Ouro Preto
Agosto de 2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
PROGRAMA DE EDUCAÇÃO PARA A DIVERSIDADE
GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS COM ÊNFASE EM GÊNERO E RAÇA
Ouro Preto
Agosto de 2012
1
Política Curricular, Ensino de História e Educação das relações étnicorraciais:
uma análise da proposta curricular do Estado de São Paulo
2
RESUMO
A aprovação da Lei 10.639/03 é fruto de uma história de luta dos movimentos negros
em prol de uma educação antirracista, para que a escola deixe de ser um espaço de per-
petuação de desigualdades raciais. A decretação da obrigatoriedade do Ensino da Histó-
ria da África e da Cultura afro-brasileira configurou-se como uma grande conquista do
ativismo negro. No entanto, sua implementação tornou-se um grande desafio. Quase dez
anos após a aprovação da Lei 10.639/03 poucas têm sido as ações concretas empreendi-
das a favor de sua real aplicação. Objetiva-se apresentar uma breve introdução sobre a
demanda por redistribuição e reconhecimento no universo educacional formalizada pela
Lei 10.639/03, os descaminhos do processo de enraizamento da lei e seus desdobramen-
tos na política curricular do Estado de São Paulo por meio da análise da proposta curri-
cular de história para o Ensino Fundamental e das sequências didáticas dispostas nos
Cadernos do Professor correlacionando-as à proposta das Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para a Educação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana.
3
“A história da África é importante para nós, brasileiros, porque
ajuda a explicar-nos. Mas é importante também por seu valor
próprio e porque nos faz melhor compreender o grande conti-
nente que fica em nossa fronteira leste e de onde proveio quase
a metade de nossos antepassados. Não pode continuar o seu es-
tudo afastados de nossos currículos, como se fosse matéria exó-
tica. Ainda que disto não tenhamos consciência, o obá do Benim
ou o angola a quiluanje estão mais próximo de nós do que os
antigos reis da França.”
Alberto da Costa e Silva. Um rio chamado Atlântico, 2011. p. 240
4
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos
5
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................ 07
Capítulo 1: Currículo e educação das relações étnicorraciais ... 11
1.1. O movimento negro e as novas teorizações
sobre o currículo ........................................................... 12
1.2. Um currículo racialmente enviesado:
demandas por acesso e reconhecimento ....................... 14
1.3. Política curricular e educação das relações
étnicorraciais ................................................................. 16
1.4. A política curricular do Estado de São Paulo
e a Lei 10.639/03 ........................................................... 17
Capítulo 2: A História da África e da cultura afro-brasileira
na política curricular do Estado de São Paulo .......................... 20
2.1. A política curricular do Estado de São Paulo ............... 22
2.2. Os Cadernos de Aprendizagem e o Ensino de História
no Estado de São Paulo ................................................. 24
Considerações finais ................................................................. 31
6
INTRODUÇÃO
O pensamento moderno estruturou-se a partir de uma lógica dualista, que exclui a mul-
tiplicidade, a ambigüidade e a contingência. A construção do “outro” dentro desse mo-
delo binário reprimiu diferenças e invisibilizou várias formas de vida, ao rejeitar outras
formas de racionalidade e de história. Nas últimas décadas, a chamada crise da moder-
nidade tem se refletido no âmbito da educação e, em especial, nas discussões sobre cur-
rículo, trazendo à tona a problemática das relações entre educação e diferenças culturais.
Surgem desse movimento vários projetos de crítica aos postulados históricos, sociológi-
cos e filosóficos da modernidade ocidental. Da atuação do movimento negro e do sur-
gimento de novos referenciais que balizam as pesquisas sobre o currículo emergiram as
problemáticas das relações étnicorraciais no campo educacional e que incidiram na for-
mulação de políticas curriculares.
Essa crítica aos postulados da modernidade vem acompanhada de uma descons-
trução do discurso hegemônico de construção da nacionalidade, como elemento organi-
zador dos discursos identitários. Trata-se de uma mudança do eixo interpretativo do pro-
cesso de formação da nação e da nacionalidade brasileira que marcou o ativismo negro
pós-década de 1970 e teve influência nas políticas curriculares e, em especial, na pro-
mulgação da Lei 10.639/03. Nesse sentido, desde os anos 1970 observa-se uma crescen-
te crítica ao discurso da mestiçagem e, por conseguinte, o fortalecimento do que pode-
mos chamar de novas etnicidades negras, a partir da emergência de novas formas de
representação da nação e do nosso complexo e multicultural processo de formação. A
tônica desse movimento será a denúncia sistemática do racismo e a reconstrução de raí-
zes culturais e étnicas do povo brasileiro.
Bastante ativo nesse processo, o movimento negro trouxe, para o centro do deba-
te, demandas estético-culturais de reinterpretação do lugar conferido ao negro na cultu-
ral nacional, e demandas políticas de combate ao racismo e sua reverberação nas hierar-
quizações sociais e nas relações cotidianas1. Ao denunciar a existência da discriminação
1
COSTA, Sérgio. Entre dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2006. p. 134.
7
racial e os mecanismos pelos quais as diferenças físicas incidem sobre as relações soci-
ais e os estatutos dos grupos na sociedade brasileira, o ativismo negro contribuiu para a
construção de uma agenda política com foco em ações afirmativas.
Na área da educação essas demandas aparecem tanto em políticas redistributivas,
como no caso das cotas para negros nas universidades públicas, quanto em políticas de
reconhecimento, como na inserção nos currículos da temática da história da África e da
cultura afro-brasileira, efetuada formalmente com a aprovação da Lei 10.639/03.
A educação das relações étnicorraciais está pautada no conceito sociológico de
raça. Apesar do conceito biológico de raça já ter sido sobejamente superado, o termo é
utilizado em referência às relações sociais, remetendo-se à forma com que cor da pele e
outras características físicas influenciam e interferem no lugar social que os sujeitos
ocupam na sociedade brasileira. Os indicadores sociais e dados estatísticos referentes a
diversas áreas demonstram a clara desvantagem dos negros em relação aos brancos no
que tange ao acesso aos direitos sociais.
Tal como é usado pelo Movimento Negro e pelas ciências sociais, o termo raça
funciona, assim, por um lado, como uma categoria política de resistência ao racismo e,
por outro, como uma categoria analítica que permite apreender as discriminações e de-
sigualdades ancoradas no critério de cor. A peculiaridade do racismo no Brasil assenta-
se sobre a estrutura profundamente hierarquizada de nossa sociedade. O uso do termo
raça é operacional, ainda, para explicitar as distinções raciais vigentes no Brasil e ques-
tionar os pilares da ausência de igualdade e um fenômeno já antigo de naturalização das
hierarquias sociais. São tais idéias que caracterizam o antirracismo diferencialista do
movimento negro. O termo raça foi, portanto, ressignificado pelo movimento negro, que
o utiliza com um sentido marcadamente político.2
Apesar da existência no Brasil de uma constituição que advoga a igualdade de
direitos, o racismo como discurso e como comportamento, mais ou menos disseminado,
coloca-se no plano social como um elemento de limitação da cidadania plena da popu-
lação negra brasileira. Em sociedades supostamente igualitárias, o racismo representa a
hierarquia reinventada. Eis uma das facetas do racismo contemporâneo.
2
GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Preconceito racial: modos, temas e tempos. São Paulo: Cortez,
2008. p. 30-35.
8
As teorias raciais do século XIX utilizaram-se da noção de raça para explicar em
termos de constituição biológica a variação de costumes, das culturas e formas de socia-
bilidade de determinados grupos. Assim, acreditavam poder explicar os diferentes graus
de desenvolvimento das nações pela suposição da existência de raças humanas de dife-
rentes capacidades e habilidades cognitivas, psicológicas, morais. Raça e negro torna-
ram-se, por conseguinte, designativo de pessoas e povos considerados de status e cons-
tituição biológica inferior. No entanto, no decorrer do século XX, após a denúncia dos
falsos pressupostos biologizantes que os ancoravam, esses termos passaram também a
servir de autodesignação desses mesmos povos nas lutas de libertação, na recuperação
da autoestima e como recurso para a denúncia do racismo como elemento estruturador
de relações sociais desiguais.
Como apontam diversos estudos, a ideia de raças humanas não tem realidade
empírica. Não obstante, como aponta Guimarães “elas continuam a habitar o imaginário
de muitas sociedades humanas (...), longe de serem simples superstições exorcizáveis
pelo esclarecimento, são construções sociais, que têm função e realidades sociais”.3 Co-
mo é sabido, cor é um atributo de grupo social, que é utilizado, de modo relacional, na
classificação de grupos. O preconceito racial decorre de um modo específico de delimi-
tação de fronteiras entre grupos a partir de características imaginadas que funcionam
como marcas raciais. O preconceito envolve crenças, atitudes e comportamentos, confi-
gurando-se como um conjunto de julgamentos negativos a respeito de um determinado
grupo. O racismo é uma forma de preconceito que se utiliza de traços fenotípicos e cul-
turais para marcar diferenças e delimitar fronteiras hierarquizantes entre grupos.4
A aprovação da Lei 10.639/03 é fruto de uma história de luta dos movimentos
negros em prol de uma educação antirracista, para que a escola deixe de ser um espaço
de perpetuação de desigualdades raciais. A decretação da obrigatoriedade do Ensino da
História da África e da Cultura afro-brasileira configurou-se como uma grande conquis-
ta do ativismo negro. No entanto, sua implementação tornou-se um grande desafio.
Quase dez anos após a aprovação da Lei 10.639/03 poucas têm sido as ações
concretas empreendidas a favor de sua real aplicação no interior das escolas e salas de
3
GUIMARÃES. op. cit., 2008. p. 35.
4
Idem.
9
aula. A demanda por redistribuição e reconhecimento no universo educacional foi for-
malizada pela Lei 10.639/03, mas seus objetivos estão sendo comprometidos pelos des-
caminhos de seu processo de recepção nos meios educacionais.
Tendo em vista tais pressupostos, objetiva-se nesse trabalho investigar os desdo-
bramentos dessa problemática no Estado de São Paulo, a partir da análise de sua política
curricular. Os argumentos serão apresentados em duas partes: no Capítulo 1 realizar-se-
á uma discussão bibliográfica sobre o currículo, a educação das relações étnicorraciais e
a política curricular; no capítulo 2 empreender-se-á uma análise da proposta curricular
de História para o Ensino Fundamental e das sequências didáticas dispostas nos Cader-
nos de Aprendizagem, parte integrante da política curricular do Estado de São Paulo,
correlacionando-as à proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana.
10
CAPÍTULO 1
CURRÍCULO E EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICORRACIAIS
Nas últimas décadas, o movimento negro e o feminismo negro têm se colocado na cena
política como importantes atores na denúncia do racismo e do sexismo e na apresenta-
ção de demandas voltadas para a superação das desigualdades de gênero e raça. As rei-
vindicações do movimento negro e de mulheres negras remetem a uma concepção am-
pla de cidadania, que não se circunscreve à sua dimensão material, mas engloba também
uma dimensão simbólica, cultural e, portanto, política. Trata-se, pois, de demandas que
tangenciam diferentes áreas e que reúnem a reivindicação por direitos civis e sociais e o
reconhecimento cultural.
O movimento negro participou ativamente nos debates públicos que precederam
a promulgação da Constituição de 1988, que incorporou princípios favoráveis à luta
antirracista, como a criminalização da discriminação racial. O ativismo desses setores
organizados ampliou o seu espaço de ação nas últimas décadas e desde o período da re-
democratização vem conquistando espaços estatais como os conselhos e secretarias vol-
tados para a promoção da igualdade racial, como é o caso da Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial. A SEPPIR foi criada em 2003 em decorrência das gran-
des mobilizações do movimento negro, como a “Marcha Zumbi dos Palmares Contra o
Racismo, pela Cidadania e a Vida” realizada em 1995 e da adesão do Brasil à “III Con-
ferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e Intolerâncias Cor-
relatas”, realizada em 2001, na África do Sul.
As reivindicações mais incisivas do ativismo negro referem-se à igualdade de di-
reitos e do pluralismo étnico-racial nas instituições públicas e privadas, em especial no
ingresso dos afrodescendentes ao mercado de trabalho, e no acesso desses grupos a um
sistema de saúde de qualidade e a uma educação cidadã, uma vez que um grande núme-
ro de pesquisas qualitativas tem apontado, já há bastante tempo, o acesso bastante dife-
renciado dos brancos e dos negros às “condições de domicílio” e às estruturas de opor-
tunidades ligadas à educação e ao emprego e renda.
11
1.1. O MOVIMENTO NEGRO E AS NOVAS TEORIZAÇÕES SOBRE O CURRÍ-
CULO
12
razões das escolhas dos conteúdos e suas conseqüências para os/as educandos/as. Essas
novas teorias trazem, portanto, para o primeiro plano das discussões, o caráter político
das práticas curriculares.
Os esforços de teorização crítica deslocam, assim, o foco dos processos de pla-
nejamento, implementação e avaliação dos currículos para os critérios de seleção, orga-
nização, hierarquização e transmissão dos conteúdos a serem ensinados, sempre com os
olhos voltados para a dimensão estruturante da linguagem. Começam a mapear de que
forma as práticas curriculares contribuem na preservação de privilégios dos/as alunos/as
oriundos dos grupos socialmente favorecidos e, por conseguinte, para a manutenção e
aprofundamento das desigualdades sociais, de gênero e de raça. A quem pertence o co-
nhecimento considerado válido de ser incluído nos currículos? Quem ganha e quem per-
de com as escolhas dos conteúdos curriculares básicos a serem ministrados nas escolas?
Essas são perguntas que passaram a ganhar espaço central nos estudos sobre o currículo
pós-década de 1970.
Um pouco mais tarde, já nos anos 1990, a tônica dos estudos sobre o currículo
passa a ser a sua dimensão cultural e o foco das discussões serão as relações entre currí-
culo, cultura e poder. Alguns autores consideram que, desde então, as categorias mais u-
suais passam a ser aquelas que têm uma relação direta como os estudos culturais, como
“identidade, subjetividade, raça, gênero, sexualidade, discurso, linguagem”.5 É a partir
desse período que os estudos sobre o currículo migram o foco do desenvolvimento cur-
ricular para a compreensão do processo que desagua no currículo. Como análise política
e sociológica, as teorizações sobre o currículo ampliam o leque das discussões e passam
a enfocar, além das relações de desigualdade e poder educacionais vinculadas às classes
sociais, aquelas centradas nas relações de gênero, raça e etnia, em suas complexas inter-
relações.6 Soma-se a isso a ideia de que os currículos devem ser compreendidos como
teias de significados, textos que nos contam e instituem muitas histórias: “sobre pessoas,
sociedades, tradições, culturas”. Segundo Letícia Freitas e Rosa Maria Hessel Silveira,
5
MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa & SILVA. Tomaz Tadeu da (org.). Currículo, cultura e soci-
edade. São Paulo: Cortez, 2011. p. 08.
6
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005. p. 99.
13
“essas histórias podem nos dizer como as coisas são ou sugerir como elas deveriam ser.
Por isso dizemos que o currículo produz sentido sobre as atividades sociais”.7
Mais especificamente, as teorias sobre o currículo focadas na dinâmica da raça e
da etnia trouxeram a tona tanto a discussão de questões ligadas ao acesso à educação e
as dificuldades de permanência de alguns alunos na escola em função de um currículo
incapaz de atendê-los, quanto passaram a questionar o tipo de conhecimento que estava
no centro do currículo, problematizando-o como algo que permanece “racialmente envi-
esado”.8 Nessa perspectiva, o currículo passa a ser tomado como uma espécie de “narra-
tiva étnica e racial”, emergindo daí um forte vínculo entre conhecimento, identidade e
poder. Afirma-se claramente que o currículo corresponde, ao mesmo tempo, a uma ques-
tão de conhecimento e a uma questão de identidade. E é nesse ponto que as teorizações
sobre o currículo e as demandas do movimento negro se entrecruzam.
O racismo tem sido apontado como um dos elementos que incidem no fracasso escolar
de alunos/as negros/as. A organização escolar, a estrutura curricular e as formas de ges-
tão constituem-se em fortes mecanismos de exclusão da população negra da e na escola.
A invisibilidade de história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos escola-
res contrasta com a maciça presença de negros nos bancos escolares, principalmente das
escolas públicas.
14
adequação ao sistema de ensino”, indicador que expressa o percentual de crianças e jo-
vens que frequentam a série esperada em idade regular, deparamo-nos com dados ex-
pressivos dessa situação de desvantagem educacional dos/as negros/as. Segundo dados
da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 2008, enquanto a taxa de ade-
quação das crianças brancas entre 11 e 14 anos é de 54,3%, entre as pretas e pardas a
taxa cai para 37,7%. A situação agrava entre meninos pretos e pardos, dos quais apenas
1/3 frequenta a escola na série esperada.
A escala de estágios e habilidades ou de construção de competências, indicador
que mede o desempenho dos alunos no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Bá-
sica (SAEB) também demonstra a situação desfavorável dos/as alunos/as negros/as bra-
sileiros/as. No exame de português, por exemplo, entre os/as alunos/as do último ano do
ensino fundamental que fizeram a prova do SAEB, os estágios mais baixos de níveis de
competência, denominados críticos e muito críticos, foram apresentados pelos/as estu-
dantes negros/as e pardos/as: 12,5% de meninos brancos, 6,7% de meninas brancas,
17,8% entre os meninos pretos e pardos e de 11% entre as meninas pretas e pardas.
No Estado de São Paulo, a situação educacional das crianças e dos jovens ne-
gros/as não é diferente. 98,9% da população branca de 7 a 14 anos no Estado de São
Paulo frequentam a escola, enquanto que para a população negra da mesma faixa etária
essa taxa cai para 97,6%. Em relação à conclusão do Ensino Fundamental, têm-se taxas
de 96,6% entre os brancos e de 95,8% entre os negros.
Um dos fatores que levam alunos/as negros/as a ter menores rendimentos na es-
cola é a estruturação do próprio sistema escolar. É preciso questionar, além dos meca-
nismos sociais e institucionais que estão na base do fracasso escolar de crianças e jovens
negros/as, o tipo de conhecimento que está no centro do currículo. A seleção de conteú-
dos tem sido apontada como uma das razões pelas quais os alunos negros não se vêem e
não se identificam com a escola – o currículo alienígena, do qual nos fala Tomaz Tadeu
da Silva. 10
A reivindicação do movimento negro por ampliação do foco dos currículos esco-
lares é uma demanda por reconhecimento e por justiça social, pois, ancora-se tanto na
10
SILVA. op. cit., 2005.
15
valorização identitária quanto em princípios redistribuitivos. A escola é vista como um
espaço importante para a eliminação de discriminação e para a emancipação dos grupos
discriminados, pela potencialidade de proporcionar o acesso a conhecimentos diversifi-
cados (ecologia de saberes) e a registros culturais diferenciados.11
A política curricular possui grande importância para a efetivação de uma educação an-
tirracista. O currículo prescrito é apenas uma das facetas do sistema curricular. Além do
Estado, outros atores atuam na modulação curricular, influenciando diretamente no co-
nhecimento que será ofertado aos alunos nas salas de aula. No entanto, a real efetivação
da lei 10.639/03 não pode prescindir da apreensão da política curricular como condicio-
nantes da realidade prática da educação. É o que podemos depreender da afirmação ca-
tegórica presente no Parecer 03/2004: “cumprir a lei é responsabilidade de todos e não
apenas do professor em sala de aula.”12
Na prática, porém, há uma diferenciação entre a formalização da lei 10.639/03 e
sua real efetivação. Como temos afirmado, sua implementação coloca-se como um gran-
de desafio. Já se passaram oito anos desde a sua promulgação e ainda não se veem ações
concretas para que essa lei não se torne letra morta; ações que ultrapassem as iniciativas
pessoais de professores comprometidos com uma pedagogia antirracista e como o com-
bate aos problemas sociais que atingem as populações pardas e negras de forma maciça.
O que se observa é a falta de um compromisso vigoroso com a execução da legislação
por parte dos sistemas de ensino. Assim, se a lei 10.639/03 é, sem dúvida, uma conquis-
ta importante do movimento negro, a normatização jurídica do ensino de História da
África e da cultura afro-brasileira, “embora seja condição necessária, não é condição su-
ficiente para a sua implementação de fato”.13
Sabemos que os governos municipais, estaduais e federal são os responsáveis di-
retos pela execução. Pois, cabe aos sistemas de ensino converter as demandas dispostas
11
BRASIL. op. cit., 2006. p. 236.
12
CNE. Parecer CNE/CP 03/2004.
13
Brasil. Ministério da Educação. SECAD. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Fede-
ral n.º10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. P. 34
16
na Lei 10.639/03 em políticas públicas de Estado e institucionais. O parecer CNE/CP
03/2004, dispõe que cabe aos sistemas de ensino, no âmbito de sua jurisdição, orientar e
promover a formação de professores/as e supervisionar o cumprimento das “Diretrizes
Curriculares para a Educação das Relações Étnicorraciais e o Ensino de História e da
Cultura Afro-brasileiras e Africanas” nos diversos estabelecimentos de ensino de dife-
rentes níveis e modalidades.
No ano de 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as “Diretrizes Cur-
riculares para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cul-
turas Africanas e Afro-brasileiras” e, em 2006, publicou as “Orientações e Ações para a
Educação das Relações Étnico-raciais”, buscando orientar uma política curricular fun-
dada no combate ao racismo, no reconhecimento e valorização da história e da cultura
dos africanos e afro-descendentes e na superação da desigualdade étnico-racial existente
na educação escolar brasileira. Esses documentos visam, portanto, em suas dimensões
normativas, oferecer referências para a efetivação de ações pelos diversos sistemas de
ensino. O que, em tese, significa a adoção de seus principais pilares nas diretrizes curri-
culares dos estados e municípios. Segundo o Parecer 03/2004, “cabe aos conselhos de
Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aclimatar tais diretrizes,
dentro do regime de colaboração e de autonomia dos entes federativos, a seus respecti-
vos sistemas de ensino”. Sendo assim, é a esses diferentes órgãos normativos que “cabe
a tarefa de adequar o proposto neste parecer à realidade de cada sistema de ensino”. 14
De que forma se dá a recepção dos preceitos dispostos nas diretrizes nacionais para a
educação das relações étnicorraciais na proposta curricular de ensino de história dos es-
tados brasileiros? Diferentes entes federados adotaram medidas que julgavam adequa-
das às realidades locais. No caso do Estado de São Paulo, objeto dessa análise, foi em-
preendida uma reforma curricular do Ensino Básico em 2008. Todavia, não foram ela-
borados instrumentos normativos e textos de orientações curriculares que buscassem
14
CNE. Parecer CNE/CP 03/2004.
17
adequar o proposto no parecer 03/2004, no que tange à educação das relações étnicorra-
ciais e ao ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira, para o sistema de
ensino do Estado de São Paulo.
Essa ausência de orientações curriculares para a educação das relações étnicorra-
ciais soma-se ao caráter centralizador da última reforma curricular empreendida pela
Secretaria de Estado da Educação, sem amplo debate com os movimentos organizados,
sindicatos e profissionais da educação. Muitos consideram que a atual Proposta Curricu-
lar para o ensino de História, aprovada em 2008, é fruto de uma reforma que em termos
teóricos aponta para uma maior autonomia dos gestores e educadores. Todavia, além da
proposta curricular, o estado elaborou os chamados “cadernos do professor”, nos quais
constam diversas seqüências didáticas que visam orientar a prática docente, limitando o
campo de ação do professor enquanto agente moldador do currículo e dificultando leitu-
ras mais libertárias ou inovadoras dos conteúdos a serem ensinados. Há, por isso, um
conjunto bastante grande de críticas a tais regulações ordenadoras do currículo, compre-
endidas como uma forma de o Estado influir não só na cultura, mas também na organi-
zação social e econômica dos grupos aos quais os alunos que frequentam a escola públi-
ca pertencem. Ao que tudo indica, são essas ordenações do sistema curricular que ser-
vem de referência para a elaboração de materiais didáticos e como parâmetro para as
práticas de avaliação e controle do sistema escolar. Aspectos esses que acabam por pro-
duzir efeitos na efetivação da lei 10.639/03.
Nosso intuito ao focar a análise na política curricular é tomá-la como um campo
ordenador de discursos e práticas educativas e que possui repercussões diretas sobre a
margem de atuação do conjunto dos agentes do sistema curricular, como diretores/as,
professores/as e alunos/as. Não se trata, no entanto, de desconsiderar o espaço de ação
da comunidade escolar, em especial de professores/as e alunos/as na conformação da-
quilo que consideramos o currículo real, o currículo em ação. Mas, de reconhecer que a
política sobre o currículo é um dos condicionantes da realidade prática da educação e,
portanto, um instrumento normativo que tem implicações sobre o conjunto das reflexões
e ações dos docentes.
Essas serão as bases sobre as quais construiremos, no próximo capítulo, nossa
análise da política curricular para o ensino de História do Estado de São Paulo, buscan-
18
do delinear seus possíveis impactos para a educação das relações étnicorraciais na rede
de ensino estadual. Para tanto, a política educacional será aqui compreendida como
um aspecto específico da política educativa, que estabelece a forma de se-
lecionar, ordenar e mudar o currículo dentro do sistema educativo, tor-
nando claro o poder e a autonomia que diferentes agentes têm sobre ele,
intervindo, dessa forma, na distribuição do conhecimento dentro do sis-
tema escolar.15
Assim, nosso intuito é, a partir da política curricular do estado de São Paulo, re-
fletir sobre a forma de recepção dos preceitos dispostos nas diretrizes nacionais para a
educação das relações étnico-raciais. Tendo isso por base, buscamos tecer uma análise
do currículo prescrito pelo Estado de São Paulo, disposto na Proposta Curricular de His-
tória para o Ensino Fundamental e nos Cadernos do Professor, em sua interface com a
proposta da Lei 10.639/03. Por isso o próximo capítulo, apresenta uma investigação
sobre a reforma educacional acima citada, levando em consideração em que medida as
linhas de ação propostas em 2008 incluem e/ou excluem a discussão da questão racial
como integrante da nova matriz curricular. Refletiremos de que modo os conteúdos da
disciplina história foram selecionados e ordenados na atual proposta curricular.
15
SACRISTÁN, José Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed,
2000. p. 109.
19
CAPÍTULO 2
A HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA POLÍTICA
CURRICULAR DO ESTADO DE SÃO PAULO
É parte de uma concepção mais ou menos generalizada a ideia de que a Lei 10.639/03
foi aprovada em consonância com as demandas do ativismo negro por reconhecimento e
redistribuição no universo educacional brasileiro. A Lei 10.639/03 estabelece que:
16
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras pro-
vidências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
20
Florianópolis e Brasília, entre dezembro de 2004 e junho de 2005. O resultado dos tra-
balhos foi publicado em 2006. O documento está dividido por nível/ modalidade de en-
sino e apresenta discussões relativas ao histórico da educação brasileira correlacionan-
do-o à temática étnicorracial e sua abordagem no campo educacional. O documento
apresenta ainda algumas perspectivas de ação no contexto escolar. 17
A reinterpretação do lugar conferido ao negro na cultura e história nacionais é a
tônica da lei 10.639/03 e dos demais dispositivos jurídicos citados acima. Trata-se de
uma tentativa de redimensionar o papel que tem sido conferido aos afrodescendentes nos
currículos escolares. Dentre as disciplinas que são apontadas como preferenciais para
que sejam ministrados os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira está
a História, objeto de estudo da presente monografia.
Apesar de reconhecer que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas
nas relações étnicorraciais não se limitam à escola, e que, portanto, dependem de um
trabalho conjunto que envolva “processos educativos escolares, políticas públicas e mo-
vimentos sociais”, os dispositivos jurídicos que regem a implementação da lei 10.639/03
afirmam a importância da escola na condução “da reeducação das relações entre dife-
rentes grupos étnicorraciais”.18
Os documentos abordam, dentro desta perspectiva, as responsabilidades dos
agentes tanto no âmbito de formulação e implementação de políticas públicas quanto no
âmbito do trabalho pedagógico no cotidiano escolar. O Parecer CNE/ CP 03/2004 ao
instituir as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnicorraciais e o En-
sino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana determinou que elas deveriam ser
“executadas pelos estabelecimento de ensino de diferentes níveis e modalidades, caben-
do aos sistemas de ensino, no âmbito de sua jurisdição, orientar e promover a formação
de professores e professoras e supervisionar o cumprimento das Diretrizes”. 19
A inclusão da temática da História da África e da Cultura afro-brasileira nos cur-
rículos é tratada nesses dispositivos jurídicos como “uma decisão política com fortes re-
percussões pedagógicas”. Essa apreensão possui ressonância direta no sistema curricu-
17
BRASIL. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD,
2006.
18
Idem, p. 231.
19
Ibidem. p. 21
21
lar, caracterizado por Sacristán como “um objeto que cria em torno de si campos de ação
diversos, nos quais múltiplos agentes e forças se expressam em sua configuração, inci-
dindo sobre aspectos distintos”.20 O currículo, dessa forma, deve ser apreendido como
uma confluência de práticas políticas, administrativas, editoriais, pedagógicas, etc. e não
somente como um corpo de conhecimento.
Ao abordar as responsabilidades dos atores na implementação da lei 10.639/03,
o Parecer CNE/ CP 03/2004 afirma, ainda, que
A atual proposta curricular do Estado de São Paulo entrou em vigor em 2008. Essa nova
proposta curricular foi levada a cabo após os resultados insatisfatórios das escolas da
rede estadual no Sistema de Avaliação e Rendimento Escolar do Estado de São Paulo
(SARESP) e nas avaliações nacionais. 22 Apesar de advogar certo grau de autonomia dos
20
SACRISTAN. op. cit., 2000. p. 101.
21
BRASIL. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD,
2006. p. 240
22
CIAMPI, Helenice, GODOY, Alexandre Pianelli et al. “O currículo bandeirante: a Proposta Curri-
cular de História no estado de São Paulo, 2008”. Revista Brasileira de História. São Paulo: AN-
PUH, v. 29, nº 58, 2009. p. 366
22
gestores e professores para a sua implementação, a espinha dorsal da atual política cur-
ricular, no que tange à seleção de conteúdos, é a distribuição dos cadernos de aprendi-
zagem. Cada disciplina que compõe a grade curricular possui os seus respectivos cader-
nos de aprendizagem. São distribuídos, a todos os alunos da rede estadual de ensino de
São Paulo, quatro cadernos de aprendizagem de cada disciplina por ano, um volume a
cada bimestre letivo.
Esses cadernos de aprendizagem são compostos por situações de aprendizagem
que contemplam o conteúdo selecionado pela política curricular, ou seja, o currículo pres-
crito. Neles, as atividades sugeridas são acompanhadas de orientações para que possam
ser postas em prática pelo professor. O “caderno do professor” contém os objetivos de
cada situação de aprendizagem, os conteúdos preliminares, exercícios, passo-a-passo
das atividades e até propostas de recuperação.
Esses cadernos de aprendizagem podem ser apreendidos como uma tentativa de
padronização e homogeneização da prática curricular no Estado de São Paulo. Como já
apontamos anteriormente, apesar de advogar o contrário, a proposta dos cadernos de
aprendizagem limita o poder de ação dos docentes enquanto agentes moduladores do
currículo. Como aponta Sacristán, dentre os diversos níveis ou fases de objetivação do
currículo, a primeira delas é o currículo prescrito, que é assim definido pelo autor:
23
SACRISTÁN. op. cit., 2000. p. 104.
23
Existe uma série de meios, elaborados por diferentes instâncias, que cos-
tumam traduzir para os professores o significado e os conteúdos do currí-
culo prescrito, realizando uma interpretação deste. As prescrições costu-
mam ser muito genéricas e, nessa mesma medida não são suficientes para
orientar a atividade educativa nas aulas.24
24
Idem. p. 105.
24
Os conteúdos do ensino de História para os anos finais do Ensino Fundamental
contemplados pelos Cadernos de Aprendizagem foram organizados da seguinte maneira:
25
- O Renascimento Comercial e
Urbano
- O Renascimento Cultural e Ci-
entífico
1. Formação das Monarquias Nacionais
- Formação das Monarquias Na-
Européias Modernas: O Caso Português
cionais Européias Modernas;
2. Os fundamentos teóricos do Absolu-
- Fundamentos teóricos do Abso-
6 SÉRIE tismo e as práticas das Monarquias abso-
lutismo;
VOLUME 2 lutistas
- Reforma e Contra-Reforma
3. A Reforma e a Contra-Reforma
- A Expansão Marítima nos sécu-
4. Expansão Marítima nos séculos XV e
los XV e XVI;
XVI
1. Contribuição dos maias, incas e aste-
- As sociedades maia, inca e aste- cas para a diversidade cultural dos povos
ca: conquista espanhola na Amé- da América
6ª SÉRIE rica 2. Trabalhando com vocabulário: a con-
VOLUME 3 - Sociedades indígenas na Améri- quista espanhola e o fim do Império Inca
ca; o encontro entre portugueses e 3. Dicionário ilustrado: palavras de ori-
povos indígenas gem indígena
4. O encontro entre culturas no Brasil
1. Quilombo: um símbolo de resistência
- Tráfico negreiro e escravismo à escravidão
no Brasil 2. O Boi Voador de João Maurício de
6ª SÉRIE - Ocupação holandesa no Brasil Nassau
VOLUME 4 - Mineração e vida urbana no 3. Revista cultural: a mineração no Bra-
Brasil sil colonial
- Crise do sistema colonial 4. Painel informativo: a Guerra dos Em-
boabas
- Iluminismo
- Colonização inglesa e a inde- 1. O Iluminismo
pendência dos 2. A colonização inglesa e a indepen-
7ª SÉRIE Estados Unidos da América dência dos Estados Unidos da América
VOLUME 1 - Colonização espanhola e a inde- 3. A colonização espanhola e a indepen-
pendência dência da América Espanhola
da América Espanhola 4. A Revolução Industrial inglesa
- Revolução Industrial inglesa
- A Revolução Francesa e a ex- 1. A Declaração dos Direitos do Homem
pansão napoleônica e do Cidadão
7ª SÉRIE - A família real no Brasil 2. O Brasil urbano de Debret
VOLUME 2 - A Independência do Brasil 3. Monarquia × República
- Primeiro Reinado no Brasil 4. Voto e cidadania
- Período Regencial no Brasil 1. A Revolta dos Malês
7ª SÉRIE - Movimentos sociais e políticos 2. O Germinal e a Internacional
VOLUME 3 na Europa, no século XIX: as 3. A expansão territorial dos Estados
ideias socialistas, Unidos durante o século XIX
26
comunistas e anarquistas nas as- 4. A charge política no Segundo Império
sociações de trabalhadores, o
liberalismo e o nacionalismo
- Os EUA no século XIX
- Segundo Reinado do Brasil:
política interna
- Economia cafeeira; escravidão e
abolicionismo 1. Os imigrantes na cafeicultura e a Lei
- Formas de resistência e o fim do de Terras
tráfico e da escravidão 2. O processo de abolição da escravidão
7ª SÉRIE
- Industrialização, urbanização e 3. Os empreendimentos do Barão de
VOLUME 4
imigração: as transformações Mauá
econômicas, políticas e sociais no 4. A Proclamação da República, de
Brasil e a Proclamação da Repú- Benedito Calixto
blica
- Imperialismo e Neocolonialismo
1. Imperialismo e Neocolonialismo no
no século XIX
século XIX
8ª SÉRIE - Primeira Guerra Mundial
2. A Primeira Guerra Mundial
VOLUME 1 - A Revolução Russa e o stalinis-
3. A Revolução Russa e o stalinismo
mo
4. A República no Brasil
- A República no Brasil
- Nazifascismo
1. A propaganda no nazismo
- Crise de 1929
8ª SÉRIE 2. O impacto da Grande Depressão
- Segunda Guerra Mundial
VOLUME 2 3. Resistência judaica
- O Período Vargas
4. “Pai dos pobres” ou “Mãe dos ricos”?
Como temos afirmado, a seleção de conteúdos não é um ato neutro, está perpas-
sada por intenções e relações de poder. O que podemos depreender dos conteúdos sele-
cionados pela atual política curricular do Estado de São Paulo elencados acima?
27
As situações de aprendizagem propostas pelos Cadernos de Aprendizagem refe-
rem-se a temáticas canônicas do ensino de História. São conteúdos ordenados de forma
cronológica e linear. Ancora-se, portanto, em fatos e não em temas.
Outro aspecto notável de tal proposta curricular é a preponderância da História
Geral em relação à História do Brasil. E mais, dentre os tópicos de História Geral nota-
se o predomínio de temáticas ligadas à história européia. São “abordagens que nada dei-
xam a dever aos livros já disponíveis no mercado editorial, os quais os professores têm
acesso. Por que editar mais do mesmo?”25
Da regulamentação administrativa dos mínimos curriculares passa-se, com a ado-
ção dos Cadernos de Aprendizagem, à tentativa de intervenção, por parte do Estado, na
organização do saber dentro da escolaridade. Como aponta Sacristán,
Tal prática intervencionista pode ser explicada por alguns fatores tais como:
28
dernos de Aprendizagens. Trata-se, em geral, de temáticas já bastante habituais, que
também já integram há algum tempo os livros didáticos de História. São temáticas co-
mo: Egito, a África como berço da humanidade, quilombos como símbolo de resistência
à escravidão, Revolta dos Malês, o processo de abolição da escravidão, Neocolonialis-
mo e Imperialismo. Adicionaram-se alguns temas, mas manteve-se a lógica fundamental
que organiza o encadeamento e a emergência de alguns conteúdos.
As situações de aprendizagem que integram os Cadernos de Aprendizagem do
Estado de São Paulo estão longe de romper com o racismo epistêmico,28 com a colonia-
lidade do saber. Tais propostas didáticas contrariam as Diretrizes Curriculares para a
educação das relações étnicorraciais e ensino da História e da Cultura afro-brasileiras e
africanas que advogam um novo espaço epistemológico e político e não apenas algumas
poucas e (às vezes) inertes ampliações de conteúdo.
É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido à Lei 9394/1996 provoca
bem mais do que a inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem
relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino,
condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da
educação oferecida pelas escolas.29
Luiz Fernandes de Oliveira e Vera Candau, apoiados nos estudos de Walsh, pro-
põem, na mesma linha das Diretrizes Curriculares, uma educação que seja intercultural
e decolonial e que se contraponha à mera inclusão de novos temas nos currículos. Uma
educação que se situe “na perspectiva da transformação estrutural e sócio-histórica”,
que questione as “bases ideológicas do Estado-Nação”, que rompa com “lógicas epistê-
micas eurocêntricas” que historicamente vem dominando as formas de ensinar e apren-
der no mundo ocidental. E que resista a propostas de aprendizagem que “sob o pretexto
de incorporar representações e culturas marginalizadas, apenas reforçam os estereótipos
e os processos coloniais de racialização”.30
28
Segundo Oliveira & Candau, racismo epistêmico é “a operação teórica que privilegiou a afirmação
dos conhecimentos produzidos pelo ocidente como os únicos legítimos e com capacidade de aces-
so à universalidade e à verdade”. Ver OLIVEIRA, Luiz Fernandes & CANDAU, Vera Maria Fer-
rão. “Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil”. In: Educação em Re-
vista. Belo Horizonte: UFMG, v.26, n. 01, abril de 2010. p. 37.
29
BRASIL. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD,
2006. p. 239
30
OLIVEIRA & CANDAU. op. cit., 2010. p. 27.
29
Perguntemos, pois, o que há de novo na atual proposta curricular do Estado de
São Paulo? Talvez possamos adjetivá-la, por prefixação, na esteira da análise de Apple,
como neoconservadora.
Essa análise de Apple ilustra bem o pano de fundo da atual proposta curricular
do Estado de São Paulo: um currículo de fatos estreitamente ligado aos dispositivos das
avaliações externas e, por isso, bastante destoante dos ideais que norteiam as Diretrizes
Curriculares para a Educação das Relações Étnicorraciais e o Ensino da História e da
Cultura Afro-brasileiras e Africanas. Eis um exemplo dos descaminhos do processo de
implementação da Lei 10.639/03.
31
APPLE, Michael W. Reestruturação educativa e curricular e as agendas neoliberal e neoconser-
vadora: Entrevista com Michael Apple. Disponível em www.curriculosemfronteiras.org. Acesso
em 01 de maio de 2012. p. 20
30
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