominante do que a da reacção-resposta a esta perda:
uma reacção que terá multiplicado as propostas de compreensão do direito (e os projectos interpretativos que
as especificam), enquanto permite que as práticas-labours dos juristas e das comunidades dos juristas — e as
situações institucionais que as estabilizam — sejam disputadas por um espectro sem precedentes de possibi-
lidades (com horizontes intencionais e processos de racionalização inconfundíveis, se não incomensuráveis).
117
Com um resultado global que nos atinge como uma justaposição ou como
uma soma (eventualmente como uma sobreposição-overlapping) de experiên-
cias autorreflectidas — cada uma delas a procurar reagir à ausência de uma
linguagem comum... e neste sentido também a escolher um caminho37...
β) E aquele que reconhece os sinais da fragmentação-divisão (e os rastos
com que estes nos ferem) considerando exclusivamente a pragmática destes tes-
temunhos — ou esta enquanto pressupõe, mas também enquanto reproduz, a
experiência inconfundível de um confronto (entre testemunhos rivais).
Não um confronto qualquer — que nos surpreenda apenas pela
frequência e intensidade dos seus lances e pelos “resultados” de-
vastadores que estes provocam (the loth of faith concerning the
availability of objective criteria, the intensification of the conflict
among the community of legal actors, the dissolution of any ge-
nuine consensus over important values38) —, mas um confronto
118
39 Com o alcance que o diagnóstico (conjunto) de Levinson e de Balkin nos permite reconhecer: “[There is
an] increasing amount of scholarship, especially in the elite journals, that is about other legal scholarship,
rather than about primary legal materials like statutes and cases. Legal scholarship becomes an increas-
ingly self-contained, self-referential discipline, which is “about itself” as much as it is about the legal
world outside, either law on the books or law in action. As interdisciplinary movements like law and
economics or law and literature spring up, they begin to focus not on their relationship to the work of
lawyers and judges, but to their own internal coherence and justification. Legal interpretation is replaced
by legal theory, which is replaced by meta-theory, which is replaced by meta-meta theory, and so on…”
(LEVINSON, Sanford; BALKIN, Jack. “Law, Music and Other Performing Arts” (1991), University of
Pennsylvania. Law Review, vol. 139, 1991, p. 1652).
40 Um efeito que nos expõe aos riscos do esoterismo (e da incomunicabilidade, se não impotência) dos
discursos teoréticos, na mesma medida em que entrega estes — enquanto desfazem e refazem a urdidura-
-trama que os outros engendram — a um implacável jogo de Penélope. O jogo que Duncan Kennedy
denuncia enquanto surpreende o movimento perpétuo dos discursos que recriam (positivamente) a pre-
tensão de neutralidade do julgador (how judges can and should be neutral). “ There is no extant theory
that threatens to end the current ideological conflict abut method by compelling a consensus about how
119
judges can and should be neutral. Indeed, the current multiplicity of contradictory theories of neutrality
seems a powerful, though of course not conclusive refutation of all of them. I am an admirer of their work
of mutual critique. I endorse Dworkin’s critique of Richard Posner along with Andrew Altman’s critique
of Dworkin and Fiss’s doubtless forthcoming critique of Altman, and Posner’s critique of Fiss (if there is
one) and on around the circle. This is not musical chairs but more like a game of “Penelope”, in which each
writer simultaneously weaves his own and unweaves other’s work…” [KENNEDY, Duncan. A Critique of
Adjudication (fin de siècle). Cambridge Mass., Harvard University Press, 1997, p. 91, itálicos nossos].
41 Vozes que assumiam esta procura enquanto discutiam a possibilidade-impossibilidade de um paradigma-
centro… ou pelo menos, a oportunidade de reconstruir-propor (de determinar prescritiva e empiricamente)
uma canonicidade profunda (the background strucures of “law-talk” that shape conversation within and
concerning the law (…) including (…) characteristic forms of legal argument, characteristic approaches
to problems, underlying narrative structures, unconscious forms of categorization, and the use of canoni-
cal examples): assim em “Legal Canons: an Introduction”. In: BALKIN; LEVINSON (Ed.). Legal Can-
ons. New York, 2000, pp. 5, 14-24 (“Deep Canonicity”).
42 A primeira associada à gramática narrativa de um semiotic turn (susutentado na teoria do significado de
Greimas), a segunda vinculada ao convencionalismo pragmático de Fish.
120
43 JACKSON, Bernard S. Making Sense in Jurisprudence. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1996,
p. 346. Para uma consideração do problema da especificidade dos grupos semióticos juridicamente rele-
vantes (num diálogo com Greimas, Landowski e muito especialmente Jackson), veja-se o nosso Entre a
reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença. Coimbra: Coimbra Editora,
2001, pp. 582 e ss., 592 e ss., 610 e ss.
44 Ver supra, nota 22.
45 “[An] increasing divergence in canon construction among (…) sociolegal (…) groups may be a sympton of
an increasing differentiation in purposes among academics, lawyers, and judges (in addition to the profes-
sional differentiation that has always existed between lawyers and citizens). Each interpretative community
may have its own canon (or set of canons), and although these canons surely overlap, they may also diverge
in particular respects…” (BALKIN; LEVINSON. “Legal Canons: an Introduction”, op. cit., p. 11).
46 E que continuaria a condicionar-nos na sua insuperabilidade… ainda que admitíssemos que uma das vozes
em diferendo na academic house conseguiu finalmente impor-se às outras (e preparar o terreno para um
novo discurso dominante).
121
los diagnósticos que se lhe dirigem e pelos meios-recursos que este mobilizam
(no limite também por um horizonte compreensivo sensível à pluralidade dos
contextos e das convenções performativas, se não mesmo à multiplicação dos
usos… e dos usos que constroem sentidos)? Não será difícil reconhecê-lo. Sem
esquecer no entanto um outro problema. O das ameaças que hoje se dirigem à in-
tegridade destes grupos e micro-grupos. Ameaças que comprometem a unidade
dos sociolectos e dos cânones profissionalmente mobilizáveis e a plausibilidade
das situações institucionais que estes garantem (se não a clausura que sustenta os
respectivos instrumentos de persuasão e a relação com os auditórios que estes
pressupõem). Antes porventura de imporem a fragmentação do projecto inter-
pretativo e das finalidades que o iluminam47. Ameaças que, como vemos, tornam
esta experimentação da pluralidade vulnerável à primeira. Como se os grupos
e micro-grupos em causa, preservando embora a identidade que os fecha uns
perante os outros, se nos expusessem enfim atingidos pela impossibilidade de re-
construir (teoreticamente) um projecto integrante e pelo contraponto-confronto
das vozes que pretendem reagir a esta impossibilidade — vozes que, como sabe-
mos, partem exclusivamente de um destes grupos...
Acentuação no entanto que não nos obriga a reconhecer um fogo unilateral
— desencadeado-desferido apenas pela academic house —, que antes nos incita
47 Como se tivesse deixado de fazer sentido falar por exemplo do modus operandi e dos procedimentos ca-
nónicos que distinguem (em bloco) a comunidade ou o grupo semiótico dos advogados, impondo-se-nos
antes reconhecer que as situações de leitura e que os processos de racionalização permitidos devem ser
hoje distribuídos (divididos) por um espectro de concepções possíveis e pelas “imagens” que lhes corres-
pondem. Imagens que nos expõem à(s) herança(s) do bad man de Holmes e às possibilidades (pluralmente
assumidas) de reconstituir empírico-explicativamente a sua estratégia-jogo (e a situação de incerteza com-
petitiva que o justifica)… na mesma medida em que — numa zona de fronteira alimentada pelas seduções
contrapostas das frentes law as science e law as politics (dos Progressive Legal Realists e dos Radical
Legal Realists, da Law and Economics Scholarship e dos critical scholars) — nos oferecem modelos de
escolha racional mais ou menos determinados (e a projecção operatória que os assimila). Imagens ainda
que nos obrigam a mergulhar no debate individualismo/comunitarismo: porventura para (com James Boyd
White) reconhecermos as “situações de leitura” (se não mesmo as formas de vida) dos advogados Euerges
e Euphémios — o primeiro comprometido com um certo pluralismo individualista (“liberal” latissimo
sensu), o segundo a assumir uma explícita vocação comunitária (e a “cultura retórica do argumento” que a
torna possível).
Imagens que se multiplicam… se quisermos considerar as “situações institucionais” do julgador, exigindo
agora que (entre muitos outros exemplos possíveis) se reconheçam (se demarquem) os territórios-projectos
do juiz administrador (consagrado pelo Estado Providência) e do juiz-”centro do sistema” (justificado
pela reprocessualização pós-instrumental), do juiz político do grande consenso constitucional (táctico
comprometido com uma grande estratégia material) e do juiz (ou juízes) da comunidade dos princípios…
sem esquecer decerto aqueles que vinculam o julgador a um critério de maximização da riqueza ou que o
responsabilizam por uma estratégia política alternativa… mas também aqueles que o incitam a convocar
o exemplum da ética da alteridade (se não a mergulhar num continuum “prático-poiético”). Para uma re-
constituição deste espectro com um número muito mais alargado de interlocutores, vejam-se os nossos “A
representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz: o “testemunho” crítico de um “diferendo”?” e “Ju-
risdição, diferendo e “área aberta”. A caminho de uma “teoria” do direito como moldura?”, op. cit., passim.
122
48 Mantendo-se a distribuição de Fish apenas como um meio expressivo (sem as implicações que o Autor lhes
atribui).
49 Neste sentido, cfr. Fernando Araújo, “Pontos de interrogação na filosofia do direito”, Revista de Direito e
de Estudos Sociais, ano XLVIII (XXI da 2ª Série), nos 1-2, 2007, pp. 148-149 (34.).
50 A ética suportada por uma política, se não por um processo de politicização permanente (e a exigir uma
espécie de continuum prático): neste sentido (invocando o problema das alternativas ao direito assumido
por Castanheira Neves e sustentando a possibilidade de reconhecermos uma quarta alternativa, precisa-
mente a da ética, com frentes de reinvenção muito distintas, que poderão ir da ética das virtudes comu-
nitarista à ética da alteridade da Desconstrução, passando pela(s) ética(s) do continuum das espécies),
cfr. o nosso “O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e Derrida”, Themis — Revista
da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, VIII, n. 14, 2007, p. 50, nota 165 [remetendo
para “A ética do continuum das espécies e a resposta civilizacional do direito. Breves reflexões”, Boletim
da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra, 2003, pp. 197 ss., 214-215 e “O logos da juridicidade sob o
fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law as literature, literature as law)
à analogia com uma poiesis-techné de realização (law as performance)”, Boletim da Faculdade de Direito
LXXX, Coimbra, 2004, op. cit., pp. 65-66, 132-135]. Para uma consideração do problema (acentuando
a importância de reconhecermos limites ao direito como “corolário” do “sentido da sua autonomia”), ver
muito especialmente CASTANHEIRA NEVES. “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva
do futuro”, op. cit., pp. 69-81 (III., 1.) e “Pensar o direito num tempo de perplexidade”, op. cit., pp. 27-28
(V.2. “Os limites do direito”).
51 Com o sentido que Luhmann sustenta, enquanto nos ensina a descobrir a “forma de diferenciação inter-
na” (autopoieticamente construída e assim livre de qualquer “conotação hierárquica ou orgânica”) que
convoca o sub-sistema judicial para o centro do sistema. Uma forma de diferenciação que, mobilizando
a proibição da denegação da justiça e reconhecendo nesta um operador decisivo (no qual todo o sistema
aparece afinal implicado), garante às decisões judiciais — em confronto com as decisões dos legisladores
123
também aquelas que condenam a dogmática (se não todo o Juristenrecht) a as-
similar teleologias alheias (acompanhando assim um direito que, no seu ímpeto
regulatório, se pulveriza em muitos direitos52). Ou ainda aquelas que — indepen-
dentemente dos movimentos académicos que as mobilizam — se expõem nas
práticas dos movimentos sociais e nas identidades narrativas que as sustentam
(o género, a raça, a orientação sexual, a militância religiosa, a construção de uma
identidade ambientalista). Sem esquecer aquelas que são favorecidas (quando
não construídas) por dinâmicas internas (a começar certamente pela hipertrofia
normativa da constitucionalização). Ou ainda aquelas que (no plano já da teo-
ria do direito) nos obrigam a discutir verdadeiros problemas de fronteira(s)53:
bastando-nos aqui e agora convocar os percursos exemplares (e exemplares tam-
bém pelo espectro que os distingue) do narrativismo comunitarista, da Law &
Economics Scholarship e dos Crits da “terceira geração”54 (incluindo a(s) Femi-
e com as decisões da autonomia privada — um muito maior “isolamento cognitivo” (o isolamento que
as impede de reconhecer nos “efeitos sociais” critérios juridicamente relevantes). “In der Peripherie wer-
den Irritationen in Rechtsform gebracht ― oder auch nicht. Hier garantiert das System seine Autonomie
durch Nicht-entscheiden-Müssen. Hier wird sichergestellt, daß das Recht nicht einfach als willenlose
Fortsetzung rechtsexterner Operationen fungiert. Das Zentrum bedarf dieses Schutzes ― gerade weil es
unter der entgegengesetzten Prämisse operiert. Deshalb arbeiten Gerichte, verglichen mit Gesetzgebern
und Vertragschlieβenden, unter viel stärkerer kognitiven Selbstisolation…“ (Das Recht der Gesellschaft.
Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1993, p. 322). Para uma consideração deste modelo centro / periferia, na sua
relação decisiva com o paradoxo constitutivo do sistema jurídico — um sistema jurídico que só poderá
garantir a sua autonomia se contiver (se incluir, se fizer sua), ou se pelo menos não excluir a negação desta
autonomia (e com esta também a negação das convenções que a protegem) [Ibidem, p. 545] —, vejam-se
os nossos “A “abertura ao futuro” como dimensão do problema do direito. Um correlato do pretensão de
autonomia?”. In: NUNES, Avelãs; COUTINHO, Miranda (Ed.). O direito e o futuro. O futuro do direi-
to, op. cit., pp. 397-412, e “Rechtsdogmatik, Autonomie und Reduktion der Komplexität. Brauchen die
Gerichte ein Sicherheitsnetz?”. In: SCHWEIGHOFER et al. (Hg.). Komplexitätsgrenzen der Rechtsin-
formatik. Tagungsband des 11. Internationalen Rechtsinformatik Symposions IRIS 2008. Boorberg Verlag,
Stuttgart, 2008, pp. 464-467 (1.).
52 É um dos factores do diagnóstico de crise desenvolvido por Castanheira Neves em “Uma reflexão filosófica
sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou a recuperação da filosofia do direito?”, op. cit., pp. 78-79.
53 Com o alcance que David Howarth (insitindo nos mesmos exemplos de base) nos ajuda a reconhecer: ver
“On the Question ‘What Is Law?’”, Res Publica, n. 6, 2000, pp.264-275 (“Boundary Disputes and Con-
cepts of Law”).
54 A “geração” da fragmentação (concentrada nas identidades narrativas da perspectiva interrogante) que
Minda propõe como terceira geração [MINDA, Gary. Postmodern Legal Movements. Law and Juris-
prudence at Century’s End. New York/London: New York University Press, 1995, pp. 106 e ss., 123-127
(“Late-1980s Critical Legal Studies”)]. Uma sistematização-divisão esta que sempre seguimos no nosso
programa de Teoria do direito [ver Sumários Desenvolvidos (A), “As alternativas da “violência mística”
e da “escolha racional” — I. A Correcção Situada das Injustiças ou a Procura Frustrada de uma Violência
Mística?”. Coimbra, 2001-2002, polic., pp. 3 e ss.], que vemos também assumida por Ana Margarida
Gaudêncio [Entre o centro e a periferia: a perspectivação ideológico-política da dogmática jurídica e
da decisão judicial no Critical Legal Studies Movement (Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-
-Filosóficas). Coimbra, polic., 2004 (a publicar em breve), pp. 3 e ss., 6 e ss. (Parte I) ] — e que não obs-
tante se distingue daquela que Günter Frankenberg propõe em “Partisanen der Rechtskritik: Critical Legal
Studies, etc”, In: BUCKEL; CHRISTENSEN; FISCHER-LESCANO (Hrsg.). Neue Theorien des Rechts.
124
Stuttgart: Lucius & Lucius, 2006, pp. 96 e ss. [autonomizando uma primeira geração mais próxima da
teoria do direito neomarxista, uma segunda a superar esta sob a influência de Foucault (mas também já
da crítica feminista) e uma terceira (que corresponde à segunda autonomizada por Minda!) a assumir o
literary turn desconstrucionista… sem esquecer depois (como que num quarto tempo!) a fragmentação e
os Post-Critical Legal Studies que esta abre…].
55 Ibidem, pp. 101-102.
56 Será inevitavelmente assim no entanto? Até que ponto com efeito (e com que necessidade) é que os
passos desta avaliação se nos impõem? Não dependerá a sucessão que constroem ainda integralmente
da compreensão da autonomia (do direito e do pensamento jurídico) que é assumida pelo formalismo
normativista... uma compreensão que a avaliação em causa pretende rejeitar (cuja rejeição pelo menos
diagnostica como irreversível)?
125
57 A não ser porventura quando se trata de, pela negativa, identificar o programa de autonomia-Isolierung do
normativismo e outros formalismos…
126
127
60 Para uma exploração deste corpus da compreensão jurisprudencialista (enquanto núcleo de “pressupostos
fundamentantes”), ver CASTANHEIRA NEVES. Apontamentos complementares de teoria do direito —
Sumários e Textos, policop., Coimbra, 1998, (versão em fascículos) pp. 71-86, (versão em A4) 40-47.
61 Diferenças inevitáveis e imediatas… não só porque as referidas vozes pressupõem diferentes especifica-
ções deste horizonte global, mas também porque, como veremos, lhe atribuem um papel ou um contributo
distintos: num espectro de possibilidades que poderá ir da assimilação pura e simples (no limite de uma
transposição-projecção aproblematicamente unilateral do mundo prático global para o mundo prático do
direito) até à construção de uma conversação responsável, na qual o referido horizonte seja tratado como
o interlocutor indispensável de um diálogo possível (sendo o outro interlocutor precisamente aquele que
assume as preocupações e a identidade institucionalmente específica do universo do direito). Importando
antecipar que é nas oportunidades deste último pólo que se inscreve a resposta jurisprudencialista…
128
62 HEIDEGGER. Sein und Zeit. 18. ed. (reimpressão da 15ª). Max Niemeyer Verlag Tübingen, 2001, p. 310.
63 Ver infra, 2.2.3.1.1.
64 Decerto do teorético especulativo que fora alimentado pela virtude intelectual da sophia (e pela institucio-
nalização pré-moderna da conexão telos / êthos) — aquele que “neutralizava” as coisas da prática como
objectos. Mas também do teorético científico justificado pela hipertrofia da episteme… e pela sua apropria-
ção irreversível da technê — hipertrofia aquela e apropriação esta (diria Heidegger!) consumadas, se não
convertidas em metafísica, pela experiência da modernidade. Sem esquecer por fim aquele outro teorético
filosófico que, ao dizer-se dialéctica ou ao obrigar esta a esquecer a sua “proveniência” — Herkunft e a
romper assim o vínculo constitutivo com a tópica (para invocarmos o diagnóstico de Bubner!), se apro-
priou da história para a dizer racional e se pré-determinar como método ou discurso do método (BUBNER,
Rüdiger. Dialektik als Topik. Bausteine zu einer lebensweltlichen Theorie der Rationalität. Suhrkamp,
Frankfurt am Main, 1990, p.9, 79 e ss., 88-96).
Para uma exploração do sentido desta filosofia prática em geral e da sua recusa do primado do teorético
em particular, “tanto do teorético filosófico como do teorético puramente científico”, ver CASTANHEIRA
NEVES. O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira versão, Coim-
bra/Lisboa, 1982-1983, I. Prolegómenos, 2ª lição, 2.a), pp. 22 e ss., 24-27.
129
130
70 Uma abordagem que nos permite tratar a convergência empiricamente determinável e os seus resulta-
dos contingentes como manifestações-sinais (mais ou menos explícitos) desta pré-compreensão… e neste
sentido discutir na perspectiva desta (e do commune que antecipa) a plausibilidade e os limites de tais
resultados e dos consensos que estes asseguram.
71 A pluralidade assimilável pelo projecto da societas.
72 Aquela que só o projecto cultural da communitas está em condições de assimilar.
131
73 “[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate themselves from
the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal, tradition-independent
norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and is the project of
modern liberal, individualist society…” (MACINTYRE. Whose Justice? Which Rationality? London:
Duckworth, 1988, p. 335)
74 “[N]unca até então os interesses, na sua radical expressão económica, se tinham reconhecido como
autónoma dimensão humana — ou melhor, como dimensão humana socialmente autónoma…” (CAS-
TANHEIRA NEVES. “A imagem do homem no universo prático”. In: Digesta — escritos acerca do
direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. vol. 1 Coimbra: Coimbra Editora, 1995,
pp. 327-328)
132
75 “Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e que convoca a
prática para o desempenho irrenunciável de “tarefas” (...) em que se projecta essa sua vinculação ou com-
promisso, os fins desvinculados pelo “mecanicismo” moderno da teleologia ontológica, são agora tão só
opções decididas pela subjectividade que programa os seus objectivos (...), decerto sempre condicionados
por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles — comunga-se nos
valores, diverge-se nos fins e nos interesses...” [CASTANHEIRA NEVES. Teoria do direito (versão em
fascículos), pp. 154-155, (versão em A4), pp.85-86]
76 NUSSBAUM, Martha. “Virtue Ethics: A Misleading Category?”, The Journal of Ethics, vol. 3, 1999,
pp.179-188 (“The Anti-Utilitarians; Expanding Reason’s Domain”). As formulações citadas no texto en-
contram-se nas pp.182-183. Para uma crítica à relativa fragilidade desta construção na proposta de Martha
Nussbaum (em confronto nomeadamente com uma autêntica distinção entre valores e fins), veja-se o
nosso “Imaginação literária e “justiça poética”. Um discurso da “área aberta”?” In: TRINDADE, André
Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo (Org.). Direito & Literatura: Discurso,
Imaginário e Normatividade. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2010, pp. 269-306, muito especialmente
o ponto 4.2.1. (pp. 290-291).
77 Não sendo preciso acrescentar que se trata também de libertar estas virtudes (e os discursos racionais que
estas geram) do horizonte de inteligibilidade de uma ordem necessária — daquela ordem que só a “con-
templação” iluminada pela sophia (enquanto exigência de experimentar a articulação telos / êthos como
uma energeia autónoma, cumprida como bios e como mimesis) estaria afinal em condições de garantir.
133
78 Cfr. a síntese destas “modalidades” ensaiada por Kurt Seelmann em Rechtsphilosophie. München, Beck,
3 ed. (ampliada), 2004, pp. 193 e ss. (“Kommunitaristische Gerechtigkeitstheorien”). Sem esquecer as
reflexões de Castanheira Neves em A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, op. cit., pp.92-96 (2).
79 Para uma consideração de alguns aspectos deste contraponto (concentrado nas vozes exemplares de MacIn-
tyre por um lado e de Charles Taylor e Michael Walzer por outro lado), veja-se o nosso “Humanitas, singula-
ridade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O “pormenor” do direito na “ideia” da Europa
das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista”, Dereito. Revista xurídica da Universidade de
Santiago de Compostela, vol. 15, número 1, 2006, pp. 17 e ss., 34-53 (3.4. e 3.5).
80 Para uma síntese deste contraponto (concentrada nas vozes de Boyd White e Martha Nussbaum), veja-se o
nosso “Imaginação literária e ‘justiça poética’. Um discurso da ‘área aberta’?” op. cit., ponto 3.2. (pp. 285-287).
81 Cfr. a síntese proposta por Castanheira Neves na Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra:
Coimbra Editora,1993, pp.70-78. Para uma reconstituição crítica das exigências da hermenêutica compreen-
siva como “filosofia prática” e como “método” (nos seus cruzamentos exemplares com o discurso jurídico),
ver ainda O actual problema metodológico da interpretação juridica, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2003,
pp. 46-107, 362 e ss., 378 e ss. e A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia.
Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, op. cit., pp. 58-68.
134
82 Para uma exploração das principais linhas destas promessas de comunidade, vejam-se os nossos: Entre
a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, op. cit., pp. 92 e ss. e
181-211 (o contributo de Foucault), 221 e ss. e 462-507 (a estética do sublime de Lyotard); e “Auto-
transcendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de Force de loi” (2004), Ars
Iudicandi. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves (Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, número especial), volume I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008,
pp. 551-667 (a proposta de Derrida) [ver também “O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com
Levinas e Derrida” (2006), Themis — Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa,
VIII, n. 14, 2007, pp.5-56 e “Dekonstruktion als philosophische (gegenphilosophische) Reflexion über
das Recht. Betrachtungen zu Derrida” (2005), Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie (ARSP), Band 93
/ 2007, Heft 1, pp. 39-66].
135
83 MACINTYRE. Whose Justice? Which Rationality?, op. cit., pp. 349 e ss. (“The Rationality of Tradi-
tions”), 370-388 (“Tradition and Translation”).
84 After Virtue. A Study in Moral Theory (1981), op. cit. na segunda edição (com Postscript), London: Duck-
worth, 1985, pp. 204-225 (“The Virtues, the Unity of a Human Life and the Concept of a Tradition”), 272
e ss. (“The Virtues and the Issue of Relativism”).
85 “Nietzsche ou Aristóteles?”, entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre. In: BORRADORI. Conversa-
zioni americane, 1991, op. cit. na trad. portuguesa A filosofia americana. Conversações. São Paulo: Unesp,
1998, p. 203.
136
137
O que, sem qualquer surpresa, há-de cumprir-se nas (ou pela mediação das)
narrativas que alimentam (e que acompanham ou que renovam como memória)
um certo percurso existencial irrepetível. Só que aqui como uma (ou como a
antecipação regulativa de uma) ontogenética totalizante: na qual mais do que a
aprendizagem importe reconhecer o cultus (mais do que o iter de decantação a
vis de reconciliação) das “virtudes intelectuais” envolvidas. Como se se tratasse
ainda… de hesitar — e de hesitar em termos constitutivamente irredutíveis! —
entre uma comunidade de histórias partilhadas (prolongada numa pragmática
narrativa também comum) e a comunidade-praxis de um certo cuidado-Sorge
(iluminada pelo compromisso ético da “tradução”).
Ao ponto de, na intensificação reflexiva da compreensão (como ati-
tude originária), se inscrever já (mas agora como resposta ou solução
apaziguadora) a celebração de uma escolha (que é sobretudo aquisi-
ção e aposta) antropológica — precisamente aquela que transmuta
o homem finito em cultor triunfante do argumento, o “destinatário”-
-vítima da contingência em “tradutor” circular e fecundamente au-
topoiético”, o opositor estratégico em Vernunftsperson93. Perspecti-
va que nos autorizará a inscrever os critérios pressupostos e os seus
possíveis programas de fins numa teia argumentativa dominada
pelo prius da “situação retórica”... e isto enquanto (e na medida)
em que convoca recursos-armas inconfundíveis:
(a) recursos que nos incitam a descobrir o “arquétipo” performa-
tivo da prática e do pensamento prático na pragmática do texto
narrativo … e então e assim a desvendar um universo-polis94 de
“situações institucionais” — um universo que não só é habitado
pela linguagem prática (da interacção e da criação) e pela lingua-
gem cultural do “saber” (e dos materiais e recursos pressupostos)
93 WHITE. Heracles’ Bow. Essays on the Rethoric and Poetics of the Law. Madison: The University of Wis-
consin Press, 1985, pp. 227 e ss, Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal Criticism. Chicago
/London: The University of Chicago Press, 1990, pp. 264-267 “The central image is that of autopoiesis,
the organism making itself in interaction with its environment. In the process both organism and environ-
ment change. There is no one way the universe is constituted, no ultimate ontology upon which everything
can be grounded. All species, all individuals, all languages and cultures and communities, are engaged
alike in a process of reciprocal change” (Ibidem, 266).
94 “What kind of community shall it be? How will it work? In what language shall it be formed? These are the
great questions of rhetorical analysis. It always has justice and ethics — and politics, in the best sense of that
term — as its ultimate subjects. (…) Like lawyers, literary readers are also members of community defined by
their shared interest in a set of texts, and whether they know it or not, both groups are always asking and answer-
ing the central question: what kind of community shall we be? (…) Many-voicedness; the integration of thought
and feeling; the acknowledgment of the limits of one’s own mind and language (and an openness to change
them); the insistence upon the reality of the experience of other people, und upon the importance of their stories,
told in their words — these values, implicit in this kind of reading (…) are all in fact essential to our own best
ideas of justice. They are political as well as intellectual and aesthetic virtues. And they are political virtues not
only in the reading and writing of law, but in the reading and writing of anything …” (Heracles’Bow…, op. cit.,
pp. 39, 79, 132, itálicos nossos).
138
95 Heracles’Bow…, op. cit., p.172 “The law is a way of creating a rhetorical community over time (…): it is a
culture that makes us members of a common world. This culture is not reducible to rules, but it is objective, in
the sense that it can be found and mastered and in the sense as well that it cannot be disregarded or unilateraly
changed. Like the text produced by a single mind, the text produced by the culture has a genuine force and
reality notwithstanding its irreducibility to rules or to scientific “knowledge”…” (Ibidem, p. 98).
96 Ibidem, p. 175.
97 Os ensaios decisivos são agora os dois últimos capítulos de Justice as Translation: pp. 229 e ss. (“Translation,
Interpretation, and Law”), 257 e ss. (“Justice as Translation”). Para uma compreensão da tradução por um
lado como núcleo (metódico) de um interdisciplinary work possível, por outro como especificidade do huma-
nistic work, ver também From Expectations to Experience. Essays on Law and Legal Education. Michigan:
The University of Michigan Press, 1999, pp. 69-71 (V), 97-102 (II). “For whatever the merits of the social
sciences as methods for making and informing social policy, they cannot be applied to what is more distinc-
tive about what lawyers and judges actually do, which is to discover, determine, interpret and compose legal
texts (…). [Scientific] “methods” cannot simply be applied to the law, any more than its “findings” can. There
must be a process of translation (…) [which] is at heart compositional and literary, in fact a form of writing
(…). Humanistic work can thus be seen as a species of “translation”.…” (Ibidem, pp. 70, 102).
139
140
2.2.2.2. Com um segundo patamar a exigir por sua vez que este mundo prá-
tico nos fira na (e através da) convocação (reflexiva) de uma escrita primordial
(archi-écriture ou écriture première)104 e da violência assimétrica (irredutível)
que esta gera (urgence précipitative, violence irruptive, précipitation essentiel-
le105). Uma violência que se impõe a todos os discursos... agora enquanto subme-
te o sujeito descentrado (humilhado) pela linguagem à condição estruturante de
uma cadeia de “citações” (substituições) — e com esta à prioridade de um jogo
de reenvios entre significantes (ao qual nenhum significado escapa).
À inevitabilidade do contexto ou das práticas de contextualiza-
ção (there is nothing outside context106)? Antes à inevitabilidade
da “abertura indefinida de todos os contextos” (the finiteness of a
context is never secured or simple, there is an indefinite opening
of every context, an essential nontotalization107). Uma abertura que
nos entrega a uma específica “interpretação da interpretação” e à
aventura-acontecer a que os seus exercícios singulares nos sub-
metem: àquela “interpretação da interpretação” que (enquanto de-
constructive (...) pragrammatological (...) way of reading) se mos-
tre capaz de assumir cada um dos contextos de significação e de
realização possíveis, reconhecendo simultaneamente o pagus de
estabilidade-instabilidade que estes especificam — na mesma me-
dida em que se dá conta do movimento-trama (espacial e tempo-
ralmente indefinido) em que tal contextualização se integra e dos
limites (de estabilização e superação) que a condicionam (decons-
truction (...) [as] the effort to take the limitless context in account,
to pay the sharpest and broadest attention possible to context and
thus to an incessant movement of recontextualization108).
104 Archi-écriture (ou écriture première) que, como se sabe, pretende iluminar as pressuposições (de repeti-
bilidade-espaçamento e de temporalização-substituição-transferência) que são comuns à palavra escrita
(concept vulgaire d’écriture) e à palavra falada — na mesma medida em que nos ensina a escapar à hiper-
trofia da substância fónica e do système du “s’entendre parler” (e a denunciar a máscara-disfarce imposta
pela “concepção ocidental da linguagem): De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967, pp. 15-21, 82 segs.
105 Force de loi. Le “fondement mystique de l´autorité”. Paris: Galilée, 1994, pp. 59, 60. Recordemos que esta é
a terceira e a mais completa das versões que Derrida propôs para este ensaio. As duas anteriores versões (pu-
blicadas respectivamente em inglês e alemão) são Force of Law: The “Mystical Foundations of Authority”
(1989) e Gesetzeskraft. Der “mystische Grund der Autorität”, (1991). Para uma consideração das especifici-
dades que distinguem estas três versões (e um comentário desenvolvido à proposta que lhes corresponde”),
veja-se o nosso “Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita”, op. cit.
106 DERRIDA. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited Inc, Northwestern University Press,
1988, p. 136.
107 Ibidem, p. 137
108 Ibidem, p. 136. “The ties between words, concepts and things, truth and reference, are not absolutely
and purely guaranteed by some metacontextuality or metadiscursivity. However stabilized, complex, and
overdetermined it may be, there is a context and one that is only relatively firm, neither absolutely solid
(fermeté) nor entirely closed (fermeture), without being purely and simply identical to itself. In it there is
a margin of play, of différence, an opening; in it there is what I have elsewhere called “supplementarity”
(…) or “parergonality”(…). These concepts come close to blurring or dangerously complicating the limits
between inside and outside, in a word, the framing of a context…” (Ibidem, p. 151)
141
109 Com o alcance que a reconstituição de Welsch nos autoriza a reconhecer: cfr. Unsere postmoderne Moder-
ne, op. cit., pp 143 ss. (“Jacques Derrida oder Differenz und Verstreuung”).
110 Contraponto différence / différance que nos remete para a lição capital de “La ‘différance’” (1968), op. cit.
na tradução alemã “Die différance”. In: ENGELMANN, Peter (Hrgb.). Postmoderne und Dekonstruktion.
Stuttgart: Reclam, 1990, pp. 76 e ss. “L’archi-écriture (…) qui est origine de l’expérience de l’espace et du
temps (…), première possibilité de la parole, puis de la “graphie” au sens étroit (…), cette trace est l’ouver-
ture de la première extériorité en général, l’énigmatique rapport du vivant à son autre et d’un dedans à un
dehors : l’espacement. Le dehors, extériorité “spatiale” et “objective” dont nous croyons savoir ce qu’elle
est comme la chose la plus familière du monde, comme la familiarité elle-même, n’apparaîtrait pas sans le
gramme, sans la différance comme temporalisation, sans la non-présence de l’autre inscrite dans le sens
du présent, sans le rapport à mort comme structure concrète du présent vivant…” (De la grammatologie,
op. cit., pp. 96, 103, itálicos nossos).
111 Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Balkin (e outras referências bibliográficas),
vejam-se os nossos “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos...”, op. cit., pp.
84-135, “Recht als dramatische und musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?”. In: SCHWEI-
GHOFER; LIEBWALD; DRACHSLER; GEIST (Hrsg.). E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht.
Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik, Tagungsband des 9. Internationalen Rechtsinformatik Symposions
Iris Wien 2006, Stuttgart/München, Richard Boorberg Verlag, 2006, pp. 468-475 “Autotranscendentalida-
de, desconstrução e responsabilidade infinita”, op. cit., pp. 651-655, e ainda “… literária e “justiça poéti-
ca””, op. cit., passim. Ver ainda Ana Margarida Gaudêncio, Entre o centro e a periferia, op. cit., passim [e
a recensão de Cultural Software proposta no Boletim da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra 2003, pp.
847 e ss.]. Sem esquecer MOSSO, Breno Pena. A assimilação da desconstrução por Jack Balkin. Disser-
tação de mestrado em Ciências Jurídico-Filosóficas apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, policopiado, Coimbra, 2009, passim.
112 “To deconstruct a conceptual opposition is to show that the conceptual opposition is a nested opposition
— in other words, that the two concepts bear relations of mutual dependence as well as mutual differentia-
tion. (…) [T]he concept of an indefinite, rather than an infinite, responsibility better corresponds to the very
important relationship of mutual differentiation and dependence that must always exist between law and
justice…” [“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, Jack Balkin Home Page, disponível
em: <http: /www.yale.edu/lawweb/jbalkin>. Extraído em: 29/11/2000), op. cit., parte II, “A Responsibility
Without Limits”, ps. web 14 e 15]. Para compreender o sentido das nested oppositions e da teoria-grelha
que as sustenta — e desta (teoria) como uma das peças decisivas do tratamento (“instrumental”) da des-
construção (as normative transcendental deconstruction) proposto por Balkin (every conceptual opposition
can be reinterpreted as some form of nested opposition / a nested opposition is a conceptual opposition
where the opposed terms “contain each other” / the deconstructive concepts of différence and “trace”
142
Na mesma medida, no entanto, em que defende uma concepção (ou pelo me-
nos um “tratamento”) “instrumental” da desconstrução — por uma vez assumida
como “método”.115 Na mesma medida, sobretudo, em que — recusando o apelo
implicitly rely upon notions of nested opposition /to deconstruct a conceptual opposition is to show that the
conceptual opposition is a nested opposition) —, cfr. (para além do texto decisivo que acabámos de citar)
também “Nested Oppositions”, Yale Law Journal, vol. 99, 1990, pp. 1669 e ss., 1683-1687 (“Nested Oppo-
sitions in Legal Doctrine”), Cultural Software. A Theory of Ideology, Yale 1998, pp. 221-222 (“Mediation,
Subcategorization and Nesting”), 226 e ss. (“The Economy of Oppositional Logic”), 230 e ss. (“Nested
Privileging”), 234–235 (“Categories As Nested Oppositions”), 235 e ss. (“Suppression and Projecting”).
113 É este problema que ilumina “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit. [ver muito
especialmente a Introdução e o ponto V (“Deconstruction as a Normative Chasm”), respectivamente parte
I, ps. web 1-8 e parte III, ps. web 1-4], antes de justificar um dos capítulos centrais de Cultural Software,
op. cit., pp. 142 e ss. (“Transcendence”).
114 “By a transcendental value, I mean (…) a value that is inchoate and indeterminate, which human beings
must articulate through culture but which is never fulfilled (…), a value whose existence is presupposed
by some essential human activity. Thus the argument for the existence of a transcendental value is tran-
scendental; the existence of the value must be presupposed given the nature of the activity. Hence we can
also speak of transcendent values as “transcendental” values. (…) Transcendent ideals of truth and justice
are presupposed in our understanding of encounters between people as encounters between subjects of
justice — that is, as a sort of entities that can be treated justly or unjustly. (…) We need them to understand
the meaning of human action in encounters with others … (…) Our encounter wiht the Other causes the
transcendent norm magically to spring to life” (Cultural Software…, op. cit., 144, 146, 147, 150)
115 Um contributo que se nos impõe na série constituída por “Deconstructive Practice and Legal Theory”,
Yale Law Journal, vol. 96, 1987, 743 e ss., “The Domestication of Law and Literature”, Law and Social
Inquiry, 1989, vol. 14, 787 e ss., “Tradition, Betrayal and the Politics of Deconstruction”, Cardozo Law
Review, vol. 11, 1990, 1623 e ss., “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., “Being
Just With Deconstruction”, Social and Legal Studies, vol. 3, 1994, 393 e ss., “Deconstruction”. In: PAT-
TERSON, D. (Ed.). A Companion to the Philosophy of Law and Legal Theory. London, 1996, “Decon-
struction’s Legal Career” (1998) [o primeiro e os cinco últimos disponíveis na Jack Balkin Home Page, op.
cit.]. “To be adapted to the needs and concerns of the legal academy, (…) as it moved from philosophy to
literature and then to law (…), deconstruction had to be translated and altered in significant ways, making
it more flexible, practical, and attentive to questions of justice and injustice. (…) Its transformation even-
tually produced a deconstructive practice in law that emphasizes a sensitivity to changes in interpretive
143
context, a pragmatic attitude towards conceptual distinctions, and a careful attention to the role of ideology
and social construction in legal thought” [“Deconstruction’s Legal Career”, Jack Balkin Home Page, op.
cit. (extraído em 24-11-2000), parte I, p. web 1].
116 “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., II, A. (“The Infinite and the Indefinite”),
op. cit., parte I, ps. web 12-14, Cultural Software, op. cit., toda a parte II, pp. 99 e ss. (“Ideology”).
117 “The encounter between deconstruction and justice has changed both parties; yet, of the two, deconstruc-
tion appears to be the more transformed. If deconstructive practice is to be of any use to the question of
justice, it must become a transcendental deconstruction. It must exchange the logic of the infinite for that
of the infinite. It must act in the service of human values that go beyond culture, convention and law. It
must recognize the chasm that differentiates human values from articulated conceptions of it, and it must
identify Deconstruction with that chasm…” (“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op.
cit., parte III, p. web 5).
118 HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 18 ed. (reimpressão da 15ª). Max Niemeyer Verlag Tübingen, 2001,
p. 309
119 Ibidem, p. 310.
144
145
128 GADAMER. “Replik”. In: APEL; BORMANN; BUBNER; GADAMER; GIEGEL; HABERMAS. Her-
meneutik und Ideologiekritik. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1971, p. 289. Para um desenvolvimento, ver
Wahrheit und Methode, op. cit., na trad. castelhana da 4 ed. (Tübingen, 1975), Verdad y metodo. Salamanca,
Ediciones Sigueme, 1977, pp. 326 e ss. (14. “El lenguaje como horizonte de una ontología hermenéutica”).
129 “Am Ende ist die aristotelische Tugend der Vernünftigkeit, die Phronesis, die hermeneutische Grundtu-
gend selbst. Sie diente mir als Modell für meine eigene Gedankenbildung. So wurde in meinen Augen
die Hermeneutik, diese Theorie der Anwendung, das heisst des Zusammenbringens des Allgemeinen
und des Einzelnen, ein zentrale philosophische Aufgabe...” [GADAMER. “Probleme der praktischen
Vernunft”. In: DERBOLVA et al. (Hrsg.). Sinn und Geschichtlichkeit — Werk und Wirkungen Theodor
Litts. Stuttgart, 1980, p. 155]. Para além do desenvolvimento indispensável de Wahrheit und Methode
[Verdad y Metodo, op. cit., pp. 331-458 (nos 9, 10 e 11)], ver ainda “Die Begründung der praktischen
Philosophie”, o posfácio à tradução (proposta por Gadamer em 1998) do Livro VI da Ética a Nicómaco
(ARISTOTELES. Nikomachische Ethik VI. hrsg. und übers. von Hans-Georg Gadamer. Frankfurt am
Main, Klostermann, 1998, pp. 61-67).
146
130 Cfr. o referido nº 11 de Wahrheit und Methode [Verdad y Metodo, op. cit., pp. 415 e ss., 446 e ss.(agora ex-
plicitamente a propósito do “carácter original da conversação”)]. A fórmula “selectivamente anestesiante”,
devêmo-la com alcuna licenza a Dunne (selective sedation) e à sua análise exemplar do wirkungsgechi-
chtliches Bewußtsein: DUNNE, Joseph. Back To the Rough Ground. Practical Judgment and the Lure of
Technique. Notre Dame Indiana, University of Notre Dame Press, 1993, p. 117.
131 Ao contrário do que acontece decerto com a celebração da singularidade-irrepetibilidade justificada pelas li-
nhas desconstrutivistas… na qual a acentuação do novo não é acompanhada por esta exigência de tratamento.
132 Crítica decerto insustentável (perante uma perspectiva exemplarmente assumida como trama de logoi)... e
que no entanto vemos dirigida por Kaufmann (com alguma equivocidade embora... e sem acertar no alvo
pretendido!) a todas as chamadas teorias da argumentação jurídica... e depois recorrentemente glosada por
representantes incondicionais da vertente hermenêutica! Ver KAUFMANN. Rechtsphilosophie. München,
1997, op. cit. na trad. portuguesa Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, pp.72-73.
147
133 Outra das críticas (manifestamente injustas ou pelo menos desadequadas, porque dirigidas sem discrimina-
ção a um amplíssimo common ground) que vemos autonomizadas por Kaufmann, ibidem, p.73.
134 CASTANHEIRA NEVES. Metodologia Jurídica, op. cit., pp.71-74.
135 BUBNER. Dialektik als Topik, op. cit., p. 64.
136 Alimentada eventualmente (já na sua projecção no universo do direito) pelo horizonte de inteligibilidade
de uma Rhetorische Rechtstheorie, com o alcance que Viehweg nos ensina a reconhecer: ver neste sentido
Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie. Gesammelte kleine Schriften. Baden-Baden, Nomos
Verlagsgesellschaft, 1995, pp. 191 e ss. (III. “Zur Rhetorische Rechtstheorie insbesondere”)
137 Ibidem, p. 106. Ver ainda CASTANHEIRA NEVES. “A unidade do sistema jurídico…”, op. cit., pp.114-116.
138 BUBNER. Dialektik als Topik, op. cit., p. 7. Para um desenvolvimento, ver pp. 79-87 (“Dialektik und Topik”)
148
... não é no entanto decerto para explorar o contraponto que os seus percursos
e pretensões de equilíbrio determinam (ou para testemunhar o espectro de pos-
sibilidades que estes oferecem)141. É antes para reconhecer que a exigência de
enfrentar hoje o problema do direito e de o enfrentar interrogando a sua procura
— discutindo a plausibilidade — “pontualidade” (se não urgência) prático-cultu-
rais da demarcação humano / inumano que a sua praxis (de acontecimentos-de-
cisões-interpelações) está em condições de autonomizar — não pode cumprir-se
se nos contivermos neste patamar, entenda-se, se cedermos à tentação (fácil!142)
de admitir que o testemunho da juridicidade de que hoje precisamos...
…e de que hoje precisamos sempre que se trate de, resistindo ao do-
mínio do eixo episteme-technê/technê-episteme, querer reagir à co-
lonização ameaçadora da Zweckrationalität (e com esta a uma com-
preensão inteiramente determinada pelo horizonte da societas143)...
139 Tensões a que me refiro explicitamente em “Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em
espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema”, op. cit.
140 De uma societas no entanto que, na claridade matinal da sua concepção, encontrara o seu impulso constru-
tivo principal na pressuposição de uma outra necessidade (a da ratio, onto-antropologicamente sustentada).
141 Se assim fosse, não poderíamos deixar de convocar outros interlocutores indispensáveis à tematização do
pensar em círculo, a começar por Ricoeur e Jauss!
142 Sempre fácil... embora nos exija quase sempre também um percurso reflexivo eriçado de dificuldades!
143 Ou pelo menos alimentada pela convicção de que é possível ver na exclusividade deste horizonte uma
etapa evolutiva historicamente insuperável!
149
144 A expressão é de Castanheira Neves, tendo sido especialmente mobilizada na comunicação de abertura de
um Seminário de teoria de direito do Programa de Doutoramento e Mestrado em Direito da Universidade
Federal do Paraná (Curitiba, 26-29 setembro de 2007), seminário no qual tive o gosto e a honra de par-
ticipar. A sistematização proposta distinguia de resto diversas teorias do direito externas (assimiladoras,
analíticas, redutoras, construtivistas), reservando-se a qualificação assimiladora para a proposta exemplar
da Nova Hermenêutica e para o seu “optimismo” [para uma alusão a esta última atitude de resposta (“a
resposta está dada!”), ver “O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no
encontro humano-dialogante das culturas”, op. cit., p.118].
145 Uma exigência especialmente defendida pela proposta de Lénio Streck e que — com um importante con-
tributo do Autor (“Interpretando a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta”) — constitui o núcleo
temático do quinto número da Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), Porto Alegre, 2007
(número este intitulado precisamente A filosofia no direito e a filosofia do direito).
146 De tal modo que a perspectiva-alvo (a que se resiste) seja aquela que nos aparece a consagrar o domínio
informativo e metódico das ciências sociais empírico-explicativas — se não a confimar-consumar uma das
profecias de Holmes (the man of the future (…) for the rational study of law (…) is the man of statistics
and the master of economics); de tal modo ainda que o exercício de resistência se cumpra à luz do apelo
não menos persuasivo do juiz Learned Hand — exigindo que as práticas e discursos do direito passem a
integrar a “nobre república das Letras”… ou pelo menos reconhecendo que estas práticas e os pensamen-
tos que as pensam permanecem “inacabados” (feridos na sua integridade ou entregues a arbítrios incon-
troláveis) se não forem “alimentados” pelas (ou se não encontrarem “apoio” e “exemplo”— edification
nas) “fontes de conhecimento externo” que “as humanidades” (incluindo a filosofia e a crítica literária)
lhes proporcionam. Para reconstituir este exemplar “tale of two speeches”, elenquentemente narrado por
Balkin e Levison, ver “Law and Humanities: An Uneasy Relationship”, Yale Journal of Law & the Hu-
manities, vol. 18, pp. 155-160 (“Introduction: Is Law Part of the Humanities? A Tale of Two Speeches”).
150
151
147 Podendo quando muito admitir-se que, num segundo plano (analítica e cronologicamente separado), se
procurem eventuais afinidades electivas que favoreçam a projecção no universo do direito de algumas das
interpretações do mundo prático, nomeadamente daquelas em que o eixo da phronesis apareça mais clara-
mente autonomizado...
148 CASTANHEIRA NEVES. “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., p. 57.
152
149 Que outro problema senão o que Castanheira Neves nos ensina a descobrir quando reconstitui as condições
de emergência da juridicidade e nos confronta com as “alternativas ao direito” que resultam da abstracção
da chamada condição ética? Trata-se, com efeito, de contrapor a ordem de validade do direito à ordem
de necessidade do poder e à ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas também à ordem de
finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente) possíveis. Para além
dos importantes desenvolvimentos propostos nas lições nos 7 (“O por-quê do direito”) e 8 (“As alternativas
ao direito”) de O problema actual do direito, op. cit., primeira versão, e muito especialmente em “Coorde-
nadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito
como direito”, op. cit., passim [este último conjugado com as últimas páginas de A crise actual da filosofia
do direito, op. cit., pp.140-147 (V)], cfr. ainda “O princípio da legalidade criminal”. In: Digesta, op. cit.,
vol 1, pp. 413-419, “O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o problema actual do
direito”, ibidem, pp. 287-310, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, op. cit., pp. 231-234, “Pes-
soa, direito e responsabilidade”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 6, 1996, pp. 38-40 e O direito
hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, op. cit., pp. 53 e ss (IV) [ambos
também no Digesta, op. cit., vol.3, respectivamente nas pp. 154-155 e 62 e ss.]. Sem esquecer as sínteses
mais recentes propostas em ““Uma reflexão filosófica sobre o direito — “o deserto está a crescer...” ou
a recuperação da filosofia do direito?”, op. cit., pp.94-96, “O problema da universalidade do direito ou o
direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas”, op. cit., pp.118-121, “O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp.59-63, “Pensar o direito num tempo
de perplexidade”, op. cit., pp.11-15.
150 Ver especialmente “O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade”. In: RI-
BEIRO, J. A. Pinto (Coord.). O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto,
1999, pp. 87-114.
153
151 Trata-se de mobilizar a caracterização da “acultural” way of understanding the rise of modernity — em
contraponto com a “cultural” way — que Charles Taylor propõe em “Inwardness and the Culture of
Modernity”. In: HONNETH; MCCARTHY; OFFE; WELLMER (Hg.). Zwischenbetractungen im Prozess
der Aufklärung. Jürgen Habermas zum 60. Geburtstag. Suhrkamp, Frankfurt, 1989, pp. 601-623 [caracte-
rização que sintetiza também em “Two Theories of Modernity” (1993), The International Scope Review,
volume 3, n. 5, 2001, disponível em: <http://www.socialcapital-foundation.org/journal/volume%202001/
issue%205/ taylor_presentation.htm>. Extraído em: 02/10/2006.
152 Sem esquecer que as emergências destas três autonomias (“filosófica”, prático-jurisprudencial e cultural)
correspondem a três momentos inconfundíveis da aventura civilizacional da resposta direito (de um direito
que se descobre sucessivamente como sentido e como especulação filosófica, como prática jurisprudencial
e como domínio cultural universitariamente reconstituído e comunicado) — numa conjugação-construção
que o discurso medieval (ao assegurar a terceira das autonomias e ao assimilar-reinventar as outras duas)
pôde traduzir na relação sapientia / scientia / pru-dentia. Cfr. neste sentido o Sumário desenvolvido pro-
posto por Castanheira Neves na primeira sessão do II Programa de Doutoramento (Faculdade de Direito
de Coimbra, ano lectivo de 2001/2002), O actual problema da autonomia do direito, I) Introdução, 1.a),
b) e c) [“Se para os gregos o direito era um problema filosófico — intencionalidade que se mantém na
dimensão teológico-filosófica — e para os romanos era uma prática, uma experiência socialmente pru-
dencial, volve-se agora numa dogmática (numa dogmática hermenêutica). Pelo que a autonomia do direito
passa a ser uma autonomia cultural: o direito não se especula apenas, nem se pratica só prudencialmente,
estuda-se e reconstitui-se dialéctico-culturalmente — o logos jurídico torna-se hermenêutico-dialéctico. O
que se manifesta secularmente no ius commune…” (Ibidem, 4)] — sistematização que vemos retomada e
desenvolvida em “O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro
humano-dialogante das culturas”, op. cit., pp. 111-116 (III).
153 A formulação é de Georges Steiner (sendo certo que o autor de The Idea of Europe não se refere aqui à
invenção romana do direito… mas ao “pensamento grego” e à “moral judaica”): The Idea of Europe, op.
cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa. Lisboa: Gradiva, 2006, p. 53.
154 Que outra “claridade matinal” senão aquela que inventa o “nome” humanitas (unter ihrem Namen wird
die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt) [HEIDEGGER. Über den Humanismus. Frankfurt:
154
Vittorio Klostermann, 1947, p.19]… e que o inventa como contexto e correlato de uma praxis de respon-
sa? Enquanto experimenta uma especificação inconfundível da virtude intelectual da phronêsis — uma
especificação que a “secularização” grega da praxis (ao assumir o problema da resolução de controvérsias
relativas a acontecimentos passados em continuum com as projecções éticas, político-arquitectónicas,
político-deliberativas e até económicas dessa virtude) não fora capaz de libertar [Bastará invocar a lição do
Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 8 (VI, 8 / 1141b23-1142a11)!] … —, mas sobretudo enquanto garante que
a procura correspondente e que o sentido da humanitas (e do homo humanus) que esta persegue — alimen-
tados embora pelo “fogo de Prometeu” da cultura grega (e pela sua filosofia da “justiça”) — se cumpram
como um processo (permanente) de correcção-especificação da ordem material pressuposta e da intenção
à validade que se lhe dirige (capaz de a reconhecer e de a assumir como ius)… e então e assim também
indissociados (constitutivamente indissociados, prático-culturalmente indissociáveis) de uma experiência
de realização. Daquela experiência que só o juízo-julgamento, enquanto tratamento prudencial das con-
trovérsias-casos (sustentado num cálculo de tipos e numa hipostasiação institucional radicalmente nova,
mas também num exercício determinante de relativização-comparação de sujeitos iguais e responsáveis)
está (estará) em condições de garantir [Invoque-se sempre a lição imprescindível do primeiro capítulo de
Lombardi, Saggio sul diritto giurisprudenziale. Milano: Giuffré, 1967, passim]
155 Se não dominada pelos dominada pelos pólos irredutíveis de Atenas e de Jerusalém — e pelos deveres de
fidelidade (aos filósofos e aos profetas) com que estes (e as suas heranças) oneram uma certa “ideia da Europa”.
Sem esquecer que é esta mesma polaridade constitutiva (ferida no seu equilíbrio, porventura já submetida a
uma hipertrofia mais ou menos clara do segundo pólo) que nos condena a uma interrogação radical (ao dever de
perguntar se a nossa circunstância presente exige afinal um reencontro com a humanitas distinto daquele que a
resposta direito determina). Uma interrogação radical em que, no limite, é a própria “ideia da Europa” — para
além porventura da possibilidade de continuar a distingui-la como “civilização de direito” (ou de continuar a
ver neste um dos seus “pormenores” decisivos) —, que claramente se discute (de cuja identidade se duvida).
155
o sentido que quis (e que quer continuar a ver) no direito uma solução específica
para o “problema do histórico-social encontro, se não desencontro, humano no
nosso espaço de coexistência e convivência156”.
Reconhecida a especificidade-responsabilidade deste compromisso, urge mos-
trar em que termos é que a aposta jurisprudencialista, ao reconstituir crítico-re-
flexivamente o mundo humano do direito — ao exigir uma reconstituição crítica
deste mundo humano que seja “axiológico-normativa nos fundamentos, prático-
-normativa na intencionalidade e judicativa no modus metodológico”157 —, en-
frenta (faz seus) os desafios do círculo (e do pensar em círculo)… e muito espe-
cialmente aqueles que o binómio unidade /pluralidade especifica158. Tratando-se
de resto de reconhecer (de acentuar) outras tantas respostas específicas, que só
esse mundo prático (condicionado embora pelas exigências e interpelações de
outros mundos práticos) está por assim dizer em condições de assumir. Res-
postas com uma identidade mas também com uma produtividade indissociáveis
desse mundo e da sua dimensão normativa… aptas, neste sentido, a solucionar
problemas — ou pelo menos a institucionalizar (a garantir institucionalmente) a
procura de soluções para problemas — que o referido horizonte global se limita
a considerar ou a manifestar-exprimir aporeticamente (a começar certamente por
aquele que confronta pressuposição dogmática e reflexão crítica ou que nos de-
safia a procurar-reconhecer os limites de cada um destes pólos159).
Respostas que não iremos evidentemente desenvolver. Que nos limitaremos
a acentuar (quase sempre a traço grosso), distribuindo-as analiticamente por três
eixos possíveis.
3.1. O primeiro eixo de respostas a ter em conta concentra-nos no processo de
institucionalização internamente assumido pelo mundo prático do direito — ou
mais rigorosamente na inter-relação constitutiva que vincula as oportunidades de
construção-reconstrução dos sentidos comunitários (e da validade fundantemente
crítica que os contextualiza) à exigência de projectar estas numa determinação
normativa plausível (que possa dar conteúdo à validade intencionada).
156
160 Ver principalmente: “A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen)”.
In: Digesta — escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. vol. 2.
Coimbra: Coimbra Editora, 1995, pp. 134-155 (2. “Os pressupostos”), “O actual problema metodológico
da realização do direito”, ibidem, pp.251-256 (I, 2. e 3.), 272-281 (III 3.), Metodologia Jurídica. Pro-
blemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp.78-79, “O direito interrogado pelo tempo
presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp. 59 e ss., 66-67 (b).
161 Assim em “Pensar o direito num tempo de perplexidade”, op. cit., pp.19-20 (IV.1.).
162 As leituras indispensáveis (entre muitas outras possíveis) são agora as de “A unidade do sistema jurídi-
co…”, op. cit., pp. 165-174.
157
163 Ibidem, pp. 170-171. Ver também O Instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais.
Coimbra: Coimbra Editora, 1983, pp. 230 e ss., 251-269 [δδ) “Unidade de ordenação a posteriori”], sem
esquecer evidentemente o Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, policop., Coimbra, 1971-1972, pp.
328-330 [δ) “O direito é uma intenção axiológico-normativa que se manifesta como um sistema aberto de
realização histórica”], 331 e ss. [2. “O conteúdo do direito (análise do sistema jurídico)”]
164 Ibidem, pp. 347-351 [d) A realidade jurídica (as instituições jurídicas)].
165 Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de experimentar o
“absoluto histórico” dos princípios normativo-jurídicos (e o sentido da autotranscendentalidade prático-
-cultural que se leva a sério no mundo do direito), importa ter presente a analítica da intencionalidade
normativa (em três níveis ou degraus) que Castanheira Neves tem desenvolvido ao invocar uma certa
consciência jurídica geral. Analítica que não iremos considerar, para cujas estações principais no entanto
imediatamente nos remetemos. São estas: “A revolução e o direito. A situação de crise e o sentido do di-
reito no actual processo revolucionário”. In: Digesta, vol. 1, op. cit., pp. 207-222 (11.), “Justiça e direito”,
ibidem, 273 e ss., “A unidade do sistema jurídico...”, op. cit., pp. 174-179, “Fontes do direito”. In: Digesta,
vol.2, pp.58-67 (“O momento de validade”), Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 278 e ss, “O direito inter-
rogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp. 63-65.
166 Ibidem, p. 155 e ss. Sem esquecer o Sumário de uma lição-síntese sobre “Os princípios jurídicos como
dimensão normativa do direito positivo (a superação de positivismo normativista)”, policop., Coimbra,
158
3.1.2.3. Sem esquecer ainda e por fim que a mais explícita das institucio-
nalizações do círculo é aquela que se cumpre distinguindo os diversos estratos
do sistema (e conferindo-lhes modos de vinculação-vigência institucionalmente
inconfundíveis). Trata-se com efeito de surpreender a regressividade problemá-
tico-constituenda deste sistema... ou de a surpreender reconhecendo um movi-
mento partilhado (determinado pela prioridade metodologicamente constitutiva
do caso-problema ou pela perspectiva que este assegura): aquele movimento que
se cumpre levando a sério diversos tipos de presunções (ditas de validade, auto-
ridade, racionalidade e justeza) e inscrevendo nelas (ou na assimilação dos tipos
de problemas experimentáveis) outras tantas possibilidades (metodologicamente
diferenciadas) de as refutar-ilidir (e de assumir os explícitos ou apenas implícitos
ónus de contra-argumentação).
Com os princípios a beneficiarem de uma presunção de validade
e a vincularem-nos enquanto validade, as normas a beneficiarem
de uma presunção de autoridade e a vincularem-nos enquanto au-
toridade (político-constitucional), o direito da jurisprudência ju-
dicial a beneficiar de uma presunção de justeza e a vincular-nos a
uma realização justa (prático-concretamente adequada) e à casu-
ística que a objectiva, o direito da jurisprudência doutrinal enfim
a beneficiar de uma presunção de racionalidade e a vincular-nos
prático-culturalmente nos limites discursivos da sua concludência
ou fundamentação críticas...
1976, sumário este permanentemente retomado e enriquecido em aulas preciosas, às quais tive o privilé-
gio de assistir.
167 “Fontes do direito”, op. cit., pp. 82-90 (4) e (5), Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 154 e ss., “O direito
interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp. 66-67(b). Ver também. o desen-
volvimento desta compreensão jurisprudencialista do sistema em geral e desta tectónica de presunções
em particular assumido por Fernando José Bronze em Lições de Introdução ao direito. 2. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2006, pp. 607-681… e ainda aquele que propus nos Sumários desenvolvidos de Introdu-
ção ao Direito II. Coimbra, 2009, disponível no material de apoio da página on line da respectiva unidade
curricular, <https://woc.uc.pt/fduc/>, pp. 86-123 (e também, autonomizado como “A compreensão juris-
prudencialista do sistema”, em <https://woc.uc.pt/fduc/class/getmaterial. do?idclass=282&idyear=6>).
159
168 WHITE, Boyd. From Expectation to Experience. Essays on Law and Legal Imagination, op. cit., 1999, p. 103.
169 Superação nem sempre lograda nalgumas das concepções que sacrificam a especificidade do jurídico a um
holismo prático-poiético.
170 Ver supra, nota 75.
171 Ver neste sentido Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 122-123.
172 Um dos paradoxos a que os fluxos da juridicização do poder e da politização do direito ou de instrumenta-
lização do direito pela política (potenciados pelos equívocos dos neoconstitucionalismos do nosso tempo)
160
inevitavelmente nos expõem. Para uma consideração (selectiva) de distintas dimensões deste problema
(ou que nele convergem), ver CASTANHEIRA NEVES. O Instituto dos “assentos” e a função jurídica
dos Supremos Tribunais, op. cit., pp. 583 e ss. (III a)), O problema actual do direito. Um curso de filosofia
do direito, policop., terceira versão, op. cit., pp. 15 e ss. [“O sentido moderno (moderno-iluminista) e pós-
-moderno da normatividade jurídica”], 62-64 (o problema da “identificação da juridicidade com a consti-
tucionalidade”), Metodologia Jurídica, op. cit., pp.195-196 (“A interpretação conforme a Constituição”),
Teoria do direito, op. cit., (versão em fascículos) pp. 224-227,(versão em A 4) pp. 121-124, “A redução
política do pensamento metodológico-jurídico”. In: Digesta, vol 2, pp. 404-409, “O direito interrogado
pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., pp.51-56 (b)).
173 Metodologia Jurídica, op. cit., p.150.
174 Uma reconstituição racional esta última que se situa certamente para além do que habitualmente se espera
do elemento teleológico... Não se trata com efeito apenas de reconstruir a finalidade prática da norma
legal; trata-se também de estar em condições de reconstituir o programa final explícito ou implícito (na
sua maior ou menor intenção transformadora, na sua maior ou menor vinculação político-ideológica) que
a prescrição em causa estabelece ou que partilha com outras prescrições (programa às vezes oculto sob a
máscara do programa condicional!). Como se, numa palavra, se tratasse de reconhecer a lei na imanência
de uma racionalidade instrumental-estratégica... para experimentar a sua adequação e a sua eficiência ou
realizibilidade maximizadora (ou a antecipação em abstracto que estes problemas permitem)...
161
(b) e a da norma como critério jurídico (se não mesmo como juízo problemá-
tico, autêntica expressão de um ius-dicere) constituído “no âmbito de um
sistema de normatividade jurídica” (sistema no qual é fundamentantemen-
te constitutiva uma intenção de validade).175
De tal modo que a prescrição legislativa nos apareça a respeitar os
limites de validade impostos pelos princípios normativos (dirigin-
do-se-nos como uma objectivação possível, entre outras objectiva-
ções possíveis, das intenções destes princípios). O que não é senão
exigir que a “decisão dogmática” que constitui a norma se mostre
“assimilável (ainda que só a posteriori) por um juízo-judicium”
singular e concreto (capaz de tratar-solucionar o problema-caso),
juízo decisório no qual “a prescrição” convocada como critério
“revele uma racionalidade de fundamentação normativa (a racio-
nalidade que a intenção de validade implica)”176.
Que perspectivas? As da ratio legis e ratio juris. Sendo certo que a interro-
gação da ratio legis nos concentra na procura do motivo-fim que determinou a
decisão da norma — na procura da sua justificação político-social e teleológico-
-estratégica (se quisermos na reconstiuição do seu argument of policy) —... e que
a problematização da ratio juris nos obriga já a confrontar esta teleologia com a
coerência normativa dos princípios (e dos correspondentes arguments of princi-
ple)... na mesma medida em que nos onera com a responsabilidade constitutiva
de “transcender aquela teleologia por estes fundamentos”177.
3.3. É a articulação dos dois eixos anteriores e das respostas que estes cons-
troem — numa última série de anotações indispensáveis — que nos vai permitir
voltar ao desafio da pluralidade. E para além decerto da experiência deste que
vemos assimilada pela prescrição-lex.
Para compreender enfim o modo como o mundo referido e construído pelas
práticas juridicamente relevantes institucionaliza a relação constitutiva unidade
/pluralidade? Antes para considerar o modo como este mundo (revisitado pela
reconstituição jurisprudencialista) pode e deve, na nossa circunstância presente,
institucionalizar uma tal tensão… — isto naturalmente se quiser estar à altura do
projecto-procura que o distingue (o autonomiza) na ordem da intencionalidade.
Institucionalizar esta tensão com que exigências? Sem renunciar à polaridade
que a dinamiza. E sem a reconduzir a uma conformação aporética. Mas também
sem que a reconstituição crítico-reflexiva que daqui resulte esteja condenada a
162
178 A alternativa que esboçamos no texto parte de uma conhecida distinção de Derrida. Trata-se de permitir
que a uma acentuação indiscriminada (e como tal trivial) da indeterminação da linguagem — que só pode
remeter-nos para um exercício de discricionaridade (demitindo-se de explorar este e as condições de
relevância que o singularizam) — se contraponha uma representação da necessidade da contextualização
e da abertura infinita de todos os contextos que (enquanto oscilação pragmática entre sentidos possíveis),
Derrida autonomiza precisamente como indecidibilidade: “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”,
Limited Inc, Evanston-Illinois, Northwestern University Press, 1988, pp. 148-149 (1.). O recurso a esta
distinção não implica no entanto que atribuamos à pragmática da indecidibilidade o alcance assumido por
Derrida (um alcance que a torna indissociável da experiência da différance e do movimento de recontex-
tualização que se diz dissémination). Trata-se muito simplesmente de invocar dois degraus da experiência
da indeterminação, o primeiro radicalmente aberto, o segundo já racionalmente controlado.
179 Este é um problema que tratei expressamente em “Jurisdição, diferendo e “área aberta”. A caminho de uma
“teoria” do direito como moldura?”, op. cit., passim.
180 Já assim no Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da Facul-
dade de Direito de Coimbra, op. cit., pp.331 e ss (“Os “princípios normativos” não são ‘normas’”).
181 Trata-se de autonomizar no fundamento a racionalização justificativa da inteligibilidade de um certo do-
mínio ou compromisso prático… e neste sentido de lhe atribuir o papel de um warrant argumentativo
163
autonomamente pressuposto (o fundamento justifica uma conclusão racionalmente plausível mas não nos
propõe uma solução ou tipo de solução, não nos dispensando assim do esforço discursivo de a obter). Como
se trata ainda de invocar o critério como “operador” (“técnico”) disponível, um operador que pode ser
imediatamente convocado para resolver um determinado tipo de problemas e (ou) que pré-esquematiza a
solução (exigindo não obstante um esforço discursivo de concretização-realização). Como se os critérios se
nos oferecessem como “objecto(s) da interpretação” e os fundamentos como os “elementos de concludência
racional que possibilitam, condicionam ou sustentam a própria interpretação”. O que nos permite reconhe-
cer que os princípios normativos (prolongados por algumas explicitações-objectivações da doutrina) se
nos ofereçam (e devam ser tratados metodologicamente) como fundamentos, devendo em contrapartida as
normas, os precedentes ou prejuízos jurisdicionais e a maior parte dos modelos dogmáticos ser assumidos e
experimentados como critérios.
182 A primeira (com um piscar de olhos a Virgínia Woolf!) a considerar globalmente o problema dos princípios
jurídicos, a segunda a referir-se já apenas ao contributo de Kant e à sua construção da “Paz perpétua” ou
aos princípios que esta assume (e então e assim a defender Kant de uma “injusta” crítica de Hegel). “A
principle (...) is not a rule (...). A principle is instead (…) a guiding light. It involves the appeal to and
enrichment of the “universal” within a particular nomos. We can think of a principle as the light that comes
from the lighthouse, a light that guides us and prevents us from going into wrong direction…” (COR-
NELL, Drucilla. The Philosophy of Limit. London: Routledge, 1992, p. 106). “La mejor aportación (...)
consiste en no ofrecer un solo camino (…), sino en ofrecer una brújula, en vez de un mapa de carreteras.”
(CORTINA, Adela. “Cosmopolitismo y Paz. La brújula de la razón en su uso político”, Revista Portuguesa
de Filosofia, 2005, vol. 61, fasc. 2, p. 390).
164
165
192 O passo por assim dizer mais natural: aquele que leva o jurista de um sistema de legislação a procurar a
norma legal e o jurista do common law a procurar o precedente vinculante... que assimilem a relevância do
seu problema-caso!
193 Recorde-se a distinção entre princípios como ratio, como intentio e como jus, na qual Castanheira Neves
tem exemplarmente insistido desde a sua citada lição-síntese… e que aqui e agora reconstituímos invocan-
do a mediação privilegiada das suas aulas e ensinamentos orais.
As concepções que vêem nos princípios apenas ratio (condições epistemológicas de uma racionalização
cognitivo-sistemática das normas legais) são, na verdade, herdeiras da compreensão normativística dos
princípios gerais de direito (e muito especialmente daquela que o positivismo conceitual desenvolveu na
segunda metade do século XIX) — uma compreensão que reduz o direito ao estrato das normas para ver nos
princípios gerais “normas mais abstractas e mais gerais” obtidas por abstracção generalizante ou concen-
tração-classificação (se não por indução) a partir das normas vigentes e com o objectivo claro de conseguir
um domínio cognitivo racionalmente mais logrado destas últimas e da unidade horizontal (por coerência)
que estas constituem… — normas que assim mesmo os princípios gerais não excedem normativamente, às
quais nada acrescentam no plano das “soluções” prático-normativas, com as quais (enquanto axiomas ra-
cionalmente imanentes) nunca entram em confronto (às quais nunca põem exigências de validade!)... cujas
significações se limitam a reproduzir-sintetizar...
Outra é a compreensão dos princípios como intenções (intentio). Segundo esta linha de compreensão (na
qual reconhecemos a herança neo-kantiana de Stammler), trata-se de admitir que as intenções-exigências
dos princípios têm já um sentido prático-normativo... excluindo no entanto a possibilidade de vermos nelas
autêntico direito vigente. Para constituirem direito vigente (para adquirirem juridicidade), estas intenções
têm, à luz desta perspectiva, que ser assimiladas pelas normas legais (a começar pelas leis constituticio-
nais) e (ou) pelos precedentes vinculantes — têm, numa palavra, que se manifestar em critérios positivos
166
167
197 “[A] ausência de hipótese-previsão nos princípios ou a sua indeterminação referencial, já que essencial
para eles é só o seu regulativo compromisso axiológico e prático, não impõe apenas que a sua normativi-
dade se determine realizando-se, solicita ainda uma compreensão prática (não simplesmente dogmática
ou lógica) dessa sua normatividade só possível de atingir-se mobilizando a dialéctica entre o seu regula-
tivo, que convoca à realização, e a prática (de acção e judicativa) em que encarne e a manifeste realizada.
Se as normas são autossuficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os princípios são
fundamentos “para tomar posição perante situações, a priori indeterminadas, que venham a determinar-
-se concretamente” (Zagrebelski). Em síntese: as normas legais esperam a sua aplicação e em último
termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsistência abs-
tracta; não assim os princípios, já que o seu verdadeiro sentido não é determinável em abstracto, e só
em concreto, porque só em concreto logram a sua determinação, e se lhes pode atingir o seu autêntico
relevo...” (CASTANHEIRA NEVES. O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito,
policop., terceira versão, op. cit., pp. 59-60).
198 Partindo embora de um horizonte radicalmente distinto (comprometido com a ética da alteridade e com
a desconstrução como filosofia) — e não deixando por isso de preservar com alguma ambiguidade os
topoi da indeterminação e das diversas alternativas de resposta —, Drucilla Cornell chega a uma exigên-
cia de diferenciação paralela (tanto mais exemplar precisamente quanto sustentada em pressupostos que
previsivelmente a levariam a trilhar um outro caminho). Tratando-se muito claramente de confrontar
a pretensão de autossuficiência e autossubsistência dos critérios-rules e o modo como esta legitima
uma “violência contra a singularidade” — legitimação que encontrará na compreensão do positivismo
jurídico (latissimo sensu) a sua consagração-forma (ontologicamente totalizante) — com a pretensão de
universalidade dos princípios e com o modo como esta é (ou deve ser) histórico-pragmaticamente assu-
mida (as for which principles we adopt within the nomos (…) of the law (…), we are left with the process
of pragmatic justification based on the ability of a principle to synchronize the competing universals
embodied in the nomos) [The philosophy of the limit, op. cit., p. 106]. Princípios que, não deixando de
perturbar a pureza do encontro ético e de “violentar” a diacronia do jogo das significações (principles
inevitably categorize, identify, and in that sense violate différence by creating analogies between the like
and the unlike) [ibidem, 105] nos aparecem não obstante a orientar uma prática racional de “redução”
da violência (e de respeito pelas diferenças). Decerto porque as exigências-compromissos que os distin-
guem vão ser experimentadas na perspectiva de cada situação-problema. Sem impor o “exacto caminho
a percorrer”, antes assumindo um potencial de fundamentação que supera as pretensões da resposta
única. Mas então e muito simplesmente excluindo as respostas que naquele contexto pragmaticamente
reconhecível — e naquele horizonte historicamente determinado — devam dizer-se “incompatíveis”
com a realização do seu compromisso. We can think of a principle as the light that comes from the light-
house, a light that guides us and prevents us from going in the wrong direction [ibidem, 106]. Ver ainda
“From the Lighthouse: the Promise of Redemption and the Possibility of Legal Interpretation”, Cardozo
Law Review, 11, 1990, pp. 1689 e ss.
168
199 CASTANHEIRA NEVES. Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, op. cit., pp. 347-351, “A unidade do
sistema jurídico...”, op. cit., pp. 172-174, “Fontes do direito”, op. cit., pp. 56-58, Metodologia Jurídica, op.
cit., pp.149,151 ess, 157 e ss., 176 e ss., 182-184.
200 Se as expressões rechtprivatlichen Institute e rechtöffentlichen Institutionen nos remetem para Carl Sch-
mitt, importa esclarecer que as usamos aqui apenas para distinguir os domínios normativos em causa e
contrapor assim o instituto da propriedade à instituição do habeas corpus, o instituto do casamento à ins-
tituição do contrato administrativo, o instituto do poder paternal às instituições do Estado-de-Direito (sem
as implicações que o konkretes Ordnungsdenken atribui a esta dicotomia).
201 Distintos assim dos “institutos” que, ao lado dos “conceitos”, o positivismo científico do século XIX isola-
va-construía como puras “individualidades lógicas”... na mesma medida em que irredutíveis aos princípios
ou critérios que normativamente os conformam... ou ao law in the books que os enquadra ou disciplina.
202 Um law in action assim mesmo conformado por uma precipitação-cruzamento (e interpenetração recipro-
camente constitutiva) de intenções normativas e de factores e experiências e práticas sociais (política, eco-
nómica ou culturalmente relevantes)... suficientemente estabilizadas para poderem ser reconhecidas como
realidades (“estruturas, esquemas ou tipos jurídico-sociais de actuação e de relação”): Curso de Introdução
ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano
lectivo de 1971-72, op. cit., p. 349.
203 Ibidem, pp. 349-350. Trata-se de identificar as realidades simultaneamente jurídicas e sociais que cor-
respondem ao exercício da autonomia privada (correlativas por exemplo da consagração pelas partes A
e B de um certo contrato ou cláusula contratual)... ou às práticas de especificação-realização de um certo
estatuto, mais ou menos convencionalmente objectivado (a realidade normativo-social que descobrimos
nas sociedades, associações e outros corpos autónomos ou nas práticas que os constituem).
204 Ver supra, 1.2.
205 Cânones que incluem evidentemente as regras ou bordões procedimentais autonomizadas por Fernando
Bronze como um dos estratos do sistema jurídico (aquelas que, segundo o Autor, beneficiarão de uma
presunção de prestabilidade): BRONZE, op. cit., pp. 670-671.
169
Por outro lado para considerar esta realidade plural na sua relação cons-
titutiva com os princípios: o que significa interpelá-la circularmente… tanto
como aquela realidade-referente que os princípios, na sua realização-determi-
nação, conformam (e que por isso mesmo “adquire” um “sentido juridicamente
valioso”206), quanto como aquela prática de casos-acontecimentos e de decisões
judicativas na qual as exigências dos princípios (frequentemente manifestadas
nos critérios, mas nem por isso menos abertas a uma historicidade constitutiva)
se tornam enfim plenamente inteligíveis e determinadas.
Sendo precisamente da conjugação destas duas vertentes que resulta a per-
turbação anunciada. Uma perturbação que podemos concentrar numa pergunta:
a de saber se — e até que ponto é que — a fragmentação (no limite do diferendo)
que afecta hoje as comunidades interpretativas e as suas situações institucionais
(os projectos de realização, os materiais canónicos, os códigos linguísticos e
extralinguísticos)... não ameaça afinal a própria manifestação constitutiva dos
princípios — aquela que se descobre in action na teia destas comunidades restri-
tas e no jogo que, em cada contexto histórico, as inter-relaciona —... ameaçando
também, através dela, a pretensão de unidade do sistema (e no limite, a inteligibi-
lidade reconhecível do mundo humano do direito ou do projecto que o ilumina).
Se chegarmos à conclusão de que a multiplicação das situações institucionais (e
dos códigos que estas mobilizam) suscita processos de realização-determinação
incompatíveis com um sentido material (ou com a partilha deste), o compro-
misso prático pressuposto e o próprio horizonte de validade comunitária esta-
rão certamente ameaçados. Uma ameaça que já não será certamente aquela que
reconduz tal validade à solução contingente de um puro consenso a posteriori
— a ameaça que associámos a uma possível hipertrofia tópico-problemática —,
porque é já aquela outra que, reconhecendo a impossibilidade deste consenso (ou
de uma sua repetição lograda), apenas preserva a possibilidade-limite de evocar
206 O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, op. cit., p. 60
(citando Zagrebelsky).
170
207 CASTANHEIRA NEVES. Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Lições proferidas a um curso do 1º
ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, op. cit., pp. 343-347, “A unidade do
sistema jurídico…”, op. cit., pp. 172, “Fontes do direito”, op. cit., pp. 89-90, Metodologia Jurídica, op.
cit., pp. 157, 184 e ss.
208 “Fontes do direito”, op. cit., pp.90-93, Metodologia Jurídica, op. cit., pp. 185-186, O problema actual do
direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, op. cit., pp. 54-F a 54-Q.
209 O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, op. cit., pp. 74-75 (também
no Digesta, op. cit., vol.3, pp.71-72).
210 Ibidem, p. 74 (e 71).
171
Sem ficarmos por aqui. Porque é também a hora desta dogmática se debater
com a pluralidade de vozes que (já para além destas grandes opções-modelos)
internamente a fragmentam... vozes que, disputando também a jurisdictio e a
academic house que com ela convergem (e muito especialmente esta última…
quando não são directamente produzidas por ela!), ameaçam ainda a inteligibili-
dade unitária de um autêntico Juristenrecht.
A hora, entenda-se, de se debater conscientemente com esta pluralidade.
Como se não pudessemos confiar já apenas na dinâmica que inter-relaciona
communis opinio e fluxos desviantes — no contraponto-ordinans entre as cor-
rentes que ocupam o centro ou que dominam a superfície e os pequenos rios
periféricos ou subterrâneos (que se vão impondo... muitas vezes para ocupar
o lugar dos primeiros!) — ou nesta dinâmica pressuposta (garantida) as doing
what comes naturally. Mas então também como se uma comunicação critica-
mente lograda com as diversas comunidades interpretativas e as suas redes
limitadas de codificação (ou pelo menos com os problemas que a pluralidade
dos seus diagnósticos nos autoriza a detectar) se tivesse tornado indispensável
para garantir que a dogmática doutrinal possa efectivamente desempenhar a
sua tarefa desoneradora.
Não tanto nem apenas para impedir que as suas dimensões descri-
tivo-empírica e lógico-analítica (empenhadas respectivamente na
descrição reconstitutiva do direito vigente e no esclarecimento de
categorias ou usos linguísticos) possam ser sustentadas autonoma-
mente (em nome de uma intenção cognitiva ou de uma intenção
analítica), entenda-se, para exigir que todas estas práticas-tarefas
sejam levadas a sério na perspectiva de uma unidade intencional
normativo-prática (e assumindo um discurso sujeito / sujeito) —
intencionalidade e discurso estes especialmente visíveis na tarefa
que explicita-constitui princípios ou que constrói modelos-crité-
rios212. Também e muito especialmente para garantir que… entre o
desempenho desonerador (e o contrôle sistemático-racional) que a
dogmática cumpre dirigindo-se à prática judicativo-decisória por
211 Para um confronto esquemático de algumas destas propostas, veja-se o nosso “Rechtsdogmatik, Autono-
mie und Reduktion der Komplexität. Brauchen die Gerichte ein Sicherheitsnetz?“, op. cit., passim.
212 Trata-se, como é evidente, de partir da distribuição de dimensões proposta por Alexy: Theorie der juristis-
chen Argumentation. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1978, pp. 308 e ss.
172
213 Trata-se ainda de mobilizar (selectivamente) a especificação das funções da dogmática proposta por Ale-
xy: ibidem, pp. 326-332 (2.4.5.).
214 CASTANHEIRA NEVES. O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito,
op. cit., p. 74 (e 71).
173
175
I
Nesta minha alocução proponho que tomemos como ponto de partida um con-
traponto — um dentre múltiplos contrapontos alternativos possíveis —, mobiliza-
do aqui como experimentação, para que a enfatização das diferenças e semelhanças
torne mais nítidos os problemas em causa e as (im)possibilidades de solução, a
fim de melhor aferir das virtualidades da resposta jurisprudencialista, sobre a qual
aqui reflectimos, para o problema da fundamentação do direito. Tentemos então um
desses caminhos, talvez com mais perguntas do que respostas: o de um contraponto
que se impõe, pela aparente proximidade — até, por vezes, terminológica — de
opções e pelo distanciamento de pressupostos e mesmo de conclusões. Um contra-
ponto que visa também ser um esclarecimento. Das semelhanças e das diferenças,
evidentemente, mas também da abordagem crítica que imediatamente suscitam.
O contraponto que agora se propõe — para o dizer muito sinteticamente —
consistirá em colocar frente a frente, no que à fundamentação do direito respeita,
os sentidos de “justiça transcendente”, desenhado por Jack Balkin — um Critical
Legal Scholar de segunda geração2, e aquele que com maior acuidade, e, por que
176
não dizê-lo desde já, alguma autonomia (ainda que num sentido muito específi-
co que adiante se esclarecerá), identifica e especifica esta problemática —, e de
“autotranscendentalidade axiológica”, configurado pelo Jurisprudencialismo,
na conformação que nos oferece Castanheira Neves — enquanto compreensão
materialmente densificante e fundamentante da normatividade e da autonomia
do direito. Dois rumos de resposta, portanto, para uma mesma questão, e que é
a nossa: a da interrogação pelo direito hoje. Posto agora o problema não apenas
numa intencionalidade filosófica, e assim reflexivo-especulativa, mas também
teórica, e neste sentido crítico-reflexiva. Com o propósito, portanto, não apenas
de compreender a reflexão metanormativa última acerca do direito que subjaz a
cada uma das propostas aqui confrontadas, mas também de analisar as respecti-
vas possibilidades ao nível da Teoria do Direito3.
posterior, pós-moderna, a partir da segunda metade dos anos 80 daquele século; e uma eventual terceira
geração, que consiste na ramificação do núcleo dos Critical Legal Scholars por diversas Jurisprudences
temáticas, sob a mesma orientação crítica. — Vide MINDA, Gary. “Critical Legal Studies”. In: MINDA,
Gary. Postmodern Legal Movements — Law and Jurisprudence at Century’s End. New York/London,
1995, p. 106-127, p. 116. Sobre o Critical Legal Studies Movement pudemos reflectir mais detidamente no
nosso Entre o centro e periferia: a perspectivação ideológico-política da dogmática jurídica e da decisão
judicial no Critical Legal Studies Movement. Coimbra, 2004, em que, especificamente sobre Jack Balkin e
a temática aqui desenvolvida, poderá ver-se, sobretudo, p. 109-132, 139-146, 169-170, 180-188, 194-203,
211, 214, 220-221, 230, 238-241, 246, 263-266; e, especificamente acerca do confronto com a concepção
de Castanheira Neves, p. 267-277. Para uma abordagem mais geral acerca do Critical Legal Studies Move-
ment, vide o nosso “Critical Legal Studies Movement: uma deriva política do pensamento jurídico (?)”. In:
COELHO, Nuno Manuel Morgadinho dos Santos; MELLO, Cleyson de Moraes (Org.). O Fundamento do
Direito — Estudos em Homenagem ao Professor Sebastião Trogo. Rio de Janeiro, 2008, p. 262-284. Jack
Balkin é o Critical Legal Scholar mais influenciado pela análise desconstrutivista de Derrida, aplicando-a
à crítica interna da sociedade: “Although deconstructive arguments may be found in critical race theory,
feminist, and postmodern legal scholarship, deconstruction first emerged most clearly in the work of the
Critical Legal Studies Movement. CLS scholars were attracted to deconstruction for three reasons. First,
CLS scholars emphasized the instability and indeterminacy of legal doctrines and the political ideologies
that lay behind legal reasoning. Deconstruction’s discovery of mutability in meanings and conceptual
boundaries seemed to support these views. If deconstruction showed that all legal decisionmaking and all
legal categories were flexible and mutable, this might seem to buttress the claim that something other than
legal reasoning — like political judgment — lay behind legal decisionmaking.
Second the force of the deconstructive critique applied beyond legal meanings to all social meanings.
Deconstruction seemed to suggest that social structures themselves were also unstable and indeterminate.
This meshed well with CLS claims that legal consciousness was based on the “false necessity” of social
and legal structures that seemed reasonable in theory but were oppressive in practice.
Finally, deconstruction seemed attractive to CLS scholars because it held that all texts undermined their
own logic and had multiple and conflicting meanings. CLS scholars could use deconstructive techniques
to “trash” traditional legal arguments and legal distinctions by showing that they were fundamentally in-
coherent”. — Jack Balkin, “Deconstruction’s Legal Career”, 1998, Part I <http://www.yale.edu/lawweb/
jbalkin/opeds/Deconstruction’s Legal Career --Part I.htm>, Part II <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/
opeds/Deconstruction’s Legal Career --Part II.htm> Recolhido em 07/08/2003. Também em Cardozo Law
Review, vol. 27, n. 2, 2005, p. 719-740), Part II, p. 2.
3 Vide CASTANHEIRA NEVES. Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/99, policop.,
Coimbra, 1998, p. 43-45, 48-49 (p. 23-24, 26-27, na versão A4).
177
178
II
1. Em primeiro lugar haverá então que mobilizar as expressões convocadas no
título desta reflexão: justiça transcendente e autotranscendentalidade axiológica. E
em primeiro lugar porque será este o ponto de partida para o contraponto, que nos
permitirá percorrer as opções essenciais de ambas as propostas, embora podendo ser
este também o ponto de chegada, uma vez percorridos os trilhos que as densificam.
A transcendent justice delineada por Balkin, enquanto horizonte metanorma-
tivo de referência, surge não tanto como um ideal nunca apreensível — e, assim,
absolutamente inatingível —, mas antes como um ideal-projecto que paira per-
manentemente sobre a intersubjectividade, embora não completamente atingível-
-realizável. Portanto, uma justiça — valor de cariz indeterminado, a que é essen-
cial uma dimensão ideológico-política, de emancipação individual e colectiva,
e assumida enquanto intenção regulativa, a prosseguir normativamente. Cons-
tituindo a respectiva intenção à justiça (“justice demand”) uma intenção mate-
rialmente projectante, também metanormativa, e assumida como autenticamente
transcendental5, condição de possibilidade da realização histórica do direito (e
5 “By a transcendental value, I mean: (…) A value that can never be perfectly realized and against which all
concrete articulations and exemplifications remain imperfect or incomplete. A transcendent value is also
a transcendent ideal. (…) A value that appears to us as a demand or longing. (…) A value that is inchoate
and indeterminate, which human beings must articulate through culture but which is never fulfilled. (…)
A value whose existence is presupposed by some essential aspect of human life or some essential human
activity. Thus the argument for the existence of a transcendental value is transcendental; the existence of
the value must be presupposed given the nature of the activity. Hence we can also speak of transcendent
values as “transcendental” values. (…)”. — BALKIN, Jack. Cultural Software. A Theory of Ideology.
New Haven/London, 1998, p. 144. “Transcendent ideals of truth and justice are presupposed in our un-
derstanding of encounters between people as encounters between subjects of justice — that is, as a sort
of entities that can be treated justly or unjustly”. — Idem, p. 146. Vide AROSO LINHARES, José Ma-
nuel. “Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita: os enigmas de Force de Loi”
(2004). In: Ars Ivdicandi — Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves, Volume
I — Filosofia, Teoria e Metodologia. Stvdia Ivridica, 90, Ad Honorem — 3, Coimbra, 2008, p. 551-667,
especialmente 5.2.4.2., p. 651-655: “Reconhecendo que o “argumento” que defende a “existência de valo-
res transcendentes” (e destes enquanto “exigências” ou “aspirações indeterminadas”) se nos impõe como
uma “condição-pressuposto transcendental” (a necessary transcendental precondition) da possibilidade
(prática) da compreensão moral e política e da retórica discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu
continuum) — mas então também da análise ideológica em que esta tematização culmina (the analysis of
ideology as a special case of the dialogic encounter)…”. — Idem, p. 651.
179
6 O cultural software seria, parcialmente, inato, e, complementarmente, um produto cultural: o tipo de racio-
nalidade desenvolvido através da cultura não será uma racionalidade meramente formal ou instrumental,
mas substancial, recursiva e reflexiva. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 138-140. A racio-
nalidade humana seria, assim, um artefacto histórico, desenvolvido através da escrita e reescrita colectiva
e cumulativa de cultural software, num processo de bricolage, rectior, de cultural bricolage: cumulativo
— as categorias de inteligibilidade (tools of understanding) que o sujeito cria dependem amplamente dos
materiais disponíveis —, envolvendo utilizações não intencionadas, económico e recursivo — um número
limitado de categorias é utilizado em situações muito diferentes para cumprir um amplo número de tarefas
—, e, por conseguinte, com consequências não intencionadas, positivas ou negativas. — Idem, p. 31-34. E
a análise deste pensamento sobre si próprio constituiria uma metabricolage: “The advantage of the theory
of cultural software is that it allows us to see how very different research projects can be reinterpreted and
united under the umbrella of memetic evolution. Appropriately, this approach is itself a form of bricolage,
for it cobbles together different ways of understanding human understanding in the hope of providing a
more powerful and unified account. Because human understanding is itself a process of bricolage, we might
think of this method as a sort of “metabricolage””. — Idem, Part III, p. 171 ss., p. 175.
7 “The term “deconstruction” is much used in legal writings these days and in this Article I propose to
explain its philosophical underpinnings. Many persons who use the word “deconstruction” regard it as no
more than another expression for “trashing” that is, showing why legal doctrines are self-contradictory,
ideologically biased, or indeterminate. By the term “deconstruction”, however, I do not have in mind
merely stinging criticism, but specific techniques and philosophical ideas that Derrida and his follow-
ers have applied to various texts. These techniques often do involve teasing out the hidden antinomies
in our language and thought, and that is primarily how I came to be interested in them. However, I hope
to demonstrate that “deconstruction”, as I use the term, is not simply a fancy way of sticking out your
tongue, but a practice that raises important philosophical issues for legal thinkers”. — BALKIN, Jack.
“Deconstructive Practice and Legal Theory”, The Yale Law Journal, vol. 96, n. 4, 1987, p. 743-786, p.
743-744. “Critical scholars in the feminist and critical legal studies movements made the most frequent
and familiar use of deconstruction in law. They employed deconstructive techniques to discover and cri-
tique ideological commitments they claimed underlay legal doctrine. Deconstruction has proved useful for
ideological critique because ideologies often work through forms of privileging and suppression: Certain
features of social life are privileged in thought and discourse, while others are marginalized or suppressed.
Deconstructive arguments try to recover these subordinated or forgotten elements in legal thought and
legal doctrine”. — BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 4. “If one is to
adapt deconstruction to the critical study of law, the practice of deconstruction must, in fact, be altered,
changed, modified, and, I would even say, improved. Certain features of Derrida’s texts, for example, must
be emphasized and others deemphasized and regarded as mistaken. Only in this way can deconstructive
argument be made a useful tool of critical analysis. Only in this way can it escape the many criticisms of
nihilism that have been leveled at it”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent
Justice”, Michigan Law Review, vol. 92, n. 5, mar. 1994, p. 1131-1186, p. 1132. Vide ainda BALKIN, Jack.
“Deconstructive Practice and Legal Theory”, op. cit., p. 764; MINDA, Gary. “Critical Legal Studies”, op.
cit., p. 117; PÉREZ LLEDÓ, Juan A. El Movimiento Critical Legal Studies. Madrid, 1996, p. 182-194.
8 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 112. Balkin compreende todos os fenómenos sociais como
construções subjectivamente elaboradas, pretendendo afastar-se, assim, de teorias que reconhecem entida-
des supra-individuais determinantes da constituição cultural dos sujeitos, por as considerar insusceptíveis
de oferecer uma explicação causal das convicções culturalmente partilhadas, e/ou da presença de dissenso
180
no seio das culturas e das comunidades (idem, p. 96), recusando, deste modo, e neste domínio, um deter-
minismo evolutivo. O cultural software é diferente em cada momento histórico, e o homem é agente da sua
transmissão e da sua evolução histórica: “Cultural evolution proceeds, but not toward any particular goal.
We are its agents but not its puppets. We are its bearers but not its slaves”. — Idem, Preface, p. xi. Porém,
Balkin vai mais longe, pretendendo fundar a constituição cultural dos sujeitos em unidades subindividu-
ais existentes em cada indivíduo — unidades subindividuais essas que seriam unidades de transmissão
cultural participantes na formação dos indivíduos, criando uma economia de desenvolvimento e troca
cultural; em suma, essas unidades subindividuais constituiriam o cultural software. Apresenta, assim, uma
construção culturalmente cunhada da subjectividade, em que as próprias formas de entendimento seriam
informadas pela comunidade: “...our very forms of understanding — including the very notion of the ‘self’
that ostensibly understands — are shaped by the community…”. — BALKIN, Jack; LEVINSON, San-
ford. “The ‘Bad Man’, the Good and the Self-Reliant”, B. U. L. Review, 78, 1998, p. 885-902, p. 897. “I
believe that a theory of culture must account for the uniqueness of each human being, while showing how
the social and cultural forces shape us and produces our individuality. And I believe that individuality, like
human freedom, is produced through culture, not in spite of it. The theory of cultural software offered in
this book tries to explain why this is so”. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., Preface, p. x.
9 Ao assumir uma crítica interna ou imanente da cultura e do direito, Balkin apresenta como pressuposto
aquela justiça, assumida como transcendência de valor, não de posição, em conformidade com a rejeição
de uma perspectiva de análise exterior. A concepção ambivalente da ideologia assume como fundamental
o problema da autorreferência. Seria esta abordagem, dialéctica, assumidamente crítica, e mesmo inevita-
velmente autocrítica. Crítica no sentido de constituir um processo de autorreflexão e autodescoberta que
é parte da análise ideológica. Inevitavelmente autocrítica porque se volve para si própria, pelo que o auto-
exame crítico não é, em sentido estrito, uma pura introspecção, mas um processo de exame comparativo.
Esta autocrítica pretende, não obstante, ser desinteressada, não no sentido da neutralidade, mas no sentido
da justiça ou correcção — uma justiça e uma correcção aferidas pelo cultural software. — Vide BALKIN,
Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 128-129.
10 Para Balkin, as razões que levam a querer desconstruir o direito e a doutrina jurídica podem ser diversas.
Uma tem a ver com a prossecução da justiça: pode pretender-se demonstrar que o direito, ou uma parte
dele, é injusto. Por outro lado, pode pretender-se mostrar que o direito, ou parte dele, oculta aspectos da
vida social considerados importantes, e que o seu fracasso em lidar com estes aspectos leva à injustiça.
Para o A., este é um uso “crítico” da desconstrução, no sentido mais usual da palavra “crítica”. — Vide
BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 2. Em Balkin não existe uma autên-
tica reflexão metodológica, o que implicaria recorrer a um discurso jurídico autonomamente considerado,
separado da ideologia, o que cairia fora dos seus intentos. Vide AROSO LINHARES. “O logos da juridi-
cidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos — da convergência com a literatura (Law as Literature,
Literature as Law) à analogia com uma poiêsis-technê de realização (Law as Musical and Dramatic Per-
formance)”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXX, Coimbra, 2004,
p. 59-135, p. 117-121, e n. 139, p. 120-121.
11 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 14-15, 92-94. Apesar de o termo ideologia poder ser as-
sumido em sentidos muito diversos, todos esses sentidos exprimem, normalmente, segundo Balkin, uma
de duas concepções: uma concepção neutra, que considera a ideologia como uma concepção do mundo,
uma estrutura intelectual ou um conjunto de convicções que participam na construção da experimentação
do mundo, sem tomar posição; ou uma concepção pejorativa, em que a ideologia surge como um tipo de
mistificação ao serviço de interesses de classe, promove uma falsa perspectivação das relações sociais,
181
ou produz injustiça. — Idem, p. 3, e p. 295 (n. 3 da p. 3). Não tencionando seguir qualquer uma destas
orientações, Balkin enuncia uma terceira via, uma concepção ambivalente da ideologia (“the ambivalent
conception of ideology”), com que visa substituir as outras perspectivas referenciadas, e segundo a qual
quer a concepção neutra quer a pejorativa de ideologia descrevem aspectos diferentes de um fenómeno
mais profundo, o dos efeitos produzidos pelos instrumentos de compreensão cultural (“tools of human cul-
tural understanding”). — Idem, p. 3-4. As categorias de inteligibilidade (tools of understanding) seriam,
nesta perspectiva, simultaneamente úteis e prejudiciais, dependendo do contexto em que e do modo como
fossem mobilizadas, e o reconhecimento das vantagens e desvantagens simultâneas das categorias de inte-
ligibilidade seria fundamental. — Idem, p. 126-127. Tal como a perspectiva neutra, esta perspectiva ambi-
valente pretende analisar descritivamente o modo como as concepções do mundo e os sistemas de discurso
são produzidos. Porém, diferentemente, não pretende adoptar uma posição neutral ou descomprometida
relativamente aos seus efeitos, ao reconhecer que, quando participa no estabelecimento ou manutenção de
condições injustas, o cultural software produz efeitos ideológicos. — Idem, p. 124-129.
12 Em Balkin a ideologia desempenha um papel determinante na construção e difusão culturais, como ele-
mento fundamental da denúncia da injustiça: “I sometimes like to think of ideology as a sort of “cultural
software” — a set of tools for understanding the social world, a copy of which is distributed to each of us.
Our individual subjectivity employs and is constituted by this cultural software. If our copies are roughly
similar — if we have internalized roughly the same cultural frameworks of understanding — then the con-
tributions of each subject to the object of understanding will also be roughly similar. In this way, a shared
subjectivity creates a shared objectivity. Hence, when I speak of “the legal subject” or the contributions of
“subjectivity” I am invoking two complementary ideas: first, the individual’s contribution through the act of
understanding to her experience of the social world, and second, the individual’s social construction, which
helps shape the forms and bounds of her understanding. A jurisprudence of the subject is above all a cultural
jurisprudence, for it is culture that creates legal subjects as subjects”. — BALKIN, Jack. “Understanding
Legal Understanding: The Legal Subject and the Problem of Legal Coherence”, The Yale Law Journal, vol.
103, 1993, p. 105-176, também disponível em versão online em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/
articles/under1.htm>, Part I; <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/under2.htm>, Part II, e <http://
www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/under3.htm>, Part III, Acedido em: 07/08/2003, p. 107-108. Assu-
me, assim, na formulação da sua teoria do cultural software, uma específica perspectiva crítica, firmando as
categorias de inteligibilidade mobilizáveis na consideração do homem enquanto ser cultural. — BALKIN,
Jack. Cultural Software…, op. cit., Preface, p. ix-x, e idem, por exemplo, p. 15-16, 25, 102, 264-269.
13 Idem, p. 111.
14 Nas palavras de Derrida: “... le droit est essentiellement déconstructible, soit parce qu’il est fondé, c’est-à-
dire construit sur des couches textuelles interprétables et transformables (et c’est l’histoire du droit, la pos-
sible et nécessaire transformation, parfois l’amélioration du droit), soit parce que son ultime fondement par
définition n’est pas fondé. Que le droit soit déconstructible n’est pas un malheur. On peut même y trouver la
chance politique de tout progrès historique. Mais le paradoxe que je voudrais soumettre à la discussion est
le suivant: c’est cette structure déconstructible du droit ou, si vous préférez, de la justice comme droit qui
182
assure aussi la possibilité de la déconstruction. La justice en elle-même, si quelque chose de tel existe, hors
ou au-delà du droit, n’est pas déconstructible. Pas plus que la déconstruction elle-même, si quelque chose
de tel existe. La déconstruction est la justice. C’est peut-être parce que le droit (que je tenterai donc réguliè-
rement de distinguer de la justice) est constructible, en un sens qui déborde l’opposition de la convention et
de la nature, c’est peut-être en tant qu’il déborde cette opposition qu’il est constructible — donc déconstruc-
tible et, mieux, qu’il rend possible la déconstruction, ou du moins l’exercice d’une déconstruction qui
procède au fond toujours à des questions de droit et au sujet du droit. D’où ces trois propositions:
1. La déconstructibilité du droit (par exemple) rend la déconstruction possible.
2. L’indéconstructibilité de la justice rend aussi la déconstruction possible, voire se confond avec elle.
3. Conséquence: la déconstruction a lieu dans l’intervalle qui sépare l’indéconstructibilité de la justice et
la déconstructibilité du droit. Elle est possible comme une expérience de l’impossible, là où, même si elle
n’existe pas, si elle n’est pas présente, pas encore ou jamais, il y a la justice. Partout où l’on peut remplacer,
traduire, déterminer le X de la justice, on devrait dire : la déconstruction est possible, comme impossible,
dans la mesure (là) où il y a X (indéconstructible), donc dans la mesure (là) où il y a (l’indéconstructible)”.
— DERRIDA, Jacques. Force de loi: le “fondement mystique de l’autorité”. Paris, 1994 (a primeira publi-
cação, em língua inglesa, surgiu na Cardozo Law Review, vol. 11, n. 5-6, July-August 1990, p. 919-1045,
sob o título “Force of Law: ‘The Mystical Foundation of Authority’”; posteriormente, foi publicado em
CORNELL, Drucilla; ROSENFELD, Michel; CARLSON, David Gray (Ed.). Deconstruction and the Pos-
sibility of Justice. New York/London, 1992, p. 3-67; também publicado, em versão castelhana, sob o título
“Fuerza de Ley: El ‘fundamento místico de la autoridad’”, Doxa, 11, 1992, p. 129-191), p. 34-36 ; e em trad.
portuguesa, Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Porto, 2003).
15 “Using deconstructive techniques to make political and legal arguments raises the obvious question wheth-
er there is any connection between deconstruction and politics or deconstruction and justice. In fact, I
believe that there are important connections between deconstruction, justice, and politics. But deconstruc-
tion itself does not have a politics, or rather, it has only the politics of those who make use of it. And
deconstruction itself is not just, although it may be used to pursue justice”. — BALKIN, Jack. “Tradition,
Betrayal, and the Politics of Deconstruction”, Cardozo Law Review, vol. 11, 1990, p. 1623 ss., citado na
versão online, disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/trad1.htm>, Part I, e <http://
www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/trad2.htm>, Part II. Acedido em: 03/11/2003. Part I, p. 1.
16 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 166.
17 “It is possible that, when Derrida speaks of “Deconstruction” in his more mystical pronouncements, he has in
mind something like this normative chasm, this essential inadequation between transcendent human values
and human culture. If so, then no human practice of deconstructive argument is “Deconstruction”, because
no argument ever fully describes the relationship between value and articulation. Indeed, such a complete
description would be impossible. It would not follow, however, that “Deconstruction” itself was impossible,
only a fully adequate account of it. So Derrida’s equation between Deconstruction and justice is flawed.
Justice is “impossible” only in the sense that one never finds a fully and categorically just act in this world.
Yet “Deconstruction” is not impossible, even though one never finds a fully deconstructive argument. The re-
lationship of mutual dependence and differentiation that exists between culture and value is not impossible;
183
it is the case. Moreover, it is simply not true, as Derrida asserts, that Deconstruction is justice. This assertion
is a confusion of the normative chasm between culture and value with a particular inchoate and indefinite
human value. Derrida’s mystical formula simply obscures a valuable insight”. — BALKIN, Jack. “Transcen-
dental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1179. “In other words, if Derrida were correct that
Deconstruction is justice because both are impossible of attainment, then Deconstruction would not only be
justice, but also beauty, wisdom, and temperance, as none of these virtues is perfectly realized in this world.
A more appropriate view would be Derrida’s assertion that “deconstruction takes place in the interval that
separates the undeconstructibility of justice from the deconstructibility of droit (authority, legitimacy, and so
on)”. In other words, Deconstruction is the gap itself, rather than one side or another of this gap.
If by Deconstruction Derrida means this normative gap, Deconstruction would not even be an activity of
human beings. Instead Deconstruction would simply be the case that there is a fundamental inadequation”.
— Ibidem, n. 119, citando DERRIDA, Jacques. Force of Law..., op. cit., p. 945.
18 BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1144-1148, 1157. “The
first connection between justice and deconstruction that Derrida hopes to demonstrate concerns the defi-
nition of who is a subject of justice, that is, who can be treated justly or unjustly. Throughout Western
civilization, Derrida argues, the category of subjects of justice has been limited. Deconstruction furthers
justice, he insists, because it calls these limitations into question”. — Idem, p. 1142. “Derrida posits a
second possible relation between deconstruction and justice — it is “the sense of a responsibility without
limits”. This responsibility is “necessarily excessive, incalculable, before memory”. Deconstruction leads
to justice because it reveals the limitlessness of our responsibility. Nevertheless, a responsibility without
limits is not the same thing as justice”. — Idem, p. 1149.
19 “Yet the claim of an essential disproportion between law and justice simply restates the point that there is
an idea or value of justice that transcends any specific example of justice, whether embodied in law, cus-
tom, or convention. Indeed, as Derrida later notes, “the deconstruction of all presumption of a determinant
certitude of a present justice itself operates on the basis of an infinite ‘idea of justice’ ”. This is perhaps the
closest Derrida comes to the transcendental conception. He hesitates at this point because he does not wish
“to assimilate too quickly this ‘idea of justice’ to a regulative idea (in the Kantian sense), to a messianic
promise or to other horizons of the same type””. — Idem, p. 1156-1157, citando DERRIDA, Jacques.
Force of Law..., op. cit., p. 965. “(…) the deconstructive approach I advocate is not based on a fixed and
determinate Idea of justice, but an indeterminate and indefinite human value. This value is the very sort of
“demand” that Derrida identifies with justice: an insatiable urge that is never fully realized in the products
of human law, culture, and convention”. — BALKIN, Jack.“Transcendental Deconstruction, Transcendent
Justice”, op. cit., p. 1157.
20 BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 4.
21 “In equating deconstruction and justice, Derrida has attempted to take the moral high ground in the face
of the assaults leveled at deconstruction (and at himself) following the de Man affair. But what Derrida
184
and his followers have not fully faced, I think, is that in practice deconstructive argument is a species of
rhetoric, and, like all rhetoric, it can be used for good or for ill depending on how it is wielded. Deconstruc-
tion is no more and no less noble than the forms of rhetoric that deconstructionists repeatedly discover
in philosophical and literary texts. Deconstruction cannot flee from its own rhetoricity, or the normative
consequences of that fact. The deconstructive claim that “iterability alters” — that texts take on new and
conflicting meanings when they are inserted into new contexts — surely applies as much to deconstruction
itself as to any of its objects. Thus, it is not surprising that deconstructive arguments can be invoked by the
political right as well as the political left, and that they can serve many different and conflicting positions”.
— BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part II, p. 4-5. “Because deconstruction is
justice, and because justice is impossible, deconstruction is impossible. However, the undeconstructibility
of justice and the deconstructibility of law make deconstruction possible. Hence, deconstruction is both
possible and impossible”. — BALKIN, Jack. “Being Just With Deconstruction”, Social and Legal Studies,
n. 3, 1994, p. 393 ss., citado na versão online, disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/opeds/
Being Just With Deconstruction.htm>. Acedido em: 07/08/2003, n. 6, p. 1.
22 “(…) when we view deconstruction and its purported enemy, logocentrism, in this light, we arrive at a
paradoxical conclusion. Deconstruction, in and of itself, has nothing particular to tell us about justice, or
ethics, or any questions of value. For any such conclusions we might reach would be by their nature order-
ing, prioritizing, evaluative, in a word, logocentric. Deconstruction thus becomes important to questions
of value to the extent that it is not fully deconstructive to the extent that it depends upon and nourishes
itself upon some form of preexisting logocentric practice”. — BALKIN, Jack.“Tradition, Betrayal, and the
Politics of Deconstruction”, op. cit., Part II, p. 1. “…deconstruction, as a political practice, or as a pragmat-
ics (that is, a theory of use or action) cannot avoid logocentrism, either at its beginning, its middle, or its
end. To deconstruct is always to engage in a form of logocentrism. It is always to obey a certain law of
where to begin and where to end, which turns of phrase to subvert and which to leave untouched. For after
we have ground our ax, it directs what we shall execute with it. Moreover, each deconstruction bears the
traces of the intellectual roads not taken, the metaphors and arguments not questioned”. — Idem, Part II, p.
1. “One might object that describing deconstruction as guided by the preexisting commitments and values
of the individual deconstructor mistakenly assumes a relatively autonomous subject who controls what to
deconstruct and what to leave untouched. Yet deconstruction also requires us to question the existence of
this relatively autonomous self. Perhaps, then, deconstruction has a distinctive politics which nevertheless
escapes logocentrism — it would be a politics that denies the full coherence and autonomy of subjects,
and sees subjects as largely or even wholly constructed by the intersection of various cultural and political
forces. In contrast, viewing deconstruction as an instrument employed by a subject reasserts logocentric
assumptions about the self that deconstruction is designed to explode.
Yet this is not an objection to my argument. Rather, it is my argument — that deconstruction, as actually
performed by individuals, is always and already parasitic on some form of logocentric practice. This is
every bit as true of critics of the autonomy of the self as it is of critics of any other subject of deconstruc-
tion”. — Idem, Part II, p. 3. Vide ainda AROSO LINHARES. “Autotranscendentalidade, desconstrução
e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 652: “(…) uma concepção (ou pelo menos um “tratamento”)
“instrumental” da desconstrução — por uma vez assumida como “método”…”.
23 DERRIDA, Jacques. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited Inc, Evanston, 1988, p. 111 ss..
e Force de Loi..., op. cit., p. 51-55.
24 BALKIN, Jack. “Being Just With Deconstruction”, op. cit., p. 3-5.
185
25 “When we deconstruct conceptual oppositions, we are not necessarily trying to show that they form a false
dichotomy. We are trying to show that they form a nested opposition. A nested opposition is a conceptual
opposition in which the two terms “contain” each other. The metaphor of “containing” one’s opposite
stands for a number of related concepts — similarity to the opposite, overlap with the opposite, being a
special case of the opposite, conceptual or historical dependence upon the opposite, and reproduction of
the opposite or transformation into the opposite over time. These forms of containment share a sort of
Wittgensteinian family resemblance — they all bear similarities to each other, although one cannot point
to a single property that all have in common.
The most general way of stating the relationship between the terms of a nested opposition is that they bear a
relationship of mutual dependence and differentiation. The point of deconstructive analysis is to show how
this similarity or this difference has been suppressed or overlooked. It tries to find difference and antinomy
in purported similarity and similarity and mutual dependence in purported differentiation. As a result, de-
constructive arguments usually emphasize the contextual nature of judgements, because the relationship
between conceptual opposites and the relative meanings of the opposed concepts change as they are inserted
into new interpretive contexts”. — BALKIN, Jack.“Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 7.
Assim, uma oposição “nested” será uma oposição conceitual em que os dois termos comportam uma rela-
ção de mútua dependência e diferenciação — a différance, em Derrida. Enquanto a iterabilidade se mantém
no domínio da imanência das hierarquias e da sua inversão, no domínio da dissémination passa-se para lá
da inversão, alcançando a différance. — Vide DERRIDA, Jacques. “Hors Livre”, La Dissémination. Paris,
1972, p. 11 ss. “As Robert Gordon has observed, people “build structures, then act as if (and genuinely
come to believe that) the structures they have built are determined by history, human nature, economic law”.
Deconstruction allows us to see that ideologies are signs or metaphors that describe social life. They are
privileged conceptions of social reality; they are supplements, which can in turn be supplemented. Like Der-
rida’s signs, they are not self-sufficient, but ultimately depend upon the very aspects of human life that they
deny and from which they differentiate themselves. Every ideology suffers from an elementary lack: its de-
pendence on what it denies, on what it is exalted over. This lack, this differance, is what we seize upon and
exploit in a deconstructive reading (…) By contesting “necessity”, deconstruction dissolves the ideological
encrustations of our thought”. — BALKIN, Jack. “Deconstructive Practice and Legal Theory”, op. cit., p.
764. “If one begins with an egalitarian ideology, one can easily be misled into thinking that the “emancipa-
tory ideal” that Derrida endorses is the same as deconstruction. But this assumption is based on an implicit
opposition or conceptual homology — namely, that deconstruction is to logocentrism as emancipation is to
slavery, or as expansion of the subjects of justice is to contraction of the subjects of justice. Of course, one of
the most important deconstructive techniques is the demonstration that the homology “A is to B as C is to D”
is reversible; one deconstructs ideologies by subverting the conceptual homologies upon which they rest.
My point is that this technique can be performed as easily with the present set of conceptual oppositions as
with the opposition between speech and writing in Of Grammatology”. — BALKIN, Jack.“Transcendental
Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1146. Vide BALKIN, Jack. “Nested Oppositions”, The
Yale Law Journal, n. 99, 1990, p. 1669-1704, também disponível em versão online, em: <http://www.yale.
edu/lawweb/jbalkin/articles/nestedoppositions.pdf>. Acedido em: 03/11/2003, p. 1676-1677. “The nested-
ness of a nested opposition often becomes apparent when we attempt to understand what each of the terms
in the opposition means. Debates over the meaning or content of each side of a nested opposition replicate
the debate over the terms of the original opposition. The struggle over the meaning or the content of the
concept as it is introduced into new contexts is a struggle that recapitulates the original struggle of differen-
tiation”. — Idem, p. 1679. “To deconstruct a conceptual opposition is to show that the conceptual opposition
is a nested opposition — in other words, that the two concepts bear relations of mutual dependence as well
as mutual differentiation. For example, we might discover that they have elements in common, which be-
come salient in some contexts, but that in other contexts we note very important differences between them,
so that they are not the same in all respects. In fact, we would note that the meaning of each depends in part
on our ability to distinguish it from the other in some contexts”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Decon-
struction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1153. Uma “nested opposition” será uma “oposição em ninho”,
na tradução de Aroso Linhares —, oposição conceitual em que os dois termos opostos se “contêm” um ao
186
outro, isto é, têm relações simultâneas de diferença e similaridade consoante os contextos (pois, embora a
teoria das nested oppositions defenda que todas as oposições conceituais podem ser vistas sob a forma de
nested oppositions, não afirma que todas as nested oppositions sejam falsas oposições ou falsas dicotomias
— o facto de dois conceitos serem pensados como similares ou mutuamente dependentes em determinados
contextos não significa que sejam idênticos em todos os contextos): um dos termos pode, em certos con-
textos, ser similar ao outro, um caso especial do outro, lógica ou praticamente dependente do outro, ou ir
evoluindo para uma forma ou variante do outro. — Vide AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob
o fogo cruzado do ethos e do pathos...”, op. cit., n. 89, p. 97-98, e “Autotranscendentalidade, desconstrução
e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 655.
26 Rejeitando a oposição, fundadora da filosofia tradicional, entre sensível e inteligível, Derrida propõe uma
outra ordem, um tertium genus intermédio, que resista àquela oposição, e, não obstante, a inclua, num mo-
vimento de simultânea identidade e diferenciação: “(...) de ce point de vue, la différence marquée dans la
“différ()nce” entre le e et le a se dérobe au regard et à l’écoute, cela suggère peut-être heureusement qu’il
faut ici se laisser renvoyer à un ordre qui n’appartient plus à la sensibilité. Mais non davantage à l’intelli-
gibilité, à une idéalité qui n’est pas fortuitement affiliée à l’objectivité du theorein ou de l’entendement; il
faut ici se laisser renvoyer à un ordre, donc, qui résiste à l’opposition, fondatrice de la philosophie, entre le
sensible et l’intelligible. L’ordre qui résiste à cette opposition, et lui résiste parce qu’il la porte, s’annonce
dans un mouvement de différance, (avec un a) entre deux différences ou entre deux lettres, différance qui
n’appartient ni à la voix ni à l’écriture au sens courant et qui se tient, comme l’espace étrange qui nous ras-
semblera ici pendant une heure, entre parole et écriture, au-delà aussi de la familiarité tranquille qui nous
relie à une et à l’autre, nous rassurant parfois dans l’illusion qu’elles font deux”. — DERRIDA, Jacques.
“La Différance”, Marges de la Philosophie, Paris, 1972, p. 5. O termo “différance”, de ambiguidade e po-
lissemia propositadas, sintetizaria os dois significados do verbo diferir-“différer” (provindo do particípio
presente respectivo, “différant”, a indicar um movimento, um deslocamento-déploiement): o diferimento
— temporalização-temporisation, um diferimento do passado e do presente, uma não presença — e a
diferenciação — espaçamento-espacement, no sentido de “...ne pas être identique, être autre, discernable,
etc.” (“(...) la différance comme temporalisation et la différance comme espacement”). — Idem, p. 10.
“(...) le mot différence (avec un e) n’a jamais pu renvoyer ni au différer comme temporisation ni au dif-
férend comme polemos. C’est cette déperdition de sens que devrait compenser — économiquement — le
mot différance (avec un a)”. — Idem, p. 8. “(...) la différance, qui n’est pas un concept, n’est pas un simple
mot, c’est-à-dire ce qu’on se représente comme l’unité calme et présente, auto-référente, d’un concept et
d’une phonie”. — Idem, p. 11. Différer (e différance), e não différencier (e différenciation), pois que neste
último se perderia o segundo termo da polissemia: “(...) formé sur le verbe différencier, il annulerait la si-
gnification économique du détour, du délai temporisateur, du ‘différe’”. — Idem, p. 14. “(…) la différance
n’est pas, n’existe pas, n’est pas un étant-présent (on) quel qu’il soit ; et nous serons amenés à marquer
aussi tout ce qu’elle n’est pas, c’est-à dire tout; et par conséquent qu’elle n’a ni existence ni essence. (…)
La différance est non seulement irréductible à toute réappropriation ontologique ou théologique — onto-
théologique — mais, ouvrant même l’espace dans lequel l’onto-théologie — la philosophie — produit son
système et son histoire, elle la comprend, l’inscrit et l’excède sans retour”. — Idem, p. 6. Vide idem, p.
22. “Derrida has a special term for the chicken-and-egg quality of mutual dependence and difference that
the terms of hierarchical oppositions have for each other: differance. Differance is a pun based upon the
French word differer, which means both to differ and to defer. Derrida replaces an “e” with “a” in differ-
ence to make it differance; the two words sound exactly the same in French.
Differance simultaneously indicates that (I) the terms of an oppositional hierarchy are differentiated from
each other (which is what determines them); (2) each term in the hierarchy defers the other (in the sense of
making the other term wait for the first term), and (3) each term in the hierarchy defers to the other (in the
sense of being fundamentally dependent upon the other).
From differance, we can understand the idea of “trace”. Both of the terms in a hierarchical opposition
rely for their coherence on the differentiation between them. The relation between identity and difference,
serious and non-serious, langue and parole, is one of mutual dependence and difference, or differance.
187
However, Derrida would also say that in each case the first concept bears the traces of the second concept,
just as the second concept bears the traces of the first.
The word “trace” is a metaphor for the effect of the opposite concept, which is no longer present but has
left its mark on the concept we are now considering. The trace is what makes deconstruction possible; by
identifying the traces of the concepts in each other, we identify their mutual conceptual dependence.
One might ask whether the ideas of differance and trace between two opposed concepts could form a new
ground for explaining both. However, differance and trace are not stable conceptions; they simply repre-
sent the play of differences and dependencies between two mutually opposed concepts. Neither differance
nor trace could serve as a foundational concept”. — BALKIN, Jack.“Deconstructive Practice and Legal
Theory”, op. cit., p. 752. Vide BALKIN, Jack. “Nested Oppositions”, op. cit., e “Transcendental Decons-
truction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1152.
27 Concomitantemente, se o conceito de justiça, tal como o de verdade, for compreendido com um mero
produto de um particular desenvolvimento do cultural software, se se considerar em exclusivo o desen-
volvimento mimético da cultura, talvez a justiça possa ser dita uma mutação arbitrária, própria de cada
cultura ou mesmo da história mimética evolutiva de cada indivíduo. Nessa hipótese, segundo Balkin,
não seria possível estar moralmente comprometido com os outros. E, em conformidade, afirma: “I shall
argue that ideological analysis, and indeed all moral discourse, must presuppose a transcendent value
of justice. Tools of understanding produced by cultures to pursue justice are articulations of this value.
Because the conception of what is just is necessarily related to what is true… moral discourse also
presupposes a transcendent value of truth”. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 143.
Não é, todavia, esta a sua proposta — não obstante a contingência que se lhe venha a apontar —, antes
afirma que nem todos os valores e ideais humanos são transcendentes, mas a justiça e a verdade são-no.
Embora a noção de verdade como “valor” possa parecer estranha, Balkin afirma não pretender analisar
o conteúdo das afirmações como sendo verdadeiro ou falso, mas antes considerar a verdade não apenas
como uma qualidade das afirmações, mas também como uma exigência para o entendimento e o reco-
nhecimento; quando Balkin diz que a verdade é um valor, não pretende oferecer uma definição analítica,
mas significar a verdade como exigência. — “I mean that human beings have an inexhaustible drive to
understand what is the case and what is not in the world around them. It is this value that we experience
as a demand”. — Idem, p. 145.
28 “The argument for a transcendent value of justice is “transcendental” because it claims this value a nec-
essary pressuposition to deconstructive arguments about justice”. — BALKIN, Jack.“Deconstruction’s
Legal Career”, op. cit., Part II, p. 7, n. 30 da p. 6. “Hence the argument for transcendent values is tran-
scendental”. — BALKIN, Jack. Cultural Software..., op. cit., p. 145. “Para Balkin trata-se, com efeito, de
reconhecer que o “argumento” que defende a “existência de valores transcendentes” (e destes enquanto
“exigências” ou “aspirações indeterminadas”) se nos impõe como uma “condição-pressuposto transcen-
dental” (a necessary transcendental precondition) da possibilidade (prática) da compreensão moral e po-
lítica e da retórica discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu continuum) — mas então também da
análise ideológica em que esta tematização culmina… (...)
Sem deixar assim mesmo de ter presente que tanto a experiência de representação da transcendência
(concentrada nos “ideais regulativos” da verdade e da justiça) quanto a justificação autossubsistente de
uma certa crítica transcendental (assumida como problema do homo noumenon) — se não mesmo já o
reconhecimento da “tensão” que constitui o binómio transcendente/transcendental e a interrelação que o
traduz — se nos oferecem afinal como expressões indiscutíveis de uma certa cultura positiva (ou dos ciclos
que esta tem vindo historicamente a cumprir)”. — AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob o
fogo cruzado do ethos e do pathos...”, op. cit., n. 81, p. 91-92.
188
29 “If deconstructive practice is to be of any use to the question of justice, it must become a transcendental
deconstruction. It much exchange the logic of the infinite for that of the indefinite. It much act in the
service of human values that go beyond culture, convention, and law. It must recognize the chasm that
differentiates human value from articulated conceptions of it, and it must identify Deconstruction with
that chasm. Finally, one must understand deconstructive practice as a rhetorical practice that employs
Deconstruction but is not identical to it. Because deconstructive practice is a practice, it is repeatable,
teachable, and alterable like any other human convention. Because it is rhetorical, it can be used for good
or for ill”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1183.
“The essence of what I am calling transcendental deconstruction, then, is to note the interval between the
human capacity for judgment and evaluation that inevitably and necessarily transcends the creations of
culture, and the prescriptions and evaluations of that culture, which in turn articulate and exemplify hu-
man values like justice. It is in this sense that transcendental deconstruction depends, as Platonism itself
does, on a conception of values that “go beyond” the positive norms of culture and convention. But these
transcendent values do not come to us in a fully determinate form; they need culture to turn their inchoate
sense into an articulated conception. And these transcendent values do not exist in an imaginary Platonic
Heaven; they exist rather in the wellsprings of the human soul”. — Idem, p. 1139.
30 Idem, p. 1149-1154, e n. 58. Vide ainda AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado
do ethos e do pathos...”, op. cit., p. 95-98.
31 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 144.
32 “(…) recusando o apelo de uma responsabilidade infinita ou a possibilidade de o testemunhar (as an infi-
nite duty toward the Other) — assume a pressuposição constitutivamente transcendental de uma exigência
indeterminada de justiça (as an indefinite, but not infinite, demand for justice) e o caminho privilegiado de
uma political morality (se não do continuum prático-comunitário que a traduz)”. — AROSO LINHARES.
“Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 653.
33 “Yet if human legal creations are always to some degree unjust, justice cannot be fully and finally determined
by any positive norms of human law, culture or convention; for these positive norms must also fall short of
our value of justice. Thus, we must think of justice as an insatiable demand that can never be fulfilled by
human law. We must postulate a value of justice that transcends each and every example of justice in hu-
man law, culture and convention. In this way deconstructive argument brings us to recognize a transcendent
value of justice. Hence, the critical use of deconstruction becomes “transcendental” deconstruction, because
it must presuppose the existence of transcendent human values articulated in culture but never adequately
captured by culture”. — BALKIN, Jack. “Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part II, p. 5-6.
34 “(…) la justice comme possibilité de la déconstruction, la structure du droit ou de la loi, de la fondation,
ou de l’auto-autorisation du droit comme possibilité de l’exercice de la déconstruction”. — DERRIDA,
Jacques. Force de loi…, op. cit., p. 36. “Le droit n’est pas la justice. Le droit est l’élément du calcul, et il
est juste qu’il y ait du droit, mais la justice est incalculable, elle exige qu’on calcule avec de l’incalculable ;
et les expériences aporétiques sont des expériences aussi improbables que nécessaires de la justice, c’est-
à-dire de moments où la décision entre le juste et l’injuste n’est jamais assurée par une règle”. Idem, p.
38. “(…) we must offer an alternative account of “a responsibility without limits” that saves it from these
189
relação entre estes dois termos seja ela própria configurável como uma nested
opposition35, ela própria desconstruível (a própria estratégia da desconstrução
transcendental36 seria uma estratégia de nested opposition37). O direito, não
difficulties. This account inevitably leads us to the transcendental conception of deconstruction. A limitless
responsibility could be an infinite responsibility, or it could be a responsibility whose full contours cannot
be defined in advance. This is the distinction between the infinite and the indefinite. We can say, both in the
case of the infinite and the indefinite, that one cannot draw determinate and clear boundaries, so that in both
cases we are, in a sense, “without limits”. The meaning of “without limits”, however, is different in each
case. The infinite cannot be bounded because it is infinite. The indefinite has no clear boundaries because its
scope is so heavily dependent on context, and not all possible future contexts can be prescribed in advance.
The indefinite has boundaries, but we do not know precisely where they are. The infinite has no boundaries,
and we know this for certain”. — BALKIN, Jack.“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”,
op. cit., p. 1151. “Thus, the indefinite is unlimited, but not in the way that the infinite is. It makes perfect
sense to say that an individual’s responsibility is “without limits” because it is always indefinite — that is,
because the full contours of this responsibility can never be completely articulated — but it is nevertheless
limited in another sense because it is not infinite”. — Idem, p. 1151-1152. “We can also apply the distinc-
tion between the infinite and the indefinite to the meanings of texts. People often associate deconstruction
with the claim that the meaning of texts is indeterminate. Yet there are two ways to claim that meaning is
indeterminate: One can say that a text’s meaning is infinite — that is, that it means everything — or one can
say that its meaning is indefinite. If the meaning of every text is infinite, then all texts mean the same thing,
because all texts have every meaning. But if one says that the meaning of every text is indefinite, we mean
that the contexts in which the text will take its meaning cannot be specified in advance, and therefore the text
will always have an excess of meaning over that which we expect (or intend) it to have when it is let loose
upon the world. The first view of texts is consistent with a nihilistic account of deconstruction; the second
is consistent with the type of deconstruction I advocate”. — Idem, p. 1152.
35 “The distinction between transcendental deconstruction and its unworkable alternative rests upon the
distinction between the indefinite and the infinite. However, since one can deconstruct any distinction,
one should also be able to deconstruct the distinction between the indefinite and the infinite. Even here,
however, we need to ask what conception of deconstruction we should use to critique the theory — the
transcendental or the nihilistic. If we use a nihilistic conception, we would be effacing this distinction.
We would say that there is no difference between the indefinite and the infinite in any circumstance or
situation. So, for example, we would be saying that everything with indefinite boundaries is infinite in
extension. It would follow that each day is infinite in length because the boundary between day and night
is indefinite. Thus, the use of nihilistic deconstruction leads to an untenable position, just as it leads to the
destruction of many other useful distinctions. But this is a reason to think that the nihilistic conception of
deconstruction is seriously flawed.
Instead, we might deconstruct the distinction between the indefinite and the infinite using the technique of
transcendental deconstruction”. — Idem, p. 1153.
36 “It is important to note that not all deconstruction has this critical or ameliorative purpose. After all, we
might simply deconstruct texts in order to discover their multiple meanings and internal tensions. In order
to distinguish these other possible uses of deconstruction I call give this normative and critical form of de-
construction a special name. For reasons to be described presently, I call it transcendental deconstruction.
If we deconstruct law for a critical purpose it must be because we believe that there is some gap or diver-
gence between the law and what justice requires. In other words, the critical use of deconstruction presup-
poses a conceptual opposition between law and justice. However, deconstructive theory also tells us that
every conceptual opposition can be reinterpreted as a nested opposition. So there is a complex relationship
of mutual dependence and differentiation between these two concepts. What is this relationship?
Laws apportion responsibility, create rights and duties, and provide rules for conduct and social ordering.
But law can never achieve perfect justice. Law is always to some extent unjust. At the same time, our no-
tions of justice can only be articulated and enforced through human laws and conventions. Although we
may have an ideal of a justice that always escapes human law and human convention, the only tools we
190
have to express and enforce our ideal are laws and conventions. Our conception of justice relies for its
articulation and enforcement on the imperfect laws, conventions and cultural norms from which it must
always be distinguished.
This, then, is the nested opposition of law and justice: Human law, culture, and convention are never
perfectly just, but justice needs human law, culture, and convention to be articulated and enforced. A
fundamental inadequation always exists between our sense of justice and the products of culture, but we
can only express this inadequation through the cultural means at our disposal”. — BALKIN, Jack. “De-
construction’s Legal Career”, op. cit., Part II, p. 5.
37 A estratégia da desconstrução transcendental consiste na convocação da teoria das nested oppositions, da
desconstrução de oposições conceituais que resulta no reconhecimento da relação de différance entre os
termos opostos: “The choice between these two approaches also corresponds to two different explanations
of how one deconstructs a conceptual opposition. The strategy of the nihilistic view is one of total efface-
ment — all conceptual distinctions are imaginary because the meanings of each side of the opposition are
infinite. Therefore both sides mean the same thing. The strategy of transcendental deconstruction is one
of nested opposition. A nested opposition is an opposition in which the two sides “contain” each other —
that is, they possess a ground of commonality as well as difference”. — BALKIN, Jack. “Transcendental
Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1152-1153.
38 “(...) law is never perfectly just, but justice needs law to be articulated and enforced. This argument is ex-
emplary of a transcendental approach to deconstruction, the only approach that can rescue deconstruction
from the nihilistic abyss of infinite meaning. It assumes that human values like justice transcend the positive
norms of human culture, even as they depend upon these norms for their articulation and expression. Human
values like justice are always indeterminate; they must be constructed and articulated through culture, law,
and convention. Yet any articulation of human value never fully exhausts the scope of human evaluation.
We may offer a theory of what is just, and this theory may assist our judgments of what is just, but it does
not ever fully displace our sense of justice. We always retain the ability to understand that our conventions,
laws, and theories of justice fall short of our value of justice. Thus, our indeterminate values continue to
demand more from us than our articulations of them can ever give; our urge to evaluate serves as a perpetual
reminder of the gap between our values and their articulations in law or convention”. — Idem, p. 1155.
39 A “iterabilidade” enquanto a propriedade que os signos têm de serem reproduzíveis em diferentes momen-
tos, lugares e contextos, o que é essencial para toda a comunicação: “Un signe écrit s’avance en l’absence
du destinataire. Comment qualifier cette absence? On pourra dire qu’au moment où j’écris, le destinataire
peut-être absent de mon champ de perception présente. Mais cette absence n’est-elle pas seulement une
présence lointaine, retardée ou, sous une forme ou sous une autre, idéalisée dans sa représentation? Il ne le
semble pas, ou du moins cette distance, cet écart, ce retard, cette différance doivent pouvoir être portés à un
certain absolu de l’absence pour que la structure d’écriture, à supposer que l’écriture existe, se constitue.
C’est là que la différance comme écriture ne saurait plus (être) une modification (ontologique) de la pré-
sence. Il faut, si vous voulez, que ma “communication écrite” reste lisible malgré la disparition absolue de
tout destinataire déterminé en général pour qu’elle ait sa fonction d’écriture, c’est-à-dire sa lisibilité. Il faut
qu’elle soit répétable — itérable — en l’absence absolue du destinataire ou de l’ensemble empiriquement
déterminable des destinataires. Cette itérabilité — (iter, derechef, viendrait de itara, autre en sanskrit, et
tout ce qui suit peut être lu comme l’exploitation de cette logique qui lie la répétition à l’altérité) structure
la marque d’écriture elle-même, quel que soit d’ailleurs le type d’écriture (pictographie, hiéroglyphique,
idéographique, phonétique, alphabétique, pour se servir de ces vieilles catégories). Une écriture qui ne
serait pas structurellement lisible — itérable — par-delà la mort du destinataire ne serait pas une écriture”.
— DERRIDA, Jacques. “Signature événement contexte”, Marges de la Philosophie, op. cit., p. 374-375. E
Balkin: “Iterability is a property of signs. If one makes a sign, one can make the sign again at another time,
in another place, in another context. In a simple sense, words are like signs. We are able to communicate
191
because we can use words and combinations of words over and over again. If we had to create new signs
to express our thoughts every time we attempted to communicate, we would never be able to communicate
with anyone. Thus, iterability, or the property of being able to be repeated in many different contexts, is
essential to any form of communication”. — BALKIN, Jack. “Deconstructive Practice and Legal Theory”,
op. cit., p. 749. “The essential property of the sign is its iterability. It follows from Derrida’s theory of the
sign that we can use signs if and only if they are separable from our intent — if and only if they “mean”
whether or not they mean what we intend. (…) Language can signify only if it can escape the actual present
meaning it had to the person who used it”. — Idem, p. 779. Vide ainda idem, p. 779-783, e BALKIN, Jack.
“Deconstruction’s Legal Career”, op. cit., Part I, p. 1. “...in translating the insights of deconstructionists to
the study of law, I was also working a transformation — for to translate is to iterate, and iterability alters”.
— BALKIN, Jack.“Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1131, remetendo
para BALKIN, Jack.“Deconstructive Practice and Legal Theory”, op. cit., p. 743-745, e ibidem, n. 8, e n.
56, p. 761. No sentido de que a indeterminação linguística dos textos é susceptível de uma determinação
contextual de sentido, vide DERRIDA, Jacques. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited
Inc., op. cit., p. 136-137; DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris, 1967, p. 227-228: “Il n’y a
pas de hors-texte. [...] Ce que nous avons tenté de démontrer en suivant le fil conducteur du “supplément
dangereux”, c’est que dans ce qu’on appelle la vie réelle de ces existences “en chair et en os”, au-delà de
ce qu’on croit pouvoir circonscrire comme l’œuvre de Rousseau, et derrière elle, il n’y a jamais eu que de
l’écriture; il n’y a jamais eu que des suppléments, des significations substitutives qui n’ont pu surgir que
dans une chaîne de renvois différentiels, le “réel” ne survenant, ne s’ajoutant qu’en prenant sens à partir
d’une trace et d’un appel de supplément, etc. Et ainsi à l’infini car nous avons lu, dans le texte, que le pré-
sente absolu, la nature, ce que nomment les mots de “mère réelle”, etc., se sont toujours déjà dérobés, n’ont
jamais existé; que ce qui ouvre le sens et le langage, c’est cette écriture comme disparition de la présence
naturelle”. Derrida esclarece o sentido da afirmação “Il n’y a pas de hors-texte”, assumindo-a como uma
expressão da determinação contextual: “The phrase which for some has become a sort of slogan, in general
so badly understood, of deconstruction (“there is nothing outside the text” [il n’y a pas de hors-texte])
means nothing else: there is nothing outside context. In this form, which says exactly the same thing, the
formula would doubtless have been less shocking. I am not certain that it would have provided more to
think about”. — DERRIDA, Jacques. “Afterword: Toward an Ethic of Discussion”, Limited Inc, op. cit., p.
136. Mais. O contexto compreende-se como irredutivelmente aberto ao exterior, o que influenciaria o seu
interior, pressupondo: “…that there are only contexts, that nothing exists outside context, as I have often
said, but also that the limit of the frame or the border of the context always entails a clause of nonclosure.
The outside penetrates and thus determines the inside”. — Idem, p. 152-153.
40 “Thus, the transcendental conception of deconstruction is premised on the possibility of an alternative re-
construction that is superior to the given target of deconstruction. In this sense, deconstruction always de-
pends on reconstruction, even though this reconstruction may be subject to further deconstructive critique.
At the same time, theoretical (re)construction always depends on the tools of deconstruction. If we wish
to construct a just account of moral or legal responsibility, we must be able to choose between compet-
ing alternatives and discard those that prove unsatisfactory. However, to critique the various possibilities,
and discover their hidden incoherences, we need the critical tools of deconstruction”. — BALKIN, Jack.
“Transcendental Deconstruction, Trancendent Justice”, op. cit., p. 1156.
41 Balkin convoca o conceito de justiça como tradução, de James Boyd White: “…as James Boyd White has
recently noted, the problem of justice is inherently a problem of translation. For judges or other parties
to speak in the language of another, they must translate the Other’s language into their own. But transla-
tions are always imperfect. They never fully convey the sense of the original. Hence the very necessity
192
of translation renders it impossible fully to speak in the language of the Other”. — Idem, p. 1158, com
referência a WHITE, James Boyd. Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal Criticism. Chi-
cago, 1990, p. 257-269. “Justice demands that we speak in the language of the Other to the extent that it
is appropriate to do so because this would further justice, but it equally demands that we not do so when
it would increase injustice”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”,
op. cit., p. 1164. Vide ainda AROSO LINHARES. Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o
tratamento narrativo da diferença ou a prova como um exercício de “passagem” nos limites da juridi-
cidade (imagens e reflexos pré-metodológicos deste percurso). Stvdia Ivrica, 59, Coimbra, 2001, p. 679
ss., especialmente p. 714-715. Mas também a percepção do Outro em Jacques Derrida: “We may connect
this point to our earlier criticism of the notion of a “responsibility without limits”. Derrida has argued that
the ethics of Otherness imposes upon us a responsibility to speak in the language of the Other. However,
because justice is a responsibility without limits, we might ask as before whether this responsibility to the
Other is an infinite responsibility or merely an indefinite one.
Thus, there are two different interpretations of the ethics of Otherness. The first imposes an infinite duty;
the second imposes only an indefinite duty. The first corresponds to a nihilistic conception of deconstruc-
tion; the second to the transcendental conception. (...) In the first case, the demand of justice is never satis-
fied because this demand is infinite; in the second case, we can never be certain that the demand of justice
is satisfied because the duty it imposes is indefinite”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction,
Transcendent Justice”, op. cit., p. 1165. “(…) a invocação-especificação de um princípio da heteronomia e
deste como compromisso prático (se não como farol de uma provação interior) se cumpre afinal em nome
de um reencontro com a humanitas. Em nome, se quisermos, da “vinda” ou da “ressurreição” do homo
humanus que a nossa circunstância presente exige”. — AROSO LINHARES. “O dito do direito e o dizer
da justiça — diálogos com Lévinas e Derrida”. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; STRECK, Lenio
Luiz (Org.). Entre discursos e culturas jurídicas. Coimbra, 2006, p. 181-236, p. 182-183, (também The-
mis, VIII. 14, 2007, p. 5-56). Vide ainda AROSO LINHARES. “O logos da juridicidade sob o fogo cruzado
do ethos e do pathos…”, op. cit., p. 60-84, e Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento
narrativo da diferença…, op. cit., p. 679-774.
42 “The postulation of an infinite duty is untenable. Yet we might still make sense of the ethics of Otherness
by viewing the duty to understand as indefinite rather than infinite. We have some duty to speak in the
language of the Other, but our duty is not infinite. Instead, justice demands that we make just the right
amount of effort to understand the Other. Beyond that point, it is not only appropriate but necessary for us
to recognize that the Other’s views are incoherent or unjustified, and that our own position is more reason-
able. We have a duty to be open to and absorb that part of the Other’s point of view which furthers justice
while disagreeing with the rest.
But if we have this responsibility, how will we know when to cease our efforts at understanding? How will
we know when we have done all that justice requires? We cannot know the full contours of our responsibil-
ity in advance of our encounter with the Other. Each situation will be different, and our responsibility in
each situation will depend heavily on the context of the encounter. Hence our responsibility to the Other,
while not infinite, is nevertheless indefinite.
There is a further reason why our duty to the Other must be indefinite. It has to do with the symmetrical nature
of Otherness”. — BALKIN, Jack. “Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice”, op. cit., p. 1167.
193
43 A comunidade ética é aqui compreendida como axiologicamente fundada: “E esta constituir-se-á apenas
se o estatuto dos direitos e dos deveres, que em cada um dos participantes venha a definir concretamente
a sua correspectiva posição, se revelar fundado ou puder fundamentar-se num “valor”, num fundamento
axiológico graças ao qual a posição afirmada se transcenda num sentido de validade. Valor transcenden-
te, posto que se revela à consciência ética das pessoas que comungam na situação ao transcenderem-se
elas mesmas na compreensão de membros comparticipantes e corresponsáveis dessa mesma situação”.
— CASTANHEIRA NEVES. “O papel do jurista no nosso tempo”. In: Digesta…, op. cit., vol. I, p. 9-50,
p. 40. “Dir-se-á, de outro modo, que o direito só será autenticamente como tal se for manifestação da
“volonté générale” — mas da “vontade geral” nos termos em que ela pode ser compreendida e é efectiva-
mente compreendida pelo pensamento jurídico do nosso tempo. Uma “vontade geral” que não tem já nada
a ver com uma redução formal (quer idealizante, quer generalizante) da vontade de todos, nem exprime
um qualquer voluntarismo (de estrutura racional ou não), e muito menos um dado sociológico (um “facto”
social que traduzisse uma “convicção” generalizada ou um “consenso”, de base psicológica ou de qualquer
outra, mas de carácter puramente empírico). Significa antes o transcender de uma intenção axiologicamente
fundamentante de sentido comunitário: a intenção axiológica que se assume como uma tarefa permanentemente
suscitada a partir da convivência comunitária das pessoas humanas e que nessa convivência concreta se terá de
realizar. (...) por um lado, a transcendência (melhor: o transcender) de que aqui se fala é de carácter estritamente
histórico-concreto — e, por outro lado, o sentido axiológico que implica não é imposto “heteronomamente”,
mas assumido pela (e revelado à) pessoa moral ao transcender-se e realizar-se ela própria na sua dimensão
comunitária”. — Idem, p. 42. Vide ainda CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o
problema universal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito”. In: Estudos em Ho-
menagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço. Coimbra, 2002, vol. II, p. 837-871, p. 863-864.
44 “Pois a prática humana histórico-cultural e de comunicativa coexistência (quer a prática ética em geral,
quer particularmente a prática jurídica), com a sua tão específica intencionalidade à validade em resposta
ao problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela distinção entre o humano e o inumano, o
válido e o inválido, o justo e o injusto, refere sempre nessa intencionalidade e convoca constitutivamente na
sua normatividade certos valores e certos princípios normativos que pertencem ao ethos fundamental ou ao
seu epistéme prático de uma certa cultura numa certa época. E que assim, sem se lhes poder ignorar a histo-
ricidade e sem deixarem de ser da responsabilidade da autonomia cultural humana, se revelam em pressu-
posição problematicamente fundamentante e constitutiva perante as contingentes positividades normativas
que se exprimem nessa cultura e nessa época — são valores e princípios metapositivos e pressupostos dessa
mesma positividade, como que numa autotranscendência ou transcendentalidade prático-cultural, em que
ela reconhece os seus fundamentos de validade e os seus regulativo-normativos de constituição.
É assim que se poderá dizer que só no direito positivo (histórico-socialmente vigente) o sentido fundamen-
tante de validade realiza o direito, mas só por esse sentido o direito positivo existe como direito. Pelo que a
exclusão da necessidade ontológica no domínio da praxis — que temos de reconhecer como consequência
e herança excessivamente gregas da compreensão da mesma praxis, e que já não poderá ser a nossa hoje
— não nos condena à mera contingência político-social, no domínio do prático-jurídico. A posição exacta
é a de um tertium genus dado numa autopressuposição axiológico-normativa fundamentante e regulati-
vamente constitutiva”. — CASTANHEIRA NEVES. Apontamentos complementares de Teoria do Direito
— Sumários e Textos. Coimbra, 1998-1999, p. 62 (p. 34- 35, na versão A4). Vide ainda CASTANHEIRA
NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia…, op. cit., p. 146-
147, e “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro”, op. cit., p. 11, no sentido de
que o direito “(…) terá de referir-se a uma autotranscendência axiológico-normativa de transcendentali-
dade prático-cultural em que reconheça os seus fundamentos de validade e os seus regulativo-normativos
de constituição. Autotranscendência de que assim o homem é responsável, mas sem que esteja no seu
arbítrio, numa transcensão que a prática experiência histórica solicita e justifica — e como que numa
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47 Sobre os três planos da consciência jurídica geral, vide CASTANHEIRA NEVES. A revolução e o direi-
to, op. cit., p. 208-222; PINTO BRONZE. Lições de Introdução ao Direito, op. cit., p. 476 ss.; AROSO
LINHARES. Sumários desenvolvidos (C): “O Jurisprudencialismo”, Coimbra, 2001-2002; p. 4-9. Vide
ainda, quanto ao conceito de pessoa como aquisição axiológica, entre outras reflexões de CASTANHEI-
RA NEVES. Apontamentos complementares de Teoria do Direito…, op. cit., p. 71-79 (p. 40-43, na versão
A4); e “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit., p. 863-871.
Vide também, por exemplo, PINTO BRONZE. Lições de Introdução ao Direito, op. cit., p. 170-196, 480,
490-543, 570-579; AROSO LINHARES. “Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade
cívico-territorial…”, op. cit., p. 59-60, 64, e “A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz:
o ‘testemunho’ crítico de um ‘diferendo’?”, Revista Lusófona de Humanidade e Tecnologias. Estudos e
Ensaios, n. 12, 2007-2008, p. 101-120, p. 117.
48 “(…) o liberalismo político tenta responder à seguinte questão: como é possível que possa haver uma so-
ciedade estável e justa cujos cidadãos livres e iguais estejam profundamente divididos por doutrinas religiosas,
filosóficas e morais conflituantes e mesmo incomensuráveis? (…) a primeira fase da exposição da justiça como
equidade como uma perspectiva independente que se dirige a esta questão. A primeira fase indica os princípios
da justiça que especificam tanto os justos termos da cooperação entre os cidadãos como as circunstâncias em
que as instituições básicas de uma sociedade são justas.
A segunda fase da exposição (…) considera o modo como a sociedade democrática bem-ordenada da justi-
ça como equidade pode estabelecer e preservar a unidade e a estabilidade, dado o pluralismo razoável que
a caracteriza. Numa sociedade deste tipo, uma doutrina abrangente razoável não pode assegurar os funda-
mentos da unidade social, como igualmente não pode prover o conteúdo da razão pública nas questões po-
líticas fundamentais. Consequentemente, para observar o modo como uma sociedade bem-ordenada pode
ser unificada e estabilizada, introduzimos uma outra ideia básica do liberalismo político que acompanhará
a ideia de concepão política da justiça: a ideia de um consenso de sobreposição de doutrinas abrangentes
razoáveis”. — RAWLS, John. Political Liberalism. Columbia, 1993, op. cit. na trad. portuguesa O Libera-
lismo Político. Trad. João Sedas Nunes. Lisboa, 1996, p. 141. Vide especialmente p. 141-174.
49 “Von den bislang konkurrierenden Rechtsparadigmen unterscheidet sich das prozedurale nicht dadurch,
daβ es „formal“ im Sinne von „leer“ oder „inhaltsarm“ wäre. Denn mit Zivilgesellschaft und politischer
Öffentlichkeit zeichnet es energisch Bezugspunkte aus, unter denen der demokratische Prozeβ für Ver-
wirklichung des Systems der Rechte ein anderes Gewicht und eine bisher vernachlässigte Rolle gewinnt.
In komplexen Gesellschaften sind weder die Produktivität einer marktwirtschalftlich organisierten Wirt-
schaft noch die Steuerungskapazität der öffentlichen Verwaltung die knappsten Ressourcen. Einen shonen-
den Umgang verlagen in erster Linie die Ressourcen des erschöpften Naturhaushaltes und der im Zerfall
begriffenen gesellschaftlichen Solidarität. Und die Kräfte gesellshaftlicher Solidarität lassen sich heute nur
196
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198
53 CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit.,
p. 840-841.
54 A juridicidade compreendida agora “(...) como expressão de uma validade (exigência axiológico- -normati-
va) a assumir pela prática concreta da coexistência histórico-socialmente das pessoas, no seu encontro e de-
sencontro, na sua convergência ou na sua divergência e controvérsia prático-concretas”. — CASTANHEIRA
NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia…, op. cit., p. 105.
55 “The polar position opposite individualism is communalism. For the communalist, moral imperatives are
binding because they reflect the will of the community, and not the individual. Members of a community
owe allegiance to its mores, ideals, and goals. All members of the community have duties and responsibili-
ties to all other members. These duties and obligations are not the result of voluntary choice but preexist
the self. If for the individualist duty was inseparable from self-legislation, for the communalist, duty is
inseparable from communal participation. Self-realization only is possible through embracing the shared
values and goals of the community. The fact that preexisting mores of the community are imposed upon
the self does not negate the self’s freedom, for the self is part of the community that creates these duties.
Under the communalist vision, one is truly free only when one can share in the benefits of participation
in the community and enjoy the protection and security which membership in the community offers”. —
BALKIN, Jack. “The Crystalline Structure of Legal Thought”, Rutgers Law Review, vol. 39, Fall 1986,
n. 1, p. 1-103, p. 13-14, citado na versão online, disponível em: <http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/
articles/crystal.pdf>. Acedido em: 03/11/2003.
56 Cfr. CASTANHEIRA NEVES. Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema metodológico da
juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) — I. A crise. Coimbra, 1967, p. 539-540, 571-579; “O papel
do jurista no nosso tempo”, op. cit., p. 9-50; “O direito como alternativa humana. Notas de reflexão sobre o
problema actual do direito”, op. cit., p. 287-310; “Pessoa, direito e responsabilidade”, Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, n. 6, 1996, 9-43, p. 32-43; “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal
do direito...”, op. cit., p. 848-861 e 863-866; O direito hoje e com que sentido?, op. cit., p. 69-75.
57 CASTANHEIRA NEVES. “Pessoa, direito e responsabilidade”, op. cit., p. 43; “Coordenadas de uma
reflexão sobre o problema universal do direito...”, op. cit., p. 867-868.
199
58 CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op.
cit., p. 844-861; “Pessoa, direito e responsabilidade”, op. cit., p. 32-43.
200
59 O que, no que diz respeito a Balkin, Aroso Linhares enuncia do seguinte modo: “Uma political morality
que combate a hipertrofia da Zweckrationalität — mas também o isolamento individualista dos direitos e
dos arbítrios (dos direitos sem deveres e dos arbítrios sem liberdade) — enquanto e na medida em que as-
sume a promessa de uma ética da alteridade — e com ela a representação condutora de uma responsabili-
dade indeterminada (as an indefinite duty towards the Other (…), which is neither infinite nor nonexistent,
but dependent on facts and circunstances that are never fully clear, and whose precise contours cannot
fully be determined in advance). Promessa enfim que se especifica numa compreensão da controvérsia
juridicamente relevante (in a situation where each part is an Other to the other, and each is an Other to the
judge who must decide the case). Mas então também (et pour cause!) numa compreensão da controvérsia
em que as categorias de inteligibilidade (se não tools of understanding) são afinal as dos papéis reversíveis
(de agressor ou de vítima, de opressor ou de oprimido) que as partes ocupam na “hierarquia” (naquela
“hierarquia” que só pode ser reconstituída em concreto)”. — AROSO LINHARES. “Autotranscendentali-
dade, desconstrução e responsabilidade infinita…”, op. cit., p. 654.
60 A pessoa vai aqui compreendida num sentido muito próximo daquele que Castanheira Neves apresenta.
Vide CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filo-
sofia..., op. cit., p. 105; “O papel do jurista no nosso tempo”, op. cit., p. 38-41; “A imagem do homem no
universo prático”. In: Digesta..., op. cit., vol. I, p. 311-336. A afirmação do homem como pessoa a convocar
uma específica transcendência: “Fé na transcendência a que é convocado o homem e para que aí se recu-
pere como pessoa — pessoa e não substância, ser pessoal e não ser individual, não apenas o ser titular da
liberdade e dos interesses, mas o ser da dignidade ética que é chamado por isso mesmo ao diálogo ético e
à responsabilidade. Pessoa que no seu absoluto ético transcende o político e o económico e que nessa sua
eticidade, com que unicamente tem sentido e se reintegra em si e com os outros reconstituirá uma nova
validade com que na intersubjectividade se vinculará axiologicamente a fundamentos normativos que darão
também sentido aos seus direitos, aos seus deveres e à sua responsabilidade. A pessoa como núcleo autên-
tico de um novo universo prático de sentido e também de um novo direito, de um verdadeiro direito — o
direito que recuse o mero juridismo e se não confunda com uma política ou instrumental legalidade...”. —
Idem, p. 336; “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op. cit., p. 862.
201
61 A própria concepção pragmatista teria, em certo ponto, de utilizar ideais transcendentes, pois também ela
resulta de uma evolução histórica e pertence a uma determinada cultura, objecção que coloca ao conceito
de valor transcendente. — BALKIN, Jack. Cultural Software..., op. cit., p. 168-169.
62 “The experience of historicism makes the concept of transcendence emergent; the concept of transcend-
ence makes the language of historicism coherent”. — Idem, p. 170. Este relativismo espelha-se na concep-
ção de história subjacente à teoria da ideologia de Balkin, admitindo que o passado e o presente se influen-
ciam reciprocamente, como construção e compreensão que o homem faz de si próprio. De novo se poderá
aqui encontrar um paralelo com o Realismo Jurídico Americano, designadamente em Jerome Frank, que
assumia um relativismo histórico, inspirado em Carl Becker, segundo o qual o presente influi na ideia de
passado e esta naquele, e a narrativa do passado será construída de modo diverso, consoante as características
de cada presente... — vide BECKER, Carl. “What are Historical Facts?”, The Western Political Quarterly, vol.
VIII, n. 3, september 1955, p. 327-340, 336-337, apud CAHN, Edmond. “Jerome Frank’s Fact Skepticism and
our Future”, The Yale Law Journal, vol. 66, 1957, p. 824-832 (também em TWINING W.; STEIN, Alex (Ed.).
Evidence and Proof. Aldershot, 1992, p. 234-241), p. 826.
202
63 BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 32. “Moral incoherence in individual belief may result
from the internalization of cultural norms that are themselves the sedimentation of different historical
practices. If culture is bricolage — the catch-as-catch-can assemblage and juxtaposition of tools of under-
standing accumulated over history — this bricolage resides in us as well as in the culture we inhabit. To
exist in history is just to internalize the untidy mélange of conflicting traditions, values, and norms that
constitutes historical consciousness. Thus, history and politics can be the cause of normative incoherence
if we recognize that the relics of history and previous political struggle already exist within us. On the
other hand, by blaming normative incoherence on politics or history conceptualized as events external to
us, we make invisible history’s previous construction of our selves. We imagine ourselves to be the seat of
rationality surrounded by an external world of unreason. We see history and culture without us but not within
us. Once again, we imagine the self’s autonomy from the forces that make the self what it is”. — BALKIN,
Jack. “Understanding Legal Understanding…”, op. cit., p. 175.
64 Conceito de transcendência de valor este que Balkin não substitui por um outro, o de imanência axiológi-
ca, que seria provavelmente mais adequado, mais logrado e mais consentâneo com os sentidos definidos
e os desenvolvimentos apresentados no que diz respeito à cultura, à comunidade e à própria ideologia,
enquanto conjunto de efeitos ideológicos histórico-socialmente contextualizados. Um tal conceito de
contextualização histórica da cultura pressupõe uma radical abertura da praxis ao devir histórico (neste
sentido também Karl Popper convoca a historicidade, mas, diferentemente de Balkin, sem convocação
de qualquer transcendência, antes com uma radical abertura à contingência. — Vide POPPER, Karl. The
Open Society and Its Enemies. vol. II — The High Tide of prophecy: Hegel, Marx, and the Aftermath
(1945), Princeton, New Jersey, 1971, p. 270 ss.. “... o “significado” da história é algo que escolhemos. Pois
enquanto este “plano” — ou, em face dos diferentes tipos de conhecimento, estes “planos” — são algo que
nos foi dado pelas escolhas feitas pelos nossos antepassados, está claramente nas nossas mãos fazer deles
o que nos aprouver. Podemos pegar neles e alimentá-los ou podemos virar-lhes as costas”. — POPPER,
Karl. “Uma abordagem pluralista à filosofia da história”, The Myth of the Framework. London, 1994, op.
cit. na trad. portuguesa O mito do contexto. Trad. Paula Taipas. Lisboa, 1999, p. 163-188, p. 170). E pres-
supõe ainda uma perspectivação de cada momento histórico como concretização localizada, isoladamente
concebida, de um sentido ahistórico — no que se poderá dizer, afinal, uma opção historicista. — Vide
BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 17, e ainda BALKIN, Jack. “Understanding Legal Un-
derstanding...”, op. cit., p. 152. A existência histórica não seria apenas uma existência no tempo, mas uma
existência num tempo em que a pessoa é constituída por uma específica forma particular (colectivamente
criada) de cultural software. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 17. Balkin convoca aqui
Hans-Georg Gadamer, na medida em que assume que o human cultural understanding é possível devido
à localização do homem numa tradição historicamente gerada, que nos confere certos pré-juízos ou pré-
-conceitos (prejudices or prejudgments) que transporta para a compreensão-understanding. O cultural
software desempenha, de certa forma, uma função similar à do conceito gadameriano de tradição, ainda
que noutros termos: conferir instrumentos e pré-compreensões imprescindíveis à análise cultural. — Idem,
p. 9. Embora Gadamer não perspective a sua teoria da tradição como uma teoria da ideologia, Balkin en-
contra nela, não obstante, um ponto de partida para afirmar que a ideologia é um caso especial de ordinary
cultural understanding: “Indeed, we might be tempted to substitute the word tradition directly for the
word ideology. We need only modify Gadamer’s comparatively rosy view of the effects of prejudgments
and prejudices on the understanding by emphasizing that these prejudices and prejudgments can as easily
mislead as facilitate social understanding”. — Idem, p. 7. Os problemas de causation e differentiation es-
tariam, então, relacionados com um problema final, o problema da mudança ou transformation: a tradição
203
altera-se ao longo dos tempos, porém continua a ser partilhada, não obstante o conteúdo partilhado se ir
alterando. — Idem, p. 10. Acerca do sentido da tradição em Gadamer, vide GADAMER, Hans-Georg.
Wahrheit und Methode. Grunzüge einer philophischen Hermeneutik. Tübingen, 1960, op. cit. na trad.
castelhana a partir da 4. Auflage, Tübingen, 1975, Verdad y Método. Trad. Ana Agud Aparicio e Rafael
de Agapito. Salamanca, 1977, p. 348-353. A teoria do cultural software pretende oferecer um desenvolvi-
mento distinto relativamente às perspectivas de compreensão cultural que Balkin designa por historicistas,
como seria o caso da de Gadamer. Por conseguinte, aquilo que alguns autores designam por consciência
colectiva ou espírito do tempo (spirit of the age — Zeitsgeist), não seria uma causa das semelhanças na
produção cultural dos indivíduos, mas antes um efeito produzido por uma economia de troca entre indiví-
duos com cultural software suficientemente semelhante. Uma economia de cultural software distinguir-
-se-á não apenas pelo conteúdo mas também pela distribuição das diferentes espécies de cultural software.
Esta distribuição relativa de semelhanças e diferenças determinaria o grau de consenso e dissenso numa
cultura, pelo que as alterações na distribuição do cultural software envolveriam igualmente alterações de
conteúdo. — BALKIN, Jack. Cultural Software…, op. cit., p. 92-97, 142-170.
65 CASTANHEIRA NEVES. A crise actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia...,
op. cit., p. 93-94; “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op. cit., p. 863.
66 Veja-se a consideração deste sentido de validade comunitária, pressupondo uma específica exigência
indeterminada de justiça e uma sua correspondente political morality, em AROSO LINHARES. “Au-
totranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita…”, op. cit., especialmente p. 651-655:
“Uma proposta que parte de uma interpelação assumida da validade comunitária (na sua autotranscenden-
talidade)… se não mesmo de uma representação (retoricamente desconstrutiva) do “fosso” ou da solução
de continuidade “normativamente” relevante (as a normative chasm or gap) que separa (que distingue)
“valores humanos” (as transcendent values in an inchoate sense) e “convenções culturais” (as immanent
cultural articulations)…”. — Idem, p. 651.
67 CASTANHEIRA NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito...”, op.
cit., p. 841.
204
III
Concluindo, e repondo o problema da possibilidade do direito entre um plano
ideológico centrado numa political morality e um projecto de autonomia assen-
te numa fundamentação axiológica, caberá relembrar que, no actual cenário de
pluralismo (quase) radical, em que a desagregação de referentes afasta as subco-
munidades, outrora grupos (des)integrados num contexto civilizacionalmente co-
munitário — e para convocarmos apenas este —, cumpre perguntar pelos limites
68 CASTANHEIRA NEVES. O direito hoje e com que sentido?, op. cit., p. 9-21.
69 “Não curamos do direito que no mundo das entidades objectivas (objectivo-histórico-culturais) aí estará
inegável, para sabermos o que ele é ou tem sido nessa sua objectivação histórico-cultural e para como tal
o determinarmos — interrogamo-lo antes constitutivamente na origem fundamentante de onde será ou não
será, no cumprimento ou não de uma intenção humana válida, e origem essa que é assim a própria prática
humana problematicamente consciente de si.
Só que enunciar o problema do direito nesta radical universalidade não postula a sua necessidade — em
termos de o direito ter de ser, porque o homem é. É pensável a não existência do direito — vê-lo-emos, ao
considerar as suas “alternativas” — sem que todavia também por isso se haja de concluir, não obstante as
tendências actuais, que esse pensável se tenha verificado ou se venha a verificar. E todavia o problema do
direito é um problema universal — e num duplo sentido. Não só o homem se porá sempre o seu problema,
como esse seu problema se enunciará também sempre do mesmo modo e com a mesma significação essen-
cial. O primeiro destes dois pontos, no entanto, não deve entender-se, repita-se, como se a universalidade
do problema implique a universalidade do próprio direito — ou como se a resposta ao problema formulado
não possa ser negativa e tenha de traduzir-se necessariamente na constituição e existência do direito. Ire-
mos, com efeito, compreender, que o direito é só uma resposta possível para um problema necessário — e
daí as suas alternativas. Isto, porque o direito apenas surgirá, enquanto tal, se se verificarem certas con-
dições e essas condições — ou algumas delas — não são de verificação necessária”. — CASTANHEIRA
NEVES. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito…”, op. cit., p. 839.
205
70 Vide os desenvolvimentos propostos por Castanheira Neves, em O direito hoje e com que sentido?, op. cit.,
passim; “O funcionalismo jurídico — caracterização fundamental e consideração crítica no contexto actual
do sentido da juridicidade”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 136º, 2006, n. 3940, p. 3-31
a ano 136º, 2006, n. 3942, p. 122-151; também em Digesta…, op. cit., vol. III, p. 199-318; “Uma reflexão
filosófica sobre o direito — ‘o deserto está a crescer…’ ou a recuperação da Filosofia do Direito?”, op.
cit., p. 73-100; e “O problema da universalidade do direito — ou o direito hoje, na diferença e no encontro
humano-dialogante das culturas”, op. cit., p. 101-128.
71 “Se a fundamentação jusnaturalista invocava uma acrítica referência já ontológico-metafísica, já antropo-
lógica que se revelou insustentável, e a fundamentação racionalista sob os diversos modelos de autocons-
tituídas racionalidades procedimentais, implicava afinal pressuposições que a invalidam nesse sentido,
não fica excluído que se reconheça na experiência (poderá dizer-se, humano-hermenêutica) da histórico-
-cultural prática humana e da corresponsabilizante coexistência uma específica intencionalidade à validade
em resposta ao problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela distinção entre o humano e
o inumano, o válido e o inválido, o justo e o injusto, intencionalidade que refere sempre e convoca cons-
titutivamente na sua normatividade certos valores e certos princípios normativos que pertencem ao ethos
fundamental ou ao seu episteme prático de uma certa cultura numa certa época. E que assim, sem se lhes
poder ignorar a historicidade e sem deixarem de ser da responsabilidade da autonomia cultural humana,
se revelam em pressuposição problematicamente fundamentante e constitutiva perante as contingentes
positividades normativas que se exprimem nessa cultura e nessa época — são os valores e princípios
metapositivos e pressupostos dessa mesma positividade, como que numa autotranscendência ou transcen-
dentalidade prático-cultural, em que ela reconhece os seus fundamentos de validade e a que refere os seus
regulativo-normativos critérios de constituição prática. Pelo que a exclusão da necessidade ontológica no
domínio da praxis — que temos de reconhecer como consequência e herança excessivamente gregas da
compreensão da mesma praxis — não nos condena à mera contingência político-social, no domínio do
prático-jurídico. A posição exacta é a de um tertium genus dado numa transcendental autopressuposição
axiológico-normativa fundamentante e regulativamente constitutiva”. — CASTANHEIRA NEVES. A cri-
se actual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia..., op. cit., p. 146-147.
206
72 “Para além da responsabilidade pode considerar-se a solidariedade. (...) Só que — ponto essencial —
distinguindo bem responsabilidade (jurídica) e solidariedade (humana). E nesse caso não terá sequer de
convocar-se uma responsabilidade que seja compreendida a exorcizar o absurdo da dor humana na as-
sunção de uma culpa originária que nos solidarize, simplesmente aí — e uma vez mais naquele não já
jurídico, mas transjurídico princípio de responsabilidade radical que é o Anspruch des Seins no homem e
para o homem —, humanidade, responsabilidade e solidariedade identificam-se. De novo e como sempre
o amor está para além da justiça e consuma-a — só o dom acaba por dar sentido e admite a reivindicação
do outro”. — CASTANHEIRA NEVES. “Pessoa, direito e responsabilidade”, op. cit., p. 43.
73 Vide Castanheira Neves: “(…) o direito nesta nossa “idade de homens” é — e com Vico, um factum da poi-
ésis humana, no autoprojecto de humanidade que na existência comunitária o homem civilizacional-cul-
turalmente se constitua e nele se assuma e exprima (e neste sentido, mas apenas neste sentido, podemos
referir-lhe uma sua veritas quia factum)”. — “O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do
futuro”, op. cit., p. 10. “Reconheça-se, com efeito, que no contexto histórico-cultural e social global dos
nossos dias se pretende orientar a prática humana para outras orientações, distintas das que ainda há pouco
eram aceites, em resposta, que justamente teria de ser diferente, a também outras exigências político-
-sociais e humanas vividas numa surpreendente e exponenciada complexidade. Daí, por um lado, diversas
intenções determinantes que tendem a ser mais fortes do que a do direito, no seu apelo apenas a validades,
a critérios normativos e a juízos perante a força mobilizante e eficaz da acção — intenção do direito que
parece, aliás, esgotar-se em declarações e reivindicações, a ocuparem hoje o lugar e com a mesma intenção
fundamental que correspondeu ontem ao “direito natural”, e numa insistência tão enfática como vã, dos
“direitos humanos”, e mesmo essas mais na retórica política do que reflectidos no sentido que criticamente
lhes corresponde no último e decisivo sentido do direito, a que adiante se aludirá. Intenção ao direito
aquela, no entanto, que o olha apenas no seu disponível e acrítico objectivo regulatório e para fazer dele
um funcionalizado instrumento sancionador de quaisquer outras e externas teleologias. Por outro lado, e
207
como que num contextual horizonte, o próprio também actual mundo humano-cultural, tão profundamente
problemático e dissolvente e a convocar todas as reduções, da compreensão do homem sobre si próprio,
do seu mundo de existência e do seu tempo, como que fomenta um outro nebuloso holismo cultural e
prático, em que uma desintegrada indeterminação vai simultânea com uma fragmentarização à outrance,
mais radical do que os mais extremos pluralismos, holismo em que todas as referências valem tanto como
as suas contrárias e umas às outras se anulam, porque afinal nenhuma tem verdadeiro valor, e a não fazer
absurda a invocação como que de um pré-cultural e regressivo caos civilizacional”. — Idem, p. 13-14. Vide
ainda“O problema da universalidade do direito — ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-
-dialogante das culturas”, op. cit., passim. Vide ainda Aroso Linhares: “Aquela vinculação civilizacional
que nos permite descobrir no direito um “pormenor” decisivo de uma certa “ideia da Europa”? Certamen-
te. Um pormenor culturalmente frágil (ameaçado por uma crise de identidade profunda)… mas nem por
isso menos decisivo.
Decisivo apenas porque o seu homo humanus se nos oferece como um “pormenor” partilhado — com-
possível com o “mosaico” das “pluralidades linguística, cultural e social” que iluminam o território desta
mesma Europa e com os “pormenores” a que estas pluralidades nos expõem? Decerto também porque a
institucionalização lograda deste homo humanus e da procura que o reinventa (na identidade material do
seu projecto) nos proporciona a condição por excelência dessa pluralidade ou da santificação-sancire que
esta exige (a oportunidade, se quisermos, de resistir à “avidez da uniformidade”… e à “onda detersiva” que
a propaga). Mas não só nem principalmente. Decisivo também e ainda porque esta procura e a experiência
do homem-pessoa que ela renova — e que leva a sério como uma “aquisição axiológica” (emancipando-
-o de qualquer pré-determinação ontológica universalizável) — continuam a interpelar-nos como um dos
eixos-interlocutores indispensáveis da nossa circunstância presente (e do processo ou promessa de “de-
marcação” humano/inumano que lhe responde). Como uma procura que não se consumou — nem ficou
prisioneira (de qualquer um) dos ciclos de intellegere-inventio que a foram construindo —… e que assim
mesmo confronta a nossa circunstância com a possibilidade-exigência de reinventar uma intenção con-
dutora”. — AROSO LINHARES. “A “abertura ao futuro” como dimensão do problema do direito”: um
“correlato” da pretensão de autonomia?” In: NUNES, Avelãs; COUTINHO, Miranda (Coord.). O direito e
o futuro. O futuro do direito, op. cit., p. 391-429, p. 426-427.
208
não queremos que seja o admirável da sátira de Huxley, nem o do Big Brother
de Orwell —, haverá sempre uma voz de ponderação e diálogo que, se mais não
puder, fará pelo menos parar para reflectir os sentidos que, como horizontes de
referência, na sua autotranscendentalidade, seja de intenção à justiça seja à vali-
dade, foram historicamente mobilizados. De novo a historicidade, não o histori-
cismo. De novo o convite, a urgência mesmo, da reflexão, da prudência. Mesmo
que essa reflexão tenha lugar na confluência de múltiplos discursos, mesmo que
ideológicos, políticos, económicos, tecnológicos... Se desses discursos externos
conteúdos houver a mobilizar para uma reflexão interna, crítica, autocrítica, do
direito acerca de si próprio, mas sem se deixar dissolver neles.
O direito só será, nestes termos, resposta para o nosso tempo se o pensa-
mento jurídico puder reflectir metanormativamente a prática, com uma relativa
distância, a fim de, normativamente, aquele se poder projectar nesta como factor
de racionalização da intersubjectividade. Por mais difícil que se apresente este
desafio e esta tarefa, na correria em que se tornou a vivência do homem neste
nosso mundo74. O direito só será verdadeiramente projecto humano se o homem
se reconhecer, a si e aos outros, na sua finitude, mas também na sua dignidade...
Pois, como diz o poeta mineiro Drummond de Andrade, em Igual-Desigual:
“(...)
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem,
bicho ou coisa. Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho ímpar”.75
74 REIS MARQUES, Mário. “O direito: a gestão da urgência ou uma normatividade com um tempo pró-
prio?”. In: Ars Ivdicandi — Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves, Volume
I — Filosofia, Teoria e Metodologia, op. cit., p. 725-764.
75 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. “Igual-desigual”. In: A Paixão Medida. Rio de Janeiro, 1980
apud DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia Completa. Edição do Centenário. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2001, vol. II, p. 1185-1228, p. 1207.
209
Antonio Sá da Silva**
Universidade Federal da Bahia
1. A INTRODUÇÃO
O direito, quando adequadamente o compreendemos na perspectiva jurispru-
dencialista de A. Castanheira Neves, é a última instância crítica através da qual
os homens se socorrem da arbitrariedade dos outros homens e até mesmo do pró-
prio Estado.1 Mais que reconhecer nesse direito um projeto civilizacional — eu-
ropeu, de raízes greco-romanas e judaico-cristãs — e humano que se afirma hoje
como resposta possível para um problema necessário,2 o jurisprudencialismo vê
neste projeto uma verdadeira alternativa humana: “uma dimensão capital, e irre-
* Apresentado como parte integrante do I Seminário Internacional de Filosofia do Direito de Ouro Preto/
Minas Gerais/Brasil, em Outubro de 2008.
** Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra/Portugal. Professor, Coordenador de Apoio Acadêmico do Curso Noturno e Coordenador do
Observatório do Ensino Jurídico da Faculdade de Direito da UFBA. Professor da Faculdade Baiana de
Direito e do Centro Universitário Jorge Amado. Ex-Pesquisador-Bolseiro do Instituto de Investigação
Interdisciplinar da Universidade de Coimbra/Portugal.
3 “E para ser ele [o direito] aquilo que verdadeiramente deve ser e para que possa cumprir a sua autêntica
função de direito — afirmar-se como a última instância crítica (axiológico-normativamente crítica) da co-
munidade, através da qual o homem se afirmará na sua dignidade indispensável à prepotência do poder, seja
do poder dos outros homens, seja o poder do poder político” (cf. NEVES, António Castanheira. A redução
política do pensamento metodológico. In: Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da
sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, vol. 2, p. 413. O itálico é do próprio autor).
2 NEVES, António Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia.
Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 146.
211
3 Cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia, op. cit., p. 147.
4 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Edi-
tora, 1993, p. 9.
5 Para os sinais dessa fragmentação, na perspectiva da decisão jurídica, conferir especialmente LINHARES,
José Manuel Aroso. “A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz: o “testemunho” crítico de
um “diferendo”?”, Revista Lusófona de Humanidades e Tecnologias, n. 12. Porto: Universal Lusófona de
Humanidades e Tecnologias, 2008, parte I; para uma exploração daquele testemunho, conferir a mesma
obra na sua parte II; e mais que isso: para uma esperança e para o contributo a uma teoria do direito que
não se contente apenas em acrescentar mais um fio à teia de Penélope que Dunkan Kennedy denunciou,
no horizonte de uma proposta radical que se interroga a si mesma e quer se afirmar como um projeto cul-
tural e humano entre outros projetos, conferir igualmente a obra citada em toda a sua parte III. Para um
estudo suficientemente detido acerca do estatuto ontológico do diferendo, e ainda sobre a sua presença na
composição dos litígios e na solução das controvérsias judiciais, conferir do mesmo autor Entre a reescrita
pós-moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença ou a prova como um exercício de
“passagem” nos limites da juridicidade (Imagens e reflexos pré-metodológicos deste percurso). Coimbra:
Stvdia Iurica 59 / Coimbra Editora, 2001, p. 316 e segs.
6 BRONZE, Fernando José. Breves considerações sobre o estado actual da questão metodonomológica. Bo-
letim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, vol. LXIX,
p. 177-199, especialmente p. 185 e segs.
212
7 Cf. NEVES, António Castanheira. “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal. Ano 6, Fasc. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 33.
213
8 Cf. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1989, p. 206.
9 Cf. NUSSBAUM, Martha C. The fragility of goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy.
Cambridge: Cambridge University Pressy, 1986, p. 01 e segs., e pág. 70.
10 Cf. NUSSBAUM, Martha C. The fragility of goodness, op. cit., p. 44 e seg.
214
A mim me parece certa essa divergência uma vez que o nosso autor, da sua
concepção de homem-pessoa, infere uma concepção de comunidade, ainda que
também fundada na ideia de responsabilidade, mas muito diferente daquela que
vamos encontrar na concepção trágica. E o mesmo rejeita expressamente a pos-
sibilidade de uma re-fundação do direito partindo dessa concepção arcaica “em
que a humanidade como que se assumia a si própria em cada um”13, dado que
nela “o homem respondia pelas transgressões aos deuses tutelares, e portanto ao
nomos comunitário, na imputação objectiva da acção violadora, com a sua exem-
plaridade e os seus efeitos”14. A aposta do jurisprudencialismo é naquela subje-
tividade que possibilita a comparação entre sujeitos de direitos e obrigações, e
isto nos mostra que se ambos os pensamentos aqui analisados têm em comum
uma visão de direito que tem em conta o regresso da comunidade, numa crítica
assumida a alguns dos pressupostos que herdamos da tradição liberal, outras são,
no entanto, as consequências advindas de cada um deles.
E disto também se retira outra concepção de direito. Com efeito, disse-nos
A. Castanheira Neves que as condições de emergência do direito como direito
são a condição mundanal — as inter-relações subjetivas de direito dão-se pela
mediação do mundo, pela correspondência de direitos e obrigações na partilha
11 Cf. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. 6. ed. Maia: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2000,
1449b-1450a.
12 Cf. ÉSQUILO. Coéforas. In: Orestéia. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edições 70, 1992, 269-277.
13 Cf. NEVES, António Castanheira. “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, op. cit., p. 12.
14 Cf. NEVES, António Castanheira. “Pessoa, Direito e Responsabilidade”, op. cit., p. 11.
215
15 Cf. NEVES, António Castanheira. Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito —
ou as condições de emergência do direito como direito. In: Estudos em Homenagem à Professora Doutora
Isabel de Magalhães Collaço. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, vol. II, p. 841 e segs.
16 Cf. NEVES, António Castanheira. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito”,
op. cit., p. 868.
17 Cf. NUSSBAUM, Martha C. “Virtue ethics: um misleading category?”, The Journal of Ethics, v. 3, n. 3,
Norwell, 1999, p. 180, assim como a conclusão, contida na p. 200.
18 “I also become involved in public life in a completely different area” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic
Justice: the literary imagination and public life. Boston: Unitarian Universalist Association of Congrega-
tions, 1995, p. XV).
19 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. XVIII, e especialmente da mesma autora, Cultivat-
ing Humanity: a classical defense of reform in liberal education. Cambridge/London: Harvard University
Press, 1997, capítulos 2, 4, 5 e 6; Sex and social justice. Oxford: Oxford University Press, 1999; Women
and human development: the capabilities approach. New York: Cambridge University Press, 2000.
216
20 “O homem habita e comunga o mundo numa condição social...” (cf. NEVES, António Castanheira. “Co-
ordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito”, op. cit., p. 844).
21 Cf. NEVES, António Castanheira. “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito”,
op. cit., p. 848 e segs.
22 Para esta questão, conferir especialmente NEVES, António Castanheira. “O direito como alternativa hu-
mana. Notas de reflexão sobre o problema actual do direito”. In: Digesta, op. cit., vol. 1, p. 287-310.
23 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice: disability, natinality, species membership. Cambridge/
London: The Belknap Press of Warvard University Press, 2007.
24 Sobre a questão da mundialidade, conferir da autora especialmente Los límites del patriotismo: identidad,
pertenencia y “ciudadanía mundial”. Trad. Carme Castells. Bacelona: Paidós, 1999.
25 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice, op. cit., p. 2.
26 Cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da
filosofia, op. cit., p. 69 e segs.
217
27 “I argue that the classical theory of the social contract cannot solve these problems, even when put in its
Best form. It is for this reason that I focus throughout the book on Rawls, Who to my mind expresses the
classical Idea of the social contract in its strongest form and makes the strongest case for its superiority to
other theories (cf. NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice, op. cit., p. 2).
28 “E aí se saberá que o direito é só uma resposta possível (civilizacional-culturalmente tão condicionada
como frágil) a um humano-social problema necessário e a que por isso mesmo não ficam excluídas res-
postas diversas enquanto eventuais alternativas ao direito — embora se deva bem esclarecer o que por
essas alternativas humanamente se ganhará ou perderá”. (cf. NEVES, António Castanheira. A crise actual
da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, op. cit., p. 14. Os itálicos são do autor).
29 “It is the political promise of literature that it can transport us, while remaining ourselves, into the life
of another, revealing similarities but also profound differences between the life and thought of that other
and myself and making them comprehensible, or at least more nearly comprehensible” (cf. NUSSBAUM,
Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 111).
30 “Marcus Aurelius insisted [...], we must not simply amass knowledge; we must also cultivate in ourselves a
capacity for sympathetic imagination that will enable us to comprehend the motives and choices of people
diferent from ourselves, seeing them not as forbiddingly alien and other, but as sharing many problems and
possibilities with us” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 85).
218
Poetic Justice: the literary imagination and public life31. E lá ela se esforça para
dizer que o fim político da literatura não é o único que podemos esperar dela,
mas ele é adequado e urgente, especialmente para nos fazer ver com interesse
a situação das pessoas que em um determinado momento e por circunstâncias
muito variadas são muito diferentes daquela em que vivemos32. E parece mesmo
muito convencida de que esse olhar empático, sobre o outro que ocupa um lugar
diferente do nosso, permite-nos enxergar como as circunstâncias condicionam
as ações da pessoa, suas aspirações, desejos, esperanças, temores e amor pró-
prio. Insiste na acentuação de que essa abertura ao problema alheio permite
melhorar a qualidade das nossas decisões em relação àqueles sobre os quais
devemos emitir certo juízo.
A insistência de Martha C. Nussbaum no papel da literatura nas deliberações
públicas tem uma explicação: acredita no poder das histórias para formar a nossa
consciência moral, e inclusive de nos fazer buscar a nossa identidade dentro de
tais histórias33. Aqui também está presente a adesão da autora ao aspecto filosó-
fico da tragédia que Aristóteles expressamente se referiu, mas também ao que
acredito poder ser chamado do aspecto agregador ou a dimensão pública que
literatura ocupa em nossas vidas: como disse o filósofo grego na sua Poética, a
Literatura é mais filosófica que a História, uma vez que o historiador nos ensina
o que aconteceu, e o poeta nos faz pensar naquilo que poderia ter acontecido34.
Saber ainda que os poetas nos fazem imaginar outras formas de vida é um con-
tributo inestimável, segundo a autora, ao dever-ser que instrui a racionalidade
pública. E nisto pode-se dizer também que a literatura tem um caráter subver-
sivo — “a manner that subverts that science’s norm of rationality” — que não
encontramos, por exemplo, na economia e nas demais ciências que orientam as
decisões na vida pública35.
31 “It is, instead, to present a vivid conception of public reasoning that is humanistic and not pseud-scientific,
to show how a certain type of narrative literature expresses and devolops such a conception, and to show
some of the benefits this conception might have to offer in the public sphere” (cf. NUSSBAUM, Martha
C. Poetic Justice, op. cit., p. xviii).
32 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 88.
33 [...] the moral and social aspects of these literary scenarios become increasingly complex and full of dis-
tinctions, so that they gradually learn how to ascribe to others, and recognize in themselves, not only hope
and fear, happiness and distress — attitudes that are ubiquitous, and comprehensible without extensive
experience — but also more complex traits such as courage, self-restraint, dignity, perseverance, and fair-
ness (cf. NUSSBAUM, Martha C. Cultivating Humanity, op. cit., p. 90).
34 Cf. ARISTÓTELES. Poética, op. cit., 1431a39 — 1431b6.
35 “Literature expresses, in its structures and its ways of speaking, a sense of life that incompatible with the
vision of the world embodied in the texts of political economy; and engagement with it forms the imagina-
tion and the desires in a manner that subverts that science’s norm of rationality (cf. NUSSBAUM, Martha
C. Poetic Justice, op. cit., p. 1).
219
220
39 Para o estudo destas conclusões da autora, conferir a parte III de sua The fragility of goodness, op. cit.,
dedicado ao estudo de ARISTÓTELES, especialmente o cap. 8.
40 A partir daquela investigação vê-se como Aristóteles realizou o seu exercício de autonomização da praxis
do discurso filosófico da sua época, abrindo as portas para uma abordagem que mudaria para sempre o
discurso prático na tradição ocidental, especialmente para o seu tratamento no universo do direito, do
qual os juristas romanos puderam se servir. Com efeito, o contraponto “virtudes morais/virtudes inte-
lectuais” apresenta o logos nas suas dimensões geral e específica, o primeiro abordando os elementos
constitutivos da excelência humana (arete) e as respectivas orientações dadas pelos hábitos (hexis) e pela
reta razão (orthos logos), e o segundo atentando para a dualidade constitutiva da dimensão intelectual
(dianoia). Seja pelo ponto de vista do tratamento dos objetos necessários (epistemonikon), seja do ponto
de vista dos objetos contingentes (logistikon/bouleuesthain), a imagem que o estagirita nos mostra é a de
que a nossa dimensão ativa tem seus modos específicos de realização e de fins, mas tecem entre si uma
teia indissociável de exigências e de compromissos.
41 Para um conhecimento da ideia central desta escola, vista a partir da ideia jurisprudencialista de racio-
nalidade prática, num diálogo especial James Boyd White, ver LINHARES, José Manuel Aroso. “O
logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura (law
as literature, literature as law) à analogia com uma poieses-technê de realização (law as musical and
dramatic performance)”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004, p. 59-135; para uma abordagem geral desta escola, cf. MINDA, Gary. Post-
modern Legal Movements: law and jurisprudence at century’s end. New York: New York University
Press, 1995, 149-166.
221
suas lições que a mesma sinaliza para uma ideia de sistema de direito que vincula
a decisão jurídica42.
Com efeito, a proposta jurisprudencialista aponta para uma compreensão
do direito que reconhece nele um sistema: não um qualquer sistema, até porque
não se confunde com o sistema de legalidade que herdamos da modernida-
de e nem com outras teorias sistêmicas da atualidade; é, sim, um específico
sistema de direito que dialoga em concreto com o problema, de modo que
podemos dizer que a decisão jurídica é igualmente um momento constitutivo
daquele direito. Partindo da compreensão do homem e da comunidade que já
fiz referência anteriormente, A. Castanheira Neves recusa aquela vinculação
ontológica que nos era dada pelo jusnaturalismo, aquela autonomia formal e
alienada do sistema moderno, assim como o instrumentalismo dissolvente dos
sistemas atuais. Isto tudo para propor uma autonomia que assume “uma vali-
dade normativa material que numa prática problemática e judicanda se realiza,
e se orienta por uma perspectiva polarizada do homem-pessoa, que é o sujeito
dessa prática”.43
Uma iurisprudentia, diz o autor, que seja axiológico-normativa nos funda-
mentos, prático-normativa na intencionalidade e judicativa no modus metodo-
lógico.44 Com os apelos a um sistema que lhe é inerente, isto é, àquela “unidade
de totalização normativa que se analisa em quatro elementos — os elementos
constitutivos da sua normatividade, organizados em quatro estratos distintos e
entre relacionados num todo integrante”.45 Um conceito de sistema, vale dizer,
que tem em conta os princípios de direito, a jurisprudência, a dogmática jurídica
e as normas desse direito. E aqui posso destacar um ponto em comum entre A.
Castanheira Neves e a autora americana: a recusa da norma jurídica como cri-
tério único e decisivo do caso em concreto. É que para o jurisprudencialismo a
norma é “só um ponto de partida, apenas um factor (factor-critério) da dialética
judicativo-decisória do caso concreto”,46 uma vez que “uma proposição jurídica
42 “But the subtle differences between those theories need to be thrashed out by philosophical arguments.
Novel-reading all by itself will not supply those arguments, which might at some points lead us to reject
the insights of our reading itself [...] As I said in the preface, novel-reading will not give us the whole story
about social justice, but it can be a bridge both to a vision of justice and to the social enactment of that
vision” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 12).
43 Cf. NEVES, António Castanheira. “Entre o ‘Legislador’, a ‘Sociedade’ e o ‘Juiz’ ou entre ‘Sistema’, ‘Fun-
ção’ e ‘Problema’: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, vol. LXXIV, p. 32.
44 Cf. Cf. NEVES, António Castanheira. “Entre o ‘Legislador’, a ‘Sociedade’ e o ‘Juiz’ ou entre ‘Sistema’,
‘Função’ e ‘Problema’”, op. cit., p. 32.
45 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica, op. cit., p. 155.
46 Cf. NEVES, António Castanheira. Metodologia Jurídica, op. cit., p. 154.
222
nunca será uma definição axiomaticamente conclusa, mas sempre uma proposi-
ção com aquela intencionalidade aberta (indeterminada) que corresponde à sua
função normativa referida ao concreto — intendendo para a realidade e o sentido
históricos dos casos concretos a que visa aplicar-se”47.
Ora, também em Martha C. Nussbaum também posso ver essa pressupo-
sição de um sistema jurídico que leva em conta, primeiramente, a necessidade
de normas e precedentes: “In all cases, the law must first of all be there, or no
judge can do anything”.48 Depois do reconhecimento de que seu juiz-espectador
precisa de uma diretriz normativa, reconhece ao mesmo tempo a incompletude e
a imprestabilidade de tais normas quando interpretadas de forma fria e descon-
textualizadas49. Tanto quanto A. Castanheira Neves50, mostra-nos que os fatos
juridicamente relevantes não são quaisquer fatos cujo objeto se apreende empi-
ricamente, mas são fatos humanos, acontecimentos prático-humanos e que como
tais o julgador deve se esforçar para compreender — “The relevant facts, then,
are human facts of the sort the literary judge is well equipped to ascertain”51. E
com isto apela para Aristóteles, na sua construção teórica da equidade, para nos
mostrar que a regra jurídica não tem em si mesma a medida apropriada para a
justiça que visa realizar52, daí que além do perfeito domínio dos recursos técnico-
-legais o bom julgador deve dispor de um bom conhecimento dos precedentes
judiciais53, em outras palavras, daquele “momento de objectivação e estabili-
zação de uma já experimentada realização problemático-concreta do direito”54
(jurisprudência) da qual nos fala A. Castanheira Neves. E também neste parti-
cular, nota-se mais uma aproximação entre os dois autores: levando em conta a
simpatia do autor português pelo sistema jurisdicional dentre os três tipos de ex-
periência jurídica — a consuetudinária, a legislativa e a jurisprudencial — pela
natureza prático-prudencial do seu juízo55, levando em conta a simpatia da autora
americana pelo sistema common law pelo fato de o mesmo permitir a necessária
imparcialidade do julgamento56, pode-se dizer que ambos dão um grande relevo
ao papel da jurisdição na realização constitutiva do direito.
223
57 Cf. LINHARES, José Manuel Aroso. “A unidade dos problemas da jurisdição ou as exigências e limites de
uma pragmática custo/benefício: um diálogo com a Law & Economics Scholarship”, Boletim da Faculda-
de de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 65-178.
58 Cf. NEVES, António Castanheira. Apontamentos complementares de teoria do direito: sumários e textos.
Coimbra: Policopiado, s/d, p. 17-22.
59 Cf. NEVES, António Castanheira. Apontamentos complementares de teoria do direito, op. cit., p. 17.
224
225
não é exatamente isto, ainda mais com a nota já anteriormente referida da incli-
nação de seu modelo decisório dirigir-se mais à construção de uma justiça social,
objeto que mais propriamente se imputa a uma ordem político-administrativa e
do que ao direito.
65 [...] Whitman, like Aristotle, claims that this flexible context-especific judging is not a concession to the irra-
tional, but the most complete expression of the politically rational: not ‘in him’ but ‘off from him’ things ‘are
grotesque, eccentric, fail of their full returns’” (cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 80).
66 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 81 e seg.
67 Para uma análise desta passagem do direito natural ao direito positivo, bem como da “superação” de am-
bos por um novo movimento de reabilitação da filosofia prática, cf. NEVES, António Castanheira. A crise
actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia, op. cit., p. 23 e segs.
226
-tecnológico que resulte numa aplicação mecânica e fácil das normas de direito68.
O direito é, insiste a professora de Chicago, uma ciência humana tal como Aristó-
teles demonstrou ao falar da impossibilidade da aplicação dedutiva da norma e da
necessidade do julgador observar as circunstâncias históricas e a particularidade
do caso. E disto tudo fica claro que a ciência do direito, enquanto domínio da cul-
tura, não pode estar inscrito em outro campo que não o das humanidades.
Mas a pesquisa de um método de decisão estranho àquele proposto pelo
modelo científico não significa dizer que a decisão jurídica haverá de ser uma
aposta no relativismo da vida69. A autora americana parte do pressuposto de uma
“comunidade de leitura” que supera aquele ceticismo que nega a ausência de
justificação para as nossas crenças políticas e jurídicas; a própria experiência
da convocação dos precedentes judiciais comprova, segundo ela, a falácia do
discurso da indeterminação legal. Além disto, o juiz-espectador não decide em
prejuízo da imparcialidade que se espera de todo o julgamento70. Insiste em di-
zer que o julgamento literário é um modelo quase científico que garante tanto a
imparcialidade como o cultivo das outras habilidades necessárias ao papel insti-
tucional do julgador71.
O que a experiência trágica ou de leitura nos mostra é que a vida é feita de
sucessos e de insucessos nos quais todas as pessoas podem estar envolvidas, e a
literatura nos permite ver os acontecimentos que nunca tínhamos visto antes72.
Isto não significa subjugar a lei aos sentimentos do julgador73, mas sim criar
um mundo de possibilidades para que o juiz possa olhar com interesse para o
problema daqueles que de algum modo sofrem/sofreram uma injustiça, mas não
significa nunca que o mesmo tenha que ceder a eventuais interesses de qualquer
uma das partes ou de qualquer grupo de pressão. As emoções que o juiz-espec-
tador mobiliza em si mesmo não são as mesmas das partes, mas as emoções
de quem vai além daqueles sentimentos para enxergar do seu próprio ponto de
vista o sofrimento daquelas pessoas e o impacto desse sofrimento nas suas vidas
e nas suas ações74. Melhor exemplo para ela não poderia existir que não aquele
227
que vemos no Filoctetes, naquela tragédia onde Sófocles leva o coro a perceber
o sofrimento de um homem completamente desfigurado e vilipendiado na sua
dignidade pessoal e humana75.
No intuito de exemplificar as possibilidades concretas da sua proposta, a auto-
ra analisa o resultado de diferentes processos, com um caso particularmente sur-
preendente: uma decisão do juiz Richard Posner. É que do estudo de uma sentença
que reconheceu o assédio sexual sofrido por Mary J. Carr no ambiente de trabalho
da Allison Gas Turbine Division/General Motors Corporation, a professora de
Chicago constata que inclusive o seu principal adversário intelectual realiza um
julgamento poético: o fundamento da sua decisão não revela somente que ele re-
conhece as narrativas do processo como sendo acontecimentos verdadeiramente
humanos, mas igualmente aprecia empaticamente o caso, de uma maneira bastante
especial comparando tais acontecimentos com outras narrativas já conhecidas76.
Com efeito, de todos os lados que posso olhar vejo que Martha C. Nussbaum
constrói um verdadeiro sistema de decisão, e parece não ser possível imputar a
ela um reducionismo poético77. Mas será oportuno agora perguntar, como prova-
velmente A. Castanheira Neves também perguntaria, se o peso dado às emoções
basta para qualificar uma decisão jurídica, especialmente diante dos desafios do
presente e da urgência do futuro. Com efeito, ele mesmo interpela diretamente
Ronald Dworkin, dirigindo-lhe a seguinte pergunta: será a racionalidade narra-
tiva a mais adequada para a solução de uma controvérsia jurídica? O direito é,
segundo ele, um projeto axiológico-normativo de constituenda realização78 onde
tem lugar um holismo interpretativo: “na interpretação jurídica converge a plu-
ralidade das dimensões, e numa sua consideração globalmente integrada, que
participa no todo prático-normativo da manifestação concreta do direito — o
caso, as normas positivas (os critérios jurídicos positivos), os princípios funda-
mentalmente constitutivos da normativa validade jurídica”.79
De fato, a escola jurisprudencialista reconhece que o caso é certamente um
elemento de peso na decisão, mas não seria possível aceitar como critério último
75 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 103. Para uma ligeira abordagem da imagem do Fi-
loctetes no nosso tempo, na pessoa portadora de cuidados especiais, ver SILVA, Antônio Sá da; COELHO,
Nuno M. M. S. O ensino do direito no nosso tempo: história, diagnósticos e exigências éticas para uma
educação jurídica de qualidade no Brasil. Salvador: Juspodivm, 2010, cap. VI.
76 Cf. NUSSBAUM, Martha C. Poetic Justice, op. cit., p. 104 e segs.
77 De tudo que já tive oportunidade de referir, sugiro uma olhada especial em NUSSBAUM, Martha C. Poe-
tic Justice, op. cit., p. 82, 117 e 120.
78 Cf. NEVES, António Castanheira. Dworkin e a interpretação jurídica — ou a interpretação jurídica, a her-
menêutica e a naratividade. In O actual problema metodológico da interpretação jurídica — I. Coimbra:
Coimbra Editora, 2003, p. 363.
79 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 365.
228
4. A CONCLUSÃO
E agora tenho de concluir. E penso ser possível fazê-lo lembrando que é
na constatação final da divergência dos autores que podemos enxergar o prin-
cipal valor das duas propostas: o de demonstrar quão longe estamos de uma
80 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 367.
81 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 370.
82 Cf. NEVES, António Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 411.
83 “Cremos mesmo que o deliberado abandono da intencionalidade normativa, da axiológica normatividade
que diferencia o direito como direito, condena aquela intenção a um fracasso de raiz, na sua tentativa de
redução narrativista. Deixemos de lado a reconhecível persistência do tradicional (e já hoje sabidamen-
te superado) esquema silogístico-subsuntivo naquela comparação entre narrativas, em que se traduziria
na sua estrutura a concreta decisão jurídica, não obstante a também afirmada unidade constitutiva entre
‘interpretação’ e ‘decision-making’: essa comparação poderá não ser já de tipo lógico-dedutivo e as pre-
missas a articular na conclusão-decisão poderão ser obtidas de modo diferente do tradicional e com outra
determinação, mas que a realização do direito se reduziria a uma ‘aplicação’ de regras gerais a factos parti-
culares, determináveis em princípio umas e outros com autonomia entre si e para uma relação posterior ou
sucessiva a essa dupla e autônoma determinação, é o que manifestamente continua a pensar-se — e todavia
vimos já suficiente e fundamentadamente que não é isso validamente pensável” (cf. NEVES, António
Castanheira. “Dworkin e a interpretação jurídica”, op. cit., p. 407).
229
230
1. INTRODUÇÃO
Entre tanto o que distingue o trabalho do Professor Castanheira Neves, está
seu compromisso com a realização mais própria do Ocidente enquanto civili-
zação do direito. O humano inevitavelmente marca-se como ser-com-o-outro,
mas a forma da convivência pode configurar-se de muitas diferentes formas,
nem todas elas de direito. O direito não é uma resposta universal ao problema da
convivência, mas uma resposta possível, apenas e simplesmente possível, a qual
resulta de um esforço, de um processo de construção histórica que se confunde
com a construção da própria civilização ocidental. Neste capítulo, gostaríamos
de destacar dois dos traços distintivos do pensamento jurídico, na obra do Pro-
fessor Castanheira Neves, tentando entendê-los enquanto expressão de uma certa
compreensão da coexistência singularmente jurídica. Tais traços serão, um, me-
todológico, dizendo do tipo de pensamento que o direito é ou mobiliza — e um
outro, substancial, dizendo de um certo conteúdo também singularizador do di-
reito como direito. O primeiro respeita ao pensamento jurídico como pensamento
231
232
Direito nas últimas décadas, quando tudo está em permanente discussão e re-
visão: o contexto cultural que condiciona o horizonte significante dos juris-
tas e a concepção fundamental do Direito que lhe corresponde, a perspectiva
epistemológica-metodológica do pensamento jurídico, assim como os objetivos
práticos imediatos da realização do Direito.1
É impressionante a multiplicação de descrições do Direito, todas compro-
metidas com pressupostos filosófico-culturais muito diferentes (ontologias, an-
tropologias, epistemologias etc.). Neste contexto, falar em Direito requer sem-
pre um esclarecimento sobre o que queremos dizer.
Apesar da polifonia que marca a filosofia e a teoria do Direito contempo-
râneas, há traços comuns na forma como as diferentes propostas pensam o Di-
reito, desde a crise do positivismo jurídico e na reabilitação da razão prática, a
partir da segunda metade do séc. XX. Embora não haja mais uma “teoria esta-
bilizada e dominante”, possível de ser exposta “nas suas linhas características”
(NEVES, 2003B, p. 9), há uma mudança geral de atitude que tem a ver com a
superação da identificação entre Direito e lei e com a retomada do problema
autônomo e específico da realização do Direito, que deixa de ser concebida
como simples aplicação de normas legais. A teoria do Direito volta-se para o
processo decisório, enfatizando o caráter constitutivo do ato de julgar. Agora,
se o julgamento não deixa de recorrer ao critério de solução oferecido pela
norma, já não se esgota numa simples aplicação dedutivo-silogística. Ao con-
trário, reconhece-se que julgar é cumprir, no caso concreto e sempre por força
de uma situação peculiar, as intenções axiológicas e normativas do Direito.
(NEVES, 2003B, p. 12)2
1 No mesmo sentido, inicia A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Fi-
losofia: “Dúvidas profundas sobre o sentido do Direito no nosso contexto histórico-social e cultural,
com quebra do modelo tradicional e dominante da normatividade jurídica, e a provocarem forte per-
plexidade pela opção necessária entre perspectivas divergentes da juridicidade que se oferecem como
actualmente possíveis — é esta uma situação que bem se reconhecerá num diagnóstico generalizável.”
(NEVES, 2003A, p. 1).
2 A polifonia referida afirma-se especialmente quando se trata do que possibilita e do que está implicado
nos processos de realização prática do Direito. A ênfase em seu modo de operação, em seus funda-
mentos e em suas consequências assume sempre matizes muito singulares. Linhares (2007-2008, p.
101) empenha-se em uma abordagem que permita lidar com a diferença que passa a marcar o discurso
(os discursos) da Teoria do Direito: “Dirigirmo-nos à jurisdição como intenção de realização e como
discurso — reconhecendo explicitamente as “situações institucionais” que constituem (ou podem cons-
tituir) o modus operandi deste discurso e o(s) “projectos” ou exigências de sentido que iluminam (ou que
devem iluminar) aquela intenção — é hoje enfrentar uma diversidade sem precedentes de representações
possíveis. (...) Sem esquecer que este problema é menos o da diversidade de representações enquanto
tal — inscrita numa pluralidade (não menos complexa) de concepções do Direito — do que o da pos-
sibilidade e o da exigência de a testemunhar — e então e assim também o de encontrar o caminho e o
idioma indispensáveis”.
233
234
3 Esta imagem foi expressa por J. M. Aroso Linhares em conferência sobre o Jurisprudencialismo.
4 Os princípios concebem-se como “normatividade jurídica que exprime o dinamismo constitutivo de um
normans, capaz de conferir ao direito-sistema a índole de um ordinans. É assim que o Direito não será
nunca tão só “objeto” e sempre também sujeito, i. é, não se oferece apenas em termos de transcendência
objectiva, mas numa intenção de transcendens constituinte.” (NEVES, 1993, p. 155).
235
5 “Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientação prévia do procurado. Para isso, o sentido
do ser já nos deve estar, de alguma maneira, disponível. Já se aludiu: nós nos movemos sempre numa com-
preensão do ser. É dela que brota a questão explícita do sentido do ser e a tendência para o seu conceito. Nós
não sabemos o que diz ‘ser’. Mas já quando perguntamos o que é ‘ser’ nós nos mantemos numa compreensão
do ‘é’, sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse ‘é’”. (HEIDEGGER, 2000, v. 1, p. 31).
236
6 O que constitui uma situação da convivência humana num caso jurídico “é aquela pergunta, dirigida às
situações e relações em que se localiza e em que se traduz o convívio social dos homens uns com os outros,
que se vê fundada e é orientada pela pressuposição de uma particular exigência de sentido a realizar,
ou que se intenta ver cumprido nessas situações e relações; mas as quais no modo como imediatamente
(fenomenologicamente) se oferecem são, do mesmo passo, a base e a ocasião da negatividade problemá-
tica. (Recorde-se o étimo de ‘problema’: pro-blatos — se não necessariamente uma aporia, um problema
é sempre a expressão de um obstáculo, de uma perplexidade, de uma dúvida nascida na relação entre uma
intencional pressuposição, com as suas exigências de cumprimento, e uma situação real que resiste ou é
opaca a esse cumprimento).” (NEVES, 1993, p. 159-160 — grifos nossos).
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7 “Se a juridicidade se revela assim uma intenção de radical historicidade e como tal terá de ser necessa-
riamente entendida, já por isso é forçoso reconhecer que não é o sistema positivo o titular definidor da
juridicidade, antes, pelo contrário, terá de ver-se nela apenas a precipitação explícita, mas histórica e a
compreender inserindo-a no ritmo histórico, de uma juridicidade que o transcende e que ao realizar-se
historicamente do mesmo passo continuamente o supera. Tocamos, pois, já aqui o decisivo problema da ju-
ridicidade — no qual tudo converge e do qual tudo depende — e revela-se-nos ele assim mais o problema
de uma “intenção” do que o problema de um ‘dado’ ou de um ‘objeto’ e em termos de ter ficado também
claro não ser a sua perspectiva correcta aquela que se orienta do ‘sistema’ para os casos jurídicos, e sim
aquela que se oriente dos casos jurídicos para o sistema.” (NEVES, 1993, 228).
239
8 A necessidade de um melhor tratamento científico da experiência do direito positivo está na raiz do ad-
vento do chamado pós-positivismo jurídico, de que o Jurisprudencialismo é representante. Tal necessidade
decorre das aporias legadas pelo próprio positivismo. Para os limites intensivos e extensivos que invalidam
metodologicamente o modelo positivista-subsuntivo de realização do Direito, que postula uma autonomia
(um ‘em si’) de direito e fato envolvidos no juízo concreto, vide Neves (1967, p. 251-422).
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9 Já tratamos destas chamadas condições de emergência do Direito como Direito em outra oportunidade.
(Vide COELHO, 2005).
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na forma do Direito, a implicar isto em uma certa configuração total da sua forma
de vida no que diz respeito ao modo como responde ao problema universal da
convivência, com o desafio da integração que sempre impõe.
O esclarecimento do tipo de exigência e pergunta pela validade, que o Direi-
to é e institui, dá-se pela apresentação das diferentes condições de emergência
do Direito como Direito, a revelar em que sentido a experiência que o humano
faz de si mesmo na forma do Direito não é necessária nem universal, mas sim-
plesmente possível. Trata-se de uma possível configuração da humanidade, fruto
de uma decisão axiológica (um salto em direção ao ser-pessoa) que tem as suas
condições de possibilidade radicadas na constituição ontológica e antropológica
do humano, mas que não resultam necessariamente dela.
A condição mundanal do humano evidencia a existência humana na dimen-
são inelutável da intersubjetividade. A partilha do mundo impõe a convivência
como condição ontológica da existência, a implicar por sua vez a possibilidade
de toda exigência, e a justiça como questão que põe sempre em causa a comum
fruição do mundo. (NEVES, 2002A, p. 839).
A condição antropológico-social revela o humano em sua abertura e não es-
pecialização. Como ser aberto, o humano reconhece-se como tarefa de si mesmo,
a partir do poder-ser que é a nota característica de seu ser (autotranscendentali-
dade). Como ser não especializado, o humano descobre-se um animal singular-
mente inacabado, indeterminado, carente de ultimar-se (com que as duas notas
implicam-se reciprocamente). A condição antropológica revela-o ainda como
sujeito — sujeito diante de um objeto — e como ser de linguagem, tudo quanto
“culmina na condição axiológico-normativa do próprio homem”, capaz de va-
lores — “sentidos fundamentantes com que o homem compreende e assume os
projectos na sua realização histórica, e enquanto são antecipações de uma pleni-
tude a que ele se abre no seu transcender” (NEVES, 2002A, p. 848).
O ser-com-outros que distingue ontologicamente o humano — “condição de
possibilidade” da “humanidade do homem” e “base constituinte de tudo o que
de essencialmente humano pode advir no mundo humano” — traz o problema
universal da convivência, na forma da tensão entre o próprio e o comum, sempre
potencialmente conflituoso. O eu pessoal e o eu social estabelecem um difícil
equilíbrio. A autonomia mantém-se como atributo das “pessoas que participam
nessa comunidade sem se esgotarem nessa participação”, as quais ao mesmo
tempo retiram sua própria humanidade (como seres de linguagem a partilhar um
mesmo mundo da vida) da coexistência comunitária. Trata-se do problema da
integração, a marcar todas as
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10 Como assinalamos já: “O fundamento do Direito não pode ser um sentido disponível, mas é a pergunta que
o homem propõe interrogando a sua existência comunitária, seu próprio ser-com-os-outros, e cuja resposta
constitui o princípio fundamental de todo Direito, como decisão ético-existencial fundante: a pergunta
e a resposta instituidora da opção entre o Direito e o não Direito. Em termos radicais, este é o problema
mesmo do Direito, a pergunta que está na base da compreensão de qualquer questão ou caso como um
problema de Direito, e em que pulsa a pergunta fundamental da juridicidade”. (COELHO, 2005, p. 226).
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11 Mobilizamos aqui, para compreender o sentido do Ocidente em sua gênese grega, a interpretação que
Edmund Husserl nos oferece em A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia.
247
através de uma nova pergunta. Não há lugar para certezas absolutas no horizonte
da nova atitude. Ou, talvez, apenas para uma: a de que sempre é possível saber
mais e melhor, de que as respostas até então disponíveis podem e devem ser re-
vistas, por força da presença da coisa.
Nada representa melhor o ponto de vista da Filosofia, como zetesis infinita,
que a vida e o pensamento de Sócrates, com a sua insistente advertência sobre o
valor da consciência do não saber.
Sócrates tem um significado muito especial no advento da Filosofia, e, des-
ta forma, do Ocidente. Assim, por exemplo, ele contribui muito especialmente
para a passagem do pensamento concreto para o pensamento abstrato — que é a
passagem do múltiplo ao Um: a história da filosofia atribui-lhe nada menos que
a invenção do conceito.12 Sua investigação visa não os dados dos sentidos (que
se dão sempre em sua multiplicidade e diversidade invencíveis), mas o conceito,
a partir do que os sentidos nos oferecem (ele é igualmente reconhecido como o
inventor do método indutivo de pesquisa).
No horizonte da ética (que é sempre o seu) sua zetesis dirige-se a:
a essência conceitual de predicados como o bom, o belo, o justo,
etc. (...) Efetivamente, nos diálogos que (...) devem ser considera-
dos como as primeiras obras de Platão, todas as investigações de
Sócrates assumem a forma de perguntas e respostas sobre concei-
tos universais. O que é a coragem? O que é a piedade? O que é o
autodomínio? E até o próprio Xenofonte nota expressamente, em-
bora só de passagem, que Sócrates desenvolvia incessantes inves-
tigações deste tipo, esforçando-se por chegar a uma determinação
de conceitos. (JAEGER, 2001, p. 506-7).
12 Sócrates dá, com isto, um passo importante da passagem do concreto para o abstrato, aprofundando e
estruturando metodicamente o compromisso da nova atitude com a presença da coisa, ao outorgar-lhe
um método (a indução) que lhe permite arrancar-se da ingênua observação (sensível), para atingir a sua
inteligibilidade. O método indutivo permite a passagem da coisa tal como se mostra aos sentidos para a
coisa em sua inteligibilidade, sem implicar qualquer recurso ou remessa para um mundo transcendente. A
inteligibilidade do mundo, que se redescobre com a invenção do conceito, não é um outro mundo, ao lado
ou acima do mundo da natureza, mas é uma dimensão desse mundo mesmo. Sócrates tem, ainda, na inven-
ção da dialética, uma outra extraordinária contribuição para a conformação do pensamento como zetesis.
A dialética permite a descoberta da verdade e a identificação e destruição do erro com recurso apenas ao
logos. Mesmo sem dispor da presença sensível da coisa (que pode estar indisponível em sua mostração aos
sentidos, não podendo ser observada — impossibilidade que pode não ser circunstancial, mas da natureza
mesma da coisa, como é o caso da virtude) a zetesis pode ainda assim progredir, uma vez que a investigação
dialética recorre apenas ao desempenho da linguagem para concluir ou conhecer. O método dialético proce-
de pela comparação de uma certa afirmação com suas consequências, verificando sua compossibilidade, e a
partir disto pensa a sua verdade. Este método pressupõe a linguagem e o pensamento (a ciência) como um
universo de compossibilidades, identificando a verdade com a concordância e a falsidade com a discordân-
cia do logos consigo mesmo — tudo quanto eleva o pensamento a um novo poder de abstração.
248
13 Com que também se forja o conceito de homem. Para isto, vide Reale (2002).
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14 Taylor (1961, p. 111): “não há uma só passagem, na literatura anterior, em que a psyche signifique o que
alma tem significado para nós durante tantos séculos: a personalidade consciente que pode ser sábia ou
estúpida, virtuosa ou viciosa, de acordo com a tendência e a disciplina que recebe.”
15 Taylor (1961, p. 112) não deixa de ressalvar Heráclito, a quem, no entanto, não concede os créditos pela
invenção do conceito ocidental de alma: “É verdade que na filosofia de Heráclito a alma — que supõe que
não é “ar”, mas “fogo” — era muito importante; mas existe uma forte contradição em seu pensamento
quando diz, por uma parte, que deve ser uma espécie de individualidade permanente que se mantém ao
passar pelas vicissitudes do nascimento, da morte e do renascimento, e, por outra, que é unicamente uma
porção temporalmente separada do fogo cósmico.”
16 De fato a integração da investigação sobre a alma e o humano nos quadros da pesquisa mais ampla sobre
o universo, no séc. VI, concebe a alma em sua integração à ordem cósmica. Embora seja de admitir que
“é na segunda metade do séc. V que encontramos os primeiros documentos seguros e é esta época que de-
vemos considerar como o momento em que teve início o processo de intelectualização da palavra psyche”
(SARRI, 1997, p, 147), vale recuperar alguns destes passos em seu sentido fundamental, no esforço por
compreender como o modo como nos autocompreendemos como humanos transforma-se neste período, e
como esta transformação participa essencialmente do que vimos chamando de Filosofia como nova atitude
(ou com ela se confunde).
250
Falar sobre o papel de Sócrates impõe problemas difíceis com respeito à de-
terminação de seu lugar na história do pensamento grego. Acerca desta questão,
há posições tão extremas como a dos referidos Taylor e Burnet, de um lado —
para quem quase toda a filosofia de Platão é socrática (eis que, segundo os auto-
res da escola escocesa, sempre que Sócrates aparece em seus diálogos, ele expo-
ria o pensamento do Sócrates histórico) — e de O. Gigon (no polêmico Sokrates.
Sein Bild in Dichtung und Geschichte), de outro (para quem nada podemos saber
sobre o Sócrates histórico e seu pensamento, além de que nada sabemos).17
Para o nosso intento, basta verificar o sentido revolucionário que o conceito
de humano, em razão da mudança na compreensão da alma, adquire no séc. V. À
revolução em causa, o nome de Sócrates, de uma forma ou de outra, está ligado:
A originalidade do ensinamento socrático é formada pelos temas
específicos que a tradição reconhecerá como aqueles que com-
põem para a história a figura do Sócrates moralista e de sua doutri-
na. Esses temas são o tema do homem interior (psyche), o tema da
verdadeira sabedoria (sophrosyne) e o tema da virtude (arete). O
tema do homem interior ou da “alma” (psyche) no sentido especi-
ficamente socrático, e que assinala a profunda revolução no curso
do pensamento antropológico grego, constitui o motivo dominante
da interpelação dirigida por Sócrates aos cidadãos de Atenas, tendo
em vista mostrar-lhes que o verdadeiro valor do homem reside no
único bem inatingível pela inconstância da fortuna, a incerteza do
futuro, a precariedade do sucesso, as vicissitudes da vida: o bem da
alma. (VAZ, 1999, p. 95).
17 Para a questão socrática, vide Magalhães-Vilhena (1984), G. Reale (1992, p. 247 e ss.) e Vaz (1999, p. 94):
“Numa perspectiva da história das ideias, devemos dar primazia ao Sócrates platônico”.
251
A zetesis socrática tem por objeto estes bens descobertos como essenciais.
Na medida porém em que são virtudes da alma, e sendo a alma a sede da inteli-
gência, as virtudes da alma não são mais que uma, a sabedoria. Todas as virtudes
humanas, se são verdadeiramente virtudes, são formas de sabedoria. A identifi-
cação do humano com sua alma (sede da sua consciência inteligente) permite
compreender a convicção de Sócrates de que toda má ação e todo vício tem a
ignorância por fundamento. Não pode ser outra a conclusão de Sócrates, desde
quando identificou o humano com a alma — que é o que está no humano, no
final das contas, a comandar todas as ações. Toda ação boa decorrerá de um bom
funcionamento da inteligência (que o homem essencialmente é, ou pode ser —
ser for virtuoso), assim como toda ação má decorrerá de um mau funcionamento
da inteligência, de um déficit de inteligência, de um déficit de alma: de um vício
da alma (da ignorância). Ser bom ou mau — inteligente ou ignorante — porém,
está ao alcance do homem.19
A alma é capaz de virtudes e vícios porque aberta à autoconformação, o que
impõe ao humano a tarefa de diligenciar para que ela seja tão boa quanto possí-
vel. Muito embora todo vício e toda má ação decorram da ignorância, o homem
vicioso não está por isso desde sempre desculpado. O intelectualismo socrático
18 Lembremo-nos de Sócrates investigando a alma como a essência e comando do corpo com recurso ana-
lógico à atividade do pintor; a forma exterior (o que se passa com o corpo) apenas exprime a alma, que,
embora invisível, é o decisivo. (Vide XENOFONTE, 1972, p. 126 — Memoráveis, III, 10).
19 Há o problema, de que não cuidamos aqui, da afirmação socrática de que apenas o homem grávido do
saber pode-se tornar sábio (PLATÃO, 1974, p. 897 — Teeteto, 150) — que põe sérios problemas à questão
da responsabilidade moral, se interpretarmos que ela implica haver homens condenados ao mal porque
condenados à ignorância (estéreis). Não deve ser esta a hermenêutica que deslinda, porém, a questão, eis
que Sócrates considera-se entre os estéreis — razão pela qual mantém-se em seu não saber.
252
não elide a responsabilidade do homem por o que ele mesmo é — sábio ou igno-
rante, e, assim, virtuoso ou perverso.
A descoberta do homem como alma, e a afirmação da alma como consciência
e inteligência, impõem ao homem o desafio de cuidar de si mesmo, de cuidar da
própria alma:
A identificação da alma, cujo “cuidado” é nosso primeiro dever,
com o eu normal, significa, naturalmente, que o cuidado não con-
sistirá na prática de abstenções e purificações rituais, mas no cul-
tivo do pensamento racional e da conduta racional. O dever de um
homem consistirá em “dar conta”, de ter uma justificação racional
do que crê e do que faz. (TAYLOR, 1961, p. 115).
Cuidar da alma é propiciar que ela seja tão boa quanto possível. A ideia gre-
ga de excelência está ligada à plenitude da coisa: cuidar da alma é diligenciar
sempre para que ela seja sempre e a cada vez, maximamente, alma. O que quer
dizer: torná-la (tornar-se) inteligente, sábia, no domínio da verdade e não refém
da opinião. A opinião é a expressão da ignorância e a raiz de toda perversidade,
de que o homem pode livrar-se ao manter-se lúcido (sábio, inteligente).
Manter-se lúcido é o desafio permanente e insuperável da nova atitude, tal
como Sócrates a viveu, com a consciência de que se trata de uma tarefa sem
fim, de um programa sempre reinstituído a partir da assunção de que o saber de
que dispomos é sempre precário, provisório, insuficiente. O cuidado de si, como
cuidado da alma, mantém-se como tarefa infinita na medida em que o homem
sabe que não sabe.
A zetesis infinita que caracteriza fundamentalmente a nova atitude, e que é
exemplarmente proposta por Sócrates como forma de vida, torna-se uma pro-
cura por si mesmo. A alma que tem o logos afirma a si mesma como problema
e desafio perpétuos, a serem indefinidamente retomados por cada homem e por
cada geração.
Sócrates tem consciência do caráter revolucionário da nova concepção de
humano que propõe, e de que participa do nascimento de uma nova humanidade,
mais autenticamente humana porque comprometida consigo mesma enquanto
alma — consciência, lucidez, inteligência. Está, porém, também consciente de
que o soerguer desta nova forma de vida, desta nova humanidade, é tributária e
dependente de um permanente esforço, de uma dedicação ao que ele chama de
cuidado da alma, a confundir-se com o estado de vigília antidogmático de quem
se mantém na dimensão da pergunta, não importa o quanto se saiba já (vide
PATOČKA, 2003, p. 335). A nova humanidade em vigília instaura e depende de
253
20 Aspecto que não pode discutir-se aqui. Mas não há dúvidas de que toda a história da construção da pessoa
encontra em Homero importantes condições de possibilidade, se não mais do que isto. Assim, por exemplo,
pense-se no tema do autodomínio e nos rudimentos de uma psicologia da decisão presentes na passagem
que opõe Aquiles e Agamenon na disputa por Briseida — em que Atena intervém. Mesmo a comparação
entre a Ilíada e a Odisséia (que não são contemporâneas, a análise filológica e histórica mostrando nítida a
anterioridade do primeiro poema) poderia ser convocada para mostrar como este processo evolve também
ali: “A Odisseia supõe, pois, uma mais fina percepção das diferenças que há entre os homens (...) Também se
afina a percepção das mudanças que o indivíduo experimenta ao longo do tempo.” (SNELL, 2003, p. 84-85).
21 Razão da estranheza face ao pensamento socrático e condição sine qua non da graça das piadas dirigidas
contra Sócrates em As Nuvens, em que Aristófanes brinca com os conceitos homérico e socrático de alma
ao chamar os membros do pensatório de “pensadores meditabundos”. (ARISTÓFANES, 1978, p. 182 —
As Nuvens 100).
22 Esta nova forma de dizer o homem, que sucede a passagem de Sócrates pela cena de Atenas, é o principal
argumento em favor de sua realidade histórica. Taylor (1963, p. 110-111): “o notável é que este conceito
de alma, como sede da inteligência e do caráter normais, é já coisa corrente na literatura da geração que
seguiu imediatamente à morte de Sócrates: o terreno comum de Isócrates, Platão e de Xenofonte, e que
portanto não pode ser descoberta de nenhum deles. Não aparece, ou quase não aparece, na literatura das
épocas anteriores. Portanto, deve ter sua origem em algum contemporâneo de Sócrates, e não temos notícia
de nenhum pensador contemporâneo ao qual se possa atribuir este conceito que não seja o próprio Sócra-
tes, que se apresenta ensinando-o, tanto nas páginas de Platão como nas de Xenofonte.”
254
4. CONCLUSÕES
A contribuição de Sócrates ao processo de construção do Ocidente como
civilização fundada em uma nova atitude espiritual (marcada pela infinita e crí-
tica problematização do mundo, e em especial da coexistência humana) consiste
assim na indicação do caráter infinito do pensamento enquanto procura, o qual,
dirigido ao homem e titularizado pelo homem, coincide com o esforço huma-
no em manter-se virtuoso. Se a virtude é sabedoria (lucidez, inteligência), se
255
23 Representando aqui por Sócrates, o novo pensamento pensa e forja o novo homem como o problema da
justiça, o que fica sempre muito claro na forma com que o problema do homem (reconstruído como alma,
que se torna problema filosófico central) e o problema da polis se integram. A teoria da polis e a teoria da
alma, para o grego, estão sempre implicadas.
256
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