SÃO PAULO
2008
ARTHUR VIEIRA DE MEDEIROS
Orientador
SÃO PAULO
2008
1
Resumo: Observando a complexidade da cultura, que se expressa nas inúmeras formas
de o homem estar no mundo, perceber, falar, produzir, agir, pensar, esta pesquisa busca
possibilidade para o surgimento de novas perspectivas para uma verdadeira ética que
brote da imanência da produção efetiva do real. Passando por diferentes temas como o
caminhos da linguagem até chegarmos às formações sociais, temos por fim uma análise
fazendo com que invista na reprodução desta sociedade, como força que dá vida à
cultura.
2
Abstract: Noting the complexity of culture, which is expressed in the innumerous forms of
man being in the world, understanding, speaking, producing, acting, thinking, this research
investigates the assumptions of common-sense and good-sense which constitute the world as
it is, in an attempt of demystifying what is conceived as "natural", opening the possibility for
the emergence of new prospects for genuine ethics that outbreak out of the immanence of the
effective production of the real. Passing through different themes such as the concept of
nature, space and time, perception and environment, crossing the paths of language until we
which provides the elements for a deep understanding of the mode of action of this system
and how the desire of man is captured, so that he invests in the reproduction of this society,
3
Fico contente em poder agora dizer, com humildes palavras,
4
Sumário
Introdução...........................................................................................................................8
O olhar da ciência.........................................................................................................................14
ESTRUTURAS DISSIPATIVAS...................................................................................................15
MECÂNICA QUÂNTICA.............................................................................................................16
TEORIA GAIA..........................................................................................................................17
Ciência Clássica.............................................................................................................................19
A Natureza.....................................................................................................................................24
Tempo e Espaço..................................................................................................................27
AUTO-ORGANIZAÇÃO E AUTOPOIESE..................................................................................33
Evolução.........................................................................................................................................41
O Homem em Formação............................................................................................................45
Mente ativa....................................................................................................................................49
O homem em ação.........................................................................................................................50
A Dimensão da Linguagem.......................................................................................................54
A Socialização..............................................................................................................................62
5
Segunda Parte – O Homem em ação ou de como o mundo é produzido.......................72
A Produção do Mundo................................................................................................................73
A Sociedade Capitalista..............................................................................................................78
As bases do capitalismo.............................................................................................................81
O Estado e a Política.................................................................................................................100
A micropolítica..........................................................................................................................107
A Lógica da Absorção...............................................................................................................110
Conclusão...................................................................................................................................115
Bibliografia................................................................................................................................123
6
“Tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros,
Marcel Proust
“Não fique com os fanáticos à espera das coisas que não acontecem antes que nos acabemos. Vem
comigo! A vida está acima das horas que vivemos. A vida é uma aventura!”
Paulo Martins,
de Glauber Rocha.
“O imperador marchava na procissão sob seu lindo abrigo, e todos que o viam na rua e pela janela
exclamavam: ‘Realmente, a nova roupa do imperador é incomparável! Que longa cauda ele possui! Como
ela lhe cai bem!’ Ninguém queria dar a perceber que não via nada, pois assim seria um incapaz ou tolo
demais. Nunca as roupas do imperador foram tão admiradas. ‘Mas ele não está vestindo nada,’ disse por
7
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é um labirinto que tenta construir caminhos possíveis para a criação
de mais caminhos, por aqueles que abençoam a dolorosa empreitada de desconstruir até
“Natureza”, não como uma investigação enciclopédica, mas como a superfície mais
concordar até certo ponto. Seria assim, se supuséssemos, como é de costume, que existe
uma diferença entre a prática e a teoria, sendo a escolha desta última uma mera questão
conceito, ainda enquanto percepção de mundo. E é contra esse lugar que este escrito se
coloca: contra, em última instância, a distância que existe entre a matéria e a idéia.
sem mergulhar nas investigações teóricas, que fazem ver as relações entre as coisas e até
coisas que jamais veríamos sem o uso deste outro sentido que é o pensamento. Isso
porque nossa própria gênese como homens determina a priori o que iremos ver e fazer –
e até quem iremos ser. “Para conhecer-se a si mesmo é preciso também conhecer as
1
influências exteriores que o hão modelado, estudar a história...” Acrescentaria ainda a
um visível plano de consistência. Processo unívoco que se expressa por formas diferentes
1
RECLUS, Eliseé. O Homem e a Terra, Livro I
8
distância para o entendimento é uma arte. Reconstituir nossa maneira de perceber é vital.
E o pensamento, como órgão dos sentidos, tem um papel crucial no rearranjo de nosso
espacialidades do presente como objeto empírico, mas criar condições para geografias do
futuro. E que tarefa poderia ser mais prenhe de amor? Novas formas de habitar, de viver
Porém, não podemos esquecer que é um movimento que não tem um lugar a se
Não podemos dizer o que é – estaríamos traindo a própria força da Natureza. Trata-se de
imperceptíveis, como a linguagem. Abrimos assim, um campo de batalha que não possui
sem esquecer que neste se inclui também nós mesmos. Para tanto, constituir grupos, em
nosso organismo, forças que nos habitam, e também no exterior de nossa pele. Trata-se
Não é simples perceber estes agenciamentos que nos constituem e que nós
Virilio, em seu livro O Espaço Crítico, faz uma análise fundamental sobre o cinema,
entendendo a tela de projeção como uma janela. Uma janela que introduz outras
9
dimensões espaciais. Talvez o filme de Reggio seja uma obra em que podemos perceber
respeito ao cotidiano, distância esta que só é interessante para o voyeur, porque sabe ele
que faz parte de tudo aquilo que vê. O estranhamento que surge desta experiência é o que
estabelecer novas conexões, de fluir pelos poros das barreiras do normal. É neste sentido
deste ensaio. Uma janela que nos apresenta o mundo em que vivemos de uma maneira
Questão de método
com uma metodologia. Inclusive, foi um desafio ter construído uma análise sem possuir
Deveria ser claro que mais do que um lugar a se chegar, o método consiste num
debulhando o objeto de estudo definido, mas também preparando a percepção que levará
10
metodologia escolhida), o que muitas vezes não permite que certas coisas venham à tona,
A recusa por um método, neste caso, funciona por dois motivos: primeiro por que
não temos ao certo aonde queremos chegar com a pesquisa. Em fato, cada tema abordado
constitui um objeto – podendo-se afirmar que o escrito em mãos possui vários objetos.
Cada problema abre caminho para outros, para novos e antigos que são importantes para
específico; segundo, porque aqui tentamos elaborar uma teia, um plano que dá
relações que as coisas se constituem como tais, ganhando uma identidade dependendo do
referencial. Entre os diferentes temas (ou objetos) abordados, ressaltamos as relações que
os estabelecem. Da mesma forma, esta pesquisa não é uma coisa antes de se relacionar
com o leitor, que poderá criar ou não conexões com o que aqui é apresentado,
erudição.
É por isso também, que não começaremos esta apresentação com uma análise ou
uma descrição daquilo que vemos em KOYAANISQATSI. Não por isso as refutamos.
trazem assim na mão os seus motivos. (...). É de pouco valor aquilo que primeiramente
tem de se provar.” 2. KOYAANISQATSI fala por si, e não nos é conveniente fazer uma
leitura de algo que é antes para ser visto e sentido – que poderíamos dizer perante uma
obra que não possui palavras (com rara exceção)? Tentaremos ampliar as percepções.
2
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. Cia. Das Letras. 2007. p.19
11
Primeira Parte
12
A Natureza e Seus Atributos
“Tudo muda, tudo é móvel no Universo, porque o movimento é a condição mesma da vida.
Outrora, os homens, que o isolamento, o ódio e o medo deixavam na sua ignorância nativa, enchendo-os
Para eles, o céu era uma abóboda sólida, um firmamento no qual estavam pregadas as estrelas. A Terra
era o firme alicerce dos céus e só um milagre podia fazer oscilar sua superfície. Mas, desde que a
civilização prendeu os povos aos povos, numa mesma Humanidade; desde que a História atou os séculos
aos séculos; desde que a Astronomia, a Geologia fizeram mergulhar o olhar em bilhões de anos para trás
— o homem deixou de ser isolado e, por assim dizer, de ser mortal. Tornou-se a consciência do
imperecível Universo.
Não relacionando já a vida dos astros nem a da Terra com sua própria existência tão fugitiva, mas
comparando-a com a duração da raça inteira, e com a de todos os seres que antes dele viveram, viu a
abóboda celeste revolver-se num espaço infinito e a Terra transformar-se num globozinho girando no
A terra firme, que ele pisa aos pés e que julgava imutável, anima -se e agita-se. As montanhas levantam-se
e abaixam-se. Não são somente os ventos e as correntes oceânicas que circulam em roda do planeta, os
próprios continentes deslocam-se com os seus cumes e vales, põem-se a caminhar sobre a redondeza do
globo.
Para explicar todos esses fenômenos geológicos, já não há necessidade de imaginar súbitas mudanças do
eixo terrestre, abaixamentos gigantescos. De ordinário, não é dessa forma que procede a Natureza; é mais
calma nas suas obras, modera a sua força, e as mais grandiosas transformações fazem-se sem o
conhecimento dos seres, que ela sustenta. Eleva as montanhas e enxuga os mares sem perturbar o vôo de
um mosquito.
Certa revolução que parece a queda dum raio levou milhares de séculos a completar-se. É que o tempo
pertence à Terra: renova todos os anos, sem se apressar, o seu adorno de folhas e flores; do mesmo modo,
ELISEU RECLUS
13
Não poderia ser mais preciso o pensamento do geógrafo Eliseu Reclus ao falar
sobre a Natureza. E é desta mesma posição que partiremos para compreendê-la. Donde a
constatação fundamental:
Assim, dizemos que tudo, em suas infinitas escalas, é sempre único e ainda assim,
nunca é o mesmo, está sempre se alterando e sendo alterado pelas mais variadas relações,
Tudo é relação.
Por mais que consigamos identificar unidades, todos os organismos, todas as coisas
É isso que a ciência contemporânea afirma cada vez com maior veemência.
O olhar da ciência
Sua grande reviravolta é uma mudança de foco, que ao invés de identificar objetos
passa-se para uma visão mais etérea, preocupada com o padrão. A visão do mundo como
uma máquina perfeita vai perdendo espaço para uma compreensão dinâmica, de uma
estabelecida em redes. Enfim, percebe-se que a realidade só pode ser entendida enquanto
14
padrão numa teia inseparável de relações. (...) Na visão sistêmica, compreendemos que
ESTRUTURAS DISSIPATIVAS
de compreensão, pois desde então se entende que, no caso, uma máquina funciona a
partir de uma complexa relação entre partículas que corresponde a um estado energético
conforme a energia é dissipada). Percebeu-se que sempre há perda de energia, o que leva
o sistema a atingir um equilíbrio estático, quer dizer, a se encaminhar para uma desordem
experiência mais habitual era que no mundo, os sistemas estão sempre em relação,
portanto, são sempre sistemas abertos, o que os mantêm longe do estado de equilíbrio,
sempre mantendo fluxos e mudanças contínuos. Isso quer dizer que estes sistemas
importavam energia do exterior e com isso, aumentavam sua ordem interna. Disso surge
3
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, 2006. p. 47
4
Os sistemas auto-organizáveis referem-se aos resultados de diversos experimentos realizados na metade
do século XX, que mostravam que a partir de um estado inicial qualquer, depois de um certo tempo,
emergiriam espontaneamente padrões ordenados de funcionamento, estabelecidas propriedades de relação
das partículas envolvidas.
5
A não-linearidade compreende a evolução dos sistemas que avançam para a indeterminação já que
pequenas variações iniciais podem levar a uma amplificação exponencial do “erro”, contando com diversas
soluções para equações diferenciais que envolvem sucessivas modificações temporais. A solução de
equações não-lineares é normalmente realizada por tentativa e erro, através de potentes computadores que
expressam os resultados graficamente.
15
se um fluxo térmico constante movendo-se do fundo para a superfície apenas por
entre a superfície e o fundo em que o fluxo térmico é substituído por convecção, sendo o
mel”). Esse experimento mostra como à medida que um sistema se afasta do equilíbrio,
aumentando sua energia interna, atinge um ponto crítico de instabilidade, em que emerge
um padrão organizado.
MECÂNICA QUÂNTICA
norma, onde nada é, mas tudo está em transformação6, em que, nas palavras de Capra
“(...) os componentes dos átomos, as partículas subatômicas, são padrões dinâmicos que
não existem como entidades isoladas, mas como partes integrantes de uma rede
6
A noção mesmo de próton que temos como uma partícula sólida é questionada. Pensa-se já em partículas
virtuais, em que o próton estatisticamente provável está se transformando em nêutron mais um píon
positivo e este nêutron logo reabsorverá o píon tornando-se próton que emitirá um píon neutro e assim
aleatoriamente. Mais ainda a noção de elétron que se imagina como uma partícula orbitante, mas que, na
realidade, desaparece e aparece em outra posição. Pensa-se em estados energéticos.
7
CAPRA, Fritjof, O Tao da Física, Ed. Cultrix, 1983. p 170
16
objeto quântico é um objeto que não tem existência atual. O papel do observador será o
partes.
TEORIA GAIA
Ainda devemos encontrar a Teoria Gaia, que de uma forma mais explícita
Gaia mostra que há um estreito entrosamento entre as partes vivas do planeta – plantas,
Terra têm vomitado enormes quantidades de dióxido de carbono (CO2) durante milhões
de anos. Uma vez que o CO2 é um dos principais gases do efeito estufa, Gaia precisa
bombeá-lo para fora da atmosfera; caso contrário, ficaria quente demais para a vida.
8
MERLEAU-PONTY, Maurice, A Natureza, Ed. Martins Fontes, 2006. p.152
9
Na verdade, segundo esta teoria, o planeta é considerado um sistema vivo, porém, o termo vivo, vítima do
senso-comum, causa grande estranhamento e não colabora para a visão profunda do estudo. Vivo, é antes
um sistema determinado por certas características que são encontradas também na organização planetária:
“Gaia é, em definitivo, autolimitada, pelo menos até onde sua fronteira externa, a atmosfera, estiver
presente. De acordo com a teoria de Gaia, a atmosfera da Terra é criada, transformada e mantida pelos
processos metabólicos da biosfera. As bactérias desempenham um papel fundamental nesses processos,
influindo na velocidade das relações químicas e, desse modo, atuando como o equivalente biológico das
enzimas numa célula. A atmosfera é semipermeável, como uma membrana celular, e constitui parte
integral da rede planetária. Por exemplo, ela criou a estufa protetora na qual a vida em seus primórdios foi
capaz de se desdobrar há três bilhões de anos, mesmo que o Sol fosse então 25 por cento menos luminoso
do que é nos dias de hoje.
O sistema Gaia é também claramente autogerador. O metabolismo planetário converte substâncias
inorgânicas em matéria orgânica viva, e novamente em solos, oceanos e ar. Todos os componentes da rede
de Gaia, incluindo aqueles de sua fronteira atmosférica, são produzidos por processos internos à rede.
Uma característica fundamental de Gaia é o complexo entrelaçamento de sistemas vivos e não-vivos dentro
de uma única teia. Isso resulta em laços de realimentação que operam ao longo de escalas imensamente
diferentes. Os ciclos das rochas, por exemplo, estende-se por centenas de milhões de anos, ao passo que os
organismos a elas associados têm durações de vida muito curtas. (...)
Finalmente, o sistema de Gaia é, evidentemente autoperpetuante. Os componentes dos oceanos, do solo e
do ar, bem como todos os organismos da biosfera, são continuamente repostos pelos processos planetários
de produção e de transformação.” (CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida, Ed. Cultrix, 2006. pp. 173 e 174)
17
Plantas e animais reciclam grandes quantidades de CO2 e de oxigênio nos processos da
equilíbrio e não afetam o nível de CO2 da atmosfera. De acordo com a teoria Gaia, o
calcárias (de carbonato de cálcio). Desse modo, o CO2 que estava na atmosfera vai
parar nas conchas dessas algas diminutas. Além disso, as algas oceânicas também
Quando as algas morrem, suas conchas se precipitam para o fundo do mar, onde
manto da Terra e se fundem, podendo até mesmo desencadear os movimentos das placas
tectônicas. Por fim, parte do CO2 contido nas rochas fundidas é novamente vomitado
para fora por vulcões, e enviado para uma outra rodada do grande ciclo de Gaia.
O ciclo todo – ligando vulcões à erosão das rochas, a bactérias do solo, a algas
18
Terra. À medida que (...) fica mais quente, a ação bacteriana no solo é estimulada, o que
aumenta a taxa de erosão das rochas. Isso, por sua vez, bombeia mais CO2 para fora da
Ciência Clássica
Mas como sabemos as concepções da ciência e suas categorias nem sempre foram
encontro aos dogmas da Igreja, sem por isso, ainda, atingir a própria doutrina cristã.
Petrarca, ao escalar o Mont Ventoux para admirar a vista, chegando ao cume lê uma
outro, aquilo que é ou não permitido e ensinado pela Igreja, estando esses dois lados em
conflito.
10
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, 2006. pp. 93 e 94
11
Petrarca se depara com o seguinte trecho: “Os homens vão admirar os píncaros das montanhas, as ondas
alterosas do mar, as largas correntes dos rios, a amplidão do oceano, as órbitas dos astros: e nem pensam
em si mesmos” [Confissões. X, 8, 13]. Quer dizer, se colocam em pecado.
19
dourado, cedia lugar à perspectiva e às cores que davam cada vez maior ênfase ao mundo
terreno e natural. Podemos ver claramente tais diferenças ao observarmos duas pinturas
12
http://www.accd.edu/sac/vat/arthistory/arts1304/DuccioMad.jpg (acessado em novembro de 2008)
13
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/70/Albrecht_Dürer_099.jpg
20
sobre mesmo tema, uma do século XIV, em que a doutrina cristã era soberana (fig. 1) e
outra do século XVI (fig. 2), quando nascia e se fortalecia a posição “científica”.
seria logo resfriada: a busca pelo método e a Reforma Protestante. Sobre esta última,
Nietzsche é incisivo: “Cesar Borgia, papa... Vocês entendem? Esta seria a vitória à qual,
hoje, eu aspiro. Daquele modo, o cristianismo teria sido liquidado! Mas o que ocorreu,
no entanto? Um monge alemão, Lutero, visitou Roma. Este monge, com o peito cheio de
ocorrera, a superação do cristianismo na sua própria sede, o seu ódio soube extrair
mesmo. Lutero viu a corrupção do papado, enquanto seria possível tocar com as mãos
exatamente o contrário: no trono papal não mais estava a corrupção antiga, o peccatum
originale, o cristianismo! Mas a vida! Mas o triunfo da vida! Mas o grande ‘sim’ para
tudo o que é elevado, belo, temerário!... e Lutero restaurou a Igreja novamente: atacou-
O método, de forma semelhante, porém talvez mais sutil, é uma reforma dogmática
da produção do conhecimento. Como já foi dito, a ruptura que houve com os dogmas da
Igreja não se deu, entretanto, com a própria doutrina Cristã. “Aqui compartilhamos a
crítica de Nietzsche, dizendo que se Deus morreu, ficaram ainda fortes suas
21
como Bacon, Descartes, a maneira correta de se portar perante seu oráculo, as maneiras
maiores cuidados, não apenas para que fossem verdadeiras, mas também para que não se
apresentem de forma incômoda e árida ao espírito dos homens (...)”.16 Penetrar “nos
estratos mais profundos e distantes da natureza” para encontrar “as verdadeiras marcas e
impressões gravadas por Deus nas criaturas, tais como de fato se encontram”.17 Ou, como
soma de inúmeras partes que a seu passo, se constituem por algumas relações que
compreensão do todo. Daí a máxima de Laplace: “Uma inteligência que, num instante
respectiva dos seres que a compõe, se por outro lado ela fosse suficientemente vasta
para submeter todos esses dados à análise, englobaria na mesma fórmula os movimentos
dos maiores corpos do universo e aqueles do mais leve átomo: nada seria incerto para
tal inteligência, e o futuro, tanto quanto o passado, estaria presente a seus olhos.” 18
Em suma, os preceitos que permeiam a ciência clássica são: a busca por leis
16
BACON, Francis. Prefácio do Novo Organum. Ed. Nova Cultural, 1999. p.30
17
BACON, Francis. Novo Organum. Ed. Nova Cultural, 1999. pp.36 e 37. Trechos extraídos dos
“Aforismos Sobre a Interpretação da Natureza e o Reino do Homem – livro I” números XVIII e XXIII
18
PASCAL apud MERLEAU-PONTY, A Natureza, p.142
22
o mundo é rigorosamente ordenado, permanente e estático. Do firmamento ou do mundo
suas fronteiras. Todo o empenho durante séculos (como nos mostra Foucault em As
cada parte que compõe o todo. E tendo a dúvida como princípio de investigação, a
intenção era eliminar o misticismo e os dogmas impregnados nas imagens, nas crenças,
no imperfeito, na ilusão. Ou seja, permanece uma visão de que existe uma separação
entre o mundo físico e o metafísico, e que este último contém as chaves para se
ocidental esteve por cima deste entrave. Permanece o império de Sócrates e suas
evolução de pensamentos, idéias, estamos antes buscando as evidências, para além dos
23
podem ser reencontradas em diferentes cenas, desempenhando papéis distintos. Não se
vida, mas de salientar algumas posturas que, sem dúvida alguma, apresentam-se como
pontos que não respeitam a cronologia, pontos estes que surgem quando se colocam
aqueles que se sentem ultrajados pelo senso comum e pelo bom senso.
iludir e acreditar que se trata de um processo global, de alguma maneira até teleológico
de evolução, mas de alguns apontamentos, que enquanto não estiverem cristalizados, nos
de toda a história que encontraremos diversas direções que resistem em meio aos
Spinoza, Nietzsche, entre outros que conseguiam, à época própria de cada um, elaborar
problemas e solucioná-los de maneiras mais honestas com a vida. Entretanto, como nos
mostra Guattari em As Três Ecologias, existe um ambiente que é mais ou menos fértil
A Natureza
ato.
24
Quer dizer, que a Natureza é eterna e perpétua criação, mas que só existe na própria
na produção. Não devemos nos deixar levar pela tendência de imaginar uma entidade
que se encarna sobre a matéria inerte. É preciso um esforço para entender essa
consistência que se autoproduz, sem finalidade, sem legislação, mas que apenas cria por
os dois lados de uma fita (de Moebius) sem dimensão, que não possuem existência em si,
criação. Virtual como potência infinita de criação infinita. Atual como potência receptiva
de criação. A relação entre ambas é criativa, pois o virtual não se encarna, mas se
atualiza, quer dizer, renova sua potência de criar, criando, inventando uma passagem,
enquanto o atual é a condição sine qua non para haver existência efetiva, pois é o meio
movimento perpétuo que cria incessantemente existência efetiva, dando uma coesão
àquilo que não possui existência própria, que não possui existência separada como coisa,
mas só enquanto processo relacional. “O virtual tem a realidade de uma tarefa a ser
Tudo integra a Natureza. O que tenta-se deixar claro é que a este duplo, ainda
19
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Ed. Graal. 2006. p. 299.
25
(atual e virtual, ambos reais), que possuem, de alguma forma, um caráter mais
duma conjugação de forças tensionadas que tem como essência continuar existindo.
Assim, existe como tal na conjunção entre potência e matéria, entre virtual e atual
possibilidades infinitas neste campo virtual, cunha materialmente, cria inúmeras formas e
estruturas que, cada qual a sua maneira e com sua potência de perpetuar a existência, se
máxima (que nunca chega efetivamente). Nessa tendência intrínseca de produzir produtos
em que ocorre uma dobra de realidade, atualização instantânea, algo como o rizoma
vegetal. “Ponto de indeterminação” em que não sabemos para onde um sistema irá se
relações.
26
Tempo e Espaço
temos a matéria. (nota: Neste sentido, a matéria e o sonho têm uma afinidade natural, ambos
representando um estado de distensão em nós e fora de nós) Sem dúvida, a matéria ainda não é espaço,
mas ela já é extensão. Uma duração infinitamente relaxada, descontraída, deixa exteriores uns aos outro
os seus momentos; um deve ter desaparecido quando o outro aparece. O que esses momentos perdem em
penetração recíproca, ganham em desdobramento respectivo. O que eles perdem em tensão, ganham em
indefinidamente divisível, que não se prolongará em outro instante, mas que morrerá para renascer no
instante seguinte, em um piscar de olhos ou frêmito sempre recomeçado. Bastaria impulsionar até o fim
esse movimento de distensão para obter o espaço. (Mais precisamente, no final da linha de diferenciação,
o espaço seria então encontrado como sendo esse termo extremo que não mais se combina com a
duração.) Com efeito, o espaço não é a matéria ou a extensão, mas o “esquema” da matéria, isto é, a
todas as extensões possíveis. Nesse sentido, não é a matéria, não é a extensão que está no espaço, mas bem
o contrário. E, se considerarmos que a matéria tem mil e uma maneiras de se distender ou de se estender,
devemos dizer que há toda sorte de extensos distintos, todos aparentados, mas ainda qualificados, e que
GILLES DELEUZE
27
A noção de tempo para a ciência da complexidade é diferente da noção clássica, de
que a ciência opera exclusivamente com medidas, percebemos que no que concerne ao
tempo a ciência conta instantes, anota simultaneidades, mas continua sem domínio sobre
Aqui se estabelece uma diferença que raramente é colocada quando se pensa sobre
o tempo. Para a ciência, que possui como meta última a ação, essa questão talvez não
possua tanta relevância, mas não podemos afirmar o mesmo quando investigamos a
próprio devir, imaterial, o fazer-se, o tornar-se – o que está entre qualquer instante, o
separação. Duração que é inapreensível pela medida, que não é quantificável. A analogia
melódico é apreendido para além da soma das notas e das tonalidades, enfim, para além
do próprio som; é qualitativamente percebido. “O tempo real não tem instantes” 21. Mas o
que é então que medimos? É antes o rastro deixado pela duração no espaço, uma
qualidade intensiva que se extende e que se torna aos nossos olhos seu equivalente.
20
BERGSON, Henri. Duração e Simultaneidade, Ed. Martins Fontes, 2006 – p.68
21
BERGSON, Henri. Duração e Simultaneidade, Ed. Martins Fontes, 2006 – p.62
28
Medimos apenas o desenrolamento e não o próprio desenrolar, o registro do efeito do
movimento e que também será seu símbolo. Enxergamos apenas o espaço e este sim,
será igual à totalidade absoluta da linha, pois antes de ser linha, é movimento, sendo a
linha apenas sua apresentação espacial. É uma diferença que envolve um estado
“Se estou sentado tranqüilo e um outro, afastando-se mil passos, está rubro de fadiga, é
efetivamente ele que se move e sou eu que repouso”, podemos perceber que, para além
percepção interna e produtiva de movimento. É nesta direção que aponta a duração, que é
Assim sendo, há uma condição imprescindível para que a duração exista e ela é a
a própria duração. Ela é memória, mas não memória pessoal, exterior àquilo que ela
retém, distinta de um passado cuja conservação ela garantiria; é uma memória interior
formando uma sucessão de instantes, e não uma mera modificação e interação sempre
22
BERGSON, Henri. Duração e Simultaneidade, Ed. Martins Fontes, 2006 – p.51
29
nova, que não manteria qualquer relação com os instantes anteriores e posteriores, em
que integra a ação de cada ser ou coisa que abrirá as portas para a potência criativa da
Natureza. É só assim que podemos compreender, ainda que de forma confusa e imprecisa
o que poderia ser esta criação, pois se percebemos as diferenças no espaço, é porque são
presente não designam dois momentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem:
um, que é o presente e que não pára de passar; o outro, que é o passado e que não pára
de ser, mas pelo qual todos os presentes passam. É nesse sentido que há um passado
puro, uma espécie de ‘passado em geral’: o passado não segue o presente, mas, ao
contrário, é suposto por este como a condição pura sem a qual este não passaria. Em
24
outros termos, cada presente remete a si mesmo como passado.” O passado, uma
elementos imateriais e sem dimensão, sem densidade, sem aquilo que chamamos mesmo
de existência com o presente denso, material, atual, que só existe enquanto potência
mais contraído do passado. Fica evidente que a relação entre passado e presente é
também a relação entre contraído e distendido, entre tensionado e lasseado, entre duração
23
A questão será ainda abordada quando tratarmos da consciência, pois a memória é inconcebível onde não
há consciência, o que nos faria também entrar na questão do ritmo dos seres.
24
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Ed. 34, 1999. pp.45/46
30
e extensão; é justamente a transição entre as categorias abstratas de tempo e espaço,
apontando aqui um paradoxo em que o passado “é”, pois de fato o que passa se cristaliza,
e o presente é aquilo que “devém” incessantemente, mas que só se estende pelo passado,
transição entre os dois é o movimento da existência, já que estes elementos puros existem
de direito, mas não encontraremos nunca seu estado de pureza efetivamente. O que aqui
se busca expor é que existe uma diferença de natureza entre espaço e tempo,
memória, entre virtual e atual, mas cuja própria relação entre termos é o que produz o
se adianta, só renasce. Em cada presente, é todo o passado que coexiste e lhe faz pressão,
só sendo atualizado o que é relevante, o que pode ser produzido na situação atual. É
importante colocar que a memória não existe como uma entidade, um substituto para o
mundo platônico das idéias, mas é abrangida por cada existente material, como duração
própria, não havendo assim um mundo universal da memória, mas um cone virtual que
possui sua extremidade no presente, ou seja, no corpo que pode atualizar este
emaranhado de memória numa realização, num presente atual que já se tornará passado
O Espaço, pelo que pudemos avançar até aqui, é um esquema representativo e não
acontecessem, enfim, um suporte para o que existe, base para o “aqui” e o “lá” concebido
como um a priori, seja pela natureza essencial do mundo, seja por ser uma categoria
estático, pronto, amplo, que se relaciona muito mais com as possibilidades de ação, do
que com a realidade de fato. Seria conceber a matéria indo até seu fim e perdendo sua
31
relação com a duração, isolando-se. Isso “(...) implica uma metafísica em que a totalidade
do real é dada em bloco, na eternidade, e em que a duração aparente das coisas exprime
extensão; de uma materialização, mas que ainda possui movimento, que ainda está viva e
que por isso mesmo, mantém uma relação com a realidade efetiva. Estamos assim no
meio do caminho entre o que os realistas e os idealistas chamam de matéria, antes desta
combinações formam corpos e corpos formam combinações, sem existir algum que
paradoxo: “ser é mudar”. E a ordem das mudanças é inerente a cada ordem, diferente de
outra ordem, específica de cada arranjo, e cada arranjo se constitui constituindo certa
ordem que lhe ordenará, sempre mudando, mais ou menos lentamente. Por isso, não
podemos falar nem apenas de partes que compõem um organismo ou um sistema, nem de
um todo que define suas partes, mas da simultaneidade da interação das partes e da
25
BERGSON, Henri. A Evolução Criadora, Ed. Delta, 1964. p.72
32
organização do todo, ambas produzindo e sendo produzidas por uma relação complexa de
AUTO-ORGANIZAÇÃO E AUTOPOIESE
neural em que cada elemento da rede possuía certas qualidades e a relação entre os
Na década de 70, são criadas redes à maneira das auto-organizáveis, que consistiam
aleatoriamente e interagem uns com os outros de maneira tal que novos elementos de
ambos os tipos podem ser produzidos; outros podem desaparecer, e certos elementos
podem se ligar uns com os outros formando cadeias. (...) Há três tipos diferentes de
podem prender-se uns aos outros – para formar uma cadeia; e qualquer elo, esteja ele
26
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, 2006. pp. 160/161
27
Um sistema autopoiético se define por três características: ser autodelimitado (possuir uma fronteira); ser
autogerador (em que todos os elementos do sistema são produzidos por processos internos); ser
33
cadeia continuava a formar um envoltório para o catalisador, enquanto seus elos
Com o exemplo, fica mais claro o que tentamos descrever mais acima, a respeito da
específicas. De qualquer maneira, não tomamos a ciência como veredicto, por tudo o que
já foi dito, pois não é demasiado repetir que não estamos atrás de uma verdade, de leis ou
das falsas seguranças que possam surgir com comprovações científicas, como se existisse
um mundo imutável de respostas a serem encontradas, pois cada qual obtém a resposta
que merece por sua pergunta. É sem dúvida uma maneira de experimentarmos, de
vez mais diante do cotidiano). Mas mais do que isso, é preciso relembrar que a ciência se
debruça sobre uma realidade parcial e selecionada, sobre condições específicas que
produzirão resultados apropriados à questão que é colocada. Não por isso, tais resultados
não são surpreendentemente válidos para uma compreensão mais ampla e específica do
definem o ser e o não ser. Podemos ver como algumas definições tornaram-se medida da
autoperturbador (há um continuidade em que todos os componentes são continuamente repostos pelos
processos de transformação do sistema). Os sistemas vivos são autopoiéticos.
28
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, 2006. p.162
34
Espacialização do Tempo
suas constatações mundanas são decalcadas e coladas num firmamento, fazendo aparecer
conhecimento. Não podemos evitar dizer que esta concepção que ainda é muito presente
entre nós, estabelece uma verdadeira ruptura na Natureza donde emerge o homem.
Diferente de tudo o que o cerca, a não ser por seu corpo, o homem possui um dom que
lhe eleva ou lhe aprofunda (que o separa), imaginando um universo estático e eterno,
irregularidade que vê diante de si. Invertendo a ordem dos acontecimentos, supõe que
antes dele mesmo existir, as categorias que lhe são próprias são, antes, do mundo, que se
não em si, pelo menos são do mundo que podemos perceber – de qualquer forma,
embasados pelas categorias primordiais de espaço e de tempo (tudo o que é existente está
no espaço e no tempo). Fica aqui claro que a razão e o entendimento, possuem por fim
caráter quantitativo. Esse é o valor que confere à experiência sua validade. Deveríamos
nos perguntar, então, como a duração pode ser medida. E a resposta não é difícil – o
Tempo é espacializado. Quer dizer que os movimentos dos corpos desenvolvem agora
trajetórias, que podem a todo instante como que ser fotografados, dando as coordenadas
35
duração própria ao movimento singular é substituída por uma linha imaginária que
mantém com a trajetória uma relação íntima. Mais especificamente, trata-se do registro
tamanho de uma árvore e a posição do sol no céu). Lembremos ainda que não é a
materialidade que é dividida, mas antes a espacialidade. “Eis o que diz a análise
corpúsculos elementares; e ao mesmo tempo, mostra-nos esse corpo ligado aos outros
corpos por milhares de ações e reações recíprocas. Introduz desse modo tanta
descontinuidade nele e, por outro lado, estabelece entre ele e o resto das coisas tanta
será seu símbolo. Ora, essa linha é divisível, ela é mensurável. Ao dividi-la e medi-la,
poderei portanto dizer, se me convier, que divido e meço a duração do movimento que a
traça.” 30
Somos levados então a investigarmos a duração por um viés mais concreto, pois ela
29
BERGSON, Henri. Duração e Simultaneidade, Ed. Martins Fontes, 2006. p.44
30
BERGSON, Henri. Duração e Simultaneidade, Ed. Martins Fontes, 2006. pp.58/59
36
Percepção e a Constituição da Realidade
31
“O Merkzeit [tempo característico de cada Umwelt ], para Uexküll, não é um fato de consciência, é um
vida como a abertura de um campo de ação. O animal é produzido pela produção de um meio, ou seja,
pelo aparecimento, no mundo físico, de um campo radicalmente diverso do mundo físico, com sua
temporalidade e sua espacialidade específicas. Daí a análise da vida geral do animal, das relações que ele
mantém com seu corpo, das relações do seu corpo com o seu meio espacial (seu território), da
interanimalidade, quer no seio da própria espécie, quer no seio de duas espécies diferentes (...)”
MAURICE MERLEAU-PONTY
31
Umwelt é traduzido por “meio ambiente” – específico de cada organismo.
37
Qual o poder de ser afetado de cada organismo? A que estímulos responde? Da
mesma forma, qual o seu campo de ação? Enfim, qual a realidade própria de cada ser?
Por princípio, temos uma relação comunicativa no universo – ações e respostas que
gato. Mas o que todos têm em comum? Possuem um sistema sensível que lhes é próprio
e é a partir dele que interagem com o mundo, com seu meio ambiente específico. A
percepção é parte integrante do comportamento. É a ação do ser vivo que lhe fornecerá
um mundo. “Há um mundo material, mas ele não tem nenhuma característica
características do território.” 32
(os morcegos que praticamente não têm visão, porém contam com um aguçado sistema
sua visão e audição que captam vibrações distintas das dos sentidos humanos; a
sendo a seleção de um campo de ação, em que são apenas alguns sinais (estímulos que se
tornam comunicadores) que são conjugados e impulsionam o ser para uma ação 33. Existe
32
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, 2006. p. 213
33
O exemplo mais famoso de Uexküll é o do carrapato. “Ao nascer, não tem patas nem órgãos sexuais.
Fixa-se num animal de sangue frio, como o lagarto, adquire sua maturidade sexual. É fecundado, mas a
semente é guardada de reserva, encapsulada no estômago. O carrapato instala-se numa árvore e pode
chegar a 18 anos de idade. Não tem olhos, nem ouvidos, nem paladar, dispõe apenas de um sentido
luminoso, de um sentido térmico e de olfato. O que o faz sair de sua letargia é o cheiro das glândulas
sudoríparas dos mamíferos (ácido butírico). Ele deixa-se cair sobre o mamífero, busca uma parte
desprovida de pêlo, aí se enterra e se nutre de sangue quente. A presença desse sangue quente faz a
semente sair de sua cápsula; o óvulo do animal é fecundado, e o animal morre após ter procriado.”
(MERLEAU-PONTY, Maurice, A Natureza, Ed. Martins Fontes, 2006. pp.282/283)
38
assim, um “fator natural” na constituição dos organismos, na constituição de sua
percepção do mundo. “Os animais inferiores só deixam penetrar neles o que tem
interesse para a sua vida, constituem com seu mundo uma espécie de coesão, de unidade
fechada. (...) não trava uma luta brutal pela existência, vivem num Umwelt que
representa coisas freqüentemente perigosas mas às quais está tão bem adaptado que
vive, na verdade, como se existissem apenas um mundo e um [ser] (...). Daí a idéia
vez mais perfeitas para um mesmo problema. Em certo sentido, todas as espécies estão
igualmente adaptadas.” 34
como são feitos os órgãos sensoriais. Estes realizam uma classificação dos estímulos
segundo uma disposição própria do animal. O Merkwelt é uma grade interposta entre o
animal e o mundo. Para determinar o mundo do animal é ainda necessário fazer intervir
intervir percepções mas também condutas, pois estas depositam, na superfície dos
O ser vivo possui assim uma extensão que é o próprio mundo e a ponte que
definitivamente o compõe é a ação. O corpo amplia seus limites, dilui suas fronteiras e
organismo. E por mais que possamos falar em um mundo material, não podemos dizê-lo
34
MERLEAU-PONTY, Maurice, A Natureza, Ed. Martins Fontes, 2006. p.277
35
MERLEAU-PONTY, Maurice, A Natureza, Ed. Martins Fontes, 2006. pp.279/280
39
o mesmo para cada ser, pois não é apenas a estrutura física de sensibilidade e o campo de
ação que podem ser diferentes, relativos ao espaço, mas também a duração. O tempo
propriamente dito, temos uma síntese passiva, que contrai os instantes tornando-os um
presente vivo, vivido, em que o tempo se desenrola. Mas é ainda a estrutura, as inter-
que dura diferentemente36. A síntese passiva do tempo é a contração rítmica que forma
as diferentes durações dos seres no mundo são apreendidas e colocadas em uma única
duração: a do perceptor que possui uma duração que lhe é inerente e que lhe parece
universal.
Podemos resumir a questão da integração entre ser vivo e meio ambiente em duas
mecanismo pelo qual opera a Natureza, incluindo aí a própria gênese dos seres. Não
devemos tomar tal afirmação como um campo metafísico de pensamento criativo, como
uma mente que imagina, que cria problemas e respostas. É uma operação de
configuração, tensionamento de uma rede que inclui o presente, mas também um campo
Assim Capra menciona para onde se dirigem alguns olhares da biologia: “Em vez de ver
40
começando a reconhecer o desdobramento criativo da vida em formas de diversidade e de
vivos. Embora a mutação e a seleção natural ainda sejam reconhecidas como aspectos
o animal. Cai por terra a máxima de que a vida se adapta para sobreviver: a floração de
formas, cores, hábitos exuberantes não possuem utilidade para esse fim, sendo muitas
vezes até um perigo para o animal. Portman percebe na evolução um caráter expressivo
sempre latente, que ora se expressa no exterior, dando a impressão de uma obra de arte,
com cores e formas, ora fazendo do corpo por completo, em animais de aparência mais
relações múltiplas. Mais uma vez apelamos para a relação inseparável entre existência-
Evolução
vezes, apresentando respostas diferentes de acordo com os caminhos tomados, sem uma
finalidade, com o único objetivo de continuar existindo, não enquanto coisa, mas
enquanto movimento de vir a ser. É esse movimento que necessariamente cria os seres,
que só vive por eles (o verdejar da árvore), que os atravessa. Desses caminhos, surge uma
37
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Ed. Cultrix, 2006. p.179
38
MERLEAU-PONTY, Maurice, A Natureza, Ed. Martins Fontes, 2006. p.305
41
bifurcação de primeira importância: os seres móveis e não-móveis, no que diz respeito à
diferença? O mecanismo que utilizam para que seu funcionamento biológico persista.
Todo ser vivo tem como potência se desenvolver, mas para tanto, precisa importar do
meio certos elementos energéticos. O acúmulo de energia permite ao ser vivo uma
sintetiza glicose, uma molécula energética utilizando a energia solar, o gás carbônico e a
água. Essa molécula pode ser quebrada, liberando energia e oxigênio. De tal forma que se
interagindo sempre com seu meio ambiente próprio, seja com o inseto que a poliniza,
plantas para poder desenvolver suas atividades. Possibilitando essa relação está sua
mobilidade e sua sensibilidade mais apurada, de ação imediata. A sua interação com o
meio é tão complexa quanto a dos vegetais ou de qualquer outro organismo, porém, seu
campo de ação, sua própria realidade é completamente diferente. Esse maior poder
contraindo-se, expandindo-se, dobrando-se, interage com seu meio de maneira mais ativa
39
.
vez mais complexo. Não que esse seja o destino de todos, mas de fato temos desde seres
39
“Em resumo, o vegetal fabrica diretamente substâncias orgânicas com substâncias minerais: esta aptidão
dispensa-o em geral, de mover-se e, conseqüentemente, de sentir. Os animais, obrigados a irem em busca
da alimentação, evoluíram no sentido da atividade locomotora e, por conseqüência, duma consciência cada
vez mais ampla, cada vez mais clara.”(BERGSON, Henri, A Evolução Criadora, Ed. Delta, 1964. p.133)
42
que não possuem esse sistema, seres que possuem um sistema nervoso medular e até
trazendo implicações diretas sobre o comportamento. Quer dizer que quanto menos
nervosa é composta por axônios, como se fossem condutores de impulsos, fios elétricos
envia um impulso elétrico (que necessita de energia para ser produzido) através dos
diferentes. A inteligência se expressa como a maneira pela qual um ser vivo lida com
receptor de impulsos exerce então uma função diferente. Como uma central telefônica,
recebe estímulos e então os conecta com determinados órgãos que podem ser diferentes
tendo recebido um mesmo estímulo. Mas ainda pode receber o impulso e ramificá-lo ao
infinito, não respondendo com um movimento (uma hesitação inteligente). Eis então que
chegamos ao homem. “(...) estas células interpostas entre as arborizações terminais das
escolher assim seu efeito. Quanto mais se multiplicarem estas células interpostas, mais
que uma mesma excitação deixará à escolha. (...) Por outro lado, como uma quantidade
43
enorme de vias motoras podem abrir-se nessa substância, todas juntas, a um mesmo
reação escolhido, ora de abrir a esse movimento a totalidade das vias motoras para que
aí desenhe todas as reações que ele pode gerar e para que analise a si mesmo ao se
dispersar. (...) Quanto mais ele [sistema nervoso] se desenvolve, mais numerosos e
distantes tornam-se os pontos do espaço que ele põe em relação com mecanismos
motores cada vez mais complexos: deste modo aumenta a latitude que ele deixa à nossa
40
ação, e nisso justamente consiste sua perfeição crescente.” Conforme o sistema
40
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. pp. 26 e 27
44
O Homem em Formação
“(...) o corpo, sempre orientado para a ação, tem por função essencial limitar, em vista da ação, a vida do
espírito. Com relação às representações, ele é um instrumento de seleção, e de seleção apenas. Não
poderia nem engendrar nem ocasionar um estado intelectual. No que diz respeito à percepção, nosso
corpo, pelo lugar que ocupa a todo instante no universo, marca as partes e os aspectos da matéria sobre
os quais teríamos ação: a percepção, que mede justamente nossa ação virtual sobre as coisas, limita-se
assim aos objetos que influenciam atualmente nossos órgãos e preparam nossos movimentos. No que diz
respeito à memória, o papel do corpo não é armazenar as lembranças, mas simplesmente escolher, para
trazê-las à consciência distinta graças à eficácia real que lhe confere a lembrança útil, aquela que
HENRI BERGSON
45
O corpo é a abertura para o mundo, o único presente possível, efetivo; um centro de
movimento geral do mundo, que interage diretamente, sem intermediários, que dança os
ritmos das misturas, dos encontros. É também o que age e o que seleciona. Mas é
Com a existência de um cérebro, um centro deste sistema nervoso, já que os impulsos são
enviados a ele antes de chegarem aos músculos, as ações do corpo, seus movimentos,
ainda ramificados ao infinito, gerando apenas movimentos latentes sem haver qualquer
movimento motor de fato. É com esta simbiose que nasce a ação inteligente: obtém sua
forma da matéria, mas encontra seu sentido na duração, o que permite a utilização e o
ambiente” totalmente diferente, não apenas prescrito, recebido, mas de um ser vivo que
se move e define ele próprio sua ação, sendo aberto e transformável, ainda com auxílio
integrado, faz a realidade se tornar muito mais composta de signos do que de estímulos,
composto por dois sistemas, um mundo da percepção e um mundo da ação, que se fazem
46
À percepção (que podemos chamar de medida do poder refletor do corpo), que já é
uma seleção do que pode ser sentido, é acrescentada a afecção (medida do poder
absorvente da ação pelo corpo), que seria a coincidência entre sensação e percepção, ou
seja, a percepção do próprio corpo. Assim, “minha percepção em estado puro e isolado
de minha memória, não vai de meu corpo aos outros corpos: ela está no conjunto dos
corpos em primeiro lugar, depois aos poucos se limita, e adota meu corpo por centro. E
é levada a isso, justamente pela experiência da dupla faculdade que esse corpo possui de
sensório motora de uma certa imagem, privilegiada entre as demais. (...) percebo o
interior dessa imagem, o íntimo, através de sensações que chamo afetivas, em vez de
41
conhecer apenas, como nas outras imagens, sua película superficial.” A percepção é
um processo que se estende por todo o caminho que a realiza, que faz participar todas as
partes envolvidas na sua formação (por exemplo, um objeto, o meio, os olhos, os nervos
e o cérebro)42 não sendo apenas o resultado desta combinação, mas a qualidade que
integra o corpo em seu meio, contando ainda com seu poder de ação como seletor
pertence, não fosse ela parte no mundo, assim como nós, colocados em relação.
concerne à ação. Para isso, é preciso entrar no campo da memória e ainda falar de uma
41
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. pp. 63 e 64.
42
“Quando percebemos, contraímos em uma qualidade sentida, milhões de vibrações ou de tremores
elementares; mas o que nós assim contraímos, o que nós ‘tensionamos’ assim é matéria, é extensão. Nesse
sentido, não há por que perguntar se há sensações espaciais, quais são e quais não são: todas as nossas
sensações são extensivas, todas são ‘voluminosas’ e extensas, embora em graus diversos e em estilos
diferentes, de acordo com o gênero de contração que elas operam. E as qualidades pertencem à matéria
tanto quanto a nós mesmos: pertencem à matéria, estão na matéria em virtude de vibrações e de números
que as decompõem interiormente. Os extensos, portanto, são ainda qualificados, sendo inseparáveis de
contrações que se distendem nas qualidades; e a matéria nunca está suficientemente distendida para ser
puro espaço, para deixar de ter esse mínimo de contração pelo qual ela participa da duração, pela qual ela é
duração.” (DELEUZE, Gilles. Bergsonismo, Ed. 34, 1999. p.70)
47
segunda síntese do tempo. 43 O que caracteriza a memória é a contração, e o acúmulo dos
instantes que já foram presente, uma multiplicidade que a tudo conserva. A condição do
tempo é a passagem. Sem esse passado ontológico, o tempo não passaria, apenas haveria
qualitativo. É uma síntese propriamente perceptiva e não mais habitual. O passado nos
corpo e de como responde aos estímulos. A primeira síntese do tempo, passiva, está
relacionada com este processo, pois é assim que contrai no presente os instantes, os
encontros no mundo, dos corpos nos corpos. A segunda síntese do tempo está
diferenciação das respostas, tornando a memória útil ao presente, pois o expande com a
experiência adquirida.
mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu
corpo.” 44 Seria, entretanto, uma ingenuidade permanecer nestas categorias distantes, sem
integrá-las, como de fato estão no mundo. “Na verdade, não há percepção que não esteja
evocação insistentemente passa pelo crivo da ação. É por causa desta posição do corpo
43
Já falamos sobre a primeira síntese do tempo, esta passiva, que contrai os instantes sob a condição do
presente, uma síntese orgânica (p. 26)
44
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. p. 17
45
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. p. 30
48
no mundo como algo que age por princípio que devemos nos pautar para compreender a
46
própria produção de qualquer realidade humana . Bergson continua assim o trecho
acima citado: “Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções
reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples ‘signos’
percepção têm esse preço; mas daí nascem também ilusões de toda espécie.”47
Mente ativa
seu meio ambiente é um processo cognitivo, algo que se inicia muito antes do
envolve muito mais do que o pensar – antes, percepção, emoção e ação. Vemos a
único processo cognitivo: criar maneiras de interagir com seu meio ambiente que está
que faz do organismo um ser vivo, que se desenvolve, amplia suas capacidades de ação,
46
Esta posição se explica pela gênese do corpo, antes animal do que humano, cujo comportamento, que
possui uma relação direta com a estrutura perceptiva do organismo, assim como com seu meio ambiente
(Umwelt), se constitui pela ação. A ação é o que lhe permite existir; é o que lhe confere existência efetiva
como ser vivo. É o corpo, desenvolvido, que sendo um centro de ação no mundo, permite a expansão de
seu campo de ação na mesma medida em que se amplia sua percepção (“a amplitude da percepção mede
exatamente a indeterminação da ação consecutiva (...): a percepção dispõe do espaço na exata proporção
em que a ação dispõe do tempo” (BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. p.
29)). Definimos aqui a existência como corporeidade, como presença efetiva. Os processos pelos quais o
corpo existe, devem necessariamente ser decorrência de sua existência – sendo assim indissociável deste,
tanto quanto ele é indissociável de seus processos, que lhe conferem um modo de vida, um comportamento
específico (o que não significa determinado).
47
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. p.30.
49
mentais de aprendizagem, memória, tomada de decisões, etc., sendo registradas as
alteração do seu arranjo estrutural. A consciência é parte deste processo.48 Esta possui
de nosso mundo interior (estabelecido na relação com o meio ambiente), mas também a
A consciência deve ser entendida como imanente à experiência, não como um lugar, uma
entidade metafísica, enfim, ela só surge num processo perceptivo. É uma marca que é
surgem à medida que, de alguma forma, se vinculam com o processo da experiência, seja
pontos notáveis – uma composição que se articula, que faz a pressão para se produzir no
O homem em ação
natureza pode esclarecer a situação atual, ajudar a ação em preparo, em suma, produzir
48
Esta idéia é desenvolvida na Teoria de Santiago, criada por Maturana e Varela.
49
Da mesma forma que a realidade, antes de ser recortada, ainda enquanto contínuo, é uma topografia
qualitativa.
50
50
um trabalho útil.” Da mesma forma, “os contornos nítidos que atribuímos a um
objeto, e que lhe conferem individualidade, são apenas o desenho dum certo gênero de
influência que poderíamos exercer em certo ponto do espaço (...) Suprima-se esta ação
e, por conseqüência, as grandes estradas que ela abre antecipadamente, por meio da
nossa constituição, de nosso corpo, de nosso Umwelt, que se relacionam pela ação, ou
produção do outro, como uma continuidade não-linear. Este corpo no mundo, equipado
com sua inteligência, utiliza-se desta de modo que ilumina o nosso comportamento,
assim favorável ou desfavorável tal ação, ou buscando melhores maneiras para ser bem
sucedida. A inteligência foi moldada pela ação, e por assim ser, funciona a princípio por
intenção e por cálculo, coordenando meios para atingir um objetivo, sendo daqui que
nasce sua potência matemática (tanto aritmética quanto geométrica). Desta maneira, a
extensão é congelada como um espaço já feito, pronto, estático, e se existem objetos que
se movem neste espaço, possuem antes uma trajetória que pode ser prevista e delineada;
a duração de nosso corpo é o referencial em que todas as outras durações são apreendidas
pode a qualquer momento ser brecado, resultando numa posição instantânea (donde todo
movimento nada mais é do que uma sucessão de pontos no espaço). É destes padrões que
50
BERGSON, Henri. A Evolução Criadora, Ed. Delta, 1964. p. 44
51
BERGSON, Henri. A Evolução Criadora, Ed. Delta, 1964. p. 50
51
possuem um sistema neurossensitivo bem desenvolvido, mas também em outros
organismos que ainda nem possuem um cérebro, gerando reações indecisas, quer dizer,
Esta última surge como uma inversão útil: associamos certa qualidade do efeito à idéia de
transforma-se numa grandeza. A representação aparece como uma projeção do que nos é
representação. Ela é a soma dos estados inertes perceptivos, tanto da matéria, quanto das
apreendido) em um estado único consciente, que será mais eficiente numa ação posterior,
ativando de uma só vez todo o processo que estaria envolvido na ação; algo bastante
semelhante a atos reflexos. “Os nossos estados psíquicos, separando-se então uns dos
nossa consciência imita o processo pelo qual a matéria nervosa obtém ações reflexas, o
52
“Na realidade, a consciência não jorra do cérebro; mas cérebro e consciência correspondem-se, porque
medem igualmente, um pela complexidade de sua estrutura, e outra pela intensidade do seu despertar, a
quantidade de escolha de que o ser vivo dispõe.” (BERGSON, Henri. A Evolução Criadora, Ed. Delta,
1964. p. 260)
53
BERGSON, Henri. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Edições 70, 1988. p. 90
52
54
automatismo sobrepor-se-á à liberdade.” O reconhecimento não envolve de antemão
uma lembrança que envolve a memória, mas é por princípio corporal. O hábito organiza
memória. “Se a percepção exterior, com efeito, provoca de nossa parte movimentos que
imagens que se assemelham a ela e cujo esboço já foi traçado por nossos movimentos.
Ela cria assim pela segunda vez a percepção presente, ou melhor, duplica essa
percepção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja uma imagem-lembrança do
56
mesmo tipo.” As lembranças só ganham cor e vida quando tornam-se sensações
O que é então que isso significa? Qual a direção que estamos tomando? Até agora
fica evidente que a configuração de nosso corpo, sua relação material e memorial, faz
com que surjam símbolos desenvolvidos pela consciência e que a percepção, todo o
processo sensório-motor pode ser ativado quer por um objeto no mundo, quer por, assim
fazem o corpo trabalhar da mesma forma que faria diante de uma situação atual. O
54
BERGSON, Henri. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Edições 70, 1988. p. 163
55
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. p. 106
56
BERGSON, Henri, Matéria e Memória, Ed. Martins Fontes, 2006. pp. 114/115
53
A Dimensão da Linguagem
“Um signo, segundo Spinoza, pode ter vários sentidos. Mas é sempre um efeito. Um efeito é,
primeiramente, o vestígio de um corpo sobre um outro, o estado de um corpo que tenha sofrido a ação de
um outro corpo: é uma affectio — por exemplo, o efeito do sol em nosso corpo, que ‘indica’ a natureza do
corpo afetado e ‘envolve’ apenas a natureza do corpo afetante. Conhecemos nossas afecções pelas idéias
que temos, sensações ou percepções, sensações de calor, de cor, percepção de forma e de distância (o sol
está no alto, é um disco de ouro, está a duzentos pés...). Poderíamos chamá-los, por comodidade, de signos
escalares, já que exprimem nosso estado num momento do tempo e se distinguem assim de um outro tipo de
signos: é que o estado atual sempre é um corte de nossa duração e determina, a esse título, um aumento ou
uma diminuição, uma expansão ou uma restrição de nossa existência na duração em relação ao estado
precedente, por mais próximo que este esteja. Não é que comparamos os dois estados numa operação
reflexiva, mas cada estado de afecção determina uma passagem para um ‘mais’ ou para um ‘menos’: o
calor do sol me preenche, ou então, ao contrário, sua ardência me repele. A afecção, pois, não só é o
efeito instantâneo de um corpo sobre o meu mas tem também um efeito sobre minha própria duração,
prazer ou dor, alegria ou tristeza. São passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de
potência que vão de um estado a outro: serão chamados afectos, para falar com propriedade, e não mais
afecções. São signos de crescimento e de decréscimo, signos vetoriais (do tipo alegria-tristeza), e não mais
De fato, há um grande número de tipos de signos. Os signos escalares dividem-se em quatro tipos
principais: os primeiros, efeitos físicos sensoriais ou perceptivos, envolvem tão-somente a natureza de sua
causa, são essencialmente indicativos e indicam nossa própria natureza mais do que outra coisa. Em
segundo lugar, nossa natureza, sendo finita, retém daquilo que a afeta somente tal ou qual característica
selecionada (o homem animal vertical, ou racional, ou que ri). Esses signos são abstrativos. Em terceiro
lugar, sendo o signo sempre efeito, tomamos o efeito por um fim, ou a idéia do efeito pela causa (visto que
o sol esquenta, acreditamos que ele é feito ‘para’ nos esquentar; já que o fruto tem um gosto amargo,
Adão acredita que ele não ‘deveria’ ser comido). Neste caso, trata-se de efeitos morais, ou de signos
imperativos: Não comas deste fruto! Põe-te ao sol! Os últimos signos escalares, por fim, são efeitos
imaginários: nossas sensações e percepções nos fazem pensar em seres supra-sensíveis que seriam sua
causa última, e, inversamente, nós nos figuramos esses seres à imagem desmesuradamente aumentada
54
daquilo que nos afeta (Deus como sol infinito, ou então como Príncipe ou Legislador). São signos
GILLES DELEUZE
55
Antes de tudo, a linguagem se estabelece como coordenação de uma ação em
conjunto. Mas ainda possui uma especificidade feroz nos humanos, que é a capacidade de
àquelas que não o perceberam; mas a que não o percebeu não pode transmiti-lo às outras
57
que igualmente não o perceberam.” Este início nos faz pontuar a dimensão da
comunicação na natureza, como algo que se soma ao mundo percebido e dirige a atenção
para algo específico, codificado pelo emissor. É ainda uma parte de um afeto que se
expressa como uma comunicação, ou seja, já é uma resposta do organismo àquilo que
percebe. Porém, é uma resposta que diz respeito à coordenação de uma ação coletiva,
envolvidos na ação, uma ampliação da própria capacidade de agir que envolve mais do
que aquele que diretamente percebe. Não podemos, entretanto, nos esquecer que a ação
se relaciona diretamente com o meio ambiente criado pelo ser vivo; quer dizer, todo ser
vivo, ao perceber, não extrai do mundo em si aquilo que pode perceber, mas cria
diretamente um mundo que lhe é próprio. E a linguagem possui uma força neste
processo, pois dirige a atenção e faz perceber. O que primeiro se afirma então é que a
informação e a comunicação são criadas na relação entre ação possível, meio ambiente
criado, não podendo se pensar a linguagem como uma entidade abstrata que possui vida
própria, sem ter com a própria experiência sua vitalidade inerente. Não é baseado em
representações que falamos, mas falamos imbuídos num mundo real, efetivo, de onde
nossas representações nascem, não por uma benção encarnada em nossas mentes, mas
por uma extensão de nossa capacidade mental que permite a abstração. A fala é objetiva
e não possui qualidades próprias. (Assim, o vermelho não possui em si mesmo um valor
57
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Mil Platôs vol. 2, Ed. 34, 2008. pp. 13/14.
56
informativo, senão quando encaixado numa rede cultural de convenções e de sentidos, de
conceito e idéias que advém da relação com o mundo efetivo). Ao falarmos, não nos
ato. É o que ainda insistimos: o ser vivo cria seu mundo, mantém com este uma relação
simbiótica de mútua produção e estabelece com ele uma rede de interação, cria seu
mundo perceptivo e para além da membrana que limita seu corpo, estende-se pelo mundo
existir.
representando, nem referindo, mas produzindo o mundo com um ato de linguagem. Sem
O que se vê na imagem?
57
Quando se diz que é uma vaca que olha para você, a imagem ganha limites e
dirige nossa atenção. É, entretanto, parte do processo perceptivo, que não se restringe a
uma pura captação de estímulos, mas da interação mental em direção à ação do corpo,
que projeta contornos, que a linguagem reforça e estabiliza – fruto, antes, da percepção,
ao que seria uma experiência puramente sensorial. (Surge a vaca das manchas pretas e
brancas, sem que seja alterado o que afeta nossa retina). Porém, a doação de sentido que
nos parece tão certa, que se estabelece com a língua através de substantivos e adjetivos
existência. Antes de ser as coisas estão em perpétuo tornar-se e se de alguma forma são,
isto só acontece devido à direção de nossa percepção, à nossa potência de agir que cria
espaço, seleciona e estabelece o horizonte que seria mais eficiente para nossas ações
58
possíveis. Daí também a relação que a palavra tem com a verdade, como se o falado
As palavras não designam o mundo, mas são fruto de uma relação com o mundo.
poder referir-se ‘a normas que valem para todos, a conceitos que têm o mesmo sentido
para todos, ele acreditará que na raiz de nosso discurso existe alguma coisa – razão
ilusões, proferir a última palavra. Em suma, ele acreditará que o homem é capaz de
58
“De um lado, os nomes próprios singulares, os substantivos e adjetivos gerais que marcam as medidas,
as paradas e repousos, as presenças; de outro, os verbos que carregam consigo o devir e seu cortejo de
acontecimentos reversíveis e cujo presente se divide ao infinito em passado e futuro.” (DELEUZE, Gilles.
Lógica do Sentido, Ed. Perspectiva, 2006. p. 26) É uma alusão feita à idéia dos Estóicos a respeito dos
acontecimentos incorporais, que possuem existência efetiva, mas que, a bem da verdade, mais insistem do
que existem, ser sem dimensão, colado aos corpos, superfície de passagem, puro acontecimento. Temos a
faca e a carne, um encontro de corpos, e na superfície temos o cortar, designado como verbo.
58
conhecer o Ser e de dizê-lo em nome de todos’. Mas essa razão não passa de uma
59
‘metafísica da linguagem’ que, por amnésia, pensa ter acesso ao ‘em si’.” Para
enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas,
obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que o são, metáforas que se
60
tornaram gastas e sem força sensível (...)” “As falácias da linguagem começam
quando, esquecendo-se que ela é essencialmente retórica, pensa-se que a língua nos
oposições presentes na língua são dadas como oposições presentes nas coisas, as
é preciso pensar quais vozes falam em nós. “Em um mesmo dia, um indivíduo passa
constantemente de uma língua a outra. Sucessivamente, falará como ‘um pai deve fazê-
lo’, depois como um patrão; com a amada, falará uma língua infantilizada; dormindo,
configuração social. Desta forma, a linguagem deve ser compreendida na relação com
59
MOURA, Carlos Alberto R. Nietzsche: Civilização e Cultura. Ed. Martins Fontes. 2005. p.50.
60
NIETZSCHE apud MOURA, Carlos Alberto R. Nietzsche: Civilização e Cultura. Ed. Martins Fontes. 2005.
p.49.
61
MOURA, Carlos Alberto R. Nietzsche: Civilização e Cultura. Ed. Martins Fontes. 2005. p.127.
62
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Mil Platôs vol. 2, Ed. 34, 2008. p. 35.
59
da vida em relação com o meio ambiente. Temos assim uma duplicidade que por um lado
cria novos horizontes, mas que por outro, constrói uma configuração social que produz a
linguagem como criação coletiva de mundo, arranjo de uma teia que fornece a realidade e
os instrumentos para dela se falar. Criação do senso comum, que identifica e reconhece, e
do bom senso, que prevê. Produz-se um sentido único, subentendido pelas proposições,
quer dizer, sua cadeia de significados, um padrão de relação entre os enunciados, entre os
significado do que se diz (uma semântica e uma sintática). Da circularidade dos signos,
compreender a linguagem sem apreender nela uma relação política, uma instância da
configuração social que tanto a ordena como faz aparecer o mundo que lhe é
necessário.63
realidade social, a repudia em muitos sentidos, e ainda mais, produz realidade e faz com
que se multiplique de uma forma até espantosa o poder criativo humano, como um
acúmulo de estratos que permite uma ampliação maior daquilo que a Natureza (através
de uma forma humana) pode produzir. A linguagem tem a força de explodir com suas
inventar, experimentar, desmanchando assim, aquilo que nos parece tão sólido.
imagens em si, que não dependem do exterior para ser, como uma referência – blocos de
as suas partes e brincam na sua pura imanência, habitam o próprio devir, o constituir-se,
63
Inclusive a própria identidade do Eu e do indivíduo.
60
o jogo de forças pré-individual, impessoal. E assim produzindo, como linguagem,
real que liga as coisas em processo e que pode, e só pode, ser dito – linguagem que habita
o inconsciente, que faz ver o movimento, que faz com que o invisível seja percebido:
pura ligação.
Jackson Pollock
61
A socialização
“Os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos,
suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam, logo de entrada para cada
homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. Na outra
geral uma ordem, a que lei geral obedece, que princípio pode justificá-la, por que razão é esta a ordem
MICHEL FOUCAULT
62
De pronto somos levados a indagar como o homem é integrado em uma
sociedade. Se apesar de sua gênese como organismo que lhe confere uma determinada
autonomia perante o resto do mundo, que lhe dá um corpo próprio; se contando com as
ação tão amplo, inclusive tendo a liberdade de transformar seu Umwelt, isto é, definir ele
próprio sua ação, constituir dinamicamente seu mundo; se ainda assim vemos o homem
sempre em conjunto, membro de um grupo, como é que isso se dá, ou melhor, como se
processa esta coletivização específica, de um ser vivo tão aberto quanto o homem?
isto não é nenhum diferencial do homem. Da mesma forma, a ação coletiva é inerente aos
grupos, possuindo eles um sistema comunicativo que lhes é próprio, contando com as
mais variadas nuances que poderíamos até chamar de dialetos. Mas, no homem, há a
diferença de seu processo cognitivo ser mais dinâmico, principalmente porque conta com
uma impressionante amplitude de ação, relacionada tanto com sua fisiologia orgânica,
que lhe permite movimentos bastante finos e sutis, como com seu processo perceptivo
estabelecer um novo Umwelt. Porém, de nada nos valeria entender o homem ainda
enquanto um ser destacado daquilo que cria, separado de outros homens, que agem
mundo semelhante. Iremos ver então como é que se instala este mundo em comum.
profunda do que podemos chamar de alma humana, é puro desejo, multiplicidade que
63
sempre em aumento ou diferença de potencial, ímpeto de perpetuar-se em alguma
existência qualquer, ou seja, em produzir ligações quaisquer que sejam, em vir a ser em
criar encontros.
É essa potência de vida que produz-se no corpo e do corpo no mundo. Mas “(...) o
particular, mas também com uma ordem cultural e social específica, que é mediatizada
para ele pelos outros significativos64 que o têm a seu cargo. Não apenas a sobrevivência
parte de seu ser biológico enquanto tal, está submetido a uma contínua interferência
Assim, todos nós somos constituídos já dentro de uma organização social bem específica
que se torna definitivamente efetiva com a transmissão através das gerações. “Nas fases
linguagem aparece à criança como inerente à natureza das coisas, não podendo
64
Quer dizer, aqueles outros que são responsáveis pelo processo íntimo de socialização, os que cuidam do
recém nascido ou da criança, constituindo as pessoas mais próximas em sua criação.
65
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. p. 72.
66
“A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação [ou seja, uma caracterização, quando é
tornado típico] recíproca de ações habituais por tipos de atores.” (p.79) Envolvem a constituição de um
padrão e de um controle. A linguagem seria, por isso, uma instituição.
64
mesma maneira como dadas, inalteráveis e evidentes” 67. Poderíamos dizer que um dos
atividade e da significação humanas. O que é criado é visto como uma coisa que possui
autonomia, e desta forma, é compreendida como algo sobre o qual não temos (e nunca
grupos humanos que realizam praticamente uma sociedade. Devemos, antes de tudo,
deixar claro que há um equívoco em se pensar que a Natureza e que, portanto, os seres
lutam pela sobrevivência. É uma idéia que vai de encontro aos fatos e ainda deturpa uma
análise coerente que poderia ser feita a respeito da relação com o ambiente. Antes
qualquer coisa, vivem. E viver é um ato muito mais potente do que suprir necessidades
socialmente do que biologicamente, canalização que não somente impõe limites a estas
atividades mas afeta diretamente as funções orgânicas. (...) Pode dizer-se então que a
67
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. p. 85.
68
Seria um equívoco chamarmos algo reificado de um produto que ganha o status de natural. Natural, para
nós, é antes a potência naturante, a força dinâmica e intensiva de constituição que se expressa como algo
naturado, ou seja, como um arranjo particular de matéria. Assim, a questão da reificação é sobre o
desaparecimento do processo na compreensão de um objeto, sobre a aniquilação de seu movimento
constitutivo, que cede lugar à estaticidade e à autonomia que ganha o objeto quando é tomado por coisa,
quando ganha uma identidade. No limite, poderia ser entendido como um modo de consciência que se
aplica também aos objetos chamados de naturais pelo senso comum (como algo que sempre foi como é, ou
que no mínimo, deveria ser como é).
65
69
modo de andar e os gestos são socialmente estruturados.” Significa dizer que a
diferentes que cria para solucioná-los. As organizações humanas não agem de maneira
la. Em outras palavras, a constituição de uma rede virtual de pontos notáveis expressos
na realidade atual, este agenciamento específico de cada ser, de cada grupo, de cada
da natureza, o desejo, é nos seres humanos diagramada, fazendo com que se desenvolva
comportamento humano, sua ação, seu modo de vida e o mundo que produz não pode, da
mesma forma, ser separado de sua percepção, de sua realidade, que se configura através
suas instituições, seja pela própria materialidade do espaço que o homem produz.
Temos então, um duplo aspecto da ordem social: um que diz respeito ao socius,
codificador do desejo que faz o homem compartilhar seu corpo numa estrutura social;
69
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. pp. 238/239
70
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Ed. Assírio e Alvim, 2004. p. 31
66
criá-la, a participar de sua instituição; o outro que explica, esclarece, que formaliza,
direciona e de alguma maneira resolve as questões que emergem durante este processo
histórico. É até difícil falar dos dois aspectos separadamente. São antes uma integridade
que cria respostas para problemas que surgem tanto materialmente quanto
Se todos nós nascemos em um mundo que nos é dado, não é por acaso que
prolongada do bebê para além do parto, seu sistema nervoso ainda se constituindo, assim
como seu sistema imunológico, seus movimentos sendo aprendidos, seus sentidos se
uma realidade. Significa que sua formação mais fundamental já toma como ponto de
desenvolvido que permite uma socialização eficaz. “Apreendo a realidade da vida diária
padrões que parecem ser independentes da apreensão que deles tenho e que se impõem à
por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada na
cotidiana ganha significado para mim. Vivo num lugar que é geograficamente
67
que têm sua designação no vocabulário técnico da minha sociedade; vivo dentro de uma
teia de relações humana, de meu clube de xadrez (...), que são também ordenados por
forma que a realidade social nos fornece identidades, conceitos, categorias, palavras,
sistemas, padrões, etc., fornece-nos também objetos que além de dotados de sentido por
serem designados, têm o sentido garantido por serem produzidos dentro da realidade
social (de suas instituições e de seu agenciamento do desejo que se liga à produção do
objeto). Mas a objetividade não se restringe àquilo que tem um peso ou uma medida.
linguagem como uma facticidade externa a mim, exercendo efeitos coercitivos sobre
mim. A linguagem força-me a entrar em seus padrões. (...) A linguagem também tipifica
automatização do que um dia foi um esforço para ser incorporado, tem o que foi
aprendido como ontológico. Entretanto, não se deve esquecer que isso se dá através de
homem, de seu presente enquanto corpo. O processo de socialização faz com que o
71
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. pp. 38/39
72
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. pp. 58 e 59.
68
Não é difícil de imaginar por que um tal mundo possui tanta coerência. A realidade
construída o é por homens que investem nesta produção e vêem surtir efeito suas ações.
Constantemente é reforçada esta realidade como única possível, pelos produtos, pela
linguagem, pela tradição, pelos hábitos, pelos mitos, ditados populares, explicações
teóricas, punições e interditos. Só existe aquilo que é codificado pela sociedade, tratado
como universalmente válido – “qualquer desvio pode ser designado como depravação
73
moral, doença mental ou simplesmente ignorância crassa.” É o pavor extremo de
importante (...) compreender que a ordem institucional, tal como a ordem da biografia
sociedade em buscar transformar esta ordenação que nos é absolutamente estranha e que
chamamos de caos, em uma ordenação que para ser, necessita da estaticidade – exige a
sabemos ainda o que pode um corpo” nos diz Spinoza. Eis uma posição ética, de
potência. A sociedade tal qual se estabelece não consegue aceitar a realidade dos
encontros que faz a potência de agir e de existir variar, em que cada situação é única e
implacável; pura afirmação da vida, onde não existe certo ou errado, Bem ou Mal, mas
apenas bons ou maus encontros e ainda sob o ponto de vista dos afetos (o que se produz
E é esta mesma formulação que serve como parâmetro de julgamento, assim como o
Mundo das Idéias platônico servia para que se estabelecesse a diferença e se pudesse
escolher entre uma cópia e um simulacro, entre aquilo que se ligava à essência
73
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. p. 93.
74
BERGER, Peter L. Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1974. p. 141.
69
verdadeira e aquilo que não passava de falsa aparência, de tentativa de iludir. Tais termos
enfim, não faltam mecanismos para que o investimento numa realidade comum se
perpetue. "As maneiras pelas quais se sustenta a maioria dos homens, isto é, sua vida,
nada mais são do que expedientes circunstanciais, uma fuga do verdadeiro sentido da
vida; isso ocorre principalmente porque os homens não conhecem nada melhor, mas em
Podemos dizer que os objetos são cortes nos fluxos, assim como o eu corpo ou o eu
sinto. O nome que se dá, que se chama, que se crê identitário, é antes a identificação com
ligações, arranja fluxos fazendo com que emirjam intensidades, variações de potência
ainda no campo do desejo, no virtual, que passam a existir somente em ato, atualizadas
no mundo, o que gera as próprias sensações do corpo – algo resultante que identificamos,
já de longe, como um sujeito, uma rebarba do processo e que se diz a partir de seus
aparece como ponta do movimento entre estes produtores/produtos (corpos), que, sendo
parte da natureza, sendo a própria Natureza, têm por essência produzir (quer dizer, viver
mesmo, produção que produz produto que produz produção que produz produto...). O
sujeito mais deixa-se referenciar; sem identidade fixa, aparecendo como especificidade
75
Porém, se parece haver uma semelhança entre a vontade e o desejo, não podemos confundi-los. O desejo
diz respeito a uma força primária, um fluxo, verdadeiramente selvagem, que efetua ligações, a vida que
vive em nós. O querer refere-se a um ato mais ligado à atenção, a um mínimo de previsão que se afirma
diante de outras possibilidades. O desejo é imanente, o querer delibera no corpo. Assim, ao dizermos que
“não se quer”, subentende-se que existe alguma vantagem em se realizar tal ação, há uma intenção, algo
que não faz parte do universo do desejo.
76
THOREAU, Henri David. Desobedecendo, Ed. Rocco, 1984. p. 62.
70
do corpo num encontro, nos encontros. “Se o desejo produz, produz real. Se o desejo é
passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e que funcionam como
unidades de produção. O real resulta disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo
como autoprodução do inconsciente. Ao desejar não falta nada, não lhe falta o seu
objeto. É antes o sujeito que falta ao desejo, ou o desejo que não tem sujeito fixo; é
sempre a repressão que cria o sujeito fixo. (...) Não é o desejo que se apóia nas
necessidades mas, pelo contrário, são as necessidades que derivam do desejo: são
77
contraprodutos no real que o desejo produz.” Eis também a configuração do socius,
que aparece ora despótico, ora socialista, ora capitalista, mas cuja identidade refere-se à
produção emergente daquilo que se arranja no plano das intensidades, próprio socius,
imanente, virtual, algoz do desejo que o codifica e faz com que o corpo que dele emerge
soluçam não apenas produtos, donde escorregam sujeitos disformados, mas quantidades
regimes do desejo. Talvez seja aqui que se coloque a questão de La Boétie: servidão
voluntária – Por que a maioria de um povo obedece?que não somente obedece, mas
77
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Ed. Assírio e Alvim, 2004. p. 31
71
Segunda Parte
72
A Produção do Mundo
“E este domínio [da matéria] que se torna proveitoso para a humanidade, [é] muito mais ainda do que o
resultado material da própria invenção. Se tiramos uma vantagem imediata do objeto fabricado, tal como
poderia fazê-lo um animal inteligente, e mesmo se esta vantagem é tudo quanto o invento desejava, pouca
coisa é, comparado às idéias novas, aos sentimentos novos que a invenção pode suscitar por toda parte,
como se tivesse por efeito essencial elevar-nos acima de nós próprios e, assim, alargar os nossos
horizontes.”
HENRI BERGSON
73
Torna-se então necessário desenvolver uma questão de caráter explicitamente
geográfico que trata da produção material do mundo, constituindo uma realidade que
uma necessidade eterna imposta pela Natureza sem a qual não poderia haver trocas
uma inversão de termos significante. O trabalho não é a relação que liga o homem à
Natureza, mas é antes um modo socializado que advém, antes, do homem enquanto
natureza, que cria constantemente novas relações e novos encontros entre as coisas, a
ação humana, assim como a de qualquer outro organismo produz um mundo ao seu
estabelece uma relação com o ambiente o qual integra, é necessário recorrer ao processo
humanas.
sistema endócrino e imunológico, é cada vez mais levada em conta, fazendo com que
cada vez fique mais claro a constituição do indivíduo dentro de uma coletividade como
78
MARX, Karl. Capital vol.1, Encyclopædia Britannica Inc. 1996. p.17 – A tradução é minha.
74
linguagem: linguagem que fala sobre si. Concordamos ainda com Marx quando nos diz
participam, e no qual o homem por sua própria conta inicia, regula e controla as
reações materiais entre ele e a Natureza. Ele se opõe à natureza como uma de suas
forças, pondo em movimento braços e pernas, cabeça e mãos, as forças naturais de seu
próprias vontades. Por agir no mundo externo e mudá-lo, ele, ao mesmo tempo, muda
sua própria natureza.”79 Na Ideologia Alemã, ele coloca uma importante prerrogativa
para se compreender essa relação do homem que produz-se a si mesmo através do mundo
que produz. “O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, em
primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados e a reproduzir. Este
modo da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de reprodução da
existência física dos indivíduos. Trata-se já, isso sim, de uma forma determinada de
exprimirem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a
sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são, coincide, portanto, com a sua
produção, com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os
indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção.”80 Assim, a
objetivado, etc., devem ser considerados com a mesma importância que as instituições –
todas expressões múltiplas de uma cultura que possui o duplo aspecto de introduzir as
79
MARX, Karl. Capital vol.1, Encyclopædia Britannica Inc. 1996. p.85 – A tradução é minha.
80
MARX, Karl & ENGELS, F.. A Ideologia Alemã – capítulo 1. Ed. Moraes. 1984. p.15.
75
Foucault ressalta a importância deste impacto que em seus estudos recebe o nome
de “poder”. “... a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que
existe justamente de produtor no poder (...). O que faz com que o poder se mantenha e
seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de
fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se
considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do
81
que uma instância negativa que tem por função reprimir.” Exige-se assim um
nação, instituição, ideologia etc.) numa teia que lhe garante existência e valor. Significa
dizer que há um plano de consistência maleável, porém, que confere coesão à existência
condição de natureza humana é manter uma concepção catastrófica que separa homem e
bruto, natural movimento que cria relações e que liga as singularidades (conjunção de
fluxos), que opera-se o primeiro corte, a saber, a socialização, constituída por um arranjo
81
Foucault apud MELLO, Gustavo Moura de C.. Algumas respostas para as vicissitudes do capitalismo
contemporâneo: crítica ou fetichismo? Dissertação de Mestrado – FFLCH – USP. 2007. p. 211.
76
um círculo fechado e centrado cuja potência criativa humana é adestrada à eficiência
funcional que garante ao seu produtor os meios de continuar existindo numa vida que,
por mais luxuosa, é ainda miserável do ponto de vista ético. Nós-natureza, movimento de
produzir diferença, indeterminação e cada vez mais potência de existir é traído pelo
Outro (lugar vazio ocupado pelas mais variadas ilusões de sucesso – chefe, governante,
Deus...) daquilo que mais intimamente nos constitui: potência de existir da Natureza se
77
A Sociedade Capitalista
“daí a exploração da natureza inteira, para descobrir novas propriedades úteis das coisas; intercâmbio
universal dos produtos de todos os climas e países estrangeiros; novas elaborações (artificiais) dos
objetos naturais para dar-lhes valores de uso novos. A exploração da Terra em todas as direções, para
descobrir novos objetos utilizáveis e novas propriedades de uso dos antigos, como novas propriedades dos
mesmos enquanto matérias-primas, etc.; por conseguinte o desenvolvimento das ciências naturais ao
ponto mais elevado; igualmente o descobrimento, criação e satisfação de novas necessidades procedentes
da sociedade mesma; o cultivo de todas as propriedades do homem social e a produção do mesmo como
um indivíduo cujas necessidades se tenham desenvolvido ao máximo possível, por ter numerosas
qualidades e relações; sua produção como produto social o mais pleno e universal possível (...) constitui
dessa forma uma condição de produção fundada no capital (...). Pela primeira vez a natureza se converte
puramente em objeto para o homem, em coisa puramente útil, cessa-se de reconhecê-la como poder para
si; inclusive o reconhecimento teórico de suas leis autônomas aparece somente como artimanha para
submetê-la às necessidades humanas, seja como objeto de consumo, seja como meio de produção. O
capital, conforme esta sua tendência, passa também por cima das barreiras e preconceitos nacionais,
assim como sobre a divinização da natureza; liquida toda a satisfação tradicional, complacente e
encerrada dentro de limites estreitos, das necessidades existentes, e a reprodução dos velhos modos de
KARL MARX
78
É provável que o conceito de fetiche seja o que dê à obra de Marx e a seus estudos
sobre o capitalismo seu grande sentido e faça-nos perceber sua vital importância. Sem
entendermos o que é o fetiche, talvez o estudo sobre o capital se torne mero formalismo e
ideológico socialista, ainda assumindo-o como ultrapassado. Não devemos incorrer neste
mesmo equívoco, assim como devemos escapar dos comentadores que tentam revelar o
que alguém quis dizer. As leituras e os estudos necessitam de uma outra abordagem que
não esteja pautada na avaliação das obras por parâmetros de bom ou ruim, certo ou
errado, mas que se sustente pela sede de encontros que levem ao limite do que podem
certos argumentos. Conhecer é uma aventura de misturas e para tanto é preciso se dispor
aos afetos. Sair do plano da informação para criar consistências rigorosas, num
movimento em que o leitor se torna ativo e lança cada vez mais longe as criações que lhe
constituinte, livrar-se do próprio sujeito, isto é, chegar a uma análise que possa dar conta
físicas e com a relação material que surge daí. Aí está uma relação social definida entre
os homens que assume, a seus olhos, a fantástica forma de uma relação entre coisas.
independentes dotados de vida, entrando em relação tanto entre si como com a raça
82
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Ed. Graal. 2008. P.7
79
83
humana.” Esse trecho nos aponta de maneira ainda obscura o que significa o
mas que possuem mais profundamente, uma lógica bastante consistente de operação.
Assim, a mercadoria que parece ter vida própria, escondendo a extensão de sua cadeia
produtiva; a regulação do sistema (mão invisível) que parece natural, mas que acontece
pela troca de valor, de tempo de trabalho socialmente necessário, estendendo-se assim até
com juros, porém, que se apropria da mais-valia produzida pela produção que foi
financiada; etc. É a lógica de funcionamento que aparece para cada indivíduo como
fetiche é a vivência das coisas como se fossem ontológicas, enquanto sob as aparências
de normalidade, existe algo que se passa e faz com que as coisas aconteçam
o que de fato se produz sob os diversos discursos, juntando ainda os elementos de sua
com maior nitidez qual o sentido oculto do que nos é dado pelo senso comum como
capitalistas e a inserção das mais variadas esferas (se não todas) sob suas necessidades de
reprodução e perpetuação.
83
MARX, Karl. Capital vol.1, Encyclopædia Britannica Inc. 1996. p.31 – A tradução é minha.
80
As bases do capitalismo
Estabelece-se então algo que jamais antes foi visto – terror de qualquer sociedade:
através da expropriação do trabalhador dos meios de produção, que passa então a vender
a sua força de trabalho de maneira livre (o que quer dizer que torna-se assim anônimo), e
determinadas nem uma personalidade) e valor descodificado (pois não está submetido a
um signo, sendo justamente o equivalente geral entre todo produto social). Com este
ilimitada, em que a acumulação é o fim em si mesmo. Mais preciso é dizer que seu
formas de funcionamento, mas que em nada alteram sua lógica de acumulação, dinheiro
acumulação = capital). Grosso modo, podemos dizer que tudo começa com capitalistas
que possuem uma certa quantidade de dinheiro, que vão para o mercado e compram dois
uma nova mercadoria. Essa mercadoria é vendida no mercado por um preço que inclui o
dinheiro original gasto, um lucro de mercado e uma mais-valia (porção de trabalho não
pago ao trabalhador pela produção). Este excedente pode ser gasto de qualquer forma.
Porém, devido às leis coercitivas da competição, é preciso que uma parte seja reinvestida
na produção – a produção precisa ser expandida, o que significa que será necessário mais
81
trabalho do que anteriormente, mais tecnologias (ou melhores), mais meios de produção,
para que sejam produzidas mais mercadorias, para que o capitalista se mantenha no
mercado. Mas isso significa também que o próprio mercado precisa ser mais amplo, ou
absorvente, para que os produtos sejam vendidos e para que o valor, criado pelo
trabalho84, seja realizado. Os capitalistas são forçados a investir nesta lógica, são
inseridos num modo de funcionamento que não permite que seus participantes ajam de
capital – o dinheiro investido deve sempre resultar ao final do ciclo em mais dinheiro.
Sem sombra de dúvida, a vasta obra de Marx, quando não servindo de dogma,
84
O trabalho é a única forma de geração de valor no capitalismo. Ao constatarmos um sistema econômico
que tem por tendência a mundialização que se constitui pela compra e venda de mercadorias e que em meio
a este processo tem por objetivo o lucro, podemos entender a precisão da análise do capitalismo baseado no
valor-trabalho. Ao ser vendido como uma mercadoria, o valor próprio do trabalho é o de sua reprodução,
quer dizer, equivale à soma das mercadorias necessárias para que o trabalho se perpetue, ou seja para que o
trabalhador reproduza sua força de trabalho. Porém, a execução do trabalho pode superar o trabalho
necessário para sua reprodução, o que gera um excedente, que na forma mercadoria se converterá em
dinheiro excedente, ou seja, lucro. Para tanto, o produto precisa ter um valor de uso, alguém precisa querê-
lo e comprá-lo, só assim sendo possível a realização do valor (caso o produto não tenha valor de uso, o
trabalho não criou valor – ele só se realiza quando fecha o ciclo passando pelo mercado).
Valor é o tempo de trabalho socialmente necessário (média social para o tempo de produção de algo), que
se refere ao poder de transformação que o homem possui perante o meio, que transformado, passa a ter um
valor para a sociedade, torna-se um produto humano, uma mercadoria. O valor-trabalho é então uma
quantidade que tem por medida o tempo e que se torna abstrato (não depende de qual tipo de trabalho
específico), estabelecendo assim a base para as trocas no mercado, mas que tem por efeito principal o
sucesso ou não de certo empreendimento, levando-se em conta se ele gera ou não um excedente de
trabalho. Lembra-se, entretanto, que esta concepção de valor é específica às sociedades capitalistas que
possuem por princípio sua reprodução e acumulação, através da lógica do dinheiro transformado em
mercadoria que se transforma em dinheiro + excedente. Sob esta ótica, valor é trabalho humano. Por isso,
esta análise que utiliza como valor o tempo de trabalho socialmente necessário e refere-se ao modo de
produção capitalista, não deve ser universalizada para qualquer sociedade, afinal, como o próprio termo
diz, o valor é determinado pelo “socialmente necessário”. Quer dizer que esse conceito de valor-trabalho
faz sentindo apenas segundo a lógica da mercadoria, da produção fragmentada e do emprego de força de
trabalho. É onde se estabelece a base de um sistema que tem por objetivo acumular dinheiro e o faz a partir
da produção de sobre-valor. Isso unicamente porque a força de trabalho é agora uma mercadoria – a saber,
a única mercadoria que consegue produzir mais valor do que possui (o que não acontecia, por exemplo
com escravos, que não eram contratados, mas produziam como um dom da natureza). Assim a sociedade
capitalista é a sociedade do trabalho.
82
efetivamente funciona. E uma das coisas que mais fica evidente é a lógica de operação
sistema que só existe enquanto flui e que se caracteriza pela constante expansão de seus
que existem áreas que expressam as contradições internas ao próprio sistema capitalista.
aumentar o lucro, ele nega a si próprio, já que ao promover tal ampliação, destrói as
condições que o criam, chegando mais próximo de seu estancamento, ou seja, da perda
movimento, em circulação. Existem locais de entraves que podem gerar uma barreira,
A primeira diz respeito à força de trabalho. O capital deve ter controle tanto da
para a produção, para poder otimizar a produção de mais-valia. É essa sua principal base:
a regulação do trabalho para manter a sua exploração, de onde resulta a sua reprodução
como sistema produtor de lucro. Mas tal otimização pode gerar uma redução excessiva
do lucro, “profit squeeze crisis”, se houver uma classe trabalhadora suficientemente forte,
distribuição da mais-valia, chegando ao limite de não ser mais rentável, para o capitalista,
83
A segunda contradição se põe na relação da sociedade com as bases que
ao máximo suas capacidades produtivas. Esta contradição leva a uma crise de recursos
(crise do subconsumo), pois é sempre necessário que haja dinheiro no sistema para que a
Enfim, estas quatro contradições são todas pontos de bloqueio vitais para o capitalismo.
Para que funcione, é preciso que esteja em movimento, é preciso que o capital circule. O
que acontece se um destes bloqueios se concretizar? O capital pára e toma início então,
mais capital, pois capital é apenas dinheiro investido que tem como objetivo retornar
como mais dinheiro. (Vide figura 4). Dessa forma, são diversos os agentes que se
preocupam com a superação destas barreiras que estão sempre em jogo, mais ou menos
84
85
Neste sentido, é fundamental que nos aprofundemos numa prática do sistema
história, vemos que existe um processo de acumulação primitiva (ou original), que se
capitalismo.” 85
em domínios até então entendidos como fora dos limites do cálculo de lucro. Utilidades
85
HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Oxford University Press. 2005. p.159 – As
traduções são minhas.
86
mercantilização da natureza em todas as suas formas. A mercantilização (através do
freqüentemente usado para forçar tal processo mesmo contra a vontade popular. A
comum, conquistados ao longo de anos de dura luta de classes (direito à pensão, bem-
estar, assistência à saúde nacional), em domínios privados tornou-se uma das mais
uma empresa que foi comprada desvalorizada, obtendo-se daí lucro] através de fusões e
inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a peões de dívida [paga-se a dívida
despossessão de bens (a incursão nos fundos de pensão e a sua dizimação pelos colapsos
tornaram elementos centrais do sistema financeiro capitalista. (...) Além disso, nós
também temos que ver a incursão especulativa levada a cabo por ‘hedge funds’ [fundos
87
formando a verdadeira vanguarda da acumulação por despossessão no estágio global,
mesmo que eles supostamente tenham conferido o benefício positivo de diminuir riscos.
conveniente para acumulação subseqüente é exata. Bens valiosos são colocados fora de
uso e perdem seu valor. Eles permanecem em pousio até que capitalistas possuidores de
liquidez escolham soprar neles nova vida. O perigo, no entanto, é que as crises possam
para classes inferiores que ocorrera durante a era de liberalismo embutido. Ele faz isso
sustentam o salário social. Mesmo quando a privatização parece ser benéfica para as
classes mais baixas, o efeito de longo prazo pode ser negativo [já que uma vez
88
venda), a imposição de taxas de usuários (...), e a provisão de vasta disposição de
Assim, a acumulação primitiva não deve ser confundida com algo do passado,
ancestral. Trata-se de uma prática atual que permite o surgimento deste dinheiro original
necessário para se começar, para se entrar no negócio, com força suficiente para que a
fonte de ampliação do sistema que vem introduzindo riqueza no capitalismo global desde
a década de 1970.
“Em outros aspectos, o dinheiro-crédito tem certas peculiaridades. Por longe que
possa circular uma carta de crédito contraída privadamente, sempre deve regressar a
seu lugar de origem para seu reembolso. As outras formas de dinheiro não circulam
nesta forma. Uma moeda de ouro pode passar de mão em mão e seguir sempre em
circulação sem regressar em nenhum momento a seu lugar de origem. Essas formas de
dinheiro são formas sociais desde o princípio ainda que lhes tenham dado um uso
86
HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Oxford University Press. 2005. pp.161-165. – a
tradução é minha.
89
dinheiro instantaneamente ao volume das transições de mercadorias; o dinheiro-crédito,
à diferença do ouro, se pode ampliar e contrair à vontade. Por outro lado, os que
crédito deve estar garantida para que este possa circular com segurança. [Em última
87
instância, esse é o papel do banco central].” Vemos então a criação do sistema
financeiro, que nada mais é do que a circulação de crédito, ou seja, de papéis que
com esta distância entre dinheiro a ser recebido e dinheiro real, quer dizer, este buraco
descontado em um banco, abre a possibilidade para que sejam lançados ainda mais para o
futuro, já como dinheiro ampliado, ou lucro que existirá a partir do investimento. Nasce o
acontece realmente é que o direito ao trabalho futuro que define o capital fixo é
considerado como capital fictício porque não está respaldado por nenhuma garantia
firme.” 88 “A classificação de ‘capital fictício’ está implicada cada vez que se amplia um
capital permite que o capital circulante que tenha se acumulado em excesso passe sem
tropeços à formação de capital fixo, processo que pode disfarçar totalmente a aparição
87
HARVEY, David. Los Límites Del Capitalismo y La Teoría Marxista. Fondo de cultura econômica.
1990. pp. 250-251. – As traduções são minhas.
88
HARVEY, David. Los Límites Del Capitalismo y La Teoría Marxista. Fondo de cultura econômica. 1990.
p.271.
90
da crise a curto prazo. Entretanto, a criação de valores fictícios antes da produção e
totalmente abstrato, pois migra facilmente, correndo atrás de onde se poderá obter mais
preservem sua flexibilidade e liquidez, ao mesmo tempo que os preços das ações se
título de propriedade não ‘dão a quem os possui nenhum poder de disposição sobre o
capital’, e o próprio capital não se pode retirar porque o título é só um direito sobre
uma porção das utilidades futuras. Os títulos são ‘duplicatas em papel’ do capital real;
a duplicata em papel pode circular ao passo que o capital real não. (...) Entretanto,
capital’. Os preços destes títulos podem então flutuar de acordo com suas próprias leis
90
‘independentemente do valor do capital que representam’.” “Agora temos que
expansão real dos valores das mercadorias se mantém no mesmo ritmo que a criação
prévia de capital fictício. Entretanto, tão imediato quanto se torna evidente o excesso de
89
HARVEY, David. Los Límites Del Capitalismo y La Teoría Marxista. Fondo de cultura econômica. 1990.
p.270. – a tradução é minha.
90
HARVEY, David. Los Límites Del Capitalismo y La Teoría Marxista. Fondo de cultura econômica. 1990.
p.272.
91
MARX, Karl. O Capital – vol.3, apud HARVEY, David. 1990.
91
vê ameaçada. A demanda por dinheiro nesse momento é estritamente uma demanda por
central contra essa situação é imprimir dinheiro respaldado pelo Estado e comprar os
dinheiro nacional não é convertível em ouro, então um banco central pode realmente
parece ter uma opção entre desvalorizar o dinheiro ou as mercadorias, entre a inflação
ou a depressão.” 92
E esta formação completamente surreal, gera ainda uma concretude que é capaz
de fazer com que novos campos de atividades econômicas surjam, atividades para além
da imaginação. “Esse ‘espantoso’ mundo das altas finanças envolve uma variedade
empréstimos de curto prazo uns dos outros, as companhias de seguro e fundos de pensão
reúnem tal quantidade de fundos de investimento que terminam por funcionar como
cada vez mais difícil dizer onde começam os interesses comerciais e industriais e
denominado ‘empreendimento com papéis’. Vem sendo dada uma tremenda ênfase, nos
92
HARVEY, David. Los Límites Del Capitalismo y La Teoría Marxista. Fondo de cultura econômica.
1990. pp.298-299.
92
últimos anos, à descoberta de maneiras alternativas de obter lucros que não se
proveito das variações relativas dos valores das moedas ou das taxas de juros, chegando
rivais ou mesmo sem nenhuma relação. (...) a motivação mais comum era obter lucros
93
estritamente financeiros sem dar importância à produção real.” “A acumulação
flexível evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador (...). Isso
possibilidade de tornar cada vez mais distante o capital produtivo e o capital fictício,
chegando próximo à autonomização total das duas esferas. Porém, é claro que essa
produzida no setor produtivo, existe uma inconsistência profunda entre o capital fictício,
o crédito que circula e o capital real produtivo – os números simplesmente não batem.
aqui devemos relembrar a acumulação por despossessão, assim como os gastos de anti-
93
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Ed. Loyola. 2005. p.154.
94
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Ed. Loyola. 2005. p.155.
93
na indústria bélica, mas também em quaisquer obras que produzam a fixação do capital,
mais rotatividade no sistema. É exatamente por isso que não podemos resumir as
compõem, fazendo com que as barreiras que surjam sejam superadas, e dentro de um
uma nova crise (por exemplo ambiental ou de trabalho), que abrirá campo para novas
atividades e novos investimentos financeiros, assim como para novas ações, agora
por sua vez são revertidas e destruídas, gerando novas práticas de consumo, que
ampliarão novamente o mercado até que outra barreira para a acumulação comece a
política, é necessário que passemos ainda por pontos bastante controversos dentro da
autores a variadas conclusões sobre o futuro do sistema. Tendo por fundamento que o
a questão num mundo em que o trabalho como produtor de mercadorias reais vai
perdendo espaço para o setor de serviços e de produtos que não são palpáveis. Assim,
94
como poderia se reproduzir um sistema que depende da exploração do trabalho, se o
trabalho cada vez mais se reduz, sendo que por trabalho pressupõe-se a produção de
mais-valia?
exemplo bastante expressivo do que seria este tipo de trabalho: “uma cantora que entoa
mercadorias, ou melhor, de produtos – este trabalho mais com as mãos, aquele trabalho
mais com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (engineer), técnico, etc.,
outro, como capataz (overlooker), um outro como operário manual direto, ou inclusive
como simples ajudante - , temos que mais e mais funções de capacidade de trabalho se
direta num produto final que, ao mesmo tempo, é um volume total de mercadorias; é
95
MARX, Karl Capítulo Sexto Inédito de O Capital: resultados do processo de produção imediata.
Publicações Escorpião 1978. apud MELLO, Gustavo. Algumas respostas teóricas para as vicissitudes do
capitalismo contemporâneo: crítica ou fetichismo? p.65
95
absolutamente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador (...) esteja mais
mercadoria, ser trabalho produtivo, etc., como qualidade inerente em si mesma aos
96
depositários materiais dessas determinações formais ou categoriais.” Assim, para
Marx, o trabalho produtivo é todo aquele que está vinculado à produção de uma
mercadoria, algo que causa grande perturbação num sistema de produção altamente
trabalho produtivo, que nas palavras do próprio Marx: “... produtivo é todo trabalho que
passa a mercadoria, do primeiro produtor até o consumidor), seja qual for a espécie,
trabalho manual ou não (científico); e improdutivo é o trabalho que nela não entra e que
não tem por propósito e objetivo produzir mercadoria. Essa distinção tem de ser mantida
referem ao setor de serviços devem ser compreendidas ainda como trabalho produtivo,
pois fazem parte da mercadoria enquanto efetuação de seu consumo, sendo ainda
explorado por um empresário que tem como objetivo o lucro (a diferença é que
científico, fábrica de cada peça, setor do design e até mesmo o transporte e o armazém de
vendas). “Serviço não é, em geral, senão uma expressão para o valor de uso particular
96
MARX, Karl Capítulo Sexto... apud MELLO, Gustavo. Algumas respostas teóricas para as vicissitudes
do capitalismo contemporâneo: crítica ou fetichismo? p.68
97
MARX, Karl. Teorias da Mais-Valia: História Crítica do pensamento econômico. Ed. Civ. Brasileira.
1980. P. 1473 apud MELLO, Gustavo Algumas respostas teóricas para as vicissitudes do capitalismo
contemporâneo: crítica ou fetichismo? p.68 (nota 304).
96
do trabalho, na medida em que este não é útil como coisa, mas como atividade.(...)
serviço é toda atividade laboral cujo efeito útil não pode ser desvinculado da própria
atividade, de modo que o seu resultado não se materializa como coisa independente da
atividade.” 98
também aqui, podemos ver uma renovação de interesse e de ênfase, já que, num mundo
última técnica, do mais novo produto, da mais recente descoberta científica, implica a
torna uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais, sob
99
condições que são elas mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas.”
transformando-a num negócio, produz-se sua escassez – necessária para sua exploração
científicos.” 100
98
MARX, Karl O Capital – vol.1 e Capítulo Sexto... apud MELLO, Gustavo Algumas respostas teóricas
para as vicissitudes do capitalismo contemporâneo: crítica ou fetichismo? p.69.
99
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Ed. Loyola. 2005. p.151.
100
MELLO, Gustavo Algumas respostas teóricas para as vicissitudes do capitalismo contemporâneo:
crítica ou fetichismo? p.132.
97
indústria”, ou das idéias que pregam a sociedade contemporânea como sociedade do não-
Outro tema de grande controvérsia, mas que vai no mesmo sentido de se supor um
Não são poucos os que a questionam e dão base para sua crítica como constituinte de
uma lei. Morishima demonstra matematicamente casos em que tal tendência não se dá.
Balibar aponta para uma tendência sem fim, que se reproduz reproduzindo os fatores que
a contrariam. Se de fato Marx nos mostra a queda tendencial da taxa de lucro não como
um limite externo, mas interno – contradição inerente ao capitalismo, isso nos leva a
caminhos muito mais coerentes do que a eterna espera da queda do gigante que
tropeçaria em suas próprias pernas. Pois se podemos estar certos de algo, levando em
consideração tudo o que foi dito, é que as contradições internas do capitalismo servem de
motor para o seu desenvolvimento. São sempre obstáculos a serem superados, levando o
mecanismos para se reproduzir. “O único limite da tendência é interno e ela está sempre
interno que tem de voltar a superar por meio de um deslocamento. (...) as coisas só
funcionam bem funcionando mal, sendo a crise ‘um meio imanente ao modo de produção
98
tem limite exterior mas apenas um limite interior que é o capital em si, limite que ele não
capitalismo: quanto mais lucro investido na produção, mais reduzida é sua capacidade de
extrair mais-valia da produção; ou seja, quanto mais o capitalismo criar condições para
capitalismo não possui capacidade de solucionar os problemas que lhe são postos, porque
estes são fruto da própria maneira de reprodução do sistema capitalista, que por si é
contraditória.
A queda tendencial da taxa de lucro, antes de ser uma profecia, é um alerta que
mostra ser irrefutável o argumento de que não há solução dentro do sistema capitalista.
Desta forma, não podemos postergar as linhas de fuga através de políticas paliativas que
tem como perspectiva melhorar as condições de vida, se não apenas ter como base a
101
DELUZE, Gilles. O Anti-Édipo. Ed. Assírio e Alvim. 2004. pp.239 e 240.
99
O Estado e a Política
“Os mercados de fixação de preços, para tratar do primeiro problema, fornecem tipicamente inúmeros
sinais com alto grau de descentralização que permitem que os produtores coordenem as decisões de
produção com as necessidades, vontades e desejos dos consumidores (respeitando, com efeito, as
restrições de orçamento e custos que afetam as partes envolvidas em toda transação de mercado). Mas a
celebrada “mão invisível” do mercado, de Adam Smith, nunca bastou por si mesmo para garantir um
contratos válidos, administração apropriada do dinheiro) funcionam adequadamente. Algum grau de ação
falhas de mercado (tais como os danos inestimáveis ao ambiente natural e social), evitar excessivas
concentrações de poder de mercado ou combater o abuso do privilégio do monopólio quando este não
pode ser evitado (em campos como transportes e comunicações), fornecer bens coletivos (defesa,
educação, infra-estruturas sociais e físicas) que não podem ser produzidos e vendidos pelo mercado
Na prática, as pressões coletivas exercidas pelo Estado ou por outras instituições (religiosas,
políticas, sindicais, patronais e culturais), aliadas ao exercício do poder de domínio do mercado pelas
grandes corporações e outras instituições poderosas, afetam de modo vital a dinâmica do capitalismo.
Essas pressões podem ser diretas (como a imposição de controles de salários e preços) ou indiretas (como
a propaganda subliminar que nos persuade a incorporar novos conceitos sobre nossas necessidades e
desejos básicos na vida), mas o efeito líquido é moldar a trajetória e a forma do desenvolvimento
capitalista de modos cuja compreensão vai além da análise das transações de mercado. Além disso, as
propensões sociais e psicológicas, como o individualismo e o impulso de realização pessoal por meio da
posição ou alguma outra marca de identidade individual, têm um papel na plasmação de modos de
consumo e estilos de vida. Basta considerar todo o complexo de forças implicadas na proliferação da
produção, da propriedade e do uso em massa do automóvel para reconhecer a vasta gama de significados
sociais, psicológicos, políticos, bem como mais propriamente econômicos, que estão associados a um dos
100
A segunda arena de dificuldade geral nas sociedades capitalistas concerne à conversão da
capacidade de homens e mulheres de realizarem um trabalho ativo num processo produtivo cujos frutos
possam ser apropriados pelos capitalistas. Todo tipo de trabalho exige concentração, autodisciplina,
condições de trabalho assalariado põe boa parte do conhecimento, das decisões técnicas, bem como do
aparelho disciplinar, fora do controle da pessoa que de fato faz o trabalho. A familiarização dos
assalariados foi um processo histórico bem prolongado (e não particularmente feliz) que tem de ser
disciplinação da força de trabalho para propósitos de acumulação do capital – um processo a que vou me
referir, de modo geral, como ‘controle do trabalho’ – é uma questão muito complicada. Ela envolve, em
primeiro lugar, alguma mistura de repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos que têm
de ser organizados não somente no local de trabalho como na sociedade como um todo. A socialização do
trabalhador nas condições de produção capitalista envolve o controle social bem amplo das capacidades
ética do trabalho, a lealdade aos companheiros, o orgulho local ou nacional) e propensões psicológicas (a
um papel e estão claramente presentes na formação de ideologias dominantes cultivadas pelos meios de
comunicação de massa, pelas instituições religiosas e educacionais, pelos vários setores do aparelho do
Estado, e afirmadas pela simples articulação de sua experiência por parte dos que fazem o trabalho.”
DAVID HARVEY
101
O Estado foi brevemente mencionado anteriormente, mas sua importância no
mundo moderno é tão forte, que talvez seja este o tema que mais evidentemente esteja
grau, desde o século XV. Mas a compreensão do Estado nos dias atuais, apesar de
permanecer rodeando os mesmo temas, tem para nós uma importância diferente, digamos
crítica, de entender o Estado como parte de uma cultura que poderíamos chamar de
sociedade capitalista. “Hoje, o Estado está numa posição muito mais problemática. É
negócios’, para atrair o capital financeiro transnacional e global e conter (por meios
distintos dos controles de câmbio) a fuga de capital para pastagens mais verdes e mais
lucrativas.” 102 “E o Estado capitalista desempenha este papel há muito tempo – diga-se
o que se disser –, desde o princípio, desde a sua gestação sob formas semi-feudais ou
semi-monárquicas: ele controla, do ponto de vista dos fluxos dos trabalhadores ‘livres’,
produção. Não houve nunca um capitalismo liberal (...). Em regra geral, os controles e
Esta situação desapareceu há muito tempo (...). O Estado é assim determinado a ter esse
102
HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Oxford University Press. 2005. p.160.
102
papel cada vez mais importante na regulação dos fluxos axiomatizados, quer em relação
“[O Estado] em todas as partes tem estado presente como a entidade que garante
os contratos e as liberdades dos indivíduos civis, e como o poder repressivo que forja e
construído) que os capitalistas individuais não podem ou não querem prover, por vitais
que possam ser para a acumulação ulterior. Usa suas faculdades de planejamento para
acumulação dentro do território sob sua jurisdição. O sistema estatal se converte assim
abstrato. Por ocupar uma posição tão estratégica, e por contar com as armas
se pressionar para que sirva a uma aliança deste tipo. Os ajustes distribucionais podem
103
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Assírio & Alvim. 2004. pp.263-264.
103
se modificar, a inversão em apropriação pode ser controlada, os capitais fictícios
Estado se converte na instituição central através da qual cada aliança regional busca
dose necessária de desvalorização, entretanto com alguma opção sobre como e quando
fazê-lo. Pode situar os custos dentro de seu território por meio de uma dura legislação
trabalhista ou por restrições fiscais e monetárias, ou pode buscar alívio externo por
sua formação, como se processa a sua existência, percebemos que sua estrutura é
mantida, ainda que agora dentro de uma outra perspectiva, a serviço do econômico. “O
Estado capitalista é o regulador dos fluxos descodificados como tais, enquanto apanhados
105
pela axiomática do capital.” “O Estado era inicialmente esta unidade abstrata que
conservadas e ladrilhadas, mas tem que constituir, inventar códigos para os fluxos
104
por si mesmo uma ou várias classes dominantes, mas é formado por essas classes que se
tornam independentes e que fazem dele um delegado ao serviço do seu poder e das suas
contradições, das lutas e dos compromissos com as classes dominadas. Já não é a lei
transcendente que rege fragmentos, mas tem que desenhar melhor ou pior um todo a que
dá a sua lei imanente. Já não é o puro significante que ordena os seus significados, mas
aparece atrás deles e depende do que significa. Já não produz uma unidade
determina enquanto máquina, um sistema social, mas é determinado pelo sistema social
por natureza, quer dizer, só o que faz é colocar em seu interior determinações,
que lhe escapa, que lhe representa uma afronta, que lhe é perigoso e que teme mais do
que tudo – os fluxos. Sob a soberania do Estado, a captura significa introduzir sob um
soberana. Ele se coloca como centro de onde emana o poder – autoridade máxima de
legislação e de execução. Mas com o capitalismo a coisa muda de figura. “No Capital,
agrárias constitutivas do antigo corpo social e o outro depende duma outra série, a qual
passa pelo mercador e pelo usurário (...). E mais: cada um destes elementos implica
106
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Assírio & Alvim. 2004. p.229.
105
diferentes. Para o trabalhador livre: desterritorialização do solo por privatização;
produção pelo capital mercantil; descodificação dos Estados pelo capital financeiro e
pelas dívidas públicas; descodificação dos meios de produção pela formação do capital
absorção que se resume à produção do lucro. “É assim que se ligam os três segmentos da
reprodução capitalista sempre alargada, que definem também os três aspectos da sua
imanência: 1.º) o que extrai a mais-valia humana a partir da relação diferencial entre
periferia, mantendo todavia no centro grandes zonas residuais; 2.º) o que extrai a mais-
valia maquínica a partir de uma axiomática dos fluxos de código científico e técnico, nos
setores de ‘ponta’ do centro; 3.º) o que absorve ou realiza estas duas formas de mais-
107
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Assírio & Alvim. 2004. pp.233-234.
108
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Assírio & Alvim. 2004. p.246.
106
da cadeia D-M-D’) que muitas vezes é uma estratégia de eliminação da produção, como
gastos militares, construções civis ou mesmo compra de produções pelo Estado. Ele
reterritorializa aquilo que é desterritorializado pelo capital; ele sobrecodifica aquilo que é
descodificado pelo capital: e como um pai que já não controla mais sua filha adolescente
e rebelde, tenta consertar e resolver todos os problemas que ela cria, sendo sustentado
pela mesma, utilizando-se de sua velha moral para legitimar o que faz.
A micropolítica
que já era apontado pelo próprio Marx no primeiro volume de O Capital, quando trata da
conceito de poder que não se restringe à teoria da soberania do Estado, mas que
evidencia as práticas políticas (relações de poder) nos níveis mais íntimos da sociedade,
exercício efetivo de poder, era preciso que a teoria da soberania estivesse presente no
aparelho jurídico e fosse reativada pelos códigos. Temos, portanto, nas sociedades
modernas, a partir do século XIX até hoje, por um lado, uma legislação, um discurso e
garante efetivamente a coesão deste mesmo corpo social. Ora, este sistema disciplinar
não pode absolutamente ser transcrito no interior do direito que é, no entanto, o seu
107
complemento necessário.” 109 Para tanto, apesar de Foucault em suas obras não dar tanta
poder que fazem com que a sociedade permaneça dócil. Sem dúvida o poder garante a
realidade, sejam cooptados a agir num sentido específico. Por isso, a subordinação do
político ao econômico, apesar de ser logicamente coerente, não pode ser analisada nesses
termos, devido a sua força e importância. “O problema que se coloca nas pesquisas de
que falo pode ser analisado da seguinte forma: em primeiro lugar, o poder está sempre
‘funcionalizado’ pela economia? Tem essencialmente como razão de ser e fim servir a
segundo lugar, o poder é modelado pela mercadoria, por algo que possui, se adquire, se
cede por contrato ou por força, que se aliena ou se recupera, que circula, que herda esta
nas e com as relações econômicas e sempre constituem com elas um feixe? Neste caso, a
funcional nem do isomorfismo formal, mas de uma outra ordem, que se deveria
explicitar.” 110 “Não [se deve] tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço
sobre outras; mas ter bem presente que o poder – desde que não seja considerado de
muito longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
109
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Ed. Graal. 2008. p. 189.
110
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Ed. Graal. 2008. p. 175.
108
exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser
analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia.
Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado
como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas
os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de
sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de
transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.
Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo
primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria,
próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do
indivíduo que ele constituiu.” Prossegue, “Creio que deva ser analisada a maneira como
como são investidos e anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais
ou lucros econômicos podem inserir-se no jogo destas tecnologias de poder que são, ao
111
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Ed. Graal. 2008. p. 184.
109
A Lógica da Absorção
“Eu vi as nuas simplicidades da complicada civilização na qual vivia. A vida era uma questão de abrigo e
comida. Para conseguir abrigo e comida os homens vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o
político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade;
enquanto quase todos vendem sua honra. As mulheres também, nas ruas ou na sagrada relação do
casamento, estão prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são mercadorias, todas as pessoas
compradas ou vendidas. A primeira coisa que o trabalhador tinha para vender era a força física. A honra
do operariado não tinha preço no mercado. O operariado tinha músculos e somente músculos para
vender.”
JACK LONDON
110
Apesar das categorias do capitalismo, de sua empiria, das relações de poder ligadas à
também são evidentes materialmente, é preciso que fique claro que, como mostramos
pode separar as questões intelectuais das materiais. O homem percebe o mundo como
pensa o mundo – o pensamento organiza a percepção. Por isso mesmo que não podemos
mundo e nas consciências, enquanto consciência que gera sentido para um mundo sem
própria repressão. Não pelo querer, que já supõe uma formatação do desejo, mas por esta
própria formatação que produz o querer, que reduz, por exemplo, a vida à mera
status quo ou de qualquer existência alienada que apenas aceita e se entrega a um sistema
que funciona (seja como for), sem nunca assumir a produção da realidade como uma
ação, sem quebrar com a “naturalidade” das coisas. Mas tal posição na Natureza, como já
dissemos, não é uma postura do querer e sim uma revolução no desejo: nas maneiras
como se efetuam as ligações, com o que se liga, o que se produz. É por isso que a
guinada niilista não pode ser evitada. É preciso desconstruir qualquer positividade que
nos habite para que se faça variar as potências naturais, selvagens, descodificadas,
cume de um processo muito mais complexo que quer se desamarrar de toda a rigidez que
uma sociedade consegue nos impor – livrar-se da modernidade que somos, nos mais
trabalho. “No fundo, temos que produzir a verdade como temos que produzir riquezas,
111
ou melhor, temos que produzir a verdade para poder produzir riquezas. Por outro lado,
estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o discurso
destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que
trazem consigo efeitos específicos de poder.” 112 Dentro da lógica capitalista, “Já não são
as pessoas que são marcadas, mas estas quantidades: ou o teu capital ou a tua força de
trabalho – o resto não tem importância nenhuma porque havemos de te apanhar nos
limites alargados do sistema, ainda que seja preciso fazer um axioma especial para ti.” 113
imperativo da Natureza “do que não mata, fortalece”. “Esse sistema requer constante
alturas de atividade e crescimento. Isto que dizer, porém, que todos os homens e
daquilo que se lhe opõe, torna-se mais forte em meio a pressões e crises do que em
112
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Ed. Graal. 2008. p. 180.
113
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Assírio & Alvim. 2004. p.262.
112
involuntários. (...) Sabemos que até mesmo as idéias mais subversivas precisam
como um todo, cujos elementos todos têm importância crucial, o que serve de alerta para
Esse esquema serve para mostrar como está associada a produção da sociedade, ou
como esta está conectada, maquinando para a produção das relações que dela dependem
e sendo composta por inúmeras relações que podem ser percebidas como constituintes de
certo grupo. Assim, as tecnologias que mantêm uma relação direta e objetiva com o
114
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Cia. das Letras. 2006. p.135
113
ambiente, utilizando-se dele para sua própria constituição (materialidade da tecnologia),
assim como para o suprimento das necessidades criadas pela sociedade e o conseqüente
impacto que produzem. Tais tecnologias são utilizadas dentro de certos processos de
trabalho, inclusive coordenando-os, numa relação de mistura que já não se sabe onde
deveres e direitos dos cidadãos, o que não poderia ser constituído sem o apoio de
concepções mentais, da mesma forma que as influenciam, para que dêem conta de uma
soluções para aquilo que vislumbra, fazendo parte de uma composição social, geram
colocando-a num movimento histórico. Ainda assim, não devemos pensar ciclicamente,
ainda mais quando se trata de uma sociedade que possui por princípio o surgimento de
114
CONCLUSÃO
potências, fazendo o real variar ainda mais, ampliando o alcance e o horizonte da ação.
conexões que então funcionarão por conta própria. Máquinas porque não representam
nada além do que são, do que se produzem como ser, Natureza como produção e nada
mais. As organizações criam o nível molar, dos movimentos de massa, de uma multidão
determinadas. Fazer o desejo variar, produzir no nível molecular: eis o desafio! Máquinas
sem dimensão entre aqui e agora, entre espaço e tempo, entre virtual e atual, viragem,
dobra, soluço do real. Corda bamba da esquizofrenia, porque descobre que sob a terra,
encontram-se apenas partes, apenas pedaços – pedaços que se combinam e que já geram
pequenos ritmos de uma sinfonia universal, de uma ópera que conta a história de si
figuram tons, harmonias, dissonâncias e a Natureza a tudo ama, ama a si mesma, não há
115
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo.
115
certo nem errado, apenas vida e morte, aniquilação e surgimento; por isso um jogo torto,
desconcertante, do caos que não existe em si (apenas encontros que não fazemos idéias,
produzem, até com uma rapidez absoluta de uma rocha milenar que espera pela maré no
cume da montanha). Nada é, por isso esqueça a dialética! Tudo se afirma e se encontra,
tudo soa... e se nega, é porque afirma antes de ser, afirma antes de conceber, produz no
não do negar-se: quem vê o não, lambe a rebarba de um movimento absoluto. Sim! O que
é Natureza?! O silêncio inaudito da vida maquinando sua própria produção. Aqui e agora,
abençoando todo o passado no entretempo dos momentos. A meta não é mais exterior à
ação, não existe um sujeito que quer algo, mas a vontade é sempre um querer algo, em
que não se deve separar a meta do próprio ato de querer. Mas torna-se essa máquina que
somos, transformar-se nessas máquinas que constituímos é abafado pelo próprio ímpeto
de manutenção do corpo. Nietzsche falava de forças ativas e reativas. Não há melhor nem
existir, infeliz tristeza spinozista. As forças reativas que compõem os corpos se colocam
investimentos são generalizados e tudo quer se potencializar, eis o grande jogo. As forças
perpetuar sua existência enquanto produtor, quer apenas “comer e habitar”, sobreviver e
gozar – constrói para si um corpo passional, dependente da produção ativa que vem de
fora e se regozija com os pequenos prazeres, transforma-se num moribundo que suga a
vida do que é vivo. Vira o vampiro, ídolo do capitalismo, sugador de vida para se manter
116
vivo. Temos uma ontologia milenar produtora de corpos podres e formatados – corpos
que relegam ao mundo de lá, ou seja, ao nada, suas potências de agir, abstendo-se da vida
os caminhos predeterminados e felicitam-se uns aos outros quando vêem um dos seus
seguir a mesma trilha para a morte... “pois as pessoas da sala de jantar só pensam em
nascer e morrer”. Em nada lhes toca a vida, apenas como dor remediável. “(...) o elogio e
a promoção da atividade maquinal. Essa atividade diminui o sofrimento e é por isso que
sofredor de seu próprio sofrimento, ocupar sua consciência com uma atividade
constante, de modo tal que sobre pouco espaço para o sofrimento. É a nossa sociedade
‘disciplinar’ que promove o trabalho maquinal, com tudo aquilo que lhe é próprio:
alegria’, como um remédio muito apreciado contra a depressão. Essa ‘pequena alegria’
queremos, um dia, não ter mais nada a temer’ (...) A vontade e o caminho que conduzem
a este ponto se chamam hoje em dia (...), o ‘progresso’. (...) Se a moral do rebanho
116
NIETZSCHE apud MOURA, A. C. R. (2005, pp.153-154)
117
da vida, no final, se tudo der certo, ela ‘espera subtrair-se também a todo gênero de
agora o estado futuro de um rebanho tão bem domesticado que pode dispensar-se até
diferentes atores. Porém não devemos interpretar os fatos como indivíduos mal
intencionados. “o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que
degenera, a qual busca manter-se por todos os meios e luta por sua existência. (...)
afirmativa da vida. Mas da vida adoecida...” 118 E só pode haver força criativa da grande
sociedade educa primeiro os indivíduos, os reforma como indivíduo médio ou total, ela
não se forma de indivíduos isolados, nem por contratos entre eles. Somente como ponto
não oprime o indivíduo, porque este não existe (...) É o libertário individualista que
parte da idéia ingênua de pessoa privada, como uma unidade pré-constituída e atômica,
tal como esta foi sedimentada em nosso imaginário pelo contratualismo, e desde então
sente-se à vontade para forjar, através dela, uma oposição de princípio entre o indivíduo
e os poderes sociais, sem se dar conta de que esse indivíduo foi produzido e construído
pela própria sociedade, e por isso mesmo não pode ser, de forma alguma, seu oposto ou
119
rival” “As pessoas são os simulacros de um conjunto social cujo código é
118
contrário, como índices não figurativos, em que as pessoas são substituídas por fluxos
substituídos por esquizes que constituem pontos singulares, pontos-signos com várias
120
dimensões e que fazem passar os fluxos em vez de os anular.” É toda uma batalha
para abandonar a moral e conseguir enxergar o mundo com olhos límpidos, novos, que
não tenham pressupostos, que inegavelmente são “o império dos mortos sobre os vivos”.
outro lugar, são possíveis outras interpretações, distintas das simplesmente humanas);
que as interpretações até agora admitidas são avaliações perspectivas, em virtude das
potência; que toda elevação do homem traz consigo a superação de interpretações mais
restritas; que cada consecução de nova força e de extensão da potência abre novas
perspectivas e significa crer em novos horizontes. O mundo que nos interessa é falso,
isto é, não é um fato mas uma fantasia e um ajuntamento de uma escassa soma de
observações; ele é fluido, como coisa que devém, como uma falsidade que continuamente
se desvia, que não se aproxima nunca da verdade, porque não há ‘verdade’ alguma.” 121
Assim como cada organismo terá o seu mundo próprio, o homem também constitui
um mundo próprio que se compõe por sua percepção, por sua ação e pelo ambiente. “A
intermediação entre estes, organiza uma máquina. Dessa forma conseguimos vislumbrar
o que é essa potência da Natureza em ato, o virtual e o atual, ambos reais, que constituem
o real. O arranjo imaterial (porém real) que o pensamento é capaz de produzir, não
novas conexões neuronais, fazendo com que o corpo perceba de uma certa maneira, se
120
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. O Anti-Édipo. Assírio & Alvim. 2004. p.384.
121
NIETZSCHE apud MOURA, A. C. R. (2005, p.202)
119
abra para certas possibilidades de ação, que constitua assim o seu meio ambiente, já que
fará surgir aquilo que está diretamente relacionado à sua possibilidade de ação (formas,
teoria se inscreve aqui, não como uma orientação para a ação, um fim calculado pela
especulação, uma certeza moral até mesmo irrefletida, mas como configurações do que
do hábito, que gera uma lembrança orgânica ao constituir caminhos repetidos e fixos,
passamos para a segunda síntese do tempo, da memória, seletiva, que lida com o
diferente e que se apropria das lembranças imateriais para dar sentido à situação presente
e agir diferentemente de como o corpo agiria por reflexo. Até que encontramos a terceira
produção criativa que elabora em ato novas formas de experiência, novos modos de vida,
pelos encontros dos corpos, um registro como efeito de misturas; a razão, em que os
encontros começam a ser entendidos, seus funcionamentos, de se explorar o que está fora
como algo que se refere ao que já existe; a ciência intuitiva, como poder de invenção e de
rigor, produção efetiva da diferença para além da Moral e da Verdade (que seriam
Mas nesse horizonte que aparece quase idílico, é preciso arremessar uma pedra e
perfura este quadro romântico que começa a ser pintado. A força do rebanho sem pastor,
120
da auto-perpetuação da sociedade, através de suas instituições e dos valores morais mais
teia que torna o sujeito dócil para a vida em sociedade e para a aceitação das mais
terríveis atrocidades. Como pano de fundo o fetiche de uma sociedade que foi produzida
por homens, que é sustentada por homens, porém, que conta com mecanismos
seus mais íntimos sonhos – uma sociedade que elabora suas formas de socialização,
e sangue novo roubado pela acumulação por despossessão. O capitalismo possui suas
fraquezas, seus pontos de crise que podem resultar em seu colapso. Mas de nada adianta
capitalismo até o ponto em que seu funcionamento se torne intuitivo, que a ação não
dependa de um objetivo moral, mas que se constitua como limagem, como criação das
O maior instrumento para o combate que temos é a cartografia. Mas é preciso que
se produza uma cartografia mais complexa, cartografia do desejo, das micropolíticas, das
macropolíticas, das tecnologias, das crises, das distribuições. No entanto, uma cartografia
121
nômade, que não territorializa, mas que, pelo contrário, desterritorializa, antes mesmo do
capitalismo. Fica uma vaga intuição. A certeza de que é apenas através da criação das
mesmos.”
122
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