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Eleições brasileiras de 2018:

a catástrofe perfeita?
por Sonia Corrêa
Eleições brasileiras de 2018: a catástrofe perfeita?

Sonia Corrêa1

Não há como diminuir o tamanho da catástrofe que aconteceu ao Brasil... Temos


o líder mais extremista de todas as nações democráticas, e precisamos torcer
para que a situação continue a ser essa: afinal, talvez não estejamos mais entre
as nações democráticas em breve... Se já há o medo, a liberdade não é a
mesma. Se há a preocupação de não provocar uma reação desmesurada do
lado do poder, a liberdade não é mais a mesma. Hoje já amanhecemos menos
livres. (Celso Rocha de Barros, Folha de S.Paulo, 29 de outubro de 2018)

Tempo de luto

Política é razão e afeto. Por isto, escrever sobre o que ocorreu nas eleições brasileiras
de 2018 torna-se uma tarefa dolorosa. Tendo observado, por muitos anos, a construção
das políticas conservadoras brasileiras sobre aborto, sexualidade e gênero, não fiquei
exatamente surpresa com o resultado. Mas ainda assim, a plena materialização, no
processo eleitoral, de múltiplas composições de direita ativas e raivosas, as cenas de
comemoração pós-vitória e o conteúdo dos discursos do candidato presidencial eleito
me lançaram numa terra desconhecida.

Enquanto processava esse sentimento perturbador, li e reli vários artigos clássicos


sobre o Fascismo, como por exemplo o artigo magistral de Umberto Eco e análises
sobre notáveis sobre a eleição de Trump, em 2016. Uma delas me tocou
profundamente: Time for Refusal, de Teju Cole, na qual o autor resgata a peça de
Ionesco “Os Rinocerontes” em que as pessoas que vivem uma aldeia são transformadas
em rinocerontes, como metáfora da difusão do fascismo:

Quase todos sucumbem: aqueles que admiravam a força bruta dos rinocerontes,
aqueles descrentes do que estavam vendo, e aqueles que inicialmente se
alarmaram. Um personagem, Dudard, declara: Se você vai criticar, é melhor
fazê-lo por dentro". E assim, ele voluntariamente sofre a metamorfose, e não há
caminho de volta para ele.

Ao citar Cole, não quero sugerir que o que estamos vivenciando no Brasil é o estágio
maduro do fascismo, muito menos que todos os eleitores de Bolsonaro sejam fascistas.
As condições atuais são decididamente mais complexas e borradas. No entanto, senti
fisicamente a rápida e “absurda” mutação da esfera pública, tal como retratada na peça,
o que é assustador. Como as personagens de Ionesco, também percebi que a ‘terra
desconhecida’ onde me encontro agora, sempre esteve ali à espreita instalada no
conservadorismo social relativamente inercial, não transformado por décadas de
democratização. Assim como no título do artigo do escritor Bernardo Carvalho, o
problema não é Bolsonaro. O problema somos “nós”: as camadas entrincheiradas de
racismo, classismo, heteropatriarcalismos e autoritarismo (em espanhol),
permaneceram sob a superfície da sociedade brasileira que foram ativadas e
convertidas em uma retórica e uma ação não só visíveis mas, muitas vezes, virulentas.

Desde a semana passada estive dividida entre a ansiedade por entender melhor o que
nos trouxe até aqui, e momentos profundos de pesar. Assim como minha querida amiga,
a filósofa feminista Carla Rodrigues, estou enlutada pelo que já foi perdido, as perdas
que estão porvir e, principalmente, a potencial carnificina noticiada por gestores recém-
eleitos, inclusive o próprio presidente, como “solução” para o crime e a violência.
Embora essas ondas de estranhamento, perda e tristeza não possam ser
sobrepassadas é também vital, para podermos reexistir2, que estrada que nos trouxe
até aqui seja examinada com razoabilidade.

Traços sistêmicos

São múltiplas e complexas as condições e trajetórias que nos trouxeram ao que Celso
da Rocha Barros retratou como a catástrofe política das eleições brasileiras de 2018.
Anos se passarão antes que sejam plenamente compreendidas. Entretanto, no texto
que foi originalmente escrito para a audiência internacional, alinhavei concisamente
dimensões e processos que me parecem incontornáveis para uma melhor compreensão
do contexto nacional. Esse voo de pássaro é, contudo, bastante incompleto e parcial
para a audiência brasileiras.

Nele, incluí, como tendências estruturais que devem ser consideradas como pano de
fundo de longo prazo da cena eleitoral de 2018 os padrões continuados de desigualdade
e de violência estrutural que permaneceram sem solução após três décadas de
consolidação democrática, em particular a violência pela dor e percepção – real e
fabricada – de desordem que produz. Outro elemento chave desse pano de fundo é,
sem dúvida, a longa e muito enraizada cultura de corrupção política. Tão o mais
importante é o longo curso de crescimento e sedimentação do dogmatismo moral
religioso, particularmente em sua expressão evangélica, mas não exclusivamente, uma
vez que a restauração conservadora católica-pós anos 1980 afetou profundamente a
igreja brasileira. Não menos, importante, tal como apontado por José Eustáquio Diniz
em artigo recente, são as taxas de crescimento econômico do país baixas e não
sustentáveis desde os anos 1980) e, mais especialmente, a recessão pós 2014,
acentuada em 2016, que devastou o emprego e a renda dos setores mais pobres e,
mais especialmente, tal como analisado por Lavinas e Gonçalves no Le Monde
Diplomatique, impulsionou o deslocamento das classes médias para a direita.

E, tampouco é possível, contornar, legítimas frustrações de amplos setores da


sociedade com o PT em particular por causa da corrupção, tema central que irrompeu
no debate político e associação como outras reivindicações como mobilidade urbana,
educação e saúde nas Jornadas de 2013, para ser em seguida capturado e tornado
hiperbólico pelas formações de direita que ganharam impulso nos protestos de 2015-
2016 em torno do impeachment de Dilma Rousseff. A irascível propaganda anti-PT que
foi então urdida se tornaria a espinha dorsal da estratégia eleitoral de Bolsonaro.
Finalmente, mas não menos importante, está o fato da campanha eleitoral de Bolsonaro
ter sido feita quase totalmente por via cibernética tendo como suporte, principalmente,
o WhatsApp. Essas características embora não exclusivas – pois também marcaram o
Brexit e a eleição de Trump inéditas tiveram no Brasil uma escala inédita de ampla
repercussão nacional e internacional. Mais especialmente, suas implicações legais e
políticas ainda não foram totalmente compreendidas.3

Quando situada no cenário global, a guinada política para a extrema-direita que parece
se materializar nas recentes eleições brasileiras é drástica, mas está longe de ser
excepcional. Ela não pode ser totalmente compreendida, se não for enquadrada na
cartografia da contínua neoliberalização global da economia e dos modos de vida. Do
ponto de vista interno, não é pode ser considerada uma surpresa total, uma vez que
convivemos com os sinais de uma restauração conservadora pelo menos desde meados
da década de 2000, quando se tornaram mais palpáveis, e de forma bastante
significativa, no âmbito dos debates legais e de políticas públicas referentes ao direito
ao aborto e aos direitos sexuais.4

Penso, contudo, que até agora quando esse domínio de questões irrompeu de maneira
feroz no centro da campanha eleitoral, especialmente no espiral discursivo em torno à
díade ‘ideologia de gênero- comunismo’, esse lugar não era visto como politicamente
relevantes, pela maioria dos atores e observadores das chamadas correntes principais.
Hoje, entretanto, para compreender totalmente a gradual mas firme guinada para a
direita da política brasileira, não é possível mais desconsiderar transformações que
tiveram lugar nas ordens de gênero e sexualidade no decorrer da reconstrução
democrática e na contramão das camadas entrincheiradas de desigualdade e
conservadorismo que mencionei acima e que não podem ser pensados sem suas
interseções com o racismo. Essas transformações são mensuráveis através de
indicadores sociodemográficos -- tais como níveis de educação feminina e participação
no trabalho, declínio da fertilidade e mudanças profundas nas estruturas familiares --
mas também através do marco legal e, sobretudo, de novos modos e expressões de
estar no mundo da vida. As formações autoritárias e de direita que tomaram corpo forte
na paisagem política brasileira ao dos últimos cinco anos devem ser lidas como reação
a essas transformações, mas não podem ser plenamente compreendidas, se não forem
situadas em relação às outras dimensões sistêmicas resumidas acima.

As reflexões que se seguem são também preliminares e incompletas. Localizam o Brasil


no panorama global do que alguns autores tem chamado de desdemocratização. Em
seguida exploram, tentativamente, como em 2018, as dimensões de longo curso, em
especial o alargamento do neoliberalismo se cruzaram com a fórmula da ideologia de
gênero configurando uma pedra angular da dinâmica eleitoral.5

Desdemocratização, capitalismo tardio e políticas antigênero

Trilhas sinuosas

Após as eleições norte americanas de 2016, SPW publicou uma pequena nota
sublinhando que, sem minimizar o peso da hegemonia norte americana, a chegada de
Trump ao poder não deveria ser interpretada como excepcional, mas como um novo
capítulo numa cadeia de restaurações conservadoras, ou transformações
antidemocráticas que te varrido o mundo há algum tempo. Naquele momento, vários
analistas escreveram sobre o fim do excepcionalismo democrático norte americano,
incluindo Paul Krugman que, em sua primeira avaliação do 9 de novembro ousou
perguntar: "Devemos considerar os EUA um estado e uma sociedade falidos?. "

Olhando retrospectivamente e recuperando esta cadeia de mudanças rumo ao


autoritarismo e à desdemocratização, independentemente de sua orientação ideológica,
ouso dizer que ela a começou no 11/9/2001 e com a subsequente “guerra ao terror” que,
tal como analisado por grande número de autoras e autores, significaria uma ruptura
com o ciclo de democratização que havia começado ao final da década de 1970 e que
parecia ter florescido plenamente após o fim da bipolaridade da Guerra Fria (1989-
1991). De uma perspectiva latino-americana vale lembrar, por exemplo que, em 2001,
houve uma tentativa de golpe de direita na Venezuela e, de uma perspectiva mais
ampla, é significativo que Putin e Erdogan, dois ícones atuais da política autocrática
chegaram ao poder em 2003, exatamente quando os EUA invadiam o Iraque.
Ao final da década, ocorreriam flagrantes regressões democráticas em Honduras
(2009) e no Paraguai (2012) e Viktor Orbán foi eleito premier na Hungria (2010). A partir
de 2013, esses retrocessos se intensificaram. A primavera árabe se dissolveu sob as
sombras da guerra e do regime Sissi, no Egito e os efeitos simbólicos dessa debacle
da democracia extrapolaram as fronteiras regionais e cruzaram o espectro político.6 Em
2014, o Partido Nacional Hindu (BJP) venceu as eleições na Índia e Orbán foi reeleito
na Hungria. Na Nicarágua, Daniel Ortega reformou a constituição para garantir a
reeleição perene, enquanto a violência e a coerção do Estado contra a oposição
aumentaram na Venezuela. Em 2015, um governo extremamente conservador foi eleito
na Polônia. Em 2016, o “golpe parlamentar” que impugnou Dilma Rousseff no Brasil
(antessala das eleições de 2018) foi seguido pela eleição de Rodrigo Duterte nas
Filipinas, pelo referendo sobre o Brexit, pelo o estado de exceção de Erdogan na
Turquia, a derrota do acordo de paz na Colômbia e, por último mas não menos
importante, a eleição de Trump.

Esta tendência não recuou nos últimos dois anos. Se nas recentes eleições francesas,
alemãs e suecas, as forças ultradireitistas ganharam musculatura, na Itália elas
venceram. Na América do Sul, candidatos de direita foram eleitos no Chile e na
Colômbia (neste último caso em conexão direta com a derrota do acordo de paz). Na
Costa Rica, um partido evangélico quase elegeu seu candidato à presidência, enquanto
na Nicarágua o regime de Ortega-Murillo instalou uma feroz violência estatal contra a
dissidência política.

É importante lembrar, que para além desta trilha mais visível de eventos
desdemocratizantes, outras regressões ocorreram, que não captam a atenção da
grande mídia e de observadores mainstream, como o recentíssimo que golpe ocorrido
no Sri Lanka que interrompeu incipientes esforços de reconstrução democrática após
uma sangrenta guerra civil. Por outro lado, a tendência contínua de inclinação à direita
e ao autoritarismo dá confiança a regimes autocráticos antigos e consolidados que não
serão incomodados.

Após os resultados eleitorais de 28 de outubro, o Brasil aderiu plenamente a essa trilha


e não se trata, exatamente, de peça menor no dominó global da desdemocratização.
Como observado pelo CELAG (ver texto em espanhol), a América Latina se vê agora
espremida entre poderes de direita que governam os “dois grandes”. Da perspectiva
mais ampla do Sul global, o BRICS, que inicialmente combinava regimes autoritários ou
autocráticos (China e Rússia) e democracias (Brasil, Índia e África do Sul), está agora
quase inteiramente antidemocrático, mesmo quando líderes políticos e a imprensa dos
países que o compõem já terem expressado suas preocupações e desconforto com a
eleição de Bolsonaro. Falando em BRICS, vale lembrar que, ao longo do ciclo descrito
acima, a China, ao consolidar sua posição geoeconômica global, também restaurou
gradualmente controles estatais mais rigorosos sobre atividades políticas fazendo com
que, as previsões de meados de 2000, de liberalização política gradual impulsionada
pelas forças do mercado, soem hoje como ilusão. Neste mapa global redesenhado,
pouquíssimas âncoras da política democrática que ganhou corpo, globalmente, após
os anos 1970-1980 permanecem intactas.

Desdemocratização facilitada

Com pouquíssimas exceções, essas vertentes desdemocratizantes, de direita ou


abertamente autoritárias, se materializaram através de ‘procedimentos democráticos.
Além disso, nem todos os sistemas políticos listados acima são claramente repressivos
e brutais. A maioria deles pode ser descrita como democracia formal e funcional, e nem
todos os seus líderes são grotescos como Trump, Bolsonaro ou Duterte. Vários deles
se sustentam no poder através de meios menos duros, como o aniquilamento de
concorrentes políticos e formais mais sutis de afastamento e eliminação de dissidentes.
Alguns são bastante esclarecidos.7

É hoje vastíssima a literatura disponível que examina democracias do presente e do


passada, para compreender como elas podem se deteriorar ou, de fato, se deterioraram
tornando-se autocracias, ditaduras e regimes fascistas. Embora não seja possível
recuperar a riqueza dessa vasta produção, uma de suas chaves de interpretação que é
muito produtiva para explorar o cenário brasileiro pré e pós eleitoral é a interseção entre
capitalismo tardio, democracia e desdemocratização.

Um argumentos centrais dessa linha de pensamento é que o capitalismo, em suas


atuais conformações neoliberal e financeira, apesar das premissas liberais clássicas,
não depende, ou muito menos assegura ambientes políticos democráticos. O
neoliberalismo é altamente adaptável. Foi ‘testado’ na ditadura católica de Pinochet para
depois ser transportado para os mais diversos ambientes políticos em todo o mundo,
incluindo a China ‘comunista’. Achille Mbembe, em um pequeno artigo publicado em
2016, vai além sugerindo que essa formação econômica é incompatível com a
democracia.8

Scott Long, ao avaliar a eleição de Trump, também abordou a sombra neoliberal que
paira sobre as perdas democráticas, enfatizando suas características de grilagem e
extrativismo, para concluir que, sendo assim, não é surpreendente máquina mais
poderosa da economia mundial os (EUA) seja agora governada por um magnata do
setor imobiliário, que "exercita uma versão grotesca da propriedade privada como pura
performance". Chamando atenção para o rastro de esgotamento de terras e recursos
que resultou da expansão neoliberal, Long observa ainda que a Amazônia é um dos
poucos territórios ainda inexplorados por seu ímpeto furioso de acumulação.9

Ultraneoliberalismo e a cruzada antigênero

A observação de Long nos traz de volta ao Brasil, onde o filósofo político Vladimir
Safatle, em uma de suas perspicazes avaliações da montanha-russa eleitoral de 2018,
observou que os ativos públicos brasileiros que, apesar de muita pressão, escaparam
da privatização, aos quais devemos adicionar a Amazônia são alvos das poderosas
forças de mercado que apoiaram Bolsonaro, de maneira crescente, a partir de 2017.
Para ele, no centro da tempestade eleitoral brasileira está uma agenda econômica neo-
Pinochetista, ainda que esta vitória tenha sido impulsionada por discursos
anticorrupção, anti-PT e os entrincheirados discursos morais conservadores a respeito
de gênero, sexualidade e aborto, disseminados através de uma vasta e eficiente
máquina cibernética.

Neste contexto de análise é importante lembrar que o regime de Pinochet também


esteve firmemente aliado aos setores ultraconservadores da Igreja Católica e impôs
uma moral rígida à sociedade chilena, inclusive a completa criminalização do aborto.
Embora se possa argumentar que tal contubérnio seja típico de regimes ditatoriais,
Wendy Brown mostrou, no The American Nightmare (O Pesadelo Americano), como
essas duas formações – neoliberalismo e conservadorismo moral e social- se
entrelaçam no capitalismo tardio, mesmo em condições ditas democráticas. Em seu
escrutínio dos EUA na era Bush, ela examina criticamente como uma racionalidade
baseada na desregulamentação e amoralidade (neoliberalismo) e uma racionalidade
baseada na regulação e moralidade (neoconservadorismo), que parecem não ter muitas
afinidades, se tornaram profundamente imbricadas, produzindo sujeitos políticos que,
indiferentes à verdade, à liberdade política e à igualdade, tendem a aderir facilmente às
agendas políticas antidemocráticas.10

Não é em toda parte que este entrelaçamento é tão flagrante quanto nos EUA, onde
essas conexões têm sido construídas por muitas décadas. Em todo o mundo, os efeitos
prejudiciais do neoliberalismo, traduzidos em desigualdade e exclusão, criaram, de fato,
ambientes desfavoráveis socialmente, nos quais a desdemocratização pode prosperar.
Mas nem em todas as situações em que esses efeitos são palpáveis surgiram o
populismo de direita e formações protofascistas. Os fundamentos hierárquicos
androcêntricos (quando não francamente patriarcais), homofóbicos e disciplinares da
política religiosa e secular sobre a moralidade são funcionais às mais variadas formas
de ordens autocráticas e autoritárias. No entanto, nem todas as sociedades sujeitas a
esses regimes foram tão profundamente penetradas pelas racionalidades neoliberais.
O contexto sempre importa.

Da mesma forma, seria inadequado concluir que a cruzada contra a “ideologia de


gênero” construída pelo Vaticano desde os anos 1990 (CORRÊA, 2018; MISKOLSCI E
CAMPANA, 2017; MISKOLCI E PEREIRA, 2018), propagada na Europa e a América
Latina desde o começo dos anos 2010 (CORREA, PATERNOTTE E KUHAR, 2018), e
que esteve no vórtice eleitoral brasileiro, seria apenas funcional aos interesses e
racionalidades ultra neoliberais. Em primeiro lugar, porque enquanto fabricação do
Vaticano, esta cruzada tem razões próprias e objetivos específicos de longo prazo, que
podem ou não coincidir com os interesses ultra neoliberais. Embora predominantemente
aliada às forças direitistas, a cruzada antigênero não raramente se associou ao lado
esquerdo do espectro político11, inclusive na América Latina onde promove amplamente
a bandeira de que “gênero” é a nova face do comunismo, do Castro-Chavismo ou, no
Brasil, do Petismo.

Por outro lado, as formações religiosas e seculares de caráter ecumênico e as


estratégias adaptáveis pelas quais a cruzada antigênero está sendo implementada em
contextos específicos, criam de fato condições favoráveis para que as racionalidades
conservadoras e neoliberais se imbriquem, se fertilizem mutuamente e capturem de
maneira mais eficaz corações e mentes. Ainda que tentativamente, ouso dizer que esse
é exatamente o caso do Brasil.

“Gênero como comunismo”: uma política arranjo e colagem

Isabela Oliveira Kalil e equipe fizeram uma análise perspicaz dos tipos ideais de
apoiadores ativos de Bolsonaro, a cujo relatório este ensaio se soma. Com o título
“Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro”, o trabalho captou que
uma parte substantiva deste eleitorado compartilha visões ultraliberais sobre a
privatização, e um feroz repúdio ao aborto e à "ideologia de gênero". Este
posicionamento transparece através de uma série de convicções: o livre mercado é
sinônimo de democracia: o estado é corrupto, mas o setor privado não é; restrições
legais de política pública de caráter moral não são antidemocráticas, constituem uma
barreira à intervenção do estado na privacidade e na vida familiar. Nesta nebulosa a
corrupção é um significante flutuante associado, simultaneamente, à política, à
moralidade e à crítica da proteção do Estado -- em particular às ações afirmativas --
como obstáculo para conquistas individuais através do mérito. Os e as “cidadãs do
bem”, figuras centrais na política do campo Bolsonarista, são aquelas e aqueles que
lutam em todas essas frentes, ainda que de modo intercambiável.

As peças econômicas desta colagem entraram em circulação no país através da


produção feita pelo grupos social-conservadores e ultraliberais como o Movimento Brasil
Livre (MBL) e outros grupos “liberais” que ganharam força ao longo dos últimos anos.
Sua absorção mais ampla foi certamente favorecida pela penetração gradual, desde os
anos 1980, da lógica neoliberal no próprio tecido social e, mais significativamente, pela
influência pervasiva da teologia neopentecostal da prosperidade, cujos porta-vozes e
fiéis constituem, proporcionalmente, o maior grupo religioso eleitor de Bolsonaro (confira
aqui). Com base no artigo de Fernando Serrano, “A tempestade perfeita: ideologia de
gênero e a articulação de públicos” -- e cujo título inspirou o título deste ensaio -- que
analisa a erupção da “ideologia de gênero” no Referendo colombiano sobre o Acordo
de Paz eu diria que o amadurecimento final desse arranjo em direção a uma língua
franca12, agora compartilhada por um grande número de seus 50 milhões de eleitores,
ocorreu no encontro dos públicos altamente heterogêneos que gradualmente aderiram
à candidatura de Bolsonaro nos últimos meses.

A esse respeito discordo da análise de Safatle, quando afirma que a agenda moral
conservadora de Bolsonaro poderia ser lida como uma cortina de fumaça ocultando a
drástica neoliberalização da economia e da sociabilidade que está no cerne de seu
programa político. Embora ainda seja necessária uma maior elaboração e uma revisão
mais aprofundada de dados empíricos, uso as lentes de Andrea Peto para formular a
hipótese de que, nesse processo de amadurecimento, o dispositivo da "ideologia de
gênero" funcionou como uma cola simbólica que possibilitou juntar os conteúdos
díspares desta colagem, bem como agregar potenciais seguidores. O amálgama
“gênero” não colou exclusivamente conteúdos e atores do domínio da sexualidade,
gênero e aborto como questões, mas também e, talvez mais significativamente, os
elementos dispersos relacionados à outra face do dispositivo: o espectro do comunismo.
Na Colômbia, como analisado por Franklin Gil, o ataque de 2016 à “ideologia de gênero”
no Referendo sobre a Paz pavimentou o caminho para a demonização da esquerda nas
eleições de 2018. No Brasil, “gênero como comunismo” e vice-versa flutuou livremente
no denso espaço cibernético da campanha, cada um desses elementos alimentando a
imaginação política e a adesão de diferentes grupos de potenciais eleitores. Enquanto
“gênero” forneceu uma cola para articular todas as formas de corrupção moral,
“comunismo” funcionou como significante de todas as “coisas ruins” (corrupção,
petismo, proteção do Estado em detrimento do mérito etc) que “desaparecerão” quando
da implementação do governo brasileiro a partir de janeiro, com seu programa
individualista, privatizante e amplamente favorável às forças do mercado.

E agora?

Como observado por vários analistas, os componentes econômicos do programa


ultraconservador de Bolsonaro não podem ser implementados rapidamente, pois estão
condicionados a muitas externalidades: negociações complicadas no Congresso, fluxos
de investimento e as próprias condições da economia global.13 Em contraste -- para
recuperar um título que usamos na tradução em português do relatório SPW de 2004 a
respeito das políticas de Bush sobre sexualidade -- o Kamasutra de Bolsonaro (muitas
posições em sexo e gênero) são mais facilmente traduzíveis em diretrizes de políticas
e marcos legais, inclusive porque regressões nesses terrenos estão em andamento há
algum tempo. Quando Bolsonaro for compelido a cumprir de imediato o que prometeu
a seu vocal e enérgico eleitorado, não é difícil prever que o terreno do gênero,
sexualidade e aborto será imediatamente “bombardeado”. Isso pode ser ilustrado, por
exemplo, pela pauta proposta pelo grupo evangélico no Congresso para a nova
administração e a próxima legislatura.14

A sombra da normalização que paira no horizonte não é um aspecto menor do se


anuncia. Diferentemente dos EUA onde, a normalização começou depois da eleição de
Trump, no Brasil os apelos à normalização precederam a vitória de Bolsonaro. Desde o
resultado do primeiro turno, uma ampla gama de analistas políticos, em sua maioria
localizados no centro liberal do espectro político, passou a articular a interpretação de
que Bolsonaro, mesmo não sendo o presidente mais desejável, seria domesticado pelas
realidades do exercício de poder e pelos mecanismos de controle brasileiros,
considerados sólidos por esses observadores. Embora esses pontos de vista tenham
sido contestados, sob vários ângulos, inclusive apontando para a atual fragilidade dos
marcos institucionais brasileiros, esses apelos não arrefeceram. Ao invés disso, em
apenas 10 dias uma grande variedade de atores já começou a acomodar-se às novas
condições políticas. Um efeito deletério da expansão dessa tendência de normalização
é que ela tende a obscurecer, ou mesmo ocultar a dura realidade: nas condições atuais,
discursos e intervenções antidemocráticas, autoritárias e violentas não serão
exclusivamente encenados por atores estatais, mas sim por forças agora autorizadas
do tecido social e institucional. Exemplo disto é a série de ameaças e ataques à
“ideologização da educação”, que desde 28 de outubro tiveram como alvo instituições
acadêmicas e do ensino médio e que sido noticiados nacional e internacionalmente.
Estão preparadas e habilitadas as instituições de defesa dos princípios constitucionais
e da democracia a responder com agilidade a essa violência e ameaças de caráter
errático, vindas de todos os quadrantes? Como esperar que essa resposta institucional
seja consistente e eficaz quando há setores aparato jurídico explicitamente alinhados
com a cruzada anti-gênero e suas muitas traduções.15

Portanto, mesmo em luto, não podemos deixar de nos preparar.

1 Sonia Corrêa é co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy


Watch/SPW). Hoje coordena um Projeto Latino Americano de Pesquisa sobre Políticas
Antigênero na América latina.
2 Reexistir é uma ressignificação da palavra resistir. Foi veiculada nas redes sociais nas últimas
duas semanas e sua invenção é atribuída ao diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, que
resistiu bravamente à ditadura militar.
3 Ver seção 7 do relatório “Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro”, de
autoria de Isabela Oliveira Kalil e sua equipe da FESPSP.
4 Ver Mito vs. Realidade - Avaliando a Resposta Brasileira ao HIV em 2016 (ABIA, 2016); e Aborto
em debate na Câmara dos Deputados (Cfemea, Ipas e SPW, 2016).
5 Este ensaio não teria sido possível se não fosse pelas descobertas citadas acima, resultantes
da pesquisa sobre formações de extrema-direita recém-surgidas no Brasil, conduzidas por
Isabela Oliveira Kalil e seu grupo (na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).
6 Penso, por exemplo, que a chegada de Sissi ao poder por efeito de uma manifestação popular
de 35 milhões mobilizou muito criativamente a imaginação de forças conservadoras e autoritárias
ao redor do mundo. Um caminho “democrático” e muito mais palatável para chegar ao poder do
que golpes of quarteladas.
7 Ver artigo de David Leonhard sobre a Hungria no New York Times.

8 Segundo Mbembe: “O capital financeiro alcançou sua hegemonia no mundo ao incorporar o


cerne dos desejos humanos e, no processo, transformando-se na primeira teologia secular
global. Fundindo os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseou dogmas
incontestáveis que as formas modernas do capitalismo relutantemente compartilharam com a
democracia desde o período do pós-guerra - liberdade individual, competição de mercado e o
papel da mercadoria e da propriedade, culto da ciência, tecnologia e razão… Em sua essência,
a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro”.

9 Ver artigo de Eliane Brum publicado no El País.


10 Ver BROWN, Wendy. “American Nightmare”, In: Political Theory 34 (6): 690-714 (2006).

11 Membros do Partido Socialista francês, grupos de base de esquerda na Itália e o ex-Presidente


Rafael Corrêa, primeiro político de alto nível a atacar publicamente a “ideologia de gênero”, em
2013 no programa de TV semanal em que teve interações diretas com a audiência.
12 Linguagem usada para a comunicação entre grupos de pessoas que falam diferentes línguas.
13 Limites também podem dificultar a agenda de segurança pública de Bolsonaro, porque alguns
de seus itens, tais como menos restrições ao controle de armas e expansão do
encarceramento, exigirão reformas legislativas que serão judicialmente contestadas.
14 O “Manifesto à Nação: Brasil para os brasileiros” contém as seguintes propostas para o
próximo governo entre outras prioridades estão: as diretrizes para a educação estabelecendo
que as políticas devem se concentrar no desenvolvimento tecnológico, basear-se no "mérito" e
nos princípios da civilização judaico-cristã. O documento apoia as propostas de movimento
“Escola sem Partido” e a proibição da “ideologia de gênero no sistema público de ensino”.
Também apoia a diminuição de universidades públicas e da pesquisa, para canalizar recursos
para o ensino básico e técnico universal.
15 Ver “Brasil: Educação e Gênero sob ataque”, no SPW.

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