Curitiba
2006
Allan Valenza da Silveira
Curitiba
2006
Agradecimentos
i
Dedicatória
Dedico esse trabalho a todos que, envolvidos direta ou indiretamente, foram parte
importante do meu desenvolvimento enquanto acadêmico.
Dedico esse trabalho especialmente aos meus pais, Lucia e Eraldo, por insistirem
muito para a sua conclusão.
ii
Epígrafe
Apenas em sua consciência, o que em todo caso devia ser logo aniquilado. E se todos
os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os anais dissessem a
mesma coisa –, então a mentira se transformava em história, em verdade. “Quem
controla do passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro; quem controla o
presente, controla o passado”. E no entanto o passado, conquanto de natureza
alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao
sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série infinda de vitórias sobre a
memória. (Orwell, 2004, 36)
iii
Resumo
iv
Sumário
Introdução............................................................................................................... 1
Capítulo I
O romance histórico tradicional e a ruptura da linguagem histórica............................ 4
Capítulo II
O novo romance histórico e a metaficção historiográfica.......................................... 11
Capítulo III
Entre ficção e história: Desmundo de Ana Miranda.................................................. 23
Conclusão................................................................................................................ 37
Referências Bibliográficas...................................................................................... 40
v
Introdução
considerada sempre permeada pela visão humana). É somente através da história que
A história forma, pois, para as ciências humanas, uma esfera de acolhimento ao mesmo tempo
privilegiada e perigosa. A cada ciência do homem ela dá um fundo básico que a estabelece, lhe
fixa um solo e como que uma pátria: ela determina a área cultural (...) em que se pode
reconhecer, para esse saber, sua validade; cerca-as, porém, com uma fronteira que as limita e,
logo de início, arruína sua pretensão de valerem no elemento da universalidade. (Foucault,
1999, 514)
meio de estruturação e divulgação de seus mitos. Não foi por acaso que grande parte
dos romancistas românticos ou eram membros efetivos dos quadros dos nascentes
Num país sem tradições [Brasil após a independência], é compreensível que se tenha
desenvolvido a ânsia de ter raízes, de aprofundar no passado a própria realidade, a fim de
demonstrar a mesma dignidade histórica dos velhos países. Neste afã, os românticos de certo
modo compuseram uma literatura para o passado brasileiro, estabelecendo troncos a que se
pudessem filiar e, com isso, parecer herdeiros de uma tradição respeitável, embora mais nova
em relação à européia. (Candido, 2000, 155)
Desta forma, o romance romântico, em especial o da vertente histórica é um
Estados nacionais estão sendo consolidados. Não nos cabe aqui estudar a fundo o
processo que deu origem ao romance histórico tradicional, pois nosso objeto de estudo
hstórico tradicional, mas tendo sempre em vista que ele será utilziado como ponto de
priemiro capítulo desta monografia comportará uma breve exploração do longo estudo
de Georg Lukács, La novela historica, no qual o autor aponta quais como se deu o
estruturais de trabalho. Em seguida, ainda neste capítulo, se fará uma abordagem das
relação à sua escrita, usando para isso o pensamento de Walter Benjamin (1994) e de
apresenta seis parâmetros para o trabalho com o novo romance histórico e o livro
romance histórico, Desmundo, de Ana Miranda, publicado pela primeira vez no ano
século XIX, buscando as suas gêneses nos romances de Walter Scott. A partir desse
que o tempo interno das obras quase sempre coincide com o texto presente
com Lukács, esse romance que se desenvolve durante o século XIX trás para o século
o tom de seus escritos históricos, e que se tornaram padrões para o trabalho histórico
Os heróis de Scott são sempre tipos-médios ingleses, com uma certa inteligência e
nunca a constrói em seu texto; ele já a apresenta pronta. Esse é um dos pontos centrais
A esto se debe que Scott nunca nos muestra cómo surge uma personalidad de importancia
histórica. Siempre nos l apresenta ya conclusa. Conclusa, sí, pero no sin haberla preparado con
todo cuidado. Mas preparación no es psicológica y personal, sino objetiva, histórico-social. Es
decir: revelando las condiciones de vida reales, la creciete crisis vital y real del pueblo, Scott
expone todos los problemas de la vida popular que desembocaron en la crisis histórica
plasmada por él. (Lukács, 1971, p. 39)
aceitas sobre o passado, apenas as utiliza para ambientar suas histórias. Não há uma
Las personas de una novela se ven forzadas a ser más racionales que las personas históricas.
Aquéllas deben despertar a la vida, éstas han vivido. La existencia de éstas no requiere
pruebas, por curiosos que hayan sido sus actos, mientras que la existencia de aquéllas necesita
de un general consenso. (Lukács, 1971, p. 44)
seres humanos que estiveram presentes nesses eventos, pois os eventos históricos,
reconstrução é fiel e procura explorar cada detalhe do passado a partir de uma verdade
histórica reconstruída, o texto não tende ao paródico, mas a uma recriação poética do
passado. Disto, o que se retira é que as grandes personagens históricas ficam sempre
em segundo plano.
Lo importante es procurar la viencia de los móviles sociais e individuais por que los hombres
pasaron, sintieron y actuaron precisamente del modo en que ocurrió en la realidad histórica. Y
si bien a primera vista pueda parecer paradójico, depués de un examen más detenido es
evidente que una de las leyes de la plasmación poética consiste en que para hacer patentes
tales móviles humanos y sociales de la actuación, son más apropiados los sucesos
aparentemente insignficantes que los grandes dramas monumentales de la historia universal.
(Lukács, 1971, p. 44)
personagens construídas.
El gran objetivo poético de Walter Scott en la plasmación de las crisis históricas en la vida del
pueblo consiste en mostrar la grandeza humana que, sobre la base de una conmoción de toda
la vida popular, se libera en sus representantes más significativos. Es indiscutible que sta
tendencia en la literatura se debe, consciente o inconscientemente, a la experíencia de la
Revolución francesa. (Lukács, 1971, p. 55)
recriação do passado, ele não descarta as necessidade de por que contar o passado. Há
forma, criar uma relação com ele, pois, caso contrário, a sua leitura estará
comprometida.
histórica está no grande panorama criado e que se impõe pela atuação dos indivíduos e
grande painel das condições de fidelidade histórica “poco importa que algunos hechos
pensar a própria história que está se manifestando nos textos literários. Um passado
que poderia ser apropriado pelo presente e reconstruído em sua verdade indiscutível.
Nas teses sobre o conceito de história (1994), Benjamin aponta para a história como
um jogo de ilusões que faz com que a visão que temos do passado nunca seja a
de libertação.
Conhecemos a história de um autômato construído de tal forma que podia responder a cada
lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche
vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa
grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em
todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no
xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida
filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre.
Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é
reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se. (Benjamin, 1994, p. 222)
narrativa que vem se perdendo na sociedade burguesa, pela nossa perda discursiva
coisas. E esse estado das coisas é usado, de acordo com Benjamin, pela classe
dominante que é herdeira de todos os que venceram antes e que, pela tomada de
história.
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa
apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.
(Benjamin, 1994, p. 224)
A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador
historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora,
os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A
empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o
materialista histórico. Todos os que hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os
dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são
carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O
materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele
vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não
somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus
contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco,
o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico
se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (Benjamin, 1994, p. 225)
proposta pela Escola dos Analles, que vê a história não mais pela abordagem
metódica, mas por um texto mais narrativo (Burde, 1983). Entretanto, essa abordagem
não significa uma ficcionalização da história, mas uma incorporação, pela história,
alicerce central do discurso histórico, ainda que o seu método discurso tenha mudado.
valor ficcional. A história passa a ser encarada como uma estrutura de linguagem, que
aponta para um questionamento do valor real do estudo histórico tendo em vista quais
Nessa teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente é: uma estrutura verbal
na forma de um discurso narrativo em prosa. (...) Eles comportam um conteúdo estrutural
profundo que é em geral poético e, especificamente, lingüístico em sua natureza, e que faz as
vezes do paradigma pré-criticamente aceito daquilo que deve ser uma explicação
eminentemente “histórica”. (White, 1995, p. 11)
Pensadores da Europa continental – de Valéry e Heidegger a Sartre, Lévi-Strauss e Michel
Foucault – expressaram sérias dúvidas sobre o valor de uma consciência especificamente
“histórica”, sublinharam o caráter fictício das reconstruções históricas e contestaram as
pretensões da história a um lugar entre as ciências. Ao mesmo tempo, filósofos anglo-
americanos produziram uma alentada bibliografia sobre a posição epistemológica e a função
cultural da reflexão histórica, bibliografia que, tomada em conjunto, justifica intensas dúvidas
acerca do estatuto da história como ciência rigorosa ou arte genuína. (...) Em suma,é possível
conceber a consciência histórica como um viés especificamente ocidental capaz de
fundamentar retroativamente a presumida superioridade da moderna sociedade industrial.
(White, 1995, p. 17-18)
Para White, a consistência do discurso histórico não está nos dados utilizados,
mesmo que fruto de uma pesquisa rigorosa. Assim como não se encontra no método
Então, White trabalha a história como um texto que mais do que veracidade,
mais a literatura que está sendo pensada a partir dos padrões da história, como ocorreu
pressupostos da literatura, o que retira o valor dos resultados da história enquanto uma
ciência.
Capítulo II
Linda Hutcheon
no século XIX) e a nova cara que esse gênero assume na América Latina durante a
uma forma geral, qualquer romance pode ser considerado histórico, uma vez que
todos, de uma forma ou de outra, apontam para questões do ambiente social em que a
narrativa se passa. “En el sentido más amplio, toda novela es histórica, puesto que, en
mayor o menor grado, capta elambientesocial de sus personajes, hasta de los más
que vem a ser romance histórico modifica-se com o avançar dos estudos sobre esse
gênero. As definições acabam por usar critérios arbitrários, como, por exemplo, a
separação entre o período de vida do autor e o fato narrado ou critérios muito amplos,
como considerar romance histórico textos em que o passado figure com muita
importância. Mesmo encontrando definições que poderiam ser aplicadas, elas sempre
La definición de Avrom Fleishman (...) es aún más arbitraria en el sentido de excluir todas las
novelas cuya acción no esté ubicada en un pasado separado del autor por dos generaciones. En
cambio, David Cowart propone una definición excesivamente amplia: “ficción en que el
pasado figura con cierta importancia” (...). Joseph W. Turner propone todavía otro
acercamiento al problema abogando por una definición tripartita: la novela histórica
documentada, la disfrazada y la inventada. También sugiere la posibilidad de una cuarta
categoría, la cómica (...). A definición más apropriada es la de Anderson Imbert, que data de
1951: “Llamamos ‘novelas históricas’ a las que cuentan una acción ocurrida en un época
anterior a del novelista”. (...) Más difícil es justificar la exclusión de la categoría de novela
histórica de aquellas novelas cuyos narradores o personajes están anclados en el presente o en
el pasado reciente pero cuyo tema principal es la re-creación de la vida y los tiempos de un
personaje histórico lejano. (...) Sería purismo exagerado negarles la clasificación de novela
histórica. (Menton, s/d, p. 32-34)
principalmente por Walter Scott, como aponta Lukács de acordo com Menton, na
dessas nações: as crônicas coloniais. A criação ficcional que usou esse conjunto
durante o século XIX tinham um objetivo em sua escrita: a apropriação do passado era
gerar textos em que se acreditavam ter encontrado uma reprodução do passado tal qual
nacional volta a ser uma preocupação central, mas o enfoque sobre o que significa a
realidade social da nação muda de figura. De acordo com Menton, a ênfase recai sobre
econômica. Entretanto, como essas questões, mesmo que possuam fundo histórico, são
abordadas quase que exclusivamente pelo tempo presente, o que faria com que,
mesmo que a questão histórica estivesse presente, ela não fosse o foco central para a
Durante las tres décadas del predominio criollista (1915-1945), la búsqueda de la identidad
nacional volvió a ser una preocupación importante, pero con énfasis en los problemas
contemporáneos: la lucha entre la civilización urbana y la barbarie rural, la exploración
socioeconómica y el racismo. Durante este periodo el número de novelas históricas es muy
reducido, pero las pocas que se publican siguen el camino mimético de re-crear el ambiente
histórico como trasfondo para los protagonistas de ficción. (Menton, s/d, p. 37)
O reino deste mundo, de Alejo Carpentier. Este livro foi publicado em 1949,
abordagem se dará somente 30 anos mais tarde, a partir do ano de 1979, quando, cada
vez mais, romances começam a incorporar uma nova visão de trabalho com a história
(“La primera verdadera NNH, El reino de este mundo de Alejo Carpentier, se publicó
en 1949, el mismo año que O continente y 30 años antes de que empezara el auge de
la NNH.” (38-39)). A formação de uma nova forma narrativa que passa a utilizar a
história de uma outra maneira foi sintetizada por Menton em seis pontos, e que,
segundo o próprio pesquisados não estão todos presentes em todos os textos desse
novo romance histórico, mas que a presença de alguns deles em narrativas
contemporâneas apontam para essa nova visão sobre a história dentro do romance.
tendo um caráter normalmente cíclico acaba por dar à história (seja ao resultado do
A utilização não somente dos cidadãos comuns nas narrativas históricas, mas
história é a terceira marca (p. 43) do novo romance histórico. Essa vertente opõe-se ao
caminho percorrido pelos historiadores, que, do século XIX (quando o foco central de
suas análises eram os grandes nomes de cada período) e que, seguindo uma linha mais
O quarto ponto (p. 44) do novo romance histórico são as intervenções que o
uma características que, por mais que Menton aponto como sendo ligada a ficção
texto, segundo Menton, usando as palavras de Júlia Kisteva, “se arma como un
tiene por menos dos maneras de leerse”. (p. 44) Esta característica, podemos,
Entretanto, vale ressaltar que esse quinto aspecto cria a possibilidade para que o texto
formadores do discurso tradicional da história, mas também com outros textos que
literário.
De acuerdo con la idea borgeana de que la realidad y la verdad histórica son inconocibles,
varias de las NNH proyectan visiones dialógicas al estilo de Dostoievski (tal como lo
interpreta Bajtín), es decir, que proyectan dos interpretaciones o más de los sucesos, los
personajes y la visión del mundo.
El concepto de lo carnavalesco que desarrolló Bajtín en sus estudios sobre Rabelais
prevalece en varias de las NNH: las exageraciones humorísticas y el énfasis en las funciones
del cuerpo desde el sexo hasta la eliminación. (...)
Los aspectos humorísticos de lo carnavalesco también se reflejan en la parodia, uno de
los rasgos más frecuentes de la NNH y que Bajtín considera “una de las formas más antiguas y
más difundidas por representar directamente las palabras ajenas”.
El cuarto de los conceptos bajtinianos que aparece en la NNH es la heteroglosia, o sea
la multiplicidad de discursos, es decir, el uso consciente de distintos niveles o tipos de
lenguaje. (Menton, s/d, p. 44-45)
também, com a arquitetura, pintura, vídeo, cinema, dança, música, urbanismo), Linda
reflexão.
Estas características estão presentes em toda a arte que poderia ser considerada
de trabalho formal interno que, além de levar a marca da auto-reflexão, constrói uma
Em seu aspecto exterior, poderia parecer que o principal interesse do pós-modernismo são os
processos de sua própria produção e recepção, bem como a sua própria relação paródica com a
arte do passado. Mas quero afirmar que é exatamente a paródia – esse formalismo
aparentemente introvertido – que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta com o
problema da relação do estético com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um
mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente definidos (o passado e o presente) – em
outras palavras, como político e o histórico. (Hutcheon, 1991, p. 42)
A forma da paródia cria, nas obras pós-modernas, uma postura política de
especial pela inversão de papéis e pelo anacronismo (que dá um dos aspectos mais
fortes da força política dessas obras), buscando definir o passado enquanto realidade,
mas uma realidade discursiva. “O pós-modernismo indica sua dependência com seu
uso do cânone, mas revela sua rebelião com seu irônico abuso desse mesmo cânone.”
(Hutcheon, 1991, 170) Em uma postura diferente da apontada por Hayden White, não
no discurso histórico dos elementos da narrativa. Isso cria, na narrativa histórica pós-
moderna não mais um desejo de recriar o passado como ele “foi exatamente”, e nem
fundo meramente figurativo (Hutcheon, 1991, 45), mas de refigurá-lo dentro de uma
discurso histórico, sem negá-lo, mas permeando-o, completando vazios por ele
deixado e, desta forma, forçando-o a se rever, seja dentro do discurso da arte, seja no
O que o pós-modernismo faz é contestar a própria possibilidade de uma (sic) dia conseguirmos
conhecer os “objetos fundamentais” do passado. Ele ensina e aplica na prática o
reconhecimento do fato de que a “realidade” social, histórica e existencial do passado é uma
realidade discursiva quando é utilizada como o referente da arte, e, assim sendo, a única
‘historicidade autêntica’ passa a ser aquela que reconheceria abertamente sua própria
identidade discursiva e contingente. O passado como referente não é enquadrado nem
apagado, (...) ele é incorporado e modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e
diferentes. (Hutcheon, 1991, p. 45)
Cabe, agora, definir o que Hutcheon entende por ambigüidade, em especial a
gerada pelo uso da paródia. Para ela, a paródia é uma prática subversiva – longe da
inicial – desta forma, reafirmando-o – ela o refigura de uma nova forma, apontando
para o seu não fechamento. Ela é, antes de tudo, uma prática social para se repensar.
Aqui – como em todos os pontos do presente estudo –, quando falo em “paródia”, não estou
me referindo à imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se
originam das teorias de humor do século XVIII. A importância coletiva da prática paródica
sugere uma redefinição da paródia como uma repetição com distância crítica que permite a
indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança. Na metaficção
historiográfica, no cinema, na pintura, na música e na arquitetura, essa paródia realiza
paradoxalmente tanto a mudança como a continuidade cultural: o prefixo grego para- pode
tanto significar “contra” como “perto” ou “ao lado”. (Hutcheon, 1991, p. 47)
não a ponto de diluir as suas fronteiras, mas no intuito de estabelecer as duas formas
o passado através de uma linguagem. A diferença entre elas está nas convenções
aceitas por cada uma delas. Enquanto convenções, suas formas narrativas não são
acessíveis a qualquer usuário da língua, mas aos iniciados que tem condição de
(Bourdieu, 2005). Desta forma, necessita-se, tanto para a história, quanto para a
história oficial e canônica que, ao mesmo tempo, reconhece o texto canônico como
uma possibilidade, mas o nega enquanto totalidade. Elas buscam os vazios dessa
(Hutcheon, 1991, 143)) e, neles, desenvolvem abordagens sustentáveis, que podem até
reafirmar o passado canônico, mas que necessariamente exigem que ele se refigure,
pressupostos” (Hutcheon, 1991, 146)). Essa busca por não fechamento retira o sentido
que a história, por exemplo, possuía no século XIX: retira dela a capacidade de
justificar o presente por um processo teleológico, pois aponta que o presente não é
É essa mesma separação entre o literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte
pós-modernas, e as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se concentrado mais
naquilo que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se
que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer
verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos lingüísticos, altamente
convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem
ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado
com sua própria textualidade complexa. (Hutcheon, 1991, p. 141)
síntese entre um indivíduo particularizado e uma postura social mais ampla, que seria
trabalhar com os detalhes, com os fatos históricos tomados como referenciais dentro
Nesse processo de trazer para o texto ficcional os dados da história tidos como
história e indaga sobre qual o processo que utiliza-se para compreender o passado.
Isso faz com que a narrativa ficcional, ao mesmo tempo não aborde a histórica de
forma inocente, mas que a própria ficção não perca a sua autonomia, a sua
necessidade de ser auto-sustentável. O que ela faz é apontar para um universo maior
Em muitos romances históricos, as figuras reais do passado são desenvolvidas com o objetivo
de legitimar ou autenticar o mundo ficcional com sua presença, como se para ocultar as
ligações entre a ficção e a história com um passe de mágica ontológico e formal. A auto-
reflexividade metaficcional dos romances pós-modernos impede todo subterfúgio desse tipo, e
coloca essa ligação ontológica como um problema: como é que conhecemos o passado?
(Hutcheon, 1991, 152)
uma das formas de refigurar o passado, o parodia (uma vez que esse repertório é tanto
histórico como literário), como já foi apontado anteriormente, sempre com a ressalva
abordagens.
Embora o pós-modernismo, conforme o estou definindo aqui, seja talvez um pouco menos
indiscriminadamente abrangente, a noção de paródia como abertura do texto, e não como seu
fechamento, é importante: entre as muitas coisas contestadas pela intertextualidade pós-
moderna estão o fechamento e o sentido único e centralizado. Grande parte de sua
provisoridade voluntária e deliberada baseia-se em sua aceitação da inevitável infiltração
textual de práticas discursivas anteriores. A intertextualidade tipicamente contraditória da arte
pós-moderna fornece e ataca o contexto. (Hutcheon, 1991, 166)
romance histórico, Marilene Weihardt aponta, em dois artigos (um apresentado para o
vez que a voz aplicada ao texto não é independente do seu ser, mas é a sua própria
voz; enquanto que o segundo não se liga com a necessidade de verdade em seu
discurso2.
dez categorias, sendo que a primeira obra a fazer parte dessa seleção é Em liberdade,
1
Ambos artigos foram cedidos pela autora.
2
Como apontamos no estudo de Linda Hutcheon acima, o escritor da metaficção historiográfica, ao
mesmo tempo em que utiliza o arquivo de dados da história, não exclui de sua escrita a liberdade da
ficção.
Nessas categorias, Weinhardt classifica o romance Desmundo (2005), de Ana
fundo histórico que não é usado somente como ambientação. A presença da história na
El-Rei D. João, pedindo que o rei mandasse para a colônia do Brasil algumas órfãs, no
intuito de que, chegando às terras americanas elas pudessem casar com os colonos e,
desta forma, se colocasse uma maior moralidade nos costumes correntes nas partes
coloniais do império. Os colonos que para o Brasil foram estavam vivendo em luxúria
Tendo como mote inspirador essa carta de Nóbrega, Ana Miranda produz o seu
romance sobre a vinda (possível) de mulheres para uma região do Brasil, destinadas a
outro, o interesse dos colonos de se casarem com as órfãs que vêm da Europa, não
pelo seu sentido moralizador, mas pelo endeusamento da pele branca, gerando
discurso histórico, tendo por base a carta de Manuel da Nobreza, inclusive um trecho
JESUS
Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de mulheres, com quem os homens
casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos peccados, em que agora vivem,
mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de mistura dellas e
quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito
bem à terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado. (MIRANDA,
s/p.)
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente, pelas noites
misteriosas e fundas, Levado, como a poeira, pelos ventos, pelos vendavais! (MIRANDA, s/p.)
ao apontar, cada uma para uma lado, a respeito de como está construído o romance. A
primeira epígrafe colocada com a indicação de Fernando Pessoa é escrito pelo seu
indicação “Fernando Pessoa” venha para dar tom central da narrativa: a ficção. E por
isso aparece primeiro. Fernando Pessoa, enquanto escritor, foi criador de uma grande
personas. Criou, pela ficção, não somente obras ficcionais, mas a existência de
autores. Mais do que ser um autor, foi autor de autores. Colocar Fernando Pessoa
como epígrafe aponta claramente para a construção de obras ficcionais, nas quais,
nada é efetivamente real. Real no sentido de verdadeiro. A realidade não está mais nas
coisas, mas na própria construção que se faz das coisas. A construção de heterônimos
por Fernando Pessoa aponta para a própria falta de razão de pensarmos a necessidade
imaginárias sobre elas, os portos possíveis, assim como também a dor, a solidão, a
crueldade das viagens. Esse trecho, retirado de seu contexto aponta para uma viagem
para o desconhecido, para onde nem a imaginação havia sido capaz de viajar, aonde
tudo ainda é noite e escuridão, mas para onde não há outro remédio senão ir, com a
fundamentação dessa ficção. Ela está construída sobre alicerces históricos. A distância
não é mais qualquer distância, é o Brasil. Mas isso só se sabe se o nome de Nóbrega
for um referencial existente no repertório do leitor, pois nesta epígrafe não se diz
nenhuma vez que a região falada é o Brasil. Entretanto, as ligações com a primeira
epígrafe são grandes. Grande é o poder definidor desse pequeno fragmento em relação
região que está subordinada a um rei (El-Rei D. João, que, se ocorrer a inexistência do
referencial, poderá ser tratado como um rei ficcional, mas que os atributos de rei não
poderão ser negados). Essa terra distante vive em uma atmosfera de pecado e
possibilidade de salvação pela pele branca das mulheres aponta um caminho: vai-se
realidade colonial brasileira dos séculos XVI e XVII a um pequeno povoado, no qual
encontra-se toda uma diversidade de habitantes, cada qual representando uma certa
para o Brasil, entrando, desta forma, na diversidade étnica e cultural que caracterizava
com sete outras, a mando da Rainha para se casarem com colonos no Brasil. No
caminho, os relatos sobre a viagem e os medos gerados por ela dão o tom da narrativa.
Uma outra personagem, mandada para o Brasil também é uma viúva, a Velha, que,
devido a sua experiência de vida, acaba por se tornar uma espécie de conselheira das
mulheres que foram mandadas para o degredo. Logo que chegam ao Brasil, hospedam-
ela só reconhecesse nele o que há de mais repugnante no mundo (seu cheiro, seu
aspecto físico, seu passado de viajante...). Ainda virgem, é forçada a manter relações
sexuais com Francisco na noite de núpcias. Após isso, ele a deixa livre para que,
quando ela tivesse vontade de se entregar para ele, que o viesse procurar, pois ele não
mais a forçaria. Oribela arquiteta planos para a fuga, buscando encontrar uma forma
de retornar para Portugal. Descobre um meio: entrar clandestina (fantasiada de
homem) em uma nau. Para tanto, precisava arranjar dinheiro para subornar as pessoas
que lhe deixariam embarcar. Durante meses (enquanto se esperava a chegada da nau),
junta dinheiro. Mas, ao fugir de casa e dirigir-se para embarcar, é enganada e quem
deveria ajudá-la rouba seu dinheiro e a estupra. Durante o estupro, seu marido,
Francisco, aparece, mata os estupradores e leva Oribela novamente para casa, onde a
prende com uma corrente nos pés. Ao sair para suas expedições de caca de índios,
Oribela é obrigada a viver o cotidiano da casa, durante o qual torna-se cada vez mais
íntima de Temericô, uma índia que trabalhava na casa, a quem ensina um pouco do
uma certa grandeza em seu marido, ao guerrear com os indígenas, mas esse
retornarem, com milhares de índios cativos (que em parte seriam vendidos como
escravos, em parte seriam aproveitados nas terras do marido), Oribela sente pena
quando Oribela aproveita a confusão para fugir novamente. Torna a esperar por uma
nau que a pudesse levar para Portugal, mas desta vez esconde-se na casa de Ximeno
Dias, um mouro. Apesar dele se mostrar gentil, educado, instruído, de possuir livros
(que Oribela não vê sentido), os preconceitos dela sobre os mouros estão sempre a
fazendo desconfiar dele. A sua cor (vermelho), o seu corpo sem pelos, ao mesmo
tempo que a atraem, fazem com que ela reconheça nele a possibilidade dele ser o
diabo, mas por fim acaba por entregar-se a ele. Logo da chegada de uma nova nau,
meses depois de sua fuga, é descoberta pelo marido que vagava pela cidade a buscá-
la. Está grávida. É levada para casa, onde tem o bebê. Pouco tempo depois do
nascimento, Francisco de Albuquerque pega o filho e parte com ele para Portugal.
Oribela, não desejando nada daquele homem, queima a casa onde moravam com tudo
que nela houvesse. Parte, então, sozinha, para enfrentar a vida na colônia, um lugar
que não gostaria de estar, lembrando de Portugal, mas sentindo ódio de toda essa
situação.
A República de Platão
Inicialmente, Sócrates apresenta uma cidade composta por três habitantes, cada
Sócrates – Construamos, pois, em pensamento, uma cidade, cujos alicerces serão as nossas
necessidades.
Adimanto – Certo.
Sócrates – O primeiro deles, que é também o mais importante de todos, consiste na
alimentação. (...) O segundo consiste na moradia; o terceiro, no vestuário. (Platão, 65)
pessoa para cada função, pois, em uma cidade tão grande, com tantas pessoas, nem
coletividade.
Fato importante para Platão é a guerra. Uma vez que a cidade cresce, crescem
produção. Como essa não seria a única cidade no mundo, próxima a ela é provável que
existisse uma outra cidade que necessitaria, também, ampliar suas posses devido à
ampliação de sua própria população. Seria praticamente inevitável que essas duas
cidades não entrassem em confronto. Disso deriva que a guerra seria algo justo, pois
estaria se fazendo para responder a necessidades reais (mesmo que criadas a parir de
desejos e paixões dos homens que lá habitam) de cada uma das cidades.
Sócrates – E a pátria, que até então era de tamanho suficientes para alimentar os seus
habitantes, tornar-se-á demasiado pequena e insuficiente. (...) Então seremos obrigados a
tomar as pastagens e lavouras dos nossos vizinhos? E ele não farão a mesma coisa em relação
a nós, se, ultrapassando os limites do necessário, se entregarem, como nós, a uma insaciável
cupidez? (...) Iremos então à guerra. (...) Ainda não chegou o momento de dizer se a guerra
acarreta bons ou maus resultados. (Platão, 70-71)
Gente natural da terra e do reino, num quieto rumor de quem se ajunta, muito atentos, fêmeas,
machos, os da terra de cor vermelha, em camisas e sem barba segurando seus machados de
ferro ou ferramentas da lavoura ou remos, de pestanas raspadas, cafres machos ou fêmeas, os
machos armados de dar temor e os demais portugueses, barbados, bragas, camisas rotas, uns
de botas, barretes, braguilhas sujas de tinta vermelha. Diziam que eram aquela gente tanoeiros,
carvoeiros, caldeireiros, cavaqueiros, soldados, sangradres, pedreiros, ferreiros, calheiros,
pscadores, lavradores, eiros, eiros, ores, ores, e tudo o mais necessário para se fazer do mato
uma cidade. (Miranda, 25)
E, conforme a narração avança, vão aparecendo cada vez mais detalhados esses que
habitantes, alguns nomeados, outros não, a maioria presa a funções específicas que
reconhecer que a sua construção se dá sobre os discursos que tratam sobre o que seria
essa população que veio para a colônia e aqui formou cidades e portos, produziu e
guerreou.
preparados com armas, munições, fortificações (o que nem sempre acontecia), para os
Entretanto, não somente para se defender é que as guerras no Brasil ocorriam. Elas
eram tanto fruto das necessidades dos outros povos, como eram das portuguesas.
escravos. Essas guerras contra os gentios era vista como uma guerra por necessidade
O tratamento a que os indígenas são submetidos é até visto como algo penoso, mas
A pobre Temericô enxergava tudo, parada na mata feito uma pedra, depois de algumas fritas
se curvou sobre a barriga e gemeu feito cantasse, uma coisa estranha de se ver. Mandei
assentar ao meu lado, o que ela fez. Não sabia que brasil sente dor.
Os vaqueiros amarraram num fio os guerreiros brasilos, um atrás outro, escolhendo e
metendo uma espada n peito dos que não tinham serventia, ou quebrando os miolos deles e
veio o gentio assim puxado, um espetáculo tão piedoso que não havia bom homem ou mulher
que não pasmasse de tristeza. Eram mil os cativados que iam agora servir de escravos.
(Miranda, 144)
referência à imagem canônica, faz com que a história seja reafirmada, produzindo uma
palavras de Oribela, a ficção histórica que toma corpo em Desmundo aponta para uma
visão do futuro (contemporânea da época da produção do romance) sobre a
escravidão.
elementos posteriores aos fatos históricos, como pode ocorrer pela voz narrativa.
Enquanto A República, de Platão, e narrada com uma voz masculina, por Sócrates, o
que também ocorre com a totalidade dos textos históricos brasileiros dos séculos XVI
e XVII, nesse romance ocorre uma subversão desse padrão histórico na voz narrativa.
Uma história narrada com voz feminina, o que aponta para as categorias de Menton
(s/d), quando ele define que uma das características do novo romance histórico é de
subverter a história canônica, mas que, como foi apresentado acima, liga-se mais
centrada sobre as imagens canônicas do que seria o Brasil nos séculos XVI e XVII,
narrativo sobre a voz de uma mulher, ele subverte a história, dando capacidade de fala
aqui que esses grupos marginalizados no discurso histórico não pudessem ser
espirituais que os cercavam e que não pudessem construir um discurso coerente sobre
original de onde ele saiu, nem sequer pela reprodução de sua voz original. Ela se dá
por uma criação ficcional que incorpora o discurso dentro de uma realidade possível
histórico e a forma como ele é transformado em uma questão de uso cotidiano dentro
do texto, é quando Oribela, convivendo com uma escrava começa a aprender a fala
dos gentios e, ao mesmo tempo, ensina português para a índia. A sua surpresa fica por
conta de Oribela perceber que a sua escrava não consegue falar algumas palavras
Tinha Temericó muita graça quando falava, era compendiosa na forma da linguagem, copiosa
no orar e lhe faltavam algumas letras, dizia Pancico o nome de Francisco de Albuquerque e
Rorenço e Rodigo aos vaqueiros, ria do nome Janafonso. Cruz, era curuzu, selvagem era
sarauaia, sapato era sapatú, cabra era cabará. E cantava canções. (Miranda, 2005, 120)
quando, em seu texto, Tratado descritivo do Brasil em 1587, afirma que os indígenas
não terem três letras no alfabeto, F, L e R, para dizer que são carentes de Fé, de Lei e
Em outra cena na qual Oribela foge de casa, após um ataque que haviam
árabes. Mesmo que Ximeno não possuísse a característica física moura (a pele
queimada, os olhos e cabelos escuros), ele é objeto de interesse para os olhos de uma
mulher confusa e, mais do que portadora de valores religiosos católicos, ela traz
consigo a visão de mundo construída por esses valores, em especial as imagens sobre
O mouro possui uma descrição que enfatiza a sua cor, em especial o cabelo
encarnação do demônio.
E me fez ele [o mouro] subir uma escada que dava num quarto pequeno com vistas sobre o
mar, onde havia uma cama, uma mesa com um livro e mais outros numa ordem serena,
celebrassem em si um grande saber, de um reino que não é deste mundo mas de outro, ornado
e composto pelos sábios, pontífices, profetas, todos subidos no mais alto grau, de que sento
querer cair de joelhos. O que ensinavam estes livros? (...) Quis saber o contido no livro preto
de letras em ouro, disse o Ximeno Dias ser aquele um com as peregrinações pelo mundo,
riscados numa carta a baías, montes, lagos, os peixes avoadores, os monstros marinhos,
promontórios, canais, coroas, arrecifes, as aldeias de naturais, os fortes, rios, as ilhas, que
formavam a costa do Brasil, as anotações das léguas, dos alísios. (Miranda, 2005, 168)
Estava a casa de Ximeno escura, os lumes apagados, uma luz de lua peregrina pintava às
avessas um mundo, do escuro ao claro, assim como o sol fizera às sombras, fazia a lua às luzes
e avistei no catre o Ximeno adormecido, desnudado de suas vestes, descalçado dos sapatos,
eram seus pés de gente, fosse naquela noite, nas outras não se sabia. Mas assim o vi. Era tal,
que atraiu em tudo o que há em mim e lhe fui sentir a boca, ele despertou e me tomou em seus
braços num desatino e grandíssimo ímpeto, correndo as mãos pelo meu corpo, dizendo suas
falas de amante, a beijar meus beiços e outras obras bem desconcertadas, famintos afagos a
soltar o meu gibanete de homem, arrancar colchetes, desatar os cordões da camisa, a me
querer deixar feito as naturais, a mim dava um gosto bom, fino punhal frio arrastando em toda
a pele, a querer sentir que ele se fazia em mim, um prazer perseverante tragando minhas
tentações para vencer minhas malícias, inferno glorioso tirado de meu corpo, de minha
natureza humana, minha perdiçõe e minha alma indo à luz, portas se abrindo, minha boca bem
aventurada, ele um todo poderoso a me desfalecer, demandar, huhá hio hio, digo que sim, re-
si, eia, sus, lago dos cães, hua, hua, ala ala, saca saca, hao, hao, mas ele disse que não, e foi
dizendo que não e não, que ia causar um grandíssimo mal, tamalavez, ieramá muitieramá, se
vos eu arrebatar, de maneira que estando ele sobre mim vi entre seus cabelos os chifres,
endureci a seus suspiros e me desfiz do encantamento. (Miranda, 2005, 179)
Essa incorporação inverte de certa forma a visão apresentada por Gilberto
Freyre (2000) sobre a moura sensual. Para Freyre, os portugueses, quando chegaram
ao Brasil encontraram as índias nuas que, pelo seu aspecto físico se assemelhava ao
imaginário português sobre a mulher moura. Essa é uma das explicações que Freyre
dá para a grande capacidade que os portugueses tiveram ao chegar nas terras de além-
mar.
Esses diálogos que ocorrem com os textos sobre o passado histórico brasileiro
o filho para a Europa, deixando a índia, Iracema, abandonada no Brasil. Ela acaba
para o Brasil e aqui acaba por se casar com um colono português, Francisco de
Albuquerque, que já havia incorporado grande parte dos costumes da terra, tornando-
pelo seu aspecto grotesco, com barba grande e sujo). Ele, ao final da narrativa, ao
desistir de conquistar pelo menos respeito por parte de Oribela, mulher que lhe havia
traído e que havia engravidado de outro homem (ainda por cima um mouro), ao nascer
do filho ele toma o filho de sua mãe e parte com ele para Portugal, abandonando
Oribela (imagem de uma Iracema traidora, impura) a praguejar contra o seu marido e
Como diz Linda Hutcheon (1991), essa é uma da formas usadas para criar
A paródia é mais do que uma simples estratégia essencial pela qual a “duplicidade” se revela
(...); é uma das principais maneiras pelas quais as mulheres e outros ex-cêntricos usam e
abusam, estabelecem e depois desafiam as tradições masculinas na arte. (...) A importância da
paródia [em relação ao romance A cor púrpura, de Alice Walker] só fica evidente quando o
leitor percebe a inversão de sexo e raça efetuada por sua ironia: o mundo em que depois ela
vive feliz para sempre é feminino e negro. (Hutcheon, 1991, 175)
incorpora o passado como matéria essencial à sua estrutura, e que mantém relações
tem mudado de forma substancial no decorrer do tempo, desde que essa forma de
de Walter Scott, na Inglaterra (modelo reproduzido de maneira geral por toda a América
Latina), ainda no século XVIII e, até meados do século XX, o conceito de história aplicado
nessas narrativas era o mesmo. Esse romance histórico tradicional produzido nesse período
trabalha com as situações históricas como ambientação para as suas narrativas, usando
elas se tornam personagens-modelo que representam todo o contexto social em que vivem.
Essa mesma narrativa que coloca o foco sobre as personagens comuns, faz com que as
grandes personalidades históricas somente figurem como pano de fundo. Desta forma, o
que se obtém como resultado é uma preservação dos cânones sobre o passado, preservados
dado e conhecido, pelo menos de forma genérica, pelos leitores. As personagens históricas,
como encarnam o “espírito de uma época”, acabam por reafirmar os ideais escolhidos como
“corretos” para se pensar aquele momento no passado. E, como se tem um presente
pensando um passado dado como correto e afirmável, ocorre, como era de se esperar, que o
No decorrer do século XX, a noção sobre história muda, e, juntamente com ela, a
passado. Mas, a partir do final dos anos 1940, mais especificamente com o romance O
por uma mudança de rumos. Não se tenha procurado um outro passado, mas se busca uma
história diferente no passado. O novo romance histórico, também podendo ser denominado
de metaficção historiográfica, trabalha com uma outra noção de história, não mais pautada
pelas questões factuais e de verdade, mas sobre a possibilidade deixada nos vácuos do
passado. Desta forma, é uma narrativa que se utiliza do cânone histórico (mesmo que seja
discurso. Além dessa busca dos “ex-cêntricos”, o novo romance histórico inverte o discurso
hegemônico de várias formas, seja pela carnavalização, seja pela paródia ou pela subversão
da voz narrativa.
histórico. Nele encontramos a subversão dos cânones sobre a história colonial brasileira, em
do texto: uma carta do Padre Manuel da Nóbrega que pedia que o rei português enviasse
para a colônia americana mulheres para casar com os colonos. O romance se constrói como
se a carta houvesse sido atendida e as mulheres enviadas. Em todo o romance, diversos
discursos canônicos sobre o que era o Brasil no século XVI são incorporados e narrados
como se fossem fatos comuns da vida cotidiana das pessoas que vivem na cidade litorânea
onde se passa a história (como a falta de F, L e R nas línguas indígenas, que se encontra em
um texto de época escrito por Gabriel Soares de Sousa e aparece como uma constatação de
palavras com conotação bem diferente das apontadas por Gabriel Soares de Sousa). Lá se
representando a diversidade de povos e culturas que convivem juntas dentro das regiões
coloniais do imenso reino que era Portugal. A subversão já aparece quando se coloca como
narradora, ou seja, como a voz expressiva daquele mundo, uma mulher. Além disso, várias
outras histórias, como a moura sensual, os relatos de viagens, as entradas, as guerras contra
Entretanto, o que deve ficar claro, ao trabalhar com uma produção que usa a história
como foco, é qual a postura que cada um, o ficcionista e o historiador, possui sobre a
sobre ele, produzir uma história possível, mesmo que ela apresente questionamentos sobre
as lacunas do estudo histórico, uma vez que o ficcionista não compartilha da mesma
postura do historiador sobre a verdade. Por isso que, antes de um romance ser histórico, ele
precisa possuir uma unidade interna coerente e convincente, para, depois, poder ser
ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Instituto Nacional do Livro, 1965.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2000. _______. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.
LUKÁCS, Goerg. La novela historica. Trad. Jasmin Reuter. México D.F.: Ediciones
Era, 1971.
ORWELL, George. 1984. Trad. Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2004.
PLATÃO. A República. Trad. Ana Paula Pessoa. São Paulo: Sapienza, 2005.