C') Este trabalho contou com a participação integral da psicanalista Maria Marta Assolini. esde as
primeiras fases de estudo e reflexão, até a elaboração do texto definitivo, sua contribuição foi .cisiva, na
forma de sugestões, referências teóricas, críticas, esclarecimentos e uma total disponibilade para conversas
amistosas e exigentes, sem o que "O desejo da realidade" não teria passado de na vaga intuição para mim. A
ela este texto é dedicado.
363
aquela capaz de assegurar a sobrevivência do corpo - último reduto que con segue se
opor à onipotência do pensamento - enquanto o engodo da satisfação alucinatória é logo
denunciado pelo próprio corpo, que continua a enviar sinais de desconforto e/ou alarme
até que algum outro objeto venha ocupar o lugar do objeto criado pelo psiquismo em
sua tentativa de auto-suficiência. A este outro objeto capaz de aplacar o corpo
chamamos objeto real, ainda que o psiquismo precise de muito tempo e repetidas
provas da realidade até diferenciar um do outro. Aqui, temos uma noção da realidade
muito próxima da concretude: real é aquilo que fala ao corpo, prazer capaz de aplacar a
carne, ameaça capaz de destruir a vida ou mutilar. danificar, modificar essa nossa
"morada temporal" -, única morada do psiquismo. freqüentemente subestimada por uma
certa' 'onipotência do pensamento psicanalítico" pós-freudiano.
, .Mas a prova do corpo não pode ser a única prova dos noves da realidade, uma vez
que para além da realidade imediata vivemos a realidade de uma determinada cultura,
um campo de objetos e percepções que ultrapassa em muito aquilo que é do alcance da
carne; um vasto campo simbólico no qual prazer e desprazer vão depender de um
código compartilhado. Inclusive os prazeres vividos, aparentemente, "no corpo".
Código tão externo ao psiquismo - ainda que assumido e introjetado por ele - quanto os
objetos concretos de que o corpo se apropria para sobreviver. Assim, à prova do corpo é
preciso acrescentar a pro a do Outro, e humildemente aceitar que, como programa
mínimo de realidade - e sempre no limite -, real é tudo aquilo que o código de uma
determinada cultura aceita como tal; real é todo objeto e toda relação que a cultura a
que pertenço reconheça como tal.
Esse critério convencional, tão útil às ciências exatas, serve mal e porcamente à
psicanálise, uma vez que o próprio Freud trabalhou para destituir boa parte de nossa
confiança nos códigos compartilhados ao encontrar outras causas, outras explicações e
outras determinações para fenômenos que até então a cultura à qual pertencia pensava já
ter "enquadrado na realidade" à sua maneira. Além do mais, a psicanálise nos ajuda a
desconfiar do campo do código como prova de realidade, já que é esse justamente o
campo privilegiado da neurose, das racionalizações, das defesas que nos impedem,
individualmente mas apoiados o melhor possível no consenso, de ver o que não é para
ser visto.
Ainda assim temos de nos conformar com o fato de que o código tem o poder de
criar um campo de realidade - social ideoló ico e inclusive neurótico - e que é desse
campo que nos chegam as representações. também externas ao psiquismo, que nos
permitem uma certa confiança em que aquilo que estamos vivendo faz parte do que o
Outro aceita como realidade e portanto, é como se assim fosse.
É como se assim fosse. Uma vez que nos acostumamos a aceitar que a realidade
para a psicanálise tem um estatuto diferente do que tem para a filosofia; uma vez que
aprendemos a desconfiar da relação necessária entre realidade e saúde, e encaramos a
superadaptação às exigências da realidade como produto da ação das defesas neuróticas
que inibem a curiosidade a capacidade de inves-
364
IÇãdO e .d.e insubordinação - derivadas da curiosidade sexual infantil -, podes a
mlt~r recuar ~té esse ponto como' 'programa mínimo" para a definição do n~o social
da realidade .. D~sde que não se perca de vista o limite da carne: pois uem pode
recu~a~ o cn~éno do Outro como exigência da realidade e se dispor iorrer como
sujeito social em nome de alguma outra experiência de realidade isolamento dos
místicos, de alguns poetas, de alguns revolucionários - e n por isso estaremos
seguros de poder rejeitar essas experiências como menos is em função de seu desvio
quanto ao código. Mas não se pode desatender alrnente os critérios do corpo sob
pena de morte - e a morte é o fim de ilquer possibilidade.
Lua.
Por tudo isso, nenhuma humildade por parte do analista diante daquilo que real
para seu paciente é demasiada. Como o criador da psicanálise, devemos ber negociar
na moeda do país que estamos visitando, I que não é especificaente o país da neurose
ou da psicose - é o reino do inconsciente. Para além I onipotência do pensamento
existe o pensamento e sua potência, cujos limites
365
onipotência do pensamento, temos de admitir que todo o resto do que pode ser ou não
"real" está aí para ser redefinido por cada um que queira se aventurar - como Freud - a
enxergar e agir ultrapassando as fronteiras do que estamos acostumados a convencionar
como realidade.
II
366
dose de confiança no real, uma certa quantidade de experiências de gratificação que
permitam esperar que esse lugar externo ao psiquismo para onde se espraia a "fome do
mundo" seja um lugar de onde pode vir alguma espécie de prazer e alguma espécie de
confirmação, de aplacamento, pelo menos temporário, de minhas indagações. É quando
a realidade da nossa experiência é de certa forma amistosa, quando a realidade cede ao
acordo que o desejo faz com suas exigências, que a fome do mundo é sentida como
antecipação feliz, afirmação do sujeito que
di posso
ao dizer' 'eu quero" está também izen o eu d " ou, pe o menos,
" eu I "
acho que posso".
Quando o real é hostil, lugar de privação e frustração permanentes, tudo isso
muda, e nos deparamos com a ameaça constante de afrouxamento dos vínculos e dos
investimentos do Eu em relação à realidade: é o que se pode chamar psicose da miséria.
IlJ
É a partir desse fracasso que o psiquismo desenvolve recursos para fazer a mediação
necessária entre a pulsão e a satisfação parcial da pulsão - recursos a que chamamos
Princípio de Realidade. É então que se introduz a experiência do tempo, já que a psique,
regida de acordo com os processos primários, vive uma espécie de atemporalidade, de
simultaneidade entre a manifestação da necessidade e a representação do objeto da
satisfação. É com o fracasso do Princípio do Prazer que surge a possibilidade de este
recém-chegado ao mundo se tornar sujeito de uma história, que será a história das
tentativas que ele fará para encontrar satisfação substitu tiva para a satisfação
alucinatória: a história dos embates do indivíduo com a realidade e das múltiplas
enunciações do desejo, que só são possíveis se referidas aos objetos do "mundo real". E
aqui não interessa se o psiquismo percebe esses objetos "corretamente" (já vimos que
nunca os percebe de maneira totalmente "realista"), uma vez que o que nos importa é a
realidade psíquica, resultante da composição possível entre as demandas do prazer e as
imposições da realidade externa. Importa que a representação desses objetos tenha algum
apoio na realidade, que se sustente minimamente diante da prova do corpo e da prova do
código. as provas da realidade que nos interessam.
367
Assim, podemos dizer que todo sujeito é sujeito de um desejo, ou melhor, todo
sujeito é sujeito porque é desejante - e esse vínculo é fundante, já que sujeito, realidade (da
qual o tempo faz parte inegável) e desejo são paridos a partir do mesmo evento: o fracasso
do Princípio do Prazer, primeira experiência de corte na unidade imaginária mãe-criança, ou
mundo-criança, ou, ainda, na unidade imaginária entre a necessidade e sua imediata
satisfação.
A decepção com a satisfação alucinatória obriga à introdução da realidade para o
psiquismo.' e a realidade cria o desejo em dois sentidos: primeiro, porque é do fracasso
dessa satisfação imediata que o desejo se manifesta enquanto tal. Enquanto não existe
demora, não existe corte, não é possível reconhecer o de ejo. Seguir desejante é assim, para o
sujeito, ao mesmo tempo condenação, signo de sua expulsão do paraíso, e condição de sua
existência, já que não desejar o remeteria de volta á situação primitiva de não ser sujeito,
indiferenciação anterior à esta separação inaugural que nos faz sujeitos de uma história
pessoal e intransferível.
Em segundo lugar, a realidade cria o desejo porque é dela que nos chega a percepção
dos objetos parciais substitutivos para a demanda absolutista da pulsão; objetos que
permitem que o desejo se destaque da pulsão e ganhe uma fala (a pulsão é muda), e ao
mesmo tempo aliviam o sujeito da pressão dessa demanda absolutista destinada ao fracasso.
A realidade cria o desejo do mesmo modo (e não é o mesmo processo?) que se pode dizer
que uma mãe cria seu filho, oferecendo a ele uma fala, seu próprio desejo (com o qual a
criança de início se identificará) e os recursos de satisfação que lhe permitam crescer e
multiplicar por sua vez seus próprios recursos.
É com a introdução do Princípio de Realidade que o sujeito desenvolve consciência,
atenção, memória, discernimento, pensamento e ação! 3 Ao mesmo tempo, são esses recursos
psíquicos que criam a realidade na qual este indivíduo particular irá viver, realidade que não
é simplesmente um dado exterior ao psiquismo e imposta em bloco a ele (este sim o "real
impossível" a que se refere Lacan), mas recriação permanente do sujeito a partir de cada uma
de suas intervenções concretas e sobretudo simbólicas e simbolizatorias . O sujeito não se
apropria simplesmente do código posto à sua disposição pela cultura, anterior à sua entrada
em cena. Ele ré-simboliza continuamente, interfere continuamente no código. As chamadas
"faculdades mentais" enumeradas em "Os dois princípios ... ", de Freud, representam um
enorme ganho de liberdade para o sujeito que deixa de estar condenado ao recalque como
único recurso para evitar desprazero Memória, atenção, discernimento e o grande herdeiro da
atividade alucinatória que é o pensamento permitem que o psiquismo não tenha mais de
simplesmente recalcar toda a representação que é fonte de desprazer, e assim possa dis tinguir
em que circunstâncias uma representação pode trazer prazer, desprazer ou ser neutra nessa
questão. Interferir nessas circunstâncias, reinterpretá-las, relativizá-las ou até mesmo alterá-
las concretamente quando possível é interferir no código, ré-simbolizar o real. Viver uma
história pessoal que não seja simplesmente repetição do já vivido antes pelos que nos
precederam.
368
( ... ] Aquele que começou a perceber a magnificência da coesão universal e suas
leis imutáveis, perde facilmente seu próprio, pequeníssimo Eu. Absorvido pela
admiração e possuído de uma verdadeira humildade, esquece com demasiada
facilidade que é por si mesmo uma parte daquelas forças cuja atuação o
maravilham e que pode tentar alterar, na ~~dida de suas energias pessoais, uma
pequeníssima parte do cu~so necessano do ~undo, deste mundo onde o pequeno
não é menos maravilhoso nem menos Importante que o grande. 4
Há uma distância entre a onipotência do desejo, que pretende criar um mundo
próprio à sua inteira conveniência, e o poder de modificação do Eu s~bre a realidade
sinal de potência e saúde do ego. Distância marcada pelas sucessivas transformações
por que este sujeito teve de passar. movido pela aspiração de "encontrar uma realidade
na qual o prazer seja possível". S
IV
369
parcialmente para incorporar o(s) fato(s) novo(s). 6
Nesse caso, se o sujeito por algum grande azar não for capaz de promover a
ilusão de estar reencontrando a Europa de seus pressupostos, corre o risco de voltar
como se não tivesse ido: o que ele foi (re)encontrar não estava, e o que encontrou não
estava investido de afeto, não era a Europa dos seus desejos.
Em segundo lugar, lembrando a dificuldade de Freud em visitar sua amada
Roma, é ilusão pensar que o objeto mais desejado seja fonte de expectativas de puro
prazer. É bem conhecida a interpretação que Freud fez de suas dificuldades em pisar o
solo romano: aquilo que representava para ele a experiência mais desejada era também
fonte de maior angústia justamente por seu enlace com o aspecto recalcado do desejo -
superar seu pai na rivalidade edipica. Realizar um grande desejo pode ser, portanto, uma
tarefa perigosa para a consciência, carregada de ameaças arcaicas e causadora de
grandes angústias. No entanto, vencida essa angústia (quando é possível vencê-la), não
há felicidade maior do que a realização de um desejo infantil - e isso Freud também
pôde constatar quando, enfim, visitou Roma ...
Por fim, talvez devêssemos dizer "o que eu mais quero é conhecer a Europa", já
que o desejo aponta para um outro lugar: o lugar da sua incansável repetição. Então, o
que mais se deseja não é ir à Europa, mas desejar ir à Europa e seguir desejando, seguir
sendo sujeito de um enunciado que aponta para algum objeto real, reconhecido pelo
Outro e que pode representar a reafirmação repetitiva do desejo no campo da realidade.
O que mais se deseja é seguir sendo sujeito de um desejo que possa se enunciar, ter a
falta mas também o significante, já que o terrível é a falta sem um significante que
pareça lhe corresponder - e assim sucumbir a ela. Terrível é a perplexidade de se
perguntar: o que eu desejo?, que é o mesmo que desconhecer - quem sou eu? -, já que
desde a origem o sujeito se identifica pela sua particular cadeia de significantes, sua
coleção particular de representantes da falta, tanto mais asseguradora quanto mais
referida ao campo da realidade a partir do qual também o Outro o reconhece e o
legitima, reconhece os objetos (secundários) do seu desejo. É ao reconhecer esses
objetos como desejáveis também no campo do código que o sujeito reafirma
narcisicamente a sua existência como alguém capaz de expressar o que também é
desejável para o Outro. Afinal, nunca é demais lembrar, com Lacan que todo desejo é
desejo-dodesejo-do-Outro _8 no limite, e sempre no limite, já que entre a abstração de
que a teoria é capaz e a maneira como o desejo se apresenta à consciência vai uma dis-
tância tão grande quanto a distância entre o recalcado e o permitido. Distância que só se
revela pequena depois de transposta.
v
Se a realidade, o desejo e o sujeito são fundados a partir do recalque que
acompanha o fracasso do Princípio do Prazer, vale a pena especularmos um pouco
sobre a natureza do que é recalcado.
370
Segundo Freud, o que é prazer para o inconsciente é desprazer para a consncia. O que
eu mais penso que desejo talvez seja ir à Europa, mas este desejo já á no lugar de um
outro, substituindo com algum êxito aquilo que não pode se oressar. Nossa contradição
fundamental é que a busca do prazer seja regida tamente pelo Princípio menos apto a
realizá-lo, e que a manifestação das demdas regidas pelo Princípio do Prazer tenha tanta
capacidade de suscitar desizer à consciência.
Pois se o Princípio do Prazer busca a descarga imediata de qualquer excião - e à
recordação deste percurso que vai da carga de excitação (desprazer) à I descarga
(prazer), chamamos desejo 9 - isto equivale a dizer que busca um ado de não-tensão, de
não-desejo, de repetição de um eterno mesmo. Freud, iois de muito se indagar sobre essa
tendência do psiquismo à repetição, coniu que o misterioso objeto primário do desejo,
nunca expresso diretamente -que recalcado desde a introdução do Princípio de Realidade,
io objeto perdido 'a a consciência mas terrivelmente persistente no inconsciente, é um
objeto aginário representativo de um estado de plenitude e de vazio. Capaz, no imagirio.
de conduzir o sujeito cansado das tensões de carga-e-descarga da vida, de lta a um lugar
de repouso onde ele de fato nunca esteve: lugar de plenitude e liferenciação que, sendo
domínio do Princípio do Prazer é assim mesmo - e r isso mesmo - domínio da Pulsão de
Morte.
O caminho da satisfação alucinatória imediata é portanto recalcado não s6 rque
fracassa enquanto possibilidade de satisfazer o aspecto orgânico da pulsão o seio
alucinado não mata a fome - mas sobretudo por ser um caminho, uma :leia associativa
que conduz á pior das angústias, á de aniquilamento do sujeito, lu zero do desejo -
fantasia primária da fusão com O objeto total e fim das rturbações vitais.
Essa fantasia equivale a uma fantasia de morte, e se não é a representação da irte do
corpo (que não conhecemos) é certamente a morte do sujeito retorno à gem
indiferenciada, a um lugar onde as psicoses nos sugerem que fantasias de testo e morte se
equivalem.
:~~~ur5,o p~ra evitar desprazer, mas não para proporcionar prazer. O fun~o-
d pSlqUICO,. marcado pelo recalque fica para sempre dividido aceitando e ~san
o.a~ condições d.o Princípio de Realidade, aceitando e recus~ndo os pra ~S parcrais ~ue a
realidade lhe oferece e permite, recusando e insistindo na ~anda de satisfação absoluta,
gigante temporariamente imobilizado no inconst~, mdas q~e pode a qualquer momento
despertar, como lembra a poeta li a
leito a parxão: "é uma fera que hiberna - precariamente" P 1
f só . • ara aca mar
. era s eXI~te um rec.u~so eficaz - o prazer, algum prazer. É a realidade com
' ~ob:es objetos parciais que vai oferecer ao sujeito possibilidades de razer
tltutlvas do prazer alucinatório e impedir que o campo do d . .~
, I PI ~ d esejo sela mun-
pe a u sao e Morte e seus' 'equivalentes em vida" _ incesto, indiferen-
371
Lld':rdU. rl.;:';:'llll LUlllU d lUL UU UId. Cl1J UV.> apaL..1,5Ua..1 11111H1UaIJI"'-U'-"'- U"'-pl.J1J UI.... ~11U.
noite de insônia em que ficamos entregues às nossas piores fantasias - e qualquer copo
de água, qualquer escova de dentes parece ter a capacidade de recriar um terreno
protegido contra a morte que havia dentro de nós -, a realidade tem um certo poder de
salvar o ego da Pulsão de Morte. Um certo poder, isto é, nos casos em que a realidade
oferece gratificações capazes de sustentar os investimentos feitos em sua direção.
Por fim, é bom lembrar que, para além do m!nimo necessário de recalque, quanto
mais recursos o sujeito tiver para obter prazer sem ter de recalcar todas as
representações regidas pelo seu Princípio maiores suas possibilidades de gozo, já que,
primeiro, seu desejo não é de leite, mas de plenitude; segundo, o desejo nunca se
conforma totalmente com os limites impostos pelo Princípio de Realidade. É imediato
evocarmos a experiência do gozo sexual carregada de fantasias mesmo numa relação
sexual' real", e a experiência de gozo presente no ato da criação poética, por exemplo,
em que as fantasias se aliam aos recursos secundários da psique para "inventar
realidades" capazes de proporcionar um acréscimo de prazer àqueles que o mundo
oferece. Estou relacionando aqui a experiência do gozo ao sentimento de onipotência e
de extravasamento dos limites do ego que acompanham essas experiências - para as
quais o sofrimento (também presente) não se constitui necessariamente em obstáculo.
Terceiro: nem tudo o que, no que se refere ao desejo, é prazer de repetição, está a
serviço da Pulsão de Morte. A repetição é a insistência do desejo não apenas em se
realizar plenamente mas em se expressar, em ser reconhecido pelo Eu .12 Se o desejo se
realizasse plenamente no sonho, por exemplo, não se repetiria de um sonho a outro. O
que se realiza no sonho e com isso proporciona inegável prazer é a expressão
(disfarçada) do desejo. "O desejo é indissociável de sua significatividade", escreve
Moustapha Safouan." de modo que significá-lo é também, de certa forma, realizá-lo.
Mas só de certa forma - tanto que ele se repete.
O que estou especulando aqui, e que talvez possa nos esclarecer alguma coisa a
respeito do que estou chamando de "desejo da realidade", é que a satisfação parcial do
desejo possibilitada pelos objetos secundários" disponíveis" no campo da realidade é
indissociável de um mínimo de satisfação alucinatória. Afinal, o que seria do prazer
obtido "na real" se até mesmo sua fruição mais palpável e mais adaptada aos critérios
do código social não se comunicasse sempre com o onírico , não fosse dotada de um
poder de sonho fugidio capaz de incrementar esse prazer e imprimir-lhe as marcas do
gozo? E quando escrevo poder de sonho fugidio, é para frisar que esse poder não é total;
perseguir isto que nos parece sempre ao alcance, mas nos foge constantemente é a
condição que nos permite continuar desejando.
Continuar desejando; o que significava continuar vivendo enquanto organismo e
enquanto sujeito diferenciado. A manutenção do desejo é a manutenção de uma fala. O
recalcado não quer se esgotar. Quer se repetir, e se repete inclusive nos traços que
persistem iguais entre as várias escolhas, aparentemente tão diversas, que fazemos pela
vida. Outra vez Safouan: "o traço que se repete no ob-
372
jeto secundário, independente de suas características gerais, faz com que [este objeto]
seja para o desejante um significante do objeto primário" - e também, eu diria, um
significante da identidade do próprio sujeito. O que nos remete a
elson Rodrigues: "O que seria de mim sem as minhas obsessões?".
Então, para além das considerações sobre a "mais-repressão" ,14 que associa todo
o prazer às marcas da angústia, há uma parte do que chamamos angústia de prazer -
essa que nos faz apelidar o orgasmo de "pequena morte" - que é a angústia ante a
ameaça (imaginária) de esgotamento do desejo. Aqui, o desejo-de de-ter-um-desejo-
insatisfeito a que se refere Lacan (a respeito da histérica}'> pode ser generalizado como o
desejo de se manter um significante para a falta e, no limite, para o ser. Aqui. a angústia
de prazer é também medo do vazio que repre sentaria a plena realização do desejo. vazio
que experimentamos parcialmente depois da obtenção de alguma coisa pela qual muito
se lutou. São os vencidos que idi":11Í7:lm o sabor e :l embriggu1'2 da vi oria. como
escreve a poeta Ernily Dickinson: "Vencer parece mais doce/ Àqueles que nunca vencem
,1elhor saboreiam um néctar / Os que na sede esmorecem' , .16
Assim também, estar diante da possibilidade de realização de um desejo é motivo
de maior alegria do que tê-lo já realizado. A mesma Emily. poeta das grandes privações
e das grandes renúncias. expressa o conhecimento deste fato da vida psíquica em outros
versos: .. Exaltação há de ser a partida/ de uma alma campesina ao mar Além do
casario, além da costal Ta eternidade, mergulhar. Criado entre montanhas, como nós/ Já
entende o viajante agora/ A divina embriaguez dessa légua/ primeira, mar afora?". 17
373
giados doVIIIdesejo. A começar pelo Outro e seu misterioso desejo - e o Outro aqui é o
fundamentado na pessoa da mãe ou seu substituto no amor da criança. É esse Outro de
Aqui deveríamos
quem a própria sobrevivência nosfísica
voltardaimediatamente
criança depende para a curiosidade
- ou, antes disso,sexual da poder
que teve criança.
originada
sobre nesse
o próprio mesmo
início de suadesejo de posse
existência - que'em relação
'torna O euao da Eu materno.
criança Mas ,antes
pensável' há um
, no dizer
de outro
Piera objeto real. 18
A ulagnier. também externo ao psiquismo, que se impõe ao Eu
da criança de de o oi icio:
Ao oferecer seio ainda antes crque crioac criança
r t-' • Corposeja
que capaz
a m~e investe, manipul~,
de associar seu
deseja e sign~·lc!!.
desconforto à fome, antes Cor que ela seja capaz e ~ ontecern
de representartodas as mantfestaçõe~
o seio como objetode n:cess~-
de seu
desejo, a mãe antecipa alguma coisa para a criança. Ao supor que o pequeno recém-
dade. de desconior o e ren QUe darão O igern ao desconforto e a tensao PSlquica. mas
nascido" quer alguma coisa" , a mãe antecipa o Eu da criança 19 e lhe oferece o primeiro
ã
375
374
Enquanto corpo-praze. atrai corpo é o primeiro elemento da realidade que ivel e
para si e que orn _ r do que necessário o investimento que faz o Eu c real dos
chamarei dirner; : objetos. 21
Mas, se eu havia situa o róprio corpo como objeto de uma relação arnbivalent~, é
porque ele não e si:::p e mente lugar e fonte de prazer. O corpo sofre; e, s~ a cr.lança se
sente capaz e minar parcialmente o prazer de seu corpo, nem f~r ISSO e ~~paz d~
~ominar a r e fazê-la cessar. A dor, a doença, o desconforto
separa~ nar~l~lCamen e o erro de seu corpo: o corpo que sofre é um corpo
que a crrança rereira, corpo au ônorno que lhe proporciona uma experiência de des~razer
~o qual ela não pode se ivrar. Odiar o corpo que sofre é complicado _ a criança . sabe"
que depende de exis ir "dentro" desse corpo para existir como objeto do amor materno.
E pela vida do sofrimento corporal [ ... ] que o corpo se imporá ao Eu como obje
o real e exterior, não redu ivel a um simples' 'ser psíquico", dotando de um entido
particular estes dois qualificativos que são "real" e "exerior··. ~
Ainda resta dizer que a curiosidade e a investigação sexual não se esgotam com a
possibilidade da prática sexual concreta. Pelo contrário, assim como alguma liberdade no
exercício da sexualidade é condição da sublimação, a maior liberdade imaginativa e
investigativa é capaz de aliar-se à atividade sexual multiplicando as possibilidades de prazer
ali onde os corpos, mesmo explorados até seu limite, podem nos dar tão pouco - e, se
explorados para além do seu limite estão arriscados à destruição e à morte. a última fronteira
da perversão.
A atividade sexual propriamente dita não é simplesmente uma ocupação do corpo. É também
linguagem. investigação. criação de significados, troca simbólica; também é. para além do
aspecto orgânico da pulsão - e a pulsão faz o limite entre o orgânico e o psíquico - herdeira
legítima do desejo de saber. Investigação. no próprio corpo e no corpo do outro, sobre a falta,
o desejo alheio, os mistérios do prazer. os limites do ego e da consciência - limites entre a
fantasia e a realidade. Investigação jamais satisfeita. que pede retorno e repetição - e se há um
aparente esgotamento do interesse sexual por um longo período da vida de uma pessoa
devemos pensar antes em recalque ou depressão do que em saciedade. Investigação que é
condição, mas também conseqüência do amor: "Nessuna cosa si puó amare né odiare si prima
no si ha cognition di quella", escreveu Leonardo da Vinci, o investigador. 28
:: sexual manter-se parcialmente livre das exigências da realidade r outro, fica evidente que é
nas fantasias sexuais, mais sub-
metid do Princípio do Prazer, que se engancham a onipotência
infanti e o arosismo. O que tem uma vantangem e um preço,
(16) Extraídos de Uma centena de poemas, trad. Aila de Oliveira Gomes. São Paulo, Edusp, 1985, p.
39 (poemas 67 e 76). 380
(17) Ibidem.
(19) Ibidem,p.96.
(20) Ibidem, p. 98.
(21) Ibidem, p. 100.
(22) Ibidem, p. 101.
(23) Freud, "Os dois princípios ... ·· in Obras completas, v. II, p. 1639. "A decepção ante a ausência de
satisfação esperada motivou logo o abandono desta tentativa de satisfação por meio da alucinação, e para
substitui-la o aparelho psíquico teve de decidir-se a representar a circunstâncias reais do mundo externo e
tender ti sua modificação real" (grifo meu).
(24) Freud, "Uma recordação infantil de ... ". in Obras completas, v. 11. p. 15 (25)
Idem, ibidem, p. 1617.
(26) Idem, ibidem, p. 1611.
(27) Extraido de Poemas de W. B. Yeats, trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo,
Art Editora, 198 ,p. 87. .
(2 ) Freud, "Uma recordação infantil", in Obras completas. p. 15 3.
9 Freud, "Os dois princípios ... ·" in Obras completas, p. 1640. "À conseqüência de tudo isto, se
estabelece uma relação mais estreita entre o instinto sexual e a fantasia por um lado. e os instintos do eu e as
atividades da consciência, por outro. Esta relação se faz muito Intima. tanto nos individuas são como nos
neuróticos [ ... J. A ação continuada do auto-erotismo permite que a satis fação em objetos sexuais imaginários,
mais fácil e rápida, seja mantida em substituição da satisfação com objetos reais, mais trabalhosa e retardada."
Aqui eu acrescentaria que a satisfação sexual imaginária não se mantém apenas em substituição ao objeto real.
mas também em acréscimo. na presença dele.
(0) Piera Aulagnier, in Os desunas do P'~:c'_;:? -